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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luiz Carlos Montans Braga Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Luiz Carlos Montans Braga

Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2015

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Luiz Carlos Montans Braga

Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob a orientação da Prof.(a) Dr.(a) Maria Constança Peres Pissarra.

SÃO PAULO

2015

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos

À 'Negrinha' e ao 'Bacana', meus pais, que entenderam que alguém possa desejar

estudar filosofia, não obstante as dificuldades do caminho. Aos meus irmãos e à tia

Tude.

À Gabi, a quem o agradecimento é sempre pálido em relação ao que deveria ser.

Ao professor Airton Andrade Leite, por ter apresentado, com dedicação e inteligência,

muitos dos temas que ora aparecem neste trabalho e que foram objeto de várias

reuniões do grupo de estudos de sociologia jurídica da PUC SP.

À professora Maria Constança Peres Pissarrra, minha orientadora, pela generosidade

em aceitar orientar uma tese sobre Espinosa - mesmo não sendo tema de suas

pesquisas principais -, e pelas conversas sempre muito agradáveis.

Ao professor Antonio José Romera Valverde, exemplo de que a erudição pode ser

muito bem costurada pelos fios da inteligência.

Ao professor Luís César Guimarães Oliva, pela arguição erudita, precisa e gentil na

ocasião da qualificação.

À professora Marilena Chaui, que apresentou Espinosa - a mim e a muitos que tiveram

o bom encontro que foi termos sido seus alunos - em um curso ministrado no segundo

semestre de 1998, na FFLCH USP.

Ao Departamento de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, pela concessão

da bolsa CAPES-PROSUP, sem a qual eu não chegaria à terça parte do longo caminho

do doutoramento.

Ao Grupo de Estudos Espinosanos da USP, espaço de debate franco sobre a filosofia

espinosana e do dezessete, pela acolhida e por lançar luz no caminho da tese.

Aos nomeados e a outros que contribuíram para a confecção da tese, sou grato -

espinosanamente.

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RESUMO

Luiz Carlos Montans Braga

Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa

O problema do qual partiu a pesquisa foi o da relação entre afetos, política e direito na

filosofia de Espinosa. Com efeito, a Ética III é o local em que os afetos são tomados

como tema específico. Ocorre que o tema dos afetos aparece também, mais ou menos

explicitamente, nos textos exclusivamente políticos do autor, a saber, o Tratado

Teológico-político e o Tratado-político, além de ser apresentado brevemente em

momentos da argumentação da Ética IV em que a questão da civitas é posta. Outro

ponto é a presença do conceito de potência na definição mesma do conceito de afeto,

na parte III da Ética, fechando-se o círculo em que se apresentam os três conceitos,

pois Espinosa identifica direito a potência (jus sive potentia). A hipótese inicial foi a da

existência de laços e intersecções entre tais conceitos, o que se confirmou pela leitura

em detalhe dos textos espinosanos, bem como dos comentadores que trabalharam os

temas apresentados no problema inicial. O núcleo duro da tese procura alinhavar esta

relação conceitual, explicitando-a por meio da análise dos textos do autor,

especialmente a Ética, o Tratado Teológico-político e o Tratado-político. Neste

movimento argumentativo, a principal tese que procuro defender é a de que Espinosa

constrói uma filosofia política fundada na teoria dos afetos. Decorre desta tese uma

elaboração (não uma segunda tese) acerca do tema da pertinência dos conceitos

espinosanos para o direito emancipatório contemporâneo. Assim, o caminho

percorrido em todo o trabalho tem dois movimentos, um mais bem acabado e

decorrente do projeto inicial, o qual procura resolver a questão lá posta, e outro mais

caracterizado por apontamentos, trazendo os conceitos espinosanos para a análise de

questões jurídicas contemporâneas. Esse segundo momento da tese se debruça sobre

o tema da pertinência do conceito de direito natural espinosano para o direito

contemporâneo, bem como analisa a importância dos conceitos do autor para dar

potência a uma das vertentes do direito crítico.

Palavras-chave: afetos; direito natural; política; Espinosa; direito crítico.

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ABSTRACT

Luiz Carlos Montans Braga

Politic’s affective design: a reading of Spinoza’s philosophy

The research started from the relationship among affects, politics and right in

Spinoza’s philosophy. Indeed, the Ethics Part III is the place where all affects are taken

as specific topic. However, the affect subject also appears, in a more or less explicit

way, in the exclusively political texts of the author, namely the Theological-Political

Treatise and the Political Treatise, in addition to being quickly presented in

argumentative moments of the Ethics Part IV, in which the issue of civitas is posed.

Another aspect is the presence of the concept of power in the very definition of the

concept of affect, in the Ethics Part III, thus closing the circle where the three concepts

are presented, because Spinoza identifies right to power (jus sive potentia). The initial

hypothesis referred to the existence of ties and intersections between such concepts,

which was later confirmed by the detailed reading of Spinoza’s texts, as well as of

some of his commentators’ that have worked on the topics presented in the initial

issue. The hard core of the dissertation tries to approach this conceptual relationship,

explaining it by analyzing the author’s texts, namely Ethics, the Theological-Political

Treatise and the Political Treatise. In this argumentative proposition, the main thesis I

try to defend is that Spinoza creates a political philosophy founded in the theory of

affects. From this assumption, a second formulation comes up (but not a second

thesis) over the pertinence of Spinoza’s concepts for the contemporary emancipatory

right. So, the path followed throughout the research has had two approaches, one far

more finished and derived from the initial project, which makes an effort to solve the

issue hereby posed, and another one more characterized by notes, bringing Spinoza’s

concept to the analysis of contemporary legal issues. This second moment of the

dissertation looks into the pertinence of Spinoza’s natural right concept for the

contemporary right, besides analyzing the importance of the author’s concepts to lend

potency to one of the aspects of critical legal studies.

Key-words: affects; natural right; politics; Spinoza; critical legal studies.

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"SPINOZA

Baruch Spinoza escapa de nascer em Portugal. Traz o selo da raça alegórica,

predestinada, perseguida. (A diáspora é uma figura da família humana desviando-se do

Criador). Teólogo livre, aprofunda o território da pesquisa racional, designa os

atributos conhecidos de Deus: pensamento e extensão. Constrói todo um sistema em

formas geométricas. Nasceu para observar o exterior e o íntimo dos corpos: fixado em

Amsterdam aperfeiçoa a lente, que já agora corresponderá ao valor significante do

espelho na pintura holandesa e flamenga. O homem do pormenor adere ao cosmo.

Sim: contemporâneo de Rembrandt, Vermeer e Pieter de Hooch, está para a filosofia

como eles para a pintura.

*

'Os espíritos e os corpos de todos compõem por assim dizer um só espírito e um só

corpo.'

*

'O desejo é a essência mesma do homem, o esforço pelo qual o homem tende a

perseverar no próprio ser.'

*

'O supremo orgulho ou a suprema depreciação de si (abjectio) constituem a suprema

ignorância de si.'

B.S."

Murilo Mendes1

1 MENDES, Murilo. Retratos Relâmpago. 1ª Série. Roma 1965/66. São Paulo: Conselho Estadual de

Cultura/Imprensa Oficial. 1973, p. 20. Agradeço a Antonio José Romera Valverde por me apresentar este livro do poeta mineiro.

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Sumário

OBRAS DE ESPINOSA .............................................................................................. 10

OBRAS DE OUTROS AUTORES ................................................................................. 12

I. INTRODUÇÃO ou RETIRAR O VÉU: LER A POLÍTICA PELOS AFETOS ........................ 14

CAPÍTULO 1 - TEORIA DOS AFETOS .......................................................................... 20

(a) Notas sobre a tradição: afetos e política .................................................................. 23

(b) A anomalia espinosana ............................................................................................. 28

(c) Da ontologia aos afetos ............................................................................................. 32

c.1 Substância sive natura .............................................................................................. 32

c.2 Mundo dos homens e afetos .................................................................................... 42

(d) O conceito de conatus e os afetos primários: desejo, alegria, tristeza .................... 47

d.1 Os afetos na ontologia .............................................................................................. 47

d.2 O conatus: considerações iniciais ............................................................................. 51

d.3 Desejo, alegria, tristeza ............................................................................................ 58

d.4 Derivações do desejo: uma nota sobre a presença do ausente e os conceitos de

amor e ódio..................................................................................................................... 64

(e) Medo e esperança, segurança e desespero .............................................................. 70

(f) Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política ............................... 76

(g) Mimetismo afetivo .................................................................................................... 82

(h) Não há tantos nomes: os vocábulos e os afetos ....................................................... 88

(i) Agir, padecer: conhecimento, afetos, propriedades comuns .................................... 92

CAPÍTULO 2 - DIREITO, AFETOS E CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA .................................. 104

(a) Direito natural e afetos: aproximações ................................................................... 104

(b) Socialidade, cidade: o papel dos afetos metus, spes, desperatio e securitas ......... 119

(c) Imitação dos afetos, multitudo, imperium, cidade ................................................. 134

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c.1 Formar blocos de mentes ....................................................................................... 134

c.2 Como num jogo de espelhos: a multitudo .............................................................. 136

c.3 Multitudo e imperium: questão de potência .......................................................... 149

c.4 Gêneros do estado civil e distribuição da potência ................................................ 153

(d) Limites do soberano e o direito de resistir: há coisas que a cidade deve temer ... 161

(e) A política e seu avesso: paz como fortaleza de ânimo versus paz como ausência de

guerra ........................................................................................................................... 166

CAPÍTULO 3 - A ALTA VOLTAGEM POLÍTICA DO DIREITO NATURAL ou ESPINOSA

CONTRA AS VIOLÊNCIAS TRAVESTIDAS DE DIREITO ............................................... 176

(a) Direito natural: uma concepção enfraquecida ....................................................... 176

(b) Ontologia e direito: o direito como potência ......................................................... 181

(c) Direito e afetos ........................................................................................................ 182

(d) O corpo político, os afetos e a garantia da potência do direito natural ................. 187

(e) Nem toda lei é direito ou O exercício do direito natural de cada homem como

termômetro da qualidade do direito civil .................................................................... 191

CAPÍTULO 4 - ESPINOSA E O DIREITO CRÍTICO ou DA ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO

............................................................................................................................ 194

(a) Constatações do direito crítico acerca do direito contemporâneo ........................ 194

(b) A cidade, o direito civil e o poder do súdito-cidadão ............................................. 201

(c) Espinosa e as análises do direito crítico .................................................................. 203

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 209

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 215

(a) Referências primárias .............................................................................................. 215

a.1 Obras de Espinosa ................................................................................................... 215

a.2 Obras de outros autores ......................................................................................... 217

(b) Referências de comentadores e outras fontes não primárias ................................ 218

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ABREVIATURAS

OBRAS DE ESPINOSA

As traduções consultadas estão nas referências bibliográficas, ao final.

G

As obras de Espinosa que serão mencionadas se encontram na edição crítica de Carl

Gebhardt, citada nas referências bibliográficas (Spinoza Opera). Quando citada a

edição de Gebhardt, citar-se-á: G, seguido do tomo em romano e da página em

arábico.

Exemplo: G II p. 90.

As traduções utilizadas foram, quando citadas, confrontadas com o texto de Gebhardt

e cotejadas entre si nos momentos de grande diferença nas traduções dos termos. As

traduções utilizadas serão indicadas da forma descrita abaixo. Quando outra tradução,

que não a indicada abaixo, for utilizada, isto será apontado no corpo do texto da tese.

E

Para a Ética, usar-se-á a seguinte abreviação: para a Ética E, seguido da parte em

romano, Pref para Prefácio, D para definições, Def af para definição dos afetos, A para

axiomas, Dem para demonstrações, P para proposições, Cor para corolários, Ap para

apêndices, L para lemas, Esc para escólios, Post para postulados, Explic para

explicações. Um numeral arábico indicará o número de cada um desses itens. A página

é a da tradução de Tomaz Tadeu, indicada na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: E II P7 Esc p. 87.

TP

Para o Tratado político: abreviação TP. Numeral romano indica o capítulo e numeral

arábico indica o parágrafo. A página é a da tradução de Diogo Pires Aurélio, indicada

na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: TP II 1 p. 11.

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TTP

Para o Tratado Teológico-político: abreviação TTP. Numeral romano indica o capítulo.

A página é a da tradução de Diogo Pires Aurélio, indicada na Referência bibliográfica,

ao final.

Exemplo: TTP XVI p. 236 .

BT/KV

Para o Breve Tratado, abreviação BT. Numeração romana das partes, arábica dos

capítulos e, depois de vírgula, arábica para os parágrafos. A página é a da tradução de

Emmanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva, indicada na

Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: BV II 1 p. 54.

TIE

Para o Tratado da Emenda do Intelecto [Tratado da Reforma da Inteligência]:

abreviação TIE. Numeral arábico indica o parágrafo. A página é a da tradução de Lívio

Teixeira, indicada na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: TIE 3 p. 6.

PPC

Para os Princípios da Filosofia de Descartes, Partes I, II e III, demonstradas de maneira

geométrica. Mesma indicação da Ética, com paginação de Atilano Domínguez, edição

indicada na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: PPC P 3 p. 148.

CM

Para os Pensamentos Metafísicos, Numeração romana das partes, árabe dos capítulos.

A página é a da tradução de Marilena Chaui, indicada na Referência bibliográfica, ao

final.

Exemplo: CM I 2 p. 12.

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Ep

Para a Correspondência, em arábico o número da Carta. A página é a da tradução de

Atilano Dominguez, indicada na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: Ep 23 p. 209.

OBRAS DE OUTROS AUTORES

A República

Para A República, citação pela numeração universal. A tradução utilizada é a de Maria

Helena da Rocha Pereira, cotejada com a edição da Coleção Os Pensadores, ambas

indicadas na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: A República, 444B.

Ética a Nicômaco

Para a Ética a Nicômaco, citação pela numeração universal. A tradução utilizada é a de

J.A.K. Thomson (Penguin Classics), indicada na Referência bibliográfica, ao final,

cotejada com a tradução da Coleção Os Pensadores, indicada na Referência

bibliográfica, ao final.

Exemplo: Ética a Nicômaco, 1140b 3.

Metafísica

Para a Metafísica, citação pela numeração universal, como no exemplo acima. A

tradução utilizada é a de Antonio Russo, indicada na Referência bibliográfica, ao final,

cotejada com a tradução brasileira da Loyola, indicada na Referência bibliográfica, ao

final.

O príncipe

Para O príncipe, citação do capítulo em romanos e da página pela tradução da edição

bilíngue de José Antônio Martins, indicada na Referência bibliográfica, ao final.

Exemplo: O príncipe XV p. 151.

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Meditações, Correspondência, As Paixões da Alma

Para estas obras, e outras de Descartes, Edição de Adam et Tannery, indicada na

Referência bibliográfica, ao final, que foi consultada para cotejamento. Cito a partir da

tradução do volume da coleção Os Pensadores, indicado ao final, dedicado a Descartes.

Exemplo: DESCARTES. Meditações. pp. 300-302. Demais obras do autor: em nota de

rodapé, com a página da coleção Os Pensadores, exceto quando a nota indicar outra

edição.

Leviatã, Do Cidadão, Elementos

Para estas obras, The English Works of Thomas Hobbes. Edição de W. Molesworth,

indicada na Referência Bibliográfica, ao final. Utilizei também, para fins de

cotejamento de passagens, no que se refere ao Leviatã, as edições de Gaskin (Oxford

University Press) e de R. Tuck (Cambridge University Press), indicadas na Referência

Bibliográfica, ao final. No que se refere ao Leviatã, Parte em Romano e capítulo em

Arábico (da edição de Os Pensadores). Para Do Cidadão, capítulo em Romano,

parágrafo em arábico, da edição de Howard Warrender, citada na Referência

Bibliográfica, ao final. Para Os Elementos da Lei Natural e Política, Parte em Romano,

capítulo em Romano, parágrafo em arábico, ed. da Ícone editora, com tradução de

Fernando Dias Andrade, citada na Referência Bibliográfica, ao final.

Exemplo: Leviatã I 6 p. 63. Do Cidadão I 2 p. 42. Elementos I VII 2 p. 48.

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I. INTRODUÇÃO ou RETIRAR O VÉU: LER A POLÍTICA PELOS AFETOS

Alfredo Bosi, em resposta à pergunta de um entrevistador acerca de

quanto tempo teria sido necessário para escrever sua longa introdução ao volume de

uma coleção, dedicado ao Padre Antônio Vieira, respondeu em dois lances. Afirmou

que para redigir o texto teria trabalhado uns seis meses, mas para escrever, teria

levado a vida interia2. A boutade, noves fora ser Alfredo Bosi um dos clássicos da crítica

literária nacional, pode ser trazida, por analogia, a este trabalho. De fato, a redação da

tese talvez tenha sido trabalho de ano e meio. Entretanto, os estudos e leituras que

levaram ao resultado é fruto de muitos anos mais. O ponto inicial é certo. Um curso

ministrado por Marilena Chaui no segundo semestre de 1998, na FFLCH USP, cujo tema

- 'Uma leitura do Tratado Teológico-político' - localizava a obra na história e trabalhava

alguns de seus conceitos, em leitura estrutural do Prefácio e do capítulo XX. Nesta

ocasião, analisou-se, entre outros temas, a questão da superstição e da liberdade

política. Frequentei, após este, outros cursos sobre Espinosa durante a graduação em

filosofia.

Os conceitos espinosanos vêm sendo, assim, trabalhados desde

então, em maior ou menor intensidade. No mestrado, realizado na Faculdade de

Direito da USP e defendido em setembro de 2004, no Departamento de Filosofia e

Teoria Geral do Direito, sob orientação da professora Doutora Lídia Reis de Almeida

Prado, trabalhei o tema da democracia em Espinosa e sua relação com os conceitos de

ontologia e liberdade política. Sete anos depois voltei a Espinosa para preparar um

projeto de doutoramento tratando de outros temas no mesmo autor - projeto este

que foi primeiramente apresentado na PUC SP, e lá aprovado, e depois no Grupo de

Estudos Espinosanos, e lá debatido. O desdobramento do projeto é a presente tese.

Este percurso me permite afirmar que as leituras realizadas e os cursos frequentados,

com alguns até longos períodos de afastamento, remontam a 1998, ainda que a escrita

do texto tenha consumido ano e meio.

2 WERNECK, Paulo. O código Vieira. In: Jornal Folha de São Paulo. Ilustríssima. São Paulo, 09 de OUT de

2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2011/10/987795-o-codigo-vieira.shtml. Acesso em 09 ABR 2015.

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Espinosa é um mundo, um oceano conceitual. A fortuna crítica do

autor - sobretudo as leituras recentes de suas teses políticas - o atesta. O presente

trabalho está na mesma linha, bem como é tributário - em larga medida - das leituras

dos últimos quarenta ou cinquenta anos3 de dedicação dos comentadores. Graças ao

fino trabalho de grandes historiadores da filosofia sobre os temas da política, dos

afetos e do direito em Espinosa, houve renovação de leituras e uma exponenciação da

potência das teses do autor. Procurei seguir muitos desses caminhos abertos pelos

recentes - por volta de cinquenta anos - estudos para elaborar a tese. É certo que

muito do que foi produzido neste período ficou de fora. A fortuna crítica acerca de

Espinosa já ocupa muitas prateleiras dedicadas à filosofia e a áreas afins. Procurei

seguir o que me foi possível ler e fichar, nessa grande fortuna crítica, acerca do tema

proposto no projeto inicial. Espero que o resultado tenha sido bem construído, sendo

possível, assim, quitar, em face dos comentadores em que me apoiei, bem como dos

professores cujos cursos frequentei, ao menos parte infinitesimal de uma fatura de

valor acima de qualquer cálculo.

***

A principal tese que procuro defender neste trabalho é a de que

Espinosa constrói uma filosofia política fundada na teoria dos afetos. Decorre desta

tese uma elaboração (não uma segunda tese), isto é, um conjunto razoavelmente

articulado de notas, acerca do tema da pertinência das teses espinosanas para o

direito emancipatório e para o direito contemporâneo. Assim, o caminho percorrido

em todo o trabalho tem dois movimentos, um mais bem acabado e outro mais

caracterizado por apontamentos, cada qual com dois capítulos. No primeiro

movimento se expõe o núcleo duro da tese, seu escopo principal. No segundo se

articulam as notas acerca do tema da intersecção entre os conceitos espinosanos e o

direito emancipatório dos tempos atuais.

Aos movimentos. O primeiro é uma elaboração de clivagem ligada à

história da filosofia. Os temas são tratados no interior da tradição de análise dos textos

3 A título de exemplo desta nova fortuna crítica, a primeira edição do clássico livro de A. Matheron é de

1969 (MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988 [que é uma reimpressão do texto de 1969 - Ibid. p. I]).

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do autor que tenham ligação com o problema, hipótese e temas da tese. Este

movimento argumentativo abrange os capítulos 1 e 2. É um movimento mais longo

porque resultado direto da análise do problema e da hipótese da tese pelo veio da

história da filosofia. O problema, a saber, se há relação entre afetos e política em

Espinosa - e se tal relação tem laços com as elaborações sobre o direito no autor. A

hipótese, a saber, a de que há tal vínculo, e que foi confirmada pela leitura dos textos

do autor e de comentadores. A tese, portanto, confirmou a hipótese principal do

projeto e os capítulos deste primeiro movimento procuram tratar desses temas, os

quais são o núcleo duro da tese.

O segundo movimento é mais ensaístico, isto é, mais desvinculado da

tradição de leitura de textos da história da filosofia, ainda que tal movimento seja,

como ficará claro, dela tributário. Por esta razão posso reiterar que os dois últimos

capítulos (3 e 4) são mais apontamentos que construções acabadas. De fato, neste

segundo movimento da tese procuro mostrar como o conceito de direito natural

espinosano tem enorme pertinência para as discussões acerca do direito

compreendido como instância emancipatória (capítulo 3). No último capítulo

especialmente (capítulo 4), dentro da chave mais geral, acima apontada, intento

analisar como as teses espinosanas, incluso o conceito de direito natural do autor,

podem se somar a uma visão crítica do direito - de um dos autores que, a meu ver,

melhor elabora o que chamo de direito crítico. Por serem apontamentos em vez de

construções acabadas, tais capítulos finais são mais curtos e mais projetivos, ainda que

derivados dos temas trabalhados no primeiro movimento, que abrange os capítulos 1

e 2.

Após o pano de fundo acima esboçado, a saber, o da existência de

dois grandes movimentos no texto da tese, cada qual composto por dois capítulos,

passo a seguir a uma análise mais detalhada dos temas de cada capítulo.

O capítulo 1, cujo tema e título é Teoria dos Afetos, procura mostrar

como Espinosa elabora sua costura teórica sobre a questão dos afetos no interior das

teses ontológicas. O capítulo procura explorar, a partir do item (c), o conceito de

substância, para no interior deste conceito explicitar o lugar dos afetos. O tema do

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esforço para perseverar no ser (conatus), ligado tanto aos afetos quanto ao conceito

de substância, também se apresenta neste capítulo. Os afetos primários - desejo,

alegria, tristeza -, bem como alguns dos afetos fundantes da política segundo o autor -

medo e esperança, segurança e desespero - têm lugar no capítulo 1. Procuro articulá-

los tanto ao conceito de substância quanto ao tema da política. Também trato nesse

capítulo de um importante afeto para a política, a saber, a indignação, já apontando no

item (f) a relevância deste afeto para as questões ligadas à cidade e à política. O

conceito de mimetismo afetivo, importante posteriormente para a explicação do

funcionamento da multitudo, é tratado já no capítulo 1, que é finalizado com mais dois

itens. No item (h), o tema da ontologia dos afetos e sua relação com os nomes que a

eles são dados é analisado. No item (i), trato dos temas do agir e do padecer segundo

os conceitos espinosanos. Neste último item procuro mostrar como se articulam os

temas do conhecimento, dos afetos e das propriedades comuns das coisas.

Para preparar o terreno dos itens (c) a (i) do capítulo 1, trago à

discussão, em breves considerações, no item (a), a questão da relação entre afetos e

política na tradição para, logo a seguir, no item (b), introduzir Espinosa como autor

inovador não por trazer esta questão à história da filosofia, mas por dar a ela novas

cores conceituais.

O objetivo do capítulo 1 é, pois, o de assentar as bases para a

discussão nuclear da tese, a saber, a da relação entre afetos, direito e política em

Espinosa, este mais diretamente o tema do capítulo 2.

O capítulo 2 se inicia com a tese de que o conceito de direito natural

ecoa no conceito de afetos. Isto é, tais campos se interseccionam na filosofia política

de Espinosa. Após, no item (b), mostro como os pares afetivos medo-esperança e

segurança-desespero são usados por Espinosa para a elaboração do conceito de

socialidade e de civitas. O item (c) aborda a questão da imitação afetiva e sua

importância para a elaboração dos conceitos de multidão, imperium e cidade. O item

c.4 aborda a clássica questão dos gêneros de estado civil pela chave espinosana,

mostrando como, para o autor, importa, ao tratar dos gêneros de estado civil, o

conceito de potência. O item (d) trata dos limites do poder soberano e das coisas que a

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cidade deve temer para que continue a possuir natureza de cidade. Por fim, o item (e)

trata da importante questão da diferença entre paz como fortaleza de ânimo e paz

como ausência de guerra, explicitando o salto espinosano em face da tradição do

medo na política, cujo exemplar mais límpido é, a meu ver, Hobbes.

Já no segundo movimento da tese, aquele referido como mais

ensaístico, dois temas são abordados. No capítulo 3, trato da questão, a partir dos

conceitos do autor elaborados nos capítulos 1 e 2, da pertinência do conceito de

direito natural espinosano para o tema do direito travestido de violência.

Contrariando, em parte, pois, uma tradição interpretativa que vê a perda de

funcionalidade das doutrinas de direito natural, procuro mostrar como a chave

conceitual espinosana não apenas destoa das tradições metafísicas do direito natural,

como tem valor inestimável para as abordagens críticas do direito contemporâneo. Em

uma palavra, o conceito de direito natural espinosano se revela bastante pertinente

para as discussões contemporâneas acerca do direito como instância emancipatória.

O último capítulo está na mesma chave de apontamentos para

projetos de pesquisa futuros e no mesmo rol de questões do capítulo 3. O que o

diferencia, entretanto, do capítulo que o antecede, é o fato de procurar explicitar

como os conceitos espinosanos podem ser úteis às abordagens do direito crítico. São

muitas as linhagens do direito crítico, e fazer um mapa desta vasta geografia seria um

trabalho à parte. Optou-se por mostrar a abordagem de um representante

contemporâneo desta tradição e somar a esta contribuição os conceitos espinosanos.

Trata-se de um diálogo, em forma de apontamentos - pois me falta, neste momento,

repertório para uma concatenação conceitual mais profunda -, entre os conceitos

espinosanos e uma vertente do direito crítico que funda suas análises especialmente

na sociologia jurídica.

Penso que as teses espinosanas sobre a filosofia política são, para

usar um termo contemporâneo, contraideológicas. Com efeito, elas permitem, como

procuro mostrar nas linhas a seguir, uma leitura da política e do jurídico a ser feita

consoante a teoria dos afetos. Tal tarefa, penso, permite retirar o véu que encobriu e

encobre alguns temas da filosofia política.

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Passo, a seguir, ao desdobramento do mapa acima desenhado.

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CAPÍTULO 1 - TEORIA DOS AFETOS

[...] o homem frequentemente julga as coisas apenas por seu afeto (quod homo saepe ex solo affectu de rebus iudicat) [...] Espinosa (E III P 51 Esc p. 221)

Espinosa rende homenagem ao seu século - ao qual Merleau-Ponty

se referiu como sendo o do grande racionalismo4 - ao escrever uma Ética ordine

geometrico demonstrata (G II p.43), ou seja, demonstrada à maneira dos geômetras ou

de acordo com a ordem geométrica. Também o faz ao escrever no Político que, ao

aplicar seus esforços sobre o tema da política, nunca pretendeu demonstrar por razões

certas, ou deduzir da condição da natureza humana nada diverso do que já estaria de

acordo com a prática (TP I 4 pp.7-8). Demonstrar, razões certas, deduzir. O vocabulário

do Político também faz das teses espinosanas exemplos claros do século do grande

racionalismo. Mas a sutileza espinosana está em, pelo método da geometria, explicitar

uma natureza humana de ponta a ponta afetiva. E, por esta razão, mostrar (pela

experiência) e demonstrar (pela geometria) que "[...] fica evidente que somos agitados

pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por

ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro [...]." (E III P 59 Esc p. 237)

ou, ainda, que "[...] é raro que os homens vivam sob a conduta da razão." (E IV P 35 Esc

p. 303). Com o auxílio da geometria, Espinosa, na Ética III, ao tratar do tema da 'origem

e natureza dos afetos', aponta para a conduta dos homens como sendo em geral

fundada nos afetos, e não na razão. O racionalismo do método geométrico demonstra,

entre outras teses, que a lógica dos afetos é que dá o tom de cada ato humano.

É preciso, portanto, melhor focar a tese do racionalismo absoluto da

filosofia espinosana no sentido de lhe dar os contornos precisos. E, sobretudo, extrair

desta tese, no que tange ao mundo dos homens, o que há de mais frequente em se

tratando da conduta humana - homens movidos por afetos -, bem como, no que se

refere à política, as razões da sua construção. Racionalismo absoluto não implica, nem

é sinônimo, de racionalidade absoluta. Ou seja, o que se deve entender pelo termo, 4 MERLEAU-PONTY, Maurice. Partout et nulle part. In: Éloge de la philosophie et autres essais. Paris:

Gallimard, 1960, pp. 170-240.

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em seu sentido exato, é que na substância há racionalismo de ponta a ponta, mas no

sentido da existência de leis necessárias como fundamento de tudo o que ocorre (E I P

33 p. 57). Há, em suma, necessitarismo ou causalidade necessária do real em

operação. Por outras palavras, para que não haja equívoco quanto à hipótese que aqui

levanto: é fora de dúvida que Espinosa demonstra suas teses pelo método geométrico,

sobretudo na Ética, e que conduz o leitor entre as teses expostas por meio desse

método. Mas é preciso levar ao limite, para se entender a operação mesma da

conduta ética e da construção da política, a tese de que há uma filosofia prática5 no

interior do racionalismo espinosano. Aliás, penso, somente assim as teses éticas e

políticas do autor tomam o devido relevo6; são, por assim dizer, postas sob os

holofotes. Por outra, trata-se de afirmar, sem rodeios (pois é o autor mesmo que o

faz), como explícito nas passagens acima citadas, que usar um método geométrico e

elaborar uma filosofia racionalista não implica que os homens sejam necessariamente

racionais em todos os seus atos e que seus comportamentos sejam a decorrência do

uso da razão a todo tempo e em todos os lugares. Ainda desdobrando a hipótese: o

real opera por leis necessárias, mas há aí uma experiência vivida7, no que tange aos

homens, a ser levada em conta. Fazendo uma suma do argumento: usar o método

irrefutável da geometria não implica definir os homens, bem como suas relações com

as coisas do mundo e com seus iguais, como estritamente racionais. São necessárias as

coisas, operam por necessidade absoluta, é certo, no sentido de que têm causas e tais

causas são a atuação mesma da substância em sua autoprodução do real. Mas isso não

é o mesmo que dizer que todas as ações - em especial as humanas - são racionais ou

expressão da racionalidade. Poder-se-ia até dizer, num sentido diverso, que a política,

5 Retiro o termo de: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.

6 Sobre a questão da filosofia prática espinosana, porém em outro texto, ver: DELEUZE, Gilles. Cursos

sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Para Deleuze, há sempre um apelo à experiência vivida, o que independe do método geométrico (p. 48). Cito a seguinte passagem para mostrar o que foi afirmado: "Num afeto de alegria então, o corpo que nos afeta é indicado como compondo sua relação com o nosso e não sua relação decompondo a nossa. Desde então, alguma coisa nos induz a formar a noção do que é comum ao corpo que nos afeta e ao nosso, à alma que nos afeta e à nossa. Nesse sentido a alegria nos torna inteligente. Aqui nós sentimos que há uma coisa estranha [c’est un drôle de truc] porque, método geométrico ou não, tudo concorda, ele pode demonstrá-lo, mas há um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver." (p. 48). 7 Ibid. Penso em experiência vivida no sentido em que Deleuze interpreta Espinosa. Um exemplo é a

citação na nota acima.

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por se dar no campo imaginativo, como mostrarei, demandará a lógica dos afetos para

ser compreendida. E a lógica dos afetos, ainda que possa se manifestar por meio dos

afetos ativos, como ações, é frequentemente operação dos afetos passivos, ou seja,

paixões, sejam estas alegres ou tristes.

Supondo a filosofia espinosana como um grande quadro, um mapa

ou uma tela, minha hipótese é a de que se iluminou em demasia um lado, o que fez

que o outro, o qual compõe a mesma tela, fosse deixado em plano secundário. Ao

menos do ponto de vista da dedicação dos comentadores, ao longo da história da

filosofia, deu-se mais atenção às teses ontológicas e racionalistas de Espinosa e menos

às teses políticas. E, outro ponto, a ligação, analisada por comentadores, entre as teses

ontológicas e políticas de Espinosa é fato de algumas décadas de idade. Ora, não se

pode esquecer que Espinosa, o filósofo do racionalismo absoluto, escreveu uma Ética,

um Tratado Teológico-político e um Tratado político, para ficar em três obras maiores

que tratam diretamente do campo da conduta. A área do mapa que recebeu

demasiada luz é a do Espinosa do grande racionalismo ou do racionalismo absoluto8. É

certo que há o real operando por estrita necessidade, como Espinosa afirma na Ética (E

I P 33 p. 57). Mas é certo, igualmente, que a experiência dos homens na finitude

instaura, para eles, como vivência ou experiência mental-imaginativa9, a

contingência10. E isso importa quando se trata da conduta ética ou da construção da

política.

Espinosa filósofo do racionalismo absoluto11 ou Espinosa filósofo das

paixões12? Ambos. A tela - ou o mapa - da substância, por assim dizer, é a mesma. Mas

8 Charles Ramond diz que é com razão - com o quê concordo - que Espinosa é compreendido como

sendo autor de uma filosofia do racionalismo absoluto. E isso não implica, afirma o comentador, a impossibilidade de teses acerca dos afetos, da política, etc.. Ver: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 50. 9 Ou seja, para usar um termo anacrônico, pois Espinosa não o utiliza, a experiência psíquica dos

homens, muito frequentemente, é a da contingência, é a da ordem da imaginação. 10

Ver, sobre o tema: CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 133-172. A autora afirma que há, de um lado, a ordem necessária da natureza e, de outro, no plano da experiência dos homens, a ordem comum da natureza. Esta: “[...] corresponde à experiência imediata dos acontecimentos e nela as coisas acontecem por encontros fortuitos, casuais e imprevisíveis.” E conclui: “Assim, embora a realidade seja constituída por uma ordem intrinsecamente necessária, nossa experiência não a percebe como tal e se realiza numa ordem imaginária em que prevalece a contingência de tudo o que é e de tudo o que acontece.” p. 152. 11

Ver, sobre o tema: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 50. 12

Ver, para a defesa da tese de Espinosa como filósofo das paixões, um agudo livro que trata do tema: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998. Também aponta

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a presente tese trabalhará o lado menos iluminado da cartografia espinosana.

Ressaltará a hipótese do filósofo das paixões e da construção imaginativa e afetiva da

política, o que não exclui, como procurarei mostrar, a tese da substância operando por

estrita necessidade (E I P 33 p. 57) em simultaneidade à política surgindo como campo

imaginativo ou construção afetiva.

(a) Notas sobre a tradição: afetos e política

A relação entre política e paixões13 não é nova na história da filosofia.

Ao menos desde Platão, passando por Aristóteles (e percorrendo todo o platonismo e

o aristotelismo difusos), esta relação se apresenta como um problema a ser

investigado pelo filósofo14.

Platão escreve sobre a necessidade do controle das paixões que

atravessam a cidade e sobre a importância de ordená-la de acordo com a Justiça. Em A

República, Livro IV, afirma que a injustiça (também na cidade) é "[...] uma sedição dos

[três] elementos da alma, uma confusão, uma usurpação das suas respectivas tarefas

[...] Ora, são essas alterações, essas perturbações e desvios que resultam na injustiça,

na libertinagem [intemperança], na covardia, na ignorância e, de um modo geral, em

toda a maldade [em todos os vícios]15(444b)". Ou seja, as paixões resultantes do

desequilíbrio entre os elementos da alma são apresentadas por Platão como sendo o

equivalente a "todos os vícios". Para completar o amálgama entre os termos paixões e

política - e tratando também do conhecimento e das virtudes -, Platão apresenta a

famosa tese do final do Livro VII de A República (540 a-b). Tal tese estabelece que o

governante da cidade é aquele que, depois de ter conhecido o bem-em-si - no mundo

das Formas, após os difíceis exercícios da dialética -, o usará como padrão para bem

para o tema: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 95 e seguintes. No mesmo sentido: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 171 e seguintes; p. 247. Há outros autores e textos que serão citados no decorrer da tese. 13

Espinosa estabelece uma importante diferença entre afetos passivos (paixões) e afetos ativos (ações), questão que será trabalhada oportunamente. Neste momento importa tratar da questão mais ampla da relação entre paixões e política. 14

Sigo, para este parágrafo e outros pontos abaixo desenvolvidos, os argumentos de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. 15

Cotejou-se a edição portuguesa, da Calouste Gulbenkian, com a tradução presente na Coleção Os Pensadores.

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ordenar a cidade. Mais precisamente, como fica claro na passagem de 540d-541a de A

República, o governante que teve acesso à Ideia de Justiça ordenará a cidade de

acordo com os parâmetros da Forma da Justiça. Sendo, pois, a injustiça a perturbação

que resulta em vícios, a virtude dos cidadãos na Polis demandará um saber sobre o

bem ordenar, o qual apenas estará presente no filósofo-governante, aquele que teve

acesso à Ideia de Justiça e de acordo com ela poderá governar virtuosamente,

dissipando os vícios da cidade. Ou seja, equilibrando-a.

O platonismo difunde esta tese. Assim, tanto nos textos Platônicos (A

República, 444b, 540a - 541a, entre outros), quanto no platonismo que se capilarizou,

a tese é a da necessidade de um governante detentor do saber preciso acerca da

política, cujo intuito é o de controlar os vícios que atravessam a Polis. O dirigente deve

ser o conhecedor da Ideia de Justiça para poder ser o mais virtuoso dentre todos os

cidadãos - e coibir os vícios dos demais e da cidade como um todo16. Por conhecer a

Ideia de justo, é capaz de ser o governante-filósofo, o dirigente virtuoso, aquele que

poderá combater "todos os vícios" da cidade (A República, 444b).

Aristóteles, em chave diversa da platônica, tematiza a questão das

paixões e da política. Considera a prudência17 como a virtude adequada ao homem

público. De fato, é a marca por excelência do homem prudente ser capaz de deliberar

corretamente acerca do que é bom e vantajoso para a vida boa em geral (Ética a

Nicômaco 1140 a 25-28). Aristóteles afirma que esta é a virtude do homem público ao

afirmar que "[...] então, nós pensamos que Péricles e outros como ele são prudentes,

porque eles são capazes de visar ao que é bom para eles mesmos e para os homens

em geral. [...] nós consideramos que esta qualidade pertence àqueles que entendem

sobre administrar a casa e o Estado (Polis)." (Ética a Nicômaco 1140 b 01-12). E conclui,

seguindo este raciocínio, que tal virtude é chamada temperança (sophrosine), pois

preserva a sabedoria. Esse juízo que envolve a prudência, diz Aristóteles, somente

16

Tal interpretação dos textos de Platão está na mesma linha de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. 17

Phronesis, sabedoria prática, bom senso prático. Para um belo ensaio sobre o tema da prudência em Aristóteles, ver: PERINE, Marcelo. Phronesis: um conceito inoportuno? In: PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a Ética de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2006, pp. 17-49. Não pretendo, evidentemente, em poucas linhas, dar conta de tema tão complexo, para o qual há bibliotecas. O objetivo é poder mostrar por contraste as inovações espinosanas.

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pode ser realizado sobre certas coisas que têm as características do mundo prático. Ou

seja, não são julgamentos sobre objetos da matemática, nem sobre o que é necessário

- o que não muda ou não pode ser de outro modo. São julgamentos, pois, sobre o que

está no campo do possível. Aristóteles afirma, ainda sobre este tema, que os primeiros

princípios das atividades que praticamos estão na finalidade a que tais ações visam. No

entanto, as pessoas que estão corrompidas pelo prazer ou pelo sofrimento fracassam

ao tentar discernir sobre esses princípios. O prazer ou o sofrimento, afirma, destroem

a arché18 (Ética a Nicômaco, 1140 b 15-20).

Aristóteles - bem como o aristotelismo difuso - defende a tese de que

não há uma ciência teorética da política. Por ser a política uma ciência prática, que tem

em seu cerne a escolha entre possíveis, demanda um dirigente capaz de prudência

para controlar a fortuna19. O que age com prudência, esta virtude do mundo prático,

da decisão sobre o que não está no campo do necessário, será capaz, também no

campo político, de controlar todos os vícios.

No estoicismo romano, no qual estas tradições se consolidam, a tese

é a de que o escritor político deve iniciar tratando das virtudes do governante e dos

súditos. Uma vez que a política visa à instituição do bem comum, demanda cidadãos

dotados de virtude e dirigentes dotados de prudência. Quanto a estes últimos, além da

prudência, é certo que devem possuir as virtudes da justiça, liberalidade,

magnanimidade, etc.20.

O tema paixões e política, se visto num relance panorâmico, tem sua

construção teórica em Platão, a fundação de uma nova tradição com Aristóteles, uma

18

Para Hugh Tredennick, autor das notas de uma das edições consultadas (ARISTOTLE. The Nicomachean Ethics. New York: Penguin Books, [1976]2004.p. 151, nota 2), "arché [...] significa não apenas origem, etc., mas também regra ou autoridade, e Aristóteles parece ter isso em mente: o vício é um tipo de anarquia, como disse Platão (A República, 444b)". A tradução é minha, bem como dos excertos da Ética a Nicômaco citados. Tradução a partir da edição em inglês (citada acima) cotejada com a edição da Coleção Os Pensadores, indicada nas Referências Bibliográficas. A passagem da Ética a Nicômaco acima referida (1140 b 15-20) é a seguinte: "Com efeito, a causa originária de uma ação consiste no fim visado pela ação; porém, uma pessoa que é corrompida pelo prazer ou pela dor perde imediatamente de vista essa causa: ou seja, não percebe mais que é devido a tal coisa que deve escolher aquilo que escolhe e faz; porque o vício tende a destruir a causa originadora da ação." 19

CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 154. 20

Ibid. p. 154. Para a fonte estoica, ver Cícero, De Officiis, LV. I, parágrafo XXI (CÍCERO. De Officcis. Buenos Aires: Austral, 1946, pp. 86-87. Apud CHAUI, Marilena. Ibid. p. 325, nota 56).

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apropriação pelo estoicismo e, à frente, estará presente na tradição dos espelhos dos

príncipes.21

A questão da relação entre paixões e política, portanto, é problema

filosófico que já se apresentava aos primeiros pensadores da história da filosofia e

avança pelos séculos.

Descartes, no dezessete, escreve sobre do tema. Dedica-lhe um

Tratado (Les passions de l'âme)22. Hobbes, no mesmo século, não o despreza. Ao invés,

dá-lhe lugar privilegiado em sua filosofia política. Num capítulo chave do Leviatã, o de

número XIII, no qual se define a condição natural da humanidade, Hobbes afirma:

É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão.

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho [industry]. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. (Leviatã, I, 13, p. 111).

A condição natural dos homens, para Hobbes miserável e bruta, os

apresenta portadores de três paixões que podem os alavancar à paz. Como afirma o

excerto, o medo da morte, o desejo de coisas que levam a uma vida confortável, e a

esperança de fazê-lo pelo trabalho (industry). Portanto, são estas as paixões que

podem levar o homem da miséria à paz. Mas não apenas por elas mesmas. A razão,

21

Para o tema em Platão, Aristóteles e sua apropriação por Cícero, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. Para um estudo do tema do "espelho dos príncipes", bem como sua apropriação por Maquiavel numa chave diversa daquela da tradição até então construída, ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro (capítulo 1 a 11) e Laura Teixeira Motta (capítulo 12 em diante). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 139- 149. Para Skinner Maquiavel estaria na chave dos espelhos e, ao mesmo tempo, criticaria muitos de seus termos-chave. Por exemplo, o da educação do príncipe pela moral cristã. Conferir, também, sobre o tema dos espelhos e a posição de Maquiavel: BIGNOTTO, Newton. A antropologia negativa de Maquiavel. In: Analytica. Vol. 12. N.2. Rio de Janeiro: 2008, pp. 77-100, especialmente pp. 80-81. Acerca da questão da natureza humana e do conceito de virtù em Maquiavel, mostrando o caminho aberto por Maquiavel na questão das paixões e da política, consultar: VALVERDE, Antonio José Romera. Maquiavel: a natureza humana e o reino deste mundo. In: SGANZERLA, Anor; FALABRETTI, Ericson; VALVERDE, Antonio José Romera (orgs.). Natureza humana em movimento: ensaios de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2012, pp. 51-61. 22

As Paixões da Alma. Ver Referências Bibliográficas.

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por meio das leis de natureza (Leviatã, I, 13, p. 111)23, será capaz de compreender as

normas que possibilitam esta passagem. O excerto é claro, em seu momento anterior,

quanto a este ponto, ao afirmar que o homem pode escapar a esta condição miserável

em parte devido à razão, em parte às paixões. O medo é o afeto chave, segundo

Hobbes, para a construção e manutenção da paz. É a paixão fundamental

especialmente para a manutenção do corpo político24.

Espinosa não foge à regra. Trata dos dois temas, ora separadamente,

ora em conjunto. De modo exclusivo, como tema principal, a questão dos afetos

aparece na Ética, que tem a parte III dedicada à sua origem e natureza. Como tema

ligado à política, a questão dos afetos aparece explicitamente no Tratado político.

Neste, o tema dos afetos já está indicado pela primeira palavra do primeiro parágrafo:

affectus (TP I 1 p.5) e se difunde pelo texto como um todo.

Deixo para um segundo movimento de argumentos a questão dos

afetos na Ética. É lá que o tema dos afetos como coisas naturais - e não como vícios -

será desdobrado pelo método da geometria25. De início, faço uma inversão cronológica

- visto que o Tratado político foi redigido após a Ética - para mostrar, em linhas gerais

23

Hobbes trata das leis de natureza nos capítulos 14 e 15 do Leviatã, como anuncia ao final do Capítulo 13 (Leviatã, I, 13, p.111). 24

A comparação, no que tange aos seus principais conceitos, entre Hobbes e Espinosa, poderia ser tema de um trabalho à parte. Dialogarei com alguns conceitos hobbesianos durante a tese com a intenção de aclarar os conceitos espinosanos. E, também, objetivando mostrar como Espinosa se afasta de Hobbes em muitos pontos. Sou da mesma posição de C. Lazzeri no que se refere aos dois autores, ou seja, ainda que usem expressões muito próximas e tenham problemáticas semelhantes, os conceitos-base e os desdobramentos das teses divergem abundantemente (pp. 01-10 da obra a seguir citada, especialmente p. 08). Tais divergências aparecerão no correr da tese, ainda que pontualmente, uma vez que o trabalho de comparação minuciosa, como afirmei, seria outro trabalho. Para comparações entre ambos, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998. Para comparações quanto ao conceito de direito natural e civil em ambos, ver: CHAUI, Marilena. Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 286-314. 25

Para um mergulho no tema da geometria em Espinosa, ver: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, especialmente pp. 559-735. Sobre um apanhado de teses acerca da posição da geometria na Ética, ver: ANDRADE, Fernando Dias. Em que sentido se pode afirmar que a geometria da Ética é apropriada, adequada e necessária ao seu conteúdo? In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1998, pp. 09-16. Sobre geometria e ordem do mundo: KEINERT, Maurício C. A ordem geométrica e a ordem do mundo. In: Cadernos Espinosanos (III) 1. São Paulo: Publicação do Departamento de Filosofia da USP, 1998, pp. 49-57. Também: REYNOL FILHO, Augusto. Espinosa e a ordem geométrica. In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP1998, pp. 17-30. No mesmo sentido: TAKAYAMA, Luiz Roberto. Problemas concernentes à ordem geométrica da Ética. In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1998, pp. 31-47.

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neste momento, que a questão dos afetos tem tratamento diverso em Espinosa em

face da tradição no que se refere ao seu papel no bem ordenar da cidade.

Espinosa faz na política uma revolução copernicana ao tratar os

afetos como coisas da natureza. Essa é, em face da tradição, uma de suas grandes

inovações26. O início do Político (TP I 1 p. 5), portanto, traz, em suas primeiras linhas, o

tema clássico. Analiso, a seguir, mais detidamente esse ponto para mostrar como

Espinosa, já na maneira de tratar o tema, se apresenta como uma anomalia27.

(b) A anomalia espinosana

O Tratado Político se inicia com a palavra affectus (TP I 1 p.5)

(Affectus, quibus conflictamur, concipiunt Philosophi veluti vitia, G III p. 273). Afirma

Espinosa:

Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se deles, chorá-los, censurá-los ou (os que querem parecer os mais santos), detestá-los. Creem, assim, fazer uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria quando aprendem a louvar de múltiplos modos uma natureza humana que não existe em parte alguma e a fustigar com sentenças aquela que realmente existe. Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam que eles fossem. De onde resulta que, as mais das vezes, tenham escrito sátira em vez de ética e que nunca tenham concebido política que possa ser posta em aplicação, mas sim política que é tida por quimera ou que só poderia instituir-se na utopia ou naquele século de ouro dos poetas, onde sem dúvida não seria minimamente necessária (TP I 1 p. 5).

Iniciar a análise da política, tema da última e inconclusa obra de

Espinosa, tratando dos afetos, não parece ser casual. Sugere o lugar de destaque dos

afetos para a filosofia política espinosana. Indica, também, a importância dos afetos

para a constituição do mundo normativo28 (do direito civil da civitas), o qual decorre

26

CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 155 e seguintes. 27

A referência, aqui, é ao livro clássico de Antonio Negri, com o qual se dialogará, direta ou indiretamente, no correr da tese: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998. Versão em português: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. Negri é hoje reconhecido como um dos filósofos que propôs interpretações de alta potência política a partir da e sobre a filosofia de Espinosa. Pode-se dizer, também, que Negri cria sua própria filosofia a partir da filosofia de Espinosa, isto é, tendo como base alguns dos principais conceitos espinosanos. 28

O direito natural e o direito civil na cidade, bem como sua relação com outros temas da filosofia espinosana, serão conceitos trabalhados especialmente no capítulo 2 da tese. A questão da relevância

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29

das decisões do corpo político constituído (E IV P 37 esc. 2 pp. 309 a 311). Até aqui,

nada de novo sob o sol da história da filosofia. Como apontei no item anterior, o tema

da relação entre afetos e política é quase tão antigo quanto a filosofia.

A novidade espinosana - uma das manifestações do filósofo como

anomalia tanto no século dezessete quanto na história da filosofia - está na maneira

inovadora de tratar o tema clássico. Tal inovação consiste em compreender os afetos,

de acordo com o excerto citado, como eventos naturais. Sem isso, isto é, a

compreensão dos afetos como eventos naturais, corre-se o risco, como aponta

Espinosa, de se fazer outras coisas que não são nem análise do campo ético, nem

entendimento do campo da política.

De fato, depreende-se do excerto citado (TP I 1 p.5) que a tradição

filosófica contra a qual Espinosa escreve concebe os afetos como vícios. E não apenas.

São vícios aos quais os indivíduos incorrem por culpa própria (in quae homines sua

culpa labuntur - G III, 273). Ou seja, os afetos não são, para esta tradição,

manifestações da natureza humana, da qual não se deve rir ou chorar, mas

compreender (E III Pref. p. 161). Os afetos ou paixões, para esta duradoura e influente

tradição, são o resultado da culpa dos próprios indivíduos, isto é, da sua incapacidade

de refrear as paixões, que surgem como vícios, por meio do modelo adequado - o ideal

de homem em Platão e no platonismo, as virtudes adequadas à política em Aristóteles

e no aristotelismo. Em ambos os casos, falta ao homem seguir o modelo adequado,

seja este modelo a Ideia, na versão platônica, seja ele a virtude-modelo (o meio

adequado ao fim, mesmo na contingência, cuja forma está no mundo mesmo e não

além-mundo), na versão aristotélica. Daí que, em suma, por serem vícios, os afetos

devam ser objeto do riso, do choro, da censura e, no limite, do ódio (TP I 4 p. 8).

A consequência de tal concepção dos afetos, escreve Espinosa, é

dupla. De um lado, tais autores louvam uma natureza humana que inexiste. De outro,

propõem à filosofia política uma fuga da realidade mesma da política. Isto ocorre, de

acordo com o Político (TP I 1 p. 5), em razão de tais filósofos conceberem os homens

não como são, mas como gostariam que fossem. O dever-ser ocupa o lugar daquilo

do conceito espinosano de direito natural para as concepções atuais do jurídico é tema dos capítulos 3 e 4.

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30

que efetivamente é, da realidade efetiva da coisa (O príncipe XV pp.151-152) 29. Daí

também uma consequência ética e uma consequência política.

Consequência ética: as filosofias da conduta se apresentam como um

vituperar constante da ação decaída, viciada, entendida como inadequada em face

daquela idealizada, porém inexistente no mundo real. E, outra face da moeda, faz-se

um elogio da conduta fundada na virtude como norma exterior ao indivíduo e padrão

fundante da ação. Ou seja, em vez de construírem uma ética, tais filósofos concebem

sátiras. Isto porque em vez de compreenderem as causas das ações dos homens - o

fundamento ou causa eficiente das ações dos seres singulares humanos -, tais autores

apenas ridicularizam os vícios que levariam às ações equivocadas. Eis o conceito

preciso de sátira, isto é, explicitar o defeito, o vício, para gerar o riso e, eventualmente,

educar ao mostrar o avesso (com exageros) do modelo virtuoso. Em uma palavra, tais

autores, por ridicularizarem os vícios, concebem sátiras.

Consequência política: a filosofia política assim concebida é utopia,

isto é, não-lugar, inexistência. Apenas teria razão de ser em outro mundo, a saber, o

século de ouro dos poetas, lugar da plena concórdia, sem conflitos. Seriam políticas

próprias, paradoxalmente, a lugares que não necessitam da política30.

Assim, o início do Tratado Político aponta para uma das teses centrais

de Espinosa - eis uma hipótese -, a ser desdobrada e explicitada31 no decorrer do

presente trabalho, a saber, a de que para Espinosa a compreensão dos afetos é

fundamento para qualquer entendimento da política que pretenda não desaguar em

29

Ver: MAQUIAVEL. O príncipe. Edição bilíngue. Tradução de José Antônio Martins. São Paulo: Hedra, 2011, pp. 150-151 (Cap. XV). Espinosa está na mesma chave de Maquiavel, segundo alguns autores, no que se refere a vários temas da política. Ver, por exemplo: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09-101, especialmente item II, pp. 31-46. 30

O tema da dissolução da análise da política como análise das utopias é trabalhado por: MATHERON, Alexandre. Spinoza et la décomposition de la politique thomiste: maquiavélisme et utopie. In: Études sur Spinoza et les philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011, pp. 81-111. 31

Conforme Atilano Dominguez, a relação entre o TP e as demais obras de Espinosa é um fato a ser explicitado pelos intérpretes. Sendo assim e nesta chave, a presença da Ética, parte III, no Tratado Político, é uma das hipóteses a ser desdobrada no presente trabalho. Conferir: DOMÍNGUEZ, Atilano. Introducción. In: Tratado político. Traducción, introducción, índice analítico e notas de Atilano Domínguez. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp. 07-72, p. 9.

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31

utopias ou criações de modelos32. Com efeito, não podem os homens fugir dos afetos,

nem ridicularizá-los, pois os afetos os constituem. Ou ainda mais precisamente, os

homens são afecções ou modos finitos da substância única33. Dizer que os afetos

constituem os homens é dizer que são efeitos dos seus encontros no mundo - os

homens são afecções e têm afetos -, bem como de sua capacidade de conhecer o que

é bom e o que é mau para si mesmos e, assim procedendo, serem causa adequada de

suas ações, pois geradores de afetos ativos34. Assim, os afetos devem ser analisados

“[...] como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos.” (E III Pref p.

163), ou seja, como se analisa qualquer outro fenômeno natural (o mesmo em TP I 4 p.

8).

Uma vez esboçados os primeiros traços do tema da relação entre

afetos e política, a seguir pretendo aprofundar a análise da temática dos afetos na

Ética. Se, como afirmado nas linhas acima, os afetos (como elementos naturais, não

como vícios) são o fundamento da análise não utópica da política, é o caso, a seguir, de

entendê-los na seção da Ética a eles dedicada: a parte terceira, cujo tema e título é

precisamente 'A origem e a natureza dos afetos' (De origine et natura affectuum G II p.

137-204).

Depois de delineada a geometria demasiado mundana dos afetos,

procurarei mostrar como eles operam para que os homens - afetivos de ponta a ponta,

mesmo quando no uso mais adequado da razão - possam construir a maneira mais

32

Uma difundida tese sobre Platão afirma que A República seria uma construção modelar, uma espécie de "utopia" avant la lettre de polis, um ideal. Mas a seguinte passagem, uma fala de Sócrates a Glauco, pode problematizar esta tese: "Concordais que não são inteiramente utopias o que estivemos a dizer sobre a cidade e a constituição; que embora difíceis, eram de algum modo possíveis, mas não de outra maneira que não seja a que dissemos, quando os governantes, um ou vários, forem filósofos verdadeiros, que desprezam as honrarias atuais, por as considerarem impróprias de um homem livre e destituídas de valor, mas, por outro lado, que atribuem a máxima importância à retidão e às honrarias que dela derivam, e consideram o mais alto e o mais necessário dos bens a justiça, à qual servirão e farão prosperar, organizando assim a sua cidade?" (A República, 540d). Fica a questão. No que se refere a Maquiavel e sua construção de uma teoria não utópica da política, Espinosa parece estar, neste ponto, na mesma chave do florentino. Veja-se a passagem do capítulo XV de O príncipe: "Mas, sendo a minha intenção escrever coisa útil a quem a escute, pareceu-me mais convincente ir direto à verdade efetiva da coisa do que à imaginação dessa [andare drieto alla verità effettuale della cosa che alla immaginazione di epsa]." (O príncipe XV pp. 150-151). Não se trata de imaginar a melhor cidade ou a melhor política, mas de entender a política como ela é, entendê-la em sua materialidade, em sua realidade efetiva, a verità effettuale della cosa. 33

Este tema será objeto do item (c), abaixo, e será retomado em outros momentos da tese. 34

Este ponto será objeto do item (i), ainda neste capítulo.

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32

efetiva de exercerem a sua potência ou direito natural: a política35 da civitas. Este será

o tema do capítulo 2.

(c) Da ontologia aos afetos

c.1 Substância sive natura

A questão da ontologia espinosana será analisada primordialmente a

partir da Ética. Entendo36 que esta é a obra em que Espinosa desenvolve mais

densamente o tema da ontologia. Não entrarei, portanto, a não ser subsidiariamente e

pontualmente, em geral em notas de rodapé, nas questões analisadas no Breve

Tratado que tenham relação com o tema central deste item (c). A Ética já trará

subsídios bastantes para que se tenha uma visão razoavelmente densa dos

fundamentos do mundo afetivo, tema deste item (c) do capítulo 1.

A parte I da Ética é o lugar em que Espinosa elabora, com o cerrado

cimento da geometria37, as linhas gerais e fundantes da ontologia do necessário. A

35

Sobre a política como instância possibilitadora do exercício do direito natural de cada homem, tema que será desdobrado no capítulo 2, consultar: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 296-297. Também, p. 373. Ver também: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. p. 114. No mesmo sentido: JAQUET, Chantal. Spinoza ou la prudence. Paris: éditions Quintette, 2004, pp. 65-66. Ver também: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998, p. 131. Também: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, p. 9, p. 207. 36

É certo que a Ética traz as questões presentes no Breve Tratado com a densa rede do more geometrico e mais detalhadamente trabalhadas. Mas isso não implica que o BT não tenha um valor filosófico como obra autônoma ou que possa ser considerado obra menor. Sobre as obras terem o mesmo núcleo de questões, ver: CHAUI, M. Prefácio. In: ESPINOSA. Breve Tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução de Emmanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, pp. 7-17. Chaui afirma que o núcleo do BT é o mesmo da Ética. Na ontologia: a crítica do antropocentrismo e do antropomorfismo, “com a exposição da unidade substancial e da causalidade imanente necessária (...), a distinção entre os atributos divinos (pensamento e extensão) e as propriedades que a imaginação costuma afirmar da essência divina (bondade, perfeição, justiça), [...]” pp. 15-16. Na teoria do conhecimento, as teses são as mesmas da Ética. Maneiras de conhecer, lugar da opinião na formação das paixões, lugar da razão e da intuição na formação das ações e das ideias verdadeiras. Na Ética: redefinição do bem e do mal, crítica da confusão entre liberdade e livre-arbítrio, a afirmação da livre-necessidade, etc.. (p. 16). 37

Sobre o tema da geometria, ver bibliografia citada em nota anterior (nota 25). A imagem de Espinosa como 'ateu de sistema' foi grandemente difundida em função do verbete 'Spinoza', do Dictionnaire de P. Bayle. Ver: BAYLE, Pierre. Historical and Critical Dictionary (Selections). Translated by Richard Popkin. New York: The Bobbs-Merrill Company, 1965, pp. 288-338. Bayle se refere à difícil tarefa de refutar o more geometrico (p. 296).

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33

parte I se abre com oito Definições38. Em E I D 6, Espinosa define Deus39, já se

distanciando de qualquer tradição da transcendência. Deus é definido como "[...] um

ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos,

[...]" (E I D 6 p. 13). A expressão "ente absolutamente infinito" é identificada, pela

expressão isto é, à substância. Mais precisamente: "uma substância". Deum (Deus)

equivale ao ens absolute infinitum (ente absolutamente infinito), ou seja, à substância.

Na Definição 3, Espinosa conceitua substância: "Por substância compreendo aquilo que

existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, [...]." (E I D 3 p. 13). Logo após

esta definição, nova expressão isto é identifica a substância com "[...] aquilo cujo

conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado." (E I D 3 p. 13).

Ou seja, a substância espinosana é algo que é (1) causa de si e (2) fonte de sua própria

autointeligibilidade. Daí por que tenha o autor, na Definição 1 (E I D 1 p. 13), concebido

causa sui (causa de si) como "[...] aquilo cuja essência envolve a existência[...]". Isto é,

a substância, por ser causa de si, fonte de si mesma, autoprodução do real, exprime-se

como existência, necessariamente, em sua infinitude. Ela é, em feliz síntese de Ferreira

Gullar, "o dentro sem fora" 40. Um complemento à definição do poeta poderia ser o

seguinte: dentro sem fora cujo 'dentro' é o próprio real em autoprodução.

Livre é a substância, diz Espinosa na Definição 7 (E I D 7 p. 13), pois

"Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza, e que

por si só é determinada a agir." (E I D 7 p. 13). Ou seja, a substância, entendida a partir

do "ponto de vista" de si mesma, do ponto de vista do todo, é livre. O que é efeito dela

- por exemplo, os modos finitos, afecções da substância (E I D 5 p. 13) -, no sentido de

coisa determinada por ela a existir (coacta), é algo coagido - do ponto de vista da coisa

como afecção, como modo, ou como certa e determinada intensidade ou potência.

38

Para a definição de definição espinosana, ver Ep 9 p.119. A boa definição, diz a nota 8 à tradução da Coleção Os Pensadores, é "[...] aquela que se concebe - isto significa: 1º que não há contradição interna; 2º que por ela se apreende a gênese do definido. A boa definição é sempre genética. A má definição é, portanto, aquela que não se pode conceber.". Em: ESPINOSA. Correspondência. Tradução de Marilena de Souza Chaui. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 379. 39

No BT, Espinosa trata da questão Deus-substância em BT I pp. 49-87. As teses são muito próximas às da Ética. A divisão do texto se dá em Capítulos e parágrafos, com exceção de dois diálogos que estão entre os Capítulos 2 e 3, divididos em parágrafos. 40

GULLAR, Ferreira. O dentro sem fora. In: Folha de São Paulo. Ilustrada, 22 JUL 2012. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/55822-o-dentro-sem-fora.shtml. Acesso: 06 MAI 2013 (2012).

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34

Tais definições se apresentam sustentadas pelos axiomas que

Espinosa explicita na Ética I. Por meio deles, as Definições se apresentam em toda sua

precisão. Para o tema da substância, que será o local mesmo da ontologia espinosana,

importam as articulações conceituais que Espinosa realizará entre os axiomas, as

definições e as proposições, culminado na proposição 15, momento em que Espinosa

afirma que tudo o que existe, existe na substância, e demonstra esta afirmação (E I P

15 Dem p. 31).

Afirmei acima que a substância é causa de si e que é o ente

absolutamente infinito. Mas como uma coisa pode ser causa de si mesma, ser

absolutamente infinita, e qual o sentido desta tese? O que sustenta a afirmação

espinosana é uma articulação entre dois dos sete axiomas41, e a afirmação restará

demonstrada, com o uso dos axiomas, definições e proposições, pelas proposições 14

e 15 (E I P 14 Dem pp. 29-31; E I P15 Dem p. 31). Qual o caminho espinosano?

O axioma 1 afirma: "Tudo o que existe, existe em si mesmo ou em

outra coisa". O axioma 2 estabelece que "Aquilo que não pode ser concebido por meio

de outra coisa deve ser concebido por si mesmo". A Definição de substância, por sua

vez, é dada como aquilo que é concebido e existe por si mesmo (E I D 3 p. 13). A

existência necessária da substância é objeto da proposição 11 e é nela demonstrada (E

I P 11 Dem p. 25). E a tese da existência de tudo como sendo existência no interior

mesmo da substância restará demonstrada pela proposição 15. Com efeito, de acordo

com a Proposição 15, em sua demonstração, tudo o que existe, existe em Deus, e sem

a substância nada pode existir nem ser concebido (E I P 15 Dem p. 31). A proposição 15

é demonstrada pela proposição 14 - a qual afirmara a unicidade da substância -, pela

definição 3 - tese da substância como o que existe em si mesmo e por si mesmo é

concebido -, pela definição 5 - tese dos modos como afecções da substância - e pelo

axioma 1 - tese de que tudo o que existe, existe em si mesmo ou em outra coisa (E I P

15 Dem p.31). Neste momento da Ética, Espinosa chega à demonstração de que tudo o

que é - o real -, é efeito da e na substância infinita e única.

41

Verdades evidentes: Ep 9 p. 119.

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35

Retorno no caminho espinosano. Das proposições 1 a 10 (E I P 1 a P

10 pp. 15-23) , os axiomas, as definições e as próprias proposições serão

movimentadas para demonstrar a existência da substância única, que aparecerá na

Proposição 11: "Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada

um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente." (E I P 11

p. 25 - grifo meu). A natureza da substância será demonstrada, como analisado acima,

na proposição 15, e sua unicidade na proposição 14 (E I P 14 p. 29; E I P 15 Dem p. 31).

Importa, para as notas pretendidas acerca do tema da ontologia, uma análise um

pouco mais detida da Proposição 11, esclarecendo seus termos no que interessará à

questão dos homens como afecções ou modos de dois dos atributos da substância, e à

questão dos homens como tendo afetos.

Volto, pois, à Proposição 11. Nela, Espinosa prova a existência

necessária de Deus e trata do conceito de atributo.

A substância é, como já visto, um ente absolutamente infinito (ens

absolute infinitum). Mas Espinosa acrescenta algo à expressão absolutamente infinito,

na Proposição 11: diz que a substância consta de infinitos atributos. Os atributos são

constituintes da essência da substância, e são infinitos, visto que não pode haver

negação no infinito positivo. Mas aos homens somente dois atributos são acessíveis, a

saber, o atributo pensamento e o atributo extensão.

Para o tema da relação entre atributos e substância, adoto a tese

segundo a qual os atributos são realidades constitutivas de uma mesma coisa, a saber,

a substância. Os atributos, segundo esta posição interpretativa42, podem ser

42

Existem duas fortes tradições interpretativas acerca do tema dos atributos em Espinosa. Uma se funda na expressão "[...] o intelecto percebe como [...]" (E I D 4 p. 13) para daí afirmar que os atributos seriam espécies de pontos de vista acerca da essência da substância. Como se, diz C. Ramond (referência abaixo), a substância fosse o objeto-em-si e o atributo o objeto-percebido. Um dos célebres representantes desta tradição é Hegel. Ver, sobre esta interpretação de Hegel acerca de Espinosa: MACHEREY, Pierre. Hegel ou Spinoza. Paris: Éditions La Découverte, 1990, pp. 98-99. Não adoto esta posição, seguindo Gueroult, que discorda desta interpretação ao afirmar que os atributos são neles mesmos, e não para nós, a essência da substância. Ver: GUEROULT, Martial. Spinoza: Dieu (Éthique, 1). Paris: Aubier-Montaigne, 1968. GUEROULT, Martial. Spinoza: L`âme (Éthique, 2). Paris: Aubier-Montaigne, 1974. Ver: RAMOND, Charles. Ibid. pp. 27-28. Os atributos constituem e exprimem a substância e são ordens distintas entre si, porém simultâneas, da mesma substância. Adoto, como indico no corpo da tese, esta última posição. Sigo, para o conceito de atributo em Espinosa, além das posições acima indicadas, a interpretação de: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. A autora afirma: "Os

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compreendidos como constituintes e expressão43 da essência da substância. Na

Definição 4 (E I D 4 p. 13) atributo é definido como sendo: "[...] aquilo que, de uma

substância, o intelecto percebe como constituindo sua essência." (E I P 4 p. 17). Na

explicação da Definição 6 (E I D 6 Explic) Espinosa desdobra o raciocínio ao diferenciar

absolutamente infinito de infinito em seu gênero. Tal diferença se apresenta uma vez

que é absolutamente infinito tudo aquilo que exprime uma essência e não envolve

qualquer negação. Ou seja, é o infinito positivo da substância. O que é infinito em seu

gênero não possui infinitos atributos. A noção de gênero limita este conceito de

infinito.

Cada atributo não é, de acordo com a interpretação já indicada

acima, entretanto, um "ponto de vista" do intelecto, como se poderia apreender de

uma leitura apressada de E I D 4 (p. 13), sobre a essência da substância (ver também E

I P 10 Dem p. 23). Os atributos, como afirma Charles Ramond44, são constituintes da

substância única, sendo insustentável a leitura de que seriam "pontos de vista" ou

"percepções" intelectuais da substância, como se a substância fosse um em-si e o

atributo um objeto percebido45. Por ser a substância o próprio real em produção

infinita, há infinitas instâncias constituindo a essência da substância. Os atributos são,

em suma, constituintes e expressão da mesma substância. Corrobora esta tese a

Proposição 11 (E I P 11 p. 25), a qual estabelece que cada atributo exprime (exprimit - E

I P 11 p. 24) uma essência eterna e infinita. Logo, a substância é única e infinita, e seus

atributos constituem a essência da substância divina significa: são atributos dela; os atributos exprimem a essência divina significa: cada um e todos eles devem envolver o que pertence à substância, portanto, causalidade de si, infinitude, liberdade e eternidade. Dessa maneira: 'exprime uma essência eterna e infinita' pode ser lida em dois registros simultâneos: cada atributo exprime-se como essência eterna e infinita porque cada um deles, infinito em seu gênero, é uma essência realmente distinta das outras, mas no outro registro, é preciso concluir que por isso mesmo cada atributo exprime, em seu gênero, a essência eterna e infinita da substância. [...] Cada atributo, portanto, não representa um aspecto da substância absolutamente infinita, pois isso o transformaria em predicado dela. Pelo contrário, cada atributo, porque constitui, exprime, pertence e envolve a essência de substância, a realiza completamente em seu gênero." (p. 814). 43

Espinosa usa, neste caso, o verbo exprimere (divinae substantiae essentiam exprimit) (E I 19 Dem p. 43). Trata do tema substância/atributo - e o resume -, mas afirmando que há uma ruptura entre os conceitos de substância e atributo, de um lado, e o mundo dos homens, de outro: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 95. Na tradução brasileira: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 97. 44

RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, pp. 27-28. 45

Ver nota acima (42) sobre as tradições interpretativas do conceito espinosano de atributo.

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atributos são, igualmente, infinitos, na medida em que são constituintes da essência

infinita da substância única.

Resta um ponto da Proposição 11 a ser discutido: a substância,

afirma Espinosa, "existe necessariamente". A substância existe necessariamente na

medida em que é o real em sua autoprodução, como afirma Espinosa na Proposição 7

(E I P 7 p. 19). Pela Definição 1 (E I D 1), utilizada pelo autor para demonstrar a

Proposição 7, a substância é causa de si mesma, isto é, sua essência necessariamente

envolve sua existência.

Na Proposição 15 (E I P 15 p. 31), Espinosa afirma, como já analisado

acima, que tudo o que existe, existe na substância única, sem a qual nada pode existir

nem ser concebido. Eis, como analisado, a natureza da substância que se provou única

(E I P 14 Dem pp. 29-31), ou seja, a substância é o real, nada havendo fora dela que

possa existir ou ser concebido. Na demonstração da Proposição 15, Espinosa

estabelece que os modos (e os homens, como mostrarei, são modos ou intensidades

finitas de potência da substância, são afecções) não podem existir nem ser concebidos

sem uma substância (E I P 15 Dem p. 31).

Pode-se concluir, acerca dos traços gerais da ontologia espinosana, o

que segue: (1) Deus é o mesmo que substância ou natureza. (2) A substância é única.

(3) A substância é o infinito positivo (único) e é o próprio real em autoprodução. (4) Os

atributos não são espécies de "percepção intelectual" da substância única, mas

constituintes da essência da substância, e por isso cada qual é infinito em seu gênero.

(5) A substância é eterna. (6) A substância, por ser causa sui, implica ao mesmo tempo

sua existência, e por isso a substância existe necessariamente.

***

O ponto a ser desdobrado neste item (c) é o da relação entre

ontologia e afetos. A ontologia espinosana, como analisado acima, tem seus

fundamentos na tese da substância única como ente absolutamente infinito que é

causa sui - e de todo o real, o qual é efeito da substância em sua autoprodução. Por

outros termos: se tudo o que é apenas tem realidade na medida em que é efeito da

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potência da e na substância, o mundo afetivo dos homens será efeito da e na

substância.

A seguir, analisarei esta tese espinosana.

Na Definição 5, Espinosa afirma, acerca dos modos: "Por modo

compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa,

por meio da qual é também concebido." (E I D 5 p. 13). Na Proposição 15, afirma que

tudo o que há e que pode ser concebido (concipi potest) somente pode existir e ser

concebido na substância (in Deo est) (E I P 15 p. 31). E na demonstração da Proposição

15 afirma que os modos - entre os quais estão os homens - não podem existir nem ser

concebidos sem uma substância. Na Proposição 18 (E I P 18 p. 43), a substância (Deus)

é apresentada como causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas. Antes, nos

três corolários da proposição 16 (E I P 16 cor 1, 2, 3 p. 37), Espinosa afirmara que: (a) a

substância é causa eficiente de todas as coisas, (b) a substância é causa por si mesma e

(c) a substância é absolutamente causa primeira.

Ou seja, a substância é causa das coisas particulares, como é o caso

dos homens, não transitivamente, mas de maneira imanente. É (a) causa eficiente46

imanente de todas as coisas, é (b) causa por si mesma (visto que não há nada fora dela

que a cause) e é (c) causa primeira não transitiva e de tudo o que há. Os homens - cada

um deles - serão, nesse sentido, afecções ou modos finitos de Deus ou da substância. E

como não há nada fora da substância, todas as coisas serão efeito dela mesma na

imanência.

46

No BT Espinosa apresenta, de maneira concisa, os sentidos que dá a um termo-chave de sua ontologia, a saber, causa eficiente. No capítulo 3 da Parte I do BT, Espinosa estabelece em que sentidos Deus pode ser considerado causa. O interessante, do ponto de vista da maneira como Espinosa reformula e usa conceitos da tradição filosófica à sua maneira, é ver que, entre as quatro causas de Aristóteles (material, formal, eficiente e final. Ver: ARISTÓTELES. Metafísica (983a 20- 983b 6)), uma é recepcionada e reconfigurada por Espinosa. Assim, diz o autor que Deus é causa eficiente em oito sentidos: (a) É causa emanativa ou produtiva de suas obras; (b) é causa imanente, e não transitiva; (c) é causa livre; (d) é causa por si mesmo; (e) é causa principal das obras que criou imediatamente (como o movimento na matéria, por exemplo); (f) é causa primeira; (g) é causa universal na medida em que não tem necessidade de ninguém para produzir efeitos; (h) é causa próxima das coisas imutáveis e causa última das coisas particulares (BT I 3, 2 pp. 70-71).

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Mas como pode ocorrer de os homens serem efeito da e na

substância? Como ocorre a "passagem" do eterno ao finito? Os homens não seriam

apenas epifenômenos na substância, entes sem realidade própria?47

Para tratar do conceito espinosano de modo e de sua relação com o

conceito de substância, importa apontar uma importante tese de Espinosa, exposta no

Escólio da Proposição 29 (E I P 29 Esc p. 53). Neste escólio, o autor apresenta a

diferença entre natureza naturada e natureza naturante48. Por natureza naturante

Espinosa entende o que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido - ou seja, os

atributos da substância e a substância mesma. Como Espinosa não diferencia

substância de atributo quanto à eternidade e à liberdade - pois os infinitos atributos

são a substância mesma em sua infinitude, efeitos da essência da substância -, estas

instâncias criadoras do real são uma espécie de estrutura estruturante do que há. É

tudo aquilo na substância que não é coagido ou determinado, mas determina as coisas

a serem o que são de maneira certa e determinada (fundamentos, por assim dizer, da

ontologia do necessário espinosana)49. Para a natureza naturante, "[...] não há quando,

nem antes, nem depois [...]." (E I P 33 Esc 2 p. 59). Por natureza naturada, Espinosa

entende, por sua vez, "[...] tudo o que segue da necessidade da natureza de Deus, ou

seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de Deus,

47

L. Bove resume bem o ponto da passagem entre o infinito e o finito. Ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012. Escreve o autor: "Tornar-se Deus, isso é absurdo, mas produzir em Deus e por Deus (a Natureza) o movimento real, potente e alegre, pelo qual o ser se autoproduz de maneira absolutamente autônoma, isso é o que significa o projeto ético... e também, de acordo com o mesmo espírito, o projeto político espinosita." p. 12 (tradução minha). 48

No BT Espinosa trata da questão em termos conceitualmente próximos aos da Ética, não parecendo ter mudado o sentido dos mesmos termos na Ética. Diz no BT que divide toda a Natureza em Natura naturans e Natura naturata. Por Natura naturans, diz, entende um ser concebido "[...] por si mesmo e sem ter de recorrer a algo diferente dele [...]" (BT I 8, 1 p. 83). Quanto à Natura naturata, a divide em duas, uma universal e outra particular. Universal chama a todos os modos que dependem imediatamente de Deus, a particular consiste em todas as coisas particulares que são causadas pelos modos universais (BT I 8, 2 p. 83). A natureza naturada universal seria o que Espinosa chama na Ética de modo infinito. Em relação à extensão, o modo infinito é o movimento. Em relação ao pensamento, é o intelecto. 49

Para o tema da ontologia do necessário, ver: CHAUI, Marilena. O fim da metafísica: Espinosa e a ontologia do necessário. In: CHAUI, M.; TORRES, S.; BAHR, F.. Spinoza: cuarto coloquio. Córdoba: Brujas, 2008, pp.11-38. Disponível em: http://spinozamericas.blogspot.com.br/p/publicacoes-dos-coloquios-de-cordoba.html. Acesso em 09 MAI 2013 (2008). Da mesma autora: CHAUI, Marilena. Da metafísica do contingente à ontologia do necessário: Espinosa. In: OLIVA, Luís César Guimarães (org.). Necessidade e Contingência na Modernidade. São Paulo: Ed. Barcarola, 2009, pp. 27-83. Também, da mesma autora: A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp.744-932.

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40

enquanto considerados como coisas que existem em Deus, e que, sem Deus, não

podem existir nem ser concebidas." (E I P 29 Esc p. 53).

A realidade dos modos humanos, que interessará à política e à

realidade afetiva que está em sua base, está toda desenhada, portanto, na natureza

naturada, mas tem sua fonte estruturante na natureza naturante. De fato, as coisas

que existem na substância de maneira certa e determinada existem na natureza

naturada, mas sua realidade é decorrente da natureza naturante.

Por isso Espinosa dirá, no Corolário 2 da Proposição 32, que

[...] a vontade, assim como as outras coisas naturais, não pertence à natureza de Deus, mas tem, com essa natureza, a mesma relação que tem o movimento e o repouso e todas as outras coisas que se seguem, como mostramos, da necessidade da natureza divina, e que são por ela determinadas a existir e a operar de uma maneira definida [certo modo determinari]. (E I P 32 Cor 2 p. 57).

A natureza naturante é efeito da liberdade da substância, isto é, o

que é livre absolutamente, o que não está submetido à coação, à determinação. Já a

natureza naturada é resultado da liberdade absoluta da natureza naturante. Não

pertence à natureza de Deus, mas dela decorre. "Não pertence à natureza de Deus

[...]", isto é, não é livre como a substância e seus atributos, mas é na substância, visto

que nada há fora dela (E I P 15 p. 31).

Entender como se dá a existência desse "na" substância da natureza

naturada, no que se refere ao mundo dos homens, é entender o regime em que

operam os modos finitos humanos da substância. Eles, os modos, não pertencem,

como afirma Espinosa, à natureza da substância. De fato, se pertencessem, seriam, tal

qual a substância, absolutamente livres. Mas Espinosa diz (E I P 32 Cor 2 p. 57) que os

modos têm com a natureza de Deus uma relação em que a estrutura estruturante

determina a estrutura estruturada, ou, para usar os termos espinosanos, a natureza

naturante determina a natureza naturada.

Essa tese espinosana foi movimentada por muito tempo pela fortuna

crítica do autor para afirmar a inexistência da liberdade dos homens, bem como de

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tudo que daí decorre: história, ética, política.50 Mesmo Antonio Negri, um dos

principais responsáveis pela virada interpretativa do espinosismo, afirmou existir uma

ruptura entre a Ética da ontologia (partes I e II) e aquela do mundo dos homens

(partes III a V). Não haveria conciliação possível entre a ontologia do necessário e as

teses éticas e políticas, devendo haver uma espécie de abandono daquelas partes em

prol de um Espinosa da potência contra a potestas 51.

Mostrar como, do interior dessa determinação, se apresenta a vida

afetiva dos homens, é a questão importante para a política segundo a hipótese que

levou à confecção desta tese, como já apontado.

Sendo esta a questão de fundo e tendo feito um esboço das teses

ontológicas de Espinosa, passo a uma análise detida da parte da Ética em que a

questão dos modos finitos humanos é colocada diretamente. Trata-se da parte III, cujo

tema e título é 'A origem e a natureza dos afetos' (De origine et natura affectuum).

Esta parte iniciará o mergulho espinosano na natureza naturada e daí extrairá as

consequências políticas, a serem explicitadas apenas em momentos da parte IV da

Ética e no Tratado político. Em menor medida, sustentarei, também, em outro

momento da tese52, a hipótese de que não há ruptura entre o Tratado político e o

Tratado Teológico-político. As teses destas duas obras seriam totalmente compatíveis

quanto à teoria dos afetos, ao direito, à política e à inexistência de um contratualismo

50

Para o tema da fortuna crítica, o que esta afirmou, acerca das teses de Espinosa, ver: Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, principalmente a Introdução (pp. 19-107), na qual a autora procura dar cor às várias correntes interpretativas da obra do filósofo. 51

Conferir: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998. Tradução para o português: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 98 e sgtes. Autores como Alexandre Matheron e Marilena Chaui não partilham da tese da ruptura. Para a posição de Chaui, ver nota acima em que se citam os textos sobre a ontologia do necessário. Sobre Matheron e sua posição acerca da tese de Negri: MATHERON, Alexandre. Prefácio. In: A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, pp. 15-21. Escreve Matheron: "Penso, com Negri, que a ontologia concreta começa com a teoria do conatus; mas a doutrina da substância e dos atributos é destinada a demonstrar essa teoria: a demonstrar que a natureza inteira, pensante e extensa ao mesmo tempo, é infinita e inesgotavelmente produtora e autoprodutora; e, para demonstrá-lo, era preciso reconstituir a estrutura concreta do real começando por isolar por abstração a atividade produtora sob suas diversas formas - que são precisamente os atributos integrados em uma só substância [...]." (pp. 19-20). 52

Ver item (a) do Capítulo 2.

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42

de corte hobbesiano53. Quanto à Ética e ao Tratado político, uma das teses do

presente trabalho é a da continuidade e da presença da teoria dos afetos da Ética no

interior mesmo do Tratado político, a sustentá-lo em sua inovação política.

O primeiro movimento dessa análise da parte III da Ética passa por

uma análise do Prefácio da parte III. E no Prefácio, não casualmente, Espinosa inicia

tratando dos "[...] que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens [...]."

(E III Pref p. 161).

Mostrarei, a seguir, como a ontologia do necessário se apresenta no

mundo afetivo e no "[...] modo de vida dos homens [...]" (E III Pref p. 161). A tese

espinosana é a de que o que existe é natureza de ponta a ponta, e no mundo dos

homens não poderia ser diferente.

c.2 Mundo dos homens e afetos

O leitor que se depara com a Ética, sobretudo o leitor

contemporâneo - mesmo aquele que já possui algum contato com textos filosóficos -,

pode ser acometido de certo estranhamento ao verificar que a primeira parte da obra

tem como título e tema De Deo, isto é, Deus. O tema 'Deus' não seria objeto mais

apropriado aos estudos teológicos? Por que o plano da conduta, das ações humanas e

de sua correção ou inadequação, próprio da ética segundo a tradição54, deveria ter

como ponto de partida o tema teológico por excelência?

53

Trato do tema da inexistência de um contratualismo de corte hobbesiano em Espinosa nos itens 'b' e 'c' do Capítulo 2, bem como em outros momentos difusos no referido capítulo. A tese é a de que a fundação e a sustentação do corpo político em Espinosa não demandam o uso da razão e da vontade elaborando um contrato que funda o corpo civil. Não há também, em Espinosa, o uso dos conceitos de pessoa (natural e ficta), nem o de representação como fundamento da unidade artificial da multidão num Estado, por meio do pacto. A explicação da fundação e da manutenção do corpo político, em Espinosa, passa pela teoria dos afetos e pela lei natural segundo a qual entre dois males se escolhe o menor e entre dois bens o maior. A análise deste tema está presente em grande parte do capítulo 2. 54

Exemplo influente do que, nesta ocasião, chamo de tradição, é Aristóteles. Ao tratar do homem sábio, o phronimos - capaz de melhor agir -, e do conceito de deliberação, na Ética a Nicômaco, afirma que: "A sabedoria prática [phronesis] [...] versa sobre coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação [diferentemente das coisas necessárias, que são objeto de ciência, epistéme]; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem." (1141 b 5-10 - tradução minha a partir do cotejamento das edições indicadas no início da tese, citadas nas Referências Bibliográficas). Deliberar é, para esta tradição, escolha entre possíveis que se apresentam no campo da ação.

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43

O segundo momento de espanto decorre da tese espinosana acerca

desta primeira parte da Ética. Deus, com efeito, de acordo com as teses analisadas nos

itens anteriores, é o próprio real em autoprodução, fora do qual nada existe nem pode

ser concebido. Deus é a substância única. Portanto, o alvo espinosano é a imagem de

Deus como exterior à criação e que, por um ato de vontade, cria o mundo e tudo o que

nele existe.

O real, pelo escólio da Proposição 29 da Ética I (E I P 29 Esc p. 53),

tem uma dimensão produtora e livre, a natureza naturante, espécie de estrutura

estruturante da substância, e uma dimensão daí decorrente, e portanto sem a mesma

natureza de Deus, sem a liberdade absoluta da natura naturans. Trata-se da natureza

naturada, expressão certa e determinada da natureza de Deus, tema já visto com

algum pormenor no item c.1, acima.

Os homens e seu modo de vida transcorrem na estrutura estruturada

do real, e tudo se apresenta como decorrência da ontologia do necessário espinosana.

No prefácio da Ética III, Espinosa opera uma revolução copernicana ao propor que os

homens são expressões da natureza e não vivem como "[...] um império num império."

(E III Pref p. 161) [imperium in imperio - G II p. 137].

Um pequeno retorno ao Escólio 1 da Proposição 33 da Parte I da

Ética (E I P 33 Esc 1 p. 57) pode auxiliar na análise da condição humana na substância.

Neste escólio, Espinosa explica o que é a contingência depois de ter

demonstrado que tudo no real opera por necessidade da natureza divina. De fato,

como disse Espinosa na demonstração da Proposição 33 (E I P 33 Dem p. 57), todas as

coisas estão determinadas a existir e a operar de uma maneira definida pela própria

natureza da substância. Do ponto de vista da operação da substância, nada é

contingente, sendo este, portanto, um conceito sem sentido.

Uma coisa é dita necessária em razão de sua essência ou em razão de

sua causa eficiente. Da essência de Deus decorrem infinitas coisas, pois é da sua

natureza a infinitude. Tudo ocorre e é concebido em e por Deus. Da mesma maneira,

da natureza do triângulo decorre que a soma dos ângulos internos seja igual a dois

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retos, assim como a causa eficiente do círculo é o movimento de um segmento de reta

em torno de um ponto, e a causa eficiente da esfera o movimento de um semicírculo

em torno de um eixo fixo. Este movimento do semicírculo em torno de um eixo fixo é a

causa eficiente da esfera, isto é, sua causa genética, sua origem, e o conhecimento

desta causa é o conhecimento mesmo da esfera. Dado este quadro, afirma Espinosa,

pode-se entender o que é o impossível. Trata-se do que não decorre da necessidade

das leis da natureza da substância. É impossível que uma mesa coma erva (TP IV 4 p.

39), que um homem voe (TP IV 4 p. 39) ou veja como honroso o que provoca náusea

(TP IV 4 p. 39), goste de alguém cujo decreto determine que se goste de quem se odeia

ou se odeie a quem se ama. É impossível que do movimento do semicírculo em torno

do eixo fixo não decorra a esfera. É impossível contrariar as leis necessárias da

substância. Quanto ao contingente, qual sua natureza?

Afirma Espinosa na Proposição 33 (E I P 33 Esc 1 p. 57-58) que o

contingente é uma vivência dos homens que decorre do desconhecimento das causas

necessárias dos eventos da realidade da substância. Nas palavras de Espinosa: "Não há

[...] nenhuma outra razão para se dizer que uma coisa é contingente, a não ser a

deficiência de nosso conhecimento." (E I P 33 Esc 1 p. 57). E complementa:

Com efeito, uma coisa sobre a qual não sabemos que a sua essência envolve contradição ou, então, sobre a qual sabemos muito bem que a sua essência não envolve nenhuma contradição, mas sobre cuja existência, entretanto, por nos escapar a ordem das causas [propterea quod ordo causarum nos latet], nada de certo podemos afirmar, essa coisa, repito, não pode nos parecer nem necessária nem impossível, e por isso dizemos que é ou contingente ou possível.

55 (E I P 33 Esc

1 p. 57-58).

Aos homens a ordem total das causas se apresenta como algo opaco.

E quando o homem conhece56, tal conhecer é um saber da causa próxima, nunca da

rede causal infinita da substância.

55

Sobre este tema, ver: SANTIAGO, Homero. Por uma teoria espinosana do possível. In: Revista Conatus - Filosofia de Spinoza. Revista vinculada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Vol 5, N 9, jul 2011, pp. 41-48. 56

Acerca da questão dos modos de percepção em Espinosa, há uma vasta literatura. Um clássico ensaio sobre o tema, por sua clareza, abrangência e densidade, é: TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. Uma abordagem muito original e inovadora nos estudos espinosanos, tratando, entre outros, do tema acerca de como operam nos homens os modos de percepção e qual sua relação com a ética espinosana, pode ser encontrada em: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel

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A contingência é uma experiência decorrente da situação dos

homens no mundo, de seu desfalque cognitivo da realidade causal completa da

substância. A contingência não existe, pois, no real entendido como operação de

autoprodução de si mesmo - o "ponto de vista" da substância -, mas existe como

experiência mental-imaginativa57 própria dos homens.

Decorre dessa experiência mental de opacidade um equívoco, para

os homens, quanto ao que efetivamente determina as suas ações. É isso que Espinosa

denuncia no Prefácio da Ética III, ao afirmar que os homens acreditam que não são

determinados por nada além de si próprios, que são como um império num império

(imperium in imperio - E III Pref p. 161).

É para mostrar o equívoco dessa assertiva, para derrubar a tese

segundo a qual o homem está fora da natureza a determiná-la por sua livre vontade

(tese do livre-arbítrio) que Espinosa dissertará sobre a origem e a natureza dos afetos.

Antes de finalizar este item c.2, gostaria de alinhavar algumas notas

sobre o conceito de livre-arbítrio em ao menos um influente representante da tradição

moderna, em face da qual Espinosa se posiciona com suas reformulações conceituais.

Assim se poderá ter, por contraste, uma noção precisa do peso das reformulações

espinosanas.

Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, sobretudo Curso de 24 de janeiro de 1978, pp. 19-56. Também curso de 17 de março de 1981, cujo tema é 'imortalidade e eternidade' e que trata, igualmente, das dimensões da individualidade e dos gêneros de conhecimento, pp. 234-289. Sobre o entendimento como potência, não como faculdade: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 75. 57

Sobre este tema, conferir: BOVE, Laurent. Spinoza e a Questão Ético-social do desejo: estudos comparativos com Epicuro-Lucrécio e Maquiavel. In: Fractal - Revista de psicologia, V 24 – N 3 set/dez 2012, pp. 443-472. Para este tema especialmente, pp. 460-463. O autor diz, em suma, que os conatus individuais estão sob o imperativo da prudência uma vez que na existência concreta não têm conhecimento da totalidade da causalidade necessária do real. A experiência psíquica - Bove usa aqui um termo talvez anacrônico, pois Espinosa não o utiliza - tem um saber de parte da causalidade necessária do real. A experiência do ser finito, psiquicamente, é a experiência da contingência - ainda que esta não exista no real. Existe, entretanto, psiquicamente (pp. 460-463). No mesmo sentido: CHAUI, Marilena. Servidão e liberdade. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 192-247. Sobre o tema, afirma: questão chave, que põe Espinosa com os mesmos problemas da tradição, mas o faz apresentar uma solução diferente: como uma filosofia da necessidade absoluta poderia dar algum lugar à fortuna? Solução espinosana: a fortuna não tem realidade ontológica, mas tem realidade psicológica - para as coisas singulares (p. 199). Afirma, ainda, no mesmo sentido: “O homem que aparece na Parte IV da Ética é o modo finito na duração.” (p. 199).

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Descartes58, ao tratar das relações entre vontade e conhecimento,

estabelece a tese seguinte:

E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros (que apenas testemunham haver imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre-arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade. Isto porque, só pelo entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que posso assegurar ou negar. [...] Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre-arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites. [...] Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade mais ampla e mesmo infinita; [...] Resta tão-somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus. (DESCARTES. Meditações. pp. 300-302)

59.

Segundo Descartes, portanto, a vontade é livre, é infinita, e faz que o

homem possa ser visto como à semelhança de Deus quanto a esta faculdade. A

vontade, com efeito, não tem limites, diferentemente do conhecimento humano, que

não pode tudo saber.

Na mesma linha conceitual, em sua última obra, Descartes mantém

suas teses. Em As Paixões da Alma, a vontade é conceituada como uma das funções da

alma60. E esta função, que Descartes chama de ações da alma, equivale a "[...] todas as

nossas vontades [...]" 61. A outra função (as paixões) define-se pelas espécies de

percepções ou conhecimentos existentes em nós62. A vontade, acrescenta Descartes, é

de duas espécies. Umas terminam na alma mesma, como "[...] quando queremos amar

a Deus [...]" 63, outras "[...] são ações que terminam em nosso corpo [...]" 64. O exemplo

58

Espinosa cita Descartes em (E III Pref p. 161). 59

DESCARTES. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores). Descartes também desenvolve o tema da infinitude da vontade e sua relação com o entendimento na Carta a Mesland, de 09 de fevereiro de 1645. DESCARTES. Correspondance: julho de 1643 - abril de 1647. Ed. Adam et Tannery. Paris: Vrin, 1989, vol. IV, p. 173-175. Tradução em KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, jun./2008, pp. 235-242. Também o faz em As Paixões da Alma (vide abaixo). 60

DESCARTES. As Paixões da Alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores), p. 143 (artigo 17). 61

Ibid. p. 143 (artigo 17). 62

Ibid. p. 143 (artigo 17). 63

Ibid. p. 143 (artigo 18). 64

Ibid. p. 143 (artigo 18).

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movimentado é o de que isso ocorre quando temos vontade de passear. Ou seja, pelo

fato de termos vontade de passear, as pernas se mexem como resultado dessa

vontade. Na mesma linha conceitual das Meditações, a vontade é entendida como

"[...] de tal modo livre que nunca pode ser compelida [...]." 65

Eis, pela pena de Descartes, aquilo que Espinosa qualifica como

equívoco, ou seja, o homem como um imperium in imperio (E III Pref p. 161).

Volto a Espinosa. No Prefácio da Ética III, os afetos são definidos

como naturais, tese, segundo o autor, muito diversa daquela presente na tradição.

Não quer Espinosa "[...] ridicularizar os afetos e as ações dos homens." (E III Pref p.

161), tratá-los como algo "[...] vão, absurdo, horrendo [...]" (E III Pref p. 161), mas

concebê-los como coisas naturais e compreendê-los pelo método geométrico que

estrutura o texto da Ética. Ou seja, em vez de vituperar a natureza humana decaída,

tratar os afetos como vícios e como coisas externas ao mundo natural, tema que

aparecerá não casualmente no Tratado político66 (TP I 1 p. 5), Espinosa propõe

considerar "[...] as ações e os apetites humanos exatamente como se fossem uma

questão de linhas, de superfícies ou de corpos." (E III Pref p. 163).

Assim, é na natureza que o mundo afetivo se dá, não fora dela. E é no

seu interior, segundo uma lógica própria, que se deve procurar entender como

Espinosa concebe os afetos humanos, isto é, qual a sua natureza na Natureza.

(d) O conceito de conatus e os afetos primários: desejo, alegria, tristeza

d.1 Os afetos na ontologia

O Prefácio à Ética III é o lugar em que Espinosa inicia sua

argumentação tratando de como a tradição desenvolveu o tema dos afetos e "[...] o

modo de vida dos homens [...]" (E III Pref p. 161). Portanto, nesta parte da Ética, é da

natureza naturada que Espinosa falará, e mais especificamente, no rol maior da

natureza naturada, da vida cotidiana dos homens e de suas relações entre si e com as

65

Ibid. p. 155 (artigo 41). 66

Como visto pontualmente no item (b), acima.

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coisas no interior da substância67. Para isso, mesmo quando usa o vocabulário da

tradição, como é o caso das expressões 'Deus' ou 'liberdade' na parte I, dá-lhes um

significado totalmente diverso e totalmente de acordo com suas definições, axiomas,

proposições e demonstrações. Ou seja, não há dúvida de que Espinosa tratará dos

homens e de seu modo de vida, de suas relações entre si e com as outras coisas (E III

Pref p. 161), ainda que o faça reformulando uma gama de conceitos da tradição.

O texto posterior ao Prefácio, então, nesta chave interpretativa, inicia

abordando os conceitos de causa adequada, causa inadequada, ação, paixão

[passionem], afeto e potência de agir. Procurarei tratar desses conceitos para

entender, após, como Espinosa demonstrará que é por esses termos que poderemos

compreender as relações dos homens entre si, e com as demais coisas do mundo,

afetivamente. E procurarei mostrar que Espinosa faz esta costura tratando das ações e

dos apetites humanos "[...] como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou

de corpos." (E III Pref p. 163). Com efeito, como visto na ontologia da parte I da Ética,

nada há fora da natureza e, portanto, os afetos também serão manifestações naturais.

Na Definição 3 desta Parte da Ética, Espinosa conceitua afeto: "Por

afeto [affectum] compreendo [intelligo] as afecções [affectiones] do corpo, pelas quais

sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo

tempo, as ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163). Na explicação desta definição, usa

a expressão causa adequada, relaciona-a com o conceito de ação, e afirma que o

contrário, a causa inadequada, se relaciona com uma paixão (E III D 3 Explic p. 163).

Ser causa adequada é ser causa do efeito de modo total - aquela cujo

efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma, isto é, pela causa

mesma. Ser causa inadequada é ser causa parcial do efeito. Espinosa diz que agimos

quando sucede algo de que somos causa adequada, e padecemos quando algo sucede

em nós ou quando somos causa parcial de algo. (E III D 1, 2, 3 p. 163).

67

Um dos autores clássicos a chamar a atenção para o caráter prático da filosofia espinosana é Deleuze. Ver, sobre este tema: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981. Tradução desta edição em: DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: ed. Escuta, 2002.

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Suspendo, por ora, a análise das relações entre causa adequada e

ação e causa inadequada e paixão, tema que será retomado ao final deste capítulo

(item (i)).

Desdobro, a seguir, o conceito de afeto, relacionando-o com outras

passsagens da Ética, para que o mundo propriamente humano, apontado no início do

Prefácio (E III Pref p. 163), seja apresentado segundo as reformulações conceituais

propostas por Espinosa.

Espinosa compreende por afeto, pelas primeiras linhas da definição

3, "[...] as afecções do corpo [...]" (E III D 3 p. 163). Corpo é um termo definido na parte

II da Ética. Escreve o autor: "Por corpo compreendo um modo que exprime, de uma

maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como

coisa extensa." (E II D 1 p. 79). Remete, então, na mesma definição, ao corolário da

proposição 25 da parte I da Ética, que diz, sobre as coisas particulares: "As coisas

particulares nada mais são que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos

quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e determinada." (E I

P 25 Cor p. 49). Por fim, afirma que esta proposição é demonstrada pela Definição 5 da

parte I, bem como pela proposição 15. Ora, a proposição 15 (E I P 15 p. 31) é

exatamente aquela em que se demonstra que é na substância que tudo o que há

existe e é concebido. E a definição 5 (E I D 5 p.13) é aquela que estabelece que o modo

é uma afecção da substância, isto é, aquilo que é concebido por ela e tem sua

realidade nela. Por outras palavras, depende da substância para existir e é por ela

concebido.

Portanto, no interior da coerência geométrica do texto espinosano,

tem-se que um afeto é o resultado de um conjunto de afecções do corpo. E este

conjunto - ou feixe - é um modo finito do atributo extensão da substância. Sendo o

atributo livre, causa de si, infinito e eterno, como analisado no item (c), acima, o modo,

como afecção, pelo que foi dito nas linhas acima, retomando a parte I da Ética, é certo

e determinado em sua extensão. Ou, por outra, é a expressão do atributo extensão da

substância na natureza naturada da substância. É a estrutura estruturada pela

estrutura estruturante.

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Mas a definição de afeto continua. Por afeto Espinosa compreende as

afecções do corpo, como visto, e acrescenta: "[...] pelas quais sua potência de agir é

aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo [simul], as

ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163). O conceito de potência aparece na definição

para estabelecer que a intensidade corporal varia, isto é, transita de um grau mais

baixo a um grau mais alto e vice-versa. Ou seja, o modo, enquanto extensão, é uma

intensidade68 de potência do atributo extensão da substância. E tal potência varia

segundo as afecções do corpo.

Em geral, as afecções do corpo produzem69, simultaneamente

[simul], uma ideia na mente, como diz o final da definição de afeto: "[...] e, ao mesmo

tempo [simul], as ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163).

A Proposição 7 da parte II, em seu escólio (E II P 7 Esc p. 87) pode

auxiliar na explicação deste "paralelismo"70, isto é, dessa simultaneidade entre

pensamento e extensão. A Proposição 7 estabelece que "A ordem e a conexão das

ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas." (E II P 7 p. 87). E seu escólio

explica: "Assim, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e

mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras." (E II P 7 Esc p. 87). Isso

porque a substância pensante e a substância extensa (Espinosa usa neste caso a

68

Um ensaio clássico sobre o problema da expressão em Espinosa, texto que será direta e indiretamente retomado no correr da tese, é: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968. A proposta de Deleuze é tratar do problema da expressão em Espinosa e mostrar como ele o herda da tradição e o transforma completamente. Deleuze analisa, também, a problemática passagem do infinito (a substância) ao finito (os modos finitos). 69

Digo 'em geral' uma vez que nem toda afecção do corpo produz uma ideia na mente. Ver, por exemplo, a seguinte passagem: "Quanto ao restante, deixei de lado as afecções exteriores que se observam em afetos como o tremor, a palidez, o soluço, o riso, etc., porque se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente." (E III P 59 Esc p. 237). 70

Sobre a questão do paralelismo em Espinosa, numa abordagem crítica, isto é, que coloca em xeque a leitura estrita acerca da existência de um paralelismo entre pensamento e extensão em Espinosa, ver: JAQUET, Chantal. L'unité du corps et de l'esprit - affects, actions et passions chez Spinoza. Paris: PUF, 2004; Cito a tradução: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Para Jaquet, quem primeiro teria vislumbrado problema seria Deleuze (p. 24 e sgts). Sobre o conceito de simul como não remetendo ao paralelismo: p. 40, p. 70. Sobre os afetos como transição de potência, a mesma autora diz: “Os afetos, por conseguinte, são todos por natureza estados de transição da potência” p. 138. Esta tese dos afetos como estados de transição da potência terá importância quando o conceito espinosano de direito for abordado, no capítulo 2.

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palavra substância para se referir a atributo, como se vê rapidamente pelo contexto),

como escreve Espinosa pouco antes no mesmo escólio, "[...] são uma só e a mesma

substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro." (E II P 7 Esc p. 87).

Assim, o homem é modo do atributo extensão e do atributo

pensamento, não enquanto atributos, mas enquanto afecção finita, isto é, modo finito

da potência de pensar e da potência de movimento. Como tais potências, entretanto,

são simultaneamente afecções do corpo e ideias dessas afecções, os homens são ao

mesmo tempo afecções do corpo e ideias dessas afecções. Ou, como afirma Espinosa

em outro momento importante do texto para a definição de homem, "Segue-se disso

[da demonstração da proposição 13] que o homem consiste de uma mente e de um

corpo [hominem mente et corpore constare], e que o corpo humano existe tal como o

sentimos." (E II P 13 Cor - aquele logo após a proposição - p. 97).

Se por afeto, como procurei mostrar, Espinosa entende o modo do

corpo segundo seu grau de potência (uma intensidade certa e determinada) e a ideia

dessa extensão enquanto potência maior ou menor, os homens podem ser entendidos

como variações de potência corporal e, em geral, ideias simultâneas dessas mesmas

variações. Esta tese ficará mais clara a seguir, quando mostrarei como Espinosa

concebe o conceito de conatus e como trata da questão dos afetos primários e, assim,

mostra como o homem varia sua potência no interior da natureza naturada.

d.2 O conatus: considerações iniciais

As Proposições 6 a 9 da parte III da Ética formam um pequeno

tratado sobre o conatus71, o esforço de cada coisa por perseverar em seu ser.

71

Sobre o tema da potência e do conatus em Espinosa, texto com o qual ainda se dialogará no correr da tese, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008. A tese foi publicada em: CAMPOS, André Santos. Jus sive Potentia: Direito Natural e Individuação em Spinoza. Lisboa: Editora Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010. Sigo a numeração da tese para as citações que seguem. O autor identifica um mini-tratado do conatus entre as proposições 4 e 8 da Ética III (p. 219). Eu acrescentaria a Proposição 9 ao mini-tratado. A definição de conatus dada por André Santos Campos é a seguinte: "Esta potência em acto, variável, é em simultâneo também ativa e passiva, ou seja, quanto maior o número de partes componentes, mais uma coisa é causal extrinsecamente ou causada extrinsecamente, mais

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52

Analisarei tais proposições à luz do que foi visto e do que pretendo desenhar acerca do

mundo afetivo dos homens.

A Proposição 6 afirma que "Cada coisa esforça-se [unaquaeque res],

tanto quanto está em si [quantum in se est], por perseverar em seu ser [in suo esse

perseverare conatur]." (E III P 6 p. 173). O conceito de perseverar em seu ser, próprio

de todas as coisas, que Espinosa afirma na demonstração (E III P 6 Dem p. 173-174),

decorre do que já fora objeto das partes anteriores da Ética. As coisas singulares são

intensidades parciais da potência de Deus (são modos), intensidades72 que são

modificações dos atributos de Deus no momento em que se exprimem de uma

maneira definida e determinada (E III P 6 Dem p. 174-175).

A Proposição 7 define este esforço: "O esforço [conatus] pelo qual

cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que sua essência

atual." (E III P 7 p. 175). Na demonstração de E III P 7, Espinosa afirma que a potência

de uma coisa necessariamente acarreta consequências, isto é, consequências

decorrem do esforço de agir de cada coisa, ajam elas sozinhas ou em conjunto. A

essência atual de uma coisa é esforço para perseverar em seu ser - o que é diferente

de se manter num estado.

apta a intervir em processos variados de causalidade extensiva, mais potente é, enfim - este é o domínio das afecções, onde o matemático é também biológico, e em que a potência que é causal do seu 'ser-efeito-extrínseco' passa a ser também potência que é causal do seu 'ser-causa-extrínseca'. Essa essência objetiva, em acto, é potência de causalidade no extrínseco, ab alio e in aliud - Spinoza chamar-lhe-á conatus" (p. 210). Ver, também, sobre o desejo como fundado no conatus: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 108. Acerca da proposta de Macherey no seu trabalho como comentador da Ética de Espinosa, ver: MACHEREY, Pierre. Ler a Ética de Spinoza. Tradução de Lia Gould. Encontro de 6 de novembro de 1998 do Groupe de Recherches Spinozistes, que organizou um debate na ocasião do encerramento da publicação do comentário da Ética por Pierre Macherey (5 volumes, P.U.F.,1994-1998). Disponível em francês em: http://hyperspinoza.caute.lautre.net/spip.php?article929. Acesso 02 ABR 2014. Disponível a tradução em: http://dc368.4shared.com/doc/45ZHXeFk/preview.html. Acesso 02 ABR 2014. Sobre seu comentário, Macherey diz que o texto da Ética funcionou como um negativo de fotografia. O seu trabalho teria sido o de revelar este negativo, escrevendo 2.000 páginas de comentário para um texto (ou um negativo) de 200 páginas. Uma ratio de 1 para 10. Tudo inspirado na escola francesa de leitura estrutural de texto, tendo Gilles-Gaston Granger como um dos mestres. 72

No sentido dos modos como tendo realidade e sendo intensidades quantitativas de potência, e contrariando, portanto, uma tradição interpretativa do espinosismo que via nos modos epifenômenos da substância, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, especialmente 3ª parte, pp. 179-181. Afirma Deleuze em resumo: "O finito não é então nem substancial nem qualitativo. Mas ele também não é aparência: ele é modal, isto é, quantitativo" (p. 181 - tradução minha). Ele é uma quantidade certa e determinada de potência, a variar em função das causas externas ou internas que aumentem ou diminuam sua potência. Ao usar, na tese, o termo 'expressão', para tratar dos modos finitos humanos, faço-o adotando esta conceituação de Deleuze.

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A Proposição 8 afirma que: "O esforço [conatus] pelo qual cada coisa

se esforça por perseverar em seu ser [quo unaquaeque res in suo esse perseverare

conatur] não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido." (E III P 8 p.

175). Na demonstração, Espinosa afirma que a destruição da coisa, por vir sempre de

fora, depende de uma causa exterior. Por isso o tempo de perseverar da coisa é

indefinido. Pode ocorrer agora, se um homem ingerir arsênico e sua essência atual, seu

perseverar no ser - como o deste Pedro ou deste Paulo -, em razão dos efeitos no

corpo do mau encontro73, findar. Pode ocorrer depois, caso o mau encontro se dê em

outra ocasião.

Passo à próxima Proposição, a de número 9, que interessa sobretudo

em seu escólio (E III P 9 Esc p. 177). Nele, Espinosa introduz uma importante análise

dos conceitos de conatus, vontade, desejo e apetite. Vontade é o esforço quando

referido à mente, ao passo que o esforço quando referido simultaneamente [simul] à

mente e ao corpo, chama-se apetite. O apetite, diz Espinosa, é a própria essência do

homem.

Também neste escólio é feita uma costura entre dois temas

aparentemente distintos: o dos afetos e o dos homens. Com efeito, Espinosa iniciou a

parte III da Ética com a intenção de falar sobre afetos e o modo de vida dos homens.

Dissera, como procurei mostrar nas linhas acima, que "Os que escreveram sobre os

afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de

coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora

dela." (E III Pref p. 161 - grifos meus). Mas depois abandona, aparentemente, os

termos referentes aos homens, para tratar de temas como causa adequada,

inadequada, afeto como afecção, potência, ação e paixão, remetendo aos conceitos de

Deus, atributo extensão, atributo pensamento, mente como ideia do corpo, etc..

73

Retiro o exemplo de Deleuze. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Diz o autor: “[...] se eu conheço suficientemente sobre a relação característica do corpo denominado arsênico e sobre a relação característica do corpo humano, eu posso formar uma noção daquilo em que essas duas relações não convêm, a ponto de o arsênico, sob sua relação característica, destruir a relação característica de meu corpo. Eu sou envenenado, eu morro.” (p. 44).

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Entretanto, procurei mostrar, ao analisar a definição 3 (de afeto), que

Espinosa estava a analisar ali também os homens, os quais foram definidos como

variações de potência corporal e ideias simultâneas dessas mesmas variações. Está

Espinosa, ao tratar de afetos, a tratar dos homens, pois a essência do homem é, como

afirmado no escólio da Proposição 9, desejo74.

Ou seja: "Apetite, o qual, portanto, nada mais é do que a própria

essência do homem, [...]." (E III P 9 Esc p. 177). E logo após, "[...] entre apetite e desejo

não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos

homens à medida que estão conscientes de seu apetite." (E III P 9 Esc p. 177). Com

essas colocações, Espinosa explicita, também, o que é o homem. O homem é afecção,

modificação finita da substância, e é afeto, no sentido de ser apetite-desejo.

Importa destacar que o conatus é o esforço por perseverar em seu

ser - e é um traço de todas as coisas, pois todas as coisas procuram isto, se esforçam

para perseverar em seu ser75. Na Proposição 7 Espinosa fala em res, em coisa que se

esforça por perseverar em seu ser. Na Proposição 9, porém, Espinosa fala do homem.

Ele, como coisa singular, modo finito de dois dos infinitos atributos da substância, o

pensamento e a extensão, no escólio da Proposição 9, é definido como apetite-desejo-

vontade.

Logo a seguir, na Proposição 11, o desejo será estabelecido como um

dos afetos primários (E III P 11 Esc p. 177-179). Portanto, costurando o início da Ética III

com os demais movimentos do texto, pode-se afirmar com elementos mais

consistentes que Espinosa liga a definição 3, de afeto, com o início do Prefácio da Ética

74

Importante ver a transformação, na Ética III, do conceito de vontade no conceito de conatus da mente do homem (E III P 9 Esc p. 177). Ao criticar a vontade como livre no Prefácio (E III Pref p. 161), é toda uma tradição que é atacada. Ver item 'c.2', deste capítulo, sobre o conceito de vontade em Descartes. O contraste é didático para mostrar duas concepções de vontade. Arrisco dizer que o conceito de linhagem cartesiana foi vencedor na história das ideias. Até hoje o conceito de livre-arbítrio, ou de vontade livre, é usado sem mais pelos juristas cíveis, e de outras áreas do direito, para tratar do conceito de contrato como tendo um dos fundamentos basilares na livre manifestação da vontade das partes. O conceito de livre vontade é usado também para a responsabilização na esfera penal. O conceito de dolo (fazer algo com intenção) demanda o conceito de livre-arbítrio. A vitória de uma ilusão? 75

Conferir, sobre a universalidade do conatus: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 370.

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III, bem como com o conceito de conatus, de desejo (cupiditas), de vontade (voluntas),

de apetite (appetitus) e de homem. Ele o faz por meio da compreensão do homem

como esforço para perseverar em seu ser (conatus). Mas nesse ponto apenas, o

homem não se diferencia das demais coisas, modos singulares na natureza naturada

da substância. O que faz do homem aquilo que ele é ontologicamente, ao que indica o

texto, é entendê-lo como desejo-apetite-vontade. Quando consciente de seu apetite -

e nem sempre apenas quando consciente, ao que parece, pois Espinosa usa o termo

comumente (plerumque) -, diz-se que o homem é desejo. Quando o esforço estiver

referido à mente, será vontade. Quando ao corpo e à mente, como modos finitos dos

atributos pensamento e extensão, em simultaneidade [simul], será apetite.

Para mostrar as teses espinosanas por contraste, abordo

pontualmente, abaixo, o tema do conatus em Hobbes.

Hobbes faz uso, no Leviatã, do conceito de conatus ou esforço

(Leviatã I 6 p.57; endeavour na edição original - ed. de R. Tuck, p. 38)76. A abordagem

hobbesiana se distancia da espinosana, entretanto77. Um ponto central da divergência

está nas elaborações bastante diferentes de antropologia de ambos os autores78. Num

lance d'olhos, pode-se dizer que a abordagem espinosana demanda o conceito de

substância79, visto no item (c), acima. Qualquer potência é potência da substância e na

substância, e os homens são afecções da substância, intensidades de potência (ou

esforço), as quais aumentam ou diminuem em razão dos afetos, ativos ou passivos,

experienciados. Isto é, o esforço dos homens, sua maior ou menor potência, terá

relação com os afetos, como mostrarei nos itens seguintes com maior grau de detalhe.

76

Hobbes usa a expressão também em Os Elementos da Lei Natural e Política (Elementos I VII 2 p. 48, entre outras passagens). Usa-a no mesmo sentido em Do Cidadão (Do Cidadão I 7 p. 47, entre outras passagens). 77

Ver sobre este ponto: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 14; pp. 24-25; p. 32. Afirma o autor: "A distinção hobbesiana entre o movimento animal e o movimento vital faz do primeiro o meio de reprodução do segundo [meio de reprodução do movimento vital], o qual se torna assim sua causa final [ou seja, o movimento animal tem como finalidade preservar/garantir o movimento vital]. O conatus espinosista, ao contrário, faz da essência e de sua potência a causa eficiente dos efeitos que dela decorrem." (tradução minha - p. 25). No mesmo sentido: "Diferentemente de Hobbes, esse desejo ou esforço é esforço de uma essência e não conatus de um movimento animal distinto de seu movimento vital e finalizado por este." (Tradução minha - p. 32). 78

Sobre este tema, ver: Ibid. p. 33. 79

Sobre o tema, Ibid. p. 103.

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A abordagem hobbesiana não opera com o conceito de substância, e Hobbes, ademais,

elabora, no Leviatã, uma diferenciação que não se apresenta na versão espinosana,

acima examinada. Trata-se do que Hobbes conceitua no capítulo VI do Leviatã como

movimento animal e movimento vital. Nesta ocasião, Hobbes afirma, sobre o conceito

de esforço (endeavour):

Há nos animais dois tipos de movimento que lhes são peculiares. Um deles chama-se vital; começa com a geração, e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção etc.. [...]. O outro tipo é o dos movimentos animais, também chamados movimentos voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginado pela mente. [...]. Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se geralmente esforço.

Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo, [...]. Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão. (Leviatã I 6 p. 57).

Em Hobbes há, pois, como indica o excerto, o uso do conceito de

conatus (endeavour, isto é, esforço). Mas o autor estabelece uma divisão do esforço

que Espinosa não faz, a saber, aquela entre movimento vital e movimento animal. O

movimento vital tem como meio ou estratégia de realização o movimento animal, isto

é, os atos de vontade80. Estes para Hobbes não são livres - não há livre-arbítrio. E o ato

de vontade é "[...] o ato (não a faculdade) de querer" (Leviatã I 6 p. 63), o último

apetite ou aversão da deliberação (Leviatã I 6 p. 63). Seguindo as trilhas de C. Lazzeri, a

diferença conceitual, decorrente dos conceitos-base de ambos os autores, leva a que

se possa afirmar que em Hobbes o desejo é o de "[...] conservação do movimento

fisiológico que define a vida" 81, ou seja, o movimento animal é meio para conservação

do movimento vital, ao passo que em Espinosa se busca o ótimo do esforço do

desejo82. Assim, o desejo não é, para Espinosa, mera reprodução do bios, estratégia

utilitária meramente fisiológica, mas esforço para alcance do ótimo do desejo, sua

alegria máxima pela maior duração possível. Esta tese trará como consequência, na

filosofia política de cada autor, grandes diferenças de abordagem. Tais diferenças

80

Sigo a interpretação de: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, pp. 24-25. Ver citação acima, na nota de rodapé. 81

Ibid. p. 33. 82

Ibid. p. 33.

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poderão ser vistas com maior detalhe no capítulo 2 da tese, momento em que

mostrarei que a cidade, para Espinosa, não pode ser o lugar do medo capilarizado pelo

corpo político, pois isso implica um exercício precário dos conatus individuais. De fato,

para Espinosa, "[...] a paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza

de ânimo [...]." (TP V 4 pp. 44-45). E Espinosa completa a tese no parágrafo seguinte,

ao afirmar que a vida humana não se define somente pela circulação do sangue e

outras coisas comuns aos demais animais, mas pela virtude e vida da mente (TP V 5 p.

45). E a virtude maior da mente é a razão, local da plena concórdia e do afeto ativo

(alegre). O fato é que, como mostrarei no capítulo 2, se os homens se conduzem com

mais frequência pelos afetos que pela razão (E IV P 35 Esc p. 303), é preciso que o

corpo político seja a astúcia institucional que leve mais alegria, afeto do aumento da

potência do conatus de cada membro da cidade, ao maior número e pela duração

máxima.

Volto a Hobbes. O que decorre, neste autor, dos conceitos presentes

no excerto acima citado, é um utilitarismo acentuado no comportamento dos homens

uns com os outros e com as coisas do mundo. Esta tese é elaborada por Hobbes no

capítulo XI do Leviatã. Afirma Hobbes que "A felicidade é um contínuo progresso do

desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão

o caminho para conseguir o segundo." (Leviatã I 11 p. 91)83. E complementa, no

parágrafo subsequente: "Assinalo [...] como tendência geral de todos os homens, um

perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte."

(Leviatã I 11 p. 91).

Portanto, ainda que utilizem, ambos, o conceito de esforço-conatus,

os textos indicam caminhos divergentes tanto na elaboração-base do conceito quanto

nas consequências dele advindas. Eis um primeiro ponto em que fica já indicada a

seguinte hipótese, cuja comprovação se dará no decorrer da tese: Espinosa e Hobbes

usam expressões semelhantes e até mesmo idênticas, como é o caso do conceito ora

analisado. Porém, divergem na definição dos mesmos termos e nas consequências,

sobretudo políticas, que deles retiram. Como estão ambos trabalhando num campo

83

Ver também, sobre a tese do utilitarismo e do desejo irrefreável em Hobbes: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 65.

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semelhante de problemas e conceitos, pode parecer - como interpreta parte da

fortuna crítica84 - que se trata de autores muito próximos. Mas o olhar em detalhe leva

a que se constate que entre Espinosa e Hobbes há distâncias conceituais consideráveis.

Após o passeio breve pelos textos hobbesianos, retorno ao tema em

Espinosa para concluir. O homem é, para Espinosa, conatus em forma de vontade da

mente e conatus em forma de apetite-desejo do corpo e da mente simultaneamente.

Ou, por outra: o homem é uma das maneiras pelas quais o conatus, este esforço das

coisas singulares em geral para perseverarem em seu ser, se apresenta no interior da

substância - e como manifestação da potência mesma da substância - enquanto

natureza naturada.

d.3 Desejo, alegria, tristeza

Espinosa, como indicado acima, conceitua afeto na definição 3 da

Parte III da Ética (E III D 3 p. 163). Procurei mostrar como este conceito se refere à

definição de homem e se funda, por sua vez, na ontologia espinosana. Procurei

mostrar, também, como o conceito de afeto tem estreita ligação com os conceitos de

conatus e de potência. Nem todo conatus é um homem, mas todo homem, isto é, cada

homem, é um conatus. O conceito de conatus85 é mais abrangente que o de homem.

Enquanto o esforço para perseverar no ser (o conatus) é próprio de todas as coisas

singulares na substância (Espinosa usa a palavra res no texto latino), o conceito de

homem corresponde, por assim dizer, a um número menor de seres singulares. Com

efeito, nem todo ser singular é um homem, mas todo homem é um ser singular e,

portanto, é um conatus. O conatus humano, como ficou desenhado conceitualmente

nas linhas anteriores, se manifesta como expressão, na natureza naturada, de dois dos

infinitos atributos da substância: o pensamento e a extensão. Como modo do

pensamento, o conatus de cada homem é vontade em ato de cada homem - deste

Pedro, deste Paulo. Como modo simultâneo [simul] do esforço da mente e do esforço

do corpo, é desejo quando a mente tem consciência do esforço, e é apetite quando

84

Sigo, para esta afirmação, a tese de: Ibid. p. 01. 85

Larent Bove fala em três manifestações do conatus quando este conceito se refere ao homem: conatus como hábito, conatus como princípio-de-prazer e conatus como memória. Os temas da busca do aumento da potência e da memória serão trabalhados neste capítulo e apontarão para sua importância na política. Ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 19-46.

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não há esta consciência. Assim, apetite [appetitus] e desejo [cupiditas] são a mesma

coisa, exceto pela consciência do esforço implicada no conceito de desejo.

Ora, não por acaso, então, após o "mini tratado" 86 do conatus, logo

na Proposição 9, escólio, analisada acima, Espinosa passa a falar do esforço referido à

mente, do esforço do corpo e da mente e do homem como apetite-desejo. O conceito

de homem se apresenta neste escólio e está ligado ao conceito de desejo - que por sua

vez pode ser definido como o conatus dos seres singulares humanos, ou melhor, de

cada ser singular humano como essência em ato.

Desejo é um dos afetos primários, tema sobre o qual Espinosa passa

a tratar na Proposição 11, escólio (E III P 11 Esc p. 177). Assim, o tema dos afetos passa

a ser tratado como uma questão que envolve os seguintes conceitos, todos

entrelaçados: homem, afeto, desejo, potência, vontade, causa adequada, causa

inadequada, paixão e ação. Ao tratar do mundo afetivo dos homens, ou dos homens

como expressões afetivas, estes conceitos estarão presentes, como ficará claro pela

análise do tema dos afetos primários e de seus desdobramentos. Após tratar dos

afetos primários, de conceituá-los, e de mostrar a complexidade do mundo afetivo - e,

por conseguinte, do mundo humano-, o tema da potência e da política poderá ser

tratado com mais elementos, mostrando toda a força das reformulações conceituais

espinosanas87. Tal entrelaçamento será objeto do capítulo 2. Por ora, procurarei

formular os conceitos espinosanos referentes aos afetos primários para mostrar como

se ligam, neste ponto, os conceitos antropológicos e ontológicos de Espinosa. De fato,

há uma teoria do homem, ou uma antropologia, fundada em uma ontologia da

potência e que se apresenta como complexidade afetiva. Esta complexidade afetiva,

como mostrarei no capítulo 2, por sua vez, funda e sustenta a política.

Volto, então, aos conceitos de desejo, alegria e tristeza para

alinhavar os temas acima expostos.

86

CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 219. 87

Sobre o tema Espinosa como um reconstrutor de conceitos da tradição para formular os seus próprios, com outros sentidos completamente diferentes daqueles da própria tradição utilizada, ver: Ibid., pp. 17-20.

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A Proposição 11 da Ética III, em seu escólio, é o momento em que o

tema da definição 3 (E III D 3 p. 163), a saber, a definição de afeto, ganha cores mais

densas. Aqui Espinosa tratará dos afetos considerados primários. Escreve o autor:

Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando [transire] ora a uma perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca [autem], compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor. Além disso, chamo o afeto da alegria [laetitia], quando está referido simultaneamente [simul] à mente e ao corpo, de excitação ou contentamento [titillationem vel hilaritatem]; o da tristeza [tristitia], em troca, chamo de dor ou melancolia. [...]. Quanto ao desejo, expliquei-o no esc. da prop. 9. Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros. (E III P 11 Esc p. 177-179).

Este escólio se refere à Proposição 11, a qual trata da questão do

aumento ou da diminuição da potência de agir do corpo por uma dada coisa. E

acrescenta que a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência

de pensar da mente (E III P 11 p. 177). Os fundamentos da Proposição 11 estão na

Parte II da Ética. São as Proposições 7 e 14. Aquela diz que a ordem e a conexão das

ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas (E II P 7 p. 87). Esta diz que a

mente pode perceber muitas coisas. E tal capacidade é tanto maior quanto maior for o

número de maneiras pelas quais seu corpo pode ser disposto (E II p. 14 p. 107). Ou

seja, há simultaneidade entre a ordem do corpo de cada homem e a ordem de suas

ideias. E a mente, ideia do corpo, pode perceber as coisas que o corpo padece ou, mais

genericamente, as disposições do corpo, ações ou paixões.

De volta ao escólio, e por partes. Espinosa trata do tema dos afetos. E

o faz analisando como a mente manifesta, por assim dizer, o que ocorre no corpo de

cada homem. Há transição (transitio) da mente - e do corpo - de uma perfeição maior

a uma menor. Há um limite máximo e um limite mínimo88 nesta transição para que o

88

Para a questão do limite máximo e mínimo de potência do modo finito humano para se manter como tal, sigo a interpretação de Deleuze, bem como a de Macherey. Para a interpretação de Deleuze, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 186. Afirma Deleuze, ao tratar dos conceitos de potência e de modo finito: "Com efeito, quando Espinosa afirma, na Ética, que o modo composto tem um grande número de partes [...], quer dizer uma quantidade que ultrapassa todo número. A essência de um tal modo é ela mesma um grau de potência; [...]. É o modo existente que tem uma infinidade de partes (um grande número); é sua essência ou grau de potência que forma sempre um limite (um máximo e um mínimo); é o conjunto dos modos existentes, não somente simultâneos mas sucessivos, que constitui o infinito ainda maior, ele mesmo divisível em infinitos mais ou menos grandes." p. 186 - tradução minha. Afirma, ainda, na p. 202: "Essas

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corpo, como essência em ato, não perca sua ratio, sua proporção de movimento e

repouso. Ou seja, para que não se desintegre em outra coisa que não seja aquela coisa

singular como conjunto de causas que vão num sentido de manutenção daquela

específica disposição como conjunto, isto é, como coisa singular humana. Nesse

intervalo entre um mínimo e um máximo está a transição de um mais a um menos.

Mais alegria até um máximo, e menos alegria até um mínimo. A diminuição da

perfeição do corpo, a diminuição de sua potência, é a experiência da tristeza, que se

apresenta na mente como ideia do afeto tristeza.

Uma sutileza espinosana neste escólio, que muita vez passa

despercebida pelos intérpretes, é a seguinte: Espinosa escreve acerca de uma

diferença, quando se refere ao corpo e à mente, entre excitação e contentamento e

entre dor e melancolia. A dor é uma tristeza de uma parte do corpo

predominantemente. Se tenho a mão ferida por uma faca, sinto dor. Isso é uma

tristeza da parte do corpo mais que do todo do corpo. Ou, por outra, uma parte do

corpo a experimenta mais que as demais partes. A melancolia é uma tristeza do todo

da coisa singular. Espinosa escreve: "[...] quando todas as suas partes [do corpo] são

igualmente afetadas." (E III P 11 Esc p. 179). A excitação, pela mesma lógica dos afetos,

é uma alegria que se concentra na parte afetada. Por exemplo, quando se experimenta

uma boa comida ou uma boa bebida, isto é, aquela que causa uma excitação maior no

órgão do corpo que aprecia a comida do que nas demais partes da coisa singular

humana (E III P 11 Esc p. 179). Boa comida, isto é, a que aumenta a alegria. Não há,

com efeito, uma boa comida como algo exterior ao desejo. Se o alimento aumenta o

mudanças, mínimas ou bruscas, na relação que caracteriza um corpo, nós as constatamos também no seu poder de ser afetado, como se poder e relação jogassem dentro de uma margem, num limite no qual eles se formam e se deformam." (p. 202 - tradução minha). A ideia que colho de Deleuze é a de que o modo finito é um grau de potência que, se ultrapassa certa ratio, muda de forma, vem a ser outra coisa singular. Para ficar numa forma que caracteriza o modo finito - este homem -, deve ficar entre um grau mínimo e um grau máximo de potência. Se perde toda a potência, entra em outra relação - com o veneno, por exemplo -, deixa de ter potência para continuar sendo aquela coisa singular - este Paulo. Sigo também, para este conceito - grau máximo e grau mínimo de potência, um manter-se entre dois polos -, a seguinte interpretação de Macherey em: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 128. Afirma o comentador: "Ao caracterizar as formas elementares da afetividade, Spinoza estabelece que, no desenrolar da vida afetiva, por mais diversas e complexas que sejam tais manifestações afetivas, tudo é, em última instância, questão de desejo. Tendo como pano de fundo o conatus - a potência do desejo tem uma variação de grau que fica entre dois polos, um mínimo e um máximo -, os movimentos que conduzem a potência do desejo em direção a um ou outro polo são acompanhados mentalmente de prazer ou de dor." (tradução minha. Grifos meus - p. 128).

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desejo, se ele aumenta a alegria, ele é bom, pois não é porque ele é bom que há

aumento da alegria, ou transição do desejo a um aumento de sua potência. É porque

há aumento do desejo que o alimento pode ser considerado, para aquele ser singular

humano, bom. Sobre esta tese, escreve Espinosa, ao tratar do desejo:

Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa. (E, III, P11 Esc p. 177).

O desejo é o critério do útil, do bom, pois é porque desejamos uma

coisa que ela pode ser considerada boa. Assim, a experiência afetiva pode se dar mais

em uma parte que em outras do corpo - dor e excitação -, e no corpo como um todo -

contentamento e melancolia. O que existe, então, é uma experiência corporal de

aumento ou diminuição de potência, a qual é experienciada simultaneamente pela

mente como aumento ou diminuição de perfeição.

E afirma Espinosa, ao final do escólio: "Quanto ao desejo, expliquei-o

no esc. da prop. 9. Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De

fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros." (E III P

11 Esc p. 177-179).

Espinosa finaliza o escólio afirmando que os três afetos primários,

dos quais todos os demais decorrem, são o desejo, a alegria e a tristeza. Por que

primários [primarium]? Penso que no sentido ontológico de primus, o que vem antes

como fonte de todos os demais, ou melhor, todos os demais são manifestações desta

transição de um polo ao outro, da alegria à tristeza e vice-versa. Este ponto ficará mais

claro quando outros afetos forem analisados ainda neste capítulo, desenhando o

quadro da complexa vida cotidiana dos homens, fundamento das análises acerca da

política, na hipótese que orienta a presente tese.

O desejo ou apetite fora definido por Espinosa como sendo a própria

essência do homem (E III P 9 Esc p. 177), essência esta que é a realização mesma do

homem enquanto conatus, ou seja, esforço de perseverar no ser. Agora há elementos,

após a análise da Proposição 11 e de seu escólio, para dizer que na verdade a alegria e

a tristeza também são manifestações da essência do homem como variações da

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essência mesma, isto é, do desejo-apetite. De fato, o homem é conatus, como todas as

demais coisas singulares. Espinosa não entra em detalhes quanto às demais coisas

singulares após a transição entre o mini-tratado do conatus e a Proposição 9, na qual

aparece o homem. Mas isto é compreensível, visto que Espinosa escreve uma Ética,

não um tratado de ontologia, ainda que o tema da ontologia seja o sustentáculo

primeiro da Ética. E não é casual que a parte I da Ética seja dedicada à fundação

ontológica do campo da ação. Sendo conatus, o homem é esforço para perseverar em

seu ser. Mais precisamente: cada homem, como modificação dos atributos

pensamento e extensão, é esforço em ato para manter sua relação de movimento e

repouso, isto é, a ratio que o constitui. Como cada homem é simultaneamente

intensidade de um corpo e de uma mente, ele é desejo-apetite. Quando o desejo varia

de um grau X de potência a um grau X + 1, o que variou foi o próprio desejo. A mente e

o corpo, simultaneamente, aumentaram seu grau de perfeição. Este afeto que a mente

experimenta como aumento de seu poder - como ideia do corpo - é o que Espinosa

chama de alegria. Sua diminuição ou transição de X para X-1 acarreta o que Espinosa

chama de afeto de tristeza.

A alegria e a tristeza são, pois, o aumento ou a diminuição da

potência do conatus de cada homem como coisa singular. E o conatus de cada homem

se manifesta como apetite ou como desejo, conceito que, ao que indica o texto, ou é

próprio apenas dos humanos ou, o que é mais provável, é próprio dos humanos e de

outros seres singulares, ainda que Espinosa não tome como tema central esses

últimos89. Talvez, como afirmado acima, por se tratar de uma ética, não de um tratado

do comportamento em geral dos seres singulares humanos e não humanos. Em suma,

transição de um limite mínimo a um limite máximo, e vice-versa, de perfeição - ou de

realidade, intensidade, potência -, é o conceito-chave para o tema 'desejo, alegria,

tristeza' em Espinosa.

89

Espinosa fala em afetos dos animais em E III P 57 Esc (p. 233); em E IV P 37 (p. 309) afirma que eles sentem [sentire].

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d.4 Derivações do desejo: uma nota sobre a presença do ausente e

os conceitos de amor e ódio

A Proposição 12 da parte III da Ética analisa o esforço da mente, por

ser conatus, em imaginar (imaginari) as coisas que aumentam ou estimulam a potência

de agir do corpo (E III P 12 p. 179). Espinosa funda esta Proposição em duas outras da

parte II, a saber, a Proposição 7 (E II P 7 p. 87) e a Proposição 17 (E II P 17 p.107).

Naquela, Espinosa propôs que a ordem e a conexão das coisas é a mesma ordem e

conexão das ideias. Nesta, propôs uma teoria da memória, que será fundamental para

entender como opera, por meio da imaginação, a presença-do-ausente. Presença-do-

ausente ou, por outras palavras, a presença de uma ideia na mente como imagem de

algo presente, passado ou futuro, a qual será uma ideia da coisa externa como causa

eficiente cujo efeito é aumentar ou diminuir a potência do corpo - e

consequentemente da mente. Esta tese terá relevância para se compreender como

funciona na duração a complexa manifestação das derivações dos afetos originários -

entre eles, o amor e o ódio, que Espinosa conceituará de forma diversa da tradição90.

Exemplo de conceito da tradição, contra o qual Espinosa escreve, é o

que Descartes analisa em As paixões da alma91. Descartes afirma que "O amor é uma

emoção da alma, causada pelo movimento dos espíritos, que a incitam a se juntar

voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes". O ódio, por sua vez, é

conceituado como "[...] uma emoção causada pelos espíritos que incitam a alma a

querer estar separada dos objetos que se lhe apresentam como nocivos." (DESCARTES.

As Paixões da Alma. Art. 70. p. 174). O amor, para Descartes, é uma emoção que incita

a alma a se juntar voluntariamente aos objetos que se apresentam a ela como

convenientes. O ódio é também uma emoção da alma, o qual a leva a um afastamento

das coisas que se apresentam como nocivas. Descartes usa o termo 'pelos espíritos'

para mostrar que amor e ódio, como paixões, envolvem o corpo, têm ressonância

90

Um exemplo de conceito da tradição, contra o qual Espinosa escreve, é o que Descartes dá em As paixões da alma, como analiso no parágrafo seguinte do texto da tese. Para o amor como busca da coisa bela, numa escalada até a Ideia de belo, ver a passagem em que Sócrates fala a partir do discurso de Diotima de Mantinéia, em O Banquete: PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1972, especialmente pp. 47-48 (210a até 212c). O exemplo platônico também está no rol da tradição da qual Espinosa se afasta no que se refere a este tema. 91

Ver: DESCARTES. Les passions de l'âme. Ed. Adam et Tannery. Paris: Vrin, 1909, vol. XI, p. 387. Cotejo com a versão de Os Pensadores, e cito a partir desta (DESCARTES. As paixões da alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pp.174-175).

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orgânica (DESCARTES. As Paixões da Alma. Art. 70. pp. 174-175). Espinosa dirá que esta

vontade de se unir à coisa amada, apresentada pela tradição (na qual se encontra

Descartes) como a definição mesma de amor, revela apenas uma de suas propriedades

(E III Def af 6 Explic p. 241), não sua essência - ou seja, sua definição pela causa

próxima.

Volto a Espinosa e analiso, brevemente, a teoria da memória

espinosana92, proposta em E II P 17, para depois conceituar o amor e o ódio como

manifestações da alegria e da tristeza.

O corolário de E II P 16 afirma que "[...] as ideia que temos dos corpos

exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos

exteriores [...]." (E II P 16 Cor p. 107). O estado do nosso corpo, isto é, sua dinâmica ou

sua potência é que são indicadas no momento em que nossa mente tem ideias dos

corpos exteriores. Cita Espinosa o Apêndice da Ética I para dizer que a questão do ato

de imaginar, pelos homens, foi lá tratada. De fato, Espinosa afirmara no Apêndice que

cada um "[...] toma as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas." (E I Ap p. 73).

E conclui que "[...] os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro

e que, mais do que as compreender, eles as imaginam." (E I Ap p. 73).

A imaginação é uma percepção que faz que o corpo seja afetado pela

coisa exterior e esta cause uma impressão na mente. Vejo o sol pequeno, isto é, trata-

se de uma imagem do sol na mente. A Proposição 17 dirá que a ideia desse corpo é

existente em ato, ou seja, tem a natureza de algo que está presente na mente. Isto

ocorre até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua este (E II P 17 pp. 107-

109). Na demonstração, Espinosa fala na presença do corpo exterior, como imagem,

na mente do homem. Mais precisamente, trata-se de uma ideia que põe a presença,

na mente, do corpo exterior, enquanto representação imaginativa. E afirma Espinosa

no Escólio, complementando esta tese, que

92

Sobre o tema da memória, ver: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 143-159, especialmente p. 145 e pp. 149-150. Sobre a questão do hábito, da memória e do reconhecimento como instrumentos imaginativos da perseverança do conatus, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, p. 15; pp.19-33; pp. 40-46.

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Vemos, assim, que pode ocorrer que, muitas vezes, consideramos como presentes coisas que não existem. [e, após dizer que acredita não ter se afastado muito da verdade, conclui] [...] pois todos os postulados que adotei não contêm praticamente nada que não seja estabelecido pela experiência, da qual não nos é lícito duvidar, após termos demonstrado que o corpo humano existe tal como o sentimos. (E II P 17 Esc p. 109).

Espinosa usa a expressão "tal como o sentimos": com tal expressão o

autor remete então ao corolário imediatamente posterior à Proposição 13 da Parte II,

no qual afirmara, como visto acima (item d.1), que o corpo humano existe tal como o

sentimos. Recapitulando este excerto: "Segue-se disso que o homem consiste de uma

mente e de um corpo, e que o corpo humano existe tal como o sentimos" (E II P 13 Cor

posterior à P 13 p. 97).

Continua o escólio no tema, e afirma que podem ocorrer, nesse

sentir do corpo, duas coisas. Ou a mente de um homem - este Pedro - sente seu

próprio corpo como ideia deste corpo, e eis a essência da mente do próprio Pedro

(como ideia do seu próprio corpo), ou a mente de outro homem tem a ideia de Pedro -

digamos, Paulo tem a ideia de Pedro. Este último estado indica mais o estado do corpo

de Paulo do que a natureza de Pedro, afirma Espinosa. Com efeito, trata-se de uma

imagem de Pedro na mente de Paulo. Enquanto continuar o estado do corpo de Paulo,

sua mente considerará Pedro como estando presente, mesmo Pedro não mais estando

presente (E II P 13 Esc p. 111). Chama então de imagens das coisas "[...] as afecções do

corpo humano, cujas ideias nos representam os corpos exteriores como estando

presentes [...]. E quando a mente considera os corpos dessa maneira, diremos que ela

os imagina." (E II P 17 Esc p. 111).

Essas são as linhas mestras da teoria da memória93 espinosana. De

fato, a presença-do-ausente, a presença na mente de Paulo da imagem de Pedro pode

ter o efeito de aumentar ou diminuir a potência de Paulo. E isso sem que

necessariamente Pedro esteja, ele mesmo, presente. Pois é a imagem de Pedro na 93

Laurent Bove afirma que a memória, nos indivíduos singulares, tem importante papel para a questão do desejo, isto é, do que aumenta sua potência. Com efeito, é ela que dirá ao ser singular humano o que foi causa de prazer - aumentou a potência - e o que não foi, de modo a poder evitar o que diminui a potência e perseguir o que a aumenta. Ver: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 34. Também, do mesmo autor: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 33-40.

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mente de Paulo, recuperada, por assim dizer, da duração, que interessa para esta

diminuição ou aumento de potência. É, para usar outra linguagem, talvez mais

didática, recuperar, pela memória, como imagem, algo do passado ou algo criado pela

mente no passado - ou do futuro. A mente é capaz de recuperar o passado no

presente - ou antecipar o futuro no presente - em forma de imagem do passado ou do

futuro, as quais se apresentam na mente em ato.

Assim é possível entender o que Espinosa conceitua por amor e por

ódio, afetos derivados dos afetos primários alegria e tristeza e, também, se se quiser,

variações, para mais ou para menos, até um limite máximo e mínimo, da potência do

desejo-apetite. Por outras palavras: variações da potência do homem.

De fato, no escólio da Proposição 13, Espinosa afirmará: "Pelo que foi

dito, compreendemos claramente o que é o amor e o que é o ódio." (E III P 13 Esc p.

181). O amor é definido como uma manifestação do afeto alegria tal qual Espinosa

concebe este afeto - como aumento de potência do corpo e da mente de um homem.

É uma alegria acompanhada (concomitante) da ideia de uma causa exterior. Esta causa

exterior é algo que, na mente de um homem, estará presente como imagem da coisa

exterior. Esta coisa exterior, representada na mente, será uma imagem. Tal imagem,

representação da causa exterior, gera aumento da potência (alegria) daquele que a

experiencia, que a possui na mente.

E o avesso acontece. Isto é, pode ocorrer de, em vez de alegria, a

imagem causar tristeza, diminuição da potência do corpo e da mente. Em tal caso,

tem-se o ódio. Espinosa dirá que o ódio "[...] nada mais é do que a tristeza [...]." (E III P

13 Esc p. 181). E complementa: o ódio é uma tristeza acompanhada (concomitante) da

ideia de uma causa exterior (E III P 13 Esc p. 181).

Vê-se, assim, que os afetos amor e ódio são, em primeiro lugar,

manifestações da alegria e da tristeza, respectivamente. Mas não apenas. São alegria e

tristeza acompanhadas da ideia de uma causa exterior. Tal causa exterior, enquanto

ideia, é uma imagem que gera, na mente de um dado homem, simultaneamente, um

aumento de sua potência ou uma diminuição de sua potência - aumento no caso do

amor, diminuição no caso do ódio.

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Espinosa retoma todos os afetos de que tratou no decorrer da parte

III, num rol apenas exemplificativo94, ao final, após o escólio da Proposição 59, a última

desta parte. Chama esta seção de 'Definições dos afetos' (E III Def af p. 237 e sgtes).

Nas definições, estabelece como conceito de amor, retomando o que dissera na

Proposição 13, "[...] uma alegria acompanhada [concomitante] da ideia de uma causa

exterior." (E III Def af 6 p. 241) e como conceito de ódio "[...] uma tristeza

acompanhada [concomitante] da ideia de uma causa exterior." (E III Def af 7 p. 243)95.

Na explicação da definição 6, que trata do amor, e que é indicada como sendo a

mesma para o afeto ódio, mostra em que medida e como se distancia da tradição

filosófica anterior e contemporânea a ele. Para a tradição, segundo Espinosa, o amor é

"[...] a vontade do amante de unir-se à coisa amada [...]." (E III Def af 6 explic p. 241).

Mas tal definição é insuficiente, de acordo com Espinosa, para definir o amor quanto à

sua essência, sendo capaz, apenas, de indicar uma de suas propriedades. E por

vontade, tema já trabalhado por Espinosa à revelia da tradição do livre-arbítrio,

entende o autor não uma deliberação, nem um consentimento, nem uma livre decisão

(ver E III Pref pp. 161-163 e E II P 48 p. 145). Vontade é definida por Espinosa como a

satisfação [acquiescentiam] "[...] que a presença da coisa amada produz no amante

[...]" (E III Def af 6 Explic p. 243), a qual aumenta a potência do amante, fortalece ou

intensifica a sua alegria. E, no caso do ódio, a lógica afetiva é a mesma, sendo definido

como a tristeza que é acompanhada da ideia da causa eficiente que se imagina que a

gerou.

Portanto, pode-se concluir, o conceito de afeto é diretamente ligado

- estruturalmente ligado - a uma variação da potência-desejo-apetite de cada homem.

E a recuperação de imagens pela mente, a colocação do ausente em forma de imagem

na mente, faz que este ausente seja, paradoxalmente, presença-em-ato-como-

94

Exemplificativo uma vez que o número de afetos supera os nomes que comumente são dados aos afetos. A variação dos afetos originários na vida afetiva dos homens é ilimitada, inumerável. Ver item (h) ainda neste capítulo. 95

Roberto Brandão apresenta uma tradução em que o conceiro de concomitância é mais evidente. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014, p. 64. Traduz da seguinte maneira: "O Amor (Amor) é a Alegria concomitante à ideia de uma causa externa".

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imagem. E esta imagem, como analisado, gera, necessariamente, uma variação, uma

transição (transitio) da potência de um homem96.

Como, pelo mini-tratado do conatus, viu-se que o desejo dos homens

é uma positividade, alimentada pela própria substância - é potência, em suma -, a

mente se esforçará por imaginar as coisas que aumentam a transitio para mais, não

para menos.

Esses raciocínios, se alinhavados, salientam os pontos que serão

tratados, posteriormente, neste trabalho. Primeiro, indicam a importância do afeto

alegria no sentido da satisfação do homem como potência. Segundo, apontam para a

proximidade entre os conceitos de desejo, alegria, tristeza, transitio, potência do

homem e homem como conatus. Igualmente, apontam para o conceito de direito

como potência, bem como para a importância dos afetos para a construção da cidade

como instituição a ser forjada com o objetivo de criar a predominância, no corpo

político, dos afetos de alegria em lugar daqueles de tristeza. Essas teses serão

desdobradas no capítulo 2, momento em que a política se mostrará conceito

fundamental para o exercício do desejo - e dos afetos alegres pelos homens na civitas.

Nesta ocasião, procurarei analisar, de maneira bastante breve, a razão pela qual

Espinosa concebe a democracia, no Tratado Teológico-político, como o mais natural

dos regimes políticos (TTP XVI p. 242 G III 195), bem como procurarei explicitar as

razões das disposições específicas a cada um dos regimes abordados no Tratado

político - tudo isso tendo como pano de fundo a teoria dos afetos espinosana, como

procurarei desenvolver com maior grau de detalhes no capítulo 2.

96

Ver, sobre este tema: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 132. Afirma o comentador: “A tese desenvolvida por Spinoza sobre este tema é radical: é a imaginação que, normalmente, preside à elaboração da relação com o objeto, tecendo, entre o sujeito desejante e afetado de alegria ou de tristeza e os objetos que levam a estes afetos [os objetos causam estes afetos], as ligações que são privadas de necessidade intrínseca, tanto do lado do sujeito do afeto quanto do lado do objeto.” [tradução minha]. Diz ainda: "É então sob o fundo de representações imaginárias que vão se constituir as duas novas figuras do afeto que aparecerão em seguida na composição da maior parte dos complexos afetivos ou formações secundárias da afetividade, composição à qual eles vão servir de modelo: o amor e o ódio, que são as formas características do desejo, da alegria e da tristeza enquanto associadas pelos mecanismos imaginativos ligados às representações das coisas exteriores." [tradução minha].

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(e) Medo e esperança, segurança e desespero

Os afetos medo, esperança, segurança e desespero são fundamentais

para a instituição e continuidade da civitas - ou seja, são constitutivos do conceito de

cidade tal qual Espinosa o concebe. Eis uma das hipóteses do presente trabalho. Este

tema será desdobrado no capítulo 2, quando tais afetos serão movimentados no

intuito de mostrar como Espinosa os utiliza para criar sua filosofia política sem traços

de utopia, assim como o faz para forjar uma ética que se distancia da sátira (TP I 1 p.5).

Ou, mais minuciosamente, a política terá por papel principal criar instituições que

constituam imaginários afetivos ligados antes à esperança e à segurança que ao medo

e ao desespero (TP V 6 p. 45). De que maneira o direito natural de cada homem está

ligado a tais conceitos também será tema a ser analisado no capítulo seguinte.

Passagens do Tratado político, nesta ocasião, serão movimentadas para mostrar a

importância de tais afetos na construção e continuidade da potência da cidade (de seu

direito civil como direito natural coletivo) e dos súditos-cidadãos (entendidos como

capazes de exercer, da melhor forma, seu direito natural individual).

Para este capítulo, no qual proponho, de um lado, a construção dos

conceitos e, de outro, sua operacionalidade na mente e no corpo de cada homem,

procurarei explicar - como no caso dos afetos anteriormente analisados -, apenas,

como se dá a lógica de tais afetos. Somente no capítulo 2 mostrarei como estes

conceitos desaguarão na política97.

***

Começo pelas definições presentes na parte intitulada 'Definições

dos afetos' (E III Def af p. 237 e sgtes). Nas definições 12 e 13, respectivamente,

esperança (spes) e medo (metus) são conceituados da maneira seguinte: "A esperança

[spes] é uma alegria instável [inconstans], surgida da ideia de uma coisa futura ou

97

Conferir, sobre a importância dos afetos para a política, um texto que contribuiu para salientar um enfoque mais afetivo da filosofia espinosana, o que não implica contradição nem com o modo geométrico da Ética, nem com o racionalismo espinosano: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998. A tese do livro de Kaminsky é a de que Espinosa é o filósofo do desejo e da paixão. Afirma: “As paixões são episódicas e precárias individuações de estados vividos, mas também argamassa do social, cristalizada sob a forma de instituições reais ou imaginárias.” p. 22 (tradução minha).

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passada, de cuja realização temos alguma dúvida." (E III Def af 12 p.243). "O medo

[metus] é uma tristeza instável [inconstans], surgida da ideia de uma coisa futura ou

passada, de cuja realização temos alguma dúvida." (E III Def af 12 p.243). Os mesmos

afetos foram definidos, antes, no Escólio 2 da Proposição 18 (E III P 18 Esc 2 p. 187). No

escólio 1 (E III P 18 Esc 1 p. 187) da mesma Proposição, fica claro que os conceitos de

passado e futuro, bem como o de memória - já visto -, foram movimentados por

Espinosa para chegar ao conceito de esperança e medo.

Espinosa, sobre os conceitos de passado e futuro, afirma: "Chamo

uma coisa de passada ou de futura à medida que, respectivamente, fomos ou seremos

afetados por ela" (E III P 18 Esc 1 p. 187). A Proposição 17 da parte II, já analisada

acima (item d.4), aponta para uma teoria da memória, a qual será fundamento para a

compreensão dos afetos esperança-medo.

Pela teoria espinosana da memória, a mente é capaz de imaginar o

que ocorreu ou ocorrerá como algo presente em ato na mente no momento em que

ela põe como presente este evento rememorado. Por outras palavras, Espinosa usa as

expressões "fomos" ou "seremos" para se referir ao passado e ao futuro. Somente pela

memória, isto é, pela capacidade da mente de colocar como presente algo que ocorreu

ou que (imagina) ocorrerá (passado ou futuro), é que este passado e este futuro

estarão presentes. E não estarão presentes como passado ou futuro, mas como

imagem desses momentos "trazidos" ao presente, em ato, pela potência da mente em

imaginar tais cenários. A Proposição 17 da parte II (E II P 17 p. 107) é citada por

Espinosa para mostrar onde se funda, em sua ontologia, tal capacidade da mente dos

homens. Não casualmente, portanto, a Proposição invocada é a que trata da teoria

espinosana da memória.

A memória tem o papel de fazer a "ponte" entre o passado, o futuro

e o momento presente na natura naturata. E Espinosa desenvolve a argumentação

afirmando que tais operações da mente fazem que haja dúvida quanto à realização do

que foi imaginado por ela. Afirma por conseguinte:

Como, entretanto, ocorre, geralmente, que aqueles que experimentam muitas coisas, ao considerarem uma coisa como futura ou como passada, ficam indecisos e têm, muitas vezes, dúvidas sobre sua realização [...], o resultado é que os afetos

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que provêm de imagens como essas não são tão estáveis, mas ficam, geralmente, perturbados pelas imagens de outras coisas, até que os homens se tornem mais seguros da realização da coisa em questão. (E III P 18 Esc 1 p. 187).

A coisa passada (ou futura) presente na mente em ato e a dúvida

sobre sua realização fazem que haja transição de potência do homem enquanto não

há certeza acerca da coisa imaginada, enquanto os homens não se tornam "[...] mais

seguros da realização da coisa em questão." (E III P 18 Esc 1 p. 187).

Antes de dar continuidade à argumentação, é importante lembrar

que tais experiências de dúvida somente são próprias aos modos finitos. Por quê? Por

serem os homens, como modos finitos, partes da rede causal da substância e,

portanto, não terem acesso cognitivo à totalidade de causas que geram a totalidade de

eventos no interior da substância. Esta é a experiência mental-imaginativa (ou, para

usar um termo contemporâneo, psíquica) da contingência, a qual todos os humanos,

enquanto partes da e na substância, vivenciam98.

Transição de potência: em havendo a dúvida quanto à realização da

coisa imaginada, a experiência do modo finito é ou a de aumento da alegria ou a de

aumento da tristeza. Se o que existe no modo é variação da alegria, em razão da

dúvida quanto ao desfecho da coisa imaginada, o que tal homem experiencia é a

esperança. Se o que existe é variação da tristeza, pela mesma lógica, mas no sentido

inverso, isto é, de baixa da potência, tal homem experiencia a tristeza.

A experiência mental da dúvida gerada pela ideia dessa coisa futura

ou passada, enquanto imagem na mente em ato, é a esperança ou o medo como

afetos de alegria [laetitia-spes] ou tristeza [tristitia-metus]. Se variação de potência

para mais, é esperança. Se para menos, é tristeza. A instabilidade da alegria é a

esperança, ao passo que a instabilidade da tristeza é o medo. E em ambas a dúvida

acerca do desfecho do que é imaginado é o cerne desses dois afetos, por assim dizer,

simbióticos.

98

Sobre estes temas, ver item c.1 (e notas de rodapé), em que são citados textos e autores que trataram do tema do possível e da contingência como experiência mental-imaginativa dos homens, mas não como realidade da substância, a qual opera por estrita necessidade causal.

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Afetos simbióticos. É preciso dizer o porquê. Na explicação da

Definição 13, que trata do medo, Espinosa afirma não haver medo sem esperança e

esperança sem medo (E III Def af 13 Explic p. 243). Em razão da experiência mental-

imaginativa (psíquica) da contingência, a flutuação do ânimo por causa de uma ideia

passada ou futura sobre a qual paira a incerteza leva este mesmo ânimo da alegria à

tristeza e vice-versa. Ou seja, o medo e a esperança são a transição de potência do

desejo que flutua entre o crer que a coisa boa se realizará - ou se realizou - e a crença

de que a coisa não se realizará - ou não se realizou.

O fim da incerteza é a chave para que tais afetos, cujo alimento

mesmo é a dúvida, se transmutem em outros dois afetos a eles ligados: segurança e

desespero.

Espinosa os conceitua nas definições 14 e 15 da Ética III: "A

segurança [securitas] é uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura ou passada,

da qual foi afastada toda causa de dúvida." Por sua vez, "O desespero [desperatio] é

uma tristeza surgida da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi afastada toda

causa de dúvida." (E III Def af 14 e 15 p. 245). Retira-se a dúvida da esperança e do

medo e se tem segurança e desespero, respectivamente99.

Pela estrutura do more geometrico Espinosa costura uma trama que

é de fato muito prática, como afirmou Deleuze100. Um exemplo banal, vivenciado no

cotidiano, pode aclarar este ponto. Alguém fica sabendo que um irmão foi vítima de

tentativa de homicídio. O evento é passado. Mas não se sabe se o irmão morreu ou se

sobreviveu, pois paira a dúvida. O ânimo flutua entre a esperança de que tenha

sobrevivido e o medo de que tenha morrido. Cessada a dúvida, no caso de que tenha

sobrevivido, a esperança, alegria instável, se transforma em segurança, alegria estável.

99

Macherey nota, a meu ver com acerto, que o fim da dúvida nos casos da securitas e da desperatio não implica total estabilidade, numa espécie de cristalização afetiva absoluta, pois as coisas que vêm à mente do homem ficam apenas menos contingentes, uma vez finda a dúvida. Diz sobre tais sentimentos: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 174: "[...] sentimentos que restituem uma relativa constância à alegria e à tristeza que nos ligam à representação das coisas passadas ou futuras, na medida em que estas parecem menos contingentes." [tradução minha]. Ou seja, no mundo dos homens, a contingência é uma experiência psíquica (para usar um termo anacrônico) constitutiva do existir. 100

DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.

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Ao invés, cessada a dúvida, no caso de falecimento, o medo de que morresse,

confirmado pela certeza da morte, faz que o medo se transforme em desespero. A

flutuação do desejo - o homem determinado pelos afetos - acompanha o aumento ou

a diminuição da potência do ânimo. Ou há a alegria da securitas ou a tristeza da

desperatio - ambos, já, afetos sem a dúvida que outrora os alimentava e os

caracterizava como esperança e medo.

A explicação da definição dos afetos 15 apara as arestas do tema. São

movimentados o corolário da proposição 31 da parte II, bem como escólio da

Proposição 49 da parte II. Neste, Espinosa demonstrou que o conceito de não duvidar

de uma coisa difere do conceito de ter certeza sobre a coisa. E o corolário da

proposição 31 da parte II é importante neste argumento na medida em que se debruça

sobre a questão da contingência.

No início deste capítulo (itens (c), c.1 e c.2), procurei analisar o

conceito espinosano de substância e um de seus mais importantes corolários, a saber,

a tese da necessidade absoluta do real em sua autoprodução. Espinosa usa o corolário

da proposição 31 da parte II, para o estudo da definição acima, objetivando

estabelecer que jamais podemos “[...] estar certos da realização das coisas singulares

[...].” (E III Def af 15 explic p. 245). O real, entretanto, não opera por estrita

necessidade? Por que não é possível o acesso total à cadeia causal? É possível - aliás, é

necessário - à substância ela mesma que isso ocorra. Isto é, do ponto de vista da

substância, há intelecção total da cadeia causal pelo atributo pensamento, pois a

substância tem intelecção, pelo atributo pensamento, de sua própria autoprodução,

de sua necessidade no gerar efeitos. Mas o homem, como modo (intensidade) parcial

da e na substância, na duração, não é ele mesmo substância. É, como já analisado nas

linhas acima, modificação, intensidade parcial, potência que é rodeada de outras

potências (E IV A p.269).

A questão ganha os seus corretos contornos pela Proposição 31 da

parte II, em seu corolário. Lá, Espinosa afirmara que “[...]todas as coisas particulares

são contingentes e corruptíveis. Com efeito, não podemos ter, de sua duração,

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nenhum conhecimento adequado [...], e é isso que devemos compreender por

contingência e corruptibilidade das coisas [...].”(E II P 31 cor p. 125).

Esta condição dos homens, seu desconhecimento da cadeia causal do

real, não implica que a substância não haja por absoluta necessidade. O fato de os

homens não conhecerem a cadeia causal do real é que faz da contingência, como já

visto (item c.2), uma experiência mental-imaginativa dos homens como modos finitos.

Apenas em razão desta condição dos homens como tomando parte

da natureza naturada é que se pode falar em dúvida e em contingência. Portanto, é

esta condição ontológica que faz que os afetos esperança, medo, segurança e

desespero sejam compreensíveis no interior da substância como variações de potência

dos homens.

De fato, não haveria medo, esperança, segurança e desespero se não

houvesse, nos homens, a experiência mental-imaginativa da contingência, a memória,

a capacidade de imaginar cenários que se apresentam em ato na mente, bem como a

dúvida e seu cessar. Tais afetos não existiriam, igualmente, se não houvesse esse rol

de conceitos gerando variações do desejo para mais ou para menos, sem constância,

isto é, com variações abruptas (medo e esperança), ou com certa estabilidade

(segurança e desespero).

Em suma, a transitio da potência dos modos, no caso dos afetos ora

analisados, passa pela relação entre os conceitos de contingência como experiência

mental-imaginativa, memória e dúvida101. Todos terão importância na política, tema a

ser tratado posteriormente.

101

Ver sobre o tema: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Deleuze afirma sobre esta variação (escrevo com minhas palavras): suponhamos que encontro Pedro e Paulo. De um, gosto. Do outro tenho medo. O de que gosto gera, em mim, uma ideia que aumenta minha potência. O contrário com o outro. Há, segundo o autor, neste caso, variação da “força de existir”; “vis existendi” ou potentia agendi. Deleuze diz que esta é uma variação contínua (p. 25). Cito: “Em outros termos, há uma variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumento-diminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem [...]” (p. 26); “[...] e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afeto (affectus), ao mesmo tempo, em sua correlação com as ideias e sua diferença de natureza com as ideias [...].” (p. 25-

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(f) Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política

Espinosa define o afeto indignação como "[...] o ódio por alguém que

fez mal a um outro." (E III Def af 20 p. 245). No rol das Proposições da mesma parte III,

sua definição é a de número 22, em seu escólio. Diz a Proposição 22 que "Se

imaginamos que alguém afeta de alegria a coisa que amamos, seremos afetados de

amor para com ele. Se, contrariamente, imaginamos que a afeta de tristeza, seremos,

contrariamente, afetados de ódio contra ele." (E III P 22 p. 189). Os conceitos

movimentados por Espinosa para o entendimento do afeto indignação são imaginação,

alegria, amor, tristeza, ódio, e a relação com o outro. A relação com o outro fica clara

quando Espinosa apresenta uma triangulação entre dois homens - no mínimo - e uma

coisa, que pode ser outro homem. Tal triangulação ocorre da seguinte maneira: um

homem - suponhamos A - afeta outro - suponhamos B - de alegria. Este outro é a coisa

que amamos - supondo que sejamos (C, C', etc.). Por conseguinte, diz Espinosa, todo C

será afetado de amor por aquele primeiro homem A. E vale o inverso no que se refere

ao afeto tristeza. Se imaginarmos que A afeta B de tristeza, sendo B a coisa que

amamos, nós - cada um de nós (C, C', etc.) - seremos afetados de ódio em face de A.

Esse é o mecanismo afetivo, a lógica dos afetos, para a triangulação entre três homens

- ou mais, numa complexificação da relação - e os afetos alegria, tristeza, amor e ódio.

Assim, sinto amor por quem ama quem eu amo e ódio por quem

odeia quem eu amo. Se aquele que odeia quem eu amo faz um mal a este, por esta

lógica afetiva, será por mim odiado. Este afeto é a indignação, e sua estrutura decorre

do mecanismo afetivo descrito na Proposição 22 da Ética III. Ocorre que esta relação

pode se complexificar. Basta colocar mais homens num dos polos, experienciando o

mesmo afeto.

Suponhamos que trinta homens amam A. Isto é, pela lógica afetiva

do amor, A provoca em cada um dos trinta homens uma ideia que faz que haja, em

cada um deles, aumento da alegria, pois o amor é uma alegria ou amento da potência

26). Sobre estes afetos em outro importante comentador: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 173-182.

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acompanhada da ideia de uma causa exterior (E, III, Def af 6 p. 241). Neste caso, a

causa exterior, em cada um dos trinta homens, é A ou uma ação feita por A. B faz a A

algo que para este é um mal. Por conseguinte, os trinta homens odiarão B, isto é,

sentirão o afeto indignação em face de B.

B pode ser um conjunto de homens. Neste caso, todos estes homens

serão objeto e motivo do ódio de outros, os quais sentirão indignação por aqueles.

O mimetismo afetivo terá papel importante na disseminação desse

afeto, por sentirmos pelo outro um afeto em razão da mera semelhança desse outro

em relação a nós. Aprofundarei este ponto no item a seguir (item (g)).

Não é difícil compreender a razão da importância do afeto indignação

para a política. Ou, mais precisamente, ele interessa na medida em que pode apontar

para a morte da cidade. O tema da política, como já afirmado, será aprofundado

apenas no capítulo seguinte. No entanto, neste momento do texto, para mostrar mais

claramente o conceito de indignação, farei uma incursão pela política para explicitar

uma duplicidade deste afeto em relação ao corpo político. Duplicidade, isto é, seu

papel pode ser entendido como uma espécie de critério da qualidade da cidade em

face dos seus cidadãos-súditos e, simultaneamente, como sendo o da causa da morte

da cidade como corpo político. Analiso em pormenor este ponto a seguir.

No Tratado político, Espinosa abre o parágrafo102 4 do capítulo IV

perguntando se o poder soberano está adstrito às leis e, consequentemente, se pode

pecar. A questão do pecado do poder soberano em Espinosa deve ser entendido à luz

do escólio 2 da Proposição 37 da Ética IV (E IV P 37 Esc 2 pp.309-311). Lá, como

mostrarei em pormenor na ocasião propícia, Espinosa laiciza totalmente este conceito,

ao dizer que pecado e injustiça podem ser considerados sinônimos. E ambos devem

ser entendidos como uma violação, pelo súdito, de uma lei da cidade. A questão que

abre esta passagem do Tratado político, portanto, é relevante na medida em que

mostra que a cidade que não se submete às leis da natureza poderia ser considerada

não uma cidade, mas uma quimera (chimaera G III 293). Por consequência, a cidade

102

Usei e usarei, por hábito, parágrafo em vez de artigo, ainda que Espinosa se refira aos parágrafos, no texto do TP, como sendo artigos.

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está, escreve Espinosa, submetida às leis, e não pode pecar. Há um elemento

ontológico, de potência, na lei da cidade, e esta natureza ontológica da lei não pode

ser desconsiderada.

As leis às quais a cidade está submetida têm relação com as leis da

natureza como um todo, portanto. Fazer o que quiser com a mesa, ter direito sobre

ela, não é o mesmo que poder fazer que ela "coma erva" (TP IV 4 p. 39), afirma

Espinosa. Nesse sentido, entre outros, como mostrarei, o direito da cidade tem sua

feição ontológica e sua submissão às leis da substância.

Ora, os homens, como parte da natureza, também não podem ser

objeto da violência da cidade. Isto é, o poder soberano não pode desconsiderar a

natureza, e não pode desconsiderar a natureza humana, escreve Espinosa. Nesse

sentido, afirma:

[...] embora digamos que os homens estão sob jurisdição não de si mas da cidade [homines non sui sed civitatis juris esse G III p. 293], não entendemos que os homens percam a natureza humana e adquiram uma outra, nem que a cidade tenha o direito de fazer com que os homens voem ou, o que é igualmente impossível, que os homens olhem como honroso o que provoca riso ou náusea; [...]. (TP IV 4 p. 39).

A seguir Espinosa diz que a cidade, para estar sui juris (sob jurisdição

de si própria), tem de preservar as causas do medo e da reverência, pois de outro

modo deixa de ser cidade (TP IV 4 p. 39). O medo não poderá ser disseminado no

corpo político de modo que anule as potências dos súditos. Ainda aprofundarei a

questão da relação entre potência da cidade e potência de cada cidadão-súdito. Por

ora interessa mostrar como o afeto indignação se insere na discussão propriamente

política.

No parágrafo 6, Espinosa afirma - uma vez estabelecidas as balizas da

questão de o poder soberano da cidade, por ser coisa natural, não poder

desconsiderar a própria natureza - que as leis pelas quais a multidão (multitudo G III

294) "[...] transfere seu direito para um só conselho ou para um só homem [...]" (TP IV

6 p. 40) devem ser violadas quando à salvação comum interessa violá-las. Mas

Espinosa acrescenta uma passagem a este raciocínio que deve ser analisada:

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Se, contudo, elas [as leis da cidade, o direito civil] são de natureza tal que não podem ser violadas sem que ao mesmo tempo se debilite a robustez da cidade, isto é, sem que ao mesmo tempo o medo comum da maioria dos cidadãos se converta em indignação [Quod si tamen ejus naturae sint, ut violari nequeant, nisi simul civitatis robur debilitetur, hoc est, nisi simul plerorumque civium communis metus in indignationem vertatur G III p. 294], a cidade, por isso mesmo, dissolve-se e cessa o contrato, o qual, por conseguinte, não é defendido pelo direito civil [jure civili] mas pelo direito de guerra [jure belli] (TP IV 6 p. 41).

O que significa esta rica passagem? Primeiro, Espinosa afirma que as

leis da cidade devem ser violadas no caso em que a salvação comum está em jogo. Isto

é, quando a cidade não é para cada um dos súditos-cidadãos, não existe para

possibilitar o exercício da potência de cada um, mas para levar o conatus de cada um

ao entorno de um grau zero103, é o caso de violá-las. Mas isso não implica que cada

privado possa fazer o que quiser, exercer seu poder como lhe aprouver. Somente

quem detém o imperium pode violar as leis (TP IV 6 pp.40-41). Logo depois desse

raciocínio segundo o qual quem viola a lei é o soberano vem a passagem acima citada,

como contraponto. Não casualmente, a passagem se inicia com "Se, contudo, [...]." (TP

IV 6 p. 41). Ou seja, há uma exceção à regra do imperium como intérprete único da

situação da violação do que é comum.

Este é o caso, de acordo com o texto citado, em que as leis (ou seja, o

direito civil da cidade) são de tal natureza que sua violação gera, ao mesmo tempo, a

debilidade da robustez da cidade (civitas robur G III p. 294). Mas como isto ocorre?

Ora, Espinosa utiliza a lógica dos afetos para explicar esta situação. De fato, a robustez

da cidade abalada é sinônimo, indica o texto pela expressão isto é (hoc est), da

situação em que o medo comum da maioria se converte em indignação.

De fato, o que mantém a cidade 'como que sob uma só mente' é um

imaginário de medo civil à punição das leis. Medo civil, e não medo paralisador da

potência. A questão é mais complexa que esta afirmação, mas desdobrarei o ponto no

capítulo seguinte. O que interessa para este momento é a tese espinosana de que um

regime afetivo de, digamos, medo civil, medo da lei104, possa se transformar em

regime afetivo da indignação.

103

O termo 'em torno de um grau zero' se inspira no artigo seguinte: LIRA, José Tavares Correia de. Suicídio e preservação de si: em torno de um grau zero de conatus. In: Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1996, pp. 113-134.

104 Ver sobre este tema: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética

de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 184.

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A indignação, define a Ética III, ponto já analisado acima, é um afeto

que pode ser entendido como "[...] o ódio por alguém que fez mal a um outro." (E III

Def af 20 p. 245). O medo, como afeto triste, é, paradoxalmente, apropriado pelas

instituições da cidade para gerar a segurança como afeto derivado da esperança cuja

dúvida cessou. Isto é, a cidade é capaz de fazer da esperança uma segurança por meio

de leis que são respeitadas. Cria-se um imaginário comum de futuro seguro, em que

leis, que por hábito são cumpridas, continuarão a ser cumpridas. Mas há um custo. O

súdito-cidadão tem que temer a punição, sob pena de que a luta entre potências

individuais anule as potências individuais elas mesmas e transforme o estado civil em

lugar do direito natural como abstração, como opinião (TP II 15 p. 19). É necessário

certo grau difuso de medo da lei, ou da punição em caso de violação da lei, uma

espécie de medo cívico, para que o súdito-cidadão possa ter o exercício de sua

potência individual em um ambiente de relativa segurança, de equilíbrio do futuro-

imaginado-como-presente garantido por instituições.

Mas por que o medo comum pode vir a ser indignação comum, afeto

que rompe a lógica da comunidade ao mesmo tempo em que aponta para o fato de

que havia apenas falsa comunidade?

Ora, a chave para se entender este tema espinosano está na

passagem citada acima. De fato, o medo comum como medo civil da punição em caso

de violação da lei propicia robustez afetiva à cidade. E a cidade detém o imperium,

aliás, é o corpo inteiro do imperium (TP III 1 p. 25). E tem a incumbência da república

quem, por consenso comum, detém absolutamente o imperium (TP II 17 p. 20). Uma

das incumbências de quem detém o poder soberano - incumbência da república - é

decretar o conjunto de leis da cidade, interpretar tais leis e aplicá-las. O poder

soberano, pois, faz as leis e as aplica. Mas como as leis fundam sua ontologia na

potência da multitudo, tema que desenvolverei no capítulo seguinte, o conjunto de

súditos-cidadãos deve temer as leis civis desde que estas não se apresentem contrárias

à natureza humana e à natureza da cidade.

Quando o soberano contraria a natureza (humana ou da cidade), o

direito comum que o sustenta por meio do medo às suas decisões se transforma em

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ódio a alguém que fez mal a outro, ou seja, indignação comum ou indignação da

maioria em face do poder soberano.

O poder soberano que edita leis que procuram controlar o que se

pensa e o que se diz, cujos membros correm ébrios ou nus com rameiras pelas praças

(TP IV 4 p. 39), desrespeitam as leis que eles mesmos ditaram (TP IV 4 p. 39),

assassinam súditos, os espoliam, entre outras atitudes que contrariam o motivo pelo

qual o poder soberano foi criado, gera nos súditos um afeto que corrompe a cidade: a

indignação.

A lógica da indignação está em se odiar quem fez um mal a alguém

que se ama. No caso da cidade, o medo das leis por ela editadas é que a sustenta do

ponto de vista ontológico. O medo civil, isto é, o medo da punição da lei em caso de

violação105, é um dos afetos-base da sustentação da cidade como equilíbrio ontológico

de forças entre o direito de cada súdito e o direito do soberano. Quando tal medo se

transmuta em ódio ao soberano que viola as próprias leis que editou, entre outras

ações que levam à desnaturação da cidade, o que ocorre é que a potência de quem dá

potência ao poder soberano se direciona no sentido de o dissolver. É isso o que

Espinosa chama, na passagem citada, de defesa do contrato não pelo direito civil (jure

civili G III p. 294), mas pelo direito de guerra106 (jure belli G III p. 294). Ou seja, quando

o poder soberano gera um imaginário afetivo de medo transmutado em indignação, a

potência dos súditos não mais se canaliza para dar potência ao soberano e às suas leis,

mas para destruí-lo. De fato, neste caso, manter o "contrato" é o direito de guerra em

face do "contrato". E o termo contrato, em Espinosa, como procurarei desenvolver em

outra ocasião, tem sentido diverso de uma comunhão de vontades livres fundadoras

de um pacto comum. O sentido parece estar mais próximo de um equilíbrio de forças

que gera o poder soberano defensor do comum. Quando o soberano deixa de

105

Ver sobre o tema do medo da lei como diferente do medo bruto do estado de natureza: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 174 106

Sobre a prudência como a própria realidade do conatus, o qual pode, em defesa de sua liberdade, exercer um direito de guerra, ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09-101, especialmente p. 17. Para o tema da perspectiva da guerra e uma aproximação com Maquiavel, pp. 31-36. Sobre o tema da resistência, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 264-301.

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defender o comum, simultaneamente abre a possibilidade do surgimento do afeto

que, difuso, será a causa de sua dissolução. Com efeito, nesta ocasião, apenas o direito

de guerra, isto é, a luta contra o poder soberano opressor, restará como ponto de

defesa dos direitos naturais dos súditos-cidadãos.

A indignação é, portanto, o afeto que, se sentido pela maioria, põe

em xeque a potência do soberano e dissolve a cidade em nome dos direitos naturais

de cada súdito-cidadão. E sua face, por conseguinte, é dupla. De um lado, é o afeto

que a cidade deve temer (TP III 9 pp. 30-31), pois é o afeto do suicídio da cidade, de

sua dissolução. De outro, é sinal de que aquela configuração de poder já não mais

atende à razão pela qual foi criada. Daí que o direito civil passe a ser, neste caso, o

direito de guerra. Ou seja, o direito de defender o direito natural de cada um quando o

poder soberano da cidade já não o faz mais. Ou, por outra, o direito de guerra se

apresenta como o poder de retirar do soberano seu poder de dizer o que é a lei e de

fazer leis. Neste caso, o direito civil, por ter se desnaturado como tal, se apresenta

como direito de guerra. O ponto alto da argumentação espinosana está em que é um

afeto, sentido coletivamente e direcionado a quem faz o mal à cidade - o afeto

indignação -, o fundamento da dissolução da cidade. O conceito de direito espinosano,

como mostrarei em detalhe no capítulo seguinte, corre também no trilho dos afetos: é

potência.

(g) Mimetismo afetivo

Uma psicossociologia, segundo Macherey, seria o termo usado

contemporaneamente107 para o que Espinosa apresenta nas Proposições 21 a 34 da

parte III da Ética. Nelas, a relação dos homens entre si se apresenta em sua lógica

afetiva. E, mais largamente, escreve o autor, referindo-se à parte III da Ética como um

107

O termo psicossociologia, utilizado por Macherey, é, certamente, anacrônico, pois não se o encontra nos textos de Espinosa, ainda que os gregos o tenham cunhado. Mantenho, em alguns momentos do texto, por questões didáticas, seu uso, com esta ressalva. Importa lembrar que Macherey o utiliza fazendo também a ressalva ("[...] Spinoza se engaja numa empresa do que nós chamaríamos hoje de uma psicossociologia."- tradução minha, p. 188, nota 2). Ver: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 188, nota 2.

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todo - no mesmo sentido da hipótese desta tese -, a teoria dos afetos embasa a

socialidade e a política que daí decorre108.

Uma psicossociologia, diríamos hoje, sobre como Espinosa relaciona

mente-imaginação, lógica afetiva e construção de relações de vínculo social entre os

homens. O que significa este conceito? Significa que os homens como conatus ou, mais

especificamente, como seres desejantes, são abertos uns aos outros, assim como ao

mundo. São espécies de Janus que, em vez de bifrontes, têm múltiplas faces, com

janelas abertas para o mundo, aí inclusos os outros homens. Este regime de troca

afetiva entre homens, esta economia dos afetos109, quando se apresenta como

mimetismo afetivo110, é um dos fundamentos mais relevantes para a política. Analiso a

seguir os fundamentos da tese espinosana da mimese afetiva.

Seu aspecto central está na Proposição 27 e em seus

desdobramentos, isto é, demonstrações, corolários e escólios (E III P 27 pp. 195-197).

Estabelece a Proposição 27 que "Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e

que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão

dessa imaginação, afetados de um afeto semelhante." (E III P 27 p. 195). Espinosa usa a

expressão "Por imaginarmos". Ou seja, é a potência de imaginar da mente que traz um

efeito à mente daquele que imagina. E isto ocorre quando este homem imagina uma

coisa semelhante a si afetada de algum afeto. "Uma coisa semelhante a nós" (quod

rem nobis similem - E III P 27 p. 194; G III p. 160): este termo remete a uma capacidade

de ser movido pela imagem de algo semelhante a nós - imaginar um outro humano

afetado de algum afeto. Remete, pois, ao conceito que será trabalhado no escólio da

Proposição 50 da Ética IV, a saber, o de desumanização. Neste escólio Espinosa afirma

108

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 188. Afirma o autor: “Esta temática propriamente política será explicitada na parte seguinte da Ética, e ela será explorada sistematicamente na última obra de Espinosa, o Tratado político: mas seus conceitos de base e suas grandes orientações se encontram já formulados no contexto da teoria dos afetos que constituem a terceira parte da Ética, onde são lançados os fundamentos de uma análise das formas humanas da socialidade”. (p. 188 - Tradução minha). 109

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 189, p. 215. Ver também: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 244. 110

O termo é usado como parte do título do capítulo 3 do livro de Macherey (MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 183-262, especialmente pp. 214-226).

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que aquele que "[...] não é levado nem pela razão, nem pela compaixão

[commiseratione], a ajudar os outros, é, apropriadamente, chamado de inumano, pois

(pela prop. 27 da P. 3) parece não ter semelhança com o homem." (E IV P 50 Esc p.

323). Não desdobrarei o tema da desumanização a partir dos conceitos espinosanos, o

que poderia indicar, para análises sobre os tempos atuais a partir dos conceitos

espinosanos, penso, uma dissolução da política, um regime fascista, o qual pode

inclusive vir travestido do mais pleno estado de direito111. No momento, o objetivo é

explicar o mecanismo da imitação afetiva, fundado na Proposição 27 do de

Affectibus112.

O fundamento da Proposição 27, explicitado na Demonstração

seguinte à Proposição, está em teses já expostas por Espinosa nas Proposições 16 e 17,

escólio, da parte II da Ética (E II P 16 e P 17 Esc pp. 107-111). Nelas, Espinosa mostrou

que as imagens das coisas são afecções do corpo e que as ideias desses corpos

exteriores são presentes a cada um de nós. As ideias do corpo exterior envolvem a

natureza do corpo exterior e a natureza do nosso corpo, que foi afetado pelo corpo

exterior. Sendo a natureza do corpo exterior semelhante à do nosso corpo, "[...] se

imaginarmos que uma coisa semelhante a nós é afetada de algum afeto, seremos

afetados de um afeto semelhante ao seu." (E III P 27 dem p. 195). No escólio seguinte à

demonstração, Espinosa usa a expressão imitação dos afetos (affectuum imitatio). E

diz que tal imitação dos afetos, quando se refere à tristeza, chama-se compaixão113.

Quando tal imitação se refere ao desejo (cupiditatem), chama-se emulação

(aemulatio). E este afeto é definido como sendo o desejo de alguma coisa produzido

em nós por imaginarmos que os outros, semelhantes a nós, têm esse mesmo desejo.

111

Sobre o tema da desumanização, ver um belo ensaio de Laurent Bove, que traz um diagnóstico sobre o terror ordinário vivido pelas pessoas no mundo contemporâneo: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-multitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. Afirma o autor: “O terror não é apenas um simples sentimento de medo, e mesmo de pânico extremo, mas o poder mortal, silencioso e secreto que distancia o coração e o espírito da identificação espontânea à dor do semelhante.” (p. 118) (tradução minha). Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. 112

Quem usa o termo para se referir à parte III da Ética é P. Macherey. 113

Na tradução de Tomaz Tadeu, a expressão usada para o termo commiseratio é comiseração. Optei por usar compaixão, tradução pela qual opta Roberto Brandão. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014, p. 49.

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No escólio, por fim, Espinosa afirma que essa vontade (voluntas) ou esse apetite

(appetitus) - que para Espinosa, como visto, são sinônimos (E III P 9 esc p. 177) - de

fazer o bem que provém da compaixão em face da coisa em relação à qual se quer

fazer o bem chama-se benevolência (benevolentia), ou seja, um desejo surgido da

compaixão (E III P 27 Esc p. 197). Depois, trata do apreço (favorem)114 e da indignação,

remetendo ao escólio da Proposição 22 (E III P 22 esc p. 191).

Gostaria de indicar, a seguir, por que há nesta Proposição e em seus

desdobramentos (demonstrações, corolários e escólio) tanto uma psicossociologia -

para usar um termo anacrônico, porém didático - quanto um apontar para a

socialidade e para a política.

Uma psicossociologia pode ser entendida como um jogo de cada

psique, de cada mente de cada homem, com a do outro, numa economia de psiques.

Isso de tal maneira que se chega a um todo ou alguns todos, os quais se apresentam

não mais como individuais no sentido de um homem separado do outro, mas como co-

individuais ou sociais. Uso o termo co-individual para mostrar que, na imitação dos

afetos, o indivíduo continua indivíduo, com sua ratio de movimento e repouso e com

suas ideias se encadeando e, simultaneamente, partilhando do outro enquanto ideia-

imagem presente em sua mente. Ou seja, cada homem como desejo experimenta o

outro no seu corpo como afeto, mas não um afeto qualquer, mas uma imitatio, um

caminhar no mesmo sentido do outro.

Como os afetos primários são a alegria e a tristeza enquanto

transição [transitio] do desejo de cada homem, quando um homem tem sua potência

diminuída porque viu o infortúnio alheio (compaixão), pela lógica dos afetos, o que

ocorre é o que segue: este homem é levado com o pathos do outro, ou melhor, é

levado pelo pathos que o outro sente. Sentir-com o outro é ter uma presença do outro

em si mesmo, como imagem, simultaneamente a um afeto de tristeza, portanto de

diminuição da potência do desejo. Mas o que importa para a lógica da imitação é um

afeto cuja mecânica é a mesma do afeto do outro, tudo isso produzido pela imagem do

outro em mim e que me move no mesmo sentido do outro, provocando em mim, tal

114

Apreço é o termo que Roberto Brandão usa em sua tradução para o termo favorem. Tomaz Tadeu usa reconhecimento. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014.

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qual no outro, um mesmo sentimento de tristeza. Ambos os modos finitos, por

imitação, vão num mesmo sentido afetivo. São, afetivamente, como um.

A mesma lógica vale para a emulação, que nada mais é, escreve

Espinosa, do que seguir o desejo do outro, isto é, o que ocorre quando o meu desejo

segue o que o desejo do outro deseja. Como o desejo do outro é o desejo de alguma

coisa, quando o meu desejo deseja o mesmo que o do outro, o afeto que sinto é a

emulação (E III P 27 esc p. 195).

Portanto, seja na diminuição da potência, seja em seu aumento,

tanto as coisas do mundo podem estar presentes em meu corpo e mente, como outros

homens podem também estar presentes - como imagens, como afetos.

Na compaixão, o movimento do afeto em mim e nos outros é no

sentido da tristeza. Na emulação, imito o desejo do outro e o impulso do corpo e da

mente se dão no mesmo sentido do impulso do outro.

Nesse momento, o outro e eu não mais somos apenas mentes

isoladas, mas algo de comum nos une num sentido. Neste momento o laço social está

formado. Por isso se trata, como bem definiu Macherey115, de uma psicossociologia

fundada na imitação dos afetos. Os laços sociais, os quais fundarão a política, são

eminentemente afetivos e, portanto, portadores de potências, de direitos116.

115

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 183-262. Como afirmado em nota anterior, Macherey afirma que Espinosa faz o que hoje se chamaria de uma psicossociologia. Mantenho o termo, em alguns momentos do texto, por uma questão didática, como afirmado em nota anterior. 116

Para Espinosa, potentia sive jus (potência equivale a direito), como ficará claro no capítulo 2. No mesmo sentido, ver: BOVE, L, MOREAU, P-F., RAMOND, C., JAQUET, C. Le Traité politique: une radicalisation conceptuelle? In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 27-44, especialmente p. 38. Também, com a mesma tese: CHAUI, Marilena. Direito é potência: Experiência e geometria no Tratado político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 197-264. Para uma aproximação entre os conceitos de conatus, desejo, direito como potência e afetos, ver: NEGRI, Antônio. Spinoza, Baruch, 1632-1677. In: CHÂTELET, F., DUHAMEL, O. PISIER-KOUCHNER, E. (ORG). Dictionnaire des oeuvres politiques. Paris: PUF, 1989, pp. 765-777. Consultada tradução do verbete de http://www.spinoza_leitores.blogger.com.br/index.html. Acesso 14 FEV 2014. Afirma o autor: “A liberdade do indivíduo começa a ser definida como potência constitutiva. A potentia, figura geral do Ser, sustentando a concepção do conatus como impulso de todo ser para a produção de si mesmo e do mundo, exprime-se então como cupiditas e investe de maneia constitutiva no mundo das paixões e das relações históricas” (p. 3). Também sobre o tema: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 150. Diz na p. 201: "A doutrina de Espinosa sobre o direito natural resulta da aplicação do princípio metafísico do conatus ao campo jurídico." (p. 201). L. Bove mostra o direito em Espinosa como passando do domínio moral e jurídico para o domínio da ontologia. Ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, p. 09-101, especialmente pp. 09-10.

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O escólio da Proposição ora analisada trata, em seu final, do amor e

do ódio em face daquele que "[...] fez o bem ou o mal à coisa que imaginamos ser

semelhante a nós [...]." (E III P 27 Esc p. 197). Remete, para isso, ao escólio da

proposição 22 da mesma parte.

Como analisado, no referido escólio da Proposição 22 Espinosa trata

do reconhecimento (favorem) (apreço na tradução de Roberto Brandão117) e da

indignação (indignationem). E complementa dizendo que é possível sentir compaixão,

apreço ou indignação por uma coisa pela qual não fomos tomados, anteriormente, de

qualquer afeto, desde que a julguemos semelhante (similem) a nós. É o caso que se

explica na Proposição 27, acima analisada.

Portanto, o afeto indignação, acima explicado, aponta para sua

natureza política na medida em que seu mecanismo pode se dar por imitação dos

afetos. Assim, quando grande quantidade de homens sente ódio daqueles que

compõem o poder soberano, a cidade deve temer sua dissolução. Pelo mesmo

mecanismo, mas numa lógica dada com outro afeto, a emulação fará que a robustez

da cidade, por um movimento de emulação de um desejo por muitos que desejam

aquilo, possa ser formada.

Se o desejo a ser emulado gera, pelo mecanismo afetivo da

emulação, aumento da potência de cada um que experiencia este afeto, a alegria

poderá ser experimentada na cidade. Procurarei mostrar, no capítulo 2, que a cidade é

uma construção afetiva mais complexa, a qual envolve uma ontologia afetiva em

exercício dos seus membros entre si e destes com o poder soberano. Em tal

complexidade no exercício afetivo se destacam os afetos medo-esperança, segurança,

ambição, entre outros, bem como o conceito de emulação. O direito, como transição

de potência, tanto do soberano como de cada súdito-cidadão, também estará

presente nessa construção da socialidade e da política.

117

Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014.

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(h) Não há tantos nomes: os vocábulos e os afetos

Ao se referir à definição de commiseratio (compaixão, comiseração)

no Escólio da Proposição 22 da Parte III, Espinosa a conceitua, tal qual o fizera na

Proposição 21, como "[...] a tristeza originada da desgraça alheia." (E III P 22 Esc p.

191). E logo acrescenta: "Não sei, por outro lado, como denominar a alegria originada

da felicidade alheia." (E III P 22 Esc p. 191). Como denominar: Espinosa aponta aqui

para a tese, que será recuperada em outras Proposições da mesma parte III, de que

não há nomes para todos os afetos existentes e experimentados pelos homens. Outra

tese está implícita nessa passagem: os nomes não dão à coisa uma natureza, bem

como a natureza das coisas independe dos nomes.

De fato, no que se refere aos afetos, a tese fundamental de Espinosa

já fora apresentada no Escólio da Proposição 11. Segundo esta tese, o desejo, a alegria

e a tristeza seriam os afetos primários (affectum primarium), e, tirante esses três,

escreve Espinosa, "[...] não reconheço nenhum outro afeto primário." (E III P 11 Esc p.

179). Mas a tese se desdobra no momento em que o autor afirma que "[...] desses três

provêm todos os outros." (E III P 11 Esc. p. 179).

Compreende-se facilmente esta tese espinosana caso se entenda o

homem como desejo-potência que transita (transitio) entre um máximo e um mínimo

de intensidade, ou seja, entre um máximo e um mínimo de potência. Sendo a transição

de um menos a um mais, tem-se a alegria, e sendo tal transição de um grau maior a

um menor, tem-se a tristeza - o tema da transição foi analisado no item d.3, acima.

Se há, pois, apenas desejo - de cada homem como coisa singular -

numa transição de um máximo a um mínimo e vice-versa, o número de nomes a serem

dados aos afetos deve ser indeterminado, tal qual o número de círculos existentes

entre dois círculos concêntricos de raios diversos.

E Espinosa explicita este raciocínio no Escólio da Proposição 52. Após

mostrar que o número de afetos derivados de alguns primários é grande - fala no

mesmo Escólio da admiração, do pavor (consternatio), da veneração, do horror

(derivado da ira e da inveja que se vê no outro), da adoração, do ódio, da esperança,

da segurança -, conclui que se poderia deduzir "[...] muito mais afetos do que os que

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são designados pelos vocábulos habitualmente aceitos." (E III P 52 ESc pp.223-225). E

arremata: "É, pois, evidente que os nomes dos afetos foram cunhados muito mais por

seu uso vulgar [vulgari usu] do que por seu conhecimento cuidadoso." (E III P 52 Esc p.

225).

Conhecimento cuidadoso é exatamente o que foi proposto na Ética, e

não casualmente ela foi elaborada more geometrico. Mas por que Espinosa insiste,

então, em uma nominação dos afetos? Ora, em primeiro lugar - eis uma hipótese -, o

que importa é mostrar que, pelo método geométrico, é possível definir, isto é,

conhecer pela causa, cada um dos afetos mais comuns, que mais se apresentam na

vida cotidiana dos homens. Afinal, se como dissera Espinosa no Prefácio ao De

Affectibus, o que importa é conhecer o "[...] modo de vida dos homens [...]" (E III Pref

p. 161) numa perspectiva diversa daquela que outros filósofos fizeram (E III Pref p.

161), importa, é evidente, mostrar, ou melhor, definir precisamente o que são (cada

um) os afetos, sobretudo os mais comuns. Mas eis uma empresa impossível se definir

fosse o mesmo que nominar. O projeto espinosano, entretanto, não pretende tornar

sinônimos o nominar e o definir, mas, pelo método do conhecer pela causa,

compreender o que são cada um dos afetos mais comuns, bem como compreender o

mecanismo de todos eles.

Assim, no projeto mais amplo de uma ética, que pretende

compreender o campo da ação dos homens, fica claro que importa definir os afetos

mais comuns no modo de vida dos homens. Porém, tal conhecer não é o conhecer do

vulgo, mas o conhecer da gênese dos afetos, dos primários e de todos que deles

derivam.

Portanto, não há contradição entre Espinosa, de um lado, nominar

um rol de afetos e buscar-lhes a gênese, isto é, defini-los, e afirmar, ao mesmo tempo,

como fez no Escólio da Proposição 52, que os nomes não dão conta do número

ilimitado de afetos existentes. Com efeito, a tese da transição do desejo permite a

compatibilidade entre estes dois pontos.

A tese fica clara no Escólio da Proposição 59. Nele, ao tratar dos

afetos oriundos dos ditames da razão - generosidade e firmeza de ânimo

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(generositatem e fortitudinem) -, e de vários afetos daí derivados, Espinosa afirma "[...]

ter explicado e mostrado, por suas causas primeiras, os principais afetos e as principais

flutuações de ânimo que derivam da composição dos três afetos primitivos." (E III P 59

Esc p. 237).

Por fim, conclui, no mesmo sentido do que fora explicitado nas

demais Proposições anteriormente analisadas, que "[...] os afetos podem compor-se

entre si de tantas maneiras (...) que se torna impossível determinar seu número." (E III

P 59 Esc p. 237). "[...] Mais curiosos que úteis." (E III P 59 p. 237). Com estes termos,

Espinosa justifica o fato de ter tratado apenas dos principais afetos, e não de muitos

mais.

Logo após lançar mão destas teses, Espinosa explicita uma posição

que, a meu ver, tem grande relação com a tese, hoje sustentada por vários

comentadores118, de que o campo da imaginação tem enorme relevância para a

política. Como mostrarei logo abaixo em tom inicial, e mais profundamente no capítulo

seguinte, as imagens, e portanto o corpo, terão enorme importância para a vida ética

e, sobretudo, para as construções políticas.

O amor, que fora definido como o aumento da alegria concomitante

à ideia de uma causa exterior (E III P 13 Esc p. 181), é recuperado neste Escólio para

distanciá-lo de qualquer concepção não mundana ou transcendente. De fato, o

exemplo do alimento que incita o desejo, "[...] algo que comumente nos agrada por

seu sabor [...]" (E III P 50 Esc p. 237), é movimentado para mostrar ao menos duas

importantes posições teóricas espinosanas. Em primeiro lugar, o exemplo para tratar

do amor não aponta para a Ideia de belo ou bom, como na tradição platônica se o

entende119. Trata-se, em vez disso, de algo do cotidiano dos homens, ou seja, o ato de

se alimentar. Mas, depois de "[...] o estômago tornar-se cheio [...]" e o corpo se tornar

"[...] diferentemente disposto [...]" (E III P 59 Esc p. 237), a indicação do desejo, em

razão desta nova disposição do corpo, será outra. Ou seja, o afeto como uma ideia do

corpo, tese que poderia parecer algo abstrata, é posta nesta passagem em toda a sua 118

Sobre o tema, ver o seguinte ensaio de Diogo Pires Aurélio: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000. 119

Ver: PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1972, especialmente pp. 47-48 (210a até 212c).

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caracterização, por assim dizer, mundana. Tal importância do corpo, ou do afeto como

algo corporal, cuja percepção pode se dar pela mente como ideia do corpo, se revela,

na sequência do Escólio e na mesma linha de argumentação do ilimitado número das

variações afetivas e dos tipos de afeto, algo ainda mais ousado. Com efeito, Espinosa

enumera, após o exemplo do amor à comida, um rol de afetos que se referem

predominantemente ao corpo. O tremor, a palidez, o soluço, o riso, escreve Espinosa,

"[...] se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente." (E III P

59 Esc p. 237). Este Escólio, somado a outras passagens do Tratado político (TP I 7 p.

10; TP II 5 p. 12; TP VI 1 p. 47; TP X 9 p. 135) que serão analisadas, bem como a

momentos da Ética em que Espinosa fala do comportamento mais comum aos

homens, ou seja, de serem em geral contrários uns aos outros - "[...] é raro que os

homens vivam sob a conduta da razão [...] o que ocorre é que eles são, em sua

maioria, invejosos e mutuamente nocivos." (E IV P 35 Esc p. 303) - aponta para um

dado relevante, a meu ver. Tal dado é o da importância fundamental da política como

astúcia institucional fundada nas noções comuns120. Instância criada para que, mesmo

por vias imaginativas predominantemente, os homens possam ser úteis uns aos

outros. Tal utilidade, que seria máxima pelo uso da razão, ocorre por meio do que há

de comum, já que aos homens o uso da razão é raro (E IV P 35 Esc p. 303, entre

outras).

O raro é o uso da razão. O mais frequente é que os homens sejam

guiados pelos afetos, isto é, pelos afetos passivos (alegres ou tristes) mais comuns, que

são imagens na mente advindas das afecções do corpo, e não pelos afetos ativos,

advindos exclusivamente do uso da razão. Os homens, escreve Espinosa, julgam

frequentemente as coisas apenas por seu afeto (E III P 51 Esc p. 221). Sendo o uso da

razão raro, como afirma o autor em passagens da obra, poder-se-ia dizer, com alguma

hipérbole, que é pela disposição do corpo que se construirá a política, isto é, é pelas

imagens advindas do corpo que alguma astúcia da razão (fundada nas noções comuns)

será possível, pois os homens, ainda que mutuamente nocivos uns aos outros (E IV P

35 Esc p. 303), sabem, entretanto, que "[...] o homem é um Deus para o homem" (E IV

P 35 Esc p. 303), ou seja, "[...] dificilmente podem levar uma vida solitária [...]." (E IV P

120

Trabalho este tema nos itens (a), (b) e (c) do Capítulo 2.

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35 Esc pp. 303-305). Se a concórdia máxima é rara, alguma concórdia será necessária

para a vida em comum. Alguma frequência sob a conduta da razão será necessária

para a construção política, mesmo que mínima. Isto ocorrerá, pois, uma vez que razão

é acordo (E IV P 35 Dem p. 303), e o comum do social virá do acordo, de algum acordo

- que, na hipótese que levanto, será construído pela astúcia da razão121 ou das noções

comuns no uso da imaginação. É o que procurarei mostrar no capítulo 2, bem como

nos itens seguintes.

O que importa salientar por ora, entretanto, retornando ao tema

específico deste item, é que os afetos são inumeráveis, e nomes são dados àqueles

que são mais frequentes. Conhecer o afeto significa entender sua causa próxima, sua

gênese, e isso levou Espinosa ao encontro do homem como ser essencialmente

desejante. Sendo inumeráveis os afetos, mas sendo a natureza humana a mesma, é o

caso de entender, não de nomear, para o elaborar afetivo da construção política mais

astuta. Será preciso o mergulho no mundo humano, isto é, nos afetos mesmos, em sua

lógica, em sua gênese, para entender a política como prática e elaboração

eminentemente afetivas. Da natureza afetiva dos homens decorrerá a política, e os

conceitos dos principais afetos - no sentido preciso de 'definição dos afetos' - serão

importantes para essa construção eminentemente humana.

(i) Agir, padecer: conhecimento, afetos, propriedades comuns

No item d.1 deste capítulo, suspendi a análise dos conceitos de causa

adequada e ação e causa inadequada e paixão. Retomo neste momento tais temas

para completar a análise da teoria dos afetos espinosana.

No de Affectibus, o tema aparece inicialmente nas Definições, logo

após o Prefácio. Na definição 1, Espinosa chama de "[...] causa adequada aquela cujo

efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma." (E III D 1 p. 163). E,

sobre causa inadequada, afirma: "Chamo de causa inadequada ou parcial, por outro

121

O tema da 'astúcia da razão' ainda será objeto de análises no capítulo 2. Tomo-o de: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191, especialmente pp. 182-184.

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lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só." (E III D 1 p. 163). A

seguir, na definição 2, concebe como ação o que advém da causa adequada, e como

paixão o que ocorre "[...] quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza

se segue algo de que não somos causa senão parcial." (E III D 2 p. 163). E, logo após

definir afeto - na definição 3 -, na explicação da mesma definição, afirma: "Assim,

quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto

compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão." (E III D 3 p. 163).

O tema do agir e do padecer será retomado após a longa análise dos

afetos, que se estende por quase toda a parte III da Ética. Apenas nas Proposições 58 e

59, antes do início das definições, enumeradas, de cada um dos afetos tratados nas

Proposições, é que o tema do agir e do padecer será retomado.

Espinosa inicia a Proposição 58 fazendo um corte em face do que

fora tratado até então. Afirma que, de um lado, há a alegria e o desejo que são paixões

(quae passiones sunt - E III P 58 p. 234) e, por outro, os afetos de alegria e de desejo

que se relacionam aos homens à medida que estes agem. Há, portanto, afetos passivos

e afetos ativos, ou seja, paixões e ações e, no rol dos afetos passivos, há os tristes e os

alegres.

Na demonstração desta Proposição, Espinosa afirma que a mente,

quer quando tem ideias claras e distintas, quer quando tem ideias confusas, esforça-se

por perseverar em seu ser. Esforço, escreve Espinosa, é o mesmo que desejo. Estes

dois pontos se fundam em uma Proposição-chave da parte III da Ética, já analisada, a

saber, a Proposição 9 e seu escólio. O esforço da mente para perseverar é desejo, seja

este esforço capaz de ideias claras e distintas, seja este esforço capaz apenas de ideias

confusas. A alegria se relaciona à concepção de ideias claras e distintas, de acordo com

a Proposição 53 da Ética III, na qual Espinosa concebe que, quando a mente considera

a si própria e a sua potência de agir, ela se alegra (E III P 53 p. 225). A alegria é um

aumento da potência da mente. Mas, sendo a mente ideia do corpo (E II P 13 p. 97),

ambos modos de dois dos atributos da substância, o aumento da potência da mente

ao conhecer clara e distintamente sua potência de entender é, simultaneamente,

aumento da potência do corpo.

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Portanto, para Espinosa, compreender clara e distintamente, por

meio da potência da mente, gera, simultaneamente, um afeto de alegria. Não há

dissociação, como costumamos compreender - talvez em razão do denso peso da

tradição que aparta vontade, sentimento e razão -, entre afeto e conhecimento. O

conhecimento claro e distinto é simultaneamente um afeto. É o que Espinosa afirmará,

de maneira explícita, na Proposição 8 da parte IV da Ética: "O conhecimento do bem e

do mal [do bom e do mal - boni et mali (E IV P 8 p. 276)] nada mais é do que o afeto de

alegria ou de tristeza, à medida que dele estamos conscientes." (E IV P 8 p. 277)122.

A ação adequada será uma ação simultânea a um conhecimento

claro e distinto e a um afeto de alegria. O exemplo que Espinosa utiliza, para tratar do

conhecimento, e que se relaciona à matemática, encobre e explicita, ao mesmo

tempo, certa "materialidade" do saber adequado, do conhecimento adequado sobre

qualquer coisa que se possa conhecer, isto é, um saber acerca da causa próxima da

coisa. É preciso conceituar o que chamo de "materialidade". Por este termo quero

explicitar que as noções comuns da razão, que são o fundamento do raciocínio dos

homens (E II P 40 Esc 1 p. 131), são o resultado do acesso da mente, enquanto finita,

às propriedades comuns das coisas (E II P 40 Esc 2 p. 135). Isto é, o saber adequado

não é uma abstração, mas a formação, na mente, por sua própria potência, de noções

comuns das propriedades das coisas - daí o uso do termo "materialidade". Espinosa

afirma, sobre esta questão, que "[...] percebemos muitas coisas e formamos noções

122

Na tradução de Roberto Brandão, fica ainda mais clara a relação: "O conhecimento do bem e do mal é apenas o afeto de Alegria ou Tristeza, enquanto temos consciência dele". Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014. Para uma interpretação diversa da que aqui propus, afirmando que o conhecimento do mau, assim como o do bom, geram, ambos, afetos de alegria, por serem conhecimentos, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 52. Afirma Lazzeri: "[...] o conhecimento do bem e do mal é sempre uma ideia da alegria ou da tristeza, mas se trata, nesse caso, de um 'conhecimento verdadeiro do bem e do mal' em que o afeto é uma consequência do julgamento verdadeiro. No caso do conhecimento verdadeiro do bem, nós nos alegramos pelo conhecimento verdadeiro da coisa e pelo fato de que ela nos é útil. No caso do conhecimento verdadeiro do mal, nós nos alegramos pelo conhecimento verdadeiro da coisa e nos entristecemos pelo fato de que ela é prejudicial." (Tradução minha - p. 52). Discordo da tese de Lazzeri não apenas em razão das palavras presentes na própria Proposição 8 (E IV P 8 p. 277), mas sobretudo pela seguinte afirmação de Espinosa: "Ora, essa ideia está unida ao afeto da mesma maneira que a mente está unida ao corpo (pela prop. 21 da P. 2), isto é (como se demonstrou no esc. da mesma prop.), ela não se distingue efetivamente do próprio afeto, ou seja (pela def. geral dos afetos), não se distingue da ideia da afecção do corpo senão conceitualmente. Logo, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que o próprio afeto, à medida que dele estamos conscientes." (E IV P 8 Dem p. 277 - grifos meus).

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universais: [depois de falar do conhecimento do primeiro gênero, pela experiência

vaga e pela imaginação, fala do acesso da mente às propriedades comuns das coisas]

[...] 3.Por termos, finalmente, noções comuns e ideias adequadas das propriedades das

coisas [...]." (E II P 40 Esc 2 p. 135). A esse modo de conhecimento Espinosa chama de

razão e conhecimento de segundo gênero. Há, ainda, escreve o autor, a ciência

intuitiva. O exemplo da matemática, que vem logo após estas considerações, serve

para explicar tudo isso (E II P 40 Esc 2 p. 135). O exemplo é o do número faltante numa

razão em que há três números e se quer obter o quarto que esteja para o terceiro

como o segundo está para o primeiro. Os comerciantes usam o método da experiência

vaga e, para tal, multiplicam o segundo pelo terceiro e dividem o produto pelo

primeiro. Só alcançam o resultado correto porque há a propriedade comum dos

números proporcionais. Assim como é pela mesma propriedade comum dos números

proporcionais que, numa ratio entre 1, 2 e 3, sabe-se, por um golpe de vista

(conhecimento intuitivo), que o quarto número é 6 (E II P 40 Esc 2 p. 135).

No mesmo sentido, dá-se o exemplo do conceito de círculo e de

esfera, sendo aquele o resultado do movimento de um segmento de reta ao entorno

de um ponto fixo, e este o resultado do movimento do semicírculo em torno de um

eixo fixo. Nos três casos, não há abstração123, e talvez Espinosa os tenha usado em

razão de sua limpidez, no sentido de que por eles se mostra o conhecer em seu

movimento de gênese, de conhecer pela causa próxima, isto é, a causa que faz que o

efeito seja aquele efeito. Não há abstração alguma nestes exemplos, pois não existe

abstração - entendida como ausência de causa ou deslocamento em face da causa -

numa filosofia da necessidade absoluta da substância em sua autoprodução. Dessa

maneira, a produção do conhecimento da essência do círculo, da esfera ou do número

faltante numa razão matemática têm a mesma natureza do conhecimento de qualquer 123

No campo da geometria, Espinosa parece usar o termo num sentido que nada tem de abstrato. Com efeito, etimologicamente, geometria vem de dois radicais gregos, a saber, ge(o)- e metrikos. Segundo o Houaiss (http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=ge%28o%29- ACESSO 28 ABR 2014), ge(o) significa: "antepositivo, do gr. gê,ês 'terra (em todos os sentidos), país, região'; ocorre em vários voc. formados no próprio gr., como geografia (geōgraphía), geográfico (geōgraphikós), geógrafo (geōgráphos), geoide (geoeidēs), geômetra (geōmétrēs), geometria (geōmetría), geométrico (geometrikós), e em grande número de cultismos do sXIX para cá (geoanticlinal, geo-história, geopolítica, geo-referenciar etc.); ver -geia." (grifo meu). Ou seja, geo aponta para um sentido materialista ou material, por oposição a abstração. Uma medida (de metrikos) da terra. Este sentido etimológico está, a meu ver, mais próximo do que Espinosa entende pelo vocábulo, dando-lhe um sentido de medida do que é material, ou seja, do que é um saber acerca da propriedade comum das coisas.

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outra realidade da substância, sendo sempre tal conhecimento um conhecimento da

causa próxima por meio da potência da mente para conhecer. E, mais importante para

o tema que ora se discute, conhecer é o mesmo que agir. Por outra, como já analisado,

o conhecimento é o resultado de um desejo da mente de perseverar em seu ser.

Assim, quando conhece adequadamente, isto é, quando tem acesso à causa próxima

do que pretende conhecer - a noção comum derivada da propriedade da coisa -, a

mente gera, simultaneamente, um afeto de alegria. Alegria é sinônimo de aumento de

perfeição, de potência. Portanto, é agir, pois agir é o mesmo que ser causa adequada

do efeito gerado pela potência da mente para conhecer. Alegria da mente é ação da

mente para conhecer e ação do corpo em razão do aumento - movimento - de sua

potência para perseverar no ser. Afeto alegre, potência da mente, potência do corpo,

conhecimento claro e distinto, noções comuns, propriedade comum dos corpos e ação

são conceitos inter-relacionados na construção ética espinosana124. Ainda neste item

(i), analisarei as Proposições anteriores à Proposição 40 da Ética II, bem como a

Proposição 40 e seus desdobramentos.

Na Proposição 59, Espinosa nomeará e conceituará os afetos que

considera decorrentes do conhecimento adequado da mente e, portanto, equivalentes

a ações. Tais ações são referidas ao afeto fortaleza (fortitudinem), o qual Espinosa

divide em firmeza (animositatem) e generosidade (generositatem) (E III P 59 Esc p.

235). A relação entre afetos ativos e conhecimento adequado se apresenta, pois, com

nitidez. Com efeito, Espinosa afirma que "Por firmeza compreendo o desejo pelo qual

cada um se esforça por conservar seu ser, pelo exclusivo ditame da razão [rationis

124

Penso que um exemplo dado por Deleuze aponta para o que chamo de "materialidade" do conhecimento adequado. "Materialidade" no sentido que dei acima, por oposição a abstração, e tendo uma relação com a propriedade comum dos corpos. Este exemplo explica, a meu ver, muito bem a relação entre conhecer, propriedades comuns, noção comum, corpo e afeto. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Afirma Deleuze, sobre a composição ou o mau encontro entre uma onda e um homem, o que segue. Pelo primeiro gênero de conhecimento, jogo-me nas ondas. Nada sei. Jogo-me simplesmente. E daí vêm os encontros. A onda me fez mal se com ela não encontro nada de comum (p. 241). Pelo segundo gênero, eu sei nadar, sei compor com a onda. Não se trata de algo matemático. Ainda que a matemática seja o segundo gênero, ela não o contém. É mais que a matemática. É um saber muito prático (pp. 241-242). Os gêneros de conhecimento, nesse sentido, são como modos de existência – mais que gêneros, portanto (p. 243). Os três operam ao mesmo tempo em todos nós. Alguns homens operam mais com o primeiro gênero, outros mais com o segundo. Ainda mais: Deleuze entende as noções comuns (segundo gênero de conhecimento) como as ideias de relações (p. 274).

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dictamine conservare - E III P 59 Esc p. 234]." E por generosidade, diz, "[...]

compreendo o desejo pelo qual cada um se esforça, pelo exclusivo ditame da razão [ex

solo rationis dictamine - E III P 59 Esc p. 234], por ajudar os outros homens e para unir-

se a eles pela amizade." (E III P 59 Esc p. 235).

O "exclusivo ditame da razão" dá o tom do afeto, é simultâneo ao

afeto, seja ele a firmeza de ânimo, seja ele a generosidade, sendo um a vantagem de si

(firmeza), e o outro a vantagem de um outro (generosidade) (E III P 59 Esc p. 235).

Resta explicitar, de maneira mais detalhada, o que vem a ser e como

se dá o ditame da razão. Ao que indicam os textos espinosanos que tratam do tema, as

noções comuns são o conhecimento das propriedades comuns das coisas, e por aí

passa o conhecimento adequado de que a mente é capaz.

Procurarei mostrar este ponto pela análise da proposição 40, bem

como escólios, da parte II da Ética, assim como pelas Proposições anteriores a esta, a

saber, as de número 38 e 39 da mesma parte.

O corolário da Proposição 38 estabelece que

[...] existem certas ideias ou noções comuns a todos os homens [quasdam ideas sive notiones omnibus hominibus communes]. Com efeito, (pelo lema 2), todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos, os quais [...] devem ser percebidos por todos adequadamente, ou seja, clara e distintamente. (E II P 38 Cor p. 129).

O lema 2, citado por Espinosa, afirma que todos os corpos estão em

concordância quanto a certos elementos (E II P 13 L 2 p. 99), o que é demonstrado pelo

fato, referido na definição 1 da mesma parte, de os corpos serem modo finito do

atributo extensão da substância, ou seja, um mesmo atributo, distinguindo-se apenas

pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e lentidão, e não pela substância (E II

P 13 L 1 p. 99). Isto é, os corpos são modos finitos da mesma qualidade da substância,

variando não a substância, mas elementos do atributo extensão. Assim, os corpos têm

coisas em comum por serem modos diversos de uma mesma qualidade, a saber, o

atributo extensão da substância.

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A Proposição 38, da qual o corolário acima referido é parte, afirma

que os elementos que são comuns a todas as coisas, os quais existem igualmente na

parte e no todo, somente podem ser concebidos adequadamente (E II P 38 p. 129). A

Proposição 39, complementando esta tese, estabelece que "Será adequada na mente

[...] a ideia daquilo que o corpo humano e certos corpos exteriores pelos quais o corpo

humano costuma ser afetado têm de comum e próprio, [...]." (E II P 39 p. 129).

As ideias adequadas na mente (noções comuns) serão as ideias das

propriedades comuns dos corpos, e as ideias adequadas na mente que se seguem de

ideias adequadas na mente serão igualmente adequadas (E II P 40 p. 131).

Esta argumentação espinosana resultará na doutrina dos modos de

conhecimento explicitados na parte II da Ética, no escólio 2 da Proposição 40. Mais

precisamente, as Proposições e corolários acima movimentados darão a Espinosa as

bases de sua doutrina das propriedades comuns dos corpos, a qual será o fundamento

das ideias adequadas, geradoras de ações nos homens. A ponte que importa construir

é a da relação entre conhecimento e afeto, podendo-se dizer, como procurarei

desenvolver a seguir, que o conhecimento é uma manifestação do desejo e, por

conseguinte, é um afeto125.

E o que afirma a doutrina espinosana dos modos de conhecimento

desenvolvida na Ética126? No Escólio 1 da Proposição 40, Espinosa indica que foi

explicada, pela Proposição 40 e sua Demonstração, "[...] a causa das noções ditas

comuns e que constituem os fundamentos de nossa capacidade de raciocínio." (E II P

40 Esc 1 p. 131). No Escólio 2 da mesma Proposição, Espinosa afirma que somos

capazes de formar noções universais (notiones universales formare) de três formas,

sendo duas delas capazes de ter acesso a propriedades comuns dos corpos, ou seja,

capazes de formar noções comuns. Os homens podem ter conhecimento parcial das

coisas singulares sem "[...] a ordem própria do intelecto [...]" (E II P 40 Esc 2 p. 133), ou

125

MIGNINI, Filippo. Impuissance humaine et puissance de la raison. In: Lazzeri, C. (coord.). Spinoza: puissance et impuissance de la raison. Paris: PUF, 1999, pp. 39-61, especialmente pp. 46-47. 126

Espinosa trata do tema dos modos de conhecimento no Breve Tratado, no TIE e na Ética. Não entrarei, por fugir do objeto da tese, na diferença entre as concepções espinosanas nas diferentes obras. Um estudo clássico sobre o tema, já citado, e no qual se faz uma abordagem geral do tema, bem como específica a cada uma das obras, é: TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.

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99

por conhecimento originado da experiência vaga127 (experientia vaga) (E II P 40 Esc 2 p.

135), ou a partir de signos, modos de conhecer que Espinosa chama de conhecimento

"[...] de primeiro gênero, opinião ou imaginação [...]." ( E II P 40 Esc 2 p. 135) [primi

generis, opinionem, vel imaginatonem - E II P 40 Esc 2 p. 134]. Eis o conhecimento

parcial, mutilado, apenas perceptivo: o conhecimento por imagens.

Espinosa trata então dos modos de conhecimento que levam ao

conhecimento adequado, total, e não parcial, da coisa. Tal conhecimento se dá,

segundo Espinosa, "Por termos [...] noções comuns e ideias adequadas das

propriedades das coisas." (E II P 40 Esc 2 p. 135). Para fundamentar, no interior da

geometria da Ética, esta tese, Espinosa recorre ao corolário da Proposição 38, à

proposição 39 e seu corolário, bem como à Proposição 40, todas analisadas acima. Este

é o modo de conhecer que Espinosa chama de segundo gênero de conhecimento. A

este modo se soma outro, cujo resultado é o mesmo, isto é, o conhecimento adequado

da coisa, e que Espinosa chama de ciência intuitiva - cujo conceito foi abordado

parágrafos acima.

A questão que interessa é menos a dos modos de conhecer como

instâncias deslocadas, apartadas, estanques nelas mesmas, e mais sua relação com os

conceitos de afeto ativo (alegre) e potência, ou sua relação com o conceito de afeto

passivo triste, no caso do conhecimento inadequado que leva à diminuição de

potência. Uma paixão triste, neste caso. É neste sentido que afirmo que há

"materialidade", como oposição a abstração, no ato de conhecer em Espinosa. O

conceito de propriedade comum das coisas como o que possibilita noções comuns

como saber acerca das coisas, a meu ver, fundamenta o uso deste termo. E, de fato, se

considerarmos correta a tese (bastante influente e presente em várias tradições

filosóficas, como na cartesiana, por exemplo) que concebe o conhecer como puro

conhecer, não será possível compreender a posição espinosana da ligação estrutural

entre saber e afeto.

"O exemplo de uma única coisa [...]" (E II P 40 Esc 2 p. 135), acima

referido por Espinosa, a saber, o exemplo matemático, é a via mais fácil para explicitar

127

Tomaz Tadeu usa a expressão experiência errática (E II P 40 Esc 2 p. 135).

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a tese da propriedade comum dos corpos. No caso deste exemplo da matemática, a

propriedade comum dos números proporcionais. Para aqueles que observam e

compreendem Espinosa à luz da tradição, isto é, com as lentes que apartam

conhecimento de qualquer outra realidade, tudo indica que o exemplo da matemática

se esgota em questões da matemática. Entretanto não é disso que se trata. "O

exemplo de uma única coisa [...]", como o texto afirma, é apenas um exemplo para

explicar o funcionamento geral do conhecer por meio do acesso da mente à

propriedade comum das coisas, daí extraindo noções comuns128.

Ou seja, em primeiro lugar, o acesso à propriedade comum de

qualquer coisa é o acesso ao conhecimento pela causa próxima da coisa, daquilo que a

gerou, daquilo que faz que ela seja o que é. Portanto, a propriedade comum dos

números proporcionais é o meio pelo qual se descobre o número faltante na ratio

entre números. Isto é, é apenas em razão de os números proporcionais terem

propriedades comuns que se pode descobrir um quarto número a partir de três

números dados. Mas há ainda um segundo ponto. Não apenas os números

proporcionais têm propriedades comuns. Outras coisas têm propriedades comuns -

como já indicado -, e o conhecimento de tais propriedades comuns, pela potência da

mente, leva ao saber verdadeiro sobre tais coisas.

Outra consequência deve ser retirada do conjunto de argumentos

acima. O conhecimento verdadeiro, adequado, gera uma ação, e, simultaneamente,

leva ao aumento da perfeição do homem que conhece. Tal aumento de perfeição é o

afeto de alegria, simultâneo ao saber verdadeiro.

Mais uma tese espinosana que importa destacar, e que também

decorre dos argumentos até aqui desenvolvidos, é a de que os modos de percepção

não se dão, como nas teses platônicas, numa escalada à Ideia pura. Espinosanamente,

não há escalada. Os modos de perceber e conhecer na imanência podem no máximo

ter acesso às propriedades comuns das coisas, e tal acesso é o conhecimento

128

Escreve Deleuze, a quem sigo neste ponto, que o conhecimento matemático é do segundo gênero, mas este modo de conhecimento não se esgota no conhecimento de tipo matemático. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 241-242.

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verdadeiro da coisa que se conhece. Ocorre que os demais modos de conhecimento,

por imaginação sobretudo, ocupam a todo tempo, e mesmo simultaneamente ao

conhecimento verdadeiro, as mentes dos homens. Portanto, as formas de percepção

em Espinosa, para os homens, são simultâneas umas às outras, e geram afetos, nos

homens, a todo tempo129. Por exemplo, a percepção do sol como tendo o tamanho de

um pé humano é um saber por imagem, isto é, o homem imagina o sol como tendo

este tamanho. Esta é a percepção imediata, imagética. Ocorre que simultaneamente o

homem é capaz de saber, por um esforço da mente, que o sol é muito maior do que

um pé humano. Tais saberes podem se dar ao mesmo tempo, sendo um advindo do

uso adequado da razão e o outro mera percepção imaginativa.

Mesmo mostrando que o homem é capaz de conhecimento

adequado, e mostrando que de tal conhecimento advém a ação e a alegria, Espinosa,

no escólio da Proposição 59, afirma que, "Pelo que foi dito, fica evidente que somos

agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar

agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de

nossa sorte e de nosso destino." (E III P 59 Esc p. 237). Tal assertiva aponta para uma

tese que será muito importante, a meu ver, na elaboração da política em Espinosa. Os

homens são, de fato, capazes de conhecimento adequado e da máxima alegria e

perfeição, e da máxima potência daí decorrente. Porém, é raro, escreverá Espinosa no

Tratado político (TP I 7 p. 10; TP II 5 p. 12; TP VI 1 p. 47; TP X 9 p. 135), que os homens

se conduzam pela razão.

"[...] Agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras [...]." (E III P

59 Esc p. 237). Não é casual que Espinosa, após falar dos afetos ligados à razão, e

exatamente deles, a saber, a fortaleza de ânimo e a generosidade, aponte para o fato,

incontestável pela experiência, segundo o qual as causas exteriores, e não os afetos

advindos da causa total, interna, sejam os afetos predominantes nos homens. Por esta

razão os homens são mais agitados pelo que os afeta de fora do que por aquilo que os

afeta a partir do conhecimento adequado.

129

Sobre este ponto, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, especialmente p. 180.

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102

Ser agitado por causas externas significa ter o desejo levado - isto é,

ter o desejo determinado - por afetos passivos, os quais podem ser alegres ou tristes.

Esta tese, indicada logo após a análise das proposições que tratam dos afetos ativos,

explicita o importante lugar da imaginação na vida dos homens. Ser levado pelas

causas exteriores é reagir às imagens que as coisas provocam no corpo e na mente.

Não casualmente, portanto, a definição 1 dos afetos, logo a seguir à Proposição 59 e

escólio, trará como conceito de desejo "[...] a própria essência do homem, enquanto

esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si

própria, a agir de alguma maneira." (E III Def Af 1 p. 237). Isto é, o desejo, como

analisado em momento anterior, é a própria essência do homem. Esta essência (este

desejo, este homem, este Pedro, este Paulo, etc.), entretanto, pode ser determinada a

agir ou por causas adequadas, por meio do conhecimento adequado e da ação que daí

decorre, ou por causas parciais, advindas do conhecimento imaginativo (imagens) que

afeta os homens. Ou seja, por causas externas ao desejo e que o determinam de

maneira que se apresente "[...] como ondas do mar agitadas por ventos contrários

[...]." (E III P 59 Esc p. 237). Como os homens são essencialmente desejo, e este desejo

é determinado, em geral, pelos afetos externos, isto é, pela imaginação, e não pelos

afetos internos, ou seja, pelo conhecimento verdadeiro do bom, a conflituosidade será

a marca das relações entre os homens. Apenas a política, conduzindo a imaginação

humana por meio de instituições bem construídas, será capaz de contornar esta

inevitável realidade de viver "[...] como ondas do mar agitadas por ventos contrários

[...]." (E III P 59 Esc p. 237). Ela será a astúcia institucional de canalizar o conflito

constitutivo das relações humanas para um veio adequado. Este veio adequado será

tão mais bem construído quanto mais possibilitar o exercício do direito natural de cada

homem por meio do direito natural coletivo130, isto é, por meio do direito civil da

cidade. Em outras palavras: quanto mais os afetos alegres (sejam ativos, ações, ou

130

As leis da cidade - ou seja, o direito natural coletivo - terão estreita relação com as noções de imaginação e potência, segundo Diogo Pires Aurélio. Ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Natureza e Nação segundo Espinosa. In: BLANCO-ECHAURI, Jesús (Editor) Espinosa: Ética e Política. Encontro Hispano-Portugués de Filosofía. Santiago de Compostela: Ed. Universidade de Santiago de Compostela, 1999, pp. 279-299, especialmente p. 297, na qual afirma que a lei é o rosto com que o conjunto das potências individuais aparece na imaginação de cada um. Ou seja, a lei é entendida como figura-imagem presente na mente dos súditos-cidadãos (p. 297).

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passivos, isto é, paixões alegres) forem exercidos, pelos súditos-cidadãos, no cotidiano

da cidade, tanto mais a construção política terá sido bem sucedida.

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104

CAPÍTULO 2 - DIREITO, AFETOS E CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA

(a) Direito natural e afetos: aproximações

Espinosa elabora, ao tratar do direito, e especialmente do direito

natural, uma revolução conceitual ou, para usar as palavras de Alexandre Matheron,

uma revolução copernicana131. Já o fizera ao tratar de Deus, considerando-o imanente

e identificando-o à natureza e ao real em sua autoprodução, como fica claro, por

exemplo, na Ética I, e como procurei mostrar no item c.1 do capítulo 1. Faz a mesma

revolução conceitual na Ética III (E III Pref p. 161) ao dizer que os homens na natureza

não são um império num império (imperium in imperio - G II p. 137), isto é, são

afecções ou modos da substância e, portanto, não possuem liberdade num sentido

absoluto, pois são determinados a agir de certa e determinada maneira segundo as leis

necessárias da natureza. Com o conceito de direito natural não poderia ser diferente,

isto é, Espinosa o reelabora dentro de seu quadro conceitual mais amplo, o da

ontologia, e assim também opera mudanças significativas no conceito. Faz, para usar o

termo de um estudioso da obra, uma reconceitualização132 do direito.

Mesmo em face de Hobbes, cuja definição de direito natural se

identifica à liberdade que cada homem possui para usar o próprio poder (Leviatã I 14

p. 113) - em definição próxima à do autor holandês, como mostrarei em maiores

detalhes a seguir -, Espinosa se distancia em alguns pontos de fundo. Ou seja, tanto em

Espinosa quanto em Hobbes, as teses do direito natural fundado (a) ou em uma

essência racional, (b) ou na natureza das coisas, cujo acesso se daria pela razão, ou

ainda, (c) no acesso, pela razão, a um conceito divino transcendental, estão

131

Matheron usa o termo 'revolução copernicana em matéria de direito' em: MATHERON, Alexandre. Le pouvoir politique chez Spinoza. In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 131-140, especialmente na p. 134. 132

CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 17. O autor usa também o termo, retirado de M. Walther e J. Blanco-Echauri, 'revolução semântica'. Ver: M. Walther. in: ' Die Transformation des Naturrecht in der Rechtsphilosophie Spinozas', 1985, pp. 73-74. Mesma tese de J. Blanco-Echauri. 'Las concepciones Del Jus Naturale o lós fundamentos de la política em Grocio, Hobbes y Espinosa', 2003, p. 121. Apud CAMPOS, André Santos. Ibid. p. 19, nota 7.

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descartadas. Entretanto, mesmo em face de Hobbes, ainda assim, há diferenças de

fundo.

Deleuze afirma que Hobbes foi o primeiro autor a identificar direito

natural a potência, apartando-se da tradição essencialista-racional do conceito. De

fato, afirma Deleuze, Hobbes será o primeiro a dizer que as coisas se definem não pela

essência, mas pela potência133. Em Espinosa também se identifica o direito à potência,

como mostrarei em pormenor a seguir. Porém, diferentemente de Hobbes, há uma

ontologia da substância, equivalente à potência absoluta (Deus ou a natureza), que dá

fundamento ao conceito134. Esse ponto será tratado a seguir, ainda neste item. Em

Hobbes o direito de natureza prescinde de tal fundamento, pois seu sistema não

decorre da ontologia da substância, além de sua definição de direito natural partir do

indivíduo humano, portador de potência, cuja finalidade natural é preservar a vida135.

Depois de percorrer a definição de esforço (endeavour - Leviatã I 6 p. 57) e os

conceitos daí decorrentes (Leviatã I 6 pp. 57-65), Hobbes abre o capítulo XIV do Leviatã

definindo direito natural, mas sem qualquer preocupação com o lastro ontológico do

conceito. O que faz sentido no materialismo hobbesiano, cujo início, ao menos no

Leviatã, se dá por meio de teses sensórias ou sensualistas. Não casualmente o título do

capítulo 1 da parte I do Leviatã é 'Da sensação'. Isto é, o conceito de direito natural

hobbesiano não parte de teses ontológicas como as de Espinosa, para quem o

fundamento do direito - de qualquer direito - é a substância.

133

DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. Cito: "Ele [Hobbes] diz que as coisas não se definem por uma essência, elas se definem por uma potência. Então o direito natural é - não o que é conforme à essência da coisa - , mas sim, tudo o que pode a coisa. [...] É uma ideia simples, mas é uma ideia perturbadora. [...] Todo mundo sabe, sempre, que os peixes grandes comem os pequenos, mas ninguém nunca havia chamado a isto direito natural. Por quê? Porque se reservava os termos 'direito natural' inteiramente para outra coisa: a ação moral conforme a essência." (pp. 89-90). É Deleuze mesmo quem faz uma ressalva a esta afirmação, a saber, a de que Hobbes teria inaugurado a tradição do direito natural como potência. Cito: "Acrescento, para ser honesto historicamente, que isto não surgiu de um golpe, seria possível procurar, já na antiguidade, uma corrente, mas uma corrente muito parcial, muito tímida, na qual se formava já na antiguidade, uma concepção como esta do direito natural igual potência. Mas ela será abafada. Vocês a encontram em certos sofistas e em certos cínicos. Mas sua explosão moderna, será com Hobbes e com Espinosa." Ibid. p. 95. 134

No mesmo sentido desta afirmação, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 103. 135

Ibid. p. 103.

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Outra distância de fundo entre os conceitos espinosano e hobbesiano

de direito natural está a seguir apontada. Qual é a definição de direito natural que

abre o capítulo XIV do Leviatã? Afirma Hobbes que

O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (Leviatã I 14 p. 113)

136.

E liberdade, por sua vez, é definida como "[...] a ausência de

impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que

cada um tem de fazer o que quer, [...]." (Leviatã I 14 p. 113). As leis de natureza -

conceito também ligado aos dois acima -, trabalhadas por Hobbes nos capítulos XIV e

XV do Leviatã, são definidas como "[...] um preceito ou regra geral estabelecido pela

razão mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo que possa destruir sua vida

ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, [...]." (Leviatã I 14 p. 113). Preceito

estabelecido pela razão. Esta mesma razão, pela qual os homens têm acesso às leis

naturais, leis estas que "[...] ditam a paz como meio de conservação das multidões

humanas, [...]" (Leviatã I 15 p. 131), poderá ter acesso a uma suma de todas as leis de

natureza: "Esse resumo é: Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti." (Leviatã

I 15 p. 131).

No capítulo XIV do Leviatã, após definir direito natural e lei de

natureza, Hobbes estabelece uma diferença entre lex (lei) e jus (direito), "Pois o direito

consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a

uma dessas duas coisas." (Leviatã I 6 p. 113).

Uma concatenação dos conceitos acima indicados mostra que a

distância de fundo entre Espinosa e Hobbes quanto ao conceito de direito natural não

se resume ao fato de que Hobbes conceitua direito natural a partir do indivíduo

humano como endeavour (conatus), ao passo que Espinosa extrai seu conceito de

homem como conatus da ontologia autoprodutora de potência da substância única. Há

ainda a ligação do conceito de lei natural em Hobbes ao seu conceito de direito

natural. Pois, se é certo que, como indicam os textos citados, jus não é o mesmo que

136

Hobbes define direito natural de forma semelhante em Do Cidadão I 7 p. 47.

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107

lex, por outro lado é a lei natural, como preceito da razão, que obriga "[...] in foro

interno, quer dizer, [as leis de natureza] impõem o desejo de que sejam cumpridas

[...]". (Leviatã I 15 p. 131). Em Espinosa não há qualquer definição de lei de natureza

ligada a preceito da razão e a impor, in foro interno, qualquer prescrição ao desejo.

Portanto, mesmo em face de Hobbes, que, como mostrei, de acordo

com Deleuze137, é o primeiro autor na história da filosofia a abandonar o moralismo

essencialista no campo do direito natural, Espinosa se apresenta como uma revolução

copernicana no campo jurídico.

Mas o tema que pretendo tratar a seguir não vai diretamente ao

cerne da questão de Espinosa ser ou não um jusnaturalista - questão de fundo à da

reconceitualização -, a qual demandaria uma definição de jusnaturalismo que

fundamentaria o enquadramento de Espinosa nesta ou naquela chave138. O intento

principal é o de aproximar os conceitos de direito natural, de um lado, e de afetos, de

outro, para mostrar, por meio da análise de excertos do Teológico-político, da Ética III

e do Político, que tais conceitos têm uma relação de grande proximidade. Trata-se de

um primeiro momento de movimento de argumentos com o objetivo de, nos itens

seguintes deste capítulo 2, construir a concepção espinosana de política por meio do

uso dos conceitos de direito natural, conatus, desejo, afetos, direito civil, multitudo e

imitação afetiva, entre outros. Outro ponto que pretendo indiretamente tratar neste

item é o do teor da revolução copernicana de Espinosa no campo jurídico. Isto ficará

expresso por meio das definições de direito que o autor apresenta na Ética III, no

Teológico-político e no Político. Definições estas que ligam o conceito de direito ao de

potência, bem como distanciam Espinosa até mesmo do autor que primeiro identificou

137

DELEUZE. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. 138

Para a questão do enquadramento de Espinosa na tradição jusnaturalista, ou sua exclusão por ser crítico desta concepção, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 20 a 24, especialmente nota 13, p. 21. Para o autor, a questão que interessa é menos a do enquadramento de Espinosa na tradição jusnaturalista e mais entender o valor, em sua filosofia, do direito associado à natureza e as pretensões aí inerentes (p. 21).

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direito natural a potência, segundo Deleuze139, a saber, como analisado acima,

Hobbes.

***

Aparentemente, pela leitura deslocada ou panorâmica dos textos de

Espinosa, especialmente a Ética, o Tratado político e o Tratado Teológico-político, não

se vislumbra relação entre o conceito de direito e o de afeto. Um dos pontos-chave a

ser sustentado nesta seção é precisamente o da grande proximidade entre tais

conceitos. Este ponto é um dos fundamentos da construção afetiva da política, o que

procurarei analisar nos itens seguintes deste capítulo. Neste primeiro tópico, em vez

de tratar da questão mais ampla dos fundamentos da construção afetiva da política,

objeto mais direto dos itens seguintes a este item (a), tentarei mostrar, por meio do

movimento de passagens nucleares dos três textos acima indicados, que há relação

entre tais conceitos. Não uma relação débil, mas de grande proximidade conceitual.

O capítulo XVI do Tratado Teológico-político tem como tema e título

"Dos fundamentos do Estado, do direito natural e civil de cada indivíduo e do direito

dos soberanos [De Reipublicae Fundamentis; de jure uniuscujusque naturali & civili,

deque Summarum Potestatum Jure G III p.189]." (TTP XVI p. 234). Trata-se de capítulo

que elabora uma mudança de temática na economia da obra140. De fato, Espinosa

afirma ali que até então procurara separar a filosofia da teologia, e agora tratar-se-ia

de interrogar até onde deve ir, numa república141 bem ordenada (optima republica), a

liberdade de cada um pensar e dizer o que pensa. Para isso, falará dos fundamentos da

República e, antes disso, sobre o direito natural do indivíduo (TTP XVI p. 234).

No segundo parágrafo do referido capítulo, Espinosa conceitua

direito natural do indivíduo usando os seguintes termos: "Por direito e instituição

139

DELEUZE. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. 140

Ver, por exemplo, sobre a tese da possível ruptura completa deste capítulo em face dos demais, a nota 1 de Diogo Pires Aurélio à sua tradução do TTP. Nela, Aurélio cita A. Droetto, que no artigo 'Genesi e storia del Tratado Teologico-Político' (In: Studi Urbinati, 1969, pp. 135-179), sustenta a tese de que inicialmente a intenção de Espinosa seria dar a obra por finda depois dos capítulos sobre o problema teológico. Ver as considerações de Aurélio em: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 361. 141

'Estado' na tradução de Diogo Pires Aurélio, ora utilizada. Ibid., p. 234.

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natural [Per jus & institutum naturae G III 189] entendo unicamente as regras da

natureza de cada indivíduo [regulas naturae uniuscujusque individui G III 189], regras

segundo as quais concebemos qualquer ser como naturalmente determinado a existir

e a agir de uma certa maneira." E acrescenta, após tratar do direito dos peixes sobre as

águas e dos maiores de comerem os menores, que "É, com efeito, evidente que a

natureza, considerada em absoluto, tem direito a tudo que está em seu poder, isto é, o

direito da natureza estende-se até onde se estende a sua potência [Nam certum est

naturam absolute consideratam jus summum habere ad omnia, quae potest, hoc est,

jus naturae eo usque se extendere, quo usque ejus potentia se extendit G III p. 189]

[...]." (TTP XVI p. 234).

Logo após afirmar que a potência da natureza como um todo é a

própria potência de Deus (TTP XVI p. 234) - pois a natureza e Deus são uma e a mesma

coisa, como se vê na Ética142 -, Espinosa explicita uma de suas teses centrais, a saber,

"[...] o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua exata potência." (TTP

XVI pp. 234-235). E ainda, para o que interessa ao tema do presente trabalho, explicita

uma tese muito próxima, senão idêntica, a uma das mais importantes Proposições da

Ética III, a saber, aquela segundo a qual cada coisa se esforça por perseverar em seu

ser143.

Mas Espinosa não reduz seu conjunto de argumentos ao que acima

foi dito. Afirma, logo a seguir, que o homem não se diferencia de outros seres da

natureza quanto a este ponto, isto é, quanto ao esforço para perseverar no ser. Isto

também não diferencia, diz Espinosa, os homens dotados de razão daqueles que a

142

Ver item 'c' do capítulo 1. Espinosa inicia a redação da Ética em 1661. Publica o TTP em 1670. E finda a Ética, não a publicando em vida por motivos de perseguição política ao TTP e a si mesmo, apenas em 1675. Ou seja, Espinosa interrompe a redação da Ética para elaborar o TTP. Ao que tudo indica, a elaboração das teses, considerando-se esse lapso temporal entre 1661 e 1675, tem certo entrelaçamento no que se refere às duas obras. Ver, para esta cronologia: AURÉLIO, Diogo Pires. Introdução. In: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. XI-CXXXIII, especialmente pp. CXXIX a CXXXIII. 143

Conforme aponta Diogo Pires Aurélio na sua nota 5 ao capítulo ora em análise, a tese é a mesma que será apresentada na Ética, exceto pelo fato de lá se falar em perseverar no ser, e não em seu estado [in suo statu G III p. 189], como é o caso no TTP . Ver a nota de DPA em: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 363. Entendo que a tese espinosana é a mesma neste texto e na Ética, mudando-se apenas uma expressão, certamente chave, o que não afeta o conceito de que se está a tratar. Isto é, lá e cá o conceito é o mesmo e as teses parecem ser de enorme proximidade, senão idênticas. Um parágrafo do Político, que será objeto de análise ainda neste item (a), parece corroborar este ponto.

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ignoram, bem como não diferencia os imbecis dos sensatos (TTP XVI p. 235). Em suma,

o que vive segundo o instinto se iguala ao que vive segundo a razão, e ambos se

igualam aos demais seres da natureza quando a questão é o esforço para

perseverarem no ser. Tudo isso leva Espinosa a concluir que "O direito natural de cada

homem determina-se, portanto, não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência

[sed cupiditate & potentia determinatur G III p.190]." (TTP XVI p. 235).

Muitos elementos essenciais da teoria do direito espinosana estão

apresentados nestas passagens. E eles se aproximam sobremaneira dos elementos da

teoria dos afetos presentes na Ética - eis uma hipótese, a ser desdobrada.

Com efeito, no Tratado Teológico-político, pelas passagens acima,

fica claro o uso de um vocabulário presente na Ética III. Com o objetivo de comprovar a

hipótese, tomo alguns termos das passagens acima citadas diretamente ou por

paráfrase: "[...] regras da natureza de cada indivíduo [...]" (TTP XVI p. 234); "[...] agir de

uma certa maneira." (TTP XVI 234); "[...] que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja

em si, por perseverar no seu estado [...]" (TTP XVI p. 235); "O direito natural de cada

homem determina-se, portanto, não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência."

(TTP XVI p. 235 - grifos meus).

Tal rol de conceitos está presente - e, poder-se-ia dizer, é nuclear - na

parte III da Ética. De fato, como já visto no capítulo 1 mais demoradamente, Espinosa

faz, na Ética III, as afirmações a seguir descritas sobre o tema do desejo, do esforço e

da variação da potência do homem. "Cada coisa esforça-se [unaquaeque res], tanto

quanto está em si [quantum in se est], por perseverar em seu ser [in suo esse

perseverare conatur]." (E III P 6 p. 173). Por sua vez, a Proposição 7 define este esforço:

"O esforço [conatus] pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada

mais é do que sua essência atual." (E III P 7 p. 175). Nas definições dos afetos, por seu

turno, este vocabulário fica ainda mais próximo ao do Teológico-político. Na definição

1, Espinosa afirma sobre o desejo: "O desejo é a própria essência do homem, enquanto

esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si

própria, a agir de alguma maneira" (E III Def af 1 p. 237). E, na explicação a esta

definição, escreve: "Compreendo [...] pelo nome de desejo todos os esforços

[conatus], todos os impulsos [impetus], apetites [appetitus] e volições [volitiones] do

homem, que variam de acordo com seu variável estado" (E III Def af 1 Explic p. 239).

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Ora, no Teológio-político, como citado acima, o desejo foi definido

como aquilo que determina o direito natural de cada homem. Isto é, o direito natural

de cada homem, como afirmou Espinosa, "[...] determina-se [...] não pela reta razão,

mas pelo desejo e pela potência." (TTP XVI p. 235 - grifo meu). Assim, pela definição de

desejo acima dada na Ética, pode-se concluir que aquilo que determina o direito

natural é o desejo, termo sinônimo a conatus, impulso, apetite, volição. O desejo foi

definido como sendo "[...] a própria essência do homem [...]" (E III Def Af 1 p. 237).

Mas não apenas. Espinosa complementa, como citado acima: "[...] enquanto esta é

concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria,

a agir de alguma maneira." (E III Def Af 1 p. 237). Assim, Espinosa parece sustentar, em

ambas as obras, as seguintes posições: (a) O direito natural de cada homem é

determinado pelo desejo e pela potência; (b) o desejo é o mesmo que apetite,

vontade, impulso, conatus; (c) o desejo, por seu turno, é a própria essência do homem;

(d) tal essência é desejo enquanto é determinada, por sua vez, por uma dada afecção

de si mesma a agir de alguma maneira.

Aprofundarei estas teses a seguir.

O desejo, como já visto no item d.3 do capítulo 1, fora inicialmente

definido no Escólio da Proposição 9 da Ética III, no mesmo sentido retomado na

definição 1 dos afetos. Mas o que interessa a esta parte da argumentação é apontar a

seguinte tese espinosana: o desejo é considerado um afeto primário (E III P 11 Esc p.

179), assim como a alegria e a tristeza. A alegria, como já analisado, é apenas uma

transição [transitio] para um estado de maior potência, uma transição do desejo para

mais, até um limite máximo, ao passo que a tristeza é uma transição para um estado

de menor perfeição ou potência, até um limite mínimo144 (E III Def af 2, 3 p. 239).

Limite máximo e limite mínimo em que a coisa singular deixa de ser o que é, isto é,

deixa de ter certa e determinada disposição de movimento e repouso e de constituição

de partes para manter o seu ser. Digo perfeição ou potência na medida em que

aumento da perfeição é o mesmo que aumento de realidade (E II Def 6 p. 81), e a

realidade é o ser da substância (E I P 10 Esc p. 23). Ora, o ser da substância é o mesmo

que potência: "É [...] evidente que a natureza, considerada em absoluto, tem direito a

144

Para a questão de um limite máximo e mínimo da potência, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 186.

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tudo o que está em seu poder, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se

estende a sua potência, pois a potência da natureza é a própria potência de Deus

[naturae enim potentia ipsa Dei potentia est G III p. 189]." (TTP XVI p. 235). Se o desejo

é a transição da potência do homem, de um mais a um menos e vice-versa, até um

limiar máximo e mínimo, é nesse sentido, ao que indicam os textos, que o desejo

determina o direito natural de cada homem (TTP XVI p. 235). Por isso, talvez, Espinosa

use as expressões "pelo desejo e pela potência" (TTP XVI p. 235) ao dizer que "pelo

desejo e pela potência" se determina o direito natural de cada homem. De fato, sendo

o desejo o afeto definidor da essência do homem - enquanto esta é determinada pelas

afecções de si mesma -, sua transição é aumento ou diminuição da potência mesma da

essência de cada homem. Em uma palavra: a transição do desejo é alegria, se há

aumento do desejo, ou tristeza, se há diminuição do desejo. Some-se a isto a tese

espinosana da identidade entre desejo, volição, impulso e conatus. E, outro ponto,

ainda desdobrando os itens 'a', 'b', 'c', 'd' do parágrafo anterior, o agir ou padecer do

homem decorre do desejo determinado pelas afecções da sua essência mesma, sejam

tais afecções advindas dos encontros fortuitos ou, por outro lado, de uma causa

adequada - um conhecimento adequado do bom -, conhecimento que também gera

um afeto e, portanto, é uma afecção do corpo145.

Parece claro, pelo que se argumentou até este momento, que o

conceito de direito é mais amplo que o conceito de afetos. Afetos, ou seja, desejo, de

um lado, e desejo em forma de alegria e tristeza, como transitio de um mais a um

menos e vice-versa, de outro. Com efeito, o direito é a própria realidade da natureza

inteira, é a potência mesma da substância (TTP XVI p. 234). Mas a realidade do direito

natural no que se refere aos homens se dá afetivamente, como advindo da

determinação do desejo, o qual, para os homens, é variação de potência dentro de um

limiar mínimo e máximo. Nesse ponto, ao que indicam os textos, o tema do direito

natural dos homens encontra o tema dos afetos dos homens146.

145

Ver item (i) do capítulo 1 - sobre a questão do conhecimento do bom como gerador, simultaneamente, de um afeto alegre e, por consequência, de um aumento da potência. 146

Diogo Pires Aurélio elabora tese próxima a esta, porém focando a questão da imaginação como uma das formas do conhecimento. Ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 116, onde diz: "O desejo é o principal dos afetos, entendendo-se por afeto a variação de potência mercê das afecções". Afirma, ainda, o autor: "A Parte III da Ética constituirá o momento em que a teoria da imaginação e a teoria do conatus se vão cruzar" (p.

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Procurei mostrar, assim, como as passagens citadas no Teológico-

político, acima analisadas, levam à constatação da existência de uma afinidade

conceitual densa entre ambos os textos - Ética e Teológico-político -, e,

especificamente, entre o capítulo XVI deste e a parte III daquela. Portanto, por esta

leitura, o direito natural dos homens é conceito ligado ao de afetos humanos.

Curiosamente, a palavra jus (direito), no que se refere à Ética,

aparece, pela primeira vez, no Escólio da Proposição 3 da Ética II (E II P 3 Esc p. 83),

mas lá está para explicitar uma tese que será combatida por Espinosa, a saber, a

posição do vulgo quanto ao conceito de Deus como tendo direito sobre todas as

coisas, o que traria, por consequência, às coisas, a contingência, visto que Deus, por

meio de milagres, poderia intervir a qualquer momento no mundo criado. Após esta

passagem, a expressão direito [jus] aparece apenas na parte IV da Ética, não havendo

qualquer menção ao termo na parte III, ainda que haja o uso, por Espinosa, da

expressão potência (por exemplo, em E III P 7 Dem p.175), que é sinônimo de direito

para o autor. Tal ausência implica que não há qualquer relação entre direito e a parte

III da Ética, a qual trata dos afetos dos homens?

Minha resposta é pela negativa. Ou seja, de acordo com os

argumentos levantados acima, há relação entre o conceito de direito e a parte III da

Ética, ainda que a palavra jus (direito) não esteja presente na parte III. É certo, como

visto, que o conceito de direito é mais amplo que o conceito de afeto. A potência da

natureza como um todo é o direito da natureza como um todo, isto é, a potência da

natureza inteira é o direito de um ponto de vista absoluto. Mas o direito, no mundo

dos homens, se manifesta como variação da potência do desejo, como alegria ou

tristeza, pois a variação afetiva é a variação da potência e esta é sinônimo de direito147

(TTP XVI pp. 234-235).

222). E, no mesmo sentido: "Há, em resumo, a cada afecção, uma variação do conatus, um pathos que tanto pode ser passional, no sentido cartesiano, e implicar uma limitação do esforço para perseverar no ser, como representar um acréscimo da potência com que o indivíduo se afirma" (p. 222). 147

Com a mesma posição está: JAQUET, Chantal. L'unité du corps et de l'esprit - affects, actions et passions chez Spinoza. Paris: PUF, 2004; Cito a tradução: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Sobre os afetos como transição de potência, a autora escreve: “Os afetos, por conseguinte, são todos por natureza estados de transição da potência” p. 138. Mas a autora vai mais longe e trabalha, na sequência, a questão do limiar, quando se chega à questão da beatitude, tema da Ética V. Este tema não será trabalhado nesta tese, entretanto, por fugir de seu objeto. Isto é, o tema de saber se a beatitude é um limite ou ainda um afeto e,

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Antes de tratar do tema de como se entrelaçam os conceitos de

direito e afetos na relação entre a Ética III e o Político, o que farei a seguir, desenvolvo

uma breve digressão para mostrar outro ponto de distância entre Hobbes e Espinosa

no que se refere ao conceito de direito natural. Com as definições e aproximações

desenvolvidas até este momento, será clara esta nova distância entre os autores. De

fato, como mostrei ainda neste item, Hobbes e Espinosa conceituam o direito natural

dos homens como potência, ainda que com as diferenças de fundo já apontadas. Pois

talvez, dadas as definições acima, se possa dizer que o conceito espinosano de direito

natural, no que se refere aos homens, é mais amplo que o de Hobbes. Ou melhor, a

compreensão do conceito em Espinosa implica entender que sua definição de direito

natural, quando se trata dos homens como coisas singulares, é mais larga ou com

consequências mais amplas, inclusive para o teor da filosofia política formulada por

ambos. Com efeito, como apontado nas análises iniciais deste item (a), em Hobbes o

movimento vital tem como estratégia para sua conservação o movimento animal

(Leviatã I 6 p. 57), e o direito natural é o exercício desse poder de conservação da vida

(Leviatã I 14 p. 113). A vontade e todas as manifestações de cada homem visam, no

limite, à conservação do bios, da faceta fisiológica do homem em face das ameaças e

das demais potências. Espinosa não se contentaria com esta definição, pois os afetos

portanto, uma transição de potência. Com tese no mesmo sentido, ou seja, dos afetos como transitio da potência, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, especialmente 3ª parte, pp. 179-181. Deleuze diz: "O finito não é então nem substancial nem qualitativo. Mas ele também não é aparência: ele é modal, isto é, quantitativo" (tradução minha - p. 181). Ou seja, o finito - no que se incluem os homens -, é uma quantidade certa e determinada de potência, a variar em função das causas externas ou internas que aumentem ou diminuam sua potência. Ainda, do mesmo autor, sobre a variação da potência e sua relação com os afetos e as ideias: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Diz: “Em outros termos, há uma variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumento-diminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem” (p. 26); “e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afeto (affectus), ao mesmo tempo, em sua correlação com as ideias e sua diferença de natureza com as ideias” (p. 25-26). Sobre a gênese do direito natural humano como advindo das relações cruzadas de afetos entre os homens, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008. Para o autor, a gênese consolidada do direito natural humano se dá no cruzamento de operações de afetos desencadeados por relações circunstanciais entre homens (p. 293). No mesmo sentido dos afetos como transição de potência, ver: RAMOND, Charles. Vocabulário de Espinosa. Tradução de Claudia Berliner. Revisão de Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Sobre a relação forte entre afetos e potência: “Os afetos são, pois, os nomes das constantes flutuações, para mais ou para menos, de nossa potência”. (p. 19).

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de alegria estão ligados ao seu conceito de potência dos conatus individuais humanos,

como mostrei acima ao aproximar a Ética III do Teológico-político. Para se ter a

dimensão do contraste num passar d'olhos, pode-se afirmar que Espinosa tem

exigências mais largas para o seu conceito de direito natural. Exigências mais largas, ou

seja, para ele, o direito natural humano não é mera preservação do bios, mas tem uma

dimensão para além da conservação animal e da circulação do sangue, como já

apontei no item d.2 do capítulo 1, ao citar o Político (TP V 4 pp. 44-45 e TP V 5 p. 45). A

noção espinosana de autoconservação individual é mais complexa, não se resumindo à

conservação da vida num sentido biológico (circulação do sangue, etc.).

Autoconservação significa busca da afirmação da existência nos bons encontros, isto é,

aqueles que aumentam a potência por meio de afetos alegres passivos - composição -,

e busca da geração máxima de efeitos, por meio da ação (afetos ativos, que também

são afetos alegres). Por isso, como apenas apontei no item d.2 e desenvolverei nos

itens subsequentes deste capítulo, a filosofia política espinosana buscará instituições

que correspondam a esta maior exigência do conceito de direito natural. Não basta,

com efeito, a paz como ausência de guerra e a cidade com súditos inertes, pois não se

terá aí cidade, mas solidão (TP V 4 pp. 44-45). As criações institucionais da cidade

correspondem, para que a cidade seja de fato uma cidade, e não local da solidão, a

uma definição de direito natural que é mais larga e envolve o exercício da potência

individual na sua plenitude. Potência individual em plenitude significa afetos alegres de

esperança e segurança, e não de medo e desespero, como afetos mais

frequentemente capilarizados e cultivados pela cidade e por seus membros148.

Feita a digressão para mostrar mais uma distância conceitual entre

Hobbes e Espinosa quanto ao direito natural dos homens, volto ao tema central deste

item (a). Tratei, até o momento, da relação de proximidade conceitual entre a Ética III

e o Teológico-político. Procurarei mostrar, a seguir, a presença da Ética III no Político,

148

Sigo a interpretação de C. Lazzeri para estas afirmações acerca da maior complexidade do conceito de direito natural humano em Espinosa em relação a Hobbes. Ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998. Cito: "[...] para Hobbes, a autoconservação é a do movimento vital. Para Espinosa, [...] a noção de autoconsevação individual é mais larga e deslocada: ela tem por conteúdo não somente a existência mesma da essência como simples conservação da vida, mas a essência atual ela mesma em seu conteúdo, enquanto ela se esforça por afirmar tudo o que dela se deduz [...]." (p. 137 - tradução minha).

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no que se refere, neste momento, ao tema em análise, isto é, a aproximação entre os

conceitos de afeto e de direito natural.

O Tratado político149, obra inacabada de Espinosa, trata diretamente

do tema direito natural no capítulo 2 (TP II pp. 11-23). No primeiro parágrafo do

Político já fica clara a tese da relação de estreita proximidade conceitual entre as três

obras citadas, afastando qualquer diferença entre os conceitos que as sustentam em

razão de um ou outro termo que poderia eventualmente apontar para a distância

entre as obras. Ou, mais precisamente, não há ruptura ou incompatibilidade entre os

conceitos usados nos três textos. O argumento é o de que Espinosa, já no início deste

capítulo, faz referência ao Teológico-político e à Ética. E o faz para dizer que no

Teológico-político tratou do direito natural e do direito civil, e na Ética explicou os

conceitos de justiça e injustiça, pecado e mérito, bem como tratou da liberdade

humana. E conclui, mostrando tratar de temas já trabalhados nessas duas obras, que

"[...] para que os que leem o presente tratado não tenham o trabalho de ir procurar

noutros aquelas coisas que respeitam mormente a este, proponho-me explicá-las de

novo aqui e demonstrá-las apodidicamente." (TP II 1 p. 11 - grifo meu)150.

O parágrafo terceiro do capítulo explicita a tese presente tanto no

Teológico-político quanto na Ética, ou seja, "A partir [...] do fato de a potência pela

qual existem e operam as coisas naturais ser a mesmíssima potência de Deus,

entendemos facilmente o que é o direito de natureza." (TP II 3 p. 12). Ou seja, tal qual

no Teológico-político (TTP XVI p. 234), a substância é identificada à potência de um

ponto de vista absoluto, ou seja, ao direito da natureza como um todo. É daí, dada a

imanência da substância e de tudo que há, que Espinosa extrairá o conceito de direito

natural presente no Político.

A tese da imanência da substância, defendida na Ética I, fundamento

de todas as demais partes da Ética, e presente também no Teológico-político, está

também presente no Político, e com os mesmos traços conceituais.

Não por acaso, portanto, Espinosa, no parágrafo 4 do capítulo ora em

análise, definirá direito de natureza da seguinte forma: "[...] por direito de natureza

149

Espinosa o escreveu entre 1676 e 1677, portanto depois de finda a Ética. Ver: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. CXXIX a CXXXIII. 150

A Ética é citada explicitamente no Político em: TP I 5 p. 08; TP II 1 p. 11; TP II 24 p. 23; TP VII 6 p. 68.

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entendo as próprias leis ou regras [leges seu regulas G III p. 277] da natureza segundo

as quais todas as coisas são feitas, isto é [hoc est], a própria potência da natureza [...]."

(TP II 3 p.12). O termo hoc est iguala os conceitos de 'leis ou regras da natureza' ao de

'a própria potência da natureza'. Espinosa entende, portanto, que as leis da natureza

são a própria maneira de expressão da potência da natureza segundo uma causalidade

que não é aleatória, mas obedece à causalidade necessária de autoprodução da

natureza mesma. E Espinosa continua a definição: "[...] a própria potência da natureza,

e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo,

estende-se até onde se estende a sua potência." (TP II 3 p. 12). Na mesma chave

conceitual da Ética e do Teológico-político, Espinosa identifica o conceito de direito

natural ao conceito de potência, e a fonte deste direito à substância em seu exercício

de autoprodução constante do real. Portanto, tal qual nas outras obras, Espinosa

mantém, nesta última, a tese da amplitude do direito natural, enquanto potência,

como equivalente à potência da natureza como um todo.

Sendo cada indivíduo, humano ou não, modo finito da e na natureza,

Espinosa pôde dizer, como indicado na última citação, acima, que o direito natural de

cada indivíduo assim é em razão de ser este expressão da imanência da natureza: "[...]

e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo

[...]." (TP II 3 p. 12), disse Espinosa, equivalem à sua potência.

O parágrafo seguinte aproxima o Político da Ética III. Espinosa, que

até então falara do direito de natureza do ponto de vista da substância, e depois do

ponto de vista dos indivíduos na natureza naturada, sejam eles humanos ou não,

passa, neste parágrafo, a tratar dos homens. E o faz estabelecendo uma dicotomia. Diz

que se a natureza humana fosse tal que os homens se conduzissem unicamente pela

razão, o direito de natureza seria determinado exclusivamente pela potência da razão

(TP II 5 p. 12), que gera concórdia necessariamente151. O autor mostra, nessa

passagem, no mesmo sentido do que ficou explicitado no item (i) do capítulo 1, que a

razão é afeto simultaneamente, uma vez que a expressão usada é "só pela potência da

razão" [sola rationis potentia determinaretur] G III p. 277 (TP II 3 p. 12). Nesse mesmo

sentido, dirá na sequência, "Reconheço, sem dúvida, que aqueles desejos que não

nascem da razão não são tanto ações como paixões humanas." (TP II 5 p. 13 - grifo 151

Como visto no item (i) do capítulo 1.

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meu). Isto é, no mesmo sentido da Ética152, da razão nascem desejos, ou mais

precisamente, afetos ativos ou ações. Porém, diz Espinosa, mostrando agora o outro

lado da dicotomia acima referida, tal potência da razão não tem lugar com mais

frequência que o "desejo cego" (TP II 3 p. 12). Afirma:

Porém os homens são conduzidos mais pelo desejo cego [caeca cupiditate - G III p. 277] do que pela razão, e por conseguinte a sua potência ou direito natural deve definir-se não pela razão, mas por qualquer apetite [appetitu] pelo qual eles são determinados a agir e com o qual se esforçam por conservar-se. (TP II 5 pp. 12-13).

A mesma tese presente em várias passagens da Ética III, a de que os

homens são mais arrastados pelos afetos do que conduzidos pela razão, a qual geraria

um afeto adequado, uma ação, está presente nestas passagens.

A ligação entre os conceitos de direito e afetos fica ainda mais clara,

agora na análise do Político, quando Espinosa, na sequência da argumentação, afirma:

Mas uma vez que estamos aqui a tratar da potência ou direito universal da natureza, não podemos admitir nenhuma diferença entre os desejos que em nós são gerados pela razão e os que são gerados por outras causas, pois tanto estes como aqueles são efeitos da natureza e explicam a força natural pela qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. (TP II 5 p. 13).

Analiso esta passagem fundamental, ligando-a à Ética III e seus

conceitos. Espinosa, num primeiro movimento do texto, identifica direito universal da

natureza e potência e afirma que é este o tema que está sendo tratado no Capítulo II

do Político. Assim, uma consequência, com base no que fora dito, é retirada, a saber,

não há diferença "entre os desejos" que "em nós" são gerados pela razão e os gerados

por outras causas. Primeiro ponto: do tema do direito, mais universal, próprio de tudo

o que há, da natureza mesma e de sua potência, Espinosa vai ao tema do desejo, típico

dos homens, e definido, como já visto, na Ética III (E III P 9 Esc p. 177). Tais desejos,

escreve Espinosa, são gerados "em nós" (TP II 5 p. 13). Ou seja, é dos homens que

Espinosa fala. E tais desejos ou são gerados pela razão, remetendo ao conceito de

ação, tratado na Ética III (E III P 58 e P 58 Dem p. 235; também E III D 3 Explic p. 163),

ou são gerados "por outras causas" (TP II 5 p. 13), a saber, as paixões, tema tratado em

toda a Ética III, e conceituado especificamente na Definição 3 e em sua explicação (E III

D 3 e Explic p. 163). Segundo ponto: o desejo do homem, seja ele determinado pela

razão, seja ele determinado por causas externas, é, estruturalmente, desejo, ou seja,

potência de cada homem, seja ele sábio, conduzido pela razão, ou ignorante, 152

Ver item (i) do capítulo 1.

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conduzido pelas paixões. Terceiro ponto do excerto: tais desejos são efeitos da

natureza, uma vez que os homens são parte da natureza, modos finitos da e na

natureza. E, ademais, tais desejos, diz Espinosa, explicam "[...] a força natural pela qual

o homem se esforça por perseverar no seu ser." (TP II 5 p. 13; ver também TP II 7 p.

14)153. Ora, está Espinosa remetendo o leitor, aqui, explicitamente à Proposição 7 da

Ética III, na qual fora definido o conceito de conatus (E III P 7 p. 175).

A conclusão a que a análise dos textos das três obras remete é a de

que os conceitos de direito e de afetos são interligados. Ainda que o termo jus não

apareça diretamente no corpo do texto da Ética III, os conceitos desta parte da Ética

estão presentes tanto no Teológico-político quanto no Político, como procurei mostrar

na argumentação acima. A potência ou direito natural, quando se está a tratar dos

homens, depende de como se determina o desejo, isto é, um dos afetos primários (E III

P 11 Esc p. 179), e sua transição para mais potência (que é o mesmo que alegria), ou

para menos potência (que é o mesmo que tristeza).

(b) Socialidade, cidade: o papel dos afetos metus, spes, desperatio e securitas

No item (e) do capítulo 1, procurei mostrar a lógica de

funcionamento dos pares afetivos esperança-medo e segurança-desespero. São afetos

próprios aos homens na medida em que estes estão, na natureza naturada,

submetidos à duração. São, igualmente, afetos que dependem dos conceitos de

memória, passado, futuro, contingência como experiência mental-imaginativa

(psíquica) dos homens e dúvida como conceito decorrente do desconhecimento da

totalidade da rede causal, por parte dos homens, por serem modos finitos. Tal situação

dos homens, em ato, na existência, faz que a alegria e a tristeza se manifestem em

forma de medo e esperança, os quais, quando cessada a dúvida quanto a evento 153

Veja-se que aqui Espinosa usa o mesmo termo da Ética, isto é, perseverar em seu ser, e não em seu estado, termo usado no TTP (TTP XVI p. 235; G III p. 189). Entendo, como já explicado em nota anterior (nota 143), que tais expressões não alteram em nada a tese de que nas três obras Espinosa fala de um mesmo conceito. O principal argumento que tenho para defender tal posição já foi indicado neste item (a) do capítulo 2, e consiste em dizer que no TP, obra final de Espinosa, já no primeiro parágrafo do capítulo II, o autor faz referência à Ética e ao Teológico-político como tendo as mesmas teses que serão resumidas na sequência do Político, para que o leitor não tenha que recorrer aos conceitos que nas outras obras estão explicitados (TP II 1 p. 11). Ora, por ser o TP a última obra, e por fazer Espinosa referência explícita às duas obras, entendo que não é um mero deslize vocabular - o uso do termo 'perseverar em seu estado' no TTP, e do termo 'perseverar em seu ser' no TP e Ética - que invalida a semelhança conceitual entre as três obras.

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futuro ou passado, se transmutam em afetos mais estáveis, a saber, desespero e

segurança.

Naquela ocasião, ao tratar dos afetos acima citados, indiquei que

teriam importância para a constituição e manutenção da cidade. Teriam, assim,

importância para a política e para a formação das relações sociais entre os homens, as

quais forjam a cidade como corpo inteiro do imperium (TP III 1 p. 25). Procurarei

mostrar, neste item (b) do capítulo 2, como tais afetos deságuam na política e qual sua

importância para o conceito de política que Espinosa elabora. Outro ponto, a ser

trabalhado ainda neste item, consiste em entender como os conceitos de cidade e de

cidadão estão proximamente ligados à lógica de funcionamento de tais afetos. O que

está por trás dessa argumentação é o que já foi apontado neste capítulo, no item

acima, ou seja, os conceitos espinosanos de socialidade e de civitas - e, portanto, o

conceito espinosano de política - estão ambos fundados na maneira afetiva como os

homens se relacionam. É a política - ou, mais precisamente, a cidade e suas

instituições, forjadas pelas relações afetivas entre os homens - que será o critério do

exercício do direito natural de cada homem como algo efetivo ou como mera opinião

(TP II 15 p.19). Outra tese espinosana - talvez decorrente da tese acima - que tem

relação estreita com os conceitos de esperança-medo e com a instituição da política

em Espinosa é aquela estabelecida no Teológico-político e depois retomada da Ética IV,

a saber, a tese segundo a qual haveria uma "[...] lei universal da natureza humana [...]"

(TTP XVI p. 237) que funda a socialidade e a cidade. O conteúdo desta lei, sua

"prescrição" 154, seria a de que ninguém despreza o que considera ser bom, a não ser

na esperança de um bem maior ou por medo de um mal maior (TTP XVI p. 237). Ou,

para usar as palavras de Espinosa, "Entre dois bens, escolhe-se aquele que se julga ser

o maior, e entre dois males, o que pareça menor." (TTP XVI p. 237).

O intuito desta seção (b) será o de mostrar como tais afetos, e tal lei

universal a eles ligada, na hipótese deste trabalho, estão intimamente relacionados ao

154

Vê-se aqui que a lei de natureza de que fala Espinosa não é um preceito da razão, como em Hobbes (Leviatã I 14-15 pp. 113-133), tese que também os distancia. Afirma Hobbes que "Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la." (Leviatã I 14 p. 113).

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funcionamento e instituição do campo político. É claro, entretanto, que o arremate da

rede conceitual envolvida no estudo da política em Espinosa depende de outros

conceitos, os quais se interligam aos destes afetos e formam uma espécie de

arquitetura da política no autor. Refiro-me aos conceitos de multitudo, soberania,

imitação afetiva, nação e imperium, de um lado, e, de outro, ao direito de resistir (isto

é, ao medo do soberano da cidade em face dos súditos-cidadãos) e à importante

diferença entre paz como fortaleza de ânimo ou como mera ausência de guerra. Tais

temas serão tratados a seguir, nos itens que serão desdobrados a partir dos conceitos

que serão trabalhados nesta seção.

***

Como e para quê surge a cidade e a política? Em Espinosa, a resposta

não poderá furtar-se à ontologia. Ou, mais precisamente, em razão do imanentismo,

da identificação da substância à natureza e a equiparação destes conceitos ao de

infinito positivo e de potência absoluta, nada, nem mesmo a política, o artifício das

cidades - em Espinosa paradoxalmente natural - e suas instituições, poderão ser

forjados à revelia das leis naturais ou fora da substância155. Este é um ponto que deve

ser levado em conta quando da análise da política, sob pena de se ter uma visão

deformada das teses e argumentos políticos em Espinosa, como fez, por muito tempo,

parte da tradição interpretativa156. Tal posição da política de Espinosa faz que seus

conceitos tenham uma operacionalidade bastante peculiar, o que o coloca como autor

anômalo em face da tradição e em face de seu tempo - talvez, até, em face da

posteridade, ao que indica o recente retorno a suas teses políticas nos últimos anos157.

A começar por um "contratualismo" 158 que apenas se explica como decorrência de

seus conceitos de direito como potência e seres humanos como afetivos. Sem tais

155

Para um esboço do conceito de substância, ver item (c) do capítulo 1. 156

Para uma análise minuciosa e de rigor incomparável acerca das apropriações feitas da obra de Espinosa, bem como sobre as várias correntes de interpretação do espinosismo no correr da história da filosofia, conferir: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 - Parte 1, pp. 113-321. 157

A título de exemplo, ver o excelente livro de ensaios sobre o Tratado Político, que inclui reflexões sobre sua atualidade: JAQUET, C.; SÉVÉRAC, P. et SUHAMY, A. La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008. 158

Tratarei do tema ainda neste capítulo.

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elementos, em Espinosa decorrentes do imanentismo, dificilmente se terá um razoável

entendimento de suas tese políticas. Procurarei mostrar o porquê nas linhas abaixo.

No Teológico-político Espinosa estabelece a lei universal segundo a

qual entre dois bens se escolhe o maior, e entre dois males se escolhe o menor (TTP

XVI p. 237). Tal lei, escreve o autor, "[...] está tão firmemente [firmiter] inscrita na

natureza humana que temos que colocá-la entre aquelas verdades eternas que

ninguém pode ignorar." (TTP XVI p. 237). E Espinosa acrescenta a esta tese um

desdobramento, a saber, que dela resulta que ninguém prometerá renunciar ao direito

que tem sobre todas as coisas, a não ser na esperança de um bem maior ou por medo

de um mal maior (TTP XVI p. 238). Ou seja, somente se tem o direito a tudo no estado

de natureza. Mas tal direito a tudo é uma abstração, uma opinião, como disse

Espinosa, posteriormente, no Político (TP II 15 p. 19). Por conseguinte, a questão que

se coloca é: como tal lei universal faz que, por medo ou esperança, crie-se a situação

que possibilitará, para além da abstração, o exercício do desejo, ou seja, do direito

natural que constitui os homens?

É o que Espinosa explica com clareza no escólio 2 da Proposição 37

da Ética IV, considerado o momento, na Ética, em que o autor trata da cidade e da

política, tema que procurarei desdobrar a seguir.

Em E IV P 37 Esc 2 Espinosa aponta para conceitos da política e os

relaciona explicitamente à referida lei universal e à afetividade dos homens como

fundamento da socialidade. De início, Espinosa afirma que falará sobre o que é o

mérito e o que é o pecado, bem como sobre o justo e o injusto. Para tratar de tais

temas, entretanto, um desvio é proposto. E Espinosa diz que tal desvio é uma espécie

de requisito para o trato do tema do pecado e do mérito - que só existirão laicizados e

como sendo sinônimos de justo e injusto. Que desvio é este? É o momento em que

Espinosa estabelece que falará do estado civil (statu civili) e do estado de natureza

(statu naturali) dos homens. O início do texto afirma que é "[...] pelo direito supremo

da natureza que cada um existe [...]" e é "[...] pelo direito supremo da natureza que

cada um faz o que se segue da necessidade de sua própria natureza." (E IV P 37 Esc 2 p.

309). Aqui o autor apenas resume uma tese que já foi analisada neste trabalho, a

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saber, a de que a substância única, que é equivalente à natureza inteira, é potência, é

direito. Assim, os homens, como modos finitos da substância na natureza naturada,

não poderiam ter outra realidade que a de potências, intensidades de direito natural

advindas da potência absoluta da substância. Trata-se da tese do conatus explícita na

Ética III (E III P 7 p. 175), porém referida, aqui, aos homens, por meio da expressão

'cada um' (unusquisque). Os homens, como coisas singulares, são também esforço,

conatus. É pelo direito, continua Espinosa, que cada um julga o que é bom, o que é

mau, o que é útil. Cada um, cada homem, como intensidade finita do direito e da

potência que expressa, busca o útil pelo que seu desejo dita ser o útil - mesma tese já

expressa na Ética III, quando Espinosa afirma que não há o bom em si, fora do desejo,

mas o esforço em direção à coisa é que é o critério do bom e do útil, "[...] é por nos

esforçarmos por ela [pela coisa], por desejá-la, que a julgamos boa." (E III P 9 Esc p.

177).

Por isso busca e se esforça pelo que ama, e se esforça para se

distanciar do que odeia. Com efeito, pelas definições desses afetos, já analisadas, tudo

que gera no desejo de cada homem seu aumento em intensidade, é considerado algo

que este homem ama. A alegria acompanhada (concomitante) à ideia de uma causa

exterior é a definição mesma de amor (E III Def af 6 p. 241). E o raciocínio inverso

aponta para a tristeza e para o ódio - este sendo definido como a tristeza

acompanhada da ideia de uma causa exterior (E III Def af 7 p. 243). Se os homens se

esforçam pelo útil, buscam aproximar-se do que amam e repudiar o que odeiam.

Questão de direito, questão de preservação da potência, algo do que nenhum humano

pode fugir, ainda que possa fazê-lo com altos graus de equívoco (TTP XVI p. 237).

Espinosa faz na sequência uma ressalva, que simultaneamente

explicita a importância da razão e aponta para seu uso escasso pelos homens. De fato,

como já visto no capítulo 1 (item (i)), os afetos decorrentes do uso da razão, que faz

que os homens tenham acesso, por meio de noções comuns, às propriedades comuns

das coisas, somente levariam à concórdia. Esta é a tese repisada em E IV P 35 Cor 1 (p.

303). Se assim fosse, todos poderiam exercer sua potência sem a intermediação da

política. Cada homem respeitaria o direito do outro sem a necessidade de coações ou

ameaças. Mas Espinosa é claro quanto à pouca frequência dessa situação (E IV P 4 Cor

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p. 275), e aponta para esta tese também no Político (TP I 7 p. 10; TP II 5 p. 12; TP VI 1

p. 47; TP X 9 p. 135). Ou seja, os homens estão, em geral, submetidos aos afetos, não

sob a conduta da razão, mas determinados por paixões. Importa lembrar, neste ponto

da argumentação, que não entendo que haja, numa concepção que seria uma espécie

de platonização de Espinosa, uma escalada de um estado de não saber a um estado de

pleno uso da razão159. Tudo ocorre em simultâneo na mente de cada homem. De fato,

cada homem pode ter uma imagem do sol como sendo pequeno e girando ao redor da

terra - um saber imaginativo - e, simultaneamente, por um esforço da mente, ter

acesso à verdade segundo a qual o sol está parado e é muito maior que a terra. Um

saber não exclui o outro, isto é, o acesso a noções comuns não impede que percepções

equívocas do mundo se apresentem a cada homem, por meio do conhecimento

imaginativo. E toda esta relação com o mundo, seja por meio de ações ou de paixões -

saber verdadeiro ou imagem, respectivamente -, leva a que os homens tenham sua

potência aumentada ou diminuída, pois geram no homem afetos de alegria ou de

tristeza - tema objeto do item (a) do presente capítulo.

Volto ao texto em análise. Espinosa aponta que os homens, em geral,

são contrários uns aos outros, arrastados pelos afetos que os colocam em conflito.

Esta tese já fora indicada na Ética III, ao final da última proposição, quando Espinosa

afirmara que "[...] fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas

maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de

um lado para o outro." (E III P 59 Esc p. 237). No entanto, afirma também que o que os

homens precisam é de ajuda mútua. Mas como conciliar esta situação de

contrariedade afetiva, predominante entre os homens, e a necessidade de ajuda

mútua para um exercício minimamente eficaz do direito natural, ou seja, para que este

não seja mera opinião, como afirma no Político (TP II 15 p. 19)?

A chave para isto é a política, que logo entrará explicitamente no

texto ora em análise. Mas a entrada da política, à revelia da tradição, será por meio

não da figura do contrato, mas pelo exercício da referida lei universal de escolha entre 159

Sobre este ponto, sigo a tese de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 81-196. A autora afirma: "Em outras palavras, todos os homens são racionais, mas usam a razão de maneira intermitente, desordenada, mesclada aos dados oferecidos pela imaginação" (p. 180).

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dois males o menor, e entre dois bens o maior, sendo que o critério do bom e do mau,

nestes casos, somente poderá ser o desejo de cada homem quanto ao útil. E o útil, em

Espinosa, não vem de deliberações mentais de uma razão pura e de uma vontade livre,

de leis da natureza que são prescrições da razão (Leviatã I 14 p. 113), de contratos,

mas decorre do que chamarei de 'cálculo afetivo', que pouco tem de racional. E como

fazer que os homens, que precisam de ajuda mútua, vivam em concórdia?

O texto do escólio ora em análise o vai mostrar. Mas inicio esse

ponto por uma passagem do Teológico-político, na qual Espinosa parece apontar para

a mesma tese que será desdobrada em E IV P 37 Esc 2. E, mesmo usando o termo

'pacto' (pactum G III p. 191), seu conceito terá relação explícita com o campo afetivo,

na mesma linha que será explicitada na Ética IV, no escólio 2 da P 37 e, depois, no

Político, como mostrarei nos itens a seguir, ainda neste capítulo 2160. Pergunta

Espinosa no Teológico-político: "De que modo [...] deve esse pacto ser estipulado, para

que seja ratificado e duradouro?" (TTP XVI p. 237). É pela lei universal, já referida

acima, segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior, e entre dois males, o menor,

que tal pacto se funda. E o autor completa a tese ao escrever que tal bem ou mal é

aquele que, a quem escolhe, parece ser o melhor - pois as coisas "[...] podem não ser

necessariamente assim como ele julga." (TTP XVI p. 237). Ao final da argumentação

desse ponto, Espinosa ainda sublinha que somente se pode concluir de tudo isso que

"[...] um pacto não pode ter nenhuma força [pactum nulla vim abere posse G III p. 192]

a não ser em função de sua utilidade [...]." (TTP XVI p. 238). E sua utilidade se mede

não em razão de promessas a serem cumpridas, mas em razão da lei universal referida,

160

Muitos comentadores entendem que há mudança conceitual entre o TTP, de um lado, e a Ética e o Político, de outro, sobretudo quanto à questão do pacto. Entendem que lá Espinosa ainda usava um vocabulário próximo ao de Hobbes; que seria, em suma, no TTP, um contratualista e que abandonaria as teses do contratualismo nos textos posteriores. Ver, concordando com a tese da mudança conceitual no interior da obra de Espinosa, por exemplo: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 176, p. 184. Afirma Lazzeri, por outro lado, que mesmo no TTP o contratualismo de Espinosa, ainda que próximo ao de Hobbes, ainda assim é muito pouco ortodoxo (p. 284). Penso que Espinosa não opera esta mudança conceitual entre os textos referidos (TTP, de um lado, e Ética e Político, de outro). Entendo que o fato de Espinosa não ter, ainda, o desenvolvimento das teses da Ética III quando da redação do TTP, sobretudo a de imitatio afetiva - explicação de Lazzeri para a diferença entre as obras; Ibid. p.284 - não implica que as teses e conceitos do TTP sejam diferentes daqueles da referida parte da Ética, bem como entendo que não diferem em face do Político. Pode haver diferença no uso do vocabulário - uso do termo pacto no TTP -, mas não de forma que se possa dizer que Espinosa mudou seus conceitos de uma obra a outra. É o que procuro sustentar neste item e em outras notas. É bom lembrar que Espinosa faz referência, no TP, às teses do TTP e às da Ética, pressupondo-as e não fazendo a elas qualquer reparo.

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a saber, a de que o útil é entre dois males o menor e entre dos bens o maior. Ou, nas

palavras de Espinosa, como resultante desta lei universal tão firmemente inscrita na

natureza humana, "[...] que só por malícia alguém prometerá renunciar ao direito que

tem sobre todas as coisas, e que só por medo de um mal maior ou na esperança de um

maior bem alguém cumprirá tais promessas." (TTP XVI p. 238). Ou seja, o conceito de

pacto, no autor, não passa pelo uso puro da razão e do cálculo, mas se interpreta por

uma espécie de cálculo afetivo cuja explicação está na lógica dos afetos, não na

deliberação racional. Espinosa não pode ser visto como exemplar da tradição

contratualista, assim, sem mais, a não ser que se dê a este termo seus novos sentidos,

que se o considere reconceitualizado161.

Mas volto, após este pequeno desvio - cujo objetivo foi mostrar, de

um lado, a existência da mesma tese da Ética IV no Teológico-político, e, de outro, que

o "contratualismo" de Espinosa tem suas peculiaridades -, ao texto do escólio sob

análise. Agora, espero tornar clara a semelhança entre este texto do escólio e as

passagens do capítulo XVI do Teológico-político acima citadas e, ao mesmo tempo,

mostrar a lei natural que leva à cidade, lei esta que não é senão resultado da lógica dos

afetos, ou melhor, lei que estrutura a lógica dos afetos.

Após escrever, em E IV P 37 Esc 2, que os homens, não obstante

mutuamente nocivos, precisam de ajuda mútua, Espinosa analisará como isso pode vir 161

Aliás, o que Espinosa faz com frequência, se considerarmos, em seu sistema, por exemplo, os conceitos de: (a) liberdade, entendida como livre-necessidade; (b) Deus, entendido como substância única; (c) direito, entendido como potência, e não como dever-ser (lei posta) ou faculdade (direito subjetivo); (d) homem, entendido como intensidade ou modificação de dois dos atributos da substância (o pensamento e a extensão); etc.. Ou seja, Espinosa usa os mesmos termos da tradição, como é o caso ora analisado, de 'pacto' ou 'contrato', mas lhes dá uma reconfiguração tal que dificilmente se pode dizer que são a mesma coisa em outros sistemas filosóficos e no de Espinosa. Sobre a reconceitualização de termos da tradição e do senso comum por Espinosa, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 17 e 18. Relevante dizer que, para Campos, alguns estudiosos de Espinosa vêm aí não uma reconceitualização de termos da tradição, mas ambiguidade terminológica de Espinosa. Entendo, no mesmo sentido de Campos e de outros comentadores, que a tese da ambiguidade terminológica em Espinosa não se sustenta, havendo, isto sim, reconfiguração de sentidos dos termos usados pelo autor, os quais são colhidos, é claro, no vocabulário da tradição à qual pertence, mas ressignificados. Outras referências para a questão da revolução semântica: Walther, M. Die Transformation des Naturrecht in der Rechtsphilosophie Spinozas, 1985, pp. 73-74 - citado por CAMPOS, André Santos, Ibid., p. 19. Mesma tese de Blanco-Echauri, J.. Las concepciones Del Jus Naturale o los fundamentos de la politica em Grocio, Hobbes y Espinosa, 2003, p. 121. Citado por CAMPOS, André Santos, Ibid., p. 19.

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a ocorrer. Para que "[...] vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é

preciso que façam concessões relativamente a seu direito natural [ut iure suo naturali

cedant] e deem-se garantias recíprocas de que nada farão que possa redundar em

prejuízo alheio." (E IV P 37 Esc 2 p. 309). Fazer concessões quanto ao direito natural,

sendo este, nos homens, exercício do desejo de perseverar no ser (conatus), significa

ceder potência a uma instância criada pelos próprios homens, mas sem que estes

venham a perder por completo sua potência, o que significaria que deixariam de ser o

que são, se desnaturariam (TTP XVII p. 250).

Espinosa formula então a questão chave para a política, ao

perguntar, no estilo retórico do escólio, "[...] por qual razão isso pode vir a acontecer

[...]" (E IV P 37 Esc 2), ou seja, como podem os homens, que estão submetidos aos

afetos e, por esta razão, são inconstantes, dar uns aos outros garantias recíprocas (E IV

P 37 Esc 2 pp. 309-311)?

Os fundamentos são buscados na própria Ética (E IV P 7 e E III P 39),

na qual se afirma o que já estava no Teológico-político, em seu capítulo XVI, acima

analisado. Quais são, pois, os fundamentos da política?162 Ou, por outra: se são os

homens afetivos, inconstantes, como se dão garantias recíprocas? Espinosa dirá que é

pela mesma lei universal - já indicada no Teológico-político, e aqui apenas retomada. É

porque "[...] nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e

contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um [unusquisque] se abstém de

causar prejuízo a outro por medo de um prejuízo maior." (E IV P 37 Esc 2 p. 311). E

conclui, logo após, que é com fundamento nessa lei que se poderá estabelecer uma

sociedade.

Portanto, na mesma chave indicada no Teológico-político, em seu

capítulo XVI, Espinosa aponta para o fundamento afetivo da construção social. Apenas

não mais utiliza o vocábulo 'pacto', outrora usado no Teológico-político. O par afetivo

medo-esperança é que está na base da fundação política. E não apenas. Tal par afetivo

é que dá sustentação à continuidade da socialidade e da cidade. Este ponto será

aprofundado na ocasião em que procurarei analisar o conceito de imitação dos afetos,

162

O tema da instituição da política em Espinosa tem sido bastante estudado nos últimos anos, e a bibliografia é vasta. Ver nota a seguir.

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multitudo, e cidade, no item seguinte. Sob esta lei, ou seja, a do medo e da esperança,

afetos em exercício, a cidade se fundará. Mas Espinosa afirmara, anteriormente, que

os homens cedem parte de seu direito natural. Tal cessão, agora se pode afirmar com

mais elementos, não é uma promessa, um contrato163, um pacto formado por

163

Na linha de que Espinosa não é um contratualista no sentido estrito do termo, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196. Chaui vê a gênese da política não na razão, mas no conatus-cupiditas (p. 161) - mesma posição desta tese. No mesmo sentido, a autora afirma, porém em outro texto: CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 133-172. Cito: “Para ele, o direito natural (isto é, a potência para existir e agir que define o conatus) é conservado no e pelo direito civil, que surge exatamente para concretizar a potência natural de cada um. O direito civil e a vida política nascem para fortalecer os conatus individuais que não podem realizar-se satisfatoriamente no estado de natureza ou numa vida pré-política." (p. 165). A posição de BOVE parece ser no mesmo sentido, isto é, da importância dos afetos para a constituição e manutenção da política: BOVE, L, MOREAU, P-F., RAMOND, C., JAQUET, C. Le Traité politique: une radicalisation conceptuelle? In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 27-44, especialmente p. 28 (C.Jaquet entrevista BOVE, RAMOND e MOREAU). Ver, também, para a posição de L. Bove: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Nesse texto, L. Bove contesta a problemática do contrato em Espinosa ao afirmar (fazendo uma suma do argumento do autor) que "Desde o Tratado Teológico-Político, a exploração dessa via indireta [da eficácia do poder soberano, via superstição, para capturar a energia dos conatus e direcioná-la à dominação dos membros do Estado pelo Estado (p. 121)] [...] contesta, de fato, a problemática teórica explícita e voluntarista do contrato, assim como a realidade de uma transferência de direito" p. 122. Também sobre o tema, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 27, p. 95 e seguintes; p. 125. Fala em uma "tensão teórica" no interior do TTP (p. 131). A posição de Matheron passa pelo fundamento afetivo da política, mas o autor continua achando pertinente o uso do termo 'contrato social'. Ver: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, p. 327. Sobre a gênese do Estado, o autor afirma: "Tal é então a gênese do Estado: passagem, não mais da dependência à independência, mas da interdependência flutuante do estado de natureza à interdependência consolidada pela qual a sociedade política pode se definir. Passagem não procurada de início, que não responde a nenhuma intenção, mas que decorre quase mecanicamente da interação cega dos desejos e dos poderes individuais. Passagem cujos momentos sucessivos se resumem no encadeamento seguinte: esboço de cooperação devido ao desdobramento da vida passional inter-humana no estado de natureza - esboço de disciplina coletiva - nascimento do Estado - reforço da disciplina coletiva - reforço da cooperação, etc. ..., em um ciclo indefinido" p. 327. André Santos Campos vê variações do conceito de transferência dentro do próprio TTP, usa o termo pacto para esta obra, mas fala em uma "reactualização do pacto", dizendo que o conceito de transferência em Espinosa tem suas peculiaridades, o que o diferencia de Hobbes. Na mesma linha, em parte, desta tese, afirma que "como a transferência de potência não é total ou absoluta, a afetividade do 'homem inter-ambiental' do 'estado de natureza' é precisamente a mesma do homem 'inter-humano' do 'estado civil', e todo homem, após a formação do pacto, vive conjuntamente com um pé no 'estado de natureza' e com o outro no 'estado civil'" (p. 252). Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 252. Desenvolve a questão da multitudo desdobradamente em pp. 243-292, constituindo o capítulo IV da tese. A posição de A. Negri é a da não existência de contratualismo em Espinosa. Ver: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 155.

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129

palavras, um momento no tempo que não se repete. É algo mais complexo e que

aponta para uma tensão entre potências.

De um lado, a potência de cada um dos homens da comunidade

como intensidade de potência, como direito natural individual. De outro, a potência do

soberano, ao qual cada indivíduo, em razão da esperança de ter o real exercício da

potência individual garantido, dá o direito de punir aquele que viola a norma. O medo

da punição vinda da sociedade civil (sociedade esta que Espinosa chamará de civitas)

faz que os homens não violem o direito natural do outro - por medo da ameaça

representada pela punição da lei da cidade. E isso garante a sua própria liberdade

política, ou seja, o outro também se abstém de violar o direito do próximo e assim

sucessivamente, numa espécie de rede afetiva que envolve os membros da sociedade.

Continua o movimento do texto, porém, ao estabelecer que, para

que este estado de coisas funcione, é preciso que a sociedade "[...] avoque para si

própria o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bom e o mau164

[Bono et malo iudicandi]." (E IV P 37 Esc 2 p. 311). Assim, a sociedade terá o poder, a

potência, advinda da potência dos homens que a compõem, cedida a cada instante na

rede afetiva que tensiona poder da sociedade e poder dos indivíduos. E tal poder se

desdobrará em leis, fundadas na norma de vida comum (communem vivendi rationem

praescribendi). A lei universal de buscar entre os males o menor e entre os bens o

maior é que leva os homens, afetivamente, a ceder o seu direito a um poder soberano.

O medo existente em estados de baixíssima socialidade - estado de natureza - impede

o exercício do direito natural, que é, nesta situação, mera opinião, abstração (TP II 15

p. 19). O cálculo afetivo se funda no medo bruto da morte violenta, da vida bruta, para

citar Hobbes, quando do estado de natureza. Mas não é a razão, como puro cálculo,

que leva à saída desse estado de coisas. Não são as leis de natureza, como o é em

Hobbes (Leviatã I 14 p. 113), que indicam obrigações ao direito natural em exercício

em cada homem e possibilitam o cálculo que leva à paz, com a confecção do Estado

que fará as leis que obrigam in foro externo, com ameaças - pois "[...] os pactos sem a

espada não passam de palavras [...]" (Leviatã I 15 p. 131 e II 17 p. 141). É o medo bruto

do conflito com o outro, no qual o bios está em jogo, que será o primeiro catalisador.

164

Tomaz Tadeu traduz por bem e mal.

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130

Assim, cada homem cede parte de seu direito natural a uma instância com mais poder,

isto é, com mais direito, mas não o faz apenas em um momento específico no tempo, e

não por meio de transferência pelo pacto, do direito natural, a uma persona ficta, a

qual dará unidade, como representante, às vontades difusas (Leviatã II 17 pp. 134-

144).

Em Hobbes, com efeito, a paz advém da transferência do direito

natural de cada membro do corpo político a um poder comum, cuja única maneira de

ser instituído é

[...] conferir toda sua força e poder [de cada homem] a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem, ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas [...], todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. (Leviatã II 17 p. 144).

Conclui Hobbes que isso é "[...] uma verdadeira unidade de todos

eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os

homens, [...]" (Leviatã II 17 p. 144). Assim, em Hobbes, a tese da gênese do Estado

está atrelada aos conceitos de transferência, representação e pessoa. O conceito de

pessoa é definido no capítulo anterior do Leviatã, no qual Hobbes afirma: "Uma pessoa

é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como

representando as palavras ou ações de um outro homem, ou de qualquer outra coisa a

que sejam atribuídas, seja com verdade ou por ficção." (Leviatã I 16 p. 135). E

complementa afirmando que quando tais palavras ou ações são consideradas como

suas próprias, trata-se de pessoa natural, ao passo que "Quando são consideradas

como representando as palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma pessoa

fictícia ou artificial." (Leviatã I 16 p. 135). O conceito de pessoa é a chave para que se

entenda, na filosofia hobbesiana, como o Estado é representante de várias vozes e

vontades e, também, de que maneira age como se se tratasse dos próprios membros

que o criaram através do pacto. A unidade do poder está em que aquele que recebeu

os direitos transferidos, seja um homem ou uma assembleia, pelo pacto, exerce o

poder como re-presentante de cada pessoa que cedeu o direito. Literalmente, como se

estivesse presente em-lugar-de. E o conceito de pessoa é que possibilita esta

passagem do múltiplo das pessoas naturais ao uno da persona artificial. O pacto, por

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131

meio dos conceitos de persona e de transferência, legitima as ações da pessoa

artificial, depositária da soberania 165.

Em Espinosa, diferentemente, este ceder ou transferir direitos é uma

constante na medida em que sempre há, em simultâneo, na mente de cada homem,

por meio da memória, a esperança do exercício humano da vida, por meio de

momentos de alegria e aumento de potência, e o medo das ameaças que a lei comum

estabelece em face de qualquer violação. Portanto a cidade deve projetar um

imaginário de esperança transmutada em outro afeto, a segurança, como já dito em

item anterior (item (e) do capítulo 1) 166.

Em suma, esta construção é cotidiana, constante, na medida em que

os afetos são sempre instáveis e cabe à política da cidade estabilizá-los167. Há, assim,

uma política dos afetos168. A potência do soberano, construída por meio da potência

dos cidadãos cedida, de seu direito natural cedido, é que garante, paradoxalmente, o

exercício do direito natural de cada um169. Esta tensão entre potência do soberano e

potência de cada um, este equilíbrio de potências, é que permite o exercício do desejo,

tornando-o sempre mais intensidade, mais alegria, e nunca menos intensidade ou

tristeza170.

165

Sobre este tema e estas diferenças entre Hobbes e Espinosa, sigo as interpretações de: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 262. Para Lazzeri, a teoria da pessoa artificial, em Hobbes, implica o representante como depositário da soberania. Como isso ocorre? Por uma convenção. No capítulo XVII do Leviatã, segundo Lazzeri, Hobbes soluciona a questão do exercício da soberania combinando a solução do mandato de autorização e sua concepção de unidade da multidão pela unidade do representante da multidão (p. 262). Ver também pp. 248-251. Tudo muito diferente da concepção espinosana, como procuro mostrar no texto da tese. Sobre a eliminação do conceito de representação em Espinosa, ver: Ibid. p. 281. 166

Lazzeri concorda com a tese da gênese e manutenção afetiva do Estado, na mesma linha do presente trabalho. Ver: Ibid. pp. 284-287. 167

Acompanha a tese da transferência cotidiana: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, pp. 295-296. 168

O termo é inspirado em: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998, um dos autores que chamou a atenção para a importância dos afetos na construção da política em Espinosa. 169

Mesma posição de: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 329. 170

Esta tese espinosana já estava presente no TIE 14 p. 11. Ou seja, lá Espinosa já falava da necessidade de construção da sociedade desejável para que o maior número possível de homens possa "alcançar" a felicidade. A virtude como potência e a felicidade como estado de mais alegria são conceitos que se tornarão mais claros e desenvolvidos nas outras obras de Espinosa, principalmente na Ética.

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132

Volto ao texto sob análise. Espinosa dá, assim, a esta sociedade, o

nome de civitas. Uma sociedade (societas) baseada nas leis e no poder de se

conservar, cujos membros Espinosa chama de cidadãos (cives) (E IV P 37 Esc 2 p. 311).

Poder (potestate) de se conservar: Espinosa usa este termo precisamente porque o

poder da cidade, seu direito, é formado pelos direitos naturais de seus membros que

foram e são cedidos ao poder soberano, constituindo-o. Espinosa não usa aqui o termo

multitudo, presente no Político e que será chave para o entendimento mais preciso de

funcionamento do mecanismo de transferência de intensidade de potência desta para

o poder soberano da civitas.

O termo 'consenso de todos' (omnium consensu), ao qual Espinosa se

refere para afirmar, no movimento seguinte do escólio, que no estado de natureza não

há os conceitos de bom e mau, é fundamental para mostrar os limites do poder

soberano, da potência das instituições da cidade, em suma, do que pode fazer o poder

soberano, cujo fundamento ontológico, como visto, é o direito natural de cada homem

que se expressa sob a forma de direito natural coletivo171 da cidade. Este limite do

poder soberano da cidade aparecerá claramente no Político, e será analisado em

momento oportuno, em outro item deste capítulo 2172. O que interessa para este

momento é dizer que no estado de natureza, segundo Espinosa, não se pode falar em

bom e mau. Tais conceitos apenas se referem à sociedade política, a qual define, por

consenso comum, as leis que dirão o que é o justo e o injusto, o pecado e o mérito. E

tais leis serão decididas por consenso, ou, no texto latino, por communi consensu.

171

Sobre a tese do corpo político como sendo o direito natural coletivo, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, especialmente p. 170, em que a autora escreve: "Os homens operam constituindo um indivíduo coletivo ou complexo, a multitudo, e instituem o imperium ou, como lemos no parágrafo 2 do capítulo III do Tratado político, 'o corpo e a mente do poder' [...], dotado de toda potência que seus agentes lhe derem: o imperium é o direito natural comum ou coletivo cuja ação é o ânimo e a mente da massa". 172

Tratei também desse tema - o dos limites do poder da cidade em face dos cidadãos - no item (f) do capítulo 1, cujo título é 'Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política'. Lá também procurei mostrar algo que retomarei pelo viés mais acentuadamente político nos itens a seguir deste capítulo 2, a saber, a tese de que há coisas que levam os homens a sentirem afetos que apontam para a dissolução da cidade. Alguns atos dos que exercem o poder soberano podem causar na multidão o afeto indignação, que pode minar a potência do poder soberano. Ou seja, o poder soberano não pode tudo em face dos cidadãos-súditos. Se isto ocorrer, o campo afetivo muda e o que sustentava a cidade pode dissolvê-la, ou seja, a potência da multidão, que sustentava a cidade, pode dissolvê-la.

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Portanto, é por consenso (communi consensu) que a cidade dá a si os

parâmetros para dizer o que é o pecado e o que é meritório. Espinosa laiciza tais

conceitos ao afirmar que "O pecado não é, pois, senão uma desobediência [...]." (E IV P

37 Esc 2 p. 311). Nesse sentido se explica o que havia sido apontado no item (f) do

capítulo 1, a saber, que Espinosa laiciza os conceitos de pecado e mérito. Eles são, com

efeito, o resultado do jogo de forças que é próprio da cidade ao estabelecer suas leis.

O pecado, espinosanamente falando, não é senão uma violação da lei da cidade.

Finalmente, Espinosa falará do justo e do injusto, conceitos que não existem no estado

de natureza. O justo, para Espinosa, é dar a cada um o que é seu - retomando a

definição romana173 - segundo as leis da cidade. Por conseguinte, apenas no estado

civil isto é possível. Entretanto, Espinosa acrescenta um termo que faz toda a diferença

conceitual de suas teses em face da tradição da justiça como apenas distribuição de

bens: dar a cada um o que é seu segundo o communi consensu. Como mostrarei nos

itens que seguem, esta expressão dará o tom de mais uma revolução copernicana de

Espinosa no campo da filosofia política - e jurídica. Com efeito, procurarei deixar mais

claro nos itens a seguir, nos quais o Tratado Político será analisado mais de perto,

como esta expressão estabelece Espinosa como inovador também ao reformular este

conceito da tradição. O 'dar a cada um o que é seu' terá um significado que passa tanto

pelo campo dos afetos, quanto pelos limites a que está adstrito o poder soberano.

Afinal, se a potência do soberano é apenas o direito natural cedido, uma espécie de

direito natural coletivo, que objetiva estabilizar as potências e gerar mais afetos

alegres que tristes, dar a cada um o que é seu terá também uma estreita relação com o

campo de forças que tensiona o poder soberano e os súditos-cidadãos, estes sob a

forma da multitudo. Este escólio da Ética talvez venha a ter alguns de seus termos

aclarados com um mergulho no Político, local do qual procurarei extrair as teses

espinosanas que trabalham o conceito de communi consensu e de 'dar a cada um o

que é seu'. Estes são conceitos também relacionados ao campo afetivo que funda e

mantém a civitas.

173

Suum cuique tribuere. Ulpiano. Digesto. I, I, 10.I. Citado por: VELASCO, Ignácio Maria Poveda. Direito, Jurisprudência e Justiça no Pensamento Clássico (Greco-Romano). In: Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: Vol. 101, jan-dez 2006, pp. 21-32, especialmente p. 24.

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(c) Imitação dos afetos, multitudo, imperium, cidade

c.1 Formar blocos de mentes

No item (g) do capítulo 1, tratei da questão da imitação afetiva ou

mimetismo afetivo, conceito fundado na Proposição 27 da Ética III (pp. 195-197).

Apontei, na ocasião, que tal conceito teria importância na construção da socialidade e

da política, segundo Espinosa. Retomo agora este conceito para lançar luz em outro

local da cartografia política espinosana, a saber, o da relação entre mimetismo afetivo

e os conceitos de multidão e cidade. Em outras palavras, se no capítulo 1 procurei

mostrar o fundamento, na parte III da Ética, do conceito de imitação afetiva, sua lógica

de funcionamento dentro do quadro geral de funcionamento dos afetos, trata-se,

neste momento, de lançar os holofotes na questão política que daí decorre. Afinal,

como visto no item (g) do capítulo anterior, a imitação afetiva é um conceito que gera

'blocos de mentes' orientadas num mesmo sentido, seja por meio da comiseração ou

compaixão, afeto derivado da tristeza, seja por meio da emulação, afeto derivado da

alegria, bem como por meio das várias derivações afetivas daí decorrentes -

benevolência, apreço ou reconhecimento, indignação, etc. (E III P 22 Esc p. 191 e E III P

27 Esc p. 197). A imitação do desejo do outro, que por sua vez é desejo de algo, gera

comportamentos sociais, coletivos, os quais não são deliberações de vontades livres,

mas decorrências do próprio funcionamento do maquinário afetivo. Blocos de mentes

orientadas para cá ou para lá são socialidades de maior ou menor potência, e é este

mecanismo, de ponta a ponta natural e de ponta a ponta afetivo, que será o

fundamento e o cimento da cidade.

Penso que isso possibilitará trazer à tona uma tese a meu ver

importante. Na Ética, de acordo com temas analisados nos itens acima, já há, ainda

que de modo incipiente e lacônico, uma elaboração explícita acerca da política (E IV P

37 Esc 2 pp. 309-311). Tal elaboração, como procurei mostrar, está em acordo com

teses do Teológico-político, sobretudo no que se refere à tese de um "contratualismo"

que se reelabora cotidianamente, numa tensão entre poder soberano, ao qual se cede

potência, e os membros da cidade, que têm as potências individuais garantidas pelo

direito civil. Este, por seu turno, é posto pela potência do soberano e fundado na lei

universal segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dois males o

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135

menor. Tal lei da natureza humana se apresenta, no funcionamento da cidade, por

meio do par afetivo medo-esperança, afetos estes que são fundadores, bem como

explicativos da manutenção constante do poder soberano. Mais precisamente, a

esperança de um bem maior faz que os homens cedam parte de sua potência ao poder

soberano, o qual edita leis que garantem o exercício das potências individuais. Mas tal

lei universal da natureza humana, segundo o Teológico-político, quando apresentada

na Ética IV, no momento da introdução da política no texto espinosano, não explicita

ainda um conceito que terá fundamental importância na política e que aparecerá

abundantemente174 no Político, a saber, o conceito de multidão.

Não entendo, com isso, que haja contradição entre os três textos

espinosanos que explicitamente tratam da política (TTP, Ética, TP), ou mesmo que haja

uma falta conceitual na Ética por não conter o conceito de multidão175, ou por não

trabalhar com tal conceito. Entendo que os objetos diversos das obras explicam a

ausência ou presença do conceito, sua maior ou menor importância na economia

desta ou daquela obra específica. De fato, o objeto explícito, o tema por excelência, da

Ética, é o campo das ações humanas, que Espinosa explicitará em cinco partes,

mostrando desde o fundamento do real, a tese da substância única e do imanentismo,

na parte I, até a noção de beatitude, passível de ser alcançada pelo sábio, na parte V.

Para isso, passa-se pela noção de afeto e de sua natureza, na parte III, bem como

envereda-se pela noção de servidão humana e força dos afetos, na parte IV, sem

deixar de passar pelo tema da natureza e origem da mente, na parte II. Na parte IV, a

política irrompe, e os conceitos de mérito e demérito, bem como o de civitas e as

noções de justiça aí implicadas, se apresentam como o momento lacônico de teses

políticas no texto da Ética. E nada há a se estranhar nesse laconismo. Afinal, o tema é a

ética, não a política, ainda que os fundamentos afetivos da política, a antropologia

174

O termo multidão, sob suas várias formas na sintaxe latina (multitudo, multitudinem, multitudinis, etc.), aparece 69 vezes no Político. A pesquisa foi feita na edição de Gebhardt, versão eletrônica. 175

Sobre a inexistência do conceito na Ética, afirma Aurélio o que segue: AURÉLIO, Diogo Pires. Introdução. In: ESPINOSA. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. VII-LXVII. Cito: "A multidão é uma palavra que irrompe (...) nas páginas do TP. Até aí, ela comparecera, por junto, somente umas 14 vezes sob a pena de Espinosa, estando, inclusive, completamente ausente da Ética. Pelo contrário, no último tratado, que é um dos mais breves textos do autor, a palavra encontra-se algumas dezenas de vezes" (p. XXIV). Complementando a informação de Aurélio, 69 vezes no TP, como afirmado na nota acima.

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espinosana, seja longamente analisada na Ética III, e o texto desta seja recuperado no

Político, até mesmo explicitamente, como já tive ocasião de assinalar. O que importa,

entretanto, para esta tese e seu tema, é a ideia de que o desdobramento completo do

conceito de multidão poderá ser melhor compreendido à luz da Ética e de seu

maquinário conceitual referente aos afetos. Do mesmo modo, o momento da Ética em

que Espinosa fala da constituição do campo político (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311), bem

como as passagens do Teológico-político em que fala da lei universal inscrita

firmemente na natureza humana (TTP XVI p. 237), penso, poderão ser melhor

compreendidos à luz do conceito de multidão.

Gostaria, assim, tendo como pano de fundo esse quadro geral, de

explicitar como os conceitos de mimese afetiva, próprios da Ética III, bem como o

conceito de multidão, próprio sobretudo do Político, são conceitos que se articulam e

possibilitam um melhor ou mais claro entendimento das teses políticas de Espinosa.

Entendo que o conceito de multidão dará o tom mais original do pensamento político

espinosano ao resolver, pelo viés dos afetos e de sua lógica, a questão da fundação e

da manutenção do corpo político, bem como a questão da importância da política

como instância garantidora da alegria como afeto predominante na civitas. De fato,

quanto mais alegria no corpo político, em forma de maior potência dos membros que

o constituem, maior será, por assim dizer, a eficácia da cidade no que se refere à sua

razão de existência. O limite inverso disso, dirá Espinosa, não se poderá chamar civitas,

mas solidão (TP V 4 p.45).

c.2 Como num jogo de espelhos: a multitudo

André Santos Campos resume bem a questão - ou o problema - do

surgimento do corpo político, em Espinosa, a partir da vivência afetiva dos homens, ou

seja, da antropologia espinosana 176. Se o que há de comum na experiência dos

homens é a vivência afetiva, que pode os unir ou os tornar inimigos, por um lado, por

outro lado há a experiência histórica. Esta, ao que indica o autor, aponta para uma 176

Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp.275-276.

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superação desse paradoxo. Isso porque os homens, de acordo com a experiência

histórica, são observados sempre vivendo em comunidades de cooperação, sem as

quais a preservação de cada um, deixados a si mesmos, seria impossível. Assim, sendo

os homens afetivos de ponta a ponta, e dado este quadro histórico, como justificar,

pergunta o autor, "[...] a formação de laços humanos de cooperação sem a intervenção

direta de princípios racionais pelos agentes cooperantes?" 177 Ou, em outras palavras,

"[...] se a imitação dos afetos tende a explicitar o comportamento natural passional

dos indivíduos num 'estado de natureza' que jamais se abandona, como fundamentar

pela mesma imitação dos afetos a passagem necessária a um plano de cooperação

inter-humana, que é o veículo indispensável à performatividade na existência do

conatus de cada um?" 178

A resposta espinosana passa, na interpretação que proponho, pelos

conceitos de imitação dos afetos e de multidão. Ou seja, pela união de ao menos dois

textos espinosanos fundamentais, o Político e a Ética, bem como de teses já existentes

em alguns capítulos do Teológico-político.

Inicio com a recapitulação da Proposição da Ética que trata da

imitatio afetiva - vista no item (g) do capítulo 1. "Por imaginarmos que uma coisa

semelhante a nós e que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto,

seremos, em razão dessa imaginação, afetado de um afeto semelhante [simili]." (E III P

27 p. 195). O conhecimento imaginativo ou por imagens é o primeiro ponto a ser

notado nesta proposição. De fato, uma percepção na mente de um homem de algo

que afeta esta mente é o que Espinosa designa pela expressão "por imaginarmos". É

do conhecimento do primeiro gênero que se trata aqui, isto é, o conhecimento

imaginativo, o mesmo que percepção, para usar uma linguagem contemporânea. De

fato, na demonstração da Proposição 27, Espinosa afirma que se a "[...] natureza de

um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo [...]" (E III P 27 Dem p. 195), por

conseguinte, "[...] a ideia do corpo exterior que imaginamos [...]" (E III P 27 Dem p.

195) acarretará uma afecção de nosso corpo semelhante [similem] à do corpo exterior.

177

Ibid.. p. 275. 178

Ibid.. p. 276.

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Isto é, a imagem que tenho na mente acarreta em mim um afeto similar ao afeto que o

ser semelhante imaginado sente.

Espinosa, na sequência, constata que se trata, nesse caso, de

affectum imitatio (E III P 27 Esc p. 195). Em suma, o imaginar pode gerar um caminho

do desejo que vai no mesmo sentido do desejo do outro. O que o outro imagina, por

ser imaginado por mim, faz que eu sinta algo similar (simili affectu - E III P 27 p.194) ou

semelhante ao que o outro sente. O meu desejo se move, ou me move, portanto, no

mesmo sentido do desejo do outro. Esse o traço geral, ou o mecanismo geral, da

imitação afetiva. Ocorre que ela terá uma importância social e política fundamental,

visto que para Espinosa os afetos constituem a tensão ontológica ou de potências que

funda e mantém a civitas. Eis o ponto que pretendo desenvolver a seguir.

Vários afetos são movimentados nas demonstrações, corolários e

escólios da proposição 27. Todos decorrem do conceito fundante de imitação afetiva.

Espinosa escreve, pois, já na primeira demonstração, que, do mesmo modo que

imaginar uma coisa semelhante a nós, afetada de algum afeto, nos leva a experienciar

afeto semelhante, o oposto pode ocorrer. Isto é, no caso de odiarmos uma coisa

semelhante a nós, o afeto que nos afetará será o afeto contrário. Recorre Espinosa à

Proposição 23 da Ética III (E III P 23 p. 191) para confirmar esta posição. Afirma, de

acordo com esta proposição, que quem imagina que aquilo que odeia é afetado de

tristeza, se alegrará, bem como quem imagina que aquilo que odeia é afetado de

alegria, se entristecerá. O primeiro escólio da proposição 27, por conseguinte, traz a

tese de que a imitação dos afetos pode - como não poderia deixar de ser dada a

primariedade dos três afetos (desejo, alegria e tristeza) - se referir à tristeza ou à

alegria. Quando referida à tristeza, é compaixão (comiseração, commiseratio). De fato,

imaginar o sofrimento do outro leva a que se sofra também. Mas, quando a imitação é

a do desejo do outro, é desejar o que o outro deseja, o que se tem é a emulação

(aemulatio). E Espinosa usa a expressão "[...] o qual se produz em nós por imaginarmos

que outros [alios], semelhantes a nós, têm esse mesmo desejo." (E III P 27 Esc da 1ª

Dem p. 195). Alios, ou seja, "outros", semelhantes a nós, tendo o mesmo desejo, nos

leva a desejar esta mesma coisa. Aí está o comportamento por excelência que leva ao

coletivo: a imitação do desejo alheio por emulação. Espinosa ainda trata de outros

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afetos derivados da imitação, e que provocam este comportamento coletivo, este

bloco de mentes num sentido ou noutro. O amor (E III P 27 Cor 1 p. 195), o esforço

para livrar quem nos causou compaixão de sua situação de desgraça ou infelicidade

(miseria) (E III P 27 Cor 3 p. 195), bem como a benevolência (benevolentia), aqui

entendida como uma derivação da compaixão, ou seja, um apetite ou desejo surgido

da comiseração. Por fim, Espinosa ainda deriva da imitação afetiva, ou de seu

mecanismo, dois afetos. Um, o reconhecimento, que é o amor que se sente por

alguém que fez um bem a um terceiro (E III P 22 Esc p. 191). O outro, um afeto que já

foi visto no capítulo 1, item (f), e que tem importância para a política, a saber, a

indignação, que é o "[...] ódio a quem fez o mal a um outro." (E III P 22 Esc p. 191).

Eis, em suas linhas mestras, o mecanismo de imitação afetiva que

leva ao comportamento coletivo, fundante da socialidade e da cidade, instâncias

indispensáveis à concretização do direito natural de cada membro da cidade (TP II 15

p. 19).

Passo, a seguir, dado esse pano de fundo - aqui apenas recapitulado

com os holofotes apontados para os blocos de mentes que derivam da imitatio afetiva

-, ao conceito que une a Ética ao Político, bem como explica passagens do Teológico-

político, a saber, o conceito de multidão (multitudo).

***

O final do capítulo I do Político (TP I 7 p. 10) anuncia uma tese que

está diretamente de acordo com a Ética III. Espinosa afirma nesta ocasião, em primeiro

lugar, que os homens, onde quer que se juntem, formam costumes e um estado civil.

Em segundo lugar, no mesmo parágrafo, afirma que as causas e fundamentos do

imperium não decorrem de ensinamentos da razão. Devem "[...] deduzir-se da

natureza ou condição comum dos homens [ex hominum communi natura seu

conditione deducenda sunt]." (TP I 7 p. 10; G III p. 276). A condição comum dos

homens, ou a antropologia espinosana, está desenvolvida na Ética III, momento em

que Espinosa trata da origem e da natureza dos afetos.

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140

No primeiro passo deste item c.2, a afetividade humana foi focada no

seu aspecto de imitação. O que leva, segundo Espinosa, ao que chamei de blocos de

mentes que vão num ou noutro sentido. Em uma palavra, a tese é a de que os homens

podem seguir o desejo do outro (ou dos outros) por imaginar o afeto que está no

outro e passar a ter um afeto similar - trata-se da emulação. A condição comum dos

homens é sua dinâmica afetiva. Mais precisamente, é serem, os homens, constituídos

pelos afetos. Não casualmente, no Político, Espinosa explicita, já nas primeiras linhas

do capítulo I, esta condição comum, ao afirmar que a afetividade ou o estar sob os

afetos é próprio dos homens. O aspecto da afetividade logo acima explicado, a saber, a

mimese afetiva, como afirmei, é a condição para que haja comportamentos em

conjunto, comportamentos comuns. Como este estado de coisas, isto é, a imitação

afetiva, devém multidão e devém imperium?

Isto é o que Espinosa aponta como projeto a ser desdobrado no

capítulo seguinte à afirmação acima indicada, do final do capítulo I, e o capítulo II do

Político tratará, de início, do tema apontado. A questão que se apresenta a Espinosa,

pois, é a de saber como se constitui e se mantém o imperium. Afinal, como aponta o

texto do Político (TP I 7 p. 10), os homens formam costumes e estados civis.

O conceito de mimese afetiva será utilizado por Espinosa para

explicar esta união de homens, sem que o conceito, porém, seja explicitado, no

Político, tal qual fora na Ética III. Procurarei extraí-lo do texto do Político. Isto porque,

numa hipótese já indicada no presente trabalho, os afetos fundam a política e a

mantêm. Um importante parágrafo em que o conceito de afetividade - e mais

especificamente de imitação - está pressuposto nas análises espinosanas é o de

número 10 do capítulo 2 do Político. Cito-o a seguir:

Tem um outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou as armas e os meios de se defender ou de se evadir, quem lhe incutiu medo ou quem, mediante um benefício, o vinculou de tal maneira a si que ele prefere fazer-lhe a vontade a fazer a sua, e viver segundo o parecer dele a viver segundo o seu. Quem tem um outro em seu poder sob a primeira ou a segunda destas formas, detém só o corpo dele, não a mente; mas quem o tem sob a terceira ou a quarta forma fez juridicamente seus [sui juris fecit (G III p. 280) ], tanto a mente como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na verdade, desaparecida esta ou aquela, o outro fica sob jurisdição de si próprio. (TP II 10 p. 17).

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Espinosa trata, no referido parágrafo, de potência, ou seja, de estar

sui juris ou alterius juris, como afirma em passagem anterior ao parágrafo citado (TP II

9 p. 16). O que está em jogo é estar sob a potência - ou seja, sob o direito - de si

mesmo ou sob a potência de outrem, uma vez que jus sive potentia (TP II 5 p. 12 - G III

p. 277). Dois casos dão ao detentor do direito o corpo do outro. São os dois primeiros,

em que o outro está sob o poder daquele que o amarrou ou daquele que tirou os

meios de se defender ou de fugir. Detém, entretanto, o corpo e a mente de um

homem aquele que incute neste o medo ou, mediante um benefício, faz que este

prefira abrir mão do próprio desejo imediato para ter acesso a um bem maior. Aquela

lei indicada no Teológico-político, tão firmemente inscrita nos homens, (TTP XVI p.

237), e repetida na Ética IV (E IV P 37 Esc 2 p. 311), segundo a qual entre dois bens se

escolhe o maior e entre dos males o menor, é o que Espinosa aponta neste excerto. E

tal poder sobre um outro, fundado nesta lei, opera a mesma lógica já apontada no TTP

e na Ética, isto é, a do afeto medo-esperança fundando o 'estar sob', ou seja, fundando

o ato de estar sob jurisdição de outrem. Desaparecida a esperança que funda a

obediência ao poder de outrem, ou desaparecido o medo, desaparece o direito do

outro sobre a mente e corpo deste ou daquele homem. Cada homem volta, assim, a

estar sui juris, ou seja, num estado pré-civil ou de natureza, no qual os direitos naturais

são abstrações (TP II 15 p. 19).

As concessões quanto ao direito natural (iure suo naturali cedant - E

IV P 37 Esc 2 p. 309), de que fala Espinosa na Ética IV, fazem parte da mesma lógica

acima apontada. Ao fazer, num momento na história e cotidianamente, a cessão do

direito natural ao poder soberano, na esperança de garantir a existência mesma do

direito natural, cada homem transfere potência ao poder soberano, dá a esta instância

poder para fazer que as leis por ele editadas sejam cumpridas. Ou seja, cada membro

da cidade, em parte - pois não se cede toda a potência (TTP XVII p. 250) -, passa a estar

sob a jurisdição (sui juris) do poder soberano, sob sua potência. Há, ontologicamente

fundada, uma tensão entre potências. O soberano, de acordo com a lógica exposta no

excerto citado (TP II 10 p. 17), detém mais poder que cada membro da cidade

isoladamente na medida em que pode, por ameaças, fazer cumprir as leis. Mas este é

apenas um lado da moeda, pois os membros da cidade cumprem a lei também na

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esperança de que todos a cumpram, inclusive o próprio poder soberano, garantindo-se

a paz no corpo social. Quando Espinosa afirma que alguém - ou algo - tem sobre

outrem poder, sublinha, no caso do poder sobre a mente e o corpo, que são os afetos

esperança e medo que garantem tal relação. E esta relação cessa findos o medo e a

esperança. Ou seja, os membros da cidade, por, simultaneamente, temerem e

esperarem garantias do poder soberano da cidade, mantêm uma relação de submissão

ao soberano que é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, sua (dos membros da cidade)

garantia de exercício da potência enquanto indivíduos, isto é, enquanto homens. Mas

se trata aqui do medo da lei179, não do medo animal anterior a qualquer instituição.

Um medo que é possibilitador, paradoxalmente, da alegria e da potência dos membros

da cidade180. Por outro lado, o poder soberano somente subsiste enquanto tem como

fundamento de sua potência a própria potência dos desejos dos membros da cidade,

sob a forma de multidão, a qual alimenta o poder soberano, sem a qual o poder

soberano não possui qualquer potência, ou seja, qualquer direito. Por isso Espinosa

poderá dizer, acerca do imperium monárquico, por exemplo, a título de conclusão do

capítulo VII do Político, "[...] que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade

bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente

pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta." E conclui: "Foi esta a

única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado [imperium] monárquico."

(TP VII 31 p. 85).

Porém, como os desejos, a princípio isolados e tumultuadamente

contrários uns aos outros, como afirmado em E IV P 37 Esc 2 (p. 309), devêm

multidão? Minha hipótese vai pelo seguinte veio: a mimese dos afetos esperança e

medo, por parte dos membros da cidade em face do poder soberano, através da

emulação, será o conceito necessário para que se entenda a passagem do Político que

complementa o excerto do parágrafo 10 do capítulo II (TP II 10 p. 17) e que pode ser

179

Ver, sobre o tema do medo da lei: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191, especialmente p. 174 para a tese do medo da lei como diferente do medo animal presente no estado de natureza. 180

Nesse sentido, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 334. Para Aurélio, a liberdade política não exclui a alegria, pois o medo civil da lei não exclui a alegria, mas a possibilita (p. 334).

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uma chave para a compreensão desta transformação. A passagem é a seguinte: "Se

dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente

têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quanto mais assim

estreitarem relações, mais direito terão todos juntos." (TP II 13 p. 18). Analiso, a seguir,

esta passagem à luz do excerto acima citado (TP II 10 p. 17). O objetivo é mostrar como

surge aí o conceito de afeto e, mais precisamente, a necessidade da ideia de imitar o

afeto do outro para que tal união subsista.

O acordo somente ocorre, de forma completa, segundo Espinosa,

com o uso da razão (E IV P 37 Esc 2 p. 309 e P 35 Cor 1 p. 303). Mas os homens

raramente a usam, e estão submetidos aos afetos, que os põem em divergência (E IV P

37 Esc 2 p. 309). Porém, não obstante estarem em desacordo, simultaneamente

sabem que "[...] o homem é um Deus para o homem." (E IV P 35 Esc p. 303), e por isso

a experiência mostra que dificilmente os homens vivem uma vida solitária, e em geral

vivem em sociedade, pois daí advêm vantagens, escreve Espinosa (E IV P 35 Esc p.

305). Entretanto, como sabem disso e por que vivem em sociedade, já que são,

essencialmente, desejos em conflito?

O parágrafo 13 do capítulo II do TP parece se fundar nisso que se

pode chamar de convenientia ou 'astúcia da razão' 181, ou seja, a razão que, sub-

repticiamente, se serve da esperança "para dar força operante à potência racional das

noções comuns" 182.

Dessa maneira, como dois se põem de acordo e juntam forças? Ora,

por meio de uma operação, via afeto esperança, operação esta fundada na noção de

convenientia, que põem no mundo afetivo as noções comuns da razão. Por outras 181

O termo é de Marilena Chaui. Ver: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191. Afirma a autora sobre o que permite a passagem do medo à esperança: “O que permite essa passagem de uma paixão à sua contrária é, de um lado, sob a lei do mal menor e do bem maior, a vitória afetiva da esperança, paixão de alegria, cuja força é superior e contrária à do medo, paixão da tristeza; e, de outro, o fato de que o que reforça a esperança, mesmo que ela não o saiba, são as noções comuns da razão, visto que estas são o fundamento ontológico da convenientia e, portanto, a mola racional invisível da cooperação entre humanos” (p. 182). E conclui: "Poderíamos até mesmo falar numa 'astúcia da razão', que se serve de uma paixão, a esperança, para dar força operante à potência racional das noções comuns" (p. 182). Tendo a concordar com a tese de Marilena Chaui caso se entenda que é do comum, das propriedades comuns das coisas, que emana a razão. Isto é, caso se entenda que a 'astúcia da razão' é o mesmo que convenientia, aquilo que possibilita o acordo pelo comum, o qual se constrói pela via afetiva. 182

Ibid., p. 182. Sobre as noções comuns, ver, nesta tese, o capítulo 1, item (i).

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palavras, a esperança de uma potência maior, que faz que dois se juntem e possam

mais, se funda nesta convenientia operando na natureza, a qual explicita um acordo

que não se mostra em todas as suas facetas, que não se mostra diretamente pela

razão, mas indiretamente, por meio de um afeto alegre, a esperança. Esse é - eis uma

hipótese - um pano de fundo constituído pela astúcia da razão, a qual, no plano

afetivo, se apresenta por meio da emulação, por parte de vários homens, dos afetos

medo-esperança, culminando na cessão de potência a uma instância responsável por

criar e manter a civitas, ou seja, o poder soberano, do qual emana o direito civil. De

outro ângulo: os homens, ao juntarem força, o fazem somente porque há uma

conveniência de fundo operando a possibilidade da cooperação. Mas tal racionalidade

de fundo, que aqui chamei, inspirado em Marilena Chaui183, de 'astúcia da razão' -

como sinônimo de convenientia -, se manifesta, nos homens, como estreitamento de

relações (TP II 13 p. 18), cujo fundamento mais visível é o par afetivo esperança-medo

e a mimese, via emulação, desses afetos por parte dos homens que se unem. Dizendo

por outras palavras, os homens imitam, por emulação, a esperança uns dos outros

para se unirem e buscarem os benefícios, a utilidade desta união. Quando isto se

tornar tão complexo a ponto de se necessitar de uma instância detentora da potência

da cidade (o poder soberano), o par esperança-medo continua operando e

sustentando, pela via da emulação, a potência deste mesmo poder soberano, ao qual

se deu o poder de editar leis. Tais leis são respeitadas pelo medo da punição e na

esperança de se ter paz e não guerra, de se viver uma vida digna, ou seja, com

potência individual tendente ao máximo, com alegria como afeto predominante. E

ainda mais: o par afetivo medo-esperança será transmutado, pelas instituições da

cidade, em securitas, afeto mais estável e garantidor do exercício dos direitos naturais

individuais na civitas. Na verdade, o afeto esperança se transmuta em segurança na

medida em que a cidade, por meio do funcionamento das instituições, é capaz de

diminuir a dúvida, nos cidadãos-súditos, quanto ao futuro. A cidade dever ser capaz de

forjar este imaginário de segurança, o qual deve estar sempre presente nas mentes

dos membros da cidade como uma espécie de futuro-antecipado-em-forma-de-

imagem-de-segurança. Somente instituições políticas da civitas são capazes de gerar

183

Ibid., p. 182.

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tal imaginário de alegria em cada membro do corpo político, imaginário este que

retroalimenta a própria força da cidade.

Porém, do ponto de vista da lógica dos afetos como emanação de

uma conveniência (convenientia), própria da natureza, como se dá esta união de dois

ou mais homens que devém multidão? Como resultado, precisamente, desta

conveniência de fundo - ou 'astúcia da razão' - operando com base nas propriedades

comuns e se apresentando como noções comuns às mentes, há a imitação afetiva do

desejo do outro. Por outras palavras, a conveniência, espécie de razão com 'r'

minúsculo (em contraposição a uma razão do acordo pleno - o agir em plenitude em

acordo com a razão, o que acarretaria o fim do desacordo entre os desejos (E IV P 35

Cor 1 p. 303) ), faz que os homens imitem os afetos uns dos outros no sentido da

esperança comum e da segurança comum. Isto é, a mesma esperança que um homem

sente ao se unir a um segundo é sentida por este segundo, simultaneamente, e assim

sucessivamente, de modo que se tem um comportamento em bloco fundado num

mesmo afeto, como num jogo de espelhos em que o comportamento de um é o

mesmo do outro em razão da imitação afetiva. O mesmo se processa quanto ao afeto

segurança, ainda mais estável e objetivo último da cidade. Apenas assim se pode

explicar como funciona o que Espinosa expôs na passagem citada, ou seja, "Se dois se

põe de acordo e juntam forças [si duo simul conveniant et vires jungant (G III p.281)],

juntos podem mais [...]; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão

todos juntos." (TP II 13 p. 18). O convir é sempre uma manifestação da razão, pois

apenas pela razão os homens entram em acordo (E IV P 35 Cor 1 p. 303), ainda que por

vias afetivas, pois o fundamento, aqui, é a emulação da esperança e da segurança do

outro, uma forma, também, de conveniência. Conveniência talvez mais fraca do que se

os homens se guiassem sempre pela razão, mas conveniência ainda assim. No texto

latino, pela edição de Gebhardt, como se vê acima, há a ideia da simultaneidade e da

conveniência (simul conveniant). O convir - esta 'astúcia da razão' ou razão de fundo -

se dá pelo comum, pelo que une, ainda que por vias afetivas - e em geral por vias

afetivas -, por uma espécie de regramento ou lógica que atravessa a natureza e a

natureza humana. Uma conveniência, no sentido de uma lógica de operação da

natureza mesma, que funda a imitação, via emulação, dos afetos esperança e

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segurança e, de outro lado, a emulação do medo da lei. Tais afetos, espelhados em

múltiplos homens por emulação afetiva, levam ao comportamento que Espinosa

designará pelo termo "[...] como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur]."

(TP II 16 p. 19, entre outras). Não por acaso, portanto, escreve, no final do parágrafo 7

do capítulo III do Político, que "[...] esta união de ânimos [animorum unio G III p. 287]

não pode de maneira alguma conceber-se, a não ser que a cidade se oriente

maximamente [maxime intendat - G III p. 287] para o que a sã razão ensina ser útil a

todos os homens." (TP III 7 p. 29). Espinosa não estabelece, aqui, que a cidade é

fundada na razão, mas aponta para a pertinência da hipótese da 'astúcia da razão'

(como o que emana do comum) ao afirmar que a união de ânimos, típica da multidão,

não teria sentido se a cidade não se orientasse - isto é, não fosse 'no sentido de' - para

o útil ensinado pela razão. Há, portanto - eis uma hipótese -, uma conveniência ou

razão de fundo que fundamenta a concórdia via afetos alegres, ou pela via de afetos

tristes que possibilitam afetos alegres, como é o caso do medo civil da punição da lei

que faz que haja um mínimo de obediência às leis editadas pelo poder soberano e

assim se chegue a um afeto alegre estável, a saber, a segurança. A convenientia é,

nesse caso, também uma astúcia da política. Isto é, apenas a política é capaz de

transmutar o medo da lei, afeto triste, em securitas, afeto alegre.

Tese, portanto, diversa, em muitos aspectos, da hobbesiana,

explicitando-se, uma vez mais, a distância entre ambas as filosofias políticas. Trato,

abaixo, brevemente da concepção hobbesiana de multidão e sua relação com os

conceitos de representação, transferência, pessoa natural e pessoa artificial. Tal

movimento argumentativo destacará a inovação espinosana, no que tange ao conceito

de multidão - atrelado, como visto, ao conceito de imitatio afetiva -, em face daquele

elaborado por Hobbes.

O capítulo 16 do Leviatã é o local em que Hobbes conceitua

multidão.184 Afirma que "Dado que a multidão naturalmente não é uma, mas muitos,

eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos autores, [...]" (Leviatã I

16 p. 137). Como unir o múltiplo? A solução hobbesiana se distancia da espinosana. 184

Hobbes define, igualmente, multidão como multiplicidade de vontades de pessoas naturais em Do Cidadão VI 1 p. 91. Também define multidão, diferenciando-a de povo (este entendido como unidade na e pela persona artificial), em: Do Cidadão XII 8 pp. 151-152.

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Com efeito, afirma Hobbes que "Uma multidão de homens é transformada em uma

pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa [ou por uma assembleia

de homens, como afirma em Leviatã II 17 p. 144], de maneira a que tal seja feito com o

consentimento de cada um dos que constituem essa multidão." (Leviatã I 16 p. 137).

Como, entretanto, pode Hobbes afirmar que muitos passam a ser um? A sequência do

texto esclarece: "Porque é a unidade do representante, e não a unidade do

representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da

pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a

unidade de uma multidão." (Leviatã I 16 p. 137).

A tese da unidade da multiplicidade em Hobbes não passa pelos

mecanismos afetivos, mas pelos conceitos de pessoa, representação e transferência,

como indiquei no item (b) deste capítulo 2. Retomo os conceitos lá apontados para

aclarar este ponto quanto ao conceito de multidão. O problema, pois, é o de saber

como o múltiplo se torna uno. Há, como afirmou Hobbes no excerto citado acima,

unidade do representante. De fato, o representante, através do conceito de persona,

age como se fosse o representado, como se fosse o autor. Age em seu lugar. O pacto,

que faz que a multiplicidade de homens transfira seu direito natural a um homem - ou

a uma assembleia de homens (Leviatã II 17 p. 144) - forma a persona fictícia, o ser

artificial que, como representante, está presente em-lugar-de, e a multiplicidade, por

esta ficção, se torna una, com uma vontade. Forma-se assim o Estado (commonwealth

ou civitas) 185. O autor afirma, com efeito, "[...] que poucas coisas são incapazes de

serem representadas por ficção." (Leviatã I 16 p. 136). O sentido da palavra persona,

Hobbes a retira dos gregos, significando o mesmo que rosto (prósopon), conforme

disposto no Leviatã (Leviatã I 16 p. 135). E a pessoa é definida como "[...] aquele cujas

palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando

as palavras ou ações de outro homem [...]" (Leviatã I 16 p. 135), sendo de dois tipos, ou

natural, ou artificial e, neste último caso, quando se representa as ações ou palavras

de um outro (persona artificial) (Leviatã I 16 p. 135). Quando, pois, os homens

transferem seus respectivos direitos naturais ao um da assembleia ou de um homem,

autorizam, pelo mecanismo da representação e pelo conceito de pessoa, todas as suas

185

No texto original, editado por Gaskin, Leviatã II 17 p. 114.

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ações. "Feito isto [afirma Hobbes], à multidão assim unida numa só pessoa se chama

Estado [commonwealth], em latim civitas." (Leviatã II 17 p. 144)186. O conceito de

multidão em Hobbes encontra, desse modo, sua unidade em uma commonwealth por

meio dos conceitos de transferência, representação e pessoa. Tese, portanto, que

pouco se assemelha à espinosana.

Retorno a Espinosa. O que é, então, a multidão, a qual transfere

potência ao poder soberano e lhe dá vida e potência? A multidão é a potência da

multiplicidade dos desejos (sob a forma de esperanças e receios) articulados pelo que

têm de comum, via emulação afetiva187. Os parágrafos 16 e 17 do capítulo II do Político

articulam o conceito de multidão aos de poder soberano, direito civil e cidade como

forma do imperium. É o que passo a analisar.

Após afirmar que o direito natural de cada um, no estado natural, é

"[...] nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade [...]" (TP II 15 p. 19),

Espinosa afirma, no mesmo parágrafo, que "[...] o direito de natureza, que é próprio do

gênero humano [jus naturae, quod humani generis proprium est], dificilmente pode

conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns e podem, juntos,

reivindicar para si terras que podem habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a força

e viver segundo o parecer comum de todos eles." (TP II 15 p. 19). Ou seja, o direito

natural, tal qual Espinosa afirmara na Carta 50 a Jelles (Ep 50 pp. 308-309), se mantém

e é efetivo apenas no estado civil. Não há, com efeito, abolição do direito natural. Mas

como isto ocorre?

No parágrafo 16, seguinte, Espinosa utiliza um termo que, penso, dá

todo o tom do conceito de multidão e aproxima tal conceito das análises acima tecidas 186

Ver sobre o tema: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 282. C. Lazzeri, acerca da diferença do conceito de multidão em ambos os autores, afirma: "Para Hobbes, a multitude é apenas um conjunto (se podemos empregar este termo) natural de indivíduos desprovidos de qualquer princípio de unidade, o qual se forma somente no ato de representação de uma pessoa artificial e destinada a desaparecer - como multidão - em um povo, se ela dá a si por convenção um representante. Para Espinosa, cujo emprego constante do termo se explica em grande parte por sua crítica a Hobbes, a multitude é um conjunto natural de indivíduos cujo estado varia de acordo com o grau mais ou menos elevado de integração natural de seus membros em face do conjunto mais ou menos estruturado que eles formam." (p. 282 - tradução minha). 187

Uma definição próxima está em: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000. Diz o autor: "A multidão é um termo charneira, onde se articulam, por um lado, a multiplicidade de desejos ou receios, por outro, a potência comum que se afirma em resultado da sua insustentável dispersão" p. 275.

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acerca da imitação afetiva. Afirma Espinosa que onde os homens têm direitos comuns

"[...] e todos são conduzidos como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur -

G III p. 281] [...]" (TP II 16 p. 19), é correto afirmar que cada membro do corpo político

tem tanto menos direito em face da potência dos demais membros do corpo político

(TP II 16 p. 19). Claramente Espinosa afirma que onde há direitos comuns, o que existe

é uma condução de corpos e mentes num mesmo sentido, o que, de acordo com o

parágrafo 13 (TP II 13 p. 18), faz que haja aí uma potência comum de desejos. Tal

condução, indicada pelo termo "como que por uma só mente", se dá apenas em razão

da emulação dos afetos alheios, o que redunda em blocos de mentes, em blocos de

potência. Sendo assim, o homem enquanto indivíduo isolado, neste contexto de

socialidade, tem menos direito que o bloco de indivíduos que se conduzem uns de

acordo com os demais, pela mesma esperança e pelo mesmo receio. Por isso Espinosa

afirma, no mesmo parágrafo, que este indivíduo, enquanto ente isolado em face dos

demais, não tem direito para além da potência que o direito comum lhe concede. O

direito comum enquadra o comportamento do membro que o contrapõe, aquele que

quer subverter o comum. O jogo de espelhos da imitatio afetiva, aqui, tem papel de

sustentar o direito comum depois de este ser imposto pelo soberano. Na esperança de

ter segurança, todos se mantêm unidos quanto ao comum, manifesto no direito

comum, espelhando-se uns nos outros por meio da emulação da esperança, da

segurança e do medo da punição da lei comum, rechaçando o comportamento que

não espelha a potência coletiva. Por isso o que há, neste parágrafo, quando do uso do

termo "como que por uma só mente", é a manifestação do plano afetivo próprio aos

humanos fazendo que o maquinário político se sustente com a potência do que é

comum a todos os membros do corpo político.

c.3 Multitudo e imperium: questão de potência

Na sequência do parágrafo 16, acima indicado (TP II 16 p. 19),

Espinosa dá nome aos conceitos que utilizou, costurando-os entre si. Afirma:

Esse direito [jus] que se define pela potência da multidão [quod multitudinis potentia definitur] costuma chamar-se estado [imperium]. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum [ex communi consensu], tem a

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incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos, fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc.. (TP II 17 p. 20).

Eis uma importante passagem do Político que articula uma miríade

de conceitos fundamentais para a compreensão da filosofia política de Espinosa.

O primeiro ponto de destaque, no excerto, a meu ver, é a definição

do direito pela potência da multidão. O imperium188, na concepção espinosana, não

188

Sobre a questão da relação entre imperium, multitudo, e poder de cada membro do corpo político, há vasta bibliografia. Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 300, p. 311. A. S. Campos também analisa a tese de Antonio Negri, da relação potestas/potentia, dela discordando, por não levar em conta o regime afetivo (p. 300 e seguintes). Discorda também da tese de Matheron do Estado como indivíduo (p. 313). Na p. 343, define imperium. Também ver, sobre o conceito de imperium: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 190. Para um ensaio clássico sobre o tema, que aborda o imperium como tendo a forma de indivíduo: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. Para a questão do imperium, p. 319 e seguintes. Para uma definição de imperium: RAMOND, Charles. Vocabulário de Espinosa. Tradução de Claudia Berliner. Revisão de Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 40-41. Do mesmo autor, para uma definição mais desdobrada de imperium: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 63; pp.168-177. Também sobre o conceito: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie General Française, 2002, pp. 09-101, p. 10. Do mesmo autor, acerca do tema, de modo mais aprofundado, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 241-301. Neste capítulo (IX), Bove desenvolve o tema da estratégia da potência da multidão como estratégia do conatus político. Para a tese da multitudo como detentora do imperium, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, p. 164 - a autora entende a multitudo como indivíduo coletivo singular (p. 164). Sobre as várias posições acerca do tema, ou seja, o estado da arte quanto ao tema 'estado' em Espinosa, a autora elabora, na nota 68, à p. 325, um resumo das posições. São as seguintes, e dos autores citados a seguir, segundo Chaui. Posição naturalista: a posição de A. Matheron (em Individu et commmunauté chez Spinoza (ver referências bibliográficas nesta tese). Para ele, o estado é entendido como um indivíduo complexo no sentido físico. Posição artificialista: Lee Rice e Den Uyl - em dois textos: Power, State and Feedom, deste último, e o artigo Individual and community in Spinoza's social psychology. In: P.-F. Moreau e E. Curley (orgs). Spinoza: Issues and directions. Leidenm and Brill, 1990, pp. 271-285, do primeiro. Diogo Pires Aurélio segue Norbert Elias para criticar as duas posições, pois uma reificaria um lado da questão, e a outra reificaria o outro polo (p. 326). Aurélio usa a noção de configuração, de Norbert Elias, para dizer que indivíduo, nação e estado não poderiam ser pensados isoladamente. A posição de Aurélio está em: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, pp. 303-304. Marilena Chaui entende que todas as teses estão corretas, desde que se compreenda o seguinte: imperium é natural porque, espinosanamente, não possui causas transcendentais e é artificial porque é instituição humana. É configuração porque é relação entre potências ou configuração entre potências. A multitudo é que pode ser aproximada da psicologia e da física da ética - porque se está a falar de potência. Daí que, para Chaui, Aurélio tenha tocado em um ponto importante da questão. Imperium, para Chaui, não é o estado. Espinosa usa, segundo a autora, para este conceito, Civitas e Res publica. O imperium seria uma lógica do poder, uma estrutura de ações que se corporifica nas instituições e se exprime nos costumes e nas leis - e estes é que são una veluti mente. Ainda, para a autora, o campo político seria como uma estrutura ou uma ação ordenada nela mesma, e para esta tese se inspira em Claude Lefort (pp. 326-327). Para o imperium como fundado pela

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vem de uma decisão racional dos homens em assembleia, não decorre de

ensinamentos da razão, num sentido forte do termo - pois se todos os homens

agissem pela razão, o que se teria é acordo certo, sem necessidade da política (E IV P

35 Cor 1 p. 303) -, mas decorre, afetivamente e por potência, do comum nos homens,

dos homens em multidão. A potência da multidão opera pela lógica da emulação

afetiva, isto é, blocos de desejos, e portanto de potências, que vão num sentido ou

noutro por meio dos mesmos afetos - uma simultânea mistura de esperança do

melhor e medo do pior, com vistas à segurança, afeto que, se espelhado em todos os

membros da multidão entre si, dá estabilidade aos conatus individuais. A multidão é

este espelhamento de todos em cada um e de afetos comuns em todos, um agir de

mentes individuais e de corpos "como se fossem uma só mente", ainda que isto tenha

grande instabilidade caso se considerem médios e longos períodos de duração. O

estado ou imperium (que tem a cidade como seu corpo) é, então, o direito definido,

delimitado, alimentado, fundado pela multidão. Eis outro ponto de destaque, uma vez

que a multidão é um conceito que pressupõe desejos comuns num mesmo sentido,

ações de um bloco de mentes como se fossem uma só. Um terceiro ponto a se

destacar no excerto é: quem detém absolutamente (absolute tenet) o direito de editar

direitos, ou a potência de editar leis cujo fundamento mesmo é a potência da

multidão, tem, de acordo com Espinosa, a incumbência da república. Quem tem esta

incumbência? O poder soberano, que por consenso comum passa a ter tal função.

Qual é esta função, esta incumbência? A de criar, interpretar e abolir direitos, fortificar

a potência da urbe, ou seja, do espaço geográfico da cidade, decidir sobre a guerra

com outras cidades ou sobre a paz, entre outras funções. Mas o passo fundamental do

texto espinosano é precisamente o de mostrar o entrelaçamento entre os conceitos de

direito, potência, multidão, imperium, consenso comum, república e cidade. E

potência da multidão, no mesmo sentido entendido nesta tese, ver: CRISTOFOLINI, Paolo. Peuple et multitude dans le lexique politique de Spinoza. In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 45-58, p. 51. A posição de A. Negri sobre o conceito de multitudo está disseminada em sua obra. Ver, por exemplo, numa análise clássica da obra espinosana: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 252, momento em que diz ser a multitudo o consenso organizado em república: "É a multitudo que se constitui em sociedade com todas as suas necessidades. Nem a paz é simplesmente segurança, mas é a situação na qual o consenso se organiza em república "(p. 252). Utilizei a tradução brasileira para a citação acima (NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 258).

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explicitar uma tensão entre dois polos. De um lado, a multidão, com seus desejos

pulsando o comum e alimentando o poder soberano, aquele que, por consenso

comum da mesma multidão, tem as funções da república. De outro, o poder soberano

que faz as leis e as faz cumprir, mas sempre respeitando o que é comum e a natureza

comum dos homens.

Da tensão entre estas duas esferas de potência, a fonte do direito do

imperium, ou seja, a multitudo, e o poder soberano escolhido para levar à frente a

república, o comum, advém a função da cidade, que é a de garantir o direito natural

dos homens que nela vivem. Tal constatação impõe limites à tensão multidão versus

soberano, uma vez que o soberano não pode elaborar leis que contrariem a potência

da multidão que lhe dá, precisamente, a potência para existir. De fato, como afirma

Espinosa, retomando o parágrafo 15 do capítulo II do Político, o direito do imperium ou

dos poderes soberanos, "[...] não é senão o próprio direito de natureza [...]." (TP III 2 p.

25). Este direito se determina - eis o ponto chave - pela potência da multidão, não de

cada um (TP III 2 p. 25). O conceito de imitatio logo aparece no momento em que

Espinosa estabelece que a multidão se conduz "[...] como que por uma só mente [una

veluti mente ducitur - G III p. 284] [...]." (TP III 2 p.25). Com efeito, para se conduzir

como que por uma só mente, é preciso que o comportamento de cada membro do

corpo da multidão seja a emulação do desejo do outro, simultaneamente, fazendo que

haja ações num mesmo sentido, numa mesma direção.

Analiso no item (d) (logo após o item c.4, abaixo) a questão dos

limites do poder soberano à luz da passagem acima, segundo a qual o poder soberano

é o próprio poder da multidão. Pretendo mostrar, agora sob ângulo mais político, algo

que fora apontado no capítulo 1, item (f), ou seja, quais os limites do poder soberano

em razão de este poder ser o próprio poder da multidão, a qual é a emulação afetiva

em exercício e, portanto, simultaneamente potência coletiva ou direito natural

coletivo em atividade.

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c.4 Gêneros do estado civil e distribuição da potência

Até este momento do texto, a questão da relação entre os conceitos

de potência da multidão, mimetismo afetivo, direito, imperium, consenso comum,

poder soberano e república foi analisada. Resta, entretanto, analisar um ponto que

resvala para a questão clássica da filosofia política, a saber, a questão dos regimes

políticos. Ou, para usar os termos de Espinosa, a questão dos gêneros de estado civil.

Novamente, em Espinosa, na medida em que todo o rol conceitual foi

modificado, o que existe é, também neste ponto, o que se poderia chamar de uma

reformulação conceitual. Esta reformulação, é claro, decorre dos conceitos acima

analisados. Procurarei, a seguir, articular os conceitos já vistos com a proposta

espinosana para a questão dos modos pelos quais a potência da multidão se organiza

em formas de estado civil e segundo quais critérios.

Espinosa afirma, como já analisado acima, que o direito definido pela

potência da multidão costuma ser chamado de imperium (TP II 17 p. 20). Este ponto é

retomado no capítulo 3 do Político para que a questão dos regimes seja colocada pela

chave da distribuição da potência189. Escreve Espinosa logo no início do referido

capítulo:

Diz-se civil a situação de qualquer estado [imperii cujuscunque status dicitur civilis G III 284]; mas ao corpo inteiro do estado [imperii] chama-se cidade, e aos assuntos comuns do estado [et communia imperii negotia G III 284], que dependem da direção de quem o detém, chama-se república. Depois, chamamos cidadãos aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e súditos na medida em que têm de submeter-se às instituições ou leis da cidade. (TP III 1 p. 25).

Os conceitos explicitados neste excerto foram analisados acima à luz

da questão da imitação dos afetos, mostrando como a lógica do estar sui juris ou

alterius juris tem estreita relação tanto com a lei do mal menor e do bem maior,

quanto com a imitação da esperança e do temor alheios, pela via da emulação afetiva.

O conceito de multidão demanda os conceitos de jus e de imitatio afetiva. Ocorre que

tais conceitos deságuam nos gêneros de estado civil, passagem que vem logo a seguir

189

Na mesma linha desta tese, de que importa, para Espinosa, a questão da potência e não a de uma especulação sobre o melhor regime, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, p. 17.

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à acima citada. Escreve Espinosa, após o excerto citado, agora derivando daqueles

conceitos o dos gêneros de estado:

Finalmente, dão-se três gêneros do estado civil [Denique status civilis tria dari genera G III p. 284], a saber, o democrático, o aristocrático e o monárquico [...]. Agora, antes de começar a tratar de cada um deles em separado, demonstrarei primeiro aquelas coisas que pertencem ao estado civil em geral, à cabeça das quais vem o direito soberano da cidade, ou dos poderes soberanos. (TP III 1 p. 25).

Espinosa dedicará, a seguir, alguns capítulos do Político à análise do

estado monárquico, bem como outros à análise do estado aristocrático. Detalhará,

igualmente, o modo de funcionamento de cada um desses gêneros de estado no

sentido de mostrar como eles devem se constituir e se manter de maneira que sejam

mais estáveis e garantam da melhor maneira o direito natural dos súditos. No mesmo

sentido, detalhará as instituições aptas a cada um dos tipos de estado civil, e quais as

que melhor operam, bem como a maneira de funcionamento de cada instituição em

função do regime em que está em operação. Não analisarei, na presente tese, o

detalhamento das regras que Espinosa estabelece para que cada regime melhor

funcione. Apenas no que se refere ao regime democrático farei uma análise que

tangenciará a questão das instituições. Isso porque interessa à presente tese, antes,

mostrar como a questão da potência e dos afetos da multidão acaba sendo o que há

de substrato ou fundamento para qualquer dos regimes. Este o ponto que será

desdobrado a seguir.

Volto, então, à questão dos regimes. O último capítulo do Tratado

político, dedicado ao regime democrático, como se sabe, restou incompleto (reliqua

desiderantur - o resto falta - G III p. 306; TP XI 4 p. 140). Espinosa faleceu antes de

completá-lo. Entretanto, algumas considerações acerca desse tipo de estado poderão

ajudar a esclarecer como a questão da distribuição da potência está na base dos

raciocínios da filosofia política espinosana para a definição dos gêneros de estado civil.

Procurei mostrar, nos itens acima, que o poder do soberano - ou

direito do imperium - é o direito de natureza expresso, ou seja, determinado, pela

potência da multidão, conforme Espinosa indica no Político (TP III 2 p. 25). Ao fazê-lo,

procurei explicitar a presença da lógica dos afetos, assim como de sua imitação, para a

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constituição da multitudo e para que esta transfira potência ao poder soberano e o

mantenha, bem como, consequentemente, mantenha o imperium.

Porém, Espinosa fala, ainda assim, em gêneros do estado civil. O que

os caracteriza e os define, dada a lógica afetiva e de potência na confecção do

imperium? Espinosa indica três gêneros do estado civil: o democrático, o aristocrático

e o monárquico (TP II 17 p. 20; TP III 1 p. 25). Afirma, também, que a potência da

multidão, que define o direito, chama-se imperium (TP II 17 p. 20). Isto se dá pela

lógica dos afetos, na hipótese deste trabalho. Quem detém este direito por completo,

absolutamente? Aquele que, por consenso comum (communi consensu G III p. 282),

tem a incumbência da república (curam reipublicae ex communi consensu habet G III

282), que é a de estatuir, interpretar, abolir direitos, etc.. E o que define o tipo de

estado? Espinosa diz que é precisamente aquele ou o quê fica com a incumbência da

república que define o tipo de imperium.

Se a incumbência da república pertencer a um conselho que é

composto pela multidão comum (communi multitudine componitur G III p. 282), o

estado é democrático. Se o conselho for composto por alguns eleitos, trata-se de

aristocracia. Se o imperium, isto é, a incumbência da república, estiver nas mãos de

um, o estado é monárquico. Portanto, ao que indicam os textos, os critérios dos tipos

de estado civil em Espinosa apenas formalmente passam pela questão do número de

governantes. Por outro lado, não se duvida que a questão do número dos que detêm o

poder de dizer o direito importa. E o prova o fato de que Espinosa se refere aos

números, à quantidade - todos, alguns, um - dos que têm a incumbência da república

ao tratar dos gêneros de estado civil, como mostrado no Político (TP II 17 p. 20). Mas o

que sustentará a potência do imperium não é o número dos que têm a incumbência da

república, mas a potência da multidão. O que de fato sustentará a potência da cidade,

por meio da potência da multidão, é o acesso dessa potência aos conselhos ou ao

conselho supremo - no caso da existência de outros conselhos.

Assim, se todos têm acesso ao conselho, se todos podem vir a fazer

parte dele (ou seja, os membros da multidão comum), tem-se por conseguinte a

democracia. A democracia não parece ser, pois, o governo de todos simplesmente. Ela

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está mais próxima de ser, ao que indicam os textos, a possibilidade de todos virem a

compor o conselho, segundo regras instituídas de acesso a este mesmo conselho. Em

outras palavras, as regras de acesso ao conselho, num estado democrático,

possibilitam que todos que compõem a multidão comum, segundo regras de idade ou

pertencimento à cidade, venham a tomar parte dele e venham a exercer o poder

soberano, que tem a incumbência da república. E a potência desse conselho será,

assim, a expressão da potência da multidão comum190.

190

Sobre a questão da democracia em Espinosa, questão tão mais polêmica em razão de o autor não ter terminado o Político exatamente no momento em que trataria deste gênero de estado civil, os intérpretes divergem abundantemente. Para a tese de que a democracia é impossível, ou de difícil estabilização, e que teria Espinosa chegado a uma aporia, ver uma interpretação clássica em: BALIBAR, Etienne. Spinoza and Politics. Translated by Peter Snowdown. London, New York: ed. Verso, 1998. Versão original: BALIBAR, Étienne. Spinoza et la politique. Quatrième édition. Paris: PUF, 2011 [1ª ed.1984]. Cito Balibar: "a democracia é um conceito problemático, pois ela corresponderia ao modo de existência de uma multidão já equilibrada, substancialmente 'unânime'" p. 86 (tradução minha). No texto da tradução para o inglês, há um capítulo não publicado na versão original francesa, no qual o autor diz: "em vez de uma teoria da democracia, o que nós temos é uma teoria da democratização, que é válida para qualquer regime" (p. 121 da versão inglesa). Num sentido ainda mais explícito, ver: BALIBAR, Etienne. Ultimi Barbarorum - Espinosa: o temor das massas. Discurso - Revista do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo, vol. 18, pp. 7-35, 1990. Afirma o autor: "A democracia é pensável, mas ela está desarmada" p. 17. Em interpretação oposta, a qual aponta que só é legítimo maximamente o poder se democrático, afirmando a necessidade da democracia no pensamento político de Espinosa, ver: ANDRADE, Fernando Dias. Pax Spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da FFLCH-USP como critério parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientadora: Marilena de Souza Chaui. São Paulo: 2001, p. 60 especialmente. No mesmo sentido, dizendo que Espinosa sempre teve em mira a democracia como melhor regime, mesmo ao tratar de outros regimes, ver: ANDRADE, Fernando Dias. A essência da política - necessidade da democracia no Tratado Político de Espinosa. In: OLIVA, Luís César Guimarães (org.). Necessidade e Contingência na Modernidade. São Paulo: Ed. Barcarola, 2009, pp. 247-281. Com tese próxima a esta, ver: ROCHA, André Menezes. Sobre a definição de democracia no TT-P. In: Cadernos Espinosanos XIX. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 2013, pp. 91-101. A. Rocha entende que a essência da democracia é anterior tanto ontológica como cronologicamente à essência dos demais regimes. Isto pode significar, segundo ao autor, que desde o TTP, toda a política de Espinosa está fundamentada na definição da essência da democracia (p. 91; p. 98). Com a tese de que sobre a democracia já se teria o essencial, mesmo não tendo Espinosa findo o capítulo XI do TP, ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09-101, p. 87. Democracia como prudência ou liberdade do corpo coletivo, e menos como estratégia de um estado perfeito (p. 92). Acerca da superioridade do regime democrático em Espinosa, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, pp. 283-284. Com tese de que, do ponto de vista da legitimação do regime, não haver diferença entre eles - tese, a meu ver, de difícil sustentação -, ver: A AL, Cemal Bâli e ER , Reyda. Sobre la incompatibilidad entre TP y el TTP. In: CHAUI, M.; TORRES, S.; BAHR, F.. Spinoza: cuarto coloquio. Córdoba: Brujas, 2008, pp. 407-416, p. 414. Sobre o verdadeiro lugar da decisão política e desta como saída para a guerra entre potências, ver: BOVE, Laurent. O direito à decisão em Spinoza e a questão do “sujeito” político. In: MARTI S, A.; SA TIA O, H.; OLIVA; L.C. (org.). As ilusões do eu: Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 137-161. Diz: “o verdadeiro lugar da decisão política não é o sujeito soberano (rei ou assembleia), mas o dispositivo dinâmico global que determina um Direito e/ou um regime da potência da multidão e seu processo de auto-organização política” (p.

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No Teológico-político, Espinosa afirmara que o que caracteriza o

regime democrático é a sociedade instituída sem contradição com o direito natural

(TTP XVI p. 239). Ou seja, cada indivíduo deve "[...] transferir para a sociedade toda a

sua própria potência, de forma que só aquela detenha, sobre tudo e todos, o supremo

direito de natureza, isto é, a soberania suprema, à qual todos terão de obedecer, ou

livremente, ou por receio da pena capital." (TTP XVI pp. 239-240). E conclui: "O direito

de uma sociedade assim chama-se Democracia, a qual, por isso mesmo, se define

como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a

tudo que estiver em seu poder." (TTP XVI p. 240). Mais à frente, Espinosa concluirá que

a democracia é o mais natural, o que mais se aproxima "[...] da liberdade que a

natureza reconhece a cada um." (TTP XVI p. 242).

As instituições que seriam as mais adequadas a este tipo de estado

civil certamente Espinosa desdobraria no Político, a obra inacabada. É o que indica o

projeto apresentado na Ep.84, reproduzido pelos editores das OP como prefácio ao

Político (TP Pref p. 3). Mas talvez algumas hipóteses possam ser levantadas a partir do

que há no capítulo XI do TP. O que significa, pois, nesse sentido, dizer que o conselho é

composto pela multidão comum? O que seria a democracia para o TP?

Inicialmente, penso, cabe afirmar que minha hipótese é a de que não

há aqui contradição entre as teses do Teológico-político, em seu capítulo XVI, em

momento acima citado, quando é tratada a democracia, e o Político. Quando Espinosa

escreve, no Teológico-político, que a democracia é o regime "[...] que mais se aproxima

146-147). Sobre a interessantíssima questão dos regimes políticos contemporâneos como regimes do fascismo cotidiano, mesmo quando se denominam democráticos, verificar: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-multitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. O regime do terror do fascismo não seria o regime do espírito moderno? - pergunta o autor (p. 114). Um 'viver como cão', uma animalização, seria o traço de tais regimes (p. 113). Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. Posição de Marilena Chaui em: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191. Cito a autora: “Isto significa que a política que efetiva a segurança é aquela que mantém a multidão sob seu próprio governo, ou seja, em que instituições e leis não se separam dos cidadãos, mas lhe são imanentes; em suma, a instituição democrática” (p. 185). Também em: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196. Contestando esta posição: TORRES, Sebastián. Securitas: retracción y expansión de la potencia democrática spinoziana. In: TATIAN, Diego (org). Spinoza. Segundo Coloquio. Buenos Aires:Altamira, 2006, pp. 295-308, p. 304.

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da liberdade que a natureza reconhece a cada um." (TTP XVI p. 242), entendo que se

trata da natureza de conatus de cada homem como parte da natureza, como

intensidade de potência, na natureza naturada, da sustância única. Ou seja, entende

Espinosa, nesta passagem, cada homem como potência para perseverar no ser, tese

decorrente da ontologia espinosana e de sua noção de substância como potência e dos

homens como modos finitos de intensidade desta mesma potência. E é claro que na

democracia, na medida em que um maior número de homens detém colegialmente o

direito a tudo (TTP XVI p. 240), um maior número será o responsável, como potência,

pelas regras que todos deverão obedecer. Em uma palavra, o maior número poderá

compor a instância instituidora do direito (das leis civis) que todos deverão obedecer.

Nesse sentido a democracia, no Teológico-político, é definida como o regime mais

natural. É uma questão de potência do maior número definindo quais serão as regras

para todos. Daí que seja o regime que mais se aproxima do estado de natureza e do

direito de natureza de cada homem. Não, entretanto, no sentido do direito natural

como abstração (TP II 15 p. 19), mas no sentido de exercício da potência natural, via

poder soberano, na medida em que o maior número pode ocupar tal poder e instituir

as regras comuns - ter as incumbências da república. Assim se está mais próximo da

natureza humana no sentido de que cada homem quer governar e não ser governado.

Na democracia, esta máxima, decorrente da natureza humana - querer governar e não

ser governado -, mais se aproxima de sua realização, pois o maior número decide as

regras que serão aplicadas a todos.

No Tratado político talvez se tenha apenas maior clareza quando ao

modo como isto se instrumenta no regime democrático. Que se trata de questão de

potência da multidão na definição de qualquer regime uma passagem da análise

espinosana da monarquia deixa claro. É a seguinte: "Concluímos, assim, que a

multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga

que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e

mantida sob a guarda desta." (TP VII 31 p. 85). Mas a conclusão é ainda mais clara

acerca do critério da potência da multidão como sendo o critério do regime do estado

civil: "Foi esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado

monárquico" (TP VII 31 p. 85).

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Volto à democracia e a analiso sob a ótica do último capítulo do

Tratado político. Ao que indicam os parágrafos restantes (quatro), são vários os

gêneros possíveis de estado democrático, segundo Espinosa (TP XI 3 p. 138). Mas

todos parecem passar pelo critério de que os membros da multidão comum, segundo

regras aceitas por ela mesma, possam ou não participar do conselho supremo e ter

acesso a cargos públicos na cidade. É o que diz Espinosa no parágrafo 1 do capítulo XI.

De fato, afirma Espinosa, todos cujos pais sejam cidadãos, ou que tenham nascido no

solo pátrio, ou que são beneméritos da república, ou aqueles a quem a lei, por outros

motivos, manda atribuir o direito de cidade, poderão ter "[...] o direito de voto no

conselho supremo e de aceder por direito a cargos de estado [...]." (TP XI 1 p. 137). Ou

seja, ao que indica o texto, o critério inicial é o de poder votar no conselho supremo e

o de poder ter acesso a cargos do imperium. A questão é quem pode ter acesso a estas

ações e cargos. Como dissera o parágrafo 17 do capítulo II, a democracia se caracteriza

por ter um conselho cuja composição é feita pela multidão comum. O capítulo XI

apenas indica que as regras para que essa participação ocorra podem ser várias - ter

pais cidadãos, nascer em solo pátrio, etc.. Em suma, o critério é institucional.

Mas a questão da potência logo aparece no texto no parágrafo 3 do

capítulo XI. Espinosa lá escreve que não tratará de cada um dos gêneros, mas apenas

daquele onde têm direito de voto e de aceder a cargos do imperium os que estão

obrigados somente às leis da cidade e aqueles que estão sui juris. Ora, estar sui juris é

o mesmo que ter direito e potência, não estar sob o poder de outrem. O primeiro

critério mostra que se quer dar ao conselho potência de quem pertence ao imperium.

Se ele é a potência da cidade, deve ter potência para fazer leis que tenham potência.

Portanto, o conselho perderia em potência caso fosse formado por membros

estrangeiros. Ainda, há outro critério: estar sui juris. Isto exclui, segundo Espinosa,

mulheres e servos, que estão sob o direito dos homens e dos senhores,

respectivamente.

Independentemente da questão polêmica da exclusão das mulheres

(questão que abordarei apenas em uma nota nesta tese191) da possibilidade de compor

191

Entendo que a questão das mulheres na democracia está posta muito laconicamente no capítulo XI do Político. Isso porque Espinosa, provavelmente, não teve tempo de desdobrar a questão em itens

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o conselho que definirá a potência da cidade, pois definirá suas leis, o que parece ser

comum é a exclusão da possibilidade de participação daqueles que não podem levar

potência ao conselho, o que poderia indicar diminuição da potência do conselho e,

consequentemente, do poder soberano.

O ponto que interessa ressaltar neste item c.4, na esteira do que vem

sendo afirmado sobre a filosofia política de Espinosa até o momento, mas agora para

tratar espinosanamente da questão dos tipos de estado civil, é que o critério definidor

do tipo de estado civil, segundo Espinosa, se funda na ontologia, o que liga a política

ao livro I da Ética. Tanto o estado monárquico quanto o estado democrático - as duas

pontas da linha de distribuição da potência da multidão no conselho supremo - se

fundam na potência de seus membros, isto é, dos componentes do conselho cujos

membros têm a potência definida pela multitudo mesma. No regime monárquico, com

efeito, Espinosa define como critério de seu bom funcionamento, de sua estabilidade,

subsequentes, uma vez que faleceu antes de completar o texto do Político. Numa leitura literal, sem refinamentos e cotejo com as demais obras, Espinosa parece realmente excluir, por natureza, as mulheres do governo democrático. Mas esta afirmação coloca o Espinosa do final do Político em contradição com o Espinosa da Ética e do Teológico-político. Parece que a tese da exclusão pura e simples das mulheres realmente não se coaduna com o restante da obra do autor. Sobre o tema: SALVIANO, Jarlee Oliveira Silva. O lugar da mulher na ontologia e no pensamento político de Espinosa: encontros e desencontros. In: Revista de Filosofia Kalagatos. Fortaleza: Publicação do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, 2007, pp. 109-127. Defendendo a possibilidade de uma ética para as mulheres em Espinosa, não obstante o final do Político, ver: LARRAURI, Maite. Spinoza e as Mulheres. Apresentação e tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. In: Revista de Filosofia Kalagatos. Fortaleza: Publicação do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, 2006, pp. 209-244. Para um estudo clássico acerca do tema, ver: MATHERON, Alexandre. Femmes et serviteurs dans La démocratie spinoziste. In: Études sur Spinoza et lês philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011, pp. 287-304. Matheron entende que o texto do final do TP é desconcertante (p. 304). Em texto ainda não publicado, lido em reunião do Grupo de Estudos Espinosanos (FFLCH USP), Marilena Chaui elabora uma análise da questão das mulheres em Espinosa: CHAUI, Marilena. Seminário Tratado político X e XI. Reunião do Grupo de Estudos Espinosanos na FFLCH USP. Na ocasião, a autora analisou a questão das mulheres no Político. São Paulo, 25 de junho de 2013. A posição da autora pode ser resumida na seguinte passagem do texto lido na ocasião: Espinosa exclui as mulheres por natureza, não por instituição. Mas se fosse a natureza das mulheres, Espinosa estaria em contradição consigo mesmo, visto que na Ética homens e mulheres são desejo para perseverar no ser. Não há diferença ontológica. Então afirma: "É, portanto, a paixão libidinosa masculina a causa natural da fraqueza das mulheres na política. A naturalidade da fraqueza ou a afirmação de que ela não é produto da instituição não se refere à natureza feminina e sim à forma natural da relação passional que os homens estabelecem com as mulheres" (grifos da autora, p. 20). Isto é, as mulheres levariam a cidade à instabilidade uma vez que a relação dos homens com elas não leva em conta a prudência ou outra característica das mulheres, mas o afeto libidinoso.

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a potência do rei ser fundada e mantida pela potência da multidão (TP VI 31 p. 85). No

estado civil democrático, no mesmo sentido, o critério para votar no conselho e aceder

a cargos do imperium, ao menos segundo o Político de modo explícito (TP XI 3 pp. 138-

139), passa pelo conceito de potência dos que serão membros. De fato, só pode votar

e aceder a cargos públicos quem está sui juris - excluindo-se servos, filhos, pupilos e

mulheres, todos sob o argumento de que não estariam sui juris. Ou seja, o critério é

sempre o da potência, e assim os fios da ontologia da Ética I, dos afetos da Ética III e

dos conceitos políticos do Teológico-político e do Político permanecem atados.

(d) Limites do soberano e o direito de resistir: há coisas que a cidade deve temer

Indiquei no item c.3 deste capítulo que retomaria a questão dos

limites do poder soberano. Coloco-a da seguinte maneira: o poder soberano é, em

certo sentido, a própria multidão, pois é ela que, por ser potência fundante e

mantenedora da potência do soberano, dá-lhe a incumbência da república. Como

analisado, incumbência da república significa criar direitos, interpretá-los, aboli-los,

etc.. Mas pode o poder soberano, independentemente do gênero de estado civil, criar

qualquer lei ou há limites ao seu exercício da potência?

É certo que há limites, e Espinosa trabalha esta questão de modo

explícito em passagens do Político. Já no parágrafo 2 do capítulo III do TP, afirma que o

poder do soberano é o poder da multidão (TP III 2 p. 25). No parágrafo seguinte,

Espinosa novamente afirma que o direito natural de cada homem não cessa no estado

civil. Diz que em ambos os estados - o civil e o natural - os homens agem segundo a

natureza (TP III 3 p. 26). E o que significa agir segundo a sua natureza? Ora, significa,

como não poderia deixar de ser, de acordo com o já afirmado na Ética III e repisado no

Político, que os homens agem de acordo com a natureza uma vez que são parte e

tomam parte nela (E III Pref p. 161). É pelo desejo, pelo esforço em perseverar no ser

que agem. E tal ação, escreve Espinosa a seguir no Político, se dá da maneira seguinte:

"O homem, sublinho, em ambos os estados, é pela esperança ou pelo medo que é

conduzido a fazer ou a omitir isto ou aquilo." (TP III 3 p. 26), sendo a principal

diferença entre ambos os estados a de que no civil todos temem as mesmas coisas, por

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ser idêntica a todos a causa de segurança e a regra de vida, sem que isso impeça,

aponta Espinosa, a capacidade de julgar de cada um (TP III 3 pp. 26-27). Mesma tese,

aliás, quanto à capacidade de pensar o que se quer e dizer o que se pensa, exposta e

analisada no Teológico-político (TTP XX pp. 300-310). O ponto importante para o que

se quer analisar neste momento é que nada nem ninguém podem estar fora das leis e

regras da natureza, e é por este veio que Espinosa mostrará os limites do poder

soberano e sua relação com este equilíbrio entre a instância que edita leis - o soberano

- e aquela que lhe dá potência de existir - a multidão. Há coisas que a potência do

soberano não pode fazer, e tal critério é a própria natureza, suas leis, e portanto a

natureza dos homens, os quais operam segundo as leis da substância única.

Quais são tais limites? O parágrafo 8 do capítulo III do Político adianta

alguns pontos. Há coisas que ninguém pode ser induzido a fazer, seja por recompensas

ou ameaças advindas da potência do soberano. Espinosa então afirma que "[...]

ninguém pode ceder a faculdade de julgar [...] [judicandi facultate G III p. 287]." (TP III

8 p. 29). Outro limite: "[...] pode o homem ser induzido a amar quem ele odeia, ou a

odiar quem ele ama?" (TP III 8 p. 29). E ainda, escreve Espinosa, não pode um homem

"[...] testemunhar contra si mesmo, torturar-se, matar os seus pais, não se esforçar por

evitar a morte e coisas semelhantes [...]." (TP III 8 p. 29). De fato, por que razão não

pode o poder soberano, por meio seja de ameaças, e sobretudo pela promessa de

bens maiores, induzir quem quer que seja a tais atos? Ora, porque tais atos seriam

uma afronta a leis naturais inscritas no próprio funcionamento do desejo de cada

homem. De fato, é um paradoxo uma potência, qualquer que seja, e mesmo a do

poder soberano, exigir que qualquer humano julgue como bom aquilo que para ele é

mau. A faculdade de julgar é inalienável. É um dos pontos que Espinosa já ressaltara no

Teológico-político como inalienável (TTP XVII p. 250 e TTP XX pp. 300-310). E, pela

lógica dos afetos, se explicam os demais limites ao poder soberano acima enumerados.

Sendo o amor uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior (E III Def af 6

p. 241), como experienciar a alegria se a causa é de tristeza? Como amar quem se

odeia e vice-versa? No mesmo sentido, tudo o que contraria a lógica afetiva elementar

em cada homem, como atentar contra a própria razão de ser, em face de seu conatus

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(E III P 6 p. 173), como é o caso de testemunhar contra si mesmo ou torturar-se, não

pode ser objeto da potência ou das leis editadas pelo poder soberano.

Espinosa é ainda mais explícito quanto ao tema dos limites do poder

soberano no capítulo IV, parágrafo 4, do Político. Na ocasião em que analisei o afeto

indignação (item (f) do capítulo 1), apontei para o tema da política que daí decorria.

Naquele momento mostrei, no mesmo sentido indicado acima, que o poder soberano

não pode desconsiderar a natureza e, portanto, não pode agir contra a natureza

humana sem que daí advenham consequências que podem desconstruir aquela

específica estrutura do poder soberano. Não retomarei aqui a análise mais longa que

lá empreendi acerca da relação entre o afeto indignação e a desconsideração, pelo

poder soberano, das leis da natureza humana. Apenas relembro - focando no tema da

multidão -, como já fiz acima movimentando outras passagens do Político, que a tese

espinosana é a de que o poder soberano tem como fonte de potência a própria

multidão. Pode-se dizer que o poder soberano somente tem poder de criar e aplicar o

direito civil na medida em que a multidão, conduzida "como que por uma só mente",

dá a ele esta incumbência e a mantém pela lógica dos afetos. Ou, mais precisamente,

pela lógica da imitatio afetiva, por sua vez fundada na tese da decisão pelo bem maior

e pelo mal menor.

Quando a cidade - que é o corpo do imperium (TP III 1 p. 25) - realiza,

em face de seus súditos, atos que desconsideram as consequências dos afetos destes,

perde potência na medida em que o afeto indignação, por meio de blocos de mentes

que vão contra o poder soberano da cidade, se estabelece e se capilariza entre os

súditos-cidadãos. Pode ocorrer, nesse caso, a morte do corpo da cidade por perda de

potência da instituição responsável pela criação e aplicação do direito civil. Ou seja, o

poder soberano da cidade, responsável pelos atos da república, pode se dissolver.

Quando e como ocorre o mecanismo de indignação que expliquei com maiores

detalhes no item (f) do capítulo 1? Ocorre, aponta Espinosa, quando a cidade pensa

poder fazer com os homens o que contraria, ou seja, não leva em conta, a natureza

destes. Por exemplo, exigir dos membros que "[...] olhem como honroso o que provoca

riso ou náusea [...]." (TP IV 4 p. 39). Ou, ainda e no mesmo sentido, quando aquele - ou

aqueles - que detém o poder do imperium passa a "[...] correr ébrio ou nu com

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rameiras pelas praças, fazer de palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por

ele próprio editadas [...]" (TP IV 4 p. 39) e ainda desejar manter a majestade, ou seja, a

potência. Isto é o mesmo, escreve Espinosa, que querer "[...] ser e não ser ao mesmo

tempo." (TP IV 4 p. 39). Como também analisei no item (f) do capítulo 1, neste caso o

que ocorre é que o direito da multidão, o qual se manifesta pelo afeto indignação,

passa a não mais dar potência à cidade e se canaliza para a sua destruição.

Recapitulo este ponto. Sendo a indignação um afeto no qual se sente

ódio àquele que faz mal a outrem, o mecanismo neste caso é: as ações dos desejos

que compõem a multidão e que dão potência à cidade passam a esvaziar esta mesma

cidade de potência. Quando o poder soberano, isto é, os seus representantes, passam

a agir ignorando os resultados afetivos de seus atos nos membros da multidão - com

ações que vão desde correr nus ou ébrios com rameiras até mandar que se odeie o

que se ama e vice-versa (TP IV 4 p. 39) -, fazem que as mentes dos membros da

multidão se encham de indignação. Neste caso, a multidão passa a odiar o poder

soberano na medida em que este está a fazer mal à própria cidade, ao imperium. Ora,

como o poder do imperium advém do poder dos desejos em multidão192, quando estes

sentem não a esperança ou a segurança, mas a indignação, o direito passa a ser o

direito de guerra em face daquele em relação a quem se sente indignação. Por isso

Espinosa constata que há coisas que a cidade deve temer (TP III 9 p. 30), pois são

coisas que levam a potência da cidade, e portanto seu direito, ao entorno de um grau

zero.

De fato, este ponto se apresenta em toda sua clareza ao final do

capítulo IV do Político, momento em que Espinosa afirma que "O contrato [contrato

seu leges G III p. 294]193, ou as leis pelas quais a multidão transfere o seu direito para

192

Sobre a questão da potência de multidão, e não da multidão, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008. Diz o autor: "A multidão não é potência do comum, é o conceito explicativo da realização da potência individual em comum" (p. 292). 193

Interessante notar que mesmo utilizando a expressão 'contrato', Espinosa diz: contrato seu leges (G III p. 294). Ou seja, depois de usar a expressão 'contrato', afirma que este, por meio do termo seu leges, é o mesmo que 'as leis pelas quais a multidão transfere', o que aqui pode ser a lei segundo a qual se quer o maior bem e o menor mal sob a forma de um regramento qualquer - de qualquer povo - que define como a transferência se dá.

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um só conselho ou para um só homem devem, sem dúvida, ser violadas quando

interessa à salvação comum violá-las." (TP IV 6 p. 40). Logo depois, entretanto,

Espinosa diz que não é qualquer juízo que pode fazê-lo, não é qualquer privado que

pode fazê-lo (TP IV 6 pp. 40-41). Não obstante, acresce, na sequência, um "se,

contudo" [quod si tamen] (TP IV 6 p. 41). E afirma:

Se, contudo, elas [as leis] são de natureza tal que não podem ser violadas sem que ao mesmo tempo se debilite a robustez da cidade [por exemplo, mandam amar o que se odeia e vice-versa, violar-se, mutilar-se, matar os pais, etc.], isto é [hoc est], sem que ao mesmo tempo o medo comum da maioria dos cidadãos se converta em indignação, a cidade, por isso mesmo, dissolve-se e cessa o contrato, o qual, por conseguinte, não é defendido pelo direito civil, mas pelo direito de guerra. (TP IV 6 p. 41).

Analisei esta passagem, à luz do mecanismo do afeto indignação, no

item (f) do capítulo 1. Apenas recordo, neste momento, que é a multidão, por sentir,

em conjunto (como que por uma só mente), o afeto indignação, que neste momento,

para defender o direito natural de cada um, exerce seu direito de guerra. Ou seja, as

leis, por não expressarem mais a potência da multidão - pois em vez de formarem o

imaginário da esperança e da segurança, formam o da indignação -, levam esta mesma

multidão não à manutenção do soberano, mas ao seu esfacelamento. E tal se dá

porque o contrato, expresso por estas leis sem potência, já não mais se sustenta

afetivamente, ou seja, com afetos alegres, tais como a esperança e a segurança. O que

há é indignação levando as mentes dos membros individuais em multidão a

desconstruir aquela específica forma de imperium na medida em que ela já não mais

atende, efetivamente, à demanda afetiva da multidão. E a demanda afetiva da

multidão, por questões ontológicas, é por afetos alegres, por maior potência do todo

da multidão e de cada um de seus membros.

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(e) A política e seu avesso: paz como fortaleza de ânimo versus paz como ausência de

guerra194

O prefácio ao Político, na verdade a carta 84 acrescida ao tratado

pelos organizadores das obras de Espinosa publicadas postumamente, é uma espécie

de mapa para o leitor do livro.

Com efeito, Espinosa escreve ao destinatário anônimo195 que estava

empenhado em obra útil, a saber, o Tratado político. Mostra então ao destinatário os

caminhos já percorridos e os que ainda estavam por ser realizados. Seis capítulos do

tratado já estavam concluídos na ocasião196. E passa Espinosa a fazer um sumário que

indica os seguintes caminhos: capítulo primeiro contendo uma introdução à obra; o

segundo tratando do direito natural; o terceiro dos poderes soberanos; o quarto

acerca dos assuntos políticos que dependem dos poderes soberanos; o quinto, do fim

mais elevado e último que uma sociedade pode ter em vista; o sexto, de qual a ratio de

um imperium monárquico para que não resulte em tirania. Escreve, por fim, que se

ocupa na ocasião do capítulo sétimo, no qual esmiúça as instituições da monarquia

bem ordenada. E aponta para o que faria após, a saber, trataria do imperium

aristocrático e do popular (democrático [populare imperium - G IV 336]), para, ao final,

escrever acerca das leis e outros assuntos relativos à política (TP Pref pp. 3-4). Sabe-se

que Espinosa findou as reflexões acerca do imperium aristocrático, mas deixou

incompleto o tratamento da democracia, bem como as questões gerais respeitantes às

leis e à política.

O que há de surpreendente nesta ordem, para o que interessa ao

ponto central desta tese, é o tema e o lugar do capítulo quinto. Ou seja, "[...] qual o

fim último e mais elevado que uma sociedade pode ter em vista [...] [quintum quidnam

sit illud extremum et summum, quod societas potest considerare G III p. 272]." (TP Pref

p. 3). Por que não tratar deste tema em cada um dos capítulos referentes aos regimes,

para mostrar que o democrático é o que mais satisfaz a natureza humana, ecoando o

194

Uma parte dos temas deste item (parágrafo sexto em diante), com redação diversa, foi apresentada na ANPOF 2014 (GT Pensamento do Século XVII), realizada em Campos do Jordão de 27 a 31 de outubro de 2014. O título da apresentação foi: Medo, desespero ou O avesso da Política. 195

Sobre o destinatário anônimo, ver: ESPINOSA. Correspondencia. Introducción, traducción, notas e índices de Atilano Dominguez. Madrid: Aliança editorial, 1988, p. 413, nota 442. 196

A Carta é provavelmente do segundo semestre de 1676. Ver: ibid., p. 413.

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Teológico-político e o refinando? Minha hipótese passa pelo argumento seguinte: é

claro, pelo texto do Teológico-político, que Espinosa mira a democracia como o mais

natural dos regimes, isto é, aquele que mais satisfaz a natureza humana, na medida

em que ninguém quer ser governado e todos querem governar. Trata-se do regime de

melhor equação entre homens como potência, de um lado, e desejo de mando e de

não ser comandado, de outro (TTP XVI pp. 240-242). Entretanto, mesmo em regimes

como o monárquico, no qual há o governo de um, Espinosa se esforça por mostrar que

o que dá potência ao rei é a multidão (TP VII 31 p. 85). Um apenas, com sua potência

isolada, não tem como governar, pois a "[...] potência de um só homem é, de longe,

incapaz de sustentar tão grande peso." (TP VI 5 p. 49). Daí a necessidade de uma

distribuição da potência do soberano para os conselhos, cujos membros devem ser

numerosos. Como propõe Espinosa, "[...] os conselheiros do rei, que estão próximos

ou logo a seguir a ele em dignidade, devem ser bastante numerosos [...]." (TP VI 15 p.

53). A questão do melhor gênero de estado civil deve ser iluminada pela questão que é

objeto do capítulo quinto, o qual antecede os capítulos em que os regimes passarão a

ser objeto direto do tratado, ou seja, capítulo sexto e seguintes.

Em suma, a hipótese é a de que o capítulo quinto está localizado

estrategicamente entre os capítulos gerais (Desde a Introdução até o capítulo quarto)

e o primeiro capítulo que tratará da questão clássica dos regimes (monárquico,

aristocrático e democrático), depois do qual virá o tratamento dos demais regimes.

Interessa destacar, portanto, que o capítulo quinto mostra que há uma questão de

fundo a iluminar qualquer análise de gêneros de estado civil ou de tipos de regime, a

saber, a do fim maior e mais elevado que uma sociedade pode ter em vista,

independentemente do regime. É certo que no regime democrático há o melhor para

as potências individuais. Espinosa procurará mostrar, entretanto - daí o lugar do

capítulo quinto na economia do texto do Político, pois o que ali foi desenhado vale

para qualquer dos regimes a serem tratados na sequência -, como a fortaleza de ânimo

dos súditos-cidadãos pode ser garantida da melhor maneira, em cada gênero de

estado civil, em razão de suas peculiaridades.

Mostrarei, assim, a importância deste capítulo para as questões que

foram trabalhadas anteriormente na presente tese. A frequência dos afetos alegres,

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bem como, correlato a isso, a intensidade do direito natural dos súditos-cidadãos na

cidade, irromperão como sendo a razão da importância do referido capítulo. E não

apenas os afetos em geral, mas aqueles ligados ao que se poderia chamar de política

de realização máxima do desejo dos membros do corpo político e de seu direito

natural individual. E, outro lado da moeda, o que significa a não realização destes

desejos, e que se poderia chamar de situação em torno de um grau zero de

potência197. Trata-se da questão que Espinosa coloca nos seguintes termos: a

diferença, de enorme importância para a reflexão política, entre paz como ausência de

guerra e paz como fortaleza de ânimo.

***

Na famosa Carta 50 a Jarig Jelles, Espinosa explicita o fosso que o

separa da filosofia política hobbesiana ao dizer que mantém sempre o direito natural

(Ep. 50, p. 398). De fato, como visto pontualmente nos itens (b) e parte final do item

c.2, ambos do capítulo 2, Hobbes entende, pelos mecanismos de transferência de

direitos naturais dos súditos-pactuantes ao soberano, por intermédio dos conceitos de

pessoa (Leviatã I 16 p. 135) e representação, que o poder soberano passa a deter os

direitos naturais transferidos pelo pacto. Afirma, nesse sentido:

[...] é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado [commonwealth], em latim civitas. (Leviatã II 17 p. 144).

Ressalte-se, entretanto, que Hobbes impõe limites à transferência,

ligados à razão mesma de criação do Estado, ou seja, a preservação da vida, num

sentido fisiológico. Se os homens em estado de natureza estão em uma guerra de

todos os homens contra todos os homens (Leviatã I 13 p. 109), levando uma vida "[...]

solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta" (Leviatã I 13 p. 109), o Estado não

poderá se furtar à função precípua para a qual foi criado, a saber, a de garantir a vida

instituindo a paz - aqui entendida como ausência de guerra de todos contra todos

197

Sobre a questão que inspirou a expressão 'em torno de um grau zero de potência', ver: LIRA, José Tavares Correia de. Suicídio e preservação de si: em torno de um grau zero de conatus. In: Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1996, pp. 113-134.

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(Leviatã I 13 p. 109). Daí que, mesmo havendo transferência do direito natural de cada

homem a um homem, ou a uma assembleia de homens (Leviatã II 17 p. 144), há limites

ao soberano: o direito de cada homem, mesmo em face do poder do Estado, "[...] de

evitar a morte, os ferimentos ou o cárcere." (Leviatã I 14 p. 119).

A paz como ausência de guerra é conceito preciso no texto do

Leviatã, o que pode dar um parâmetro, por contraste, de como Espinosa se posiciona

em face desse conceito, propondo, como mostrarei a seguir, a definição de paz como

força advinda da fortaleza de ânimo (TP V 4 pp. 44-45). O conceito de paz em Hobbes,

segundo o Leviatã, é apresentado no capítulo XIII da Parte I. Hobbes o define nos

seguintes termos:

[...] durante o período em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; [...] pois a guerra não consiste apenas na batalha, [...] mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. [...] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (Leviatã I 13 p. 109).

Portanto, para Hobbes, a paz é definida como o período em que não

há o ânimo de travar batalha entre os homens, por oposição ao período em que este

ânimo existe. O tempo de paz é definido por oposição ao conceito de guerra, de modo

que este último é definido como sendo o período em que os homens vivem sem um

poder comum que os disponha ao respeito mútuo - a commonwealth ou Estado.

Volto à afirmação de Espinosa de que mantém o direito natural na

civitas para, após, tratar de seu conceito de paz. Esta curta passagem do início da carta

(Ep. 50, p. 398) talvez possa ser esclarecida e aprofundada com a análise do Tratado

político à luz dos conceitos da Ética, alguns dos quais trabalhados em outros

momentos da tese. Para entender a questão da permanência do direito natural no

estado civil - um direito natural que, à luz dos demais textos de Espinosa, deverá ser

exercido com qualidade, como potência tendendo ao máximo e com predominância de

afetos alegres -, a tese que diferenciaria Espinosa de Hobbes segundo a carta, o tema

da diferença entre paz como ausência de guerra, de um lado, e paz como fortaleza do

ânimo, por outro, será chave.

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Fica evidente a importância dos afetos para as teses do Tratado

político quando Espinosa escreve, logo no primeiro parágrafo da obra, que os afetos

serão tratados por ele de forma diversa daquela que os demais filósofos os trataram

(TP I 1 p. 5). Ou seja, na mesma linha argumentativa já explicitada na Ética III (E III Pref.

p. 161), não serão tratados como vícios, mas como coisas naturais, "[...] propriedades

que lhe [ao homem] pertencem, tanto como o calor, o frio, a tempestade, o trovão e

outros fenômenos do mesmo gênero pertencem à natureza do ar, [...] e têm causas

certas, mediante as quais tentamos entender a sua natureza." (TP I 4 p.8).

Espinosa desdobrará esta importância dada aos afetos e o seu

tratamento como fenômeno natural no decorrer do Político. Procurarei indicar alguns

pontos da obra em que fica evidente a importância dos afetos acima apontados para

forjar a política da cidade ou seu avesso, isto é, um grau quase zero de potência dos

súditos que faz que se possa apontar para o fim da política, da cidade, isto é, para a

situação em que aquilo que há é um deserto de potências individuais. Deserto de

potências individuais, ou seja, algo que está próximo de um grau zero de intensidade

do corpo e da mente ao se observar cada homem na civitas. Portanto, situação, para

os súditos-cidadãos, avessa ao que Espinosa entende como sendo a razão de ser do

imperium e da cidade como seu corpo inteiro (TP III 1 p. 25). Sua razão de ser, ou seja,

instituição da paz na cidade como vis ou força dos seus membros.

No parágrafo segundo do capítulo quinto do Político, Espinosa

estabelece que a finalidade do estado civil no imperium é "[...] a paz e a segurança de

vida [...]" (TP V 2 p. 44). E, pouco depois, diferencia um imperium sem guerra daquele

que está em paz. De fato, escreve que "[...] a paz não é ausência de guerra, mas

virtude que nasce da fortaleza de ânimo [Pax enim non belli privatio, sed virtus est,

quae ex animi fortitudine oritur - G III 296] [...]". E complementa: "[...] aquela cidade

cuja paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para

que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer uma solidão [solitudo]198

do que uma cidade." (TP V 4 pp. 44-45).

198

Na tradução de Émile Saisset, revisada por L. Bove, a expressão usada é "c'est une solitude". Ver: SPINOZA. Traité politique. Traduction d´Émile Saisset révisée par Laurent Bove. Introduction et notes par Laurent Bove. Paris: Librairie Génélare Française, 2002, p. 159. Na nota referente à expressão, L.

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Paz e segurança de vida [pax vitaeque securitas G III p. 295] como

finalidades do imperium (TP V 2 pp. 43-44). Paz como virtude que nasce da fortaleza de

ânimo [Pax enim non belli privatio, sed virtus est, quae ex animi fortitudine oritur - G III

p. 296]. Com tais conceitos Espinosa faz a ponte entre direito como potência, afetos,

cidade, política e o conceito de paz. Desdobro a seguir este ponto, esclarecendo a tese

de que a paz é fortaleza de ânimo dos súditos, não ausência de guerra199.

Procurei mostrar que o homem é povoado, por assim dizer, pelos

afetos, os quais não são senão transições de intensidade de potência. Quando o

Bove diz que Espinosa evocaria uma palavra atribuída a Galgacus, chefe caledoniano (Caledônia é a atual Escócia) que resistiu à invasão romana. Galgacus teria dito, sobre os conquistadores, que faziam um deserto onde diziam ter estabelecido a paz. A citação seria de Tácito em Vie d'Agricola, 30 (p. 162). No mesmo sentido, dizendo que Espinosa se referiria à citação de Tácito [ubi solitudinem faciunt pacem appellant], e traduzindo como 'a desert', ver: SPINOZA. Political Treatise. Translated by Samuel Shirley. In: Complete Works. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2002, p. 699. A. Dominguez usa 'soledad'. Ver: SPINOZA. Tratado político. Traducción, Introducción, índice analítico y notas de Atilano Dominguez. Madrid: Alianza editorial, 1986, p. 120. Na tradução de R.H.M. Elwes, usa-se 'desert'. Ver: SPINOZA. A Theologico Political Treatise and A Political Treatise. Translated from the Latin by R.H.M. Elwes. New York: Dover publications, 1951 (first edition), p. 314. 199

Laurent Bove, ao analisar o espírito contemporâneo como de terror ordinário, cotidiano, levanta uma tese, de fundamento espinosano, muito rica em desdobramentos (tema já apontado no item (g) do capítulo 1, em nota de rodapé, e aqui retomado). Afirma Bove: "O 'terror' não é, portanto, um simples sentimento de medo ou até mesmo de pânico externo, mas o poder assassino silencioso e secreto que desvia o corpo e o espírito da identificação espontânea à dor do semelhante. Essa 'aptidão para viver a vida de outrem (e, na vida em comum, a viver da vida de outrem) é uma potência artista ('puissance artiste'), diz Camus, a da comunicação da 'carne'. Anterior a toda história, a 'carne, seja ela sofredora, seja ela feliz', é assim o cadinho mesmo da hominização. Quando, ao contrário, se apaga sua particular aptidão que lhe 'permite reconhecer a constante justificação dos homens que é a dor', o espírito do homem se dispõe a um novo tipo de julgamento, animalizado. Animalidade não (apenas) da 'besta' nazi, que oprime segundo a Lei, mas do homem ordinário que, 'com o coração em paz porque sem dúvida já tomou seu café da manhã', pode, sem 'vergonha', viver na indiferença pela opressão e a 'dor humana', cumprindo suas funções (às quais ele se identifica) com cuidado e senso de dever" (pp. 96-97). As expressões entre aspas (como 'terror', etc.) referem-se a várias notas de rodapé do texto original que não indiquei nesta nota. São termos extraídos de excertos das obras completas de Albert Camus, da conferência La crise de l´homme. Ver nota 96 do livro de L. Bove, citado abaixo (p. 90). Ou seja, a questão das democracias que não capilarizam pelo corpo político a hilaritas pode ser colocada no rol maior das questões políticas relativas à diferença entre paz como ausência de guerra e paz como fortaleza de ânimo. Por outra, que tipo de democracia se tem quando o afeto dominante é o desespero - causado pelo Estado, pela burocracia, pelo desemprego, pela precarização dos modos de vida, etc.? Ver: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-multitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. Citação e paginação da citação acima a partir da tradução indicada. Sobre a questão do conatus humano como resistência estratégica, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012. O autor desdobra a questão do conatus como resistência e estratégia e mostra, assim, que a ação em face de regimes tirânicos, que diminuem o conatus, somente pode ser a resistência. Se o nosso tempo for o de terror ordinário, como afirma ao autor no texto supra, nada mais jurídico que a resistência em face das instituições que levam à diminuição da potência dos súditos-cidadãos. Ver o capítulo 3 desta tese para um desdobramento contemporâneo do tema do direito natural como resistência.

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homem é causa adequada de uma afecção, tem-se um afeto alegre e uma ação ou

afeto ativo, diz Espinosa na Ética (E III Def 3 Explic p. 163). Quando a afecção é causada

externamente, o afeto que se tem é uma paixão, ou seja, um afeto passivo (E III Def 3

Explic p. 163). Se todos os homens tivessem conhecimentos adequados do que lhes é

útil, e vivessem sob as prescrições da razão, sempre, não haveria necessidade de uma

cidade, nem da política, pois estariam os homens sempre de acordo entre si (E IV P 35

Dem p. 303). Entretanto, escreve Espinosa, "[...] é raro que os homens vivam sob a

conduta da razão." (E IV P 35 Esc p. 303). O que ocorre com mais frequência é que os

homens vivam sob os afetos passivos. Ou, como afirma ao final das proposições da

parte III da Ética, "[...] fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de

muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas pelas causas exteriores, somos

jogados de um lado para o outro [...]." (E III P 59 Esc p. 237).

A cidade é forjada precisamente para ser o veio no qual os homens

possam ter paz e segurança. Mas, se a paz não é o mesmo que ausência de guerra,

mas virtude (de vis, força, em latim) que nasce da força do ânimo, há que se levar em

conta o tipo de afeto predominante que o imperium determina nos súditos.

Todos os afetos derivam dos três primários, como Espinosa mostra, e

dos quais todos os demais são manifestações. O par esperança-medo é que vem a ser,

cessada a dúvida, segurança ou desespero, afetos mais estáveis. Este deriva do medo

quando cessa a dúvida. Aquela deriva da esperança quando cessa a dúvida, como

analisei nos itens (e) do capítulo 1 e (b) do capítulo 2. O desespero é tristeza,

diminuição da perfeição, menor intensidade de potência, uma espécie de direito

natural exercido precariamente, pois com pouca intensidade ou potência. A segurança

é alegria, portanto intensidade maior do conatus de tal ou qual homem, direito natural

deste homem sendo exercido com estabilidade e qualidade maiores.

Como Espinosa define, na Ética III, a fortaleza de ânimo?

Fortitudinem ou fortaleza - mesma expressão utilizada no Político (TP V 4 p. 45) na

passagem acima citada -, quando indicada na Ética, aparece como firmeza e

generosidade (animositatem et generositatem). As definições são as seguintes: por

firmeza o autor compreende o desejo "[...] pelo qual cada um se esforça [conatur] por

conservar seu ser pelo exclusivo ditame da razão." (E III P 59 Esc p. 235). Por

generosidade, escreve, "[...] compreendo o desejo pelo qual cada um se esforça

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[conatur], pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar os outros homens e para unir-se

a eles pela amizade." (E III P 59 Esc p. 235).

Mas o agir de acordo com a razão, nos homens, é algo raro (E IV P 35

Esc p. 303). Como pode ocorrer, pois, que tais afetos surjam com mais frequência nos

homens? Minha hipótese é a de que a fortaleza de ânimo será possibilitada por

instituições bem construídas pela política. Por isso Espinosa utiliza este afeto, no

Político, ao tratar do seu conceito de paz como dele advindo. Analiso este tema abaixo.

A política é o meio pelo qual os homens podem vir a ter a alegria em

seu maior grau, ou seja, a experiência dos afetos do fortalecimento de si mesmo e do

fortalecimento do outro - os afetos firmeza e generosidade. De fato, se os homens

apenas se conduzissem pela razão, a fortaleza de ânimo seria um afeto experimentado

por todos, pois necessariamente todos concordariam entre si (E IV P 35 Dem p. 303).

Mas como é raro que isto ocorra, isto é, que os homens se conduzam pela razão (E IV P

35 Esc p. 303), a política é a astúcia institucional que leva à concórdia, isto é, o canal

possibilitador do exercício adequado - real - do direito natural e do cultivo,

consequentemente, dos afetos alegres. A cidade é o local em que tais afetos podem vir

a existir com maior frequência nos homens, mas não sempre, visto que, caso se

conduzissem pela razão, não seria necessária a política, nem a cidade. Some-se a este

ponto o que foi afirmado acima, isto é, que a paz é virtude que nasce da fortaleza de

ânimo (TP V 4 pp. 44-45 - ex animi fortitudine oritur G III p. 296), e se pode concluir, a

partir desses argumentos, que a paz que a cidade propicia pode ser aferida pelas

intensidades dos ânimos dos súditos, uma vez que virtude para Espinosa é o mesmo

que potência do homem (E IV P 20 Dem p. 289). Com efeito, "A virtude [virtus] é a

própria potência humana [...] que é definida exclusivamente pelo esforço pelo qual o

homem se esforça por perseverar em seu ser." (E IV P 20 Dem p. 289).

Como se encaixa, neste raciocínio, o conceito de multidão? A paz é

possibilitada pela política, conforme analisei acima. E a política - e aqui está o papel da

multidão - é forjada na e pela multitudo no interior da cidade. A segurança da vida, que

Espinosa estabeleceu como sendo conjugada à paz, ambas sendo finalidades do

imperium (TP V 2 p. 44), é, como procurei mostrar acima, um afeto. Este afeto,

expressão da alegria, deriva da esperança que a cidade gera nas mentes dos homens

que nela vivem. Entretanto, a esperança pode vir a ser medo e novamente esperança,

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dada a precariedade desse par afetivo. Às instituições da cidade caberá dar

estabilidade ao afeto esperança, isto é, transformá-lo, nas mentes dos homens, em

segurança de uma vida que poderá ser vivida para além da sobrevivência, do mero

bios. A cidade dá aos homens um horizonte imaginário de futuro seguro, e este afeto,

em predominância, sustenta a cidade, pois a multitudo, formada pelos desejos dos

homens, é que sustenta o poder soberano da cidade.

Por isso Espinosa afirmará, no passo seguinte ao movimento cidade-

solidão (TP V 4 p. 45), que a multidão - multiplicidade de desejos ou receios articulados

à potência comum, na definição de Diogo Pires Aurélio200 - subjugada conduz-se mais

pelo medo, ao passo que a multidão livre conduz-se mais pela esperança (TP V 6 p. 45).

Afirma Espinosa, para concluir este movimento argumentativo, que "[...] aquela [a

multidão livre, que se conduz mais pela esperança que pelo medo] procura cultivar a

vida, esta [a multidão subjugada, que se conduz mais pelo medo que pela esperança]

procura somente evitar a morte [...]." (TP V 6 p. 45). A multidão que procura cultivar a

vida é aquela que sustenta um tipo de poder soberano que cria instituições - o direito

civil da cidade - propiciadoras de um imaginário afetivo de presente e futuro seguros.

Neste imaginário, presente nas mentes dos membros da cidade e emulado pelos

desejos desses mesmos membros, via imitatio afetiva, os afetos predominantes são os

derivados da alegria. Por isso a vis (a virtude como potência ou força) constitutiva do

conceito de paz espinosano nasce da fortaleza de ânimo. Somente súditos que se

reconhecem no que o poder soberano da cidade faz por eles - pois o direito civil vem,

neste caso, do "[...] decreto comum da cidade [ex communi civitatis decreto G III p.

296] [...]" (TP V 4 p. 45) - podem viver na paz entendida como situação em que os

conatus têm alto grau de potência. Não vivem, pois, subjugados pelo soberano, mas

constituem, tomam parte nas decisões da cidade e procuram estimular instituições

que capilarizem afetos alegres no interior do corpo político.

O medo, por outro lado, é o afeto que, se estimulado pelo poder

soberano, poderá se estabilizar, nas mentes dos homens, como desespero. Afeto

triste, no qual a dúvida acerca do medo antes sentido cessa, o desespero é o retrato de

uma cidade cujos súditos não têm ânimo, virtude, potência. A intensidade dos conatus

200

AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 275.

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individuais é cerceada pelo medo e pelo desespero. Súditos "como ovelhas" (TP V 4 p.

45) geram não a cidade, mas o deserto, termo que, segundo Laurent Bove em nota à

sua revisão da tradução de Émile Saisset, indicaria uma palavra atribuída a Galgacus,

chefe caledoniano (Caledônia é a atual Escócia) que resistiu à invasão romana.

Galgacus teria dito, sobre os conquistadores, que faziam um deserto onde diziam ter

estabelecido a paz201.

"Súditos como ovelhas" é sinônimo de intensidades de direitos

naturais individuais que gravitam em torno do grau zero de potência. Se a política é o

meio para que os direitos naturais de cada um não sejam apenas opinião (TP II 15 p.

19), a cidade que institui o medo e o desespero como formas de garantir a paz não

podem ser propriamente o local da política, nem podem ser adequadamente

chamadas de cidade, mas de deserto ou solidão.

Assim, pode-se afirmar, agora com mais clareza, que a afirmação de

Espinosa a Jarig Jelles na Carta 50, de que mantém sempre o direito natural, traz

muitas consequências para o tipo de cidade que é pensada por Espinosa, bem como

para o conceito de paz como vis que decorre da fortaleza de ânimo.

Na hipótese aqui levantada, trata-se de um conceito de política (e de

cidade) que estabelece uma fina relação entre três instâncias que devem ser pensadas

em conjunto. A antropologia espinosana, fundada em uma concepção de homem

como grau de potência. Certa concepção do que sejam os afetos, isto é, transição de

potência de um mais a um menos, até um limite, e vice-versa. E, por fim, o paradoxo

de uma potência do poder soberano da cidade que deve estimular o medo à lei202

visando à segurança como afeto alegre predominante no corpo social.

Se assim não for, tem-se o que Espinosa chamou, ao tratar da paz

duradoura e miserável do imperium Turco (TP VI 4 p. 49), de barbárie, servidão e

isolamento.

201

SPINOZA. Traité politique. Traduction d´Émile Saisset révisée par Laurent Bove. Introduction et notes par Laurent Bove. Paris: Librairie Génélare Française, 2002, p. 162. 202

Sobre a diferença entre o medo à lei e o medo animal, ver: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 174.

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CAPÍTULO 3 - A ALTA VOLTAGEM POLÍTICA DO DIREITO NATURAL ou ESPINOSA

CONTRA AS VIOLÊNCIAS TRAVESTIDAS DE DIREITO 203

(a) Direito natural: uma concepção enfraquecida

Uma observação, ainda que panorâmica, da grade curricular dos

cursos de direito no Brasil explicita um ponto de interesse para o tema deste capítulo.

Grande parte das disciplinas dos cursos jurídicos tem como objeto de estudo o direito

positivado pelo Estado. Do direito civil ao penal, do direito ambiental ao tributário, o

que se estuda gira em torno do direito estatal. Estuda-se, com efeito, apenas a

legislação e a doutrina, isto é, a produção “científica” dos especialistas de cada área

sobre os institutos jurídicos. Ou, por outra, o que têm a dizer os doutrinadores sobre o

conjunto de normas atinentes a sua especialidade. Este tipo de estudo ou de produção

pode analisar decisões judiciais de várias instâncias, como complemento ao estudo

abstrato dos institutos, ainda que não necessariamente o faça.

Tal pedagogia jurídica, focada nos manuais que analisam o direito

posto, não traz, necessária e mecanicamente, sua estrutura constitutiva para a prática

dos chamados operadores do direito204. Esta questão, não obstante sua pertinência,

não será abordada neste capítulo, cujo escopo será o de analisar a predominância de

certa estrutura do jurídico como definidora do direito. Com efeito, a estrutura do

203

Uma versão resumida deste texto foi apresentada na 'Jornada Marxistas Leitores de Espinosa', realizada nos dias 28, 29 e 30 de maio de 2013, na FFLCH USP, organizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos. Naquela ocasião, este texto era o resultado, em parte, do ponto a que havia chegado a pesquisa de doutoramento. O desvio da apresentação em face do resultado das pesquisas se deu apenas no sentido de incorporar ao ponto em que estava a pesquisa a questão da pertinência do conceito de direito natural em nossos tempos, com a consequente crítica ao formalismo jurídico predominante nos cursos jurídicos. As apresentações foram reunidas no volume 30 dos Cadernos Espinosanos. Ver: Emancipação e direito como potência: apontamentos espinosanos sobre a concepção atual do jurídico. In: Cadernos Espinosanos XXX. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, jan-jun 2014, pp. 106-122. 204

Sobre a questão da relação ensino-pesquisa, por um lado, e práticas jurídicas, por outro, nas faculdades de direito, ver: NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. In: Cadernos Direito GV 1. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779. Acessado em 04 de junho de 2012. O artigo analisa a questão da pesquisa em direito no Brasil e em alguns outros países. Toca, também, na questão da relação entre ensino-pesquisa e prática dos profissionais do direito.

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direito positivo é tomada, por grande parte dos estudiosos do direito, como sendo o

direito, ocultando áreas importantes da geografia jurídica.

Não é casual, portanto, que as “doutrinas” ou filosofias do direito

natural apareçam nos cursos jurídicos como história - em disciplinas como Introdução

ao Estudo do Direito ou História do Direito -, ou como conceito - na disciplina Filosofia

do Direito205. No cotidiano jurídico, isto é, nas decisões judiciais e nas petições dos

operadores jurídicos, o conceito de direito natural se apresenta, no máximo, como

argumento retórico - no sentido fraco do termo. O que pode ser considerado direito,

tanto no ensino-pesquisa, quanto na operação decisional, passa ao largo de qualquer

“doutrina” do direito natural, clássica ou moderna206.

Certa vertente da literatura que trata do tema não hesita em afirmar,

de modo mais alargado - não se restringindo ao Brasil, nem ao direito presente nas

faculdades de direito, como se fez nos parágrafos anteriores -, que a positivação do

direito é fenômeno contemporâneo por excelência. E vai ainda mais longe ao afirmar

que direito, do século passado ao atual, seria praticamente sinônimo de direito

positivo ou, mais precisamente, de dogmática jurídica207.

Em uma palavra, no confronto entre direito natural e direito positivo,

no mundo contemporâneo, há a predominância quase absoluta do entendimento do

205

Tais disciplinas podem mudar de nome de instituição a instituição, bem como os conteúdos dados em cada uma delas. Mas isso é menos importante. O que interessa, para o tema proposto, é a maneira como o direito natural aparece nos cursos de direito e qual a relevância dos conceitos de direito natural em face do direito posto. 206

Deleuze, em aula ministrada em Vincennes em 09.12 de 1980, aborda o tema do direito natural panoramicamente e estabelece as linhas mestras do que define o direito natural clássico - e desdobramentos no medievo -, bem como as inovações trazidas sobretudo por Hobbes e Espinosa, os quais ligam, modernamente, o conceito de direito natural ao de potência, segundo Deleuze. Para as considerações de Deleuze, ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 83-103. O direito natural clássico, em resumo, para Deleuze, seria aquele "[...] que está conforme a essência." (Ibid. p. 87), ao passo que a inovação hobbesiana, no que é acompanhado por Espinosa, seria introduzir no conceito a tese da potência, isto é, o direito natural passa a ser definido como potência (Ibid. pp. 89-90). 207

Tal conceito abrange as seguintes instâncias: lei, como vontade objetivada segundo um ritual previsto no próprio regramento legal; doutrina, como estudo dos especialistas acerca dos institutos e leis positivadas pelo Estado, jurisprudência ou julgados, como decisões tomadas a partir do direito posto para os casos concretos que chegam ao judiciário.

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jurídico como direito posto em contraposição a qualquer definição que se aproxime de

conceitos de direito natural.

Mostrarei, a seguir, como se manifesta parte da literatura que

constata a perda de funcionalidade das doutrinas de direito natural nos séculos

passado e atual.

Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma, nessa linha, que a dicotomia

direito natural versus direito positivo está, sobretudo nos tempos atuais, enfraquecida.

Mais precisamente: sua operacionalidade está enfraquecida. Mas o que significa a tese

do enfraquecimento operacional da dicotomia? Afirma o autor:

Essa autonomia do direito natural em face da moral e sua superioridade diante do direito positivo marcou, propriamente, o início da filosofia do direito como disciplina jurídica autônoma. Isso foi assim até as primeiras décadas do século XIX. Depois, a disciplina sofre um declínio que acompanha o declínio da própria ideia de direito natural. [...]. Na ciência dogmática do direito, porém, embora a ideia esteja até hoje sempre presente (por exemplo, na fundamentação do direito subjetivo na liberdade), a dicotomia, como instrumento operacional, isto é, como técnica para a descrição e classificação de situações jurídicas normativamente decidíveis, perdeu força. [...] Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Essa promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas postas na Constituição, de algum modo “positivou-o".

208

A ideia de direito natural, sua existência como conceito e como

questão, persiste, de acordo com o excerto. Sua influência, entretanto, seja na

caracterização do jurídico, seja nas decisões cotidianas tomadas a partir do direito,

declinou. A dicotomia perdeu força uma vez que o direito positivo passa a ser o direito

em operação, aquele que será o fundamento das decisões nos conflitos existentes na

sociedade e apresentados ao órgão responsável pela decisão, a saber, o judiciário.

Um dos motivos elencados pelo autor para tal enfraquecimento - a

positivação dos conteúdos do direito natural pelas Constituições - apenas reitera o

argumento da perda de sentido e de força do conceito. Com efeito, o que resta da

influência do conceito de direito natural no mundo contemporâneo apenas subsiste

em razão de uma espécie de mudança de natureza. Não se trata mais de direito

natural, mas de direito natural positivado, presente no ordenamento e por isso

208

FERRAZ JUNIOR, T.S.. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 170-171.

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passível de aplicação pelo órgão competente, podendo mudar como qualquer outro

direito posto.

Tercio Sampaio desenvolve o argumento da trivialização dos direitos

humanos - sinônimo de indiferenciação do direito natural frente ao direito positivo -

em outro texto. Neste estudo mais detido, baseando-se em Luhmann209, afirma, no

mesmo sentido do excerto acima citado:

O traço mais característico do direito contemporâneo é, nestes termos, o fenômeno da positivação. [...] No processo de positivação do direito, alarga-se a importância do direito positivo, como aquele que vale em virtude de uma decisão e só por força de uma nova decisão pode ser derrogado

210.

A razão para o fenômeno acima descrito, afirma Tercio neste último

texto, seria - fazendo uma suma da longa argumentação do autor - a predominância de

um tempo em que se está em uma “[...] sociedade de operários, de uma sociedade de

consumo [...]” 211. Tal sociedade demandaria um direito cambiável e despreocupado

com a questão do fundamento na medida em que requer de seus membros um

funcionamento meramente automático,

[...] como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse por assim dizer deixar-se levar, abandonar a sua individualidade [...] e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranquilizante.

212

Luiz Werneck Vianna, na mesma linha argumentativa, mas retirando

consequências bastante diversas, escreveu artigo cujo título é: Poder Judiciário,

“Positivação” do Direito Natural e Política. Ao tratar do final do século XX, escreve:

Pragmático, este fim de século não se comprometeria com uma exploração metafísica da ideia de justiça, assim como evitaria a clássica contraposição entre o direito natural e o direito positivo, sendo marca contemporânea a “positivação” daquele direito nas cartas constitucionais.

213

Portanto, parte da literatura afirma ser traço indubitável das

sociedades contemporâneas o da predominância do jurídico como fenômeno positivo,

209

LUHMANN, N.. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: ed. UNB, 1980. 210

FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110. 211

FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110. 212

Ibid. p. 110. 213

VIANNA, L.W.. Poder Judiciário, “Positivação” do Direito atural e Política. In: Revista Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 9, n.18, p. 263-281, 1996, p. 264.

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bastante adequado, segundo concepções conservadoras e menos críticas, para a

solução “mecânica” de conflitos nas sociedades contemporâneas214.

Em chave semelhante à da constatação da perda de importância

contemporânea do conceito, mas com viés crítico às posições dos manuais que tratam

do tema, Deleuze afirma que

[...] esta história concernente ao direito natural, é preciso que compreendam isto: hoje, à primeira vista, nos parece muito ultrapassada, tanto juridicamente como politicamente. Nas teorias do direito natural, nos manuais de direito, ou nos manuais de Sociologia, vemos sempre um capítulo sobre o direito natural, [...] mas hoje, ninguém mais está interessado nisso, no problema do direito natural. Esta visão não é falsa, [...], mas é uma visão muito escolar.

215

Os manuais teriam uma visão escolar sobre o problema do direito

natural, segundo Deleuze, precisamente por não levarem em conta a questão

histórica, passando ao largo das razões do problema colocado, ou seja, do problema

do direito natural inserido nas questões históricas que o engendraram216.

Penso, a partir, em parte, da constatação de Deleuze - a da visão

escolar dos manuais acerca do conceito -, que certa vertente da longa e complexa

tradição do direito natural pode ter, na geografia do direito - supondo-o um grande

mapa -, importância capital nas reflexões contemporâneas sobre o tema. Penso

especificamente na tradição inaugurada, segundo Deleuze, por Hobbes217, e

desdobrada, com modificações significativas, por Espinosa, como mostrei nos capítulos

214

Sabe-se que o direito estatal não mais tem dado conta de resolver os conflitos sociais em um tempo razoável e de maneira adequada. A temporalidade do direito - da prova e da contraprova, do contraditório - tem sido solapada pela temporalidade social, altamente influenciada pela velocidade das transações econômicas. Para uma análise refinada acerca desse tema, ver: FARIA, J. E. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004. É bom lembrar que este autor está em chave diversa daquela que pensa ser o direito positivo estatal adequado para a solução dos conflitos sociais em sociedades complexas. 215

DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, p. 86. 216

Ibid. p. 86. 217

Ibid. pp. 89-90. É Deleuze mesmo quem faz, acerca desta afirmação - de que Hobbes teria inaugurado a tradição do direito natural como potência -, uma ressalva, como já assinalado no item (a) do capítulo 2, em nota de rodapé, por ocasião de discussão de outro tema. Cito: "Acrescento, para ser honesto historicamente, que isto não surgiu de um golpe, seria possível procurar, já na antiguidade, uma corrente, mas uma corrente muito parcial, muito tímida, na qual se formava já na antiguidade, uma concepção como esta do direito natural igual potência. Mas ela será abafada. Vocês a encontram em certos sofistas e em certos cínicos. Mas sua explosão moderna, será com Hobbes e com Espinosa." Ibid. p. 95.

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1 e 2 em alguns de seus movimentos. A tradição do direito natural como potência, a

ser mantido no corpo da civitas (Ep. 50 p. 398) - uma das teses mais inovadoras de

Espinosa -, tem muito a contribuir para iluminar terrenos do jurídico apagados pelas

teorias do direito que compreendem o fenômeno do direito como exclusivamente

positivista. Mais precisamente, o direito natural de viés espinosano não apenas seria

pertinente em tempos atuais, contrariando, portanto, a visão da perda de

funcionalidade das teorias do direito natural, como seria uma espécie de fonte de

reflexão para o entendimento do direito como instância emancipatória. Nesse sentido,

o conceito de direito natural pode ter alta voltagem política e jurídica no interior de

teorias e práticas jurídicas contemporâneas.

O que teria a concepção de direito natural espinosana a dizer sobre

esse estado de coisas, ou seja, sobre a constatação, acima analisada, de que as teorias

do direito natural não têm lugar, ou perdem funcionalidade, na reflexão jurídica

contemporânea? Em outros termos: o que se pode extrair desta concepção do jurídico

que signifique uma espécie de cunha no entendimento do direito como fenômeno

positivista? Qual a potência de seu conceito de direito natural frente à ideologia218, por

assim dizer, do direito como fenômeno quase exclusivamente positivo? É o que

pretendo analisar a seguir.

(b) Ontologia e direito: o direito como potência

Espinosa concebe o jurídico em chave ontológica. Mais precisamente:

tudo o que é, para Espinosa, é em Deus, isto é, na substância absolutamente infinita.

Deus, como procurei analisar no item (c) do capítulo 1, é sinônimo, para Espinosa, de

natureza, ou seja, equivale à imanência do real. O direito, por conseguinte, só poderia

se apresentar em chave ontológica, na imanência da substância.

De fato, escreve Espinosa na Ética: “Tudo o que existe, existe em

Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.” (E I P 15 p. 31). Deus ou a

natureza (Deus sive natura), como afirma Espinosa, se apresenta como a realidade

única, o dentro sem fora. E tal realidade é a potência absolutamente infinita da 218

Sabe-se da multiplicidade semântica do conceito. Quer-se com ele dizer, neste capítulo, um conjunto de ideias e doutrinas que mascaram ou ocultam outros entendimentos possíveis sobre dado fenômeno. No caso, o direito. Para um belo estudo acerca da diversidade e da história do conceito, ver: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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substância única (E I P 34 p. 63). O direito, assim, como algo que existe na natureza,

somente poderá se apresentar em chave ontológica, qualquer que seja seu estatuto,

isto é, como direito natural ou como direito civil. No Tratado Político, de maneira mais

minuciosa, afirma Espinosa que

A partir, pois, daqui, quer dizer, do fato de a potência pela qual existem e operam as coisas naturais ser a mesmíssima potência de Deus, entendemos facilmente o que é o direito de natureza. [...] Assim, por direito de natureza entendo as próprias leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria potência da natureza, e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo, estende-se até onde se estende a sua potência. (TP II 3-4 p.12).

Direito de cada indivíduo significa, portanto, potência. E potência

parcial na medida em que a potência total é a da realidade como um todo, da natureza

como um todo, da substância (E IV ax, p. 269; TP II 3 p. 12). O que há no real é luta

entre potências de coisas individuais que são modos finitos da e na natureza.

Em suma, o direito natural em Espinosa significa, pois, uma só coisa,

a qual pode ser vista de pelo menos dois pontos de vista. Direito da natureza inteira é

sinônimo de Deus, ou seja, a natureza única: a potência considerada do ponto de vista

da totalidade (TP II 3 p. 12). Por outro lado, da perspectiva individual, há o direito

como intensidade parcial da potência da natureza total, seja de um homem como

equilíbrio corporal e mental, seja como coisa coletiva que expressa uma potência

coletiva (TP II 4 p. 12). E cada indivíduo é potência parcial porque intensidade parcial

da potência da natureza. Daí Espinosa afirmar, como visto acima, que a potência das

coisas naturais é “[...] a mesmíssima potência de Deus [...].” (TP II 3 p. 12). Deus, aqui,

importa destacar, é conceito diverso do Deus da tradição judaico-cristã.

(c) Direito e afetos219

O livro III da Ética é aquele em que Espinosa trata da origem e da

natureza dos afetos. O autor conceitua afeto da seguinte maneira: “Por afeto

compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou

diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.” (E

III Def 3 p. 163).

219

Tratei desse tema no item (d) do Capítulo 1 e no item (a) do Capítulo 2. Retomo-o aqui, resumidamente, para dar encadeamento ao movimento argumentativo.

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Logo a seguir, no postulado 1, afirma que “[...] o corpo humano pode

ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou

diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem

menor.” (E III Post 1 p. 163).

Na proposição 7 da mesma parte III da Ética, estabelece a noção de

esforço como a essência das coisas - entre elas os indivíduos humanos. Em latim,

conatus. Afirma: “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser

nada mais é do que sua essência atual [Conatus, quo unaquaeque res in suo esse

perseverare conatur, nihil est praeter ipsius rei actualem essentiam].” (E III P 7 p. 175;

G II 146). Este esforço da coisa em perseverar em seu ser é a potência dessa coisa,

como fica claro na demonstração desta proposição, quando Espinosa identifica esforço

e potência (E, III, P 7 Dem p.175).

Tal esforço, quando se refere à mente e ao corpo, é chamado por

Espinosa de apetite, que é tão somente a essência de cada homem, isto é, de cada

coisa singular humana. Por fim, diz que entre apetite e desejo não há diferença, a não

ser a de que o desejo é o apetite de que se tem consciência (E III P 9 Esc p. 177).

No escólio da proposição 11 da parte III da Ética, Espinosa chama a

atenção para a existência de apenas três afetos primários: o desejo, do qual se falou

acima, que se identifica ao apetite e pode ser considerado a essência mesma de cada

homem e, além do desejo, a alegria e a tristeza.

Conatus (esforço para perseverar no ser), apetite, desejo, afetos:

como se entrelaçam tais conceitos entre si e com o direito?

O conatus, como define a Proposição 7 da parte III da Ética, acima

citada, é a essência de cada coisa: é esforço para perseverar no ser. Isto ocorre na

medida em que cada coisa é modo finito da potência infinita da substância. Daí que no

Tratado Político o autor afirme que a potência das coisas naturais é a mesma de Deus,

ou seja, é a potência da natureza (TP II 3-4 p.12). O apetite é este esforço quando

considerado ao mesmo tempo em relação à mente e ao corpo. O desejo é o apetite

junto da consciência que dele se tem (E III P 9 esc 177). O desejo é um afeto primário,

assim como a alegria e a tristeza. Deles derivam todos os demais, numa inumerável

variação.

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Como Espinosa não pode considerar a mente sem o corpo e vice-

versa, visto se tratarem de modos da substância única, expressões finitas de dois de

seus infinitos atributos - a extensão e o pensamento -, usará dois nomes para a mesma

coisa. O afeto da alegria, quando referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo, é

chamado de contentamento. O afeto da tristeza, por sua vez, quando referido ao

mesmo tempo à mente e ao corpo, é chamado de dor ou melancolia (E III P 9 esc 177).

E o apetite é o esforço referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo.

Como os corpos se relacionam uns com os outros afetando-se uns

aos outros, a todo momento a potência de agir de cada corpo aumenta ou diminui. O

corpo, com efeito, é, para Espinosa, um equilíbrio, uma proporção (ratio) de

movimento e repouso que procura se manter na dinâmica das relações com outros

corpos (E II P 13 esc axiomas 1 e 2, Lemas 1, 2 e 3 p. 97-99).

Um indivíduo que tem sua mente - por meio de um afeto que chega a

seu corpo - afetada pela imagem de um corpo que lhe causa alegria, tem aumento de

sua potência: tem aumento de seu apetite. Ao contrário, um indivíduo que tem sua

mente afetada pela imagem de um corpo que lhe causa tristeza, tem diminuição de

sua potência: tem diminuído seu apetite. Eis os afetos passivos, isto é, aqueles em

relação aos quais o homem não tem qualquer ação, mas apenas padece. Entretanto,

os afetos podem ser ativos quando a mente é causa adequada das afecções do corpo,

ou seja, quando não recebe um afeto de um corpo externo - uma paixão -, mas gera

uma ação ao ser causa adequada, em vez de causa parcial ou inadequada.

Os afetos ativos são muito importantes. Ocorre que são raros. A

ação, por meio de conhecimentos adequados do que é bom para o desejo, isto é, o

agir de acordo com a razão, gerando afetos ativos, é pouco frequente. Escreve

Espinosa: “Entretanto, é raro que os homens vivam sob a conduta da razão. Em vez

disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos.”

(E IV P 34 cor II esc p.303). Caso se conduzissem pela razão, somente haveria acordo,

pois é pela razão que os homens acordam em natureza (E IV P 35 p. 301). E conclui

Espinosa no Tratado Político:

[...] de tal modo que aqueles que se persuadem de poder induzir, quer a multidão, quer os que se confrontam nos assuntos públicos, a viver unicamente segundo o que a razão prescreve, sonham com o século dourado dos poetas, ou seja, com uma fábula. (TP I 5 p. 9).

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Não que a razão influencie, diretamente, o campo afetivo. Um afeto

somente pode ser contraposto por outro afeto, contrário e mais potente. É que o

conhecimento verdadeiro do bom gera afetos alegres, os quais geram ações cuja causa

é adequada. É o que estabelece a proposição seguinte: “O conhecimento do bem

[bom] e do mal [mau] nada mais é do que o afeto de alegria ou de tristeza, à medida

que dele estamos conscientes.” (E IV P 8 p.277)220. Ou seja, o conhecimento do bom

(assim como o conhecimento do mau) é, simultaneamente, um afeto. Ou melhor: o

conhecimento do que é bom ou do que é mau gera, simultaneamente, um afeto de

alegria ou de tristeza. Assim, completará Espinosa na E IV P 14, o conhecimento

verdadeiro do bom e do mau, apenas enquanto conhecimento, nada pode em face de

um afeto, mas enquanto afeto, pela mesma P 8 (E IV P 8 p. 277), pode refrear outro

afeto a ele contrário. A alegria advinda do conhecimento adequado pode se contrapor

à tristeza advinda do conhecimento parcial. Daí o conhecimento ter um papel

importante na orientação da boa conduta. No entanto, não enquanto puro

conhecimento, mas enquanto afeto - o mais potente dos afetos, afirma Espinosa (E V P

7 Dem p. 377).

Ora, como o esforço ou conatus é o apetite de cada indivíduo

(esforço da mente e do corpo), um dos afetos originários, e este esforço é a potência

mesma de cada um como manifestação parcial da potência da natureza inteira, este

esforço é o direito natural de cada indivíduo. Aliás, como afirma o autor no excerto já

citado do Tratado Político (TP II 3-4 p. 12), bem como em outros momentos da obra.

Como ocorre então a manifestação desse direito como poder, desse

direito natural, no mundo dos afetos entre indivíduos? Em outras palavras, como os

afetos de alegria e de tristeza se apresentam na existência dos homens e o que têm a

ver com o direito natural, com o poder de cada indivíduo?

Quando uma coisa ou um indivíduo humano causa em outro

indivíduo humano um afeto alegre, aumenta neste a potência, isto é, o conatus. Por

outro lado, quando uma coisa ou um indivíduo humano causa em outro um afeto

220

Discorda desta tese C. Lazzeri, para quem o conhecimento do mau também gera, por ser conhecimento verdadeiro, um afeto alegre. Ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 52. Cito: "[...] o conhecimento do bem e do mal é sempre uma ideia da alegria ou da tristeza, mas se trata, nesse caso, de um 'conhecimento verdadeiro do bem e do mal' em que o afeto é uma consequência do julgamento verdadeiro." (p. 52 - tradução minha).

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triste, diminui a potência deste, seu conatus. Ainda, toda vez que o homem tem um

conhecimento adequado do que é bom para si, produz um afeto alegre, o qual é causa

adequada de sua ação. Se o conatus é a própria essência atual de cada ser, vê-se que a

maneira como os seres se relacionam, causando aumento ou diminuição de potência

uns nos outros, mostra o exercício, em ato, do direito natural em cada indivíduo

humano.

Essa tensão entre conduzir-se pela razão e concordar (E IV P 35 p.

301), por um lado, e ser nocivo em face do semelhante (E IV P 35 Esc p. 303) - “[...] são,

em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos.” -, por outro lado, não impede que,

de alguma maneira, os homens tenham certeza, completa ou parcial, de que viver em

sociedade aumenta sua potência em face dos perigos do mundo. É o que diz o final do

citado escólio da P 35 da Ética IV: “Mas, apesar disso [de serem nocivos e invejosos],

dificilmente podem levar uma vida solitária [...].”

Essa via entre a conduta segundo a razão, que gera o afeto ativo e a

causa adequada, mas que é, como visto, rara, e o afeto passivo alegre, que gera um

aumento da potência mesmo na passividade, parece ser o caminho para a descoberta,

completa ou parcial, da utilidade do homem ao homem. O que importa é ressaltar,

sem grandes desenvolvimentos neste capítulo221, que o homem constata, de alguma

maneira, que a vida em sociedade é mais humana e digna de ser vivida. Nela o direito

natural como potência se manifesta com uma qualidade maior.

Em outras palavras, alguém afetado de alegria pela imagem de

outrem, ou sendo causa adequada geradora de alegria, tem mais direito na medida em

que tem mais potência, maior apetite: tem seu esforço de perseverar no ser

aumentado. O mesmo ocorre no sentido inverso: algo ou alguém que causa em outro

diminuição de potência causa neste outro diminuição do direito natural.

Este relacionamento de indivíduos humanos entre si e com as coisas

do mundo é muito complexo. Daí que haja uma transição (da alegria à tristeza e vice-

versa) da potência dos indivíduos ao longo do tempo e, portanto, uma flutuação do

direito natural de cada um.

Importa dizer, também, que num estado de baixíssima socialidade e

institucionalização de regras comuns, o direito natural tende a zero, é quase uma 221

Ver item (c) do capítulo 2 para o desdobramento deste tema.

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abstração, visto que a luta bruta entre potências anula o exercício da potência de cada

indivíduo. Por isso Espinosa afirma:

Como, porém (pelo art. 9 deste cap.), no estado natural cada um está sob jurisdição de si próprio na medida em que pode precaver-se de modo a não ser oprimido por outro, e como um sozinho em vão se esforçaria por precaver-se de todos, segue-se que o direito natural do homem, enquanto é determinado pela potência de cada um e é de cada um, é nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade, porquanto não há nenhuma garantia de o manter (TP II 15 p.19).

A questão passa a ser, pois, a de estabelecer uma situação tal entre

os homens que possibilite - isto é, garanta - o exercício do afeto originário, a essência

mesma de cada homem, seu conatus, sem que este seja mera abstração ou opinião.

Portanto, trata-se de dar condições ao exercício do afeto originário da maneira a mais

efetiva. E tal garantia será forjada pelos homens sem que o direito perca seu caráter

ontológico, o que para Espinosa seria impossível.

Como fazer valer o direito natural? Espinosa escreve no Político,

como já escrevera na Ética: “Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem

mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles

sozinho; e quantos mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.”

(TP II 13 p.18). Mais à frente, conclui:

E, assim, concluímos que o direito de natureza, que é próprio do gênero humano, dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns e podem, juntos, reivindicar para si terras que possam habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles. Com efeito [...], quantos mais forem os que assim se põem de acordo, mais direito têm todos juntos. (TP II 15 p.19).

Mas como haver acordo se os homens são naturalmente desejantes

e, dado que o desejo os move cada qual em uma direção, estão em conflito a todo

momento?

(d) O corpo político, os afetos e a garantia da potência do direito natural

O afeto medo (da morte bruta, da força do outro, etc.) pode ser

contraposto pelo afeto esperança de uma vida de efetivo exercício da potência. Isto

porque Espinosa mostra (pela experiência) e demonstra (geometricamente) que os

afetos são contrapostos por afetos contrários e mais fortes, nunca pela razão (E III P 2

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p. 167). Uma vez que constatam a importância do homem para o homem, de um

mínimo acordo entre homens, fundado na esperança do exercício efetivo da potência,

bem como na repulsa do afeto medo por esta esperança, tem-se o afeto esperança

levando, ainda que apenas inicialmente, os homens à união em busca do objetivo

comum: o exercício da potência individual. Para tal, instituem um direito comum. Mas

esperança e medo formam um sistema afetivo precário, como se verá a seguir222.

Esse direito comum poderá fazer da esperança um afeto mais

constante, retirando-o de sua estrutura precária, de flutuação: da esperança pode-se

chegar à segurança. Como isto ocorre? A alegria é um dos afetos originários. Sua

definição está relacionada ao aumento da potência, ou seja, ao aumento da virtude, da

perfeição ou do direito natural (E III Def 2 p.239). Ela não é a perfeição, mas a

passagem a uma perfeição maior na medida mesma do aumento da potência da coisa,

de seu conatus. A esperança e o medo estão interligados. Ambos são afetos instáveis e

estão ligados à finitude humana223. Ou seja, porque não são capazes de conhecer toda

a cadeia necessária do real, na medida em que são finitos, os seres humanos flutuam

entre o medo e a esperança. De fato, a esperança, pela definição 12 dos afetos, “[...] é

uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja

realização temos alguma dúvida.” (III Def 12 p. 243). E o medo, definido logo a seguir,

“[...] é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja

realização temos alguma dúvida.” (E III Def 13 p. 243). A segurança será a esperança

que se transmutou em função do afastamento da dúvida. O desespero será o medo

que se modificou também em função do afastamento da dúvida. Na definição 14,

escreve o autor: “A segurança é uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura ou

passada, da qual foi afastada toda causa de dúvida.” (E III Def 14 p. 243).

Portanto, o direito comum será construído em razão de um impulso

afetivo. A esperança - afeto instável, que pode se transmutar em medo - de uma vida

222

Para o tema dos afetos medo-esperança e segurança-desespero, ver item (e) do capítulo 1, bem como item (b) do capítulo 2. Desenvolvo o tema, ainda que resumidamente em relação aos capítulos 1 e 2, para dar consistência ao fio argumentativo do objeto deste capítulo, a saber, a questão da pertinência do conceito de direito natural espinosano para o arejamento das discussões sobre o direito emancipatório em tempos contemporâneos. 223

CHAUI, M. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 173-191.

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com mais previsibilidade leva os homens a criarem mecanismos que tragam o fim à

dúvida sobre o futuro do exercício da potência. E tal esperança se transforma em

segurança com o direito comum. O direito comum garante, numa medida maior do

que na situação de ausência de direitos instituídos, a segurança quanto ao futuro, isto

é, certa previsibilidade.

O medo da punição pela lei, num primeiro momento, faz que o

homem não haja simplesmente pelo impulso bruto do desejo. Este controle do

impulso gera o afeto segurança, porque se espera que todos agirão de modo análogo

em face da lei comum. O medo gerado na esfera civil toma o lugar do medo mais forte

do momento da falta quase total de instituições - do medo presente no estado de

natureza. E tal medo da esfera civil, próprio da cidade, o medo da punição em face da

violação da lei, gera o afeto civil mais importante para a estabilidade da civitas: a

segurança.

Entretanto, é fundamental, segundo Espinosa, atentar para o fato de

que este direito comum, constitutivo do imperium (do estado), não pode anular o

direito natural de cada ser singular humano que vive sob e dá potência a este mesmo

imperium. Ao invés, é ele, o direito comum, que deve possibilitar efetivamente o

direito natural de cada membro do imperium. Sem tal direito comum, o direito natural,

como afirma Espinosa no Tratado Político, é opinião, é abstração (TP II 15 p. 19).

Dada a complexidade das relações entre os homens, isto é, sua

flutuação da potência em face das relações de afeto, as regras comuns devem

viabilizar a esperança - e ainda mais a segurança - de exercício da potência de cada

homem. Portanto, esses afetos devem predominar em relação a todos os afetos que

sentirão cada um dos homens uma vez instituído o direito comum. Desse modo, a

segurança não pode vir à custa da anulação quase total da potência dos indivíduos. Ou

seja, o exercício da potência dos membros da cidade deve ser real, não uma abstração,

sob pena de o direito comum não cumprir sua função de possibilitar o exercício dos

conatus individuais.

Esta parece ser uma importante e difícil lição da filosofia política de

Espinosa. Importante na medida em que mostra o direito comum como condição do

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exercício mais efetivo do direito natural como conatus ou apetite, isto é, afeto

originário. E este mesmo regramento comum é aquele que faz do exercício dos

apetites individuais aumento da alegria de cada cidadão, o mais possível, na cidade, e

não paz garantida ao preço de todo e qualquer afeto alegre. O afeto predominante

deve ser a segurança, advinda da esperança, e não o desespero, advindo do medo.

Espinosa escreve no Tratado Político que

a obediência, com efeito (pelo parágrafo 19 do cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer solidão do que uma cidade (TP V 4 p. 45).

Portanto, a decisão que leva ao conjunto de leis comuns pode vir a

quase anular as potências dos indivíduos que compõem a cidade. Eis, por exemplo, o

caso da tirania, fundada no afeto medo e difusora de tristeza na cidade. Em vez, nesse

caso, de predominar a segurança para o exercício do conatus, predomina o desespero,

advindo do medo difuso do outro, do tirano, de seus próximos, etc.. Daí se tem a

decisão do soberano contra os súditos, isto é, tem-se a cidade - o corpo do imperium -

como violência travestida de direito224. De fato, um direito coletivo que praticamente

capilariza na “cidade” o medo semelhante ao medo existente em estado de natureza

explicita a solidão dos súditos deste corpo político e não traz a segurança como afeto

alegre predominante. O que há, neste caso, é um aparato legal que, no momento

mesmo em que diz garantir as potências individuais, as anula por completo. Trata-se

de um aparato legal que põe o imperium contra os súditos em vez de garantir a

segurança destes simultaneamente à garantia do exercício do direito natural de cada

um. Mas se a cidade, cuja potência é a potência mesma de seus membros (da

multitudo) (TP III 9 p. 30), impede que a potência dos súditos se exerça plenamente, é

o caso de ela (a cidade) temer. Como escreve Espinosa no Tratado político:

Há certamente coisas que a cidade deve ter medo, e da mesma forma que cada cidadão ou cada homem no estado natural, assim também a cidade está tanto menos sob jurisdição de si própria quanto maior é o motivo que tem para temer (TP III 9 p. 30-31).

224

Para a análise mais longa do tema da paz como fortaleza de ânimo em contraposição ao tema da paz como ausência de guerra (TP V 4 pp. 44-45), ver item (e) do Capítulo 2.

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(e) Nem toda lei é direito ou O exercício do direito natural de cada homem como

termômetro da qualidade do direito civil

Pode-se concluir, a partir dos conceitos espinosanos, que - para dizer

de modo sucinto - nem toda lei posta pela cidade é direito. Isto é, podem existir

direitos positivos que, em vez da segurança, espalham o medo e geram a solidão.

Outra importante tese é a de que o direito natural deixa de ser

instância cuja operacionalidade se constata enfraquecida, em razão da positivação,

inclusive de seus conteúdos, e passa a ser o critério do direito positivo mais útil aos

conatus. Mais útil, isto é, o que garante, com a maior qualidade possível, o exercício

dos conatus individuais como potências na cidade. O afeto segurança, e não o afeto

medo, desdobrado em desespero, deve predominar na cidade.

Pode-se levantar a tese, agora com mais elementos, de que o direito

positivo somente é direito, espinosanamente falando, caso seja a potência coletiva da

cidade, isto é, caso seja o direito natural coletivo. A dicotomia direito natural versus

direito positivo225, assim, passa não apenas a ser, do ponto de vista de um direito

entendido como potência, vazia de sentido, como o exercício efetivo do direito natural

por parte dos cidadãos se apresenta como o ponto fundamental que justifica a

existência da cidade226.

Se a hipótese lançada por Tercio Sampaio Ferraz Junior como causa

histórica para o enfraquecimento operacional do direito natural em face do direito

225

No vocabulário espinosano, o que aqui se está chamando, com alguma margem para imprecisões, de direito positivo, é o direito civil (jus civile), isto é, o conjunto de leis que a civitas dá a si mesma e a partir das quais define a ação dos seus membros como meritocrática ou digna de punição pelo direito da cidade. Ver, por exemplo, E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311; G II 237-239. A proximidade conceitual entre as expressões direito positivo, direito civil e leis é um problema filosófico que não é objeto deste capítulo. Vale lembrar que Espinosa não usa a expressão direito positivo. Um dos intuitos do capítulo, entretanto, é o de explorar, com o repertório conceitual espinosano, a dicotomia direito natural versus direito positivo. Pelas lentes espinosanas, é possível apontar duas importantes hipóteses. Uma: a hipótese da pertinência do conceito de direito natural contemporaneamente, à revelia do que afirma boa parte dos autores da filosofia do direito dos séculos XX e XXI, como se viu no início deste capítulo. Outra: talvez a dicotomia seja ilusória, sendo o critério da potentia o mais adequado para medir o direito, mas de tal modo que a potência coletiva garanta o exercício da potência de cada homem na cidade. Em suma: interessa usar os conceitos espinosanos para mostrar a pertinência do conceito de direito natural como potência tanto para o indivíduo humano quanto para a civitas como corpo do imperium. 226

Agradeço a Luís César Guimarães Oliva pela questão que levou à confecção deste parágrafo e da nota anterior. A ideia presente no parágrafo (e na nota acima), seu erro ou acerto, entretanto, é de minha responsabilidade.

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positivo estiver correta, talvez seja o caso de se repensar o papel emancipatório de

certa concepção do direito natural no mundo contemporâneo, isto é, momento

histórico da predominância do direito positivo como técnica de decisão. Afirma Tercio

Sampaio como possível causa histórica para o fenômeno da positivação, como já

indicado, de modo mais sintético, no início deste capítulo:

[...] na sociedade de consumo confere-se à força de trabalho o mesmo valor que se atribui às máquinas, aos instrumentos de produção. Com isso, se instaura uma nova mentalidade, a mentalidade da máquina eficaz, que primeiro uniformiza coisas e seres humanos, para depois desvalorizar tudo, transformando coisas e homens em bens de consumo, isto é, bens não destinados a permanecer, mas a serem consumidos e confundidos com o próprio sobreviver, numa escalada em velocidade, que bem se vê na rapidez com que tudo se supera, na chamada civilização da técnica. O que está em jogo aqui é a generalização da experiência da produção, na qual a utilidade para a sobrevivência é estabelecida como critério último, para a vida e para o mundo dos homens. [...] E no direito esta lógica da sociedade de consumo torna-o mero instrumento de atuação, de controle, de planejamento, tornando-se a ciência jurídica um verdadeiro saber tecnológico. O último estágio de uma sociedade de operários, de uma sociedade de consumo, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse por assim dizer deixar-se levar, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranquilizante.

227 Assim, a virada do direito natural - no sentido espinosano - seria

dupla. Primeiro, trata-se de entender este conceito não como um instrumento de

operacionalidade enfraquecida em face do direito posto, mas como critério da

qualidade do direito positivo. O direito positivo seria, na verdade, o direito natural

coletivo, pois alimentado pela potência da multitudo (do povo livre, fonte da potência

da lei positiva, instância que sustenta e dá potência ao poder soberano228). E cada

homem na cidade teria seu direito natural (sua potência) garantido pelo direito

positivo assim concebido. Em segundo lugar, o direito natural passaria a ser o ponto

central da reflexão jurídica emancipatória. Se os corpos políticos contemporâneos

trazem, em seu interior, indivíduos “[...] de conduta entorpecida e tranquilizante

[...]”229, e se o direito de tais corpos políticos é técnica com vistas à decisão, nada mais

227

FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, pp. 109-110. 228

Sobre este ponto, ver itens (c) e (d) do Capítulo 2. 229

FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110.

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jurídico que a potência que ainda resta nos corpos e nas mentes dos membros desses

corpos políticos. E, outra face da mesma moeda, nada menos jurídico do que os

direitos positivos instituídos que levam os “cidadãos” à violência da solidão. Pode-se

afirmar, agora com mais elementos, que por meio da filosofia espinosana é possível

resgatar a pertinência do direito natural como cunha a ser introduzida nas violências

travestidas de direito positivo.

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CAPÍTULO 4 - ESPINOSA E O DIREITO CRÍTICO ou DA ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO230

(a) Constatações do direito crítico acerca do direito contemporâneo

A dogmática jurídica231, por sua limitação estrutural, não é capaz de

fazer diagnósticos precisos acerca do direito. Seu foco em questões sobre a arquitetura

formal do direito - validade, vigência, completude do ordenamento jurídico, hierarquia

normativa, etc. - não permite visão interdisciplinar e análises de horizonte amplo.

De fato, segundo um dos representantes do direito crítico232, as

razões para as limitações da dogmática jurídica podem ser constatadas pelos seguintes

argumentos:

Nas Constituições contemporâneas, como é sabido, essa proteção [ao valor social do trabalho, à busca de uma sociedade justa e solidária, às políticas públicas voltadas à erradicação da pobreza, etc., todos temas objeto de normas constitucionais] costuma ser inseparável de suas garantias. No entanto, se é certo que tais garantias são, conceitualmente, orientações programáticas e limitações normativas impostas à discricionariedade do poder público, em todas as suas instâncias e escalões, é igualmente correto que elas somente têm condições de se

230

Versão bastante resumida deste capítulo foi apresentada no 'X Colóquio Internacional Spinoza e as Américas', ocorrido de 18 a 22 de novembro de 2013, no Rio de Janeiro, e depois publicada em coletânea intitulada Spinoza e as Américas, VOL 1 (MONTANS BRAGA, Luiz Carlos. Espinosa e o direito crítico: aproximações. In: GRASSET, Baptiste Noel Auguste; FRAGOSO, Emanuel Angelo da Rocha; ITOKAZU, Ericka Marie; GUIMARÃES, Francisco de; ROCHA, Maurício. Spinosa e as Américas. (VOL. 1). Rio de Janeiro-Fortaleza: Ed. UECE, 2014, pp. 243-253). O objetivo, na ocasião, era o de debater alguns conceitos da pesquisa de doutoramento e mostrar como Espinosa poderia auxiliar em ao menos uma visão crítica do direito contemporâneo, a saber, a de José Eduardo Faria. 231

Proponho a seguinte abrangência ao conceito 'dogmática jurídica': lei, como vontade objetivada segundo um ritual previsto no próprio regramento legal; doutrina, como estudo dos especialistas acerca dos institutos e leis positivadas pelo Estado, jurisprudência ou julgados, como decisões tomadas a partir do direito posto para os casos concretos que chegam ao judiciário. José Eduardo Faria tem definição diversa, com certos pontos de semelhança, à acima proposta: "A dogmática jurídica é o resultado da convergência entre (a) a consolidação de um conceito moderno de ciência, voltado não tanto ao problema da verdade ou falsidade das conclusões do raciocínio científico, mas ao seu caráter sistemático e lógico-formal; (b) a identificação entre os conceitos de direito e lei positiva, num primeiro momento, e entre direitos e sistema conceitual de ciência, num segundo momento; (c) a separação entre teoria e práxis e a consequente afirmação de um modelo de saber jurídico como atividade prioritariamente teórica, avalorativa e descritiva; (d) a ênfase à segurança jurídica como sinônimo de certeza de uma razão abstrata e geral, resultante de um Estado soberano, com a subsequente transposição da problemática científica aos temas da coerência e completude da lei em si mesma." Citação em: FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43, nota de rodapé 23. Para uma análise das limitações da dogmática jurídica, ver: FARIA, José Eduardo. Paradigma Jurídico e Senso Comum: Para uma Crítica da Dogmática Jurídica. In: LYRA, Dereodó Araujo (org.). Desordem e Processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, pp. 39-64. 232

Refiro-me a José Eduardo Faria, com quem procurarei realizar um diálogo, usando os conceitos espinosanos, na sequência do texto. Para uma visão introdutória e panorâmica do tema do direito crítico, consultar: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002.

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tornarem efetivas por intermédio desse mesmo poder. [...] [como tais garantias não são efetivadas via políticas públicas do poder executivo, ocorre o que segue] Não é por acaso que, nas sociedades não tipicamente tradicionais e fracamente integradas, sujeitas a fortes discriminações sócio-econômicas e político culturais, como a brasileira, muitas declarações programáticas em favor dos direitos humanos e sociais, nos textos constitucionais, acabam tendo apenas uma função tópica, retórica e ideológica. [...] Preparado somente para lidar com questões rotineiras e triviais, nos planos cível, comercial, penal, trabalhista, tributário e administrativo, por tratar o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão intenso que inibe os magistrados de adotar soluções fundadas em critérios de racionalidade substantiva, o Judiciário se revela tradicionalmente hesitante diante das situações não rotineiras; [...] É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativista e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma justiça burocraticamente inepta, administrativa e processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos de conflito. [...] É aí, igualmente, que se constata o enorme fosso entre os problemas

sócio-econômicos e as leis em vigor233.

Em outro estudo do mesmo autor, o diagnóstico de limite e exaustão

do paradigma jurídico vigente é exposto nos seguintes termos: "[...] o direito e o

pensamento jurídico, [...], encontram-se próximos de uma exaustão paradigmática."234

E na sequência o autor desdobra a tese com o raciocínio seguinte:

Dada a impressionante rapidez com que muitos dos conceitos e categorias fundamentais até agora prevalecentes na teoria jurídica vão sendo esvaziados e problematizados pelo fenômeno da globalização, seus códigos interpretativos, seus modelos analíticos e seus esquemas cognitivos revelam-se cada vez mais carentes de operacionalidade e funcionalidade.

235

O primeiro excerto, mesmo ao tratar mais especificamente dos

desdobramentos do formalismo jurídico - de certo modo de compreensão e prática do

direito - para o campo da relação entre eficácia e direitos humanos (inclusos os

direitos sociais), aponta para um ponto que também é de interesse ao presente

capítulo, a saber, o das limitações do entendimento do jurídico como atrelado à

dogmática jurídica. O segundo e terceiro excertos mostram que tal exaustão de

paradigma, que traz ao centro das discussões a ineficácia dos direitos humanos e

sociais previstos em normas positivadas, se estende a todas as áreas do direito. De

fato, o paradigma do formalismo jurídico estreita a compreensão do direito, pois o

apreende em dimensão diminuta em relação à sua área de ocupação efetiva. Em

233

FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 97-99. 234

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39. 235

Ibid. p. 39.

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outros termos, o direito é mais amplo, conceitualmente, do que as definições e temas

propostos pelo formalismo jurídico. Por conseguinte, o direito assim conceituado

oculta partes importantes do fenômeno jurídico. Tais partes deslocadas ou não

explicitadas pelo formalismo jurídico, penso, têm importância para uma compreensão

emancipatória do fenômeno jurídico.

Na mesma chave de crítica às limitações do formalismo jurídico, bem

como da crise de paradigma da dogmática jurídica, se posiciona Boaventura de Sousa

Santos, ao apontar que

O direito estatal desorganiza-se, ao ser obrigado a coexistir com o direito não-oficial dos múltiplos legisladores não-estatais de facto, os quais, por força do poder político que detêm, transformam a facticidade em norma, competindo com o Estado pelo monopólio da violência e do direito.

236

O conceito de direito espinosano parece ser uma chave relevante

para que esses terrenos menos explorados venham a fazer parte de uma conceituação

mais ampla e libertária do direito, a ser considerada para a elaboração da

institucionalidade jurídica da cidade.

O que intento destacar com as considerações acima é a necessidade

de se recorrer às pesquisas de outras áreas do saber para que uma análise acerca da

crise do direito possa ser devidamente encaminhada. Isto somente ocorre uma vez

que a dogmática jurídica e o formalismo jurídico não são capazes de lançar luz nos

236

SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 65. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 03-76, p. 13. Disponível em: http://rccs.revues.org/1180. Acesso: 12 MAR 2015. Vejo como muito bem construídos os argumentos do autor para constatar a crise do direito como direito positivado pelo Estado e as exclusões de vastas camadas de pessoas - de uma vida digna, da cidadania, da cultura, etc. - advindas de fascismos como o do capital financeiro (o termo 'fascismo financeiro' é do autor - Ibid. p. 23). Vejo, entretanto, como ingênuas as constatações do final do referido artigo. Por exemplo, ao afirmar que há o "Estado como movimento social" (p. 64) quando se constata a prática do orçamento participativo. O exemplo citado pelo autor é o de Porto Alegre. Boaventura afirma ainda que tal experiência estaria se espalhando para as esferas regional e nacional. Não foi o que ocorreu (o artigo é de 2003). Em suma, discordo do autor no que se refere à existência, segundo ele, "[...] hoje em dia, por todo o mundo, [de] um sem número de exemplos concretos de experiências políticas de redistribuição democrática dos recursos resultante da democracia participativa ou de um misto de democracia participativa e representativa." (Ibid. p. 66). Vejo, em vez disso, movimentos coletivos de revolta ou reivindicatórios que, espinosanamente, chamaria de direito natural coletivo em exercício. O que é diferente de constatar "[...] exemplos concretos de experiências políticas de redistribuição democrática dos recursos resultante da democracia participativa[...]" (Ibid. p. 66). Em uma palavra, concordo com o diagnóstico, mas não com as projeções que o autor faz a partir daí.

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problemas jurídicos contemporâneos - afinal, sua compreensão do conceito de direito

é demasiado estreita.

Não casualmente, portanto, a vertente crítica do direito acima

citada, em contraposição ao formalismo jurídico, toma a dianteira explicativa quando o

tema é a crise jurídica contemporânea. Tal vertente faz uso de um leque de áreas do

saber que extrapolam as paredes fechadas da dogmática jurídica. E não poderia ser

diferente, pois sem este salto de muros nada poderia ser visto. Isto é, um Estado penal

ou um Estado que investe em políticas públicas, para análises a partir da dogmática

jurídica, seriam semelhantes do ponto de vista jurídico. Isto ocorre na medida em que

o objeto de análise principal, para um estudo do direito como expressão da legalidade,

é a validade dos sistemas jurídicos de cada um desses Estados, entre outros temas

correlatos.

Dentre as várias expressões do direito crítico237, recorro, para ensaiar

um aprofundamento de suas teses por meio dos conceitos espinosanos, a um de seus

representantes, a saber, José Eduardo Faria. E o faço por duas razões. Primeiro, pelo

fato de que há grande originalidade e potência explicativa nas teses de Faria acerca do

direito, sobretudo em sua crítica ao formalismo, declarando-o paradigma em fase de

superação238, como afirmado acima. Faço-o, em segundo lugar, em razão de enxergar

em Espinosa e em seus conceitos jurídicos e políticos grande capacidade de dar mais

vivacidade e poder explicativo ao campo do direito crítico, e principalmente porque

Faria não o cita e não faz uso do rol conceitual espinosano. Esta vertente do direito

crítico, ora apontada, envereda-se pela sociologia do direito preponderantemente,

mas faz uso, também, da economia, da filosofia e da teoria do direito. Aprofundo, a

seguir, alguns temas de destaque desta versão do direito crítico, os quais podem ser

adensados pelos conceitos espinosanos - ponto que tratarei após a análise das teses

de Faria para o campo dos direitos humanos e sociais.

237

Para visão panorâmica do tema, ver, como citado em nota anterior: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002. 238

Conferir: FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 39-51.

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Em um capítulo intitulado ‘As ovas Formas e Funções do Direito:

ove Tendências’, o qual compõe o livro ‘Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura’239, o

autor trata, entre outros temas, da questão dos direitos sociais e dos direitos

humanos, bem como do fortalecimento do Estado penal. Tais temas são desenvolvidos

em duas das chamadas nove tendências do direito contemporâneo.

Sobre a situação dos direitos sociais e dos direitos humanos, o

diagnóstico não é de avanço, mas de retrocesso. Escreve o autor:

A oitava tendência é de aumento no ritmo de regressão tanto dos direitos sociais quanto dos direitos humanos consagrados ou tutelados pelo direito positivo. [...] uma vez que o 'enxugamento' do Estado-nação e a retração da esfera pública reduzem sua cobertura legal e judicial, o alcance jurídico-positivo dos direitos humanos acaba sendo igualmente diminuído, o que implica [...] uma redução ou um rebaixamento qualitativo da própria cidadania. [...] O mesmo acontece com os direitos sociais, cuja eficácia depende de orçamento em volume suficiente para financiar as políticas públicas necessárias à sua implementação. [...] Os princípios básicos e os padrões morais inerentes aos direitos humanos e aos direitos sociais - como a dignidade, a igualdade, a solidariedade e a inclusão econômica [...] estão levando a pior na colisão frontal com os imperativos categóricos da economia globalizada [...].

240

239

FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura. Série GVlaw. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. 240

Ibid. pp. 104-105. O autor trabalha, de modo mais aprofundado, a questão da diminuição do poder do Estado quanto à implementação de políticas públicas para efetivação dos direitos sociais, apontando causas econômico-financeiras para tal fato, em: FARIA, José Eduardo. Poucas certezas e muitas dúvidas: o direito depois da crise financeira. In: Revista Direito GV. Nº 10. São Paulo: JUL DEZ 2009, pp. 297-324. Disponível em: http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/edicao/revista-direito-gv-10. Acesso em 14 MAR 2015. Afirma o autor acerca desse tema: "Até o final do século 20, especialmente no período dos governos social democratas do pós-guerra, das políticas keynesianas de pleno emprego e das Constituições-dirigentes que se seguiram aos períodos autoritários, o poder político se impunha de modo incontrastável sobre os capitais financeiros. Na passagem do século 20 para o século 21, com a desterritorialização dos mercados, o advento dos grandes conglomerados e a unificação do espaço econômico mundial, o Estado nacional perdeu parte de sua força como instância de mediação política e regulamentação, parte de seu papel como mecanismo de determinação de rumos coletivos. Com isso, justamente num momento em que os valores democráticos alcançam um prestígio inédito na história, as condições de sua efetivação paradoxalmente parecem exaurir-se. Quanto mais as decisões econômicas se internacionalizam e quanto maior é a interconexão dos mercados financeiros e a integração dos mercados de bens e serviços em escala global, menor tende a ser o alcance das decisões democráticas sobre elas. Quanto mais as empresas conseguem reinstalar-se em cidades, estados, países e continentes onde podem obter vantagens comparativas, em termos de níveis salariais e carga tributária, menor tende a ser a força do Estado para promover justiça social por vias fiscais, por exemplo." (pp. 304-305).

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199

No que se refere à metamorfose do Estado, passando de um Estado

que investe em políticas públicas a um Estado penal, o autor afirma, ao tratar da nona

tendência:

A nona e última tendência é de prevalecimento do primado Lei e Ordem no âmbito do direito penal, seja por meio de uma crescente criminalização das condutas [...], seja por meio de uma pertinaz campanha de desqualificação de propostas alternativas. [...] Essa tendência tem sido alimentada, [...], pela deterioração difusa do tecido social, pela criminalidade de massa, pela violência urbana, pela multiplicação dos espaços onde a autoridade estatal enfrenta dificuldades para se impor de modo efetivo

241

Conclui o autor que a política de ênfase na eficiência punitivo-

repressiva encerra o risco de "[...] criminalizar sumariamente os marginalizados, do

ponto de vista socioeconômico, sem qualquer objetivo mais consistente de disciplina,

de recuperação e de ressocialização no âmbito especificamente penal." 242 E conclui,

no mesmo sentido, que "[...] enquanto nos demais ramos do direito positivo vive-se

uma fase de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, no âmbito

do direito penal verifica-se justamente o inverso." 243

A chave da análise de José Eduardo Faria, como a dos demais autores

citados em notas de pé de página é, eminentemente, sociológica, tomando o direito

como objeto (sociologia jurídica), mas com lastro também na economia e na filosofia

241

Ibid. p. 107. Para o tema da criminalização das condutas e da ascensão do Estado Penal, ver: WACQUANT, Loïc. L'ascension de l'État pénal en Amérique. In: Actes de la recherche en sciences sociales. De l’État social à l’État pénal. Vol. 124, 1998, pp. 7-26. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1998_num_124_1_3261. Acesso em 12 MAR 2015. O autor trata do tema também em: WACQUANT, Loïc. Les prisons de la misère. Paris: Raison D’agir, 1999. Com diagnóstico semelhante ao de José Eduardo Faria quanto ao tema das clivagens presentes nas cidades, afirma Boaventura de Sousa Santos: "Existem, a meu ver, quatro formas principais de fascismo social. A primeira é o fascismo do apartheid social. Quero com isto significar a segregação social dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado natural hobbesiano. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, encontrando-se sob a ameaça permanente das zonas selvagens. Para se defenderem, as zonas civilizadas transformam-se em castelos neofeudais, enclaves fortificados característicos das novas formas de segregação urbana – cidades privadas, condomínios fechados, comunidades muradas.[...] No que ao Estado diz respeito, a divisão consubstancia-se num duplo padrão da acção estatal nas zonas selvagens e civilizadas. Nas zonas civilizadas, o Estado actua de forma democrática, comportando-se como um Estado protector, ainda que muitas vezes ineficaz e não fiável. Nas zonas selvagens, ele actua de uma forma fascizante, comportando-se como um Estado predador, sem a menor consideração, nem sequer na aparência, pelo Estado de direito." (p. 21). Cito a partir de: SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 65. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 03-76, p. 21. Disponível em: http://rccs.revues.org/1180. Acesso: 12 MAR 2015. 242

Ibid. p. 110. 243

Ibid. p. 111.

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200

do direito. Trata-se, em suma, de análises interdisciplinares. O que pretendo a seguir é

somar a este diagnóstico alguns apontamentos espinosanos sobre a cidade (civitas) e

sobre o direito. Isto é, pretendo mostrar como as concepções espinosanas apontam

para a deterioração do corpo da cidade (civitas) no momento em que as leis da cidade,

por não extraírem da multitudo seu direito, passam a não possuir potência. Ou seja, as

leis deixam de ser, em alguma medida, direito, pois potentia sive jus (TP II 4 p. 12). Em

uma palavra, gostaria de tratar da crise do direito como lei levando em conta o

momento em que a lei da cidade não considera a fonte físico-ontológica do seu direito,

isto é, a potência do povo livre ou multitudo244. E, corolário daí advindo, o direito, que

não mais está nas leis da cidade, passa a estar em outras instâncias do corpo político,

algumas delas ameaçando sua deterioração.

Os conceitos espinosanos, desse modo, se mostrarão capazes de

trazer à discussão contemporânea sobre a crise do direito - tema apontado pela

vertente do direito crítico acima esboçada - novos elementos. Não apenas por se

poder, pela via espinosana, recuperar o velho tema do direito natural, com novas

roupagens e enorme pertinência, como procurei mostrar no capítulo 3, mas também

por outro motivo. Por meio dos conceitos espinosanos de multidão e permanência do

direito natural no interior mesmo da civitas, como afirma Espinosa na Carta 50 (Ep. 50

p.398), o campo jurídico pode ser compreendido de maneira alargada, infiltrando no

debate conceitos apagados ou deslocados pelo formalismo jurídico. Nesse sentido, por

expandir o conceito de lei, por exemplo, dando-lhe ares de potência (a lei da cidade

tem fundamento ontológico), a filosofia espinosana pode ser uma das melhores

referências para o direito de resistência em face do formalismo vazio que violenta os

membros da cidade no momento mesmo em que se apresenta travestido de expressão

de interesses da coletividade. Os conceitos espinosanos podem iluminar ainda mais o

que o direito crítico é capaz de apontar como pontos de crise do direito. E podem dar

mais força a concepções emancipatórias de direito.

244

Para a problematização do conceito de multitudo livre ou serva, ver, entre outros artigos do mesmo livro: ZOURABICHVILI, François. L’énigme de la ‘multitude libre’. In: JAQUET, Chantal; SÉVÉRAC, Pascal, SUHAMY, Ariel (org.). La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 69-80. Trato do conceito de multidão no item (c) do Capítulo 2.

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201

(b) A cidade, o direito civil e o poder do súdito-cidadão

Na Ética IV, Espinosa afirma sobre a cidade, as leis e a justiça:

Para que os homens, portanto, vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é preciso que façam concessões [cedant] relativamente a seu direito natural e deem-se garantias recíprocas de que nada farão que possa redundar em prejuízo alheio. [...]. Mais especificamente, é porque nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um se abstém de causar prejuízo a outro por medo de um prejuízo maior. É, pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade, sob a condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de prescrever uma norma de vida comum [communem vivendi rationem] e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos [...], mas por ameaças. Uma tal sociedade, baseada nas leis e no poder de se conservar, chama-se cidade [civitas appellatur] e aqueles que são protegidos pelos direitos dessa sociedade chamam-se cidadãos [cives]. [...] no estado natural [statu naturali], não há nada que se faça que se possa chamar justo ou injusto. Isso é possível, entretanto, no estado civil, no qual se decide, por consenso [communi consensu decernitur], o que é deste ou daquele. (E IV P 37 Esc 2 p. 311; G II 237-238).

É por meio da lei segundo a qual o útil é, entre dois bens, o maior, e

entre dois males, o menor, que se funda a cidade245. Não é pela razão, mas pelos

afetos, que a socialidade da cidade se funda e se mantém. Tudo se passa como em um

campo físico-ontológico de forças no qual o direito da cidade deve superar o direito

dos cidadãos para que estes, paradoxalmente, tenham direito a algo. De fato, as

potências dos homens - seu direito natural -, em estado de natureza, são opiniões (TP

II 15 p. 19). É preciso que a cidade, por meio de sua potência coletiva, isto é, do direito

civil, das leis que ela dá a si mesma, garanta a potência ou direito natural de cada um

de seus constituintes por meio, como diz o texto da Ética, de “ameaças”.

Espinosa pode afirmar então, como no excerto acima, que a cidade é

esta tal sociedade “[...] baseada nas leis e no poder de se conservar [...]”. E concluirá

que o justo e o injusto, que não existem no estado de natureza, só são conceitos

concebíveis na cidade e aferíveis por meio das leis que esta se dá “[...] por consenso

[...] [communi consensu decernitur]” e que dizem “[...] o que é deste ou daquele [quid

huius quidve illius sit]." (E IV P 37 Esc 2 p. 311; G II 237-238).

245

Sobre este tema, ver itens (a), (b) e (c) do capítulo 2.

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202

As expressões “poder de se conservar [potestate sese conservandi]”,

“leis [legibus]”, “justo ou injusto [iustum et iniustum]” e “por consenso [communi

consensu]” são fundamentais para compreender que o critério do justo na cidade é a

lei, mas não qualquer lei. Tais leis, pelo espírito do texto da Ética, devem ser aquelas

definidas pela expressão communi consensu, ou, traduzindo literalmente e realçando a

redundância que a língua portuguesa traz: consenso comum.

O texto parece apontar para a importante constatação de que as leis

que não venham do communi consensu não têm potência e podem impedir que a

razão pela qual a cidade foi criada, a saber, a preservação do direito natural dos

cidadãos, continue a existir246. Leis sem potência podem levar a cidade à destruição.

Tais leis - de uma tirania, por exemplo (a Turca é citada em TP VI 4 p. 49) -, quando se

afastam da potência da multitudo, passam a não ser direito por não possuírem o que

define o direito, isto é, por não possuírem potência.

Por isso Espinosa escreve, no Tratado político, que:

deve-se ter em conta que pertence menos ao direito da cidade aquilo que provoca a indignação da maioria. [...] E uma vez que o direito da cidade se define pela potência comum da multidão, é certo que a potência e o direito da cidade diminuem na medida em que ela própria ofereça motivos para que vários conspirem. Há certamente coisas de que a cidade deve ter medo (TP III 9 p. 30).

Não por acaso no imperium monárquico descrito no Tratado político

o rei não expressa sua vontade sozinho. Ninguém sozinho tem potência suficiente para

governar muitos (TP VI 5 p. 49). Ele apenas explicita a decisão do amplo Conselho (TP

VI 15 p. 53; VI 17 pp. 54-55). E é importante lembrar que, para Espinosa, o imperium

monárquico somente será estável se for determinado pela potência da multitudo. De

fato, os fundamentos do estado monárquico puro, descrito nos capítulos VI e VII do

Tratado Político, seguem uma única regra, segundo Espinosa: “[...] que a potência do

rei seja determinada somente pela potência da [...] multidão e mantida sob a guarda

desta.” (TP VII 31 p. 85). E também não é casual que no imperium monárquico os

cidadãos tenham armas e formem o exército (TP VI 10 p. 51). Para o equilíbrio de

potências esta instituição (cidadãos armados) é fundamental.

246

Acerca deste tema, ver item (d) do capítulo 2.

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203

Em uma palavra, para Espinosa, a cidade (civitas), isto é, o corpo

inteiro do estado (imperium) (TP III 1 p. 25), tem o poder de dar a si suas leis e de se

conservar desde que tais leis, que definem o que é deste e daquele, sejam alimentadas

pela potência da multitudo. Sem potência a lei é, tal qual o direito de cada um em

estado de natureza, mera opinião (TP VII 2 p. 64).

A potência da multidão, por meio da imitação dos afetos, como

mostrei com mais cores no item (c) do capítulo 2, é o conceito espinosano que explica

a fundação e a manutenção da cidade. Quando a cidade perde a potência que advém

da multidão, por meio de atos do poder soberano que causam o afeto indignação nos

súditos, como expliquei no item (f) do capítulo 1, ela perde sua constituição de civitas.

O afeto indignação, quando sentido por grande parte dos membros do corpo político,

por meio da imitatio afetiva, é índice de desnaturação daquela forma específica de

corpo político. Trata-se do suicídio da cidade. As leis, nesse caso, podem não ter o

caráter de direito, uma vez que sua potência se esvazia com a perda do fundamento

de sua existência. Isto é, a potência da multidão, que outrora estava a sustentar a força

da cidade, se canaliza para sua destruição.

Tal rol conceitual - direito como potência, imitação dos afetos,

multitudo, lei de natureza do bem maior e do mal menor, direito do poder soberano

como potência, etc. - pode ser boa lente para potenciar as análises do direito crítico. É

o que procurarei fazer a seguir, ainda que em forma de apontamentos, uma vez que

esse tema demandaria aprofundamentos maiores, os quais podem vir a ser objeto de

pesquisas futuras.

(c) Espinosa e as análises do direito crítico

Analisei no item (a) deste capítulo algumas teses de uma das

vertentes do direito crítico, a qual funda seus argumentos em especial no aparato

teórico da sociologia jurídica. Por sua visão exterior à dogmática jurídica, tal lente

teórica é capaz de captar a exaustão do formalismo jurídico, isto é, sua perda de

funcionalidade. Com efeito, o autor analisado afirma que "[...] o direito e o

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204

pensamento jurídico, [...], encontram-se próximos de uma exaustão paradigmática" 247

e constata, no mesmo sentido da exaustão paradigmática, "[...] o enorme fosso entre

os problemas sócio-econômicos e as leis em vigor." 248

No que se refere à esfera dos direitos humanos e sociais, tema que

interessa de perto às discussões do direito emancipatório, as constatações não

poderiam ser mais claras e menos animadoras. Há, como analisado, regressão quanto

à eficácia dos direitos humanos e sociais, principalmente em se tratando de países,

como é o caso do Brasil, com sociedades pouco integradas, com fortes discriminações

sócio-econômicas, culturais e políticas 249. Os dispositivos legais que tratam desses

temas, de acordo com as análises do direito crítico indicadas, passam a ter "[...] uma

função tópica, retórica e ideológica." 250

Ponto que decorre da mesma crise do direito e da exaustão

paradigmática é, simultaneamente à regressão quanto aos direitos humanos e sociais,

o aumento da presença do Estado penal e, corolário, o aumento do número de tipos

penais e da força e eficácia do Estado na área penal-punitiva, em contraposição ao

Estado de bem estar social. É o que afirma Faria em outro texto, citado no item (a),

indicando a nona tendência do direito contemporâneo, havendo, assim, o primado da

lei e ordem, com a desqualificação de propostas alternativas, tendência que tem sido

alimentada "[...] pela deterioração difusa do tecido social, pela criminalidade de massa,

pela violência urbana, pela multiplicação dos espaços onde a autoridade estatal

enfrenta dificuldades para se impor de modo efetivo." 251

Desse modo, se as análises do direito crítico, na vertente esboçada

nesta tese, acerca dos direitos sociais, dos direitos humanos e do direito penal têm

consistência, havendo uma regressão quanto aos primeiros (direitos humanos e

sociais) e um aumento do poder do segundo (direito penal), Espinosa pode ser uma

247

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39. 248

FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 99. 249

Ibid., p. 98. 250

Ibid., p. 98. 251

FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura. Série GVlaw. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 107.

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chave interpretativa do direito contemporâneo que se soma às análises de corte

sociológico-jurídico.

Para Espinosa, de fato, como analisado no correr da tese, a civitas

deve ser o lugar de predominância de afetos alegres. Do contrário, a cidade não

atende às razões pelas quais foi criada, e se apresenta como solidão (TP V 4 pp. 44-45)

ou, se não levar em conta as leis naturais, não será cidade, mas quimera [chimaera G

III 293] (TP IV 4 p. 38). Mais precisamente, de acordo com as teses espinosanas

analisadas nos itens (a), (b), (c) e (d) do capítulo 2, a fundação e manutenção do campo

político são o resultado afetivo da lei natural segundo a qual entre dois males se

escolhe o menor e entre dois bens o maior. Esta lei, firmemente inscrita na natureza

de cada homem (TTP XVI p. 237), faz que eles "transfiram", pela esperança do bem

maior, seu direito natural ao poder soberano. Tal "transferência" não é um ato de

cálculo racional e não é, a rigor, uma alienação completa. Há, na busca da securitas -

afeto alegre decorrente da cessação da dúvida quanto à esperança -, um jogo de

potências entre os membros (súditos-cidadãos) da cidade e os responsáveis pela

confecção, interpretação e aplicação da lei civil, ou seja, o poder soberano ou aqueles

que detêm a incumbência da república (TP II 17 p. 20). Entretanto, como a instância de

sustentação do soberano é a multitudo, "[...] onde se articulam, por um lado, a

multiplicidade de desejos ou receios, por outro, a potência comum que se afirma em

resultado da sua insustentável dispersão" 252, o soberano tem limites ao exercício da

sua potência. Caso extrapole tais limites, o afeto indignação, como analisei no item (f)

do capítulo 1, pelo mecanismo da imitatio afetiva, ao ser capilarizado nos membros da

multidão - como que por uma só mente é o mecanismo que dá vida à multitudo -, pode

desnaturar aquela específica configuração ou estruturação do corpo político por meio

do jogo de potências e de afetos entre multidão e soberano. Por essa razão, como

analisado no item (d) do capítulo 2, os membros do poder soberano, ou seja, aqueles

que detêm a incumbência da república (TP II 17 p. 20), que fazem, interpretam e

aplicam a lei, não têm direito - ou seja, potência - de "[...] fazer com que os homens

voem [...]" e "[...] que olhem como honroso o que provoca riso ou náusea [...]" (TP IV 4

p. 39). Pois, como conclui Espinosa, "Assassinar e espoliar súditos [...] e coisas 252

AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 275.

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semelhantes convertem o medo em indignação e, por consequência, convertem o

estado civil [statum civilem - G III 293] em estado de hostilidade [statum hostilitatis - G

III 293]." (TP IV 4 p. 39).

O parágrafo acima objetivou recuperar, em breves palavras, a

discussão presente de modo desdobrado em praticamente todo o capítulo 2. Tal olhar

em panorama sobre a discussão mais longa do capítulo 2 tem por objetivo trazer, num

lance, os principais conceitos espinosanos que podem ser somados às análises do

direito crítico indicadas no item (a) deste capítulo253. De fato, como já afirmado, penso

que Espinosa traz elementos novos à discussão proposta pelo direito crítico,

mostrando, pelo mecanismo afetivo, como a lei civil ganha ou perde potência, e como

a cidade se torna, nessa medida, lugar da fortaleza do ânimo ou da solidão (TP V 4 pp.

44-45), sendo que neste último caso deixa de ser civitas.

Esta é uma lição chave da filosofia política de Espinosa ao direito

crítico. É o ponto conceitual em que as teses espinosanas podem trazer ao direito

crítico, ao menos em sua versão esboçada neste capítulo, contribuições quanto a dois

pontos. Primeiro, quanto ao alargamento do conceito de direito e a pertinência do

253

Outra importante vertente do direito crítico, a de Roberto Lyra Filho, poderia ter sido trazida à discussão neste capítulo. Optou-se pela de José Eduardo Faria, ficando a análise da contribuição de Lyra Filho para outra ocasião. Mas um ponto que pode ser desdobrado em outro trabalho, e que tem relação com os argumentos do item (c) do presente capítulo, está presente em artigo de Marilena Chaui sobre Roberto Lyra Filho, e mais especificamente sobre seu ensaio clássico O que é Direito (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 2003 [1982 -1ª ed.]). Trata-se do tema jurídico-político para o qual, a meu ver, como procuro mostrar neste item (c), Espinosa poderia ser de grande valia a várias vertentes do direito crítico. Segundo Chaui, Roberto Lyra Filho teria sido inovador, entre outros motivos, pela seguinte razão - e eis o valor de Espinosa ao qual me referi acima: "Ora, se considerarmos que uma formação social concreta exprime para si mesma sua constituição política no momento em que determina o justo e o injusto segundo a lei, notaremos porque a diferença entre jus e lex é necessária, pois a definição do justo determinará a qualidade e natureza das leis. Isto significa, contra o positivismo, que a ordem estabelecida não é ponto de partida, mas o resultado de um processo que depende de quem, na sociedade, definiu o justo a partir do qual será feita a lei. Mas significa também, contra o iusnaturalismo, que a definição do justo não é natural, mas social e histórica." p. 19. Cito a partir de: CHAUI, Marilena. Roberto Lyra Filho ou Da Dignidade Política do Direito. In: LYRA, Dereodó Araujo (org.). Desordem e Processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, pp. 17-27. A meu ver, os conceitos espinosanos de imitatio afetiva, mutitudo, justo, lei, direito como potência, etc., podem ser úteis para esta discussão. Ou seja, para um conceito de direito que não se fixe nem nas amarras de um justo natural metafísico, nem na identificação do direito a qualquer lei. Esta tese está na mesma linha de Marilena Chaui ao tratar do conceito de direito natural espinosano e de sua relação com as formas de regime político, no artigo citado (Ibid. p. 23), no sentido de apresentar tais conceitos como próximos ao que Lyra Filho propõe em sua definição de direito. O que se soma a esta tese de Chaui, apresentada no artigo, é o uso dos conceitos de multitudo e o de imitatio afetiva como complementares às ideias de Lyra Filho. Em suma, Espinosa traz novos elementos a esta discussão, tema que poderá ser desdobrado em outra pesquisa.

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207

conceito de direito natural. Com efeito, o conceito de direito da concepção espinosana

coloca em pauta a importância da potência de cada homem como intensidade finita da

e na substância, conceito que se articula a uma busca de vida digna, por meio da

experiência de afetos alegres, para além da mera preservação da vida - como é o caso

na concepção hobbesiana254. Esta maior exigência do conceito de potência dos

homens em Espinosa permite sua inserção, de maneira a meu ver pertinente, no seio

mesmo da reflexão jurídica crítica. Como consequência, há um segundo ponto de soma

ao direito crítico. Ao se alargar a geografia do direito, reconceitualizando-o, o que é

conduta passível de penalização para o formalismo e para o Estado Penal, passa a ser

movimento coletivo do direito resistindo a todo Estado que dissemina no corpo

político afetos tristes, como o medo e o desespero, gerando a solidão. De fato, as

condutas dos movimentos coletivos, os quais se contrapõem, como potência conjunta,

por imitatio afetiva - por exemplo, da esperança de bens maiores, ou da indignação em

face do soberano -, em relação às violências de muitos Estados, passam a ser

entendidas como direito coletivo, e não como infração da lei.

Pois se o Estado não é capaz de capilarizar, por meio de suas

instituições, um imaginário de futuro-como-securitas nas mentes dos súditos no

presente, ou seja, um futuro-seguro-imaginado-como-presente e garantido por

instituições, está-se mais próximo do que Espinosa define como sendo a característica

do imperium turco. Nesta organização política, a duração da paz - aqui entendida como

ausência de guerra - foi longa. Entretanto, como assinala Espinosa, "[...] se a servidão,

a barbárie e o isolamento se devem apelidar de paz [pax appellanda - G III 298], então

não há nada mais miserável para os homens do que a paz." (TP VI 4 p. 49).

Usando o arcabouço conceitual da filosofia espinosana, pode-se dizer

que o Estado penal, ao tomar, cada vez mais, o lugar do Welfare State, apenas

distancia as leis do direito. Leis que diminuem a potência do direito natural dos

cidadãos (seu conatus), seja com a desregulamentação no âmbito do direito público,

seja com o aumento das condutas criminalizadas pelo direito penal, apenas distanciam

o Estado da multitudo. Sem a potência da multitudo, diria Espinosa, a cidade, corpo

254

Analiso este tema em Hobbes, pontualmente, como contraponto à concepção espinosana, no item d.2 do Capítulo 1 e no item (a) do Capítulo 2.

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inteiro do imperium (TP III 1 p. 25), pode ser fraturada pela indignação das potências

dos marginalizados de toda espécie. Os movimentos em escala mundial, interpretados

espinosanamente, parecem ser a manifestação do direito natural coletivo frente às leis

sem potência dos diversos tipos de Estado. Há certamente coisas que a cidade deve

temer, ou considerar, para se manter potente, isto é, detentora do direito. Contra o

movimento lei e ordem, contra o Estado penal, contra as desregulamentações do

arcabouço legal que dá garantias mínimas de dignidade, nada mais jurídico do que os

movimentos dos marginalizados, manifestação do direito natural como potência

coletiva, fissura na cidade que deve ser ouvida.

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CONCLUSÃO

Espinosa é um clássico de alta voltagem conceitual. É anômalo no

dezessete em face de seus contemporâneos, bem como em face da tradição que o

antecede na história da filosofia, assim como formula conceitos que, se aplicados às

análises políticas e jurídicas contemporâneas, se mostram inovadores. A pesquisa que

resultou na tese procurou seguir dois caminhos derivados dessas constatações. No

primeiro movimento argumentativo, composto pelos dois primeiros capítulos, procurei

explicitar a presença da teoria dos afetos espinosana em sua filosofia política. Para

isso, analisei de perto passagens da Ética III, dos textos exclusivamente políticos de

Espinosa, a saber, o Tratado Teológico-político e o Tratado-político e partes da Ética IV.

Antes, nesse mesmo movimento argumentativo, transitei pelas teses ontológicas de

Espinosa, uma vez que elas são, na leitura que propus, fundantes das teses políticas e a

elas ligadas.

Todo o capítulo 1 procurou se enveredar pelas questões que

constituem uma espécie de pano de fundo necessário para tratar das questões

políticas e jurídicas em Espinosa. Aliás, as teses jurídicas de Espinosa, como explicitei

sobretudo no capítulo 2, com desdobramentos nos capítulos 3 e 4, não podem ser

dissociadas de suas teses políticas. Antes dessas questões de fundo, analisei, no

mesmo capítulo 1, o que intitulei notas acerca da tradição em face da qual Espinosa se

posicionou contrariamente. Tais notas tiveram o papel de mostrar que a questão da

relação entre política e afetos não foi posta pela primeira vez por Espinosa. Uma de

suas inovações em face da tradição foi a de tratar os afetos como coisas naturais e

constitutivas dos homens255, tema que desenvolvi no primeiro momento do capítulo 1.

A sequência do capítulo 1, em seu item (b), aprofunda esta posição anômala de

Espinosa em face de seus contemporâneos e de seus antecessores mais influentes na

história da filosofia.

O capítulo 1 tratou, após esta breve introdução que localiza Espinosa

em face de outros campos de teses filosóficas, do pano de fundo ontológico para as

255

CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 155 e seguintes.

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teses políticas do autor. De fato, procurei, nesta ocasião, construir um fio ligando a

ontologia espinosana aos conceitos de conatus, potência e afetos (desejo, alegria,

tristeza). No tema dos afetos, houve a análise em pormenor de alguns daqueles

fundamentais para a filosofia política espinosana, na leitura que propus neste trabalho.

Procurei, seguindo o fio acima indicado, costurar a ontologia espinosana aos conceitos

de amor, ódio, medo, esperança, securitas, desperatio e indignação. Na hipótese que

abriu a pesquisa, tais afetos seriam - e de fato se mostraram - fundamentais para a

fundação da cidade, bem como para sua manutenção enquanto corpo político.

Alinhavei tais conceitos tanto à ontologia como ao mecanismo do mimetismo afetivo.

De fato, este conceito, na leitura proposta, se mostra decisivo para explicar o

funcionamento dos afetos na sustentação da cidade. O mimetismo afetivo e os afetos

operando segundo tal mecanismo estão ligados à lei, tão fortemente inscrita nos

homens, de acordo com Espinosa, segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e

entre dos males o menor, como analisado nos itens do capítulo 1. O capítulo

encaminha-se ao seu desfecho tratando das questões de fundo à ontologia e aos

afetos, a saber, a tese espinosana de que os afetos são mais numerosos que os nomes

que se lhes dão, uma vez que são derivações, em variação ilimitada, do desejo, da

alegria e da tristeza. Por fim, o capítulo tratou dos conceitos de ação e paixão, ligando-

os tanto ao conceito de homem como coisa singular potente, intensidade modal na

ontologia espinosana, quanto aos conceitos de conhecimento, propriedades comuns e

noções comuns.

Em uma palavra, o capítulo 1, analisando passagens centrais da Ética

I e da Ética III, procurou preparar o terreno afetivo-humano, de ponta a ponta fundado

na ontologia espinosana, com o qual se construiu, no capítulo 2, a filosofia política do

autor.

A principal conclusão a que levou o capítulo 1 (e a razão de seu lugar

na tese) é a presença das teses ontológicas como fundamento da política, bem como a

derivação da teoria dos afetos desta mesma ontologia.

A partir daí se inicia o caminho do capítulo 2, que é, pode-se afirmar

agora com mais elementos, decorrente das teses ontológicas de Espinosa e do lugar

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dos homens e seus afetos na substância única. No capítulo 2 a política e o direito são

temas que aparecem como implicados pelo veio acima percorrido. O capítulo 2, dessa

maneira, como continuidade do fio ontológico, apresenta a política. Primeiro,

aproximando o conceito de direito espinosano ao conceito de afeto. A seguir,

extraindo da ontologia e dos conceitos de direito e afetos os conceitos de socialidade e

de cidade. Mais precisamente, os afetos trabalhados no capítulo 1, especialmente os

pares afetivos medo-esperança e segurança-desespero, são focados em seu papel

político ou de confecção da política, isto é, seu papel de instâncias fundantes da

civitas. Na cartografia espinosana, chega-se a um momento chave da tese, que é o de

mostrar que a filosofia política de Espinosa é tributária de sua ontologia. Mais

estritamente, de sua teoria dos afetos, a qual, por sua vez, se funda na tese da

substância única e absolutamente potente.

Neste momento, alguns temas da inovação espinosana foram

apresentados. Primeiro, a ligação, na leitura que propus, entre os conceitos de imitatio

afetiva, multitudo, imperium e civitas. Procurei mostrar qual a lógica de funcionamento

da multidão, que Espinosa afirma operar 'como que por uma só mente', por meio do

conceito de imitação afetiva. O imperium, nesse sentido, é alimentado pela potência

da multidão, que lhe dá direito a criar, interpretar e aplicar o direito civil aos súditos-

cidadãos. A incumbência da república, que é precisamente a da criação, interpretação

e aplicação dos direitos criados, é função do soberano do imperium. Há, entretanto,

limites ao exercício deste poder, tema que tratei com algum pormenor ao final do

capítulo 2, em seu item (d). Eis um dos pontos em que as teses ontológicas de

Espinosa, quando se trata de compreender os modos singulares humanos na cidade, se

mostram mais presentes. De fato, sendo os homens intensidades de potência,

naturais, com afetos que assim também o são, não pode a cidade tudo em face deles.

Uma vez que a potência da multidão é aquilo que dá potência ao soberano por meio

da imitação e emulação dos afetos esperança e segurança, quando o poder soberano

passa a violar as leis civis ou praticar atos que são contrários à natureza dos súditos,

disseminando o medo e o desespero, aquilo mesmo que antes sustentava o imperium

passa a se canalizar para sua destruição. Na leitura que propus, portanto, pode-se

concluir que a função da civitas como corpo do imperium (ou, para usar um termo

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impreciso, a função do Estado) é disseminar com frequência um imaginário de alegria,

por meio dos afetos esperança e segurança. Do contrário, a cidade deve temer, isto é,

o poder soberano que faz suas leis civis pode ser desestruturado por meio da multidão

imitando e emulando o afeto indignação, que é o ódio em face de alguém que fez mal

a um outro. No caso, o ódio dos súditos em face do soberano que faz mal aos

membros da cidade. A potência do soberano da cidade, assim, se esvazia, pois o poder

que o sustentava passa a dissolvê-lo, e assim à cidade, tudo em nome da preservação

das potências individuais elas mesmas, dos desejos ou direitos naturais de cada um

dos membros do corpo político.

Daí decorre outra tese espinosana de alta voltagem, que se

desdobrou ensaisticamente nos capítulos 3 e 4. Ao final do capítulo 2, como

decorrência do movimento interno das teses de Espinosa, chega-se a outra de suas

inovações maiores. A tese de que a cidade, e a filosofia política que a embasa,

somente poderiam ser a da construção da paz como presença do afeto fortaleza de

ânimo (TP V 4 p. 45), afeto que na Ética III se desdobra em firmeza e generosidade

(animositetem et generositatem) (E III P 59 Esc p. 235). Como são ambos afetos ligados

à razão, a qual é rara nos homens, isto é, a conduta dos homens raramente se funda

exclusivamente na razão (E IV P 35 Esc p. 303), formulei a hipótese de que as

instituições políticas é que propiciariam tais afetos ligados à paz. Portanto, para

Espinosa, paz difere de ausência de guerra, sendo antes uma vis (força, potência) que

está ligada ao tipo de afeto experienciado pelos súditos-cidadãos. Mais alegria, em

forma de esperança e segurança, é, simultaneamente, mais firmeza e generosidade e,

portanto, fortaleza de ânimo ou paz política.

Estas as conclusões a que o veio percorrido na pesquisa levou. No

primeiro movimento da tese o método foi o da análise cuidadosa dos textos do autor

para confirmar a hipótese que abriu a pesquisa, como já apontado, a saber, a da

relação de intersecção entre os conceitos de afetos, política e direito em Espinosa.

Para isso os fios da ontologia foram os que fizeram a costura afetiva da política. O livro

I da Ética, assim, se liga ao livro III e aos textos políticos, seja parte da Ética IV, seja o

Político ou o Teológico-político.

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Abri esta conclusão afirmando a alta voltagem conceitual de

Espinosa. Ela esteve presente no núcleo duro da pesquisa, a saber, os capítulos 1 e 2,

acima citados para explicitar as conclusões advindas da pesquisa de textos e de

comentadores, confirmando a hipótese inicial. Entretanto, a alta voltagem conceitual

espinosana tomou um caminho mais ousado, contemporâneo e ensaístico nos

capítulos 3 e 4.

Alguns apontamentos conclusivos podem ser retirados desses

capítulos finais. Importa lembrar, como atestei na Introdução, que tais capítulos têm

método e consistência diversos dos dois primeiros. A rigor, os dois primeiros formam o

que intitulei núcleo duro da pesquisa, local em que procurei responder às demandas

do projeto de pesquisa inicial. Os capítulos 3 e 4 têm o traço próprio ao ensaio. Neles,

trouxe Espinosa aos tempos atuais do jurídico. E Espinosa se apresenta, na leitura que

propus, autor de grande valia. A conclusão a que o capítulo 3 aponta é a de que as

linhagens de direito natural, se por um lado se encontram em franco declínio aos olhos

positivistas e formalistas, podem ter seu ponto alto em ao menos uma de suas

vertentes, a saber, a espinosana. A linhagem espinosana se distancia das anteriores e

contemporâneas a ele na medida em que procura aproximar, ao modo hobbesiano,

mas dele mantendo importantes distâncias, o direito da potência. A identificação

espinosana do conceito de direito natural a potência o distancia das vertentes

metafísicas e abre espaço para teses jurídicas que podem enfrentar as positivações de

leis que instituem violências. Eis a conclusão mais clara do capítulo 3: o direito natural

de viés espinosano pode ser, para o direito emancipatório, a cunha teórica que põe em

xeque direitos positivos que não disseminam a hilaritas (os afetos de alegria) na

civitas.

O capítulo 4, na mesma chave de trazer ensaisticamente conceitos

espinosanos à discussão jurídica contemporânea, adota a postura de aproximar

conceitos jurídico-políticos de Espinosa aos de um autor da vertente do direito crítico.

Há uma miríade de escolas e vertentes críticas do direito. Seu ponto comum é a recusa

do formalismo e da identidade do direito à lei positivada pelo Estado. Em razão desta

variância, optei por uma de suas vertentes, a meu ver original e bem construída teórica

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e empiricamente. Os conceitos espinosanos, ao serem acoplados às análises do direito

crítico, dão a eles mais potência. Essa a conclusão principal a que o capítulo 4 chegou.

Na arquitetura da tese, composta de dois movimentos, Espinosa foi,

inicialmente, analisado à luz da intersecção de seus próprios conceitos, momento em

que procurei solucionar o problema da relação entre três pontos centrais da

construção teórica do autor. Como afirmei no início da tese, o objetivo foi o de

iluminar certa seção da geografia conceitual espinosana, sem com isso contradizer seu

racionalismo absoluto. Questão de lançar os holofotes ali onde os comentadores

caminharam com menos frequência. A hipótese inicial foi confirmada na leitura que

procurei fazer, isto é, a da relação conceitual entre os conceitos espinosanos de afeto,

direito e política. No segundo momento, as teses espinosanas serviram a duas

constatações que se ligam. Primeiro, se mostram muito úteis para o desmonte das

concepções segundo as quais todas as vertentes do direito natural perderam sua

funcionalidade em razão da positivação dos seus conteúdos nas cartas constitucionais

dos Estados democráticos contemporâneos. Segundo, se mostram capazes de trazer

novos elementos mesmo às vertentes mais críticas ao formalismo e ao legalismo

jurídicos.

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As edições das obras de Espinosa indicadas no início da tese, com as abreviações, e que constam nestas Referências Bibliográficas, foram as utilizadas nas citações no corpo da tese. Elas em geral foram cotejadas com a edição de Carl Gebhardt. Importa salientar que houve consulta sistemática a todas as edições citadas nas referências bibliográficas, sobretudo nos momentos em que os tradutores pareciam não se fiar ao sentido dos conceitos do texto original (cuja fonte foi a edição de Carl Gebhardt). Imperium e civitas são exemplos de termos cuja tradução varia conforme a versão consultada. Às vezes, portanto, preferi usar o termo latino para manter os conceitos próximos do sentido dado por Espinosa.

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