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Perspectiva Filosfica, Recife, v. II, n. 38, ago./dez. 2012
Filosofia como prxis e seu ensino: relevncia e prescindibilidade da tradio
filosfica para o ensino da matria
Philosophy as praxis and the philosophy teaching: relevance and dispensability of
philosophical tradition
Prof. Dr. Daniel Pansarelli1
ResumoPartindo de uma definio de Filosofia relacionada ao campo da prxis, portanto, dando matria a obrigao de influir na e ser influenciada pela realidade contextual em que praticada, pretende-se refletir dialeticamente acerca das contribuies que a milenar tradio filosfica oferece ao ato de filosofar e ao seu ensino. Tomar-se-o, por um lado, as relevantes contribuies que a tradio oferece ao docente, ao docente-filsofo e ao estudante, sobretudo como ampla e peculiar fonte cultural, imprescindvel realizao da educao filosfica como paideia ou como bildung. Em oposio dialtica, sero esboados caminhos para a prxis filosfica que no ocorra tendo na tradio o elemento fundamental ou mesmo marginalmente presente. Nessa segunda vertente, sero valorizadas competncias prprias ao fazer filosfico bem como caminhos no tradicionais pelos quais tais competncias podem alternativamente ser alcanadas. Por fim, sero explicitadas as vantagens oferecidas pela valorizao da tradio como componente do ensino de Filosofia, ao mesmo tempo em que sero apontados os riscos castradores portanto antifilosficos oferecidos pela fora de sua histria. Buscar-se-, assim, fugir do maniquesmo fetichista no trato da questo, oferecendo aos docentes oportunidade de reflexo e dilogo acerca de um desejvel pluralismo metodolgico.Palavras-chave: prxis, tradio, ensino, pluralismo metodolgico.
AbstractBy comprehending the philosophy as praxis, we give it an obligation to influence - and be influenced by - contextual reality in which it is held. This paper intends to reflect dialectically about the contributions that the
1 Doutor em Educao e doutorando em Filosofia pela USP, professor na UFABC, j tendo coordenado o Bacharelado em Filosofia e atualmente coordenando a Licenciatura em Filosofia. Lder do grupo Perspectivas crticas da filosofia moderna e contempornea; membro do GT tica e Cidadania, da ANPOF; e da Associao Latino-americana de Filosofia da Educao. Site: www.pansarelli.org. E-mail: [email protected].
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ancient philosophical tradition offers to the philosophical teaching. We will take the relevant contributions that tradition offers to the teacher, to the philosopher-teacher and to the students, particularly as large and peculiar cultural source, indispensable to the development of a philosophical education as paideia or as Bildung. In a dialectical opposition, we will present ways to philosophical practice that is not effected grounded in tradition. In this second part, will be valued philosophical skills and nontraditional ways by which such skills could be achieved. Finally, the advantages offered by the appreciation of the tradition will be explained as well as the risks offered by virtue of its history.Keywords: Praxis, traditions, teaching, methodological pluralism.
O problema da definio
Entre os filsofos brasileiros de nossos dias parece perma-
necer, como regra geral, um hbito que objeto de crtica filosfica
h pelo menos meio sculo. Trata-se da ausncia da reflexo acerca
do sentido prprio do filosofar. No se trata de defender a assuno,
pelo filsofo, de uma definio nica que dever permanecer imutvel
durante sua carreira, mas, antes, cobrar uma reflexo que possa orien-
tar sua atuao, prxica, filosfica, oferecendo inclusive elementos para
uma autoavaliao constante. Com efeito, como saber se a produo
que realizamos efetivamente filosfica, uma vez que no inclumos
nela a explicitao sobre o que consideramos ser prprio do e perti-
nente ao filosofar? E h que se considerar, ainda, que a criao ou ela-
borao de uma concepo de Filosofia ou de ato de filosofar implica,
evidentemente, os rumos e os limites da Filosofia a ser desenvolvida
pelo filsofo em questo, de modo que a resposta pergunta acerca do
que seja a Filosofia se faz necessria por esse segundo motivo: no s
oferecer um parmetro para a (auto)avaliao acerca da existncia ou
no do carter filosfico na produo realizada, como tambm permitir
a compreenso prvia dos limites e potencialidades existentes em tal
produo, conforme imposio da concepo adotada.
Ao longo de toda a tradio filosfica, autores dos mais diver-
sos se impuseram a tarefa de refletir acerca da questo sobre o sentido
da Filosofia, seja um grego como Plato, que no se nega a fugir de seu
estilo mais comum para oferecer aos leitores, na Apologia2; um Scrates
2 Principalmente em 20c-24b, mas considerando tambm os desdobramentos prxicos em
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que expe os princpios do seu prprio filosofar; sejam pensadores
contemporneos, a exemplo de Heidegger (1973) ou Ortega y Gasset
(2010), ambos autores de reflexes cuja prioridade explcita era a defi-
nio de suas prprias compreenses acerca do que consideravam ser a
Filosofia. Mas a relevncia das reflexes sobre o tema parece no tocar
a produo filosfica brasileira, como observa, por exemplo, Severino,
ao estudar nossa produo filosfica contempornea e constar como
uma dasatitudes fundamentais que delineiam o estilo es-pecfico do filosofar brasileiro [...] o fato de que o praticante da filosofia entre ns nem sempre reve-la uma preocupao marcante em se posicionar ex-plicitamente quanto ao sentido da tarefa do filosofar. Parte direto para sua atividade de anlise, de reflexo e de crtica, que ele julga como filosfica, e assim desenvolve seu esforo, incorporando, com sua atitude, o ditado de que nadar se aprende nadando (SEVERINO, 1999, p. 24-5).
A ausncia da reflexo acerca do sentido do filosofar, aponta-
da por Severino, vincula-se segunda e ltima caracterstica que o autor
identifica como marcante em nossa produo filosfica, a que a grande maioria de nossos pensadores desenvolve seu esforo terico deixando-se guiar por
algum modelo filosfico j constitudo (1999, p. 24). Talvez permanea vlida
a explicao para o mesmo fato que j dava Cruz Costa em meados do
sculo passado, ao observar existir
na histria da nossa inteligncia [...] a mais com-pleta e desequilibrada admirao por tudo que estrangeiro, talvez uma espcie de complexo de inferioridade que deriva do afastamento em que se mantiveram, por muito tempo, as nossas elites em relao aos problemas concretos da terra e do povo e que, talvez, tambm se explique em funo da situao colonial em que por longo tempo vive-mos (CRUZ COSTA, 1956, p. 18).
28a-35d.
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Para o praticante da Filosofia, o filsofo, a ausncia da adoo
de uma concepo clara sobre o sentido da matria parece trazer ao
menos o inconveniente da indefinio acerca do carter filosfico de
sua prpria produo: sem uma concepo que lhe sirva de parmetro,
parece ser difcil, se no impossvel, aferir se sua produo atende ou
no especificidade que se espera de um texto filosfico. Talvez derive
dessa condio a ampla preferncia por produzir como filosofia textos
que se caracterizam por comentar as obras dos filsofos consagrados:
sem poder arriscar-se por caminhos mais autorais, desparametrizado
que est, o filsofo protege-se sob a forma nica do texto monogr-
fico, amplamente amparado por suas citaes as quais, pretensamente,
garantem a dimenso filosfica de seu prprio texto. Mas, ao filsofo
que exerce a docncia da matria, tal inconveniente duplamente po-
tencializado: primeiro, no sentido de favorecer a difuso de uma pr-
tica que no poder seguramente definir como filosfica; segundo, na
dificuldade que certamente ter na consecuo de seus objetivos de
ensino, bem como na seleo de seus contedos, os quais no podero,
de qualquer modo, levar adiante uma proposta de ensino cujo campo
constitutivo no fora evidenciado.
Na busca por construir uma concepo razovel ao desen-
volvimento dos argumentos deste texto, considero que a aproximao
entre Filosofia e ensino remete a alguma forma de prxis, na medida
em que faz parte de um mesmo tema ensino de Filosofia o cam-
po tradicionalmente terico da Filosofia e a dimenso invariavelmente
prtica contida na atividade de ensino. Proponho, assim, que tomemos
a Filosofia como prxis, em um sentido particular3: uma prxis que
parta da realidade mais imediata, tal como percebida pelos estudantes,
passe, num segundo momento, reflexo mais profunda, comumente
abstrata, prpria dos estudos filosficos; e que retorne realidade, em
seguida, na condio de possibilidade de interveno refletida. Trata-
-se de um modelo, portanto, em que o contedo filosfico ocupa o
momento intermedirio, de negao da realidade imediata para pos-
3 Uma complementao dessa hiptese de definio do sentido do filosofar est apresentada em A filosofia e a universidade (PANSARELLI, 2010).
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teriormente retornar a ela, com o que dever ser uma viso mais ampla
e aprofundada da mesma realidade. Tomo, assim, aspectos no filosfi-
cos como incio e fim de cada ciclo do processo, garantindo abstrao
filosfica o papel de mediadora, que ter por objetivo a ampliao dos
horizontes na significao do mundo pelo estudante.
O lugar da tradio e os objetivos do ensino4
Ao tomar como concepo orientadora do ensino de Flosofia
a noo de Filosofia como prxis, que parta da realidade e a ela vol-
te, passando pela abstrao e reflexo propriamente filosficas apenas
na etapa intermediria, fica entendido que justamente esse momento
intermedirio o espao que pode ser ocupado pela vasta tradio filo-
sfica. No poderia ser diferente se entendemos, como apontado, que
a realidade imediata dos estudantes deva ser tomada como ponto de
partida da reflexo, e que o ponto de chegada de cada ciclo do fazer fi-
losfico deva se encerrar na prpria realidade, lida pelos mesmos estu-
dantes, agora com maior profundidade e amplitude. Se no em meio
tradio filosfica que vivem tais estudantes, se no so os temas
clssicos da Filosofia aqueles que se lhes impem reflexo, ao menos
tal como em sua percepo, no poder o professor tomar a prpria
tradio nem como ponto de partida, nem como ponto de chegada.
A definio de um sentido para o filosofar (como prxis) e
mesmo a compreenso do lugar que a tradio filosfica ocupa (mo-
mento intermedirio, abstrato) no movimento de cada ciclo filosfico
no dispensam a reflexo acerca das potencialidades que tal tradio
oferece ao ensino da matria. Para avanar na questo, parece neces-
srio considerar quais so os objetivos de tal ensino, compreendendo
que eles podem ser mais pertinentes a um ou outro tipo de categori-
zao, mais ou menos prprios a um tipo de natureza. Eles podem e
devem variar quanto a sua natureza, pois, ainda que interligados, ob-
4 A diviso, para fins didticos, dos tipos de objetivos do ensino pauta-se na tipificao dos contedos tal como adotada nos PCNs de reas diversas, realizada em consonncia com Delors (2010).
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jetivos de ensino podem apresentar-se como prioritariamente ligados
aos contedos (dando maior nfase, nesse caso, ao segundo estgio
do movimento do fazer filosfico que definimos anteriormente) ou
aos procedimentos e atitudes (nesse caso, prioritariamente ligados aos
momentos inicial e, principalmente, final do movimento). Consideran-
do que j apontamos qual o espao prioritrio ocupado pela tradio
nesses trs momentos do fazer filosfico, ser mero desdobramento
identificarmos sua (da tradio) contribuio tanto maior quanto mais
conteudistas ou conceituais5 forem os objetivos do ensino.
preciso destacar, neste ponto, a relevncia da tradio fi-
losfica se se busca formar os estudantes em uma espcie de Paidia, uma formao que abranja, para alm da instruo, a sua prpria vi-
so de mundo. Trata-se de compreender como objetivo do ensino de
Filosofia o extrapolar os prprios limites da matria como disciplina
escolar, buscando colaborar para uma formao mais slida, mais com-
pleta, que hipoteticamente deveria perpassar os grandes clssicos do
pensamento, permitindo chegar a uma compreenso da realidade que
abrangesse tudo aquilo que Jaeger identifica como constitutivo da Pai-dia em sentido grego: civilizao, cultura, tradio, literatura ou educao, compreendido que para abranger o campo total do conceito grego, te-
ramos que empreg-los todos de uma s vez (JAEGER, 1995, p.1). A
mesma formulao, possivelmente, valha para o sentido de compreen-
so da educao como Bildung6: em ambos os casos, a apropriao da riqueza contida nos grandes clssicos do pensamento, e apenas neles,
indispensvel. Tratar-se-ia, ento, de favorecer o momento interme-
dirio do movimento do fazer filosfico, seu momento mais abstrato
e reflexivo, buscando apresentar aos estudantes uma quantidade mais
significativa de contedos diversos, os quais poderiam ser tomados de
maneiras distintas para lidar com os problemas da realidade dos pr-
prios estudantes, por eles identificados na etapa inicial do processo. E,
5 Optaremos pela designao objetivos conteudistas para evitar possveis confuses com a noo de conceito, to cara Filosofia. Tomamos, ento, a noo de objetivos conteudistas no mesmo sentido em que Delors (2010) se refere aos contedos conceituais.6 Tomamos a noo de Bildung a partir de A. Berman (1984). Ver, este respeito, o artigo de R. Suarez (2005).
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nesse caso, no seriam apenas as grandes obras da tradio filosfica a
serem tomadas, mas, para alm destas, as grandes produes do pen-
samento como um todo: a filosofia, a literatura, a msica, o teatro, etc.
O objetivo, frisemos, estaria na aquisio de contedos culturais em
sentido amplo , na ampliao do repertrio pelos estudantes, com
vistas sua formao integral.
Um problema que surge nesse campo, de consecuo de ob-
jetivos conteudistas por meio da apropriao da tradio intelectual,
est na delimitao do que se poderia considerar como grandes cls-
sicos do pensamento. Se, por um lado, algumas dezenas de autores
nos vm imediatamente memria mediante a simples remisso aos
tais clssicos, no se pode deixar de considerar, por outro lado, que
Aristteles no fora um clssico e nem menos que isso durante
a Idade Mdia europeia; ou que Nietzsche pouco fora lido em vida.
Haveramos de ponderar, tambm, a total ausncia de autores orientais
e africanos dentre os clssicos consagrados como tal. Faltam, portanto,
elementos para saber se em nossa leitura contempornea consideramos
adequadamente os autores que tratamos por clssicos, meritrios de
figurar nos planos de ensino de Filosofia. Quanto a esse ponto, parece
prudente lembrar, com Onfray, que a historiografia do mbito da
arte da guerra (2008, p. 11), de modo que apenas as perspectivas dos
vencedores figuram na histria por tempo suficiente para se torna-
rem clssicos. Nesse mesmo sentido, destaca o autor,
espantoso que a filosofia, to pronta a criticar os historiadores ou os gegrafos sobre a maneira de praticar sua arte, os cientistas sobre a de conside-rar os usos corretos da epistemologia, caia por sua vez na esparrela de evitar aplicar em sua parquia o que ensina s capelas da vizinhana! Pois no do meu conhecimento que a filosofia exera as certezas de sua seita submetendo a histria de sua disciplina ao fogo cruzado de um trabalho crtico capaz de se dar conta da maneira pela qual escri-to (ONFRAY, 2008, p. 12)
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Com a colocao do problema acerca da delimitao daquilo
que se poderia considerar clssico, introduzimos a necessidade da
atitude crtica, mesmo quando se busca lidar prioritariamente com ob-
jetivos conteudistas. Ser preciso que ao menos o docente, na escolha
de seus contedos, exera a crtica para aferir se so suficientemente
clssicas as obras que escolheu para compor seu plano de ensino. Em
se tratando do ensino da Filosofia, em especial, parece que a dimenso
da crtica deve permear no apenas a atitude do docente, mas tambm
a dos estudantes. Estamos, neste ponto, passando dos objetivos con-
teudistas aos atitudinais sempre lembrando que, como j dissemos,
ambos no se excluem mutuamente; antes, se complementam.
Filosofar como atitude crtica
O ensino de Filosofia centrado nos textos clssicos no pres-
cinde o exerccio da crtica, o qual est no campo das atitudes. A de-
finio de Filosofia que adotamos neste texto, por seu turno, parece
evocar, ainda que por outro motivo, a atitude crtica, visto que ao to-
marmos a realidade percebida pelos estudantes como incio e fim do
movimento de filosofar, consequentemente favorecemos a priorizao
dos objetivos de tipos procedimental e, sobretudo, atitudinal mais
afeitos prtica por sua natureza como meta do ensino da matria.
Nesse caso, que nos parece melhor adequado realidade da educao
bsica, apresentar-se- como mais relevante que a apropriao dos con-
tedos filosficos desenvolvidos por um ou outro autor, a apropriao
do modus operandi de tal autor. Trata-se de buscar identificar a forma de
lidar com a realidade exercida pelos grandes filsofos no desneces-
srio dizer, aquela forma bastante particular e competente que fez de-
les grandes filsofos ou autores de clssicos. Antes de reproduzir
ou comentar contedos, seria o caso de inspirar-se em determinadas
formas de agir, ocasionando assim uma prtica mais autoral, que nos
parece, por princpio, mais filosfica. Aqui, caminhamos junto a uma
compreenso segundo a qual a aquisio de contedos ser primeiro
um pressuposto e depois um desdobramento, mas nunca a meta do
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processo de ensino; os objetivos desse processo estaro, sobretudo, em
auxiliar os estudantes no desenvolvimento de determinadas habilidades
de pensamento, as quais levaro construo de algo que poderamos
chamar por competncia filosfica. Parece ser algo similar ao que
sugere Velasco, ao afirmar que
a necessidade de uma prtica docente voltada para o desenvolvimento de habilidades de pensamen-to (ou ferramentas intelectuais) consenso entre educadores e crticos da educao contempornea. Por conseguinte, faz-se urgente uma educao para o pensar: o ensino-aprendizagem pautado na investigao crtica e criativa, na reflexo e funda-mentao de ideias, valores e aes. Trata-se, pois, de uma educao que visa autonomia do pensa-mento, formando educandos que pensem por si mesmos e desenvolvam mecanismos prprios de deliberao tendo autonomia tambm no agir (VELASCO, 2010, p. 13).
Parece correto observar que o estudo dos clssicos da Filoso-
fia tem sua relevncia alterada quando damos prioridade ao desenvol-
vimento, nos estudantes, de uma competncia filosfica. Com efeito,
no seria difcil conceber que um estudante pudesse apropriar-se de
um mtodo filosfico sem conhecer profundamente um autor que o
utiliza: pode-se desenvolver a habilidade de questionar como forma de
construir verdades, inspirada na maiutica socrtica, sem nunca ter lido
Plato; ou pode-se compreender que h diferenas entre um objeto em
si e a percepo que cada sujeito tem desse objeto, mesmo sem trans-
passar as speras pginas dos textos kantianos ou husserlianos. Em
todos estes casos, o valor estaria na adoo de uma postura e de uma
atitude pelo estudante, tornando-se pouco relevante se ele as adotou
por meio da leitura dos grandes filsofos ou se, por outros meios, che-
gou aos mesmos objetivos aos quais possivelmente chegaria efetuando
tais leituras.
A tomada como prioritria de objetivos atitudinais no pres-
cinde da tradio filosfica. Conforme afirmamos, apenas desloca sua
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relevncia. Se os prprios textos clssicos no comporo ao menos
no obrigatoriamente o contedo programtico a ser estudado pe-
los discentes, caber ao professor de Filosofia amplo conhecimento
dos contedos filosficos, como meio nico para que ele, o docente,
possa se apropriar suficientemente do modus operandi a ser difundido
entre os estudantes. Veja-se que, nesse sentido, ao professor no ser
suficiente portar-se como simples docente da matria, pois no ser a
sua funo a reproduo dos contedos. Antes, ele ter que colocar-
-se filosoficamente diante dos textos clssicos, aplicando-lhes a crtica
como manifestao filosfica, abstraindo de tais fontes no apenas seus
contedos, mas as estratgias procedimentais de seus autores. Trata-se
de desvelar no apenas uma ou algumas das verdades dos textos, mas
de desvelar os meios pelos quais seus autores os construram.
No h elementos rigorosamente impeditivos para que os
grandes nomes da tradio filosfica figurem nos programas de ensino,
mesmo quando se tm os objetivos atitudinais como prioritrios. Com
efeito, bastante comum que, mesmo alvejando o desenvolvimento
de um determinado tipo de postura e atitude, o contedo que permeie
as aulas afinal, h de ter um contedo seja aquele consagrado pela
tradio filosfica. Mas, nesse caso, preciso observar ao menos dois
elementos, a saber: (1) a presena da tradio filosfica no contedo
programtico no ser o elemento que fornece os critrios para traar
os objetivos constitutivos do plano de ensino. Tais objetivos esto tra-
ados desde antes da escolha dos contedos, os quais, por seu turno,
podem ser alterveis. Para fazer referncia a um exemplo pelo qual j
passamos: a apropriao da maiutica como forma de conhecer pode
se dar por meio da leitura de Plato, mas igualmente pela anlise, por
exemplo, da transcrio de um interrogatrio judicial contemporneo.
Qualquer que seja o texto, os objetivos podero (nesse caso, devero)
ser mantidos. (2) Considerando a complexidade, no raro presente nos
textos filosficos, o grau de dificuldade que sua leitura e compreenso
podem apresentar, parece prudente que o docente avalie cuidadosa-
mente se a consecuo de seus objetivos atitudinais no ser dificultada
pelos desafios impostos pela compreenso do contedo selecionado.
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No h, aqui, a defesa de uma ideia segundo a qual os estudantes da
educao bsica so, por definio, incapazes de compreender adequa-
damente os textos clssicos da Filosofia ao contrrio, temos nos de-
parado com experincias ricas de utilizao dos textos dos prprios
filsofos na educao bsica como um todo, incluso o Ensino Fun-
damental. Mas preciso considerar que tais textos podem impor di-
ficuldades que eventualmente no existiriam caso os textos adotados
fossem menos complexos. Nessa segunda hiptese, porm, estaramos
abdicando ainda mais da formao paidtica, cultural em sentido am-plo, apresentada anteriormente. Parece ser o caso, portanto, de dosar
adequadamente os tipos de contedo, sempre em funo dos tipos de
objetivo que se pretende priorizar sendo estes escolhidos, por seu
turno, em conformidade com o sentido de filosofar que o filsofo ado-
ta como orientador de sua prpria prtica docente.
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