reflexões sobre a influência da maçonaria nas artes

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&Arte

LinguAgem

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Coordenação Editorial

Nelyse Apparecida Melro Salzedas, Sônia de Brito, Guiomar Josefina Bi-ondo, Eliana Patrícia Grandini Ser-rano, Maria Luiza Calim de Carvalho Costa, Joedy Luciana Barros Marins Bamonte, Rosa Maria de Araújo Simões, Célia Maria Retz Godoy dos Santos, Solange Maria Bigal, Ricardo Nicola e Maria Angélica Seabra Ro-drigues Martins. Coordenação Técnico-CientíficaProjeto Gráfico-Editorial

Núcleo de Pesquisa emMultimeios Mídia Press

Editor AssistenteMurilo Barbosa Possani

Conselho Consultivo (Arte & Linguagem)

Ana Mae Tavares Barbosa Universidade de São Paulo (USP)

Anamélia Bueno Buoro Ceentro Universitáario Senac, Campus Santo Amaro

Maria Cristina Castilho CostaPontífica Universidade Católica(PUC – São Paulo)

Irene Gilberto SimõesUniversidade de São Paulo

Massimo CanevacciUniversità de Roma – La Sapienza

Eduardo Peñuela CanizalUniversidade de São Paulo e Universidade Paulista (UNIP)

SALZEDAS, Nelyse & NICOLA, Ricardo (orgs). Série Poéticas Visuais: Arte & Linguagem. Bauru, Faac/Unesp, 2013.Capa: Joedy M. Bamonte ISBN: 978-85-99679-43-2

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA“JULIO DE MESQUITA FILHO”

Antonio Manuel dos Santos SilvaUniversidade Estadual Paulista

Winifred McNeillNew Jersey City University, Jersey City, NJ – EUA

José Manuel RodeiroNew Jersey City University (EUA)

Lynne AlexUniversidade de Toronto, Toronto, Canadá

Maria D´AmbrosioUniversidade de Nápoles – Frederico II, Nápoles, Itália

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicaçãocâmpus Bauru(SP)

Comitê Editorial

Editores Científicos e Organizadores:

Ricardo Nicola & Nelyse Apparecida Melro Salzedas

ReitorJulio Cezar Durigan Vice-ReitorMarilza Vieira Cunha Rudge

Pró-reitor de Pós-Graduação Eduardo Kokubun

DiretorNilson Guirardello

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Reprodução apenas para fins acadêmicos

Jeff Koons - Ballon Dog, 2000

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Sumário

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Só realismo mágico de uma fada realSônia de Brito

Luís Buñuel, o surrealismo e a vanguarda cinematográficaJoão Eduardo Hidalgo & Rosa Maria Araújo Simões

José Maria Arguedas: a luta para a formaçãode uma Cultura Quechua PeruanaJoão Eduardo Hidalgo & Rosa Maria Araújo Simões Reflexões sobre a Influência da Maçonaria nas Artes

Maria do Carmo Jampaulo Placido Palhaci

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Sumário

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Só realismo mágico de uma fada realSônia de Brito A Arte Contemporânea como Manifestação

José Marcos Romão da Silva

Luís Buñuel, o surrealismo e a vanguarda cinematográficaJoão Eduardo Hidalgo & Rosa Maria Araújo Simões

Representação pictórica da joalheria renascentistanos retratos de Hans Holbein, o jovemThalita Fornaziero de Carvalho & Maria Antonia Benutti

Duas linguagens em busca de um sentidoNelyse Salzedas, Rivaldo Paccola & Ricardo Nicola

Reflexões sobre a Influência da Maçonaria nas ArtesMaria do Carmo Jampaulo Placido Palhaci

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Trabalhos em PV - Vol 4

modernisTas conTra acadêmicos? a PinTura de hugo adami

la mirada cinemaTográfica generacional

federico fellini, enTre críTica e nosTalgia

e muiTo mais...

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Prefácio1

“Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é a extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensão de seu braço. Mas o livro é outra coisa; “o livro é uma extensão da memória e da imaginação” (p. 13)2.

Abrir um livro. O que fazer, o que dizer, depois do que escreveu Borges?². Tomá-los nas mãos e folheá-los. Eis um fragmento do argentino (p. 21). “Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético. O que são as palavras ditadas num livro? O que são sím-bolos mortos? Nada, absolutamente. O que é um livro, se não o abrirmos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com páginas, mas se o lemos acontece uma coisa estranha, acho que ele muda a cada vez”3.

Talvez seja a Função, que contém todas as outras funções, a essência do livro. É refe-rencial pois marca tempo, lugar e fato; é poética, pois é criativa; é apelativa, pois estabelece ligações entre o autor - o texto - o leitor; é tático, pela comunicação. O livro é tudo isso. É memória, inclusive, do tempo, da experiência, do belo, da arte. É um elo entre o passado e o presente. É um registro de pesquisa e criação. Metaforicamente é uma árvore com ramos, folhas, frutos e sementes que germinam e mantém a vida vívida.

Mas, volto a Borges4: “Fala-se no desaparecimento do livro, eu acho que é impossível. Alguém perguntará que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco. A diferença é que um jornal é lido para ser esquecido, um disco da mesma forma, é ouvido e esquecido, é uma coisa mecânica. Um livro é lido para a memória”. Para a memória de todos nós.

¹ Borges, Jorge Luís – Borges Oral e Sete Noites, Companhia das Letras, SP, 2011

² Jorge Luís Borges – Borges Oral e Sete Noites, Companhia das Letras, SP, 2011

³ Idem, p. 21

4 Idem, p. 20

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Só realismo mágico de uma fada real: do desenho de observação à

ilustração aos processos virtuais

Sônia de BritoProfessora Doutora do Departamento de Comunicação Social da Unesp-Bauru.

As possibilidades da fotografia, das mídias e as descobertas tecnológicas revo-lucionam constantemente a linguagem da arte, transcendem o caráter mimético, analógico e exigem novas dimensões do olhar e das linguagens da comunicação.

A invenção dos tipos móveis, da câmera, do cinema, da televisão e dos compu-tadores, são extensões modernas do desenhar e do fazer criativo que demonstram a capacidade histórica e natural dos humanos. São extensões dos sentidos.

O significado e o significante da arte têm contribuído para expressar e para comunicar na era tecnológica. Daí deduz-se que a mensagem virtual também se baseia na estética e em elementos das artes visuais. Nesse sentido, a organização e a composição são determinantes na resolução de problemas visuais e implicam no processo de recepção da mensagem. A luz, ausente ou presente, em seu aspec-to tonal, é responsável pela percepção e identificação de contornos e de massas, bem como de outros elementos visuais. O movimento é outro componente que sempre desafiou a pintura e o desenho, desde as pinturas pré-históricas, serve para imprimir na expressão gráfica a ideia do tempo da narrativa. Produzir imagens que se movem e dar vida a objetos inanimados são anseios da humanidade e estão presentes em diferentes experiências de animação. São anseios, também, das artes pictóricas o direito à “presença real”.

O desenvolvimento da fotografia aprimorou a técnica de animação e projeção de imagem em movimento, contribuindo para o surgimento do cinema que se espalhou pelo mundo.

Para produzir seus roteiros, o cinema se inspirou no teatro e na literatu-ra e se transformou em meio de entretenimento para contar histórias. Assim,

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o objetivo desse capítulo é investigar e refletir sobre o desenho de ilustração da li-teratura infantil que sai das páginas fixas do livro para as telas iluminadas do cine-ma. Pretende-se usar como metodologia a leitura do legível e do visível, enquanto processos narrativos. Para isso, a fundamentação teórica a partir de Louis Marin; Poussin; Rui de Oliveira; Lúcia Santaella, entre outros autores, faz-se necessária. O objeto desse estudo é o filme Miss Potter – Helen Beatrix Potter - escritora que gostava de desenhar coelhos, patos, sapos, esquilos etc. Conversava com suas criações, considerando-as seus melhores amigos. As ilustrações ganham vida e dialogam com a criadora dentro de um processo de animação antes mesmo da criação da narrativa verbal.

Quanto às condições de produção, a narrativa cinematográfica transita entre o passado da mulher moderna que tem suas histórias infantis publicadas em cerca de quarenta países, com adaptações para o teatro, cinema, televisão. Os produto-res viram a vida dela como sendo ainda mais emocionante que as suas produções artísticas. Foi produzido em 2006, com direção de Chris Noonan, com os atores Renée Zellweger (Beatrix), Ewan McGregor (Norman) e Emily Watson (Amélia – irmã de Norman, feminista, única amiga de Beatrix), dentre outros. A trama reúne imaginação, drama e humor sobre a biografada incomum.

Segundo Oliveira (2008b), os artistas pré-rafaelitas talvez tenham inspirado a artista Beatrix Potter a criar em aquarela personagens infantis de narrativa se-quencial em movimento.

Assim, entre descoberta e invenção a mídia mantém relação intrincada com a linguagem e esta tem relação com a consciência e com o mundo sígnico basea-do nas próprias experiências da personagem principal, transformando resultados: primeiro era ficção no impresso, depois virou atualização e junção das histórias: da ilustradora e da escritora, sem perder o sabor das histórias infantis, o encanto e a sedução saltaram dos livros e foram capturados pela mídia cinematográfica.

As primeiras imagens do filme indiciam o fazer artístico de Miss Potter. Apon-tar os lápis, escolher os pincéis e testar a tonalidade das cores é o primeiro passo para a organização do registro de sua imaginação. Pressupõese que ela produzia ideias enquanto os manuseava. Além disso, tal organização instiga o interesse do espectador.

As suas primeiras palavras também indiciam o fazer narrativo e inserem o es-pectador no clima das ações: “há algo delicioso quando escrevemos as primeiras palavras. Nunca sabemos aonde elas nos levarão. As minhas me levaram até aqui”. Aqui é um dêitico espacial e refere-se ao lugar onde as primeiras produções co-meçaram e onde elas terminaram – no espaço da globalização. Mas, é possível interpretá-lo como sendo o lugar de destaque que ela alcançou como escritora e como cidadã de seu tempo.

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Fonte: Miss... (2006)Ilustração 1

Na cena seguinte, ela está mostrando seus desenhos para os editores da F. War-ne & Companhia, depois de ter recebido respostas negativas em outras Editoras. Ela comenta que começou vendendo desenhos para cartões de datas comemora-tivas, cartões postais e para marcadores de lugar, há sete anos.

Os editores recomendam que ela não fique muito esperançosa, ou não espe-re demais, pois o mercado de livros estava em baixa, predizendo fracasso antes mesmo do produto acabado. Pelo tom irônico e pelo comentário, pressupõe-se que coelho usando paletó com botões de latão não poderia gerar lucro. Porém, eles aceitaram o trabalho dela porque intuíram a possibilidade de dar emprego ao irmão caçula deles, o doce, mimado e inexperiente Norman Warne. Desse modo, os editores experientes se livrariam da insistência de Norman e da desacreditada ilustradora/escritora.

Chegando em sua casa feliz da vida, seus pensamentos viajam para a infância e a narrativa caminha entre o ir e vir das descobertas da possibilidade da represen-tação visual e do ato da contação. Ela contava histórias para seu irmão e quando ele preferia ouvir as histórias da babá, ela encantava para ela mesma, enquanto emissora e receptora da sua própria narrativa.

Na dialética das relações familiares, as influências recíprocas e os comporta-mentos contribuem na formação holística do outro. Nesse sentido, a formação de Miss Potter poderia ter sido baseada em imagens recíprocas, como um jogo de espelhos revelado pela identidade e alteridade, pelas semelhanças e oposições entre as pessoas de sua convivência. No entanto, no espelhamento das significa-ções, ela transgrediu as regras sociais, ouviu a si mesma e demonstrou que com

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persistência, engajamento e alma o sonho vira realidade.

A narrativa cinematográfica não explora a sua aparência: solteira, trinta e dois anos de idade, filha de alpinistas sociais (ricos que dependiam da herança), mas a sua essência enquanto ilustradora e escritora da sua própria produção literária, uma mulher visionária, aquém do seu tempo, bem resolvida, determinada, entra na psique dela para tornar uma biografia aparentemente simples em um conto maravilhoso.

Essa não deveria ser a realidade dela, nascida em Londres (1866 – 1943), foi educada para os padrões vitorianos, preparada para se casar com pretendente es-colhido pelos pais, ter filhos e se tornar um ser serviente à família. Beatrix afirma-va que não iria se casar e que sua arte iria amá-la, o que acabou se profetizando, pois sua arte transcendeu a barreira do tempo e ela e suas criaturas continuam sendo muito amadas. A vida restritiva, sem amigos, introspectiva, educada na própria casa, fez com que ela enfrentasse o sistema familiar e social. Entretanto, como ilustradora e como contadora de histórias ela era livre.

A narrativa cinematográfica começa com a vida adulta da personagem prin-cipal, mas o flashback de sua infância é o memorial de sua existência e do seu contexto histórico-artístico. A menina solitária caiu no encanto do lugar onde passava as férias – Lake District. Lá ela se sentia livre como um animalzinho que sai da jaula. Ela não se considerava solitária, dizia que seus desenhos eram seus amigos. Dialogava com eles. Interagia com eles. Isso parece coisa de criança, mas ela carregou tal sublimação na vida adulta. Uma vida diferente não a teria incen-tivado a ouvir a imaginação e registrar aquele lugar tão rico em possibilidades visuais e narrativas. Seus desenhos são representações do seu patrimônio pessoal, daquele contexto campestre: patos, coelhos, ratos etc.

Ela estava no mundo e aquele mundo estava nela, seus desenhos são expressões do seu íntimo, de sentimentos interiorizados, mas só conhecendo sua história é possível afirmar que, condição social, atrelada aos comentários e preconceitos da mãe, o desafio foi o fio condutor da mudança e o livro foi o suporte para o pro-cesso comunicativo e interativo de tal transformação.

No jogo de adivinhação quem nasceu primeiro? No caso Potter, foi à ilustra-ção. Ela transgride a ideia de que a ilustração é construída a partir da narrativa, a partir da indicação textual da própria leitura e do efeito de sentido provocado no ilustrador. Desenhava primeiro, depois construía a narrativa oral e escrita, afinal os personagens estavam prontos enquanto significantes à espera de significados.

A ilustração virou animação. No filme, ela conversa com o coelhinho que está desenhando, ele se mexe e ela diz que se ele fizer de novo, ela o apagará. Se ele ficar quieto, bonzinho, será recompensado, ou seja, desenhado. Se não ficar quieto, será castigado, isto é, apagado. Eis aí o maniqueísmo virtual entre criadora e cria-

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tura. Tal atitude pode ser decodificada como a demonstração de sua solidão. Mas ela era uma solitária feliz, quando se sentia mal, enchia o caderno de desenhos a espera de uma história.

Fonte: Miss... (2006)Ilustração 2

Miss Potter enquadra-se, em algumas cenas, na arte virtual, ou seja, na arte da ilusão. A narrativa cinematográfica funde-se com a linguagem híbrida, sincrética de forma antitética, transitando entre ilusão (ficção) e realidade. Tem-se a impres-são sugestiva de que os animaizinhos imergem no espaço das imagens, movem--se, interagem “naquele” tempo real, cumprindo, assim, em sentido metafórico ou não, o desejo antigo de que as coisas e os personagens não só “estão”, não só “ficam”, mas atuam no espaço pictórico ou no espaço midiático como se fosse cena teatral.

Para Grau (2007), a arte interativa é a forma mais avançada de arte virtual, pois as imagens são capazes de mudanças autônomas e de formulação de uma esfera sensorial, envolvente e semelhante à vida. Descreve a virtualidade como uma re-lação essencial dos homens com as imagens. Essa relação se evidencia e pode ser vista nos meios de ilusão tanto antigos como novos. Pensando nisso, na mídia da ilusão, o computador transformou a imagem e sugere que a criadora e a criatura convivem e dialogam como na vida real. Porém, essa simulação de processo co-municativo acontece no mundo do faz de conta, com a “fada madrinha”. Além disso, a realidade virtual foi executada para dar credibilidade à memória dela, aproximando e encantando o receptor.

Voltando o foco para o referente principal, ao contrário da mãe dela, que dizia que seus livros eram apenas histórias infantis com desenhos bonitos, mas que não

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pertenciam à grande arte, o pai a incentivava com elogios: “você é uma artista genuína”, com presentes como jogos de pincéis, lápis de cor etc. O pai acreditava no potencial de Beatrix com conhecimento de causa, pois a família dele não per-mitiu que ele fosse artista (daí a afinidade artística entre eles) e ele se tornou um advogado, provavelmente frustrado.

Segundo Santaella (2007), antes do surgimento da tecnologia fotográfica, a grande metáfora da representação visual foi, durante séculos, a metáfora da jane-la. A pintura funciona como uma janela para o mundo. Tem-se então a ideia do reflexo e da relação especular. Nesse sentido, as pinturas de Beatrix são metáforas do espelho, a princípio representam não a janela, mas a casa dela com os animais de estimação e depois o quintal das suas propriedades rurais em Hill Top, nos ar-redores de Londres, cercado de árvores, pássaros, plantas, insetos etc. A represen-tação dos coelhinhos, patos, dentre outros animaizinhos, funciona como espelhos fiéis da infância e da vida adulta dela. Na literatura infantil, ela usou referentes re-ais que ganharam vida na “existência ficcional”, ganharam voz através da voz dela.

Para Peter Anders (2003), a metáfora é a ponte entre nosso pensamento abstra-to e a experiência de mundo. Ela permite que nos comuniquemos com os outros com base na experiência mútua. Pensando nisso, a tecnologia em Miss Potter teve por objetivo demonstrar o processo comunicacional. Afirmar que dialoga com os animais é diferente de visualizar o ato ilocucional, é tornar concreta tal relação. Por outro lado, é possível pensar a arte como um sistema vivo. Daí a interação entre a criadora e a arte virtual ocorre em um “sistema aberto”, mantendo, assim, diálogo com o processo de criação.

Se as metáforas revelam seu estilo de vida, as marcas de autoria são indicadoras do modo de criar da ilustradora, consequentemente, percebe-se a onipresença de seu estilo. Porém, apesar da narrativa demonstrar característica espacial e tempo-ral (Inglaterra – séculos XIX e XX), como vestimenta, arquitetura, vocabulário, comportamento, a sua marca estilística atravessou o espaço cibernético e ganhou vida ao modo século XXI, através da animação.

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Ela usou o livro como canal para transmitir seus contos de fada. Produziu sua arte com carinho, zelo e paixão. Transferiu essas qualidades para a edição: fez restrições quanto ao tamanho, preço e letra gótica feia dos livros editados pela Editora; participou e opinou sobre a diagramação. Para barateá-lo a princípio queria que as ilustrações fossem em preto e branco para que o produto final não ficasse restrito às crianças financeiramente privilegiadas. Norman propõe reduzir a quantidade de ilustrações para editá-lo em cores, a um custo razoável, mas sem perder a qualidade estética.

O ato de contar histórias para o seu irmão Bertram fez com que ela inventasse cada vez mais. Desenhar e contar histórias são ações que exigem repetição, abstra-ção e criatividade, mas para isso apurou a escuta do espaço físico e depois a escuta dos seus próprios desenhos.

A construção da narrativa visual depende de outras narrativas, da intertextu-alidade visual e verbal, além da capacidade do leitor/ilustrador de fazer relações entre os dois códigos. Reforçando essa afirmação, a ilustradora Ieda Oliveira (2008a) comenta que não existem leis próprias para transferir um sistema verbal para o visual. O ilustrador leva em conta desejo e conhecimento movido pela subjetividade, implicando em processo de tradução e transferência do discurso em imagem.

Fonte: Miss... (2006)Ilustração 2

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Ainda segundo Oliveira (2008a), para escutar o significante é preciso usar o “eu poético” e buscar no invisível as imagens do texto. “Isto é ver o texto”. No caso Miss Potter, “isto” significa que ela viu e escutou a ilustração, encontrou o “eu poético” na própria ilustração que indicou as marcas da narrativa verbal por empatia, afinidade e identificação figurativa.

As suaves aquarelas de Beatrix, de acordo com o editor Norman, têm algo de extraordinário, divertido, delicioso, mágico. Já a empresária em potencial tinha por missão encantar e agradar visual e financeiramente pequenos e grandes re-ceptores.

Voltando ao relato de vida, Beatrix e Norman se envolvem emocionalmente, ficam noivos, apesar dos pais dela rejeitarem o comerciante pretendente. Porém a vida é como obra de arte (ou do destino) tem estranhamento, alegrias, surpresas nem sempre agradáveis e quando o noivo morre, ela fica mal, deprimida e os bi-chinhos vão embora, pois aquele estado de alma não era o da criadora animada, humorada, empreendedora. Naquele momento, a partida dos bichinhos repre-senta a dor, o coração partido pela perda influenciando negativamente o processo de criação.

Ela reage, compra uma casa em Hill Top, onde costumava passar os verões com a família e mais uma vez o universo conspira a favor dela. O corretor William Heelis, que também é advogado, é o filho do caseiro que teve participação impor-tante na infância dela, aprovando suas histórias, incentivando seu estilo e talento. Ele foi um dos seus primeiros ouvinte/receptor, persuadindo e argumentando que além de prazer, preenchimento do tempo, se levasse os desenhos a sério poderiam virar profissão. Ela se casa com ele e, claro, sem a aprovação da mãe.

Fonte: Miss... (2006)Ilustração 4

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Beatrix compra outras propriedades e preserva a beleza do lugar com seus mo-delos naturais. A narrativa cinematográfica termina com as mesmas palavras do início do filme e o receptor confirma que o advérbio de lugar “aqui” é o lugar dela, no campo, um estúdio aberto, cujos referentes (em processo de mudança ou não) a cada dia ou estação do ano estavam à espera da produção artística da ilustradora/escritora, afinal realismo mágico, pincel mágico não faltavam naquele lugar e a imaginação dela era ilimitada.

ConsideraçõesHá algo de delicioso quando escrevemos sobre vivências, que são reveladoras

demonstrações de método, técnica, arte, ética, transgressões, desafios, resiliência.A priori era o desenho. A inexistência das marcas discursivas comprovou que

a narrativa estava na cabeça e o desenho no papel. A partir das marcas visuais ela contava a história para depois registrá-la através da escrita. Compondo, assim, a narrativa da ilustração.

Ela acreditava no que fazia: “devemos nos apresentar ao mundo como uma aventura”. Ela acreditava na existência “real” daqueles significantes. Valorizava a sua própria produção, aquilo que gostava de fazer, entretanto, admitia, reco-nhecia suas limitações, pois não se considerava boa para pintar paisagem, mas pintava com qualidade e singularidade os moradores da natureza. Para isso, o olho da artista estava em simbiose com o “olho da mão”, resultando em qualidade pictórica e literária.

A produção cinematográfica revelou temas transversais como questões ambien-tais, fazendas produtivas, sustentabilidade, feminismo, machismo, relações inter-pessoais e sociais. O devir dessa consciência talvez tenha começado quando ela percebeu que poderia extrair da natureza leitmotiv para sua própria existência. Revelou, também que a tecnologia está mudando a sétima arte.

Como se pode observar, Beatrix conquistou realizações pessoais e profissionais. Enfatizando essa afirmação, conforme Poissant (2003) é pelos seus conhecimen-tos que o artista pode voltar e dar sentido ao ruído e ao caos. O conjunto da produção torna o artista um agente, um autor, um ator, enfim, um criador. Mas intimamente, é quando o artista faz seu projeto que ele sente que existe verdadei-ramente, que ele se reergue e se ultrapassa. Por seu fazer, ele se faz. Desse modo Beatrix se fez artista atemporal. Quando via algo incomum não se contentava apenas em olhar, precisava capturar a essência, qualidades, singularidades e torná--lo visual, concreto.

Em 2001, o livro Peter Rabbit escrito em 1893, quando ela estava com

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nove anos de idade, trouxe-lhe fama mundial, completou cem anos de sua primeira edição. Além disso, exposições e eventos foram feitos inspirados no inquieto, desobediente e esperto Peter, o coelho. O Royal Ballet de Lon-dres criou uma coreografia denominada “Os contos de Beatrix Potter”, em homenagem a sua obra. Essas citações são apenas para demonstrar o quan-to ela ainda é respeitada e lembrada. O seu portfólio é extenso e inspirador.

Graças ao advento da fotografia e ao desejo do homem de buscar novos supor-tes para suas representações que a intenção dos roteiristas foi produzir e apre-sentar uma versão diferente do relato de vida e obra da artista. Assim como a tecnologia, o contar tem se renovado continuamente. A narrativa cinematográ-fica usou como técnica persuasiva a materialidade da ficção dos personagens de Beatrix para que o espectador pudesse visualizar o invisível. Os corpos plásticos ganharam vida para aproximar por analogia e por semelhança realidade e fic-ção, homem e natureza no processo de se fazer entender. Para isso, com em-patia em ação, seguiram as pistas das ilustrações, aplicaram o mesmo padrão e valor estético nas animações e teceram o conto de fadas de uma fada real.

Nesse sentido, segundo Santaella (2007), a estética tecnológica está vol-tada para o potencial que os dispositivos tecnológicos apresentam para a criação de efeitos estéticos, quer dizer, efeitos capazes de acionar a rede de percepções sensíveis do receptor, regenerando e tornando mais sutil seu po-der de apreensão das qualidades daquilo que se apresenta aos sentidos.

Desse modo, a função ilustradora das ideias, na mídia cinematográfica, foi amplificada pela animação, complementando e simulando aspectos das rela-ções sociais, nesse caso, entre criadora e criatura, e o receptor ocupa o lugar de contemplador desse processo. Para isso, a mídia editou os ambientes, selecio-nou pessoas, objetos, enquadrou-os para organizar o contexto, a aparência visual, através da simulação, modelou como os animaizinhos agem, reagem, vivem em família, sentem, para agradar principalmente a visão, provocando efeitos de sen-tido. Nesse aspecto, a imersão se deu através dos avatares (figuras gráficas que habitam o ciberespaço) sendo que as identidades foram emprestadas dos ani-mais reais para que pudessem participar no espaço artístico como um factoide virtual. Nesse sentido, o desenho de observação foi o princípio fundamental.

Entrelaçando os últimos fios dessas considerações, o título do filme Miss Potter determina e anuncia o referente principal, sintetiza o significado macro da artista “A mais encantadora de todas as histórias” que produzia desenhos de observação, literatura atraente, que se fez mediadora entre emoção e empatia, entre o inte-ligível e o sensível e, ainda, provoca significações sobre seu método de criação.

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Era uma vez o desenho, que virou ilustração, que virou animação e voltou nesse artigo a ser ilustração, mas que leva o receptor a pensar que: “vivemos num mun-do que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender a pensar o espaço” (Marc Augé, in SANTAELLA, Lucia, 2007, p.155), os significantes, os significa-dos, as interfaces da “era pós-biológica” entre o animal e o humano, as histórias, as biografias, pois as representações estão mutantes...

REFERÊNCIASANDERS, Peter. Ciberespaço antrópico: definição do espaço eletrônico a partir das leis fundamentais. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 47-63.DOMINGUES, Diana. (Org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003.GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. Tradução Cristina Pescador, Flávia Gisele Saretta, Jussânia Costamilan. São Paulo: Editora UNESP: Editora SENAC. São Paulo, 2007.JOLY, Martine. Introdução à analise da imagem. Tradução Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1996.JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução Brigitte Hervor. São Paulo: Editora UNESP, 2002.MARIN, Louis. Sublime Poussin. Tradução Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da USP, 2000. (Clássico; 20).MISS POTTER. Direção: Chris Noonan. Intérpretes: Renée Zellweger, Lucy Boynton, Ewan McGregor, Barbara Flynn. EUA, Inglaterra: Phoenix Pictures; Momentum Pictures, 2006. 1 DVD (93 min), son, color.OLIVEIRA, Ieda. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil. São Paulo: Editora CDL, 2008a.OLIVEIRA, Rui de. Reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008b.PêCHEUX, M. Analyse Automatique du Discours. Paris: Dunod, 1969.POISSANT, Louise. Ser e fazer sobre a tela. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 115-123.SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Pau-lus, 2007.

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A Arte Contemporânea como Manifestação do Fenômeno da Perclusão ou

Inclusividade Toda Abrangente

José Marcos Romão da Silva Professor Doutor do Departamento de Artes e Representação Gráfica da

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp-Bauru.

Abordar a arte contemporânea implica obrigatoriamente em nos dispormos a aceitar como arte uma extensa série de fenômenos, não raro de difícil compreen-são e muitas vezes desconectados entre si.

Tais características representam um fenômeno relativamente recente, porém, na medida do possível previsível, pois se retrocedermos à época do renascimento e observarmos a sucessão como se desenvolveram as correntes artísticas desde en-tão, podemos constatar que a duração de cada uma foi diminuindo cada vez mais ao longo dos séculos, de modo que, no último quarto do século XIX já se confi-gurava o ambiente de múltiplas tendências ocorrendo simultaneamente, como se tornaria mais característico nos primeiros vinte e cinco anos do século XX.

Entretanto, se até a pop art ainda era possível agrupar determinado numero de artistas em torno de algumas características em comum e designá-los através de um rótulo qualquer, adequado ou não, a partir de meados da década de 1960 tal tarefa irá se tornar cada vez mais difícil, inviabilizando a anterior, cômoda e porquê não, questionável, catalogação de artistas e tendências conforme critérios estilísticos, em tese consensualmente aceitos.

Conforme Hans Belting (2005, pg.23) “...o modelo de uma história da arte com lógica interna, que se descrevia a partir do estilo de época e de suas trans-formações, não funciona mais...”. Segundo o autor, não se trata de preconizar o fim da história da arte pura e simplesmente e mesmo o fim da própria arte, como tantas vezes já se anunciou, mas sim de se adequar o discurso às novas condições dadas “...já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadra-mentos.” (Belting, 2005, pg.08).

O virtual desajuste entre o que o artista faz e aquilo que se espera dele é uma constante na história da arte, podendo às vezes a reação negativa a uma deter-minada obra gerar mudanças drásticas nos rumos dados à carreira pelo mesmo. Exemplar nesse sentido é o caso da pintura “Nú Descendo Uma Escada” de Mar-cel Duchamp, que ao ser recusada no Salon d’Otonne de 1912, por ser conside-rada futurista e não cubista ensejou o artista a criar

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os readymade, logrando com tal atitude não só se libertar das limitações impostas por propostas estéticas centradas em princípios rígidos como também imprimir uma nova orientação à própria produção artística.

Portanto, o estudo da arte contemporânea, como de resto o estudo da arte de qualquer período, implica em se estar disponível para a compreensão do objeto estudado independente do mesmo se ajustar ou não a critérios pré-estabelecidos (fg. 1).

Desde o advento da Iª Exposição da Sociedade dos Artistas Independentes, que deu origem ao impressionismo, que as reações adversas às inovações artísticas tem sido mais contundentes, gerando, em muitos casos nomeações pejorativas que, por força das circunstâncias históricas, acabam se tornando canônicas, como é o caso da própria denominação dada à exposição citada.

Figura1. Jason Rhoades. The creation mith. 1998

Coincidentemente ou não, a tendência da arte de desafiar as convenções se acentua a partir justamente do momento em que a história da arte se consolida como uma disciplina capaz de catalogar obras e artistas conforme seus respectivos estilos e períodos, reagindo, portanto, através de uma complexidade cada vez maior à aparente facilidade do seu enquadramento pelos estudiosos.

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Portanto, é sintomático que, à medida que aumenta a complexidade da arte, mais histriônicas se tornam as reações à ela e o fato de artistas modernos, como os futuristas, dadaístas, surrealistas, neoplasticistas e etc. recorrerem a diversas formas de estratégias, para divulgar suas ideias, é reveladora da necessidade de estabelecer outros parâmetros através dos quais fosse possível absorver as novas propostas artísticas.

Assim, se o uso da palavra para explicitar o conteúdo de obras visuais é recor-rente no transcorrer da história da civilização ocidental, no caso das vanguardas a novidade reside no fato do artista moderno se investir de ambas as funções: o verbal e o não verbal, não raro antecipando a criação artística, comono caso do Manifesto Futurista, em que a explicitação das características propostas para a atividade artística se dá antes mesmo da própria realização por parte dos artistas da grande maioria das suas obras.

Entretanto, as turbulências politicas que se acirraram a partir de meados da década de 1920 e que culminaram no enorme trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial, desmobilizaram de vez os movimentos de vanguarda que ex-traiam seu ímpeto justamente da utopia de plena realização em um futuro que agora se revelava extremamente sombrio. A ausência da figura humana nas pintu-ras do expressionismo abstrato surgido nos Estados Unidos na segunda metade da década de 1940, é um testemunho pungente da incapacidade do ser humano em representar a si próprio face aos horrores revelados pelas imagens do holocausto (fg.2).

A respeito dos artistas abstratos americanos, Paul Wood afirma que “...é difícil dizer que a arte deles tenha sido feita para o mundo que a consumia; se algo pode ser afirmado, é que ela foi feita a despeito desse mundo, ou como parte de uma tentativa de sobreviver a ele.” (Wood, 2002, p.16). Significativo nesse sentido é o fato de Mark Rothko ter destruído cerca de cinquenta pinturas que acabara de pintar por encomenda do restaurante Four Seasons, à época (década de 1950), um dos mais sofisticados de Nova York, depois de haver jantado no mesmo a convite do seu dono e ter se sentido revoltado com a futilidade do público que o frequentava.

Portanto, a geração de artistas surgida imediatamente após 1945 deparava-se com uma difícil contradição: o fim das utopias e, consequentemente, a incapaci-dade de projetar a arte no futuro e a dificuldade de transpor para a arte imagens que de alguma forma refletisse o olhar do artista sobre a sociedade. A confiança dos artistas de vanguarda que os impelia a projetar a arte no futuro a partir do mito da constante superação do novo, gerou uma sequencia ininterrupta de dife-rentes estilos que, de modo geral, descendiam uns dos outros e assim faziam pa-recer ser inesgotável a fonte de inspiração para a continuidade de sua progressão, foi seriamente abalada.

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Figura2. Jackson Pollock. Full Fathom Five. 1947

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A retomada da figuração dar-se-á através da pop art, que se estabelece na cena mundial a partir do final da década de 1950, através de uma espetacular produção de imagens figurativas geradas, não pela reflexão investigativa sobre a realidade, mas sim pela mimetização de prosaicos produtos da sociedade de consumo.

A virtual indistinção entre suas imagens e aquelas características da produção em massa, aliada à recorrente produção em série através do uso da serigrafia, irá confundir perigosamente os limites entre arte e propaganda.

A reação a essa espécie de adesão incondicional a ícones da sociedade de consu-mo se dará a partir do conceitualismo, cujas manifestações terão um sentido emi-nentemente crítico, tanto em relação ao caráter da obra de arte, como também em relação ao papel do artista na sociedade e aos mecanismos do mercado de arte. Suas propostas mais radicais irão colocar em xeque a própria condição da obra de arte como objeto em si, como é o caso das propostas da bodyart (fg.3). Conforme Hans Belting, as manifestações conceitualistas:

A ênfase na forma praticada pelos artistas modernos tinha como correlato a exaustiva exploração das qualidades expressivas dos materiais, direcionada para a obtenção dos mais intensos efeitos plásticos. Isso facultava ao artista moderno investir ao máximo na exploração das características de determinada prática artís-tica, logrando, através disso, o reconhecimento de um estilo próprio, consequen-temente, de uma identidade única. Jà“...o conceitualismo pode ser visto como a adoção de uma ampla gama de atividades que podem ser unificadas pela abolição de uma especificidade do meio.” (Wood, 2002, p.25).

O domínio do formal, portanto, associado à intensa exploração dos meios, ca-racterístico da arte moderna, foi substituído pelo domínio da anti forma: “...a obra de arte como qualquer coisa, pedaços de lixo, feltro, matéria indiferenciada, e até mesmo nenhuma ‘coisa’, exceto ações e ‘idéias’.” (Wood, 2002, p.30).

Nas observações de Wood a respeito do conceitualismo é possível encon-trar uma estreita analogia com o conceito de perclusão ou inclusividade todo abrangente que Steven Connor (1989), aborda em suas observações so-bre a sociedade pós-moderna. No âmbito artístico, o fenômeno análogo

“...anunciavam desde os anos 60 o lema do ‘fim da obra’ de maneira polifôni-ca. Sentiam-se limitadas pela obra, pois estavam em busca de um outro conceito de arte, e se sentiam obrigadas a uma manifestação única, quando queriam ape-

nas fazer propositions (proposições), embora não aspirassem mais a um testemu-

nho final” (Belting, 2006, p.222).

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Figura 3. Joseph Beuys. Coyote. 1974

à perclusão ou inclusividade todo abrangente que pode ser constatada na arte conceitual e com mais ênfase ainda na arte contemporânea, ao mesmo tempo em que expande ilimitadamente as possibilidades de atuação do artista, dilui seus esforços em um sem número de práticas que não são impelidas para além de si mesmas, impedindo sua objetivação em obras que possam ser avalizadas através do domínio de uma linguagem.

O conceitualismo, enquanto tendência predominante, se estende pelo período compreendido entre meados da década de 1960 e meados da década seguinte, sendo seguido por um período também equivalente a uma década dominado pelo que se convencionou chamar de retomada da pintura, caracterizada pela produ-ção maciça de pinturas em grandes formatos, concebidas através de uma vibrante gestualidade, invariavelmente praticada sobre espessas camadas de tinta.

Portanto, é pertinente afirmar que a denominação arte contemporânea passa a ser usada com mais frequência a partir de meados da década de 1980, coincidindo com a superação da fase da retomada da pintura pela ênfase nas instalações. Entretanto, atualmente tal denominação é frequentemente utilizada para designar a arte que se estende a partir de meados da década de 1960, apesar das diferenças que podem

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ser encontradas nas manifestações artísticas surgidas desde então. Uma das características mais marcante da arte conceitual é o seu caráter trans-

gressor, através do qual, tudo o que possa ser de alguma forma identificado com a manutenção do sistema capitalista torna-se alvo constante de críticas por parte dos artistas através do conteúdo de suas criações. Ou seja, ainda que difusamente é possível detectar na atitude dos artistas conceituais uma espécie de sentimen-to de revolta e insatisfação em relação ao status quo, que não raro se manifes-ta através de ações agressivas e chocantes, inclusive até mesmo autoflagelações em público, como é o caso de certas performances de Gina Pane e Hermann Nitsch. Segundo observações de Rose Lee Goldberg, tais artistas acreditavam “...que a dor ritualizada tinha um efeito purificador: esse tipo de arte era neces-sário para ‘sensibilizar uma sociedade anestesiada.’” (Goldberg, 2006, p.155).

Se é possível identificar na arte contemporânea certas manifestações que reme-tem à arte conceitual, constata-se, entretanto, que as formas da arte conceitual, es-vaziadas do seu conteúdo crítico, são como simulacros que, por sua vacuidade, são capazes apenas de suscitar a imagem de uma representação que já não faz mais sen-tido algum.As próprias críticas às instituições culturais implícitas em muitas mani-festações da arte conceitual, acham-se de todo superadas por uma irrestrita adesão a tais instituições por parte dos artistas contemporâneos, da mesma forma que sua aceitação no âmbito das mesmas é igualmente efetiva. Como afirma Hans Belting:

Aqui, mais uma vez, é possível aproximar tal diagnóstico daquele feito por Steven Connor a respeito da sociedade contemporânea, que a seu ver encontra-se diante de “...uma crise de legitimação que afeta a vida social – o fato de não haver princípios que possam agir como critérios de valor para coisa alguma.” (Connor, 1989, p. 15).

Hoje, nos espaços culturais que abrigam exposições de arte contemporânea, é possível nos depararmos simultaneamente com obras absolutamente irreconcili-áveis entre sí, como por exemplo animais esquartejados conservados em formol, projeções de vídeo em telas múltiplas, montes de lixo, esculturas meticulosamente executadas, e etc (fgs. 4, 5 e 6) Do ínfimo ao gigantesco, da sucata à sofisticação dos materiais, da tecnologia de ponta à matéria orgânica, “...os espaços contemporâne-os de exposições estão repletos de tudo e de qualquer coisa...” (Wood, 2002, p.06).

“Onde nenhuma arte é mais capaz de formar consenso a seu respeito, qualquer

arte pode reivindicar a sua entrada no museu. Onde nenhum museu é mais capaz

de satisfazer todas as reivindicações, cabe ao museu se socorrer com exposições alternadas, que dão a palavra a tais expectativas inconciliáveis numa sucessão de todas as teses cabíveis.” (Belting, 2006, p.136).

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Figura4. Damien Hirst. The Physical Impossibility ofDeath in the Mind of Someone Living.1991

Figura 5. PipilottiRist. Homo Sapiens Sapiens. 2005

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Figura6. Jeff Koons. Ballon Dog. 2000

Portanto, em meio ao virtual vale-tudo que parece predominar no cenário artístico contemporâneo, é imperioso destacar aqueles artistas cuja trajetória demonstram coerência e sensibilidade em sua produção, como é o caso de Louise Bourgeois. Fa-lecida em 2012 aos 99 anos de idade, a artista franco-americana construiu ao longo de sua existência uma das mais sólidas e elogiadas carreiras da arte contemporânea, cuja obra transita entre esculturas de argila de pequeno porte a instalações de gran-des dimensões, como é o caso da instalação denominada Célula de Roupas (fg.7).

Tal obra é composta por três ambientes que se conectam através de portas aber-tas, simulando os cômodos de uma casa, todos imersos em uma densa penumbra. Trata-se, portanto, de uma instalação que convida o espectador a transitar em seu interior e que, face à meia luz predominante, provoca inicialmente um sentimento de recolhimento e cautela. Povoada por uma variedade de esculturas e assemblages criadas pela própria artista, trais sentimentos aos poucos vão sendo substituídos pelo maravilhamento da descoberta de formas absolutamente inusitadas, semelhantes a habitantes silenciosos emergindo aos poucos de uma atmosfera de mistério.

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Figura 7. Louise Bourgeois. CellClothing (detalhe). 1996

O espaço da instalação, portanto, é utilizado como cenário para as obras da própria artista que, representando corpos humanos, foram confeccionados em materiais diversos, como mármore, bronze, madeira e tecido, sendo que, em al-guns casos, foram feitas a partir de pedaços de troncos e galhos de árvores.

Além disso, o espaço também é habitado por uma série de cabides pendendo do teto, feitos de ossos, nos quais a artista dependurou diversos vestidos que guardara durante sua vida. Em entrevista concedida à época, declarou que não costumava jogar fora suas roupas antigas, pois as considerava como sua segunda pele. Ao reuni-las em uma instalação, estaria, portanto, expondo a própria pele em múltiplas camadas.

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A luz rarefeita confere ao ambiente um caráter intimista que, associa-do à delicadeza dos objetos induz à reflexão, proporcionando ao espectador uma experiência de profunda introspecção, muito diversa, portanto, do am-biente em geral predominante nas megaexposições de arte contemporânea, provando que a estridência que acompanha a obra de certos artistas não re-presenta necessariamente um quesito indispensável à arte contemporânea.

Já a instalação de Cildo Meirelles, denominada Desvio Para o Vermelho (fg.8), provoca reações de outra natureza no espectador. Composta como uma sala de uma residência típica de classe média, suas paredes, o piso e todos os objetos que a compõem, como televisão, tapete, mesa, cadeiras, sofá, quadros e etc, fo-ram pintados de vermelho, gerando um ambiente inóspito, que chama a atenção mais pelo inusitado da situação do que propriamente pelo seu poder de atração.

Tal obra de fato provoca sentimentos contraditórios, que variam da atenção necessária à constatação da presença física mesmo dos objetos utilizados ao can-saço provocado pela saturação da cor vermelha dominante, que gera inclusive efeitos óticos de pós imagem na cor verde, complementar da vermelha. Ques-tionado se tal obra seria uma alusão à resistência ao regime militar que regia o país na época em que foi idealizada, o artista afirmou que não, que o títu-lo se refere ao fenômeno observado pelos astrônomos em relação à luz que emana das estrelas que, conforme envelhecem tende para a cor vermelha.

Figura 8. Cildo Meirelles. Desvio para o Vermelho. 1970

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Tal afirmação revela uma preocupação por parte do artista em desvincular sua imagem atual daquela que foi cultuada na década de 1970 de artista engajado, decorrente particularmente do projeto artístico que empreendeu à época denomi-nado Inserções Em Circuitos Ideológicos, através do qual fazia críticas à presença de agentes americanos atuantes como assessores da ditadura militar brasileira.

Já o fenômeno do envelhecimento das estrelas que provoca o desvio de sua luz para a cor vermelha, de maneira alguma parece estar relacionado a tal obra, de modo que sua apresentação permanece envolta em tais contradições, pois se à época em que foi concebida podia ser interpretada como arte conceitual de conteúdo crítico, hoje, destituída de suas possíveis implicações políticas, faz parte do amplo panorama da chamada arte contemporânea, tendo sido incorporada ao acervo do Centro de Arte Contemporânea de Inhotim.

Nascido na Inglaterra, descendente de indianos, AnishKapoor bus-ca a integração entre a cultura de seus ancestrais e a arte ocidental, em-preitada em que vem se mostrando extremamente bem sucedida, haja vis-ta o enorme prestígio internacional que desfruta atualmente. Expôs na XIX Bienal Internacional de São Paulo a obra intitulada 101 nomes (fg. 9), a qual situa-se no meio termo entre a instalação e o espaço expositivo

Figura 9. AnishKapoor. 101 Names (detalhe). 1981

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convencional. Composta por um conjunto de obras de naturezas di-versas, convida o espectador a transitar entre as mesmas, admirando--as individualmente e só revelando certa unicidade através do uso das co-res, restritas ao azul, amarelo e vermelho, todas muito vivas, e o branco.

No caso da obra de AnishKapoor, só nos damos conta do espaço após o contato individual com cada obra, ou seja, a percepção do conjunto é que determina a percepção espacial. Já no caso da obra de Cildo Meirelles, as paredes que delimi-tam o espaço bem como os objetos que contem, são transfigurados pela cor ver-melha, constituindo um todo indissociável, cujo impacto se dá na retina do ob-servador, atuando como uma espécie de pintura monocromática tridimensional.

Já na obra de Louise Bourgeois, ocorre uma apropriação do espaço, transformado em um ambiente perfeitamente compatível com as obras que abriga, induzindo o espec-tador a uma experiência imersiva capaz de sensibilizar outros sentidos além da visão.

Trata-se, portanto, de três maneiras distintas de agenciar o espaço físico, que pode comportar um sem número de objetos diversos e assumir diferentes configurações, podendo-se inferir dai, um paralelo com o conceito de perclusão, tão caro à sociolo-gia contemporânea, mas que manejado com sensibilidade não reproduz a socieda-de em seus aspectos derrisórios, mas logra transfigurá-la em manifestações poéticas.

REFERÊNCIASBELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006.CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna. Introdução às teorias do contempo-râneo. São Paulo: Loyola, 1989.GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance. São Paulo: Martins Fontes, 2006.WOOD, Paul. Arte conceitual. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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Luís Buñuel, o surrealismo e a vanguarda cinematográfica:a tecnologia da imagem audiovisual como

geradora de novas experiências de não-narrativa

João Eduardo Hidalgo* & Rosa Maria Araújo Simões***Professor Doutor do Departamento de Ciências Humanas &

**Professora Doutora do Departamento de Artes e Representação Gráfica. Ambos pertencentes à Unesp-Bauru.

“Adoro los sueños, aunque mis sueños sean pesadillas y eso son las más de las veces. Están sembrados de obstáculos que conozco y reconozco. Esta locura por los sueños, que nunca he tratado de explicar, es una de las inclinaciones profundas que me han acercado al surrealismo. Un chien andalou nació de la convergencia de uno de mis sueños con un sueño de Dalí”.

Luis Buñuel1

Un perro andaluz, 1929, fotograma. Imagem de um sonho prévio de Buñuel

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Modernidade, Paris e Un perro andaluzEm 1900 Sigmund Freud lançou sua Interpretação dos sonhos, em Viena, a

partir dai as relações sociais e principalmente a família começaram a serem en-caradas de maneira diferente. Os sonhos perdiam o seu caráter de presságio, de bons e maus tempos, para serem analisados à luz da nova ciência. O novo século nascia assim com a marca de uma teoria, que suscita até hoje debates e controvér-sias. Colocar a família como um dos centros de produção das neuroses era algo inaceitável para a sociedade burguesa da época. Como aceitar que sentimentos tão virulentos, como a paixão de um filho pela mãe, pudessem fazer parte do desen-volvimento de uma pessoa? Surgiu aqui uma frase que, pelo menos uma vez na vida, um indivíduo ocidental ouviu ou vai ouvir – “Freud explica”.

Na saltitante Paris dos anos 1920, o surrealismo se manifestou como escola e produziu seus primeiros frutos. Um dos valores mais caros aos surrealistas é o po-der dos sonhos, os pensamentos oníricos, a força do inconsciente, como matéria de produção artística. O cineasta espanhol Luís Buñuel define o movimento da seguinte maneira:

Claro que os surrealistas não faziam puramente a utilização mecânica das novas teorias científicas. Como nos diz Adorno:

O escândalo era a principal arma desses senhores burgueses que queriam chocar a própria burguesia, tão cheia de normas e regras prontas a serem transgredidas. Luís Buñuel declara: “Como todos os membros do grupo, sentia-me atraído por uma determinada idéia de revolução. Os surrealistas, que não se consideravam terroristas, ativistas armados, lutavam contra uma sociedade que detestavam, uti-lizando como arma principal o escândalo”. No final da vida, o líder do movimen-to, André Breton, concluiu melancolicamente que o movimento se esvaziara de sentido, pois não produzia mais escândalos. No que diz respeito a Buñuel, os seus filmes continuaram,

Luís Buñuel, o surrealismo e a vanguarda cinematográfica:a tecnologia da imagem audiovisual como

geradora de novas experiências de não-narrativa

O surrealismo foi antes de mais nada uma espécie de apelo ouvido aqui e ali,

nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na Iugoslávia, pelas pessoas que já praticavam um forma de expressão instintiva e irracional mesmo antes de se conhecerem. (BUÑUEL, 1982, p. 145)

Si el surrealismo no fuera en realidad más que una colección de ilustraciones

literarias y gráficas a Jung o hasta Freud, no solo duplicaría superfluamente lo que ya expresa la teoría, con la pretensión de disfrazarla metafóricamente, sino que, además, sería de tan trivial inocencia que no quedaría sitio para el scandal que se propone el surrealismo y que es su verdadero elemento vital (ADORNO,

1981, p. 158).

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senão a produzir escândalos, a suscitar críticas ferrenhas e acaloradas.Em seu livro de memórias, Meu último suspiro, Buñuel declara já ser um sur-

realista, mesmo antes de tomar contato com o movimento, de conhecer André Breton, René Crevel, Paul Eluard, Max Ernest, Gaston Modot, e, introduzir Sal-vador Dali no grupo. Como argumento usa o seu filme Un perro andaluz, de 1929, em que ele utilizou imagens e representações oníricas, dele e de Salvador Dali, que foi uma obra instintiva, em que a única regra foi não respeitar regras.

Salvador Dalí já tinha uma ampla relação de amor e ódio com o cinema e a indústria cultural, tinha feito inclusive um quadro homenagem aos cinejornais da Fox, que eram apresentados nos cinemas antes da projeção do filme em cartaz. Na Barcelona de 1926 pintou o quadro Depart, homenaje al noticiario Fox. Dali, nesta época, dizia que o cinema era uma indústria e não deveria ser incluído den-tro das Belas Artes. Em três anos, Dali estaria rodando Un perro andaluz, frívolo como foi toda a vida.

Figura 1: Salvador Dalí, Homenaje al noticiario Fox, 1926

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Buñuel nos conta: “O roteiro foi escrito em menos de uma semana, seguin-do uma regra muito simples adotada de comum acordo: não aceitar nenhuma idéia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação racional, psi-cológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional. Só incluir as imagens que nos tocavam, sem procurar saber por quê” (Buñuel, 1982, p. 67). Ora, esse é um dos fundamentos mais caros ao surrealismo, deixar fluir as ideias de ma-neira natural, automática, deixar o inconsciente se manifestar. Outros artistas, em outros países já produziam obras que hoje podem ser consideradas como surrealistas, mas que ainda não tinham um nome, nem um conjunto de regras.

Este roteiro foi escrito em 1928 em Cadaqués, na casa de Dalí, e os títulos são reveladores, Un perro andaluz chamou-se a principio El marista en la ballesta (O marista [religioso] na armadilha), depois Es peligroso asomarse al interior (É perigoso olhar para dentro), até receber o terceiro e definitivo título. Todas as denominações podem ser percebidas nas cenas e símbolos que nos são mostrados nos 17 minutos do filme, o religioso que se confronta com o desejo sexual, como o homem e a mulher tem frustrações e traumas que afloram a todo o momen-to, a simples justaposição de imagens e narrativas que não tem relação com a anterior ou a seguinte. O ponto de partida foi um sonho de Buñuel em que ele via um olho sendo cortado por uma navalha, como a lua cheia é cortada pelas nuvens e, um sonho de Dalí em que formigas saiam do interior de sua mão.

Figura 2: O sonho de Dalí transformado em imagens em Un perro andaluz

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Quando Um perro andaluz foi realizado, a fotografia já tinha 103 anos de exis-tência, tinha uma tecnologia que permitia um número imenso, senão infindável, de truques, manipulações e reconstruções. O cinema tinha 34 anos, sua gramática já estava completamente estabelecida por diretores como Georges Meliès, Gio-vanni Pastrone, Segundo de Chomón e, principalmente, David Griffith. Graças à existência de uma narrativa cinematográfica já totalmente estabelecida, a qual acabou construindo a sua relação com a literatura do final do século XIX, e não com a pintura - como seria o mais esperado a principio -, Buñuel e Dalí estavam livres para experimentarem com um curta-metragem não narrativo e não linear.

Não havia nenhuma chocante novidade nisto, o grande cineasta francês Abel Gance já havia realizado o seu grandioso filme La Roue (1923), em que fazia experimentos com a iluminação e a montagem, para dar sentido à sua inovadora narrativa. O brasileiro Alberto Cavalcanti tinha feito seu perturbador Rien que les heures (1926), dialogando diretamente com as artes plásticas e com a psica-nálise; e o mestre de todos, Marcel Duchamp, realizou seu Anémic Cinéma em 1926. Em todas estas obras podemos perceber a força do onírico, da hipnose e de todas as técnicas introduzidas pela nascente psicanálise como manancial de construção poética.

Figura 3: Fotograma de Rien que lês heures(1926) de Alberto Cavalcanti

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A força dos sonhos: Freud e BuñuelA essência da teoria freudiana é que os sonhos são a realização de desejos, fa-

zem parte de uma atividade mental altamente complexa e estão estreitamen-te ligados à vida de vigília. No capítulo V da Interpretação dos sonhos, Freud (1987) fixa três características do material e fontes dos sonhos que são de vital importância para a compreensão dos filmes de Buñuel. Vejamos: (1) “Os so-nhos mostram uma clara preferência pelas impressões dos dias imediatamente anteriores”. (2) “Fazem sua escolha com base em diferentes princípios de nos-sa memória de vigília, já que não relembram o que é essencial e importante, mas o que é acessório e despercebido”. (3) “Têm à sua disposição as impres-sões mais primitivas de nossa infância e até fazem surgir detalhes desse perío-do de nossa vida que, mais uma vez, parecem-nos triviais e que, em nosso es-tado de vigília, acreditamos terem caído no esquecimento há muito tempo”.

Pode-se ver muito de comum entre a teoria freudiana de interpretação dos so-nhos, e os sonhos que fazem parte da filmografia de Buñuel. No Discreto en-canto de la burguesía, por exemplo, a infância é tema central do sonho de um personagem, o tenente. Os sonhos de outros dois personagens, Henri e Rafa-el, fazem parte de lembranças imediatas do dia anterior, e estão carregados com seus medos e expectativas. Rafael sonha estar num jantar comendo carne, quan-do são interrompidos e metralhados por terroristas, acorda assustado e vai até a geladeira saciar sua fome, que foi provocadora imediata do sonho. O material onírico deve ser investigado minuciosamente, para que se decifre o seu senti-do primeiro, talvez isso nem seja tão importante, já que Buñuel nem sempre dava explicações de trechos de seus filmes, quando questionado. Intuitivamente ele percebia que a simbologia onírica deve permanecer intocada, para ser de-composta, por quem o puder fazer, de acordo com seu próprio poder de de-codificação. “Os devaneios em vigília talvez sejam tão importantes quanto os sonhos, igualmente imprevisíveis, igualmente fortes” (Buñuel, 1982, p. 135).

Argumento que pode ser comprovado com Belle de Jour, em que a protago-nista Séverine não sonha, divaga conscientemente e cria suas fantasias de reali-zação sexual. Esse estado de semidormência é visto por Buñuel como uma das próprias metáforas que caracterizam o próprio cinema. Numa entrevista declara:

Está comprobado desde hace tiempo que el cine posee una cualidad adorme-

cedora, vemos las películas como medio hipnotizados. Y como las escenas son muy rápidas, no se puede ejercer la crítica sobre la marcha porque perderíamos el hilo de los acontecimientos. El público del cine es conformista; sabe lo que quiere y exige que se lo den como él quiere. Y lo que quiere es no

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Em outra entrevista acrescenta:

Fica clara a intenção de Buñuel de borrar, eliminar a barreira sonho-vigília. Com o sonho dentro do sonho, o sentido de realidade fica pervertido, como numa boneca russa forma-se uma corrente em que fica difícil determinar o início e o final. O espectador do cinema, nesse estado de semidormência, pode tomar caminhos apenas insinuados pelo cineasta.

Para Freud a infância é a principal fonte dos sonhos e das neuroses dos adultos:

Em Buñuel o uso da infância como fonte de trauma aparece em Belle de Jour (1967), como explicação para a frigidez de Séverine. O tenente em Discreto en-canto de la burguesía pergunta a Simone, Florence e Alice, - sua infância foi feliz? E a seguir relata sua experiência horripilante da infância, fazendo um contrapon-to muito estranho com a vida no colégio militar, que foi “apaixonante”.

A censura tem um papel capital na obra de ambos, para Freud:

Ou seja, quanto maior for a censura, mais elaborados terão que ser os sub-terfúgios para burlar-la. Buñuel se diz muito agradecido à censura espa-nhola, com seu filme Viridiana, que não permitiu um final explícito para

pensar, no complicarse: el asesino tiene que morir, la prostituta tendrá que ser

redimida o muerta, el bien triunfará siempre sobre el mal, etc. Esta pereza mental encaja perfectamente con un apetito siempre renovado por ver y oír historias contadas en folletín (Aranda, 1975, p. 394).

Lo que siempre necesito es poder tener la cámara en movimiento – claro que sin

que sea evidente – porque creo en el poder hipnótico de la imagen dinámica. Lo que yo llamo adormecer al espectador” (Aranda, 1975, p. 402).

Apaixonar-se por um dos pais, e odiar o outro, figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam nessa época, e que é tão importante na determinação dos sintomas da neurose posterior (FREUD,

1987, p. 156).

Podemos, portanto, supor que os sonhos recebem sua forma em cada ser huma-

no mediante a ação de duas forças psíquicas (ou podemos descrevê-las como correntes ou sistemas); e que uma dessas forças constrói o que o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra exerce uma censura sobre esse desejo onírico e pelo emprego dessa censura acarreta forçosamente uma distorção na expressão do desejo.(FREUD, 1987, p. 163).

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os amantes, e obrigou-o a filmar um sugestivo jogo de cartas a três, com trocas de olhares muito significativas.

O encanto nada discreto da burguesiaSobre El discreto encanto de la burguesía, rodado em Paris em 1972, Buñuel

declarou que a idéia central surgiu de um ato narrado pelo seu freqüente produ-tor francês Serge Silberman, que, tendo convidado alguns amigos para jantar, esqueceu-se de avisar a mulher e acabou marcando outro compromisso para o mesmo dia. Qual não foi a surpresa dos convidados, que chagaram na sua casa e encontraram a sua mulher já de penhoar, pronta para dormir e o dono da casa au-sente. A partir dessa idéia Buñuel e Jean-Claude Carrière elaboraram um roteiro, em que um grupo de pessoas era sempre interrompido durante uma refeição que nunca se realizava. Para dar um corpo a idéias tão soltas, o elemento unificador usado foi o sonho.

O próprio Buñuel nos dá a chave para a interpretação desse filme referindo-se à existência do “sonho dentro do sonho”. A partir da cena de abertura com os cinco personagens andando sem rumo, numa estrada ladeada por campos, que se repete (três vezes), pode-se imaginar outro sonhador, que sonha todos os sonhos, todos os personagens, todo o filme que está por trás da narrativa, no caso, por trás da objetiva.

Figura 4: Discreto encanto de la burguesía, 1972, fotograma

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Segundo declarações do próprio cineasta, dois de seus sonhos estão presentes no Discreto encanto de la burguesía. O primeiro é o contado pelo jovem sar-gento, que sonha encontrar, numa rua escura, um amigo morto há seis anos, e em seguida a mãe, também morta. E o segundo, “o sonho do trem” o sargento é incitado a contá-lo (o sonho do trem), mas é interrompido pelo coronel. Neste sonho recorrente de Buñuel ele está viajando num trem e tem medo de descer em uma estação, pois sabe que, assim que o fizer, o trem vai partir, o que realmente acontece. Este sonho perseguiu Buñuel durante a vida inteira. O sonho com a mãe e o amigo morto lhe aconteceu dois anos antes da realização do filme. Outro sonho freqüente de Buñuel e de outras pessoas ligadas ao cinema e ao teatro é o de estar diante de uma platéia e não lembrar, ou não conhecer o texto. No caso de Discreto encanto de la burguesia, isso acontece quando o personagem do filme Henri Sénèchal sonha estar jantando na casa do General e, quando se sentam à mesa, as cortinas se abrem revelando um palco. Os participantes do jantar fogem um a um, Henri fica e diz: “Não conheço o texto” e é vaiado estrondosamente pela platéia.

Figura 5: Discreto encanto de la burguesía, 1972, fotograma

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Ainda no Discreto encanto de la burguesía, Buñuel faz uma referência nominal a Freud, quando o personagem Rafael Acosta, embaixador de Miranda, captura de surpresa uma terrorista que há muito o persegue, com o intuito de assassiná--lo. A certa altura da conversa ele diz: “É a favor do amor livre? Também sou”. Há uma interferência sonora (uma sirene, a segunda de quatro que o filme possui, que aparece nos créditos finais como, Effets sonores – Luís Buñuel), a terrorista responde algo que não se pode entender e Rafael prossegue: “Se ele (?) disse isso é porque não entendeu Freud. Se pensarmos bem, a única solução para a fome e a miséria é a solução militar”. Talvez esse diálogo tão insólito seja mais um dos criados no próprio set de filmagem, fato freqüente atestado por alguns atores que trabalharam com Buñuel. Usando a tecnologia existente no cinema, Buñuel já manipulava suas imagens desde Um perro andaluz, de 1929. Aqui ela usa a distorção/ sobreposição sonora para criar significados misteriosos e desafiadores.

A presença dos sonhos nos filmes de Buñuel é evidente, no caso longa Vi-ridiana, a menina sonha com o touro negro, como presságio do perigo que a protagonista está correndo. Em Tristana, Don Lope diz a Tristana, para acalmá--la de um pesadelo: “Mesmo sendo um pesadelo é bom sonhar, os mortos não sonham”. Imagem confirmada pelo personagem Monsenhor Dufor em Discreto encanto de la burguesía, quando comenta o sonho do jovem sargento: “Ao voltar do reino dos mortos, Lázaro não tinha nenhuma lembrança”. Em Belle de Jour, os devaneios conscientes é que fornecem matéria para o filme, Séverine divaga e imagina os passeios eróticos de carruagem, ao comentar com o marido, ele con-testa, “sempre a carruagem”.

Nos filmes de Buñuel as máscaras e os valores burgueses são apresentados de forma reveladora. No contexto de convivência destes burgueses, em ocasiões tão íntimas, como um jantar, pode-se notar a distância entre as regras e a prática. A preocupação com a valorização e manutenção das aparências é clara; no Discreto encanto de la burguesía o Monsenhor é rechaçado quando aparece vestido de jardineiro, quando volta com trajes apropriados (de religioso), é recebido com desculpas. O motorista, Maurice, por não saber degustar um dry Martini, serve como exemplificação de que nenhum sistema vai salvar ao povo de sua própria miséria. A igreja também sofre um golpe mortal, num dos valores mais caros, a misericórdia. Monsenhor, ao ser chamado para dar a extrema unção a um velho e pobre jardineiro, descobre que ele é o assassino de seus pais, diz que Deus o per-doa dos pecados, mas em seguida o fuzila. Olhando dessa perspectiva, a burguesia é tudo, menos discreta.

Podem-se notar algumas imagens e recursos recorrentes na obra de Buñuel. O close extremo no Monsenhor, como recurso de imagem in-terior. O guarda-roupa que se abre, em Ensayo de um crimen e no Discreto

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encanto de la burguesía, para revelar uma experiência traumática da infância. A garrafa azul no armário, que contém veneno para o tenente vingar a morte da mãe, no Discreto encanto de la burguesía, e no sonífero em Viridiana, é a mes-ma. O espelho, em que o pequeno tenente escreve “mamãe” e a mãe se revela no Discreto encanto de la burguesia, é coberto de sangue enquanto Archibaldo se barbeia no Ensayo de um crimen.

Como um grande ilusionista Buñuel usa suas imagens e representações oníricas, retoma várias cenas e enredos, para construir seus filmes, sem nenhuma preocu-pação de parecer repetitivo e enfadonho, pois ele sabe que nesse estado de quase adormecimento do espectador, as idéias fluem e se associam em total liberdade, criando possibilidades infinitas de interpretação, bem ao gosto surrealista.

Durante toda a sua carreira cinematográfica Buñuel foi coerente com sua for-mação surrealista Parisiense, às vezes isto fica bastante evidente, como as situa-ções dramáticas em El ángel exterminador (1962), onde o inusitado e o estranho tomam primeira significação, com cenas repetidas pelos mesmos personagens, sem explicação; e às vezes de maneira sutil, como em Cet obscur objet du désir (1977), onde ele coloca duas atrizes para fazer a mesma personagem (atrizes com atributos físicos muito diferentes, Angela Molina e Carol Bouquet), o público mais desatento pode achar que são dois personagens. Luis Buñuel acompanhou o nascimento do cinema como técnica, descoberta científica, tecnologia da mo-dernidade, que teve como palco a metrópole e suas massas e com outros diretores fundamentais do cinema, utilizou magistralmente uma tecnologia para criar uma narrativa não linear, mas carregada de marcas da sua personalidade, da sua nação, e de todos os seus colaboradores. Talvez por isto até hoje sua obra seja tão revisi-tada e permanentemente reavaliada.

A tecnologia audiovisual permitiu que a Filmoteca Española realizasse um gran-de projeto de restauro de Un perro andaluz, que terminou em 2003. Ferrán Alberchi comandou um longo trabalho de reunir as melhores cópias existentes do filme em Madri, elas foram uma cópia da Filmoteca Española, uma da Cinema-thèque Françeaise, outra da Cinemathèque Royal de Belgique e uma do Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York. A nova cópia apresentada ao público em 2004 mostra um filme luminoso, diferente das imagens escuras da cópia que cir-cula desde o final dos anos 1960, e traz uma inovação sonora: o primeiro minuto e cinqüenta segundos são mudos, o som de Tristão e Isolda de Richard Wagner só aparece no momento em que o primeiro letreiro é mostrado (ele diz: “Oito anos depois”).

Simbolicamente a tecnologia audiovisual que permitiu a realização des-ta obra prima fundamental para a história do cinema, permitiu que ela fos-se restaurada em sua plenitude original, quase oitenta anos depois de ser

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realizada. A tecnologia agregada ao cinema, desde a sua primeira ida-de, continua primordial para a sua apreciação e entendimento pleno.

REFERÊNCIAS1BUÑUEL, Luis. Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 8. ADORNO, Thodor W. “Retrospectiva sobre el surrealismo” In Revista PALOS, Número 4, Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México, 1981.ARANDA, J. Francisco. Luis Buñuel. Biografia crítica. Barcelona: Lumen, 1975.BAZIN, André. Buñuel, Dreyer, Welles. Madrid: Editorial Fundamentos, 1999.BUÑUEL, Luís. Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 2.vols.PEÑUELA CAÑIZAL, Eduardo. Um jato na contramão: Buñuel no México. São Paulo COM/ARTE/ECA, Perspectiva, 1993.SÁNCHEZ VIDAL, A. Luís Buñuel. Madrid: Cátedra, 1999.

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Representação pictórica da joalheriarenascentista nos retratos de

Hans Holbein, o jovem.

Thalita Fornaziero de Carvalho* & Maria Antonia Benutti***Licenciada em Educação Artística pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação & **Professora Doutora do Departamento de Artes e Representação Gráfica. Unesp-Bauru.

Introdução Hans Holbein “o jovem”, chamado assim para diferenciar-se de Hans Holbein,

“o velho”, seu pai, pintor e desenhista do gótico tardio na Alemanha; nasceu em uma cidade situada ao sul da Alemanha chamada Augsburg, durante o inverno de 1497. Aproveitando que sua cidade estava particularmente aberta aos ideais renascentistas, logo tornou-se o principal artista da Basiléia, na Suíça. Mesmo não tendo formado uma escola, como aconteceu com outros grandes mestres renascentistas, ficou conhecido como um dos maiores retratistas do século XVI.

Por elaborar uma pintura rica em detalhes, e com uma grande semelhança da realidade seus retratos tornaram-se célebres. Foi através de seus olhos, que pude-mos visualizar muitas das figuras ilustres de seu tempo (GOMBRICH, 1999). Esse preciosismo em seus retratos e a riqueza de detalhes, permitiu visualizar e avaliar a dimensão da joia como adorno na sociedade renascentista, revelando que seus retratos são mais que personificações, são um acúmulo de significados e de símbolos.

Favorecido pelos patronos humanistas, cujas idéias ajudaram a formar sua visão como um artista maduro. Seu modo de pintar foi influenciado pelas tendências artísticas da Itália, França e Holanda, e claro pelo humanismo renascentista. O re-sultado de suas influências é um estilo brilhante do retrato em que as pessoas têm a sua individualidade valorizada. Os detalhes minuciosos de sua obra fornecem uma fonte incomparável para a história do traje e da joalheria.

Para desvendar todas as características da joalheria renascentista podemos divi-dir os retratos de Holbein em cinco momentos: Masculino; Feminino; Alegoria, Clero e Projeto.

Retratos MasculinosÉ interessante notar que a joia no renascimento era popular entre os

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homens, contribuindo para personificar a sua imagem e importância na socieda-de.

Dentro da joalheria masculina no renascimento podemos perceber quanto maior o cargo e a influência de um homem dentro da estrutura social da monar-quia maior a utilização da joia, realçando o seu prestígio.

Em 1523, Holbein pintou seus primeiros retratos do renomeado teólogo e hu-manista Erasmo de Rotterdam (Figura 1), que se estabeleceu na Basiléia por volta de 1521.

Figura 1: Hans Holbein, o jovem. Retrato de Erasmo de Rotterdam, c.1523. Óleo e têmpera sobre madeira, 43 x 33 cm. Museu do Louvre, Paris

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A figura de Rotterdam é a personificação do homem estudioso e humanista do renascimento. Isso fica evidente pela sua postura no quadro. As joias contribuem com essa personificação, pois evidenciam que além de homem estudioso, é um homem de posses. Mas note as joias que ele usa em sua mão esquerda, são quatro anéis, um no dedo indicador, a joia é maior, o anel possivelmente de ouro pela sua coloração contém uma gema grande que parece estar lapidada no formato de cabochão e presa por cravação inglesa em seu dedo anelar há dois anéis, um contento uma gema pequena e outro contendo uma gema média, os dois anéis também de ouro parecem ter uma lapidação no formato baguete e cravados em anéis arredondados. Os três anéis têm estilos parecidos, diferenciando-se apenas pelo tamanho da pedra de coloração escura. Por fim, em seu dedo mínimo há uma aliança arredondada simples, que parece ser feita toda em ouro.

Em 1526 Holbein decidiu procurar emprego na Inglaterra, Erasmo que já o conhecia escreveu uma carta de recomendação ao seu amigo, o estadista e sábio Sir Thomas More (Figura 2), onde mais tarde o pintor se estabeleceu no primeiro período em que esteve em Londres.

Figura 2: Hans Holbein, o jovem. Retrato de Sir Thomas More, 1527. Óleo e têm-pera sobre madeira de carvalho, Frick Collection , New York City

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Thomas More, fazia parte da corte de Henrique VIII, advogado, acadêmico e estadista, chegou a ser Chancelar, em seu reinado. A importância do cargo de Thomas pode ser evidenciada pelo tipo de joia que o adorna. Juntamente com a sua indumentária. Envolto em um manto preto, enfeitado com zibelina, e man-gas de veludo vermelho que é adornado por um enorme e provavelmente pesado colar com cifras, unido pela técnica grume oca , revelando sua posição e riqueza. Preso a sua corrente há um grande pingente em forma de rosácea, em uma di-visão de cinco pontas que a primeira vista nos lembra um pentágono, e depois uma estrela. No ponto central da peça há um pequeno triângulo que une as pontas da corrente ao pingente preso a ela. Em sua mão esquerda usa um anel no dedo indicador, nos mesmos moldes do de Rotterdam, anel de ouro arredon-dado com lapidação em formato de cabochão, cravação inglesa e gema escura.

Thomas foi um grande patrocinador de Holbein nesse período, aju-dando-o a encontrar comissões e lhe oferecendo hospedagem e trabalho.

Durante esta primeira estada na Inglaterra, Holbein não trabalhou para Henrique VIII, no entanto com o apoio de Thomas More que o rece-beu nesse período, conseguiu trabalhar em grande parte para um círcu-lo humanista que possuía vínculos com o programa de Rotterdam. Du-rante essa primeira visita, ele também pintou retratos de cortesãos, como Sir Henry Guildford (Figura 3) e sua esposa, Lady Mary, (Figura 9).

Ao olharmos para o retrato de Henry, notamos um imenso colar, que segura o seu manto preto enfeitado com zibelina. Em sua corrente há um pendente com um cavaleiro que indica que ele faz parte da Ordem da Jaterria, (Ordem da cavalaria britânica, existente até hoje, e que é limitada a apenas vinte e quatro cavaleiros).

Esse colar tem varias rosáceas esculpidas em gemas avermelhadas, o que pode indicar uma relação com a família real britânica, já que Henrique VIII era des-cendente da família York (que tinha como símbolo a rosa branca), e da famí-lia Lancaster (que tinha como símbolo a rosa vermelha). Note que os elos da corrente parecem formar um laço que prende essas rosáceas. Ele possui uma insígnia em seu chapéu de veludo negro, que também remete a essa ordem e que foi muito utilizado entre os homens desse período. Na sua mão esquer-da, no dedo indicador, ele usa um anel de ouro com uma gema negra cravada.

Em 1532 Holbein mudou-se definitivamente para Londres. Sendo em 1536, contratado como pintor da Corte, título oficial concedido por Henrique VIII.

As tarefas como um funcionário da corte eram múltiplas. Desenhou móveis e joias, vestuário para as festividades e decorações para salas, armas e taças. Sua prin-cipal tarefa, entretanto, era pintar retratos da Casa Real. (GOMBRECH, 1999).

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Figura 3: Hans Holbein, o jovem. Retrado de Sir Henry Guildford, c.1527. Óleo sobre madeira 81 x 66cm. Royal Art Collection

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O retrato de Henrique VIII (Figura 4) é a pura personificação da nobreza nos séculos XV e XVI.

Figura 4: Hans Holbein, o jovem. Retrato de Henrique VIII , c. 1536. 1536. Óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, Museu Thyssen-Bornemisza, em Madrid

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Começando pelo seu chapéu de veludo preto, encontramos varias pérolas ne-gras, muito raras para época, dispostas em conjuntos; são sete pérolas, uma que se liga a outros três pares conduzidas por uma finíssima corrente de ouro. Entre esses conjuntos há uma espécie de broche ou botão formado por gemas lapidadas em formato de cabochão e cravadas em ouro trabalhado, talvez por filigrana4.

Essa espécie de broche ou botão também é utilizada ao longo de sua vestimenta, a diferença é que a gema tem uma coloração avermelhada, provavelmente vários rubis, que reforçam a sua origem nobre. Note que esses botões têm a função de fechar, segurar os vãos do tecido entre o seu peito e antebraço.

Em seu peito uma corrente pesada, constituída por pequenos cilindros deco-rados e unidos por um pequeno elo formando a letra H, segura um enorme pin-gente dourado e trabalhado com arabescos tendo em seu centro uma gema negra cravada em formato de mesa. Ainda em suas mãos, anéis grossos com grandes gemas negras adornam os seus dedos indicadores.

No dedo indicador esquerdo um anel com lapidação em formato de cabochão com cravação inglesa prende uma pedra negra, talvez uma safira, muito utilizada na época, ainda ao seu redor há incrustações de pequenas pedras preciosas. O anel do dedo indicador direito parece ser um anel com moldura soldado em um formato de broche uma pedra negra cravada e lapidada em formato de mesa.

O estilo dos retratos de Holbein alterou-se depois que se tornou um pintor do rei. Ele concentrou-se mais intensamente nos “rostos, roupas, e adereços”, das figuras, omitindo o aspecto tridimensional ou a perceptiva de seus retratos.

Retratos FemininosAinda em 1536, Henrique VIII se casou pela terceira vez, com Jane Saymour

(Figura 5), logo após a execução de Anna Bolena. Henrique ficou pouco tempo casado com Jane, pois ela morreu no ano seguinte em outubro de 1537, doze dias depois de dar a luz ao filho e futuro herdeiro de Henrique, Eduardo VI.

O retrato de Lady Seymour evidência a moda da época, pelo decote quadrado e uso de uma espécie de touca que cobre a sua cabeça. Jane parece ser uma mulher simples, no entanto é dignificada no retrato por sua postura e indumentária. Os adornos que compõem sua roupa parecem revelar sua personalidade.

As pérolas perfeitas em tons de champanhe, unidas e agrupadas de

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de quatro em quatro, alternadas entre pedras negras lapidadas, e cravadas em ouro, formando o que parecem ser pequenas flores (Figura 6-a) lhe con-ferem nobreza e ao mesmo tempo pureza, doçura. O uso do bordado no de-cote e na touca ajudava a enobrecer o tecido, o interessante nesse caso é per-ceber como essa repetição entre o bordado e o colar que envolve o seu colo, faz um con-junto e brinca com o olhar do leitor. Perceber, onde o colar começa e aca-ba é quase um de-safio já que ele pa-rece se esconder no seu decote. A volta menor do colar pa-rece formar uma gargantilha, e presa a ela há um enor-me pingente que contém duas ge-mas cravadas, um rubi lapidado em formato de cabo-chão e uma gema escura lapidada em baguete, a junção das duas gemas com o ouro traba-lhado por filigrana lembra o desenho de uma pêra e pre-so a ela esta uma enorme pérola em formato de gota.

Figura 5: Hans Holbein, o jovem. Retrato Jane Seymour da Inglaterra, 1536-1537. Óleo sobre madeira, 65,4 x 40,7. Kunsthistorisches Museum

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Figura 6:a) Detalhe do colar com pérolas, ouro e gemas b) Detalhe da joia monografada

Figura 6:c) Detalhe do pingente d) Detalhe dos anéis7

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Outra ilusão, que faz com que tenhamos um olhar mais atento, esta em perceber que a joia monografada, com as iniciais em letras minúsculas de IHS (Iesus Homo Sanctus), trata-se de um broche (Figura 6-b). Nele pare-ce haver pequenas pedras negras, provavelmente safiras incrustadas em ouro, compondo as iniciais do nome de Jesus na língua hebraica e a inicial “h” for-ma o desenho de uma cruz, deixando mais evidente o seu significado. O bro-che ainda contém três pérolas pequenas em formato de gota, penduradas.

Em suas mangas, pequenos broches fecham e adornam o seu vestido. Em sua cintura há um “cinto” feito da mesma maneira que o colar e o bordado de seu ves-tido. Pendurado pelo cinto, no centro de seu vestido, um cordão feito com perólas perfeitas de coloração azul alternadas por gemas de lápis-lazúli presas a fios de ouro que formam o desenho um pequeno jarro grego (Figura 6-c), alternam-se entre uma espécie de cubo feito de ouro e incrustado por pequenas pedras de lápis-lazúli.

Em sua mão esquerda encontramos três anéis (Figura 6-d), um em seu dedo indi-cador contendo uma pedra enorme e negra lapidada e cravada em ouro lembrando o desenho de uma flor como a do colar. No se dedo anelar há dois anéis, um maior com uma pedra vermelha lapidada no formato de cabochão, e cravada em ouro, que praticamente sobrepõe o segundo anel, uma aliança fina de ouro arredondada.

Holbein pintou Anne de Cleves (Figura 7), eventual escolha de Henri-que VIII para esposa, no verão de 1539. Henrique acabou se casando com Anne, no entanto a repudiou depois de um breve casamento não consumado.

O retrato de Anne de Cleves é ricamente adornado. Seu vestido ver-melho contendo várias pérolas pregadas ao longo do tecido dourado, de-monstra que Anne era uma mulher de família nobre mesmo antes de vir a se casar com Henrique. Apesar de sua postura elegante e semblante sua-ve, a expressão do seu olhar indica que ela era uma mulher de personalidade.

Em um primeiro olhar a joia que mais chama atenção é um enorme pingente do lado esquerdo da cabeça de Anne (Figura 8), esse direcionamento é primei-ramente causado por um estranhamento ao olharmos a figura de Anne que está disposta simetricamente, harmoniosamente e centralizada no espaço do quadro. O pingente é uma bela joia, praticamente repleta de várias e pequenas pedras pre-ciosas incrustadas. Em um olhar mais atento notamos um camafeu de namorados escondido por entre duas gemas maiores incrustadas entre eles. Ainda embaixo desse camafeu há um fio grosso de ouro que segura pequenas chapas também de ouro, formando uma espécie de “franja”.

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Figura 7: Hans Holbein, o jovem. Anne de Cleves, c.1539. Aquarela sobre pergami-nho, 65 x 48 cm. Museu do Louvre, Paris

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Ao voltarmos nosso olhar para a sua touca, notamos então que ela é toda bordada com desenhos de arabescos entrelaçados por pérolas circulares em tom champanhe. Entre todas essas pérolas ainda encontramos pequenas gemas dispersas. Próximo a sua tez vemos um contorno de pérolas que demarcam a borda do tecido dourado de sua touca. Por fim, no bordado que nos lembra uma tiara e cria uma divisão entre o arabesco de pérolas e o tecido dourado com véu, encontramos bordado em mo-tivos florais e arabescos, que contem pequenos broches com vários tipos de pedras preciosas cravadas, assim como mais pérolas em menor dimensão entre os motivos.

Esse bordado da touca é muito parecido com o bordado do decote quadrado de seu vestido (Figura 9-a), apenas é mais esparso e envolto por duas fileiras de pérolas que decoram seu contorno. As gemas de coloração avermelhada e negra cravadas em uma espécie de botão que decora o miolo das flores as tornam mais evidentes.

Figura 8:Detalhes do broche da touca

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Ainda em seu colo podemos ver uma larga corrente de ouro que dá duas voltas em seu pescoço. Mais acima vemos uma gargantilha bordada nos mesmos moldes da touca e do decote que segura um crucifixo com cinco pedras negras cravadas em formato de baguete.

Por fim, em suas mãos vemos cinco anéis (Figura 9-b). Um deles está escondido por debaixo da sua mão direita, onde só percebemos o brilho da pedra que adorna o dedo mínimo de sua mão esquerda. O outro anel em sua mão esquerda mais precisamente no seu polegar contém uma pérola negra presa provavelmente uma safira, ao que parece, por pequenos pinos que saem do ouro que a envolve. Na sua mão direita, em seu dedo indicador um anel de ouro com pequenos cortes em seu relevo, fazendo uma escadinha, tem uma pedra negra em lapidação quadrada e presa em cravação inglesa. Em seu dedo anelar há dois anéis finos, é impreciso dizer, mas um contém o que nos parece ser uma esmeralda, e outro um diamante.

Figura 9:a) Detalhe do decote b) Detalhe dos anéis

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Durante essa primeira visita, ele também pintou retratos de cortesãos, como Sir Henry Guildford (Figura 3) e sua esposa, Lady Mary, (Figura 10).

Figura 10: Hans Holbein, o joven. Retrato de Lady Mary Guildenford, c.1527. Oleo sobre madeira 81,4 x 66 cm. Museu de Arte da Cidade Saint Louis (Missouri)

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A figura de Mary é altiva. Ela se apresenta em três quartos, características das pinturas do retrato do norte, no entanto o seu olhar é dirigido para o espectador, chegando a ser desafiador. O véu que cobre sua cabeça é adornado com várias pérolas dividas em pequenos grupos de quatro, formando o desenho de uma flor, esse tipo de ornamento na roupa tornou-se moda no final do gótico, pedras pre-ciosas e pérolas eram adicionadas às roupas para valorizar o tecido, concedendo ao usuário elegância e status.

Nesse caso Mary usa um vestido negro que ajuda a realçar as correntes doura-das presas que caem sobre o seu corpete. Em sua mão esquerda, mais evidente, notamos o uso de vários anéis que pela coloração parecem ser de ouro, mais precisamente quatro, sendo que dois estão em seu dedo indicador, um maior e outro menor, o maior tem uma pedra negra lapidada em formato de cabochão, em cravação inglesa e o segundo com as mesmas características contendo uma pedra menor e aparentemente avermelhada. No dedo anelar e mínimo mais dois anéis que parecem conter as mesmas características esboçadas anterior-mente, sendo as gemas de coloração negra. Ainda em seu colo, há uma corrente de ouro só que mais fina, dando duas voltas em seu colo e contendo um pin-gente constituído de pedras e pérolas.

Na figura 11, um dos vários desenhos para pingentes que Holbein criou na sua segunda fase em Londres, entre 1532-1544 é praticamente igual ao pingen-te que adorna Lady Mary, na figura anterior. Eles contêm as mesmas caracte-rísticas, como o formato oval, cinco gemas, quatro safiras e um rubi ao centro.

Figura 10: a) Detalhe do pingente

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A principal diferença que há entre eles está no fato de que o desenho apresenta o uso de maior quantidade de pérolas incrusta-das e sendo presa a ele uma úni-ca pérola no formato de gota.

Figura 11: Hans Holbein, o jovem. Desenho para um pingente oval, 1532-1545. Um rubi, quatro safiras e pérolas, 11,6 x 6,4 cm. Tinta e

lavagem em papel,Museu Britânico, em Londres

AlegoriasDentre as imagens religiosas que pintou, o retábulo A virgem e o menino com

a família de Burgomestre Meyer, (Figura 12) terminada em 1528, quando Anna, filha do ex-prefeito da Basiléia Jakob Mayer e antigo patrocinador, foi acrescen-tada a pintura, parece ter sido o último, pois a Basiléia, no período em que Hol-bein esteve fora, havia se tornado uma cidade turbulenta. Reformadores conde-navam as imagens nas igrejas banindo, destruindo as alegorias de seu interior.

A Madona que se encontra no centro do quadro, apesar de tratar-se de uma alegoria, é a fi-gura principal do retábulo. Através dessa característica, dentro do universo do renas-cimento e da joia, podemos presumir que ela é personificação do poder e da divindade.

Madona como elemento supremo é realçada tanto por ela estar ao centro do quadro, como pelo adorno que é colocado em sua tez. Note que apesar de tra-tar-se de uma família de posses, a única figura que é adornada é a Madonna.

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Figura 12: Hans Holbein, o jovem. A virgem e o menino com a família de Burgomes-tre Meyer, 1528. Óleo sobre madeira, 146,5 x 102 cm;

Schlossmuseum, Darmstadt

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A coroa em sua cabeça possui características da joalheria renascentista (Figura 13), isso fica evidenciado pelo formato dos recortes pontiagudos da coroa que contém imagens de santos, lembrando os retábulos do Gótico Tardio. Na figu-ra central, arabescos em relevo ressaltam o rubi cravado em formato de cabo-chão, sua coloração avermelha confere nobreza a Madona, e as pérolas incrus-tadas ao longo de todo o contorno da joia ressaltam o caráter de sua pureza.

CleroEm 1527, Holbein pintou o retrato do arcebispo da Cantuaria William Wa-

rham (Figura 14), que fazia parte do grupo de Rotterdam. Nesse retrato a riqueza do clero é evidenciada.

Ao olharmos para a figura do arcebispo Warham, estranhamos o fato de ele não estar adornado sequer com um único anel. No entanto a sua importância dentro do clero é demonstrada a partir da indumentária ou eclesiástica. Apesar de sua vestimenta aparentemente ser simples, é carregada de símbolos.

O sobrepeliz, veste de manga branca feita de linho e com mangas largas,

Figura 13: Detalhe da Coroa da Virgem

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representa a simplicidade e dignidade na adoração. Por cima de sua estola, um típete, uma espécie de echarpe feita de pele de urso ou esquilo, que tinha a função de o manter aquecido. Em sua cabeça porta um cameleuco, uma espécie de touca feita de pele, que simboliza a liberdade. Esse tipo de vestimenta originou-se pela influência da hierarquia romana dentro da Igreja Católica e mantida na Igreja Anglicana.

Do lado esquerdo do quadro, e direito de Warham encontra-se uma Férula papal, uma espécie de cruz com haste. Na liturgia da missa apenas prelados com caráter episcopal (bispos, arcebispos, patriarcas e cardeais) o podem portar.

Na Férula papal encontramos um rico crucifixo de ouro adornado com dois rubis, na vertical, um acima e outro abaixo da figura de Cristo e cravados em for-mato de cabochão, na horizontal encentram-se duas safiras cravadas e lapidadas em formato de mesa. O crucifixo ainda possui desenhos ao redor das gemas e nas bordas, que parecem ser feitos das técnicas de filigrana e granulação dando um aspecto de relevo ao desenho.

Do lado direito do quadro, e esquerdo da figura encontra-se a mitra, geral-mente branca, originaria do diadema romano, a mitra é um tipo de cobertura de cabeça fendida, consistindo de duas peças rígidas, de formato aproximadamente pentagonal, terminadas em ponta, costuradas pelos lados e unidas por cima por um tecido, podendo ser dobradas conjuntamente. As duas partes superiores são livres e na parte inferior forma-se um espaço que permite vesti-la na cabeça.

É uma insígnia pontifical usada nas Igrejas Católica, Ortodoxa e Anglicana, na execução da missa litúrgica. A mitra representa a hierarquia do Clero, pois assim como a Férula, só os membros do prelado a utilizam. Na pintura de Wa-rham, a mitra é toda trabalhada com pérolas perfeitas de dimensões diferentes, em todo a sua lateral há pérolas brancas bordadas, nessa faixa ainda há pérolas menores formando um desenho entre os broches que a adornam. No centro da mitra há um enorme broche pregado, ele tem uma pedra negra cravada e lapidada em cabochão, provavelmente uma safira, já que nessa época o uso dessa pedra era comum entre os clérigos, que a usavam como um símbolo para encorajar a castidade e afastar a luxuria. Por fim as pérolas lhe conferem pureza e riqueza, já que nessa época as pérolas tinham um alto valor.

ProjetosO retrato de Holbein está intimamente fundado no desenho, Herdeiro da tra-

dição alemã onde o desenho e a linha têm uma concepção precisa consegue a partir de poucos materiais, como giz e ponta de prata demonstrar o domínio do esquema.

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Figura 14: Hans Holbein, o jovem. Retrato de William Warham, Arcebispo de Can-terbury, 1527. óleo sobre madeira, 82 x 67 cm. Museu do Louvre, Paris

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Holbein esboçava idéias preliminares e depois tirava sucessivas versões, maiores ou menores. Ao projetar objetos preciosos, Holbein trabalhou estreitamente com os artesãos, ourives. Isso lhe conferiu uma incomparável noção das texturas e materiais envolvidos nos acessórios, sendo a produção joalheira imortalizada em seus retratos.

Essas características podem ser obser-vadas em alguns de seus estudos como nos retratos de Lady Audley (Figura 15), esboçado com giz e ponta de prata, mos-trando a sua preocupação ao dispor a joia em seu colo.

Esse desenho serviu como base para a miniatura de Lady Audley (Figura 16), técnica conhecida como “lim-ning”, pequenos retratos usados como uma espécie de joia. Muito presente nos últimos anos de sua vida a técnica em miniatura que utilizava, derivou da arte medieval de iluminação ou manuscrito. Holbein conseguiu adap-tar com maestria a habilidade para retratar a forma menor, mantendo a essência a personificação da nobreza que retratou.

Figura 15: Hans Holbein, o jovem. Estudo para o retrato de Elizabeth, Lady Audley, c.1538. Giz preto e ponta de prata sobre papel preparado rosa. 29, 2 x 20,7. Royal

Collection, Windsor, Reino Unido

Figura 16: Hans Holbein, o joven. Eliza-beth, Lady Audley. c.1538. Aquarela sobre papel vegetal previsto no cartão de jogo, 5,6 cm. Provavelmente adquirido pela Rainha Vitória em 1866, o primeiro gravado com certeza. Royal Collection, Windsor. Reino

Unido

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A relação entre essas figuras é muito importante e reveladora, pois através das linhas expressivas de seu desenho ele esboça a mesma preocupação na execução da figura e da peça joalhei-ra que irá adorná-la. Veja como o de-senho do pingente e do broche em seu estudo está em destaque, mes-mo antes da coloração da pintura.

A simples configuração do esboço tornado palpável pelo broche, nos aju-da a estabelecer uma relação de fidelida-de entre desenho e forma, pois uma foi pensada para originar a outra, e o fato de após tanto tempo podermos ver as principais características presentes até

Figura 17: Hans Holbein, o jovem. De-senho para um pingente com uma meio--comprimento da figura feminina e duas cornucópias, com pedras e pérolas, e uma pérola pendurada. C.1540-1543. Caneta e tinta preta com fundo preto, lavagem 5,8 ×

4,3 cm. Museu Britânico

Figura 18: Pendente de inspiração mitoló-gica, com figura de Diana, a Caçadora de ouro, esmalte e gemas. Alemão, aproxima-

damente 1600 (GOLA, 2008)

os dias de hoje, nos ajuda a imaginar como algumas das joias renascentistas retratadas durante o Renascimento po-deriam ser observadas, recriadas, rela-cionadas com nosso presente. É o que se pretende estabelecer nas figuras 17 e 18.

Através dessas figuras, fica evidente a utilização do esboço para a confecção da peça joalheira e das suas caracte-rísticas. Apesar da figura 18, não ser a execução da joia projeta por Holbein na figura 17, a semelhança é incrível.

A figura 17, de Holbein, revela

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todos os detalhes das cravações e das lapidações da gema. Apesar do desenho não ser, fielmente, o mesmo do design da joia ao lado podemos conferir todas as carac-terísticas da joalheria renascentista como, simetria, harmonia, temas mitológicos, lapidação das gemas, enfim uma joia pensada para ser uma obra de arte. Na gema central que parece continuar o corpo feminino, a lapidação tem sete cortes, algo revolucionário, para as lapidações que favorecem o cabochão e o corte de mesa.

A visão atual da arte de Holbein salienta a sua versatilidade, não só como pin-tor, mas como desenhista, designer e gravurista. Tornou-se o protótipo da arte do retrato no período da Renascença Setentrional. E seu estilo continuou a influen-ciar por quase meio século os moldes do retrato inglês.Dentro desse quadro, o conhecimento adquirido sobre os principais personagens que pontuam, não só a historia da arte, mas a história do tempo, configura toda uma época, e assim nos dão a idéia de como relacionar os aspectos materiais, como a joalheria, com a sua iconografia apresentada na pintura renascentista.

A joalheria esboçada a partir da arte do retrato da nobreza inglesa do século XV, desenvolvida por Holbein, caracteriza então, as principais influências da vesti-menta, do adorno, das classes, dos gêneros e principalmente do poder.

Portanto, através do trabalho de Holbein a joia renascentista pode ser apre-ciada, pois suas pinturas nos ajudam a entender como a joia era utilizada nesse momento, assim como a visualizar a sua coloração, um aspecto importante para procurarmos intermediar com os conhecimentos sobre as principais gemas en-contradas no período e que juntamente com seus esboços nos mostram como a joalheria ganhou importância como expressão criadora dentro do Renascimento, influenciando alguns aspectos do design que conhecemos hoje.

Considerações FinaisO sentido de estudar história seja a história da arte ou a história da joia, está

em estabelecer e distinguir as várias formas de recuperar o passado para criar um dialogo com os nossos conhecimentos atuais.

A relação entre a história entre e a história da arte sempre estiveram alinhadas, pois talvez aquilo que não conseguimos visualizar em um livro, com a ajuda das imagens, construímos uma idéia de como aquilo que nos é descrito, pode ser visto.

A história da arte e as imagens produzidas por ela, nos ajuda a observar e a distinguir cada característica da história da joia como matéria, finalidade, forma nível cultural e avanço tecnológico.

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Essa comparação entre as pinturas e a joia renascentista, juntamente com o conhecimento de algumas das técnicas da joalheria reforça a importância que o artista conquistou no Renascimento através do pensamento humanista. A partir do momento que as joias começam a ser pensadas artisticamente, sendo proje-tadas, plantam as sementes do modelo do design de joia que conhecemos hoje.

Portanto é possível estabelecer uma relação entre a história da joalheria e a arte do retrato renascentista. E dentro dessa possibilidade, podemos encontrar assim, mais um fator que pode nos auxiliar a reconhecer determinados períodos e características do desenvolvimento social e artístico dentro da história da Arte.

REFERÊNCIAS1 Cabochão2 Cravação inglesa. Muito utilizada em pedras com lapidação no formato de ca-bochão. Nessa cravação o metal envolve toda a cintura da pedra3 Grume oca. Nome atribuído a uma das características dos elos em uma corrente4 Filigrana: espécie de renda de metal, feita com fios de ouro ou prata delicada-mente soldadosARGAN, G. C. Clássico Anticlássico: O Renascimento de Brunelleschi a Brue-guel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.ARNHEIN, R. Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo; Edusp, pioneira, 1989.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NRB 6023: 2002. São Paulo: ABNT, 2002.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NRB 10520: 2002. São Paulo: ABNT, 2002.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NRB 14724: 2002. São Paulo: ABNT, 2002.BECKETT, W. História da Pintura. Editora Ática – São Paulo, 2006.BURKE, P. Testemunha Ocular. In. Cultura material através de imagens. Edusk, 2004.GOLA, E. A joia: História e Design. Editora Senac – São Paulo, 2008.GOMBRICH, E. H. A história da Arte. 16ª ed. Tradução: Álvaro Cabral, Editora LTC, Rio de Janeiro, 1999.JANSON, H. W. e JANSON, A. F. Iniciação à história da Arte. 2ªed. Tradução: Jefferson Luiz Camargo Martins Fontes – São Paulo, 1996.

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PEDROSA, J. História da Joalheria. Disponível em: <http://www.joiabr.com.br/artigos/indice.html>. Acesso em: 23 maio, 2009.

PEZZOLO. D.B. A pérola: história, cultura e Mercado. Editora Senac São Paulo – SP, 2004.

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SCHADT, H. Gold smiths´Art: 5000 years of jewelry and hollowware. Stutt-gart, New York: Arnoldsche, 1996.

SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2002

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http://www.royalcollection.org.uk/eGallery/searchResults.asp?searchText=Hans+Holbein&x=9&y=8. Acesso em 30 de Outubro de 2010.

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José Maria Arguedas:a luta para a formação de uma Cultura Quechua Peruana,

através da valorização de sua herança arquitetônica e mitológica.

João Eduardo Hidalgo* & Rosa Maria Araújo Simões***Professor Doutor do Departamento de Ciências Humanas &

**Professora Doutora do Departamento de Artes e Representação Gráfica. Ambos pertencentes à Unesp-Bauru.

O escritor e antropó-logo peruano José María Arguedas (1911-1969) foi um dos autores fun-damentais da literatura latino-americana moder-na, participou de toda a transformação social pela qual o Peru passou no início do século XX, mas teve a má sorte de morrer quando o boom da literatura hispano--americana acontecia, no final dos anos 1960. O boom está, na maio-ria das vezes, relaciona-do com os autores Julio Cortázar da Argentina, Carlos Fuentes do Mé-xico, Mario Vargas Llosa do Peru e Gabriel García Márquez da Colômbia. José María Arguedas, que tem uma obra bastante superior a de seu con-terrâneo Mario Vargas

Llosa, é constantemente esquecido. Um escritor que transitou en-tre o mundo hispânico e o Quechua, descendente principalmente do Império Inca, que tem uma complexidade textual e pessoal das mais

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intrigantes da literatura mundial, nunca teve a atenção por ele merecida. Este artigo presta uma homenagem e procura trazer ao conhecimento do público bra-sileiro um grande autor, que falando de seu mundo tão atormentado e tão parti-cular, tem um ensinamento universal a nos transmitir, neste mundo tão cheio de conflitos étnico-culturais.

José María Arguedas nasceu no seio de uma família abastada branca, em An-dahuaylas em 1911. Seu pai, advogado, viajava constantemente pelos povoados do Peru. Com apenas três anos morre sua mãe, em 1917 seu pai se casa novamen-te com uma viúva, dona de várias propriedades e que tem um filho que, segundo consta, será uma presença nefasta na primeira infância de Arguedas. Estes fatos da biografia são considerados por ele e pela maioria de seus críticos como fundamen-tais no entendimento da sua obra, seja como antropólogo, seja como ficcionista.

Supostamente rejeitado pela madrasta e pelo meio irmão de criação, Arguedas encontrou refúgio com os índios que trabalhavam na fazenda. Aprendeu com eles a língua e a cultura quechua, cresceu ouvindo suas lendas e suas histórias. Aprendeu primeiro a manejar o quechua e depois o espanhol e tornou-se des-de a infância um bilíngüe, podia tanto entender todo o universo dos empre-gados que serviam à sua família, como se situar no universo dos que estavam acima. Essa dualidade perpassa toda a obra de Arguedas; às vezes é vista por ele como algo destrutivo, pois o seu coração é dividido. Ele compactua com os ide-ais de liberdade e igualdade dos índios, mas vive dentro da sociedade dominan-te, branca, criolla (cultura dos descendentes de espanhóis nascidos na América).

Em 1926, junto com o seu irmão mais velho, Aristides Arguedas Altami-rano, matricula-se em um colégio na cidade de Ica. Neste mesmo ano José Carlos Mariátegui funda o jornal Amauta, onde defende a corrente literá-ria chamada Indigenismo, na qual Arguedas será enquadrado como escritor.

Muda-se com o pai para Huancayo em 1928; começa a publicar pe-quenos textos no jornal estudantil Antorcha, é assíduo leitor de Amauta.

Em 1931 chega à Lima para estudar Humanidades na Universidad Na-cional Mayorde San Marcos. No ano seguinte morre seu pai. Sem re-cursos trabalha como auxiliar de correios para se manter. Em 1935 aparecem seus primeiros livros: Agua, Los escoleros, Warma Kuyay.

Com alguns amigos Arguedas funda, em 1936, a revista estudan-til Palabra na Faculdade de Letras de San Marcos. Militante antifas-cista, é encarcerado no presídio El Sexto por quase um ano, fato que vai gerar um romance com o mesmo nome. Na prisão prepara seu li-vro Canto Kechwa, que será publicado logo após sua libertação em 1938.

Em fevereiro de 1939 é nomeado Professor de Castelhano e Geografia

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no Colégio Mateo Pumaccahua de Sicuani, província de Can-chis. Em junho do mesmo ano se casa com Celia Bustamante Ver-nal. Colabora com regularidade com o jornal La Prensa de Buenos Aires. No ano seguinte participa do Primer Congreso Indigenista Interameri-cano dePátzcuaro, México, como convidado. Publica Pumaccaha e Yawar fiesta.

Em 1941 volta à Lima para colaborar na reforma dos Programas de Educação Secundária. Em abril de 42 é nomeado Professor de Castelhano no colégio Na-cional AlfonsoUgarte, no ano seguinte é nomeado Professor de Castelhano no colégio nacional de Nuestra Señora de Guadalupe. Sofre neste ano, pela primeira vez, o que ele chama de doença psíquica e fica sem escrever por vários anos.

Em 1946 matricula-se no recém criado Instituto de Etnologia de San Mar-cos. No ano seguinte é nomeado Conservador de Folklore no Ministé-rio da Educação e, cinco anos depois, torna-se chefe da Seção de Folclore.

É nomeado em 1953 Chefe do Instituto de Estudos Etnológicos do Museo de laCultura. Como Secretário do Comitê Interamericano de Folklore, funda a revista FolkloreAmericano, publica “Cuentos mágico--realistas y canciones de fiestas tradicionales. Folkloresdel Valle del Mantaro. Pro-vincias de Jauja y Concepción.” Publica também o livro Diamantes y pedernales.

Em janeiro de 1956 é nomeado Diretor de Cultura pelo General Odría; não aceita o cargo por posicionamento político. Neste mesmo ano publi-ca “Puquio, una cultura en proceso de cambio”. Em 1957 torna-se Ba-charel em Etnologia com a tese “Evolución de las comunidades indíge-nas. El Valle de Mantaro y la ciudad de Huancayo; un caso de fusión de culturas no comprometida por la acción de las instituciones de origen colonial.”

Em 1958 publica o seu livro mais conhecido e considerado o me-lhor de sua produção ficcional, Los ríos profundos. Reside na Es-panha com uma bolsa de estudos da Unesco, preparando sua tese de doutorado sobre a origem hispânica das comunidades indígenas.

Volta à Lima e começa a lecionar na UniversidadNacional Mayor de San Marcos, com o curso “Introducción a la Etnología”. Seguirá dando vários cur-sos nesta universidade e, a partir de 1962, lecionará quechua na Universidad Nacional Agrária - La Molina. Publica, em 1962, El sexto, referindo-se à ex-periência de sua prisão em 1937. Publica uma coleção de contos e compila-ções de cantos quechuas, La agonía de Rasu Ñiti; Túpac Amaru Kamaq taytan-chisman, hayllitaki (A nuestro padre creador Túpac Amaru, himno canción).

Em 1963 apresenta sua tese de doutorado no Instituto de Etnologia da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, que tem como título “Las comunidades de España y delPerú”. Em agosto do mesmo ano é nomeado Diretor da Casa de la Cultura del Perú.

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Funda a revista Cultura y Pueblo e o programa “Teatro para el pueblo”, reanima os prêmios “Fomento a la cultura”. Em novembro organiza a Mesa Redonda so-bre el monolingüismoquechua y aymara y la educación en el Perú.

Publica Todas las sangres, em 1964, e, hostilizado pelos APRA-UNO , renuncia de seu cargo de Diretor da Casa de la Cultura. Em setembro é nomeado Diretor do MuseoNacional de Historia, funda a revista Historia y Cultura. Liga-se a Sy-bila Arredondo, com a qual se casará alguns anos depois. Esta sua segunda esposa trará mais instabilidade à sua vida emocional e criará conseqüências imprevistas ao destino futuro de sua obra. Publica El sueño del pongo, no ano seguinte.

Em 1966, muito angustiado pelos cortes e demissões que é obrigado a fazer como diretor do Museo Nacional, tenta suicidar-se, renuncia ao cargo e pede aposentadoria. Publica Dioses y hombres de Huarochirí. Leciona na Universidad Agraria de La Molina, participa de um projeto de recompilação da literatura oral existente entre a Universidade e o Ministério de Educação.

Em 1967 publica Amor Mundo y todos los cuentos. É nomeado professor na Facultad de Ciencias Sociales de La Molina, casa-se com Sybila Arredondo. No ano seguinte viaja a Cuba como jurado do prêmio “Casa de las Américas”, em se-tembro pede afastamento temporário de La Molina; publica-se pela Universidad de San Marcos sua tese de doutorado, Las comunidades de España y del Perú.

Em outubro de 1969, reintegra-se à Universidad Nacional Agraria de La Mo-lina. Em 28 de novembro, dentro de um banheiro do departamento de Ciências Sociais, frente a um espelho, dispara duas balas na cabeça, morre em 2 de dezem-bro e é enterrado em Lima.

Arguedas em alguns momentos de sua vida foi atormentado pelo fracasso, era tomado pelo sentimento de que tinha falhado no projeto de mostrar através de seus ensaios antropológicos e sua ficção, o quão complexo e rico era o mundo quechua. Olhando o conjunto de sua obra, vê-se anos de admirável constância de trabalho dedicado a uma variedade de áreas do conhecimento tocantes à arte popular, etnologia, evolução cultural e constituição de um projeto nacional; sem dúvida, ele logra expressar com lucidez as potências criativas com que o homem andino contribuiu para a construção de um novo Peru.

Uma sociedade de índios, senhores e mestiçosA organização social peruana é muito complexa, envolvendo vários es-

tratos e sofreu uma transformação bastante peculiar nos séculos que se seguiram à colonização. Arguedas dedicou grande parte de sua obra à compreensão desta sociedade de cultura tão mesclada. Ele nunca teve

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uma visão dicotômica da sociedade peruana, ou seja, aquela em que uma grande massa indígena é explorada por patrões feudais, descendentes dos colonizadores espanhóis. Índios, mestiços e senhores, é o título de uma coletânea de artigos de Arguedas publicada em 1985, e que pode ser usado para representar os três gran-des grupos que compõem a sociedade peruana. Mas estes grupos têm linhas de separação muito tênues, que se confundem em vários pontos.

Em seu estudo intitulado “Etnologia del área andina” , encomendado pelo Ins-tituto deEtnologia de La Habana, Cuba, Arguedas faz um esboço de vários as-pectos da sociedade andina, dentre os quais: economia, meio geográfico, religião e línguas. O que mais desperta interesse neste trabalho é a sua sistematização da estrutura socialperuana da época.

Figura 1 - Machu-Pichu, moradia dos nobres. (Foto: Hidalgo, 1997)

II. Estructura social del grupoLa estructura tradicional en crisis en el área serrana: 1. Comunidad indígena, villa de composición más compleja, ciudad. 2. Estratificación social en las comunida-des indígenas tradicionales: edad y status. Grados y cantidad de cargos públicos y religiosos desempeñados y status. Grado de instrucción y status. Cuantía de tierras y ganado y status. Grado de instrucción y de experiencia urbana, grado y cuantía de servicios prestados a la comunidad y liderazgo. 3. Estratificación social en las villas asiento de vecinos, mistis , wiraqochas , mestizo y cholos . (Vecino, misti, wiraqocha, amito, términos con que los índios nombran a los individuos pertenecientes al estrato impropiamente denominado blanco).

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Este estudo foi encomendado em 1968, quando Arguedas visitou Cuba como jurado de um concurso na Casa de Las Américas. Foi publicado em 1972, pelo Institutode Etnologia de La Habana, três anos após a morte de Arguedas. No livro onde esse artigo foi publicado não se precisa a data em que ele foi enviado à Cuba. Supõe-se, pelo espaço de um ano da visita à Cuba e/ou de sua morte, que ele foi escrito no final de 1968 ou início de 1969, o que o situa na época de plena maturidade de Arguedas. Este artigo, de apenas seis páginas, trás um estudo detalhado de vários aspectos do cotidiano das populações andinas, e é de suma importância quando se pensa em fazer uma revisão de toda a teoria Arguediana de cultura quechua. Ele retoma vários pontos, corrige e enriquece visões anterio-res. O ponto mais importante do estudo, sem dúvida, é sua análise detalhada da organização social da época.

Arguedas separa em sua análise a estrutura social serrana da estrutura da cos-ta, pois ele entende que o ambiente físico exerce uma grande influência sobre o comportamento dos grupos. Em outro artigo La sierra en el proceso de la cultura peruana ele coloca:

Grado de instrucción y de experiencia urbana, grado y cuantía de servicios pres-

tados a la comunidad y liderazgo.3. Estratificación social en las villas asiento de vecinos, mistis , wiraqochas , mestizo y cholos . (Vecino, misti, wiraqocha, amito, términos con que los índios nombran a los individuos pertenecientes al estrato impropiamente denominado blanco).A) El monolingüismo en algún idioma nativo, el uso del traje típico, la práctica de ritos y fiestas relacionadas con la religión y los dioses locales, la práctica de formas cooperativas tradicionales de trabajo como rasgos distintivos del indio y no los de tipo biológico.B) El mestizo descendiente de la casta mestiza colonial y las tradicionales ocu-

paciones artesanales de las villas.

C) El nuevo comercio ( intermediarios, acaparadores de productos en menor

escala, dueños de pequeñas tiendas, choferes dedicados al transporte, etc.) y la escolaridad recientemente difundida y factores que han hecho surgir el nuevo estrato denominado “cholo emergente”, del seno de la masa indígena y de la propia mestiza tradicional.

Era imprescindible, para los fines de este breve ensayo, determinar con la mayor claridad posible las relaciones que existen entre el habitat y el hom-

bre; y es, además, igualmente importante establecer las relaciones que existen entre la raza, el habitat y la cultura; pues el conocimiento de esas relaciones nos dará la explicación más aproximada de las causas por las cuales se habla en el Perú de costa, sierra y montaña, no sólo con significación geográfica

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Ele vê como determinante nas relações sociais essa influência que o en-torno exerce sobre a vida cotidiana, e principalmente a força que ela tem sobre o imaginário dos indivíduos. Um exemplo disto é o culto às mon-tanhas , elas são consideradas entidades vivas, eternas, que tem muito a ensi-nar aos homens; por isso as relações sociais nestas áreas tomam uma dimen-são diferente da região costeira, que também possui as suas peculiaridades.

Tomando como partida o estudo de etnologia na região serrana, vê--se como ele separa os estratos sociais dentro da dimensão dos agrupamen-tos. Por exemplo, dentro das comunidades indígenas tradicionais, vários são os fatores de determinação da posição social do indivíduo, como: a ida-de, o número de cargos públicos ocupados, grau de instrução, proprieda-des em terras ou bens. A raça não é um fator determinante, pois dentro de uma comunidade indígena, supostamente, todos pertencem à mesma raça.

sino cultural. Y el difícil problema ha sido felizmente, uno de los temas mejor estudiados por la antropología moderna, pues, como para el caso del Perú, su esclarecimiento era necesario para el conocimiento real de cualquier cultura.

Figura 2 - Fortaleza de Sacsayhuaman (Falcão Colorido), Cuzco.(Foto: Hidalgo, 1997)

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Já nos pequenos povoados e vilas ele encontra um grande complicador das relações sociais. Nestes assentamentos o número de indivíduos pertencentes às diversas raças, mescla-se ao enquadramento pela posse de bens, influência social, grau de instrução. Este fenômeno faz surgir nomenclaturas estranhas, e que às vezes não retrata o nicho que o indivíduo realmente ocupa dentro da sociedade. Quando ele organiza os dados de um assentamento em uma pequena vila, Argue-das encontra a seguinte organização: vecinos (moradores de uma comunidade), mistis, wiraqochas, mestizos (mestiço - espanhol com índio) e cholos. Dentro deste conjunto, pode-se dizer que existem realmente três grandes grupos, pois os vecinos, mistis e wiraqochas são todos do estrato impropriamente denominado como branco ou criollo. Cada denominação misti, wiraqocha diz respeito às suas posses materiais e não à raça, pois um índio com grandes propriedades pode ser nomeado como misti e não mestiço ou índio, dentro destas vilas.

Na costa ele encontra os seguintes fatores influindo nas relações sociais: indus-trialização; migração dentro da própria região e migração de pessoas da região serrana; desaparecimento das aristocracias e o crescimento da classe média.

A industrialização trouxe novos hábitos e costumes, muitas vezes estrangeiros, e minaram ou fizeram desaparecer antigas aristocracias. Isto somado à migração, fez com que crescesse bastante a classe média urbana.

A migração das populações serranas em direção à capital, Lima, fez com que a cidade crescesse desordenadamente, com bairros periféricos, sem nenhum tipo de saneamento e urbanização, constituindo as imensas favelas “barriadas” (foto), que fornecessem mão de obra barata para as fábricas e indústrias.

Dentro deste conjunto de fatores sociais tão complexos, os estratos sociais per-deram totalmente o seu antigo significado. Surgiram núcleos de divulgação da música índia, do folclore, dos costumes, mas estas manifestações estão dentro de um processo ainda hoje em transformação. Arguedas apontou para vários pon-tos fundamentais na compreensão da estrutura social, mas hoje, existem outros, como por exemplo, a influência da mídia na vida dessas pessoas. Falar quechua, participar de algum grupo de folclore na capital, muitas vezes funciona como fator de exclusão do indivíduo em círculos sociais mais elevados, em que o moni-lingüismo espanhol é predominante e desejado. Desde a publicação deste estudo de Arguedas a situação continuou em transformação.

Deve-se ressaltar a importância dada por Arguedas ao mestiço:

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Infere-se que Arguedas tem consciência de que a cultura quechua não é algo utópico, que visa preservar uma cultura original, pura, como enten-dem muitos de seus críticos. Ele tem uma visão muito dinâmica do comple-xo cultural no Peru, a cultura que ele procura preservar é a cultura atual

Figura 3 - “Barriada” nos subúrbios de Lima.Ocupações de migrantes que vêm principalmente da região serrana, viver em área sem

nenhum tipo de urbanização. (Foto: Hidalgo, 1997)

Durante siglos, las culturas europeas e india han convivido en un mismo territorio en incesante reacción mutua, influyendo la primera sobre la otra con los crecien-

tes medios que su potente e incomparable dinámica le ofrece; y la india defendi-éndose y reaccionando gracias a que su ensamblaje interior no ha sido roto y gra-

cias a que continúa en su medio nativo; en estos siglos, no sólo una ha intervenido sobre la otra, sino que como resultado de la incesante reacción nutua ha aparecido un personaje, un producto humano que está desplegando una actividad poderosí-sima, cada vez más importante: el mestizo. Hablamos en términos de cultura; no tenemos en cuenta para nada el concepto de raza. Quienquiera puede ver en el Perú indios de raza blanca y sujetos de piel cobriza, occidentales por su conducta. (...)El conocimiento del mestizo es esencial para la buena orientación de to-

das las actividades nacionales en el Perú: la educación, la sanidad, la pro-

ducción, los cálculos acerca de las posibilidades y el destino del país.

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que ele procura preservar é a cultura atual que é uma cultura que surgiu dos ensina-mentos e lendas ancestrais que interagiram com a cultura do invasor, uma cultura mestiça. Para muitos, o mestiço no Peru não passa de “un borroso elemento de la clase media” (Luis E. Valcárcel, em artigo de El Comercio ), mas Arguedas mostrou em seus estudos como Evolución de las comunidades indígenas, que trata das co-munidades do Vale do Montaro e da cidade de Huancayo, que o mestiço constitui, como neste caso, a quase totalidade da população na maioria das cidades e povo-ados peruanos. No ensaio sobre “El complejo cultural en el Perú” ele acrescenta:

O Indigenismo como movimento: a teoria de José Carlos Mariátegui e a posi-ção de José María Arguedas

Dentro da literatura do Século XX o Indigenismo é um movimento político--social que se desenvolveu nos anos vinte em alguns países da América Latina. Esses países todos da região andina, como Bolívia, Equador e Peru tem grandes massas indígenas, oprimidas pelo sistema semifeudal implantado desde a coloni-zação. O movimento tem como principal característica mostrar o índio a partir de uma perspectiva mais realista e recuperar o valor e a importância das culturas autóctones americanas.

O principal teórico do Indigenismo foi o peruano José Carlos Mariátegui e os seus principais representantes são: o boliviano Alcides Argüedas com obras como Wata Wara, Raza de bronce; o equatoriano Jorge Icaza com Huasipungo, Cholos; e os peruanos Ciro Alegria com El mundo es ancho y ajeno e José María Arguedas com Los ríos profundos, Todas las sangres, El zorro de arriba y el zorro de abajo.

O critico uruguaio Ángel Rama, na introdução que faz à coletânea de ensaios de Arguedas Formación de una cultura indoamericana, por ele organizada, define o Indigenismo como:

El hombre asimilado a la cultura occidental constituye una minoría en las aldeas y pequeñas ciudades de la sierra. En la misma ciudad del Cuzco y en las otras ciudades serranas importantes como Ayacucho, Arequipa, Cajamarca, Huaraz,

Puno, Jauja, Tarma, Huancayo, Cerro de Pasco y Huancavelica, ¿quiénes cons-

tituyen la mayoría de la población? ¿Los hombres de cultura occidental? ¿Los indios? No, los mestizos; pues muchos de los hombres pertenecientes a la clase denominada “alta”, por representar en tales ciudades a la civilización moderna y a causa de su poderío económico, tienen mayores vínculos de los que se supone, con valores característicos surgidos de la mezcla de lo occidental y lo indio: cantan en versos bilingües (quechua-español), bailan huaynos, beben chicha.

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Este movimento vinha oferecer uma nova estética, o índio não era mais re-tratado como um ser enigmático, impenetrável, que não merecia ser valo-rizado; passou a ser retratado por escritores que conviveram diretamente com o grupo ou que faziam parte dele. Foi um movimento de reação ao chamado hispanismo, que pretendia elevar as características européias, criollas, que fo-ram introduzidas na época da colonização e que teriam trazido ao Peru a mo-dernização e ocidentalização necessária. Estranhamente os chamados hispanis-tas louvavam a grandeza do Império Incaico, mas não consideravam o índio vivo, indivíduo do seu cotidiano, como descendente desta cultura que che-gou a tão alta especialização em campos como a arquitetura, a cerâmica etc.

Um dos pontos fundamentais do Indigenismo é a de ter um valor não somente de documento acusatório das opressões vividas pelo grupo, mas também revelador acerca da integridade das possibilidades humanas da população nativa. A literatu-ra Indigenista mostra que é insustentável a antiga visão, sem fundamentação algu-ma, de que o índio atual do Peru é um sujeito degenerado pelo álcool, pela coca e pelo próprio estado de servidão a que foi submetido. Historiadores ligados ao mo-vimento chamaram a atenção para as arbitrariedades cometidas contra este povo autóctone. Eles concluíram pelas crônicas e relatos que chegaram até nossa época, que nas primeiras oito décadas da implantação colonial espanhola, mais ou menos 7 milhões de índios foram exterminados, de uma população estimada de 10 milhões. Esta revisão dos papéis sociais e o novo posicionamento destes intelectuais colo-cavam a aristocracia criolla em uma posição bem desconfortável historicamente.

A corrente dos hispanistas foi fundada e tinha como principais re-presentantes José de la Riva Agüero e Víctor A. Balaúnde. Riva Agüe-ro e Balaúnde pertenciam à aristocracia criolla; eles considera-vam o período da colônia como a “Idade Média”, tempo em que se

Este término, indigenismo, quedó acuñado por la generación pos-modernista latinoamericana, siendo ella la que le confirió el significado con el cual fue acep-

tado en todo el continente. Como en los ejemplos paralelos y contemporáneos

del “negrismo” antillano y del “revolucionarismo” mexicano, se trató de una-

formulación local, peculiar, referida a la problemática cultural de la región, de esa tendencia generalizada, regionalista, criollista, nativista, que se posesionó de América Latina con posterioridad al novecentismo modernista, desarrollán-

dose en la década de los diez y los veinte: propuso una nueva apreciación de la

realidad y del funcionamiento de las sociedades del continente que estaban mo-

dernizándose, a través de la óptica de los sectores de la baja clase media en as-

censo, quienes entablaban su lucha contra las consolidadas estructuras del poder.

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gestou um país, analisavam a história e reverenciavam a grandeza do Império Incaico, mas não se ocupavam do índio marginalizado. Arguedas, por sua vez, caracteriza o hispanismo da seguinte maneira:cinema e a indústria cultural, tinha feito inclusive um quadro homenagem aos cinejornais da Fox, que eram apresen-tados nos cinemas antes da projeção do filme em cartaz. Na Barcelona de 1926 pintou o quadro Depart, homenaje al noticiario Fox. Dali, nesta época, dizia que o cinema era uma indústria e não deveria ser incluído dentro das Belas Artes. Em três anos, Dali estaria rodando Un perro andaluz, frívolo como foi toda a vida.

O mérito do hispanismo foi fortalecer o movimento de reação às suas pos-tulações históricas e filosóficas, o indigenismo. Essa reação começou a ser dada pelo arqueólogo índio Julio C. Tello, que nunca chegou a ser um ideólogo do movimento, mas trabalhou duramente para resgatar os restos arqueológicos da antigüidade peruana. Graças a ele foi descoberto o excepcional trabalho têxtil do grupo Paracas.

O papel de grande teórico do Indigenismo coube ao filósofo social José Carlos Mariátegui (1895-1930), que nas páginas da revista Amauta , fundada por ele em 1926, e que se tornou o principal instrumento de divulgação cultural do Peru, lançou os preceitos do movimento e reconheceu nos escritores da época quais eram seus representantes. No editorial do primeiro número da revista, Mariátegui escreve:

El hispanismo se caracteriza por la afirmación de la superioridad de la cultura hispánica, de cómo ella predomina en el Perú contemporáneo y da valor a lo indígena en las formas mestizas. Proclama la grandeza del Imperio Incaico pero ignora, consciente o tendenciosamente o por falta de información, los vínculos de la población nativa actual con el tal Imperio, las pervivencias dominantes en las comunidades indígenas, que forman, en la actualidad, no menos del 50% de la población del Perú de la antigua cultura precolombina del país. En la políti-ca militante, los hispanistas son conservadores de extrema derecha y por eso, aunque de manera implícita consagran el estado de servidumbre de los indios.

Esta revista, en el campo intelectual, no representa un grupo. Representa, más bien, un movimiento, un espíritu. En el Perú se siente desde hace algún tiempo una corriente, cada día más vigorosa y definida, de renovación. A los fauto-

res de esta renovación se les llama vanguardistas, socialistas, revolucionarios, etc. La historia no los ha bautizado definitivamente todavía. Existen entre ellos algunas discrepancias formales, algunas diferencias psicológicas. Pero por en-

cima de lo que los diferencia, todos estos espíritus ponen lo que los aproxima y mancomuna: su voluntad de crear un Perú nuevo dentro del mundo nuevo.

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E assim o foi, Amauta foi um aglutinador de inteligência. Os principais fi-lósofos e escritores da época foram colaboradores da revista. Mariátegui instou através da revista que os escritores e artistas tomassem o Peru como tema. Todas as principais obras no campo da literatura deste final da década de 20 foram analisadas, resenhadas utilizando-se o que depois se convencionou chamar como o “método Mariátegui”. O método Mariátegui consiste em ver a situação atual do indígena peruano como originário do sistema econômico existente no país.

Mariátegui provavelmente nunca teve contato com a obra de Arguedas, já que ele morreu em 1930 e Arguedas teve seu primeiro livro Agua, publicado em 1935. Arguedas já havia publicado alguns artigos na revista estudantil Antorcha, de cir-culação restrita, durante o ano 1928. Arguedas, sim, foi assíduo leitor de Amauta.

Teorizando sobre o indigenismo no seu ensaio Razón de ser delindige-nismo en el Perú, de 1965, Arguedas vê o movimento dividido em dois pe-ríodos, dos anos 20 até a atualidade, e da atualidade em diante. Ele faz uma avaliação do primeiro período do movimento e chega às seguintes conclusões:

La inteligencia, la coordinación de los más volitivos de estos elementos, pro-

gresan gradualmente. El movimiento -intelectual y espiritual - adquiere poco a poco organicidad. Con la aparición de “Amauta” entra en una fase de definición.

Balance del Primer período del indigenismo1.º El proprio nombre, sobreviviente aún, de indigenismo, demuestra que, por fin, la población marginada y la más vasta del país, el indio, que había permane-

cido durante varios siglos diferenciada de la criolla y en estado de inferioridad y servidumbre, se convierte en problema, o mejor, se advierte que constituye un problema, pues se comprueba que no puede, ni será posible que siga ocupando la posición social que los intereses del régimen colonial le habían obligado a ocupar.2.º La grandeza del Imperio incaico, indiscutida, y que había sido con-

siderada por los hispanistas como un prodigio sin vinculación al-guna con la población nativa superviviente, vuelve a ser considera-

da como una prueba objetiva de las virtualidades de esa población.(...)3.º La literatura indigenista logra demonstrar lo infundado de la interesa-

da imagen del indio degenerado, a quien no le corresponde otro destino que el de la servidumbre, y de un tipo de servidumbre que resulta un “Privile-

gio”, pues ni siquiera como siervo es suficientemente eficaz.(...) Pero la li-teratura llamada indigenista no es ni podía ser una narrativa circunscrita al indio sino a todo el contexto social al que pertenece. Esta narrativa describe al indio en función del señor, es decir del criollo que tiene el dominio de la economía y ocupa el más alto status social, y del mestizo, individuo social y

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Arguedas ao avaliar o movimento Indigenista, tem o bom senso de perceber que um movimento ideológico passa por mudanças e deve ser repensado. Fixa parâ-metros para que se entenda o desenvolvimento posterior do movimento. Mostra que o movimento Indigenista não podia entender como causa da atual situação da população indígena peruana, apenas a estrutura econômica desfavorável a este grupo implantando desde a colônia, como postulou Mariátegui no princípio do movimento. Ele vê como causadores da atual situação de marginalização social destes grupos, a complexa relação entre os vários estratos sociais, somada às rela-ções de detenção de bens e da produção econômica.

Los ríos profundos: o sangue dos Incas flui e lateja no coração de seus descen-dentes. O visível e o invisível da cultura do incanato

Los ríos profundos, de 1958, é considerado pelos principais críticos a obra mais representativa de Arguedas. Nela encontra-se o elemento mais característico de toda sua obra, a angústia de um indivíduo que transita entre dois mundos, a sociedade criolla descendente dos colonizadores e a grande massa quechua margi-nalizada, enjaulada dentro das formas de dominação social e cultural.

O romance é marcadamente autobiográfico; nele o menino Ernesto, filho de um advogado que muda constantemente de povoado em povoado, vive a angús-tia de estar constantemente trocando de moradia, sofre com a ausência do pai e encontra refúgio com o grupo indígena que o acolhe e o protege.

Esse dado autobiográfico, da perda da mãe muito cedo e das constantes viagens do pai, o novo casamento com uma senhora dona de várias fazendas e que supos-tamente o rejeita e o coloca para viver com os índios da fazenda, é considerado como um divisor de águas pelo próprio Arguedas e por alguns de seus críticos.

A dualidade de transitar entre dois mundos, tentando integrá--los, fazer com que a sociedade criolla olhe para o índio e o respei-te como possuidor e representante de uma cultura ancestral altamente

culturalmente intermedio que casi siempre está al servicio del señor, pero al-gunas veces aliado a la masa indígena. Finalmente, la narrativa peruana inten-

ta, sobre las experiencias anteriores, abarcar todo el mundo humano del país, en sus conflictos y tensiones interiores, tan complejos como su estructura social y el de sus vinculaciones determinantes, en gran medida, de tales con-

flictos, con las implacables y poderosas fuerzas externas de los imperialismos que tratan de modelar la conducta de sus habitantes a través del control de su economía y de todas las agencias de difusión cultural y de dominio político.

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desenvolvida, vai ser o objetivo de toda sua obra. O irmão mais velho de Arguedas, Arístides Arguedas Altamirano em entrevista

ao jornal El Comercio, em fevereiro de 1987, contesta a veracidade desta aver-são por parte da madrasta em relação a Arguedas. Arístides, então com 78 anos, coloca que, na verdade, o seu irmão nunca aceitou a madrasta como substituta materna, e que ele se isolou voluntariamente com os índios da fazenda, ignorando todos os esforços feitos pela madrasta na tentativa de se aproximar. Convívio vo-luntário ou forçado com os indígenas da fazenda, o fato é que este acontecimento de sua infância modificou toda a sua existência posterior.

Los ríos profundos foi publicado depois de um período de quase dez anos de ausência da vida literária. O principal crítico de Arguedas, o professor da Univer-sidad Nacional Mayor de San Marcos, Antonio Cornejo Polar, acredita que neste período Arguedas amadureceu o que seria a sua principal fonte de inspiração para escrever.

Polar entende que durante o período em que Arguedas esteve sem produzir, ele empreendeu uma viagem à infância, ao passado, e percebeu de forma trágica e jocosa que o seu mundo, a ser retratato, era o dos índios.

Los ríos profundos tem como característica principal ser a representação do mundo andino a partir de uma perspectiva individual, solitária, mas que ao mes-mo tempo representa todo o universo quechua, com o qual este homem se rela-ciona. Quando o personagem principal, Ernesto, encontra-se sozinho no colégio, ele se volta para o mundo índio, tratando de reassumir um mundo já conhecido, como forma de recuperação de si mesmo.

Polar vê também uma modificação fundamental no centro de conflito dentro deste romance, para ele:

Es importante advertir, en cambio, que durante ese tiempo José María Ar-guedas debió bucear en su atormentado ser interior en busca de una res-

puesta para su problemática personal y la problemática del país, cuyo di-seño había dejado incompleto, lleno de interrogantes, en Yawar Fiesta.

La ubicación de Ernesto, perdido en los “arenales candentes y extraños” de la costa (“Warma Kuyay”, p. 94), importa que la polaridad indios-blancos deja de ser el más importante elemento estructurador del mundo represen-

tado y de la significación de las obras de Arguedas. Tal como sucede a par-tir de Yawar fiesta, comparte su lugar con una nueva oposición -sierra-cos-

ta- que no inhibe las contradicciones y conflictos de la primera. La dualidad indios-blancos se convierte en el primer término del conflicto sierra-costa.”

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Exatamente o que Arguedas esclarece quando escreve Etnología del área andina , ele não vê mais o problema social peruano como específico do choque dos vários estratos sociais, mas sim como uma combinação deste elemento com o ambiente físico e econômico onde ele acontece. Este entorno gera outras problemáticas que influem profundamente no processo.

No romance, o relato provém de um narrador-protagonista. Ernesto, um me-nino de 14 anos que constrói a narrativa através de recursos mnemônicos - a me-mória funciona como um filtro seletivo. Ernesto que é um personagem nômade segue seu pai por todas as partes, tem que se enfrentar com realidades fugazes e diferentes. No segundo capítulo de Los ríos profundos, Ernesto diz:

No primeiro capítulo do romance, Ernesto chega a Cuzco com seu pai para se encontrar com a personagem “El viejo”, um parente de posses de quem o pai espera ajuda para trabalhar. A cidade aparece imponente com seus muros Incas, seus palácios, suas ruelas e todos os seus monumentos que latejam o sangue dos Incas.

Numa das torres da Catedral encontra-se la campana María Angola . Pesando duas toneladas, o sino forjado com ouro e prata confiscados dos Incas têm para seus descendentes poderes mágicos. O sino canta e transmite aos ouvidos a voz de antigas lendas. Ernesto sente a presença de María Angola quando chega na frente da Catedral.

Mi padre no pudo encontrar nunca dónde fijar su residencia; fue un abogado de provincias, inestable y errante. Con él conocí más de doscientos pueblos. Temía a los valles cálidos y sólo pasaba por ellos como viajero; se queda-

ba a vivir algún tiempo en los pueblos de clima templado: Pampas, Huayta-

rá, Coracora, Puquio, Andahuaylas, Yauyos, Cangallo... Siempre junto a un río pequeño, sin bosques, con grandes piedras lúcidas y peces menudos.(...) Pero mi padre decidía irse de un pueblo a otro, cuando las montañas, los ca-

minos, los campos de juego, el lugar donde duermen los pájaros, cuan-

do los detalles del pueblo empezaban a formar parte de la memoria.

Estábamos juntos; recordando yo las descripciones que en los viajes hizo mi padre, del Cuzco. Oí entonces un canto.- ¡La María Angola! - le dije.-Sí. Quédate quieto. Son las nueve. En la pampa de Anta, a cinco leguas, se le oye. Los viajeros se detienen y se persignan.La tierra debía convertirse en oro en ese instante; yo también, no sólo los muros y la ciudad, las torres, el atrio y las fachadas que había visto.

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Entrando no coração da área dos palácios Incas de Cuzco, o pai de Ernesto o guia pela ruela onde estão preservados os alicerces incas, a Calle Loreto Kuijllu.

O mundo percebido desta maneira mágica, e a força de sua memória permitem a Ernesto sobreviver dentro do seu mundo cotidiano tão solitário. Ernesto muitas vezes se mostra possuidor de uma memória que, além de ser individual, percorre caminhos do passado do povo quechua. Isso está evidente na sua relação de des-coberta das ruínas incas, símbolos materiais

Figura 4 - Catedral de Cuzco, feita com as pedras do palácio do último inca. (Foto: Hidalgo, 1997)

La voz de la campana resurgía. Y me pareció ver, frente a mí, la imagen de mis protectores, los alcaldes índios: don Maywa y don Víctor Pusa, rezando arro-

dillados delante de la fachada de la iglesia de adobes, blanqueada, de mi aldea, mientras la luz del crepúsculo no resplandecía, sino cantaba. En los molles, las águilas, los wamanchas tan temidos por carnívoros, elevaban la cabeza, bebían la luz, ahogándose.Yo sabía que la voz de la campana llegaba a cinco leguas de distancia. Creí que estallaría en la plaza. Pero surgía lentamente, a intervalos suficientes; y el canto se acrecentaba, atravesaba los elementos; y todo se convertía en esa música cuz-

queña, que abría las puertas de la memoria.

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do passado histórico da cultura quechua, presentes em Cuzco. Para Ernesto, as pedras dos muros Incas estão vivas e podem queimar como o fogo, o coração dos incas bate dentro destas pedras. Ernesto levanta a possibilidade da sobrevivência do poder do passado incaico. Sua força está intacta, tudo é possível, a miserável situação presente aparece como um simples acidente, como uma triste eventuali-dade. Ao longo do romance, Ernesto, o narrador-protagonista, obedece a um im-pulso fundamental: unir-se com os homens a quem escolheu como semelhantes, os índios, com sua situação real e concreta e, integrar-se com a natureza, com as pedras dos muros e das serras peruanas onde pulsa o coração da cultura quechua.

A cultura inca ou quechua, que é a cultura de mais de 70% da população peru-ana, não pode e não deve mais ser ignorada dentro do processo de transformação cultural deste país. O antropólogo e escritor José María Arguedas fez do objetivo de sua obra estudá-la, sistematizá-la e torná-la respeitada como o elemento mais autêntico do povo peruano.

Arguedas, branco, filho de classe média, teve contato desde a primei-ra infância com a língua e com o povo quechua. Segundo sua própria ex-pressão, este contato com o universo mágico e mítico, com esta maneira

Figura 5 - Calle Loreto Kuijllu onde se localizava a Casa das Virgens, monumento inca citado na obra de Arguedas (Foto: Hidalgo, 1997)

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de se colocar no mundo, como um dos elementos que o constitui, foi determinante no seu desenvolvimento como indivíduo e como cientista. Valorizando o ensinamento ancestral quechua, que foi preservado pela memória do grupo, e que foi passado de geração em geração, Arguedas recolheu o máximo de contos, lendas, histórias e utili-zou todo este material riquíssimo como material de construção da sua obra ficcional.

A sociedade peruana é dividida em estratos os mais diversos, não se pode entender o processo social de uma maneira simplista, como uma classe domi-nante e uma classe de dominados. Os estratos são de limitação muito com-plexa, vários fatores influem nele, entre a aristocracia criolla, descendente dos espanhóis e o índio descendente do grupo inca, existe uma cadeia de sub-divisões enorme. É esse processo tão complexo e dinâmico que Arguedas procurou compreender. A sua contribuição foi muito além de simples pes-quisador dos elementos envolvidos, ele se tornou parte integrante do pro-cesso com o desenvolvimento particular que deu à sua obra como escritor.

Os romances, contos e novelas de Arguedas colocaram a cultura quechua na pauta de debates dentro dos grupos intelectuais a partir dos anos trinta. Os seus livros tiveram muita penetração, dentro de todas as camadas sociais do Peru. Por ser branco, possuir uma posição social mediana e, por se tornar professor da tradicional Universidad Nacional Mayorde San Marcos, Arguedas pôde ser ou-vido, e a sua teoria social ser considerada. Coisa que não acontecia com os vários representantes das manifestações populares mais tradicionais, como os dançarinos dos rituais das festas, os músicos que entoavam cantos de sabedoria ancestral.

Arguedas lutou muito para que a cultura ancestral quechua fosse vista como um fator importante, já que é também dominante, pelo grande número de indivíduos a que representa e, que tivesse, por sua vez, o lugar que lhe é de direito dentro da cul-tura nacional peruana. Ele possui o mérito de tê-la feito conhecida internacional-mente com os seus romances. O seu principal romance Los ríos profundos de 1958, ganhou vários prêmios no país, mas foi internacionalmente que ele obteve grande sucesso. O livro foi traduzido para o Russo, Francês, Italiano, Chinês e uma infinida-de de línguas, foi possível encontrar mais 300 sites na Internet a respeito desta obra.

Trinta anos passados no panorama cultural peruano, as condições para os descen-dentes da cultura incaica ainda são bastante desfavoráveis. A impressão que se têm, é que depois da morte de Arguedas, em 1969, não surgiu nenhum representante que simbolizasse tão bem esta síntese entre o quechua e o espanhol, que era a figura de Arguedas. A cultura quechua continua sendo vista como algo exótico, mas que não pode ser considerada como parte representativa da cultura peruana. Na televisão, o modelo de beleza é o descendente do europeu, muito claro e com o cabelo escuro.

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Mas nem tudo é expressa desesperança quando se fala da situação da cultura quechua na atualidade. Um lugar pouco comum para se encontrar informações sobre a cultura quéchua, revelou-se surpreendente, a Internet. Tratando-se de um grupo muito carente e que têm pouco ou nenhum acesso à tecnologia, foi grati-ficante perceber que algumas pessoas e algumas organizações não governamentais estão divulgando a cultura deste povo pela rede mundial. Esperamos que este seja um caminho mais justo com a obra de José María Arguedas, já que até agora o mercado editorial ainda deve muito à obra e a figura deste grande antropólogo e escritor latino-americano.

REFERÊNCIAS1 APRA, sigla de Alianza Popular Revolucionaria Americana, organização políti-co-cultural que gerou o movimento chamado aprismo.2 ARGUEDAS, José María. Nosotros los maestros. Lima: Editorial Horizonte, 1986, pp. 215-222.3 Misti ou Mistis: Nomeia às pessoas da classe dominante, qualquer que seja sua raça.4 Wiraqocha: Epíteto de alguns heróis míticos andinos que desapareceram no mar, depois de haver organizado o mundo. Denominou-se assim os espanhóis por sua procedência oceânica, e porque foram , a principio confundidos com deuses. Por extensão, membro dos setores rurais dominantes, grandes latifundi-ários brancos.5 Cholo ou cholito: Termo que designa ao indivíduo de origem indígena que deixa, por sua migração à cidade, por sua prosperidade, por sua educação ou comportamento social, de ser considerado como “índio”. Nas classes sociais mais elevadas da costa o termo é utilizado como sinônimo de índio. Dentro das classes mais baixas o diminutivo, cholito, é utilizado em sentido afetivo, não pejorativo.6 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura nacional indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, p.14.7 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 14.8 “Los wamanis (montanhas) son los segundos dioses. Ellos protegen al hombre. De ellos nace el agua que hace posible la vida.” Idem. p.175.9 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, pp. 2 e 3. 10 www.elcomercioperu.com.pe. Acesso em: 31 out. 1997.

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11 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 4. 12 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 4.13 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 191.14 Amauta: A escolha do nome da revista reflete em muito toda a ideologia de Mariátegui, o nome Amauta vem dos filósofos do império Inca. Eles tinham a seu cargo o conhecimento de toda a história imperial e tinham como missão conser-var e difundir a tradição ancestral. Eram instrutores dos filhos da nobreza e são tidos como os criadores do Código Moral e das orientações filosóficas que regiam a vida social no Incanato.15 Revista AMAUTA, Nº 1, Ano 1, Lima, Setembro de 1926. Biblioteca Nacional del Perú.16 ARGUEDAS, José María Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, pp. 196-197.17 CORNEJO POLAR, Antonio. Los universos narrativos de José María Argue-das. Buenos Aires: Ed. Losada, 1973, p. 100.18 Id. Ibid., p. 103.19 ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura indoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1989, pp.215-221.20 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. Madrid. Alianza Editorial, 1992, pp. 29-30.21 “Campana” é o “famoso sino denominado María Angola, que atualmente se encontra na torre da Catedral de Cuzco, teve um irmão chamado Mariano. Am-bos vieram voando pelo espaço, cada qual com uma corrente de ouro, eles tinham apostado: quem chegasse primeiro até a milenar cidade e conseguisse se pendurar na torre da Catedral, devia tocar para anunciar seu triunfo. Assim foi que, em-preendido o vôo juntos, María Angola ganhou de Mariano, deixando ouvir, pela primeira vez, sua potente voz na Capital dos Incas; então, Mariano, que ainda se encontrava na altura da laguna de Huaypo escutou a voz de sua irmã, envergonha-do profundamente de ser menos que ela e, desesperado, jogou-se violentamente dentro das águas da dita laguna, fazendo soar sua corrente de ouro. E dizem que, em cada lua nova ou quarto minguante, ele sai da laguna, com forma de um sino de brilhantes reflexos, e que quando algum caminhante se aproxima, volta a se jogar na laguna”. In Mitos, leyendas y cuentos peruanos. José María Arguedas. Coleccíon Escolar Peruana, Lima, 1947. (Tradução: João Eduardo Hidalgo).

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22 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. Lima: Editorial Horizonte, 1983, p. 17.ARGUEDAS, José María. Formación de una cultura nacional indoamericana. Selección y prólogo de Ángel Rama. México, Siglo Veintiuno, 1989.______. Indios, mestizos y señores. Lima: Editorial Horizonte, 1985.______. Obras completas. Lima: Editorial Horizonte,1983, V Tomos: Tomo I - Warna Kuyay; Los comuneros de Ak’ola; Los comuneros de Utej Pampa; K’ellk’atay; El vengativo; El cargador ; Doña Caytana; Agua; Los escoleros; Yawar Fiesta; El barranco; Runa yupay, Hayanay, Orovilca, La muerte de los Arango; Hijo solo; La agonia de Rasu-ñiti; El forastero; Amor Mundo; El sueño del pon-go; El Pelón; Mar de harina; Yawar huillay; Tomo II -Diamantes y pedernales; El puente de hierro ; Se muda elsol; Yawar fiesta; Tomo III- Los ríos profundos; El sexto; Tomo IV- Todas las sangres; Tomo V - El zorro de arriba y el zorro de abajo; Katatay Temblar (A nuestro padre creador Tupac Amaru, Qué Guayasamin, Oda al Jet, Katatay Temblar, Llamado a algunos Doctores, A Cuba, Ofrenda al pueblo de Vietnam).CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. Mexico: Edición Grijalbo, 1990.CORNEJO POLAR, Antonio. Los universos narrativos de José María Arguedas. Buenos Aires: Ed. Losada, 1973. HIDALGO, João Eduardo. A cultura quechua na obra do antropólogo José Maria Arguedas e no Peru contemporâneo. São Paulo: COM/ARTE/ECA/USP, 2007.TODOROV, Tzvetan. La conquista de América: el problema del otro. México: Siglo Ventiuno Editores, 1987.

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Duas linguagens em busca de um sentido

Nelyse Salzedas*, Rivaldo Paccola** & Ricardo Nicola****Professora Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp-Bauru; **Professor Adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequiti-

nhonha e Mucuri, câmpus de Diamantina(MG); e ***Professor Doutor do Departamento de Comunicação Social da Unesp-Bauru.

A relação entre as artes tem sido pesquisada e estudada por vários crí-ticos. Aqui, enfatizamos Hagstrum (The sister arts, 1987) e Machado (Arte e mídia, 2010). Esses autores trabalham as imagens da pintura conjuga-das com partículas cinematográficas, estabelecendo entre elas um cam-po metafórico de cujo interstício surge um campo comum a ambas.

O objetivo deste artigo é discutir a hibridiza-ção entre cinema, pintura e mídia, pressupondo que se este-ja na era da iconofagia da imagem, reveladora dos referidos interstícios.

Para Hagstrum, “pictorialismo literário era um dos meios mais atra-entes de alcançar estilo na poesia, de transcender sem desertar sua na-tureza”; já Machado relata o fato de Edgar Degas, nascido no tem-po da invenção da fotografia, ter utilizado suas pinceladas, ao modo impressionista no tratamento da luz, para “congelar os corpos em movimento com o mesmo frescor com que o fazia o rapidíssimo obturador da câmera.”

O crítico italiano De Santi (Cinema e pittura, 1996) também traz à tona esse processo de hibridização, quando enfoca que Pasolini, no filme “Raiva” (1963), usa como cenário a tela de Rosso Fiorentino, “A descida da cruz” (1521); em outro, “Mamma Roma” (1962), e Fellini, em “Satyricon” (1969), inspiram--se na tela de Mantegna “Cristo morto” (1485) para criar as cenas. Igualmen-te, Newell, no filme “O sorriso de Mona Lisa” (2003), utiliza a tela de Picasso “Les demoiselles d’Avignon” (1907) como discurso pedagógico da protagonista.

Balan (1997), em sua dissertação de mestrado estuda a relação da te-levisão com a pintura e o cinema, quando focaliza a contribuição da pintura e da fotografia na construção do discurso midiático usando textos de Ke-mial (s/d) e de Sagato (1968) enfatizando a iluminação e o enquadramento.

Por seu turno, De Santi (1996) tece considerações críticas com telas e foto-grafias abordando épocas e estéticas diversas. O texto deste autor que compara os fotogramas, cuja fonte primária é a arte, levanta algumas questões, logo nas

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páginas iniciais: o cinema é uma arte? É arte figurativa? É o somatório de todas as artes? Que relação há entre o cinema e o teatro? E com a literatura? Com a música? Com a pintura? Com a arquitetura? Com a fotografia? Dentre as artes, a literatura e a pintura foram as primeiras a contribuírem para a formação de uma nova linguagem, quer no plano do conteúdo, quer no plano da expressão.

Da literatura, a arte cinematográfica apropriou-se do enredo, da trama, do tema, da temporalidade, do foco narrativo, das analepses e prolepses, do sumário, das elipses...

Da pintura, o espaço, o enquadramen-to, a perspectiva, o jogo da luz e da sombra, a representação.

Do teatro, a dramaticidade, o espetáculo, a carnavalização, a polifonia.Da arquitetura, os cenários, o espaço, o lugar e paisagem.Da música, o ritmo, o tempo, a coda, a rapsódia, a tensão, a harmonia.Da fotografia, o enquadramento, a angulação, o zoom, o foco, o corte.Começamos por questionar por que o “Cristo morto”, de Andrea Manteg-

na (1485)? Pelo enquadramento? Pelo aspecto tridimensional da pintura? Pelo movimento do pintor ao criá-la, assemelhando-se ao de uma câmera cinema-tográfica? Talvez seja pelo tipo de perspectiva, que o inglês chama de foreshor-tening e viewing point, para a perspectiva da pintura que altera a composição.

Foresshortening, segundo Perspective (1992), citando a tela de Man-tegna, é definido como um método através do qual os intervalos de uma perspectiva são representados em níveis ou partes para o objeto apare-cer menor do que realmente é, porque é inclinado em direção ao espectador.

Fig. 1 “Cristo morto”, de Mantegna (1485)

Já, o significado de viewing point refere-se a uma posição de visua-lização fixa a partir da qual a perspectiva é construída e de onde ela foi con-cebida para ser vista. A perspectiva é fixada na altura da cabeça, com o obser-

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vador de pé no chão. Assim, uma alta ou baixa dessa posição de visualização altera drasticamente as figuras de uma área. Possivelmente, o “Cristo morto”, de Mantegna, tenha gerado, por tais técnicas, o interesse de Pasolini e Felli-ni para o enquadramento de seus filmes, respectivamente: “Mamma Roma” (1962) e “Satyricon” (1969), nos quais personagens assumem o lugar e a fun-ção de Cristo, cuja marca é a perspectiva foreshortening e o intertexto de subli-mar e acentuar a humildade dos humildes, dos marginais e do subproletariado.

Fig. 2 Fotograma de “Mamma Roma”(1962)

Fig. 3 Fotograma de “Satyricon” (1969)

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A contribuição da pintura continua em outro filme de Pasolini, o “Decame-ron” (1971), por meio de uma cena montada a partir de um afresco da Capela da Arena (Capela Scrovegni), “Juízo final”, pintado por Giotto (1304-1306), em Pádua. Como Giotto, Pasolini registra a visão fascinante do paraíso e perturbado-ra do inferno, no último episódio do “Decameron”.

Fig. 4 “Juízo final”, de Giotto

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Fig. 5 Fotograma do “Decameron”, de Pasolini

É necessário sublinhar aqui a contribuição da literatura para a estrutura da narrativa e dos gêneros que os textos clássicos fornecem, como os de Petrônio (27-66 d.C.) – “Satyricon”, a Bíblia (At. 2, 16ss), bem como de Boccaccio – “De-cameron” (1349-1351) para a montagem do juízo final, além de outros textos registrados por Hagstrum.

O filme “Satyricon” (1969) é estruturado em uma narrativa truncada e re-flete a sexualidade masculina e suas variações na antiga Roma. Cada trecho do filme trata de uma delas, como o homossexualismo e outras questões delicadas que envolvem o sexo. Apesar de ser baseado na sociedade romana antiga, o filme “Satyricon” também reflete um momento de caos no qual a sociedade da década de 1960 vivia. Então, ocorre um processo de atualização situacional.

Em “Decameron” (1971), Pasolini retoma Giotto, especialista em afrescos, tais como os da Capela da Arena, em Pádua, e a Igreja de São Francisco, em Assis, em uma das sequências do mencionado filme e, tal como o texto escrito que lhe serviu de roteiro, é um mosaico de pequenas histórias tragicômicas adaptadas do texto do escritor italiano Giovani Boccaccio (1313-1375), cujo livro de mesmo nome foi escrito entre 1349 e 1351, contendo uma coleção de cem textos: contos, piadas, novelas e lendas que ficcionalizam a realidade daquela época.

Se o “Cristo morto”, de Mantegna (1485) tem uma função icônica em “Mamma Roma” e em “Satyricon”, o “Juízo final”, de Giotto, sofre um processo iconofágico, uma vez que, em “Decameron”, Pasolini substitui Cristo por Nossa Senhora e busca, nessa pintura, inspiração do personagem pintor do filme pintar

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o interior de uma igreja. Em Giotto, Maria é mediadora da capela e Cristo o onipotente do juízo final. Deste modo, o filme “Decameron” exclui a ideia do juízo final e fica apenas com a mediação. Isto o diferencia da técnica do “Cristo morto”, de Mantegna, que busca um processo mimético nos filmes. Portanto, identificam-se dois processos distintos: um iconofágico e outro mimético. Em ambos os casos, existe o processo de hibridização com alterações de linguagens do texto escrito (roteiro), do texto pictórico (tela/afresco) e do texto cinematográfico (sequência fílmica).

“Mamma Roma” foi filmado segundo a concepção neorrealista italiana. É o segundo longa-metragem de Pasolini feito, especialmente, para a atriz prota-gonista Anna Magnani (1908-1973), encarnando uma prostituta de meia-idade que tenta livrar-se de seu passado sórdido para o bem de seu filho, mas o contexto social impossibilita a realização de seus sonhos, pois a realidade mostra-se mais dura e cheia de desencontros. Assim, o enredo oferece um olhar atento à luta pela sobrevivência na Itália do pós-guerra, e destaca fascínio do diretor para com os marginalizados e despossuídos, que viviam nos bairos pobres de Roma.

São os detalhes que fazem a diferença em uma obra de arte, conforme acen-tua Arasse (1996, p. 13-14):

Une « histoire du détail » est impossible.J’ai pensé qu’il valait mieux commencer par établir comment, à travers l’histoire de la peinture européene classique (la peinture « d’imiation »), le détail constituait une pierre de touche efficace pour percevoir les enjeux d’articulations historiques ou de choix esthétiques beaucoup plus larges. La situation et le statut du détail dans le tableau de peinture en font, de ce point de vue, un double « emblème » du tableau : emblème du processus de représentation adopté par le peintre et emblème du proces-sus de perception engagé par le spectateur. Cést la première partie [...]Dans la seconde partie, on constate que le détail tend, irrésistiblement, à faire écart. Marque intime d’une action dasns le tableau, faisant de lui-même aigne à celui qui regarde et l’appelant à s’approcher, il disloque à son profit le dispositif de la représen-tation. Il peut alors se présenter comme un « comble » de peinture et, dans la jouis-sance de ce qui se passe près de la surface peinte, le discours de l’interprète est mis en situation d’aporie. Mais le détail peut aussi se manifester comme le lieu où s’est condensé l’investissement du tableau (et de son thème) par son auteur ; son écart fait alors affleureur les enjeux personnels du peintre, au travail dans son oeuvre. Dans les deux cas, l’intimité rapprochée de la peinture encourage l’intelligence à faire silence, pour que l’excès du détail autorise la fête de l’oeil.

Após discussão de textos teóricos, começamos por questionar por que o “Cristo morto”, de Mantegna (1485) transformou-se em signo icônico para tan-tos cineastas italianos, japoneses e russos. Entendemos por signo icônico aquele que esteja em relação de certa semelhança visual ou isomorfia com seu significado que estaria relacionado com o agenciamento dos protagonistas que atuam nos referidos filmes. Assim, a isomorfia redundaria do enquadramento?

De acordo com Mammì (2012, p. 24): “Numa escultura minimal, o mais relevante não é a forma dos objetos, mas o processo de produção e de organização

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conceitual que eles indicam.” Há possibilidade de gerar novas experiências significativas a partir de objetos singulares, no presente caso o “Cristo morto”, de Mantegna e o “Juízo final”, de Giotto. O detalhe, de acordo com Arasse (1996), é emblemático para os citados diretores, que dele se valem para produzir variações, as quais direcionam o olhar do espectador.

No filme “Decameron”, dirigido por Pasolini, o mecanismo de iconi-zação sofre uma intervenção do diretor, uma vez que a tela de Giotto é o “Juízo final”, em cujo caminho, para se chegar ao Cristo Pantocrátor está Maria, sua mediadora. Logo abaixo, entre o inferno e o purgatório, estão o filho de Scrovegni e uma corte que oferece a capela à Maria. O personagem de Pasolini, também um pintor encarregado de um afresco em uma capela, secciona o Cristo Pantocrátor no paraíso e eleva para o plano superior Maria. Parece-nos que o processo de iconofagia e de intervenção está mais presente nesse filme do que nos outros aqui citados, que iconizaram o “Cristo morto”, de Mantegna. Pode-se pensar que se, nos filmes de Pasolini e Fellini houve a iconização mimética, no “Decameron” houve o processo interventivo. E no filme de Mike Newell, “O sorriso de Mona Lisa” (2003), telas consideradas modernas tensionaram o ensino da arte e posi-ções individuais (das alunas). Perguntamos: como?

Durante a viagem de trem para assumir a função de professora de arte em uma tradicional escola feminina – Wellesley College, Boston-MA – a prota-gonista, recém-formada na liberal Universidade de Berkeley-CA, por meio de seu gestual antecipa o discurso pedagógico que adotaria, ou seja, a ruptura da arte, quando seleciona a gravura “Les demoiselles d’Avignon”.

Fig. 6 Fotograma de “O sorriso de Mona Lisa”, de Newell

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Após o primeiro dia de aula, quando a professora novata verifica que suas alunas já conheciam a história da arte até o Realismo, a partir do Impressionis-mo – considerado uma das forças propulsoras da modernidade – apresenta-lhes as obras de Van Gogh, Jackson Pollock e Andy Warhol, que abalaram o conceito de arte mimética e pautaram-se pelo conceito que Deleuze (1990) denomina de intervenção (criação).

Fugindo do processo da mimesis e da iconização, Mona Lisa apresenta as telas como detalhe das tensões, criando um jogo dialético entre os séculos e a modernidade, isto é, a arte em transformação. Vai do dire para o faire, quan-do faz uma exposição com a produção das alunas a partir dos girassóis de Van

Gogh.

Fig. 7 Fotograma d“O sorriso de M.L.”, de Newell

Fig. 8 Fotograma d“O sorriso de M.L.”, de Newell

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Pode-se dizer que na década de 1960, como ocorreu nos filmes aponta-dos, a pintura e a fotografia atuaram como hoje elas atuam na mídia televisiva. Atualmente, a mídia retoma as relações visuais com uma outra linguagem.

Referências

ARASSE, Daniel. Le détail: pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flammario, 1996BALAN, Willian C. A iluminação em programas de TV: arte e técnica em har-monia. 1997. 137f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Poéticas) FAAC/Unesp, Bauru, 1997,DE SANTI, Pier Marco. Cinema e pittura. In: Art Dossier, n. 16. Firenze: Giunti Editore, 1996.DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.FELLINI, Federico. Satyricon. Itália: Produzioni Europee Associati, 1969, 129 min.GIOTTO. Juízo final, 1304-1306. Afresco da Capela da Arena (Capela Scroveg-ni), Pádua, Itália.MANTEGNA, Andrea. Cristo Morto, 1485. Pinacoteca de Brera, Milão, Itália.NEWELL, Mike. O sorriso de Mona Lisa. Título original “Mona Lisa smile”. EUA: Columbia Pictures Corporation / Revolution Studios / Red Om Films, 2003, 2h 05min.PASOLINI, Pier Paolo. Mamma Roma. Itália: Arco Film, 1962, 106 min.________. Decameron. Itália/ França/ Alemanha: Produzioni Europee Associati, 1971, 112 min.PICASSO, Pablo. Les demoiselles d’Avignon, 1907. MoMA, Nova Iorque, EUA.

Nota de Rodapé1. Uma “história do detalhe” é impossível. Eu pensei que seria melhor começar por estabelecer como, através da história da pintura clássica europeia (pintura “de imitação”), o detalhe constitui-se uma pedra angular eficaz para recolher questões históricas ou escolhas estéticas nas articulações muito mais amplas. Esta perspectiva torna a situação e o esta-tuto do detalhe na tela pintada um duplo “emblema” dessa tela: emblema do processo de representação adotado pelo pintor e emblema do processo percepção envolvida pelo espectador. Esta é a primeira parte [...]

Na segunda parte constatei que o detalhe tende, irresistivelmente, a apresentar variações. Marca íntima de uma ação na tela, tornando-se um sinal para quem olha e convidando-o a uma aproximação, desestrutura a seu favor o dispositivo de representação. Ele pode, então, ser apresentado como um “clímax” da pintura e, no prazer do que ocorre próximo à superfície pintada, o discurso do intérprete é colocado em uma situação de aporia. Mas os detalhes também podem manifestar-se como o lugar onde o investimento na tela (e seu tema) são condensados pelo seu autor; então, essa abertura faz aflorar questões pessoais do pintor em sua obra. Em ambos os casos, a intimidade da pintura estimula a mente a ficar em silêncio, para que o excesso de detalhes permita a festa para os olhos. (Tradução dos autores)

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Reflexões sobre a Influência da Maçonaria nas Artes

Maria do Carmo Jampaulo Plácido PalhaciProfessora Doutora do Departamento de Artes e Representação Gráfica da

Unesp-Bauru.

A maçonaria, em sua filosofia, trata da essência, propriedade e efeitos das causas naturais. Investiga as leis da natureza e relaciona as primeiras bases da moral e da ética pura. Não tem por princípio obter lucro pessoal de nenhuma classe, ao contrário, suas arrecadações e seus recursos servem ao bem estar do homem – seu semelhante, sem distinção de nacionalidade, sexo, religião, ou raça - buscando desse modo a ele-vação espiritual e a tranquilidade de consciência (NUT-SA-TEFNUT, 2001, p.01

.A maneira encontrada pela Ordem Maçônica para ministrar os seus mui-tos segredos e ensinamentos aos seus Iniciados, é procurar sempre fazê-lo através de símbolos e metáforas (CAMPANHA, 2003, p.38). Esta Simbologia Maçô-nica, sua interpretação e o seu entendimento são as ferramentas utilizadas pelos maçons para o seu constante aprimoramento das virtudes e descartes do vicio.

Em cada país, através dos séculos observou-se que não existem leis ou li-vro considerado santo que defina a maçonaria sendo que a mesma não é uma religião e não possui dogmas. Existem estatutos e princípios básicos que são aceitos por todos os seus membros, denominados irmãos em todas as par-tes do mundo. A fraternidade universal que une os maçons transforma--os em uma grande família no seio da humanidade, mas não existe um re-presentante maçônico como, por exemplo, o é o Papa para os católicos.

Por volta do ano de 1808, surgiu o apelido de bode para os maçons que até hoje é motivo de curiosidade. O seu significado remete ao III ano depois de Cristo, onde os apóstolos foram divulgar o cristianismo sendo que alguns foram para o lado judaico da Palestina e lá era constantemente observado encon-trarem judeus falando ao ouvido de um bode, animal que mais existia daquela região. Descobriu-se posteriormente que esse modo de agir fazia parte da cul-tura daquele povo e era um ritual utilizado para expiação dos pecados. Existia a crença que contar a alguém de sua confiança os pecados, a sua consciência se aliviaria pois a pessoa estaria dividindo o sentimento ou problema. O bode era o animal que nada falava e desse modo a pessoa que confessava ficava segura que seus segredos seriam mantidos. Trinta e seis anos mais tarde, a igreja in-troduziu no seu ritual o confessionário unido ao voto de silêncio por parte do padre confessor. O maçom recebeu então o apelido de bode porque entre os

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Reflexões sobre a Influência da Maçonaria nas Artes

Maria do Carmo Jampaulo Plácido PalhaciProfessora Doutora do Departamento de Artes e Representação Gráfica da

Unesp-Bauru.

irmãos deve existir confiança total e nada deve ser falado de suas confidências.

Símbolos utilizados na maçonaria

A maçonaria utiliza os símbolos para transmitir os ensinamentos maçôni-cos, pois o torna praticamente auto didático. Como tão bem explicou o emi-nente escritor maçom J. Cornelup: ‘O próprio de um símbolo é de poder ser entendido de várias maneiras, segundo o ângulo sob o qual ele é considerado’, de modo que ‘um símbolo admitindo apenas uma única interpretação não será verdadeiro símbolo’ (...)”. (ASLAN, 2000, p.5). Cada maçom vê nestes símbolos conforme o seu grau de evolução, sem contudo afastar-se dos fundamentos da doutrina. Cada um dos símbolos possui vida própria, inclusive com vida ante-rior ao advento da Maçonaria que nós conhecemos como Operativa. Todavia unidos, formando um terceiro símbolo, um poderoso Emblema que embora te-nha tido vida anterior à Maçonaria, tornou-se um símbolo maçônico por ex-celência em todos os Ritos. (...) (KAPFENBERGER FILHO, 2001, p. 07-08)

Finalizando, todo Símbolo Maçônico utiliza a arte para transmitir suas mensa-gens com a interpretação coerente, lógica, e inspiradora de lições morais. “Dissemos ‘inspiradora’, porque iniciação é inspiração e não simples ensinamento ou pregação” (VAROLI FILHO, 2000, p.17-18). Seguem abaixo alguns símbolos maçônicos:

É necessário cuidado na colocação da Estrela de cinco pontas (Figura 01), uma vez que sendo a Maçonaria uma Arte Real e uma obra de luz, a Estrela Flamejante, em forma Pentagonal, logicamente, tem a sua única ponta voltada para cima, onde nela se inscreve a figura humana, cujo significado representa os atributos da alta espiritualidade

humana. Por outro lado, a posição invertida, inscrevem-se nas suas cinco pontas, um homem de cabeça para baixo, ou a cabeça de um bode, cuja representação, em ambos os casos, são os atributos da animalidade e da materialidade.

A Acácia (Figura 02) é a planta símbolo por excelên-cia da Maçonaria; representa a segurança, a clareza, e tam-bém a inocência ou pureza: foi tida na antiguidade, entre os hebreus, como árvore sagrada e daí sua conservação como símbolo maçônico. A Acácia é inicialmente um símbolo da verdadeira Iniciação para uma nova vida, a ressurreição para uma vida futura.

O Avental (Figura 03, acima) é o elemento principal das insígnias maçônicas, sendo o símbolo do trabalho.

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Segundo A. Gheerbrant e J. Chevalier, as Colu-nas (Figura 04, ao lado) são símbolos dos limites do mundo criado, da vida e da morte, do elemen-to masculino e do elemento feminino, do ativo e do passivo. Estas são também representações físicas das duas colunas da entrada do templo de Salomão.

O Compasso (Figura 05) é símbolo do espírito, do pensamento nas diversas formas de raciocínio, e tam-bém do relativo (círculo) dependente do ponto inicial (absoluto). O Esquadro resulta da união da linha ver-tical com a linha horizontal, é o símbolo da retidão e também da ação do Homem sobre a matéria e da ação do Homem sobre si mesmo. Significa que devemos regular a nossa conduta e as nossas ações pela linha e pela régua maçônica, pelo temor de Deus, a quem temos de prestar contas das nossas ações, palavras e pensamentos. Emite a ideia inflexível da imparciali-dade e precisão de caráter. Simboliza a moralidade. G” a letra “G” que é colocada no centro da Estre-

la Flamejante, tem o significado de GLÓRIA, GRANDEZA e GEOMETRIA, Glória, para Deus; Grandeza, para o Venerável e Geometria para os outros irmãos.

O Nº 9 (Figura 06) é o princípio da Luz Divina, Criadora, que ilumina todo pen-samento, todo desejo e toda obra, exprime externamente a Obra de Deus que mora em cada homem, para descansar depois de concluir sua Obra. O homem novená-rio que pelo triplo do ternário, é a união do absoluto com o relativo, do abstrato com o concreto. O número nove, no simbolismo maçônico, desempenha um papel variado e importante com significados aplicados na

sua forma ritualística. O número 9, é o número dos Iniciados e dos Profetas.

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A quarta letra do alfabeto grego, o Delta (Figura 07). É o emblema da Tri-unidade. É o primeiro polígono. Tanto nas Igrejas Judaico-cristãs como nos templos maçônicos está geralmente envolvida de uma “glória”, e centrada pela letra G. É o símbolo da tripla Força indivisível e divina que se ma-nifesta como Vontade, Amar e Inteligência cósmica ou ainda os Polos positivo e negativo e o efeito de sua união. É às vezes figurado por três pontos.

O Malhete (Figura 08), pequeno martelo, emble-ma da vontade ativa, do trabalho e da força mate-rial; instrumento de direção, poder e autoridade.

Pavimento em Mosaico (Figura 09): chão em xadrez de quadrados pretos e brancos, com que devem ser revestidos os templos; símbolo da diversidade do globo e das raças, unidas pela Maçonaria; símbolo também da oposição dos contrários, bem e mal, espirito e corpo, luz e trevas e também, da liberda-de total do Aprendiz e do maçom em geral.

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Pedra bruta (Figura 10): símbolo das im-perfeições do espírito que os maçons devem procurar corrigir; e também, da liberdade total do Aprendiz e dos maçons em geral.

Templo (Figura 11): símbolo da constru-ção maçónica por excelência, da paz pro-funda para que tendem todos os maçons.

Três Pontos (Figura 12): triângulo: símbolo com várias interpretações, aliás, conciliáveis: luz, trevas e tempo; passado, presente e futu-ro; sabedoria, força e beleza; nascimento, vida e morte; liberdade, igualdade e fraternidade.

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A Pirâmide com o olho-que-tudo-vê (Figura 13), é um símbolo illuminati, esse símbolo é real e não se trata de fruto da imaginação. Uma pirâmide cujo cume (a elite) é esclarecido pelo olho da consciência que o vê tudo e domina uma base cega, feita de tijolos idênticos (a população). As duas menções em latim são mui-to significativas. “NOVUS ORDO SECLORUM” significa, “nova ordem para os séculos dos séculos”. Em outros termos: nova ordem mundial. E “ANNUIT CŒPTIS” significa : “nosso projeto será coroado de sucesso” . Franklin Roo-sevelt em 1933 ordenou que se introduzisse esse símbolo nas notas de 1 dólar.Roosevelt foi presidente dos EUA, um dos 13 presidentes que eram Maçons.

Nota de um dólar (Figura 14): existe a imagem da pirâmide com o olho que tudo vê. Os maçons referem-se a Gadu (grande arquiteto do Universo),

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Obras de arte com significados maçônicos

A Pintura denominada “O cavaleiro da mão no peito” (Figura 15) é também conhecida como “o juramento do cavaleiro” é uma das mais famo-sas pinturas espanholas. O artista que a pintou é o Domenikos Theotoko-poulos, conhecido como El Greco por volta de 1584. Esta obra destaca-se como sendo a melhor representação do espanhol da Idade do Ouro. A iden-tidade do homem é desconhecida e o significado do seu gesto remete à ma-çonaria. O sinal que o homem faz com sua mão direita sobre o peito apre-senta os dedos médios e anular unidos e os demais afastados. O gesto do cavaleiro é um sinal ritualístico ou também conhecido como um sinal maçônico

Aleijadinho que também era maçom foi um artista que incluiu sinais maçônicos em muitas de suas obras, entre elas as esculturas dos profetas concluídas em 1805.

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A figura 16 é uma escultura em pedra sabão do profeta Jeremias com a mão direita mantendo os dedos médios e anelar unidos sendo os demais afastados. A mesma representa um homem de meia idade, com bigodes longos, vestindo tú-nica curta, que possui o manto levantado sobre o ombro direito, caindo até os pés na parte superior. Observa-se na escultura, o sinal maçônico nos dedos unidos do profeta ao segurar o pergaminho. Esta escultura está localizada junto com os outros profetas no adro Santuário de Jesus dos Matosinhos em Congonhas do Campo.

A figura 17 representa a famosa pintura de Michelangelo deno-minada A Criação de Adão, locada na Capela Sistina no Vaticano.

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Em destaque na figura 18 a seguir se percebe o fato que a imagem de Deus cer-cada por anjos e tocando o dedo de Adão se parece com o cérebro humano e represen-ta o lobo frontal, quiama óptico, tronco cerebral, hipófise e outras partes do órgão.

Na figura 19 em destaque, observam-se os dedos do meio de Deus e Adão são mantidos juntos, enquanto os dedos indicador e mindinho são separados. Esse gesto faz com que pareça um M que representa a Ma-çonaria que é uma das mais velhas sociedades secretas; ricas na dissemi-nação de segredos e que possui mais de cinco milhões de integrantes.

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As figuras 20 e 21 representam a pintura Mona Lisa de Leonardo da Vince, Esta obra foi executada no ano de 1500. Atualmente através da pesquisa do Professor Vincheti Sil-vano que analisou com uma lupa, o quadro na Biblioteca de Nantes na França, foram encontradas as letras LV no olho direito e as letras CE ou BE (ainda não definidas com certeza).

Segundo o Professor Vinchete que analisou os olhos da Mona Lisa através de um manuscrito criptogra-fado que ensinava como ler os mes-mos, acredita –se que as letras LV podem significar as iniciais do autor Figura 20

Figura 21

da obra. O Professor afirma que se fazem necessárias, análises mais detalhadas pois as letras são minúsculas, somando com as informações do manuscrito criptografa-do para que se descubra a mensagem que Leonardo da Vinci quis transmitir em sua obra. Segundo o pesquisador, as le-tras podem também indicar o local onde poderia estar enterrado o santo Graal.

A Figura 22 mostra a pintura “A última ceia” de Leonardo da Vinci, onde

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aparece uma imagem oculta no quadro. Foi observado que ao lado direito de Jesus surge uma imagem de um templário e no centro do mesmo, a figura da Virgem Maria. Nesta pintura aconteceu uma coincidência de pontos que Pesci Slavisa, acredita que não pode de modo algum ter acontecido casualmente , mas sim que foi feito um cálculo preciso do pintor. O recurso utilizado pelo Slavisa para esta descoberta foi copiar a imagem da santa ceia em papel translúcido e depois co-locar este papel por cima da imagem original. O mesmo pesquisador, cita que Leonardo da Vinci gostava de escrever da direita para a esquerda e colocar ima-gens em seus diários que só poderiam ser interpretadas se um espelho fosse usado.

Nesta obra de Leonardo, a direita de Jesus está retratada a imagem de uma mulher de vestes azuis e manto vermelho e entre ela e Jesus surge um espaço onde se enxerga a letra M de maçonaria conhecido como sinal maçônico. Destaca-se também que Jesus usa vestes vermelhas com um manto azul. A pintura da Mu-lher é interpretada como sendo a apóstola e esposa de Jesus, Maria Madalena.

Na figura 23 aparece uma pintura da Santa Ceia com a presença de um bebê destacado que foi escondido durante séculos no meio da roupa e do pesco-ço de Judas. A forma e tamanho do pescoço e ombro de Judas se vê um pouco maior do normal. Isto define a curva da parte superior da cabeça do bebê. As três cores vistas em sua roupa, fazem que sobressaia levemente entre os demais. Jesus, ao igual que os outros discípulos têm somente duas cores em suas vestes.

Na figura 24 é retratado o discípulo Andre olhando direta-mente para o bebê, e nas suas feições destaca-se a sua surpresa.

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A Figura 25 representa o quadro de São Simão, outra pintura de Leo-nardo da Vinci. Ao ser refletido através de um espelho, aparece à própria ima-gem de Leonardo da Vinci entre São Simão e a imagem refletida do mesmo.

A Figura 26 representa a pintura de Leonardo da Vince, caracterizado como templário.

A romã é um dos símbolos mais autênticos e tradicionais da Ordem Maçô-nica. Nos templos maçônicos as Colunas simbolicamente unem a terra com o céu. Cada romã passou a ser a representação de uma Loja maçônica e de sua uni-versalidade. Suas sementes representam os Irmãos unidos pelo que é bom, pelo que é sábio, pelo que tem força e beleza, e pelo ideal comum. Argan (2003,p130) observa que, quando a forma artística contém um núcleo de realidade ou de co-nhecimento, este se revela em qualquer que seja o tema ou a técnica.

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Na figura 27, o menino Jesus no colo de Maria segura uma romã que re-presenta a união maçônica, onde os irmãos estão profundamente ligados uns aos outros e unidos pelos mesmos ideias.

A pintura Salvator Mundi (Figura 28) foi realizada por volta do ano de 1500. Robert Simon, doutor em História da Arte da Universidade de Columbia, para certificar a procedência do quadro. Depois de cinco anos de investigação,

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Robert Simon anunciou oficialmente que após o quadro ter sido analisado por vários especialistas internacionais, todos chegaram à conclusão de que Salvator Mundi é o original pintado por Leonardo da Vinci. Existem dúvidas sobre a bola de cristal que Jesus segura na mão e porque a mesma tem três pontos em formação triangular. Como já visto nos símbolos maçônicos os três pontos representam: luz, trevas e tempo; passado, presente e futuro; sabedoria, força e beleza; nasci-mento, vida e morte; liberdade, igualdade e fraternidade.

O escultor Frédéric A. Bartholdi construiu a imponente Estátua da Liberdade (Figura 29). Tornou-se patente que ele incorporara símbolos da Maçonaria seu pro-jeto: a tocha; o livro em sua mão esquerda; o diadema de sete espigões em torno da ca-beça, como também a tão evidente inspiração ligada à deusa Sophia, que compõem o monumento como um todo. Este fato não é grande surpresa, visto ele ser maçon.

Conclusões

Ao se pesquisar sobre a Influência da Maçonaria sobre os artistas, percebe-se claramente que a mesma foi profundamente significativa sobre os mesmos onde foram introduzidos símbolos e significados maçônicos em suas obras. Os artistas que pertenciam a maçonaria enviaram suas mensagens através dos séculos aos seus irmãos e ao mundo, sendo que ainda hoje se investiga os significados das mensa-gens ocultas nas artes. Destaca-se também que a maçonaria influenciou também o filatelismo, outro imenso campo de pesquisa de mensagens transmitidas a partir das imagens. Importante citar que não foram colocados neste capítulo todos os símbolos da ordem maçônica, mas registra-se que muitos mais existem e estão presentes em todas as partes do mundo.

Referências

ARGAN G.C. Clássico e Anticlássico. São Paulo:Companhia ds letras,1999)ASLAN, Nicola. O Simbolismo. In: O Fio de Prumo. Ponta Grossa, Ano 1, nº 5, Outubro de 2001, p.5-6.CAMPANHA, Luiz Roberto. A Filosofia e a Análise dos Símbolos. In: Caderno de Pesquisas 20. Londrina: A Trolha, 2003. p.33-40; Dicionário dos Símbolos, de A. Gheerbrant e J. Chevalier, Editorial Teorema, 1994, ISBN 978-972695215KAPFENBERGER FILHO, Francisco. Simbolismo. In: O Fio de Prumo. Ponta Grossa, Ano 1, nº 9, Março de 2001, p.7-8;NUT-SA-TEFNUT, Soror. Introdução à Maçonaria. 2001,p.1’ VAROLI FILHO, Simbologia e Simbolismo da Maçonaria. Londrina: A Trolha, 2000.http://www.noesquadro.com.br

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