território, comunidades tradicionais e arte rupestre da região do ebo (angola)

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Promontoria Monográfica 16

Actas das IV Jornadas de Jovens em Investigação Arqueológica - JIA 2011

Vol. I

(Faro, 11 a 14 de Maio de 2011)

Editores Científicos: João Cascalheira Célia Gonçalves

Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia Departamento de Artes e Humanidades

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (Universidade do Algarve)

Universidade do Algarve FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Departamento de Artes e Humanidades Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia

Promontoria Monográfica 16 Editor: Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia e Departamento de Artes e Humanidades Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Universidade do Algarve Campus de Gambelas 8005-139 Faro [email protected] Coordenação Editorial: Nuno Ferreira Bicho António Faustino Carvalho IMPRESSÃO: Tipografia Tavirense, Lda. TIRAGEM: 280 exemplares ISBN: 978-989-97666-2-4 Depósito Legal: 342265/l2 APOIOS:

Território, comunidades tradicionais e arte rupestre da região do Ebo (Angola)

Cristina Pombares Martins

Investigadora Associada do Grupo “Quaternário e Pré-História” do Centro de Geociências (uID73 – Fundação para a Ciência e Tecnologia)

Doutoranda em “Quaternário, Materiais e Culturas” (UTAD) Bolseira FCT (SFRH/BD/74567/2010)

[email protected]

RESUMO Angola apresenta inúmeros contextos arqueológicos de inegável riqueza. A região do Ebo, no Kuanza-Sul, não é excepção, possuindo diversos abrigos com pinturas e variados testemunhos materiais sobre as raízes culturais no território. No Ebo, as comunidades estão organizadas em termos tradicionais, sob a orientação de um soba. Nestas comunidades, a memória preservada pela tradição oral é uma excelente fonte histórica e cultural, funcionando ainda como elo entre vários vestígios arqueológicos e as actuais populações. Assim, sociedade, arte rupestre, território, testemunhos materiais e imateriais encontram-se profundamente interligados, cruzando-se e complementando-se, constituindo, no seu todo, uma complexa paisagem cultural. Partindo daquele conjunto para a análise específica da arte rupestre, sobressai o papel que esta poderá desempenhar no entendimento das dinâmicas culturais da região, de padrões de povoamento, momentos de mutação e/ou intercâmbio cultural, procurando ainda aferir se os arquétipos presentes nas pinturas são, eles próprios, reveladores de assimilação cultural, marcos de transição ou carimbos de identidade no território. São estes alguns dos aspectos que nortearão o estudo que pretendemos levar a cabo nesta região de Angola.

PALABRAS-CHAVE Angola; Arqueologia da Paisagem; Arte Rupestre; Sociedades Tradicionais

ABSTRACT

Angola has many archaeological contexts of unparalleled richness. The region of Ebo, in Kwanza-Sul, is no exception, possessing several shelters with paintings and material evidences about the cultural roots in the territory. In Ebo, communities are organized in traditional terms, under the guidance of a soba. In these communities, the memory preserved by oral tradition is an excellent source of history and culture; it acts as a link between various archaeological sites and existing populations. Thus, society, art rock, territory, material and immaterial testimony are deeply interconnected, intersecting and complementing each other, constituting, as a whole, a complex cultural landscape. Based on that set for the specific analysis of rock art, stands the role this might play in the understanding of the cultural dynamics of the region, settlement patterns, times of change and / or cultural exchange, still looking to gauge whether the archetypes present in the paintings are themselves revealing of cultural assimilation, stamps or marks of identity transition within the territory. These are some aspects that will guide the study that we intend to pursue in this region of Angola.

KEYWORDS Angola; Landscape Archaeology, Rock Art; Traditional Societies

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende dar a conhecer um projecto de

investigação que se debruça sobre a região do Ebo, no Kuanza-Sul, em Angola, onde existem diversos abrigos com pinturas e variados testemunhos materiais sobre as raízes culturais do território, envolvidos por comunidades organizadas em termos tradicionais há séculos e cuja memória preservada pela tradição oral é uma excelente fonte histórica e cultural.

Dado tratar-se de um projecto que está no início, o que iremos apresentar são essencialmente as linhas que orientam a nossa investigação e não conclusões.

SOCIEDADES TRADICIONAIS

África foi o centro nevrálgico em todas as fases da evolução humana e muito tem ainda para desvendar. Recuando unicamente até ao processo de transição de caçadores-recolectores para sociedades agro-pastoris não podemos esquecer que se tratou de um processo gradual e que, nalgumas regiões, talvez tenha acontecido apenas após os primeiros contactos com os europeus (Klein 1995: 40). Isto, no entanto, não obstou a que surgissem grandes civilizações. Embora a mais conhecida seja a Egípcia, muitas outras apareceram posteriormente, como é o caso da dinastia do Gana, que atinge o seu

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auge no séc. IV e de outros Impérios como os do Mali, do Songai, do Iorubá e Benin (Lopes 2008: 21).

A documentação escrita relativa à África Subsahariana começa a aparecer no séc. XVI, da autoria, principalmente, de navegadores e missionários. Nessa linha, surgem os textos de Filippo Pigafetta e Duarte Lopes – “Relação do Reino do Congo e das terras circunvizinhas” – com descrição dos reinos de Loango, dos Anzicos, da Matamba e do Ndongo, os de Cavazzi de Montecúccolo ou cartas da autoria de Padres como Garcia Simões, António Mendes e Gouveia os quais descrevem a região e as formas de poder aí existentes (Albuquerque 1989a: 97), relatando a existência de muitos sobados e a forma como se articulavam com os respectivos reis (Albuquerque 1989b: 22). Nesses reinos subsistiam formas de governo muito complexas, umas baseadas na ordem genealógica, outras em chefias de ordem política, detentoras de grande vitalidade que, muitas vezes, se traduzia em conquistas ou pelo menos em tentativas de legitimação de territórios.

A falta de fontes primárias sobre os povos que habitavam a região que hoje corresponde Angola dificulta a nossa compreensão sobre os habitantes daqueles reinos, sobre a sua origem, como e quando chegaram ou sobre os territórios antes da formação desses reinos. Sabemos, no entanto, que por volta do séc. XIII povos bantos terão chegado a esta região de África (Estermann 1983:12).

A par dos antigos reinos havia comunidades nómadas que ainda hoje existem, embora em áreas muito circunscritas de Angola – os San. Estes poderão ter sido os primeiros habitantes do actual território de Angola, como indica o estudo levado a cabo pela Universidade da Pensilvânia, coordenado pela antropóloga e especialista em genética, Sarah Tishkoff, apresentado em 2009 – “The genetic structure and history of Africans and African Americans”.

Os povos bantos empurraram os San mais para o Sul do Continente, para o deserto do Kalahari. Embora alguns destes tenham optado pela sedentarização, a maior parte é nómada, vivendo da caça e da recolecção de frutos silvestres e mel, tal como faziam os seus antepassados há milhares de anos.

No entanto, não são apenas aquelas comunidades nómadas o reflexo vivo de povos que há muito habitam esta área de África. A sociedade tradicional ainda hoje existe em Angola e já existia antes do período colonial neste continente, com as suas especificidades sociais, económicas, tecnológicas e culturais, mas não é matéria fácil de tratar dada a dificuldade de obter, analisar e cruzar fontes – os documentos escritos, os dados arqueológicos, a tradição oral, apoiados pela linguística e antropologia.

A sociedade tradicional é regida pelos costumes e personificada na figura do soba de cada aldeia. A autoridade tradicional, no entanto, não é exercida de forma individual; a comunidade é dirigida por um conselho de anciãos que constitui o grupo de pensadores e dirigentes, que geralmente vêm de uma família nobre - a família do soba.

Estas comunidades valorizam o património do seu território e mesmo que não reconheçam os seus antepassados como autores desse legado, não deixam de lhe atribuir significado ou pela tradição oral, manter vivas histórias e lendas que passam de geração em geração.

Nas sociedades africanas, a tradição oral ocupa ainda hoje um lugar de destaque (Gutierrez 2008: 144). O tempo, mais do que cronológico, é marcado por acontecimentos importantes, por factos ocorridos, num determinado espaço. “A história falada constitui um fio de Ariadne muito frágil para reconstituir corredores obscuros do labirinto do tempo” (Ki-Zerbo 2010: 37). Embora caiba ao investigador pelo contexto do seu estudo colocar no crivo as palavras, as mensagens que lhe são transmitidas, de modo a separar as invenções (voluntárias ou involuntárias), a detectar omissões, trabalhando assim com as cautelas que o rigor científico impõe, a verdade é que mesmo aquelas invenções e/ou omissões podem ser, elas próprias, portadoras de informação do sistema de pensamento dessa mesma sociedade.

O ESTUDO DO TERRITÓRIO A maneira como se estrutura o pensamento, como se

pensa a existência, traduz-se em práticas de vida diferentes que diferenciam umas sociedades de outras. Ainda assim, há algo em comum a todas: nenhuma pode ser considerada isoladamente. O comportamento dos grupos humanos é condicionado pela percepção que têm do espaço envolvente e isso inclui também as relações com outros. O contacto com os outros grupos traduzir-se-á na apreensão de elementos de contacto que surgem em manifestações diversas, sejam elas de ordem estética, linguística e/ou comportamental.

Todos aqueles comportamentos e atitudes podem ser reconhecidos pela Arqueologia da Paisagem, que visa ainda reconstruir a compreensão que os grupos tinham do território. O território, o espaço físico, torna-se uma criação humana no momento em que é percepcionado pelo ser humano, pois a partir daí assume aspectos diversos, próprios da natureza social do Homem: habitacional, político, económico, etc. Mesmo não havendo intervenção material sobre o território, este continua a ser uma construção pela sua interacção com os seres humanos, uma vez que é entendido de uma forma ou de outra, conforme o sistema de pensamento de cada comunidade. Além disso, não podemos esquecer o simbólico que sendo na sua essência intangível, sustém parte da vida da sociedade, resiste mais facilmente à passagem do tempo, criando e preservando uma ordem social, podendo materializar-se em espaços, símbolos e atitudes que assim dão um significado específico à paisagem ou a transformam. Tudo isto é objecto de estudo da Arqueologia da Paisagem.

Partindo daquele grande propósito da Arqueologia da Paisagem, para outro aspecto, o “conceito culturalista de paisagem” de Criado Boado, segundo o qual a pesquisa arqueológica deve abarcar territórios mais amplos, não se restringindo ao sítio em estudo, pois a paisagem foi “compreendida pela sociedade que a ocupou e cujas

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características são resultado de factores naturais e/ou humanos e suas inter-relações” (Criado Boado 1991: 6), concebemos o projecto “A territorialidade como fonte de identidade de sociedades coevas distintas (caçadores-recolectores e metalurgistas) da região Centro-Oeste de Angola” (Projecto FCT – SFRH/BD/74567/2010) que se traduzirá, em linhas gerais, no estudo pormenorizado dos abrigos pintados do Ebo, na província do Kuanza-Sul, dando especial atenção à arte rupestre, no contexto das interacções das populações – grupos caçadores-recolectores e as sociedades metalurgistas – que em dado momento partilharam o território, tentando aferir se os padrões presentes nestas pinturas são, eles próprios, reveladores de assimilação cultural, marcos de transição ou carimbos de identidade no território. Sendo o território partilhado por sociedades distintas, como é expressa a identidade própria de cada uma na paisagem? – "A análise da arte rupestre pode ser capaz de moderar o viés funcionalista da Arqueologia da paisagem" (Bradley et al. 1994: 386).

Este estudo partirá duma perspectiva macroespacial (Arqueologia do Território – África Austral), passando por uma semi-microespacial (Inter sítio – Região centro-ocidental de Angola, Kuanza-Sul), até chegar a uma perspectiva microespacial (Arqueologia Intra sítio – cada sítio do Ebo), aferindo como estão distribuídas as estruturas arqueológicas em termos regionais, de acordo com as configurações da própria paisagem, analisando as interacções entre grupos humanos e paleoambientes.

Procuraremos, assim, aferir as interacções Homem/Meio acerca da distribuição e exploração de recursos, estratégias de mobilidade, estabelecimento de espaços (habitacional, ritualístico, etc.), vias de penetração e difusão de tecnologias, nomeadamente a do ferro, ainda pouco estudada (Jorge 1974: 166), tendo em conta que nesta região se encontram prováveis oficinas de fundição em abrigos pintados (Ervedosa 1980: 281).

Aquele projecto encontra-se no seguimento do nosso trabalho desenvolvido no âmbito do Mestrado em Arqueologia Pré-histórica e Arte Rupestre (IPT/UTAD), cujo resultado se traduziu na apresentação da tese “Arte Rupestre de Angola, um contributo para o seu estudo numa abordagem à arqueologia do território”, em 2008 (Martins 2008). Dado que a 1ª campanha no terreno ainda irá decorrer, o que aqui apresentamos são as linhas gerais que orientarão a nossa pesquisa e que poderão ser reformuladas ou substituídas conforme os avanços do trabalho de campo.

ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O EBO – TERRITÓRIO E ARTE RUPESTRE

A arte rupestre de Angola pode estar relacionada com

um sistema de crenças e rituais dos vários povos que foram passando pelas diversas regiões, exprimindo a estrutura de pensamento de comunidades que se sucederam ou que partilharam territórios, caçadores-recolectores e agricultores metalurgistas. Aqui, à semelhança do que acontece um pouco por todo o Continente Africano, a riqueza de informações

etnográficas pode ser usada com sucesso para interpretar muitas das metáforas e símbolos da arte daqueles grupos, podendo desempenhar um papel chave na compreensão do significado e motivação de manifestações artísticas das comunidades, muito particularmente no que respeita à arte rupestre.

Na região do Ebo, todo o conjunto constitui uma complexa paisagem cultural, com pinturas, gravuras, lavras, diversas estruturas sepulcrais (cemitérios e túmulos de sobas), aldeias dispersas de comunidades de base tradicional. As populações das aldeias locais exprimem-se em língua N’Góia (tronco linguístico do Quimbundo).

Em termos geológicos, o Ebo encontra-se na zona do maciço antigo, sem jazidas importantes em termos de recursos minerais, numa área de rochas ígneas ou eruptivas, remobilizadas e/ou regeneradas durante o período Proterozóico, representadas, sobretudo, por granitos porfiroblásticos, que emergem sobre a forma de maciços granitóides, por vezes inselbergs, numa peneplanície marcada por uma vale pouco profundo de solos ferralíticos e paraferralíticos. Trata-se de uma zona de terras altas subplálticas, onde o relevo apresenta uma altitude que varia em média entre os 1000 m e os 1500 m.

O Ebo possui uma rede hidrográfica muito rica, com diversos rios, sendo o maior o Rio Queve (ou Cuvo), com inúmeros riachos e ribeiros, permitindo uma grande fertilidade dos solos para a agricultura e desenvolvimento da actividade piscatória. A par da área de lavras que sustentam, sobretudo, uma agricultura de subsistência (milho, feijão, batata doce, etc.), encontramos zonas de floresta aberta e de savana, com eufórbias e acácias, com predomínio do clima tropical húmido, de pluviosidade acentuada (a média anual ronda os 1500mm), dada a influência da altitude da região; a temperatura média é da ordem dos 20°.

Numa região tão rica, com abundantes recursos hídricos e florestais, não é de estranhar que surja uma fauna diversificada (herbívoros como o elefante, o búfalo, a pacaça, a gazela, o antílope, a palanca, a cabra-de-leque. A maioria destes herbívoros servem de alimento aos carnívoros como a onça, a hiena, o lince e a raposa).

Feita esta caracterização geral da região do Ebo, direccionemos agora o nosso olhar para a paisagem do ponto de vista da arqueologia. Que hipóteses poderemos formular, partindo da observação do meio (características topográficas, localização e orientação dos abrigos, localização das aldeias, etc.)?

Partindo do centro do Ebo, os três abrigos pintados que farão parte do nosso estudo distribuem-se sensivelmente a Noroeste (Cumbira), Norte (Ndelambiri) e Nordeste (Caiombo). As aldeias ficam junto das terras de cultivo, perto de rios (Rio Mapassa – Cumbira; Rio Chipuanga e Ngila – Ndelambiri; Rios Matari, Muegi e Tamba – Caiombo) e os abrigos a meia-encosta ou a uma cota ligeiramente superior, fora das aldeias. Que finalidade terão desempenhado no território esses abrigos? Terão de facto funcionado como oficinas de ferreiro, como atestam as inúmeras escórias de ferro ali encontradas na década de 70, aquando da visita de Carlos Ervedosa e Santos Júnior? Se sim, terão os

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ferreiros sido eles próprios os últimos autores das pinturas? Qual a finalidade dessas pinturas? Que significado têm essas figurações para as populações actuais? (Oosterbeek e Martins 2011: 7).

As aldeias estão na peneplanície e elas próprias se estruturam de forma diferente. Em Cumbira, por exemplo, ocorrem casas dispersas em modelo de colmeia, destacando-se a técnica construtiva de assentamento em blocos de casas de adobe (FIGURA 1). Em Caiombo as construções são mais rectangulares e organizadas em arruamentos, sendo que na sua maioria se encontram encerradas por um muro comum.

Esta região do Ebo, fonte excepcional de recursos, permite sem grande esforço obter proveitos da floresta, pois à sua volta existem várias porções florestais. Rica em recursos hídricos oferece além da água indispensável às pessoas, animais e aos solos, a possibilidade de obter peixe. O rio Cuvo, o grande rio que atravessa o vale, poderia além de fornecer alimento, ter funcionado como via de transporte até ao litoral ou delimitar um corredor de uma eventual rota de transumância, de aquisição de matérias-primas (ex. minério), ou até mesmo fazer parte de uma rota de migração de animais em busca de alimento ou para procriar. Poderia ainda atrair os animais das zonas de floresta e mata que, na estação seca, na impossibilidade de encontrarem água nos rios de menor caudal (alguns intermitentes e que, portanto, quase desaparecem), ali se deslocariam para beber, o que implicaria passarem próximo das actuais aldeias (Ebo, Cumbira, Caiombo).

Não temos elementos suficientes para definir com certeza como seria o meio ambiente à época dos caçadores-recolectores na região e como terá evoluído até à actualidade, pois é uma área inédita para a qual não existe qualquer estudo, mas também por isso temos a possibilidade de formular inúmeras hipóteses que com o avanço da nossa investigação esperamos poder responder, acrescentar ou eliminar.

Olhando agora para outros elementos naturais da paisagem, sobressai aquilo a que Almeida Francisco a propósito do estudo da paisagem dos caçadores recolectores da foz do Côa designou por “monumento selvagem”. Este arqueólogo falava a respeito do monte do Arcanjo S. Gabriel, formação natural, “com a qual a arte rupestre paleolítica da foz do Côa surge associada e que parece contribuir, para naturalizar o discurso, formando um sistema com os outros elementos (lugares), da paisagem dos caçadores recolectores. (…) Consideramos este processo, como a conversão da monumentalidade natural a monumentalidade cultural, “culturalização da natureza”, em que o significado e função do espaço permanecem, depois de ter sido apreendido e modificado culturalmente (...)” (Francisco 2008: 53). Este aspecto da monumentalidade natural parece-nos pertinente para a nossa área de estudo, pois se olharmos em redor do Ebo, notamos que se encontra emoldurado por elevações acima dos 2000 metros de altitude: NW – Quicunda (2079m); NE – Cassangi de Cada (2012); SE – Somué Tunda (2102m) e Canjundo (2073m); SO – Vordo (2080m). Não entrarão estas majestosas elevações no

âmbito das paisagens simbólicas e, por isso, intrinsecamente ligada à arte rupestre?

Esta região insere-se numa área mais vasta que engloba construções em pedra, nomeadamente, fortificações e túmulos. Os túmulos surgem pelas vertentes ou no cimo de morros graníticos, destinando-se aos sobas ou a outras pessoas notáveis da comunidade. Surgem simples ou geminados, circulares ou rectangulares (Ervedosa 1980: 419).

Após o reconhecimento territorial, o enfoque será dado à Arte Rupestre, estudando os painéis e a estratigrafia das pinturas, construindo uma cronologia não meramente estilística, mas estratigráfica, que permita construir uma proposta interpretativa dos processos de apropriação da paisagem na região e aferir em que medida determinados padrões decorativos presentes na cerâmica, cestaria, objectos de madeira, nas tatuagens, na tecelagem se podem associar aos padrões de arte rupestre.

As pinturas dos abrigos do Ebo são estilisticamente distintas, mas apresentam iconografia em parte convergente.

No abrigo da Cumbira encontramos pinturas com pelo menos 4 níveis de sobreposição. Representações zoomórficas a negro (ex. palancas) parecem corresponder a um primeiro momento. Em branco surgem figurações de antropomorfos e zoomorfos, alguns em prováveis cenas de caça, pesca e transporte (FIGURA 2). Na parte inferior, existem pinturas mais recentes (zoomorfos e círculos). Próximo à entrada do abrigo há um círculo gravado.

O abrigo do Caiombo (FIGURA 3) composto por duas cavidades apresenta na da esquerda algumas manchas avermelhadas/ocre na base, sobre as quais se identificam antropomorfos dançantes com armas ou instrumentos musicais na mão que recobrem pinturas geométricas a branco e que, por sua vez, são cobertos por pinturas a branco representando uma possível cena de dança. Na cavidade da direita há pinturas amareladas muito prejudicadas pela circulação de águas, mas onde se pode reconhecer um grande zooantropomorfo, com cerca de 1 metro. Esta grande figura é recoberta por pinturas geométricas a branco, mas também por pequenos antropomorfos pintados, quase filiformes.

No abrigo de Ndelambiri, o maior de todos, com 61 metros de comprido por 2 metros de altura, existem pinturas a branco, vermelho-tijolo e preto, representando cenas da vida quotidiana (antropomorfos que parecem fumar cachimbo, conversar, moer cereais no pilão, etc.), cenas de caça (antropomorfos que apontam armas a zoomorfos), antropomorfos e zoomorfos agrupados ou isolados, tipóias, redes (FIGURA 4).

As pinturas permitem reconhecer distintas fases de ocupação do vale, pelas sobreposições que apresentam, deixando antever a ocorrência de grupos culturais distintos.

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CONCLUSÃO “Na paisagem é possível reconhecer uma complexa

rede de relações multidirecionais e dinâmicas; por isso a Arqueologia da Paisagem é uma abordagem metodológica adequada para o estudo das sociedades” (Orejas 1998: 14), mas para isso deve contar com uma equipa multidisciplinar, capaz de analisar cada parte do todo, de forma específica e rigorosa. Nesse sentido, este projecto terá o apoio de uma equipa vasta, de um projecto mais amplo sobre a região Centro-Oeste de Angola, coordenado pelo Professor Luiz Oosterbeek – “EBO-Arte Rupestre do Centro-Oeste de Angola: mapeamento e registo” (Referência do Projecto: PTDC/HIS-ARQ/103187/2008).

A reconstrução arqueológica da paisagem permitirá a reconstrução cultural, respondendo à questão central: podemos pela Arqueologia e Geografia Cultural corroborar a Territorialidade como fonte de identidade expressa na paisagem? O projecto permitirá construir um quadro crono-estratigráfico de referência, que se articulará com uma análise macro apoiada nos registos bibliográficos e documentais, visando a construção de um modelo interpretativo para o Kuanza-Sul, respondendo a algumas das questões que aqui enunciamos e formulação de novas interrogações.

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FIGURA 1. Aldeia da Cumbira. Foto: L. Oosterbeek.

FIGURA 2. Pinturas do Abrigo da Cumbira. Foto: L. Oosterbeek.

FIGURA 3. Abrigo do Caiombo. Foto: L. Oosterbeek.

FIGURA 4. Pinturas do Abrigo de Ndelambiri. Foto: E. Esteves. Arquivo de Mila Simões de Abreu.

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