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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH THOMÉ MENDES RIBEIRO BISNETO URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da União Soviética – 1961-1982 FLORIANÓPOLIS, 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

THOMÉ MENDES RIBEIRO BISNETO

URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO

O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da

União Soviética – 1961-1982

FLORIANÓPOLIS,

2021

THOMÉ MENDES RIBEIRO BISNETO

URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO

O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da

União Soviética – 1961-1982

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação

em História da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt

FLORIANÓPOLIS,

2021

Thomé Mendes Ribeiro Bisneto

URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO

O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da

União Soviética

O presente trabalho em nível de Mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora

composta pelos seguintes membros:

Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr.

Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Alexandre Busko Valim, Dr.

Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Lauro Meller, Dr.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. André Pereira Leme Lopes, Dr.

Universidade de Brasília

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado

adequado para obtenção do título de Mestre em História Global.

____________________________

Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________

Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr.

Orientador

Florianópolis, 20 de agosto de 2021.

AGRADECIMENTOS

Finalmente, após quatro anos de intenso trabalho e conciliação da atividade

pesquisadora, nesta sexta-feira, após uma categórica Banca de Defesa oficialmente, este que

vos fala é: Mestre Em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade

Federal de Santa Catarina.

Em tempos de caos e incerteza, ter sustentado a postura irreverente e resiliente se fez

fundamental para alcançar este objetivo. E para isso, ter contado com excelentes insumos

demonstrou-se algo sublime – portanto, endereço agora meus agradecimentos para tais.

Agradeço sobejamente à minha família, por terem tido total reciprocidade com minha

estirpe: do sarcasmo ao fascínio, dos debates às consonâncias, do apoio até as exigências, com

vocês as dicotomias se faziam oposições complementares, disposições salutares e composições

instigantes. Meus pais, Nelson e Salete, me proporcionaram a base teórica e o amor pelo saber

em alinhamento com toda uma desenvoltura para me expressar; enquanto meus irmãos, Nelson

e Rita, me forneceram as interlocuções preliminares para debater ideias e afirmar a

personalidade – vós sois meu exemplo basilar, caríssimos. À minha esposa, Indaiá, só lhe posso

ser correspondente no empenho e sonhos, nos planos e no fascínio por descobertas históricas

intrigantemente instigantes (e por toda a paciência e entusiasmo com cada conquista),

observando que meus filhos (Amora Victhória, Theodoro e Dimithri) me foram mestres,

sobretudo, com seu ‘aprender’, pois parafraseando um velho mestre, ‘todo aquele que aprende

[filho] ensina ao aprender, também um pouco, á aquele que aprende, portanto, ao ensinar [pai]’

– vós sois meu conitnuum, portanto. Ao meu fiel amigo canino, at last, but not least, Bob, lhe

agradeço a confidente companhia e ora ruidosa, ora silenciosa psicologia do seu jeito autêntico

– tal como o paradigma daquilo que eu conflituo a coexistr no âmbito social. A vocês, cada qual

ao seu quinhão, muito me fizeram maior, e queira eu, ter-lhes correspondido ... Grato!!!!!

Não menos grato ao meu Orientador, Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt, cujas reticências

embora poucas houvessem, nunca foram maiores do que o crédito em meu potencial e no trato

imparcial quanto à criticas e reconhecimentos. Ter me concedido a honra de poder ingressar na

empreitada historiográfica, onde pude estar a abordar um assunto que tanto prezo (cultura,

música e dissidência, ou traduzindo, minha saga pelo Rock na URSS), foi um privilégio, aviado

apenas por termos nos reconhecido como mútuos observadores críticos dessa 'fine art' rebelde

e inusitada: o Rock N' Roll (aonde quer que se manifeste). Frank Zappa e David Bowie

poderiam entender ...

Sem menor quilate, agradeço com grande relevo aos caríssimos Doutores Alexandre

Valim (UFSC), André Pereira Leme (UnB) e Lauro Vanderlei Meller (UFRN)], cuja articulação

em colocare-se tão prontamente em favor da proposta inusitada, avalia-la, sorvendo-a e me

oportunizando essa possibilidade de debate e adorável colóquio, se fez enaltecedor,

maravilhante e fantástico!! Bravo, caríssimos: muito grato!!!

De modo muito especial, aproveito a agradecer o trabalho e a iniciativa corajosa dos

heróis do rock de múltiplas gerações, sem os quais, não poderia estar a fazer este trabalho.

Lennon, Berry, Richard, Mercury, Bowie, Zappa – and still here – Gillan, Vedder e Dylan:

thank you all!!

Com destaque especial, agradeço aos músicos da antiga URSS, Yuri Schevchuk, Stas

Namin, Yuri Ermakov, Andrei Makarewicz e Boris Grebenschichikov. Sem olvidar os

estelares, Yuri Morozov, Viktor Tsoi e Vladimir Vysotsky. Spacibo, tovaricz!!!

Grande abraço, terráqueos, Ziggy Stardust está na linha, tenho que desconectar ....

Evocar em um certo alguém um sentimento que outro alguém haja experimentado e tendo evocado

neste, então, através de movimentos, linhas, cores e sons, ou formas expressas em palavras, poder transmitir o mesmo sentimento pelo outro sentido em sua experiência – eis o propósito da arte.

Arte é uma atividade humana que consiste nisso, aquela em que um sujeito conscientemente, por meio

de sinais exteriores, entrega para os outros sentimentos pelos quais ele passou, para que essas outras pessoas possam ser infectadas [zarazhenie] por estes sentimentos e também possam desfrutar-lhes.

Leon Tolstoi, em O Que É Arte?, de 18961

Na República Soviética operária e camponesa, toda a organização da instrução, tanto no domínio da instrução política em geral, como, mais especialmente, no domínio da arte, deve estar impregnada do

espírito da luta de classe do proletariado pela realização vitoriosa dos objectivos da sua ditadura,

isto é, pelo derrubamento da burguesia, pela supressão das classes e pela eliminação de toda a exploração do homem pelo homem.

[...] O marxismo conquistou a sua significação histórica universal como ideologia do proletariado revolucionário porque não repudiou de modo algum as mais valiosas conquistas da época burguesa,

mas, pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de

desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos. Só o trabalho efectuado nessa base e nesta

mesma direcção, inspirado pela experiência prática da ditadura do proletariado como sua última luta contra toda a exploração, pode ser considerado como o desenvolvimento duma cultura

verdadeiramente proletária.

Vladimir Ilych Ulyanov – Lênin, em Projeto de Resolução, de 19202

Eles me criticam por dizer 'Power To The People' e dizem que nenhuma parcela social deveria ter o

poder. Bobagem. O povo não é uma parcela. O povo significa todos.

Eu acho que todos deveriam possuir tudo igualmente e que as pessoas deveriam possuir parte das

fábricas e deveriam ter alguma palavra a dizer sobre quem é o chefe e quem faz o quê. Os alunos

deveriam poder selecionar professores.

Pode ser como o comunismo, mas eu realmente não sei o que é o verdadeiro comunismo.

John Lennon, em entrevista à revista Hit Parader, em 19723

1CUSHMAN, 1995; p. 102 2LÊNIN, V. I. Projecto de Resolução (08 de outubro de 1920) [Publ. Orig. na revista Krasnaia Nóv, nº 3, em

1926]; In: V. I. Lenine - Obras Escolhidas; t. 51, 5ª edição, Ed. Edições Avante, Lisboa, 1977. pp. 336-337;

Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/10/08.htm; Acesso em: 20/06/2021 3LENNON, John; Alan Smith (New Musical Express). John Lennon Interview: Hit Parader Magazine, february

1972. USA; In: SPANGLER, Jay. The Beatles Ultimate Experience; Disponível (em inglês) em:

http://www.beatlesinterviews.org/db1972.02jl.beatles.html; Acesso em: 20/06/2021

RESUMO

O presente trabalho, tem por objetivo abordar o fenômeno do rock na União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas – URSS, desde seu ingresso (em 1957), passando por sua primeira

realização (em 1961) e realizando a cobertura de seus eventos até o final do governo do

secretário-geral Leonid Brejnev (em 1982). Dentro desse recorte temporal, preconiza-se

investigar sob quais influências esse fenômeno tenha sido possibilizado, seus atores locais, as

condições materiais e culturais, bem como o papel das reformas levadas à cabo pelos

mandatários soviéticos ao período – no caso, o ‘Degelo’, sob Nikita Kruschev (1953-1964) e a

‘Zastoya’ sob Leonid Brejnev (1964-1982) – através de um cenário Oriental que passava por

transformações e ainda se encontrava incidido da bipolaridade da Guerra Fria. A prospecção da

pesquisa, procura focar, mais especificamente no caso da RSFS da Rússia, através do estudo da

cena universitária do rock em Moscou (durante os anos 60) e um olhar sobre a cena

underground do ritmo em Leningrado (situada à anos 70), passando por eventos que ao tema

incidentes e correlatos – como a Beatlemania, Magnitofonnaia Kul’ tura, Bigbit, VIA, Tusovka

e Bard Rock. Para essa abordagem, com relevo, utiliza-se dos conceitos de disposição estética

em Bourdieu (1982), subcultura em Gordon (1940), agência em Thompson (1987), e cultura

em Williams (1969). Bem como conta com o suporte material inicial encontrado nas obras de

Thomas Cushman (1995) e Vladimir Marochkin (2011).

Palavras-chave: rock; rock soviético; tusovka; bard rock; VIA

ABSTRACT

The present work, aims to address the phenomenon of rock in the Union of Soviet Socialist

Republics - USSR, from its entry (in 1957), through its first local realization (in 1961) and by

covering its events until the end of the government of the General Secretary Leonid Brezhnev

(in 1982). Within this time-lapse, it is recommended to investigate under which influences this

phenomenon was made possible, its local actors, the material and cultural conditions, as well

as the role of the reforms carried out by the Soviet leaders at the time - in this case, the 'Thaw'

under Nikita Kruschev (1953-1964) and the 'Zastoya' under Leonid Brezhnev (1964-1982) –

through an Eastern scenario that was undergoing transformations and still faced with the

bipolarity of the Cold War. Prospecting the research seeks to focus, more specifically on the

case of the Russian SFSR of Russia, through the study of the university rock scene in Moscow

(during the 60s) and a look at the ‘underground’ rhythm scene in Leningrad (situated in the

70s), passing through events to the theme incidents and correlate – such as beatlemania,

magnitofonnaia kul'tura, bigbit, VIA, tusovka and bard rock. For this approach, with relief, one

uses the concepts of aesthetic disposition as found in Bourdieu (1982), subculture in Gordon

(1940), agency in Thompson (1987), and culture in Williams (1969). As well as the initial

material support found in the works of Thomas Cushman (1995) and Vladimir Marochkin

(2011).

Keywords: rock; Soviet rock; tusovka; bard rock; VIA

Lista de Figuras

Figura 1. Capa do álbum Strannye Ânguely (Strange Angels), do artista soviético Yuri Morozov. ..153 Figura 2 Capa alternativa do álbum Strannye Angely (Strange Angels) de Yuri Morozov. .............155 Figura 3 Capa do álbum The Cherry Garden of Jimi Hendrix de Yuri Morozov (1973). ..................156

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

PRIMEIRA PARTE: LEON, LÊNIN, LENNON 19

1.1 THE BEATLES KNOCK AT THE (BACK) DOOR OF KREMLIN: EXPLICAÇÕES,

ORIGENS E MEMÓRIAS DO ‘FAB FOUR’ NA VANGUARDA DE INFLUÊNCIAS DO

ROCK DA URSS 19

1.2 UM INUSITADO ENSAIO DE ROCK: DA CULTURA OCIDENTAL À POSSÍVEIS

HIPÓTESES SOBRE A COMPOSIÇÃO DA CENA MUSICAL SOVIÉTICA 27

1.3- CONSIDERAÇÕES BREVES A UMA TRAJETÓRIA DO ROCK EM SEU INÍCIO –

DO MACARTHISMO A MCCARTNEY 39

1.3.1 Primeiramente, ao Macarthismo: ou entendendo o ‘palco’ da Guerra Fria com seu

quadro político econômico aquecido, a Bipolaridade e aspectos que fomentariam as

características de berço do rock 41

1.3.2 E finalmente, a McCartney: ou do surgimento do rock em meio ao cenário social

Ocidental do início da Guerra Fria 46

1.4 O PRÓLOGO DO EPÍLOGO: A CONSTRUÇÃO DAS ESTRUTURAS DA CULTURA

SOVIÉTICA – UMA FUNDAÇÃO CONCRETA, REALISTA E DURADOURA 62

1.4.1 Entre Estampidos e Marteladas: O marcial e o proletário na Música Realista

Concretista Soviética sob Stálin 74

1.5 ON THE ROCKS: OS POLÊMICOS ASPECTOS DO DEGELO DE KRUSCHEV

ABREM CAMINHO PARA O ROCK N’ ROLL 83

SEGUNDA PARTE: DO DEGELO À DÉTENTE 91

2.1 1960´S LADO A: KOMSOMOL E O CONSUMISMO: OU A URSS A CAMINHO DAS

ESTRELAS 91

2.1.1 The Rocket and The Rock - Ensaios e Experiências: Dos satélites até Moscou, nomes

de músicos e bandas de rock da URSS de 1961 a 1970 93

2.1.2 Experiências de Consumo: Um Esclarecimento Histórico, uma Magnitofonnaia

Kul´tura e um fisiologismo com a produção estatal 107

2.1.3 Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo (... mas não sem Resistência) 124

2.1.4 Experiências de Retiro: hippies e rock soviético experimentalista 142

2.2 1960'S LADO B: O REVERSO DA MEDALHA – OU OS LIMITES DO PROCESSO

(CONTRA) CULTURAL 164

2.2.1 Amigáveis Informantes: Os Druzhinniki e a frieza do Degelo 165

2.2.2 Uma Forma Muito Interessante de Psicose: o raio-x de uma abordagem nada

amigável – entre a voz de um bardo e o eco do manicômio estatal 171

2.2.3 O Degelo em Números: crescimento urbano, cenário econômico e condicionantes à

circulação de cultura na gestão Kruschev [uma ascensão meteórica e o despencar de uma

estrela] 183

2.2.4 Uma Queda A 70.000 Pés: A Guerra Fria esquenta o Degelo, o Perigo Nuclear e o

Começo do Fim da Era Kruschev 187

2.3 UM COMPACTO DE TRÊS ESTRELAS: O TERCEIRO LADO DOS ANOS 1960 –

BEATLES, BREJNEV E ВИА OU COMO O ROCK SOVIÉTICO SE TRANSFORMARIA

DE SUBCULTURA EM PRODUTO CULTURAL – PARCIALMENTE 191

2.3.1 Brejnev e o Bloqueio à Desestalinização: O breve Resfriar da Liberdade de

Expressão e o brevíssimo Reaquecer da economia 193

2.3.2 O Resfriamento em Brejnev: o Processo Sinyavsky-Daniel 195

2.3.3 O Aquecimento da Economia em Brejnev: o Ministro Kosygin, os passos tortuosos

para o incremento das condições de vida na URSS e outras questões sociais pertinentes

198

2.3.4 ВИА: Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль – VIA: Conjuntos vocais

instrumentais ou Eram os rockeiros cosmonautas!? 203

TERCEIRA PARTE: ENTRE A SALA, A COZINHA, O LABORATÓRIO E A

SARJETA 211

3.1 O FALCÃO E AS FLORES ANTE A MÁQUINA DO TEMPO E O AQUÁRIO: UM

RECORTE PANORÂMICO DO ROCK NA URSS NO PERÍODO 1965-75 COM FOCO NAS

TRANSIÇÕES SOCIAIS E MUSICAIS PROTAGONIZADAS POR QUATRO

IMPORTANTES BANDAS LOCAIS 211

3.2 ENQUANTO UM FALCÃO SOBREVOAVA, MOSCOU FLORESCIA: O PRIMEIRO

ROCK, PRIMEVAS GUITARRAS E (IM)POSSIBILIDADES PARA MÚSICOS

PROFISSIONAIS E NÃO-PROFISSIONAIS NA URSS 213

3.3 SOBRE NOBRES PEDAÇOS DE MADEIRA E PATACAS DO VIL METAL:

RELAÇÕES ENTRE A CONFECÇÃO DAS GUITARRAS, PRODUÇÃO INDUSTRIAL-

ARTESANAL E ACESSIBILIDADE DE CUSTO NA REALIDADE ECONÔMICA

PLANIFICADA DA URSS DOS ANOS 1970 221

3.3.1 Um Relato Sobre o Comércio de Guitarras na União Soviética e Bloco do Leste na

Década de 1970: Refletindo-se acerca de ‘grana’ e aquisição de ‘ferramentas do rock’

produzidas no Bloco Oriental 223

3.2.2 Do Hardware ao Hardwork: Sobre Pickups/Captadores e Fiação das Guitarras

Soviéticas [ou o Underwood do Underground] 232

3.4 A TRILHA SONORA DE UMA CRISE: O JINGLE ESTATAL A URSS É MEU

ENDEREÇO E DEPOIMENTOS DE PESO EM MEIO A UM TURBILHÃO CULTURAL E

O ‘LONGO INVERNO’ DE UMA ECONOMIA ESTAGNADA 236

3.4.1 Lecionando uma Cruzada Conformista: Cifras de um comércio dirigido, claudicações

sutis e um crime organizado – num subúrbio nem tanto – ladeando as origens da Campanha

Estatal em apoios sociais conservadores 244

3.5 Da Máquina do Tempo ao Aquário: O terreno subterrâneo germinado entre Leningrado e

Moscou, o ácido sabor de um ‘Rock na Cozinha’, o bard rock e o significado de Tusovka 250

4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS 267

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 274

ANEXOS 287

14

INTRODUÇÃO

O trabalho aqui principiado, teve seu início durante os eventos de 2017 e 2018, onde

uma vez mais, no cenário brasileiro chegariam notícias de movimentações inquietantes

provenientes da Rússia. Naquele momento, a manchete anunciava as manobras militares

conhecidas como Vostok (2018), ribombando em situações como a retomada da Criméia (da

Ucrânia) e exercícios militares provocantes à OTAN – trazendo nisso, ecos há tempo

esquecidos, do evento da Guerra Fria. A dissolução da URSS (em 1991) e interpretações

precipitadas em torno do evento global, haviam, ilusoriamente, permitido negligenciar

conhecer-se um pouco mais da banda Oriental. Revolvendo-se a camada de obscurantismo que

vigera durante toda bipolaridade entre URSS e EUA, tendo alimentado contrastantes

especulações de pesadelo e fascínio à diferentes observadores, passava a aparecer, do fim do

cenário das tensões de outrora, um ainda intrigante ponto no mapa por se desvendar – um que

tão geograficamente distante do Brasil, quanto ainda culturalmente desconhecido.

No entanto, cumulando interesses pessoais de trajetória (estudos no Cinema Soviético e

a proveniência de uma cidade catarinense de forte presença da cultura caucasiana, Porto União,

terra de descendentes poloneses e ucranianos, situada no Planalto Norte do estado) com os

eventos que traziam ao noticiário um estímulo revigorado em se compreender a trajetória da

sociedade russa (de hoje e de outrora), surgiria o interesse em proceder uma investigação

histórica e cultural situada geograficamente em sua porção. O que, somado a um gosto pelo

peculiar e inusitado, acabaria por firmar a decisão em um tema polêmico e obscuro: o trânsito

cultural, pouco conhecido, do rock na URSS, em plena Guerra Fria e sua assimilação local

segundo tensões e condições estruturais, desde a década de 1960.

Daí por diante, o presente trabalho abordaria este tema inusitado a partir das seguintes

premissas: teria havido um rock soviético? Em tendo-o havido, como fôra possível, levando-se

em consideração a estrutura ideológica soviética e o antagonismo bipolar da Guerra Fria? E

por último, em algum momento, como ocorrera tal assimilação, e como este ritmo,

eventualmente, pudesse ter sofrido algum tipo de absorção e uso pelo aparato estatal da URSS?

Tais inquietações que motivariam esta pesquisa, não viriam sem causa, pois ao

investigar fenômenos de cultura da produção soviética (no caso, do Cinema Oriental), travaria-

se contato com o período conhecido como Degelo: uma fase de distensão entre URSS e EUA,

propiciada pela assunção de Nikita Kruschev e o princípio de reformas políticas e sociais – num

panorama denominado de Coexistência Pacífica.

A partir daí as dúvidas cresceriam, contemplando preencher lacunas deixadas pela

15

posição de observador alheio ao cenário das superpotências – onde daqui, do Brasil, apenas

pelas notícias superficiais e com toda a carga de influência de uma histórica hegemonia

narrativa pró-Ocidente, consequentemente, se obteria apenas resquícios de versões cheios de

lacunas acerca do funcionamento da sociedade soviética.

Seria por isso, então, que a pesquisa se nortearia por uma busca ampla por respostas: tão

ampla quanto a desinformação acerca da cultura e sociedade da URSS, tentando em meio a

tudo, rastrear o objeto de pesquisa – rock soviético – contornando-lhe uma fisionomia,

minimamente crível, honesta e factível de se compreender.

Foi com esse esforço que o trabalho se realizou, tentando em cada parte, perseguir

explicações que situassem o fenômeno, mundialmente – por seu teor de choque cultural ou

trânsito de informações – e localmente – por suas características de sociedade planificada,

controlada e dirigida segundo toda uma ideologia e aparato desconhecidos do autor.

Deste modo, explicando as etapas do trabalho, seu recorte temporal se propões a

investigar eventos situados entre dois marcos importantes ao tema: a criação da primeira banda

soviética (em 1961, na Letônia), sob a gestão do secretário-geral Nikita Kruschev, e a transição

do rock underground soviético para o cenário ‘mainstream’ da URSS, durante o final do

governo de Leonid Brejnev (em 1982). Com efeito, o intuito da Primeira Parte seria apresentar

a chegada dos Beatles à URSS, como forma de introduzir a discussão de quais seriam as

condições que precipitariam a isso. O rock ingressara antes do ‘fab four' e já possuiria alguns

exemplares locais tentando seus acordes. Entretanto, somente com o advento dos Beatles, já

situado durante o governo sucessor (1964) é que se poderia fazer uma perspectiva acerca da

magnitude do movimento, contrapondo-o a outros elementos no cenário interior e exterior.

Seria desse momento em diante, que amparada no fenômeno da Beatlemania, a realização local

do fenômeno ganharia vulto – tornando-se necessário conhecer a natureza dessa influência, para

ao entendê-la, delinear o caráter de sua dimensão. Ainda na primeira parte, por este ínterim,

trabalha-se num movimento pendular de epílogo e prólogo – começando com um epílogo sobre

a relação dos Beatles com a União Soviética. Em seguida, compara-se características do

fenômeno com a da realidade soviética (tentando entender sua afinidade), passa-se a um breve

retrospecto das origens do rock e sua importância como uma resposta à diferentes tensões, até

chegar-se a uma investigação mais detalhada sobre as estruturas que o antecederiam na

realidade soviética (o Realismo Concretista, à década de 1940), e suas possibilidades de

sedimentação a partir do Degelo (entre os bens de consumo à Coexistência Pacífica).

Mais à frente, na segunda parte, recobrada parte da estrutura que precipitara o rock, seu

contato e sua entrada à URSS, passaria-se a investigar os detalhes da estrutura social, política e

16

econômica da URSS, dentre o Degelo de Kruschev e a transição à Brejnev. Onde para entender

a fisionomia do rock local, se o faria situando numa analogia ao Long Play, evocando na

metáfora seus contrastes (Lado A e Lado B) e considerando informações de, um lado, em seu

âmbito social, junto à hábitos de consumo, de produção e circulação alternativas, de

consagração de músicos e de experimentalismos, enquanto de outro, se consideraria abordar a

circunstância política e econômica determinada, observações sutis por novos operadores civis

em nome do Estado, e uma transformação econômica que colateral a uma expansão urbana

(fundamental ao rock, posto que ritmo de cena urbana). Transitando em meio à Guerra Fria,

choques geracionais e de identidade em relação à nova música e uma parábola entre as relações

Ocidente-Oriente – recomporia-se um período que começara com eventos de boa-vontade e

cooperação, mas que devido à competitividade acirrada (com a Corrida Espacial e

Armamentista), se deterioraria em um quadro de novos tensionamentos.

Em conclusão à segunda parte, chegaria-se a um ‘compacto’, como um disco solo, onde

a estrela seria a da gestão de Leonid Brejnev, contemplando uma série de reformulações

culturais e sociais (da Economia à Liberdade de Expressão), e como seriam estas relacionadas

ao rock local: como a alternativa estatal ao rock, o VIA (sigla de vocalnye instrumentalnyi

ansambl; conjuntos vocais instrumentais) – alternativa estatal que em prenùncio à guinada

conservadora de logo a seguir (virada dos anos 70).

Na terceira parte, após olhares mais panorâmicos acerca do movimento, se migraria a

‘lente’ para a circunstância de personagens mais localizados, ambientados nas capitais Moscou

e Leningrado, e ilustrados a partir do estudo por sobre o acompanhamento da biografia de

grupos e a implementação da confecção e circulação de instrumentos voltados ao rock na

URSS. Quanto à perspectiva do acompanhamento, situaria-se em quatro importantes grupos

do rock soviético: Sokol, Tsvety, Machina Wremenyi e Akvarium – cujas histórias, em percurso,

ajudariam a compor a fisionomia do movimento cultural da música entre a juventude no período

de cobertura do final dos anos 60, pela década de 1970 adentro e ao final do governo Brejnev.

É nessa década que se situam as transformações de fase mais importantes no cenário do rock

local, como a Estagnação Econômica, um conservadorismo revigorado, o uso estatal do rock

em uma campanha musical (A URSS É Meu Endereço, de 1972-3) e a bifurcação do rock

anterior em duas vertentes: de um lado a produção autorizada e comercial do VIA (patrocinada

pelo Estado e situado em Moscou), e do outro o surgimento de um robusto movimento

underground, alternativo e contraventor (produzido numa ‘guerrilha cultural’, da escassez e

situado na cidade de Leningrado).

Finalizando a terceira parte e precipitando as Considerações Finais, comentaria-se

17

acerca do cenário/movimento cultural chamado de tusovka e sua singularidade de causa junto

a um âmago soviético de compreensão da cultura, situada localmente em Leningrado, e

temporalmente no princípio da década de 1980, nos estertores da Era Brejnev, acompanhando

à recessão econômica e o princípio das reformas finais da União Soviética.

Com a ‘obsessão’ de entender a fisionomia do fenômeno cultural e avidez de

compreensão de uma sociedade considerada, em costumes, antípoda, desconhecida e exótica a

um brasileiro oriundo de uma formação escolar que apenas mencionara superficialmente as

características da URSS, somada à busca por entender como os eventos atuais de reavivamento

da Rússia no cenário internacional, mesmo à luz de um estudo sobre eventos inusitados como

o rock conectariam com essa trajetória social, política e cultural, se procederia essa pesquisa, A

partir desse escopo, aliado ao entusiasmo honesto em investigar a História, esse trabalho seria

realizado – conseguindo ao final, ao menos parcialmente, compreender a incidência, período,

características e personagens do rock na URSS – ainda a repercutir no cenário da cultura e da

sociedade locais.

Acerca do caráter referencial teórico adotado no desenvolvimento da pesquisa, cabe

mencionar que procurou-se trabalhar com o suporte de três conceitos principais: o de agência

– incidente em diversas menções na pesquisa – segundo Edward Palmer Thompson (em A

Formação da Classe Operária, 1987); o de cultura, segundo Raymond Williams (em Cultura

e Sociedade, 1969) e importantes contribuições do sociólogo Thomas Cushman (em Notes

From The Underground, 1995), cujas investigações acerca do tema da música, sociedade e

circulação/produção cultural em sua pesquisa sobre a década final da União Soviética,

ofereceriam interessantes saídas à realização composição dessa discussão sobre o tema, sua

cultura e sua história. E para o complemento crítico, perspectivando o cenário da cultura como

campo em disputa e ambiente de localização à grupos menores, buscou-se utilizar,

respectivamente, da disposição estética (segundo Pierre Bourdieu, 1982) e da subcultura

(conforme Milton Gordon, 1940).

Como esclarecimentos finais dessa parte introdutória, cabe frisar que a metodologia

empregada, contemplaria a remissão bibliográfica e procura aficionada por artigos e temáticas

relativas ao tema – que por fortuito das atuais tecnologias, contam além do suporte dos livros,

com farto (embora, por vezes, de difícil acesso) material informático – em sites, acervos e

bibliotecas digitais4.

4A destacar, dentre outros integrantes do acervo, os materiais oriundos dos trabalhos de autores como o jornalista

russo Vladimir Marochkin (2011; 2011c), do historiador ucraniano Sergei Zhuk (2012); do historiador Timothy

Ryback (1990), do jornalista russo Artemyi Troitsky (1987), do sociólogo estadunidense Thomas Cushman (1995),

18

No horizonte dessa empreitada, como barreira mais significativa, estaria também a

língua russa, cujo cirílico, alfabeto russo, demandaria horas de estudos em um curso de

Introdução Básica no idioma – complementado em alguns momentos, pelo suporte de

mecanismos de tradução e revisões bibliográficas de hermenêutica e gramática textual russa,

em acervos pertinentes a essa finalidade5. É por isso que muitos dos autores citados, dentre

outros fatores, constituem nomes ainda novos a pesquisa histórica nacional, cujo tema, ainda

não absorvido completamente pelo selo oficial de amplas produções bibliográficas, ainda se

encontra disponível, majoritariamente, em inglês ou em russo – no circuito acadêmico e popular

dos países que partilham sua comunicação nesses idiomas.

Tendo isso por dito, cabe mencionar como encerramento o papel da música como

importante elemento de encanto, entretenimento e entusiasmo ao longo da história observada e

mesmo durante a confecção do trabalho. Pois, em se tratando de anos caóticos, assombrados

por uma pandemia e horizontes incertos na política internacional, o expediente promissor

possibilitado pela música, mais que uma fuga, constituiria razão de ser dentre as incumbências

desenvolvidas em paralelo – que neste caso particular, da docência, do estudo, da pesquisa e da

paternidade – insuflando-lhes um novo sentido de esperança e energia (emprestando as palavras

do músico russo Boris Grebenshchikov), fundamentais à toda esta realização.

Рок Жив!! [O Rock Está Vivo !!] Viva o Rock!!

do historiador russo Vladymyr Rekshan (2015), sem olvidar depoimentos de músicos como SALNIKOV (2005),

MATSENOV (2017) e o acervo digital de fontes primárias Seventeen Moments of Soviet History (2003). 5Com destaque, o repertório angariado com o Curso de Russo: Do Básico ao Avançado, realização gráfico-digital,

coordenada pelo Prof. Vinícius de Oliveira Egídio.

19

PRIMEIRA PARTE: LEON, LÊNIN, LENNON

1.1 THE BEATLES KNOCK AT THE (BACK) DOOR OF KREMLIN: EXPLICAÇÕES,

ORIGENS E MEMÓRIAS DO ‘FAB FOUR’ NA VANGUARDA DE INFLUÊNCIAS DO

ROCK DA URSS

Eu tocava piano em casa, e então, sim, em Suvorovskoye6, nas minhas horas vagas aprendia a

dominar o violão. Era um desses de sete cordas, então dobramos a sétima atrás do braço, reforçando-

a com um fósforo, afinamos como um violão de seis cordas, ligamos os Beatles e "seguimos" Harrison e McCartney.

Stas Namin, fundador do grupo soviético Tsvety (‘Flores’), de 19697

A pergunta renitente sobre um tema como o evento de origem do rock na União

Soviética, em plena Guerra Fria, há de ser sempre a seguinte: como foi possível!? Nesse sentido,

no esforço de se responder com alguma justiça e melhor esclarecimento sua possibilidade, deve-

se começar a investigação com as lentes voltadas para um ponto específico da Europa Ocidental

(Reino Unido), onde um fenômeno de cultura global, todo sorvido e proporcionado pelas

circunstâncias que o alicerçaram e circundavam, acabaria por ser protagonizado e atingiria

dimensão inédita, sob qualquer mensura, na indústria cultural e na circulação de mídia, através

de um grupo de rock proveniente do distrito industrial de Liverpool: The Beatles. Seria à década

de 1960 que o rock ganharia juventudes extra-anglófonas, num terreno cercado de muitas

descobertas, importantes acontecimentos e intrigantes episódios, que tanto cultural, quanto

político-economicamente repercutiriam de modo indelével no cenário mundial – os quais,

pertinente e detalhadamente, serão objeto de análise nesse trabalho, ao longo de variados temas

relacionados ao estudo do assunto abordado.

Por ora, há que se elucubrar em torno do fato primordial dessa pesquisa, seu evento de

ignição, por assim dizer, numa investigação provocante e de difícil traçado de explicações:

Quais eram as características desse fenômeno de música no cenário da União Soviética, como

teria construído arranjos possíveis em meio à disputa da Guerra Fria e como seria sua relação

interna ante o aparato institucional estatal? A princípio, antes de mergulhar no deslinde de

tantas imbricadas questões, é necessário compreender como houve a chegada do ritmo

estadunidense (embora tendo feito escala na terra da rainha, ainda tido como elemento do

‘adversário’) em terras soviéticas – e a reboque de quais eventos. Neste ínterim, ao se pesquisar

acerca do tema rock soviético, é invariável encontrar-se recorrentes menções ao quarteto de

6Instituição de ensino superior de formação militar durante a URSS, situada em Moscou. 7VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]. Российская Газета (Rossiskaya

Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html. Acesso em:

30/02/2021

20

Liverpool. As fontes mais diretas acerca de datas, mencionam o rock n´roll como ingressado

na URSS em 1958 (durante o Festival Internacional dos Estudantes)8 e o surgimento de uma

banda autóctone em 1961 (os Revengers, de Riga, RSFS da Letônia)9 – portanto, durante a Era

do Degelo. Já a fonte que menciona a primeira abordagem local oficial sobre os Beatles (numa

revista soviética, a Krokodil) data de 1965 – portanto, durante a Era Brejnev (DIMITRIEVSKY,

1990). Pudera, na década em que o rock emergia na URSS como um movimento juvenil,

precedido pelas condições do chamado Degelo de Kruschev (secretário-geral antecessor do

então vigente, Leonid Brejnev), era o momento em que, simultaneamente, do outro lado das

tensões da disputa indireta, o quarteto britânico explodia ao redor do globo, com as gravações

de sucessos insofismáveis, tanto crítica, quanto comercialmente.

Assim, através do mercado alternativo, por revistas que passavam pela via de circulação

clandestina ou trazidos em bagagens de diplomatas soviéticos e seus filhos, os Beatles chegaram

à União Soviética, embalando sonoramente também àqueles jovens principiantes orientais da

batida frenética. Sobre os caminhos de aquisição desses materiais, principalmente os de cunho

fonográfico, deve se frisar que chegaria por mais de uma via, através do consumo de álbuns

contrabandeados (da Europa Ocidental) e também pelas estações de rádio (e mesmo de

televisão, cujas transmissões e acesso eram mais frequentemente acessíveis em países do Leste

Europeu, como a República da Romênia), visto que embora embaralhadas nos sinais de

transmissão (pelo aparato, através das torres interceptadoras da Gostelradio), em algumas

épocas do ano podiam ser mais facilmente capturadas as frequências de ondas longas das redes

ocidentais – (MAROCHKIN, 2011a).

Comentando acerca dessa circulação do produto cultural do rock, com fulcro no âmbito

do contrabando de discos, o jornalista inglês Pete Paphides, ao cobrir parte da experiência do

fenômeno do rock em terras soviéticas – em sua reportagem Bootlegs Pressed in X-Rays, ao

The Guardian, em 2015 – traz o depoimento de um jovem londrino à época, Rudy Fuchs, que

a partir de suas memórias oportunizou importante relato referente a articulação e modus

operandi dessa peculiar rede de contatos que desviaria, a partir da capital londrina, discos do

fab four à uma jovem rede contraventora:

Eu costumava fazer doações de sangue para receber uma soma em dinheiro. Com esse

dinheiro, eu comprava LP´s numa loja e repassava para os rapazes. Eu gostava de

8MALAKHOVA, Irina. Култура.РФ. Кто первым играл рок-музыку в России? [Trad. Livre: Site Kultura.RF;

Quem foi o primeiro a tocar o rock na Rússia?] (2013-2020); Ministério da Cultura da Rússia; Disponível (em

russo) em: http://culture.ru/s/vopros/rok-v-rossii/; Acesso em: 20/02/2021 9MAROCHKIN, Vladimir. Everyday Life of the Russian Rock Musician. BORISOV, Alexey. KORNEV, Oleg;

Shum.Ru Experimental Music In Russia. 2011. Disponível em: <http://shum.info/index/vladimir-

marochkin/vladimir-marochkin-everyday-life-of-the-russian-rock-musician/>.

21

fazer isso. O que mais circulava era Rock Around The Clock do Bill Halley and The

Comets e Boogie Woogie Boy [...], depois foi com os Beatles. Certa vez me

apanharam, as autoridades locais queriam que eu entregasse pra quem eu repassava o

material. Me recusei a responder. Fiquei detido. Mas por mim ninguém foi entregue.

[Tradução do inglês e grifos nossos]10

Ao longo da reportagem, o jornalista articularia como esse caminho tortuoso dos discos

londrinos, viria encontrar-se com ‘consumidores paralelos’ soviéticos. Ainda na mesma

reportagem, entrevistando a um colecionador de Londres, Stephen Coates, organizador de uma

exposição sobre os roentgenitzdat (os outrora citados, vinis piratas em chapas de raio-x da

URSS), o jornalista obteria mais memorabilia e depoimentos acerca do fenômeno da

beatlemania soviética. Durante a exposição, Paphides tomaria um conhecimento mais

prospecto da incidência do movimento do rock em terras orientais, o que o levaria, mais adiante,

a buscar em terras russas, maiores detalhes dessa memória cultural. Com sucesso, chegaria entre

outros relatos ao depoimento – curto mas eloquente – de um octogenário cidadão de São

Petersburgo (recordando os tempos do rock quando ainda Leningrado) Nikolay Vasim,

colecionador e integrante da cena leningradense de aficionados, que mais do que lhe mostrar

itens de sua coleção particular (entre discos, encartes e recortes de jornais e revistas) lhe

confessaria em termos diretos a importante presença dos Beatles na estruturação de influências

durante a URSS, ao enfatizar o apego da juventude local pela banda inglesa: ´Nós ouvíamos

muito os Beatles (mostra encartes de Paul McCartney, Ringo Starr, George Harrison e John

Lennon, dando ênfase ao mencionar este)´ – (PAPHIDES, 2015).

Nesse mesmo sentido, o sociólogo estadunidense Thomas Cushman, no livro Notes

From The Underground: Rock Music and Counterculture in Russia (1995) – importante

realização sobre o tema aqui dissertado e prolífico contribuinte em inúmeras informações e

relatos esclarecedores à composição desse fenômeno local/global de cultura – aponta diversas

menções referentes aos Beatles na trajetória do rock soviético. O vocalista da banda DDT, uma

das importantes protagonistas do cenário do rock russo soviético da década de 1980 (e que ainda

existente à atualidade), Yuri Schevchuk, cita em torno de sua memória de albores rockeiros (p.

55):

A minha biografia musical começou na cidade de Ufa, nos Urais Meridionais. Desde

a minha infância só possuía duas paixões – pela pintura e pela música. Eu ouvi Beatles

quando estava no quinto ano. Eu fui fisgado na hora. Isso ainda era no Cáucaso, e alguém me trouxe uma revista – havia alguns rapazes de guitarras nas mãos e cabelos

compridos. Então eu sintonizei a Voice of America, tentando encontrar algo naquilo

tudo, e quando eu escutei pela primeira vez, eu me recordo, fiquei em estado de

choque. Como um jovem rapaz eu senti a energia da época. Eu senti a fórmula. Eu

simplesmente não sabia que isso existia. Mas eu precisava disso. E eu ouvi Beatles,

Rolling Stones, Morrison, Lennon, e é claro, fiquei chocado. Como é isso possível?

10PAPHIDES, Pete. Bone music: the Soviet bootleg records pressed on x-rays. The Guardian. Edição: 29 de jan.

Londres. 2015.

22

Em algum lugar do podre Ocidente, onde tudo é ruim – conforme éramos ensinados

– onde todas as pessoas são ruins e burguesas, como é possível que haja pessoas que

cantem essas maravilhosas canções que me fazem chorar? Acho que foi a primeira

vez que me veio um pensamento antisoviético na cabeça [risos] [Tradução do inglês

e grifos nossos]

A citação pontua relevantes noções acerca do carisma juvenil do grupo britânico, mas

também ilustra e dá lastro às afirmações acerca dos meios de prospecção dessa cultura no

cenário local. A grande possibilidade ocasionada com o Degelo de Kruschev, seria essa do

contato, da possibilidade de ir conhecer, ainda que tortuosamente, o curioso e proibido mundo

estrangeiro Ocidental. A impressão da juventude, pessoal (nos encontros e festivais estudantis

e nas universidades inauguradas durante a década)11 ou de maneira interposta (pelos veículos

de mídia, consoante possibilidades e acesso a produtos do circuito cultural estrangeiro) mudaria

em torno do Ocidente, que outrora obscurantizado, agora podia ser conhecido com alguma

fisionomia mais positiva, ou ao menos, não tão exagerada quanto propunha a tradição

ideológica local.

Nesse sentido, estimulados pela ávida busca por informações (musicais, principalmente)

no circuito de rádio, não apenas a Voice of America seria procurada dentre as estações, mas as

rádios Free Europe e Free America, teriam sinais em ondas longas passíveis de alcançar o

território soviético – sendo pertinentemente, alvo de jamming de sinal pelas torres de

transmissão do aparato soviético. Naquele momento (1964), deve-se ressaltar, não apenas o

governo soviético recrudescia em torno da cultura, na URSS de um Brejnev, recém-empossado:

ao redor do mundo se ensaiariam princípios de cerceamento institucionalizado a elementos

políticos e culturais taxados como subversivos, como por exemplo, na América do Sul (sob o

escopo de regimes militares que se alinhavam aos interesses estadunidenses, como o Brasil), na

República Popular da China (prestes a vivenciar os eventos da chamada Revolução Cultural

11Como a Universidade da Amizade dos Povos, inaugurada em 1960, na porção meridional da capital Moscou

(renomeada em 1961, Universidade Patrice Lumumba, em honra do estadista congolês articulador do movimento

político pela libertação da República Democrática do Congo), que ofereceria bolsas de estudo e possibilidades de

intercâmbio a estudantes da Ásia, África e da América Latina, oportunizando o contato de toda uma diversidade cultural de personagens globais, de distintas culturas, dentro da sociedade urbana da URSS – somando-se a já

descrita diversidade experimentada por sua ampla composição em nações da federação soviética. Os programas

de intercâmbio forneciam aos visitantes um salário-estadia e todos os direitos de assistência de saúde e educação

proporcionados aos cidadãos soviéticos, integrantes do corpo discente acadêmico, procurando garantir assim a

possibilidade de instalação dos alunos e a demonstração de boa-vontade da política local com receptividade de

diferentes culturas – evidentemente, também servindo ao propósito do Secretário-Geral de tecer influência

favorável ao Socialismo a países há pouco saídos do colonialismo (de teores anti-imperialistas), passíveis de virem

a figurar como novos integrantes ou adeptos do regime soviético. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1968 - Third

World Friendships; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003).

Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1968-2/third-world-friendships/; Acesso em: 21/07/2020

23

Chinesa; 1965-1976)12 e nos supostamente livres integrantes da OTAN – onde nos EUA, que

havia uma década protagonizara o Macarthismo, ainda se experimentaria da polêmica tradição

de censura do Código Hays (1930-1968)13 em vários segmentos artísticos e culturais, enquanto

que no Reino Unido, rádios consideradas clandestinas e de conteúdo proibido, teriam de

encontrar a alternativa em veicular seus programas a partir de estações em barcos particulares

posicionados no limite das águas internacionais14.

Ainda assim, embalando juventudes ao redor do mundo, rompendo barreiras e

impulsionando a indústria cultural como nunca outrora (conforme mencionado no princípio

desse trabalho), os Beatles marcariam época e as trajetórias de jovens ao redor do mundo. Na

URSS, de modo indistinto, ao mencionar-se das motivações em torno da escolha pela vertente

do rock e a carreira musical, o nome seria pronunciado muitas vezes. Viktor (CUSHMAN,

1995; pp. 34-37), guitarrista russo, colocaria os Beatles como estopim de sua opção pela carreira

de músico, enfatizando o processo de imitação das bandas ocidentais como importante forma

de tornar frequente o hábito local do rock, antes da chamada fase de russificação (russificatsia)

do ritmo. O músico comentaria ainda, relacionando o quarteto a outros exemplares posteriores

– como o Deep Purple (grupo inglês fundado à década de 1960, estrelado pela voz de Ian Gillan

e a guitarra de Ritchie Blackmore, banda precursora de experimentalismos intensos e

característicos), ao lado dos coetâneos grupos do cenário britânico, Black Sabbath e Led

Zeppelin, frequentemente vinculados aos primórdios do estilo metal, e ao experimentalismo do

12HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX [1914-1991], 2ª edição. São Paulo: Companhia

das Letras. 1995. p. 268 13TRINDADE, Heidi. A História do Sistema de Censura no Cinema dos Estados Unidos e como ele funciona hoje.

Filme No Mundo. 2007. Disponível em: <https://filmenomundo.wordpress.com/2014/02/014/a-historia-do-

sistema-de-censura-no-cinema-dos-estados-unidos-e-como-ele-funciona-hoje/>. Acesso em: 21/07/2020. 14O filme britânico Pirate Radio (tradução brasileira: Os Piratas do Rock; 2009; Reino Unido), dirigido por

Richard Curtis, musicalizado por Hans Zimmer e estrelado por Bill Nighy e grande elenco, reconstitui parte desses

eventos, ao cobrir o dia-a-dia de uma rádio clandestina na década de 1960, tocada por Quentin (Bill Nighy) e seu

grupo de DJs e locutores rebeldes, que encontrariam uma forma inusitada de desafiar o establishment inglês. Num

esquema muito peculiar: fazendo funcionar uma estação radiofônica pirata em uma embarcação,

permanentemente, situada além do limite das águas britânicas, em alto-mar. A película trata, embora pelo recurso

da ficção, de um evento verdadeiro, sobre a existência de rádios piratas na programação europeia dos anos 1960, que contribuiriam a lançar importantes artistas e veicular materiais alternativos no circuito cultural europeu –

chegando às casas de uma juventude entusiasmada. Em seus pontos altos, a película conta com toda uma bonita

reconstituição que remonta desde as vestes até aparatos de rádio-estação e tecnologia, bem como personagens do

mundo do rádio e da música, sem olvidar a presença de linguajar próprio ao período (reconstituição do giriesco) e

uso constante de exclamações obscenas (muito correntes durante a irreverente programação). Um destaque

especial se deve à presença de canções marcantes do período (em geral, do cancioneiro do rock inglês influenciado

pela febre do estilo Mod), quase intermitentemente, embalando as transmissões. Da análise do filme, é possível

compor-se um pano-de-fundo ao registro de costumes em um momento de férvidas discussões sobre cultura e

contracultura, dramas pessoais, sociedade e conflito de gerações, que encontravam importância e evidência através

da música e faziam do rock, mais especificamente, sua grande caixa de ressonância.

24

estilo progressive rock, sem olvidar o T-Rex (grupo sessentista britânico do vocalista e

guitarrista inglês Marc Bolan, vinculada ao estilo glam rock inglês) – sobre a questão da

permanência desses elementos de cultura e diferenciações de cenário Ocidental/Oriental, os

quais, tal qual o quarteto de Liverpool, ficariam na memória e na prática ambiente soviéticas,

por conta do conceito de fixação cultural15. Consiste tal conceito em ferramenta sociológica

que opera de maneira contribuinte à análise entre cenários sociais distintos (econômica, cultural

e socialmente), quando observando uma predominância de algum elemento de cultura

específico oriundo de uma fonte emanadora (como um grupo ou canção provenientes da banda

Ocidental) em relação às transformações ocorridas nos cenários de recepção (como o cenário

da URSS, receptor dessas canções/bandas).

Nesse aspecto, estaria relacionada ao descompasso (lag; no sentido de atraso) entre os

eventos culturais ocorridos no comparado entre as diferentes sociedades da Guerra Fria, onde

partindo-se de uma perspectiva de falta de acesso a novos materiais no circuito fonográfico

soviético (principalmente estrangeiros), a periodização de troca desses em relação ao Ocidente,

seria muito menos frequente, fazendo com que certos nomes da música estrangeira não apenas

chegassem depois no cenário local, mas ficassem por mais tempo gozando do status de ícones

ao cenário rockeiro soviético, do que o aconteceria em outras regiões da Europa Ocidental ou

da América do Norte. Nesse sentido, a ausência de mercado fonográfico nos moldes capitalistas,

também contribuiria nessa fixação, pois, um mesmo material não teria de ser reposicionado por

outro, como produto, periodicamente – ato exemplificado pelo músico, com a persistência, por

exemplo, da influência da T-Rex mesmo em meados dos anos 1980, ainda em alta no cenário

soviético, enquanto no Ocidente a banda estaria encerrada e reposicionada por outros nomes

consagrados, já nos anos 1970.

Por isso, sublinhadamente, maior a importância do registro dos Beatles na URSS

durante 1964, revelando a singularidade de um contexto onde por um breve período, os canais

de conexão no cenário bipolar da Guerra Fria experimentaram uma ligeira e incomum

simultaneidade, oportunizando um fluxo de trocas que levaria a que esses jovens soviéticos

experimentassem uma ‘onda’ recente de um fenômeno cultural estrangeiro, ainda durante seu

acontecimento – algo que, em geral, só ocorreria com tremenda defasagem temporal em relação

à situação Ocidental. A importância dessa momentânea sintonia para a possibilidade de

configuração de uma singular estrutura de sentimento do período (evocando o teórico galês

15CUSHMAN, Thomas. Notes From The Underground: Rock music counterculture in Russia; 1ª Ed. New

York: Editora State University. 1995; pp. 27-29; 258;285

25

Raymond Williams) é descrita como uma ‘atmosfera de comunhão pela música’ no depoimento

do ex-guitarrista do grupo Falcon, Yuri Ermakov (MAROCHKIN, 2011a):

[...] Nos anos 60 quando estávamos apenas começando, nossos rockeiros sentiam uma

relação íntima e orgânica com a comunidade internacional do rock. “Pensávamos –

disse Ermakov – que nossos ”Rolling Stones“ favoritos, eram irmãos na luta contra o

sistema totalitário. Em geral, a música não tem nacionalidade, nem fronteiras. Como, digamos, a marcha não poderia ser alemã ou russa, uma marcha é uma marcha em

toda parte. E [o mesmo com a] música rock! Não tem limites, mas se crescemos com

Chuck Berry ou “Rolling Stones”, não significa que sejamos britânicos ou

americanos. Apesar de tocarmos rock, éramos russos, sentíamos muito

conscientemente que estávamos aqui, na Rússia, e, claro, tudo isso levou ao fato de

quando começaríamos a escrever nossas próprias canções [...] [Tradução do inglês e

grifos nossos] À despeito do posicionamento pessoal de Ermakov quanto à questão de totalitarismo

(que melhor será esmiuçada mais adiante), cabe refletir sua impressão acerca do sentimento

estruturado, transfronteiriço, em torno do fenômeno do rock, a partir da perspectiva da

juventude e da comunidade musical da URSS. Por conta desse sentimento de comunidade com

os fenômenos em simultâneo – explicada por esse elo em comum de juventude e entusiasmo de

protesto – e além dessa rara possibilidade de canais abertos ao fluxo informacional, o senso de

estar-se num pertencimento à algo que transbordava à instituição soviética, sua fronteira e seu

processo de identificação, fazia criar uma espécie de sensação de deslocamento – evidenciada,

embora com senso de fraternidade e tributo, também com forte senso de demarcação da

identidade cultural local.

Também segundo o relato, devido ao incidente da fixação cultural, não apenas nomes

menores ao cenário rock do Ocidente ficariam importantes na circunstância soviética, mas ainda

se fariam maiores e mais importantes, àqueles que se haviam tornado lendas do lado Ocidental

– como na citação, os marcantes Rolling Stones e Chuck Berry, coetâneos e correlatos aos

rapazes de Liverpool.

Conquanto não se acredite tratar-se de uma unanimidade e sem o intuito de direcionar

uma interpretação forçada, apenas sendo fiel às fontes pesquisadas, em praticamente todos os

depoimentos analisados durante a pesquisa, de protagonistas locais, entre músicos e aficionados

da URSS relacionados com vulto, à década de 1960, constantemente nos excertos encontra-se

menção dos Beatles: nos relatos de Yuri Morozov (músico de Vladikavkaz, hippie e engenheiro

de som), Yuri Shevchuk (músico e artista plástico de Kolyma, Sibéria, radicado em São

Petersburgo e líder da DDT), Vladimir Salnikov (ex-músico moscovita em seu depoimento

acerca do grupo de rock soviético sessentista Skifh [Scythians]); Vladimir Marochkin

(jornalista e radialista russo), Andrei [Tropillo] (radialista leningradense e produtor musical de

magnitoalbomy), e conforme visto, nos depoimentos colhidos pelos jornalistas estrangeiros,

Pete Paphides (The Guardian, 2015) e Luke Harding (The Guardian, 2019), respectivamente

26

cobrindo os bootlegs sessentistas da URSS e o movimento hippie soviético, sem olvidar ao

próprio Yuri Ermakov (ex-frontman de um dos pioneiros grupos soviéticos, o Sokol [Falcon]),

que descreve, corroborando em outro depoimento, a importante colaboração transformadora

dada pelo fab four – em Marochkin (2011a):

Tivemos um ímpeto muito poderoso dado pelos Beatles – diz Yuri Ermakov. – Até

eles, depois que a cena do rock anglo-americano se construíra, ela fôra inteiramente

regida por outras leis, ela consistia em estrelas separadas, que exigiam tratamento para

si enquanto ídolos, e estavam terrivelmente longe do povo – todos esses, Neil Sedaka,

Paul Anka, Cliff Richard. E os Beatles mostraram que a banda de rock podia aparecer

a cada entrada. Então, havia todos esses The Searchers, Kinks, Spencer Davis Group,

Cream. Então aí estamos. Em geral, devo dizer que as tendências gerais da moda, da

música, são comuns a todo o mundo. Elas são capazes de superar quaisquer barreiras

ideológicas, elas não são capazes de conter-se sem paredes, sem censura. Claro, distintos países têm algumas diferenças, mas o charme e imagem dessa geração, em

regra, se fez único para o mundo [...] [Tradução do inglês e grifos nossos] A despeito das barreiras culturais e sua complexa percepção, por conta dessa fortuita

permeabilidade informacional entre as fronteiras políticas e ideológicas de cada sistema social

econômico da Guerra Fria, a qual trazia consigo do advento tecnológico de novas formas de

consumo musical e de produção de música, o rock se fazia não apenas conhecido, mas por uma

camada emblemática da URSS, também discernido em relação ao seu cenário de origem. Yuri

Ermakov, como já salientado, guitarrista e frontman da banda moscovita Falcon/Sokol, em seu

depoimento, não se limita a demonstrar como entre a população local houvesse substancial

possibilidade de discernimento fluente das ocorrências do cenário cultural europeu Ocidental e

estadunidense (obviamente, a uma exígua parcela privilegiada e segundo características

bastante particulares), mas também se delimita nessa percepção aos Beatles como reincidentes

na trajetória de influências locais, ao se apontar para a percepção, inédita até então, de como o

grupo de tornara mais próximo do público dos espetáculos, demolindo o cânone do artista

principal (crooner) solo, intransigente e soberbo, ao apresentar um comportamento que

subvertia o usual das estrelas da música Ocidental – predominado até então, pelo

distanciamento da plateia com uma aura de superioridade.

Entre outros fatores, essa aparente jovialidade que os Beatles deixavam transparecer,

somada com sua proximidade à faixa etária que os ouvia e seguia e sua empatia junto ao público,

transformaria o grupo em uma espécie de contraponto à tradição usual da música, que além do

ritmo, trazia como contestação pela atitude, o ato de desafiar nos modos, não apenas a sociedade

tradicional, mas o tradicional estamento do estrelato comercial: embora poderosamente

influentes, os rapazes de Liverpool pareciam acessíveis e a um passo de distância de seus fãs.

Inobstante, isso impulsionaria a que os fãs, vendo-se em familiaridade com seus ídolos,

se sentissem atrevidos a tentar a mesma forma de protagonismo realizada pelo jovem quarteto

britânico: ora, se eles podiam, será que não poderíamos nós também!? – seria esse o

27

pensamento de uma geração, ao ver com ineditismo, uma vanguarda musical não apenas

direcionada aos jovens, mas protagonizada por estes e com um comportamento que não era

adequado, pura e simplesmente ao estabelecido, mas que fazia o estabelecido (e o mercado),

paulatinamente, ao seu estilo adequarem-se.

Por ora, os Beatles ocupariam nessa análise relacional, um paralelo fundamental e

basilar ao estudo da vertente local desse fenômeno cultural da música. Deixando-se justificado

o quanto tenham comparecido e sido seminais à atividade em território Oriental, encerra-se o

comentário em torno dessa posição relacional, a fim de ir tratar do grupo com um olhar mais

específico, consoante o fato de que embora a banda traga consigo, não apenas elementos que

tenham caído no gosto e identidade locais da URSS, haja importantes considerações em torno

de sua fisionomia para com sua estrutura cultural de proveniência (música e cultura Ocidentais).

Considerações as quais, antes de quaisquer investigações em terreno alheio, devem ficar melhor

esclarecidas, por isso, a necessidade de debruçar-se em torno de uma noção mais sociológica

do rock ao redor do quarteto e da história transicional do ritmo na porção Ocidental.

1.2 UM INUSITADO ENSAIO DE ROCK: DA CULTURA OCIDENTAL À POSSÍVEIS

HIPÓTESES SOBRE A COMPOSIÇÃO DA CENA MUSICAL SOVIÉTICA

Tive a sensação de que durante toda a minha vida anterior, eu usava algodão nos ouvidos e, de

repente, ele foi retirado. Eu apenas senti fisicamente como algo dentro de mim estava se sacudindo e girando, se movendo, mudando irreversivelmente. Os dias dos Beatles começaram. Ouvindo Beatles

de manhã até a noite. De manhã, antes da escola, imediatamente depois e até as luzes se apagarem.

No domingo, ouvia os Beatles o dia todo. Às vezes meus pais, exaustos dos Beatles, me jogavam na varanda com o gravador, e aí eu fazia o som no volume completo para que todos ao redor também

ouvissem os Beatles ...

Andrei Makarevicz, músico russo, frontman da banda Machina Wremenyi16

Quem quer que observasse em seu início a fisionomia do rock e aquilo que seriam suas

consequências genealógicas e de cenário na cultura, jamais poderia imaginar o tanto e quão

distantemente atingiriam. Com uma árvore genealógica mais capilarizada e distinta em

disparidades estético-sonoras e estético-fisionômicas do que qualquer outro fenômeno da

música, o rock se apresenta como um formidável bizarro, cuja fisionomia é encantadoramente

confusa e, simultaneamente, nos detalhes, palatável e familiar a muitas culturas. Uma menção

que muito bem descreve o rock, vem da percepção de dois baluartes dentre o fenômeno musical

na URSS, um o líder do grupo Akvarium (Leningrado), icônica banda de rock local surgida em

16MAKAREVICZ, Andrei. Всё очень просто... [Trad. Livre: É tudo simples...] Рассказики - Андрей

Макаревич [Histórias; Andrei Makarevicz]. Dispnível em:

http://shevkunenko.narod.ru/raznoe/razzakov2/glava194.htm. Acesso em: 24/06/2021

28

1972 – Bóris Grebenshchikov17 – que salienta como sua característica principal a energia, solar,

original, elementar e impulsiva, de força motriz, que se complementa na visão do outro, um

jornalista e radialista russo – Vladimir Marochkin (2011a), através de sua autointitulada

‘biografia criativa do Rock Soviético’: Everyday Life Of The Russian Rock Musician (Trad.

Livre: ‘Vida Cotidiana do Músico de Rock Russo’) – argumentando sobre a presença dos

elementos de plasticidade do ritmo, facilmente amalgamável a outros elementos. Segundo suas

opiniões, talvez seja o rock essa passionalidade furiosa e gregária, que o torna terno e rebelado,

simultaneamente, e inspira, persistentemente, uma harmonia jovem e inconstante naquilo em

que, embora decano sempre inédito e em algum ponto, sempre próximo dos consumidores de

música.

É a partir dessa amalgamar-se e plasticidade em diferentes cenários, que se busca

empreender o esforço de delinear aquilo que tenha sido o fenômeno em terras soviéticas.

Em relação a isso, do precedente originário estadunidense, destacaria-se a história de

seus principais semblantes influentes, tais como Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry e

James Dean – inescapavelmente, icônicos. A seguir, subversivamente, artistas jovens que

puderam protagonizar o uso do velho sistema, até certo ponto, para operar segundo suas

características de juventude – figurando nisso, os Beatles.

Assim como fariam os jovens soviéticos um momento depois, os garotos de Liverpool,

seriam precursores em, progressivamente, afastarem-se do modelo originário de influência.

Situados em uma geração que trazia na bagagem os anseios da juventude da década anterior

(1950), fariam da ‘permissão de ser jovem’ uma exigência durante os anos 60, pleiteando assim

seu reconhecimento. São evidências que ilustram tal afirmação que, no mundo onde os Beatles

seriam ponta-de-lança de um fenômeno musical, despontaria a jovem modelo Twiggy, com sua

silhueta grácil, mais ao estilo de uma suave Audrey Hepburn do que a robustez das

fisionomicamente maduras estrelas do cinema (como Sophia Loren e Marilyn Monroe, ou a

17MAROCHKIN, Vladimir. Everyday Life of the Russian Rock Musician. BORISOV, Alexey. KORNEV, Oleg;

Shum.Ru Experimental Music In Russia. 2011a. Disponível em: <http://shum.info/index/vladimir-

marochkin/vladimir-marochkin-everyday-life-of-the-russian-rock-musician/>.

29

pin-up Betty Page), rescaldos do movimento beatnik18 e do Pop Art19 (com suas concepção

estética provocante), a revolução fonográfica (esboçada com o advento dos Hi-fis)20 e a

explosão da chamada indústria cultural, que assumia como fatia importante um segmento de

consumo voltado para os jovens (HOBSBAWM, 1995). Surgia nisso, uma afirmação da

preferência pela estética juvenil, tendência, onde não mais ser jovem significava ter de se vestir

ou parecer, precocemente, com os modelos adultos de fisionomia – mas sim, afirmar-se em uma

fisionomia juvenil e adolescente, desafiadoramente, ostentada.

Sinalizava-se com isso a migração consolidada do rock estadunidense para o

conturbado cenário britânico – em direção da fúria juvenil do movimento angry men mob, que

se impregnava no cinema e cultura musical das cidades britânicas, culminando no surgimento

de um novo rock, mais insolente e de vertente mais de nicho – embora, ainda sobejamente

explorado pelo mercado cultural fonográfico21. Outro fator importante, é que embora fossem

‘comissionados’ os integrantes dessa nova onda, logo gerariam um rebuliço na composição

desse quadro social standard previsto pela indústria fonográfica, pois como o fora com o jazz

18Movimento artístico e literário estadunidense, caracterizado pelo antimaterialismo, uma postura de vanguarda

nas artes e uma revisitação do cânone estético monumental Ocidental. Capitaneado por escritores como John

Clellon Holmes, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, entre outros expoentes, o movimento refletia em torno do estilo

de vida consagrado pela sociedade norte-americana e de como uma antítese dos costumes baseada na iniciativa de

desafio e desapego à instituição social de realização da vida (conseguir um emprego, estabilidade, sonhos de

consumo), constituía em forma de autorrealização e propunha uma forma de (re)contato com o idílio do lazer e da

experimentação artística (saraus literários, vida boêmia e fuga da consagração ‘sob os holofotes’). O movimento

é datado em início ao ano de 1948 e estendeu-se, com ênfase, até os anos de 1960, tendo sua terminologia no

sufixo beat associada a característica da sociedade compreendida nessas duas décadas (beat, em inglês quer dizer

bater; uma geração que encontrava seu caminho batendo de frente com o estabelecimento, mas de forma sutil na batida dos novos ritmos culturais e musicais daquele momento). Credita-se o nome Beatles, da famosa banda

britânica de Liverpool, a uma junção do descolado termo (beat) com a palavra besouro (beetle), criando um

trocadilho sonoro que demonstrava o espírito jovem e filiado a essa perspectiva de vanguarda artística. Fonte:

PHILLIPS, 1995. Op. Cit. 19Artistas plásticos como Andy Warhol e Roy Liechtenstein, figuram entre os protagonistas dessa ruptura nas artes

ocorrida nos anos 50, trazendo influências, atitudinal e esteticamente inovadoras. A partir de experimentos

estéticos de uma ousadia duvidosa, divisora de opiniões, arregimentando nesse turno dos elementos de imagem

acessíveis ao grande público (justamente, retirando-se de personalidades conhecidas e de caracteres do design

publicitário, dos produtos e da própria identificação popular com o aspecto estético simplório/estilizado da

propaganda), matizariam a composição gráfica de suas obras e caracterização de seu conceito. Obras como a

afamada pintura da lata de sopa Campbell (Campbell Soup Cans, de 1962) ou as reproduções matizadas de Marilyn

Monroe (Marilyns, de 1964) – ambas de Warhol – bem como as cenas quadrinísticas (de HQs) em tomada focal – como Girl With Hair Ribbon, de 1965, de Lichtenstein – trariam uma desconstrução do erudito face ao popular e

subverteriam o cenário estético com uma resposta ao padrão embalado de conceitos de arte publicitária. Sua crítica

estaria focada na percepção de que o cenário de cultura de massa incidia em consumo, trazendo a partir de sua

proposta estética provocante, uma forma de posicionamento crítico. Fonte: HOBSBAWM, 1995. Op Cit. 20Referência aos aparelhos de música High Fidelity (Alta Fidelidade), contendo toca-discos e rádio embutidos. 21Como é notório, os Beatles, assim como outras bandas do cenário britânico e estadunidense, seguiam o esquema

de contrato com as gravadoras e utilização de estúdios do circuito comercial fonográfico. A citar em sua carreira,

a Polydor Records, a EMI, a Apple – entre outros nomes. Quanto aos estúdios, ao longo da trajetória utilizariam-

se de vários eventualmente, mas o que teria maior destaque seria o de Abbey Road, cuja incorporação ao ethos do

grupo, dadas suas gravações no local terem ocorrido mais frequentemente e emblematicamente, levariam a que o

atribuíssem como título do álbum de 1969.

30

anteriormente, muitos de seus integrantes como Chuck Berry e Little Richard, eram afro-

americanos, num país ainda muito segregacionista e preconceituoso com as populações negras,

hispânicas e nativo-americanas.

Embora com contornos mais modestos, os jovens soviéticos experimentariam dessa

revolução de costumes no princípio da década de 1960 – fruto da admissão pelo secretário-

geral, Kruschev, de medidas políticas e sociais modernizadoras (reformas). Enquanto os Beatles

compartilhavam caracteres com a esguia Twiggy (em ternos de corte justo e cabelos cortados

ao estilo ‘colegial’), a juventude soviética assistiria o congraçamento com o Festival

Internacional da Juventude e dos Estudantes, a partir de 1958. Enquanto o fab four se afastava,

demarcadamente, das feições dos chamados band leaders em suas orquestras, as big bands,

partilhando nisso do apelo provocante de artistas afro-americanos como Little Richard e

Esqueritas, ícones do rock nos EUA, a juventude de moscou passava a conhecer calças jeans e

a imagem desconhecida do ‘temível’ Ocidente.

E se num meio termo eficaz, a aparência inicial dos rapazes de Liverpool seria

suficientemente aceitável para convencer a aprovação ao mundo tradicional de produtores de

televisão e de discos, bem como conciliariam ainda certo ar familiar (aos olhares de pais

conservadores), enquanto tenuemente rebelde (aos olhares dos jovens), sua performance se

tornava aposta convincente ao mercado e, dentro em pouco, verdadeira febre dentre a juventude.

Enquanto na URSS, o tom da modernidade, não apenas com produtos ou performances se

desenhava: mas com os avanços acompanhados da Revolução Tecnológica Aeroespacial. Por

este motivo, por muitos aspectos, o sentimento vivido era de uma afinidade momentânea na

Modernidade, onde as grandes potências da Guerra Fria, cediam ao protagonismo de seus

jovens.

Há que se recordar, também, outros artifícios arrojados do quarteto, que o fariam

estreitar-se à URSS: sua aparente acessibilidade, proveniente desde o linguajar (com gírias)

mas de sua postura de palco. Em demonstração prática dessa atitude, cabe recordar o relato do

músico e pioneiro do rock (pelo grupo Falcon/Sokol) na Rússia Soviética, Yuri Ermakov ao

lembrar que: ‘a cena do rock anglo-americano [...] consistia em estrelas separadas, que

exigiam tratamento enquanto ídolos, e estavam terrivelmente longe do povo [...] E os Beatles

mostraram que a banda de rock podia aparecer a cada entrada22 – essa acessibilidade do artista

ao público, seria completada no uso coloquial da língua, como em Love Me Do (do álbum Please

Please Me, de 1963) onde, por exemplo, os Beatles se utilizariam de uma linguagem

22MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.

31

gramaticalmente errônea, propositadamente23, para aproximar-se ao jeito real da fala entre os

grupos juvenis e de uma metáfora (em que se sugere que amor não faz julgamentos, comete

equívocos, exageros, extravagâncias). Essa atilada percepção, faria ressonância, evidentemente,

em países anglófonos, tornando restrita sua captura. Porém, ao embalar a atitude com a

sonoridade contagiante, em performances alegres e sinceras, se comunicariam universalmente

com a circunstância dos demais jovens do planeta – sem requerer tradução.

Sua ousadia pela inovação e sua inovação pela ousadia, refletindo a plasticidade própria

do rock, se transformaria em espécie de elemento agregador em diferentes culturas – como no

caso, da Ocidental (estadunidense e britânica) para a soviética – muitas vezes, como visto ao

longo da pesquisa, sequer necessitando-se entender uma palavra do idioma descrito para

contagiar-se por seu clima provocante.

É claro, sensatamente, há que se situar muito bem, as características oportunizadoras

dessa ocorrência: as sociedades urbanizadas industriais – que na própria Rússia soviética,

delineada por um boom urbano situado no princípio da década de 1960, simultâneo a um surto

de consumo e oportunidade tecnológica de informação, bem como vinculado ao relaxamento

das tensões em relação à censura interna, e em relação ao Ocidente24. Sublinha esse fator, que

considerando regiões menos urbanas, mais agrárias e tradicionais ao cenário local, diminuiria

a possibilidade de penetração desse fenômeno cultural. O que aliado a toda uma diversidade

cultural-social encontrada dentro da Rússia (apenas institucionalmente reunida sob a Nação

Soviética), permitiria apenas alguma comunicabilidade substancial do fenômeno no Bloco

Oriental e diferentes matizes de resistência.

Quanto ao típico indivíduo apreciador do rock na URSS, pode-se dizer que seria sujeito

jovem urbano, em busca por diferenciação e ineditismo e com alguma possibilidade de alcance

cultural mais amplo (camada acadêmica), figurando eventualmente numa posição confortável

junto ao acesso às estruturas oficiais do aparato (filhos/parentes de integrantes da classe

diplomática e de membros da administração).

Chegando-se nisso a mais uma importante consideração: a que concerne ao sentido

musical dos Beatles na musicalidade local. Se por um viés Ocidental, a continuidade se daria

23Onde a colocação pronominal inglesa correta seria Love Does Me (trad. livre: ‘o amor me faz’), onde Love é um

sujeito na frase, regulado pela terceira pessoa (impessoal, de coisas) com o pronome It; portanto, acompanhado de

flexão do verbo to be nessa terceira pessoa (does) e antecedente ao pronome pessoal na primeira pessoa do singular

(me). Fonte: GOMES, Elaine de Almeida. The Beatles: Letras e Canções Comentadas. 1ª Edição, São Paulo:

Lira. 2004. 24Conforme: SIEGELBAUM, Lewis. 1961- Krushshevs Slums. Seventeen Moments of Soviet History: An

online archive of primary sources (2003). Disponível em: <http://soviethistory.msu.edu/1961-2/the-khrushchev-

slums/>. Acesso em: 10/07/2020.

32

por uma identificação, ao considerar familiaridade linguística e etária, também sustentada em

canções cujos conteúdos amadureceriam junto ao próprio crescimento de seus apreciadores, tal

fenômeno de continuidade, seria explicável por outros fatores na banda Oriental. No polo

soviético, uma continuidade do grupo enquanto identificação seria também verificada, mas por

conta de haver uma fixação cultural (CUSHMAN, 1995), conceito pelo qual, da defasagem de

reposição do produto musical estrangeiro na URSS, em relação ao ocidente, nomes que já

figurassem obsoletos na porção Ocidental, ainda ali, fizessem muitos adeptos e permanecessem

por mais tempo como elemento icônico.

Não obstante, o selo do ecletismo do grupo – que tão bem metaforiza com o rock n’ roll

– pode ser verificado em seu trânsito temático, do ‘comportado ao psicodélico’, que dialogaria

diretamente com os anseios de uma juventude soviética que passaria por mudanças entre o

Degelo e a Era Brejnev. Assim, dos temas de conflitos geracionais e de amores, sexuais ou

melancólicos de adolescente, para tomadas de atitude mais revoltadas, recheadas de discussão

política e protesto contra as tradições da ordem estabelecida, os artistas e seus admiradores

estariam dialogando com seus cenários em transição.

E por tudo isso, considerando as estruturas erigidas em meio à essas transições, busca-

se reconstituir os mecanismos relacionados à cultura musical e parte das tensões que

antecederam a oportunidade do rock soviético, para que durante sua abordagem propriamente,

se consiga perceber continuidades e transformações que demarcariam fases em sua trajetória.

Por esse exemplo, considerando-se avanços produzidos durante a administração stalinista

(conforme KELDICHA, 2000), encontra-se muitas das possibilidades materiais de produção e

circulação, das quais se favoreceria a produção cultural e musical nas décadas seguintes (e das

quais o rock se utilizaria para acontecer). Mais do que isso, ao recobrar parte dessa realização,

recobrando tradições e recursos técnicos, perceber a produção da indústria cultural da música

soviética como ferramenta robusta, afasta a pretensão de se conjecturar a ausência de

possibilidades técnicas na porção Oriental – afastando pretensas opiniões que deponham os

êxitos de sua autonomia tecnológica e cultural. Outro entendimento, busca desmistificar que,

embora marcada de precedentes de censura, sob monitoramento constante de órgãos estatais,

não se tenha oportunizado sua grande realização criativa, enquanto utilização fundamental de

vanguarda na educação popular, acadêmica e ideológica locais.

E com esse mesmo olhar se procedeu a análise dos demais períodos, com vulto, a linha

de tempo coberta entre 1961 e 1982, situada como cenário de importantes mudanças, dentro

das quais o rock na URSS transitaria, se assentaria e se sovietizaria com diferentes arranjos em

relação ao seu entorno interno e exterior. E para isso, o estudo das condições materiais à sua

33

possibilidade e circulação passariam por entender parte das estruturas envolvidas nesta

sociedade planificada.

Afastando a contradição sustentada de que a própria estrutura forneceria por seus meios

a oportunidade à uma produção alternativa, observa-se que para ela acontecer e ‘distorcer’ sua

função original (de serviço ao estado), teria de estar presente um elemento de agência –

conforme Thompson (1987). E a agência importa em atores. Portanto, ao considerar a agência

popular dos indivíduos locais em possibilitar o rock soviético, teria-se de levar em consideração

suas características, seu ânimo de ação (seu ímpeto de gerar materiais de rock, produzindo-os

e repassando-os) somado à um domínio técnico (condições de tecnologia voltadas à finalidade)

– tudo isso que já ali presente. Para isso, voltando o olhar as tradições e as impressões dos

relatos, pode-se depreender parte dos sentimentos ali envolvidos e as expectativas que se tinha

em jogo, em relação à estrutura e as mudanças que a suceder.

Recobrando uma dessas formas de agência e seu sentimento correlato, os chamados

samizdat – publicações clandestinas distribuídas em redes paralelas ainda no século XIX –

pode-se perceber que o recurso de circulação alternativa de ideias, movido por um espírito

contraventor, não se inauguraria a partir do rock. Pelo contrário: este emprestaria daquele.

Desconstruindo as afirmações que busquem situar o fenômeno como um elemento exclusivo da

manifestação popular local. Nesse ínterim, do domínio técnico alcançado na segunda metade

do século XX, proporcionando fitas, gravadores à essa ainda presente manifestação residual de

cultura (segundo WILLIAMS, 1969), o alcance de repercussão dessa possibilidade de

manifestação (agência) local, ganharia novos contornos – sendo o suporte material da

tecnologia, como recurso, tão importante de se investigar quanto o da atitude de sua realização

(através do rock). Segundo Williams (1969)25, a despeito de um suporte técnico empregado,

através de desvio, como suporte às práticas do rock na URSS, sua dependência das tradições já

presentes de circulação e produção cultural clandestina seria fundamental (como demonstrado

no caso do samizdat, que se tornaria em magnitzdat). E tal presença de práticas arcaicas

entremeadas na produção cultural tradicional (precisamente à Rússia) ligada a distribuição

direta através de indivíduos (village culture, segundo Cushman, 1995; p. 41), sub-reptícia e

realizada artesanalmente, seria uma própria manifestação residual de cultura – ocorrendo em

paralelo ou entremeada à indústria cultural tradicional da URSS, em menor proporção em

relação ao grande estamento da cultura institucional (MENDONÇA, 2008)26. Sendo-lhe o rock

25WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional.1969. 26MENDONÇA, Luciana F. M. Culturas Populares e Identificações Emergentes: Reflexões a partir do manguebeat

e de expressões musicais brasileiras contemporâneas. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 82. Centro de

34

soviético tributário, em método e tradição contraventora, posto que perpetuado através de

comunidades de apreciadores e metodologias de produção artesanal retomadas, um exemplar

importante desse conceito em relação à 'grande' cultura (musical) institucional soviética em

curso.27.

A esse ‘segmento alternativo’ importaria, numa consideração de proporção cultural

dentro da sociedade, uma manifestação de subcultura. Por subcultura, segundo Milton Gordon

(1940), se entenderia uma manifestação de cultura em ocorrência dentro de uma margem de

cultura maior, onde, em outras palavras, a ordem cultural majoritária em curso na URSS seria

a ocupada pela presença da cultura soviética estatalmente orientada e seguida pela maioria da

população. Enquanto que o rock, bem como manifestações menores em proporção de outros

elementos dentro dessa cultura, embora legítimos em sua existência, não se servissem, de início,

a prestar como exemplos ou modelos de cultura mais característicos dentro dessa atmosfera

social. Portanto, se o rock existira e até se utilizara dos meios de produção (por desvio) presentes

na estrutura soviética, ainda assim, ele – de início – não seria suficiente a representá-la.

Outro ponto, é esse que se relaciona com a característica de ‘comunicativa’ da agência

empregada pelos indivíduos em sua forma de ‘correspondência cultural’. Recordando à E. P.

Thompson28, onde o desvio de uso de um meio de produção ou ferramenta, ou mesmo de um

conhecimento, comunicam impressões em comum de uma sociedade onde os indivíduos

encaram a tremendas transformações. Nesse sentido, emprestando do exemplo trazido em As

Sociedades de Correspondência (em A Formação da Classe Operária Inglesa, 1987) mesmo em

considerando períodos e sociedades diferentes, o exemplo dos trabalhadores ingleses que

passavam a ser evangelizados no credo Protestante, no século XVIII, ofereceria um padrão de

análise interessante à compreensão do rock na URSS. Conforme Thompson, a exigência técnica

de profissionais alfabetizados, mais sofisticados, para poderem trabalhar na linha de produção

que se industrializava, seria uma necessidade à indústria, mas também passaria pelo interesse

de setores ingleses ligados à religião (Protestante), na captura de fiéis.

Desse quid pro quo, trabalhadores que seriam alfabetizados para conseguir ler a Bíblia

– favorecendo a um interesse alheio, que interessava às cúpulas desse segmento religioso –

passariam a dominar a ferramenta da leitura e escrita, cuja finalidade inicial seria a de poder

ingressar num moderno setor de produção fabril, mas cuja amplitude de aplicações, poderia

Estudos Sociais- CES. Universidade de Coimbra. 2008. pp. 85-109. Disponível em:

<https://journals.openedition.org/rccs/622/#ftn13>. Acesso em: 22/07/2020 27MENDONÇA, 2008. Op Cit. 28THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.

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uma vez adquirida, redundar em finalidades diversas daquela inicialmente pretendida. O que

fatalmente aconteceria, quando um momento depois, esses mesmos trabalhadores ‘letrados’,

passariam a utilizar desse saber para a produção de panfletos e sociedades de correspondência

trabalhista (futuramente, socialista).

Essa ‘rede de correspondentes’ disseminadores, produtores, aficionados em torno do

rock se ‘corresponderia’, tanto no gosto, um sentimento de entusiasmo em torno do rock, quanto

a prática – ao oportunizar a materialidade da produção alternativa. Utilizando o mesmo

raciocínio, a sociedade industrial soviética (um exemplar de sociedade da informação, segundo

CUSHMAN, 1995) atuaria em correspondência, apesar de Socialista, tecnologicamente e em

valores ideológicos de progresso e ciência, com as demais sociedades da informação

contemporâneas – mesmo a de seu opositor, os EUA. Sendo assim, possível o elo de

correspondência entre a circulação de mídias naquele momento.

Outro reflexo dessa característica das sociedades da informação, seria a que – como em

Thompson (1987) – ao emancipar seus cidadãos com o conhecimento, voltado a prepará-los,

com aporte técnico, para uma utilização pela economia local (pela indústria, ciência) e na

protuberação dos valores ideológicos do Socialismo (sofisticação da sociedade), ofereceria,

simultaneamente, os meios para que conseguissem criar ‘distorções’ de uso para essas

capacidades – demonstrando, tal e qual os trabalhadores ingleses do exemplo, que a autonomia

dada pela emancipação, através da agência, poderia tornar-se produtora de subversões a esse

sistema (tais como o seu uso para o rock n’ roll).

Da manifestação de cultura residual à agência, delinearia-se uma autossuficiência local

no provimento de elementos a existir, resistir ao estabelecimento ou contrapor-se a quaisquer

vanguardas ocasionais estrangeiras – onde o rock na URSS, por conta de uma ‘memória do

sangue’ (MAROCHKIN, 2011a) teria suas percepções próprias, apesar da influência

estrangeira. Desse modo, como bem lembrariam os rockeiros locais na russificação do ritmo

Ocidental, haveria mais elementos de resistência local por serem recobrados e tributados ao

fenômeno russo-soviético do rock, do que ao rock, produto cultural estadunidense,

propriamente dito. A própria admissão pela russificação, já se demonstrava a linhagem de uma

trajetória muito ciosa em manter seus costumes e características arraigados, em dar seu jeito às

coisas trazidas/ingressadas do exterior. Na URSS, não seriam os jovens soviéticos que

encontrariam o rock, seria o rock que encontraria com essa fascinante juventude. Uma

juventude que não estaria passiva diante de influências exteriores, produto de uma tradição

acostumada a não aceitar, pura e simplesmente, novos pretensos elementos influenciadores. Ao

menos, não os aceitando sem fazer importantes modificações de assimilação. Conforme

36

Mendonça (2008):

Um aspecto a chamar a atenção nestas considerações é o que Galinsky chama de incorporação crítica das tradições, qualificação que se justifica pelo fato de diversas

bandas ligadas ao movimento [...] integrarem os elementos tradicionais

contextualizando-os no tempo e no espaço [...]. Assim as formas musicais resultantes

da mistura escapam ao pastiche e à paródia, recursos habitualmente utilizados nas

manifestações de produção cultural dita pós-moderna.

Contudo talvez a definição do retorno ao tradicional pelo moderno como paradoxal

seja tributária de uma concepção do popular como algo original e pouco aberto à

transformação e ao diálogo intercultural [...] Também em leituras que enfatizam o

vínculo entre produção musical e classe social (na concepção marxista), a

incorporação de influências estrangeiras, quando não correspondem às condições

materiais de existência de uma determinada classe, pode ser encarada como heteronomia [Grifo nosso]29

Se um século XIX de literatos e pensadores políticos, havia feito explodir uma revolução

de caracteres sem precedentes na história humana, de uma hora para outra não estaria sumido

o mesmo potencial de contestação, ainda presente, nestes filhos e filhas da cultura local. Onde

o rock, portanto, não seria um estandarte de vitória da influência estrangeira, mas apenas o

pretexto dessa juventude, para uma nova forma de insurgência face o estabelecido, institucional

e esteticamente falando30. Indo contra o institucional ideológico, por vezes, da própria URSS,

contra sua forma de produção artística e simultaneamente, indo contra o modelo sartorial da

indústria cultural Ocidental estadunidense, pela qual o rock viria embalado até se tornar objeto

de consumo, pura e simplesmente. De modo diverso, os jovens locais desempacotariam esse

rock e o misturariam ao tempero local, até criando uma reprodução do original de início, mas

mais adiante, uma reconfiguração do sobredito produto: em um totalmente novo e singular

fenômeno de cultura. Seriam elas, recobrando as fases do movimento, que autenticamente

estabelecidas por seus atores (e não pelo estabelecimento): num primeiro momento, a de caráter

universitário; num segundo, a de características underground; e num terceiro, o bard rock.

Tais manifestações, atuando como ponto de transição que os colocaria, aí sim, na

transformação em uma legítima contracultura: o posicionamento, enquanto grupo, de

desafio/divergência à cultura estabelecida, representando para além de seus códigos e sua

produção autotrófica, uma ruptura com o sistema cultural de inserção local.

Pode-se dizer, conquanto muito aqui se tenha esforçado em demonstrar, que o rock

Ocidental viria a alcançar esse status contracultural a partir da segunda metade da década de

1960, onde fica mais claramente evidente, a eclosão do movimento hippie da URSS (com seu

29MENDONÇA, 2008. Op. Cit. 30Recordando a Yuri Ermakov (MAROCHKIN, 2011): [O sentimento em torno dessa geração do rock] Não houve

limites, mas termos crescido com Chuck Berry ou “Rolling Stones”, não significava que éramos britânicos ou

americanos. Apesar de tocarmos rock, éramos russos, sentíamos muito conscientemente que estávamos aqui, na

Rússia, e, claro, tudo isso foi levado em conta quando começamos a escrever nossas próprias canções[...]

37

caráter pacifista e devotado ao retiro).

Como o rock Oriental, também seus ícones, The Beatles, seguiriam por três fases: da

cena rock inglesa (fase subcultural) ao mercado musical (cultura popular), até uma afirmada

contraventora (fase contracultural).

O rock, bem como os Beatles, seria também tributário de um momento econômico,

social e de inovação tecnológica – desde a indústria cultural de massa até o princípio

individualista de consumo, com a proliferação da guitarra elétrica e dos aparelhos de toca-

discos/ toca-fitas domésticos, até a cultura da gravação no vinil em detrimento de uma do

concerto (WALD, 2009), cuja profusão do mercado fonográfico, faria alcançar as fronteiras

soviéticas. Sob quaisquer das hipóteses, enfim, há que se considerar o rock em seu papel escalar,

fluido e transeunte, bem como ao grupo dos Beatles como um personagem fundamental desse

característico fenômeno de disseminação rockeira, cuja influência se tenha constituído

elemento marcante e distintivo do ritmo em matizes de cultura em movimento. Pondere-se, com

certa segurança, que seriam os Beatles, parafraseando Freud, em toda essa linha de eventos um

símbolo ‘fásico’ do rock – carregada toda essa rude afirmação, de sutileza crítica por sobre uma

infame constância gritante do ritmo: a de que durante boa parte do movimento o protagonismo

tenha acontecido associado, majoritariamente, sob um perfil bem delimitado – a do indivíduo

jovem, sexo masculino, em geral, residente urbano, por vezes europeu ou euro-influenciado;

tendo em integrantes masculinos, mormente, seus principais apreciadores e protagonistas, e

apenas eventualmente, constando de expoentes femininas – numa iconografia de reprodução da

masculinidade, andro-orientada e excludente, muitas vezes, de protagonismo feminino31.

Fechando as pontas dessa discussão encetada com as provocações de outrora, após

observar-se os Beatles e sua representação junto ao rock, cabe complementar-se alguns patentes

elementos até aqui revelados, em sua(s) fisionomia(s): nos costumes, o fenômeno é oriundo da

31Levando-se em conta nisso, criticamente, talvez tanta masculinidade seja fruto de fatores incidentais ligados à

lascívia sexual ou a agressividade, associadas à cultura masculina, sobretudo em sociedades patriarcais,

corroborado ainda por uma renitente agressividade/intensidade/imaturidade reincidente no estilo (algo que já

investigado por autores como KELLNER, 2015; FRIEDLANDER, 2002; WALD, 2009). Para fazer justiça a

existência de precedentes femininos no rock, com relevo, o do cenário Ocidental, comentando adiante de nomes

consagrados como Janis Joplin (intérprete de rock, jazz e blues, à década de 1960) e Joan Jett, líder dos Black Hearts na década de 1970, cabe citar um grupo feminino que também proveniente de Liverpool, integrante do

movimento MerseyBeat (o mesmo que originaria os Beatles), e que já em 1964, teria uma formação exclusiva de

meninas (jovens de dezesseis anos), num quarteto musical chamado The Bikinis. A heurística em torno de grupos

como o referido e sua obscurecida presença no modelo industrial cultural em sua macro-escala, é motivo de

inúmeras reflexões e controvérsias, mas, ao momento, serve esse exemplar a suscitar a percepção de, ‘se de fato,

não tenha havido tantas mulheres protagonistas no rock’ (dadas muitas das suas restritivas características), ou ‘se

somente tenham sido invisibilizadas ou preteridas durante a ocorrência do fenômeno’ (que ficaria, em geral,

setorizado por um protagonismo masculino dominante). Fonte: Nostalgia Central – The way things used to be.

Nostalgia Central. Disponível em: <https://nostalgiacentral/music/music-genre/merseybeat>. Acesso em:

22/07/2020

38

sociedade industrial, da economia e da circulação de informações, situado na primeira Guerra

Fria; como cultura num circuito comercial (do popular ao subcultural), um pródigo do mercado

fonográfico; e num sentido de superação momentânea de seu circunstancial alinhamento

mercadológico sartorial, ao guinar-se o rock, mais e mais por sua atitude de desvinculação e

menos por uma imbricação à indústria cultural, a aquisição de seu status como contracultural.

O qual, muito ardilosa ou convenientemente, voltaria a ser motivo de controversos refluxos

com o advento da profissionalização dos seus músicos experimentais na década seguinte.

Tendo isso por dito, no que tange à perspectiva do fenômeno em terras soviéticas (e em

sua reconfiguração local) no mesmo período, também se pode considerar de um esboço de

fisionomia. No intuito de recapitular alguns aspectos já observados, do rock soviético

sessentista – que seria por lá chamado, na verdade, de bigbit32 – se pode notar inicialmente

que: tenha se originado no Degelo (Era Kruschev: 1953-1964), sua paisagem sonora

(predominante) tenha sido urbana (em Moscou e Leningrado), tenha possuído um princípio

dicotomizado (pelo canal de privilegiados filhos de oficiais e diplomatas; público do gosto33,

juntamente a manifestações, separadas e simultâneas, com outros grupos de indivíduos

populares que na produção clandestina; roentgenitzdat34), integrava o circuito jovem, escolar e

universitário (cultura do gosto35).

De Brejnev em diante, por sua vez, possuiu um princípio seishnov36 (de apresentação

[concertos], mais do que gravado ou veiculado por meio mediato [proibição de acesso]), que

inicialmente tenha sido estritamente reprodutivista (versões de canções de bandas ocidentais) e

após passado por uma assimilação local caracterizada (russificação37), alcançou uma

bifurcação: de um lado, cooptado pelo sistema de produção estatal; e de outro, entremeando-se

aos fragmentos da circulação e produção disponíveis, uma manifestação underground (relações

na clandestinidade, com contrabando e samizdat, organizando-se em comunidades eletivas38

por meio de produção alternativa, mas também realizado com algum suporte da estrutura

proporcionada pelo Estado). Até alcançar, próximo ao final da gestão do mandatário, a

característica de bard rock39.

32MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 33CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 34PAPHIDES, 2015. Op. Cit. 35CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 36MAROCHKIN, 2011a.Op. Cit. 37CUSHMAN, 1995. Op. Cit 38CAILLOIS apud CUSHMAN, 1995. Op. Cit 39Idem.

39

O rock soviético ao longo do período coberto (1961-1982), dotaria-se

predominantemente das características próprias de uma subcultura – nicho cultural em relação

à cultura estabelecida. Suas estruturas de realização passariam pelo suporte técnico fonográfico,

utilizado subrepticiamente ou sob eventuais concessões; intermédio pessoal (gerenciadores e

fiscais locais); instituições (ligadas a Juventude Comunista); e locais de apresentação (institutos

superiores e técnicos; escolas, estádios; estabelecimentos sob concessão estatal [cafés,

restaurantes, quiosques]).

E afinal, o que oferecem as características observadas até aqui para o escopo de análise

do fenômeno local: uma arquetipia suficiente a descrever-lhe ou apenas uma etapa sintomática

de suas possibilidades ao período e enquanto em sua primeira fase? Como a própria questão

aponta, há pistas e esclarecimentos para se confirmar e contrapor. E no sentido de responder tal

questão e dar complemento às considerações dessa perspectiva de análise, salutar uma breve

imersão no mundo político, social, cultural e econômico da União Soviética durante a década

de 1960, situando a heurística do trabalho em torno de personagens – principalmente, mas não

de modo exclusivo – oriundos da República Federativa Socialista Soviética da Rússia (de

Leningrado e Moscou) e em considerações referentes a momentos de trajetória a ela

relacionados, tanto anteriores (por exemplo, em que se investigando a estruturação da cultura

antes do Degelo de Kruschev, na Era Stálin), quanto posteriores (como das consequências desse

movimento durante a década de 1970, ainda sob Brejnev e no hiato entre a primeira e segunda

Guerras Frias, sucedidas da ascensão do rock soviético underground no cenário oitentista

através da Perestroika).

1.3- CONSIDERAÇÕES BREVES A UMA TRAJETÓRIA DO ROCK EM SEU INÍCIO –

DO MACARTHISMO A MCCARTNEY

Mas afinal, o que é o rock n’ roll!? Não há consenso – seria o mais prudente afirmar. Muitas

respostas vêm à mente quando a questão se apresenta, mas considerando-se a História e uma

pitada grave de política, talvez uma resposta seja mais específica. O rock é um legítimo filho,

rebelde, da cultura emergida nas sociedades industriais – enviesadas do ethos da Modernidade

Industrial (urbanização), do fenômeno da Indústria Cultural e o advento de inúmeras

tecnologias de mídia e consumo – durante a chamada Guerra Fria.

Também ela, a Guerra Fria, ausente de um consenso quanto à sua caracterização periódica,

a qual varia conforme a opinião dos historiadores, se do fim do conflito mundial em 1945 até a

Queda do Muro de Berlim, em 198940, ou se da firmatura dos pactos político-econômicos e

40HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 117.

40

militares das duas superpotências, a partir de 1947 (a partir da contraposição pública entre os

outrora Aliados, EUA e URSS, selada, respectivamente, com a edição da Doutrina Truman e

do Relatório Zhdanov 41 – sobre os quais se comentará logo adiante), até a dissolução do regime

soviético em 1991. Sobre as características do rock, retomando-o no introito dessa jornada, cabe

a consideração de um importante contribuinte, o jornalista russo e integrante do extinto

Laboratório de Rock de Moscou (existente entre 1981 a 1992) Vladimir Marochkin com a

seguinte proposição:

E o mundo do rock em 2003 completou 50 anos. O aniversário da música é celebrado

em todo o mundo, 12 de abril: em 1953, o dia em que Bill Haley em um baile no

Madison Square Garden realizou pela primeira vez seu famoso hit "Rock Around The

Clock". No entanto, no programa [guião da apresentação; repertório da noite de

apresentações] ele seria listado não como "rock 'n' roll", mas como "foxtrote".

E desde então, têm-se este rock – do lado lá, desde 1953; do lado de cá [Rússia e Leste

Europeu] desde 1961 – furioso e que reflete bem o resultado da disputa em curso sobre

o que seja o rock. Em primeiro lugar, os musicólogos o descreveram como a música

tocada na guitarra elétrica, com ênfase na parte forte. Essa definição estaria correta,

mas apenas para o início dos anos 60, [no caso russo-soviético] os tempos de big beat.

A evolução da música tem mostrado que é possível, por exemplo, formas sinfônicas

de rock, onde a distribuição de pontos fortes e fracos de partes do ritmo é bastante

diferente do original. E personalidades vívidas como o americano Frank Zappa, nosso

Sergei Kurehin ou o grupo iugoslavo “Laibach”, provaram que o rock 'n' roll pode ser

feito [também] da marcha, [ou a partir de] uma valsa de rock and roll.

Na verdade, a guitarra elétrica revolucionou a música. Porém, [não menos do que vemos] em grupos dos anos 70, como “Kraftwerk” [grupo experimentalista de música

eletrônica alemão], “Emerson, Lake & Palmer” [power trio progressivo britânico],

assim como muitos artistas disco, ou como hoje nos grupos, que vêm realizando um

estilo “techno” a todo custo sem guitarras, mas cuja música não se demonstra menos

fatal. Então, os musicólogos propuseram uma nova definição: música rock – é algo

que tem uma base rhythm and blues [R n´ B]. Mas esta é, em princípio, uma afirmação

verdadeira em tempo determinado, prestes a tornar-se obsoleta, porque [já] nos anos

90 do século XX, haveria muitos músicos – escoceses, islandeses, chineses,

tuvanianos42, russos – que se substituíram completamente a criatividade do rythm e a

estrutura do blues pelo folclore nacional. Além disso, essas experiências já

começariam no final dos anos 60, quando o virtuoso guitarrista Carlos Santana substituiria seu blues pelo flamenco. E quem poderia afirmar, que mesmo assim nesse

começo, Santana não tenha sido rock!? [Trad. do inglês e grifos nossos]43.

As colocações e provocações do autor são importantes, mesmo que extrapolando um pouco

ao período inicial dessa análise da origem do rock. Em seu bojo, entretanto, encontram-se as

evidências sobre o estilo acerca de seu local de surgimento: os EUA, em 1953, protagonizado

pelo grupo The Comets do músico estadunidense Bill Halley e sua aparente inovação, colocada

do evento de sua ainda impassível classificação: atribuído nem como Rythm n ́ Blues, nem

41Ibidem. p. 132 42Relativo à província de Tuvan, berço de uma das múltiplas composições étnicas da Rússia. 43MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.

41

como rock propriamente dito, mas como foxtrot – considerando-se nessa precoce classificação,

um despreparo da crítica que perspectiva a tonalidade germinal de sua fase à época.

Tornando-se ao rock, especificamente, em relação a análise de seu período de origem,

brevemente, vislumbra-se que sua existência se tenha dado pelo produto de um elenco de

transições que localizadas na parte Ocidental, imbricariam-se a toda uma conjuntura de eventos

complexos e às singularidades e discrepâncias próprias da conjuntura estadunidense dos anos

1950.

1.3.1 Primeiramente, ao Macarthismo: ou entendendo o ‘palco’ da Guerra Fria com seu

quadro político econômico aquecido, a Bipolaridade e aspectos que fomentariam as

características de berço do rock

A segunda metade da década de 1940 seria tão decisiva na história mundial, quanto fora

a primeira. Se na primeira parte o mundo se via diante do enorme conflito da Segunda Guerra

Mundial (1938-1945), da vitória dos Aliados, resoluções teriam de ser tomadas para administrar

o que viria a seguir. À Europa Ocidental restavam escombros, com seu cenário tendo servido

de front e alvo em ataques continuados e seu povo tendo vivido grande parte dos impactos

bélicos e sociais decorrentes da guerra. Na Europa Oriental, não se encontrava situação muito

diferente, pois boa parte da detenção do avanço nazista, havia se dado pelo protagonismo da

atuação militar soviética, com o preço alto de muitas vidas dilaceradas no processo e o

arrasamento de sua estrutura urbana e econômica. Do lado estadunidense, no entanto, a guerra

não havia pisado materialmente, e embora se sentissem efeitos decorrentes da campanha militar,

a economia e a estrutura social continuavam adequadas, tendo inclusive, registrado-se avanços

durante os anos da guerra.

O Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA, cresceria, batendo a cifra de 85% de superávit

entre 1939 e 1945 e com isso, a economia gozaria de expensas para agir em possível socorro às

depauperadas economias europeias44. Em 1947, o Secretário de Estado estadunidense, General

George C. Marshall, proporia um plano nesse sentido, o qual incluiria empréstimos e doações

aos países afetados, com a troca de estabelecimento de parcerias econômicas com os EUA45. O

chamado Plano Marshall, seria posto em prática pelo presidente Harry Truman, o qual assumira

o cargo no lugar de Franklin D. Roosevelt, que falecera pouco antes do fim da campanha militar.

A ideia com o referido plano era de estabelecimento de uma integração econômica, no pós-

guerra, com um alinhamento ao capitalismo de chamadas áreas de influência, sob a orientação

44HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 45 45HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Stálin. Coleção: Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultural.

1987. p. 89.

42

estadunidense, evitando assim a possibilidade de alinhamento dessas ao modelo socialista

soviético46.

Como bons negociadores, os estadunidenses tentariam persuadir logo a zona de

influência mor nessa realidade, tentando um apelo que cooptasse a boa vontade do próprio

mandatário da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, outrora aliado Josef Stálin, a fim

de que aceitasse o esforço de cooperação. Entretanto, a URSS perceberia que ali se precipitava

o estabelecimento de uma aludida nova ordem mundial. Stálin vocacionava o esforço da

reconstrução, com recursos próprios, da União Soviética – utilizando-se para isso, do modelo

de gestão da década de 1930, anterior ao conflito, com a retomada dos chamados Planos

Quinquenais47 (sucessores da Nova Política Econômica48, que havia antecedido a fundação da

URSS, em 1922)49.

Em 1947, a percepção estadunidense do crescimento soviético, autônomo e influente,

culminaria com a chamada Doutrina Truman50, cujo princípio político e ideológico passaria a

afirmar a existência de uma aludida bipolaridade, apelando nisso, para a agenda ideológica em

torno da liberdade e da democracia: de um lado, figurando um pólo mundial provido de

democracia e propiciado pelo sistema capitalista, contraposto ao outro, um pólo autoritário,

munido do sistema socialista – colocando essas contraposições num alarde de batalha pela

liberdade do destino dos povos.

46HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 16; 48 47Os chamados Planos Quinquenais seriam a sistemática de planejamento e execução econômica sob o governo

do secretário-geral Josef Stálin (alçado ao posto em abril de 1922), a partir de 1928. Viriam em substituição ao projeto dos NEP (que haviam fracassado em suas expectativas), buscando retomar o controle da economia,

prejudicada pela luta interna Stálin-Trotsky, desencadeada por dissidências políticas sobre a construção do

Socialismo (visto por Trotsky, como de uma necessária Revolução Permanente, tendo de se espraiar pelo globo,

antes de consolidar-se; enquanto Stálin proporia a consolidação se desse em um país de cada vez, com o conceito

de Socialismo Em Um Só País). A partir da fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922,

sob o comando do secretário-geral, a economia e a política se encaminhariam para uma recentralização, em que a

tese de Socialismo Em Um Só País sairia vitoriosa e culminaria no novo encaminhamento da administração local

e na expulsão, progressiva, de seus detratores. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; HOBSBAWM, 1995 48NEP; New Economic Policy, transliteração das medidas político-econômicas estabelecidas a partir de 1921; Essa

adoção político-econômica teria principiado com Lênin, no início da década de 1920 e consistia em medidas de

substituição ao Comunismo de Guerra (vigente durante a Guerra Civil de 1918-1920), a contemplar o emprego de

medidas de flexibilidade econômica às práticas do capitalismo, como forma de recuperar a economia depauperada pelos conflitos em sucessão (em retrospecto: a participação da rùssia na Primeira Guerra; a Revolução Russa e a

Guerra Civil). Dentre suas possibilidades, estavam permissões de comércio interno e salários, criação de empresas

privadas e empréstimos de capitais estrangeiros; cabendo ao Estado, por seu turno, supervisionar tais atividades e

gerir a economia, com controle de setores vitais, comércio exterior, sistema bancário e industrial de base. Para

facilitar essa centralização, estabelecia-se no mesmo período o unipartidarismo sob o escopo do Partido Comunista

(substituindo-se a denominação Bolchevique sustentada até então). Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987, pp. 36-

37 49HOOBLER, HOOBLER, 1987. Op. Cit. p. 85 50Seria durante a vigência da Doutrina, que seria criada a CIA (Central Intelligence of America; trad. livre: Central

de Inteligência Americana), principal agência de inteligência dos EUA cujo papel seria bastante protagonístico

durante estratégicos eventos da Guerra Fria.

43

Enquanto isso, a resposta à tal narrativa Ocidental viria sob Stálin, com o anúncio do

chamado Relatório Zhdanov (1947), um documento com pretensões semelhantes ao da doutrina

referida e que denunciando como real propósito da intenção estadunidense, a precipitação do

mundo em um novo conflito mundial. Simultaneamente, haveria com isso uma importante

estratégia junto aos países do Leste recém-aderidos, administrando-se toda uma sede captadora

de fontes de recursos, no sentido de obter, além do trabalho sincronizado das nações integrantes

do regime soviético, a aquisição de parceiros europeus orientais, sob o estabelecimento do

chamado Kominform (sigla de Komitet Informatsia, ou Comitê de Informações)51, o qual

organizaria esses novos agremiados através de metas e instruções comuns em boletins político-

econômicos emanados diretamente pela nova instituição, a partir do Kremlin. Esse processo de

integração seria coroado em 1949, pelo acordo conhecido por COMECON (Conselho de

Assistência Mútua Econômica), onde se proporia a criação de um mercado comum integrado

pela URSS e o Leste Europeu.

Stálin seria esse velho camarada, cuja intransigência ao alinhamento sob a doutrina do

capital obstaria a continuidade da aliança no pós-guerra, realizaria a reconstrução da economia

em sua agremiação de países (URSS), embasado em suas próprias metas, com a prospecção de

carvão, petróleo, energia elétrica, aço e maquinário, que levariam a que durante os Planos

Quinquenais de 1946-1950, a União Soviética fosse reconfigurando a robusta malha de

transportes, abastecimento energético, comunicações e indústria pesada. Outro importante pilar

da reconstrução nacional seria o investimento maciço na educação pública, que outrora

consolidada e expandida no princípio dos Planos, anteriormente à guerra, agora visava expandir

o conhecimento técnico e superior, a atingir a formação ainda maior de profissionais técnicos,

através da reconfiguração do ensino universitário nos institutos superiores – permanecendo

nisso, contemplar os já consagrados índices de erradicação do analfabetismo e a obrigatoriedade

da frequência escolar aos integrantes infanto-juvenis da sociedade soviética.

Não obstante, uma fronteira se estabelecia na questão ideológico-econômica do setor de

consumo soviético: se a produção de bens de consumo local (baseada majoritariamente em

artigos de vestuário, utensílios de uso diário, eletrodomésticos, entre outros) havia sido baixa

no período anterior à guerra (durante os dois Planos Quinquenais iniciais), no pós-guerra a

austeridade econômica e a retomada nos investimentos nas áreas de autonomia energética e

bens de produção (como maquinário pesado e de indústria basilar), levariam a que o mercado

soviético não fosse um parceiro muito agradável às pretensões estadunidenses, pois consumiria

51Segundo Hobsbawm (1995; p. 186), Departamento de Informação Comunista.

44

no limite do necessário, e embora fossem milhões de unidades em consumo, não haveria o

hábito do ‘comprar por cultura’ (ou uma cultura de bens de consumo como a incentivada no

Ocidente). E pior ainda: daquilo a ser consumido, majoritariamente, haveria seu suprimento

pela própria produção estatal – algo ‘intragável’ ao modelo em expansão protagonizado pelos

EUA, que se via obstaculizado em pretensões comerciais nos países aderentes ao estilo de

economia do regime socialista da URSS.

Nos Estados Unidos, que não teriam de passar por um processo de reconstrução, a

pujança financeira serviria como escopo à correnteza de sua ideologia de pujança de consumo.

Sairiam as armas e as exportações petrolíferas como prospecção principal da economia, para

entrar a produção e venda maciça de bens de consumo (utensílios para o lar, moda e brinquedos,

tecnologias de entretenimento/mídia, eletrodomésticos e automóveis)52.

Isso desencadearia na economia local, um crescimento vertiginoso do padrão de vida

médio. Assim, operários e integrantes da classe média passariam a adquirir bens de consumo

de massa (cuja produção cultural, desde a década de 1920 seria compreendida em indústria

cultural, e seu pólo consumidor, uma cultura de massa), ancorados em um padrão de

modernização social, em todos seus setores de produção, estimulados pela propaganda de um

estilo americano de se levar a vida – o afamado American Way of Life53.

Hábitos disseminados como a cultura televisiva, o consumo maciço de rádios e eletrolas,

o fast-food e a promoção do jeito americano, se somaria ao ingresso das famílias de classe

média que passavam a ocupar os subúrbios das cidades estadunidenses, criando um bolsão de

prosperidade que figuraria por algumas décadas. Enquanto isso, setores específicos da

população local, como imigrantes hispânicos e afro-americanos, encontrariam-se engrossando

o contraste social (segundo dados referentes à época, numa disparidade social econômica de

cerca de 25% dos integrantes desses bolsões de população figurando na linha da pobreza54).

52HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 54; 157 53O termo aqui utilizado, requer que se entenda, contextualmente, como um senso de estilo, modo e padrões de

vida e orientações político-estéticas e ideológicas, que também passaria por mudanças, Assim, por exemplo, o

American Way of Life dos anos 1920, ou ‘dos loucos anos 20’, com seu rebote às tensões da Primeira Guerra

Mundial e a conquista dos EUA como grande economia mundial (desde 1913), durariam como uma espécie de

‘transe de libertinagens’ para uma camada social beneficiária, que duraria até a Grande Depressão de 1929. Portanto, esse ‘jeito americano/estadunidense’, nessa época, não seria o mesmo que aquele encontrado no pós-

Depressão, onde o mesmo epíteto serviria a reagrupar sentimentos em torno da reconstrução da economia ao invés

do esbanjamento. Bem como, o mesmo se aplica ao ‘fenômeno’ logo após a Segunda Guerra Mundial, onde as

pretensões de vitória e o aceno (segundo HOBSBAWM, 1995) do prelúdio de uma duradoura ‘Era de Ouro’,

mesmo sob a Guerra Fria, demonstrava o percurso de uma estabilidade na bonança – algo que propiciaria alguns

dos elementos geracionais, àquele momento, para eclosão de fatores que desendeariam o rock (a partir dos anos

1950). A essas distinções semânticas do termo em questão, tentar-se-á colocar boas balizas durante a explanação,

mas, eminentemente, cabe-se atentar tratar-se de distintas conotações ao longo do trabalho, para não se

proporcionar interpretações equivocadas. 54Ibidem. p. 84

45

Tal e qual a riqueza estadunidense, essa recuperada União Soviética moldaria o destino

das próximas décadas com a figura respeitável de uma sólida instituição ideológico-econômica.

Se nos anos 1950, o projeto ia bem na Europa Ocidental, na Europa Oriental o avanço da

economia socialista que se recuperava rapidamente, sem adesão ao modelo do capital,

preocupava e urgia tomada de medidas locais (dos EUA) para contra-argumentar ao

Comunismo.

No seio dessa contenda, radicalizando em torno dos argumentos da outrora propalada

Doutrina Truman, um senador estadunidense, Joseph Raymond MacCarthy, anticomunista,

político pelo estado de Wisconsin, ex-militar e ideólogo conservador norte-americano, se

investiria da tarefa de patrulhamento ideológico e iniciativa persecutória a dissidentes locais

com inclinações socialistas – fisionomizando uma verdadeira caça às bruxas. A chamada

Doutrina Maccarthy – ou Macarthismo (também grafado, por vezes. Macartismo) – constituiria

sistemática perseguição de artistas, literatos, políticos e civis da sociedade dos EUA,

promoveria uma série de inquéritos judicialmente extravagantes (com auxílio, inclusive, do já

preteritamente estabelecido, Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas, criado em

1938)55, investigando possíveis infiltrados afiliados ao suposto regime opositor, bem como

demonstrações de conduta anti patrióticas evidenciáveis nos inquiridos. O sistema de

julgamento, o qual contaria com o revestimento da estrutura judiciária formal, trabalharia pela

intimidação e apontamento de culpados, e possíveis suspeitos (delações) para novas

investigações. De 1950 a 1955, a paranoia – difundida sob o epíteto de Red Scare, ou terror

vermelho – em torno dos avanços do Comunismo em terras ocidentais, geraria nos EUA a

expansão do chamado Macarthismo, marcando muitos setores da sociedade civil com o temor

de um estado de vigilância – amparado pelo próprio estabelecimento estadunidense. A doutrina

em questão, só seria paulatinamente dirimida ao longo da década, devido às contribuições da

imprensa questionadora acerca da reputação e intenções de McCarthy.

Se o Macarthismo fora episódico em manifestação, o acirramento das tensões

metaforizadas em seu bojo, não seria nada episódico em conjuntura. A Guerra Fria progrediria

e com ela, as ofensivas de ambos os lados, que embora não direta ou declaradamente militares,

55Originalmente grafado como House Un-American Activities Committee (HUAC), traduzido como Comitê de

Investigação de Atividades Anti-Americanas (ou Não-Americanas). Nesse sentido, importante salientar sobre a

Doutrina MacCarthy e a HUAC, que essas iniciativas de investigação (amparadas politicamente) não se tratavam

do mesmo bureau, e embora pudessem atuar, por vezes, em conluio, dispunham de soberania e constituição

próprias, cada qual com diferentes abordagens de investigação sobre o assunto estratégico-político do Comunismo

interno e internacional. Nesse ínterim, cabe evidenciar que embora costumeiramente associados, os tribunais do

macarthismo não eram subordinados a HUAC – e nem àqueles, tendo sido sua duração até 1975 (enquanto o

Macarthismo estaria a viger apenas durante os anos 50). Fonte: PATRICK DOHERTY, Thomas. Cold War, Cool

Medivm: Television, McCarthyism and American Culture. 2003. pp. 15-16

46

endureceriam setores de suas sociedades, ideológica e culturalmente – ocasionando um pairante

clima de permanente e indireto enfrentamento. E quanto a isso, os jovens teriam marcante

protagonismo.

1.3.2 E finalmente, a McCartney: ou do surgimento do rock em meio ao cenário social

Ocidental do início da Guerra Fria

Se o ‘berço do rock’ seria chacoalhado por tensões relativas à reconstrução econômica

de países de um lado e a pujança econômica de um outro cenário, onde por sua consequência,

uma revolução de acesso à tecnologias de informação se faria possível, tais discrepâncias

haveriam de aguçar velhas tensões. Na Europa e na URSS, o peso da guerra e do conflito

geracional com as incumbências de trabalho pesado na reconstrução. Nos EUA, de outro modo,

um conflito geracional provocado com o modelo vitorioso a ser seguido, impondo a muitos

jovens uma precoce adequação ao estabelecimento, enquanto que ignorando e excluindo a

participação fundamental de outros segmentos dentro desta celebração da vitória.

Do mencionado em pregresso, cabe salientar então, algumas importantes características

do rock, esse fenômeno cultural, contendo particulares precedentes e protagonistas e toda uma

intrincada forma de repercussão. Nesse ínterim, embora com marcadas vicissitudes peculiares,

o rock rastreia-se como fenômeno que surge entre jovens escolares dos EUA, pela década de

1950, tensionados pela imposição de um ortodoxismo comportamental retirado do modelo da

Era de Ouro, onde os Estados Unidos traziam consigo a vitória na Segunda Guerra Mundial,

seguida de uma pujança econômica e fartura de consumo consequente e a afirmação de um

modelo de vida estandardizado: o american way of life, pelo qual o tornar-se adulto, seguindo

exemplo dos responsáveis homens de família, dos vitoriosos e valorosos marines e dos bem-

sucedidos capitães-de-indústria, se transformava em imposição à faixa etária juvenil estudante.

Esse adultizar-se precoce, acompanhado ainda de um recrudescido puritanismo, desdobrado

socialmente em repressão sexual nos aspectos educacionais e familiares, bem como os já

tensionados aspectos de uma emergente luta pelos direitos civis e a igualdade racial, em certos

setores da sociedade (visto que a população afro-americana já representasse expressiva camada

da classe artística comercializada, com vulto, graças ao sucesso do jazz, do blues, e da indústria

fonográfica; JOHNSON, 2006) compunham o clima de um mal-estar presente à mesa farta da

sociedade norte-americana.

Seriam frutos destes eventos, jovens e excluídos sociais, que padeciam de dificuldades

em aspectos de sua colocação enquanto cidadãos e indivíduos na sociedade, pela razão do

47

preconceito e desfavorecimento social-econômico maciço, a redundar em marginalização.

Conforme se predica, isto germinaria um revide, levando a que muitos atores sociais juvenis se

aglutinassem numa forma contestadora de comportamento que se mesclava ao emergente

fenômeno de cultura do surgimento das big bands56 – evento de escala cultural e comercial

consistente de grupos musicais com bateria, guitarra elétrica, contrabaixo e a presença do

crooner, vocalista e em geral, bandleader desses grupos – fazendo criar assim, a um estilo

próprio de manifestação, esboçado em um jeito jovem de compor e dançar a música dos bailes

juvenis. Surgiria o rock, já miscigenado e com apenas uma identidade em comum: a da

imaturidade reivindicada como direito de manifestação em meio a uma atmosfera ordeira.

Surgia um novo ritmo, chamado a princípio de be-bop-a-lula (FERRI, 2001) contendo

uma mescla de hereditariedade negra (swing e improviso próprios do jazz, e gravidade e

balanço, nos acordes de contrabaixo do blues) e branca (no vocal roufenho e ágil, próprio do

honky-tonk blues caipira, advindo dos rednecks [pescoços-vermelhos; designação pejorativa

e vulgar atribuída aos habitantes interioranos dos Estados do Sul dos EUA, brancos,

descendentes de alemães e holandeses], e no agito dançante das polkas, impregnadas no

country, em artistas como Hank Williams, e posteriormente em Johnny Cash). Este rock

primitivo seria protagonizado por jovens artistas de diferentes folhetos étnicos da sociedade

americana, trazendo ainda mais diversidade e caindo ao gosto jovem com maior

suscetibilidade.

Conforme o exemplo requer, cabe citar que desde jovens artistas brancos como Jerry

Lee Lewis57, Bill Halley58, Buddy Holly59 e Elvis Presley60 ficariam conhecidos, quanto

56Em tempo: enquanto as big bands afirmavam parte do establishment, conquanto fossem disseminadoras de

produtos da indústria cultural de massa (e que para terem onde tocar, seguiam a cadência dos costumes e do

mercado), o seu ato de disseminação cultural musical, esse sim, foi catalisador daquilo que viria ser o caldeirão de

contestações principiado pelo rock. 57(1935 - ) Cantor e pianista estadunidense, famoso pela canção de rock Great Balls of Fire, 1958. 58(1925-1981) Músico e produtor estadunidense, que fez fama com o grupo The Comets, com a canção Rock

Around the Clock, de 1950. Uma curiosidade acerca da canção, é que ela é tida por muitos estudiosos do fenômeno de rock (como FERRI, 2001), como sendo a primeira canção de Rock n’ Roll. Versão essa que contestada por

outros entendidos do fenômeno cultural, com a proposição de Rocket 88, de 1951, de autoria do cantor Ike Turner,

como verdadeira primeira canção do rock. Por duas razões: em primeiro lugar, a classificação nos cartazes de

promoção dos concertos de Bill Halley, anunciava seu hit como foxtrot, e não rock; e em segundo lugar, a presença

do riff de guitarra na canção de Ike, a torna com uma estrutura musical sonora mais própria do gênero. Fonte:

FERRI, René. Be-bop-a-lula!. São Paulo: Nova Sampa Diretriz. 2001. 59(1936-1959) Cantor, guitarrista e intérprete estadunidense, que fez sucesso com a canção Peggy Sue, 1957. 60(1935-1977) Cantor e intérprete estadunidense, epitetado o Rei do Rock, realizador de diversos sucessos

musicais, com destaque: Hound Dog, 1952, Love Me Tender, 1956 e Jailhouse Rock, 1957. Astro de filmes e

programas de auditório, o cantor ficaria conhecido por danças provocantes e performances de palco contraventoras

para a época (anos 1950).

48

também consagrar-se-iam as negras vozes de Little Richard61 (também pianista), do guitarrista

blueseiro B.B. King62 e do guitarrista Chuck Berry63, sem olvidar o hispânico vocal de Richie

Valens64 (originalmente, Ricardo Valenzuela, guitarrista californiano descendente de

mexicanos), intérprete de La Bamba. E no sentido de evocar (e sustentar) a premissa de afiliar

tais jovens a pertença às classes trabalhadoras, mostrando, patentemente, tratar-se o rock de

um fenômeno popular e não erudito, se demonstravam nuances dessa afirmação na própria

trajetória de seus intérpretes e nos locais de execução de suas apresentações: Elvis Presley era

caminhoneiro; Little Richard, fora lavador de pratos numa lanchonete; Chuck Berry era filho

de modestos agricultores do interior da Louisiana; e Richie Valens (originalmente, Ricardo

Valenzuela), vinha e perpetuara a messe de latinos colhedores de laranjas nas plantações de

Pacoima, Califórnia. Ainda nisso, quanto aos locais dos espetáculos, em lugar dos

consagrados salões de baile (como um Savoy em Nova Iorque), ou renomados clubs (como o

Ritz), as apresentações ocorriam, em geral, em quadras de basquete de ginásios de escolas

secundárias (FERRI, 2001). A indústria fonográfica, ávida por novos nomes retirados dos

bolsões mais modestos da sociedade estadunidense (como fizera duas décadas antes com os

negros, no fenômeno do jazz), não demorou em amealhar tais jovens intérpretes e artistas sob

o selo das gravadoras, fazendo sua música espalhar-se das rádios norte-americanas pelo

mundo afora.

Ditas essas noções dissertativas, mas, fundamentalmente, pertinentes, recobrando a

circunstância inicial do argumento e atendo-se a aspectos fundamentais ao entendimento da

sociedade outrora descrita, nos Estados Unidos do auge do rock, convivia-se com a imposição

pequeno-burguesa de uma vida de trabalho, tarefas e cumprimento do dever (quer na guerra,

quer com a família e no cotidiano). A moral básica – e por que não se referir, WASP (White

Anglo-Saxonian Protestant, em tradução livre, Branca Anglo-Saxônica e Protestante),

61(1932-2020) Artista, cantor e pianista afro-americano filiado aos gêneros Rythm n’ Blues (R & B), Soul, Funk-

Soul e Rock n’ Roll. De grande sucesso com a canção Tutti Frutti, 1955, uma das mais emblemáticas canções da

fundação do gênero Rock n’ Roll, cuja a introdução com a onomatopeia a capella (A-wop-bop-a-loo-lop-a-lop-bam-boom!), ficaria mundialmente famosa na sua interpretação e na regravação por Elvis Presley (1956). 62(1925-2015) Artista afro-americano, cantor e compositor de blues. Considerado um dos maiores guitarristas de

todos os tempos, pelo Rock n’ Roll Hall of Fame, ao lado de nomes como Jimi Hendrix, Eric Clapton e Jimmy

Page. 63(1927-2016) Guitarrista, cantor e intérprete afro-americano, famoso pelos hits em canções como Maybellene,

1955, Roll Over Beethoven, 1956, Rock and Roll Music, 1957 e Johnny B. Goode, 1958. Seu estilo marcante nos

riffs rápidos de guitarra, e um passo de dança conhecido como Duck Walk, o tornariam emblemático no cenário

pioneiro do Rock n’ Roll – e o fariam influência a artistas como o guitarrista Angus Young, da banda australiana

AC/DC. 64(1941-1959) Guitarrista, cantor, compositor e intérprete hispano-americano, famoso com as canções La Bamba,

Donna e Come On, Let 's Go!, todas gravadas em 1958.

49

respectiva aos valores morais dessa parcela social – de amadurecer rápido, arrumar-se

emprego e família e adequar-se aos ideais políticos e comportamentais mais puritanos. O rock

vinha assim, a estremecer as bases dessa aludida organização social, colocando uma carga de

lascívia juvenil, apelo sexual, integração (racial e étnica, haja vista, a presença de

protagonistas negros e latinos no ritmo) e refreameanto da adultização, em nome de legitimar-

se uma postura de entretenimento e proveito da vida – próprios daquela juventude e dos

movimentos intelectuais afins, como o cenário do movimento beatnik, por exemplo.

Portanto, o jovem estadunidense (por excelência, integrante da juventude branca),

imerso no galardão de uma sociedade vencedora, rica e próspera, vivenciaria uma tensão que

se colocaria mais próxima do conflito geracional e de costumes, em relação às demais camadas

de sua sociedade, ainda que, estivesse essa também acompanhada daqueles aspectos colaterais

vividos em sociedade, com elementos étnico-civis e de afirmação social. Enquanto que,

demarcadamente, em outras terras anglófonas, onde o rock aportaria dentro em breve, a

atmosfera social teria componentes tensionadores ainda mais delicados e complicados por se

considerar.

Nesse sentido, à década de cinquenta no Reino Unido, futuro berço do brit rock,

encontrava-se o jovem britânico tendo de lidar com o desemprego/subemprego maciço nas

fábricas (como o setor de metalurgia, em Manchester), a carestia de recursos, medidas de

austeridade e aspectos de sobrevivência a imporem uma adultização precoce (a incontinência

de vir a tornar-se arrimo de família e ser integrante na reconstrução do país). O cenário era

distinto do estadunidense, pois a guerra havia colocado escombros reais e emocionais na

sociedade britânica, depauperado a economia e imposto um sistema de reconstrução que faria

o hábito de vida local guinar-se de uma supremacia anterior por uma de modéstia e trabalho

incessantes, soçobrada de novos baluartes do cenário mundial. O fruto dessa geração de jovens

britânicos, ficaria conhecido cerca de uma década depois como angry young men (algo como,

movimento/geração dos jovens enraivecidos, segundo Dirks, 2010)65

Enraivecidos pela pobreza, pelos escombros e por horizontes de trabalho pouco

promissores, que numa reconstrução como a que o país passava, acenavam, não raro, aos mais

pobres com um futuro certo como integrantes da camada operária, o rebuliço juvenil inglês

65DIRKS, Tim. The History of Film: The 1960s. The End of the Hollywood Studio System, The Era of

Independent, Underground Cinema, AMC Film Site Home, 2010.

50

geraria uma forma de contestação mais nervosa66, cuja rebeldia passaria por desafio

sistemático e escrachado dos costumes – na marca da sexualidade e da provocação – e o

congraçamento com o ritmo estadunidense que recém surgira, o rock, fomentaria uma cena

local muito diversificada e promissora, com baluartes em importantes cenários suburbanos,

em Liverpool (com o agito do Merseybeat) e Londres (nos acordes do be bop-a-lulla), onde

inicialmente destacariam-se nomes como os Beatles e os Rolling Stones, dando princípio à

toda uma messe posterior, que redundaria no hard rock, prog (rock progressivo;

experimentalista) e no heavy metal67 – e essa febre em torno do rock, seria um catalisador

importante em terras mais orientais do que a britânica porção insular e será algo de que

falaremos em específico mais adiante durante o trabalho.

Um ponto importante de se mencionar rememora que a levada musical agressiva da

juventude britânica, teria seu princípio com influências bem mais baladescas, num swing todo

tomado de influências afro-americanas, cujo rock mais pareceria um figurativo veículo de

apreciação, um meio de deixar-se influenciar por essas fontes emanadas. Constam como

importantes influências da cena rock britânica os ritmos do blues e do jazz, que nas décadas

de 1940 e 1950, já seriam encontrados fortemente na capital londrina e importantes centros

urbanos do Reino Unido. Artistas estadunidenses, afro-americanos, como Muddy Waters,

Chuck Berry e Howlin Wolf (em tempo, sem confundir-se o bluesista das décadas de 1940-

50 com o epíteto atribuído à Robert Plant, vocalista do Led Zeppelin, no final dos anos 1960),

são relembrados como ícones introdutórios ao estilo do rock na juventude inglesa – por

ninguém menos que o guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards, em seu documentário

biográfico Keith Richards – Under The Influence (2015)68. Segundo a percepção do músico,

referente ao momento musical vivenciado no ano de 1957: ´Achava que só eu, no sudeste da

Inglaterra, conhecia esses caras’ – até ver sair do metrô seu amigo de adolescencência e de

bairro, Mick Jagger, carregando um dos álbuns de Muddy Waters. Seria ao músico, esse o

momento no qual situaria o ponto de clivagem para os Rolling Stones, uma das mais

importantes bandas de rock do cenário inglês, que começaria como grupo no princípio dos

anos 1960, a partir de uma canção do músico estadunidense de blues e jazz.

66Cenário britânico de tensões, que é didaticamente descrito em HOBSBAWM; 1995; p. 43 67As classificações variam muito nesse sentido, dando margem a múltiplas conotações musicais a cada banda

daquele cenário e momento. Atenha-se aqui, à classificação encontrada em DUNN, Sam. Metal: A Headbanger's

Journey. Dir. Scot McFadyen; Jessica Wise. Toronto: Seville Pictures. 2005. 68RICHARDS, Keith; Keith Richards – Under The Influence. Distribuição: Netflix. Produção: EUA/ Reino

Unido, 2015, Dir. M. Neville. Trecho dos minutos 15 a 18.

51

Inclusive, compondo ao relato do músico, seriam esses estilos musicais, também

importantes constituintes de uma revolta nos subúrbios londrinos, reunida em torno da

população afro-britânica e eventuais frequentadores e apoiadores do estilo de vida boêmia

local. Em meio ao cenário de reconstrução econômica e social da Inglaterra do pós-guerra, era

possível evidenciar também, a presença de uma tensão de afirmação racial e civil, encabeçada

pelas populações dos subúrbios e reunida em torno do estilo lascivo e malemolente do jazz.

Tal circunstância, sublinhadamente marcante, seria trabalhada na obra de outros

importantes músicos locais, influenciados por esse momento cultural: como o músico inglês

David Bowie (1947-2016), que décadas após gravaria o álbum Young Americans (1973),

fortemente embasado em influências musicais afro-americanas, como tributo à essa

importante vertente da música (jazz) no cenário britânico subsequente. Não obstante, o músico

também seria integrante e realizador da trilha sonora do filme britânico Absolute Beginners

(de 1986, dirigido por Julien Temple), cuja história aborda esse nicho cultural e é ambientada

na década de cinquenta em Londres, focando no cenário boêmio local, impregnado de jazz e

musicalidade negra, representada na história de amor entre o jovem Colin e a modelo Crepe

Suzette. A narrativa, busca reaver parte da episódica da cena jazz londrina e os distúrbios

trabalhistas, étnicos e civis vividos na Londres de 1950, os quais contribuiriam a configurar o

sentimento britânico, urbano, periférico e musical, permeado por outras tensões que

obscurecidas pela principal tensão vivenciada com a reconstrução do país, da economia e da

cultura nacionais.

Desse background pós-guerra, amalgamado de tensões, música e diferentes

personagens, o rock estadunidense ingressante no Reino Unido se encontraria com um escopo

cultural efervescente e jovem, cuja avidez por manifestar-se, rebeldemente, demonstrava-se

premente. Do repertório de influências estadunidenses rockeiras, para adiante das citações

aqui abordadas, duas das canções mais recorrentemente gravadas nas ilhas, oriundas da

primeira era do rock oferecem a composição pretendida a explicar o sincretismo que o rock

promoveria, de integração e ingresso franco do ritmo em diferentes estratos de distintas

sociedades.

Primeiramente, a emblemática Tutti Frutti (1956), composta e interpretada pelo

músico afro-americano Little Richard e notória por seu princípio cheio de energia e

onomatopéias (<<Whoa-bap-lu-bap-bam-boom!!>>), a ser reconhecida nas vozes de

inúmeros cantores pelas décadas subsequentes, e por seguinte, mas não menos marcante, a

52

singela Be-bop-a-lula, She's My Baby, com autoria atribuída ao músico Gene Vincent

(também de 1956), ambas entoadas por diversos intérpretes famosos, em destaque flagrante,

às interpretações dos ícones Jerry Lee Lewis, Elvis Presley e, posteriormente, nas vozes de

John Lennon e Paul McCartney. Mais precisamente a segunda canção (Be Bop- A-Lulla ...) é

um exemplo de produto cultural em circulação, que mesmo desapegado de sua atmosfera

original – cuja matriz seria a de sonoridade cadenciada influenciada da gramática rítmica do

blues, própria do âmago negro sulista estadunidense, mas que realizada por um intérprete

branco), cairia no gosto popular da juventude dos EUA, e finalmente, atravessando o oceano

e as distintas tensões vividas, se faria espraiar nas plagas do Reino Unido, se transformando

novamente, em apelo de outra juventude – o seminal movimento/estilo chamado de Be Bop-

A-Lulla.

Certamente, citar dessa confluência em rede, de um produto/elemento cultural

originário dos EUA sulista e interiorano, passando pela atmosfera urbana das cidades e

quadras ginasiais de bailes estudantis (ainda nos EUA), até chegar em solo britânico, se

demonstra mais nítido por tratar-se, até aqui, de realidades entre países correspondentes tanto

comerciais, quanto linguísticos (sociedades capitalistas e falantes de língua inglesa),

permeados, portanto, de importantes similaridades, como a vivência, àquele momento, de uma

revolução tecnológica de bens de consumo (uma revolução do rádio69, pela qual se permitiria

a veiculação mais vultosa de elementos da produção/indústria cultural, acompanhada pelo

advento da aquisição doméstica de aparelhos de reprodução fonográfica [vitrolas e eletrolas],

acompanhadas de outro fenômeno da cultura, toda novíssima vertente da audiência televisiva),

totalizando que seus jovens protagonistas, pudessem percorrer um caminho mais facilitado

entre a aquisição/circulação do produto cultural.

Um importante e esclarecedor episódio desse caminho percorrido entre a influência

estadunidense e o vivenciar do protagonismo local seguinte do rock, é bastante evidenciado

com a trajetória de quatro jovens rapazes da cidade de Liverpool, distrito de Mersey, que

ávidos consumidores de be-bop-a-lula de Gene Vincent e fãs confessos da batida da guitarra

elétrica de Chuck Berry, começariam sua aventura na música no final dos anos cinquenta.

Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr – os rapazes de Liverpool, que

viriam, futuramente, a formar os animados, febris e revolucionários Beatles, no início da

década de 1960.

69HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 156

53

A origem da banda, que se tornaria febre mundial, remonta ao ano de 1957, quando

John Lennon e George Harrison convidariam Paul McCartney para integrar um quarteto

chamado The Quarrymen. Dali por diante, reformulações no grupo seriam feitas e dentre elas,

a adoção de um novo nome: The Beatles, em 1960. Situados em meio a uma importante cena

cultural principiante em Liverpool, o quarteto seria integrante do cenário do merseybeat. Para

constar, no ano de 1961, na região de Liverpool, no chamado Merseyside, haveria cerca de

350 bandas tocando o estilo de rock inventado no local, uma batida ligeira e ‘swingada’

chamada de merseybeat. O merseybeat daria fama a pelo menos uma dúzia de grupos locais,

entre os quais se destacariam os Swinging Blue Jeans e os The Kinks70, além do quarteto ainda

desconhecido. As apresentações aconteceriam no circuito de salões de dança locais, mas

também em pavilhões de igreja, em bares noturnos e em bailes estudantis. O cenário de

Liverpool também seria um de interconexão com Manchester e seus grupos de rock locais,

visto que as cidades se localizassem próximas. A juventude à época, composta de muitos

filhos e filhas da classe trabalhadora local, veria a formação de alguns dos conjuntos juvenis

a partir de outrora constituídas gangues locais – o que seria acompanhado com alarme e muitas

reticências pelo establishment britânico, preocupado com a influência do rock na juventude e

que tomado como um sinal de alerta, serviria a colocação do fenômeno em status de

desaprovação e perseguição pelas autoridades.71

Ainda assim, a marcha do ritmo seria acelerada e contagiante entre os britânicos. De

olho em um mercado em ascensão, as gravadoras locais ficariam alvoroçadas em patrocinar e

lançar bandas do brit rock. Nesse ínterim, no princípio do ano de 1962, egressos do boom

desencadeado pelo merseybeat, os Beatles seriam chamados a um teste nos estúdios da

gravadora Decca (ainda com a formação Paul McCartney – Baixo/vocal; John Lennon –

Guitarra-base/vocal; George Harrison – Guitarra-solo; Pete Best – Bateria), e a partir daí, a

conquista da plateia inglesa começaria – contemplando a troca de bateristas, com a saída de

Pete Best, para a entrada de Ringo Starr próximo ao final desse ano, com cuja formação o fab

four conquistaria o mundo. Com um sucesso grandioso em solo britânico, em 1963 os Beatles

gravariam seu primeiro disco: Please Please Me.

70Emblemático conjunto musical inglês, que explodiria em 1964 com a gravação da clássica canção ‘Girl You

Really Got Me’. 71Nostalgia Central – The way things used to be. Nostalgia Central; Disponível em:

https://nostalgiacentral/music/music-genre/merseybeat; Acesso em: 22/07/2020.

54

Do cenário inglês, notavelmente, outros importantes nomes também coetâneos

saíriam pelo mundo afora representando a verve rockeira. São alguns desses demais

contemporâneos do movimento rockeiro inglês, que seguramente, ao revisitarem o blues

sonoro de Be bop-a-lula e o transformando em um teor mais provocante, fariam do rock inglês,

voz às suas tensões locais: eis o caso das bandas, The Rolling Stones – fúria e lascívia,

impregnadas às performances de palco de Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones (e

posteriormente, substituído por Ron Wood) e Charlie Watts72 – e The Who – carregada de

uma sonoridade rica em drive, e não menos marcante com as ‘explosivas interpretações’ de

Roger Daltrey, John Entwistle, Pete Townshend e Keith Moon – cuja influência perigosa e

agressiva se espraiaria através de movimentos posteriores, como o hard rock e o punk, todos

conhecidos expoentes da iconoclastia sonora e atitudinal, e por vezes, também protagonistas

de um virtuosismo musical ou de uma aversão completa a esse.

Curiosamente, da linha – mais – suave do brit rock dos rapazes de Liverpool,

integrantes dos Beatles, é que proviria a grande – em termos econômicos – aquisição hostil e

a patente marcha disseminadora do mercado fonográfico da indústria cultural à década. Tidos

e romantizadamente oferecidos como comportados, os integrantes do quarteto seriam levados

pela indústria cultural como um elemento de consumo interessante à mocidade local e,

futuramente mundial.

No que concerne ao público juvenil coetâneo ao fenômeno dos Beatles, ficava a

presença de um estereótipo de consumo, cujas roupas (terninhos justos e botas italianas,

inspirado nos beatniks), o corte de cabelo característico (o famoso estilo ‘beatle hair’)73 e a

postura como músicos de rock, vinham a figurar como objeto de desejo, juntamente ao

consumo do produto fonográfico. Este momento todo singular de consumo (televisionado,

radiofonizado e transmitido de modo intercontinental) e protagonizado por uma camada social

antes pouco considerada pelas pretensões do mercado cultural (os jovens), levariam a outro

72À título de curiosidade, antes da meteórica e longeva formação dos Rolling Stones com Charlie Watts na

percussão (em atividade quase ininterrupta desde 1963), seria esta precedida por outras que contavam, adiante do

elenco costumeiro, com Mick Avory (1962) e Tony Chapman (1962-63) à cargo da bateria. 73Segundo consta, de uma visita do fab four à Hamburgo (Alemanha), em 1961, visitando ao jovem casal de

fotógrafos e estetas Astrid e Stuart Sutcliffe, Astrid teria apresentado Stuart ostentando um cabelo cortado por ela,

ao estilo francês, com a franja longa em tigela, que contrastava com os topetes à la Elvis consagrados pelo rock e

o movimento Merseybeat de até então. John Lennon teria gostado e logo todos os Beatles adeririam ao estilo

capilar, que se consagraria como mais um dos signos distintivos da banda ao longo de sua carreira. Fonte:

FRANCO, André. Como Nasceu o Famoso Corte de Cabelo ‘Beatle’ - Beatlepedia. O Canal dos Beatles

(29/05/2013). Disponível em: https://canaldosbeatles.wordpress.com/2013/05/29/como-nasceu-o-famoso-corte-

de-cabelo-beatle/. Acesso em: 21/04/2021

55

passo o fenômeno de disseminação da mídia, o qual protagonizaria o princípio de um franco

fluxo global de mídia e comercialização musical em escala massiva pelo mundo afora. O

cenário de pujança econômica dos EUA e a estabilização econômica da Europa Ocidental

formaria o terreno fecundo para frutificação de uma vertente econômica voltada à exploração

do entretenimento, dos fenômenos de cultura de massa. Com os fluxos de mercado fechados

pelos acordos comerciais dos estadunidenses e dos ingleses, os bens de consumo carregariam

em seu elenco materiais fonográficos (aparelhos e discos) e junto com o capitalismo aquecido,

em vários quintões do mundo, aportariam os Beatles.

Os Beatles estourariam o limite do conceito, levando a reboque a colocação do que se

classificava enquanto popular e erudito, ou mesmo enquanto cultura, posto serem os baluartes

de um fenômeno juvenil, considerável em escala e protagonismo. E se em parte isso se devia

ao talento inerente aos rapazes de Liverpool, com seu charme e carisma como credenciais,

não menos interessante e fundamental o veículo para tal sucesso, o novo ritmo veiculado

(rock), o qual, com um potencial de assimilação frente ao mundo que se estreitava, econômica

e culturalmente, teria um potencial de assimilação muito plástico em diferentes culturas:

Nesse sentido segundo Mendonça (2008):

Muitos estudos já têm destacado a plasticidade das possibilidades de apropriação do

rock em contextos locais, gênero que veio a se constituir um pano de fundo ou uma

linguagem que, por estar nos ouvidos de todos, permite a comunicação translocal. [...]

A dita “universalidade” do rock (e dos gêneros seus tributários) está ligada ao facto de ele fazer parte da cultura internacional-popular e veicular, junto com a música,

um conjunto de práticas, um repertório de expressões corporais e de emoções

institucionalizadas.

Entretanto, a despeito de uma pretensa ‘universalidade’ presente no rock como

elemento de assimilação, cabe recordar que sua incidência seria predominante ao cenário

urbano (Ocidental e Oriental), situando-se em torno de características mais ou menos ligadas

à modernidade industrial. Corroborando esse entendimento, cabe considerar o conceito de

paisagens sonoras (soundscapes) de Murray Schaefer (1970)74:

Define-se como paisagem, os contextos culturais que permitem analisar continuidades

e descontinuidades e pensar o intercruzamento de elementos diversos para formar

conjuntos de referências, símbolos e significados característicos de meios culturais

específicos. Por extensão, uma paisagem sonora (soundscape), se aplica aos

conjuntos sonoros que marcam os diferentes ambientes humanos.

74MENDONÇA, 2008. Op. Cit.

56

Para o rock, então, o contexto de paisagens sonoras urbanas, partilhado pelas

sociedades estadunidense, inglesa e soviética seria um dos fatores primordiais a permitir um

elo de características em comum – mesmo levando-se em conta a bipolaridade e outras

idiossincrasias de cenário. Por extensão, o momento de expansão econômica e possibilidade

crescente de acesso a meios de informação (aquisição), também possibilitaria uma paridade

relativa dentro destas condições de circulação ao ritmo ocidental – fosse por meio da televisão,

discos ou através do rádio no Ocidente, fosse por meio do mercado paralelo ou souvenires de

viagens de uma elite diplomática, na porção Oriental.

Nesse sentido, determinando sua classificação por etapas, desde sua estadunidense

origem, o rock se tornaria um elemento cultural urbano e juvenil, num macro-cosmo de

manifestações com outras composições de paisagem, geográfica e etária. Também seria o

rock, parte subcultural (enquanto estilo de vida e atitude) e parte industrial cultural, mas

distinguindo-se em meio ao panorama geral com o estabelecimento de uma distinta cena

cultural. Pelo conceito de cena, por um lado, supera-se, em parte, o conceito outrora

mencionado de subcultura (embora, nele se lastreie) ao buscar explicações para o fenômeno

de consumo cultural entre os jovens, através de uma perspectiva que refuta a proposição de

enquadramento ao mero desdobramento mercadológico e à mera classificação em cultura

popular (tradicional)75, enquanto por outro, constitui a característica desse fazer cultural –

como um que trabalha com circuitos de produção e consumo interligados, mas não

uniformizados em termos estéticos76. Sua porção subjetiva, reunindo indivíduos de uma cena

cultural, redundaria na classificação destes como tribos urbanas (ou ‘neo-tribos’)77. A

demarcação pelo comportamento, pela partilha de linguagens e atitudes, mais do que apenas

o consumo, apontam uma ferramenta importante para entender-se o rock, por exemplo, em

sociedades de distinto sistema econômico – como a URSS em relação ao Ocidente, aonde a

circulação da produção cultural estaria adstrita a outros caracteres de realização, como o

mercado alternativo e o underground. E, sintonicamente, conforme Misiano (2005), entende-

se aqui o sentido do conceito de underground enquanto:

Essa alternativa tipológica à cultura oficial. Ser alternativo passa a ser o princípio

constitucional do underground, que, ao se posicionar em relação a uma cultura mais

75BARROS, Lydia Gomes de. Subculturas - Um Conceito Em Construção. Artigo publicado no evento XXX

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação realizado pelo INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos

Interdisciplinares de Comunicação. Vol. I. 29/ago-3/set, Santos, 2007. Pp. 1-14 76MENDONÇA, 2008. Op. Cit. 77BARROS, 2007. Op. Cit.

57

ampla, se apropria de seus princípios disciplinares de consolidação [...] ocorre dentro

dos contornos do que costuma ser denominado cultura oficial.78

Uma vez compreendidos tais predicados metodológicos, pode-se compreender a

relação entre a crônica em torno dos Beatles e a metáfora da trajetória desse rock n’ roll entre

três localidades (até chegar na URSS, objeto de estudo) e por ‘sobre quê’ se assentariam as

realizações do ritmo (no aspecto sociológico), e congregando à quais circunstâncias e

expectativas em jogo àquele momento. Nisso, atendo-se ainda à crônica em torno da

magnitude do fenômeno The Beatles, e sua miríade de repercussões, figuram como

exemplares importantes de uma análise do rock como fenômeno que amadureceria, através da

própria episódica de evolução quarteto britânico. A esse respeito, sobre a composição crítica

na qualidade sonora dos acordes e arranjos das músicas e na abordagem de temas que refletiam

e problematizavam o jovem e a sociedade, demonstram-se marcos experimentais dos Beatles

em diversos campos: da estética, da língua, da sonoridade, do olhar sobre temas outrora

banalizados – enfim, uma seminal, inédita e promissora pluralidade de minúcias, inesperadas

para tão precoces protagonistas. Nesse sentido, desde o primeiro grande hit mundial (com a

canção Help!, em agosto de 1965, dando origem às primeiras turnês mundiais) observaria-se

um enfoque característico do estilo do grupo, por exemplo, no encare com olhar sério da

juventude e seus apelos – como fica emblemático ao observar-se a melodia e letra, maduras,

de Yesterday, de 1965, dissertando sobre o sentimento amoroso juvenil, sem puerilidade, mas

com melancolia e resultando em uma das canções mais belas e bem-sucedidas de todos os

tempos. No campo da intersecção estética, do pictórico com a sonoridade, encontra-se a

animação Yellow Submarine, de 1966, numa assumida atitude de encampamento das

experiências psicodélicas e lisérgicas – cujas formas sinuosas e tortuosas dos traços do

desenho retratando o grupo em uma narrativa surreal de viagem submarina, acompanhadas

das cores berrantes, comporiam alusão a importante vertente da Psicodelia, grassante ao

período, em grande apologia às impressões sensoriais obtidas pelo uso de psicotrópicos

(conforme destacam-se, àquele momento, as aventuras da pesquisa acadêmica do assunto,

realizadas por Timothy Leary). Há ainda, intersecção entre a estética da narrativa jornalística

(indústria da informação) e a música, como na canção A Day In The Life (1967), composta a

partir de recortes de jornais, abordando a partir de fragmentos linguísticos dos tabloides e

frases, desprovidos de pessoalidade e humanidade (talvez, a grande picardia intentada pelo

78MISIANO, Viktor. The Cultural Contradictions of The Tusovka. Художественный Журнал - Moscow Art

Magazine, Section: Analysis, Ed. nº1, 2005. Disponível em:

<http://moscowartmagazine.com/en/issue/41/article/794>. Acesso em: 24/06/2021.

58

quarteto) uma análise da vida cotidiana, dotada de impessoalidade e massificada pela

formalidade jornalística (em cuja melancolia, soa uma crítica sutilmente esboçada acerca da

banalização dos fatos da vida, todos os dias, substituíveis e consumíveis pelo público).

Há que se levar em conta ainda, que outras metamorfoses estilísticas evidentes nos

Beatles, seriam vetores característicos, absorvidos pela estética e circunstância do rock, em

geral, logo em seguida. Nesse sentido, a transfiguração de canções em importantes acervos de

imagens, vídeos do grupo, com os álbuns Sargeant Pepper's Lonely Heart Club Band, de

1967, e Magical Mistery Tour, e mais especificamente, as composições imagético-melódicas

da psicodelia em Yellow Submarine e Lucy In The Sky With Diamonds, demonstrariam a

partir de sua impressão estético-sonora o fenômeno de refluxo do ritmo, onde os outrora

influenciados britânicos devolveriam sua verve de influência aos músicos e à música de todo

o mundo. Registra-se nisso, por influência da estética psicodélica, em muito, disseminada pelo

quarteto britânico, mesmo nas experimentações e cadências musicais de outros importantes

músicos ao momento, como o virtuoso guitarrista afro-americano Jimi Hendrix (do grupo Jimi

Hendrix Experience, de 1966-70), dono de uma estilística muito peculiar na guitarra (entre o

cigano e o blues), o qual regravaria a canção de Sargeant Pepper's Lonely Heart Club Band –

toda dotada do seu drive característico e em tributo direto, à influência exercida pela

sonoridade experimentalista e de vanguarda emprestada pelo fab four.

Não obstante, em menção ao uso do rock como veículo e púlpito às inquietações e

conotações políticas muito atiladas, realizadas pelo conjunto, encontra-se a bem-humorada

canção Back In The USSR (de 1968), fazendo menção alegórica ao contexto da Guerra Fria79.

Em manifestações seguintes, particularmente à atitude de John Lennon, já como músico solo,

caberia ainda importante uso do status adquirido pelo estrelato como instrumento de

ressonância política – como no libelo pela paz inscrito na canção Imagine (de 1971) ou no

disco Power to the People, de 1972 (em composição e lançamento, apenas lançado em 1975),

em teor assumidamente crítico, social e ideologicamente.

Se nas décadas seguintes o estilo do rock transitaria por mudanças nítidas de feição,

considerando-se suas fases de contracultura e experimentalismo seminal – do Folk-

Psicodelismo Hippie, ao Experimentalismo Profissional Prog, ou passando pela nervosa

manifestação da agressividade Punk e dos estrondosos Hard Rock e Heavy Metal, na década

79GOMES, 2004. Op. Cit.

59

de 1970 em diante – a grande marca persistente nesse estilo ficaria associada ao seu conceito

não assimilado, do comportamento e da atitude, sonoramente (com marcas específicas de

proezas de palco e performances em linhagens estilísticas perpetuadas) e esteticamente (com

vestes e petrechos específicos em cada estilo ou época), sempre provida de elementos

provocantes na caracterização da fisionomia, trejeitos e produção musical – sob o emblema,

absolutamente, presente, de sempre manifestar-se como alguma forma de contestação.

Basicamente, é daí que se entende como desde os EUA do presidente Harry Truman

(tradicional, conservador)80, até uma Inglaterra ainda sob o Primeiro-Ministro Winston

Churchill (político conservador e chefe de governo do Reino Unido no período que aqui

concernente, entre 1951-55), as juventudes tensionadas, ainda que em diferentes localidades

e por pressão de diferentes tensões, se colocassem, simultaneamente, como protagonistas

desse ritmo musical e seu fenômeno de agência juvenil correlato, realizando o que aqui se

procurará defender ao longo do trabalho de que: o rock, apesar de estadunidense de origem,

integrou-se a fatores locais de sua experimentação, e neles veio a tornar-se um ritmo novo,

digno de novas considerações, que não mais apenas o rock n roll, mas um rock n roll dentre

tantos ambientes de inserção e fases do estilo. Exemplo disso, como em qualquer outro

movimento, fenômeno ou evento a perdurar pela história, a consideração de distintas

localidades e de modais distintos, pode ser evidenciada no rock dos EUA, onde, tampouco, se

caberia homogeneizá-lo – quer por locais, como o cenário rock nova-iorquino, completamente

distinto do rock de Seattle; quer por movimentos, como o punk distinto do grunge, por

exemplo; quer por épocas, como num rock dos anos 1970, bem distinto do rock dos anos 1990.

Esclarecidos estes predicados, fica bem mais apropriado entender de qual rock se

esteja falando quando este fenômeno/produto cultural, alcança à URSS (mais precisamente,

quando repercute na RSFS da Rússia): seria durante o período político conhecido como

Degelo (1955-1961) que o rock estadunidense de Little Richard e Gene Vincent, revisitado

através da sonoridade do brit rock dos Beatles (também tributário de Chuck Berry em

influências), viria chegar aos ouvidos de uma juventude soviética sob o governo de Nikita

Kruschev (1953-1961). Tal juventude (em russo, molodiozhi; comumente substituído por

komsomol, em referência à juventude soviética), com nuançado isolamento de circulação de

informações ocidentais, oriundo das características de administração adotadas durante o

governo de Stálin (1925-1953), seria essa que numa tradição de governo austera (pela guerra

80MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Abril Jovem. 1987.

60

e pelo cenário político interno) contemplara até então, muitos artistas de seu tempo – com

vulto, escritores, da prosa e poesia, músicos, intérpretes e dançarinos – serem exilados, presos

e proibidos de produzir sua arte e expressão de opinião (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006)

– pelo simples fato de não obedecerem ao alinhamento político (ideologia comunista, sob a

batuta de Stálin), estético (a do movimento realista concretista soviético ou realismo

concretista) e ideológico institucionais – em signos e periodização engendrados segundo

interesses oriundos da cúpula administrativa partidária, no Comitê Central, e o estilo de

governo de cada Secretário-Geral, em cada período de mandato.

Segundo a perspectiva adotada nesta pesquisa, após perscrutar caracteres culturais e

musicais locais importantes e anteriores ao rock na URSS caberia dividir a progressão da

música da URSS, vislumbrada ao longo do período coberto, como que composta em três fases

distintas: em primeiro lugar, o princípio da sonoridade soviética através da música estatal com

ênfase ao estilo clássico e de palco (no período entre 1922 a 1955); em segundo lugar, uma

fase de consumo mais francamente popular, mediada pelo Estado, mas dotada de

protagonismo de radiodifusão (magnitofonnaia kult’ura; de 1955 à primeira metade da década

de 1960, momento no qual o rock apareceria); e em terceiro lugar, uma fase de patrocínio

oficial ao surgimento dos grupos autorizados VIA (periodizada da segunda metade dos anos

1960 e por toda a década de 1970, sendo essa uma fase mais televisiva e comercialmente ‘pop’

– cujo termo equivalente russo é popsovy (CUSHMAN, 1995). Fases essas que

vislumbrariam, alternativamente, o surgimento de redes de cultura musical underground, cujo

fortalecimento e ápice chegaria na última fase da União Soviética – à década de 1980 e

princípio dos anos 1990.

E tudo isso, segundo as fontes atestam, nada disso teria começado sem a administração

de Nikita Kruschev: a chamada Ottepel – ou, em bom português, o Degelo Cultural e Político,

decorrido entre 1955 e 1964.

Voltando no olhar do tempo, seria agora, nesse chamado Degelo (em russo,

Оттепель; segundo KEPLEY JR., 2017), alcunha otimista atribuída ao período de gestão de

Nikita Kruschev, que muitos dos dissidentes de outrora, dentre estes, artistas vários, poderiam

ser reabilitados e re-entregues à circulação e veiculação públicas, acompanhando a isso, ainda

adiante, a possibilidade de novas experimentações de arte, oportunizando não apenas a entrada

de novos produtos da indústria cultural em solo soviético, como também a excursão de artistas

locais a irem visitar apresentações e festivais exteriores à URSS (como por exemplo, a ventura

61

da Nova Onda da Cinematografia soviética, de excursões relatadas nas memórias do diário

pessoal do diretor soviético Andrei Tarkovski, importante cineasta local, junto a outros

cineastas jovens promissores, para os Festivais de Veneza e Berlim, no final da década de

cinquenta81).

Da Era Kruschev, ficariam marcantes as atitudes em senso de integração da URSS

(relações exteriores; doutrina da Coexistência Pacífica) e da promoção juvenil – como no

florescimento de um cenário acadêmico integrador e cosmopolita urbano na URSS; os

encontros e apresentações culturais do cenário acadêmico e escolar os festivais de integração

e celebrações de música e artes internacionais (como exemplos, o 6º Festival Mundial da

Juventude e dos Estudantes, sediado em Moscou, em 195782, demonstrando o sinal de uma

nova política de boa-vontade ao cenário internacional e o Concurso Internacional

Tchaikovsky, em 1958, onde canções do clássico compositor russo, seriam interpretadas por

músicos competidores de diferentes regiões do mundo, sagrando-se campeão o pianista

estadunidense Van Cliburn)83; as múltiplas edições em competições esportivas (com a

retomada das Spartakiads, olimpíadas internas das nações soviéticas, acompanhadas da

participação inédita de atletas soviéticos nos Jogos Olímpicos de Verão, durante as décadas

de 1950-60); e os saraus de poesia e literatura dos pavilhões do povo, realizados no circuito

acadêmico soviético e em salões de uso comum das agremiações de trabalhadores

(fomentando a promoção de uma vanguarda literária, provida do frescor das novas atribuições

político-culturais do período).

Se o rock estadunidense já estava virando produto e sinal de diferenciação social entre

os jovens do outro lado do oceano (ou da fronteira com a Europa Ocidental), na realidade

soviética do Degelo, seria sua atmosfera de novidade que cativaria os jovens. Sobretudo, em

uma juventude que sentia estar passando por sua segunda revolução: a Revolução Bolchevique

lhes dera um ideal, mas as reformas de Kruschev, devolviam a liberdade de poder-se abrir

para o mundo – onde mesmo sem entender uma palavra do idioma entoado nas baladas

ocidentais que adentravam, se poderia balançar ao som da linguagem universal da música,

embalando um frenesi local da mocidade. Eis o que o rock representaria para além de terras

81HUNTER-BLAIR, Kitty. Time Within Time: The Tarkovski Diaries 1960-1970. Great-Britain: Faber and

Faber Limited. 1994. 82A fonte dessa datação remete ao encontrado em MALAKHOVA (2013). 83MCDANIEL, Cadra P. American-Soviet Cultural Diplomacy. Londres: Ed. Lexington Books. 1984. p. 32

62

anglófonas, uma fonte de energia (MAROCHKIN, 2011a), na tímida juventude soviética,

ainda reticente quanto aos seus papéis, limites e aspirações nesse cenário em transformação.

Conforme abordar-se-á mais adiante, distintas fases das sociedades, divergentes fases

dos governos, com singulares tensões juvenis e não menos distintas fases de um fenômeno de

cultura, se entremeiam na configuração e análise desse pretendido Rock Russo Soviético –

que consoante se adverte, não apenas existiu e foi possível, aquilo que por excelência o faria

passível de realizar-se e prosperar – procurando-se a partir disso, defender a hipótese do rock

como de pertencimento dos jovens, por sua agência e atitude, muito mais do que um

revanchismo/triunfalismo entre sociedades do Ocidente e Oriente.

Doravante, entender um pouco de como é fazer rock soviético russo, é também

entender o cerne de sua sociedade, seu sentimento, através da análise suas composições, de

como se produz suas letras e melodias, bem como a seus costumes, sensibilidades e,

notadamente, tradições e experiências. Nesse sentido, entender como aquela imensidão, ora

tida, como gelada, inóspita e hermética por tantos séculos, cuja ascendência viking, tártara e

cossaca (segundo Schilling, 2008), se amalgamou na psiqué de seus habitantes, ajuda e requer

passar por entender-se o produto também cultural de seus arranjos políticos, o catalisar dos

eventos sociais e o porquê da sua condição singular entre as nações euroasiáticas. E nesse

ínterim, muito relevante entender, primeiramente, um pouco do que seja e signifique ser

soviético, mergulhando, necessariamente, em meio às estruturas ocasionadas por seu grande

evento durante o século XX, a lhe repercutir inúmeras configurações de mundo, personalidade

e sociedade: uma ligeira imersão na estrutura desencadeada pela Revolução Socialista

soviética, que desde 1917, conformaria a sociedade da URSS com características próprias de

cultura e instituição, nuançadas e nada presumíveis aos seus antípodas ocidentais – tanto mais,

em se tratando de produção e circulação culturais, marcos estéticos e distinções de

musicalidade e seu papel como ofício e ferramenta na educação social.

1.4 O PRÓLOGO DO EPÍLOGO: A CONSTRUÇÃO DAS ESTRUTURAS DA CULTURA

SOVIÉTICA – UMA FUNDAÇÃO CONCRETA, REALISTA E DURADOURA

É chegada a hora das balas perfurarem os museus!

Leon Trotsky84

Todo artista, cada um que considere a si próprio um artista, tem o direito de criar livremente de

84DOBRENKO, Evgeny. A Revolução Soviética Entre A Cultura E O Stalinismo. Plataforma SCIELO - Estudos

Avançados. São Paulo, vol.31, n.91, Sep./Dec. 2017. pp. 25-39. Disponível em: <http:

//dx.doi.org/10.1590/s0103-40142017.3191004>. Acesso em: 08/07/2019

63

acordo com seu ideal. Entretanto, nós somos comunistas e não nos devemos deixar ficar com as

mãos nos bolsos (passivos), assistindo e permitindo que o caos se desenvolva ao seu agrado. Nós devemos sistematicamente guiar esse processo e dar forma ao seu resultado.

Vladimir Ilyich Ulyanov - Lênin85

A fim de se entender como o rock surgiu na União Soviética, cabe fazer-se alguns

esclarecimentos de maneira pregressa. Primeiramente, o eixo artístico da URSS desde a

Revolução de 1917, por preconização de Lênin86, seria organizado no intuito de que o aparato

estatal pudesse prover o povo de cultura, oportunizar-lhes o protagonismo nessa produção

cultural e transformar dessa cultura em veículo de educação e do engajamento (DOBRENKO,

2017). Para isso desde 1918 até 1921, seriam criadas três agências estatais o AgitProp87 (ou o

85LÊNIN, Vladimir; Lenin, O Kulture i Iskusstv (Lênin, sobre a Cultura e a Arte). Departamento de Arquivos

Históricos do Governo da URSS, Moscou, 1957; pp. 519-520 86Do cirílico, агитпроп; AGITPROP ou acrônimo de Otdel Agitatsyi i Propaganda, em tradução transliterada:

Departamento de Agitação e Propaganda (posteriormente, nomeado Departamento de Ideologia). Órgão do aparato

estatal soviético, voltado a realização de propaganda política (bolchevique), por meio de imprensa, publicidade

(panfletos) e artes em geral (literatura, teatro, encenações, filmes, etc.), preconizado no período revolucionário

(1917; e da Guerra Civil Bolchevique-Menchevique, 1918-21), por Lênin, para tornar possível e pulverizado o

acesso aos ideais socialistas (marxistas-leninistas). Utilizava-se de diversos meios de realização: desde a estrutura

pregressa à revolução (como a revitalização e estatização do jornal Pravda [Verdade], censurado pelo regime tsarista), até a inédita utilização de veículos de alarde público (trens, carros e motocicletas, pintados e decorados

com motivos e cores associadas à Revolução, que a carregar consigo e disseminar de material impresso e gráfico

nas comunidades interioranas remotas da URSS; bem como recurso pessoal de apoio, com propagandistas por

agitação oral, trajados com uniformes partidários). Tudo isso, no intuito de realizar reclame aos ideais socialistas

(posteriormente, soviéticos), confrontando e remindo uma vasta comunidade trabalhadora (servos, principalmente)

da chaga do não-letramento (analfabetismo letrado e funcional), através da oportunização de recursos de mídia

mais, universalmente, acessíveis (compreensíveis), capazes de principiar a instrução maciça (por meio ilustrado,

mais simples) e a educação nas distintas camadas populares – com provimento, a partir disso, do interesse

partidário de mobilização e engajamento político das massas, por conseguinte. Campanhas de letramento

específicas, junto às demais estruturas administrativas estatais – como o preconizado Comissariado Popular de

Esclarecimento, a ser melhor abordado em capítulo específico durante esse trabalho – também compunham a agenda deste segmento da burocracia soviética. Entretanto, o pastiche de suas produções artísticas muito prosaicas

e maniqueístas (compostas de personagens demasiado caricatos; assumidamente maus ou bons, propositadamente

compostos a fim de serem ilustrativos aos espectadores mais obtusos), fez com que com passar do tempo integrasse

uma porção desprestigiada – criticada – do ProletKult (como nos argumentos dos Cadernos de Cultura de Trotsky,

de abril de 1932), mas ainda assim, fundamental braço do conceito estético do Realismo Socialista Concretista

Soviético (principalmente sob Stálin, período em que houve maior império dessa estética estatal, estabelecida com

princípios de traduzir os ideais socialistas em formas de arte instrutiva). Ainda assim, expoentes artistas do período,

da poesia (como Maiakóvski) ou do teatro (inclusive, extra-soviéticos, como o dramaturgo alemão Bertolt Brecht),

figuram como importantes realizadores da proposta de agitação e propaganda, em suas respectivas áreas. Fonte:

KENEZ, Peter. The Birth of Propaganda State: Soviet Methods of Mass Mobilization, 1917-1929. Cambridge:

Cambridge University Press. 1985. Pp. 29-78. 87O termo Agitki, em russo quer dizer energia, agitação, ignição; remete ao conceito de fazer as ideias engajadas

entrarem em ação, serem insufladas, não ficarem na mera idealização. Há um ensaio de Sergei Eisenstein (cito

pela historiadora inglesa Jane Gaines, em sua análise sobre a produção do melodrama cinematográfico pré-

soviético), em que o cineasta soviético, debatendo em como se chegar ao agitki através do cinema, para dar-se

energia a juventude soviética (komsomol) e despertar nessa juventude a ação que motivaria o socialismo e mais

adiante o comunismo, criticiza de como o cinema soviético possui as diretrizes, mas carece do mecanismo,

enquanto a produção norte-americana, possui deste mecanismo, mas o utiliza de forma frívola, sem zelo pela

mensagem educadora formativa [entretenimento]. Eisenstein vai escrever sobre o cineasta estadunidense D.W.

Griffith, à década de 1920, e de como os EUA haviam descoberto a energia (agitki) para o cinema americano.

Fonte: GAINES, Jane. Revolutionary Theory/Prerevolutionary Melodrama. Discourse Post-Future/Soviet &

Eastern European Cinema Vol. 17, No. 3, Wayne State University Press. 1995.

64

Escritório de Promoção de Propaganda Partidária e Panfletária, para a criação e produção de

material propagandístico gráfico e audiovisual; cujo um dos braços, seria a Goskino, ou do

círilico transliterado, Gosudarstvenny Po Kinematographyi, o Escritório de Produção de

Cinema e Audiovisual); o Glavlit88 (ou Escritório para acabamento e mediação e recurso das

produções artísticas de cunho literário, inicialmente; na prática a funcionar como agência do

governo para mediação de verbas de produção artística e órgão de censura e avaliação de

conteúdos)89; e o ProletKult90, facção não-institucionalizada governamentalmente pelos

artífices da Revolução, instituída enquanto movimento e departamento de Produção de

Cultura Popular, a receber colaborações e produções dos trabalhadores, camponeses e

operários.

Sobre o ProletKult (acrônimo de Proletarskaya Kultura; Cultura Proletária), deve se

considerar que sua concepção inicial, se dera a partir de discussões iniciais de 1904-05, entre

dois, então, parceiros de debate de filosofia (entre as linhas do pensamento materialista

histórico-dialético de Karl Marx e do Empírio Criticismo, de Ernst Mach), Vladimir Lênin e

Alexander Bogdanov. Companheiros de debate e engajamento político (integrantes do então,

Partido Social-Democrata Revolucionário da Rússia, que reuniria muitos dos membros que

futuramente, fundariam o Partido Bolchevique, antecessor do Partido Comunista da União

Soviética91), a Lênin e Bogdanov – respectivamente um que, àquele momento, advogado,

88Do cirílico, Главлит; GLAVLIT ou acrônimo de Glavnoye Upravlenie po Delam Literatury i Izdatelstvo, em

tradução transliterada: Direção-Geral de Assuntos Literários e Editoriais, posteriormente renomeado (à década de 1980), Direção-Geral dos Segredos de Estado na Imprensa (tradução transliterada de Glavnoye Upravlenie Po

Okhrana Gosudarstvenyikh Tain V Pechaty). Principal órgão de censura do aparato administrativo soviético,

fundado em 1922 e com funcionamento até o ano de 1991. Seria responsável, inicialmente, por direcionar o setor

de publicações na URSS, em cuja qual a forma escrita (literatura) figurava como principal ferramenta de instrução

e difusão dos ideais socialistas soviéticos, a constituir, portanto, em grande importância ao aparato burocrático

estatal, no sentido de controlar materiais e conteúdos, e de mitigar o acesso às notícias e propagação pulverizada

de ideais inconvenientes aos anseios da administração local. Com o progredir das tecnologias associadas a difusão

de mídia ao longo do século XX (advento do Cinema e, posteriormente, do Rádio e da Televisão), se desdobraria

em demais setores de censura específicos. Exemplificam isso, os escritórios censores de conteúdos materiais de

caráter audiovisual – respectivamente, para o cinema, com a GOSKINO, acrônimo de Gosudarstvenny Po

Kinematographyi [ou Departamento de Supervisão Cinematográfica], e para rádio e televisão, com a

GOSTELRADIO, acrônimo de Gosudarstvenyi Po Televisor i Radio [ou Departamento de Supervisão de Conteúdos de Televisão e Rádio]. Em seu auge, o Glavlit seria composto por mais de 70.000 integrantes da

burocracia administrativa, a serem incumbidos na tarefa de rigoroso processamento de todas as formas de mídia

de massa na URSS. Fonte: NEPOMYNYASCHCHY, Catharine; In: SMORODINSKAYA; EVANS-ROMAINE;

GOSCILO, 2007; p. 230. Verbete: Glavlit. 89BUKOVSKY, Vladimir. To Build a Castle: My Life as a Dissenter. New York: Viking Press. 1979. 90DOBRENKO, 2017. Op. Cit. 91A trajetória tortuosa desse(s) partido(s) se deveria ao clima de perseguições e conflitos político-militares do final

do século XIX e princípio do século XX. No precursor, Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR),

agremiação formada no estertor do século antecedente (no primeiro Congresso do Partido, em 1898), com ideais

socialistas marxistas e liberais democráticos, seriam influentes nomes como Georgi Plekhanov, Vladimir Ilyich

Ulyanov (Lênin), e Lev Bronstein (Trotsky). Em 1903 (II Congresso), haveria uma cisão na linha ideológica

65

agitador político e periodista, enquanto que o outro, escritor, ensaísta e esteta – lhes inquietava

a ideia sobre o conceito a se adotar como movimento de Cultura Proletária, proveniente do

empreendimento da revolução e acerca de que destino a cultura – e que cultura – deveria

tomar, e qual papel desempenharia, aos meandros de uma Revolução bem-sucedida e durante

o processo de seu período sucessor.

Lênin defenderia que a cultura deveria ter papel assumidamente político, engajador,

por meio da superação da falta de instrução da massa popular, a qual buscaria prover através

de uma educação socialista, a qual utilizaria os resquícios e artefatos da cultura anterior (pré-

revolucionária; cânone burguês consagrado), como ferramentas re-encaminhadas pelo olhar

materialista e socialista, a consecução dos objetivos revolucionários (o que buscaria levar a

cabo com Trotsky, através do AgitProp e do Departamento de Esclarecimento Do Povo,

órgãos vinculados à questão da cultura, com preocupação política instrutiva, instaurados após

o curso da Revolução de 1917 e da vitória da facção bolchevique do PCUS na Guerra Civil,

de 1918-22).

partidária: os Mencheviques (minoria, em russo), pleiteando uma revolução costurada a partir de alianças políticas

com os setores liberais, esperando-se o desenvolvimento estabelecido do capitalismo para iniciar sua contrafação;

já os Bolcheviques (maioria, em russo), entenderiam uma revolução sem tréguas aos burgueses, sem alianças e

com o estabelecimento do poder estatal sob o domínio da classe operária e dos camponeses, unidos sob um só

partido. Tal cisão precipitaria os eventos da mal-fadada Revolução de 1905, onde se indispondo contra a campanha

militar da Rússia contra o Japão, a carestia geral e a má administração do Czar Nicolau II, tentariam sua deposição.

O saldo seria negativo aos revolucionários, que vencidos seriam criminalizados e perseguidos ou exilados – e o

partido dissolvido. Somente com a reorganização (reagregando mencheviques e bolcheviques, novamente, em

1906, no IV Congresso) e a nova mobilização política promovida pelos sovietes (conselho, em russo; conselhos

populares regionais permanentes de trabalhadores), por volta do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que novamente, conclamando o povo a se insurgir contra as más condições de vida, a crueldade e a incapacidade

logístico-militar administrativa do Czar (que reconduzira em desastrosa campanha o exército russo, no conflito

mundial), os resquícios do partido, agora organizado em facções Mencheviques e Bolcheviques, separadamente

(de modo oficial, no VI Congresso), voltaria a se reconfigurar para a revolução. A agremiação partidária

Bolchevique (Bandeira Vermelha; agremiação essencialmente de orientação marxista), liderada por Lênin e

Trotsky, seria a grande promotora da Revolução de 1917, sendo instaurada entre as facções protagonistas (Bandeira

Branca, de liberais; Bandeira Negra, de anarquistas de Makhnov; Bandeira Verde, populares camponeses sem

ideologia estabelecida politicamente) como principal artífice e administradora de regiões fundamentais do

território russo, bem como setores vitais ao prosseguimento da campanha (como os transportes ferroviários e o

Exército Vermelho, chefiado por Leon Trotsky). Após a campanha vitoriosa (na Revolução de 1917 e da Guerra

Civil que se daria entre as facções), ainda sob o nome de POSDR, a facção Bolchevique, liderada por Lênin, atua intensamente na construção e implementação do Socialismo. Em 1918, após o VII Congresso, o POSDR adota o

nome Partido Comunista da Rússia (PCR) e se torna, essencialmente, bolchevique. No X Congresso, as facções

internas são banidas – há a unificação partidária (o bolchevismo resiste ainda como ideologia). Em 1922, seria

fundada, oficialmente, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ainda sob o mandato interino de

Stálin. Com isso, o PCR teria sua denominação alterada em 1925 (XIV Congresso), em Partido Comunista

Unificado-PCU; como partido único da recém-fundada instituição. Culminando com sua denominação (ainda sob

o secretário-geral Stálin) em 1939, como: Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –

PCURSS (no XVIII Congresso). Em 1952, por ocasião do XIX Congresso, o PCURSS passaria a ser chamado, de

modo definitivo, como Partido Comunista da União Soviética – PCUS. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987;

MEDVEDEV, Zhores A.; MEDVEDEV Roy A. Um Stalin Desconhecido. Rio de Janeiro: Record. 2006.

66

Bogdanov, por outro lado, entenderia que a dimensão de uma cultura revolucionária,

deveria ser também ela uma concepção revolucionária, depositora da forma anteriormente

postulada do cultural (iconoclasta ao cânone burguês), e criadora de um novo conceito de arte

(o que, numa das linhas propostas, redundaria no futurismo, grupo estético formado por

indivíduos que propugnavam a obliteração das formas/conteúdos provenientes da arte

estabelecida, sua aniquilação, vista como monumento burguês em sua essência), caso

contrário, a arte e a cultura decorrentes do modelo anterior (burguês e monárquico),

constituiriam em si, uma perigosa brecha de permanência desse próprio modelo, dentro na

realidade revolucionária – precedente de que a partir de seu exemplo, se evitasse a constituição

da autêntica revolução e seu progresso consequente (DOBRENKO, 2017).

Lênin defenderia ainda, que a cultura revolucionária deveria figurar como elemento

controlado e assistido pelo aparato estatal e a interferência do partido; enquanto Bogdanov, a

achava incapaz de produzir originalidade e autenticidade, se deixada sem o elemento de uma

livre manifestação – extrapartidária. Demasiado irretorquíveis de suas posições, a disputa

ideológica da cultura e seu viável de execução, acenaria, entre outras condições, com a vitória

à perspectiva leninista. Sendo que este seria alçado o líder mor do processo revolucionário

(desde a intentona mal sucedida de 1905, até a campanha vitoriosa de 1917), ao passo que o

opositor, figuraria ainda como um coadjuvante no processo, chancelado por Lênin, mais a

frente, de um procedimento junto ao ProletKult, como faceta não atrelada à administração e

encaminhamento partidários (desvinculação essa, a qual cessaria após o exílio de Trotsky e

expulsão dos Companheiros de Viagem, da URSS, durante o rigor stalinista, realocando o

ProletKult como braço estatal da cultura)92.

Seria o ProletKult, precisamente uma das grandes preocupações que figurariam no

interesse de outro importante artífice da revolução: Leon Trotsky. Como consequência ao fato

de que, após a morte de Lênin em 1923, assumisse como sucessor mandatário, Josef Stálin, o

qual, por dissidências políticas pregressas com Trotsky, o exilaria (destituindo-o do Partido

Comunista da União Soviética - PCUS), levando assim que mantivesse como vínculo com a

URSS apenas correspondência de mensagens com o grupo organizador da Cultura Proletária:

os chamados Companheiros de Viagem93, amigos pessoais de Trotsky, intelectuais e artistas,

92DOBRENKO, 2017. Op. Cit. 93Aqui citados os de DOBRENKO, 2017. Entretanto, das referências aqui utilizadas, como TROTSKY (1932),

aparecem os companheiros de viagem com a grafia camaradas de estrada, em texto do jornalista francês Maurice

Parijanine, a cobrir reportagem com Leon Trotsky, em séries de correspondências em torno da questão da cultura

proletária (Reportaje A La Cultura Proletária, Abril de 1932).

67

que amealhados desde antes de seu ingresso nas realizações revolucionárias, seriam

convocados a integrar as discussões sobre a composição de uma forma de arte inovadora

atrelada aos princípios de revolução, socialismo e às premissas de ruptura com a vigente

iconografia artística.

Ressalte-se que, ainda sob o principiante governo vigente, seriam os companheiros de

viagem, tolerados com certa discricionariedade de ação, sob o rigoroso regime. Em uma das

correspondências referidamente trocadas entre o grupo e o revolucionário, Trotsky comentaria

duramente contra os encaminhamentos da cultura na URSS, sob o condão da estética Realista

Concretista, relatando dentre suas frustrações, o baixo teor de qualidade e originalidade das

obras artísticas em vanguarda na estilística estética partidária (da literatura à pintura,

principalmente), em comparação ao que se havia nutrido como expectativa para esta produção

autêntica e proletária cultural, e seu produto real, logo nos primeiros anos após a revolução94.

Eis o excerto do revolucionário, em comento ao assunto em troca de cartas com o

jornalista francês Maurice Parijanine, em Reportagem a Cultura Proletária, datado de 1932:

Exprimo minha atitude em relação à cultura proletária em meu livro Literatura e Revolução. Oposição da cultura proletária à cultura burguesa é incorreta, ou apenas

parcialmente correta. O regime burguês e consequentemente também a literatura

burguesa, desenvolvida ao longo de vários séculos. O regime do proletariado tem uma

vida muito curta, é um regime de transição para o socialismo. Enquanto o regime

transitório (a ditadura do proletariado) existir, ele não pode criar uma cultura de classe

que seja de certa forma completa. Ele só pode adaptar os elementos de uma cultura.

O objetivo do proletariado não é criar uma cultura proletária, mas produzir uma

cultura socialista baseada na sociedade sem classes (TROTSKY, 1932; traduzido aqui

do espanhol).

Dissertando acerca das precipitações com as quais se deveria tomar cuidado, ao

preconizar o empreendimento de um ProletKult, Trotsky afirmava em torno da proposição de

que não estivessem ainda prontos seus protagonistas, demasiado grosseiros e insofisticados

de uma educação formal no Socialismo95. O revolucionário volveria a carga, com a morte do

líder Lênin, com grande furor à figura de Stálin, onde em ocasião futura, seria empreendido o

conceito estético preconizado de ser o tradutor do marxismo em forma de arte – o Realismo

Concretista Soviético, de que se falará com mais detalhes a seguir96. A esse respeito,

94TROTSKY, 1932. Reportaje a La Literatura Proletária, Abril de 1932. Disponível em:

<http//www.ceip.org.ar/APENDICE>. Acesso em: 08/06/2019. 95Segundo Trotsky: ‘Na medida em que uma cultura é proletária, ainda não é cultura, a cultura não é mais

proletária’; Parijanine segue a esse respeito: Sua ideia é muito clara: uma vez que o proletariado toma o poder,

quanto mais alta sua cultura, mais ela deixa de ser proletária para se dissolver em uma cultura socialista. Fonte:

TROTSKY, 1932. Op. Cit. 96A estética em menção possui uma variedade de nomes para descrever o mesmo movimento: Realismo Concreto,

68

desacatando a manifesta mediocridade da produção de arte literária em voga na URSS,

comentaria o seguinte:

Caros amigos: Eu recebi o interessante jornal mural, e a cópia do Oktyabr que contém

o artigo de Serafimovich. [2] Acredita-se que essas curiosidades

dos labirintos burgueses de Lettres estão destinadas a criar uma literatura" proletária.

Obviamente, não é mais do que uma falsificação pequeno-burguesa da segunda ou

terceira ordem. Seria igualmente correto dizer que a margarina é "manteiga

proletária". [3] O bom e velho Engels caracterizou perfeitamente esses senhores,

especialmente quando se referiu ao escritor francês "proletário" Valles. .[4] Engels

escreveu a Bernstein em 17 de agosto de 1884: “Não há razão para você ser tão

satisfeito com o Valles. É um charlatão literário deplorável, ou melhor, com

pretensões literárias, o que representa absolutamente nada por si mesmo. Devido à

falta de talento, ele superou os elementos mais extremistas e tornou-se um escritor "com uma causa" para trazer à luz sua literatura podre. [Aqui o sublinhado é de

Trotsky. M.Parijanine]. Nossos clássicos eram implacáveis nesses assuntos, mas os

epígonos transformam a 'literatura proletária' em um saco de mendigos em que eles

pegam as migalhas da mesa burguesa. E quem não está disposto a aceitar estes

mendigos como literatura proletária é chamado de 'capitulador'. Ah! Aqueles

personagens vulgares! Aqueles charlatães! Essas pessoas desagradáveis! Esta

literatura é ainda pior do que a malária que já está começando a se espalhar aqui de

novo ... (TROTSKY, 1932; traduzido aqui do espanhol)97

Sua crítica provinha do próprio conceito de cultura em debate entre os socialistas

àquele momento. O qual se circunscreveria nas demais discussões de cultura colocadas no

amplo cenário de deposição de uma cultura burguesa, para instalação de uma cultura

socialista. A esse respeito, pontuaria (em nova correspondência a M. Parijanine, em 2 de abril

de 1932):

Uma nova literatura e cultura não podem ser criadas a partir de indivíduos isolados que vêm das classes oprimidas. Eles só podem ser criados por toda a classe, todo o

povo, uma vez libertos da opressão. Violar as proporções históricas - que neste caso

significaria superestimar as possibilidades da literatura e da cultura proletária - tende

a desviar a atenção dos problemas revolucionários, derivando-os aos problemas

culturais. Ela isola jovens escritores ou "aprendizes" de escritores de sua própria

classe. Ela os corrompe moralmente e, com demasiada frequência, os torna imitadores

de segunda classe com pretensões ilusórias. Na minha opinião, isso e apenas isso é o

que temos de lutar implacavelmente ("TROTSKY, 1932; traduzido do espanhol)98

Não seria, a proposta estética atacada, no entanto, resolução tomada por acaso:

detentores de três ferramentas poderosas de organização e distribuição da cultura na URSS (já

referidas supra), os dirigentes revolucionários – com vulto, sob o regime de Stálin –

perceberam a necessidade de um elemento ideológico e cultural, que se veiculasse como teor

estético, a fim de que se traduzisse às massas (majoritariamente, iletradas) os ideais políticos

revolucionários nas mais variadas formas de arte. Para isso, somava-se ao aparato, a criação

Realismo Concretista Socialista, Realismo Concretista Social, Socialismo Concretista ou Realismo Socialista

Concretista Soviético. 97TROTSKY, 1932. Op. Cit. 98Idem.

69

de um padrão estilístico de estética engajada a fim de funcionar como uma ferramenta

imaterial de orientação para o produto de realização artístico-intelectual alinhado à revolução:

o Realismo Materialista Soviético, uma corrente estética que insuflaria nos artistas locais um

espírito de ode a realização revolucionária, na figura do trabalhador, do soldado, do militante

e da mobilização, e pelo ufanismo à URSS. E por seu caráter materialista e realista, sempre

preconizando que em tais produções se pautasse como utilidade primeira à produção artística,

a função de educação e o ensinamento de valores partidários e desprovidos do apego a

conotações burguesas decadentes. Assim, por exemplo, ao invés do produzir-se de obras de

fantasia, ficção irrealista, melodramas e outros dilemas diletantes, dava-se insumo a produção

de obras extraídas a partir da realidade, nas quais se pudesse explorar o sentimento, a angústia,

a esperança, a revolta, a miséria humana e a redenção a partir do trabalho e da militância e do

engajamento político (DOBRENKO, 2017).

As características diferenciais desse movimento estético em relação a outros tantos

correntes à época, era o que estava em jogo: enquanto correntes estéticas como o Dadaísmo99

e o Surrealismo100, por exemplo, se voltavam à desconstrução da forma de arte (como

propusera de forma similar, Alexander Bogdanov) ou representariam em forma imagética o

subconsciente da teoria freudiana, a preconização do Realismo Concretista seria bem mais

direta e palpável: propaganda e consolidação em estandarte fisionômico da doutrina socialista.

Se um quadro de Dali se torna complexo ao olhar em sua tarefa de pincelada psicanalítica da

interpretação do sonho, de função estética pela estética, embora distinta em objetivo, não

menos árdua era a tarefa do Realismo concretista, em como traduzir um sonho possível de um

socialismo ideal – e real. A querela em que se adentrava, é que enquanto ia se fazendo de fato

o Socialismo, em medidas políticas, em Novos Planos Econômicos, em campanhas militares

e de modernização da União Soviética, ia se construindo, simultaneamente, essa fisionomia

do que representava o verdadeiro espírito desse Socialismo. Acabaria, em muito de sua

produção, em se tornar um pastiche publicitário, editor das características reais da vida

socialista, selecionando apenas os momentos dignos de serem transformados em panfleto: e

99Movimento artístico fundado em Paris por artistas franceses e alemães, com destaque a contribuição do artista

plástico romeno Tristan Tzara (Manifesto Dada), em 1919, que se opunha à beligerância e a nocividade da Primeira

Guerra e se traduziria em dimensões estéticas do tema pacifista-crítico de desconstrução estética, na pintura,

literatura e escultura. Fonte: HOBSBAWM, 1995; p. 144 100Movimento artístico-estético de vanguarda, fundado na França por André Breton, em 1924, com o Manifesto

Surrealista. Seu princípio estético de orientação seria o da recusa da forma convencional de sentir e a expressão

fisionômica dos processos de inconsciente, tradução em imagem do processo do sonho e da teoria psicanalítica de

Freud. Seriam seus baluartes, pintores como o espanhol Salvador Dalí, o francês René Magritte e o próprio Breton,

na literatura. Fonte: HOBSBAWM; 1995; p. 144

70

sob essa acusação, restaria considerado como um idealismo sobre o socialismo real que se

presenciava. Por exemplo, se as fábricas de metal pesado da engenharia, produziam bem, ou

as minas de carvão forneciam um exemplar modelo de conduta, como o mineiro Stakhanov101,

isso se tornava digno de figurar esteticamente, se tornando traduzido realista

concretisticamente. Agora, se um grupo de insurgentes, por divergências políticas, tinha de

ser reprimido pelo exército ou mães reclamavam da ausência de pão no mercado local, isso

jamais figurava como elemento retratável pelo movimento estético em questão. Por esse

modo, traía-se o que havia feito Gorki com suas denúncias da amargura e sordidez da vida,

ou aquilo que fora feito da obra de Dostoiévski, exemplificando a miserabilidade humana, e

se impunha uma versão irreal da realidade nas obras. Essa crítica, que se fazia em análise ao

produto do movimento, fazendo o balanço entre suas pretensões e as reais realizações

alcançadas, ficaria marcada na análise de GÜNTHER (apud DOBRENKO, 2017):

[...] são características dessa linha estética, o super-realismo, retrato da realidade com

intuito de demonstrar da arte provinda diretamente do elemento retratado, mas que

não se prende ao naturalismo, de modo que seleciona um aspecto idealizador do

retratado e nisso, cria uma noção que supera a do real, a aproximar-se do mito,

monumentalidade, se afigura e afilia em torno do épico e do grandioso, fazendo com que cada obra possua características que a categorizem como manifestação categórica

da representação ou forma máxima de arte, em cada gênero artístico, heroicidade,

remete a um ideal de representação máxima do elemento exemplar, redentor na arte,

algo lendário ou artificialmente concebido pela alegorização da vida,

autotrofia/tipicidade, na medida em que retrata um ideal da realidade, cria do recorte

retratado a própria conotação do que seja o real, e nesse reinterpretar, constrói aquilo

que esteja interpretando. Em outras palavras, se o ideal estético socialista concretista

buscava retratar o que de socialismo havia na realidade, ao fazer seu retrato, criava

esse próprio conceito de socialismo, retirado do real, mas que não verificável na

totalidade de seu elemento [...] apenas em seu produto artístico, onde em lugar de

conseguir capturar elementos sutis de um socialismo já impresso na realidade, a

recortava.

Seriam expoentes dessa linha estética, autores soviéticos em diversas searas ao longo

do tempo: Vladimir Maiakovski, na poesia (poeta revolucionário, em mobilização e estilo,

associado ao movimento Futurista; autor de À Esquerda, em 1920); Maxim Gorki, na

literatura (escritor romancista russo, guindado ao patamar de ícone maior da literatura do

Realismo Concreto Socialista; detém grande marco de sua produção literária com a escrita de

A Mãe, de 1906); Sergei Eisenstein (diretor russo e pioneiro do cinema soviético, contribuinte

101Operário modelo da URSS, que à década de 1930, teria conseguido bater o recorde de extração de carvão

mineral, utilizando-se apenas de sua ferramenta de trabalho, um método de divisão de tarefas entre carregadores e

extratores da carbonífera local e o princípio pessoal de fazer o melhor possível naquilo que fosse sua função, por

seus companheiros e pelo avanço do Socialismo. Seria levado por Stálin a excursionar, por breve período, pela

União Soviética, a fim de que ensinasse seu método de trabalho e ideologia pessoal aos diversos setores da

produção. Fonte: COURTINE, Jean-Jacques. Os stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo

ostentatório na cultura americana do corpo. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade. 1995. pp. 81-114

71

com sua obra magna, na película Encouraçado Potemkin, 1925) e Vsevolod Pudovkin (diretor

russo da geração pioneira da Universidade estatal de Cinema Soviética, fundada em 1918, por

preconização de Lênin, e onde desenvolveria-se, a partir de Pudovkin, a técnica de produção

chamada de justaposição, na cinematográfica montagem soviética), na cinematografía;

Alexander Rodchenko na fotografia (fotógrafo russo do AgitProp, com grande influência da

chamada tomada geométrica, cujas imagens em muito contribuiriam à composição estética e

comunicadora dos panfletos partidários; elenca-se de sua obra, O Pioneiro com a Corneta),

na música com Dimitri Shostakovich (sinfonista russo, criador de montagens de ópera e

ballets; conhecido por grande contribuição com a montagem do ballet The Bolt [tradução

inglesa], de 1938) e na produção musical áudio-visual, Dziga Vertov (Enthusiasmus: Sinfonia

Donbassa), entre outros. A fim de melhor ilustrar, sinestesicamente, esta profusão de ideais,

transformada em obra artística, servem como amostra os exemplares de esculturas oferecidos

a Mao Tsé-Tung, como presente dado por Stálin, logo após a Grande Marcha (1947-1949),

onde as feições dos trabalhadores e suas posições esculpidas em concreto remetem a estética

da arte moderna, no sentido da economia de detalhes e o aligeiramento dos traços

fisionômicos, ao mesmo tempo em que remetem a imponência esperada para o ato

revolucionário protagonizado pelos trabalhadores através de grandes membros (braços,

pernas, mãos e pés), cuja a robustez, procuraria sugerir o fato de que no território soviético

não havia espaço para a delicadeza ou vacilação na trajetória revolucionária e nem à

sensibilidade com mesuras burguesas (muito bem representada como uma ojeriza aos traços

finos e, em seu lugar, dando-se ênfase ao investimento na representação monolítica e sólida

de figuras fortes e pujantes dos homens e mulheres protagonistas do ideal soviético)102.

Esta estética realista soviética, bem como o aparato estatal correspondente, constituiria

um alicerce muito peculiar para determinadas produções soviéticas e, simultaneamente, um

entrave extremamente grande para outras. Por exemplo, artistas que houvessem sido

simpáticos ou partícipes na causa bolchevique, como o poeta Óssip Mandelstam (1891-1937),

mas não se dispusessem ao ofício de sua arte pelo caráter da vigente máquina de propaganda,

eram considerados subversivos e perseguidos (HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 98). Em

outro exemplo, as produções de cunho político-partidário reflexivo em sentido opositor ou

crítico ao regime, bem como, obras de ficção científica ou fantasia, seriam barradas, vetadas

e, inclusive, poderiam ensejar a investigação de seus autores e resultar em sua prisão. A

exemplificar essa afirmação, o caso do escritor russo Alexander Soljenitsin, preso durante a

102SOUZA, Henfil de. Henfil na China: Antes da Coca-Cola. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Codecri. 1981.

72

Era Stálin, e que reabilitado em 1962, pôde realizar e publicar de sua obra Um Dia Na Vida

de Ivan Denissovitch, literatura de conteúdo revelador sobre a situação dos campos de trabalho

forçado da URSS, o qual seria inviável de veiculação no regime anterior ao Degelo. Outra

crônica interessante, refere-se a obra do autor polonês Stanislaw Lem, que teve alguns de seus

escritos recolhidos na primeira versão de sua obra Hospital Intergaláctico, de 1953, por

conteúdo suspeito, fazendo-o migrar, posteriormente, por seguridade pessoal e melhor

possibilidade de publicação, para o gênero da ficção científica (cunho menos político, com

menor chance de comprometimento à observação censora). Soljenitsin ficaria mundialmente

afamado pela denúncia categórica do regime prisional estatal com a obra Arquipélago Gulag

(1957-68, versão clandestina em manuscrito; publicado do russo ao francês em 1973-74) e

Lem, ficaria conhecido como autor do romance de suspense da Corrida Espacial103 (do lado

soviético), Solaris, de 1961 – posteriormente, adaptado ao cinema pelo diretor soviético

Andrei Tarkovsky, em 1972.

Sobre esse aspecto do uso político da corrente estética em referência, deve-se observar

que a direção ideológica da URSS no momento de sua realização, ficava a cargo desse

estrategista político, agressivo e pouco dado a inclinações sobre o sublime e o belo104, com

uma finalidade nada sutil: o culto à personalidade de Stálin, que seria (re)nutrido, após a

Grande Guerra Patriótica, de 1946 em diante, através do serviço de dois comissários leais e

implacáveis, Andrei Zhdanov (o mesmo que daria nome ao Relatório em resposta à Doutrina

Truman) e Vyacheslav Molotov – com destaque ao primeiro, a quem se atribuiria o nome da

era de terror de Zhdanovchichina, ou Terror de Zhdanov105 – promotores da política

103Disputa ocorrida durante a Guerra Fria, sucedendo a primeira fase da chamada Corrida Armamentista (Arms

Race), entre os protagonistas estadunidenses e soviéticos, envolvendo a questão da prospecção de tecnologia

bélica, onde a intenção com os avanços aeroespaciais, apresentaria uma continuidade do intuito de propaganda da

pujança técnico-militar de cada uma das potências, em forma de estratégia de defesa/ataque, em caso de conflito

deflagrado entre as mesmas. O termo em inglês para definir os eventos desse período, cunhou-se como Space Race

(Corrida Espacial), onde os avanços de cada sociedade ficavam medidos, segundo essa circunstância, pelos

avanços de sua capacidade tecnológica aeroespacial. Como exemplo disso, o lançamento dos Sputnik 1 e 2 (do

cirílico, Companheiro), satélites soviéticos lançados entre 1957-59 e o voo extraorbital do cosmonauta russo-

soviético Yuri Gagarin (Projeto Vostok; do cirílico, Oriente), em 1961, colocariam a URSS em vantagem nessa carreira espacial. Entretanto, ao final da década de 1960, o projeto da NASA (National Aeronautics and Space

Agency; traduzido livremente: Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço estadunidense), faria o pouso bem-

sucedido de três astronautas (Neil Armstrong, Michael Collins e Edwin ‘Buzz’ Aldrin) na superfície lunar (1969),

e colocaria, brevemente, um fim na disputa espacial, com vantagem norte-americana. Após isto, ambos os países

trabalhariam em esforço cooperativo na década seguinte, para poder realizar a colocação em órbita da Estação

Espacial Internacional (International Space Station, ISS; designada oficialmente como Soyuz, do cirílico, União),

em 1972-73. Fonte: Verbete Space Race, ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA; 104Utilizando de forma irônica, a expressão mordaz de Dostoiévski na obra Notas do Subsolo, de 1864, ao referir

ao pensamento kantiano, utilizado por certos críticos e intelectuais presunçosos de sua época, enquanto banalizava-

se de questões de miséria moral. Fonte: DOSTOIÉVSKI, 2013 105O chamado segundo terror, posto que o primeiro se daria durante os Expurgos (1934-1938), na fase de 1937-

73

persecutória mais intensiva durante a fase mega propaganda do pós-guerra – em lugar do

carisma faltante à Stálin. Não por acaso, a fonte emanadora de significativa parte dessa

vertente de publicidade/arte realista concretista, seria o AgitProp, enquanto Diretório Central

de Propaganda do governo. Nem por acaso, por exemplo, uma asseveração ao fato de que toda

remessa de arte tivesse de passar com anterioridade, necessariamente, pelo crivo dos órgãos

de censura e processamento de informações soviéticas. A questão era crucial: havia a

necessidade premente de reconstrução da União Soviética e uma forte urgência de não deixar

que o heroísmo da campanha militar vitoriosa viesse projetar ideias revolucionárias

fragmentadoras na unidade ideológico-territorial política da URSS, ou mesmo possíveis

nomes heróicos em concorrência à Stálin, o qual, por essa época, já daria sinais de uma saúde

cada vez mais prejudicada, demonstrada com constantes temporadas de retiro nas regiões

campestres ao redor de Moscou. Para endossar tal observação, observa-se o argumento de

MEDVEDEV, MEDVEDEV (2006, pp. 81-82):

O culto de um líder nunca pode basear-se exclusivamente no terror e na falsificação

da história, embora em seu Discurso Secreto de 1956, Kruschev alegasse que assim

havia sido. É preciso também que haja outros elementos, acima de tudo, realizações

concretas em escala histórica. Costuma haver também essa rara qualidade psicológica

e de personalidade que ficou conhecida como carisma. Max Weber pôs essa palavra

em circulação pelo fim do século XIX, sustentando que havia uma diferença

fundamental entre autoridade decorrente da lei e da tradição e a autoridade gerada por uma personalidade carismática. [...]. Mas existe ainda um outro fenômeno, o

pseudocarisma, que resulta em grande parte de propaganda muito eficiente ou

megapropaganda, não sendo indício de um intelecto extraordinário ou incomparáveis

dons proféticos. A megapropaganda contribuiu para criar uma aura de carisma ao

redor de Hitler, e foi também o que aconteceu com Stálin. [...] O poderio ilimitado

pode ter-se escorado no medo e num aparato de terror, mas foi fortalecido pela

existência de uma autêntica adoração de massa, estimulado e nutrido por uma rede de

propaganda e censura ubíqua e extremamente eficaz, capaz de sufocar qualquer

crítica.

Embora o poder do mandatário dos Expurgos não fosse apenas embasado na violência

é substantivo reputá-la e ao aparato de sua propaganda, papéis fundamentais na realização de

seu sucesso. E isso redundaria nessa observância de um cuidadoso direcionamento dos

conteúdos que iriam configurar o cotidiano e a ideologia do seu momento de gestão –

acompanhados de estratégicas e eficazes medidas políticas, sempre articuladas com uma dose

de desconfiança em relação à conduta de todos ao seu redor.

E nesse ínterim, conquanto a percepção do mandatário fosse aguda em relação ao papel

político e propagandístico da arte em sua administração e brindando o fato de que essa seja

uma pesquisa sobre cultura musical e suas imbricações sócio-políticas, para melhor ilustrar

1938. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 1995; p. 76

74

acerca do assunto, importante salientar a situação da música local e dos seus músicos em meio

às fases do governo de Stálin – entre às oscilações estéticas da exigência realista concretista e

os pendores políticos conturbados de um período perigoso ao ofício de tamanho prestígio

circunstancial.

1.4.1 Entre Estampidos e Marteladas: O marcial e o proletário na Música Realista

Concretista Soviética sob Stálin

Vivemos sem sentir a Rússia embaixo, não se ouvem nossas vozes a dez passos.

Mas onde houver meia conversa – sempre se há de lembrar do montanhês do Kremlin.

Seus grossos dedos são vermes obesos; e as palavras – precisas como pesos

Sorri – largos bigodes de barata; e as longas botas brilham engraxadas. Rodeiam-nos cascudos manda-chuvas; seu jogo: os meio-homens subjuga.

Um assobia, um rosna, um outro mia, só ele quem açoita, quem atiça.

E prega-lhes decretos ferraduras na testa, no olho, na virilha, na nuca. Degusta como quem prova uma framboesa, o osseta de amplo tórax.

Óssip Mandelstam (poeta russo, vitimado nos Expurgos) em Epigrama Contra Stálin, de 1933106

Embora marcante em suas características (quer de arte, quer de hâmstva107), no

período situado antes de se chegar ao terror de Zhdanov, a primeira fase108 da música da URSS

estaria em seu, por assim dizer, quarto movimento. O primeiro, logo após a revolução, seria

rumo à adesão ao Estilo Clássico (música clássica), favorecido durante o governo Stálin, com

intuito de tornar a pretensão de Lênin uma realidade: levar ao povo a sofisticação da educação

socialista através da oportunidade de acesso ao conteúdo de produção musical de requinte

com orientação ideológica construtiva. Figurariam ao longo dessa trajetória, ilustrativamente,

compositores clássicos como Sergei Prokofiev, Dmitri Shostakovich, e Aram Khachaturian.

Nesse ínterim, nos primeiros anos da administração stalinista, escolheria-se temas locais em

detrimento de experiências com conteúdo (Ocidental) estrangeiro, fracassando nesse ínterim,

por exemplo, a Associação de Músicos Contemporâneos, em 1927, por ser essa entidade

106MANDELSTAM, Óssip; ‘Vivemos sem sentir ...’; Trad. Boris Schnaiderman; Criação/Poesia; In: Revista

Estudos Avançados da Universidade De São Paulo, v. 12, n. 32(1998), p. 112; Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/eav/issue/view/694; Acesso em: 20/03/2021 107 Atribui-se ao escritor soviético Sergei Dovlâtov, a mais inteligível definição do âmago semântico dessa

expressão russa (sem equivalentes vislumbráveis em outros idiomas): “Esse intraduzível “khâmstvo”. Ali, ele

comenta que o “khâmstvo” (pronuncia-se “hâmstva”) “não é nada além de grosseria, arrogância e insolência

multiplicados pela impunidade”. Fonte: AMINOVA, Dária; 10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir; In:

Russia Beyond (10 de junho de 2017); Disponível em: https://br.rbth.com/arte/2017/06/10/10-palavras-russas-

impossiveis-de-traduzir_777840; Acesso em: 20/02/2021 108Por didatismo, reforçando aquilo de já mencionado, pode-se colocar a progressão da música da URSS,

vislumbrada ao longo do trabalho, como dividida em três fases principais: primeiramente, música estatal com

ênfase ao estilo clássico (de 1922 a 1955); em seguida, fase popular de radiodifusão (magnitofonnaia kult’ura; de

1955 até a primeira metade da década de 1960); sucedida pela fase dos grupos VIA (fase mais televisiva e

comercialmente ‘pop’ – cujo termo equivalente russo é popsovy (CUSHMAN, 1995).

75

desprovida dos caracteres elencados pelas novas preconizações ideológicas – ficando assim,

sem captura de recursos. Em seguida, durante os Planos Quinquenais (1928-32), o escopo da

antiga associação tornaria-se a Associação Russa de Músicos Proletários – RAPM [Russian

Association of Proletarian Musician, na transliteração ao inglês]109 (KREBS, 1970; p. 49)110.

A atenção do partido ao desenvolvimento da economia levaria ao segundo movimento,

onde em 1932, o Nacionalismo (re)impregnaria a musicalidade soviética, com a fundação da

União dos Compositores Soviéticos (braço do Ministério da Cultura) e a necessidade de

adesão dos músicos ao Partido (PCUS), como forma de garantir maiores recursos e

permissões. É aplicada a partir dessa época, a estética do Realismo Concretista à música.

Nesse sentido, temas como o sucesso dos planos econômicos, os avanços da produção local,

a prosperidade das colheitas, bem como, finais felizes que demonstrassem no cenário soviético

a possibilidade do êxito insuperável (como visto, por exemplo, até em reconstituições de

Romeu e Julieta, que na URSS, terminava com o casal vivo e feliz; MORRISON; 2016), se

tornariam progressivamente, não apenas sugestões, mas uma orientação a ser observada

rigorosamente na delimitação das produções artísticas. De modo indistinto, na música isso

figuraria importante imposição, importando em abandono a temas ocidentais, em busca de

inspirações mais tradicionais locais, no intuito de traduzir o Socialismo e seus ideais em

vanguarda sonora. Fazendo assim, com que os compositores trocassem o progressivismo

musical (experimentalismo) pelo patriotismo. A ópera Tikhii Don, em 1935, de autoria de Ivan

Dzerzhinsky, se tornaria um modelo icônico ao preconizado estético, em detrimento de Sra.

Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934), que embora composta pelo consagrado Shostakovich,

ganharia má-recepção e crítica no jornal Pravda (KREBS, 1970; p. 52). Os devaneios de

criação, inspirações inovadoras e as ideias de possíveis experiências na execução das obras,

daria lugar, àquela ocasião, a um profundo rigor de cartilha, sem grandes oscilações e

fortemente observado pelo escopo do aparato. Às portas dos grandes expurgos (1934-1938),

comandados pelo partidário Nikolai Yezhov, com a anuência de Stálin, qualquer peça ou

produção musical (óperas e novos ballets, por exemplo) que tivesse em seu conteúdo algo

considerado subversivo, mesmo por ligeira referência aos assuntos delicados à impressão do

governo, se tornava alvo, bem como seu idealizador, da perseguição local (MORRISON,

109A título de esclarecimento, em algumas obras, o referido coletivo [RAPM] é mencionado como Sindicato dos

Músicos da União Soviética. 110KREBS, Stanley D. Soviet Composers and the Development of Soviet Music. New York: W.W. Norton.

1970; p. 49

76

2016; pp. 276-78)111. Acusações de traição, destituições, retiradas de peças e libretos de cartaz

e obras em série desprestigiadas, seriam o saldo nas artes, daquilo que na política se tornara

uma tragédia. No âmbito das carreiras dos artistas, tal qual ao cenário político-militar, o

infortúnio de consequências mais profundas também seria vivenciado.

Com a campanha militar da União Soviética na 2ª Guerra Mundial (a Grande Guerra

Patriótica, de 1941 a 1945), a restrição e a ortodoxia à estética estatal diminuiriam

momentaneamente. Como acontecera com o efetivo militar e oficialidade do exército, os quais

haviam sido fortemente prejudicados com o terror das purgas de Stálin112, o número geral de

músicos também padecera e com isso, a falta de contingente às produções, bem como o

esforço colateral de guerra, levariam a uma trégua nas exigências estilísticas restritivas. Com

isso, a música clássica vivenciaria novo período com ênfase experimental (embora, por conta

do conflito ainda em curso, hinos e marchas também tenham marcado sua produção no

período). Com o fim da campanha militar e esgotado o papel ocupado outrora pela música de

111A metáfora destes dois importantes personagens da música clássica soviética resume uma bela representação

do clima geral vivenciado àquele momento. O autor comenta que produtores consagrados como Shostakovich e

Prokofiev seriam alvos dos Expurgos, tendo sido enquadrados duramente na produção de suas obras musicais

seguintes. Desde a má recepção da obra Sra. Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934) e de outra peça, o ballet O

Córrego Límpido de 1933, Shostakovich esteve em observação constante e foi afastado de produções futuras

envolvendo óperas ou ballets (mesmo tendo sido consagrado musicista ainda sob Kruschev e Brejnev). Prokofiev,

por outro lado, chegara da França pelo mesmo período (1935), como que para ocupar o lugar do colega de artes,

trazido sob as graças de um filho pródigo e brilhante em retorno à URSS. Entretanto, rapidamente, perceberia que embarcara em um embuste, ao ver que seu passe de saída para Paris de outrora, agora ficara retido e sua instalação

dentro da União Soviética era indeterminada e sob a categoria de produção ideológica, imposta pelo regime. Se a

música antes fora alvo de recepção ou vexame, em tempos anteriores, naquele momento, poderia significar o preço

da prisão ou mesmo de uma condenação ainda mais extrema: Shostakovich e Prokofiev seriam poupados, mas sua

produção musical e sua integridade psicológica não seriam mais as mesmas. Fonte: MORRISSON, 2016; p. 277 112Os dados são imprecisos e obscurecidos pela política local ao longo das décadas. Por exemplo, números entre

civis, de dados que estiveram disponíveis na Sociedade do Memorial de Moscou abertos ao público, continham

fichas de cerca de 11.000 pessoas condenadas (MORRISON, 2016; p. 287). No entanto, para além dos dados

disponibilizados outrora, numa estimativa muito pouco clara, os números das purgas flutuam entre 7 milhões e 23

milhões de aprisionados. Contudo, o número entre partidários é mais preciso, sendo que de 1934 a 1937, apenas

quinze candidatos eleitos do PCUS, de cada 140 que se haviam elegido, conseguiriam ainda figurar em liberdade.

Dois terços dos oficiais, nesse contexto, indivíduos que ocupavam cargos com importante imbricação política, seriam atingidos por essa persecução implacável (HOOBLER, HOOBLER; 1987; 61-62). Resultado: com a

oficialidade e efetivo militar em desfalque de grandes proporções, tornaria-se o Exército Vermelho, inicialmente,

suscetível a derrotas em sua iniciativa de resposta ao conflito mundial que se desenrolava (sublinha-se o episódio

de 1939, contra as tropas do General Mannerheim, da Finlândia, cuja ofensiva do Exército Vermelho não seria

páreo para as tropas de esquiadores do modesto efetivo militar finlandês, melhor treinado e aclimatado ao seu

terreno local; HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 70). Somente após dois anos de campanhas militares cruentas e

muito sofridas, as quais incluiriam ainda o esforço popular, a estrutura militar soviética se recuperaria, e assim

traria consigo as primeiras vitórias contra os nazistas, nas defesas das estratégicas cidades de Moscou, Stalingrado

e Leningrado – sob às ordens de importantes oficiais como o General Zhukov (Cerco de Stalingrado, 1941-43) e

o Marechal Timoshenko (Defesa de Moscou-Smolensk, 1941) – HOOBLER, HOOBLER, 1987; pp. 74-83.

77

ufanismo e estímulo às tropas, em 1946, a música soviética chegaria seu referido quarto

movimento, com o recrudescimento da censura sob o Terror de Zhdanov113.

Interessantemente, é observável que no decurso desse novo delicado momento de final

de década (1949), apareceria pela primeira vez na sociedade local um marcante movimento

juvenil de dissidentes culturais: os stilyagi (caçadores de estilo, em tradução do cirílico;

CUSHMAN, 1995; p. 36)114, coletivo de apreciadores de jazz estadunidense e de vestimentas

desafiadoras ao estilo sartorial dos cidadãos (e da juventude) soviéticos. Adeptos de uma

fisionomia com influência claramente Ocidental – usuários de capotes compridos (suítes zoot),

em berrantes cores (preferentemente, de tom esverdeado), sapatos de solas grossas e calças

estreitas, sem deixar de faltar, aos rapazes, o cabelo mais comprido (penteado com gomalina,

para trás) – esses jovens apareceriam tanto em Leningrado (fundando numa importante praça

local, epitetada Broad, espécie de Broadway em versão soviética, no Prospekt Nevskiy, local

corriqueiro de suas reuniões), quanto em Moscou se tornando, embora em número modesto,

motivo de assunto local e, naturalmente, de espanto e de reprovação, sendo institucionalmente

satirizados – em suplementos juvenis humorísticos como o Krokodil, destinados à juventude

– e recriminados – pelo Komsomolskaya Pravda, segmento jovem do jornal Pravda estatal.

Em sua curta saga de congregação de adeptos, reunidos em torno de uma demarcação

de estética, visual e musical (contando com uma rede de circulação/ produção de materiais

clandestinos literários e fonográficos, que mormente abordados adiante no trabalho),

curiosamente, não seriam perseguidos por Stálin, posto talvez, terem sido vistos como algo

minoritário e frívolo, de tendência juvenil urbana (sem contar que, simultaneamente, o

mandatário estaria mais preocupado com situações como seu estado de saúde cada vez mais

debilitado e a circunstância político-biológica do chamado Complô dos Médicos115). Os

113Segundo opiniões de especialistas em cultura e arte, a música clássica da URSS após esse período, ficaria

marcada pela transição de uma complexidade estrutural tonal e de temas progressivos para um ligeiro declínio,

devido à abertura a outras possibilidades experimentais ocasionadas pelo cenário ‘permissivo’ da Era Kruschev

(Degelo). Fonte: KREBS, 1970; p.58 114O autor, Cushman (1995), se referiria ao trabalho de STARR (1983), sobre como a influência do Jazz Ocidental,

foi de instrumental importância na formação de uma cultura de jazz bem-desenvolvida na Rússia. Fâs do ritmo eram muitas vezes chamados de Stilyagi, ou algo como caçadores de estilo, combinando estilos ocidentais no

vestir (como zoot suits), jargões próprios do movimento beat (corruptela, possivelmente, de beatnik), presentes no

repertório da cultura do Jazz, e uma voraz vontade de adquirir tal ritmo como modo de formar uma vibrante

subcultura dentro da complexa infraestrutura da repressão cultural. Tal capacidade de criatividade simbólica

(processo de uso ativo da cultura por atores a fazerem significado à sua existência; WILLIS, 1990 apud

CUSHMAN, 1995; p. 34), segundo comenta o autor, futuramente, seria fundamental à emergência da subcultura

musical do rock na Rússia. 115Também chamada Conspiração Mingreliana. Foi um incidente de perseguição no final da Era Stálin (início dos

1950), onde acusava-se a atuação de médicos soviéticos, de ascendência semita, como responsável pela eliminação

sistemática de importantes dirigentes do Partido – resultando na detração de suas imagens e condenações criminais.

78

stilyagi teriam como um baluarte comentarista o jovem Vasiliy Aleksenov, um emigrado

provinciano que viera estudar no Instituto Superior de Moscou (Universidade de Moscou) e

lá se tornara porta-voz do estilo. Já nesse rudimentar movimento dos stilyagi, embora de

efêmera duração, ficaria presente a característica recorrente em movimentos culturais locais

(e cosmopolitas) logo a seguir: apelo por tendências estrangeiras, fator urbano, um caráter

jovem protagonístico e ligado a camada privilegiada local – entre os estudantes de ensino

superior e filhos de integrantes do serviço oficial e diplomático116.

A despeito de episódicos exemplares de dissidência na estrutura da URSS, em geral, a

música soviética até a década de 1950, seria revestida de forte apelo local, com intenção de

autonomia de concepção original e soviética. Toda revestida, majoritariamente, de uma

compostura muito metódica, a música soviética tinha consigo por definição, a pretensão de

ser um novo estágio na arte musical – sob influência direta do Realismo Concretista e formada

sob patrocínio e supervisão estatal partidária117. Nisso, conforme esmiuçado a seguir, seus

quatro principais gêneros viriam a desempenhar importante papel.

Como outrora observado, a música clássica, era a mais privilegiada, a figurar na porção

estética mais requintada, onde sua execução e sofisticação pudessem servir de estandarte,

ápice e forma de mediar os mais altos preceitos da educação socialista ao povo (temas

patrióticos, heroicos, triunfais, épicos), servindo (por si só ou em conluio ao ballet), como

exemplar excelente aos visitantes provenientes do exterior dos avanços alcançados pela

cultura socialista.

Já no circuito local, a chamada canção de massa (Massovaya Pesnya), ocuparia a

função de suprir o consumo interno, com composições mais simples e palatáveis ao gosto e

entendimento populares, oportunizando ainda assim, princípios educativos, embasados em

O episódio, é hoje revisto segundo novas informações (as quais não sugerem conclusivas as evidências levantadas),

na perspectiva de um estratagema anti-semita perpetrado dentro do regime soviético stalinista, com o objetivo de

destituição de figuras importantes no mundo científico da URSS. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006 116O relato aqui trazido é composto pela coleta de informações, principalmente, de duas fontes: COOKSON,

Matthew. The spark that lit a revolution. Socialist Worker, 2004. pág.7. Disponível em:

<https://w532/p7c.htmlww.iso.org.au/socialistworker>. Acesso em 08/08/2019; GELDERN, James Von. 1954 –

Stilyaga. Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível em:

<http://soviethistory.msu.edu/1954-2/stilyaga/>. Acesso em: 20/07/2020 117KELDICHA, Y. Massovaya (Mass Song). Music Encyclopedia. музыкальная энциклопедия_ м.: советская

энциклопедия, советский композитор. пoд пeд. ю. в. kельдыша. 1975-1982 [Tradução livre: Enciclopédia

Musical_ m: Enciclopédia soviética, compositores soviéticos. Sob supervisão de Y. V. Keldicha]. Academician,

2000-2021. Disponível (em russo) em:

<https://dic.academic.ru/dic.nsf/enc_music/4827/%D0%9C%D0%B0%D1%81%D1%81%D0%BE%D0%B2%

D0%B0%D1%8F>.

79

apreço do conteúdo lírico por sobre temas cotidianos, da natureza, da vida e do sentimento,

bem como de exaltação dos valores político-sociais – sempre com forte tendência otimista,

patriótica e de educação popular aos valores do Socialismo. Seu estilo seria menos épico e

triunfal que o da música clássica, mas ainda assim solene, a consistir em hinos e coros de

vozes, buscando coletivizar a performance, centradamente, vocal118.

A Canção de Massa estaria ladeada por mais dois gêneros (por vezes, considerados

subgêneros dela própria): a Estradnaya Pesnya, também chamada de Estrada Muzika (ou

simplesmente Estrada), a canção de palco (ou de apresentação), estilo de música interpretado

por artistas em performance solo, acompanhados por orquestra, contemplando temas

populares (por vezes, considerada junto à canção de massa, de acordo com o relevo de seu

conteúdo); e a Bitovaya Pesnya (músicas do dia-a-dia), canções folclóricas e patrióticas

populares, aparecidas em filmes, como trilha sonora e incorporadas a partir do repertório

popular ao proveito de uma nova gramática de conteúdo socialista – a tornar-se aí, novamente,

em repertório popular119.

A terminologia, bem como o estilo, da Canção de Massa teria seu apogeu entre as

décadas de 1920 e 1950, até ser substituída pelo termo Canção Soviética (Sovetskaya Pesnya),

com conotação semelhante, mas figurando um patamar maior que o da anterior – talvez, no

sentido de absorver os outros dois gêneros populares, Estradnaya e Bitovaya. Como no caso

dos outros dois gêneros descritos, a Canção de Massa também seria veiculada através de

filmes, trilhas sonoras, rádio e apresentação de artistas. Todavia por sua característica de

solenidade, aliada à sua forma sem acompanhamento, com relevo ao jogo-de-vozes e

performances corais, em geral, seriam devotada a ocasiões singulares, como celebrações de

datas festivas, aberturas de apresentações e eventos diplomáticos – sempre gravitando em

torno de marchas, cantos líricos e canções de cunho socialista ufanista.

Em resumo de trajetória, até as reformas de Kruschev, as formas de consumo de

música na União Soviética oscilariam em torno de três tipos principais de experiência:

apresentações de coros/artistas em locais públicos e eventos oficiais/ institucionais; trilhas

sonoras de filmes e produções televisivas; e reproduções em rádio (domésticas, mais raras, ou

118KELDICHA, 2000. Op. Cit. 119Idem

80

em veiculação em locais institucionais, mais corriqueiras), de materiais fonográficos

realizados por artistas, chancelados e produzidos segundo a égide do aparato e do Partido120.

Parte das oscilações partiriam do escopo político, mas também haveria toda uma sede

de questões materiais de possibilidade restritivas à realização da cultura em terras soviéticas.

Não fosse apenas o direcionamento algo bastante importante de se considerar, a produção de

arte local padecia de outro fator em defasagem. Esse fator, seria o do suprimento necessário

de uma autonomia na produção técnica inovadora pelos artistas, uma exigência partidária que

levava a que os artistas soviéticos tivessem que, atiladamente, produzir seus próprios meios

de possibilitação das obras artísticas, caso estes não estivessem disponíveis no aparato estatal

soviético. Para exemplificar, o cinema falado, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, já

seria uma realidade desde a segunda década do século XX, mas em terras soviéticas, esta

técnica chegaria apenas uma década após, pois seria quando os cientistas soviéticos

desenvolveriam a tecnologia de um cinematógrafo audiovisual complexo, integralmente

nacional. Não obstante, os recursos de produção deveriam passar por uma lista de submissão

ao Ministério da Cultura e ao Comitê Para Assuntos Artísticos (Komitet Po Delam Iskusstvo),

através de cada um dos respectivos departamentos específicos de cada obra artística (como

supracitado, para literatura, o precursor, Glavlit; para o cinema a Goskino; para a radiodifusão

a Gostelradio121, e assim por diante), trazendo como consequência que as produções (de cada

setor) tivessem que competir umas com as outras para que pudessem chegar à admissibilidade

do projeto, até passarem para a segunda concorrência: a dos recursos de produção. Daí por

diante, restavam sucessivas remessas do material produzido aos fiscais, para

acompanhamento, alterações e edições, e finalmente, as disponibilizações dos momentos de

lançamento122. Mesmo havendo estúdios setoriais para rodagem e gravação, todos respondiam

a um órgão estatal (selo) central – cinematograficamente, à Mosfilm; estúdio estatal de

cinema; e em radiodifusão, à gravadora estatal Melodiya – de modo que, tudo ficava a

depender de uma subordinação ao aparato estatal, num circuito composto por aprovação-

recurso-produção-lançamento-distribuição.

120Idem 121As transmissões ocidentais de rádio (em frequência AM ou de amplitude de ondas longas) alcançavam a

fronteira soviética e isso era previsto pelas autoridades locais: sinais de embaralhamento (jamming) e interrupção

das transmissões, enviadas de torres do setor de radiodifusão governamental, se opunham à circulação franca de

material da cultura proveniente do Ocidente. Ainda assim, significativo material musical Ocidental (resquícios de

transmissões de programas de rádio) conseguiria chegar até o público local. Fonte: CUSHMAN, 1995; p. 36 122Tudo isso pode ser nitidamente acompanhado nos diários do cineasta Andrei Tarkovski, traduzidos para o inglês

na obra Time Within Time (O Tempo Dentro do Tempo), da escritora inglesa Kitty Hunter-Blair (1994).

81

Isto porque, entre outras coisas, para além de propaganda, o conceito de cultura

preconizado pelo realismo soviético buscava uma sofisticação123 do seu público consumidor

(educação de massa), tornando-se este seletivo, o que asseverava a ‘peneira’. Consoante a

isso, no tocante ao consumo, a estrutura ofertada na União Soviética na administração de

Stálin, era um tanto precária em sortimento de alternativas de experiência de consumo, em

relação ao Ocidente, pois suas aquisições eram perpetuadas, em geral, na modalidade coletiva,

e desse modo, mais de música se ouvia através das rádios, ao invés de vitrolas e gramofones,

em geral (bem como, o audiovisual se assistia no cinema, muito mais do que em televisores

residenciais), ficando adstrita, também na distribuição, a uma demanda popular, exiguamente

discricionária (pouco espaço de alternativismo de gosto). Portanto, havia poucos meios de

consumo particular de produtos culturais e todos esses, desde discos a livros, ainda assim, a

serem oferecidos por meio da estrutura centralizada institucionalmente, distribuídos através

exibições ou locais de acesso público ou pelas lojas do Estado124.

Sem traçar paralelo de valor, a distinção da filosofia de consumo coletiva e socialista,

em relação a individualista capitalista Ocidental, acaba por constituir um problema de

123Segundo o preconizado por Lênin, os êxitos culturais burgueses não deveriam ser ignorados ou obliterados, mas

readequados, reorientados em proveito da construção do Socialismo. Dentre esses êxitos, pode-se considerar por

sofisticado aquilo relativo à uma Cultura standard; uma cultura consagrada. Cânone cultural, segundo Bourdieu.

O autor vai remeter-se em sua obra, A Distinção: Crítica a Razão Social do Julgamento (1982), entre outros

assuntos, de como esta aludida cultura constitui-se em baliza de uma distinção na disputa entre as distintas classes

sociais, um elemento de baliza aos processos de conquista de capital simbólico – o qual reflete, não raro, condições

do capital real – e trocas desse capital em condições mais favorecidas e opulentas, socialmente. Argumenta a esse

propósito, sobre caracteres de uma análise junto ao fenômeno da experimentação artística, a qual levaria a uma disposição estética (uma das dimensões institucionais, pelo ensino ou exposição, a serem incorporadas no

repertório do habitus), cultivo e refinamento (requinte), em oposição ao juízo de gosto (juízo de valor, de contato

e afinidade; popular, direto, não requintado), e a uma (progressiva busca pela) neutralização do eu em relação ao

produto da arte, ao invés da afirmação do eu pelo consumo – que resultaria em diferenciação social entre os

experimentadores de experiência de arte (contato) providos de disposição estética (neutros e requintados; em geral,

ricos, integrantes da elite) e os experimentadores vulgares (com juízo de gosto; em geral, populares), nuançando

uma distinção cultural evidenciada pelo escopo do modo de contato/interpretação relativo à produtos de cultura,

com a relação de pertença a distintas classes. Ressalta o autor, de como isso se faz determinante para a formação

do indivíduo, a auferir a que do lócus onde inserido o sujeito (a partir da análise dessa pregressa

inoportunidade/oportunidade), demonstram-se variáveis reveladoras de sua identidade e identificação (posição e

trajetória) no âmbito das classes, além de sua passagem e circulação nos diversos núcleos de capital simbólico e

junto às instituições culturais em suas instâncias. No que concerne ao esboçado dessa teoria e o encontrado na URSS então, considerando-se que mesmo da ausência de uma corrida por distinção com finalidade de afirmação

de classe, ainda haveria espaço para sofisticação enquanto apêndice da educação/instrução segundo a necessidade,

apontada por Lênin, de conseguir-se, por esse entendimento, uma disposição estética que pela educação superasse

à fase de juízo do gosto e se tornasse necessariamente apta a formar uma nova messe de intelectuais e profissionais

técnicos no Socialismo – algo a ser atingido por sobre os alicerces da cultura standard reconfigurada

ideologicamente pelos aparelhos estatais pertinentes e orientada segundo o Marxismo Científico. 124Como se veria no governo de Kruschev, as lojas estatais de departamentos: GUM; transliteração de Glavnoye

Unversaltsalyie Magazin, ou Principal Magazine de Gêneros Diversos, conceito de empreendimento de vendas

soviético, destinada ao atendimento de demandas de consumo, sob controle estatal, e que na década de 1950, após

o período Stálin, ofertaria um sortimento mais amplo de produtos aos consumidores soviéticos. Fonte: REID, 2002.

82

perspectiva acerca de uma análise da possibilidade de uma indústria cultural soviética, pois

por mais que se procure promover um distanciamento ao tratar desta análise, o vício de tomar-

se, precipitadamente, o modelo Ocidental como arquétipo de consumo de arte, leva a se retirar

conclusões distorcidas por sobre a interpretação na cultura e sua circulação em âmbito

soviético. Tomado este cuidado, e desmistificado o falso notório de que no Socialismo (ao

período em alusão, principalmente) sequer houvesse consumo em trocas pecuniárias ou

mesmo propriedade privada individual (objetos, pertences), torna-se muito mais palatável

entender que os bens de arte haviam, eram consumidos (havia mercado local), sua produção

não era demasiadamente heterodoxa em etapas, da do processo Ocidental e a única distinção,

seguramente relevante, é quanto a sua fonte emanadora (Estado) e sua finalidade –

sofisticação/educação socialista, voltado ao povo, mas tendo de atender mais à apreciação do

aparato (agradar-se ao Estado) do que um consumo mero ou de gosto, apelo de demanda

(agradar-se ao consumidor)125 – ficando próxima de uma fisionomia como a emprestada pela

análise de Walter Benjamin ao tratar do paradoxo acerca da arte e do público: a arte tem que

servir a todos, mas não pode ser para todos126.

Muitas mudanças ainda ocorreriam, de forma e conteúdo, elastizações e

recrudescimentos em torno das manifestações artísticas e da música, especificamente, nessa

trajetória soviética. Entretanto, para os fins pretendidos com essa pesquisa, tornar-se-á a falar

sobre os temas de produção, circulação e relações de consumo relativas à realização cultural

125Embora didática, essa não é uma referência precisa. Em geral, o artista na União Soviética, tinha de saber

equilibrar-se num agrado a ambas as partes dessa conjuntura simultaneamente, contemplando ao Estado e ao

Público. Importantes obras que a despeito de sua boa apreciação partidária não figurassem em sucesso na opinião

popular, também eram postas em observação e seus produtores/idealizadores, eram recriminados por má-qualidade

técnica ou quaisquer das classificações tendentes a desfazer de seu conteúdo, rumo a reformulações de adequação.

Fonte: MORRISON; 2016; p. 275 126O filósofo ponderava acerca da questão aludida por Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, se

o bem cultural produzido em massa, produziria o mesmo efeito a sensibilidade que o contato que o meio de arte

original. Quer no Ocidente, quer no Oriente, ainda hoje, tal qual outrora, se debate este acesso, se de fato seja

franco, quando da reprodução; e se quando balizado pelo gosto, se meramente mercadológico. A debruçar-se por

sobre o tema, BENJAMIN (1987), refutaria afirmações como as que debatidas no ínterim da indústria cultural, por

Adorno e Horkheimer, esta que entenderia haver mesmo um dilema de qual seria a autêntica a experiência estético-

cultural: se a do contato com a obra exclusiva (original), mas que não pode chegar a todos (situação em que se questionaria a que proveito se prestaria, então, se por sua exclusividade, menos operando como desenvolvedor

coletivo, do que como objeto/experiência de diferenciação), ou se da possibilidade reproduzida (como frisado em

termos de uma indústria cultural de massa), quando a muitos/todos do público chegada, a obra poderia preservar

de sua integridade experiencial o mesmo teor. Levando-se a ponderar: seria a arte da URSS mais autêntica, posto

que mais exclusivo seu processo; ou muito ao contrário, extremadamente artificial, por seu condão coletivo,

orientado e interferido estatalmente? Ponderações sem resposta, mas que se procura vir a dar possíveis

considerações, utilizando-se da análise do artigo do historiador russo Evgeny Dobrenko (no artigo, A Revolução

Soviética Entre A Cultura e O Stalinismo, de 2017), a trazer-se em seu bojo, a complexidade da composição destes

produtos de arte – quer na perspectiva desse realizado e transformado em discurso, do lado posterior do hemisfério,

quer do observado e estereotipicamente concluído como fisionomia do fenômeno, pelo lado de cá.

83

na URSS, num capítulo posterior (O Komsomol e o Consumismo), mas de maneira preliminar,

o que se deseja cristalizar em torno do até aqui aludido, principalmente, é o seguinte ponto:

para se fazer música na União Soviética – muito embora se possa pensar o contrário – se

haveria de atender a uma demanda determinada pelo mercado e coordenada pelo Estado127,

nos caracteres ideológicos e de produção. Tanto mais em se tratando de ritmos considerados

estrangeiros e estandardizados de culturas alheias ou antagonistas ao sistema vigente. Este

cenário, implacável em Stalin, viria a se abrandar consideravelmente durante o governo de

seu sucessor, Nikita Kruschev, o qual trazendo sérias divergências no tocante a administração

do antecessor, empreenderia diversas reformas suavizadoras à intromissão partidária e estatal

nos assuntos da sociedade civil, além de, promover uma reinterpretação da forma de se seguir

o materialismo dialético – imiscuído na instituição governamental e também na arte soviética.

1.5 ON THE ROCKS: OS POLÊMICOS ASPECTOS DO DEGELO DE KRUSCHEV

ABREM CAMINHO PARA O ROCK N’ ROLL

‘Stálin era um homem muito desconfiado ... Era capaz de olhar para alguém e perguntar: ‘Porque

você está assim, hoje, com esse ar astuto?’

Nikita Kruschev, Secretário-Geral da URSS de 1955 a 1964, autor do Discurso Secreto (Dos Vícios

do Culto à Personalidade, onde denunciaria Stálin, seu antecessor)128

A primeira menção ao rock and roll na URSS data de 1957, quando o Festival Mundial da Juventude e Estudantes aconteceu em Moscou. Ao mesmo tempo, surgiria a moda do jeans, tênis e badminton.

Antes mesmo das bandas soviéticas de rock 'n' roll, surgiram os primeiros grupos beat [...] A música

beat antecipou o rock, combinou elementos de rock and roll, rhythm and blues e soul.

Irina Malakhova, ‘Quem Foi o Primeiro a Tocar o Rock na Rússia?’129

127O epíteto vem justificado: conforme aludido anteriormente, em nota similar, era prática comum, entre outros

elementos do aparato, pra além da burocracia e a orientação, restringir-se a liberdade do acesso ao sinal

radiofônico-televisivo estrangeiro, por meio de torres de interferência que embaralhavam o sinal e eram operadas

pela Gostelradio, setor de monitoramento e distribuição do serviço de telecomunicações e comunicações de rádio

estatais, a serviço do Glavlit (aparato de comando central do monitoramento e censura do governo soviético). O

fato interessante, comentado por Vladimir Bukovsky, em sua obra de memórias de dissidente ao regime (How to

Build a Castle: My Life As A Dissenter, de 1979), fica em torno de como iniciativas de transmissão

intercontinentais, como as rádios Free Europe e Free America, por vezes burlassem esses empecilhos, através de

transmissões em ondas longas, e alcançassem com certa limpidez, o público soviético. Por conta disso, embora

pesem argumentos de liberdade à seu favor, na Era Kruschev, tais rádios seriam duramente combatidas com

fortalecimento das tecnologias de interrupção, bem como, com a investigação/repressão detalhada e mais discreta

possível, dos envolvidos em sua facilitação (HORNSBY, 2013). São elementos que mostram a dura realidade da

livre veiculação e sua (im)possibilidade ante o aparato das URSS. 128HOOBLER, HOOBLER, 1987. Op. Cit. p. 88 129MALAKHOVA, Irina. Култура.РФ. Кто первым играл рок-музыку в Pоссии? [Trad. Livre: Kultura.RF,

Quem foi o primeiro a tocar o rock na Rússia?] (2013-2020); Ministério da Cultura da Rússia. Disponível (em

russo) em: <http://culture.ru/s/vopros/rok-v-rossii/>. Acesso em: 20/02/2021

84

Recapitulando: se o período de assunção de Lênin seria considerado a Revolução de

Outubro130, seguido da Guerra Civil (1918-1921), a transição seria marcada pelos complicados

anos dos NEP, a assunção hegemônica de Joseph Stálin e seu estilo de governo peculiar, a viger

de 1922-1953. Desse período, inicialmente, a marca política mais notável seria a da fundação

da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, em 1922), a transformação do Partido

Bolchevique, oficialmente em Partido Comunista da União Soviética (PCUS), seguida das

realizações na economia, como a deposição dos NEP empreendidos por Lênin e o Fechamento

do Regime Socialista na URSS ao modelo Soviético (Socialismo em Um Só País), decretado

em conjunto à perseguição dos kulaks (resquício das NEP, onde havia a presença tolerada de

pequenos proprietários [privados] de terras na administração agrária coletiva local) e a

Coletivização Agrária em massa (levadas a cabo antes e durante o Primeiro e Segundo Planos

Quinquenais; de 1928-32 e 1934-38). Mais adiante, sua política rumaria a um recrudescimento

ideológico e policial, antecedido pelo período moderado (1932-1934), que seria marcada pelos

Grandes Expurgos131 (1934-38), o assassinato de Trotsky (1940) e a colaboração juntos aos

Aliados, da URSS na campanha da Grande Guerra Patriótica – denominação local da Segunda

Guerra Mundial, que refere-se efetivamente, em declaração oficial, às defensivas contra o

avanço do exército alemão, de 1941 a 1945 [HOOBLER; HOOBLER, 1987] – precipitando ao

período do Terror de Zhdanov (de 1946-47) e derradeiramente, o Fim da Era Stálin (1953).

As pretensões políticas pessoais de partidários influentes próximos à Stálin, sucedendo

ao fim de seu governo (1953), dariam lugar a uma luta engalfinhada pela sucessão do poder.

Pouco antes do encerramento, por ordem de hierarquia, figuravam na lista de possíveis

sucessores ao posto de Secretário-Geral, os nomes de importantes militares e influentes

dirigentes políticos do partido – na seguinte ordem: Giorgyi Malenkov, Lavrentiy Beria,

Vyacheslav Molotov, Konstantin Voroshilov, Nikita Kruschev, Bulganin e Lazar Kaganovich

(e figurando como suplentes, Anastas Mikoyan e Alexey Kosygin)132. Embora não fosse o

imediato substituto segundo a linhagem da constelação política que se desenhava, Kruschev

130Assim designada pelos soviéticos, cuja ocorrência na contagem do calendário local vigente (modelo juliano),

corresponderia à data de 17 de outubro de 1917. No calendário Ocidental, seu marco de ocorrência se situa próximo

ao dia 25 de novembro do mesmo ano. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 99 131Purgas de Stálin, de 1934-1938, nome atribuído à perseguição sistemática de opositores político-ideológicos

do regime de Stálin (como exemplificado com o Caso Mingreliano e o Complô dos Médicos; MEDVEDEV,

MEDVEDEV, 2006), a qual consistiria em prática perpetuada institucionalmente até o fim do governo, em 1953.

Cronologicamente, a grande intensidade dessa perseguição, se daria no interregno pré-segunda guerra, contra

dissidentes do regime, em todas as esferas da sociedade soviética, amealhando desde cidadãos comuns até artistas

e políticos, com a consequência de que fossem julgados e sentenciados em processos legais questionáveis, e

levados ao encarceramento em campos de trabalho forçado (vulgos Gulag; REID, 2002), ou mesmo executados. 132MEDVEDEV, MEDVEDEV; 2006. Op. Cit. p. 66

85

articularia-se de modo a figurar como artífice na sucessão que seria decidida através de um

Conselho Ministerial provisório (o qual incluía os supra referidos nomes) – onde ao tomar as

decisões junto ao Presidium133, a figura de Kruschev começaria a se destacar (com seu mandato

principiando, oficialmente, em 1953, em conluio; e como secretário-geral, a partir de 1955).

Como em uma ardilosa e hábil manobra, aproximando de importantes generais e comandantes

soviéticos, Kruschev iria afastando Malenkov, Beria e Molotov (fato que só seria consumado

após 1957), que perdendo influência para o astuto partidário, seriam logo demovidos de seus

cargos de chefia, até culminar com seu desligamento compulsório do Partido (MEDVEDEV,

MEDVEDEV, 2006). Por último, Voroshilov seria afastado (1958), e em seguida, abriria-se

caminho para Kruschev estabelecer-se de vez no comando.

Longe de ser uma unanimidade, Kruschev encararia nos primeiros anos dessa transição

ao poder, duros ataques sofridos. Após a tentativa de reafirmação do alinhamento dos países

socialistas com a assinatura do Pacto de Varsóvia, em 1955 (cujas motivações e

desdobramentos, serão abordados na seção seguinte), e procurando promover sua linha de

administração pautada num distanciamento do estilo perpetrado por Stálin, Kruschev faria em

1956 – por ocasião da realização do 20º Congresso do Partido Comunista, por ele convocado –

o polêmico Discurso Secreto (assim conhecido por ter sido a portas fechadas e apenas aos

principais comissários àquele momento), onde expunha os vícios e terrores engendrados pelo

antecessor, denunciando que Stálin agira de forma corrupta e falseadora em nome de garantir

sua continuidade no poder, fomentada através do culto de sua personalidade. Mais do que isso,

assinalava aí o compromisso de não repetir tais atrocidades e de encaminhar a URSS para novo

momento na história (MEDVEDEV, MEDVEDEV, p. 42). Aproveitava para emendar com

isso, a defesa de uma nova forma de administração, voltada para o restabelecimento soviético

no cenário internacional e a retomada das relações estrangeiras com nações outrora preteridas

(entenda-se, potências capitalistas, da Europa Ocidental e da América do Norte). Essa postura

lhe custaria caro em sentido de aliança global: o Partido Comunista Chinês, comandado por

133Presidium do Soviete Supremo; Escritório central (chamado também de Comitê Central) do Partido,

responsável pela execução (Poder Executivo) das decisões do Soviete Supremo, ou Assembleia dos Secretários

Máximos da Administração Soviética (Poder Legislativo; espécie de Parlamento). Presidido pelo Secretário-Geral

(por vezes, cumulado ao cargo de Secretário-Geral do Soviete Supremo, mas não o de premier, cujas características

difeririam um pouco da convenção Ocidental), era organizado segundo a hierarquia de escolha dos membros

votantes. Conforme a estrutura do Partido Comunista da União Soviética se desse em membros candidatos e

membros efetivos, só poderiam figurar postulantes a integrar o Presidium, os últimos. Até 1966, seria chamado

segundo essa designação (Presidium) estatuída por Stálin a partir do 18º Congresso do Partido Comunista (em

1939), substituta a do outrora chamado Birô Político do Comitê Central da União Soviética. Na administração de

Leonid Brejnev (1967), ganharia uma nova denominação: Politburo. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006;

p. 65

86

Mao Tsé Tung, veria na deposição do stalinismo e na aproximação com o Ocidente uma conduta

revisionista134 e com isso, romperia relações com a égide da administração soviética,

procurando segmentar sua postura de influências locais, num estilo próprio, intensificadamente

– e provocantemente ao teor soviético – nacionalista.

Contudo, não tardaria a que no ano ainda em curso, houvesse o primeiro indício de

ruptura de sua assimilação dos companheiros dentre o Bloco do Leste: a Revolta Húngara e o

Outubro Polaco135 (ambas insurgências principiadas em outubro de 1956), movimentos que

discordavam da tomada de atitude que se instaurava em torno da teoria de Coexistência

Pacífica, defendida por Kruschev e esperavam liderança mais forte e representativa que a dessa

política de brandura. Sob argumentos de claudicador e derrotista em relação ao Ocidente,

Kruschev teve de demolir as insurgências com eficaz e severa atuação do Exército Vermelho,

reprimindo os levantes com violência e demonstrando que a liderança de Moscou não perderia

o controle da situação na porção Oriental. Ainda nesse ano, questões acerca do estabelecimento

do salário mínimo em sua administração, levariam a que se colocasse em delicada posição junto

ao apoio da população. Contornaria essa situação, fazendo uma descentralização das funções

administrativas do Kremlin, ao migrar parte considerável da administração burocrática e

centralizada no aparato de Moscou, para a coadministração e supervisão pelos Conselhos do

Povo (sovnarkhozes), que até 1957, o colocariam em vantagem de apelo popular significativa,

mas disposto perigosamente distante de seus dirigentes próximos no Partido e na sede

administrativa.

Conseguiria com isso, uma sobrevida até novo distúrbio: ainda em 1957, o complô Anti-

Partidário, levado a cabo e encabeçado por seus outrora companheiros de Comitê Ministerial –

e contendentes da sucessão – Lavrentiy Beria, Vyacheslav Molotov, Lazar Kaganovich, Georgy

134Terminologia crítica dentro da doutrina socialista, para referir-se àqueles que se desviam de uma interpretação

correta da teoria marxista, optando por uma interpretação revisada, segundo suas próprias inclinações ou

entendimento. É tida, segundo o teórico socialista francês Ludo Martens (1990), como um dos estágios de pejoratividade da classificação de conduta de um mau praticante político do Socialismo: o reformista, seria o

caráter mais leve, inclinado a apascentar tensões, através de política de promoção de pequenas mudanças

estruturais, ao invés de revolucionar realmente a estrutura em questão; o revisionista, como descrito, seria o

moderado, mas ainda assim, claudicador, por ferimento à teoria dos princípios socialistas; e finalmente, o

reacionário, visto como aquele que se coloca em oposição á hipótese da revolução ou, entreguisticamente, apoia

iniciativas da economia de mercado (capitalismo) e a continuidade da estrutura de classes. 135O uso do termo ‘polaco’ – em nada aqui pejorativamente colocado – em referência ao levante Polska Oktyabria,

cuida preservar a terminologia conforme encontrada nas fontes (GARAUDY, 1970; MEDVEDEV, MEDVEDEV,

2006) e na grafia anterior à reforma semântica da palavra no português, adequando-se ao vernáculo coetâneo ao

fato (que apenas atualmente, contempla a outras conotações).

87

Malenkov e Dimitri Shepilov136. Novamente, conjuminando forças com outros influentes

partidários (como o chefe do exército, General Zhukov137), Kruschev derrotaria os querelantes

e garantiria o caminho a novas realizações. Com o lançamento do satélite artificial pioneiro da

humanidade – o Sputnik – ao espaço, começaria a demonstrar qual seria o caminho da

administração da Era Kruschev: uma gestão progressista e espetacular, marcada pela

controvérsia, mas que retiraria de grandes feitos o apoio que lhe faltava em solidez de alianças.

E nesse sentido, a contraposição inaugurada desde logo sob as formas de uma Era

Kruschev, ficaria conhecida como a de um estado mais esperançoso do que aterrador. O epíteto,

conforme aludido anteriormente, seria o Degelo, tirado de uma homônima novela literária local

da época (em cirílico, Oteppel), referência em alusão ao período de relativa abertura política e

social, onde muitos dos outrora perseguidos haveriam de ser reintegrados bem como, acenaria-

se em circuito exterior, concomitantemente, com um apelo ameno à tentativa de retomada das

relações entre a União Soviética e o Ocidente – que viria a ser empreendida a partir do primeiro

grande encontro dessa transição, protagonizado por Kruschev e o presidente dos EUA, Dwight

Eisenhower, em 1955.

Assim, as atenções estariam mais voltadas ao mundo exterior, do que ao da sociedade

soviética como um cenário fechado, em duplo teor: a Corrida Espacial (Space Race, entre os

estadunidenses e os soviéticos) começaria a ensaiar seus primeiros passos marcantes rumo ao

espaço sideral e o contato com o pólo antagonista seria uma realidade mais palpável. Destaca-

se do período de Degelo de Kruschev, uma série de reformas, dentre as quais, por relevância

marcante: as trocas diplomáticas de 1955, entre a URSS e os EUA (com publicações recíprocas

entre os países, das revistas Amerika e USSR, contendo novidades sobre produtos, tecnologia e

costumes em ambas as sociedades138) que culminariam em uma visita aos EUA durante o

governo do Presidente Dwight D. Eisenhower, em 1959; a revisão acerca dos conceitos

estéticos artísticos, permitindo que autores soviéticos pudessem frequentar Festivais da Europa

Ocidental, de cinema, teatro, dança e apresentações culturais de maneira mais franca139; a

136TAUBMAN, William. Kruschshev: The Man and His Era. New York: W. W. Norton. 2004. 137O carisma político de Zhukov era devido aos seus feitos anteriores: entre as proezas de combate na Grande

Guerra Patriótica, ainda sob Stálin, o general havia sido o responsável pela derrota das frentes nazistas comandadas

pelo Marechal Von Paulus, durante as Operações Barbarossa, em 1943. Além disso, na ofensiva Vistula-Oder,

em 1945, seria o comandante que levaria o Exército Vermelho a ser o primeiro dentre os Aliados a marchar

vitorioso sobre Berlim. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 74 138HIXSON, Walter; Parting the Courtain: Propaganda, Culture and The Cold War, 1945-1961; Mac Millan,

1997. p. 117 139O parêntese pertinente a esta intersecção cultural da URSS com o Ocidente, recebe o epiteto de franco, para

diferenciar pretéritos contatos entre a cultura soviética e a Ocidental. Uma vez que estes já haviam ocorrido

88

reformulação dos ideais de consumo na União Soviética, acerca de propriedade individual,

permitindo que, não somente adentrassem gêneros musicais e de outros estilos artísticos vindos

da produção estrangeira para solo soviético, mas também permitindo que dentro da União

Soviética, artistas locais pudessem se experimentar dentro de outros gêneros de produção

artística – inclusive no sentido de reproduzir gêneros estrangeiros.

No aspecto nacional interno, o novo mote das reformas de governo ainda teria por

contemplar a consideração maciça da camada juvenil da sociedade soviética. Embora, pela

tradição revolucionária, desde o princípio houvesse papel e consideração à juventude

(Komsomol; esboçado nas brigadas da Juventude Leninista e Comissários Populares da

Juventude), o aceno da Era Kruschev com novas atrações para os estudantes e atletas, através

da realização de festivais culturais da juventude (como o memorável VI Festival Internacional

da Juventude e dos Estudantes, em 1958, a reunir em Moscou, jovens pensadores de vários

continentes, convidados a conhecer uma pujante e receptiva URSS140) e jogos internos das

nações soviéticas (Spartakiads), revelariam o grassar de tempos gloriosos por sobre uma

sociedade outrora horrorizada pela atmosfera claustrofóbica do sovietismo penoso de Stálin

(MEDVEDEV; MEDVEDEV, 2006; citando a Kruschev), marcado pela ação policial (do

MKVD/KGB) e obscurecido pela circulação restritiva de conhecimentos e contatos com a

sociedade exterior.

Neste ínterim, com uma mudança social que ía de um abrandamento ideológico-

partidário sobre certos temas, a reabilitação de artistas e possibilidade de contato com

diferentes ritmos musicais vindos da porção Ocidental (no caso estadunidense, o folk, o country

e o rock ), passando-se ainda, por uma flexibilização do império ideológico do realismo

anteriormente, em casos como a cooperação EUA e URSS referentes a pesquisas de alimentos (culturas agrícolas,

técnicas de colheita e produtos possíveis de produção alimentar em solo soviético) – como as realizadas pelo

premier Anastas Mikoyan, a serviço de Stálin, durante a década de 1920. Também se salienta o caso dos Trophy

Films, filmes estadunidenses entregues à Stálin, durante o período de integração da URSS junto aos Aliados (na Grande Guerra Patriótica), e que seriam exibidos – muito seletivamente – durante o fim da década de 1940, por

conta do depauperamento das produções cinematográficas soviéticas, devido ao maciço esforço de guerra, que

levaria a uma diminuição tremenda da produção nacional local e a necessidade de recorrer-se aos conteúdos

cinematográficos entregues pelos estadunidenses, como forma de manter atuante, com diversidade de títulos, o

funcionamento dos cinemas locais – KEPLEY JR., Vance; Kruschev Thaw. Não obstante, endossam essa

afirmação de contato soviético-estadunidense, as apresentações dos famosos corpos de ballet russo, Kirov e

Bolshoi, a audiência dos diplomatas e autoridades dos EUA, em solo soviético, durante Stálin, servindo de

embaixadores político-diplomáticos da cultura da União Soviética, muito antes da coexistência pacífica da doutrina

política promovida no período do Degelo de Kruschev. Fonte: CROFT, 2009. 140CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 36

89

soviético, criou-se o cenário fundamental a geração de uma nova vanguarda de artistas musicais,

bem como uma camada consumidora diferenciada à do período anterior.

No âmbito social, acerca das transformações vivenciadas, desencadeadas por essa

política de Kruschev, deve-se frisar que a partir desses jovens recém libertados, deslumbrados

com a abertura, curiosos e ávidos por consumir e conhecer, estaria ofertada um novo elenco de

possibilidades, em que agora poderiam ouvir rock141, jazz e entre outras músicas estrangeiras,

podendo adquiri-las no circuito de consumo usual e também clandestino (como discorrer-se-á

mais adiante). Há que se recordar, que mesmo antes de Kruschev, essa juventude deslumbrada

estaria tendo como precedentes, conforme outrora descrito, o jovem movimento cultural urbano

Stilyagi 142, ávidos consumidores da moda, da estética e da sonoridade estadunidense –

principalmente, do jazz, do foxtrot e outros ritmos precursores ao rock – aos quais se reputaria,

não sem alguma razão, uma posterior iniciativa da formação de um rock da União Soviética. E

nesse sentido, quanto às possibilidades urbanas mais propícias ao fenômeno na Era Kruschev,

se estaria vivenciando uma urbanização sem precedentes na história soviética, primeiramente,

numa escala de território nacional, novamente gravitando em torno da República Federativa

Socialista Soviética da Rússia (RSFSR), por ser a república central do sovietismo, polo diretivo

político-administrativo dentre as muitas nações da URSS e por ser a maior exportadora,

produtora e diretora cultural das produções artísticas soviéticas – seguida de longe pelas demais

capitais culturais e administrativas, Kiev e Odessa, na República Federativa Socialista Soviética

da Ucrânia e pela capital polonesa Varsóvia. Por conseguinte, considerando-se a geografia

especificamente urbana e situada dentro da RSFS da Rússia, destaca-se o cenário de duas

cidades: Leningrado (São Petersburgo) e Moscou.

Como esclarecimento reincidente à justificativa dessa escolha de cobertura, deve-se

recordar o compromisso com um recorte temporal-temático preconizado com essa pesquisa,

que por questões de exequibilidade, procura evidenciar o cenário cultural musical do rock russo

soviético, abrangido nessas duas principais cidades, Leningrado (São Petersburgo) e a capital

federal Moscou, cuja demografia e relevância logísticas pertencentes a sua circunscrição

141Aqui se alude majoritariamente a influência do rock estadunidense, por respeito à trajetória de criação deste

ritmo, oriundo de variantes do blues, do jazz e do country, em solo norte-americano. Contudo, é vital mencionar

que nas décadas de 1950 e 1960, a invasão britânica protagonizada pelos Beatles e os Rolling Stones, constituiria

marcante passagem na URSS. Como um dado a ser considerado nesse sentido, ressalta-se que boa parte dos discos

pirateados, nessa época, seria de reimpressões de vinis do Fab Four. Fonte: PAPHIDES, 2015 142Fonte: Jazz in the USSR: Freedom, Popular Culture and the Decadent West. Acesso em: 05/03/2019.

Disponível em: https://honoursreview.com/blog/2019/3/29/jazz-in-the-ussr-freedom-popular-culture-and-the-

decadent-west

90

territorial, as tornariam centros fundamentais à circulação do capital cultural e intelectual mais

expressivo, tradicionalmente, na região – a servirem, portanto, de ponte cultural e de palco

majoritário ao incipiente fenômeno no território soviético – embora fique mencionado mais

adiante, e reconhecido como trajetória, a passagem e importância do cenário rock local em

outras eventuais cidades durante a história desse movimento cultural na URSS.

91

SEGUNDA PARTE: DO DEGELO À DÉTENTE

2.1 1960´S LADO A: KOMSOMOL E O CONSUMISMO: OU A URSS A CAMINHO DAS

ESTRELAS

O que o socialismo condena na ‘sociedade de consumo’ é que seja um sistema social cuja mola

mestra é o lucro e onde, sendo os artigos produzidos em massa os mais rentáveis, é preciso criar

artificialmente necessidades a escoá-los: é exercida então uma pressão constante para modelar os comportamentos estereotipados, entre os quais, o lançamento de ídolos para os jovens é a expressão

mais notória [...] A recusa socialista desse modelo de sociedade, não significa em absoluto a recusa

em se adquirir os meios que libertem-nos de trabalhos repetitivos e penosos, a fim de conquistar espaço e tempo à uma vida propriamente humana. Recusar por princípio os frutos do progresso

técnico, as riquezas criadas pelo trabalho e gênio dos homens, é uma forma de austeridade arcaica e,

em última análise, de malthusianismo, inteiramente contrária ao espírito do marxismo.

Roger Garaudy, filósofo e militante comunista francês em Toda A Verdade143

Torna-se agora, durante o Degelo promovido por Kruschev, a uma análise mais voltada

aos aspectos sociais que foram possibilitados com os fatores de novas características de

consumo e a nova possibilidade de trânsito de informações e pessoas na região. O rock, em

palavras diretas, só poderia se desdobrar como fenômeno local, a partir de um consumismo e

caráter internacional presentes, os quais provinham dos fatores possibilitados pela doutrina da

Coexistência Pacífica e as reformas da Era Kruschev. Não obstante, uma revolução tecnológica

também se fazia grassar pelo território soviético. A partir das discussões com o presidente

estadunidense Eisenhower, no final dos anos 1950, o mandatário da URSS se colocara a refletir

por sobre um dilema doméstico: seria de fato uma nação progressista aquela que não fazia as

benesses de seus avanços alcançarem a vida cotidiana de seus cidadãos?

Àquele momento, há que se considerar que a metal-mecânica industrial e bélica

soviética haviam atingido patamares sem precedentes na história da humanidade. Um satélite

avançado havia sido lançado, logo sondas espaciais e mísseis intercontinentais se seguiriam, na

chamada Corrida Espacial. Seriam essas conquistas nacionais, indubitavelmente, mas ao

observar-se a estrutura de moradia e o acesso à produtos de que seu povo dispunha, Kruschev

se questionaria de qual seria o papel desses progressos. Como bem observaria, em seus

discursos durante os Congressos do Partido (a fim de justificar as reformas às quais daria

segmento), o sortido dos bens de consumo direto (das lojas estatais, do mercado local), era

escasso e de qualidade inferior (considerando-se os padrões da Europa Ocidental e do demais

do Ocidente), e as moradias padeciam de um formato que não favorecia, segundo sua análise,

143GARAUDY, Roger. Toda A Verdade. Trad. De Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 1985. p.

71

92

a estrutura familiar com maior intimidade – o ápice da discussão Eisenhower-Kruschev, tocara

num ponto delicado das privações sociais domésticas locais, acerca da ausência de cozinhas

individualizadas (em russo, individualnyy kukhni), para cada família, visto que aos olhos

ocidentais, a URSS ainda se representasse sisuda, embora potente, parecia paupérrima em

aspectos de conforto e acesso populares.

Com esse pensamento, durante a American National Exhibition (tradução livre: Mostra

Nacional Americana) em 1959, contando com exibição de bens de consumo e tecnologia

estadunidenses numa feira temporária sediada em Moscou e aproveitando-se da boa fase das

relações URSS-EUA, o então vice-presidente Richard Nixon provocaria os brios do mandatário

local, Kruschev, ao falar da superioridade capitalista a partir da perspectiva de uma cozinha.

Suscetível a provocações (TAUBMAN, 2004), Kruschev naquele momento refletiria acerca

dessa evidente pedra-de-toque do orgulho socialista: o bem do povo, pontuando-se nisso, com

a descrição comezinha e mordaz em torno do jogo-de-cozinha e a inexistência de seu espaço

nos habitáculos populares, de como uma mãe de família, trabalhadora e partidária, deveria ter

a oportunidade de poder desfrutar de um momento mais tranquilo, nesse ambiente integrador

do espaço doméstico, ao tornar à sua casa e encontrar-se com sua família ao final de cada dia

de trabalho. Deve-se observar a data dessas opiniões, onde ambas as sociedades, embora com

suas distinções devidas, viam um papel muito conservador ainda em torno da instituição

familiar (principalmente, no tocante ao papel da mulher nesse ínterim doméstico). Não obstante,

isso colocaria o secretário-geral a pensar sobre as necessidades de consumo locais, ainda que

tais valores em jogo tratassem de princípios ideológicos demasiado discrepantes, pois a URSS

tal como era, seria uma sociedade com orientação socialista, portanto, uma sociedade do

coletivo, e os valores a serem considerados da fala do vice-presidente estadunidense,

necessariamente, remeteriam a preocupações de ordem social adequadas a uma tradição do

modelo capitalista.

A questão entre Kruschev e Eisenhower, ficaria conhecida como Questão das Cozinhas

(REID, 2002; pp. 223-24), e culminaria num inédito programa de revisão do modelo de acesso

e variedade, nos padrões de consumo soviéticos: desde a construção de conjuntos habitacionais

populares, que seriam realizados já com a presença de novas cozinhas individuais, os quais

ficariam conhecidos como Kruschevskayas144 (ou Moradias de Kruschev); até um alargamento

144KHARCHENKO, Serhiy. As Khrushchovkas. The Ukraine Observer. 06 de fev. Kiev: The Willard Group.

2007. Disponível (em inglês): <http://web.archive.org/web/20070206132350/www.ukraine-

observer.com/articles/228/993>

93

dos gêneros de produção artística disponível. Como evidenciado anteriormente, tais reformas

seriam fortemente atacadas pelos detratores do regime, integrantes da linha rígida do Partido,

que veriam nesse consumismo recente, um precedente de cultura burguesa, uma decadência dos

valores do Socialismo.

No entanto, para a música, isto seria fundamental à circulação e ao acesso a novos

produtos culturais, novas experiências de consumo e contato com gêneros ainda desconhecidos

pelo público e da juventude locais. Assim, através do estabelecimento de uma rede mais vasta

de produtos nas lojas de departamentos, além da reforma urbana e de habitação, a sinalizar essa

nova ideologia estatal, Kruschev trazia uma tonalidade simpática à sua revolução de costumes

(ou reforma), angariando empatia junto ao povo para sua administração, enquanto nos aspectos

políticos e militares procurava continuar a imagem austera e eficaz do comando, ora superando

distensões no Bloco Socialista, ora superando crises internas contra seus administrados diretos.

A atitude de Kruschev, em um importante aspecto, trazia consigo uma tremenda

coerência: não apenas evitaria repetir Stálin, como simplesmente não o poderia. Então, desde

logo a única opção, pelo distanciamento de seu método de trabalho em relação ao do antecessor,

passava por estabelecer sua própria marca, onde talvez o apelo popular (ou populista, segundo

MARTENS, 1990), trouxesse a resposta aos seus anseios de caracterização.

Mesmo nos avanços militares, a oportunidade do tom de espetáculo se fazia sentir: o

Camarada Celeste (epíteto atribuído ao satélite artificial Sputnik), em 1957 e o sorridente

primeiro-tenente da Aeronáutica Soviética, Yuri Gagarin, a bordo da bem-sucedida viagem

extra orbital da nave Vostok, em 1961145, buscavam resumir numa demonstração poderosa, o

potencial do progresso socialista soviético. Como um sublime balão vermelho amarrado à ponta

de um barbante em uma AK-47, os projetos da cosmonáutica alcançariam os céus suscitando

um misto de encanto e pavor, e maravilhariam o mundo ao remeter o tom, interna e

externamente, que a sofisticação do poderio científico-militar da URSS, não seria subestimável

– e tampouco, o governo de Kruschev.

2.1.1 The Rocket and The Rock - Ensaios e Experiências: Dos satélites até Moscou, nomes

de músicos e bandas de rock da URSS de 1961 a 1970 O rock russo antes disso, nos

145REID, Susan, The Khrushchev Kitchen: Domesticating the Scientific-Technological Revolution. Journal of

Contemporary History n 40. Essex: Sage Publications. 2005.

94

anos 60, era completamente diferente. "Falcons"146, "Crickets", "Forest Brothers"147 e outros tocavam

exclusivamente música estrangeira, cantavam Beatles, Rolling Stones, Beach Boys, depois Jimi Hendrix, etc. Eles se apresentavam exclusivamente em bailes, em cafés de estudantes. Ninguém os

perseguiu, eles estavam em perfeita ordem e se multiplicaram em grandes números. Essa música não

era chamada de rock, mas de beat ou big beat.

Artemiy Troitsky, Vou Apresentá-lo ao Mundo Pop148

Uma curiosidade importante e esclarecedora repousa em torno do termo satélite na

linguagem russa. Em cirílico, a palavra é sputnik (спутник), e significa companheiro; parceiro;

camarada – daí sua alusão ao satélite artificial e aos países ao redor das fronteiras da RSFS da

Rússia. Os países-satélite, seriam, então, os camaradas da Rússia Soviética, que lhe fariam

fronteira ao contato Ocidental europeu, como uma membrana protetora, ou um fosso em redor

de um castelo, cuja ponte-levadiça seria guindada ou baixada conforme as pretensões políticas

dos administradores locais do Kremlin. Essa permeabilidade fronteiriça faria desses lugares,

importantes territórios de contato com o Ocidente, e por excelência, a primeira linha de defesa

da ideologia local ou da diplomacia permitida com a coexistência pacífica – resultando em um

trânsito singular, aumentado ou diminuído, das mudanças promovidas pelas reformas do

Degelo.

Seria precisamente durante esse momento de mudanças e afirmações, e por conta do

trânsito intenso de personagens estrangeiros na região, que o rock n roll chegaria como

realidade palpável à URSS. Tudo começaria em 1961 – enquanto as atenções se voltavam para

o espaço com o acontecimento do voo de Yuri Gagarin – numa das Repúblicas Socialistas

Soviéticas, a RSFS da Letônia, o rock seria realizado inauguralmente por protagonistas

soviéticos. Ainda não seria a Rússia, mas o embalo da banda Revengers, composta por

estudantes filhos de adidos do serviço diplomático soviético, vinha dar nova perspectiva à

discussão de cultura da região. É claro, muito provavelmente essa não fosse sua pretensão

àquele momento, mais do que apenas a vontade de reproduzir o que se havia escutado na Europa

Ocidental ou trazido das viagens diplomáticas à terra do Capitalismo (EUA), sob a forma de

vinis e nos acordes da guitarra elétrica (MAROCHKIN, 2011a). Deve-se recordar que a

precariedade e o rudimentar acompanhariam essa aventura até mesmo no nome: Revengers é

146A citação refere-se ao grupo moscovita Sokol, por vezes traduzido Falcon ou Falcons ao inglês, posto ser esse

o significado da palavra e nome de distrito da capital federal soviética (Sokol: Falcão em russo). Fonte:

MAROCHKIN, 2011a 147Os nomes das bandas constam em inglês, grafadas conforme a transliteração encontrada na fonte. Dos grupos

Falcons e Forest Brothers, possivelmente se possa depreender como em referência aos grupos ‘Sokol’ e ‘Lesnya

Brath’, respectivamente, situados na cena rock/bigbit de Moscou dos anos 1960. Já acerca do grupo Crickets,

dados supervenientes ficaram de ser encontrados para uma afirmação mais precisa. 148MALAKHOVA, 2013. Op. Cit.

95

uma forma coloquial, de corruptela, de se falar a palavra inglesa Avengers (Vingadores) –

evidenciando-se assim, um desconhecimento específico do grupo, sobre tais terminologias

estrangeiras149. Todavia, exigir-se àquele momento, de alguns integrantes dessa juventude

soviética principiante no ritmo, um conhecimento impecável da língua inglesa, ademais de

exagero de zelo, seria quase uma impossibilidade, pois embora houvesse tais casos locais, eram

circunspectos à realidade geral, onde o número de falantes orientais eslavos em língua inglesa,

até a atualidade, permanece modesto150.

Ainda assim, os garotos da Revengers se arriscariam na reprodução dos acordes e da

língua exótica e tentariam, cantando em inglês, fazer do rock uma realidade local – algo que

seria descoberto logo a seguir por outros dos seus colegas de pioneirismo. E sobre esse início,

entre entusiasmado e tímido, comenta o jornalista e radialista russo Vladimir Marochkin,

através de sua autointitulada biografia criativa do rock soviético: Everyday Life of the Russian

Rock Musician (tradução livre: Vida Cotidiana do Músico de Rock Russo), disponível em

língua inglesa151152 e traduzida desse idioma, nas passagens constantes aqui durante o trabalho:

Nosso rock em 2011 completará 50 anos. Isso porque muito tempo se passou desde o

inverno de 1961, quando Valery Saiftudinov, natural de Riga (capital da República

Federativa Socialista Soviética da Letônia), apelidado de "Seyntski", colecionou o

primeiro registro de uma banda de rock nossa, da Pátria. Foi intitulada de Revengers

149Há que se esclarecer ao menos ligeiramente, que essa interpretação para a solução de nome do grupo provém

da explicação de Marochkin (2011a). No entanto, os termos ingleses venge/ to venge, avenge e revenge possuem

conotações próprias e peculiares. Por exemplo, venge/to venge se aproximaria do sentido de vingança, mas quase

como em uma vendetta contra uma ação sofrida [sentido de inconformidade; ato de lavar a honra], enquanto avenge

seria o ato de vingar a um terceiro [sentido de proteção; guarda]. Já revenge, no sentido de revenger, se daria com

o sentido de uma vingança mais profunda, rica em vileza e com um senso de sentimento muito propositado – diferenciando-se assim do sentido ‘de orgulho ferido’ de to venge, ou de ‘heroica atitude’ de avenge. Portanto,

Revengers, segundo essa conotação, traria consigo (se fosse tomado esse alvitre dos músicos), uma sutil

demonstração de reação a partir da atitude musical, a uma situação desagradável que os cercava, com a sutileza de

uma ação proposital e esquematizada – não meramente casual, nem heroica, mas de forma contundente. 150Este argumento, de fato, não totalmente determinado, baseia-se em indícios retirados de pareceres dentre os

depoimentos de Cushman (1995), também corroborados em Marochkin (2011a; 2011c), sem olvidar menções a

partir do Curso de Russo: Do Básico ao Avançado (Profº Vinícius de Oliveira Egídio). No entanto, cabe ponderar

que a informação acerca do número de falantes e compreendentes do idioma inglês na URSS (bem como na

atualidade da Rússia), ainda permanece uma incógnita. Isso porque, deve-se levar em conta que o ensino de língua

inglesa constituiria após o período do Degelo, mais e mais, parte integrante do ensino regular escolar soviético,

tomando-se em relevo a necessidade de se poder conhecer melhor o lado opositor e, eventualmente, estabelecer realações diplomáticas (algo que ZHUK [2015] irá melhor mencionar, ao mencionar do estabelecer-se ao longo

dos anos 60-70, de um campo de estudos acadêmicos americanistas na URSS). O que pode ter colaborado a

proporcionar um estigma Ocidental acerca do número reduzido de falantes reais do idioma bretão em terras

orientais, se deve a caracterização de personagens provenientes da URSS e Leste Europeu, muito caricatamente

retratados na mídia Ocidental (com forte sotaque russo na pronúncia inglesa, ou simplesmente, recorrendo à direta

interpelação a tradutores para a mediação em conversações entre estadunidenses, em geral, e soviéticos) –

observando-se que tal resultara como estratégia de disseminação de uma imagem depreciativa da cultura e preparo

do polo socialista. Por isso, à despeito da inconclusividade da apuração mais precisa, apenas em reciprocidade

com as fontes, procurou-se preservar o teor dessa argumentação. 151MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 152MAROCHKIN, 2011. Op. Cit.

96

["Vingadores"]. Eu não sei de quem ele estava se vingando [“Revengers” traduzido

para o inglês remete à “The Avengers”], mas foi equilibrado e não foi exagerado. Sua

banda tocava uma mistura de boogie-woogie, jazz e rock and roll, ou mais

simplesmente, dzhampl-jive [transliteração do termo referente ao estilo jump-jive, um

dos precursores do rock]. Essa foi a música, que formou a base da subcultura dos

jovens daqui, ainda antes de Bill Haley no grande palco e, a propósito, o apelido que

Seyntski recebeu, como se costuma dizer, proveio do nome de um dos sucessos

eternos do jazz "When The Saints Go Marchin 'In ”[“ Quando os Santos Marcham

Adiante ”], que ele tocava em um violão convencional sempre que fosse possível (e

mesmo quando não). Quando Seyntski começou a tocar, ele tinha 17 anos. No início dos anos 70, ele

emigrou para os Estados Unidos, onde, juntamente com Alexander Lehrman e Yuri

Gross, participaram do primeiro grupo russo-americano, "Sasha e Yura", tornou-se

famoso graças a seu homem na costa oeste153, e apareceu em programas com os mais

lendários rockeiros americanos. Agora ele tem seu próprio - e muito decente - estúdio

em San Diego, onde foi gravado por muitos músicos famosos. Seyntski visitou

recentemente Moscou. Seu cabelo ficou grisalho há muito tempo, mas aos seus olhos

há uma luz demoníaca do rock 'n' roll, movimentos rítmicos e, em geral, ele é

jovem! Surpreendente! Quase sessenta anos de rock'n rollschik; Seyntski sob outros

– muitos! – garotos de vinte e poucos anos, contornaram a festa do rock 'n' roll. Sim,

o homem que toca rock and roll é diferente da pessoa que não toca rock and roll ... [Tradução do inglês e grifo nossos]154

Na trajetória de um personagem da cultura local como Seyntski, muitos elementos se

transversalizam nessa imbricação cultural soviético-Ocidental. Jazz, boogie-oogie, rock e a

ousadia de precursionar na URSS o ritmo frenético. Da banda estoniana de Seyntski e seus

amigos, o precedente do rock rumaria até a capital administrativa soviética. Ainda em 1961, o

rock chegaria à Moscou por vozes locais – quer dizer, moderadamente. Integrantes da

Universidade Popular Estatal de Moscou (também chamada de Instituto Superior de Moscou),

os intercambistas poloneses da banda Mirage (banda cujo guitarrista seria Seweryn Krajewski,

futuro líder da emblemática banda do rock polonês, Red Guitar) e da Cockroaches (Taraskany,

em cirílico: Тараскани), fariam pequenas apresentações no campus, trazendo a nova

modalidade desse ritmo contagiante do rock n roll. No repertório, canções dos Rolling Stones

e os Beatles, que já seriam conhecidos pela circulação de discos e revistas de cultura juvenil, e

embora não fossem tão febris nas terras do Leste, faziam chamar a atenção daquela juventude

(MAROCHKIN, 2011a).

Em 1963, uma aparição efêmera faria a demarcação da tentativa russo-soviética de

principiar o rock local, os rapazes da banda russa Brothers (Bratya; em idioma cirílico, Братя),

se apresentariam em pequenas sessões estudantis, com um repertório mais firme em língua

153Faz referência a um contato de Seyntski (possivelmente, agente ou promotor musical) da Costa Oeste

estadunidense (provavelmente, na Califórnia) – entretanto, ao longo do texto, o ator não dá maiores pistas sobre

sua identidade. 154MAROCHKIN, 2011. Op. Cit.

97

inglesa e uma organização menos ocasional que as experiências anteriores (MAROCHKIN,

2011a).

Mas seria de fato em 1964, no circuito acadêmico moscovita, que prosperariam mais

solidamente as primeiras bandas autóctones da República Socialista Soviética da Rússia: a

Slavyanne (em cirílico, Славяннe) e a Falcon (em russo transliterado, Sokol; em cirílico:

Сокол)155, ainda com apelo em língua inglesa, mas com ousadia à maiores realizações. Por sua

influência estadunidense e britânica, essas primeiras bandas soviéticas invariavelmente se

colocavam a reproduzir os hits consagrados do lado Ocidental, com a máxima fidelidade

possível. Cantar em idiomas locais, à princípio, estaria fora de cogitação. Entretanto, reza a

lenda que de uma sessão de ensaio, confabulando com seus companheiros de música em 1965,

o líder da banda Falcon (Sokol), Yuri Ermakov (vocal e guitarra), faria a pergunta dourada:

afinal, qual o limite!?156 Qual seria o limite daquele projeto ousado, cantar em inglês – muitas

vezes –emulando o conhecimento em outro idioma, sem saber uma palavra ou se arriscar a

colocar a língua russa no rock n’ roll!? Seria essa a grande dor-de-cabeça que ficava entre o

idioma intimidador e o ritmo contagiante, que com ousadia, faria ganhar à segunda opção, e

com isso, surgiria a primeira canção de rock da Rússia soviética, fruto da composição dos

integrantes Yuri Ermakov e Igor Goncharuk157, oficialmente em língua eslava: Где Тот Край!?

(transliterada como Gdye Tot Kray? [Onde Está o Limite ?]158 – fruto de uma tentativa de

encontrar e arranjar palavras da língua local que conseguissem caber na temporalidade ligeira

do ritmo estadunidense (MAROCHKIN, 2011c159).

155MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 156A tradução de Gdye Tot Kray?, expressão russa que dá nome à famosa canção pioneira, pode ser traduzida,

alternativamente como: Onde Está A Fronteira?, ou Onde Fica Essa Terra? – referindo-se, tanto ao

questionamento enquanto metáfora (limite do projeto), quanto a fronteira territorial, pois kray (ou krai), é uma

expressão que designa território, distrito – muito provavelmente, evocando a distância real (geográfica) e de

circunstâncias entre a Rússia Soviética e o mundo Ocidental, de onde provinha o rock. Fonte: MEDVEDEV.

MEDVEDEV, 2006 157MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 158Segundo fontes pouco confiáveis, devido à escassez de confirmação, essas músicas teriam saído num álbum da

banda, gravado naquele ano sob o nome de Pretty Things (1965). Entretanto, Pretty Things (ou a versão

transliterada desse título), corresponderia de fato ao nome de um outro grupo à época em Moscou e o álbum não

poderia ser realmente do grupo Falcon/Sokol, pois este nunca teria obtido permissão para gravar um disco pelo

selo oficial estatal, tendo como seu registro remanescente apenas, uma canção em um disco que incluiria vários

artistas: a trilha sonora Filmh, Filmh, Filmh, do desenho animado de mesmo nome, realizado na URSS em 1968.

Fonte: MAROCHKIN, 2011. 159MAROCHKIN, Vladimir. ГРУППЫ 60-Х – ГРУППА <<СОКОЛ>> [Trad. livre: Grupos dos Anos 60 –

Grupo Sokol {Falcon}] Arq. De 17/out/2011; In: AGEEV, Alexandr; PAVLOVA, Marina; Internet Archive

Wayback Machine – ROCKANET (2003-2011); 2011c. Disponível em: web-

archive.org/web/2011101703050513/http://rockanet.ru/60/Sokol/phtml; Acesso em: 25/07/2020

98

A idéia do nome da canção seria a de encontrar expressões curtas em russo que numa

pronúncia ligeira fizessem bom tom ao compasso do rock, permitindo que a sonoridade fosse

evidenciada ao invés de prejudicada pelo entoamento das canções. Os rapazes da Falcon,

desprovidos de uma boa capacidade em tradução ao inglês, viam-se na contingência de terem

de recorrer ao repertório local, produzindo uma literatura lírica melodiosa e que traduzisse o

espírito do rock, em seu sentimento, mais do que em qualquer conotação semântica. Dificuldade

conhecida na literatura, essa de se traduzir num texto, mais que a semântica lexicográfica, o

respeito à métrica e ao âmago, providos na composição original, seria encarada com elegante

engenhosidade pelos músicos da Falcon, que talvez pela própria despretensão de sua intenção,

chegassem num resultado interessante, autêntico, preocupados que estivessem àquele

momento, apenas em dar voz aos sentimentos diante dessa circunstância de fronteira – onde a

língua evocaria muitas das distâncias entre os mundos ali matizados pelo rock n ́roll.

Com esse limite inicial contornado, agora começava a proliferar a presença de músicos

amadores no ritmo que se espraiava na URSS: logo no mesmo ano, o grupo moscovita Integral,

faria a canção Весенний Дождь (em transliterado, Vecennyi Dojdh, ou Chuva de Primavera),

de autoria de Bari Alibasov e Mikhail Arapov160. Nesse mesmo interregno, em ‘cada grupo

escolar’ (com vulto, à cercania do mundo acadêmico) da capital russa, eclodiriam bandas de

rapazes aspirantes no ritmo frenético. Era a transição de 1965 para 1966, e como conta Vladimir

Ratskevich – outro baluarte pioneiro da época e integrante da banda Ruby Attack – foi onde

tudo começou:

No começo, o rock era um fenômeno altamente elitista161, mas depois de 1965, chegou

a hora de aparecer em "milhares de cores" e, em 1966 - 1967, que se pode dizer que a

explosão ocorreu, e literalmente todos os grupos de escolas começaram a aparecer, às

vezes dois ou três ao mesmo tempo. “Era uma espécie de nova cultura, sem nada

comparável [...] Essa carga emocional não era possível de ser sentida por nenhuma

outra forma de arte. Depois vieram os músicos. Imediatamente e em

bando. Inicialmente, tocava-se The Doors, mas também gostávamos da interpretação

dos Beatles, Kinks, Swinging Blue Jeans. E essa vida na garagem evoluiu lentamente

para a formação de diferentes grupos. [Traduzido do inglês]162

Cabe-se salientar, que embora embalado e propiciado em seu início durante as reformas

levadas à cabo por Kruschev, o rock soviético teria sua corrente mais marcante durante o

governo do sucessor, o secretário-geral Leonid Brejnev (1964-1982) – em simultâneo, como

será observado adiante, a outros fenômenos de mídia e a explosão da chamada beatlemania.

160MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 161O sentido dessa afirmação do rockeiro Ratskevich será explorado num tópico adiante acerca da russificação do

rock, seus fatores de possibilidade e suas consequências. 162MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.

99

Nesse ínterim, em seguida ao espraiar do movimento, começariam a aparecer seus primeiros

ídolos locais. A grande banda dos anos 1960 apareceria com uma estrela digna de um Jimi

Hendrix: os Scythians163 (Citas; em cirílico: Скифы [Skifh]), grupo integrado pelo virtuoso

guitarrista Sergei Dyuzhikov, que faria causar frisson no cenário de Moscou, emplacando

sucessos, aqui em menção transliterada, como Autumn, Songs of The Birds, I Follow Against

The Wind, entre outros e a participação em uma produção de televisão da época, a película

Once Again About Love (direção de A. Nathanson; não encontrado em tradução local), com

participação dos Scythians na trilha sonora e em aparições esporádicas. Registro importante da

carreira do grupo é encontrado numa gravação cuja origem rastreável remete à Krasnoiarsk

(cidade-distrito da RSFS da Rússia) em 1966, emplacando o sucesso Polyubil Dievchonku Ia

(cuja tradução equivalente seria ‘Me Apaixonei Por Você Menina’)164 – em cuja canção,

evidencia-se o tema romântico embalado em uma sonoridade de batida (balada) de rock

característica das bandas sessentistas como os Beatles, Ventures e o Shadows – que rapidamente

cairia no gosto popular juvenil local. Uma curiosidade importante referente à canção em

questão, é que a mesma seja composta de ritmo ao estilo surf beat, uma das vertentes de rock

que estavam em alta na década de 1960. Segundo Vladimir Salnikov (2005), ex-guitarrista

(guitarra base) do grupo, a marca dessa e de outras composições dos Scythians nesse estilo,

seria a forte presença de influência das citadas bandas estadunidenses Ventures e Shadows –

coetâneas do período. E especificamente The Ventures, no caso, teriam sido – segundo o

baterista profissional e aficionado, Daniel Glass, professor musical do site DRUMEO165 – os

163Com o intuito de desambiguação, cabe salientar que durante os anos 1960, dois grupos seriam bem expressivos

na URSS sob o mesmo epíteto Scythians. Primeiramente, referindo-se aos Scythians de Moscou, enumera-se o

grupo como partícipe do movimento precursor do bigbit soviético, cuja carreira se iniciaria em 1965 e contaria

com integrantes como Sergei Dyuzhikov (guitarra elétrica solo), Yuri Salnikov (guitarra elétrica base) e Yuri

Valov (bateria) – e cujos maiores detalhes da carreira e influência serão descritos ao longo do trabalho. Em seguida,

cabe relatar dos Scythians da região de Samara, um grupo musical jovem formado em 1966, com grande foco em

versões de canções de ritmos ocidentais, integrado por Vlad Bocharnikov (vocais), Gueorgui Somov (guitarra

elétrica base), S. Diadichev (guitarra elétrica solo) e os irmãos Makarewicz (teclados e contra-baixo) – na formação

logo posterior, os irmãos Makarewicz dariam lugar à Scherbakov (teclados) e Bibisov (baixista). Segundo as

fontes, a carreira do grupo de Samara compreenderia anos de atividade entre 1966 e 1974, fazendo, inclusive, parte

do movimento musical que traria versões locais de canções do grupo estadunidense Bee Gees (nos estilos pop

music e disco music). Já os Scythians de Moscou, focariam no estilo surf beat, na verve do rock ‘russificado’ e teriam princípio e encerramento ainda durante a década de 1960. Fontes: SALNIKOV (2005); MAROCHKIN

(2011; 2011c). Свесдный Дождь: Скифы 35 лет спустя [Trad. Livre: ‘Chuva de Estrelas’ – Skifh 35 anos

depois]. RealMusic. Disponível (em russo) em: https://www.realrocks.ru/albums/21553; Acesso em: 28/06/2021. 164Fonte do vídeo-clipe da canção: ВИА Скифы (Красноярск 66) Полюбил девчонку я [VIA Skif

(Krasnoyarsk 66) Polyubil Devchonku Ia]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MPLNR9Cmzr8.

Acesso em: 21/07/2020 165Segundo o músico, esse estilo de batida é cadenciado em oito notas, no compasso 1-2-3 e 4/1-2-3 e 4, com

origem possível, no shuffling dos pratos, aplicado aos tambores. Sua aplicação como marca, teria sido ouvida pela

primeira vez, em circuito comercial, na canção Walk Don´t Run, de 1964, do grupo Ventures (trecho 1:09 min. da

vídeo-aula). Fonte: GLASS, Daniel; DRUMEO – The Ultimate Online Drum Lessons Experience; Disponível

em: https://www.youtube.com/watch?v=64u4ETmKNNA; Acesso em: 23/07/2020

100

precursores da batida do surf beat, com a canção Walk Don't Run (de 1964), juntamente com

outros artistas da época, como o guitarrista Dick Dale (e os Del Tones, na canção Misirlou) e o

grupo Surfaris (com a canção Wipe Out) – algo que explicaria como uma banda soviética, alheia

ao cenário praiano, tivesse incorporado tal batida ao seu repertório musical. Em 1968, a banda

daria origem a uma verdadeira skyfomania (termo concebido a partir da pronúncia de scythians

em russo: skifh ou skifians, somada ao sufixo mania), com apresentações tendo de ser

interrompidas nos salões de concerto, por conta ‘do medo das autoridades locais de que a pista

de dança pudesse desabar (e junto dela, o prédio inteiro)’ – conforme relata o baixista da banda

à época, Yuri Valov (MAROCHKIN, 2011a).

Um detalhe interessante acerca dos Scythians é encontrado na biografia pessoal do seu

ex-guitarrista (guitarra solo), Sergei Dyuzhikov, e que demonstra as diferenças de restrição e

circulação de informações de cultura nas distintas regiões da URSS – narrado por Marochkin

(2011a):

O sucesso dos "Scythians" foi associado à participação no grupo do fantástico

guitarrista Sergei Dyuzhikov. Os boatos que circulavam sobre um guitarrista talentoso

vinham do ano anterior ao sucesso [1965]. Dyuzhikov era proveniente de uma família

cujo pai integrava a oficialidade soviética e, portanto, havia passado sua infância viajando pela metade do país. Quando tinha 13 anos, seu pai foi enviado para a cidade

de Izmail [Ucrânia], quase na fronteira com a Romênia. Lá, Dyuzhikov não só podia

ouvir o rádio, mas também assistir às apresentações da televisão romena de famosas

bandas de rock ocidentais. Por causa disso, ele provavelmente era o único homem em

Moscou que fazia direito o rock 'n' roll, tocava guitarra e conhecia muitos truques, que

foram usados por Chuck Berry, Rolling Stones, e que em Moscou, ninguém mais sabia

fazer. [Tradução do inglês e grifo nossos]166

As diferentes tonalidades e aparições do movimento do rock soviético, fora das

fronteiras da RSFS da Rússia, também são emblemáticas a entender seu surgimento e

pulverização (embora, futuramente, mais e mais se encaminhasse a aglutinar tal cenário na

Rússia, em Moscou e Leningrado). Nesse sentido, retrocedendo um pouco ao ano de 1966, já

se encontraria, por exemplo, na Ucrânia, registros dessa rebelião musical, a qual daria origem,

mais a frente, a bandas importantes como a Red Guitar (Krasnaya Guitaryi) e a Red Demons

(Krasnaya Dimons) – (MAROCHKIN, 2011a). Embora ainda fizessem suas músicas a partir de

reprodução maciça de sons estrangeiros, tal e qual sucedia com as bandas russas, o fato de sair

da capital (Moscou), esse bit rock, seria o motivo de muita vivacidade e intensidade de

participações pelos jovens da vizinha ucraniana. Em Kiev, capital local, o surgimento das

bandas Chimes, Red Demons e Second Breath (nomes transliterados) festejadas como as

166MAROCHKIN, 2011ª. Op. Cit.

101

precursoras do movimento do rock ucraniano-soviético, transformariam o ano em questão

(1966) no marco inicial do rock ucraniano, em pouca coisa posterior ao marco inicial do rock

russo (1961). Seu sucesso seria mais modesto que o das bandas moscovitas, devido à posição

no cenário geográfico-cultural do movimento na URSS, mas amplamente tributada sua

iniciativa e talento, ainda reconhecidos no circuito local.

O uso do termo bit rock, descrito acima durante o relato do jornalista sobre os primórdios

do rock na Ucrânia, também guarda consigo uma significância particular. Por motivos de se

evitar atritos com a censura soviética, muitas vezes o termo rock (notoriamente, estadunidense),

ou mesmo o seu equivalente em cirílico, rok, seriam substituídos nas ementas das

apresentações, para que aos olhos dos fiscais e diretores de arte (coordenadores da avaliação

dos espetáculos), não se chegasse a conflitos com a administração da URSS, levando a

reprovação do conteúdo e até mesmo, o cancelamento das apresentações. Em lugar do termo

rock, nos anos 1960, na URSS, o principal termo para se definir o ritmo seria big-bit167 (de big-

beat; grande batida; em cirílico: виг вит, transliterada em bigbit), com transliterações e

variantes equivalentes: bigbit, bit ou mesmo, bitnik. A esse respeito, salutar a desambiguação

com outro fenômeno cultural, no comentário de GOLOLOBOV, PILKINGTON, STEINHOLT

(2014), de que:

O bitnik [referindo-se ao bigbit] foi o mais visível apelo de cultura juvenil na União

Soviética, desde o início dos anos 1960, uma era marcada pela Corrida Espacial e o

otimismo com o futuro. Quando a Beatlemania atingiu a URSS, bitnik se tornou sinônimo de novas danças ocidentais, tais como o twist. A conexão ao movimento

americano dos Beatniks é puramente fonética. [Tradução do inglês e grifos nossos]168

Nesse sentido, o jornalista Vladimir Marochkin (2011a), complementando ao assunto,

esclarece a quem se reputavam os rockeiros soviéticos daquele momento e o porquê da opção

pelo termo mais neutralizado:

No entanto, tudo isso não se encontra no rock no entendimento de hoje. Naquele

momento, essa música era chamada big-bit. O guitarrista do The Scythians, Yuri

Valov, disse: “A palavra rock” nunca era usada, porque só doía [incomodava]. Afinal,

em algum lugar para se apresentar, a banda de estudantes e acadêmicos tinha que ser

mantida adequada à linha do partido, pois embora não fosse da alçada do comitê

regional do Komsomol, estaria ao menos, ao nível da organização local do

Komsomol: onde alguém seria responsável [responderia] por tudo o que havia entrado

em cena. [...] A palavra rock não estava em tudo. E em seguida seria chamada de big-

167MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 168GOLOLOBOV, Ivan. PILKINGTON, Hillary. STEINHOLT, Yngvar B. Punk in Russia: Cultural Mutation

from the useless to the moronic. New York: Ed. Routledge – Taylor and Francis Group. 2014. Nota número 1

(Notes)

102

beat. E rock só seria considerado aquilo que havia sido feito nos anos 50: Elvis.

[Tradução do inglês e grifo nossos]169

O relato transparece a gravidade de um assunto que, à primeira vista ou

superficialmente, poderia ser tomado como pueril. Entretanto, como observado nos desígnios

da Cultura Soviética, desde sua fundação, e seu total imbricamento com o papel educacional da

sociedade, tal acepção ganha um relevo diferenciado. Tanto mais, considerando-se a juventude

local, cuja formação era crucial para a continuidade do funcionamento do Estado, do exército,

da administração, da economia e da ideologia socialistas. Nesse aspecto, cabe observar o quanto

a juventude soviética constituía parte importante nos planos da sociedade da URSS, e por isso,

desde o princípio de sua fundação, teriam sido os assuntos à ela relativos, em orientação e

formação, reunidos sob a coordenação de um órgão específico: o Komsomol170, ou União da

Juventude Comunista (acrônimo do transliterado russo: Komunnistchesky Soyuz

Molodiozhi)171, organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética, estabelecida

desde 1922, para tratar dos assuntos inerentes ao educar, engajar e gerir os diretórios regionais

de representação juvenil, junto à função política e social na União Soviética. Ainda assim, por

hierarquia de urgência (como por exemplo, assuntos que pusessem em risco a segurança

nacional ou a integridade real dos cidadãos soviéticos), os assuntos eram ou não remetidos aos

altos-escalões administrativos: nesse escopo, para a periclitância representada pelos eventos

descritos – de um fenômeno de cultura exótico e estereotipicamente hostil ideologicamente,

protagonizado por jovens – antes de se dar relato à fiscalização maior, se lhes faria submetidos

aos encargos do Komsomol, bem como, seria sua responsabilidade cobrir da incidência e

169MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 170A formação escolar e acadêmica na União Soviética era aberta a todos. Entretanto, embora todas as crianças

ingressassem em grupos com possíveis aspirações, aqueles designados, conforme aprovação dos comitês, seriam

os que ingressariam na possível carreira política. Desde pequenas, as crianças soviéticas frequentavam a formação

de crianças e jovens, dividida em três etapas, segundo as idades. Do ingresso escolar até os nove anos, formava-

se o Grupo de Pequenos Outubristas. Dos nove aos quatorze, o Grupo de Jovens Pioneiros. Dos quatorze até os

vinte oito anos, poderia-se fazer parte do Komsomol (Divisão Juvenil da formação Comunista). A Casa dos

Pioneiros, constituiria a segunda fase dessa formação, cujo ingresso no Komsomol, posteriormente, poderia proporcionar na fase adulta, com os devidos contatos e a adequada aptidão, um indivíduo indicado pelo comitê a

integrar os quadros baixos do partido – dando início assim, a uma possível carreira como partidário do Partido

Comunista da União Soviética. O Komsomol, em especial, ganharia força como instituição de auxílio, formação,

fiscalização, gerenciamento e direcionamento de assuntos dos jovens soviéticos, a partir da promulgação do

Código Moral do Construtor do Comunismo, sob Kruschev, em 1961. Fonte: FIELD, Deborah. 1961-Código

Moral do Construtor do Comunismo. In: Seventeen Moments In Soviet History: An online archive of primary

sources. Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/moral-code-of-the-builder-of-communism/; Acesso

em: 03/07/2020 171Reforçando, é importante salientar que em algumas passagens de autores e para algumas ocasiões, por

associação, o termo Komsomol é utilizado como sinônimo de juventude soviética. Vide-se CUSHMAN, 1995;

103

alastramento de tais eventos, onde apenas conforme maiores gravidades, seriam reportados à

instâncias superiores da administração.

Conquanto seja costumeiro pensar em uma administração centralizada, hegemônica e

verticalizada da União Soviética, deve-se observar que haveriam maiores preocupações, mesmo

em se tratando de um tema indigesto como o rock juvenil, para se dar atenção dentro do governo

local. Não obstante, embora a hierarquia vertical administrativa existisse, a URSS se ramificava

em birôs e escritórios menores, horizontalmente, imbuídos de fazer valer as mais variadas

funções do interesse público – as quais, como no caso do Komsomol, dariam a adequada

minúcia aos eventos, sem interferir ou tomar o tempo dos níveis mais fundamentais da estrutura

soviética. Por isso, a menção em hierarquias locais e regionais, sobre tais eventos, que ficaria a

cargo dos komsomolets locais. O rock – ou melhor, big bit – embora não perigoso em demasia,

não seria de trato comezinho, constituindo um desses assuntos, que inspirariam apreensão

moderada e presente, junto às suas articulações/realizações, pela fiscalização local.

Por conseguinte, deve-se considerar as estratégias empreendidas pela juventude local,

no sentido de (des)associação e escamoteamento, considerando esse necessário escopo de

fiscalização e a dependência de suporte, ao fim e ao cabo, submetido ao escrutínio da referida

administração. Ora, se a associação de Elvis com o rock, também seria do conhecimento da

administração URSS àquele momento, tornando o ritmo um alvo emblemático de rechaço ao

retirar-se a palavra rock, trocando-a por big beat, e executando canções de reprodução de outros

artistas (que não o icônico rei do rock), e, de preferência, também com os títulos traduzidos em

russo (MAROCHKIN, 2011a), conseguiria-se angariar alguma tolerabilidade ao material

submetido, mas ainda assim, presente um subterfúgio para afrouxar o rastreamento dessas

canções e performances como possível material indesejável.

Pode-se dizer que o saldo dessas estratégias seria promissor ao rock no cenário soviético

daquele momento, pois, após a aplicação dessa ‘suavização’ do ritmo exótico, com ligeira

frequência, se poderia encontrar competições estudantis, performances em ambientes escolares

(e acadêmicos, também) e grupos notórios e vitoriosos em concursos culturais que

oportunizavam essa modalidade rítmica, durante os anos 1960 na URSS – o jornalista Vladimir

Marochkin usa o termo quase toda semana para enfatizar essa afirmação (no seguinte relato):

A atmosfera de seyshnov era alegre e comemorativa – quase toda semana havia

alguma apresentação – e, segundo os próprios músicos, nenhum rockeiro era

“perseguido”. Se ocorreu algum "ataque", então, como regra geral, foi uma iniciativa

104

ideológica privada, protagonizada por cidadãos individuais. [Tradução do inglês e

grifo nossos]172

A atmosfera a que o autor se refere – seishnov – consiste, segundo Cushman (1995, p.

82) numa derivação do termo seyshn, uma transliteração russa para session, no sentido de

performance (apresentação) ou ensaio (jam session; rehearsal), a se referir a todas as

performances em curso naquele momento (de rua, em escolas, universidades, de/em palcos,

etc.), em torno do rock na URSS. Esse clima favorável pairando na atmosfera juvenil cultural

soviética, é corroborado em demais relatos, entretanto, conforme será abordado mais adiante,

as características mais precisas dessa suposta ‘favorabilidade’ requerem ser postas em

perspectiva, posto que seriam instáveis demais para se afirmar tão simples e tranquilamente –

e referente à isso, no subcapítulo pertinente, Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo

(...mas não sem resistência), será mencionado o porquê dessa crítica.

Por ora, ainda em continuidade à problemática de fiscalização/suporte realizada pelo

aparato administrativo e sua relação com o rastro desse fenômeno que o rock/bigbit ia se

tornando na União Soviética, é importante sublinhar que ainda que sob uma constante

observação, pareceria interessante a certos setores oficiais, o princípio de uma metodologia de

promoção dessas atrações juvenis, pois embora a URSS não fosse uma sociedade capitalista,

circulariam determinados recursos destinados à realização das performances culturais – e isso

atrairia a atenção para o rock soviético, como uma oportunidade ‘lucrativa de negócio’. Nesse

sentido, indo além das supervisões do Komsomol e de todo seu aparato correlato, haviam as

figuras de gerentes (também referidos como agenciadores), funcionários designados com a

finalidade de coordenação das agendas de itinerário e apresentação dos músicos, no

agenciamento das bandas, atuando como facilitadores, intermediários, que por se entenderem

melhor com a administração e conhecerem as pessoas certas, conseguiam favorecer o caminho

para muitas vantagens, oportunidades e promoções – para os grupos, mas também para si

próprios. Comentando a esse peculiar cenário, importante descrição sobre o circuito de

produção gerencial mediado pela articulação dos agenciadores em torno das bandas – nesse

relato referente ao caso dos Scythians, em episódio referente ao ano de 1968:

Desde o início, a comunidade de rock de Moscou foi formada em torno dos gerentes

do Instituto de Músicos que organizaram shows e distribuíram ingressos. Os gerentes

mais conhecidos foram Yuri Aizenshpis, Arthur Makarov, que mais tarde se tornou

um popular radialista, Valeriy Shapovalov, apelidado de "Coronel" e, mais tarde –

Antonin Krylov, apelidado de "Tubarão"173. No entanto, a maior parte dos shows nos

172MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 173Como será abordado mais adiante, essas terminologias referentes aos produtores, como tubarão (em russo,

105

anos 60 quem arranjou foi o Komsomol, que era obrigado a se envolver com os jovens.

A apoteose foi o final do Festival de Conjuntos Estudantis, que ocorreu em maio de

1968 no Palais des Sport Luzhniki [famoso estádio de Moscou] – para um evento de

recepção aos cosmonautas. Seus vencedores (incluindo a lendária banda "The

Scythians") foram enviados para o sul para entreter os atletas soviéticos que se

preparavam para os Jogos Olímpicos na Cidade do México. No mesmo ano de 1968

em Yerevan [capital da República Socialista Soviética da Armênia], no Palais des

Halterofilisme se realizou um festival de rock, que pode ser considerado um [evento]

favorável174. Organizado pelo gerente Rafik Mkrtchyan, que convidou os melhores

artistas da capital armênia e também de Moscou, Leningrado, Ucrânia e Países

Bálticos [...] [Tradução do inglês e grifo nossos]175

A atuação fundamental ao sucesso e possibilidade da veiculação de determinados

grupos, se deveria ao protagonismo e os intermédios ocasionados por seus gerentes (como fica

evidente, por exemplo, nos relatos de MAROCHKIN, 2011a; CUSHMAN, 1995, p. 62 e

SALNIKOV, 2005), podendo determinar desde modestas participações televisivas ou a

gravação de canções junto aos álbuns de variedades (trilhas sonoras), até a grande exibição em

festivais de estudantes ou na recepção de autoridades. Ainda assim, o caminho tortuoso e as

intenções questionáveis de alguns desses gerentes, seriam produto de análise mais severa pela

administração local e as consequências e o desfecho de suas atividades – bem como o

entendimento de como operavam em níveis de articulação com os grupos – serão melhor

levantados no capítulo seguinte (Experiências de Atrito) e num relato posterior (no capítulo,

ВИА: Вокальнные Инструментальный Ансамбль – VIA: Conjuntos vocais instrumentais ou Eram os

rockeiros cosmonautas!?).

Antes do final da década de 1960, ainda despontariam alguns grupos soviéticos

expoentes no cenário do rock seyshn sessentista (aqui citados, com títulos transliterados):

Vanguard-66, Argonavts e Flamingus176. Os dados disponíveis referentes às mesmas, foram

escassos durante a pesquisa (exceto sobre a Argonavts)177, mas conforme se pode obter em

akula), estariam como no Ocidente associadas à ideia de que estes indivíduos desempenhassem um papel nefasto

no gerenciamento dos grupos e da atividade mediadora musical. A simples associação com o ato de comércio da

música ou seu patrocínio pelo Estado, seria visto pela comunidade rockeira soviética do circuito alternativo,

progressivamente, de maneira suja, inautêntica e poluída (nechistye liudi). Fonte: CUSHMAN, 1995; p. 127 174O termo utilizado pelo autor é proc, em russo: favorável; pró; referente, provavelmente, à atmosfera demarcada

pelas apresentações de um momento favorável, marco de relativa aceitabilidade do ritmo pela estrutura

institucional (demonstrada com o prestígio gozado em se poder apresentar aos baluartes da ideologia da União Soviética: oficiais e atletas locais). Prós, também pode ser no sentido de abreviatura de professionalny

(profissional), referente ao fato de que se tratassem de apresentações mais bem produzidas, de caráter semelhante

ao profissional. 175MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 176MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 177Embora não haja muitas menções sobre o grupo, pode-se rastreá-lo dentre a trajetória do importante músico

Sergei Dyuzhikov (Scythians), como tendo sido seu primeiro grupo de participação, quando ainda à escola em

1965, na cidade Izmail (Ucrânia). O grupo consistia em um power trio (guitarra elétrica, bateria e contra-baixo;

com vocais desempenhados entre os integrantes) cujas músicas cobriam desde reproduções fiéis até versões de

canções de grupos de rock ocidental. O fato de Dyuzhikov estudar o idioma bretão desde a oitava série, contribuiria

106

Marochkin (2011a), seguiriam o mesmo esquema já relatado de reprodução fiel de músicas de

grupos de rock Ocidental (como Beatles e Rolling Stones) e sua grande curiosidade, ficaria em

torno do fato de que embora gozassem de boa projeção àquele momento, seriam absorvidas

pelo esquema de produção seguinte (o VIA), e teriam suas carreiras encerradas no princípio da

década seguinte – com integrantes vindo a se articular em outros grupos ou seguindo carreiras

divergentes à da música.

No quesito sonoro e de realização musical, cabe dizer que do princípio ao encerramento,

o rock sessentista da URSS, com poucas exceções, ficaria marcado por essa predominância do

esquema de covers de sucessos anglo-americanos em versões locais (zapevchey)178, algo que

mudaria com o passar do decênio, para uma noção mais experimental e ousada, bem como, a

cena rock soviética (predominantemente originalmente moscovita) migraria, ao final da década,

paulatinamente da capital Moscou para a cidade de Leningrado (São Petersburgo), onde um

fluxo expressivo de músicos começava a germinar um rock com elementos mais definidamente

contraculturais. Seria o princípio de uma era de experimentalismos e a criação de novas

estratégias de realização – e enfrentamento (MAROCHKIN, 2011a).

Conforme o descrito, na década observada, a participação de muitos e influentes

personagens com envolvimento no aparelho governamental (como os outrora referidos

integrantes Komsomol e os gerentes de instituições estatais ligadas à música, segmento da arte

e cultura soviéticas), não apenas tornaria possível o ‘dúbio’ âmago receptivo que o fenômeno

do rock soviético desfrutava179, como também se buscaria, progressivamente, tentar sua

submissão ao controle estatal direto, observando-se seu potencial como elemento de

propaganda das modernidades da sociedade soviética sob Brejnev, aquecimento do mercado

a uma relativa facilidade nesse processo de assimilação musical, que o introduziria aos Beatles e que mais adiante,

se tornaria a saída para o músico ingressar no ensino superior junto ao Instituto de Tradutores Militares (em

Moscou, 1966), conciliando assim, a possibilidade de estudo com a carreira da família (cujo pai, o coronel

Alexander Ivanovicz, seria da aviação da URSS, enquanto a mãe, teria uma experiência musicista no acordeon). Através desses estudos, ocasionaria em seguida, estando na cátedra de Filologia da Universidade Estatal de

Moscou [Instituto M.V. Lomonosov], a circunstância onde conheceria seus futuros parceiros em uma nova

empreitada musical: a formação do grupo Scythians. Fonte: MAROCHKIN, 2011c. 178MAROCHKIN (2011a) usa o termo zapevchey para se referir a essas produções locais das canções estrangeiras.

Zapevchey, que em russo, significa canção, cantor, cantador do povo; empresta o sentido de composição de

canções (e referência aos cantores) no estilo popular, dentro dessa iniciativa do rock traduzido para a língua local.

Importante não confundí-la com as canções populares dos gêneros estatais: Estradnaya (Estrada), Massovaya e

Bitovaya, as quais integrariam a indústria cultural soviética e a cultura popular soviética de fato, ao invés de um

exemplar de nicho, como o rock local. 179Entenda-se esse desfrutar como situado em grandes centros urbanos, pois conforme se tratará ao longo do

trabalho, sua penetração territorial seria restrita.

107

fonográfico e ferramenta de entretenimento (panem et circensis) – uma estratégia durante o

aparato brejnevista, que teria consequências muito dicotômicas no futuro que lhe sucederia.

Não obstante, remontando precisamente a questões políticas em transição e curso na

URSS, junto a essa epopeia cultural inédita, tem-se de considerar que a mudança do governo

da URSS, das mãos de Nikita Kruschev para o comando de Leonid Brejnev, trazia consigo

muitas considerações em desdobramento a que se reputar.

À título de esclarecimento, optou-se principiar – como objeto do capítulo 1960’s Lado

A – com um foco detalhado da questão da cultura, pois, como horizonte urgente, não caberia

perder-se o controle do movimento de cultura principiado no início da década, bem como o

lastro dessa juventude que dele se apropriara e assimilara à sua circunstância – e com esse

propósito se segue até o desfecho deste capítulo (dividido em quatro sub-capítulos) relatando

para adiante de uma remissão inicial das Bandas Soviéticas, outras Experiências da juventude

local – de Consumo, de Atrito e de Retiro – pertinentes ao entendimento do rock soviético.

Assim sendo, considerando que ainda acerca desse fenômeno e do escopo cultural de 1960,

hajam aspectos culturais-sociais importantes de se explorar. Por essa opção de argumento,

tratar-se-á da propriamente dita discussão político-econômica, interior e exterior ao escopo da

Guerra Fria, por suas características que demandam especial atenção, apenas num momento

posterior – na parte [de título] 1960’s Lado B.

2.1.2 Experiências de Consumo: Um Esclarecimento Histórico, uma Magnitofonnaia

Kul´tura e um fisiologismo com a produção estatal

O que é, então, “pôshlost”? Nabokov180 dava os seguintes exemplos para tentar explicar esse enigma:

“Abra uma revista e você certamente encontrará algo assim: uma família acaba de comprar um rádio

(ou um carro, uma geladeira, prataria ou qualquer outra coisa). A mãe está batendo palmas, doida de alegria. As crianças se reúnem, boquiabertas, ao redor dela. O bebê e o cachorro estão apoiados na

mesa onde o objeto de idolatria foi colocado. Um pouco de lado está em pé, vitorioso, o pai, o

orgulhoso provedor da família. A “pôshlost’icidade” intensa dessa cena não vem do falso exagero da dignidade de determinado objeto útil, mas da suposição de que tal alegria possa ser comprada e de

que tal compra enobrece o comprador.”

Dária Aminova, ’10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir’181

Ao observar-se o fenômeno do rock soviético algumas questões vêm à mente,

principalmente, considerando-se as diferenciações de sociedade existentes entre o modelo do

180Vladimir Nabokov (1899-1977); Famoso escritor russo radicado nos EUA, autor do romance Lolita (1955). 181AMINOVA, Dária; 10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir. Russia Beyond. 10 de jun. 2017. Disponível

em: https://br.rbth.com/arte/2017/06/10/10-palavras-russas-impossiveis-de-traduzir_777840; Acesso em:

20/02/2021

108

Socialismo da URSS, para o da sociedade capitalista Ocidental. Entretanto, embora distintas

em muitos aspectos, por questões de trajetória e fatores de suas próprias configurações, há que

se considerar, como Cushman (1995; pp.18-19) salienta, os pontos que as simultaneizariam,

sob o escopo da chamada modernidade industrial (tais como sentido de temporalidade e

arranjos reincidentes dessa circunstância, políticos e sociais), a ponte que permitiria suas

conexões:

O pós-guerra promoveu uma tremenda aceleração no crescimento e difusão de mídia

de comunicação em massa no sistema-mundo global. Não apenas informação cultural

carreada por esses canais, mas também pelo crescente número de cidadãos provindos

das sociedades industriais ocidentais, os quais desfrutavam de uma liberdade de

movimento dentro do sistema-mundo, historicamente sem precedentes. Rádio,

televisão, a possibilidade de posse individual de tecnologias de reprodução cultural, e

o deslocamento de cidadãos de novas e bem-desenvolvidas sociedades de informação

às sociedades com menor grau de desenvolvimento, permitindo por um alargamento

da circulação de símbolos e signos através do mundo. Essa circulação também

atingiria os países do bloco socialista, ainda que de maneira limitada.

Localmente, o processo de modernização liberaria forças sociais e culturais as quais

simplesmente não poderiam ser contidas, mesmo sob a existência de formidáveis

barreiras erigidas dentro de uma sociedade autoritária. Sociedades modernas

industriais – mesmo as de cunho autoritário – necessitam educar seus cidadãos para

criarem e utilizarem novas tecnologias e para envolver-se nas complexas tarefas da

produção industrial. Educação a serviço do socialismo, entretanto, seria uma faca de

dois-gumes. Um aumento no letramento verbal e tecnológico não leva apenas ao

aumento da capacidade produtiva de uma sociedade, mas também a conduz para mais

sofisticadas formas de cognição, as quais permitem o desenvolvimento da liberdade de discernimento e o potencial para refletir e pensar criticamente o mundo à sua volta.

De fato, como argumenta Anthony Giddens (1990, 1991), é a capacidade dos

indivíduos de pensar reflexivamente sobre seu entorno social, de imaginar sua própria

biografia em relação ao mundo, ao qual eles reconhecem, também, como um produto

de sua construção, o que se demonstra um dos principais marcos das sociedades

industriais. [Traduzido do inglês]

O autor considera aqui uma circunstância de sistemas-mundo, onde embora separados

por uma série de características, caracterizam-se pela coexistência no mesmo plano global e em

ocorrência simultânea, de modo que tais realidades por vezes se toquem e imbriquem, com mais

ou menos intensidade e frequência, umas dentro das outras. Sobre esse sistema de análise

histórica, considera-se o argumento de Conrad (2019; pp. 66-70), no tocante ao uso do sistema-

mundo deve-se observar que a noção processual – econômica e a desdobrar-se em fluxos de

pessoas e mercadorias, sobretudo, informações – é, com vulto, a parte aqui considerada

interessante. Desde o início do trabalho, abordando-se a economia, a circulação cultural e o

rock em deslocamento (dos EUA ao Reino Unido, de lá através do fenômeno dos Beatles), foi-

se rastreando uma rede de entrelaçamento e fluxos, numa investigação que procurava encontrá-

los e evidenciá-los. Portanto, isso pondera acerca de formas estruturadas de interdependência

109

– econômica, mas também, política e cultural – encadeadas relacionalmente e em simultâneo

(p. 69), as quais contemplam o escopo do que aqui se tem objetivado perfazer.

Tampouco, espera-se como característico do sistema-mundo, focar somente na

integração econômica e seus processos ou mesmo numa macro análise que não se aprofunda:

pelo contrário, recorrendo-se a Jacques Revel (2008) com seu jogo-de-escalas (transitando

entre os olhares micro e macro analíticos), com devidas adequações sempre que possível,

procura-se orientar num esforço pautado em fazer-se da análise uma fisionomia histórica em

perspectiva, cuja complementaridade escalar se dê com foco dinâmico. Ou seja, a pretensão

dessa narrativa de pesquisa aqui empreendida, embora vincule um autor que disserte

considerando o sistema-mundo como terminologia (conforme a tradição de Samuel Wallerstein,

por exemplo), não é outra senão a de tentar tecer um escopo mais amplo, de caráter (histórico)

global.

Observando isso, há que se ponderar um fator catalisador em comum nessas trajetórias.

O fator catalisador do pós-guerra é visto como uma constante que fez proporcionar muito desses

eventos. No Ocidente, a pujança econômica decorrida da vitória na campanha, traria afirmação

estadunidense no alinhamento ao modelo de American Way of Life e a disseminação de valores

decorrentes desse novo arranjo e a ênfase no consumo de mídias de entretenimento baseadas

no perfil individualista de fruição. O produto dessas relações em jogo quanto aos fatores

desencadeados, teria como uma das respostas a repercutir, a criação de um estilo de vida

contracultural, protagonizado pelos jovens, esses que alienados desse processo de escolha, por

força de fatores de assimilação determinantes ao redor. E, novamente, como uma das

possibilidades entre todas essas repercussões, surgiria o rock.

No lado Oriental, a mesma campanha vitoriosa, também produziria afirmação do projeto

de governo perpetrado até então, o qual, no entanto, teria uma reviravolta com o fim de seu

mandatário realizador. Os caminhos tomados a partir daí, acenariam a necessidade de uma

sucessão, na qual relutava-se entre a possibilidade de reafirmação do estilo anterior de gestão

ou o abandono desse por outra linha sucessória. Novamente, como um dos caminhos possíveis

de se manifestar, manifestou-se uma reviravolta moderada (reformista), onde embora se

mantivesse a circunstância do aparato e dos objetivos principais da ideologia socialista, as

formas e os métodos tomariam nova vertente. Surgiria daí todo um novo espaço para

comunicação e o trânsito de outras realidades à URSS.

110

Talvez, numa hipótese crítica, a única diferença (embora não pequena) balizadora em

todo esse processo, entre os objetivos de uma sociedade em relação à outra, seja: a presença do

interesse mercadológico em uma, e da ausência deste, na outra. Para melhor se fazer

compreender de tal afirmação, cabe se observar como em reflexo às afirmações do estilo de

vida Ocidental, repercutiram na disseminação de uma série de produtos à sanha do consumo da

sociedade que se sentia vitoriosa após a Segunda Guerra. De modo distinto, não como

consequência direta, mas por circunstâncias próprias na gestão soviética, tais produtos,

eventualmente, viriam a chegar à porção Oriental. A ausência de uma necessidade de mercado

específica levava a que o modelo anterior, de gestão soviética (stalinista, que determinava, em

reflexo, o modelo social e político que se apresentava) pudesse ou não pudesse continuar se

perpetuando ao longo de novo período. Enquanto que, na porção Ocidental, invariavelmente,

uma resposta ao mercado seria ofertada, pois esse, por suas características, teria de capitalizar:

quer por sobre o lado dos mais afetados (atuando como mediação no processo de recuperação

econômica, como no caso da reconstrução britânica e Ocidental alemã, e mesmo na

administração desse processo, como no mandato do General Douglas MacArthur no Japão),

quer por sobre o lado dos menos afetados (como na disseminação comercial interna, em âmbito

social do American Way of Life na sociedade estadunidense, na chamada Era de Ouro,

desencadeando a ampliação das redes de contato do seu sistema de sociedade com demais

sociedades ao redor do globo), mesmo que sob os matizes de uma oposição ideológica –

verificada na alternativa do caso da União Soviética.

Em outras palavras: a determinação teleológica de que o rock n’ roll devesse chegar a

existir (como o produto da rebeldia juvenil face à imposição que a pressionava), bem como a

noção determinista de que uma vez realizado, se viesse a perpetuar em terras soviéticas, por

pura naturalidade, é completamente frágil. Aconteceu, primeiramente, porque houve condições

para acontecer – e não porque houvesse de acontecer. E em segundo aspecto, porque os canais

e circunstâncias propícios a esse contato estivessem em momentânea sintonia. Acaso, tivessem

os jovens estadunidenses respondido com a apatia, ao invés de uma manifestação de rebeldia,

o produto artístico fosse outro. De outro modo também, não fosse a repercussão desse fenômeno

de cultura suficiente aos interesses de se explorar do mesmo enquanto uma nova vertente

cultural por sobre seus aficionados, talvez nunca desses produtos tivesse chegado à Europa. E

não fosse o governo àquele momento na URSS, um que inclinado a apresentar tanta

receptividade às possibilidades estrangeiras, mesmo com os dois outros fatores, nada disso teria

ocorrido. Ademais, se mesmo tendo tudo isso ocorrido, por acaso, os jovens soviéticos não

111

apresentassem afinidade com o ritmo inédito em sua localidade, talvez nunca ele tivesse tido a

continuidade que o transformaria em fenômeno.

Com tal ponderação espera-se somente demonstrar os elementos de autenticidade e

plasticidade do fenômeno envolvidos em sua realização: onde por nenhum modo, nem por

fatores de consumo (em afinidade momentânea), nem pela circulação cultural, se pode justificar

pensamentos como de uma inexorável submissão ao modal estadunidense, nem sequer sua

unanimidade e uniformidade de processo – em que cada juventude, embora com tênues

afinidades de cenário e de tensões, responderia, diametralmente diferente em cada localidade

da incidência do rock. Partilhava-se o momento em comum, e algumas tensões de um repertório

comum (a guerra nos seus alicerces de geração), mas afora isso, eram mundos muito diferentes,

apenas com algo similar: seu tamanho e a ‘ponte’ enquanto sociedades voltadas ao progresso

técnico da informação.

É sabido que a História não lida com o subjuntivo (se), mas por vezes, somente a

consideração de cenários alternativos (não ocorridos), recupera a perspectiva que demole a

teleologia de uma narrativa escatológica histórica. Parece óbvio, que o que aconteceu não

poderia acontecer de outra maneira (caso contrário, haveria o produto manifesto de outra

circunstância histórica), entretanto, de modo algum se pode recair em uma noção de

inexorabilidade dessa circunstância. E sobre isso, há que se considerar um momento onde as

circunstâncias fortuitas ao fenômeno que aqui se estuda, se simultaneizariam. Acima de tudo,

a principal simultaneidade receptiva entre esses fenômenos de cultura reside no partilhamento

de visões, que embora dicotômicas, figuram nos pólos da modernidade industrial, com forte

apelo progressista, assimilação científico-tecnológica, proporções gigantescas, influenciadoras

e protagonistas em sua polaridade e uma busca por realização dos meios de informação e

mecanismos correlatos, sem os quais, descompassadas essas características de mundo, cada

qual dos sistemas, se veria de fato, colonizando ao outro – o que, por ocasião da similitude de

suas escalas e da similaridade de hierarquia de suas complexidades estruturais, não aconteceu,

devendo-se entender que tudo tenha figurado, apenas, como uma troca ou sedimentação

cultural. Em outras palavras, sem a hierarquia pretensamente esperada por uma ‘colonização

do estilo’, emanada dos centros do capitalismo. Chegando-se muito mais, a soluções de

realização por características locais.

E, sobretudo, ao interesse histórico, o que mais retumba é o fato de que acontecido, e

com a sincronia que somente fatores possíveis e não premeditados possuem. E uma vez tendo

112

ocorrido, o rock não apenas foi conhecido, mas paulatinamente, veio se tornar assimilado pela

juventude local, embora, é claro, segundo concessões.

Precisamente isso, cabe aqui ser esmiuçado, pelo seguinte motivo: embora se tenha

abordado, grosso modo, as bandas, músicos e o assunto fulcral musicalidade – e nada mais, na

primeira parte deste capítulo (no bojo das etapas anteriores), não se pode esquecer de que houve

uma transição de governo no meio da década de 1960, na URSS. Dessa transição, o clima de

aurora cultural da Era Kruschev e seu Degelo, dariam lugar ao estilo governamental de outro

mandatário, Leonid Brejnev, o qual, por muitas vozes de seu tempo, seria chamado

neostalinista182. Consoante não seja o fulcro dessa etapa da narrativa tratar dos aspectos

políticos referentes a essa transição (que se destina a discutir no subcapítulo intitulado Lado B),

ao menos superficialmente, se deve dar entendimento de que esse câmbio na administração

mudaria o tom das coisas em relação ao rock, a juventude e certo cenário permissivo àquele

momento. Embora não se cogitasse tornar aos tempos e rigores de Stálin, a perspectiva do

mandatário a assumir em 1964 (Brejnev), acenaria com um recrudescimento da linha ideológica

mais formal do Socialismo, baseada, fortemente, na deposição de muitas das iniciativas

empreendidas por Kruschev (por motivos que se estudará no momento pertinente). Assim, após

o Degelo, preliminarmente, no tocante aos produtos culturais, a circulação de conteúdo

Ocidental na União Soviética ficaria a cargo de uma mediação mais criteriosa pelo sistema

partidário, com novas formas, mais ou menos restringidas de circular e de se adquirir, dando-

se assim, ênfase na música, por exemplo, ao consumo de material local ou mais

tradicionalmente/ideologicamente orientado.

Isso repercutiria no rock soviético com as seguintes consequências: haveria uma gradual

dicotomização entre os caminhos tomados por certos músicos e bandas, rumo a aderir ou não

a uma afinidade estatal (como se estudará quando chegar-se ao tocante à questão do VIA),

resultando de uma parte, num circuito de produção e veiculação de músicas comerciais, mais e

mais, aglutinador de protagonistas conformistas e patrocinados/chancelados pelo Estado,

enquanto que outra parte do circuito fluiria de modo contraventor, resistente e às margens do

escopo do aparato estatal. É sobre os primórdios dessa rede underground (subterrânea) de

produção e distribuição fonográfica, ainda sob Kruschev, que se pretende falar a seguir, e como

ela esteve ligada a uma série de situações paradoxais em sua oportunidade de realização.

182GORBACHEV, Mikhail. The first steps towards a new era. The Guardian. Ed 26 de abr. Reino Unido –

Londres. 2007.

113

Situações essas, que levam a suscitar, que embora duráveis, as instituições do aparelho estatal

(tal e qual seus cidadãos) também passavam por evoluções, desgastes e transformações.

Dito isso, e agora com algum cabedal em torno das bandas sessentistas da URSS e

também da ocasião catalisadora do rock soviético, cabe perscrutar sua realização material:

Como chegaria o rock às mãos e ouvidos de seus apreciadores? Como se adquiriria o rock em

uma sociedade Socialista? Como circularia a partir daí? Para responder essas indagações,

deve-se considerar aquilo que havia de presente nessa sociedade e que por qualquer motivo

singular, pudesse prestar serviço à tarefa de fazer do ritmo uma categoria exequível na porção

soviética.

Primeiramente, há que se considerar o aparato. O próprio aparelho estatal que se nutrira

de forças e esquemas para fazer valer sua implacabilidade diante de manifestações dos cidadãos,

seria um desses canais a serem utilizados para disseminação do rock. Anteriormente, fôra

através dele, de maneira formal, com a abertura de Kruschev à entrada de bens de consumo

diferenciados ao público local que o produto rock n ́ roll ingressaria na URSS. Posteriormente,

através do uso desse aparato de maneira informal, pelos protagonistas da realização do

empreendimento de um rock soviético. Assim, por exemplo, seriam criadas estratégias

clandestinas para a realização de determinadas obras de cunho artístico – seguindo-se à tradição

inaugurada, ainda na imberbe intelectualidade russa do século XIX, com o samizdat (cuja

definição apresenta-se a seguir).

O samizdat, ou literatura clandestina, estratégia de produção e disseminação alternativa

e marginal de escritos políticos subversivos, ainda no czarismo de Nicolau I (segunda metade

do dezenove) longe de ser um hábito abandonado, havia sido incorporado pelos intelectuais

soviéticos como parte das ferramentas de aquisição sub-reptícia de informações. Um exemplo

interessante, era o de como os acadêmicos dos estudos de Psiquiatria e Psicologia, fariam para

poder obter contato com as obras de Freud, uma vez que fosse esse um autor banido pela

ideologia socialista (nas primeiras décadas de existência da União Soviética), por conta de sua

teorização em torno do voluntarismo positivo da personalidade e o individualismo presente em

seu estudo sobre o inconsciente (linhas de pensamento desafiadoras aos pressupostos da

ontologia e epistemologia marxista, observadora de um determinismo e coletivismo implícitos).

Segundo a tradição, considerando que um pedido afirmativo de estudo fosse seguramente

negado de acesso pelos canais oficiais, o pedido vinha escamoteado na seguinte estratégia:

requeria-se junto à biblioteca da instituição superior, a disponibilização dos principais autores

114

atacantes da obra de Freud, suas teses e teorias, com o pretexto de produção de trabalhos

acadêmicos para criticar a proposição freudiana. Uma vez liberados esses conteúdos e autores,

pela oposição, se tinha acesso à partes e conteúdos da obra original do psicanalista, e esses

excertos eram compilados em literatura informal e circulados pelo meio acadêmico, por uma

rede articulada de redação e distribuição clandestina (CUSHMAN, 1995; p. 36).

E essa tradição contestadora e de redes subterrâneas de circulação cultural, por

conseguinte, seria outro meio de difusão de materiais: um meio termo entre o uso do aparelho

estatal e o consumo individual, considerando que encontraria com a tecnologia oportunizada

pelas novas experiências de consumo oferecidas no Degelo. Proporcionada pelo advento da

possibilidade de aquisição doméstica dos magnitofon (toca-discos; dispositivos de

gravação/reprodução bobina-a-bobina) e a criação, nos anos 1960, do dispositivo gravado em

modo fita-cassete183, sem olvidar os discos de vinil, criados e disseminados cerca de duas

décadas antes (1948), mas que mais francamente, na URSS seriam adquiridas em escala sob

Kruschev, no início da década – segundo Cushman (1995; p.195) – surgiria uma modalidade

de gravação e compartilhamento de materiais fonográficos: a magnitofonnaia kul´tura (ou

cultura do magnetófono, referente à prática de reprodução artesanal fonográfica a partir de

gravações domésticas de discos e fitas-cassete).

Em primeiro lugar, no que concerne ao fenômeno de cultura do magnitofon na URSS,

deve-se esclarecer de quando e como se produziu o tal ‘dispositivo magnético de bobina-a-

bobina’ – recorrendo à tradução mais próxima daquilo que descreva o conceito de um

magnitofon (gravador de fita magnética). Na URSS, os primeiros estudos acerca de registro

magnético remontariam à década de 1930, contando com a participação de pesquisadores do

Instituto de Pesquisa Científica do Comitê de Radiodifusão da União Soviética (segmento

ligado à Gostelradio), com gravadores bobina-a-bobina bem-sucedidos, tendo sido produzidos

ainda antes da Segunda Guerra Mundial. Em 1942, seria produzido o SM-45, e em 1944, a série

MAG (com os protótipos MAG-1 e MAG-2), direcionados com especial propósito aos centros

de radiodifusão estatais. Apesar de sua pouca escala de produção àquele momento (cerca de

setenta aparelhos), no pós-guerra haveria um florescimento e desdobramento ávido dessa

produção: com a criação de um Instituto de Desenvolvimento à Gravação Sonora e toda uma

estrutura de base para a indústria local com essa finalidade. Daí, surgiriam os protótipos

simplificados, projetados para o consumidor de massa (embora, de fato, à época, seu preço

183HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 208

115

ainda fosse vultoso e inacessível ao grande público), os quais, a partir de 1949, com a realização

do gravador bi-bobinado Dniepr, produzido na RSS da Ucrânia (em Kiev), teriam a aquisição

por organizações (coletivos) muito acessibilizada, gerando possibilidade, durante a metade dos

anos 1950, para que se alargasse o segmento rumo ao consumidor. Assim, de Moscou sairiam,

pioneiramente ao circuito doméstico, os modelos Yauza e Astra, e do pólo de produção sediado

em Vilnius, sairia o Elfa, os quais, até o final da década (1959) seriam de ampla abrangência e

domínio técnico junto à produção local.184

Decorrente dessa revolução tecnológica do magnitofon, viria o amplo acesso dentre a

população, disponível a quase todas as categorias populares, a qual ocasionaria seguir, a

chamada Magnitofonnaia Kul’tura ou cultura do magnitofon/gravador bobina-a-bobina, bem

como o termo correlato, Magnitzdat (registro magnético ou, propriamente, fita magnética)

contribuinte a disseminação precoce do chamado ‘VIA semi-underground’, sem olvidar

performances estrangeiras e de bardos locais. Embora não fossem aprovadas pelo selo estatal,

tais produções ganhariam vulto e ficariam muito populares185.

Dentre as fontes aqui utilizadas apontam-se diferentes metodologias e épocas de

florescimento dessas práticas. PAPHIDES (2015) situa sua ocorrência durante os anos 1960,

com ênfase na entrada de discos de rock de artistas britânicos por meio de atravessadores

ingleses que se correspondiam com contatos da União Soviética (não ficando especificado se

tratando de cidadãos com privilégios, como filhos de diplomatas e dos oficiais ou se integrantes

da própria estrutura oficial com relações ao mercado negro). A principal indicação do autor se

refere à produção e disseminação de reproduções clandestinas em formato de discos (chamados

de roentgenitzdat, ou impressos em raio-x), consistindo em versões piratas (bootleg) dos vinis

originais – dos Beatles, principalmente – impressos nas superfícies de materiais alternativos

disponíveis na União Soviética.

O método de realização dessa via clandestina de produção cultural é parcialmente

reconstituído nos primeiros trechos da película russa Stilyagi (traduzido ao Ocidente como

Hipsters), de Valery Todorovski, de 2008. No filme, que busca retratar o movimento local da

juventude jazzista durante a década de 1950 na União Soviética, há a demonstração de uma

engenhoca, composta por dois aparelhos com superfície de toca-discos, posicionados em

184Музыка 70-80-х Музыка Катушечных Магнитофонов!!! Музыка 70. Музыка 80; (2011) [Trad. Livre:

Música das Décadas de 70 e 80 – Música de Gravadores Bobina-a-Bobina; Ficheiro: Músicas dos Anos 70;

Músicas dos anos 80] Disponível (em russo) em: https://abrgen.ru/magnitofony/; Acesso em: 02/03/2021 185Idem

116

paralelo, que através da execução da melodia na superfície de um disco de vinil original, de um

lado, fazia vibrar em simultâneo a uma haste provida de agulha (similar a apresentada na

estrutura de toque do toca-discos) do outro, só que esta ao passar na superfície da chapa

colocada em paralelo, ao invés de ir executando uma melodia (como a estrutura disposta ao seu

lado), lhe ia gravando ranhuras – correspondentes às executadas pelo disco original –

produzindo um negativo do disco, utilizado para produzir cópias em escala do material

fonográfico utilizado como base.

Pete Paphides (2015), jornalista britânico pelo The Guardian, realizador de reportagem

importante referente ao assunto, relata que formas plásticas de bolo, placas de sinalização e

mesmo chapas descartadas de exames de raio-x seriam superfícies de gravação empregadas

nesse processo de confecção dos roentgenitzdat, rudimentar e clandestina. Não obstante,

ressalta-se como algo a impelir a prática, o fato de que os materiais ocidentais adquiridos fossem

muito caros e mesmo suas gravações locais (em compactos de coletâneas aprovadas pela

gravadora estatal) se dessem disponibilizadas por elevados preços186. Sobre os roentgenitzdat

e a repressão local à essa forma de produção alternativa, mais adiante se dissertará, ao analisar

outra fonte: o filmete educativo estatal – traduzido ao inglês – Shadows On The SideWalks, de

1960 (URSS), como parte do argumento do capítulo Amigáveis Informantes: Os Druzhnniki e

o caráter frio e calculista do Degelo.

Já Cushman (1995), enumera a hereditariedade dessas práticas, através de outra solução

de produção do circuito alternativo, numa faceta da disseminação dos chamados

magnitoalbomy (ou álbuns de artistas gravados em fita-cassete), uma solução encontrada pelos

músicos locais, principalmente perto da década de 1980187, como forma de possibilitar a

produção doméstica de gravações (não mais apenas reproduções, mas inclusive, originais de

186Há o relato de certo músico entrevistado por Cushman, cujo nome não é mencionado, que informava ter pago a

soma de quarenta rublos em um único álbum estrangeiro (contrabandeado). Considerando-se, que isso

representasse um quarto do salário mensal de um trabalhador médio soviético, tal preço tornaria, por essa via,

disponível para poucos a aquisição de materiais dessa categoria na realidade local. Fonte: CUSHMAN, 1995; p.

40 187Referências correntes a essa modalidade são apresentadas no trabalho, frequentemente, ligadas e situadas à

década de 1980 (Marochkin, 2011; Cushman, 1995). Entretanto, não se tem precisão de quando tenha principiado

a prática dos magnitzdat (se durante Kruschev ou se logo depois), posto que a existência dos cartuchos magnéticos

e das fitas-cassete remonte, respectivamente, em terras ocidentais (e por extensões dos bens de consumo

soviéticos), às décadas de 1950 e 1960. Além disso, pelas fontes, é factível que pelo mercado negro ou pelos

consumíveis da Era do Degelo, algo dessa natureza viesse a figurar na União Soviética, conforme se disserta ao

longo desse trabalho – no exemplar de caso de um bardo local, Bulat Okudzhava – embora pouco rastreável, não

se demonstraria impossível – e por isso, situar-se os dois meios de disseminação nessa etapa (anos 1960), mesmo

tendo um deles (magnitzdat) maior vulto na década de 1980, pois pelo relato em análise da história desse bardo

(adiante dissertada), pode-se situar de tal precedente junto ao do, mais evidentemente rastreável, vinil pirata

(roentgenitzdat) nessa reconstrução narrativa referente aos anos 1960.

117

bandas locais), através da utilização da modalidade (clandestina188 ou paralela189) de fitas-

cassete – chamadas localmente de magnitzdat, ou registros magnéticos. A qualidade do

material seria discutível (sonoridade precária), posto haver pouca oferta de variedades de fitas-

cassete e ficar esse sortimento, a depender da circulação local (regravações). Em geral, as fontes

de disseminação desses materiais, seriam as redes de amigos e relações dos indivíduos

apreciadores, que gravando uma mesma fita e regravando-a diversas vezes (em um esquema de

cópias das cópias), fariam chegar a extensão dos gravados não apenas a circunscrição territorial

da cidade (como Moscou e Leningrado), mas, muitas vezes, de todo o país. Um tiro incerto,

seguramente, mas cuja amplitude fazia valer a pena o risco.

Como Cushman (1995; p. 41) observa, embora fosse uma sociedade da modernidade

industrial, a ausência de produção em massa desse método (para esse segmento), faria lembrar

a estrutura de uma cultura aldeã (village culture), onde a disseminação pelo ‘boca-à-boca’ e o

repasse direto de produtos, cumpria função de substituir o que em outro cenário seria

desempenhado pelo aparato mercadológico.

A partir dessas iniciativas ora descritas, em radiodifusão, constatam-se então, duas

modalidades alternativas de produção: a) primeiramente, o roentgenitzdat (em tradução literal,

registro no raio-x190) ou vinis piratas, os quais eram prensados – ante a carestia de alcance

facilitado ao recurso do vinil – em chapas de acetatos de exames de raio-x (PAPHIDES, 2015);

e mais adiante, b) o magnitzdat (em tradução literal, registro magnético), fitas-cassete piratas

para a gravação de música de uma forma ainda mais barata e dotada de subterfúgios, sem

188Confecção de material por meio das já mencionadas atividades ilícitas, contraventoras. 189Confecção dos materiais por meio de estúdios independentes, como os apresentados em Marochkin (2011), já

existentes no princípio dos anos 1980, embora subsistisse a adequação ao Socialismo, na região de Moscou e

Leningrado. 190Aqui cabe um parêntese em relação à terminologia. Embora o nome Roentgenitzdat, signifique, gravado em

raio-x, isso é apenas fruto do uso corrente de uma equivalência do termo original cirílico, a sua denominação

Ocidental (onde o roentgen, corresponde ao raio-x). Entretanto, deve-se considerar nessa etimologia, que a Rússia

durante muito tempo, foi tributária do pensamento e dos conceitos provindos da Alemanha, e quando em 1895,

Wilhelm Von Röntgen, físico e engenheiro alemão, descobriu e processou os efeitos da radiação eletromagnética, resultando na confecção das primeiras chapas de raio-x, seu experimento levou seu nome em tributo, chamando-

se inicialmente de Chapas de Röntgen. Daí o nome chegar ao cirílico, por metonímia, como o ato de se fazer um

Roentgen, vir a ser sinônimo de fazer chapas gravadas à moda de Röntgen, através do uso de raio-x. Por justiça à

literalidade do termo, raentgenitzdat, é um substantivo que amalgama a outrora referida terminologia de literatura

clandestina (samizdat), com o nome dessa técnica de gravação (Roentgen/ raio-x), onde o sufixo raentgen presente

em raentgenitzdat, equivaleria, em realidade, ao termo de Gravado em Röntgen, em alusão menos à técnica (raio-

x) e mais ao seu descobridor (Röntgen, que em cirílico, se translitera em Raentgen) – resultando daí, a composição

desse importante nome da cultura fonográfica marginal da URSS: os discos gravados nas chapas de Röntgen (ou,

de raio-x). Fonte: KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas (1963); 2ª Ed. Editora da UFPR,

Curitiba, 2012

118

esquecer de mencionar, sua facilidade de produção em escala artesanal de reprodução do vinil

para o meio magnético, a partir de um aparelho doméstico.

O modus operandi das gravações, também se complexificaria ao longo do tempo, indo

para além de regravações de materiais importados, para o registro local das performances das

bandas. Esse funcionamento dependeria, antes de qualquer outro item, de um mínimo de

conhecimento, tanto musical, quanto da aparelhagem necessária ao propósito (que será

abordada em tópico mais a frente) e o acesso aos seus instrumentos.

Devido à estrutura de educação soviética prever a formação musical em seu amplo

escopo cultural, não raro, os estudantes possuíam alguma experiência musical de aprendizado.

Ainda por cima, o acesso a determinados instrumentos ficava possibilitado através dos contatos

adequados. Referente a isso, Ryback (1990) pondera uma crônica, no tocante à aquisição da

guitarra elétrica, emblemática ferramenta à realização do rock, que muito escassa ainda àquela

década na URSS. O autor relata que a comunidade jovem local resolveria o problema, a partir

de meios muito particulares: ou do atravessamento de materiais por meio contrabandeado (em

geral da Alemanha Oriental) ou por meio da vandalização de telefones públicos, disponíveis

em número substantivo nas localidades urbanas, e a partir de cujas peças, com um ofício

artesanal de luthieria (fabrico de instrumentos), se poderia arranjar os captadores e partes

metálicas do mecanismo do instrumento191. Nesse sentido, noutro relato, o músico Vladimir

Salnikov, ajuda a ilustrar essa questão, comentando acontecimentos do verão de 1966, onde se

reuniria com amigos da Universidade Estatal de Moscou, na primeira formação dos Scythians,

em um episódio da trajetória do já mencionado guitarrista virtuoso Sergei Dyuzhkov:

[...] Encontramos Yura, nos conhecemos e dez minutos depois, com a ajuda de amigos

ele trouxe sua riqueza: uma bateria Trowa, guitarras – Musima Elguita e Hernzsdorf

– e um baixo caseiro com estacas simples e cordas para violoncelo e um

amplificador caseiro. [...] [Mais adiante quando tornamos a nos encontrar]

Soubemos com grande lamento que a guitarra Elguita de Yura, pela qual

tínhamos vindo tinha sido levada por credores. [...] No começo, tudo era dado com

dificuldade, havia uma diferença entre nossos níveis de treinamento e o treinamento

dele [Dyuzhikov]. Mas gradualmente começou a dar certo. De ensaio para ensaio, o

grupo tornou-se mais bem coordenado. Sergei tocou a guitarra Hernzdorf, um

instrumento rítmico com um captador e um timbre bastante baixo. Ela

claramente não tinha altas frequências. Mas o que você pode fazer, não havia

dinheiro para comprar uma segunda guitarra. [...] Yura Malkov em uma conversa,

descobriu que [um outro colega do grupo] Boris tinha dinheiro com ele e então, pediu

que lhe emprestasse 180 rublos para comprar de volta a guitarra. Boris, que era uma

alma bondosa, não viu jeito de negar o pedido e assim Dyuzhikov adquiriu um

[modelo] Musima Elguita. Sergei, um grande inventor, reorganizou as cordas: a

terceira foi substituída pela segunda, a quarta pela terceira, e assim por diante.

191RYBACK, Timothy. Rock Around The Bloc: A history of rock music in Eastern Europe and Soviet Union.

1ª Ed. New York: Oxford University Press. 1990

119

Com isso ele reduziu a resistência das cordas ao executar curvas (flexões, como

o próprio Dyuzhikov diria). É verdade que as cordas ficariam ruins para as

oitavas depois disso, mas ele simplesmente resolveu isso puxando as cordas para

cima enquanto tocava com os dedos. Naqueles dias distantes os acessórios para

guitarra eram escassos e a um elevado preço. [Tradução do russo e grifo nossos]192

O enaltecimento das passagens em torno de pouca suficiência material instrumental,

com uso dos termos riqueza em contraste aos de ordem técnica, dificuldades e o episódio da

tomada de um desses materiais por credores (guitarra), ilustra o grau de exclusividade e valor

desse suporte material na localidade soviética, mesmo em se tratando da capital Moscou. Não

obstante, a descrição das alternativas criadas para poder realizar adaptações nos materiais

(re)adquiridos ou construídos, muito se assemelham às das dificuldades técnicas encontradas

pelos músicos suburbanos estadunidenses mais pobres – principalmente, os de origem hispânica

e afro-americana, precursores do rock nos anos 50193.

Contemplando outra dimensão de ordem técnica, a de gravação, durante o período, essa

seria majoritariamente inacessível aos rockeiros. Entretanto, músicos que fossem autorizados

pelos gerenciadores, conseguiriam figurar em suplementos televisionados de cultura

(Karnival), e por conta disso, serem gravados em vídeo-clipes – mas ainda assim, raramente

àquele momento. A característica predominante do rock soviético dos anos 1960 seria a do rock

de apresentação (seyshnov), com predominância dos espetáculos na modalidade de convite para

tocar, em instituições de caráter estudantil, mediadas pela atuação dos gerenciadores à serviço

do Komsomol. Sua disputa no mesmo terreno de os outros baluartes, profissionais, da canção

soviética (como os músicos do gênero Estrada, cujo tema será melhor abordado mais adiante),

só seria melhor evidenciada na década seguinte – com a criação da iniciativa VIA194.

192SALNIKOV, Vladimir. ГРУППА «СКИФЫ». КАК ВСЁ НАЧИНАЛОСЬ… [Trad. livre: Grupo Skifhs

(Scythians): como tudo começou]. Radio Special (Specialnalnya Radio); em russo. Seção Musical Lexicon: artigo

de 01 de jan. 2005. Disponível em:

https://specialradio.ru/art/id101/?fbclid=IwAR1lmA2YvgS7AhSdAmkTXoa8QTbLfRvXtsNk1GyWzBKqlphGz

BmzCRuOmgw; Acesso em: 20/07/2020 193Nesse sentido, uma breve curiosidade desse universo de precariedade técnica vivenciado por alguns músicos do

rock, aproximaria em biografia, a trajetória do Jimi Hendrix local, Dyuzhikov, com seu ídolo estadunidense:

Hendrix era um adolescente negro de Seattle, que no fim dos anos 1950, conseguiria uma guitarra destra (sendo

que o guitarrista era canhoto). A primeira adaptação proviria do fato de inverter as cordas para poder tocar. Sem instrução, aprenderia a manuseá-la de modo autodidata, utilizando uma moeda em lugar de palheta. Surgiria o

gênio, cuja marca, o emprego da amplificação distorcida, também teria história no driblar de uma disfunção de

ordem técnica: a distorção amplificada da guitarra, seria tradição desde Rocket 88, de Ike Turner (considerada a

primeira canção de rock n´ roll), onde o músico estaria utilizando-se nisso, de um amplificador danificado, o qual

não tivera condições de trocar, mas que a partir daí, emprestaria um ruído de fundo (roufenho) e deixaria o timbre

da melodia mais grave que o natural – algo que agradaria ao músico e se tornaria um precedente ao universo do

uso do drive sonoro no rock. Fonte: ANDRADE, João Paulo. De Seattle para a Eternidade. Whiplash.com. Edição

de 06/04/06. Disponível em: https://whiplash.net/materias/biografias/038478-jimihendrix.html; Acesso em:

20/07/2020. 194Vocalnyie Instrumentalnyie Ansambly (transliteração de conjunto vocal-instrumental). Respeitando as etapas

120

A gravação clandestina dos roentgenitzdat existente nos anos 1960, por seu caráter,

seria mais tímida. Já a dos aludidos magnitoalbony (ou magnitofonnaia albomy; álbuns

magnéticos), os álbuns de fitas-cassete, seria mais evidente, mas sua maior tiragem se daria a

partir no princípio da década de 1980. A comparação é pertinente, no sentido de salientar a

persistência de uma metodologia de enfrentamento à escassez e às restrições, evidenciada nos

caracteres de uma rede de produção em clandestinidade – de característica autônoma doméstica,

ilícita, não comercial e perpendicular ao circuito oficial – e de precariedade contornada em

ambas as realizações. Do que decorre dar relevo, justamente, a esse importante aspecto

material-formal de acesso: o que concerne às formas encontradas a suprir a indisponibilidade

de canais e material mais robustos para gravação na União Soviética. Caractere que por conta

de sua fundamentalidade ao processo e complexidade de aquisição, estrategicamente, seria

segmentadamente supervisionado e permeado/regulado pela via oficial, sempre a figurar sob o

domínio de alguma instituição a serviço do aparato (como a gravadora estatal ou em repartições

ligadas à administração pública soviética). Entretanto, artificiosamente, da participação de

certos personagens locais e uma dose de condescendência das autoridades fiscalizadoras,

sucederia a possibilidade de seu uso – oportuna e, por vezes, corriqueiramente:

No porão do prédio195 havia um pequeno estúdio de gravação no qual, um homem que

atendia pelo nome de Andrei196, produzia álbuns de fita-gravada de certos músicos

independentes de Petersburgo (Leningrado). O esquema funcionava da seguinte

maneira: um grupo ou músico solo vinham até esse produtor para uma audição, na qual ele decidiria o que iria ou não ser digno de gravar. Depois de tomar sua decisão,

o produtor faria cópias das músicas, reproduzindo-as uma a uma em fitas separadas,

e distribuindo-as aos aficionados de rock da cidade. Por sua vez, esses produtos de

rock eram reproduzidos e distribuídos através de canais de comunicação dessa cultura

de gravadores-de-fita que já se havia estabelecido firmemente na cidade. Por conta da

falta de acesso aos meios de reprodução em massa, essas formas de difusão eram,

inerentemente, limitadas. Ainda que, se deva mencionar, ironicamente, assim como

do trabalho, o tema do VIA e da profissionalização do estilo, será devidamente abordado em partes mais avançadas

dessa dissertação, ao esmiuçar-se acerca da gestão do princípio da Era Brejnev. 195O prédio a que o narrador se refere, é o do suposto domicílio de trabalho do produtor Andrei, a Casa dos

Pioneiros, em Leningrado (CUSHMAN, 1995. p. 197). A Casa dos Pioneiros era o primeiro degrau na formação

das crianças/adolescentes na educação soviética partidária. Era o berço da trajetória de aspirantes à carreira oficial,

atuando como instituição soviética de ensino, equivalente à escola infantil atual, na educação brasileira (educação

infantil e anos iniciais), destinada à formação inicial das crianças soviéticas. Era seguida pela etapa no ensino

ginasial do Komsomol (etapa destinada aos jovens, conforme descrito anteriormente). Nessa instituição, enquanto funcionasse como uma escola, vários cursos preparatórios eram oferecidos, bem como, por meio de arrecadações

e atividades culturais recebia-se materiais de descarte em caráter de doação, inclusive do aparato do Estado. 196Não há uma certeza patente acerca da identidade desse radialista irreverente entrevistado por Cushman (1995).

Entretanto, cruzando fontes (CUSHMAN, 1995; MAROCHKIN, 2011a), entre a descrição de sua atuação e sua

influência marcante na cena rock da URSS, através do exame de um relato de Marochkin (2011), acerca dos anos

1980, encontram-se características as quais correspondem à figura do radialista de Leningrado Andrei Tropillo:

[...] Apareceram os primeiros colecionadores amadores: em Moscou – como Alexander Ageev (fundador do

estúdio "Bell"), Victor Alice, Victor Lukinov; em São Petersburgo [Leningrado] – como Andrei Tropillo e Sergey

Firsov, que tinham a coleção completa de tais discos, eles espalharam a magnitoalbomia [mania do

magnitoalbomy] entre amigos. [Trad. do inglês e grifo nossos]

121

acontecia a outros produtos de samizdat, a demanda por produtos de música informais

fosse muito maior do que aquela por produtos provenientes das instituições formais

de produção de cultura, como a Melodiya. [Traduzido do inglês]197

Excetuada a parte do firmemente estabelecido – posto que o relato remonte à década de

1980, momento onde a corrente underground de disseminação de magnitofonnaia albomy

(álbuns de artistas gravados em fita), se encontrava de fato consolidada em terreno soviético198

– parte desse padrão de funcionamento descrito seria o mesmo desde os primórdios da cultura

da magnitofonnaia kul´tura – já verificável na disseminação de outros estilos à década de 1960,

na URSS (nesse sentido, um desses gêneros difundidos àquele momento pela via magnética

alternativa seria o blatnaya, protagonizado pelo bardo Bulat Okudzhava, de que se falará mais

adiante). Destaca-se no caráter subterfugioso da questão – produção pirata – duas importantes

observações. Em primeiro lugar, como outrora mencionado, não obstante a realidade atroz de

concorrência por recursos e a pertinente aprovação do órgão de censura e edição, muitas vezes

ainda, o grande percalço era que se o artista não tivesse o selo partidário (se não fosse o artista

considerado engajado pelo Partido), seu nome sequer entrava na lista de possibilidade de

produção pela gravadora estatal – Melodiya – e sequer poderia ser realizado por via franca. Em

segundo lugar, mesmo na realização clandestina, havia uma peneira baseada num juízo de gosto

e no faro do produtor ‘alternativo’ sobre se tal música ou artista tinham possibilidades de fazer

sucesso. Como dito, apesar de não haver dinheiro vultoso em jogo como nas operações do

mercado fonográfico Ocidental, na realidade soviética, determinadas tendências musicais, se

permitidas, tinham promissora possibilidade de captar recursos junto ao aparelho estatal, e

quando não, conseguiam por meio da obscuridade, alguma vantagem significativa199. E daí a

persistência no método, onde se um músico ou um estilo de música, em seu conteúdo, não fosse

considerado adequado ou seu nome não grassasse entre a vanguarda artística, a via ilegal

pudesse ser tão interessante: afinal, uma vez que rechaçado no meio oficial, senão por meio

clandestino, esta música/autor, talvez jamais chegasse a uma realização.

197CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 197 198O jornalista russo Vladimir MAROCHKIN (2011a) ressalta esse entendimento: Nos anos 80 floresceria a

cultura da gravação de fitas domésticas. Músicos de rock e mesmo alguns músicos de outros ritmos estavam aptos

a gravar no estúdio ou mesmo em casa os chamados álbuns de cozinha [v kukhne albomy], por períodos iguais ao

do disco (35-40 minutos), e então gravavam isso replicado em uma fita-cassete. O grupo por si próprio usualmente

produzia de 20 a 30 cópias, às vezes até centenas do álbum original em caixas com capas, produzidas a partir do

trabalho de alguns de nossos melhores artistas e fotógrafos. No futuro, outros fãs de rock simplesmente passariam

essas cópias de um para outro. Fonte: MAROCHKIN, 2011a. 199Em abordagem futura, referente a essa afirmação, a grande questão de uma sociedade de economia planificada,

não reside no retorno financeiro, mas principalmente, no capital simbólico proveniente da reputação, a qual garante

trocas e relações importantes dentro dos grupos desejados,

122

Outro fator a ser investigado é o da circulação geográfica, do circuito de produção,

consumo e fiscalização desses materiais. A migração do estilo (rock) de Moscou para a cidade

de Leningrado, ao longo da década de 1960, por exemplo, se deveria entre outros fatores, não

apenas às condições similares de caractere urbano, mas também ao seu âmago local –

Leningrado seria a renomeação soviética de São Petersburgo – como a histórica capital da

cultura, cidade de presença e trânsito de muitos artistas na Rússia, e também ao fato de ficar

mais distante de epicentro da vigilância oficial, sediada em Moscou. Acerca dessa afirmação, o

depoimento de um colega próximo do produtor citado por Cushman (1995), Andrei, ajuda a

esclarecer um pouco mais sobre algumas características das estratégias desenvolvidas ao longo

do tempo nesse empreendimento clandestino de cultura:

Formalmente, ele trabalhava em uma escola para crianças, ensinando-as como utilizar

aparelhos de solda em eletrônicos e como consertar e montar esses equipamentos,

desde os esquemas de circuitos. Ele estava conectado com a cena do rock e sempre se

interessou por isto, e então lhe ocorreu de montar e desmontar não apenas aparelhos

de rádio, mas também aparelhos de gravação. De fato, não era uma atividade

criminosa – uma pessoa qualquer poderia montar um aparelho de toca-fitas em casa e

usá-lo como se o tivesse comprado numa loja. E uma vez que ele possuía amigos na

Melodiya [estúdio estatal], através deles ele comprava saldos de equipamentos

obsoletos, recondicionava-os, e os instalava. Por esse meio tempo, depois de curto

período ele já possuía um estúdio adequadamente decente, o qual podia renovar

regularmente. Assim era, quando a Melodiya estava adquirindo materiais novos, as coisas velhas eram, praticamente, automaticamente compradas pela Casa dos

Pioneiros. E desse jeito, Andrei também colaborava com a Melodiya em alguns

projetos, desde que ele tivesse algum negócio em mente, certas permissões, e

participasse de alguns negócios... E penso que isso fosse do conhecimento das

autoridades, mas por alguma razão era mais vantajoso manter essa fonte aberta, do

que perder o contato com outras fontes, fechando-a. Porque estava claro a alguns que

se o rock se dispersasse, ficaria muito difícil controlá-lo. [Tradução do inglês e grifo

nossos]200

Naquela localização (específica cidade, Leningrado; específica função, professor de

eletrônica), a possibilidade de proporcionar fatores tais como: a distância ideal entre as

estruturas estatais e o ato clandestino, o fato de se possuir um emprego estável, com

proximidade ou relacionamento afim das autoridades responsáveis e ainda se poder realizar

todas as atividades dentro do limite da circunstância da lei (pois conforme a legislação soviética,

o uso não autorizado de equipamento estatal para finalidade particular era considerado crime,

punível com detenção; CUSHMAN, 1995; pp. 22-33), considerando que tudo era adquirido

legalmente na rede de descarte das instituições da URSS, permitia a que indivíduos, mesmo

antes do produtor Andrei [Tropillo], conseguissem dispor de uma estratégia de produção viável

e, de certo modo, uma vida tolerada aos olhos dos oficiais. Não obstante, a ideia do aparato,

muito ardilosamente, em manter as atividades de certos personagens demarcados, com tolerante

200CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 198

123

permissão, constituía como que um meio de contato a alcançar os demais protagonistas dessa

prática, músicos e consumidores de rock, permitindo-se traçar uma rede de rastreamento – o

que tornava a situação toda bastante conveniente para os órgãos fiscalizadores locais.

Entretanto, cabe salientar que nem sempre seria essa a realidade verificada, e na mesma

década onde tão prolificamente surgiriam metodologias clandestinas de produção e circulação

musical, com sublinhada leniência e patrocínio das autoridades, haveriam incidentes de

perseguição e apreensão, sistemática, de materiais fonográficos alternativos (clandestinos) –

algo que, ao comentar-se dos druzhnikki e toda a atmosfera de contradições entre

liberdade/restrição da Era Kruschev, será melhor abordado.

Em derradeiro, e como complemento a esse elenco dos meios de aquisição, formais ou

clandestinos, há que se ressaltar que dentro da URSS, mesmo em presença de uma estrutura

econômica planejada e planificada, como outrora aludido, contava-se com a existência de uma

rede substancial de gêneros contrabandeados, circulados através do mercado negro. Esses

gêneros e seus atravessadores, conforme Martens (1990) seriam de conhecimento das

autoridades, sendo por vezes, comerciados com a cumplicidade dos mesmos (destaca-se desse

comércio, principalmente ao exterior, desvios de remessas de caviar beluga e lotes de vodca,

além de diamantes, comercializados com total conhecimento do alto-escalão partidário). Com

isso, a entrada de discos de vinil ou outras formas de material fonográfico importado, para além

da raridade do mercado franco local, poderia ser encontrada, eventualmente, através dos meios

ilícitos – e com altos preços. No relato de outro aficionado do gênero (um baixista e médico,

apelidado Vitya), numa menção ao mercado negro praticado dentro da URSS, mais um indício

dessa alegada leniência das autoridades quanto ao assunto:

Bem, era o final dos anos 60, e isso era, de fato, um ato criminoso. Mas eu nunca

havia me dado conta de tais proibições!![Ênfase dada pelo entrevistado] Então eu comprei essa gravação, e era de música proibida. Não havia muito disponível por aí.

Havia pouco desse tipo de (produto) música, simplesmente, porque era difícil de se

comprar, pois não era produzido e tampouco distribuído. Era apenas uma questão de

falta. Eu nunca senti nenhum apelo político claro. Simplesmente era escasso. Comecei

a sentir que se tratava de algo mais político, quando fui estudar no instituto superior.

Isso foi em 1974. Ainda assim, penso que isso fosse mais profundamente sentido junto

àquele meu círculo de amizades. [Traduzido do inglês]201

Não é seguro afirmar se tal aparente leniência seria fruto, meramente, de displicências

e corrupções estatais somente, visto que haviam outras coisas mais importantes a competirem

por atenção e recursos na administração local (como se procurará evidenciar no capítulo Lado

201CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 97

124

B: O reverso da medalha). Há que se considerar a possibilidade também, de que essa

inobservância se devesse a uma premeditação de conveniência (estratégia de vigilância indireta)

ou mesmo à ineficiência do aparato fiscalizador diante de um fenômeno pulverizado e setorial.

Entretanto, é flagrante a distinção entre esse cenário e seu controle brando, em relação à cultura,

quando em comparação ao vivenciado em Stálin. Ainda existiriam as agências de censura

(como o órgão central Glavlit, ou em específico à música, barreiras impostas pelo

credenciamento à União dos Compositores Soviéticos [RAPM] e ao selo estatal [Melodiya], a

sujeitar-se à uma submissão a aprovação de conteúdos literários e mesmo, letras de canções),

e mesmo o AgitProp (cuja produção de propaganda, agora, focava densamente na campanha

espacial202, com o programa Vostok, a Cosmonáutica e as sondas lunares da série Luna;

GEROVITCH, 2007), mas como demonstrado pelos indícios, a atividade rockeira estaria de

modo pendular na mira das autoridades – ora refreada, ora permitida, mas muito mais

constantemente permeada de uma mediação pelos komsomolets (fiscais da juventude) e dos

gerenciadores estatais (como diretores artísticos, que atuariam, inclusive, na década posterior;

MAROCHKIN, 2011a), do que nas incumbências da camada hierárquica mais robusta da rede

institucional oficial.

Considerado isso, e com algum grau de esclarecimento, compreendido o método pelo

qual se tenha dado o contato com essa música estrangeira e os meios de sua perpetuação, fica

mais palpável como se tenha formado a partir de ‘gosto’ do ritmo do rock Ocidental, um público

em torno de sua apreciação. Contudo, levando-se em conta que gosto não figure apenas na

dimensão dos sujeitos (subjetiva), a parte objetiva em torno desse fenômeno cabe ser mais

detalhada. Rumo ao desvendamento de como o rock tenha se correspondido, tão

magnificamente, com a cultura local – a ponto de vir a integrá-la.

2.1.3 Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo (... mas não sem Resistência)

Podemos supor que o rock russo começou com essa música e ainda está travando essa batalha e não

entende que ainda está lutando consigo mesmo – como Mike Naumenko203 certa vez cantou.

202Episódio representativo desse direcionamento enfatizado à promoção da Era Espacial Soviética àquele período,

o episódio em que os Scythians, seriam escolhidos para as apresentações em honra aos cosmonautas soviéticos,

durante os concertos no Palácio dos Esportes Luzhniki, no final da década de 1960. Fonte: SALNIKOV, 2005. 203Mikhail Vaylievicz Naumenko; Músico underground do rock russo soviético, líder e fundador do grupo de rock

Zoopark (da cidade de Leningrado), fundamental integrante do movimento de eclosão do estilo na década de 1980,

considerado um dos ícones de criação de iniciativas do cenário rock Leningrado-Moscou, muito querido dentre o

movimento na URSS. De uma carreira musical começada ainda em 1975, para adiante da atuação solo

(majoritariamente nas composições), faria parcerias com Viktor Tsoi (Kino) e Bóris Grebenschchikov (Akvarium)

em sua trajetória ao longo da década de 1980. Seu estilo seria considerado pelos críticos algo comparável ao de

Bob Dylan – cujas composições, algumas, seriam ‘adaptadas’ pelo artista soviético a partir da obra do

estadunidense para a realidade local soviética (como por exemplo, Zolotoy Lvi [Leões Dourados], uma versão da

125

Artemiy Troitsky, ‘Vou Apresentá-lo ao Mundo do Pop’

Para se entender como o rock soviético calhou em ser recepcionado na cultura local, a

mera oportunidade do acaso, como aludido outrora, não seria suficiente. Existe um precedente

de identificação, um senso de afinidade que leva a que determinados indivíduos se deixem

cativar por uma experiência de consumo/contacto com determinado tipo de arte. Essa afinidade,

segundo o entendimento de Pierre Bourdieu (1982), pode ser definida, quando de sua

apreciação despretensiosa, sem senso estético mais apurado envolvido, como uma dimensão do

aprazível, mexendo com caracteres da personalidade da pessoa, seu âmago e as características

daquilo que componha sua identidade. Um juízo estético de gosto, é desprovido de

imparcialidade, indo pelo contrário, muito próximo à total desconsideração da experiência

estética por sua própria natureza (‘neutralidade’) e sim, utilizando-se dela como veículo a uma

locupletação dos sentidos, oferecida por essa oportunidade de identificação entre a afinidade, a

intensidade e a experimentação.

Parte da definição de Bourdieu coloca-se a serviço da explicação de como o rock se

tenha feito incorporar ao repertório local, considerando que, minimamente, por serem dotados

de algumas características contribuintes (fato de serem jovens, em geral seus apreciadores;

desfrutadores de uma nova aurora cultural vivenciada àquele momento, nos anos 1960 da URSS

e por estarem consumindo agora, nova modalidade de aquisição doméstica de um produto

cultural também novo [Ocidental, estrangeiro]), o gosto se tenha manifestado em alguns desses

jovens, em relação à experiência musical que adentrava ao seu cenário de vida. Como

acontecera com os stilyagi, movimento em torno da apreciação do jazz na União Soviética à

década de 1940, oportunizando do contato de jovens soviéticos com esse ritmo Ocidental

(trazido outrora, por compositores clássicos locais a serviço da estética Realista Concretista, os

quais desfrutariam de um breve período de experimentalismo musical entre os Grandes

Expurgos e o Terror Zhdanoviano; KREBS, 1970), novamente, na URSS, jovens tinham a

oportunidade de esboçar um juízo de gosto por sobre um produto diferenciado, ingressado no

cenário cultural local. Por enquanto, a discussão permanece em torno desse gosto, apresentado

canção Idiot Wind, de Dylan). Assim como Tsoi, sua partida precoce, em 1991 lhe transformaria em um mito da

música local, tornando-o objeto de documentários sobre a música e vértice muito importante para a compreensão

da cena artístico-musical ao período (como se pode observar na cinebiografia Leto [Verão], produzida na Rússia

em 2018, que reconstitui dessa parceria/rivalidade entre Naumenko e Tsoi, situada numa Leningrado do princípio

da década de 1980, cercada de todas as dificuldades e conflitos da realidade musical àquele momento). Fonte:

MAROCHKIN, 2011a.

126

na comunidade local, e as etapas que o levaram de uma experiência de apreciação a um a um

protagonismo por intérpretes locais.

Tomando-se isso por consideração, cabe se entender de dois conceitos importantes sobre

a questão cultural, e que colaboram a entender essas etapas em alusão: o público de gosto e a

cultura de gosto. Segundo GANS (apud CUSHMAN, 1995; p. 36), o público de gosto é a

porção subjetiva de uma cultura de gosto, que consiste na parte consumidora e usuária de

determinado produto dessa cultura em particular. Por sua vez, cultura de gosto, constitui a

porção objetiva dessa relação, cujos produtos apenas remontam a um sistema de composição e

troca de valores e formas culturais, essas que expressam esses valores, por meio de significados

e sua produção e circulação, perfazendo assim um sistema cultural desses valores, numa

composição de compartilhamento (de signos e símbolos dessa cultura, em forma de produtos),

refletidos em uma manifestação específica a qual se comunica através de meios pessoais,

interpessoais e de massa.

Por esse modo, primeiro o rock seria apreciado como uma experiência contemplativa na

URSS (‘ouvintes de rock’ surgidos durante o Degelo), em dimensão consumível (de gosto) e

somente a partir desse público consumidor – público de gosto do rock – surge a pretensão de

alguns de seus integrantes virem a figurar como protagonistas dessa prática (‘músicos de rock’

surgidos, com maior respaldo, a partir de Brejnev): transformando o outrora gosto apreciado –

público de gosto; ou fase passiva da apreciação do estilo – em gosto (re)produzido –

protagonismo ativo; cultura de gosto do rock. Sem um público do gosto, que assimila um

fenômeno primeiramente, não há que se falar em cultura de gosto – pois este conceito, bem

como a ordem de suas etapas, aplica-se a fenômenos oriundos de influência (como o rock,

Ocidental, que rumava à URSS) e não a manifestações culturais espontâneas locais.

Por este sentido, a exposição a uma forma de cultura antecede a possibilidade de

formação do gosto, assim como o gosto antecede a formação do público de gosto, e esse

antecipa possibilidade de uma cultura de gosto respectiva. Nesse ínterim, parece um passo

natural o desenvolvimento de uma identidade local associada a essa cultura de gosto, a ser

desenvolvida em consequência ao protagonismo desencadeado pela parte de produção e

circulação dos signos e significados dessa determinada cultura, a partir de atores locais, nesse

cenário local. A formação de uma identidade local, como mencionado do perpetrado pelas

bandas de rock soviéticas nos argumentos anteriores, não se resume à reprodução de caracteres

estrangeiros em território local. Ou mesmo, a sua realização em forma de linguagem local.

127

Embora contemple tudo isso, a formação de uma identidade local do rock soviético, passa pela

consideração das características locais: para ser mais preciso, pelo enfrentamento de certas

características ao seu processo de assimilação.

Recordando a Bourdieu (1982), a cultura é também – e, sobretudo – um campo em

disputa, e um elemento cultural estrangeiro, não vem ocupar um vazio devoluto de caracteres

culturais, mas sim, se encontra ao chocar-se com os valores presentes, onde mesmo presente o

gosto, relativo à existência de uma afinidade inicial superficial, apresentam-se características

circundantes mais profundas que se desafinizam com esse elemento exótico – e também, e

principalmente, a essas, se deve considerar durante o processo de assimilação.

Para sua possibilidade, a realidade do rock na URSS teria de considerar a priori as

características inerentes do ritmo em questão: o rock, por sua trajetória, um elemento cultural

urbano, cuja circulabilidade dependeria de um uma estrutura de sedimentação prévia dotada de

algum cosmopolitismo, constituinte de um elemento desafiador em cenários sociais mais

fechados ou propensos a uma postura conservadora dos caracteres culturais tradicionais.

Também, por suas características, um ritmo essencialmente ligado à juventude, com menor grau

de cativação nas camadas mais maduras de um cenário social (mesmo urbano)204. Sobretudo,

um ritmo de proveniência Ocidental, produto cultural e de valores da sociedade que em

antagonismo ideológico ao da URSS, por conta da configuração prévia ligada ao escopo de

estrutural próprio do sistema capitalista. De modo que, para a possibilidade de uma

circunstância de penetração do estilo em terras soviéticas, se tivesse de verificar a existência de

alguns requisitos locais – tais como: oportunidade de cenário urbano, com algum grau de

cosmopolitaneidade, possibilidade de recepção/ aquisição de bens de consumo e produtos

culturais segundo uma suficiente equivalência ao modo de circulação Ocidental e, a partir disso,

a possibilidade de trânsito local de seus próprios signos culturais e produtos culturais oriundos

dessa produção local.

204Como é notório, integrantes das faixas etárias mais maduras da sociedade, tendem a preferir outros ritmos

musicais, com outro apelo. E, em geral, os integrantes dessas faixas etárias que apresentam gosto pelo ritmo, quase

sempre, o fazem porque foram ingressados nesse gosto ou se interessaram por ele, quando ainda eram jovens,

nutrindo desde então essa afinidade pelo estilo musical em questão. Por suas características, o rock raramente é de

penetração social pós-juventude. É sim, pelo contrário, algo do qual, em geral, se pode gostar desde a juventude e

com o qual se vai crescendo e contemplando/praticando até a maturidade. Não se nega que possa haver epifanias

tardias em relação ao rock, mas elas costumam ser raras, em relação ao cenário geral. Corroboram essas

impressões, as narrativas encontradas em FERRI (2001); FRIEDLANDER (2002); CUSHMAN (1995);

MAROCHKIN (2011a).

128

Essa afirmação, em cada uma de suas etapas, fica mais clara durante a exposição do

fenômeno, na opinião de integrantes do próprio movimento. No tocante à localidade urbana e

cosmopolita, conforme se pode depreender do relato do músico russo Dimitry Matsenov,

baixista, integrante do grupo Notchnoi Prospekt (uma das expoentes bandas do cenário New

Wave do rock soviético nos anos 1980), historicamente, o rock na URSS se viu ligado ao

ambiente de quatro principais cidades russas: Moscou, Leningrado (atual São Petersburgo),

Novosibirsk e Sverdlovsk (atual Yekaterinburg) – as quatro grandes, segundo sua observação.

Como salienta, Leningrado seria o lar de um rock soviético mais experimental, enquanto que,

Novosibirsk e Sverdlovsk, apadrinhariam a verve do rock estilo bardo205 – bard rock –

considerado como a vertente mais pura do rock nacional (soviético russo)206. Embora não seja

a pretensão do trabalho cobrir as quatro grandes (por opção de exequibilidade, mostrando foco

em duas, Moscou e Leningrado), da fala do músico, se pode retirar essa afirmação presente, de

como o rock soviético tenha sempre estado ligado ao cenário das cidades – não raramente, das

capitais. Dos relatos do jornalista russo Vladimir Marochkin, menciona-se das cidades-capitais

como Riga na Letônia, Moscou (como precursora local russa), Yerevan na Armênia e

finalmente, Leningrado – todas essas, centros administrativos e/ou culturais em suas

circunscrições territoriais (cidades de referência).

Em Cushman (1995; p. 76), mais relatos nesse sentido: por exemplo, ao entrevistar o

músico Yuri Schevchuk207 (frontman e instrumentista da banda russa DDT; em cirílico, ДДТ)

há uma comparação acerca do diferencial desse ambiente urbano para o das demais localidades

da União Soviética. O comentário seria referente à percepção de uma certa liberdade – de

expressão, atitude – presente em Leningrado, que devido à sua experiência pregressa, tendo

nascido na distante região de Kolyma (Sibéria) e residido em Ufa, pólo ferrífero soviético –

fariam-no chegar a essa constatação. Cabe salientar, que não apenas o caractere populacional

conte ao considerar essa colocação, pois, embora a população das províncias siberianas seja,

205Um exemplar marcante dessa verve musical russa, do estilo bardo, será trazido ao longo da narrativa, quando

chegar-se à discussão músicos que serviram de inspiração ao fenômeno do rock local. 206MATSENOV, Dimitry. Moscow – 1980´s: A self-interview on russian new wave culture and related

phenomena. Unearthing the Music: Sound and Creative Experimentation in Non-Democratic Europe, 2017.

Disponível em: https://unearthingthemusic.eu/posts/moscow-1980s-a-self-interview-on- russian-new-wave-

culture-and-related-phenomena/. Acesso em: 26/06/2020. 207O músico é aqui identificado cruzando-se informações de biografia do músico, disponíveis no relato oferecido

à Cushman (1995) e confirmadas em fontes recolhidas do ficheiro da banda DDT no site russo RussMuss e na

entrada Personalidade: Yuri Chevchuk, no site russo Gorod Tomsk. Fonte: Gorod.Tomsk.Ru: городскфя

социалная серт (13 de fevereiro de 2008) [Em russo] [Trad. Livre: Cidade. Tomsk. Ru: Certificado Social da

Cidade]; Tomsk, 2008; Ficheiro: Шевчук [Personalidade: Yuri Chevchuk]; Disponível em:

http://gorod.tomsk.ru/index-1202839649.php; Acesso em: 26/06/2020

129

em geral, mais modesta que a de uma capital como Leningrado (desde os anos 1970, com mais

de três milhões de habitantes), somente o fator não explicaria o caso de Ufa, um pólo de

prospecção siderúrgica com cerca de um milhão de habitantes. Levando-se isso em conta, mais

do que apenas relevar-se a questão do tamanho da circunscrição urbana, há que se ponderar em

torno das condições que a tornariam, mais ou menos, restritiva à possibilidade cultural do rock

em terras soviéticas. Nesse sentido, após o comentário de Yuri, emenda-se o depoimento de

outro músico (não identificado no trecho citado), o qual comentaria de sua proveniência à

cidade Magadan (pequeno distrito da região da Sibéria), e de como haveria, em relação aos

centros culturais/administrativos urbanos, uma sensação marcante de um horror vivido na

periferia, territorial e culturalmente. Em sequência o autor observa que:

A pequenez das cidades e vilas da periferia, especialmente essas às quais faltaria uma

elite cultural à qual se pudesse opor um movimento de contracultura local, foram

verdadeiramente cruciais à vigilância e repressão cultural. Como resultado, músicos

muitas vezes migraram para Petersburgo (Leningrado) onde puderam encontrar, não

apenas melhores condições estruturais para possibilitar sua expressão cultural, mas

também, uma cidade que lhes proveria de uma fonte de profunda inspiração criativa.

Incidentalmente, enquanto São Petersburgo [Leningrado] tivesse a reputação de ser

uma cidade conservadora, devido ao seu tamanho e população (mais de cinco milhões

de habitantes), serviu em certo ponto a impedir os esforços dos dirigentes da cultura

estatal para barrar a musicalidade independente do rock. Mais do que isso, sua

proximidade à Europa, tanto cultural quanto geograficamente, a fez tornar-se uma valiosa fonte de informação cultural Ocidental, a qual seria o componente vital à

cultura russa do rock. [Traduzido do inglês]208

Em referência ao trecho mencionado, se percebe mais nitidamente os outros caracteres

aludidos junto à questão da localidade favorável, para possibilidade do rock na URSS. Como

mencionado, não bastaria apenas haver uma cidade grande, mas se ter nela a possibilidade de

capital cultural significativo, com fluxo de diferentes personagens, provenientes de diferentes

localidades (cosmopolitaneidade), também um local favorecido pelo fluxo de

mercadoria/produto cultural estrangeiro e capaz de prover aos músicos, uma rede de

correspondência de sua atividade. Conforme mencionado no subcapítulo anterior, numa cidade

tal qual Leningrado, seria possível a atividade, ainda que clandestina, de confecção

(reprodução) e disseminação dos magnitzdat e roentgenitzdat (pela rede de distribuição entre

aficionados, das fitas e discos produzidos de maneira ilegal), bem como sua produção, mais

adiante (por regravação de originais ocidentais ou pela gravação de performances locais em

estúdio [magnitofonnaia albomy]).

208CUSHMAN, 1995. Op. Cit p. 76

130

Outro fator que cabe ser considerado é que, por se tratar de uma cidade robusta em

tamanho e diversidade de produções culturais, embora deva-se considerar a presença mais

evidente do aparato (escritórios, burocracia e oficialidade), por um lado, sua ampla magnitude

e população colaborariam, por outro, a diluir tal ação clandestina em meio a um elenco maior

de atividades culturais e artísticas variadas, facilitando sua escamoteação. E nesse sentido,

também seria a cidade um polo de produção fonográfica de cultura estatal, possuindo-se, farto

material descartado ou possível de utilização paralela (proveniente do estúdio oficial

Melodiya), para poder ser empregado nessa produção/ circulação clandestina. Ou seja, a própria

presença da cultura estatal, constituiria não apenas a presença ostensiva do aparato

(fiscalização, gerenciamento e censura), mas também a oportunidade de tê-lo a proporcionar

um meio a ser utilizado como ferramenta e canal à essa atividade cultural clandestina (como

visto, pelo uso alternativo, o desvio de seus recursos).

E dentro dessa realidade, outro caractere teria de ser enfrentado: para além da cultura

‘ideologicamente direcionada’, presente por conta da ubiquidade do aparelho estatal socialista,

haveria a presença de uma cultura tradicional muito manifesta, a qual, arraigada ao cerne da

personalidade local (russa e soviética), traria à sedimentação do rock também um motivo de

conflito.

Para se citar acerca disso, a russificação (russificatsia; conforme CUSHMAN, 1995 e

MAROCHKIN, 2011a) do rock não aconteceria apenas da tentativa de encaixar palavras locais

na sonoridade do ritmo, também o seria, para melhor adequar-se à permissividade pendular da

fiscalização local, cujas apresentações eram disponibilizadas pelos gerenciadores e fiscalizadas

pelo Komsomol. O evitamento, já observado, do uso do termo rock, substituído por big-

beat/bigbit, seria complementado com o cuidado prévio relativo ao roteiro das performances a

serem reproduzidas nas apresentações, incluindo-se nisso, submeter-se à exibição prévia de

cada canção e indumentária de palco, acompanhada de um selecionar do conteúdo das canções

e a tradução de seus títulos ao idioma russo – tudo para que melhor se pudesse garantir a

aceitação dos conteúdos a uma apreciação oficial. Algo que, se inicialmente de aparência

ingênua, revelaria, de fato, uma disputa implícita nesse cenário cultural: a da identidade

soviética, cujos músicos deveriam cuidar em preservar durante as apresentações, e ainda a

questão da reputação, em nome da qual os funcionários designados para gerenciar tais

apresentações, deveriam tomar cuidado ao lidar com um elemento potencialmente subversivo

– conforme observa-se no relato de Yuri Valov, da banda Scythians:

131

E lá estávamos nós tocando: (Rolling) "Stones and The Beatles, Animals e The Kinks,

e os nomes de suas músicas estavam todos escritos em russo:" Balada de um herói ","

Memórias dos marinheiros mortos. [...]´´ Era tudo regado209 [disso], e de fato

anestesiava210 esses chefes da organização [Komsomol; autoridades], mas eles não

percebiam. [Traduzido do inglês]211

Mais adiante, retornar-se-á a esse meandro de construção e destituição de

identidades/reputações dentro do processo de russificação – revelado aí, no exemplo das

traduções. De momento, há que se focar no elemento amplo de disputa que nela contido, em

que tal russificação, não seria uma demanda direcionada exclusivamente à observância das

regras em relação ao aparato, uma vez que socialmente, o julgamento popular das figuras

realizadoras do rock, seria mais frequentemente agressivo que o efetuado nesses canais oficiais.

Nesse sentido, o relato de outro músico, Yuri Morozov, ajuda a compor a fisionomia do fazer

rock quanto à aceitação local no contexto da URSS:

Eu devo mencionar que eu vivia primeiramente, não em Leningrado, mas no Cáucaso

[região situada entre a Europa Oriental e Ásia Ocidental, entre o Mar Negro e Mar

Cáspio], na cidade de Ordzhinokidze a qual agora é chamada de Vladikavkaz. Ela

tornou ao seu nome anterior. No Cáucaso as relações são nacionalistas. Se você sai

pela rua e topa com um bando de Georgianos ou Ossetianos [indivíduos provenientes, respectivamente, de duas outras regiões do Cáucaso, na Geórgia e na Ossétia do Sul],

eles lhe esmurram feio, por qualquer razão. E é bem assim. Em qualquer situação.

Mesmo se você só estiver por aí com seu violão, eles pulam em cima de você e partem

ele aos pedaços. Isso é algo meio sombrio. [...] Pra encurtar a história, tudo aconteceu

porque eu desisti desse joguinho e comecei a me sentar calmamente pra tocar meu

violão, enquanto que esses caras da cidade, ali de Vladikavkaz, não tocavam nada e

nem compunham, então eu comecei a tocar num grupo amador [o autor refere-se ao

seu primeiro grupo, Bozyiaki], ali no instituto (superior), no qual eu trabalhava como

pedreiro. E bem, nós iríamos para o palco, tocaríamos Beatles, os Rolling Stones, e

tudo estaria bem. E aí nós anunciaríamos orgulhosamente: - Agora, um pouco de

nossas próprias composições!! E de repente, isso não funcionaria. Primeiro, porque

nossas composições eram em Russo – e canções em russo não se conectam com a plateia que só quer vê-las, ali, em inglês. E mesmo se em russo, teríamos de cantar,

então, algo do tipo do Singing Guitars (Poyuschichyie Guitary) [grupo de VIA,

vocalnyie instrumentalnyie amsambly; modalidade de conjuntos vocais instrumentais

conformistas, de que se falará mais adiante]. Então, nós tínhamos de escolher desse

209O termo empregado no registro original de Marochkin (2011) é zalitovano; onde zalit em russo significa regar;

inundar, portanto, consiste numa forma coloquial de dizer que o relatório das músicas entregues aos oficiais seria

zalitovano – inundado – regado, permeado de expressões que soassem politicamente adequadas (traduções conformistas de canções estrangeiras, como estratégia de fazer passar os materiais submetidos). 210A terminologia original no trecho citado é duril´: do russo, entorpecer; narcotizar; anestesiar. É empregada no

sentido de dizer que as traduções utilizadas pelos rockeiros, escamoteavam o conteúdo original com uso de termos

adequados, tornando-as em conteúdo adequado ao preceito requerido pelo Komsomol, pois assim refreariam a

possibilidade intransigente de censura (embevecendo os oficiais, que apaziguados com as letras conformadas pró-

estabelecimento, deixariam os músicos tocarem o material submetido). O desconhecimento da língua inglesa por

(boa) parte dos oficiais colaboraria com o processo, pois embora o conteúdo dos títulos fosse transcrito, as canções

ainda soavam no idioma ‘estrangeiro e desconhecido’ com sua integridade de composição anglófona – que em

muito inofensiva, considerando, como já observado, que boa parte do público também não partilhasse desse

conhecimento linguístico. 211MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.

132

repertório dos Singing Guitars. Se nós tocássemos algo diferente, ninguém daria

ouvidos. Minhas mágoas são disso daí – eu ficava lutando um, dois, três anos,

compondo, cantando – e isso não interessava a ninguém. Em geral. Eles não

precisavam das nossas composições. [Traduzido do inglês]212

A primeira parte do relato do músico evidencia um elemento muito agreste nas tensões

da União Soviética: a pluralidade de nações e etnias, as quais, muito previamente existentes à

circunstância do rock, o tornavam ainda mais alvejado por seus anfitriões locais. A abrupta

aglutinação de nações sob o regime comunista soviético, não faria impacto apenas às tensões

decorrentes da luta de classes, ela também se mostraria tenaz contra o cultivo do conceito de

outra possibilidade diferencial, a nacionalidade, vista como elemento sectarizador social e um

impeditivo à pretensão de unidade socialista e soviética. Na Constituição Soviética,

inicialmente, mesmo sob Stálin, figuraria o crime de nacionalismo, como cometimento grave e

apenado com detenção. Tudo porque, reunindo-se múltiplas nações, de diferentes línguas,

diferentes etnias e povos, sob um mesmo Estado e uma mesma ideologia, naturalmente que

indisposições internas teriam de ser controladas – ainda que de maneira institucional e, portanto,

artificialmente. Entretanto, isso mudaria com o advento da Grande Guerra Patriótica, onde em

nome do esforço de guerra, a exaltação nacionalista, principalmente russa, emergiria forte,

como forma de motivar os soldados no combate nas frentes de batalha contra os nazistas

(HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 77).

Este revés nos princípios unificadores do Socialismo, aparentemente, necessário ao

momento em questão, deixaria espaço irreversível para o reavivamento das tensões locais,

sobretudo nos núcleos urbanos pequenos. Assim, as já presentes rixas entre indivíduos, as

afirmações linguísticas locais – e também seu oposto, o desdém por esse elemento linguístico

(russo) quando associado ao elemento cultural estrangeiro (rock) – se intensificavam e

ganhavam pretexto com o advento do ritmo exterior, que adentrava como um visitante estranho

e estereotipicamente Ocidental (portanto, visto por uns como inimigo, alvo da apreciação

combativa em defesa do tradicional e simultaneamente, por outros, em geral os jovens, tido

como instigante, por seu senso de inédito e ligeiramente proibido), no cenário das pequenas

cidades locais. Por evidente considerar que também nas grandes cidades muitas destas tensões

sucedessem, entretanto, a pulverização entre o número de indivíduos, diversamente

constituídos, colaborava a diminuí-la – havendo, mesmo aí, como mais adiante observado,

episódios de rechaço característicos ao rock.

212CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 21

133

Em sequência, o músico Yuri Morozov evidencia, a partir de uma experiência particular,

outro choque vivenciado pela sociedade soviética, onde mesmo no cenário urbano, por conta

da majoritária conjuntura habitacional agregada (apartamentos comunais), haveria dificuldades

de assimilação dos costumes desse estilo de vida exótico do rock, pelos residentes (famílias)

habituais:

E então aconteceu – o meu pai era de um escritório. Ele era nascido na Criméia, então

havia tido toda sua carreira no Cáucaso, e daí se mudou para Leningrado. Em

Leningrado, os dois primeiros anos meus foram totalmente no underground. E então

eu fui num desses espetáculos da Academia de Artes onde os Myths (Mify) e os

Russians (Rossiiane), estavam tocando. O que me chocou foi ver que eles tocavam

mais de metade do repertório de material próprio e as pessoas ouviam e aplaudiam.

Tudo certo. Bem, eu pensei, é isso. Muito rapidamente, eu juntei um pequeno grupo,

era apenas provisório. Eu tinha dois ou três companheiros, com os quais eu iria gravar, em casa, é claro. Em casa – bem, os vizinhos ficavam com dor-de-cabeça o dia todo

por conta do trepidar da bateria!! Bem, então, nós adaptamos o horário para tocarmos

quando as pessoas saíssem para trabalhar. Aliás, muitos grupos começaram assim –

por exemplo, a Kino [famoso grupo local, surgido no início da década de 1980]. As

pessoas saíam para trabalhar e nós arrebentávamos, gritando e tocando. Ao anoitecer,

é que o humor criativo aparecia. À tarde, não era muito produtivo ... e daí as pessoas

começavam a gritar e ameaçar – Já chega!! Ou nós vamos chamar a polícia! – [e

dizíamos] Só mais um minuto ... – Não, vamos chamar a polícia agora!! [Tradução

do inglês e grifos nossos]213

O relato de Yuri Morozov é didático para vislumbrar o impacto social causado pelo

fenômeno de recepção do rock no seu princípio na URSS. A citação às bandas Myths e

Rossiiane (Russians), empresta sincronia com os primórdios do rock da URSS, à década de

1960 (segundo a crônica de MAROCHKIN, 2011a). Nesse relato, se evidencia o rechaço ao

ritmo também por conta de situações materiais, de espaço físico, muito presentes durante o

adensamento demográfico das cidades soviéticas e que se tornavam alvos de anedotas e críticas

populares (que serão mencionadas em capítulo específico à frente). Também a questão das

primeiras impressões do músico sobre o rechaço cultural implícito com a questão linguística

local em arranjos exóticos, demonstrariam que o limite para a tradução das letras ou a

composição em vozes locais, para além do encaixe do cirílico ao rock, ficava também por conta

da receptividade do público, afeito a esperar que o ritmo estrangeiro, viesse num formato

(linguístico) estrangeiro – algo que ligeiramente relativizado, por um público mais sofisticado

à experimentação de propostas culturais, como no espaço receptivo da Academia de Artes

leningradense.

Não obstante, o rechaço, já na cidade de Leningrado, dos vizinhos reclamando do

barulho, leva a pensar num conflito de trajetórias. Num comparado com seus vizinhos de prática

213CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 22

134

musical, provenientes da camada privilegiada da sociedade soviética (os filhos de diplomatas e

oficiais), os quais, mais facilmente, conseguiam onde ensaiar sem grandes preocupações (em

salas designadas, e alojamentos nas universidades) e executavam suas performances em

espaços gerenciados através de sua rede de influências (inclusive tocando para oficiais e atletas,

em apresentações bem-reputadas), músicos como Yuri Morozov, filhos de funcionários mais

modestos nos quadros da administração, teriam de encontrar nos apartamentos coletivos dos

subúrbios, seu local de ensaio. Quanto aos seus incomodados vizinhos de moradia, em geral,

haveria uma discrepância tanto de ocupação, quanto de geração. Os jovens integrantes das

bandas, músicos não profissionais, não dispunham, por vezes, de local adequado para ensaiar,

tendo de recorrer ao espaço domiciliar para isso. Essa situação decorria do fato de não estarem

vinculados a uma instituição, como músicos de carreira, fazendo com que sua veiculação

musical, embora lícita, fosse irregular no quadro social soviético, onde nos apartamentos

comunais, moravam trabalhadores, os quais os utilizavam para sua prevista finalidade:

domicílio, convívio e descanso.

Também se situa aí, o fator do choque geracional onde tais jovens, desocupados de

outras atribuições (exceto às atividades estudantis), vinham a fazer estardalhaço, num espaço

onde o objetivo seria residencial. O conflito com o estabelecimento, não se deveria, conforme

uma análise maldosa ou superficial poderia resumir, a uma mera adequação ao exigente aparato

estatal socialista: a grande questão é que o rock (bem como seus intérpretes e protagonistas)

por sua natureza, constituía a figura de um inconveniente para múltiplos setores daquela

estrutura social planificada.

Não obstante, o rock em sua prática, para além do contemplativo (apreciação), seria um

modo alternativo de vida, numa sociedade que, institucionalmente, via de regra, não estaria

acostumada às exceções. Basicamente, segundo o pensamento local, se a pretensão de alguém

fosse da música, pois que transformasse isso numa carreira e dela fizesse seu ofício – e fosse

ensaiar no local designado para isso. Hobbies como se concebe usualmente, provém de um

estabelecimento ligado a um mundo de trabalho que preconiza no lazer uma prática de

desdobramento da consideração individual da vida, a ser exercida, inclusive no âmbito do lar.

Isso porque, num caso como esse, na tradição Ocidental, pressupõe-se o lar (e o hobby), como

uma potestade advinda da consagração estatal da propriedade individual, privada e, inclusive,

um exercício do direito consagrado da privacidade. Portanto, tais valores e atitudes similares,

numa estrutura de preconização coletiva, podiam causar certo descompasso com a observância

dos conceitos de fruição e função pessoal ou de locais designados a cada prática. Em resumo:

135

se alguém desejasse utilizar seu espaço de moradia para uma finalidade diversa do pretendido,

as autoridades locais prontamente poderiam ser acionadas, pois o limite do interesse individual

seria, justamente, o respaldo prevalecente desta coletividade.

Logicamente, que mesmo na tradição Ocidental, ambientes de condomínio,

estabeleçam regras a serem observadas, decorrentes da multiplicidade de interesses em jogo e

de integrantes de uma mesma porção residencial, entretanto, isso fica sublinhado em uma

sociedade coletiva, onde os conceitos de função e direcionamento têm de atentar a uma

pluralidade implícita de interesses – em lugar de uma consagração implícita de liberdade

individual. O rock, por sua concepção, em uma sociedade capitalista e de tradição liberal, prevê

nos seus caracteres mais diminutos, a perpetuação de práticas que requerem liberalidade –

evidenciando o conflito indivíduo x sociedade214.

Mais ainda, como Yuri Morozov perceberia além no seu relato (CUSHMAN, 1995; p.

26), o grande percalço de uma prática como o rock na União Soviética seria a carga de

individualidade necessária para a realização de sua filosofia de vida. Não apenas na prática ou

nas experiências de produção e disseminação, embora se contasse com o amparo de uma rede

de personagens (sem os quais, esse manifesto de atitude, não se oportunizaria), a noção geral

do âmago rockeiro é a de uma contestação, um rebelar-se, e isso não prevê (propriamente

falando) engajamento, nem à instituição consensual de coletividade usual (koletivinazthyi;

coletividade), nem à identidade regulamentar soviética (sovietsky lichnasty; identidade

soviética) ou a acolhida do ingresso na carreira (zhisnennyi put ́; carreira; caminho de vida) –

distinção importante entre a identidade do rock e o estabelecimento, que o perfaz em sua

trajetória de rebelde no Ocidente e que também presente na URSS, em relação ao preconizado

partidário. O manifesto do rock gravita em torno de um auto manifesto, com uma carga

implícita de introspecção, para apartar-se do establishment, e a transformação do fermentado

nesse apartar-se, em produto de devolução em forma de manifestação provocante e estrondosa,

algo que, numa sociedade coletiva, constitui de uma possibilidade muito restrita e

demasiadamente desafiadora aos preceitos locais.

214Algo que seria, precisamente na gestão de Kruschev, uma temática a ser explorada com seu alinhamento

segundo o Código de Conduta Moral do Construtor do Comunismo, que mais adiante se investigará, evidenciando

uma campanha política de supressão do individualismo.

136

Retomando a observação acerca dessa relutância em integração, há que se considerar,

como aludido anteriormente, manifestações ainda mais diretas e agressivas de

rechaço/hostilidade à assimilação do fenômeno. Nesse sentido:

Em alguns casos, certos grupos da sociedade russa se organizavam em torno de manter

as formas tradicionais de comportamento, corporal e ideologicamente aceitáveis como

estilo, em expressão a um comprometimento com a normalidade (entenda-se, soviética) dos modos de vida locais. Um desses grupos de jovens atenderia pelo nome de liubery

(baseado em suas origens, no subúrbio de Moscou, um distrito de nome Lyubertsy). Os

liubery eram caracterizados por sua defesa dos valores das tradições soviéticas e

expressavam disso, através do conjunto de códigos culturais os quais refletissem temas

da cultura dominante: fisionomia atlética de força e saúde, cabelos curtos, estilo

convencional de vestimenta, uso de simbologia oficial soviética (pingentes, medalhas,

placas), e por aí vai. Esses códigos eram, simbolicamente, opostos a estes utilizados

pelos músicos de Petersburgo como um todo. O método usual dos liubery consistia em

visitar os bairros boêmios, parques e locais de apresentação de concertos da cidade,

procurando por qualquer um que pudesse ser considerado diferente. Uma vez

encontrando tais pessoas, criavam uma perturbação e batiam nesses indivíduos, muitas vezes, gravemente. Os liubery estavam convencidos de sua superioridade moral e se

viam como vigilantes cuja tarefa era restaurar a ordem cultural e a normalidade em suas

cidades. Eles defendiam valores tradicionais soviéticos e russos e as políticas oficiais e

viam os músicos de rock como metáforas da decadência Ocidental e a erosão do status

russo/ soviético e do respeito nesse sistema-mundo. De acordo com um proeminente

jornalista, os liubery eram particularmente hostis contra hippies e

apreciadores/integrantes de bandas de heavy metal (TROITSKY, 1990 a; p. 244).

Enquanto os liubery em sua forma original existiam somente em Moscou, grupos de

jovens que possuíam configuração análoga existiriam em outras cidades soviéticas e

praticariam de forma similar a defesa da cultura soviética, por meio do confronto direto

contra sua contra face dessa modernidade (ibid.) [Traduzido do inglês]215

A descrição do grupo extremista cultural de Moscou – liubery – remete, principalmente,

aos eventos desdobrados ao longo das décadas seguintes do rock na URSS (compreendidos do

final dos anos 1960 até o princípio dos anos 1980). No entanto, desde a década de ingresso do

ritmo na sociedade soviética, tais grupos e manifestações, podiam ser encontrados e vivenciados

pela juventude musical afeita ao estilo Ocidental. Embora tais manifestações diretamente

agressivas, não fossem uma constante, as afiliações com pessoas poderosas do cenário

administrativo, tornariam tais indivíduos hostis, muitas vezes, resguardados de menção oficial

de envolvimento e blindados de qualquer investigação. Nesse aspecto, conforme Marochkin

(2011a):

[...] segundo os próprios músicos, nenhum rockeiro era, de fato, perseguido. Se

ocorreu algum "ataque", então, como regra geral, foi uma iniciativa ideológica

privada, de cidadãos individuais. Por exemplo, um fato triste memorável desse tempo,

foi a descoberta de um esquadrão "Birch, que se dirigia até a porção hippanov

metropolitana (hippies na cidade de Moscou), na chamada " Broadway " moscovita,

ou seja – vindo pelo lado esquerdo da rua, da Gorky's Pushkin Square até o Hotel Moskva – mas ao que tudo indica, no último minuto, o grupo principal desse manifesto

não se organizou. Criar um esquadrão antihippovogo [anti-hippies] de impacto foi

uma iniciativa pessoal de vários jovens comunistas. Curiosamente, nos anos de

215CUSHMAN, 1995. Op. Cit. pp. 182-183

137

estagnação216, muitos participantes “Birches” ocuparam cargos importantes e

responsáveis nos escalões superiores do Partido Comunista, tornando-se secretários

de vários comitês da cidade e do partido regional. [Tradução do inglês e grifos

nossos]217

Esse trecho, fundamental de ser explorado em minúcias, será retomado adiante no

subcapítulo Experiências de Retiro, mas já aqui deixa espaço a uma reflexão. Um parêntese,

delicado e importante, deve ser realizado em torno da forma de orientação (centralizada e

irredutível em torno de uma figura, tendência ou comportamento tidos como adequados) e de

operação (tocaias grupais contra indivíduos solo de grupos considerados inferiores, de forma

hostil e sistematizada) no produto de ação dessas descritas brigadas de jovens pró aparato

soviético. Conquanto haja diferenças gritantes, em orientação ideológica e circunstância

geográfica, a abordagem dos Liubery e dos Birchs218, se assemelha muito a de outros grupos de

atitude e ideologia extremistas encontrados na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, após os

anos 1970. Tais grupos apresentariam modus operandi muito similar em suas iniciativas,

envolvendo discursos de ódio e o uso de confronto direto com agressões e emboscadas a

indivíduos isolados e grupos minoritários. Também apresentariam discursos em favor do

estabelecimento (pró status quo), de caráter intolerante à divergência e à diferença, e com a

afirmação de existência de uma cultura dominante e valores tradicionais da sociedade

estabelecida. Sublinhando: embora por instituições ideológicas completamente discrepantes

entre Oriente e Ocidente, as atitudes tomadas por esses grupos de jovens indivíduos hostis,

contribuem apenas a fortalecer uma imagem de que cada movimento de contracultura por essas

ações combatido, na verdade é legitimamente um holofote instalado dentro de cada respectiva

sociedade, onde do combate hostil apenas se revela que, não apenas deva essa contracultura

216O termo ‘Estagnação’ por vezes é utilizado para referir-se ao período econômico e social situado entre a

deposição de Nikita Kruschev (1964) até a inauguração das linhas políticas da Glasnost (transparência) e

Perestroika (reconstrução) em 1985 – sob a gestão Gorbachev. O período seria vivido na URSS sob os sucessivos

comandos de Leonid Brejnev, secretário-geral entre 1964 e 1982, sucedido pelos governos de Yuri Andropov

(1982-84) e Konstantin Chernenko (1984-85) e levaria em consideração o grave cenário de recessão econômica

vivido pela superpotência soviética, com vulto, o situado entre a primeira metade da década de 1970 até o final da

administração Brejnev. No entanto, cabe ponderar que alguns autores aqui utilizados (como Medvedev, Medvedev,

2006), referem-se à época como ‘estabilidade’, recobrando o sentido de que a situação econômica fosse

‘confortável’, enquanto a social estivesse mais estagnada em relação ao período anterior (Degelo), devido a uma guinada de setores sociais da União Soviética para uma retomada do conservadorismo. A terminologia no léxico

político internacional, como Era da Estagnação (Period Zastoya), seria atribuída em invenção ao secretário-geral

Mikhail Gorbachev – utilizador do termo, de maneira crítica aos governantes antecessores – empregada em análise

negativa do período, durante o relatório do XXVII Congresso do PCUS: ‘Na sociedade, emergiu-se uma

estagnação nas esferas econômica e social’. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; GORBACHEV, 1987 217MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 218Mais a frente, se discutirá em torno do significado dessa designação (diferente terminologia birch, para um

possível mesmo grupo, liubery). Por enquanto, há que se evidenciar uma questão de pronùncia, o bairro moscovita

Lyubertsy, que seria o da proveniência dos Liubery, na pronúncia sincopada do cirílico de torna liubirchy, de onde

birch, pudesse vir a figurar como uma variação do termo original, liubertsy – por meio de corruptela de sua

metonímia (de tomar-se o pessoal pelo local, acrescida da forma no diminutivo – birch).

138

existir, mas tenha a função primordial de denúncia dos excessos cometidos pela cultura

estabelecida. Num paradoxo, onde as ações de hostilidade cometidas pelos pró-

estabelecimento, mais legitimariam a existência do contracultural.

Acima de tudo, o que fica mais evidente, novamente, é o fisiologismo com o aparato

estatal, envolvido no acobertamento das atitudes de hostilidade. Como aludido na fala de

Vladimir Marochkin, muitos integrantes dessa atitude de defesa da estrutura convencional,

seriam importantes cooptados e artífices do sistema local partidário no governo seguinte – sob

a tutela de comandados diretos de Leonid Brejnev. Outro detalhe que fica ressaltado na fala do

jornalista seria esse de um caráter episódico dessas manifestações de hostilidade, mais evidente

em um contraste de postura do aparato em relação ao rock, como salientado no relato seguinte:

E afinal, quem sairia "atropelado" num concerto do grupo de "Falcon", se o pai do

guitarrista do grupo, Yuri Ermakov, integrava a chefia da principal defesa do país?

Em certa ocasião, o grupo "Falcon" iria a uma festa acompanhado pela KGB, mas sua

tarefa não seria a de "perseguir" os músicos, mas, de fato, protegê-los de contatos

indesejados. Muitos dos shows de nossos grupos aqui discutidos, foram realizados em

embaixadas estrangeiras, e a KGB manteve uma vigia atenta para garantir a segurança,

evitando que não se chegasse (atingisse), através de seu filho, a um pai poderoso em

segredo. [Traduzido do inglês]219

Tal atitude, como mencionado anteriormente, não seria incomum. Recordando ao

grande guitarrista do grupo Scythians, Sergei Dyuzhikov, seu pai era integrante do alto-

comando dos oficiais da Força Aérea Soviética (MAROCHKIN, 2011a), e assim como valeria

para Yuri Ermakov, personagem do relato supracitado, nenhum ‘pai da administração da

URSS’, deixaria passar uma questão delicada como a exposição de um filho junto a um

conteúdo tão polêmico, de maneira relapsa. Esse cuidado, não fosse apenas pela questão da

própria segurança filial, também seria, fundamentalmente, para evitar exposições e

constrangimentos possíveis do envolvimento com o ritmo Ocidental. Para melhor entender-se

tal afirmação, importante observar que figurar em uma posição de comando na URSS

(especialmente na conturbada década de 1960), era estar o tempo todo sob forte pressão oriunda

de instabilidades ligadas à política e reputação, e com um tema complicado como gerenciar o

rock, para uma posição privilegiada, esse terreno seria ainda mais inóspito:

Sim, era um negócio ingrato – pois muitos deles ocupavam posições importantes. Por

exemplo, o pai de Valentine Nekrassov, guitarrista da banda Balm, e Krasnaya Dimons nos anos 1960, era reitor do Instituto Bauman. Um dos colegas de Valentine,

começou a escrever uma série de denúncias, talvez por razões ideológicas. Mas uma

219MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.

139

vez que essas denúncias chegaram à sua mesa, o reitor em desgraça, foi expulso do

instituto em questão. [Traduzido do inglês]220

Se aos ‘mais velhos’ (pais) o caminho da reputação seria tortuoso, aos filhos, jovens,

isso também deveria ser considerado quando da tomada de rumo pelo caminho do rock: a

questão da carreira (zhisnennyi put ́). Numa sociedade de economia planificada como a

socialista, as regras de status, não se regulam pelos mesmos caracteres dos da sociedade

capitalista. Como consequência, o dinheiro não seria a principal moeda de troca nesse processo

de afirmação social, permitindo que outra coisa figurasse como elemento de distinção

(BOURDIEU, 1982), quer no teor de identidade (pessoal), quer de reputação (coletiva). No

caso da URSS, seria a formação e essa estaria ligada à carreira. Ter uma boa formação, num

instituto superior, universidade ou instituição diplomática, levava a que o indivíduo alcançasse

uma reputação: kulturnyi (possuidor de cultura; ser culto)221, e por conseguinte, tivesse as

credenciais para figurar em postos de trabalho mais especializados, em posições de diretoria e

comando – tanto políticas, quanto institucionais. A formação, por esse mote, seria o bilhete de

ingresso à carreira oficial ou política e, portanto, algo muito sério segundo a consideração local.

No sentido da universalização do acesso, a diferenciação de oportunidade para poder se

obter a formação, seria mínima. Entretanto, a carreira escolhida – ou abandonada – determinava

a demarcação de uma postura de vida também, convencional ou inconvencional. Isso

determinaria, por exemplo, que um músico, com formação acadêmica, mesmo com as

credenciais necessárias à uma vida confortável e uma posição interessante no cenário social

soviético, pudesse ser encontrado exercendo um emprego modesto, como resultado de uma

destituição de reputação ou mesmo, como consequência de escolha por opções que figurassem

contraventoras – como se observará logo adiante, mesmo num simples libelo de inconformidade

com a estrutura de adequação ao carreirismo institucionalmente alimentado nessa sociedade.

Outro aspecto, é o de que na URSS, não obstante, por seu diferente acesso a

oportunidade de formação em relação ao da sociedade Ocidental, não raro, indivíduos de

diversas ocupações/formações, podiam ter acesso à uma educação sofisticada e parte desse

repertório, contendo a prática da música e alguma afinidade com algum instrumento em

específico – tanto mais, é claro, se tal formação fosse voltada à carreira de músico.

220MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 221CUSHMAN, 1995. Op. Cit p. 49

140

Nessa carreira em específico, haveria uma forma de aproveitamento ligada ao aparato,

que muito ofereceria benefícios: a carreira de músico do exército222, onde embora não se tivesse

a mesma periculosidade dos demais camaradas de caserna, desfrutava-se das patentes e

posições oficiais. Para se ter uma margem dessa opção, deve-se levar em consideração que o

serviço militar na União Soviética era obrigatório aos homens e uma carreira respeitável para

as mulheres. Ainda que a obrigação em se prestar o serviço militar constituísse uma tremenda

angústia a muitos jovens, a carreira militar tinha muitas vantagens ao seu redor. Primeiramente,

por sua diversidade de aproveitamento de formações, onde desde integrantes das áreas de

Engenharias, Diplomacia e Relações Internacionais, até a Música, podiam ter aproveitamento

nessa trajetória de escolha vocacional. Por conseguinte, a aquisição de uma reputação ligada à

instituição integrada, também seria um conveniente de conforto e distinção. E por derradeiro, a

facilidade de acesso a instrumentos e pessoas importantes para articular-se a aquisição de

recursos, gerenciamento e oportunidades de saída para apresentações. Com o preço, é claro, de

submeter-se a uma rigorosa agenda de observações de conduta e trabalho, designadas pelo

aparato militar.

No entanto, a despeito de todas essas possibilidades, como o inusitado, que tão bem

representa a verve rockeira numa sociedade planejada e coletiva, sempre haveria daqueles que

tomariam decisões divergentes e optariam pela renúncia ao estilo de vida confortável junto ao

estabelecimento, em nome de um posicionamento enviesado em relação a este. E nesses

detalhes, também aí, se evidenciariam das contradições de uma sociedade que embora

controlada, acabaria por dar as ferramentas à promoção de práticas heterodoxas a sua ideologia:

Eu tive um desses amigos que possuiu um dos primeiros álbuns gravados em fita,

jamais feitos. E desde que eu já podia tocar o piano – eu podia tocar de ouvido

qualquer música que eu escutasse – de repente, na mesma época, essas gravações começaram a aparecer. Beatles, Pink Floyd – todo o circuito – Beatles, Rolling Stones,

Led Zeppelin. Para nós isso era tudo – eles (o governo) nunca nos deram nada, e não

havia para onde ir – na rádio não havia o que escutar. Para nós isso era completamente

novo, e nos atraiu com sua sinceridade, com sua crueza. [...] Durante meu quarto ano

na universidade, ficou claro pra mim que não queria ser tradutor de Inglês ou um

professor de Inglês em uma escola [o entrevistado estudava faculdade de filologia em

língua inglesa, na universidade]. E em geral, eu não me sentia ‘fervendo daquele

mingau’ (ne khochet´sai varit´siav etoi kashe) [expressão popular russa referente ao

fato de não se identificar com alguma coisa], porque na universidade eles não

passavam de um bando de carreiristas. Pessoas que estavam continuamente tentando

222Em CUSHMAN (1995; p. 170-72), há um excerto falando da vida de um jovem guitarrista, entrevistado pelo

autor, de nome Zhenya. Zhenya possuía formação em música clássica (tocava trompa no instituto superior onde

se formara), e foi recrutado pelo líder do Exército Vermelho a integrar a carreira de musicista marcial. Conforme

descreve ao longo do seu relato, essa era uma forma de cumprir a obrigatoriedade do engajamento temporário,

escapando às agruras e riscos de ocupação de outros postos militares.

141

subir mais alto que os outros.[...] E então eu comecei a trabalhar de caldeirista223.

Técnico de uma caldeira de calefação. Nós tínhamos bons caldeiristas por lá. Os

caldeiristas do rock. [...] [Tradução do inglês e grifos nossos]

O excerto sublinha, novamente, o conhecimento acerca de grupos ocidentais em terras

soviéticas (Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin, etc.), e o músico que descreve

essa narrativa, colhida por Cushman (1995; pp. 59-60), é identificado como Misha e nascido

durante a década de 1960. Por tratar-se de um relato em algo posterior ao período observado,

vale ressaltar que sua afirmação, embora retrate uma realidade posterior ao período

(evidenciada pela menção das bandas, cujos nomes de algumas, se consagrariam somente na

década seguinte), corrobora os pontos levantados pelo músico russo Yuri Morozov

(CUSHMAN, 1995), de como haveriam alternativas, tanto à existência de figuras rockeiras

pertencentes à elite acadêmica ou filhos de oficiais, bem como uma alternativa de ocupação

para ingressantes, pode-se dizer, mais ‘populares’ ao estilo.

Ainda referente ao depoimento, evidencia-se sua prática de abandono da carreira

acadêmica/profissional regular e deslumbramento com o rock, não é uma história isolada na

trajetória da URSS. O exercício de uma profissão mais modesta (kochegary roker; rockeiros da

caldeira), aponta algumas das estratégias encontradas pelos músicos locais para evadir-se das

ocupações da carreira convencional. Em empregos modestos, ficava-se, praticamente, invisível

à observação do Estado, e ainda assim, conseguindo cumprir a lei – que pela Constituição

Soviética, previa o crime de vadiagem, levando a que cada cidadão sempre trouxesse consigo

sua carteira de trabalho (trudovaia khnidzhka224), para conferência – utilizando o salário com

suficiência para viver (cerca de três rublos por semana, pois os preços eram congelados,

transporte público muito barato e assistência de saúde gratuita; CUSHMAN, 1995) e o restante

do tempo de folga, dedicando-se à composição musical, produção de materiais fonográficos e

circulação, desses materiais e performances em locais designados. Tendo entendido o esquema

de funcionamento de sua sociedade, esses indivíduos saberiam como obter dela os recursos que,

tão desidiosamente, lhes eram sonegados.

223Na Rússia e em outros países da Europa (Oriental e mesmo em partes da Ocidental), o inverno rigoroso requer

o uso contínuo de calefação para as residências. Na URSS, esse serviço era de pouca complexidade e exercido por

indivíduos de funções subalternas, com pouca formação. Consistia, em manter regulada a seguinte logística: as

quantidades de carvão, a pressão do vapor e sua distribuição por serpentinas, comunicadas a um boiler central,

geralmente, localizado no porão dos prédios. 224A tradição dessas carteiras de trabalho (designando região, local de exercício da atividade, ofício e frequência

de cumprimento), a funcionarem como passaportes internos, obrigatórios de se portar na União Soviética,

remontaria a primeira fase da repressão (Expurgos) sob Stálin, em 1932 (HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 53).

Naquele momento, criava-se assim, um modo de evitar a evasão ao trabalho através da fiscalização burocrática.

Vigiam desde então, por toda existência do regime soviético.

142

Não obstante, conforme se pode concluir até esse momento da narrativa, diferente da

Era Stálin, o aparato estatal a partir de Kruschev seria bem menos severo (embora mais

conjunturalmente articulado, como se observará mais adiante) para reprimir a ação de

contravenção ou clandestinidade desses evadidos do coletivo convencional. Cônscios dessa

realidade, esses atores locais do rock, iriam desenvolvendo mais intrincadamente sua rede de

relações e metodologias de sobrevivência cultural, com uma crescente e marcante presença de

revanche à desídia do Estado: se o Estado os negaria de existir, então aí mesmo que eles

sobreviveriam. E se o Estado, mais preocupado estivesse em ignorá-los do que em aplicar-lhes

uma repressão específica, então, eles também passariam a ser desidiosos com esse Estado,

ignorando-o no conteúdo de suas práticas, atitudes, poesias e canções – até o limite do

razoavelmente exequível (com conteúdos de letras que evitariam a dimensão de conteúdos

políticos ou do embate político, conforme se observará oportunamente).

Considerando tudo de observado, contemplando fatores como indivíduos providos de

educação, por vezes repertório em música e um senso de apreciação em línguas e na vertente

da literatura, não tardaria que entre os cidadãos soviéticos logo se começasse – como se

pretende esmiuçar a seguir – a realização de experimentos ainda mais sofisticados/inusitados

com o final da década que chegava. As resistências não haviam se esgotado, mas o rock mais e

mais, se tornaria russo, soviético e, naturalmente, contraditório.

2.1.4 Experiências de Retiro: hippies e rock soviético experimentalista

‘Lai-ra-ra-rai-Solntse Nad Nami/

Lai-ra-ra-rai-Solntse Nad Nami’

[Lai-ra-ra-rai-O Sol Sobre Nós/

Lai-ra-ra-rai-O Sol Sobre Nós]

Trecho do refrão de Solntse Nad Nami (1968), do grupo moscovita Sokol,

Canção considerada o ‘hino hippie’ da juventude soviética

Antes de principiar-se essa etapa da narrativa, deve-se recordar que durante a década de

1960, o mundo como um todo passaria por um período de grande circulação de influências.

Precipitadas não apenas por tecnologias da informação, mas oriundas do resgate em cada

sociedade, de princípios em torno de uma vida mais essencial, menos beligerante e mais voltada

a proporcionar-se experiências de liberdade. Evidentemente, as características e o diapasão de

tais experiências variariam muito de local para local e, substantivamente, entre um Ocidente

capitalista e um Oriente socialista. Ainda assim, por uma convergência de fatores, algumas

143

pontes seriam estabelecidas, e algumas similitudes e trânsitos de ideias circulariam. Pudera,

recordando novamente à Raymond Williams, a estrutura de sentimento evocada pela Guerra

Fria se faria sentir com maior força por sobre os habitantes de suas nações mais protagonistas:

na URSS e nos EUA, a partir da Crise dos Mísseis, o clima de que em algum momento uma

hecatombe nuclear pudesse aniquilar o planeta e por tudo a perder para todos, se se tratava de

mero slogan ou artifício de controle dos governos ou não, acabaria por proporcionar uma

geração de jovens indivíduos que se encaminhariam, quase num ‘anti-civilizacionismo’, contra

os caminhos da guerra, resgatando para isso, o libelo da paz e a retomada de práticas mais

primitivas e despojadas de vida, Como se poderá observar nessa etapa, inclusive – e talvez

surpreendentemente – haveriam movimentos com características hippies entre a sociedade

soviética, já identificáveis no final dos anos 1960 (conforme VASILENKO, 2020;

VASYANIN, 2010; CUSHMAN, 1995; HARDING, 2019) e que durante essa panorâmica

sobre o assunto, segundo observa-se, teriam influências autóctones e por seus próprios

caminhos enveredariam num inusitado movimento – chegando mesmo a embaraçar as

autoridades locais.

Naquilo que tange ainda ao experimentalismo, mas evocando o sentido musical, requer

fazer menção a uma das principais características diferenciais entre a trajetória do rock soviético

em relação à do rock Ocidental: a formação de seus músicos. Conforme mencionado

anteriormente, por conta da acessível formação estudantil superior, muitos indivíduos que se

tornariam artífices do rock local, seriam egressos de faculdades, e não raro, como também

mencionado, com alguma experiência em artes e música. Para constar, o baixista e médico

Vitya, era filho de um pai maestro. Yuri Schevchuk, músico também citado anteriormente, era

artista plástico de formação. Mesmo o rockeiro das caldeiras, Misha, teria formação não

concluída em filologia da língua inglesa, tendo tido contato com poemas e textos nessa língua

de formação (CUSHMAN, 1995). Esse background complexo, um repertório de formação,

levava a que suas impressões populares entre jovens soviéticos em relação ao rock, fossem mais

sofisticadas, em geral, do que o costumeiramente vivenciado pelas camadas jovens apreciadoras

do ritmo na porção Ocidental. Como analisado nos capítulos iniciais da primeira parte do

trabalho, o rock surge em meio aos folhetos populares dos Estados Unidos, permeado de

protagonismo juvenil nas high schools (ensino regular), e com fortes raízes na trajetória de

ritmos realizados por músicos autodidatas e sem oportunidade de formação, provenientes das

camadas pobres da sociedade estadunidense, como músicos negros dos subúrbios e brancos

144

interioranos – os quais, não raro, construíam seus próprios instrumentos, ou ao adquiri-los, sem

formação musical, os aprenderiam a tocar por seus próprios meios.

Assim, conquanto arrisque-se uma hipótese, a visão inicial que o rock passava, quer por

suas origens, quer por seu público de afetação, seria a do ‘baixo’ nível cultural (aqui entendida,

não como um valorativo, mas teor num comparativo, como aquela de matriz popular, cultura

vulgar, extravagante e pouco complexificada, com baixo nível de sofisticação). Não obstante,

sua exploração como produto cultural de massa, em rádios e na televisão, transformaria sua

fisionomia em espécie de produto enlatado, comercializado em caracteres de fácil acesso e

baixo nível de exigência para apreciação.

Distintamente, na URSS, embora o rock viesse pelas camadas juvenis e fosse adquirido,

por vezes, no circuito underground, seu meio de afetação seria mais sofisticado, contemplando

indivíduos, que pela oportunidade característica de urbanidade soviética, dispunham de maior

aporte cultural e também musical, possibilitando que sua observação em torno do rock, por

vezes o entendesse como uma vertente musical do experimentalismo, quase numa linha de

desdobramento equivalente, ao que se havia feito com a imersão em outras vertentes da cultura

local (como por exemplo, a música clássica). Ou seja, embora a música clássica e o rock fossem

diferentes, e também na URSS isso fosse perceptível, a noção de que tanto o rock, quanto a

música clássica fossem terrenos legítimos a atitude experimental, não era vista com hierarquia

por seus protagonistas: pelo contrário, embora ainda houvesse resistência na opinião de

musicistas tradicionais (em geral, credenciados às associações de músicos da URSS), não se

podia negar que o ritmo inédito seria um terreno fecundo a novas modalidades de arranjo e

sonoridade. No princípio, jamais seria assim no Ocidente, sendo que apenas duas décadas após

o seu princípio (1960-70), o rock começaria por influências de músicos Ocidentais que

possuíam repertório anterior (de conservatório, por vezes) a ter um tratamento progressivo,

vindo a desdobrar-se em virtuosismo e experimentações diversificadas e mais sofisticadas.

Essa diferença fundamental de atores em trajetórias e localidades distintas levaria a que

o rock na União Soviética fosse visto, ao contrário do que se possa pensar, paulatinamente,

como uma forma de arte sofisticada, tão considerada, quanto seriam a poesia, a fotografia, a

escultura e a literatura modernista (CUSHMAN, 1995; p. 45). É claro, frise-se que essa atitude

faria valer, mormente, entre a comunidade de seus protagonistas, ciosos por manter um padrão

experimental e distante da aura comercial de produto tutelado. Para os integrantes da música

comercial, da linha partidária e da vanguarda musical soviética (classicista), o estilo do rock

145

seria marcado de controvérsias, com opiniões favoráveis e contrárias, mas fundamentalmente,

negativas, não por conta de sua natureza harmônico-sonora, mas por sua elementaridade

Ocidentalizada.

É por isso, que embora por trajetórias distintas, ao final da década de 1960, ambos os

hemisférios estariam a fazer migrar o rock para uma nova vertente de sensações psico-musicais.

O mundo via em suas sociedades industriais dotadas de modernidade, impulsionado pela

pujança econômica de uma ‘Era de Ouro’, o surgimento de uma revolução cultural225:

perspectivizando a partir do Ocidente, os costumes sexuais mudavam (com o advento da pílula

anticoncepcional, discussões sobre o aborto, militâncias feministas, sociais e de raça, com todo

um escopo político imbricado), a deposição de elementos tradicionais ligados ao corpo, à

hierarquia social ou a posição social do gênero, o trânsito entre estilos de diferentes classes, a

aparição de uma esteticização do vulgar/popular, até seu ápice: a consagração do

individualismo como manifestação de personalidade (‘cada um na sua’; DIY: do it yourself/faça

você mesmo), como forma de cultura e experimentação de entretenimento (favorecido,

conforme WALD, 2009226; pelo advento industrial cultural do long play/disco de vinil, em

lugar do concerto musical) – e posteriormente, havia a reconfiguração desses ‘grupos de

indivíduos’, reamealhados em torno de uma cultura, gosto ou significado em comum, no

conceito de novas tribos urbanas227.

Na contracultura, em meio às considerações nefastas do mercado, consumismo e do

apelo patriótico da guerra do Vietnã, laboratório da Guerra Fria, ingressado pelos Estados

Unidos, após a campanha militar na Coréia, na década de 1950228, muitos jovens se

encaminhariam por filosofia de vida e expressão alternativa aos costumes sociais

tradicionalmente consagrados. Reunindo-se desde em torno do artístico, estético e

esotérico/místico, passando pelo recreativismo no uso de drogas e substâncias como forma de

desalienação aos produtos chancelados, até a mobilização política subversiva, a qual redundaria

no movimento hippie, culminaria no evento marcante do Verão do Amor, em San Francisco,

California (1968). Num episódio importante desse momento cultural, levas de moças e rapazes,

caroneiros e andarilhos, se reuniriam em demonstrações diversas: de artísticas apresentações e

confraternização num momento de idílico pacifismo no fim dos anos 60, até manifestações

225HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 254-260 226WALD, Elijah; How The Beatles Destroyed The Rock N’ Roll: An alternative History of american

popular music; 1ª Ed; Oxford University Press, USA, 2009 227BARROS, 2007. Op. Cit 228HOFFMAN, Abbie. Steal this Book. New York: Groove Press. 1971.

146

políticas, como a dos protestos em Chicago (1968), cujo clímax se daria com o julgamento de

manifestantes por falsas acusações de incitação à violência e anti-patriotismo. 229

Não obstante, as manifestações culturais juvenis do período, dos eventos musicais

remanescentes desse espírito, ficaria também marcantemente célebre a presença do rock n´roll,

embalando a revolução – não – televisionada (nas palavras de Jimi Hendrix, em 1968) e tido

como gênero/estilo símbolo dessa revolução cultural e forma de celebrar tal filosofia de vida –

como ficaria épico no afamado Festival de Woodstock, realizado numa fazenda na cidade de

Bethel, estado de Nova York, em 1969. Nesse festival, com o rock em alta em sua vertente

experimental, na falta de nomes consagrados à época, como o dos grupos Led Zeppelin, The

Who, os Rolling Stones ou os Beatles, se fariam renomados determinados artistas locais, menos

conhecidos àquele momento, e que por isso mais independentes. Para citar, desses nomes

icônicos da história do rock, marcantes em performances no festival, figuram: Carlos Santana,

Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison (com sua banda, The Doors)230 – alguns deles que,

inclusive, transbordando as fronteiras ideológicas-políticas da Guerra Fria, se fariam pela

vertente do rock, conhecidos entre os jovens soviéticos – quase simultaneamente. Como aqui

se pode observar, em excerto de Marochkin (2011a) referindo-se a um pioneiro guitarrista do

rock soviético moscovita:

Por causa disso, ele provavelmente era o único homem em Moscou que fazia direito

o rock 'n' roll, tocava violão e conhecia muitos truques, que foram usados por Chuck

Berry, Rolling Stones – e que em Moscou, sabia como ninguém.

A imagem de (Sergei) Dyuzhikov em Moscou poderia até se comparar com a chegada

de Jimi Hendrix, na Inglaterra: que enquanto o rhythm n’ blues na Inglaterra estava

pronto para entrar em um novo estágio de desenvolvimento, mas ninguém sabia como

fazê-lo – só quem conhecia o jeito, seria Hendrix. [Traduzido do inglês].

Seria então que, no emergir de uma ‘contracultura Oriental sessentista’, lutando contra

uma série de percalços estruturais advindos da bipolaridade política, transversalizada no

fenômeno cultural do rock, com parcos recursos de realização, a juventude local teria solução

a partir do insumo do seu repertório de formação (educação formal e superior, oportunizadora

de conhecimento em línguas e música) e sua avidez por um experimento inédito no cenário

soviético – utilizando nisso, com picardia, dos recursos disponíveis.

Para endossar esse argumento proposto, cabe observar interessante relato trazido pelo

músico Yuri Morozov (CUSHMAN, 1995; pp. 20-33), onde esse narra em sua trajetória,

229No polêmico e notório caso Trial of The Chicago Seven (Julgamento dos Sete de Chicago, em 1969). 230HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 258

147

algumas dessas inusitadas e desconhecidas oportunidades de contato e retiro – em plena

realidade da URSS. Das agruras já conhecidas de seus relatos anteriores na senda do rock, o

músico relata do momento em que, após evadido de Vladikavkaz (cidade do interior soviético),

ingressaria no curso superior em Leningrado, contemplando uma rotina dupla entre a dedicação

à formação técnica no instituto superior e às apresentações arranjadas junto à gerenciadores,

para sua banda na cidade. Por essa época, estudando e cercado de contatos na grande metrópole

soviética, conseguiria algumas oportunidades de concerto, ainda se apresentando, no entanto,

com total sujeição à disponibilidade da estrutura estatal. Mais à frente, receberia convites para

figurar no elenco autorizado em pequenos bailes do clube de oficiais e concertos para plateias

escolares. Sendo então, que finalmente, por volta do princípio dos anos setenta, conseguiria

pela amizade de um de seus colegas de instituto – filho de um figurão da música estatal – a tão

sonhada possibilidade de protagonizar saídas às propriedades de campo remetidas aos membros

do partido (suntuosas dachas; casas de campo), em temporadas dedicadas ao ensaio e à música

(num cenário extra-urbano)

Pontua-se nisso, as evidentes diferenças entre contracultura ‘da pesada’ do Ocidente e a

sutil insubordinação, em estratégias culturais soviéticas. Se à princípio uma saída à casa de

campo não se possa comparar com queima de documentos de convocação ao conflito do Vietnã,

ou mesmo à queima de sutiãs, as implicações do ato de liberdade e a estreiteza dos canais

necessários para consegui-lo, num cenário como o da URSS, munido de toda uma estrutura

sistemática de monitoramento e burocracia (e ideologicamente voltado à uma lógica do

coletivo, em depressão da individual), acentuam o grau de transgressão envolvido no ato do

jovem músico. Outro caractere bem evidenciado, é o de que (assim como observado em outros

depoimentos de músicos) embora o rock fosse estrangeiro e extravagante, seria conciliável a

outras atividades da realidade local (como a formação acadêmica, por exemplo), e que, uma

vez que figurasse autorizado por certos integrantes da elite (oficial), também funcionaria para

esses como elemento de distinção (sofisticação) – de acesso à exóticos produtos de cultura e

um conhecimento acerca de vanguardas da arte Ocidental.

Não obstante, no tocante a como conseguiria sua possibilidade de trânsito e experiências

de saída dedicadas à atividade musical, o músico contaria de sua afiliação a um colega cujo pai

seria um dos músicos agraciados pela gravadora estatal. Ainda nesse aspecto, Yuri apontaria

como a partir desse favorecimento, aproveitaria sessões de ensaio ao final da década, rumo à

uma região próxima à Leningrado, onde ficaria reunido a outros músicos, retirado por semanas

e até alguns meses, em completo clima de seyshn (performance).

148

Há que se ressaltar que vigendo, como recorda Cushman (1995; p. 53), a lei de

obrigatoriedade de assiduidade ao trabalho, essas oportunidades de retiro evidenciadas pelo

músico, tinham de estar vinculadas a uma autorização de saída especial, concedida aos músicos

ou estudantes em processo de formação musical ou autorizados para atividades de cunho

cultural ou de pesquisa. Munidos das autorizações e desfrutando de um local com instrumentos

de boa qualidade (uma casa de campo confortável, de uso dos músicos da Melodiya, localizada

numa região montanhosa nas cercanias de um lago), esses retiros se tornavam um refúgio para

inspiração e alento em contraste à claustrofobia e atmosfera burocrática das instituições urbanas

soviéticas. E precisamente por isso, a presença fundamental do colega ‘bem relacionado’, a qual

possibilitaria tal chancela e a realização desses momentos singulares, mesmo dentro do cenário

restritivo vivenciado na circunstância laboral geral. Novamente, a demonstração de um

contraste, que embora proveitoso, denunciava a discrepância das configurações na sociedade

local. A despeito disso, do produto dessas sessões em meio à natureza e suas gravações que

marcariam profundamente o músico, tiraria inspiração para imersões futuras, junto a outras

vertentes experimentalistas – referentes a novas sonoridades e também a novas filosofias de

vida.

Yuri se referiria nesse ponto, ao seu contato posterior com a música indiana (raggha) e

os preceitos corporais do exercício transcendental (meditação) e jejum – o que na União

Soviética, embora fosse pouco conhecido ao exterior, não seria absurdo, posto muitas dessas

influências existissem e desde que não ofensivas aos preceitos oficiais, eram toleradas. Pouco

se sabe acerca de registros em torno de praticantes dessa e de outras influências da Índia na

Rússia soviética dos anos 1960, mas segundo a obra de Vladimir Lebedko, em História dos

Sannyas Russos, uma corrente dessas meditações correria a Rússia dos anos 1970, promovendo

sincretismo religioso entre religiosidades ancestrais (dos ritos indianos e do Cristianismo) e

criaria situações complicadas às autoridades, que rastreariam a localização dos adeptos e os

internariam, sistematicamente, em clínicas psiquiátricas a serem tratados com terapia à base de

insulina231 – há ainda nesse sentido, relatos de que muitos jovens na virada da década (1960-

1970) estariam por conta de influências locais e circulação de elementos da cultura hippie

231VASILENKO, Sergey [Artigo publicado em 20/10/2020]; In: KHODAREV, Vasyly; VOLKOV; Andrei;

Русская Семерка (2017) [Trad. Livre: Russkaya Semyerka] Editora LLC Tura; Disponível em:

https://russian7.ru/post/vladimir-tosha-shuktomov-chem-glavnyy/

149

Ocidental232, migrando a jornada da autodescoberta com um ‘tempero todo eslavo’ e marcante

da verve local: o Tolstoísmo.

Uma hipótese à origem de tal prática de ascetismo contemporâneo seria embasada no

precedente da biografia do afamado escritor realista russo Leon Tolstoi (1828-1910), de

conhecimento notório na sociedade russa, e que consistia no hábito do retiro e no

vegetarianismo. Produto dessa convicção e de sua desilusão com a forma como se constituíra a

sociedade de sua época (czarista), o escritor deixaria de vez, em dado momento da vida, suas

posses e títulos em São Petersburgo para ir morar em uma chácara [dacha] em Astapovo,

província a leste na Rússia. Tolstoi, que também seria um ferrenho defensor da causa animal e

um pacifista (a trocar cartas com Mahatma Gandhi, no princípio do século XX), teria juntado

consigo uma leva significativa de seguidores e sua enorme repercussão enquanto personalidade

e figura moral, fariam em episódio de seu passamento, com que o próprio Czar Nicolau II (em

1910), tivesse de tomar medidas as quais dessem conta de evitar uma peregrinação de milhares

de pessoas, ao local onde se instalara (TOLSTOI, 2013; Prefácio).

Em uma Rússia de múltiplos costumes e raízes étnicas, Tolstoi não estaria sozinho em

sua senda pelo ascetismo, embora de maneira mais específica o literato e seus seguidores

fossem modelos circunspectos associados às práticas de retiro, em sua prática alimentar teriam

companhia de outras celebridades, ainda na Rússia soviética, importantes expoentes culturais e

referências de proceder à época: como se pode ilustrar o poeta Sergei Yesenin, o escritor

Maksim Gorki, o pintor Nikolai Gê – entre outros que seriam importantes baluartes do

movimento vegetariano local, com posicionamentos que se alicerçavam numa defesa de um

caráter mais coerente com a causa animal até uma ênfase em hábitos de vida mais saudáveis.233

Interessante em mais de um sentido ao intuito da narrativa aqui empreendida, o relato

em torno do poeta Yesenin seria fundamental para entender uma importante simbologia russa.

Esse que faria um libelo em torno da luta da existência ante os caprichos e imposições da rudeza

da vida humana mundana e a relutância de aceitá-la, mesmo na constatação melancólica de sua

presença. Adepto que era do movimento romântico evocaria a partir da figura da Bétula (bereza,

em cirílico), árvore muito simbólica dos prados do Cáucaso, a figura protagonista desse embate

232HARDING, HARDING, Luke. La História Perdida de Los Hippies Soviéticos. El Diário (colaboração The

Guardian). Ed 06/nov/2019. 233AMINOVA, Dária. O vegetarianismo e a literatura russa desde Tolstoi. Russia Beyond. Disponível

em:https://br.rbth.com/arte/receitas/2016/05/15/o-vegetarianismo-e-a-literatura-russa-desde-tolstoi_592861;

Acesso em: 25/07/2020

150

(por alguns críticos, entendido como uma sutil forma de crítica aos rigores da administração da

época, sob Stálin). Sua introspecção e postura filosófica não poupariam de um desfecho

precoce, onde desgostoso com o estado das coisas em sua sociedade, se negaria a viver, por

escolha.

Assim, conquanto a ‘filosofia’ hippie proviesse, com vulto mais visível, de uma

circunstância Ocidental específica (EUA), precedentes locais já existentes e atuantes na

configuração soviética (por sua tradição russa) já evidenciariam em si semelhantes tomadas de

atitude – demonstrando, mais do que qualquer aculturamento possivelmente cogitável, uma

afinidade dessa tendência por registros já familiares ao ethos russo-soviético. E, inclusive no

tocante à questão esotérica, embora a União Soviética não fosse um Estado tendente a

manifestações de cunho religioso – por sua vinculação a uma interpretação escorreita do

materialismo histórico dialético (cujos preceitos encaminham a laicidade e o ateísmo como

premissas) – havia uma tradição e a possibilidade de existência e de circulação de

conhecimentos religiosos (a própria Igreja Ortodoxa, subsistia234), místicos e de cunho

filosófico transcendental, tanto da verve remanescente local, quanto essas de proveniência

exótica, mesmo sob a estrutura institucional do aparato235.

Tais conhecimentos, assim como distintas filosofias de vida e como as de canções e

produções de outros países, desde que não utilizadas com apelo político, gozavam desde aquele

momento da década de 1960 de certa capilaridade, podendo ser toleradas como conteúdo

histórico e mesmo, formas de aprendizado nas formações na URSS. Ora, se como visto, embora

escasso o número de falantes, havia estudos de língua inglesa e como mais adiante se verifica,

o conhecimento até mesmo de nomes clássicos da literatura Ocidental, não se poderia duvidar

da possibilidade e trânsito, embora mais rareado, de outras fontes de conhecimento (orientais

antigas, por exemplo) na sociedade local. Conhecimentos étnicos também figurariam essa

hipótese, como os de cunho religioso ou artístico de povos do Oriente, pois estes serviam a

melhor compreender certas culturas com as quais os cidadãos e diplomatas poderiam vir a ter

contato, eventualmente – em geral, por interesses políticos, comerciais ou de circulação de

234Mesmo sob Stálin, a Igreja Ortodoxa Russa encontraria uma forma de contemporizar o Estado. A tal ponto que

em face dos eventos da Guerra Patriótica, o Patriarca Sergei (equivalente ao título católico do Papa) através da

ressonância de sua Igreja, exortasse Stálin como um ‘Eleito da Providência’. Fonte: HOOBLER, HOOBLER,

1987; p. 78 235Há o registro disso no prefácio do blog de MAROCHKIN (2011), ao se referir às sonoridades étnicas e

folclóricas que compunham o mosaico cultural da União Soviética no principiar do rock local. Há menção

específica a ritmos orientais, indianos, cazaques e de outras proveniências, que segundo seu relato, não apenas

entrariam na URSS, mas constituiriam repertório conhecido e utilizado pelos músicos locais.

151

informações. Também há que se considerar que numa multiplicidade de nações, compostas de

plúrimas etnias dispostas em fronteiras diretas com o Oriente Longínquo e outras porções

asiáticas, resta pouco provável que da matriz de seus saberes não proviessem alguns cujas fontes

remontassem aos de outras culturas do circuito Oriental236.

Assim, o evento possível de hippies soviéticos, embora inusitado e impressionante,

apenas ajuda a ilustrar de maneira mais clara, as contradições e fluxos culturais presentes nessa

sociedade e a permeabilidade de circulação e trânsito de influências, históricas locais e de

mundos em simultânea ocorrência, desmentindo a distorção sofrida nas lentes de observação

histórica ocidentais, que em geral, produziram uma narrativa baseada em uma versão muito

restrita da interpretação do funcionamento da modernidade industrial socialista, bem como, do

potencial de agência e reconfiguração de arranjos sociais, por atores dessa estrutura social.

Também conforme se tem buscado evidenciar ao longo dessa narrativa, com consoante colheita

de evidências, a circulação de conhecimentos provenientes, tanto do Ocidente, quanto do

Oriente, dentro da URSS, variaria de acordo com o tempo, em fases passadas por seu aparato e

de acordo com personalidade e gestão reflexivas a cada temperamento/época de seus

governantes. Não seria a União Soviética um bloco monolítico de perpetuidade intransigível,

embora sua imagem coesa e solene desejasse, por vezes, passar. Também nela, as mudanças

aconteceriam e o espaço para manifestações insuspeitas, devidamente possibilitadas, ficaria

marcado em precedentes coletivos e individuais.

Em teor de um desses emblemáticos precedentes, tornando a Yuri Morozov (em relato

descrito por CUSHMAN, 1995; p. 35) torna-se a esse quando chamado de sua jornada no

‘transcendental’, de volta à ‘realidade’, ao figurar no princípio dos anos 1980 – posto ainda

continuasse muito adiante, de suas práticas e filosofia de vida entre outras excentricidades à

realidade local – no escopo de denúncia do partido: acusado por suposto desvio de material

estatal para finalidade particular. O argumento, provinha da alegação que o pequeno estúdio

que Yuri tocava, utilizaria fitas e aparelhos de pertença estatal para suas produções

independentes.237 De forma mordaz, o Estado arrumava assim um argumento a pô-lo, por seu

estilo heterodoxo, em observação, mais por conta de seu tipo esdrúxulo ao padrão soviético –

236Basquires, tártaros e chauchus, dentre outros povos, representam algumas das etnias dentre os povos russo-

soviéticos (hoje, inclusive, constituindo algumas províncias autônomas), cujas características, tanto culturais,

quanto geno-fenotípicas, guardariam grande parentesco com correntes antropologicamente espalhadas pela

Mongólia, China, Japão e Paquistão. 237O trecho refere-se, conforme Cushman (1995), a produções não autorizadas, de cunho religioso; um crime,

segundo a Constituição Soviética, menos pelo conteúdo, que pelo procedimento, àquele momento.

152

barbas e cabelos compridos e práticas esotéricas, destoantes gritantemente da fisionomia tanto

sartorial, quanto ideológica do cidadão soviético comum, predominada por vestes alinhadas,

corte de cabelo curto e corpos exercitados e exaltação dos cânones partidários, conforme

Cushman (1995; pp. 180-85) – que chamaria a atenção dos jovens e que associados à sua prática

radiofônica (de cunho esotérico místico), oportunizavam que se tornasse um ícone potencial

como elemento subversor, do que, de fato, por sua pretensa atitude ilícita no ‘suposto’ desvio

de material às gravações particulares.238

Uma vez mais, a astúcia da agência individual ocasionaria a burla do aparato – nesse

caso, o de investigação. Para sair-se incólume da situação, utilizando da gramática que conhecia

do funcionamento do procedimento de inquérito oficial, Yuri compareceria ao interrogatório

para a KGB, trajando sua jaqueta militar, demonstrando suas diligentes obrigações com o

Estado (servira no exército, algo respeitável na URSS, àquele momento). Não obstante, quando

requisitado a dar os materiais de prova que evidenciariam de sua culpa na atividade (supostas

gravações de cunho religioso cristão; uma das vertentes filosóficas, de fato, da intimidade de

credo de Yuri; CUSHMAN, 1995, p. 33), este pediria um prazo para a juntada do material e tão

logo o procedesse, enviaria à submissão dos fiscais locais. De forma estratégica, regravaria boa

parte do material compilando-o de forma confusa e pouco inteligível, tornando questionável a

qualidade das provas, e com isso a procedência da alegação – uma vez que disso resultasse um

material produzido, considerado, ainda que ‘desagradável’, inofensivo produto à apreciação das

autoridades.

Da trajetória do músico, aqui utilizada como metáfora a essa narrativa de

experimentalismo do rock local, empresta-se alguns registros de sua carreira (fotos), não apenas

demarcando o argumento ora descrito, mas demais elementos interessantes, como o

conhecimento manifesto nas imagens, de tendências ocidentais e orientais extras soviéticas,

bem como uma franca familiaridade em relação aos artistas ocidentais e, sobretudo, a

constatação da forma como o rock soviético conseguiria criar distinções de fases visíveis entre

etapas de sua trajetória em menos de uma década. Procede-se a seguir, com a análise das

pertinentes imagens:

238Que segundo Cushman (1995) relata, teriam inofensivo teor e se preservadas, muito vantajosamente, tornariam

rastreável toda uma rede de contravenção, formada pelos aficionados, sob a observação do aparato.

153

Figura 1. Capa do álbum Strannye Ânguely (Strange Angels), do artista soviético Yuri Morozov. Ano: 2014

(coletânea) Domínio Público (Fonte: Site Buried Treasure; Disponível em:

https://buriedtreasure.bandcamp.com/album/strange-angels. Acesso em 26/06/2020

A começar pela análise do fotograma239 da Imagem 1, crê-se que produzido dentro do

selo de qualidade estatal (GOST, para filmes fotográficos, equivalente ao ASA estadunidense

e ao DIN alemão, à época; respectivos códigos/selos internacionais de classificação e padrões

de qualidade, os quais permitem rastrear locais de origem de cada produto), provavelmente em

captura 35 mm (pequeno formato), por ser o mais utilizado entre profissionais e amadores à

época; também, nota-se que trata-se do de registro de um filme de alta sensibilidade

(equivalente ISO 800 a 3200), por ter sido a foto tirada em ambiente escuro (interno), com

pouca insolação (ou iluminação artificial), demandando de alta-sensibilidade de captura à luz.

A imagem parece alterada num filtro noturno, no qual transparece, ainda assim, parte de sua

densidade original/saturação (que lhe empresta a fisionomia de algo com possibilidade de

correspondência com uma tomada capturada nos anos 1960-70).

Quanto a análise de imagem, propriamente dita, a captura é uma tomada frontal, com o

protagonista de pernas cruzadas, levemente centralizado, há disposição de objetos de seu uso

239Análise fotográfica, a partir de elementos de base, retirados considerando as informações acerca de padrões de

qualidade de filme fotográfico, disponibilizadas no Arquivo Nacional (Conarq), páginas 9-10, seção Câmara

Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos e Sonoros – CTDAIS. Brasília-DF, 2014

154

costumeiro (gravador de rolo [magnitofon], e algumas imagens de pinturas ao fundo).

Provavelmente, a imagem incite a divulgação do material fonográfico do autor, Yuri Morozov,

onde a presença do gravador ilustra ligação à música, e as figuras pintadas representam

personagens pagãos, ligados à filosofia Oriental (provavelmente, ao estudo do Zoroastrismo).

A semântica que se pode evocar do registro, é a de ressaltar a dicotomia vivenciada entre o

ofício da música moderna (ligado à tecnologia) e o hábito de perpetuação de conhecimentos

antigos (ligados a culturas muito anteriores ao contemporâneo). Dessa dualidade, o músico

pronuncia uma ideia de como a URSS possuísse figuras singulares como tal, em pleno momento

de vivência contracultural, semelhante ao vivenciado na porção Ocidental (pelos hippies e seu

cultivo do esoterismo). Posto que, embora o rock soviético ainda fosse já se encaminhando para

sua própria construção local, seria àquele momento muito tributário das tendências encontradas

no rock Ocidental.

Adiante, passa-se a análise da Imagem 2 (na página subsequente). Essa, que composta

de uma tomada em ambiente externo, com o personagem principal descentralizado (à direita),

em pose de prática meditativo-contemplativa, com torso e pernas desnudos, e uma vegetação

ao fundo, remetendo a um simbolismo de integração ao mundo natural. A crítica (ou evidência)

passada pela tomada é, a partir do precedente de Yuri Morozov, vislumbrar-se de como haveria

um curso de informações de cultura Oriental antiga, filosófica e holística, dentro do circuito

soviético. Práticas corporais e pensamentos metafísicos poderiam ser encontrados, embora não

se constituísse nisso uma constante social, nos centros urbanos maiores e entre cidadãos – com

vulto, integrantes das artes (como a música, ligada em seu processo, a muitos segmentos de

referências e inspiração).

Quanto à composição do fotograma, por suas características, acredita-se que

corresponda em época ao registro anterior (com lastro na fisionomia do retratado aparentar-se

mais jovem que a da primeira imagem). Não obstante, por ser em tomada exterior, o filme

apresenta baixa sensibilidade, provavelmente de 35 mm novamente (escolha mais corriqueira

entre amadores e profissionais, para uma tomada assim). Ambas as fotos, ficam a integrar o

acervo de imagens disponível no site do músico240, organizado por sua filha Nina Morozovna e

pelo jornalista russo Andrei Burlaka, autor de Encyclopaedia of Russian Rock (ambos

consultados; disponíveis em russo e aqui traduzidos). A determinação da datação de ambas as

240Юрий МОРОЗОВ 06.03.1948-23.02.2006: музыкант, писатель, звукорежиссёр [Yuri Morozov-

06.03.1948 – 23.02.2006: Musician (2011), writer, song engineer - The SteppenWolf Running With Hunger And

Freeze, Understand me]; Disponível em: http://www.zcinzsar.ru/disks_eng.php; Acesso em: 28/06/2020

155

fotos, corresponde aos relatos da biografia de Yuri encontrados no site, bem como de dados

disponíveis em sua discografia (também nesse site) e corroboram os relatos realizados a

Cushman (1995; pp. 20-33), acerca de suas influências e práticas pessoais.

Figura 2 Capa alternativa do álbum Strannye Angely (Strange Angels). Artista: Yuri Morozov. Ano: 2014

(coletânea) Domínio Público (Fonte: Site Buried Treasure; Disponível em:

https://buriedtreasure.bandcamp.com/album/strange-angels; Acesso em 26/06/2020)

Essas duas primeiras imagens analisadas do acervo da obra de Yuri Morozov, também

figuram como capa de uma coletânea organizada sobre materiais (músicas) da década de 1970

desse artista, com encarte organizado contendo similitude (pictórica) no site referido. Nessas

imagens, seguindo ao relato de Cushman (1995), ficam presentes evidências da prática Oriental

indiana de que o cantor se referia no depoimento (meditação), bem como iconografias ligadas

ao esoterismo e ao ascetismo, presentes, embora raras, na sociedade da União Soviética.

A imagem seguinte mostra a capa de um dos discos de Morozov lançados no princípio

de 1970 (dados disponíveis na seção Discografia do site dedicado à sua obra), contendo

referência explícita ao músico Ocidental (estadunidense) Jimi Hendrix:

156

Figura 3 Álbum: The Cherry Garden of Jimi Hendrix Artista: Yuri Morozov. Ano: 1973 (relançado em 1975)

Domínio Público Fonte: Site Discogs; Disponível em: https://www.discogs.com/Yury-Morozov-Cherry-Garden-

Of-Jimi-Hendrix/release/5758551.

As imagens encontradas figuram em sites de colecionadores de discos raros e

coletâneas, e mesmo as incursões ao site do músico, infelizmente, não permitem reunir o

material no seu estado mais original, uma vez que, conforme estejam já em língua inglesa suas

nomenclaturas, provavelmente, se tratem de versões atualizadas (provavelmente

remasterizadas) das obras originais, impossibilitando assim uma fonte originária, que não seja

a partir da encontrada por meio dos relatos, obter a seguridade total acerca de sua procedência.

Contudo, o registro fotográfico, conforme cruzamento de referências em sites como o

Russ.Mus.Net, especializado em artistas locais, atuais e anteriores da Rússia contemporânea e

também do site pessoal do cantor, bem como as afirmações do próprio músico, consoante o

registro oferecido em relato na obra de Cushman (1995), apresentam importantes indícios que

emprestam veracidade e correspondência a evidência das argumentações de afinidade com as

práticas de retiro e filosofia de vida indianas presentes na União Soviética, bem como do contato

dessa com a contracultura estadunidense proveniente de Woodstock e seu movimento também

permeado de influências. Corroborando com isso, que na União Soviética, embora fosse algo

157

notoriamente incomum, houve resquícios de práticas equivalentes à do movimento hippie (pelo

Tolstoísmo ou pela circulação de conteúdo da contracultura estadunidense) – citado, inclusive,

por Marochkin (2011a), ao relatar do caso dos birches perseguidores de hippanovoga (gente

hippie; no episódio de Moscou, no final da década de 1960):

Um fato triste memorável desse tempo foi a descoberta de um esquadrão "Birch", que

se dirigia até a porção hippanov metropolitana [hippies na cidade de Moscou], na

chamada "Broadway"241 moscovita, ou seja – vindo pelo lado esquerdo da rua, da

Gorky 's Pushkin Square até o Hotel Moskva – mas ao que tudo indica, no último

minuto, o grupo principal desse manifesto não se organizou. Criar um esquadrão antihippovogo [do russo, anti-hippies] de impacto foi uma iniciativa pessoal de vários

jovens comunistas. Curiosamente, nos anos de estagnação [período de governo de

Brejnev, na década de 1970], muitos participantes “Birches” ocuparam cargos

importantes e responsáveis nos escalões superiores do Partido Comunista, tornando-

se secretários de vários comitês da cidade e do partido regional. [Tradução do inglês

e grifos nossos].

Esse excerto acima mencionado permite verificar duas coisas: primeiramente, a

existência pregressa, aos anos 1960, de jovens soviéticos com comportamento hippie,

verificados em um incidente ocorrido, possivelmente, entre a segunda metade da década ou no

princípio da posterior (1970); em segundo lugar, a existência de grupos conservadores tendentes

à preservação do estabelecimento local, identificados como birches. A palavra (birch) é uma

tradução inglesa (idioma do site em que consta a notícia) do termo bétula (uma árvore nogueira

típica de climas temperados), que em russo se pronuncia bereza. Bereza é uma das canções do

livro de saudações do Coro do Exército Vermelho, que discorre sobre a temática da natureza

para evocar a alegoria de resiliência dessa árvore durante o inverno hostil, um ufanismo militar

e os valores resistentes ao achaque de tendências derrotistas. Cogita-se aqui, que o uso da

terminologia bereza, para se referir aos integrantes da manifestação anti-hippie soviética, seja

uma forma de atribuir-lhes, em forma de jargão característico (gíria, do repertório pejorativo e

provocatório), o atestado terminológico de sua atitude conservadora, alinhada ao status quo

soviético, militar e nacionalista – por extensão, utilizaria-se do termo evocando os emblemas

dessa tradição militar.

Outra informação que corrobora essas duas presenças (de hippies e berezas; ou gente

do aparato), é o relato de incidente semelhante, trazido no documentário Soviet Hippies (2017),

dirigido pela diretora estoniana Terje Toosmitsu, entrevistada pelo jornalista Luke Harding,

para o jornal inglês The Guardian (com matéria cedida e traduzida ao periódico espanhol El

241Conforme visto com o relato dos Stilyagi, à década de 1940, provavelmente, o epíteto seja atribuído a um local

onde de modo similar os apreciadores de cultura Ocidental se reunissem na circunstância urbana da capital federal.

158

Diario; La História Perdida de Los Hippies Soviéticos, 2019). A descrição do incidente é

entremeada de muitos detalhes importantes:

O movimento hippie soviético emergiu em Moscou e Leningrado entre 1966 e 1967,

durante os primeiros anos do governo de Leonid Brejnev. Os primeiros hippies

vermelhos foram filhos e filhas da camada privilegiada soviética, os filhos bem-

educados das famílias da elite, os quais tinham acesso à música e aos cowboys do

mundo capitalista. No princípio dos anos 1970, o movimento já era suficientemente

grande e revoltoso a ponto de chamar a atenção das autoridades, ainda que segundo

Toosmitsu, a quantidade de hippies não passasse de alguns milhares. A polícia secreta

começou a seguir esses jovens que possuíam cabelos compridos. Em junho de 1971,

os hippies locais obtiveram permissão para manifestar-se contra a Guerra do

Vietnã, às portas da Embaixada Estadunidense em Moscou.

Era uma armadilha. A KGB cercou e prendeu os manifestantes, com o objetivo

de eliminar a cultura hippie. Alguns manifestantes foram enviados a instituições

psiquiátricas onde lhes injetavam insulina, outros foram enviados ao exército e

para campos de prisioneiros próximos da fronteira com a China. O

documentário recria o cenário dessa investida e utiliza fotos de vigilância

achadas nos arquivos da KGB na Lituânia.

Segundo Lampmann, era comum sofrer-se o assédio da polícia e da KGB. Um de

meus melhores amigos acabou na cadeia, relata. Os hippies eram condenados por

delitos penais, ao invés de políticos. Podiam encontrar-se compartilhando cela com

assassinos e criminosos comuns. Para evitar ser preso, Lampmann conta que sempre

trazia consigo seus documentos pessoais em ordem. [Tradução do espanhol e grifos

nossos].

O relato da diretora ao jornal, conta com o depoimento (oferecido ao documentário) de

um desses participantes do movimento local à época, o estoniano Axel Lampmann. A partir de

sua narrativa, seria marcante nas origens desse fenômeno cultural local, a influência da música

de grupos como os Beatles e a circulação do rock nas Repúblicas Socialistas Soviéticas, que

variaria de acordo com os lugares, em possibilidade e frequência, mas seria uma realidade já

corrente a partir da segunda metade da década de 1960. Sua adesão ao movimento seria

consolidada em 1969, constatando por sua rede de contatos, integrantes que se estendiam do

Mar Báltico à Criméia. Em percepção da época registrada no documentário, resumiria aquele

ímpeto local com as seguintes palavras: ‘A vida nos cobrava mais cor, àquele momento!’

(HARDING, 2019).

Retomando-se a questão do incidente, propriamente dito, evidencia-se a figura de

autoridades locais na vigilância e repressão ao movimento, num aspecto mais severo do que a

realizada pelo Komsomol242, nos anos do Degelo de Kruschev. Mais do que isso, como ilustrado

pelo músico russo, Dimitri Matsenov (2017), uma típica ação escamoteada das autoridades

locais (que seria perpetuada durante as décadas seguintes também):

242Ora aludidos, Comitês de Fiscalização ligados ao Movimento da Juventude Soviética.

159

Ah, aqui outro fato memorável dessa época! Era extremamente popular nas escolas

de Ensino Médio e nas Universidades algo chamado de concursos de talentos

amadores (é o mais próximo que posso traduzir do original russo o qual soaria

totalmente ridículo e eu não pretendo fazer isso). Usualmente, devotados a alguma

agenda político-cultural (paz internacional, amizade, direitos dos trabalhadores).

Então, os jovens iam lá ler poesias, cantar, etc. – com certo apelo político. A beleza

da coisa era que, por sob a capa de luta contra o imperialismo nós podíamos fazer

alguns acordes bem legais. Por exemplo, rock n´ roll ou blues, podiam vir mascarados

sob o tema canções dos negros americanos por seus direitos. Baladas Country, e até

certo ponto o rockabilly, podia vir sob o escopo de canções de fazendeiros e da gente comum da América (de novo, nessa pegada de direitos e coisa e tal...) [Tradução do

inglês e grifos nossos].

Ou seja, se nas décadas seguintes, durante a Glasnost (época do relato acima descrito,

já durante as reformas do governo de Mikhail Gorbachev, nos anos 1980), o escopo de temáticas

nacionalistas e dos trabalhadores, ou contra imperialistas, pudesse emprestar tonalidade

condescendente com o manifesto contra cultural do rock e suas consequências, essa prática já

daria indícios de existência com outro viés: no complicado período de recrudescimento da

censura e repressão sob Brejnev, nos anos 1960-70, ela seria utilizada sob um alarde de – falsa

– tolerância a constituir – verdadeiro – ardil para poder atrair possíveis adeptos das causas

consideradas dignas de supervisão, engendrando, primeiramente, localizá-los e identificá-los, e

num momento seguinte, apanhá-los, registrá-los e puni-los.

A agência local dos atores soviéticos em lidar com tais circunstâncias restritivas, como

outrora haviam feito ao criar a partir da disseminação de gravadores domésticos de música

(magnitofons), sob a abertura consumista de Kruschev, uma magnittofonnaia kul´tura (cultura

de compartilhamento e reprodução de material fonográfico, citados em CUSHMAN, 1995; p.40

e em PAPHIDES, 2015), burlando a fiscalização local e a carestia de materiais fonográficos

estrangeiros no mercado da União Soviética, seria espelhada tal agência na circunstância desse

movimento hippie vivenciado, através da criação de uma rede de correspondência e

solidariedade dentre seus indivíduos, facilitando a instalação de seus integrantes em cidades

vizinhas, durante deslocamentos, ou por conta de perseguições e encarceramentos (que por

vezes, levariam indivíduos provenientes de uma localidade, para outra muito distante).

Essa rede de amparo mútuo fortaleceria os laços entre os adeptos do movimento e

permitiria, mesmo sub-repticiamente, a sobrevivência de seu manifesto e a perpetuação da

iconografia, músicas, símbolos e outras produções culturais desse nicho ao longo de toda

duração posterior do regime soviético. Os hippies soviéticos estariam ligados em origem, ao

surgimento do rock local, mas figurariam em outra dimensão de atitude, mais voltada ao

pacifismo e essas experiências de peregrinação, meditação e retiro e menos à questão da

guerrilha cultural empreendida por seus fraternos de contracultura. No entanto, o mundo das

160

coisas etéreas e transcendentais, embora um ideal de vida teria de se ancorar na estrutura de

possibilidades factuais, como a dessa intrincada rede de solidariedade dos adeptos: encontrada

entre indivíduos propriamente hippies, mas também, na solidariedade da comunidade rock

soviética. Esse senso de comunidade (ou communitas), dos hippies e do próprio séquito de

adeptos do rock locais, é descrito com o conceito de comunidade eletiva dentro da modernidade

socialista industrial, que segundo Caillois (apud CUSHMAN, 1995; p. 166):

É uma comunidade a qual tem suas origens e se estrutura unida por um sentimento

comum de desilusão com o senso dominante de sagrado, e conversivamente, une-se

em torno de uma alternativa e compartilha essa definição e senso de sacralidade na

qual é articulado um modo específico de vida.

Esse sagrado pode ser entendido como algo esotérico, qual o apresentado, mas também

a recuperação, em torno da música, de um sentido de encanto nessa sociedade. Tal senso se

mistura ao conceito de cultura enquanto resposta à vida, encontrado em WILLIAMS (Cultura

e Sociedade, 1969; p. 3), no qual o linguista galês evidencia a atitude desencadeada em

determinadas manifestações de arte e cultura, como um produto e forma de

enfrentamento/consequência de pressões e movimentos desencadeados pelo compasso social,

político e de outras manifestações culturais. Nessa jornada do etéreo e do transcendental

experimentado pela juventude e vanguarda artística local, e considerando o proposto pelo

referido autor, outra característica singular do processo de russificação/sovietização do rock, a

qual cabe ser ressaltada, seria a presença, por essa verve letrada dos seus protagonistas, do

mesclamento de sua temática com a literatura. Principalmente, no campo da poesia: Yuri

Schevchuk, falaria dessa importante distinção causada pela música quando baseada num

princípio de poesia pura (kruto; krutaia), e quando mero produto do desdobrar do enfrentamento

diário da realidade (CUSHMAN, 1995; p. 168). Para ele, a música, consoante uma expressão

poética, seria a única forma de preservar-se ao fazer a arte, sem se deixar mergulhar no abismo

de se tornar como aqueles que pela música, se esperaria afastar. Deste modo, por exemplo, seria

mais tendente ao conteúdo do rock da comunidade local, como algo legítimo, sacral, uma vez

que a versar sobre conteúdos de poesia, do sublime, do etéreo e sobre temas acerca de questões

da existência, em lugar do circunstancial mundano – discussões essas, muito polêmicas, que se

relacionariam fundamentalmente ao posicionamento do movimento em relação à questão

política, que aqui situadas ao final do trabalho.

Insistindo neste ponto, o músico citado, Schevchuk, enfatizaria esse apelo poético –

considerado a marca do rock local, menos político do que um observador Ocidental esperaria –

no papel preponderante às composições do estilo, do uso e presença de diferentes fontes

161

poéticas, incluindo desde literatos e poetisas locais, como Leon Tolstoi e Olga Akhmadullina,

até ícones da música barda russa contemporânea, como Bulat Okudzhava e Vladimir Visotsky

(definidos pelo cantor como esteio da chamada ‘música bandida’/ blatnaia muzyka;

CUSHMAN, 1995; p. 74). Também em Marochkin (2011a), encontra-se mais evidências desse

sincretismo cultural do rock soviético, entre o poético e o material, etéreo e marginal, segundo

a observação local:

Ou talvez o rock – seja Pushkin243? É o que afirma Roman Suslov, líder da "Polited

Reffusal244". De fato, no crisol do rock perekipeli [no cadinho do rock se

misturavam]245blues, na música boogie-woogie dos caipiras americanos, na tradição

sinfônica européia, na raga indiana, na música cigana, nas danças celtas pagãs e até

na dança russa! E aconteceu que toda essa mistura de tradições européias e africanas

no século XX voltou à Europa, dando vida à música folclórica no Velho Mundo, que

parecia ter evoluído nessa época em uma exposição de museu!! [Tradução do inglês

e grifos nossos].

E a poesia, corolário da presença de uma importante verve literária local, abriria

possibilidade à busca por outras literaturas como fonte de inspiração, fazendo o produto dessa

composição rockeira, tanto mais, sublime. Reincidente, isso seria algo que também percebido

na fala de outros músicos, como o guitarrista Viktor (citado em CUSHMAN, 1995; p. 53), o

qual relataria influências inusitadas de outras fontes para sua gramática melódica e de

composições: as obras da literatura estadunidense de Ambrose Bierce, Edgar Allan Poe e

Flannery O´Connor, além de elementos próprios da corrente literária do existencialismo alemão

– e todas essas, tidas como influências que acreditava mais adaptáveis à (sua visão de)

transposição de uma sonoridade do rock local. Outro importante relato, é o de Boris

Grebenschishcov, músico que tido por muitos, como baluarte poeta e precursor do movimento

do rock underground soviético (líder da banda Akvarium), e argumentaria já no seguinte

sentido – seu muito próprio jeito de interpretar, poeticamente, a função do rock como matriz de

um sentimento – em Marochkin (2011a):

Do que seja o rock ... ele é como um centro (não, não é como, ele é o centro) de que

se extrai sua energia e é a estrutura do núcleo central, a energia da luz. Rock – é uma

forma, a forma original, e que nunca parou de se conectar e conectar esses ou outros

canais – os de outras gerações, e aqueles e outros setores – mas sempre sendo ele,

sempre, o principal. Ou seja, é algo que existe apenas: energia [energia] natural, como,

por exemplo, o sol, que não pode sair nem ir, nem rolar, ser apenas para esta geração

e não para a próxima. É uma coisa eterna, eterna e absoluta! "...[Tradução do inglês e

grifos nossos].

243Famoso literato russo, cuja literatura compreenderia prosa e poesia, sobre temas do cotidiano e conflitos

existenciais, fisionomizados na vivência de Moscou e São Petersburgo, ambientes de vida e obra do autor, ao final

do século XVII e princípio do XIX. 244 Importante banda russo-soviética, surgida em Moscou nos anos 1980. 245 Crisol: cadinho; perikipeli: palavra russa para ferver, cozinhar, misturar;

162

Para os músicos locais, haveria algo difícil de explicar no rock, que pela definição local,

não poderia ser aproximado de nada que não fosse uma forma de impulso, ação de rompante,

uma energia (energiia, no termo russo transliterado). Essa energiia, como fora lá atrás com os

literatos do século XIX, quando se transformara em agitki (GAINES, 1995)246 e fizera eclodir

em manifestações políticas revolucionárias, faria agora nesse momento, o papel de ir

transcender um cenário pouco encantador e claustrofóbico, mostrado como adorável aurora

cultural, mas vivenciado com olhares de incerteza pelos habitantes locais. Como um mundo

que se parecia maior olhando da atmosfera das conquistas espaciais, e no plano da Terra, ficava

cada vez mais distante dessa grandiosidade, o rock migraria ao longo da década seguinte (1970),

por questões criativas e de produção, do cenário moscovita de sua primeira fase, para a criação

progressiva e experimental à capital da cultura São Petersburgo/Leningrado – se transformando,

qual a metáfora de sua partida, em um elemento que fugia do controle estatal, transitando sutil

ao embate político e paulatinamente, dotando-se de mecanismos próprios de estabelecimento

tanto de seu caráter, quanto de sua realização, consagração e disseminação. Nisso dos

mecanismos, a transformação não seria tanto referente a esses, que como visto, o tornavam

dependente do fator objetivo do aparato, mas aqueles mais humanos, subjetivos, dependentes

apenas de seus protagonistas e em postura de repúdio à conformidade estrutural.

O rock seria, também ele, segundo tais considerações, algo a funcionar como uma

experiência de retiro, não apenas corporal), mas mental (através da poesia) e social, no sentido

de fuga à atmosfera política ubíqua dessa sociedade moderna industrial e planificada. Também

seria o rock, uma experiência a demonstrar que mais do que a analogia de uma cortina-de-ferro,

essa que uma redoma a recobrir beligerante e ideologicamente seus integrantes sociais,

coubesse o lugar de outra metáfora: a de membrana celular, considerando a modernidade

socialista como uma entidade viva, dotada de gradientes de concentração a possibilitar ou

impedir entradas de elementos exógenos, mas sem a concretude de algo inanimado e sim, com

a fluidez e dinamismo de um organismo vivo, onde cada uma de suas organelas seriam seus

atores locais com suas atitudes de organização dentro dessa homeostase (funcionamento) social.

246Referência ao conceito empregado pelo diretor soviético Sergei Eisenstein (1898-1948), que ao dissertar sobre

os elementos de cativação promovidos pela linguagem cinematográfica, ressaltava a importância de se

obter/insuflar da/na plateia um agitki, terminologia russa para agitação, fervor, impulso (de agitatsi, agitar). Com

isso, buscava encerrar a essência do engajamento através da arte veiculada, que por sua exibição ao público,

conforme uma narrativa cativante e orquestrada, conseguisse passar energia, impulso e atitude a que a plateia

busca-se manifestar a partir de seus exemplos, uma tentativa de concretizá-la na vida real. Tal conceito estaria

ligado à uma tradição politizada e revolucionária (desencadeada por esse sentimento, agitki) e aos objetivos que a

cultura soviética possuía, principalmente no seu início, de educar e politizar as massas, através do conteúdo das

produções artísticas locais.

163

Atores esses, que constituiriam o rock da URSS, não como na tradição do encare

Ocidental mas algo a ser visto da perspectiva de uma forma de arte singular, de continuidade

direta de uma produção cultural soviética progressista aliada à um assoalho de tradição, presente

em suas manifestações residuais de cultura (conforme WILLIAMS, 1987), a migrar

paulatinamente, do contato com o novo, para a construção de sofisticadas manifestações de arte.

Nesse sentido, mesclando muito das considerações descritas acima acerca do fenômeno do rock

na circunstância local:

Nos primeiros anos de nossa comunidade de música rock, fluia um único fluxo – o

big-bit. [...] No entanto, eles tinham um problema: trazer aos amantes da música o som exato de suas músicas favoritas. Portanto, o nível de "inclinação" de um músico

era medido pela precisão com que ele copiava o original. No final dos anos 60, quando

até à nossa comunidade de rock surgiu a idéia hippie e sons psicodélicos, a

simplicidade elegante do big-bit - big-beat - deu lugar a composições rítmicas

complexas, os solos instrumentais passaram à distorção conceitual detalhada, rica

coloração de timbre. [...] Nossos rockeiros começaram a escrever suas próprias

músicas. Mas, logo que isso aconteceu, manifestou-se a memória do sangue e das

passagens melódicas nacionais penetradas na nova música. Os rockeiros mais

avançados marcharam para experimentos com um som folk. Alexander Lerman,

Alexander Gradskyi, os “Tin Soldiers [Olovyannie Soldatiki]” e a “Mosaic” já

estariam nos anos 60, intuitivamente sentindo a tendência correta, tentando combinar

rock com melodias folclóricas tradicionais russas e poesia clássica russa. [Trad. do

inglês e grifos nossos]247

Emprestando das palavras de Marochkin, como uma memória do sangue: haveria a

poiésis (MATURANA; VARELA, 1995)248 da russificação do elemento estrangeiro na poesia,

tradição, localidade, cultura, trajetória, música e reconfiguração – passando pelo rock

psicodélico e o hippie, nesse cenário complexo. Todos esses argumentos a ilustrar a

consideração de peculiares elementos que como numa membrana, seriam muitos a mais do que

se presumiria esses oriundos de uma ‘fisionomia monolítica’ propagandeada em discursos

oficiais, resultantes em um suposto ‘isolamento’ – como pressupunha o cenário binário da

política na Guerra Fria. Elementos esses, de cultura e contracultura, que haveriam de passar e

passariam, deixando marcas importantes na caracterização da compreensão acerca dessa

sociedade e seu período. Produto dessa circunstância, situada em um cenário muito mais

conectado aos acontecimentos do globo, do que se poderia supor, a URSS e suas evidências de

rock soviético entrariam em uma nova fase no final da década 1960, contra espinhosas e

perigosas progressões, também de fase, da conjuntura social política, econômica e da artimanha

estrutural de repressão, controle e cooptação.

247MAROCHKIN, Vladimir. 2011a. Op. Cit. 248MATURANA, Humberto; VARELA, Franscisco. A Árvore do Conhecimento: As bases biológicas do

entendimento humano. Trad. Jonas Pereira dos Santos. São Paulo: Editorial Psy II. 1995

164

Retomar-se-á dessas discussões acerca de relações de transição, conflitos entre

privilegiados e desprovidos no cenário musical local, e do suporte necessário à prática do rock

soviético, durante os capítulos que abordarão o ВИА (VIA), as trajetórias de músicos em

profissionalização, os cenários culturais estatal e subterrâneo (bifurcação), e as apresentações

de cada cenário (televisivas x v kukhne). Elementos esses, que na terceira parte, destinada ao

encerramento de toda essa análise do trabalho, se pretende esmiuçar traçando uma fisionomia

mais conclusivamente composta do rock local.

Por ora, como advertido anteriormente (ao final do subcapítulo The Rockets and the

Rock, que remitiu superficialmente as principais bandas do período 1961-70 da URSS), se passa

à análise de fatores e ponderações de cunho político, que tanto quanto ao fenômeno em estudo

neste trabalho – localizado na circunstância do Degelo de Kruschev – contribuiriam a repercutir

na configuração de seu surgimento, bem como na reconfiguração da sociedade local durante

esse período, delineado por mudanças ocasionadas pelo aparato e sua recepção pelo povo, bem

como da resposta popular às transformações no cenário social e político em transição. Mais do

que um mero capricho, colocar esses fatores em complemento à narrativa de entendimento do

rock soviético, colabora a colocá-lo em perspectiva, situando-o no espaço dos acontecimentos

de sua estrutura conjuntural, e a tomar-lhe, portanto, necessariamente, como produto possível

e agente interferente dentro dessa circunstância.

2.2 1960'S LADO B: O REVERSO DA MEDALHA – OU OS LIMITES DO PROCESSO

(CONTRA) CULTURAL

Conforme aludido anteriormente, relevante retomar-se a cronologia desse enredo em

que o rock soviético principia: no período de 1960 a 1970, cenário no qual muitas coisas

mudariam na URSS, com a transição de governo, em 1964, do mandatário Nikita Kruschev

para a gestão de Leonid Brejnev – consoante a estratégia dessa narrativa se organize em

simultaneidade dos eventos do rock na URSS com seu momento político.

Saliente-se, que embora se aproveitando de uma onda de favoritismo popular, com

grande apelo de atitudes modernas, tanto na tecnologia e cultura, quanto na administração –

para recordar, o sucesso dos Festivais da Juventude e aberturas consumistas locais, bem como

o sucesso tecnológico-militar da campanha aeroespacial; além da estabilização econômica sob

comando do outrora premier, Alexei Kosygin – Kruschev não seria entusiasta da chamada

invasão Ocidental e nem apreciador ou consumidor de sua estilística artística (frise-se, gêneros

musicais dela provenientes, como rock ou jazz), a todo o tempo, buscando deixar isto claro e

165

demarcando sua posição de ojeriza no tocante a esta atitude frívola e juvenil – nas palavras do

secretário-geral soviético, em comento à possível apreciação pelo estilo Ocidental de melodia

(1961): Nós terminantemente rechaçamos esta música cacofônica. Esse tipo de lixo não pode

servir ao nosso povo como ferramenta ideológica.249.

2.2.1 Amigáveis Informantes: Os Druzhinniki e a frieza do Degelo

Stáryi Drug Lutche Novhik Dvukh

[Um velho amigo vale mais que dois recém conhecidos]

Provérbio russo

Em meio ao cenário político conturbado um posicionamento particular do Secretário-

Geral em desaprovação ao mote Ocidental, não seria de suficiente convencimento aos olhos das

autoridades, sendo a figura de Kruschev com sua gestão, vista pelo partido como capitulação

dos preceitos socialistas ortodoxos – pela ala mais rígida – e extravagante, reformista – pela ala

moderada.

Afinal, se ele se indispunha com tais manifestações, tinha sido ele próprio a abrir o

precedente para tal, com suas atitudes de autorização às novas modalidades de circulação

cultural e comercial locais, bem como, com seu estreitamento de relações diplomáticas com

países do Ocidente. Tendo de se equilibrar entre sua marca de gestão distanciada do estilo da

de Stálin e simultaneamente, tendo de apresentar uma coerência com a observância do

Comunismo, Kruschev se veria necessitado a tomar medidas que mitigassem em parte, suas

tomadas de postura iniciais – incluindo-se nisso, um substancial retrocesso da atmosfera de

aurora cultural e jovialidade popular. Nesse sentido, especificamente, considerando-se a

questão do aumento de circulação de consumíveis de música do gênero Ocidental, decidiria por

estabelecer para além da fiscalização já existente (do Komsomol e das demais autoridades,

incluindo-se a KGB), uma espécie de brigada popular dos bons costumes – sob o nome de

druzhinniki (os amigáveis ou a irmandade; do russo, druga: irmão; amigo; amigável250). Essa

brigada popular levaria, portanto, a que fosse promovida uma campanha estatal no início da

249SCHWARZ, Boris. Music And Musical Life In Soviet Russia, 1917-1970. New York: New York Norton,

1972; pp. 416-439. 250Na Idade Média (sécs. XII e XIII), durante a unificação do chamado Canato do Rus e Kiev (quando as

populações da região eslava hoje correspondente à Rússia, Ucrânia e Geórgia estavam dispostas em grupamentos

militares semelhantes à cidades-estado), os druzhinniki eram o séquito que acompanhava os líderes

militares/administrativos, como uma espécie de guarda pretoriana e grupo de asseclas de confiança. Fonte:

SCHILLING, 2018

166

década de 1960251 para repressão do comportamento juvenil subversivo. Ainda que não da

maneira hostil como poderia ter sido outrora, mas marcada pela realização de documentários e

cartilhas que seriam produzidos para desincentivar o apego a filosofia de vida Ocidental (como

a dos Stilyagi) e com apelos de reeducar/reengajar os jovens252.

Uma iniciativa estatal estaria em curso e em iminente rota de colisão com a chegada do

rock na URSS – tema do capítulo a seguir – e entendê-la em detalhes, passaria por conhecer o

proceder de sua agenda, seu método e seu grupo. Em revelador registro das ações desse grupo

– Druzhinniki – aqui trazido em exemplar de sua atitude enquanto brigada civil de policiamento

para o aparato, providencial a análise de dois trechos (um de 1 min. 45 sec. e outro de 0:41 sec.,

respectivamente) do filmete estatal Shadows On The Sidewalks, de 1960 (em russo, traduzido

ao inglês e disponível no site Seventeen Moments of Soviet History), cuja transcrição se

procede a seguir:

[0:02]-Nós garantimos a ordem pública porque queremos nossas ruas para se viver como se deve. Nós, que atendemos por um simples nome: druzhinniki. [0:12]-Nós

mesmos somos pessoas dessa rua. Somos os mesmos trabalhadores, inventores,

estudantes, pais e amantes. [0:37]-Nós conhecemos nossa rua pelos rostos, apesar de

estarmos vendo alguns desses rostos pela primeira vez. [0:54]-Nós não costumamos

apenas ficar fitando as sombras. Porque você não encontrará nas sombras esses

pensamentos e sentimentos, que você vê nos rostos ao redor de nós. [1:06] – D-

Druzh!? – Druzh!? – Druzhnik !? – DRUZHINNIKI. Os guardiões do povo! – Não,

eu não o entendo. Eu penso que você não saiba o que está acontecendo aqui... [1:16]-

Nada disso, nós sabemos o que está acontecendo. Nós sabemos o porquê das

celebrações joviais a que nossos bons vizinhos se apressam em chegar. [1:29]-Como

sabemos sobre estes arruaceiros em estado lamentável, tomando lugar atrás da cerca

do local onde se vende a cerveja. [Legendas do filme, traduzidas do inglês]253

251A bem da verdade, a iniciativa dos Druzhnniki surgiria a partir do decreto partidário de 02 de maio de 1959,

onde Kruschev estabeleceria um organograma de atividades e funções voltadas à administração em parceria, entre

aparato e setores civis, criando destacamentos populares de voluntários, incumbidos das funções de segurança,

vigilância, fiscalização, e até mesmo julgamentos (conforme decreto soviético de 03 de julho de 1961). Tal escopo,

bem como a consecução de mais corpos de voluntários durante sua gestão, viria ganhando força logo no início da

década de 1960, com a promulgação do Código Moral do Construtor do Comunismo (apresentado no 22º

Congresso do Partido) e do decreto Anti-Parasitismo, ambos de 1961. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1961 - Anti-

parasite Law. In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003).

Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/anti-parasite-law/; Acesso em: 03/07/2020 252Shadows On The Sidewalks. Documentário disponível a partir do acervo do Arquivo Estatal da Rússia de

Filme e Fotografia de Krasnoiarsk. Ano de realização: 1960. Origem: URSS. Nesse filme, é possível observar-se

a fisionomia dos integrantes do movimento stilyagi, posto que os mesmos sejam censurados e repreendidos durante o exibido no conteúdo áudio-visual. Realizado com intuito estatal de contrapropaganda ao movimento apreciador

de cultura Ocidental e em ação de reeducação juvenil nos ideais partidários e nacionalistas. As tomadas de câmera,

a taciturna expressão dos jovens e os dizeres, traduzidos, de admoestação negativa dos jovens, apontam em que

situação se encontrava o modo de realização do rock russo: tolerado, mas não incentivado, perseguido, mas não

eliminado. Disponível em: Seventy Shades of The Soviet History. Em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-

goesrussian/rock-goes-russian-video/shadows-on-the-sidewalks-1960/ 253Shadows On The Sidewalks. 1 min. 42 sec. 1960. União Soviética. Russian State Film & Photo Archive at

Krasnoiarsk. Rússia. 2000. In: Seventeen Moments In Soviet History: An online archive of primary sources.

1961: Anti-parasite Law; Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/anti-parasite-law/shadows-on-the-

sidewalks-1960/; Acesso em: 03/07/2020

167

O excerto em destaque é um filme em preto e branco, falado e musicado, com

acompanhamento por um narrador (do qual as legendas são transcritas, e provavelmente, algum

oficial do aparato, do setor de audiovisual), falando em idioma russo, de maneira eloquente e

objetiva. Tomadas diurnas, em sequência, de uma grande cidade, com seus prédios e tráfego

são mostradas, demonstrando uma realidade soviética urbana e progressista. Embora à porção

soviética, em muitos detalhes, o cenário remete a uma típica fisionomia urbana Ocidental à

década de 1950-60. A população é mostrada, com ênfase, pessoas bem vestidas, homens e

mulheres, a caminho do trabalho ou em deslocamento, trajando vestes de meia-estação (casacos

gabardine e chapéus, para os homens; vestidos e lenços, adornando as mulheres). De repente,

uma figura se distingue na multidão: um homem alto, de boa aparência, com casaco de chuva,

um chapéu ‘Fedora’ e óculos, observa a corrente humana. Leva ao braço uma braçadeira, e nela,

palidamente os dizeres: Druzhinniki. Esse homem se mostra atento e solícito, sempre

observador ao fluxo de pessoas e atendendo a quem lhe pede informações (como um menino,

de boné e casaco, que lhe vem pedir certa orientação e a recebe com o apontamento de uma

direção qualquer). A música de fundo é orquestrada e faz remeter a um dia cotidiano, agradável

e ordeiro naquela cidade, sendo somente interrompida, pelas entradas de voz do narrador.

Num momento clímax do trecho observado (0:54), a canção fica distorcida, parece

cômica, e acompanha a tomada de um indivíduo jovem, em roupas de trabalho, passeando

trôpego pela rua (provavelmente, embriagado), até ser detido por um jovem brigadista, de

braçadeira, com cabelos curtos e capote, o qual interrompe a caminhada do jovem ébrio e lhe

interpela para uma inquisição. Acompanham os dizeres: - Nós não costumamos apenas ficar

fitando as sombras. Porque você não encontrará nas sombras esses pensamentos e sentimentos,

que você vê nos rostos ao redor de nós. A mensagem do narrador dá a entender que o caráter

de aparição de semelhante figura (um ébrio à luz do dia) naquela circunstância, é algo que

destoa e fica inadequado ao padrão habitual e frequente daquela população. Bem como tenta

mostrar, que a ação dos Druzhinniki não se trata de perseguição sistemática das pessoas que lá

transitem, mas, a fiscalização setorial e periódica de certos tipos inadequados. Em seguida, com

a mesma sonoridade distorcida (cômica), faz-se pano-de-fundo ao depoimento de um homem

maduro, visivelmente alterado (sem ser possível saber se trata-se de uma atuação ou da

abordagem real à um embriagado), com roupas amarfanhadas, desalinhado e de barba por fazer,

que balbucia as palavras – Druzh!? – Druzh!? – Druzhinnik!? Que parece confuso ao ser

interpelado por um dos integrantes da brigada civil (o que evidencia ao tentar responder

tropeçando nas palavras). Uma voz direta lhe reporta: – DRUZHINNIKI. Os guardiões do povo!

168

(muito provavelmente, um dos integrantes dessa brigada, a lhe interrogar sobre seu proceder).

Ao que o transeunte embriagado responde: – Não, eu não o entendo. Eu penso que você não

saiba o que está acontecendo aqui – tentando sem sucesso, justificar-se em sua ação, aturdido

pela abordagem e completamente entregue ao escrutínio do seu interpelador (e nesse sentido, a

narrativa deixa passar a noção de implacabilidade dos brigadistas, aos quais, não se cabe

mentir).

Nisso, a câmera corta na direção de uma tomada externa, onde jovens bem-vestidos, de

cabelos curtos e sorridentes passeiam (alguns aparentam ter a braçadeira), acompanhados pelo

narrador nos seguintes dizeres: – Nada disso, nós sabemos o que está acontecendo. Nós

sabemos o porquê das boas celebrações a que nossos bons vizinhos se apressam em chegar.

Essa fala deixa passar a impressão de certa ubiquidade do aparato, como se aqueles indivíduos

soubessem em detalhes cada atitude e cada funcionamento da área coberta por sua vigilância.

Também transparece uma aparente petulância destes brigadistas, como se fossem cidadãos

melhores, mais conscientes que os demais, e por isso, destacados para a presente função.

Finalmente, uma tomada cobre um local com indivíduos bebericando em copos

(novamente, sem ser possível distinguir se atores ou flagrantes reais), em plena luz do dia, num

grupo (composto de desleixados, extravagantes, reunidos taciturnamente, com vestes

desalinhadas e trajando gorros) ao redor de uma sacola, acompanhada da seguinte fala: – Como

sabemos dos lamentáveis arruaceiros tomando lugar por detrás da cerca do local onde se

vende a cerveja. Nisso, a câmera vai acompanhando a breve fuga de alguns deles (que parecem

notar os observadores da brigada), enquanto são pegos por esses brigadistas e conduzidos a um

escritório – pouco antes de o filmete se encerrar – em cuja porta constam, numa placa de metal,

os seguintes dizeres: Dabrovnoy Narodnoy Druzhnyi Po Diriake Obchechstivenoggo Poriadka

[transliteração do cirílico: добровольной народной дружный по дириаке общественного

порядка] – ou Escritório de Voluntários Populares Amigáveis de acordo com a ordem

comunitária [Tradução minha] (aparente sede local da brigada Druzhnniki acompanhada na

filmagem).

A linguagem visual é bastante forçada – o que leva refletir, inconclusivamente, acerca

do próprio caráter do filmete, se de sua natureza, trataria-se de tomadas de abordagens reais

(filme documental), reunidas em forma de produção, ou de uma produção puramente dirigida

(ficção realista), didaticamente orquestrada, conduzida pelo aparato estatal – é de uma forma

tão literalmente maniqueísta (boas pessoas, boa aparência; más condutas, pessoas

169

desalinhadas), que perfaz algo cômico ao fundo de sua interpretação. Entretanto, o didatismo e

a expressividade de valores em códigos visuais/sonoros facilmente acessíveis, bem como

conteúdos educativos (de certo e errado e modos de conduta e padrão fisionômico), também

seriam um traço de herdade presente da trajetória do movimento do realismo concretista. Cujo

objetivo, conforme abordado outrora, seria um vetor educativo com tradução fiel e didática dos

preceitos socialistas, em veículo de arte, num modo e linguagem amplamente acessíveis a

quaisquer dentre os distintos tipos de cidadãos soviéticos.

Não obstante, tornando-se ao momento de existência dessa brigada popular, Druzhnniki,

cabe evidenciar que viria na esteira de uma série de medidas tomadas por Kruschev, no intuito

de controlar as atividades populares, sem arranhar sua, aparente, postura simpática. Sutil

estratagema: de forma distinta da do seu antecessor, Kruschev tornaria a União Soviética um

Estado mais vigiado e, em certo ponto, controlador do que o antecedente (HORNSBY, 2013),

com a distinção de uma metodologia de trabalho.

Para começar, tal descentralização das funções estatais para setores populares, como no

caso dos Druzhinikki, seria uma estratégia do mandatário de manter sua reputação menos

repressora em relação a do anterior (Stálin), mas simultaneamente, cooptando de seu bom apelo

popular, o protagonismo de funções, em meio ao povo, da manutenção do Socialismo em seus

preceitos – infiltrando e desse modo, pulverizando a função fiscalizadora/repressora entre

populares da URSS. Ora, fosse uma autoridade da KGB a tomar tal função, diretamente e de

maneira truculenta, seu governo de bom-mocismo ficaria descaracterizado. No entanto, ao

utilizar-se de gente do povo, não diretamente ligada ao aparato, tais ações ficavam como de

iniciativa orgânica da própria população, cumprindo-se a finalidade pretendida pelo Estado, e

dando oportunidade de protagonismo civil nesse policiamento para uma parcela conservadora

do povo. A qual, extremamente grata por ter uma oportunidade de devolver a Kruschev, com

seu zelo pelo Socialismo, às benesses angariadas por sua gestão menos severa que a do período

stalinista.

Os Druzhnniki ganhariam ainda mais força a partir do 22º Congresso do PCUS, em

1961, com a proposição do Código Moral do Construtor do Comunismo e do decreto Anti-

Parasitismo. No primeiro, o Código do Construtor do Comunismo, ficariam estabelecidas as

normas de proceder de cada cidadão, com regras simples, totalizando cerca de doze

apontamentos principais, abordando temas em torno de: sexo, família, comportamento, amor,

atitude política e civismo. Como principal tópico, o princípio de lealdade extrema ao

170

Comunismo e a ideologia de submissão da vontade particular ao interesse público, procurando-

se por meio disso, investir a que o povo soviético levasse à sua esfera íntima, não apenas uma

relação fisiológica aceitável do aparato, mas ainda, fizesse o máximo enquanto esforço

individual pela supressão de interesses privados em nome de uma cordialidade coletiva. Em

outras palavras: um livro de cabeceira de como se comportar, pública e privadamente,

administrando a adequação harmônica de interesses domésticos (individuais) e públicos. Não

obstante, para fazer valer tais predicados, compunha-se uma rede de cooperação, a contar com

a União do Comércio, o Komsomol, os Druzhnikki, Sindicatos, setores partidários, instituições

de ensino e demais entidades, estatais e civis. A medida vinha acompanhada de uma série de

enfatizações de que a individualidade não fosse apenas controlada, mas suprimida,

paulatinamente em um interesse social. Curiosamente, a estratégia viria em administrar a

distribuição dessa ‘individualidade’ pulverizada como recompensa à sociedade que passava a

se comportar sob a nova etiqueta (respondendo como uma reafirmação de seu compromisso de

obediência ao Estado), oferecendo-lhe ‘alegóricas’ concessões à liberdade individual, tais

como: reestruturação e afastamento paulatino da polícia (KGB) da vida dos cidadãos; facilidade

majorada na aquisição do direito de divórcio; construção de moradias com maior conforto e

adequação de instalação familiar; temas literários e cinematográficos que exploravam a faceta

individual da personalidade, como contribuinte (e não entrave) a cooperação social (doutrina

do herói que cada um pode ser, só depende de você)254.

Pelo segundo ato, Lei Anti-Parasitismo de 1961, ficava estabelecida uma forma de

combate às possíveis violências a que se sujeitavam os trabalhadores na época de Stálin, quanto

à questão laboral. Dificuldades de mudar-se de emprego, poucas permissões de saída e dispensa

compulsória, ficavam atormentando cidadãos e sindicatos ao redor da União Soviética. Embora,

desde o primeiro Plano Quinquenal (1928-1931), já se alardeasse a meta atingida de cem

porcento de aproveitamento do efetivo de trabalho na União Soviética – algo que só se viria

concretizar ao longo da década seguinte (SIEGELBAUM, 2003). Por esse modo, Kruschev

previa que a lei vinha reforçar o compromisso com o trabalho duro e a assiduidade, mas

simultaneamente, tornando as garantias pleiteadas uma realidade menos complicada que a do

cenário da gestão anterior. As reformas laborais começariam desde o ano de 1955 e se

consubstanciariam em decreto apenas no começo da década (1961). Como visto no depoimento

254FIELD, Deborah. 1961 - Moral Code Of The Builder Of The Communism. In: Seventeen Moments of Soviet

History: An online archive of primary sources (2003) Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-

2/moral-code-of-the-builder-of-communism/; Acesso em: 03/07/2020

171

de um dos músicos entrevistados por Cushman (1995), o crime de vadiagem era algo bastante

grave na sociedade soviética e ter consigo a carteira de trabalho (trudovaia knidzhka), tornava-

se um comportamento obrigatório, a fim de se conferir se os dias de jornada estavam sendo

cumpridos e se a frequência de local e comparecimento batiam com a função de cada cidadão

– e conforme observado, essa tradição se reforçaria durante o Degelo.

Desdobramento dessa linha de pensamento que culminaria nas reformas, a atuação dos

Druzhnniki seria voltada a monitorar, principalmente, bêbados eventuais, arruaceiros, vadios

contumazes e todo e qualquer evadido do sistema, passível de ser enquadrado na categoria de

parasita. No entanto, conforme Hornsby (2013), esse escopo de combate à inadequação ao

trabalho, seria utilizado com finalidades muito amplas, rumo a enquadrar dissidentes políticos

e outros indivíduos indesejáveis. Assim como observado por Siegelbaum (2003), de que o

Código de Conduta Moral do Construtor do Comunismo encontraria obstáculos em seu intuito

de diminuir o ‘individualismo’255 na sociedade soviética ao fortalecer-se seu uso civil em

práticas de próprio benefício (ampliando atitudes individualistas dos cidadãos, ao invés de

dissuadi-las), a Lei Anti Parasitária, serviria, a uma distorção de proporções perigosas, a qual

mais se adequaria a caracteres obscuros dos planos de Kruschev: a progressiva intrusão do

Estado no cotidiano popular e o uso de medidas alternativas de apenamento e repressão, com

uma face aceitável à agenda do Degelo.

Como anunciado em seu discurso de maio de 1959 (publicado no Pravda), com a

seguinte declaração: Àqueles que clamam oposição ao Comunismo [...] inclusive agora,

podemos assegurar que exista quem contra ele lute [...] Só podemos dizer uma coisa acerca

dessas pessoas: seu estado mental não é normal (HORNSBY, 2013; p. 240) – a literalidade (ou

não) da metáfora do mandatário haveria de ser observada.

2.2.2 Uma Forma Muito Interessante de Psicose: o raio-x de uma abordagem nada

amigável – entre a voz de um bardo e o eco do manicômio estatal

Nascido em 1957, se revelara desde cedo dotado de uma inteligência descomunal, constituindo

precocemente um prodígio [...] Fôra internado diversas vezes desde o sétimo ano por seu

comportamento excêntrico e fora expulso do instituto superior por aproximar-se de literatura ilegal

[...] O tratamento para os indivíduos considerados esquizofrênicos, à base de injeções de insulina e a alimentação pesada, administrado pelas instituições estatais de tratamento psiquiátrico soviéticas,

embotava a mente dos indivíduos e estes viviam a ver a vida em preto-e-branco, a partir daí. No

entanto, com ele não funcionara, após sua derradeira internação, próximo ao início dos anos 1980,

saíra em peregrinação e se refugiara nas florestas da Carélia.

255Como visto, o individualismo seria um gargalo na sociedade soviética: por distintas óticas de referencial, visto

pelas autoridades da administração como presente e crescente e pelos indivíduos, cidadãos, como diminuto e quase

imperceptível.

172

Sergey Vasilenko (2020), em relato acerca de Alexandr S., um dissidente local e expoente asceta soviético dos anos 1970, praticante de meditação indiana e pregador religioso cristão, enquadrado em

distintos momentos com suposto diagnóstico de esquizofrenia

Quando lá atrás, ao citar-se o surgimento do rock na União Soviética, fez-se a menção

precursora do grupo Revengers, na Letônia, logo no princípio da década (1961), por fluidez da

narrativa, optou-se por não mencionar o conturbado contexto político e social que se

desenrolava no cenário local. Como visto, desde o final da década de 1950, embora o estado

sob Kruschev se encaminhasse para as características mais suavizadoras do Degelo, haveria a

necessidade de reafirmar sua imagem perante seu coletivo político diretivo e ainda, manter-se

a respeitabilidade de seu governo diante de mais de vinte nações. A tomada de medidas

descentralizadoras de tarefas fiscalizadoras/policiais, ora ocupadas pelas militsyia (equivalentes

aos corpos policiais ocidentais, chefiados pelo MVD e posteriormente pela KGB), para

formação de brigadas de cidadãos (Druzhinniki, estabelecido em decreto de 1959), bem como

a atuação de outros grupos nessas atitudes de policiamento civil (como o próprio Komsomol, e

as ligas de comerciantes/união do comércio), colaborariam a fazer uma imagem atenuadora das

iniciativas de coibição e repressão estatais, visto que seriam interpretadas mais como de

iniciativa local, cidadã e menos, francamente, relacionadas ao aparato.

Com esse mesmo intuito, e por volta dessa mesma época, o uso do artigo 58-10 da

Constituição Soviética (sancionado entre 1959 e 1960), referente às diretivas de hospitalização

imediata de pessoas mentalmente perturbadas que constituíssem perigo social256, começaria a

fazer valer com grande substancialidade ao procedimento de monitoramento e persecução de

elementos não assimiláveis à realidade soviética. Conforme retirado da obra Protest, Reform

and Repression in Kruschev ́s Soviet Union (2013; disponível em inglês e aqui traduzida nas

passagens pertinentes), do historiador inglês Robert Hornsby, no capítulo The Application of

Force [Trad. livre: A Aplicação da Força] (pp. 237-52), demonstra-se como foi que a internação

psiquiátrica tornou-se um dos meios mais recorrentes de política punitiva contra dissidentes

durante o período Kruschev (ao lado dos já conhecidos campos de trabalhos forçados e das

prisões).

Nesse sentido, o autor analisa como as diretivas de hospitalização estabelecidas em

1961, dirigidas aos mentalmente perturbados (classificados como perigosos socialmente),

256HORNSBY, Robert. Protest, Reform And Repression in Kruschev Soviet Union. Reino Unido: Cambridge

University. 2013. p. 247

173

continham provisões médicas genéricas o suficiente a permitir um escopo bastante amplo de

justificativa à imediata internação forçada de indivíduos (HORNSBY, 2013; p. 247). Essa

prática, conforme o autor observa, vinha ao encalço da Lei Antiparasitária de Kruschev, e

colocava a noção de parasita social em uma consideração muito vaga, podendo se estender

desde aos já evidenciados evadidos do trabalho, bêbados e arruaceiros, até dissidentes do

sistema político. Para reforçar esse argumento, são citados pelo autor entre outros documentos,

laudos atribuídos durante a década em curso. Um emblemático caso marcaria evidência da

sistemática de punições psiquiátricas por motivo político: o arresto de Yuri Grimm e Petro

Grigorenko, cidadãos soviéticos internados no Hospital Psiquiátrico de Leningrado, em julho

de 1961, após incidentes de protestos e panfletagem contra o governo (com o agravante de uma

atribuição a Kruschev da recriação do culto à personalidade, algo que enfureceria o mandatário,

já temperamental a críticas; HORNSBY, 2013; p. 244). Yuri e Petro, só seriam soltos em 1964,

quando da assunção do novo governo soviético, e estariam ladeados por outros exemplares, que

segundo Hornsby (2013), seriam vítimas desse mesmo enquadramento por circunstâncias

políticas de discordância ao regime – Petr Estaf ́ev (março de 1960), Kasim Minibaev (julho de

1960), Vasili Lopatin (janeiro de 1964), entre outros [p. 241]. O autor salienta ainda, que o

tratamento de dissidentes incluiria em seus motivos, também o caso de jovens evadidos do

serviço militar e até mesmo escritores proeminentes investigados por crimes de opinião ao

período (como Mikhail Maritsa, autor de A Canção Não Cantada [p. 244] e Valery Tarsis, autor

de A Garrafa Azul [p. 241]).

No perfil desses internados, as estatísticas apontariam tratar-se majoritariamente de

sujeitos do sexo masculino (92,7 % dos pacientes com arquivos encontrados), na faixa etária

variante entre 20-35 anos, contendo o período de internação média de cinco anos e meio de

duração e residentes na porção urbana da União Soviética – muitas das características das quais

partilhavam integrantes do próprio movimento do rock soviético, em geral. Embora, como

ressaltado pelo autor, de grande dificuldade a catalogação do material desses arquivos médicos,

sua notória existência seria registrada em obras de outros importantes autores referindo-se ao

regime – como no caso, o relato de experiência do dissidente político soviético Vladimir

Bukovsky, cito anteriormente aqui no trabalho em notas referentes a censura, pelo conteúdo da

obra How To Build a Castle: My Life As A Dissenter, de 1979. Ponderando acerca dessa

questão, o autor refletiria que:

Uma das mais compelidas peças de evidência a sugerir essa alegação de que a

habilitação da prática de internar dissidentes tenha provindo do mais alto escalão, veio

à tona em maio de 1959, quando o Pravda publicou um recente discurso de Kruschev

174

(cujo conteúdo emblemático, foi citado no final do subcapítulo anterior) [p.240]

Sobre essa política em questão, há um ponto mais amplo a ser visto aqui, o de que

possivelmente, o uso punitivo da Psiquiatria tenha oferecido às autoridades como que

uma via colateral para lidar com indivíduos problemáticos: uma forma de conduzir a

repressão política sem ter de fazê-la pala base formal. O uso de diagnósticos médicos,

proveria tudo de uma importante dose de legitimidade, dado que fossem conferidos

por médicos, muito mais do que atribuídos pelo mero aparato penal. De fato, na teoria

ao menos, à imagem exterior, a hospitalização era assim apresentada como uma forma

de terapia e amparo [p. 245] [Tradução e grifo nossos]257.

Considerando-se os argumentos trazidos até aqui, o princípio da década de 1960 na

União Soviética não seria apenas marcado por Gagarin e a Vostok ou da aurora cultural de

novas práticas, seria também o aumento sutil da vigilância em torno de elementos subversivos,

no terreno perigoso da intromissão estatal – do patrulhamento civil à internação psiquiátrica.

Cujo destino incerto àqueles que destoassem dos preceitos do regime vigente poderia ser de

proporções catastróficas. E tudo isso, amparado com arcabouço legal e chancelado pelo birô

político, garantindo assim, a preservação da imagem de amigabilidade relativa à política de

Kruschev. Assim, atentando a essas evidências, torna-se um pouco mais inteligível a análise de

um segundo excerto do filme Shadows On The Sidewalks (1960) – cuja primeira parte da

descrição principiou-se aqui no subcapítulo anterior. Nesse trecho (apresentado a seguir),

observa-se uma abordagem dos druzhinikki em torno de jovens locais supostos

consumidores/disseminadores de cultura musical Ocidental clandestina – onde aparecem

evidências de como se realizavam algumas das estratégias de coibição e repressão à circulação

informal de cultura:

[0:10]-Isto fez mudar a esses jovens os quais trocaram suas escolas pela porta dos

fundos da GUM. É aqui onde eles vendem os produtos de sua própria produção.

[0:20]-Fox Trots em chapas de raio-x, que por seu exemplo levam simultaneamente

gravadas a escassa anatomia de sua pobreza espiritual [0:35] – Hei, Zhenia Gorkum,

o que o mundo lhe parece por através desse estreito buraco de um raio-x de rock

n`roll? [Traduzido do inglês]258

Nesse segundo excerto do filmete estatal produzido no contexto da gestão Kruschev, ao

início da década de 1960, continua-se a cobrir as ações de patrulha e abordagem dos

Druzhinniki, dessa vez, começando a cena com uma reunião de jovens, amealhados em pé na

calçada de uma movimentada rua, em torno de uma escadaria à sombra por sobre cuja soleira

se encontram dispostos alguns materiais. Esses jovens (cinco, do que se pode divulgar na

imagem), aparentam recém ter saído da adolescência, são rapazes e apresentam-se vestidos em

casacos gabardine longos (capotes de chuva), com calças sociais e sapatos, e utilizam cabelos

curtos (pouco mais compridos que os dos integrantes da patrulha civil, mas com alguns

257HORNSBY, 2013. Op. Cit. pp. 240-245 258Shadows On The Sidewalks. Op. Cit.

175

penteados menos formais). A filmagem toda possui as mesmas características anteriormente

citadas (em preto-e-branco, com narração, tomadas em justaposição, etc.), posto tratar-se de

trecho subsequente do mesmo filme já principiado em análise.

Na primeira incursão do narrador no trecho em análise (0:10), a fala começa com o

pronome indicativo isto – Isto fez mudar a esses jovens, os quais trocaram suas escolas pela

entrada dos fundos da GUM ... = referindo-se ao ato perpetrado (venda clandestina) sob a

influência negativa da música Ocidental, onde segue descrevendo que seus jovens protagonistas

ficam localizados nas portas dos fundos das lojas de departamento estatais (GUMs),

aproveitando-se do fluxo de francos consumidores desses locais, para convenientemente,

distribuírem de modo colateral os produtos informais. Os magazines estatais (lojas de

departamentos) representariam durante a vigência do regime socialista, o meio principal de

contato com os chamados bens de consumo, sendo, portanto, àquele momento (e durante toda

a duração da União Soviética), espaços de grande circulação de pessoas nas capitais soviéticas,

aonde as famílias e seus filhos, jovens, iríam adquirir os bens de consumo disponíveis no

mercado local.

A narrativa parece inferir com a observação, de que a música Ocidental viesse a deturpar

o comportamento juvenil ali protagonizado, fazendo migrar da conduta desejável da frequência

escolar a uma atitude decadente de produção clandestina de gêneros musicais ocidentais. O fato

de enfatizar-se o ‘produto de sua própria produção’, não apenas se reveste de tom recriminador

ao ato clandestino e por si, precário da qualidade dos produtos, mas ainda transborda o tom de

que, segundo a lei local – durante todo o regime soviético, como visto nos subcapítulos

anteriores com os casos do radialista Andrei [Tropillo] e do músico Yuri Morozov;

CUSHMAN, 1995 – o produto confeccionado pudesse provir de desvio de uso de material de

utilização estatal, constituinte de crime apenável pela Constituição Soviética. Entretanto,

conforme se pode observar mais adiante, a brecha utilizada pelos integrantes dessa rede de

distribuição sub-reptícia, seria justamente a imprevisão legal de tipicidade penal para produtos

decorrentes de produção doméstica (a partir dos magnitofon/ gravadores e tocadores de fitas-

cassete e discos) – recaindo-se, no máximo, em contravenção de comércio ilegal ou repreensão

por conta de seu conteúdo não-patriótico.

Daí entender-se o porquê, supostamente, de a abordagem ser realizada pelos

Druzhinniki, pois se o delito fosse de maior gravidade, a autoridade penal seria da própria KGB.

Assim, simultaneamente ao desfecho da narrativa inicial, a imagem mostra a emboscada dos

176

integrantes da patrulha civil, que aparecem e abordam os rapazes, apontando os indivíduos do

grupo e levando-os conduzidos pelos braços até um veículo específico (possivelmente, uma

viatura da patrulha).

Na segunda incursão do narrador, durante sua fala, são exibidos os jovens abordados em

um procedimento que se assemelha ao de um interrogatório (conduzido por um sujeito maduro,

de cabelo impecavelmente engomado e aparência séria, provavelmente, autoridade em uma das

sedes da patrulha), onde são apresentados os produtos da apreensão: pequenos discos feitos de

chapas de raio-x, contendo – segundo a averiguação daquelas autoridades – músicas de

conteúdo Ocidental. Nisso, aludindo ao conteúdo gravado, uma música de fundo é reproduzida,

enquanto um aparelho de som na sala toca um dos discos; mas pela edição de imagem, não se

pode afirmar se provém, de fato, do material apreendido. O caráter artesanal dos discos fica

evidente, pois seus formatos não são bem acabamentados e quando fora do toca-discos, suas

finas superfícies enrolam-se por sobre as mãos do fiscalizador e de um dos rapazes que aparenta

tentar explicar a procedência desse material.

A fisionomia dos rapazes durante o referido trecho (interrogatório) é constrangida, com

aparente tensão no olhar. Um dos presentes mastiga macilentamente uma goma de mascar,

talvez propositadamente selecionado pelos idealizadores das tomadas, para evidenciar o tom de

desprezo pela autoridade presente. No entanto, pode-se perceber que o olhar do rapaz contém

o cenho franzido e o mesmo evita – bem como todos os demais jovens do filme – olhar

diretamente para câmera ou para o fiscal, limitando-se a fitar o chão ou a direção do aparelho

de som posicionado na sala. A função dessa tomada sugere um tom moralizador da parte do

aparato, que embora operando pela ação descentralizada dos Druzhnikki, inspira consequências

e transforma o registro em um momento de reflexão e admoestação aos jovens: acerca da

pobreza de caráter contida na atitude, tanto da clandestinidade, quanto do conteúdo veiculado

(em referência pejorativa à música Ocidental). Com grande mordacidade e categoricidade, o

narrador estabelece uma analogia entre conduta, confecção e artefato, evocando um tom

mórbido, com resumo na frase: Fox Trots em chapas de raio-x, os quais por seu exemplo levam

simultaneamente gravados a escassa anatomia de sua pobreza espiritual.

Nessa menção específica ao ritmo foxtrot, apresenta-se a constatação de referência ao

ritmo estadunidense, um dos conteúdos da veiculação/reprodução clandestina, que contribui a

reflexão sobre o momento vivido pela música Ocidental em terreno soviético: o rock que

chegaria à região, ainda seria o mesmo veiculado no princípio do movimento nos Estados

177

Unidos, e boa parte da influência de músicas ocidentais também proviria de outros gêneros

musicais já consagrados há mais tempo que o novíssimo rock n´ roll e, portanto, mais

disponíveis – como o jazz e o foxtrot – que inclusive, guardariam certa similitude sonora àquele

período, com o ritmo em surgimento (FERRI, 2001). Quanto à técnica de gravação, fazendo

alusão a uma outra estratégia da Magnitofonnaia Kul´tura (cultura da reprodução de fitas-

cassete), encontra-se a confirmação daquilo que evidenciado pelo jornalista britânico Pete

Paphides, e aqui trazido em comento à sua reportagem anteriormente mencionada, Bone Music:

Bootlegs of Beatles Pressed in X-Rays (THE GUARDIAN, 2015), de que sim, tenham havido

e se disseminado na porção soviética, os discos produzidos clandestinamente utilizando a

prensagem de acetatos de raio-x – chamados de roentgenitzdat [gravados em raio-x] – como

forma de solucionar a escassez de acesso ao recurso do vinil (cuja produção e distribuição era

de monopólio estatal local). No exemplo citado na matéria do jornalista, já sucedendo à

veiculação de foxtrote e rock n ́ roll primevo, ressaltaria-se uma maior atenção ao caso da

reprodução informal local de músicas dos Beatles, mas a despeito disso, fica atesto que o

veículo utilizado para essa reprodução alternativa já era de conhecimento pregresso (à própria

beatlemania) pela juventude local.

Por derradeiro, na parte que encerra o trecho escolhido para análise do filme (0:35), a

narrativa se dirige especificamente a um dos integrantes do grupo contraventor (referindo-se

pelo nome Zhenya Gorkum, usando de uma evocação a partir de um cognome masculino muito

corriqueiro na Rússia, Zhenya [diminutivo do nome Evgheni; apelido]; e que poderia ser, de

fato, pertencente a um dos interrogados). A narrativa interpõe uma espécie de inquisição acerca

da natureza de sua atitude, como que, em complemento ao tom moralizador citado outrora, se

buscasse recuperar desse indivíduo o senso de absurdo e desperdício de potencial do que

estivesse fazendo: Hei, Zhenya Gorkum, que o mundo lhe parece por através desse estreito

buraco de um raio-x de rock n´roll? Novamente, apelando para incitar no(s) jovem(ns), a

reflexão entre a atitude deplorável e o destino certo de um desagradável desfecho (‘estreito

buraco’), relacionando esse desfecho em uma analogia entre o caráter objetual dos discos (raio-

x) e de seu conteúdo (rock n ́roll) – perpetrados na atitude contraventora.

Se parece fácil após esses eventos e situações, considerar que apenas o rock local do

período sessentista não tenha se desenvolvido sem obstáculos, deve-se levar em consideração

que a iniciativa dos Druzhinniki, tenha durado até o evento da dissolução da União Soviética

(em 1991). Além disso, também a política de repressão psiquiátrica, atingiria seu topo após o

período, durante o princípio da década de 1970, sob o governo de Leonid Brejnev (HORNSBY,

178

2013). Não obstante, ao se considerar as medidas tomadas pelo aparato com essas sutis formas

de repressão, há que se levar em conta a proporção que a própria cultura musical local, em geral,

vinha tomando na União Soviética.

A música seria um ponto importante na curva da cultura e da postura educacional sob

Kruschev: durante o Degelo, a chamada massovaya pesnya (canção de massa) seria

transformada na Sovietskaya Muzika (Música Soviética) – reunindo os estilos englobados pelo

gênero anterior e açambarcando os demais, como o Estradnaya Pesnya (Estrada) e o Bitovaya

Pesnya (dos quais já se falou anteriormente). Do ponto de vista da música erudita, sob a linha

chancelada pela estética estatal, durante o Degelo, se observaria na música clássica um aumento

da possibilidade experimental, incursões em outros estilos, devido ao relaxamento das

exigências junto ao padrão do Realismo Concretista. Imbricações com ritmos provenientes do

Ocidente, como o Jazz – introduzido à década de 1920, por Valentin Parnakh e que sofrera

oscilações de aceitação durante o período stalinista259 – trariam uma composição diferenciada

ao repertório do aparato e sua música orquestrada. Também fariam fomentar, como outrora

descrito, a primeira rede de movimento subterfugioso de circulação musical Ocidental soviética

– os outrora mencionados, Stilyagi.

Já na musicalidade popular, haveria a disseminação do gênero Estrada (da Estradnaya

Pesnya; Canção de Palco/Apresentação), com aumento no investimento performático solo,

cujas exibições vocais excelentes seriam acompanhadas por coro ou orquestra, protagonizadas

por instrumentistas e compositores locais (filiados a RAPM, ao Coletivo de Produtores de

Música [ProKoll], ou a União dos Compositores da União Soviética, entre as principais

agremiações estatais), fazendo requerer do aparato uma atenção toda especial acerca da questão

etapística de seu controle de produção/veiculação. Pois, embora a suposta aurora cultural de

Kruschev avançasse, as características estatais de controle permaneciam, tornando impossível

uma realização totalmente autoral ou protagonística, pela via oficial, das apresentações e da

produção dos artistas locais. Embora um músico tivesse uma voz proeminente e boas ideias às

canções, ou mesmo habilidade nos instrumentos, cada função ficaria, em geral, setorizada a um

segmento autorizado dos componentes musicais (letras, com os compositores;

259Desde a sua introdução, o jazz seria um elemento mais assimilável à realidade de censura soviética, por sua

associação com a comunidade afro-americana, tida como uma resistência ao establishment estadunidense.

Entretanto, como outros ritmos cosmopolitas estrangeiros, passaria nos anos 1940 pela campanha do Terror

Zhdanoviano do pós-guerra, com (re)asseveramento da intolerância aos ritmos não autóctones e partidariamente

alinhados, até a chegar-se à década de 1950, onde evidenciaria-se um ligeiro surto do estilo por meio de samizdat

e circulação de produção fonográfica alternativa.

179

acompanhamento instrumental, com os músicos; conferência, autorização e veiculação das

músicas, com o aparato). Da Era do Degelo pelo regime soviético adentro, entre os nomes

expoentes da indústria cultural soviética oficialmente suportada, figurando importantes e

consagrados na popularização e crescimento do gênero Estrada, destacariam-se: Eduard Khill,

Vadim Mulerman, Lyudmila Senchina, Edita Piekha, Heli Lääts, Uno Loop, Maya

Kristalinskaya, Anna German, Valery Obodzinsky, Muslim Magomayev, Lyudmila Zykina, Alla

Pugacheva, Valery Leontiev, Vladimir Troshin, Sofia Rotaru, Lev Leshchenko, Iosif Kobzon,

Valentina Tolkunova e Sergey Zakharov – entre outros260.

Com uma revolução no sentido do consumo, que agora angariara a veiculação doméstica

com os magnitofons, e um surto de apelo popular em seus gêneros musicais, não tardariam

aparecer fenômenos em simultâneo por canais alternativos da cultura oficial local. Assim,

antecedentemente ao papel desempenhado pelo rock nesse processo de guerrilha cultural,

haveria a aparição de precedentes locais que, mais importantemente do que um produto de

mídia exterior, trariam consigo o brilhantismo da persistência diante da estrutura institucional

e a utilização dos mecanismos clandestinos de reprodução fonográfica. Estes que, muitas vezes

aliados a circunstância desafiadora de uma proveniência local – como se ilustra a seguir, na

crônica em torno da obra do bardo moscovita Bulat Okudzhava.

A história do músico, desde o princípio, esteve ligada à sua cidade natal (a capital russa,

Moscou), onde se faria cantor e compositor dos detalhes da realidade sórdida e sublime dessa

importante cidade. Dotado de uma voz anasalada e pouca virtude como violonista, o grande

trunfo de Bulat Okudzhava seria a sensibilidade de suas composições, falando de momentos

tristes da guerra, as dores da luta cotidiana no trabalho e pelo sustento e as alegrias comezinhas

da gente sofrida da capital e seus arredores. Seu estilo apegado à uma tradição decana da Rússia,

a dos bardos cantantes, fazia com que sua aceitabilidade pelo aparato fosse algo mais tolerada

que a do polêmico ritmo estadunidense. Entretanto, sem a necessária adesão ao esquema de

associação partidária, bem como sem a apropriada submissão ao esquema de produção do

circuito local, quer de músicos, quer de compositores e ainda, trazendo suas letras contundentes

e críticas, embora de maneira singela, da realidade local, ocasionaria que Okudzhava fosse

tomado como mais um entre os indesejáveis à gravação pelo selo estatal (Melodiya), a resultar

que seu sucesso disseminado só pudesse provir de uma fonte: a distribuição clandestina de suas

260KELDICHA, 2000. Op. Cit.

180

apresentações locais, gravadas e copiadas a partir de matrizes originais, registradas por pessoas

próximas do artista.

Assim, repentinamente, no começo da década de 1960 e muito antes da revolução da

reprodução fonográfica em fitas-cassete – nos anos oitenta – citada por Cushman (1995) e

Marochkin (2011a), Okudzhava se tornasse no princípio da década de 1960, um grande

fenômeno cultural, poético e fonográfico pela magnitofonnaia kul´tura em grande parte da

União Soviética261.

Tornando-se ícone entre os artistas de sua época e aclamado pelo povo, Bulat

Okudzhava seria responsável pelo primeiro grande fenômeno da Magnitofonnaia Kul´tura262,

que caracterizado pela música barda263 russa, observado de perto pelas autoridades, mas

inatacável em muitos aspectos por seu apelo junto ao público – em mais um exemplo de agência

cultural dentre os eventos dessa narrativa soviética264.

Se Bulat Okudzhava conseguiria estimular uma rede informal de disseminação, mais

marcante seria esse caráter de sua intocabilidade perante o Estado. De mesmo modo, mas por

motivos distintos, essa intocabilidade seria partilhada pelos pioneiros do rock soviético, devido

a ocuparem uma camada privilegiada de estudantes universitários e filhos de oficiais e

diplomatas. Mas, e como ficaria a situação de indivíduos comuns, aqueles sem credenciais ou

amigos que as tivessem, como ficariam diante das exigências dessa intromissão/persecução e

outras demandas institucionais?

261GELDERN, 2003. Op. Cit. 262Isso, considerando-se que o Jazz dos Stilyagi, mais fosse associado ao samizdat (publicações clandestinas sobre

música) do que propriamente as gravações, bem como a atuação dos jovens disseminadores de roentgenitzdat,

fosse mais comezinha, de menor aporte e com apreciação local nas capitais (Leningrado e Moscou). Enquanto que,

Okudzhava, se tornaria célebre com sua música por uma grande extensão da União Soviética, àquele momento. 263Esse estilo de canção na realidade local ocuparia um posto semelhante ao do estilo Estrada, porém com apelo e

proveniência estritamente populares, tradicionais e não necessariamente produzidos pela indústria cultural oficial

soviética. Isso porque, ante a necessidade de absorção do trabalho de integrantes da classe artística filiada ao

estatalmente, a figura do bardo cantante, por sua interpretação cumulativa das funções de composição, voz e

instrumento em uma figura só, restaria como uma forma contraventora às predições de adequação locais, só podendo vir a ser realizado, por poucos indivíduos, e em geral, passando por eventuais restrições. Ainda assim, no

caso citado, o músico moscovita se tornaria um fenômeno e abriria caminho para outros intérpretes: como o

emblemático Vladimir Vysotsky, o qual além de músico, figuraria com grande sucesso na televisão local e na

dramaturgia. Aliaria, assim como seu predecessor, a experiência de uma consideração proscrita, conciliando

momentos de repressão (contando, embora afamado, com poucos álbuns gravados, produto da perseguição ao seu

estilo de vida intimorato) e de relativa liberdade (como por exemplo, a possibilidade de apresentações nos EUA e

na Europa Ocidental durante os anos 1970), e seria tido, sob o olhar oficial, mormente como um dissidente cultural

na URSS, sendo considerado por aclamação popular (e reconhecimento de outros artistas) um dos mais importantes

poetas marginais da geração dos anos 1960-70. 264GELDERN, 2003. Op. Cit.

181

Deve-se tomar em consideração, antes de responder-se a essa pergunta, um pouco do

que seria uma trajetória de vida segundo os padrões de adequação locais. As escolhas de ir

afinizar-se a carreiras institucionais, partia da formação, e essa, seria a baliza de diferenciação

entre as camadas dessa sociedade. Não obstante, a faixa etária onde se haveria de tomar tais

decisões, seria marcada por conflitos e indecisões: a juventude, momento que seria tomado de

pressões familiares, patrióticas e ideológicas por opções de estabilidade. Há que também se

recordar que entre os apreciadores do ritmo contraventor, muitos desses jovens seriam rapazes,

e por conta da legislação local, haveria-se de passar pelo cumprimento do serviço militar

obrigatório. Esse momento da vida juvenil se tornava uma espiral de aborrecimentos, devido

ao constrangimento de ir ingressar-se o caminho de uma vida socialista conformada (zhisnenyi

put )́, num Estado envolto em ufanismo e valores militares, que constantemente precipitado em

conflitos: arrastando consigo, cidadãos ao risco da carreira das casernas (e no horizonte real de,

porventura, sair-se sacrificado durante tal processo) ou ao perigo de evadindo-se desse, ficar-

se à margem da estrutura social como um parasita, sendo até mesmo, passível de enquadramento

penal por isso. Assim, não raras vezes, essa tensão exacerbada se tornava um suplício e a

perturbação chegava a tal ponto que em muitos desses indivíduos tensionados, chegava-se a

opção por uma solução capital – pelo suicídio.

Vê-se em Cushman (1995; p. 61), a investigação dessa circunstância, ao perceber em

muitos dos seus entrevistados masculinos, escoriações específicas na região dos pulsos,

evidências de tentativas mal-sucedidas do propósito em questão. O autor salienta que tudo isso

seria preferível ao ingresso na mais alienante e horripilante instituição do mundo soviético –

o serviço militar. Não obstante, haveria também um componente, por vezes, de picardia nessa

atitude, onde as escoriações podiam ser feitas propositadamente e serviriam de indício a um

afastamento da obrigatoriedade militar, por demonstração de insanidade. Conforme se explicará

a seguir, a via do tratamento psiquiátrico não seria apenas uma alternativa aproveitada pelo

aparato local para tratar os indesejáveis, mas como subterfúgio, serviria ao intuito desses

próprios indesejáveis de conseguirem afastar-se de incumbências legais torturantes. Por um

método extremo, uma convicção e alguma consciência do funcionamento burocrático local,

muitos jovens enveradariam pela opção tortuosa da evasão militar psiquiatricamente motivada,

como se pode depreender do depoimento do kochegary roker, Misha (no trecho de sua

entrevista a CUSHMAN, 1995; p. 60):

Cushman: Você decidiu se tornar músico?

182

Misha: Sim, apesar de que eu não fosse ganhar nenhum dinheiro com isso. E aí, por

dois anos o escritório do serviço militar ficou a me sondar. Eles queriam me jogar no

exército. Então eu decidi ir pra casa dos pirados [no original o entrevistado usa uma

gíria, nut house]. Por um mês eu trabalhei em mim (sic).

Cushman: Melhor do que ir para o exército, não?

Misha: Sim, eu decidi trabalhar nisso com a minha mãe. Eu falei, Mãe, melhor eles

não me darem uma arma nas mãos senão vou acabar atirando em um oficial. Você

deve ir ao psiquiatra e explicar minha situação, de que eu possa usar uma arma pra

algo errado em algum momento. Eu penso que minha mãe acreditou nisso. E como

resultado, me colocaram em observação. Por trinta dias me observaram, como eu

caminhava, como me comportava, se sorria ou se não sorria. Eu estava deprimido. Eu

realmente estava. Eu tinha de estar. Eu saí de lá com um bom diagnóstico: psicopatia

esquizóide. Artigo 7B estampado em meu documento, dispensado do serviço militar.

[Traduzido do inglês]

Juntando-se esse depoimento, da saída encontrada por alguns músicos a fim de poderem

seguir suas carreiras, ao relato de SMITH (apud HORNSBY, 2013; p. 251), em torno do fato

de que muitos Hospitais Psiquiátricos fossem administrados por oficiais da KGB – desde

Kruschev até o final dos anos 1980, a qual os utilizaria como meio de chantagem junto aos

parentes de internos – o perigoso flerte entre a evasão militar/dissidência e a insanidade mental,

poderia acabar em uma aventura muito perigosa e cara aos jovens locais. De forma não linear,

mas traumaticamente episódica, o desdobramento político dessas práticas e seus grupos

chancelados se faria evidenciado junto ao fenômeno cultural do rock soviético: como no caso

dos birches perseguidores de hippies (citados por MAROCHKIN, 2011a) e no acontecimento

da repressão psiquiátrica com injeções de insulina (no episódio descrito pela cineasta Terje

Toosmitsu, em reportagem de HARDING, 2019 ao The Guardian), demonstrando-se que sim,

como afirmado nos subcapítulos anteriores, o rock encontraria além das resistências políticas e

sociais locais, embora remanesçam poucos registros conclusivos, a intervenção psiquiátrica

como uma das querelas a se enfrentar durante o processo da infiltração do aparato estatal na

vida cotidiana e cultural do Degelo e pelo decurso da década em diante.

Igualmente, nos próprios trechos descritos acima, no filmete estatal analisado, como um

antecedente, mostraria-se a complicada trajetória do rock soviético em seu início inusitado: um

trânsito entre o consumo formal x informal, entre a cultura tolerada x intolerada, e entre o

festivo e o tortuoso. Em meio a uma abertura estatal propagandeada e a truculência de uma

repressão – nada – sutil. Se oficialmente o rock não seria considerado caso de insanidade,

embora estivesse longe de figurar como um exemplo de conduta mental.

Pelos predicados locais, o rock seria tomado por algo exótico, e até decadente. Devido ao seu

público de afetação (jovens), seria tido como algo de nicho e rebelde. Na melhor das hipóteses,

183

constituiria algo frívolo. Sem mencionar que entre o próprio povo, a imagem do rock seria tida

como uma schizophrenia (esquizofrenia). Essa opinião ululante de sua conotação local, melhor

se resume no argumento (alegórico e mordaz) esboçado pelo pai (musicista clássico) do

guitarrista Vitya (entrevistado por CUSHMAN, 1995; p. 54): Bem, com certeza, em tudo e por

tudo, o rock é uma forma muito interessante de psicose!

2.2.3 O Degelo em Números: crescimento urbano, cenário econômico e condicionantes à

circulação de cultura na gestão Kruschev [uma ascensão meteórica e o despencar de uma

estrela]

Os construtores da Revolução de Outubro, como os da Revolução Chinesa, tiveram de conduzir

frontalmente a luta pela construção do socialismo e a luta contra o subdesenvolvimento, o que exigiu

rigorosa centralização de recursos, dos poderes e das esperanças, e uma luta armada que só poderia

ser vitoriosa mediante uma disciplina de ferro, de tipo militar. [...] Mas Lênin ensinou-nos a distinguir, com a Revolução, o que tem caráter universal e o que decorre de condições históricas. [...]

O problema da centralização do poder, da censura à imprensa, das relações da classe operária e de

seus aliados, da pluralidade de partidos, da articulação entre plano e mercado, entre as exigências científicas da planificação e a necessária iniciativa dos trabalhadores na tomada de decisões, todos

esses problemas se apresentam de uma nova maneira.

Roger Garaudy, Toda A Verdade265

Talvez a grande explicação do porquê de o Estado não conseguir imbricar-se melhor no

processo de disseminação dessa cultura clandestina, oportunizada no próprio Degelo, criando-

se assim, uma espécie de caixa de Pandora – fosse, justamente, produto da própria

circunstância do arranjo social local e das pretensões desejadas com o processo de abertura.

Primeiramente, ao se falar de experiências de consumo doméstico em relação ao arranjo

social na União Soviética, há que se entender sua configuração doméstica em geral. No

princípio da década de 1960, a população soviética registrava um significativo aumento da

ocupação residencial urbana, sendo que àquele momento (e desde os censos de 1926, quando

se contabilizara o início dos projetos de assentamento urbano de trabalhadores, durante os

primeiros planos quinquenais), atingia-se a marca de metade da população geral instalada nas

cidades – numa densidade ocupacional de área útil de até 8,8 metros quadrados por morador.

No cenário urbano de Leningrado, por exemplo, em 1961, mais da metade das famílias se

encontravam dispostas em moradias coletivas, totalizando 55,6% da população local a conviver

nessas condições de instalação. Isso corroboraria em parte, o cenário amplo da própria

República Socialista Federativa Soviética da Rússia, como um todo, onde cerca de 56% dos

habitantes urbanos residiriam nos conjuntos de apartamentos coletivos, contra 37% de

265GARAUDY, 1985. Op. Cit. pp. 156-157

184

moradores residenciais particulares, proprietários ou em caráter de sub-locação, e cerca 7%

residentes em albergues266.

As acomodações dessas residências comunais urbanas seriam constituídas de blocos de

apartamentos, cuja divisão por núcleos familiares (em grupos de compartilhamento de até

quatro famílias) se dava por habitáculos (quartos de cada família), mas partilhando as áreas

comuns, incluídas nisso, as dependências de banheiro e cozinha. Embora a questão da moradia

fosse uma querela importante a se sanear, os investimentos realizados ao longo dos governos

de Stálin e Kruschev não dariam conta de atendê-la a contento. Para citar, desde o princípio da

década de 1950, sob os Quintos Planos Quinquenais (1951-1955), ainda que com as transições

de gestão, os investimentos maciços em construção de moradias dobrariam em relação ao dos

planos anteriores e, em seguida, nos novos planos quinquenais (sob Kruschev, de 1956-1960),

receberiam um ávit de um quarto em relação às metas antecedentes. Sob Kruschev, a

intensificação seria bastante visível, como exemplificado no grande surto de edificações

populares nas regiões de Moscou (nas margens da cidade, no distrito de Novyie Cheremushki)

e Leningrado.

No entanto, na opinião popular, pela qualidade precária, devido ao mote de escassez

planejada dos empreendimentos e o modo apressado de construção, a atmosfera geral das

moradias seria motivo de piada entre o povo: o termo komunal ́nye kvartiry (ou sua abreviação

corriqueira komunal´ki), para designar moradia coletiva, daria lugar à corruptela kaka,

trocadilho sugestivo ao ato de defecar. Também, da tentativa de criação de um maior

atingimento da população instalada, a densidade demográfica por local de moradia sugeriria no

senso popular a noção de favelas de Kruschev, e infelizmente, a despeito dos esforços da gestão,

a impressão em torno das Kruschevskayas (ou moradias de Kruschev), seria o da anedota local:

krushchebyi trushchebyi – equivalente a lixões de Kruschev267.

Ora, tendo-se isso por considerado, fica mais inteligível compreender da dificuldade de

controlar uma experiência de consumo doméstica, onde num habitáculo transversalizado do

convívio de diferentes famílias, com filhos de idades próximas e jovens, se pudesse apenas a

partir do circuito interno de consumo (ouvindo-se por um aparelho de som ao conteúdo

Ocidental), muito se fazer pela circulação principiante desses materiais decorrentes de acesso

informal. Ou seja, o próprio conceito de doméstico numa sociedade do coletivo como a da

266SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit. 267SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.

185

modernidade industrial socialista, levaria a que um bem adquirido por uma família (com

integrantes propriamente ditos, seus amigos e conhecidos reunidos ao redor de um toca-discos),

pudesse ser um pólo de apropriação de material cultural por muitas mais ao redor e a aquisição

de um material fonográfico, pudesse protagonizar uma disseminação muito pulverizada a partir

dos elementos do cenário local (algo que no mundo da privacidade Ocidental, seria impensável

no mesmo teor).

E eis aqui, então, que surgiria espaço a uma contradição. Não obstante, considerar-se o

que se tinha como pretensões do processo de abertura cultural, encontraria-se um elemento

intensificador desse processo de consumo: a circunstância econômica vivenciada àquele

momento pela gestão do Degelo, onde séries de crises vivenciadas pela instabilidade política e

o quadro inconstante de sucessos e fracassos, em diferentes setores da prospecção

socioeconômica, levassem a que, muito possivelmente, a atmosfera da aurora cultural não fosse

apenas uma manobra supostamente populista ou amigável de Kruschev, mas a consideração da

necessidade de aquecimento da economia interna pela venda de bens consumíveis – localmente

disponibilizados.Ora, se majoritariamente a doutrina explicaria a estratégia de Coexistência

Pacífica como uma manobra, manobras pressupõem controle, e a economia não se poderia

controlar. Referente a esse ponderar, o jornalista Simon Morrison, em sua obra Bolshoi

Confidencial (2017), dissertando acerca do ballet soviético durante o período, propõe

importantes evidências contextuais acerca da situação do consumo/exportação de gêneros de

cultura (arte) e sua imbricação financeira junto às motivações da suposta abertura:

O Kremlin fez a política e as ambições nacionalistas parecerem as principais

motivações para a turnê em Londres, seguida de outras turnês entre as décadas de

1950 e 1960. Mas o verdadeiro intuito era financeiro: as viagens estavam

planejadas para render lucro. Stálin havia deixado o Tesouro soviético em

condições catastróficas, e o complexo industrial e militar estava tão dilapidado que

aviões dos EUA espionavam o território soviético à vontade. Organizações de

intercâmbio cultural e de amizade internacional (VOKS/SSOD) fizeram o que outros

balés, em outras partes, como o Balé Sadler´s Wells, na Inglaterra, haviam feito em

tempos imprósperos, e organizaram turnês lucrativas; o Balé Bolshoi poderia

competir com essas companhias em todo o mundo. Tornou-se um produto a ser

vendido – como os depósitos de prata de Transbaikalia ou as pérolas dos rios da

península de Kola. O KGB [referência aqui, optada pelo autor em terminologia masculina] não queria autorizar a viagem por temer as deserções, mas o argumento

financeiro venceu. Explorar o potencial comercial do Bolshoi significava descartar os

ideólogos amadores das organizações de amizade, em favor de empresários

profissionais como Sol Hurok, nos Estados Unidos. Os ministros da Cultura sob

Kruschev fizeram um bom trabalho disseminando os valores soviéticos no

estrangeiro, mas, para o Comitê Central, a questão era trazer os necessários

fundos estrangeiros. Assim, o degelo na Guerra Fria foi autorizado para evitar a

bancarrota – ao menos até que a renda com o petróleo subisse, com Brejnev, levando

186

a um novo congelamento político, à corrida armamentista e à retomada do

ultraconservadorismo [Grifos nossos]268.

A retórica do texto é emblemática, aproveitando-se de uma provocante contradição, a

evidenciar uma notória narrativa Ocidental que perpetuara o uso pragmático das artes pelos

soviéticos, como se apenas, de uso lucrativo ou propagandístico, alinhando-os em uma

perspectiva de grosseria e falta de sensibilidade estética real. Por isso, embora o excerto seja

enfático e a contradição evidente (se o Degelo fora produto de ‘populismo’ ou

‘depauperamento’), há indícios importantes de se explorar criticamente em seu bojo, que se

erroneamente interpretados, tendem a conduzir à uma visão descontextualizada269. Em primeiro

lugar, sobre a questão de bancarrota atribuída e a possível dilapidação do Tesouro (por Stálin),

cabe contra argumentar que haveria um número marcante de recursos durante o Degelo,

evidenciado pelas reformas desenvolvidas: na habitação, com a demonstração de investimentos

em urbanização acrescidos continuamente; na prospecção energética, a construção entre 1955

e 1961, da colossal usina hidrelétrica de Bratsk (no distrito lindeiro ao Mar de Bratsk contíguo

ao Desfiladeiro de Padun e situada no Rio Angara)270, seguida da instalação de um pólo de

exportação e escoamento madeireiro no local; na tecnologia, os lançamentos da engenharia

espacial (Sputnik e Vostok, de 1957 a 1961), cujo represamento de recursos à empreitada,

inicialmente, levaria a conjecturar, principalmente da opinião pública, o aparente

enfraquecimento das reservas271 – sendo na verdade, tremendo e bem-sucedido

empreendimento militar e propagandístico da pujança soviética, interna e externamente; bem

como, e não minoritariamente, o ligeiro sucesso das reformas econômicas da administração de

Alexey Kosygin, ministro da economia, que se ocuparam em aquecer e dinamizar as relações

do mercado interno.

Finalmente, chegando-se ao ponto interessante da alegação do envolvimento fisiológico

entre cultura, consumo e arte com as finanças locais, percebe-se que sim, a promoção de uma

268MORRISON, Simon. Bolshoi Confidencial. Trad. Cristina Cavalcanti, 1ª Ed. Rio de Janeiro: Record. 2017;

pp. 237-38 269MARTENS (1990) coloca pontuações interessantes sobre o quadro econômico principiado em Kruschev:

trazendo dados de dois importantes escritores sobre o tema da economia da URSS (Roger Kerran e Thomas Keeny,

em O Socialismo Traído), aponta-se que desde a abolição de práticas capitalistas (retomadas nos NEP sob Lênin,

temporariamente), os mais vertiginosos crescimentos econômicos soviéticos se dariam entre 1929 e 1952 (durante

Stálin), alcançando índices entre 12 e 15 porcento ao ano de crescimento, somente no regime de economia

planificada. Após a abertura parcial de Kruschev às práticas do Capitalismo (bens de consumo e aberturas relativas

de mercado; economicismo), os índices não seriam maiores do que três ou quatro porcento ao ano, de crescimento

econômico – tornando um tanto questionáveis as alegações de afirmatividade do suposto depauperamento em torno

do cenário econômico da URSS, na transição Stálin-Kruschev 270SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit. 271GELDERN, 2003. Op. Cit

187

crescente abertura de consumo poderia estar relacionada a uma captura de investimentos. Nesse

sentido, embora a educação socialista visse o papel de sua arte como fundamental e formadora,

determinados setores de alta-sofisticação, frente à nova leva de investimento nas áreas

essenciais, se veriam empurrados a ir conseguir alternativas de recursos. Assim, para alguns

setores específicos da cultura e da produção artística, a opção por se fazer uma captura de

recursos a partir de uma controlada trajetória de excursões e investidas ao estrangeiro, pareceria

uma importante forma de contornar a precarização de investimentos nesses setores, evitando

que sua importante função cessasse e ao mesmo tempo, privilegiando direcionar o recurso

principal do Estado para os projetos fundamentais.

Em outras palavras, entravam os rock e os ritmos ocidentais e saiam o ballet e a música

clássica a circular além das fronteiras soviéticas (uma novidade não observada sob Stálin)272.

O ballet, bem como a música clássica, por serem artes de vanguarda, necessitariam àquele

momento de maior aporte de finanças e, por simultâneo, teriam as características desejáveis de

cultura e educação socialistas bem-sucedidas, sendo possivelmente entendidas como passíveis

de servirem ao propósito pretendido e condições de gerar demanda, por sua excelência, frente

ao público estrangeiro. Sem olvidar a função de propaganda, demonstrando a sofisticação da

formação educacional socialista – uma fonte de inspiração e expensas, a captar investimentos

em momentos cruciais pelos quais a economia passava.

2.2.4 Uma Queda A 70.000 Pés: A Guerra Fria esquenta o Degelo, o Perigo Nuclear e o

Começo do Fim da Era Kruschev

At midnight all the agents and the superhuman crew Come out and round up everyone that knows more than they do

Then they bring them to the factory where the heart-attack machine

Is strapped across their shoulders and then the kerosene

Is brought down from the castles by insurance men who go Check to see that nobody is escaping to Desolation Row

Bob Dylan, Midnight All The Agents And SuperHuman Crew (1965)

272Assim como o ballet e suas apresentações, o esporte soviético e seus atletas, só poderiam ingressar em

competições exteriores à União Soviética, a partir do Degelo. A incrível habilidade desses atletas, a qual ficaria

emblemática nos Jogos Olímpicos [de Verão] desde então, marcaria não apenas a expoência da escola esportiva russa e seus fundamentos (treinados e experimentados em competições internas, como os Jogos Estudantis das

Nações Soviéticas e as Spartakiads, espécie de Olimpíada local), mas a colocação ideológica do Socialismo eficaz

à promoção social do esporte, à disciplina e à realização de atletas mais focados e eficientes. Tal cenário, por

consequência, também seria palco à rivalidade entre as superpotências da Guerra Fria (sob Kruschev, nos Jogos

de 1956, 1960, 1964), e com vulto, na Ginástica e na Natação (com destaque para Alemanha Oriental), o quadro

geral de medalhas ficaria sobrepujado pela presença maciça de atletas locais. Ginastas como a soviética Larissa

Latynina, seriam inesquecíveis em performance e conquistas: a atleta chegaria à marca histórica de nove medalhas

de ouro num total de dezoito conquistadas durante os três eventos – feito que só seria superado muito depois do

fim da URSS, pelo atleta estadunidense da natação, Michael Phelps, em 2012. Fonte: HOOBLER, HOOBLER,

1987. p. 51.

188

O rock não seria a única coisa a chacoalhar a realidade soviética no princípio da década

de 1960. Longe disso, o que mais agitaria os ânimos àquele momento, seria o outrora costurado

cenário político. Com os olhares atentos ao interior da sociedade soviética, por conta do

fenômeno de cultura aqui estudado, fica contundente lembrar-se do papel protagonista da União

Soviética no cenário da Guerra Fria, onde logo no início da década, o clima entre as poderosas

nações do duo-bloquismo iria esquentar – perigosamente.

É importante destacar que apenas mais a frente, a chamada corrida armamentista,

ganhasse seu lugar relevado na história das relações de URSS e EUA (durante o governo de

Leonid Brejnev e seu contraponto estadunidense, Richard Nixon, inicialmente, e mais a frente,

entre Brejnev e o presidente Ronald Reagan), entretanto, àquela altura, as demonstrações de

tecnologia da Corrida Espacial não se prestariam pouco ao propósito de demonstrar suas

intenções bélicas. O satélite Sputnik, lançado em 04 de outubro de 1957, era especulado pelo

Ocidente como um meio dos soviéticos de obterem informações, por vigilância remota e

transmissão de sinal, operados com o advento do aparelho. Não obstante, a tecnologia que

antecederia a do programa Vostok, em que o cosmonauta soviético Yuri Gagarin seria bem-

sucedido na missão de vôo extra orbital de 12 de abril de 1961, estaria situada em um arquétipo

nada pacífico: o desenvolvimento dos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM), estudada

pelos engenheiros militares soviéticos, para transportar bombas e serem pilotados em caso de

necessidade de um possível ataque à porção Ocidental (GEROVITCH, 2007). Do lado

estadunidense, de mesmo modo, boa parte dos físicos e engenheiros que empreenderiam em

torno da realização da NASA (Agência Aeronáutica e Espacial Nacional dos Estados Unidos),

seriam os mesmos que anteriormente, haviam trabalhado na confecção da bomba atômica – no

Projeto Manhattan.

Embora exuberantes os feitos demonstrados pela conquista espacial, sua natureza

indissociavelmente militar e seu uso como estandarte político em provocações mútuas que

envolviam o escopo dessas realizações pelas superpotências da bipolaridade, colocariam o

mundo estupefato, não pelo fascínio, mas pelo temor: precipitando-se o cenário ameaçador de

um colapso nuclear e deteriorando-se profundamente a relação estadunidense-soviética.

Retroagindo um pouco na linha dessa narrativa, cabe lembrar de que havia pouco, em

1959, uma das repúblicas latino-americanas, Cuba se tornaria independente do protetorado

estadunidense (sob a administração local de Fulgêncio Batista) e aderido ao Socialismo, na

chamada Revolução Cubana – de 1953-59, empreendida em Sierra Maestra, contando com

grande protagonismo popular e o sob o comando principal de Ernesto Che Guevara e Fidel

189

Castro – colocando-se como personagem central às controvérsias da Guerra Fria àquele

momento (HOBSBAWM, 1995).

Cuba, não se haveria de pronunciar se seu Socialismo teria alinhamento à política do

Bloco (linha soviética), até ser submetida à constantes embargos econômicos, cumulados com

sua expulsão, em 1961, da Organização dos Estados Americanos (OEA), sob a alegação de que

a ilha fosse gerida por um governo não democrático – alegação essa, fortemente motivada por

uma retaliação estadunidense a um incidente anterior: a Crise da Baía dos Porcos. Nesse evento,

ocorrido no ano antecedente (1960), uma incursão à costa cubana, sob patrocínio governamental

militar estadunidense e promovida com auxílio de exilados políticos cubanos, tentaria =

infrutiferamente – a deposição do governo socialista local e a retomada do regime anterior na

ilha.

A campanha militar empreendida pela superpotência Ocidental acabaria em vexame

amargado e redundaria, como resposta, em possibilidades políticas de boicote ao Socialismo

instalado na ilha. Ameaçado, o novo governo cubano buscaria apoio junto ao alinhamento

soviético de Kruschev e com isso, oportunizaria-se a possibilidade de uma colocação estratégica

do Bloco Oriental, geograficamente próximo ao território estadunidense (Flórida). E

aproveitando-se do clima acirrado entre os cubanos e o governo dos EUA, apareceria a

possibilidade a mais uma investida à disputa ‘indireta’: o plano de estacionamento na região de

Cuba, em 1962, de ogivas nucleares soviéticas ao arsenal dos recém-alinhados revolucionários

de Sierra Maestra, enviadas em um cargueiro militar por ordem direta de Kruschev, em

atendimento ao clamor do regime socialista caribenho de se proteger ante as investidas do

poderio estadunidense.

Embora houvesse a sinalização da coexistência pacífica de outrora e até bem pouco, os

olhares do mundo se voltassem aos céus com Gagarin e a revolução espacial promovida pela

União Soviética, esse movimento desencadeado em 1962 seria o atrativo de todas as atenções

ao redor do globo. Como poucas vezes na história da humanidade, se colocava o risco real de

repercussões globais de um conflito, por conta dos efeitos de uma devastação nuclear,

promovida pela possibilidade de um confronto entre as superpotências. Ainda estava fresco na

memória Ocidental, o acontecimento japonês que colocara fim a Segunda Guerra Mundial, e

de forma alguma, se esperaria vivenciar tal massacre em território estadunidense. As diretrizes

assumidas por John Kennedy foram rápidas e em terreno desafiador: o posicionamento de

ogivas nucleares estadunidenses em bases da Turquia, com proximidade e possibilidade de rota

190

para o território soviético. Numa tensão que se estenderia por cerca de treze dias, as duas

maiores nações da Guerra Fria se encontravam negociando os limites da ofensiva, sob a

flagrante ameaça de DEFCON-1 – o código para deflagração de conflito iminente de

características nucleares (segundo terminologia militar empregada pelo governo estadunidense,

a referir-se ao incidente à época).

Utilizando-se da prudência e da barganha pelo reposicionamento dos mísseis hostis para

longe das fronteiras soviéticas, Kruschev cederia à retirada das ogivas desencadeadoras do

conflito e conseguiria com isso, amargar um novo blefe derrubado diante da superpotência

opositora. Sua imagem arranhada em dois incidentes internacionais em sequência (em

referência ao incidente do U-2)273, somadas à crise de abastecimento de grãos de 1963274 e a

indisposição de seus companheiros de birô político com suas medidas de bens de consumo275,

fariam com que o mandatário fosse progressivamente enfraquecido de sua influência, a ponto

de ser deposto do cargo de Secretário-Geral do Partido, em outubro do ano de 1964.

A mesma camada que o deporia, seria composta pelo corpo de burocratas soviéticos que

o ajudara a crescer, esses que privilegiados e ameaçados pelo rumo de suas reformas,

visivelmente descontentes com a gestão do Degelo: a Nomenklatura276. Seria ela que

273Recorda-se que a Crise dos Mísseis, teria sido antecedida pelo U-2 Incident (incidente de espionagem do avião

estadunidense U-2), cujo início se dera em 1960 e que decidido ao final (em 1962), com a entrega do piloto da

Força Aérea Americana Francis Gary Powers pelo espião soviético, capturado em Nova Iorque, Rudolf Abel. Neste episódio, Kruschev e Eisenhower trocariam farpas durante a Cúpula de Paris – iniciada da à data de 1º de

maio – quando da ocorrência do abatimento da aeronave estadunidense, enquanto essa voava no espaço aéreo

soviético (em Sverdlovsk). Da vantagem de captura de um soldado da USAF e a demonstração patente, com o

acontecimento, das manobras ‘desonestas’ utilizadas pela superpotência capitalista no cenário da Guerra Fria,

Kruschev tripudiaria impondo uma retratação formal, enquanto promoveria o julgamento do pretenso espião

capturado (em Tribunal moscovita). Entretanto, seu pedido de desculpas nunca viria formalmente (apenas uma

admissão superficial e constrangida, da admissão da prática pelo Pentágono, sustentando uma justificativa de ação

como resposta às táticas da URSS) e o capturado, seria negociado com o já empossado presidente dos EUA, John

Kennedy, a ser entregue numa troca de prisioneiros arranjada na Alemanha Oriental (cujo ponto demarcado para

a mútua extração seria o da Glienicke Brücke [Ponte Glienicke]). Como fora recusado em seu pedido (visto pelo

Comitê Central como um ‘blefe’) e, ao final, cedera a uma troca em condições paritárias com o inimigo, após

demonstração de atitude hostil deste (espionagem e desplante), a cúpula central da administração soviética veria como uma derrota da gestão Kruschev, o incidente principiado com manifesta vantagem Oriental. Fonte:

POWERS, GENTRY, 1970; BERTRAN, 1979 274A Crise do Milho de 1963, um fracasso na implantação desse cultivar aliado às crescentes exigências de safra

do abastecimento soviético – cujo clima seria um fator crucial. Tal episódio, levaria a um desagradável revés

econômico e moral, o qual imporia a necessária compra da commoditie de países do Ocidente – inclusive os

Estados Unidos – para subsistência local. Fonte: 1962 - The Corn Campaign; GELDERN, 2003. Op. Cit. 275Segundo Hobsbawm (1995); p. 64: Reformas estas, que desde o início pela alta cúpula do Partido, bastante

relutadas, e agravadas pelo inchaço da burocracia soviética em dobra do número de ministérios relacionados à

produção. 276Hobsbawm (1995, p. 64), sublinharia os desgastes promovidos por essa camada administrativa nos caminhos

tomados na gestão a seguir.

191

engendraria a nomeação de um partidário expoente, com trajetória adequada ao propósito da

transição pretendida, nesse momento de oscilação no poder local. O confiável e articulado

Leonid Brejnev assumiria a gestão da União Soviética, com o compromisso de restabelecer a

economia e romper com a desestalinização do Estado. O sorridente e irritadiço Kruschev,

precursor do Degelo e sempre envolto numa atmosfera dúbia de humor e de intenções políticas,

entre os acenos e as recusas para com a liberdade local e com o próprio Ocidente, seria

substituído por um modelo com feições de pretendida seriedade: um Brejnev de semblante

severo, cuja fisionomia buscaria transparecer o resgate daquilo que entenderia uma parte

fundamental do Socialismo (a recomposição da figura de Stálin, o espraiar da influência e

controle soviético nas politicas de outras nações socialistas e a retomada do crescimento da

URSS no cenário interior-exterior) nas pretensas características adotadas, inicialmente, por seu

novo modelo de governo.

Com tamanha égide de acontecimentos, não é de se impressionar que os eventos

relativos à circunstância local do rock, em suas origens, ficassem obscurecidos. Embora

aparentemente tranquila, a primeva incursão do rock em terreno soviético se fez, como se faria

tradicionalmente: cercada de vigilância e interposições. Afinal, antes de as guitarras agitarem o

terreno local, seriam os políticos e suas pretensões estelares, que estremeceriam a vida dos

cidadãos. Se de início, pareceria óbvio um encampamento de valores ocidentais na localidade

soviética, sob a noção dos eventos apresentados – conforme o elenco: o Degelo, a Coexistência

Pacífica, as políticas reformistas dos padrões de consumo e mídia, acompanhado do surto de

crescimento urbano e um novo trânsito de pessoas e cultura na URSS, numa Guerra Fria que

chegara ao seu momento mais quente. Diluindo-se assim, a primeira possível impressão de que,

por uma afinidade momentânea, quaisquer das referidas nações viesse, agradavelmente, a ceder

a outra.

E o produto dessas transições e suas características incidentes ao fenômeno do rock

local, guardaria ainda mais intrigantes configurações apenas um momento a seguir: quando o

ponto de impasse passaria a emanar de dentro da própria estrutura soviética, em lugar dos

recentes atritos à política exterior.

2.3 UM COMPACTO DE TRÊS ESTRELAS: O TERCEIRO LADO DOS ANOS 1960 –

BEATLES, BREJNEV E ВИА OU COMO O ROCK SOVIÉTICO SE TRANSFORMARIA

DE SUBCULTURA EM PRODUTO CULTURAL – PARCIALMENTE

A mania do rock 'n' roll cresceu como uma bola de neve e, é claro, essa bola rolou para a União

Soviética. Os escalões superiores reagiram a esse fenômeno com grande desconfiança e decidiram

192

que a música da liberdade deveria ser mantida sob controle, se fosse impossível bani-la por

completo. Bem, a juventude pegou o rock and roll com força. Quase todos os institutos começaram a ter suas próprias bandas amadoras que tocavam rock. Na maioria das vezes, eram os Beatles ou

outras bandas ocidentais famosas.

Irina Malakhova, O Rock N’ Roll Está Vivo!277

Se ao longo dessa análise da década de 1960, já se comentou acerca das origens do rock

local, bem como em torno de algumas bandas soviéticas e das características sociais e de

transição em alguns elementos desse movimento cultural, agora, na parte referente à transição

do governo de Nikita Kruschev para o de Leonid Brejnev, espera-se delinear em qual forma e

sob quais vetores esse fenômeno de cultura seria incorporado à cultura soviética: não apenas no

sentido de uma parcela popular e juvenil urbana, mas, progressivamente, no amplo aspecto da

produção cultural soviética.

Brevemente, recordando indícios e relatos trazidos durante a introdução desse trabalho,

o fenômeno da ‘invasão britânica' protagonizada pelos Beatles, não deixaria incólume nem

mesmo a União Soviética, onde desde antes da explosão quarteto, ocorrida de maneira sólida

em circuito global a partir de 1964 (ano em que Brejnev assumiria o poder local), o público

juvenil criado sob as condições do Degelo, demonstrara apelo pelo ritmo do rock n´roll e uma

tendência a aventurar-se em protagonizá-lo.

Os Beatles, com sua indumentária e batida inconfundíveis, ilustrariam revistas e

embalariam ondas sonoras, captadas eventualmente nos rádios domésticos ou através de discos

contrabandeados – encantando e colocando dilemas morais aos jovens orientais, conforme visto

anteriormente no intróito do trabalho. Nesse sentido, o senso de comunidade, uniria jovens

protagonistas soviéticos no sentimento de estar-se a fazer um ritmo para adiante do musical,

mas parte de uma atitude desafiadora, libertadora e entusiasmante. Nesse mesmo ínterim, o

desejo por estabelecer-se ante uma indústria cultural robusta e voltada para a formação

educacional popular, como era a da URSS, fazia com que o rock local, diferente do acontecido

com o fab four no exterior, fosse realizado nas margens concedidas pelo sistema – o que abriria

espaço, futuramente, para um rechaço a esse e a assunção de uma vertente marginal

(underground). Por outro lado, o ímpeto de fazer da música estrangeira, um elemento que não

se sobrepusesse ao seu âmago local (russo-soviético), também clamaria por um processo de

localização do ritmo – russificação – fazendo-o ter características ora miméticas ao do

parentesco Ocidental, ora completamente inéditas e originais à sua circunstância local. E como

observado, até mesmo nisso o papel indômito diante das carências e dificuldades renderia

277MALAKHOVA, 2013. Op. Cit.

193

intervenções perspicazes, da produção e circulação clandestina de gravados e materiais

contrabandeados à luthieria artesanal dos instrumentos, passando pela inusitada composição

das letras e melodias em gramática local – numa demonstração de agência segundo aludido em

Thompson (1987).

Se afastando do estilo Ocidental, mais e mais, e se posicionando ante o seu próprio

estabelecimento interno (aparato estatal soviético), ora numa assimilação (como será discutido

sobre o ВИА [VIA]), ora num distanciamento evidente (underground), o rock soviético

delinearia sua própria cultura, costumes e identidade. Tendo Brejnev como um dos fatores dessa

função, o quarteto de Liverpool, que já constituira elemento de inspiração, catapultado às

grassantes transformações que surgiam no governo, intensificariam a presença de sua

iconografia na composição de fatores locais num arranjo delicado de fisionomia – o qual,

destrinchando inúmeros detalhes, começa-se a compreender a seguir.

2.3.1 Brejnev e o Bloqueio à Desestalinização: O breve Resfriar da Liberdade de

Expressão e o brevíssimo Reaquecer da economia

As revoluções sociais, a Guerra Fria, a natureza, limitações e falhas fatais do “socialismo realmente

existente” e seu colapso são discutidas à exaustão. Mesmo assim, convém lembrar que o impacto

maior e mais duradouro dos regimes inspirados pela Revolução de Outubro foi a grande aceleração

da modernização de países agrários atrasados. Na verdade, nesse aspecto suas grandes realizações coincidiram com a Era de Ouro capitalista. Como veremos, até o início da década de 1960 elas

pareciam no mínimo emparelhadas, visão que parece absurda à luz do colapso do socialismo

soviético, embora um primeiro-ministro britânico, em conversa com um presidente americano, ainda

pudesse considerar a URSS um Estado cuja “exuberante economia [...] em breve ultrapassará a sociedade capitalista na corrida pela riqueza material” (Horne, 1989, p. 303).

Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos278

Se os Beatles e as primeiras bandas de rock na RSFS da Rússia surgiriam localmente

durante a Era Kruschev, seria sob Brejnev que o rock n’ roll, de fato, se sovietizaria. Isso

porque, embora o rock, como aparição, já estivesse presente desde o Degelo, isto não

significava que sua presença fosse unanimidade e muito menos, que fosse esse um terreno

jejuno em disputas. A trajetória citada das bandas e músicos soviéticos durante os anos 1960,

interrompida por uma devida análise do período, merece ser melhor colocada, evidentemente,

também no tocante ao cenário sob Brejnev – afinal, se o fenômeno cultural lá aconteceu, foi

por sobre e através de fatores propiciados, tanto por influência exterior, quanto por

possibilidades internas da configuração que se assentava. As turbulentas transformações da

sociedade soviética na segunda metade da década de 1960, não seriam apenas motivadas pela

278HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 16

194

influência cultural: mudanças de ordem político-estrutural também dariam o tom do início da

Era Brejnev.

Nesse sentido, ainda que pairem dúvidas acerca de como a economia estivesse de fato

no período, pela escassez de material disponível ao acesso público e ainda, a inconfiabilidade

de pretensos boletins oficiais mais propagandísticos que estatísticos (conforme visto em

MORRISON, 2016; MARTENS, 1990), o que se percebe é que em Kruschev a economia

buscara se reestruturar no rescaldo ainda do pós-guerra, com iniciativas que insuflariam

participação/responsabilidade civil na realização da economia e dos valores do Socialismo

(como os editos legais, Antiparasitários e do Código do Cidadão na Construção do

Comunismo), se retomaria o contato com o exterior (doutrina de Coexistência Pacífica) e

criaria-se uma nova indústria de bens de consumo na sociedade soviética (consumismo no

Degelo). Com esse mesmo apelo, desde sua assunção na gestão local, Brejnev teria de fazer

reformulações nos setores da economia, que ao mesmo tempo a reabilitassem e ainda

trouxessem o estabelecimento de uma marca pessoal, mais diferenciada da postura anterior do

Degelo – uma vez que, os argumentos que o colocariam no poder, proviriam das críticas do

Comitê Central às claudicações e debacles sofridas por um Kruschev reformista, decorrentes

do Relatório sobre o Discurso Secreto, apresentado por Dimitri Suslov em outubro de 1964

(MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p. 87). A saída encontrada, ao que parece, segundo

Martens (1990), seria refrear a desestalinização que Kruschev promovera e reabilitar uma

administração com nuances mais firmes: corroborando-se a tese aludida que após sua

deposição, as críticas veiculadas a Stálin, praticamente, cessariam279.

Todavia, conforme MARTENS (1990) preceitua, afirmar peremptoriamente que o novo

mandatário, simplesmente, ojerizasse ou desaprovasse o anterior, pode ser muito precipitado:

Brejnev reconheceria durante os 23º e 24º Congressos do Partido Comunista, a importância das

teses levantadas por Kruschev, dentre as quais, as que denunciavam os vícios do culto à

personalidade, em Stálin. Assim, Brejnev e sua equipe teceriam uma forma singular de sustentar

a narrativa ideológica sob sua gestão: uma que não mais criticasse à Stálin e que não reabilitasse

Kruschev – cuja influência era evidente na configuração da Doutrina Brejnev, realizada a partir

de teores do Pacto de Varsóvia

Ampliando o vetor do Pacto, a Doutrina se aliaria a um investimento na retórica de um

Bloco Oriental coeso, uma sociedade eliminadora da luta de classes e da discórdia ou

279MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006. Op. Cit. p. 87

195

dissidência ideológicas280 entre as nações soviéticas (comunistas, socialistas e frente-

trabalhistas, integrantes da URSS ou pertencentes à porção geográfica do Leste Europeu) e

emergentes nações a liberarem-se do colonialismo e imperialismo (na Ásia, África e América

Latina).

Internamente, a batalha seria a de insuflar credibilidade novamente nos setores de

produção e na sociedade civil, que resultassem em confiabilidade e correspondência nas metas

estabelecidas, moral e economicamente. Não obstante, se haveria de continuar garantindo

articulações com a camada político-burocrática, pois não conviria perder o apoio daqueles que

recém haviam deposto um secretário-geral. Além disso, não se poderia tolerar, quer no setor

popular, quer no político, surgisse espaço para uma forma qualquer de divergência ou apelo ao

modelo anterior de governo, de modo que, a postura adotada propiciava uma espécie de

eloquente pacto do silêncio – eloquente, porque essa seria a marca da autopropaganda soviética

nos discursos de Brejnev (nos quatro congressos ao longo de sua gestão) e pacto de silêncio,

porque ninguém mais ousaria desafiar-lhe sem consequências.

A repercussão dessas transformações, repercutiria em emblemáticas mudanças de

cenário cultural que se seguiriam sob o novo mandatário no pós-Degelo, repercutindo,

inclusive, no destino do que seria feito com o rock local.

2.3.2 O Resfriamento em Brejnev: o Processo Sinyavsky-Daniel

Est’ Pravda, v Est’ Istina.

[Há a ‘verdade’, e há a verdade ‘verdadeira’]

Provérbio russo

Contrapondo-se ao anterior cenário de abertura cultural, em setembro de 1965 já

apareceriam indícios de mudanças nas liberalidades cultivadas até então pela política do

Degelo. Nesse ano (em 13 de setembro), ficaria afamada a polêmica em torno da prisão do

literato russo-soviético, Andrei Sinyavsky, acusado por práticas de agitação e propaganda anti

soviética (artigo 70 da Constituição Soviética), as quais vinham sendo investigadas, através de

informantes e da KGB, desde o ano de 1959 (tempo em que o escritor se encontrava escrevendo

de Paris, como colaborador a um suplemento satírico soviético, Phoenix, e utilizando-se do

280Surgiria nessa circunstância, toda uma própria linha partidária de interpretação do Marxismo-leninismo,

apontada segundo Brejnev, em seu aparente revisionismo da teoria, como interpretações criativas consequentes

do progresso da ideologia socialista. À essa forma de proceder revisionista, MARTENS (1990) afirma que

Kruschev a teria inaugurado e dela partilhasse Brejnev – como mais uma das evidências de inconsistência das

teorias que defendem que o mandatário agisse em detração à figura do antecessor.

196

pseudônimo Abrm Tertz, para veiculação de suas obras). A prisão do literato mobilizaria a

camada de intelectuais soviéticos, culminando no mês de novembro daquele ano em uma

passeata em Moscou (a Glasnost Mitinig, ou em tradução do russo, Reunião por

Transparência), liderada pelo escritor Yuri Galanskov, o matemático Alexander Esenin-Volpin

e acadêmicos, como, àquele momento, o escritor Vladimir Bukovsky. Nesse mesmo período,

outro literato estaria sob mira de investigações (sendo preso no dia 18 de setembro), o escritor

Yuli Daniel, que publicara conteúdo investigado, desde 1961, e atuava sob o pseudônimo de

Nikolai Arzhak. Seria inédito na história soviética, até aquele momento, que o artigo 70 da

Constituição fosse aplicado em exemplares de ficção. A acusação, reafirmada no bojo das

audiências no tribunal, seria a de que no suplemento satírico da revista (Phoenix) e de textos

como Assim Se Fala Em Moscou (de Daniel, de 1961), haveria conteúdo que exporia de maneira

maledicente, vexatória e inapropriada à imagem da sociedade e da administração soviética,

contribuindo-se à produção de uma noção falsa e insidiosa, espalhadora de mentiras sobre a

realidade local no imaginário exterior.

Decorrente dessas acusações, durante o princípio de 1966, os escritores seriam julgados

em Moscou no chamado Processo Sinyavsky-Daniel (em russo, Процесс Синиавскии-

Данель), sendo condenados, após as audiências iniciadas em 10 de fevereiro (nas datas de 12 e

13 do mesmo mês), à pena de prisão e trabalhos forçados (em sete anos, para Sinyavsky e cinco

anos, para Daniel), gerando grande comoção social e intelectual soviética e repercussões

internacionais. No circuito cultural interno, mobilizações de escritores, acadêmicos e

intelectuais se seguiriam, em uma carta da União dos Escritores Soviéticos – conhecida como

Carta dos 63 – constando nomes importantes literatos – dirigida ao Presidium, por conta do

acontecimento. Também nesse período, se remeteria à cúpula da administração local uma carta

aberta (A Carta dos 25), contendo libelos em nome da liberdade de expressão e contra a

arbitrariedade da medida, assinada pelos intelectuais Andrei Shakarov, Vitaly Ginzburg, Yakov

Zeldovich, Mikhail Leontovich, Igor Tamm, Lev Artsmovich, Pyotr Kapitsa e Ivan Maisky –

acadêmicos – Konstantin Paustovsky, Viktor Nekrassov – escritores – Dmitri Shostakovich,

Maya Plisetskaya, Innokenti Smoktunovsky e Oleg Yefremov – artistas da ópera, teatro e ballet.

Em trecho dessa publicação, percebe-se a tonalidade das repercussões locais do evento,

comparando-as ao sofrimento sob Stálin:

Nós pensamos que qualquer tentativa de evocar Stalin pode causar uma grave cisão na sociedade soviética. Stalin tem a responsabilidade não só pelas numerosas mortes

de pessoas inocentes, por nossa falta de preparação para a guerra [Segunda Mundial],

mas também pelas divergências das normas leninistas do partido e da vida do Estado.

Seus crimes e delitos distorceram a ideia de comunismo, a tal ponto que o nosso povo

nunca iria perdoá-lo. [...]

197

A questão da reabilitação política de Stalin não é apenas um problema nosso, interno,

mas também para a nossa política externa. Qualquer passo para a sua reabilitação, sem

dúvida, leva a uma nova divisão dentro do movimento comunista mundial – agora,

entre nós e comunistas no Ocidente. Do seu ponto de vista, essa recuperação seria

considerada como a nossa capitulação para os chineses [liderança comunista]. [...]

Hoje em dia, quando somos ameaçados tanto pela atividade dos imperialistas norte-

americanos e os alemães ocidentais em busca de vingança e pelos líderes do Partido

Comunista da China, seria absolutamente razoável se criar um pretexto para uma

divisão, ou mesmo para novas dificuldades em nossas relações com os fraternos

[comunistas] em partes do Ocidente.281

A repercussão interna, já transpareceria o entendimento que o evento desencadearia

externamente. Por toda sua bagagem, o nome de Stálin evocava polêmicas e proscrições. Como

de costume, os comunistas chineses (simpáticos ao mandatário de Tbilisi) que haviam visto em

Kruschev um traidor das medidas stalinistas, veriam o julgamento com bons olhos, sinalizando

uma reaproximação em Brejnev com a estrutura original – que de fato, nunca se consumaria,

nem durante Brejnev, nem depois (MARTENS, 1990)282. Quanto à negatividade e falta de apoio

ao evento em terras ocidentais, rapidamente, da parte de eminentes socialistas como o filósofo

francês Jean Paul Sartre, bem como de intelectuais ao redor do mundo, além de correspondentes

do The New York Times e da Radio Liberty, se faria manifesta, utilizando-se do incidente para

retomada de discussões acerca da liberdade política e de expressão, dentro do conflito de

ideologias no curso da sonante Guerra Fria. Ilustrando esse aspecto, em 1968 o embaixador

estadunidense na Organização das Nações Unidas - ONU, Arthur Goldberg, por ocasião da

Comissão Internacional de Direitos Humanos, faria pronunciamento acerca do tema,

ressaltando a necessidade de se colocar em pauta afirmações pelos direitos de expressão,

referindo-se ao episódio de supressão como afronta a um estamento básico do ser humano e um

ultraje – algo que seria rechaçado por representantes da delegação soviética e de outras

delegações alinhadas à orientação comunista, culminando no pedido de exclusão do texto dos

registros de discurso da comissão.

O saldo da circunstância inaugurada com o julgamento Sinyavsky-Daniel, é que não

281OUSHAKINE, Alex Serguei, The Terrifying Mimicry of Samizdat. Public Culture 13(2). 191-254; Duke

University Press. 2001; p. 197 282Essa opinião seria corroborada em fatos ainda no final da década: uma grave crise se precipitaria entre a URSS

e a República Popular da China em 1969, por conta da disputa pela territorialidade das ilhas Damankski/Chenpao

o limite fluvial do rio Ussuri. Farpas trocadas em acusações de alinhamento ao Imperialisnmo e chauvinismo do

grande poder, seriam direcionadas da cúpula chinesa ao Comitê Central soviético. Em contrapartida, Brejnev e

seus integrantes do Politburo retribuiriam com acusações de que a China estivesse se tornando uma sectarista ao

Comunismo internacional e agregadora de um excesso de nacionalismo. O acirramento da disputa chegaria ao seu

clímax com uma exigência de Moscou de retirada incontinenti de tropas chinesas e coletivos em exercício militar

da região, sob ameaça de utilização do arsenal nuclear e mobilização das tropas do Exército Vermelho. Receosos

de darem um passo incauto, os partidários chineses cederam às exigências e o clima entre as nações entraria em

uma trégua ríspida e indeterminada. Fonte: SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.

198

somente a perseguição aos dissidentes da cultura no regime soviético ficaria reafirmada, como,

consequentemente, isso viesse a engrossar os incidentes de protesto durante os momentos

posteriores. Fruto dessa conjugação de fatores, em 1967, outro caso de literatos viria a

julgamento: o Processo Galanskov-Ginsburg, onde os outrora libeladores por Sinyavsky e

Daniel, escritores Alexander Ginsburg (compilador de um relatório sobre o julgamento, o

chamado Livro Branco, de 1967, se tornaria acusado por sua realização) e Yuri Galanskov

(poeta e organizador da manifestação Reunião por Transparência, em 1965, e que seria acusado

oficialmente por iniciativa na mesma), reforçariam o cenário de enfrentamento a um aparato

que se remodelava em sua gestão, através da retomada do circuito de retaliações sobre atitudes

das dissidências soviéticas.

A cobertura dessa sequência de eventos por tabloides Ocidentais e por veículos de mídia

(como as rádios BBC, Deutsche Welle, Free Europe, Voice of America, além dos demais já

citados suportes de informação), colaborariam a estabelecer o antagonismo no cenário

internacional, em torno de uma narrativa de contraposição ocidente-oriente em torno da

liberdade contra o autoritarismo – semelhante à vivenciada durante o embate da Doutrina

Truman contra o Relatório Zhdanov, décadas antes. Nesse mesmo escopo, com a re-stalinização

de Brejnev e a recrudescida Revolução Cultural a que a China daria início a partir de 1966, se

construiria uma imagem de que o Comunismo mundial seria constituído de regimes de

perfilamento ideológico totalitário, sem espaço para liberdade de expressão ou alternativas de

dissidência.

Curiosamente, desmentindo essa impressão dada como oficial, a atuação de indivíduos

no sentido de rebater a imposição estabelecida, faria grassar com enorme impulso a circulação

de material literário clandestino – os samizdat, que desde outrora, e como de costume, se fariam

participantes em momentos de refreamento cultural283. E nesse sentido, a utilização do mercado

paralelo (segundo mercado, na expressão local), que se faria crescente em consequência das

reformulações econômicas de Brejnev, seria uma ferramenta fundamental à disseminação

cultural alternativa, essa que tradicionalmente escrita.

2.3.3 O Aquecimento da Economia em Brejnev: o Ministro Kosygin, os passos tortuosos

para o incremento das condições de vida na URSS e outras questões sociais pertinentes

O mercado em questão não era um mercado capitalista, mas um que socialista, e isso, precisamente,

que permitiria articular tal mercado com uma planificação a longo prazo e criar um novo modelo

283WALKER, Barbara, Moscow Human Rights Defenders Look West: Attitudes towards U. S. jornalists in the

1960´s and 1970´s. Kritika: Explorations in Russian and Eurasian History. Semantic Scholar, 2008.

Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Moscow-Human-Rights-Defenders-Look-West%3A-

Attitudes-Walker/01f23cef705a13172dd83c463d6f4796e380fa56. Acesso em: 21/08/2020

199

humano de civilização técnica. Numa primeira etapa, concluída em 1965, evidenciou-se o papel da

participação dos trabalhadores nos benefícios materiais para estimular a produção e a produtividade. Na segunda etapa, em 1966, introduziu-se modos de fixação de preços e lucros em função do custo e

das necessidades de capital circulante. A terceira etapa, começada em 1967, concederia maior

autonomia às empresas, [...] A regulação e a orientação do mercado futuro e do consumo, não se

realizam, portanto, de maneira mecânica e autoritária, através de um plano concebido e dirigido de cima. A comissão estatal o elabora e por mediação de mercado, mudanças de estrutura social e

desenvolvimento das necessidades humanas se modifica o modelo de consumo.

Roger Garaudy, Toda A Verdade284

Do ano de 1965 até o final da década, não apenas os incidentes em torno de um – suposto

– retorno à repressão cultural estavam em curso na URSS. Pudera, não se estaria mais vivendo

em décadas passadas, mas em uma sociedade cujo processo de experimentação de muitas

transformações desde Stálin, não permitiria que mais uma vez e com a mesma fórmula as

nuances de um governo rígido se viessem instalar. Conquanto isso fosse uma verdade a se

observar, haveria ainda um espaço para autoridade dentro da administração, com o aumento da

intromissão dos órgãos fiscalizadores – oficiais, como KGB, Komsomol e União de Comércio,

até populares, como os druzhinnikki – na vida cotidiana civil.

Esse espaço seria aproveitado pela administração para impor-se. A economia, que

costumeiramente experimentara surtos de desenvolvimento e períodos de crise intercalados,

seria um gargalo a contornar, pois se Kruschev havia tido de lidar com depauperamento do

erário e processo de reconstrução na década do pós-guerra (1950), Brejnev teria de lidar com

formas de contornar a imagem precária que a URSS ganhara na atenção Ocidental: uma nação

contrastada por conquistas tecnológicas exorbitantes, mas afetada economicamente nas

colheitas e no consumo popular, além de politicamente enfraquecida – pelas concessões ao

lado opositor, EUA, durante os eventos de espionagem e da Crise dos Mísseis. A economia,

então, para além de uma necessidade seria vista como uma aposta para constituir um estandarte

da nova administração, recuperando a imagem soviética, ampliando sua influência política e

reavendo junto ao povo seu melhor potencial de produção.

Com este entusiasmo – e ciente das carências que teriam de ser enfrentadas – a cúpula

administrativa soviética elegeria o partidário Alexei Kosygin para a tarefa a Pasta da Economia,

concomitantemente, seria nomeado o presidente do Conselho Ministerial soviético, órgão

diretor do poder legislativo local (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p. 87). Sob sua tutela

decisória, desde 1965, se adotaria na União Soviética uma Economia Responsiva 285 um

programa de reformas que recepcionariam certas práticas do repertório capitalista, com intuito

284GARAUDY, 1985. Op. Cit. p. 73 285GELDERN, 2003. Op. Cit

200

de tornar a economia mais flexível e reativa. Por esse mote, o planejamento do crescimento

econômico não mais se daria pelo índice de produção alcançado, mas pelo número de produtos

vendidos no mercado consumidor interno. Adotaria-se ainda, a cobrança de taxa de juros por

fundos de capital e a possibilidade de livre reinvestimento dos lucros das empresas locais. Essas

medidas, que seriam bem recepcionadas pelo setor produtor, também garantiriam a

continuidade do controle pela porção estatal (a qual ainda ficava a cargo da fixação de preços)

– o que parecia um bom acordo para ambas as partes naquele momento.

Entretanto, tão logo as medidas foram postas em prática os setores produtivos se deram

conta de que as coisas não seriam tão simples assim: sem liberdade de fixação de preços, o

avanço do setor não conseguia acompanhar as metas de produção e consumo, deixando-se criar

a partir da falta de motivação estabelecida, uma segunda economia (mercado paralelo) de

produtos locais (e importados, inclusive), fornecidos ilegalmente por canais clandestinos da

sociedade local. Paradoxalmente, essa circulação ilegal se mostrava necessária a suprir a

demanda local, posto que as empresas responsáveis pela produção, bem como seus

trabalhadores, se viam pouco propensas a contribuir com um esforço local desproporcional no

aspecto de retorno, ocasionando que o desabastecimento de certos gêneros acabasse sendo

contornado pela ação de atravessadores ilegais – como os tolkachi (traficantes), que acabariam

sendo pouco fiscalizados por atuarem como espécie de base fundamental não apenas da

chamada ‘segunda economia’, mas da própria economia formal. Tal comportamento abriria

margem a perverter o intuito da administração responsiva, criando uma corrupção endêmica e

setorial no estabelecimento local, onde quem era visto buscando cumprir as metas ou fazer um

serviço favorável à economia planejada, era tido como ingênuo ou colaborador com o regime

oficial286. A Economia Responsiva fracassaria assim, em suas metas, sendo boicotada por

aqueles que teriam sido esperados como seus principais artífices, posto perceberem que o

esforço empreendido não seria recompensado equivalentemente.

Conjuntamente às novas demandas populares, resultantaria também que os setores de

produção local estivessem mais habilidosos em perceber formas de contornar o sistema de

controle de planificação e distribuição da produção: se por picardia ou vileza, a realidade é que

muitos dos bens em falta no abastecimento cotidiano, seriam de fato produzidos, só não seriam

direcionados ao consumo local, sendo então, verdadeiramente, encaminhados diretamente ao

mercado negro para serem oferecidos, à preços elevados, por atravessadores confiáveis

286Idem

201

paralelos ao setor produtivo soviético287. Não à toa o historiador britânico mencionar

criticamente acerca da Nomenklatura: precisamente, o setor central e demais setores de alto-

escalão da administração teriam ciência de todo esse trajeto irregular, ocasionando que parte

substantiva da sociedade precisasse simbioticamente da colaboração dessa camada dos setores

produtivos, para atendimento de suas necessidades de consumo e gestão. Como visto no relato

de Salnikov (2005) ou do músico Vitya288, a pouca disponibilidade de materiais incidiria

também aos músicos e aficionados do rock, tornando que momentaneamente aquilo que para o

restante da sociedade constituísse um segundo mercado, fosse a primeira opção para aquisição

de determinados instrumentos e discos (mesmo sob preços exorbitantes). Comentando a isso, o

luthier Yuri Dimitrievsky (1990) recobra parte dessa relação entre a Economia Responsiva

(cujo ápice seria em 1968) com o surgimento das primeiras guitarras elétricas na URSS, e como

haveria uma relação entre produção paralela, preços exorbitantes e ‘caminhos irregulares’ de

fiscalização:

Só em 1968-69 as primeiras guitarras elétricas soviéticas feitas de fábrica começaram

a aparecer nas lojas de música. A primeira se chamava "Tonika". Design estranho,

superpesada, difícil de tocar; ainda assim, nós, adolescentes, ficamos fascinados. Foi

um assunto dos nossos sonhos! Mas logo, ficou evidente que elas dificilmente

poderiam competir com nossos próprios machados [pickguards] feitos em casa,

embora pudéssemos apenas sonhar com todas as madeiras estragadas pelos

fabricantes de "Tonika". Aquelas primeiras guitarras elétricas russas tinham escalas

de ébano! Mais tarde, Tonika juntou-se a Aelita, Ural e várias outras marcas,

produzidas por quatro ou cinco fábricas musicais em diferentes cidades da URSS, e

normalmente com preços na faixa de 200 rublos. Esses instrumentos ruins eram

geralmente comprados – não por músicos sérios, mas por sindicatos para desperdiçar os fundos sociais e culturais que sobravam do fim do ano. [...] O mesmo

desenvolvimento ocorreu com instrumentos acústicos: não apenas com violões, mas

também com todos os instrumentos folclóricos de cordas. Os instrumentos acústicos

teriam, no entanto, uma vantagem aqui sobre os elétricos: quase todas as fábricas

tinham um pequeno grupo de artesãos qualificados trabalhando sob encomenda junto

com a linha de produção regular. Esses instrumentos personalizados eram

drasticamente superiores – alguns deles eram até peças de arte. [...] Eu costumava me

fazer uma pergunta ingênua, por que isso acontece? [...] Um pesadelo? Não, apenas

um evento comum que qualquer russo pode explicar para você. [...] Os fiscais, via de

regra, podiam ser comprados, e o procedimento era descrito como "saque interno".289

Como o excerto recobra, seria a partir de seu próprio exemplo, por indiscrições e

favorecimentos pelos próprios integrantes do aparato oficial, esfacelaria pouco a pouco a

qualquer chance de sucesso à reforma e se veria passível de empreender concessões e

subterfúgios à corrupção em lugar de fiscalizá-la, puni-la e eliminá-la, segundo a ótica

idealizada na observação escorreita dos princípios morais socialistas – opinião essa corroborada

287GELDERN, 2003. Op. Cit. 288CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 97 289DIMITRIEVSKY, Yuri. Glasnost Correspondence With A Russian Guitarplayer (1990). In: CHIVERS, J.

Cheezy Guitars (2001-2003). Disponível em: http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 24/06/2021

202

também em Hobsbawm, 1995, Garaudy, 1985 e Martens, 1990.

O clima esquentava, mas não apenas no sentido econômico. Em 1968, na República

Socialista da Tchecoslováquia, chefiada pelo líder político Alexandr Dubcék, a juventude e

setores da sociedade civil fariam aflorar o movimento intitulado Primavera de Praga, importante

evento de dissidência política. Clamando por melhores condições de autonomia na gestão local,

por uma identidade mais humana e solidária do Socialismo e a retomada dos princípios na

administração pública, num manifesto epitetado como Programa de Ação (redigido em de abril

de 1968), baseados na premissa leninista de um ‘Comunismo construído não apenas para os

trabalhadores, mas pelos trabalhadores (p. 77), as manifestações ganhariam repercussão,

fazendo estremecer o conceito ‘únivoco’ da interpretação política e ideológica do Socialismo,

ampliando a voz de setores locais tchecos (apoiados, inclusive, por partidários em outros países)

requerentes de uma visão mais efetiva da democracia socialista, e provocando com isso, o

tensionamento com o aparato oficial do Politburo. Em advertência pela dissolução dos

protestos, tropas do Exército Vermelho seriam deslocadas até Praga e com a persistência da

atitude, seria autorizado o uso da força – criando-se cenário para a primeira grande repercussão

violenta, em sentido político, do regime de Brejnev.

O rock não poderia vir a encaixar-se em um momento mais afeito às suas características:

na controvérsia, no terreno das tensões e com manifestação juvenil nuançada, a as tonalidades

da revolução cultural ecoariam desde os gritos parisienses contra o governo de De Gaulle,

quanto às manifestações anti-Guerra do Vietnam dos EUA e pelos direitos civis. Enquanto isso,

em terreno interno da RSFS da Rússia, também matizadas por pipocantes contradições, Moscou

serviria-se a reafirmar o já nuançado cenário de disputa e choque geracional (generation gap;

GELDERN, 2003) evidenciado desde um princípio tímido durante a metade da década: não

apenas entre estudantes, mas em suplementos juvenis como o Krokodil (como já salientado,

revista soviética de grande circulação à época)290, já se evidenciaria a preferência dos jovens

por novas tendências de comportamento, uma crise no modelo sartorial de costumes local e a

colocação de um estilo de vida ligado a percepções mais humanistas (GARAUDY, 1985; p.

63). Se nos Estados Unidos se estaria vivendo o Flower Power e o libelo contra o Vietnã e na

França se observaria dos Distúrbios de 68, na URSS, seria pela música, que se evidenciaria uma

pronunciada dissidência juvenil, acompanhada pelo apelo de transformações291.

Em meio às reviravoltas juvenis, em 1969, que do recém alimentado clima flower power

290GELDERN, 2003. Op. Cit. 291Idem

203

(em 1968), outro jovem estudante e aspirante músico, Anastas ‘Stas Namin’ Mikoyan, fundaria

seu grupo Tsvety (‘Flores’), na capital federal. Em simultâneo, um jovem estudante também de

Moscou, Andrei Makarewicz fundaria o grupo The Kids (transliteração de Mal´chiki), que

dentro em breve se tornaria uma das mais importantes bandas do rock local: a Machina

Wremenyi (‘Máquina do Tempo’) – demonstrando ao momento, que ainda existente um seyshn

local, o qual propiciaria a futura geração de protagonistas do rock soviético.

A década que se encerrava e com ela inúmeras bandas (conforme visto no capítulo 2.3.1

The Rocket and The Rock), dando surgimento a novas e perspicazes aparições. Aguçando sua

percepção, o aparato se impelia a capturar os fenômenos locais, sobretudo os situados dentre a

juventude, como constituintes de um elemento favorável ao estabelecimento soviético. Em

contrapartida, em outros setores, o rock se constituía uma comunidade distinta.

Em algum senso, se afirmaria um recrudescimento cultural sob Brejnev (evidenciado

por um início bombástico, com os julgamentos de literatos, por exemplo), mas de aspectos

matizados. Àquele momento, o teor intimidador, acompanhado de medidas de controle (na

sociedade e na economia), tendia a funcionar como uma propaganda, uma projeção

remanescente, da unidade e do controle da administração sobre a sociedade e a ideologia –

tendo a cultura, papel fundamental nessa composição.

2.3.4 ВИА: Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль – VIA: Conjuntos vocais

instrumentais ou Eram os rockeiros cosmonautas!?

‘Kto khochet, ne mozhet. Tot, kto mozhet, ne khochet. Kto khochet i mozhet, eto zapreshcheno.’

[Aquele que quer, não pode. Aquele que pode, não quer. Aquele que quer e pode, é proibido.]

Anedota Soviética

O som dos acordes do rock na comunidade acadêmica, se fizera uma realidade em

Moscou. Munidos da bagagem das guitarras, jovens estudantes soviéticos estariam na jornada

de fazer a sonoridade estrangeira localizar-se, mais e mais. Como visto com o fenômeno dos

Beatles, do intrigante de um ineditismo do estilo, até a desmistificação da música Ocidental,

surgiria apelo ao experimentalismo: esse que na própria pele, no desafio de ir tocar e cantar um

rock local. Em Brejnev, ao observar-se uma economia com oscilações entre a imagem da

bonança e o cenário da crise, permeada de atravessadores e burocratas vacilantes em relação à

construção do Comunismo, surgiriam formas de aquisição dos instrumentos e de gerenciamento

às apresentações das bandas recém-formadas.

Enquanto a administração nos altos escalões não se importasse com as apresentações,

204

tudo ficava confortavelmente escamoteado. Contudo, numa atmosfera em que a imagem oficial

desejava impor-se (como no caso do julgamento-espetáculo Siniavisky-Daniel), os primeiros

casos de apuração judicial acerca das operações dos grupos musicais juvenis (dentre os

komsomolets) ficava evidente e cobrava-se uma postura do Partido. Um dos marcos precedentes

desst apuração – citado por SALNIKOV, 2005 – seria o julgamento, no fim da década, do

gerente do grupo Falcon (Sokol), Yuri Aizenshpis, por crime de enriquecimento ilícito,

atribuído ao uso do aparato estatal para favorecimento de atividades estudantis mediante lucro

e evasão fiscal (VOLODYN, UDOVENKO, 2009). Nesse momento, duas coisas ficavam

assinaladas: a administração soviética prestara atenção nas atividades culturais daqueles jovens

estudantes, bem como em sua música estrangeira e seus facilitadores, mas, sobretudo, ao

impacto que ela causara na sociedade local, num sentido de apelo comercial e de cultura.

Da perspectiva dos jovens músicos estudantis, uma verdade era evidente: o final da

formação nos Institutos Superiores chegava e com isso, o momento de assumir as profissões

para as quais se haviam formado. Cabe recordar, que o exercício de atividade irregular era

infracional (CUSHMAN, 1995; p. 75), portanto, a atividade musical exercida por um não

músico, nunca poderia ser tratada, oficialmente, como sua fonte profissional de sustento. Por

outro lado, para seguir a via oficial, carecia-se da credencial na União dos Compositores

Soviéticos (RAPM) e para isso, uma base de formação musical autorizada – que em Moscou,

por exemplo, ficava a cargo da formação acadêmica ou em conservatórios, como o renomado

Instituto Gnessin.

Resultado dessa conjunção de fatores, é que algumas das importantes bandas surgidas

pela década, teriam ao longo dos 1960, seu encerramento, rumando cada qual dos seus

integrantes ao exercício de suas respectivas carreiras profissionais de formação

(MAROCHKIN, 2011a). Mas, e a despeito disso, o que aconteceria a alguns dentre esses ex-

universitários, os quais haviam descoberto vocação a partir da música despretensiosa do circuito

acadêmico e decidindo fazer-lhe profissão? E com um agravante: utilizando para isso, do

polêmico rock dentro do sistema cultural soviético?

Em meio à tantos movimentos em cruzamento o panorama que se construía era de uma

convergência de interesses. De um lado, a instituição estatal soviética dispunha de poder de dar

continuidade aos projetos (visto que partia dela a autorização), bem como os em métodos de

rastreamento de dissidentes. De outro lado, tinha-se de dar atenção às transformações que já se

observava àquele período, no tocante à circulação de informações e produtos culturais. Então,

para fazer-se uso da polêmica sonoridade (com guitarras, contra-baixo, bateria e vocais), tudo

teria de passar por uma conversão – em outras palavras, não bastava mais ser um rock tolerado,

205

mas um que produzido em nível institucional, a sovietizar-se oficialmente. A alternativa

encontrada seria o encampamento oficial do estilo musical (rock e outros ritmos de influência

Ocidental) sob a tutela de produtores ligados e subordinados ao Partido e aos interesses locais:

surgiam assim os VIA, sigla de Vocalnyi Instrumentalnyie Ansambly (em cirílico, ВИА; sigla

de Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль) ou Conjuntos Vocais Instrumentais

(CUSHMAN, 1995; p. 6), grupos estatais patrocinados, constituídos por alguns dos jovens

músicos experimentais de outrora e o suporte de demais profissionais filiados, gerenciados e

produzidos sob supervisão, submetidos ao esquema de produção estatal (que incluía a

possibilidade de acessar-se a Melodiya), entoando canções e letras compostas por músicos e

compositores credenciados. Nessa barganha, atendia-se os anseios musicais dos jovens

aspirantes, a darem vazão aos seus pendores musicais, enquanto adequava-se a produção a um

controle, conformista e absorvedor dos valores e da estrutura de produção artística local

(CUSHMAN, 1995; p. 62).

Quanto a essa absorção dos profissionais da estrutura local, uma importante saída

encontrada pela administração soviética, junto a da iniciativa VIA, seria a criação de uma

variante: o chamado Rock Filarmônico (Philharmonic Rock), onde um corpo musical atuava

em suporte às apresentações dos conjuntos, constituído de músicos de formação mais erudita

(escola clássica), realizando os concertos em parceria a um grupo de rock. Tanto os integrantes

do VIA, quanto esse corpo de suporte, eram constituídos de músicos credenciados ao aparato,

e a iniciativa do rock filarmônico, se comportava de maneira similar ao acompanhamento

emprestado aos intérpretes do gênero Estrada (onde saía a figura do crooner solo e adentrava a

figura do conjunto principal, VIA, amparado pelos músicos secundários, sinfônicos)292. Com

tal estratégia, mais do que articular-se um controle sobre a produção e circulação da música

com influência estrangeira, a nova iniciativa possibilitava servir de propaganda, internamente

e ao exterior, das modernizações e do progresso pretendido pela vigente administração – não

mais uma nação sisuda, mas situada nas influências contemporâneas e que se importava com

os interesses do consumidor interno.

No que concerne às vantagens de se associar ao modelo VIA, essas incluíam a maior

facilidade de acesso aos recursos de produção e distribuição da indústria cultural soviética:

locais para apresentação (em excursões patrocinadas a diferentes institutos superiores e

complexos esportivos), eventos (desde bailes estudantis até suplementos culturais em

celebração aos alcances da Cosmonáutica), autorizações para apresentações (passes internos

292CUSHMAN,1995. Op. Cit. p. 62

206

agenciados pelos gerenciadores), possibilidade de gravação e exibição em rádio e televisão

(acesso à Melodiya e transmissão ao público espectador em programas como o Karnival), além

de acesso a melhores instrumentos, em sortimento e qualidade. Não obstante, podia-se ganhar

salário pelas exibições e angariar recursos relativos a direitos de composição e produção, de

maneira autorizada pelo aparato.

A desvantagem, seria ceder à absorção pelo sistema, que não permitiria certas

composições ou conteúdos e ainda, impunha programações e temas para o esquema de produção

e oportunidade dos espetáculos. Como recorda um dos entrevistados por Cushman (1995; pp.

81-83), o guitarrista virtuoso Igor Romanov293, sua barganha faustiana em poder tocar junto

ao circuito comercial do VIA, lhe proveria alegrias e desagrados. Com foco nos desagrados,

contabilizaria o manejo, muitas vezes displicente, dos gerentes (o músico menciona um certo

Camarada K., referência satírica aos membros oficiais designados para fiscalização da produção

cultural), os quais por serem indivíduos que articulavam as possibilidades de espetáculo e

recursos de apresentação, constantemente interferiam na banda e, não mais que burocratas

treinados, desprovidos de uma maior profundidade ou sensibilidade musical sobre os ritmos

dessa nova vanguarda, não concebiam distinção de qualidade entre o material do processo

artístico e do programa institucional designado.

Desse modo, não raro, atrapalhava-se apresentações, surgiam letras estapafúrdias (mas

politicamente aceitáveis), substituía-se músicos sem aviso prévio dos demais integrantes e

impunha-se alterações de material e itinerário, que muitas vezes ocasionavam dissabores e

conflitos de perspectiva entre os integrantes dos VIA e o interesse do aparato. Na sua opinião,

haviam dois interesses conflitantes a se considerar: por um lado, a questão da necessidade de

boa circulação comercial, pois embora patrocinados, o sucesso comercial garantia a aquisição

de mais instrumentos (de melhor qualidade, sortimento e mais caros) e outros elementos, que

só eram possibilitados pela administração aos grupos que estivessem fazendo maior sucesso

(‘Nós precisávamos de um monte de dinheiro para os instrumentos e tudo o mais.’;

CUSHMAN, 1995; p. 84); e por outro, que o encare frívolo dos oficiais com o assunto,

ocasionava incessantes dissoluções dos grupos, que somado à imposição de letras e programas

‘ruins’ nos repertórios (apenas uma entoação de slogans partidários, conformistas e

293O músico é aqui identificado, a partir de cruzamento de fontes acerca da formação do grupo Rossiiane (ao qual

o músico se referia estar integrante na década de 1970, ao momento em que relatava à Cushman, 1995). A presença

de Igor Romanov bate com a formação do grupo de Leningrado descrito no ano de 1976, após a saída do líder

fundador da banda, Alexander Krol e a assunção de G. Hordonovsky. Fonte: VOLODIN, V; UDOVENKO, O;

Группы СССР, Рок – Это Жизнь [Em russo] [Trad. Livre: Grupos da URSS: Rock – É Vida]; Moscou, 2009.

Ficheiro: Россияне [Rossiiane]; Disponível em: http://www.gruppasssr.ru/; Acesso em: 21/01/2021

207

propagandistas; CUSHMAN, 1995; pp. 83-84), levavam a derrocada de grupos estabelecidos

e reconfiguração em novos projetos – gerando um clima permanente de instabilidade.

Dentre as alegrias rememoradas com a experiência em circuito comercial, o músico Igor

observaria que através do VIA, podia-se fazer a diferença e obter-se com sua atuação, episódios

sublimes de virtuosismo, aos músicos e às plateias insuspeitas. Essas, que inclusive, se

maravilhariam em desfrutar, não dos concertos estabelecidos, mas justamente desses momentos

de improviso, liberdade criativa e reconfiguração de arranjos, que intercalavam cada

oportunidade de concerto. Em sua própria descrição recordando a uma dessas oportunidades:

E então nós estávamos tocando aquela música complexa [...] e nos apresentávamos

em diferentes institutos. [...] Tínhamos de fato, um grupo decente. Muitas pessoas

apreciavam. Me surpreendia que aqueles que vinham aos concertos preferiam a

música complexa, aquela que vinha do fundo dos nossos corações, muito mais do que

a parte comercial que imaginávamos que agradaria ao público. Lembro que uma vez

estávamos tocando uma seyshn e havia um monte de gente assistindo. Nosso grupo

era, então, bem conhecido e ao encerrarmos a primeira parte de nossa apresentação, o

público recebera de tal maneira o material, que um sujeito pulou no palco e nos prestou

uma reverência, e saiu. Estávamos perplexos. Havíamos pensado que se tocássemos por uma hora, sem parar, do nosso material de improviso, o concerto seria um

fracasso. Depois de uma pausa, retomamos os assentos e começamos novamente a

tocar. Quando terminamos houve uma pausa de cerca de meio minuto, silêncio, e

então o público explodiu numa ovação e aplausos, gritando.

Então ficou claro pra nós de que devíamos fazer aquilo que sentíamos [...] aquilo feito

com o coração, não em nome de alguém. [...] Todos éramos profissionais. E todos

havíamos nos graduado em escolas de música, tínhamos muita experiência, e

prestávamos mais atenção à música, acima de tudo, embora tivéssemos composições

interessantes, também. [Tradução do inglês e grifos nossos]294

O uso da estrutura para o alcance e disseminação de um sublime, partiria desses músicos

com um propósito, aparentemente, diverso, extrapolador do pretendido pela instituição

soviética oficial, e nisso constituindo-se outro importante exemplo de agência em relação ao

aparato, colocando, como Cushman (1995) delimita, o estabelecimento de um outro significado

a sua música em meio àquela realidade. Ainda assim, esse tipo de atividade musical junto ao

cenário comercial soviético (VIA) seria visto por outros músicos, exteriores ao circuito de

produção oficial, como algo não rockeiro.

Como observado no excerto, o músico enfatiza o fato de todos ali serem profissionais

da música e possuírem formação musical. Entretanto, nem todos conseguiriam preencher esses

requisitos, e nem por isso, deixariam para trás o sonho com os acordes. Nesse sentido, da

geração de bandas da década anterior, um segmento soviético, com base à tradição da música

marginal, clandestina, traria uma outra concepção acerca do papel e da atitude do rock –

centraria, justamente, em preterir-se às facilidades providas da estrutura comercial, procurando

294CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p.83

208

assim, preservar sua autenticidade. Em meio a esses músicos não profissionais, egressos de

bandas da década anterior, não enquadrados e amealhados a outros aficionados do estilo,

também não credenciados, começaria a surgir uma comunidade de rockeiros (uma outra cultura

do gosto) dotada de particularidades, com códigos próprios e uma ética interna de classificação

de suas práticas, demarcando o surgir de um sistema simbólico à parte do ‘conformista’,

chancelado pelo Estado.

Uma das mais relevantes comunidades nesse aspecto dentro da União Soviética,

segundo Cushman (1995; pp. 166-169), seria a comunidade de rock de Leningrado que

atuaria, desde o princípio da década de 1970, em contraposição ao cenário comercial moscovita

e pela demarcação de que estar à serviço do Estado na capital federal, não constituía rock, mas

‘apenas uma música, guitarras e pessoas cantando’ – sem muitas das características que

constituintes ‘extramusicais’ do ritmo, como a presença de um ideal, energiia e

desprendimento, e a ênfase na poesia, na produção artesanal e intensa rede de contato e

disseminação de cultura musical.

Dali por diante, ao longo da década de 1970 poderia-se começar a falar em dois cenários

‘rockeiros’ bifurcados na URSS: um, o que se tornaria a Fase Televisivo-Radiofônica do Rock

Soviético, representado pela metade patrocinada, encabeçada pelo VIA, e o outro, esse que de

Fase Underground, em continuidade com as práticas evidenciadas com a cultura do

roentgenitzdat (em bootlegs de rock, jazz e foxtrot) e do magnitzdat (com os magnitoalbomy de

música barda; blatnaya muzika) na década anterior, sendo tal, por característica, a metade

desprovida de recursos patrocinados ou comerciais, atuando autonomamente, na

clandestinidade.

E enquanto, no cenário interno, essa dicotomia acontecia num dos segmentos da cultura

soviética, no cenário exterior, o Estado soviético parecia propenso a reaproximação com o

Ocidente, demarcada no começo da década, por dois eventos importantes: a assinatura dos

tratados internacionais de desarmamento nuclear mútuo e a colaboração na prospecção espacial

através da Estação Espacial Internacional.

Acerca da sinalização de boa-vontade entre as nações em conflito indireto, os esforços

colaborativos entre ambos na prospecção espacial, demonstrava-se que as duas superpotências

da Guerra Fria entravam numa fase de distensões, a chamada Détente295 (galicismo de

Detenção; relaxamento; que segundo autores, demarcaria o fim da primeira Guerra Fria; em

russo, razriadka). Produto do acordo de colaboração entre cosmonautas, astronautas e

295SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.

209

engenheiros aeroespaciais soviéticos e estadunidenses, resultaria a Estação Espacial

Internacional (International Space Station – ISS). Tudo sinalizava à superação dos

ressentimentos da Space Race, principiada ainda entre Kruschev-Eisenhower, cuja vantagem

inicial fora da URSS, após o Sputnik, o míssil inter-continental balístico Semyorka e o vôo

extra orbital de Gagarin (de 1957 a 1961), mas que fecharia a década sinalizando a vanguarda

americana, a partir da NASA, do programa Apollo e o pouso na Lua (em 1969) – na fase da

disputa ocorrida entre Brejnev-Nixon. E se a Space Race embalava-se em ventos de mudança,

se caberia ajustar interesses à realização de um refrear da Arms Race (Corrida Armamentista).

No que tange aos tratados de desarmamento, suas rodadas de início situavam-se na

transição do decênio (1969-72), culminando no chamado SALT (sigla de Strategic Arms

Limitation Talks, ou Conversações Sobre a Limitação de Armas Estratégicas) a serem

assinalados entre URSS e EUA, após conversações realizadas entre Leonid Brejnev e Richard

Nixon sobre a formas de materializar o compromisso – Hobsbawm, 1995; p. 191. Com a

realização do SALT I, das negociações principiadas no encontro internacional em Helsinque

(Finlândia), em 1969, se estabelecia uma redução da reposição dos arsenais nucleares entre as

duas potências, culminando na firmatura de um acordo bilateral em 1972.

Contudo, retrocedendo ao início dessa circunstância, uma Détente que começava com

um ‘sorriso amarelo’ entre as superpotências, acrescia-se no cenário interno da URSS, a

evidência de um refreamento no quadro de crescimento econômico, ao qual se seguiria uma

deterioração expressiva da economia local – a fase chamada de Zastoya, ou Estagnação, no

idioma russo – responsável por um cenário impactante ‘socialmente, muito mais do que

propriamente econômico’ (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p.85).

A aurora do esquema VIA não se dera ao acaso, situando-a na reaproximação com os

EUA, pode-se observar de seu uso como estratégia de propaganda do governo Brejnev, o qual

passaria a retirar dos recursos dessa carismática ferramenta (entretenimento), amealhados das,

ainda restantes, glórias da cosmonáutica (reanimada com o trunfo da Estação Espacial

Internacional), o estandarte para dissipar indícios de desconfiança sobre os rumos da

administração. Enquanto que, em paralelo, sob o clima da Détente, tratava de avançar seu leque

de influências por sobre outros territórios296 – não com ‘guitarras elétricas’ mas da proposição

296Ao longo da década de 1970, durante a Détente, os soviéticos avançariam por sobre as insurgentes (ex)colônias

de África (Angola, por exemplo) e Ásia (nos países da antiga Indochina, de Vietnã, Camboja e Laos), buscando

alinhá-las politicamente, ao financiá-las em suas revoluções e reconstruções pós levantes contra suas metrópoles.

Em contrapartida, ao mesmo período, Henry Kissinger, tido por Nixon como o ‘articulador das relações exteriores’,

amealharia contatos com países como o Brasil, a Indonésia, a Turquia e o Irã, em tentativa de rivalizar ao avanço

da égide diplomática comunista. O reconhecimento, a partir do Acordo de Helsinque (1975) de fronteiras

demarcadas após a Segunda Guerra Mundial, seria um tapa de luva dos soviéticos ao ‘revanchismo’, e iriam ao

210

de uma doutrina militar que ficaria conhecida por Guarda-Chuva Brejnev (MARTENS, 1990).

Como fora de costume, desde Kruschev, a cada pedra no sapato da administração,

apelaria-se, ainda uma vez mais, ao charme da cosmonáutica. Coincidência ou não, recordando

a Salnikov (2005) e Marochkin (2011a), a trilha sonora a embalar esses novos tempos da URSS

e sua última façanha Cosmonáutica, se confirmaria sendo a do rock soviético, recepcionando

os ‘ases estelares da oficialidade militar soviética’ com as timidamente brilhantes ‘estrelas do

bigbit’ local The Scythians (Skifh) – em concerto autorizado, no Palácio dos Esportes Luzhniki,

em Moscou, 1968

Por ora, furtando-se a nuances mais amplamente políticas em torno do fenômeno de

cultura, e pouco antes de adentrar-se à análise do fenômeno de bifurcação do rock local e seu

cenário, passa-se à biografia de algumas das bandas mais relevantes no período de transição,

em cuja trajetória fica bem patente a fisionomia do impacto ocasionado pela implantação do

VIA e as mudanças em curso pelas quais passavam a sociedade e a produção cultural soviética

ao longo do período de Détente. E aproveitando da análise de suas características, agora que se

dispõe dos dados acerca dos elementos do VIA, deixa-se a seguinte provocação: afinal teriam

sido essas bandas, autênticos expoentes do rock ou somente produtos culturais patrocinados!?

Colocando em termos que remontam ao uso do cosmos como um propagandístico da URSS,

em voga àquele momento: Verdadeiras estrelas do rock ou apenas rockeiros cosmonautas!?

encontro daquilo que Kruschev, ainda antes, entabulara com a pregressa doutrina de Coexistência Pacífica – ao

reconhecerem-se, mutuamente as superpotências, como necessárias de dividir funções e apaziguamento em um

mundo cujas lideranças globais não mais se sustentavam sob uma ‘Pax Americana’ ou uma ‘solidez monolítica’

do Socialismo (haja vista, o caso da China). No entanto, a eleição do democrata Jimmy Carter (EUA) em 1976 e

a intervenção da URSS no confronto afegão em 1979, iriam entre outras dissidências, culminar no início da década

de 1980, com o fim desse refreamento e o princípio da Segunda Guerra Fria. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1973

- Détente; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível

em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/detente; Acesso em: 21/02/2021

211

TERCEIRA PARTE: ENTRE A SALA, A COZINHA, O LABORATÓRIO E A

SARJETA

3.1 O FALCÃO E AS FLORES ANTE A MÁQUINA DO TEMPO E O AQUÁRIO: UM

RECORTE PANORÂMICO DO ROCK NA URSS NO PERÍODO 1965-75 COM FOCO NAS

TRANSIÇÕES SOCIAIS E MUSICAIS PROTAGONIZADAS POR QUATRO

IMPORTANTES BANDAS LOCAIS

[Que eu me lembre ...] As primeiras informações sobre os Beatles já publicadas na Rússia foram encontradas em uma das edições de 1965 da revista "Krokodil" (Crocodile). Foi uma "sátira"

perversa e estúpida descrevendo quatro loucos burgueses que nada tinham a ver com a True Music.

Que efeito a "desaprovação" oficial dessa música teve na geração mais jovem da época? Bem, eu tinha um amigo que tocava na banda da nossa escola. Dez anos depois de sairmos da escola, ele

mandou seu próprio filho para a creche pela primeira vez. Quando o menino voltou da escola, ele

disse ao pai: "Pai, por que você não me disse que existem canções russas além dos Beatles? Nós as

cantamos hoje com o professor!

Yuri Dimitrievsky, luthier soviético297

Com alguma ciência da trajetória do rock e seu ingresso na URSS, o fenômeno local da

beatlemania, o surgimento das bandas locais no estilo e a alternativa estatal do VIA, é possível

tentar-se agora, dinamicamente, um olhar enfoque sobre o fenômeno cultural do rock soviético

a partir do protagonismo de três importantes bandas locais moscovitas – a já mencionada Sokol

(Falcão), surgida em 1964, o grupo Tsvety (Flores), de 1968, a Machina Wremenyi (Máquina

do Tempo), surgida de uma formação anterior (Mal’ Chiki, ou Os Garotos, de 1968-9) e

consolidada com o epíteto definitivo em 1970 – e uma leningradense – Akvarium (Aquário),

liderada pelo poeta e músico, considerado o ‘Bob Dylan russo’ – conforme Cushman (1995) –

Boris Grebenschchikov (ou simplesmente ‘BG’), e fundada em 1972.

Embora já tenham sido mencionadas (ou de seus integrantes, como a Akvarium) em

momentos pertinentes desta narrativa, o enfoque nessas bandas em particular é provido de um

propósito muito claro: sua importância relevada no cenário cultural local e seu pioneirismo de

fase, em momentos diferentes, dentro do fenômeno cultural aqui estudado. Por exemplo, pode-

se vislumbrar a partir da Sokol (fundada no distrito de mesmo nome na capital federal russa,

ainda durante o Degelo), o princípio autêntico e relevante desse que seria o rock soviético, com

letras em russo e de maior repercussão (posto que as bandas anteriores, como a Revengers da

Letônia [de 1961] e a russa Brothers [Bratya, de 1963], não alcançassem a envergadura de

fenômeno como o iniciado a partir do grupo moscovita).

297DIMITRIEVSKY, 1990. Op. Cit

212

De mesmo modo, o nome da Tsvety, de Stas Namin e o nome da Machina Wremenyi,

fundada pelo músico Andrei Makarewich (banda de rock independente, que passaria a se

associar ao modelo rock filarmônico durante a década para poder subsistir) – constituindo essas

três bandas, importantes exemplares de diferentes manifestações pertencentes à dita ‘primeira

fase do rock soviético’, localizada entre o fim da primeira metade dos anos 1960, durante toda

a segunda metade dessa década e no princípio da década seguinte. De modo indistinto, a

Akvarium constitui um precedente reincidentemente mencionado (em Marochkin, 2011a;

Cushman, 1995; Volodyn, Udovenko, 2009 – entre outros), grupo considerado importante e

seminal, que enumera em meio aos demais, não apenas um exemplar do circuito rockeiro de

Leningrado à década de 1970 (e seguintes, posto que como a citada antecedente, ainda encontre-

se em atividade) pela contribuição poética e musical de ‘BG’, mas configura em sua trajetória

um autêntico remanescente da contracultura soviética, surgido e perpetuado no esquema

underground.

Não obstante, é com essas bandas que se pode lançar um olhar panorâmico, dinâmico,

acerca de eventos importantes ao fenômeno aqui estudado. Por exemplo, pode-se compreender

a partir da análise da música Gdye Tot Kray (Qual O Limite?, de 1965)298, elaborada pela Sokol

e tida como a primeira canção do rock da URSS (MAROCHKIN, 2011a; MALAKHOVA,

2013; VOLODYN, UDOVENKO, 2009; CHIVERS, 2001) – a qual será melhor trabalhada

num subcapítulo específico mais adiante, juntamente a outras canções do grupo, com uma

decomposição poético-crítica de sua letra, tradução e musicografia – os desafios encarados

durante o final do Degelo e o papel fundamental do grupo em disseminar a possibilidade de se

realizar em língua eslava o ritmo Ocidental, que faria fomentar o surgimento de um circuito

rockeiro entre a juventude de Moscou.

Em comparado, o pioneirismo de Gdye Tot Kray pode ser colocado em perspectiva com

o não menor pioneirismo das canções dos grupos Machina Wremenyi e Akvarium, a demarcar

precisamente no momento de ingresso no período da chamada Détente, o apelo juvenil

protagonizado pelos músicos, com uma postura questionadora, que contrastaria com o padrão

conformista usual ao VIA e rivalizaria com a proposta, não menos conformista, do jingle estatal

rockeiro A URSS É Meu Endereço, lançada ao som da guitarra – VIA – de D. Tukhmanov e V.

298Сокол - Где тот край. Татарин и К film [Sokol - Gdye Tot Kray. Tatarin i K film]; Disponível

em:https://www.youtube.com/watch?v=wyMWvIGad68&ab_channel=%D0%90%D0%BB%D0%B5%D0%BA

%D1%81%D0%B5%D0%B9%D0%A2%D0%B0%D1%82%D0%B0%D1%80%D0%B8%D0%BD%D0%B8%

D0%9A; Acesso em: 19/04/2021

213

Kharitonov como campanha estatal entre 1972-73. E tudo isso, acompanhado também do

contributo de outras bandas, protagonistas do cenário, em situações pertinentes ao entendimento

desse período fundamental de consolidação do ritmo na porção Oriental do globo.

3.2 ENQUANTO UM FALCÃO SOBREVOAVA, MOSCOU FLORESCIA: O PRIMEIRO

ROCK, PRIMEVAS GUITARRAS E (IM)POSSIBILIDADES PARA MÚSICOS

PROFISSIONAIS E NÃO-PROFISSIONAIS NA URSS

‘Ty mozhesh' ne poverit', Sokol, no eta istoriya proizoshla.’

[Você pode não acreditar, Falcão, mas esta história aconteceu.]

Maksim Gorki, Makar Chudrá, 1892

Se o grupo Bratya (Brothers ou Irmãos) de 1963, sediado em Moscou, estava em

encerramento no ano seguinte, serviria em seu período de atividade modesto a colocar em

evidência ao cenário bigbit dois músicos, o tecladista Vyacheslav Chernysh e o baterista Sergey

Tymashov (MAROCHKIN, 2011c). Fruto desse destaque, atrairiam a atenção do guitarrista e

vocalista Yuri Ermakov, filho de um reputado general da aviação militar soviética, e que

residente na rua Novo-Peschanaya, no distrito de Sokol (Falcão, em russo), em Moscou – local

onde também viviam os demais músicos e ainda o futuro baixista da banda, Igor Goncharuk.

Assim, com idades semelhantes e vivendo o mesmo momento cultural, num espaço geográfico

lindeiro, natural que se reunissem a formar um conjunto, que por homenagem ao local de

fundação – distrito moscovita de Sokol – ganharia o nome do lugar. Desse modo, em 1964,

durante o outono surgiria o grupo Sokol, cujo primeiro local de ensaios seria sediado no

Leningradsky Prospekt, nº 75 – local onde instalada uma das Casas de Propaganda, outrora

ligadas ao AgitProp. O debut da banda, converge quanto à data, tendo-se como fonte o dia 06

de outubro de 1964, mas o local gera controvérsia: segundo Marochkin (2011c), esse local seria

o Centro Recreativo Kauchuk, enquanto segundo Alekseev (2009)299teria ocorrido no Café

Impromptu – ambos estabelecimentos particulares sob concessão localizados na capital federal.

A carreira do grupo seria amadora de início, pois os integrantes estudavam no Instituto

de Tecnologia Química Mendeleev de Moscou (influenciados pelo tecladista, Chernysh, que

ingressara primeiro na vida acadêmica nesse local)300. A princípio, causariam excelente

impressão no meio estudantil e chamariam a atenção das autoridades do Instituto

299ALEKSEEV, A.C. Кто есть кто в российской рок-музыке.[Trad. Livre: Quem é quem no rock

russo] — М. : АСТ: Астрель : Харвест, [Edições por ACT; Astrel; Harvest] 2009; pp. 451, 452. — ISBN 978-

5-17-048654-0 (АСТ). — ISBN 978-5-271-24160-4 (Астрель). — ISBN 978-985-16-7343-4 (Харвест). 300MAROCHKIN, 2011c;

214

(MAROCHKIN, 2011c). Em parte, pelo fato de estarem àquele momento como integrantes do

corpo musical de popular programa televisivo, o KVN, exibido na televisão estatal. Resultaria

com isso, série de convites para irem tocar em casas de cultura, pistas de dança e cafés pela

capital. Assim, do sucesso angariado em suas apresentações (seyshn), todas com apelo na

reprodução fiel de canções de Elvis Presley301, Bill Halley e os Beatles, surgiria o ímpeto para

uma ousadia: a composição de uma canção em língua russa, que da colaboração entre Igor

Goncharuk e Igor Ogarev (poesia) e Yuri Ermakov (melodia)302, se tornaria a primeira canção

do rock russo-soviético: Gdye Tot Kray [Onde Está O Limite?] (da qual já mencionou-se

anteriormente no trabalho). Com a emblemática canção, o grupo conseguiria realizar sua

primeira apresentação pública, em 1965 (MAROCHKIN, 2011c).

Do lançamento de Gdye Tot Kray em 1965, no circuito estudantil da capital federal

soviética muitas oportunidades se desencadeariam: no verão (entre julho e agosto de 1966),

seriam chamados a integrar o corpo de baile do clube litorâneo Burevestnik-2, situado na região

do Mar Negro (entre Tuapse e o distrito Lazaryevisky), que se transformara em um efervescente

acampamento para estudantes locais e internacionais dos institutos superiores, e logo em

seguida, seriam convidados a integrar em caráter semi-profissional (como músicos

acompanhantes) a Orquestra Filarmônica de Tula303 – associação com o rock filarmônico, como

já outrora descrito (junto às explicações sobre o VIA) que permitia que músicos amadores

ingressassem em uma aceitabilidade menos restritiva junto ao aparato. Dessa parceria,

excursionariam com o programa (turnê) Canções das Nações do Mundo, sob o codinome

Cerebyanie Struni (transliteração equivalente à ‘Cordas de Prata’)304 nos anos de 1966 e 1967.

Nesse ínterim, algumas reformulações na formação ocorreriam: Vladimir Doronin assumiria a

bateria (no lugar outrora ocupado por Tymashov), e adiante, esse posto da percussão e arranjos

seria entregue à Viktor Ivanov. Na parte vocal, durante um período (1966-7-67), o músico Lev

Pilschik, integrante do grupo estrada (orquestra) de L. Rozner, estaria acompanhando o grupo

durante as performances – (MAROCHKIN, 2011c).

Interessantemente, embora influenciados pelo fab four (como o próprio guitarrista Yuri

301A fonte que descreve essa circunstância, a qual contrasta com a afirmação já anteriormente evidenciada de que

Elvis fosse uma epítome indesejável e emblemática demais ao Ocidente, para obter a aceitabilidade junto às

autoridades culturais locais, estaria no documentário Grupo de Rock ‘Falcon’: ‘Onde está está essa vantagem?’

(2014). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RRxI1YBo3pY. Acesso em: 19/04/2021 302MAROCHKIN, 2011c 303MAROCHKIN, 2011c; ALEKSEEV, 2009 304ALEKSEEV, 2009

215

Ermakov salientou com reiteração à Marochkin, 2011a) as possibilidades musicais da Sokol

sucederiam com importantes distinções do modo como no Ocidente as coisas estariam

acontecendo. Assim, ao observar-se os Beatles, por exemplo, nesse mesmo período se

encontrariam revolucionando o mercado fonográfico Ocidental e boa porção da estrutura de

consumo cultural global com uma ênfase na disseminação de sua música através de álbuns

gravados ou apenas turnês para promoção desses álbuns em questão (o que, segundo essa lógica,

enfatizava a aquisição e consumo em caráter individual em lugar das exibições em concerto)305.

Enquanto isso, em Moscou, os rapazes do grupo moscovita estariam adstritos ao sistema de

exibição presencial, fruto das possibilidades de circulação do esquema de gerenciamento, cuja

repercussão fundamentalmente se daria no formato de concerto – seyshn – posto que não fossem

admitidos, necessariamente, para gravação pelo selo estatal.

No que tange à questão de circulação, por exemplo, o tecladista Chernysh, que por

questões de trabalho e estudo estaria mais firmemente estabelecido em Moscou (no distrito de

Sokol), acabaria por constituir um grupo alternativo para poder exercer sua vocação musical –

o grupo Melomania306, em 1967. No que concerne à questão de (im)possibilidade de gravações

pelo estúdio oficial (Melodiya), uma única exceção de registro referente àquele momento do

grupo, seria com a canção Filmh, Filmh, Filmh, gravada em 1968, como parte da trilha sonora

de um filme homônimo de animação produzido pelo diretor V. Khrituk para a televisão

soviética. Entretanto, mesmo nessa oportunidade prática, a referida canção seria entoada para a

versão gravada apenas contando com a participação de um músico credenciado, Leonid Berger,

vocalista por outro grupo (o conjunto musical Orpheus), que atuava adstrito ao esquema de

músicos profissionais (MAROCHKIN, 2011c).

Por esse e outros motivos, o registro de muitas das canções rastreáveis do grupo, só

pode ser encontrado em edições posteriores às versões originais da década de 1960, em

regravações que seriam produzidas a partir de reunião de alguns dos membros originais,

acrescidos de músicos convidados, a fim de elaborar-se uma recomposição desse momento

musical bigbit da União Soviética.

Outro importante fator, ficaria a cargo da figura de Yuri Aizenshpis, seu jovem gerente,

305WALD, 2009 306Segundo Marochkin (2011c) o grupo seria formado por Chernysh (teclados), acompanhado de Viktor Ivanov

(bateria), Anatoly Markov (vocais), Yuri Gavrilov (guitarras), Alexey Sinyak (contra-baixo; substituído por

Goncharuk, mais à frente). Esse grupo teria existido em paralelo ao da Sokol, durante um período de cerca de um

ano.

216

e como a subordinação do grupo a essa ‘figura clandestina do gerenciamento’307 não os eximiria

de inconvenientes futuros, que culminariam com o encerramento do grupo.

Conforme Spiridonov (2021), seria esse mesmo ‘enérgico jovem’ visionário – o qual à

década de oitenta se tornaria diretor do emblemático grupo soviétivo (punk) Kino – que

combinando uma atuação junto ao underground, assim como toda um interesse pelo rock, uniria

seu talento como empresário ao intuito de produzir o primeiro grupo beat russo. No caso de

Yuri, tais ‘talentos’ redundariam não apenas na projeção do grupo, mas na denúncia e acusação

deste, até o final da década, por envolvimento em supostas atividades ilegais relacionadas à

fraude monetária, situação pela qual, Yuri seria condenado (em sentença de dez anos), em

dezembro de 1969, tendo suas atividades junto ao setor de promoção cultural monitoradas a

partir de então – as quais só seriam reabilitadas pelo Partido apenas na primeira metade da

década de 1980.308

Situando alguns acontecimentos da biografia da banda em perspectiva, pode-se

mencionar que pelos mesmos idos, desde 1965, o fenômeno musical do grupo Scythians (Skif

ou Citas) também se encontraria em curso – com relevo para o sucesso desse e uma ‘skifomania’

local na capital. Entretanto, segundo Marochkin (2011c), em 1967 o grupo do distrito de Sokol

se consolidaria o líder honorário do rock soviético, devido ao seu êxito com as canções pioneiras

em russo e refletido em apresentações com lotação esgotada no Palácio da Cultura Energetik,

situado no Raushskaya Enbankment, distrito de Moscou.

Nesse ínterim, pode-se destacar também a menção a outros grupos que ajudam a compor

esse binômio dos concertos. Entre eles, o grupo Rossiiane (Os Russos, em idioma local),

surgido em 1968, sendo importante conjunto musical do estilo bigbit que também fundado e

com atuação majoritária no circuito moscovita. Inaugurado por músicos locais, o grupo

Rossiiane seria também agenciado por um gerente estatal (sob o pseudônimo de ‘Camarada K’,

segundo o relato do músico Igor Romanov, integrante do grupo a partir de 1973, conforme

VOLODYN, UDOVENKO, 2009; CUSHMAN, 1995), e embora não seja precisa a motivação

de suas circunstâncias, era uma banda que se apresentava em quiosques locais, cafés e

restaurantes, na modalidade de música ao vivo e com pedidos dos consumidores. Há a menção

do nome de um desses estabelecimentos na região central de Moscou, o café Na Upchala, que

307MAROCHKIN, 2011c 308SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A Primeira Dose

de Rock Russo]. Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um Quadro e Não Apenas];

Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021

217

teria sido disponibilizado pelo sistema de gerenciamento para apresentações dos músicos entre

os anos de 1968-69. Quanto aos valores, diferentes relatos (VOLODYN, UDOVENKO, 2009;

CUSHMAN, 1995) mencionam somas entre 12 e cinquenta rublos por apresentação,

distribuídas entre os músicos e seu gerente específico. Outros relatos de músicos, posteriores

ao período, também se referem à valores gravitando em torno das somas mencionadas.

Corroborando a afirmação de que as apresentações do bigbit não aconteceriam apenas

em salões estatais, instituições de ensino regular ou acadêmico, mesmo fora da capital federal,

encontra-se a menção de REKSHAN (2015), relatando, ainda um pouco mais adiante acerca do

rock, de como o movimento juvenil de rockeiros e hippies leningradenses, faria à década de

1970, do Café Saigon (Leningrado) um importante ponto de encontro e espaço a apresentações

de grupos.

Tendo-se um pouco mais consolidada essa existência de características de concessão

privado/públicas no âmbito do rock local, cabe-se ponderar em torno dos valores dessas

apresentações. Colocando-se em perspectiva, as somas recebidas em uma economia planificada

e orientada por valores diferentes do capitalismo Ocidental, podem oferecer outra margem de

conclusões em lugar da precipitada noção de baixo orçamento. Não obstante, percebe-se dois

importantes registros nos relatos, que permitem situar o escopo de apresentações em uma

amplitude um pouco maior do que a até aqui demonstrada no circuito seyshn: a de que, sim,

havia a presença majoritária da distribuição das canções e repercussão dos grupos através de

concertos, porém, nem sempre apenas em locais públicos e de consumo aberto, mas também

em locais de caráter privado, como cafés, restaurantes e quiosques. Se isso seria uma realidade

recorrente aos músicos ingressantes no rock n’ roll na URSS, é incerto dizer, mas do relato de

Salnikov (2005), integrante do também importante grupo local sessentista, os Scythians, retira-

se a presença de evidências que corroboram esses incidentes de apresentações mais particulares

e mediante pagamento. Mesmo porque, não se deve tomar com redobrada estranheza o

incidente de apresentações pagas, considerando, como já mencionado pelo músico Igor

Romanov (em CUSHMAN, 1995) que havia instrumentos e demais recursos por se adquirir

durante as apresentações, posto que alguns deles não fossem disponibilizados pela Estrutura

Estatal. Nesse sentido, cabe situar que as guitarras elétricas, emblemáticas ferramentas à

atividade musical rockeira e que outrora obtidas por meio de luthieria artesanal (Ryback, 1990)

e mesmo por contrabando, via Alemanha Oriental (Salnikov, 2005), já no princípio de 1970

poderiam ser obtidas a partir da produção nacional. Em 1968, seria lançada a guitarra Tonika,

fabricada em Moscou (cuja produção de instrumentos ganharia destaque ao distrito de

218

Liubertsy) e que passaria a rivalizar com a lendária Musima Elguita oriunda de Berlim Oriental.

Ainda ao longo da década seguinte apareceriam os modelos da série Ural (principiados com a

guitarra Ural 650, de 1975) e já à década de 1980, o modelo Solo II (CHIVERS, 2001)309 –

todos instrumentos exclusivamente soviéticos e dos quais se falará melhor no subcapítulo

adiante.

A produção de instrumentos elétricos, de guitarras e contrabaixos no âmbito local da

URSS seria uma importante fatorística não apenas à disseminação do rock de maneira mais

franca na realidade da URSS da década de 1970, mas de toda uma possibilidade musical mais

profissional do estilo, através de protagonistas do VIA, em experimentação em outros ritmos

contemporâneos – como o blues, o folk e ‘groove’ da disco music (que chegaria também à

União Soviética, durante os anos da Détente; ZHUK, 2012).

Os meios de consumo magnético do gênero também seriam atualizados, com novos

exemplares de magnitofon, mais compactos e com valor mais acessível: como os modelos Inyey

302 e o Inyey 303, ambos produzidos a partir de 1972 pela fábrica soviética Novossibirsk

Production Association ‘Luch’, a consistir em gravadores em quatro canais por transistor, com

modo monofônico e cabeças independentes para operação das fitas-cassete (ou cartuchos)310.

Retomando-se ao escopo da banda Sokol, outro importante marco de sua carreira seria

a canção Solntse Nad Nami (ou O Sol Sobre Nós, em russo)311 de 1968, cujas gravações

também, possivelmente, se perderam (se sequer tenham existido), sendo a canção (re)gravada

posteriormente por grupos locais do VIA, como a banda de rock Tsvety (ou Flores, em russo),

de Stas Namin, expoente ainda no princípio da década de 1970. O grupo não contaria com uma

formação permanente – à exceção de seu fundador, o músico Stas Namin, aprsentado abaixo –

e seria oriundo de outros dois projetos da década de 1960 (transliterados, ‘Politburo’ e

‘Sorcerers’), sendo uma de suas características, numca ter formação constante – à exceção de

Namin312.

309CHIVERS, J;. Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em: http://cheesyguitars.com/;

Acesso em: 21/03/2021 310Музыка 70-80-х Музыка Катушечных Магнитофонов!!! Музыка 70. Музыка 80; (2011) [Em russo]

[Trad. Livre: Música das Décadas de 70 e 80 – Música de Gravadores Bobina-a-Bobina; Ficheiro: Músicas dos

Anos 70; Músicas dos anos 80] Disponível em: https://abrgen.ru/magnitofony/iney_302; Acesso em: 02/03/2021 311ERMAKOV, Yuri; GONCHARUK, Igor; Солнце Над Нами [Solntse Nad Nami]; Disponível

em:https://www.youtube.com/watch?v=Wyzt4eYygFY&ab_channel=thecoldestdays; Acesso em: 20/03/2021 312Nos seus mais de cinquenta anos de existência (entre 1969-1990, com um hiato pela década e retomada dos

2000 até a atualidade), a banda contaria com diversos nomes importantes da música russa a lhe integrarem em

diferentes momentos. Destacam-se entre esses, artistas consagrados como: Sergey Dyachkov, Alexei Koslov,

219

Ao mencionar esse fundamental integrante da história do rock soviético, apelidado Stas

Namin, mais se reforça a teoria que explica a fisiologia de oportunidades musicais situada nas

fileiras próximas ao parentesco da camada oficial. Nascido em 1952, Anastas Alekseievicz

Mikoyan, o jovem músico à década de 1960 seria um apaixonado pelo ritmo frenético que

ingressara à URSS. Seu nome relembra, sonoramente, um que aqui já evocado, durante a fase

de sucessão à Era Stálin, dentre os partidários postulantes a grande chefia da União Soviética

(e que não constitui em mera coincidência): Anastas Alekseievicz Mikoyan seria, nada menos

que, neto do importante adido diplomático, premiê durante Stálin e influente partidário do

Comitê Central do PCUS por todo o restante da administração local, Anastas Mikoyan.

Ora, é de se pensar que, tornando-se ao caso de Ermakov (que possuía um pai general

da aviação soviética enquanto desenvolvia seu grupo Sokol) e ao caso de Stas Namin (com um

avô influente partidário, enquanto ingressando com o grupo Tsvety), seja prudente reforçar que,

ao menos no começo, a possibilidade de ingresso bem-sucedida na empreitada do bigbit local,

corresponderia a uma ligeira parcela da população soviética. Desse modo, mesmo entre os

‘privilegiados’ em relação à grande parcela geral nessa oportunidade, haveria diferenças. Se um

general seria potente a proporcionar exceções às excentricidades de um ritmo Ocidental a seu

filho, essas não se poderiam comparar com as regalias oriundas da posição política que um

importante partidário central poderia fazer por um protegido seu (como o neto de Mikoyan,

com seu livre acesso às gravações e instrumentos, mesmo em sede de um patrocínio ao

controverso fascínio pelo movimento hippie). Ainda assim, Stas Namin e Yuri Ermakov, bem

como os demais rapazes da Sokol, seriam amigos, não sendo impeditivo que para adiante do

fator em comum, repercutissem diferentes chances obtidas às suas credenciais de linhagem, as

quais fariam questionar até que ponto poderiam sustentar a isonomia de um relacionamento

criativo – bem como o futuro de seus projetos musicais.

Nesse sentido, a relação com Namin seria de altos e baixos, pois embora o músico

tivesse reverência pelo trabalho do grupo Sokol, sendo entusiasta em convidá-los para projetos

conjuntos e apresentações, as orientações musicais de Namin e, principalmente, de Ermakov,

divergiriam tremendamente. Isso se mostraria flagrante da remota oportunidade de coalizão dos

grupos ocorrida ainda em 1969, durante cinco oportunidades de ensaio, em que ficariam

flagrantes as opiniões da Tsvety, encabeçadas por Namin, pendentes àquele momento ao estilo

Konstantin Nikolsky, Alexander Losev, Sergei Dyuzhkov, Andrei Sapunov, Igor Sarukhanov, Alexander Marshal,

Sergei Voronov, Alexander Marinin – entre outros. Fonte: RussMus.Net; Ficheiro: Tsvety; About The Band;

Disponível em: http://www.russmus.net/band/90/; Acesso em: 22/03/2021

220

estrada (de apresentação de palco), enquanto a Sokol penderia para o rythm n’ blues pesado

(MAROCHKIN; 2011c) – tornando inviável qualquer chance de projeto entre ambas.

Ainda assim, a canção ‘hippannova’ (de estilo hippie) elaborada pelo grupo Sokol

(Solntse Nad Nami), encantaria à Namin, que cultivaria o projeto de adquiri-la para uma

realização futura. Somado a isso, como já mencionado, as formações dos integrantes da Sokol

nos institutos superiores, faziam urgir assumirem suas vocações laborais de formação,

culminando isso com a derradeira exibição do grupo em um concerto no outono de 1969,

sediado na Casa de Cinema de Moscou (MAROCHKIN, 2011c). Em contrapartida, sendo

Namin um filiado ao esquema VIA desde seu princípio com o grupo Tsvety (fundado em 1968)

e levando-se em conta que fosse músico de formação, já ao princípio da década seguinte estaria

apto a gravar, visto que a Tsvety ganhava mais e mais repercussão e público. Assim, pela voz

de Namin e a sonoridade de seu grupo, a canção considerada o ‘hino hippie’ da URSS, seria

imortalizada em empréstimo dos fundadores do rock local (VASYANIN, 2010)313.

As transformações do rock através da iniciativa VIA demarcam em sua biografia de

conjunto musical a transição pela qual passaria a primeira fase do rock da URSS: uma fase em

que se profissionalizava o estilo e ganhava contornos mais aceitáveis aos olhos da ideologia

partidária e da estrutura estatal, encarado como um fenômeno cultural assimilável e moderno,

desde que adotadas as devidas adequações dentre o circuito de produção e distribuição cultural

local. Acompanhando o contexto da Sokol, grupos locais e coetâneos como os já mencionados

Vanguard-66, Argonavts e Flamingus314, mas também Winds of Change, Olavyanie Soldatky,

e o próprio Scythians teriam encerramento junto à década que se encerrava.

Do saldo efêmero da existência desses grupos, uma aventura musical perpetrada entre

filhos de diplomatas e oficiais da administração e universitários moscovitas, ficaria a canção

313VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]. Российская Газета

(Rossiskaya Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html;

Acesso em: 30/02/2021 314Dos poucos dados encontrados acerca da referida banda, dos estertores da década de 1960 na URSS, tem-se o

mencionado pelo historiador, músico e jornalista russo, Vladymyr Rekshan, em seu acervo disponibilizado ao

Rosfoto (site de um importante museu e centro de exposições da Rússia), no seguinte episódio: ‘No outono de

1969, um concerto do grupo Flamingus teve lugar no salão de festas do Instituto Politécnico [Moscou]. Depois

houve um excesso: uma multidão de estudantes se reuniu de toda cidade, demoliu-lhe as portas. Também agravava

o fato, que o grupo fora acusado de trazer garotas nuas para dançar no palco. Um processo criminal foi aberto.

Os anos 1970 se aproximavam – a época do underground’ Fonte: REKSHAN, Vladymyr. История Русского

Рока (Trad. Livre: História do Rock Russo). Росфото – Музейно - Выиставочный Центр (Site do Rosfoto –

Museu e Centro de Exposições); Coleção (mostra) ‘Realidades do Rock Russo’ – Conferências de 16 de julho a

30 de julho de 2015; Disponível (em russo) em: https://rosphoto.org/events/istoriya-russkogo-roka/; Acesso em:

20/06/2021

221

pioneira do rock local e o exemplar para toda uma futura geração de aspirantes no estilo

rockeiro/bigbit em terras soviéticas – como um instante a seguir, se evidenciaria patente, por

outros caminhos, com a Tsvety e com a Machina Wremenyi.

E muito pertinente a isso, corroborando toda a circunstância de mudança pela qual

passava a União Soviética após o precedente do rock local, cabe dar-se relevo a certas

fundamentais personagens desse fenômeno bigbit, que até o momento, apenas ligeiramente

mencionadas: as guitarras elétricas, cujas peças, luthierias, designs e técnicas, constituiriam um

significante processo de transformação, de agência e elaboração para a configuração local do

rock na URSS e demais países do Bloco Oriental.

3.3 SOBRE NOBRES PEDAÇOS DE MADEIRA E PATACAS DO VIL METAL:

RELAÇÕES ENTRE A CONFECÇÃO DAS GUITARRAS, PRODUÇÃO INDUSTRIAL-

ARTESANAL E ACESSIBILIDADE DE CUSTO NA REALIDADE ECONÔMICA

PLANIFICADA DA URSS DOS ANOS 1970

Depois da Revolução de 1917, o caos monetário se instalou. Na primeira tentativa, os bolcheviques

ingenuamente planejaram abolir o dinheiro de uma forma geral – o que, é claro, era inviável. Enquanto isso, durante a Guerra Civil Russa, começaram a surgir moedas locais substitutas em

diferentes partes do país. Todas essas notas estavam perdendo o seu valor aos trancos e barrancos.

[...] Durante o domínio soviético, três reformas monetárias importantes foram realizadas para dar suporte à taxa do rublo. [...] Os russos começaram a chamar o rublo de “dereviannyi” (“de

madeira”), indicando que, ao contrário do caríssimo rublo de ouro pré-revolução, o rublo

contemporâneo não valia mais do que um pedaço de madeira.

Gueorgui Manaiév, O Valor Histórico do Rublo Russo315

Recordando ao observado, o panorama político-econômico da URSS em Kruschev e,

novamente, em Brejnev, seria preponderante de ser entendido no sentido de se entender a

fisionomia mais precisa do rock na URSS. Nas décadas de 1950 e 1960 e princípio da década

de 1970, diversas medidas de caráter trabalhista e de estímulo ao aquecimento do setor

industrial seriam implementadas, pois, desde o princípio da União Soviética, a luta contra a

escassez de determinados gêneros de produção, não poderia ser tolerada a uma agremiação de

nações com tanta necessidade de subsistência e empenhada em tantas frentes. Assim, somente

do advento de atendimento mínimo dessas condições de produção material, todas as demais

passariam a ser preconizadas, e em meio a isso, o governo de Stálin atravessado por dois

períodos de Expurgo e uma Guerra Patriótica, demonstrava que a marcha soviética para

abastecer-se, tanto num sentido técnico, quanto de consumo, levaria um prazo até sua

315MANAIÉV, Gueórgui. O Valor Histórico do Rublo Russo. Russia Beyond (colaboração Rossiskaya Gazeta)

16 de dez. 2013. Disponível em:

https://br.rbth.com/economia/2013/12/15/o_valor_historico_do_rublo_russo_23331; Acesso em: 20/05/2021

222

consolidação. Por isso, em Kruschev apenas, se poderia colher os resultados de boa parte das

realizações da educação e da indústria socialista. E nesse ínterim, apelando ao quesito das

condições materiais, de tanto que se tenha mencionado acerca do rock, seria bastante negligente

desconsiderar a realização técnica dos instrumentos para sua possibilidade – com destaque, à

guitarra elétrica. Essa que, estaria no epicentro de discussões de uma camada juvenil

efervescente por transformações e que vislumbrava a partir dos horizontes sinuosos do

instrumento a realidade monetária absurda de uma sociedade que se precipitaria, dentro em

pouco (ainda na década em curso) no clima de crise de uma recessão econômica muito

duradoura – onde a produção local da guitarra elétrica coincidiria com o período conhecido

como Estagnação (ou em russo, Zastoya).

Conforme já mencionado ao longo do trabalho pelo relato de Salnikov (2005) – ex-

integrante e guitarrista (base) do grupo The Scythians (Skifh), a grande dificuldade para se

realizar o rock na URSS seria a aquisição da guitarra elétrica – resultando que essa, como tudo

que muito proibido e raro, se tornasse um objeto de fetiche entre os jovens músicos do

hemisfério Oriental. O que explica tal dificuldade é que a produção local de instrumentos, por

suas determinações estatais, ignorara por tempo importante a possibilidade de confecção desse

instrumento de cordas, tido, majoritariamente ao seu entendimento de cúpula, como um

emblema da cultura do adversário – os EUA. Isso acarretaria que, a princípio, a fonte de

proveniência das guitarras na sociedade soviética não proviesse da produção estatal, e, portanto,

nem mesmo viesse pelo comércio estatal regular, mas pela ação dos atravessadores (tolkachi),

já mencionados anteriormente, como um segmento em crescimento na economia paralela da

atmosfera das reformas da Era Brejnev. Como do relato de Salnikov (2005), ao referir-se a

lendária guitarra Musima Elguita, uma das fontes de prospecção seria a Alemanha

Oriental (República Democrática Alemã – RDA), que embora afinizada com a URSS, enquanto

integrante signatária do Pacto de Varsóvia, possuia outras possibilidades de produção.

Consequência disso, a procura por formas alternativas de realização do instrumento

símbolo do rock n’roll pelos jovens soviéticos redundaria em uma criativa e prolífica messe de

luthierias artesanais – com vulto, localizadas em exemplares de Leningrado e Moscou. Como

já informado, as bandas soviéticas começariam em 1961 (em Riga, Letônia), e propriamente na

Rússia soviética, já desde 1963, contemplando os fenômenos em torno da Sokol (Falcão) e da

Skifh (Scythians), desde 1964 e 1965 respectivamente – o que antecederia em três anos, a

produção da primeira guitarra nacional: a Tonika, feita em Moscou, em escala de produção

223

serial a partir de 1968.

Assim, naturalmente, se o grande instrumento necessário ao rock só surgiria, legal e

formalmente, à distribuição comercial quase no final da década de 1960, fica patente que os

exemplares obtidos com os grupos em circulação só poderiam provir de fontes alternativas –

em geral, do artesanato marginal, do contrabando pelo mercado negro ou como souvenirs de

filhos de diplomatas em viagem ao Ocidente.

Dessas três possibilidades, então, as guitarras soviéticas poderiam provir no interregno

pré-produção estatalmente suportada: como lembranças/presentes, artigos estrangeiros

provenientes de viagens autorizadas; como produto contrabandeado de outras regiões do Bloco

Oriental; ou como produto de adaptações artesanais de peças de rádio ou telefone (RYBACK,

1990) sobre outros instrumentos convencionais (como, por exemplo, o violão).

E a partir de 1968, com a produção regular do instrumento, mais um elemento de

proveniência se misturaria, o qual, entretanto, ainda muito inacessível aos jovens em geral, por

conta dos preços proibitivos de aquisição (gravitando entre 150 a 200 rublos, em média)316.

Assim, a partir dos relatos trazidos adiante por músicos e luthiers que vivenciaram o fascínio e

as dificuldades em torno da difícil oportunização dessa ferramenta musical nas terras situadas

à margem Leste da Guerra Fria, espera-se delinear melhor um pouco de

uma realidade duradoura em torno do instrumento e os bastidores obscuros e curiosos de um

rock n’ roll anterior às apresentações.

3.3.1 Um Relato Sobre o Comércio de Guitarras na União Soviética e Bloco do Leste na

Década de 1970: Refletindo-se acerca de ‘grana’ e aquisição de ‘ferramentas do rock’

produzidas no Bloco Oriental Money/ Get away

You get a good job with good pay and you're okay Money/ It's a gas

Grab that cash with both hands and make a stash

New car, caviar, four star daydream Think I'll buy me a football team

Pink Floyd, Money (1973)

Antecipando a epopéia da guitarra na URSS, cabe salientar que devido ao uso das

316NEDVETSKY, Andrey; От Тоники до Музимы. Обзор рынка электро-музыкальных инструментов

в 1975 году.

Ностальгических заметки постаревшего участника школьного ВИА [Trad. Livre: De Tonika a Muzima.

Revisão do mercado de instrumentos musicais elétricos do ano de 1975 – Notas nostálgicas de um idoso da escola

VIA]; In: CHIVERS, 2001 Op. Cit.

224

terminologias empregadas nesta etapa do trabalho, para obter-se uma adequada compreensão

de seu conteúdo, requer-se um mínimo de esclarecimento (aos leigos) acerca da ‘anatomia’ do

instrumento317:

● Corpo/Body: Também conhecido como ‘escudo’, ‘machado’ ou ‘deck’, é a

parte larga de madeira que se assemelha a um escudo, na qual sustentam-se o

braço do instrumento, as partes eletrônicas principais (captadores,

potenciômetros, volumes e o orifício de entrada do cabo que liga ao

amplificador) e algumas partes metálicas importantes (como a ponte e o

tailpiece);

● Picareta ou pickguard: Por sobre o corpo, acopla-se uma peça plástica

chamada pickguard/picareta, que consiste em uma fina camada de plástico ou

acrílico que reveste o escudo do instrumento, logo abaixo das cordas e serve a

encobrir algumas das peças e fiações encaixadas no corpo da guitarra elétrica.

Sua função também é estética e aumenta a vistosidade do aparelho. No caso das

guitarras elétricas soviéticas (como adiante se observará), poderia conter ainda

uma estrutura acoplada de aparelhagem (contendo botões, fiações e regulagens,

inclusive captadores, embutidos), no que se chamava então, picareta completa;

● Pescoço ou Braço: Por vezes conhecido também como cabo (não confundir-se

com o plug, ou cabo de entrada que comunica amplificador e instrumento), é a

estrutura comprida de madeira (em geral, em bordo ou mogno) que se estende a

partir do corpo, e na qual se encontram fixados os trastes (peças de metal finas,

segmentadas ao longo do braço, que determinam tonalidades às vibrações das

cordas durante o toque; formando no braço uma área chamada tastieira ou

fretboard, feita de uma segunda chapa de madeira fixada no braço para melhor

captura sonora). Dentro do braço se encontra a peça chamada de tensor/alma,

uma estrutura de metal que lhe empresta resistência e sustentação ao torque e

tensionamento causado pelas cordas. O arremate do braço se dá na linha da

noz/copo (peça de osso ou material similar, que sucede a região dos trastes),

sendo sucedida pela peça chamada pegbox (cabeça ou cabeçote), local onde se

localizam as pegs/tarraxas que fixam as cordas na extremidade opositora ao

corpo;

● Cordas: As cordas estão fixadas por sobre o corpo através de uma peça, a

ponte, parte metálica que contém parafusos de fixação e molas de regulagem da

tensão do cordame – por vezes, arrematada alternativamente pelo tailpiece (uma

segunda chapa metálica de fixação das cordas ao escudo) e se estendem ao longo

do braço – por sobre a região dos trastes/fretboard – até alcançar a pegbox

(cabeçote), onde ficam enroladas nas superfícies contíguas às tarraxas/pegs;

● Alavanca ou Vibrato: também conhecida como tremolo, é uma peça que se

acopla a parte de fixação das cordas na região do corpo e possui a função de

causar efeitos sonoros durante a vibração das cordas – deixando o som

‘entortado’ ou ‘tremido’ (efeito sonoro de sinuosidade causado pelo

afrouxamento momentâneo produzido na tensão do cordame, através do

acionamento do aparelho);

● Captadores ou Pickups: também conhecidos como ‘microfones’, são

componentes da chamada parte eletrônica da guitarra elétrica (que acompanham

317Site Guitarrriego; Partes De Uma Guitarra e Suas Funções (27 de janeiro de

2020); Disponível em: https://guitarriego.com/pt/guias-pt/partes-de-guitarra-eletrica/ ; Acesso em 21/03/2021

225

a fiação, o cabeamento de plugs, e os botões e chaves conhecidos como

potenciômetros, capacitores e seletores) e consistem em peças feitas de metal,

revestidas de plástico ou acrílico, que contém em seu interior um esquema de

magenete(s), envolvido(s) por uma bobina (em geral, feita de cobre) – que pode

ser única (no chamado captador simples) ou no padrão humbucker (também

chamado singlecoil em paralelo) ou duplo – e fixado no corpo da guitarra

elétrica, logo abaixo às cordas que se estendem da ponte rumo ao braço –

oportunizando assim sua função de captura das vibrações do cordame tocado,

que é convertido por sua ação em pulso elétrico e transmitido como sinal (via

plug) ao aparelho amplificador (ou caixa amplificadora);

À título de informação complementar, as categorias dos elementos (partes) da guitarra

elétrica se organizam segundo seguinte padrão: a) mobília/furniture (a consistir no corpo e no

braço, partes dificilmente removidas do instrumento); b) ferragens ou o conjunto formado

pelos ‘metais’ – pegs/tarraxas, ponte, tailpiece e alavanca – também chamado de hardware;

e c) eletrônica (como já enumerado anteriormente, composição que consiste nos captadores e

demais acessórios eletrônicos que conferem a característica sonoridade do instrumento).

A seguir, minimamente compreendida a composição e partes integrantes da guitarra

elétrica, passa-se a análise detalhada do relato muito abrangente de um insuspeito personagem

do apreço e do protagonismo na confecção das guitarras da URSS: o luthier russo e

‘apaixonado’ guitarrista Andrei Nedvetsky, cujos trechos de seu rico artigo sobre o assunto

(traduzido do cirílico), De Tonika a Muzima: Revisão do mercado de instrumentos musicais

elétricos do ano de 1975 – Notas nostálgicas de um idoso da escola VIA, servem a colocar mais

insumo aos elementos já discutidos sobre o rock soviético até aqui – disponível em CHIVERS,

2001:

Até o outono de 1975, este mundo simplesmente não existia para mim. […] E em

1975, vários eventos importantes aconteceram que mudaram irrevogavelmente toda a minha vida futura: em primeiro lugar, as gravações de Deep Purple chegaram a

Zhukovsky, uma pequena cidade perto de Moscou onde eu morava. Ou seja, naquela

época nem sabíamos que era Deep Purple, e ainda mais porque um disco Deep Purple

In Rock foi gravado no carretel [magnitoalbomy, referência a um álbum da banda

inglesa que o autor teria conseguido gravar no magnitofon de carretel; toca-fitas]

girando no antigo [modelo] "Comet", mas o efeito foi incrível – esta música mudou

todas as ideias sobre o meio ambiente, o mundo. […] Certa vez, na primavera, minha

amiga Mishka e eu estávamos caminhando no parque, mas começou a chover e

corremos para nos esconder no teatro de verão. E lá, no palco, alguns caras de cabelos

compridos tocaram guitarras fantasticamente lindas e cantaram algo como "Eu te dei

esta pequena flor-o-o-o-r!!!!"318. E alguns dias depois eu vi como esses mesmos

"hipari" trouxeram a bateria para nossa escola para tocar no baile, onde nós alunos da sexta série, é claro, não éramos permitidos. E, finalmente, no verão, meus pais e

eu saímos de férias para os lagos da Bielo-Rússia, onde conheci um menino, Dima

318 Em russo (transliterado): Ya Padari Tebe Étot Tsvetotchek – de autoria desconhecida.

226

Korablev, de Moscou. Esse Dima falou sobre sua banda da escola "Fried Nails"319,

onde tocava bateria, sabia os nomes de todos os integrantes dos "Beatles" e era

incrivelmente legal. Tudo isso foi o suficiente para que eu adoecesse de rock and roll

por um longo tempo, e o principal sintoma dessa doença era uma paixão claramente

doentia pelo mundo dos instrumentos musicais, sobre o qual este mesmo rock and

roll naquela época estavam tocando. E a escolha não seria, infelizmente, promissora

[...]

O músico/artesão descreve em pitadas de nostalgia e bom humor a dura realidade do

enveredar pelo caminho do rock na URSS, corroborando outros relatos já trazidos e

colaborando a situar de como houvesse chegado a demonstrar interesse pelo icônico

instrumento, que passaria de um fetiche a uma ‘profissão’. Em seguida, disserta em artigo sobre

a primeira hipótese para realização local da guitarra elétrica na sociedade soviética: a via

artesanal. Descrevendo acerca de Guitarras e baixos, aponta que ‘a maioria das bandas

amadoras da época tocavam as chamadas "self-made" – guitarras

caseiras’. Tais guitarras, seriam confeccionadas em ambientes não industriais – em garagens,

oficinas de escolas, ou apenas em casa. Com entusiasmo, descreve o passo-a passo da confecção

caseira, relativa a cada parte do instrumento, costumeiramente adotada pelos incipientes

artífices do rock local:

1.Corpo do instrumento

Opção Um) Um violão antigo era cortado ao meio ao longo da concha e, portanto,

ficava duas vezes mais fino. Um pedaço da casca era cortado em arco, virado na

direção oposta e colado. Acabava sendo um corte Les Paul;

Opção Dois) O corpo era cortado de uma placa sólida ou colado de barras de 5

centímetros de espessura. Um de nossos violões foi feito de faia (!). Pesava meia

tonelada, mas parecia ótimo;

Opção Três) Os decks [de deck, escudo da guitarra; corpo anterior ao braço] eram

cortados de madeira compensada. Em forma de concha, foram utilizados blocos de

madeira colados com resina epóxi, que depois foram torneados para se adequar ao

formato do deck;

2. Braço

Na maioria das vezes, o braço era retirado de um violão antigo e a ponta era alterada

a partir dele. Às vezes, porém, o braço era cortado por nós mesmos – em 1976 tentamos fazer um baixo fretless [sem traste], e até um through, [rústico], mas todas

as proporções foram tiradas do teto (!), E ele não foi construído de jeito nenhum. Além

disso, não havia lugar para comprar sintonizadores de baixo, e os sintonizadores

comuns não funcionavam.

3. Eletrônicos

319Aparentemente, correspondente à Zariennie Gvozdyi, grupo escolar soviético do qual não foram encontrados,

à despeito da pesquisa, quaisquer outros dados disponíveis.

227

Em todas as guitarras que vi, foram:

a) “bloco de timbre” [bloqueio de tom], dispositivo constituído por dois singles

[captadores monobobinados] em uma placa metálica decorativa com três botões de

controle (volume, graves, agudos) com soquete em forma de hemisfério convexo (minijack). Tal milagre custava 19 ou 21 rublos;

b) captadores (simples) de 9 rublos – um ímã com uma bobina sob uma caixa de plástico

preto com uma placa decorativa de plástico prateada e um fio blindado fino com um

plug-euro;

Todo o resto era soldado independentemente dos componentes de rádio improvisados.

O soquete sempre era um plug europeu de cinco pinos; [Tradução do inglês e grifos

nossos]

Indo adiante das partes de ‘mobília’ e ‘eletrônica’ das guitarras elétricas, outros

acessórios chamariam atenção como figurantes já encontrados na realidade da URSS da década

de 1970: sintonizadores, às vezes utilizados também em violões (geralmente, 3 peças por

placa), possíveis de serem comprados na loja estatal "Rondo" de Moscou em Neglinnaya – por

1,50 rublos a peça. No tocante ao acabamento (arremate) o suporte, segundo comenta

Nedvetsky, seria mais frequentemente cortado em duralumínio e, em seguida, niquelado em

uma fábrica local. Seria possível também obter esquemas para produção artesanal de algumas

peças, em suplementos destinados aos jovens, àquele momento – como na revista Tekhnika-

Molodiozhi, a qual em uma das edições apresentara um modelo de tremolo (vibrato) de

confecção doméstica. Ainda em complemento à questão dos componentes, cabe citar que as

cordas com maior saída para os músicos iniciantes, segundo Nedvetsky, seriam as

"ferromagnéticas" – cujo custo de aquisição, acessível, estaria na casa de 1,20 rublos; enquanto

os cabos de alimentação custariam cerca de 10,5 rublos, em lojas como a ‘Rondo’ – magazine

com sedes em várias cidades da URSS, como a capital Moscou, até a regional Zhukovsky, de

proveniência do autor.

No que toca à questão de Efeitos de Guitarra Elétrica disponíveis na URSS à década de

1970, embora houvesse poucos, segundo o artesão, destacariam-se os pedais produzidos em

Riga (Letônia), nos modelos da série ‘A’ – Quaker, Fuzz Quaker e Fuzz. Em breve descrição,

seriam pedais de tamanhos iguais, com corpo metálico na cor cinza e almofada nervurada de

borracha, embutida. Com mais dados dentre os três, dá-se relevo ao modelo Fuzz que seria

conhecido como ‘amplificador de impulso’ (ativado por um botão na parte inferior), tendo uma

variante – Fuzz com efeito wah-wah – no modelo Anita (disponível por 42 rublos). Seria

sucedido, segundo Nedvetsky, em 1977, pelo modelo Effect, criação moscovita da produção

em série, proveniente do distrito de Krasnoselskaya, que reunia as funções de fuzz, wah-wah,

228

auto-wah (vibrato timbrado) e vibrato (de amplitude – ‘quase um processador’, segundo o autor.

Encontrado na indefectível versão de caixa-preta, com dois interruptores e botões para ligar-se

efeitos de profundidade e tempo (colaterais ao pedal), esse modelo seria um marco de realização

à indústria musical soviética e estaria ladeado por outras inovações do segmento como os

amplificadores nacionais Raduga (amplificador de graves), Ritm (amplificador geral), e Rodina

(amplificador de dois canais com alto-falante) e os importados BEAG (da Hungria) e Vermona

(da Alemanha Oriental). Sobre os preços desses aparelhos, restam informações sobre os

amplificadores, Raduga e Ritm, com preços respectivos de 360 e 320 rublos.

Outros instrumentos também chamariam a atenção da juventude musical local, como os

teclados nacionais Molodiozhi (no exorbitante preço de 510 rublos!) e o eletro-órgão Lel, e

modelos oriundos da República Democrática Alemã (RDA), como os Vermona e Weltmeister.

Nisso também marcante, o sonho de consumo ‘para se fazer a cozinha’ de uma banda, a

sonoridade da bateria – cuja composição simples (bateria rítmica, chimbal e prato com uma

prateleira), poderia custar de 120 a 605 rublos (a depender dos modelos, muitas vezes,

provenientes das cidades de Riga [Letônia] e Engels).

‘Nas lojas, lindas e inacessíveis, penduravam as seguintes obras-primas da fabricação

de violões e guitarras elétricas, feitas na URSS e nos países do campo social’ – o significado

dessa afirmação só pode ser perspectivizado com dados acerca de custos de instrumentos em

relação às condições econômicas de trabalhadores na URSS, que serão melhor abordadas a

seguir. Primeiramente, no tocante à valores de instrumentos, por exemplo, encontraria-se no

mercado soviético em meados dos anos 1970, uma guitarra elétrica do modelo "Tonika" pela

soma de 210 rublos (modelo com “deck” de design e acabamentos de boa qualidade e

“vibrador” [tremolo]) – à venda em magazines (como cito pelo artesão, a loja de bens culturais

na rua Mayakovsky) ou em certo estúdio local para locação, ambas situadas na cidade de

Zhukovsky, cidade onde residia à época. Nedvetsky relata da incidência também muito comum

nessa loja em descrição, de modelos soviéticos de guitarra semi-acústica (assustadora, segundo

o narrador) de cor cinza escuro, no formato clássico comum, mas com a metade da espessura,

presença de dois captadores, sem tremolo. Seu custo ficaria em torno de 180 rublos – que

segundo a memória do artesão, por esse valor exorbitante à realidade da URSS, nunca teria sido

comprada. Como alternativa aos altos preços das lojas, aponta a aquisição de instrumentos de

segunda mão como uma prática muito corriqueira – citando para isso, o caso de um violão

adquirido de um aluno do ensino médio, por 85 rublos, e posteriormente, uma Aelita, modelo

229

1978 (guitarra elétrica produzida em Rostov-On-Don [concorrente do modelo Stella] com

tremolo, três captadores, quatro botões de sintonização e timbre), adquirida da mãe de um

jovem que ingressara no exército, pela ‘bagatela de 110 rublos’ (uma pechincha perto dos

costumeiros 200 cobrados nas lojas regulares).

Outro dado importante é o que concerne à presença das guitarras importadas nas lojas

soviéticas (no caso de Zhukovsky) citando para isso os modelos de violões e contrabaixos320

Orpheus, provenientes da Bulgária, com características de formato ‘rotundas’ (‘gargalo muito

grosso estreito e gancho no cabeçote, sua marca registrada’), disponíveis em versões semi-

acústicas, cujos elementos marcantes seriam a cor escarlate claro e a presença de dois

captadores single sob tampas niqueladas – encontrado no mercado, pelo preço na linha dos 180

rublos nas lojas regulares ou por cerca de 100 rublos entre os instrumentos de segunda mão.

Também nessa remissão de preços e instrumentos, recordaria os modelos Jolana Star

(conhecido modelo de guitarra elétrica soviética, de design pentagonal, apelidado de ‘chave de

fenda’ por sua fisionomia) e a Jolana Special (modelo semi-acústico, na cor rubro-negra com

"vibrador", três singles e um "botão acordeão" de quatro teclas niqueladas), ambas provenientes

da Tchecoslováquia – encontradas na loja de departamentos da Pushkin Street – ‘maravilhosas

e inacessíveis’, segundo o artesão, devido ao seu preço em torno dos 240 rublos.

Como não poderia deixar de ser, a grande estrela da produção estrangeira, a guitarra

elétrica da linha Musima321 (famosa expoente da República Democrática alemã) – disponível

nas opções de contrabaixo, guitarra ritmo (com dois captadores) e guitarra solo – é também

mencionada na descrição, com suas inconfundíveis características: guitarras elétricas com

corpo em madeira negra, captadores de alta qualidade (até três por instrumento) e uma chave

seletora ao estilo Les Paul – também disponível em versões semi-acústicas, facilmente

encontradas nas lojas Rondo, Accord ou Leipzig – todas situadas em Moscou – ou nas mão de

grupos VIA bem sucedidos.

A partir desse ponto o autor coloca uma informação em comparativo que situaria o preço

alegado como vultoso em relação ao salário de um cidadão soviético médio àquele momento:

o salário de sua mãe (cuja profissão não é descrita) gravitaria em torno de 140 rublos mensais.

320Segundo Nedvetsky, esse contrabaixo em específico seria inspirado no modelo Hoffner, como o tocado por Paul

McCartney, nos Beatles – resultando no seu apelido como Quarter McCartney, entre os jovens músicos da URSS. 321A grafia da linha de guitarras elétricas da Alemanha Oriental é aqui preservada segundo a fonte, escrita como

Musima. Porém, cabe ressaltar que por vezes é encontrada com a grafia Muzima, em algumas fontes (como em

Salnikov, 2005).

230

Colocando esse valor em adição à outros relatos dos músicos e aficionados já apresentados

durante o trabalho, é possível estabelecer uma mensura das possibilidades de aquisição:

Salnikov (2005), citaria o empréstimo de uma soma ‘impressionante’ na casa dos cem rublos

para a compra de sua Musima Elguita; os músicos entrevistados por Cushman (1995), Misha

(músico independente; underground) e Igor Romanoff (músico profissional), falariam,

respectivamente, de um salário de 3 rublos por semana (12 rublos mensais) ganhos pela

profissão de caldeirista (ocupação acessória muito comum a integrantes do cenário ‘marginal’

de cultura); e 12 rublos por apresentação, para divisão entre os músicos que se apresentavam

em cafés, restaurantes e quiosques da(s) capital(is), agenciados pelos gerenciadores estatais.

Para se chegar a uma ideia aproximada da oscilação do poder de compra material do

rublo, acerca dessa época, apela-se ao conversor Historical Currency Converter322, elaborado

por Rodney Edvinsson, professor adjunto da Universidade de Estocolmo e integrante do

Swedish Collegium For Advanced Studies – cuja contribuição consiste em importante

ferramenta de conversão contemplando diferentes taxas de câmbio e valores de indexação

historicamente incidentes entre as moedas comparadas. Se não completamente precisa, tal

ferramenta permite chegar-se a dois valores aproximados: o de que em 1968, momento de

ingresso na reforma econômica da Economia Responsiva, o montante de 100 rublos (RUB)

soviéticos poderia ter o poder de compra equivalente à 19 dólares estadunidenses (USD);

enquanto que, em 1975, logo após as reformas e já na chamada fase de recessão, o montante de

100 rublos da URSS poderia equivaler à cerca de 30 dólares estadunidenses, em poder de

compra. Estes dados, adiante de mostrar a manifesta desproporção entre valores de cotação

entre as moedas – com larga vantagem de paridade de cinco vezes para um (1968) e três vezes

para um (1975), respectivamente, entre o rublo soviético para com o dólar dos EUA –

colaborando a situar a dramática situação financeira vivenciada na aquisição de instrumentos

aos jovens entusiastas do rock soviético, também compõe um quadro que desmistifica, em parte,

a argumentação corriqueira de que a situação econômica da URSS estivesse em piora contínua

desde a assunção de Brejnev. Ainda assim, o poder de compra corroído do rublo, tornava muito

complicado o sonho com instrumentos (locais ou estrangeiros) de valores que ultrapassavam os

próprios salários mensais locais – como o aludido salário da mãe de Nedvetsky (de cerca de

140 rublos), que em 1975, corresponderia à U$ 42,00 mensais.

322EDVINSSON, Rodney; Historical Currency Converter; Disponível em:

https://www.historicalstatistics.org/Currencyconverter.html; Acesso em: 21/05/2021

231

Sublinhando às demais reflexões acerca de dinheiro e seu trato no cotidiano do cidadão-

médio soviético, muito interessante o relato trazido por Cushman (1995), através das

ponderações do depoimento dado por Andrei [Tropillo] – o produtor musical underground de

Leningrado, outrora mencionado na produção de magnitoalbomy e magnitofonnaia kult’ura –

ao contemporizar um balanço dessa relação entre a expectativa de retorno do fazer rock na

URSS com as paupérrimas e ocasionais oportunidades financeiras de pagamento (em

CUSHMAN, 1995; pp. 121-22):

[...] A ideia de fazer dinheiro com a prática era fora de cogitação. O que não quer dizer

que o dinheiro não fosse assunto importante para certos segmentos da população

soviética – como os atravessadores do mercado negro, por exemplo. Nem quer dizer

que não houvessem esses que gozando de grande status não se aproveitassem de um

benefício financeiro em relação à população em geral – elites, por vezes pagas em

‘rublos especiais’ os quais podiam ser gastos em ‘lojas especiais’ nas quais figuravam

bens de consumo ocidentais. Ainda assim, em geral, a relativa falta de importância do

dinheiro como meio de aquisição ou elevação de status para os que viviam na

sociedade soviética é muito menos relevante do que se poderia imaginar em sua

contrapartida em sociedades ocidentais. Músicos estariam ainda menos preocupados, pois reconheciam que fazer dinheiro a partir da prática do rock era simplesmente algo

fora de cogitação na realidade possível. Devemos considerar a visão de Andrei acerca

da questão financeira, bem como à ideia de como o rock fosse fundamentalmente uma

prática na qual o engajamento se desse por um senso de serviço, ou compromisso com

um ideal maior: É como se isso fosse um senso coletivo (de trabalho). Bem, por

exemplo, nós tradicionalmente achávamos desconfortável falar sobre dinheiro. Não

é que o dinheiro fosse proibido, mas é como se para nós não existisse. Em outras

palavras, de lá pra cá, não existe outra coisa semelhante a essa que seja tão

impossível de se falar. Mesmo para mim agora, como um adulto, é às vezes muito

difícil explicar ao meu empregador quanto de dinheiro eu espero ganhar por esse ou

aquele trabalho. Em outras palavras, para mim é complicado. Eu não poderia sequer estimar ou quanto devo ganhar por meu trabalho. Você compreende? Como se isso

fosse uma psicologia muito complicada. Para mim, por exemplo – Eu fiquei chocado

ao saber, lendo, dez anos atrás em alguma publicação por aí, que Ringo Starr

escolhera os Beatles e não um outro grupo qualquer, apenas porque lhe haviam

oferecido pagar dois pounds a mais do que receberia em determinado outro grupo.

Você consegue entender? Para nós isso seria absolutamente uma loucura. É como se

para nós tudo estivesse concebido em torno de uma ideia muito específica de ‘serviço’

(sluzhenie). E, naturalmente, todos nós, mesmo que ilusoriamente, estávamos

devotados à essa ideia. [Tradução do inglês e grifos nossos]

A consequência ainda duradoura em se ter dificuldades a proceder algo quase

automático na atmosfera Ocidental (conversão em valores monetários) é amparada ainda pela

semântica do termo sluzhenie, empregado com o sentido de ‘servir a um ideal’, que se apresenta

como uma aproximação melhor ao conceito do fazer música soviético com uma vocação (à

maneira weberiana) do que com um tipo de negócio. Situando as considerações do artesão

(Nedvetsky) com a do produtor [Tropillo], percebem-se diferentes visões entre indivíduos de

uma mesma época de vivência e lugar, em torno da relação ética com a música, onde há dos

recursos e a possibilidade do rock como um consenso/dissenso na percepção – e memória – da

realidade socialista local. Nedvetsky, situado na macro-região de Moscou, se demonstra um

232

tanto mais pragmático em torno das possibilidades de aquisição das guitarras elétricas no

mercado local e de como, mesmo em sua visão objetiva, se ressentiria da realidade precária de

possibilidades aquisitivas destinadas ao indivíduo cotidiano da URSS. Já Tropillo, por seu

turno, apresenta a reafirmação da ética vigente entre os músicos de Leningrado, de como o agir

dessa comunidade musical já lidasse como parte das contingências de sua atitude, a

impossibilidade de ganhar regularmente com o exercício musical, a falta real de patrocínio e a

realidade mais modesta de produção como um gesto de coerência com uma ‘liberdade

vocacional’. Como uma visão intermediária em torno dessa questão de custo-benefício,

recordando ao músico profissional Igor Romanoff em sua ‘barganha faustiana’ com o VIA, a

possibilidade de aquisição de melhores instrumentos ou, simplesmente, a oportunidade de

‘liberdade de criação para exercício e veiculação da música’ se encontram situadas entre o senso

pragmático do artesão moscovita e algum tipo de idealismo, como o do produtor leningradense.

Se como reincidentemente mencionado, nem todos os músicos do rock da URSS

estariam no esquema pelo dinheiro, mas, muito mais, pela oportunidade de acesso – a espaços,

permissões e instrumentos – teria-se, contraditoriamente, desses que estariam sim, muito

atentos à possibilidade de retorno financeiro, de status e captação de vantagens – como bem

ilustra o circuito VIA desenvolvido com grande força logo no início da Détente. E em meio a

tudo, haveriam esses que mais modestamente só buscariam conhecer e praticar algo ainda

inovador na realidade local: o acorde contagiante da almejada guitarra elétrica, aonde a presença

ainda marcante e ressoante dos Beatles, serviria a fascinar jovens entusiastas do bigbit e, por

vezes, desiludi-los ao reconhecer-se a distância de caráter e valores existentes entre suas

realidades.

3.2.2 Do Hardware ao Hardwork323: Sobre Pickups/Captadores e Fiação das Guitarras

Soviéticas [ou o Underwood do Underground]

Uma desesperada falta de informações sobre o verdadeiro valor, qualidade e características técnicas

de diferentes marcas de guitarras fornece um terreno fértil para negociantes underground

inescrupulosos. As coisas se tornam ainda mais complicadas por causa da ignorância generalizada

dos músicos sobre a configuração básica e a manutenção de seu instrumento. Em muitos casos, a sofisticação técnica básica começou a penetrar nos círculos de nossos músicos tarde demais. [...] Por

outro lado, também existiam muitos bons artesãos. Praticamente todos trabalhavam ilegalmente,

fabricando instrumentos sob encomenda. Alguns deles, entre os mais avançados e habilidosos,

optariam por se envolver na falsificação de instrumentos mundialmente famosos [...] Infelizmente, todos esses artesãos têm pouca escolha a não ser fazer cópias de machados da moda, uma vez que

seria difícil encontrar um cliente que não adorasse marcas da moda.

323Com base em MEDEVDOVSKY; GUZEVICH; Instrumentos Eletromusicais de Palhetada; Energyia, [1979]

In: CHIVERS, Jamie; Cheezy Guitars (2001) – Seção Articles: Soviet Pickups and Wiring (Autor creditado para

o artigo no site: LordBizarre); Disponível (em inglês) em: http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 21/03/2021

233

Yuri Dimitrievsky, luthier soviético324

Explorando um pouco da semântica do título, o hardware (ou as ferragens) necessário

à confecção de uma guitarra elétrica, apesar do nome, poderia ser facilmente adaptado de

violões antigos para uma realização artesanal bem-sucedida. As partes eletrônicas, entretanto,

requereriam um pouco mais de esforço e tempo para uma adequada execução.

Não há precisão quanto à origem do uso do captador nas guitarras elétricas (ou,

primitivamente, em violões e instrumentos de corda convencionais), mas recordando a

Hobsbawm (1995, p. 93), não por acaso, a revolução do rádio tenha estado sempre junto a esse

evento. Embora o historiador inglês não disserte acerca da questão, é curioso pensar que da

ideia de execução da voz com o advento da tecnologia do microfone (criado no início do século

XX) e do advento da transmissão do estímulo físico sonoro por meio de sinal elétrico – na

invenção disputada em pioneirismo entre Guglielmo Marconi e Nikola Tesla – com a criação

do Rádio (na década de 1920), se possa pensar que alguém tenha cogitado a seguinte

ponderação: ‘Ora, se a voz humana pode ser transmitida em sinal elétrico na frente de uma fonte

captadora, que aconteceria se colocássemos um instrumento ligado a esse dispositivo!?’. A ideia

deve ter agitado muitos músicos, radialistas e cientistas experimentais da Física, que colocando

os mais diversos instrumentos em contato com o ‘captador’ obteriam diferentes êxitos e

qualidades sonoras. Trompetes, trombones, tambores – enfim, instrumentos de sopro e

percussão, ou mistos de percussão e cordas (como o piano) muito ao lado destes de

convencionais de cordas devem ter sido testados, mas, por alguma conjuntura de fatores físicos,

a guitarra elétrica é que daria resultado. Não sem motivo: se por um lado seu corpo metálico de

cordame distribuía uma variedade ampla de sons, a presença de seu corpo amadeirado, oriundo

da tradição violão, na mobília do instrumento, forneceria as condições de absorção adequadas

a captação mais agradável do seu timbre estridente – filtrando-o e cadenciando-o. Talvez por

isso, instrumentos metálicos (ex: trompete, trombone, saxofone, etc.), tenham tido um sucesso

menor com o recurso direto do captador, inicialmente, sendo ainda acompanhados por captura

ao microfone (crooner) frontal. A ideia básica proposta é a de que: sem os captadores não

haveria microfones, e sem estes, não seria possível o recurso do rádio. Pelo mesmo mote: sem

a disseminação do rádio, teria sequer surgido a ideia de ‘capturar’ ao invés da voz humana o

vibrar de outras cordas – não vocais, mas violonescas?. Não por acaso, a história do rádio como

tecnologia situar-se na mesmo advento do da guitarra elétrica (primeira metade do XX) e, sem

324DIMITRIEVSKY, 1990 Op. Cit

234

surpresa alguma, o porquê de haver uma correlação entre as fábricas de rádio da URSS, nos

anos 1970, com a disponibilidade de acesso à uma peça fundamental na luthieria artesanal local:

a presença do captador.

O que a guitarra elétrica representa para o rock n’ roll é, dadas as proporções, o que o

captador representa na guitarra elétrica – o princípio de tudo. Recapitulando, o captador (ou

picape; do inglês, pickup), por exemplo, é a parte de uma guitarra elétrica que transmite a

vibração da corda metálica para um conjunto de magnetes presos em paralelo numa placa

metálica contendo bobina envolta em um imã maior. Tudo isso, ligado por uma fiação ao

sistema eletrônico localizado no corpo da guitarra elétrica, que ligada a um cabo, passa o sinal

para uma caixa amplificadora – causando todo o estardalhaço e efeitos característicos do rock

n´roll. Um captador pode ser embutido, já de fábrica no instrumento (como em aparelhos semi-

acústicos e bobinados) ou pode ser posicionado, com as devidas adequações, em um

instrumento acústico (como um violão, por exemplo). A potência do captador depende tanto da

disposição e número de bobinas de seu modelo, quanto da potência do magnete utilizado na

confecção desse componente. Sem essa parte em específico, a guitarra elétrica como se concebe

é um instrumento irreconhecível e sua sonoridade fica descaracterizada – em outras palavras,

sem captadores, sem rock n’ roll.

Por isso a importância de estuda-lo aqui, junto aos demais ‘mecanismos’ da realização

do fenômeno abordado. Vale recordar que em geral, não há registro de captadores soviéticos

do tipo humbucker (modelo Ocidental de captador bibobinado com dois singlecoil

alinhados)325, sendo os modelos produzidos disponíveis, aqueles feitos em bobina simples.

Nesse sentido, cabe salientar que a fabricação independente de hardware326 de guitarra na URSS

era uma realidade muito ampla – tanto em modelos, quanto em alternativas e proveniências –

desde a década de 1960. E nisso, se desde o advento da produção regular do instrumento (a

partir de 1968), parte das fábricas de guitarras na URSS produziria cada um dos seus próprios

modelos de hardware, muitas vezes as versões alternativas de captadores seriam e estariam

disponíveis em sortimento em muitos outros locais (geralmente, contando com o suporte de

fábricas de aparelhos eletrônicos de rádio). Ainda assim, por um bom tempo os captadores de

325Fonte: Site Guitarriego: Partes da Guitarra Elétrica; Disponível em: https://guitarriego.com/pt/guias-

pt/partes-de-guitarra-eletrica/ Acesso em 21/03/2021; 326As partes físicas metálicas da guitarra elétrica, na qual se inclui os captadores (motivo de controvérsia, por vezes

situado junto às partes eletrônicas), trastes, ponte, tarraxas, tremolo (alavanca e sistema de vibrato)e cabeçotes –

exceto as cordas;

235

guitarra independentes não estariam disponíveis para venda (peças individuais) – contudo a

demanda da guitarra em produções artesanais, principalmente durante a década de 1970, faria

surgir captadores "substitutos" e, até mesmo, pickguards (‘picaretas’) completos nos estoques

das lojas da URSS.

Como exemplos de ‘substitutos’, pode-se destacar os pickups Leningrado, feitos para

violões elétricos e acústicos, que eram montados em um pickguard que, por um lado, não

requeria um orifício, mas não era ajustável. Sua composição seria uma base de aço com um ímã

de ferrite preso em seu segmento e uma bobina ao redor do ímã, envolto em um invólucro de

plástico preto com uma abertura retangular e um encaixe de plástico perolóide. Tais captadores

Leningrado, seriam os modelos autônomos mais primitivos vendidos individualmente, embora

não fizessem parte da produção regular que acabasse na configuração industrial local dos

instrumentos.

E no ínterim que remete à uma ‘picareta completa’, destacaria-se a conhecida como

"bloqueio de tom" (ou ‘bloco de tons’), criação russa também produzida em Leningrado – que

fora projetada, originalmente, para ser montada em guitarras elétricas ou acústicas

(convertidas). O bloco apresentava proteção plástica (o escudo da picareta) com dois

captadores, adicionados a três potenciômetros para controles de tom, volume e conector de

saída.

Em menção à participação da produção em série por fábricas de aparelhos de

radiodifusão, consta o modelo do captador Kirovgrad, oriundo da fábrica de artigos de rádio de

mesmo nome, em duas versões: ZS-6 e ZS-4, para guitarra e contrabaixo elétricos. Sua estrutura

era feita em aço, com gabinete de latão – inseridos numa abertura retangular em perolóide.

Ainda que possuidor de duas bobinas, seu esquema em série não o constituía um humbucker,

porém, como cada uma continha 2.500 voltas, sua amplitude de potência era satisfatória.

E se na ‘capital da cultura’ a produção de captadores se demonstraria pujante, a capital

federal, não ficaria para trás. Daquela mesma pequena cidade da região de Moscou de onde

provinham os ‘intimidadores agressores de rockeiros e hippies’ – os liubery (CUSHMAN,

1995) – ironicamente, sairia a produção de uma das peças primordiais ao rock soviético: os

captadores Liubertsy, em homonímia a sua região de proveniência. Lá seriam produzidos

captadores para guitarras e baixos elétricos, mais disponíveis em todos os arredores de Moscou.

Sua montagem arrojada e facilidade de instalação, seria disponível a aumento de tonalidade

236

para as cordas, individualmente – um avanço para a técnica à época.

Outro modelo de pickguard que ganharia destaque na URSS dos anos 1970, seria o

Vinniza – produzido na cidade homônima, numa fábrica de dispositivos eletrônicos

diversificados (não propriamente, guitarras). Não restam modelos completos que apresentem

características totais desse pickguard, pois sua produção, aparentemente, disponibilizada como

parte separada, só foi atrelada, posteriormente, a um instrumento musical produzido pela fábrica

(o violão Vinizza) e insuspeitos exemplares de guitarra encontrados com o conjunto de

pickguard montado.

Em meio aos modelos de arranjo de fiação URSS, uma surpresa técnica marcante é o

registro de um advento da tecnologia desenvolvido à década de 1970 por lá e que somente

adotado, tanto no Ocidente como à Oriente, cerca de uma década depois. Para entendê-lo, deve-

se observar que o esquema de fiação das guitarras elétricas soviéticas obedecia diferentes

arranjos, tais como os captadores e pickguards, decorrentes das distintas requisições e soluções

encontradas para o material musical. Decorrente disso, controles e recursos de efeitos ficavam

também oportunos de muito opcionais e em ampla possibilidade de configuração. Recordando

aos efeitos (pedais; amplificações) disponíveis, as guitarras soviéticas às vezes apresentavam

vários – e muito complicados – controles integrados, sendo um dos mais relevantes, o esquema

de fiação/ligação relativo ao modelo de plug DIN-5 (padrão da indústria da URSS), que,

curiosamente subestimado, já apresentava uma marcante característica inovadora: ao invés de

um conector mono/ simples como usado em guitarras "ocidentais", se parecia muito com uma

conexão MIDI, permitindo várias funções impossíveis a um plug/entrada convencional – e tudo

isso, em plena metade da década de 1970 (!)

3.4 A TRILHA SONORA DE UMA CRISE: O JINGLE ESTATAL A URSS É MEU

ENDEREÇO E DEPOIMENTOS DE PESO EM MEIO A UM TURBILHÃO CULTURAL E

O ‘LONGO INVERNO’ DE UMA ECONOMIA ESTAGNADA

Tenho de estar no meu trabalho às nove/Mas já faltam apenas dez [minutos]

E estou recém acordando/E na minha mesa está meu café E eu preciso terminá-lo/Provavelmente não estarei lá pelas nove

São apenas dez pras nove ...

Vou colocar no meu relatório/ que o motivo foi uma ida ao médico

E eu não vi relógios pelo caminho

Deixe que me repreendam/Em meu emprego Deixe que me desprezem/Em meu emprego

237

São apenas dez pras nove ...327

Viktor Tsoi, frontman do grupo soviético Kino,

em Без Десяти [Bez Desyati; Dez Pras Nove], do Álbum: 46’, de 1983

A década de 1970, conforme observado ao mencionar da Détente, não se tratava de um

período simples ou de características de análise homogêneas, no tocante à situação das

superpotências da Guerra Fria. Entretanto, peculiaridades mais marcantes dariam o tom desse

período, onde, novamente, por força de suas características estruturais e conjunturais, URSS e

EUA haveriam de se aproximar. Afora o já mencionado fato da cooperação na seara de pesquisa

espacial, as questões de fundo eram as mais gritantes motivadoras desse período de relativa paz

entre as potências contendoras, onde despontariam: o prelúdio de uma crise econômica em

ambos os lados da ‘cortina-de-ferro’, precedidos por um desgaste político interno em cada uma

das nações.

Pelo lado soviético, a crise de produção deflagrada após o fracasso das políticas de base

industrial (com relevo, a Economia Responsiva de 1968, que aqui abordada segundo Geldern,

2003, Martens, 1990 e Garaudy, 1970) colocariam Brejnev em uma situação de dedicação mais

exclusiva ao apaziguamento interno de questões sociais e relativas às estratégias de

continuidade de seus apoios junto ao Comitê Central do PCUS. Assim, a URSS já percebia que

mais do que obter do ministro Aleksey Kosygin, possibilidades de driblar as adversidades que

se seguiriam à primeira fase da crise econômica, uma atuação mais endógena do partido, menos

tendente a se contender no cenário internacional com a contraparte estadunidense, se fazia mais

necessária àquele momento. Seria esse o terreno fecundo à prática de um quid pro quo muito

reprovável entre integrantes da cúpula dirigente da União Soviética (conforme Martens, 1990;

Hobsbawm, 1995; Garaudy, 1970).

Isso resultaria em escolhas questionáveis, por conta da urgência de angariar-se

suficiente apoio para poder obter-se continuidade nas propostas, se colocara uma sombra a

pairar por todas as manifestações de autocracia dos dirigentes soviéticos. Precipitaria-se assim

toda uma aceitação, em termos banais, dos maiores e escusos ‘favores’ burocráticos e a

perpetuidade pouco virtuosa de partidários em posições estratégicas que urgiam por

remanejamento. E nisso, ficaria gritante o papel da (auto)propaganda e loquacidade de Brejnev

nos discursos realizados nos Congressos do Partido ao período (como ilustrado por Martens,

327Tradução da canção; Fonte: RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music; Disponível em:

http://www.russmus.net/song/7186#Russian; Acesso em: 21/06/2021

238

1990), como forma de tentar administrar a credibilidade abalada em muitos dos setores internos

e mesmo internacionais do Socialismo.

Pelo lado estadunidense, de não menor modo, o cenário político se esfacelava numa

crise flagrante demonstrada desde os incidentes do escândalo de Watergate, envolvendo os

nomes de republicanos como o Presidente Richard Nixon (1968-73) e seu vice, Spiro Agnew,

numa grande demonstração de corrupção político-empresarial, incitadora de espionagem ao

partido opositor (Democrata). Em estratagemas que iriam desde a manipulação da mídia

(conforme se pode observar no tribunal-espetáculo que indiciaria o jornal The Washington Post,

por fazer questionamento a postura do governo naquilo que referente a campanha do Vietnã)

até a tentativa de direcionamento da opinião pública em torno da Guerra do Vietnã, não apenas

resultara em um fiasco, mas em um fracasso simultâneo da eficácia do exército e do corpo

político dirigente do Congresso dos EUA e da Casa Branca. Era ela quem tinha costurado

argumentos anti-socialistas, patrocinara a estapafúrdia e duradoura campanha militar por quase

duas décadas, dando encerramento às vidas de milhares de inocentes, dentre jovens, idosos,

mulheres e crianças vietnamitas, até as estrondosas baixas militares – de ambos os lados da

contenda – na qual protagonista majoritária, seria toda uma geração de jovens norte-americanos.

A corrupção que alimentara a chacina no Vietnã, empurrara os jovens dos EUA para o abismo

da guerra ou para a criminalidade da não-adesão (criminalizada, sim, e punida como ato anti-

patriótico de dever civil ao serviço militar, como destacado no emblemático incidente do

pugilista Cassius Clay [Muhammad Ali], que assim como muitos coetâneos, ao agir pela via da

escusa de consciência, por não ingressar na guerra seria destituído de seu título de Campeão

dos Pesos Pesados e aprisionado como infrator).

Em outras palavras, ambos os lados da Guerra Fria estariam, pelo menos até a primeira

metade da década em curso (1970), ‘reorganizando a casa’, politicamente, para se recuperarem,

cada qual a seu modo. Curiosamente, ambas as potências estariam, àquele momento, também a

precipitar-se em novas crises logo a seguir. Do lado soviético, a quebra econômica em curso

desde o final dos anos sessenta, conduziria a partir de 1973 a uma recessão econômica, a qual

resultaria numa estagnação da produção do chamado ‘segundo mundo’ em um nível

alarmantemente similar ao de países em desenvolvimento – a chamada Zastoya (KEPLEY JR,

2017). Pelo lado Ocidental, em simultâneo, o avanço imperialista estadunidense se mostraria

enfraquecido. Nisso se observaria, à surpresa geral dos EUA, outro duro golpe em sua

influência no Oriente Médio: o Irã com sua Revolução dos Aiatolás (1979), fulgurantemente

liderado pelo líder religioso Aiatolá Khomeini, levaria setores populares e militares locais a

239

derrubar o governo alinhado aos estadunidenses (desempenhado pelo Xá Reza Pahlevi)

ocasionando logo em seguida, a reboque, um câmbio nos preços do petróleo, desencadeando

uma nova Crise do Petróleo (precedida pelas de 1968 e 1973) – considerada como a última

grande crise do capitalismo do século XX e o fim da chamada Era de Ouro, iniciada no pós-

Segunda Guerra (HOBSBAWM, 1995; pp. 186-192).

De modo mais esmiuçado, fica didático entender porque é que se gozaria então da

sobredita trégua, que nada mais impunha que a confirmação de que ambos os gigantes se

encontravam em desgaste àquele momento e buscando mudar de rumo. No lado Ocidental, seria

o que levaria, por exemplo, a eleição de um governante do partido Democrata na Casa Branca:

Jimmy Carter, em 1977 (precedido que fora pelos republicanos Nixon e Ford), o qual sustaria

o patrocínio aos regimes militares da América Latina, ratificaria a descriminalização dos

evadidos do cumprimento do serviço militar para com a Guerra do Vietnã, assinaria os tratados

conseguintes de redução de armas nucleares (HOBSBAWM, 1995) e buscaria oferecer ao

público, a visão de que seu país careceria de uma ‘perspectiva para anos mais difíceis’ (FICO,

2017).

E na URSS, ainda sob Leonid Brejnev, buscando contornar esses problemas, daria-se

início a uma estratégia ousada propaganda interna: surgiria assim a campanha estatal A URSS

É Meu Endereço, de 1972-73328.

A campanha estatal que surgia, vinha embalada em recentes transformações que

grassavam na porção soviética. Se o VIA era uma realidade a se considerar e, em seu bojo, o

rock trazia o tom da musicalidade da juventude, se fazer popular entre os cidadãos da URSS

era entender e considerar tal demanda. Entre outras verificações que atestam esse ‘tom’ rumo a

uma modernização – ao menos, no sentido mais alegórico de aspectos sociais, visto que,

politicamente esta continuava, majoritariamente, com a estrutura de costume – encontram-se

aquisições de mídia que ganhavam os lares soviéticos, promovidas em meio a economia que

encontrava-se em incerteza: as televisões por moradores/casa na URSS, em 1972, por exemplo,

alcançavam a cifra de 50 % entre a população urbana e programas de televisão como o KVN

(sigla das iniciais de Clube dos Alegres e Engenhosos, em tradução aproximada), ficavam muito

fortalecidos no apupo e gosto populares (EVANS, 2003)329. O KVN, em especial, seria um

328My Adress Is Soviet Union (1972); In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary

sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-

music/my-address-is-the-soviet-union-1972/; Acesso em: 21/06/2021 329EVANS, Christine; 1973 - KVN Cancelled; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of

240

programa de auditório estatal proveniente das criações da Era do Degelo, tendo principiado

ainda em 1961. Seu esquema básico era de um sortimento de variedades, conduzido por

apresentador junto à um público interativo (e os telespectadores), contendo segmentos de jogos,

brincadeiras (gincanas), suplementos de humor, concurso cultural e demonstrações de proeza

intelectual (concurso de perguntas-e-respostas, ao estilo Jeopardy)330. Em seus números,

brilhavam como protagonistas, jovens acadêmicos, em geral do sexo masculino, realizando as

provas e colocando-se em situações, ora cômicas, ora de entretenimento, previamente

autorizadas – (EVANS, 2003).

No entanto, a proporção que o programa ganhara em meio ao seio popular, transmitido

a partir de 1967, da central televisiva de Ostankino, cuja cobertura espraiaria à 70% do território

soviético, somada a influência que despontava de um ‘clima’ de relativa liberalidade, faziam

soar o alarme à administração do aparato soviético de que o programa estivesse conduzindo a

uma indesejável impressão equivocada de ‘libertinagem’, uma influência contra-hegemônica à

ideologia e comando da URSS. O carisma dos apresentadores e o gosto popular pelo

suplemento exibido, levariam a que se tornasse alvo principal do novo dirigente do Comitê

Estatal de Rádio e Televisão (Gostelradio), Sergei Lapin (afeito a uma linha mais intransigente

da administração), o qual, de sua assunção ao cargo em 1972, desde logo preconizaria toda uma

reformulação dos quadros do programa – algo que progressivamente, conduziria ao seu

cancelamento, ainda no ano em questão.331

O duro golpe em plena juventude que se considerava em ‘abertura’ e ansiando por mais

que a conquista do VIA, não seria uma medida encarada sem um sabor impopular. Desse

modo, fazia urgir uma contra-medida atenuante. Seria assim, que convocando o músico e

arranjador David Tukhmanov, proeminente guitarrista soviético, integrante do esquema VIA e

artista querido pelo público, e unindo-o ao talento compositor de V. Kharitonov, seria

primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/kvn-cancelled/; Acesso em:

20/06/2021 330O Jeopardy (do inglês, perigo; risco), é um programa televisivo de perguntas e respostas, ao estilo quiz show,

onde participantes se enfrentam, alternadamente, desafiando-se através de perguntas formuladas segundo temas pré-determinados, que devem ser respondidas pelos adversários, angariando pontos cumulativos a cada acerto (ou

perda de pontos, em caso de erro). Sagra-se vencedor o time (ou participante solo, a depender do caráter

eliminatório da competição) que obtiver o maior número de pontos na rodada final (que pode ser decidida em um

programa ou como fase culminante em uma série de participações durante um período). Seus temas de desafio

contemplam diferentes saberes, cobrindo temas como História, Literatura, Esportes e Música. O programa e seu

esquema original, desde a primeira exibição, surgiria nos EUA, ainda na década de 1960 (com a transmissão

inaugural veiculada pelo canal estadunidense CBS, em 1964), contando atualmente com uma imensa gama de

variações autorizadas em emissoras televisivas ao redor do mundo. Fonte: Jeopardy Official Website. Disponível

em: https://www.jeopardy.com/; Acesso em: 20/06/2021 331EVANS, 2003. Op. Cit.

241

encomendada a composição de uma melodia pulsante, cativante, a qual colocasse entusiasmo à

proposta de um re-engajamento civil – uma verdadeira campanha estatal, espetacular como o

gênero estrada (dançante e popular como as canções de palco), mas com função

ideologicamente esperada, própria da massovaya pesnya (caracterizada por hinos e marchas em

tributo às instituições soviéticas). Com uma letra elaborada pela Associação dos Compositores

da URSS, e a melodia de Tukhmanov, surgiría entre 1972-73 um jingle soviético cadenciado,

à la VIA, contendo uma letra positiva e conformista, pró-estabelecimento, enquanto sintonizada

na sonoridade urdida pelo apelo juvenil popular – com o sugestivo nome A URSS É Meu

Endereço.

Analisando alguns trechos da canção – encontrados na plataforma digital de fontes

primárias Seventeen Moments of Soviet History, 2003 – pode-se perceber nitidamente o

posicionamento tomado pelo aparato, em absorver não apenas o esquema de organização dos

grupos preceito de rock (sob o VIA), mas a própria sonoridade do rock para uma finalidade

destoante daquela que notoriamente difundida e conhecida com o ritmo em questão. Ao invés

de um rock contra, aparecia um rock a favor, cuja atitude, considerando-se as colocações feitas

pela comunidade rockeira de Leningrado (conforme CUSHMAN, 1995), ‘nada teria de rock de

fato, apenas o uso funcional, institucional de uma instrumentalidade de sua música’. Pela qual,

segundo tal interpretação, a gramática do rock seria utilizada, à revelia de seu caráter, como um

elemento qualquer de absorção e promoção da estrutura da indústria cultural soviética. Algo

que se pode observar nos excertos em análise a seguir – cuja versão original está também

presente nos Anexos deste trabalho (contemplando três grafias: em cirílico, em inglês e em

português):

As rodas do vagão ditam/ Onde nos encontramos com urgência

Meus números de telefone/ Estão espalhados pelas cidades

[Estribilho]

O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga

Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço

Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço

Pontos e traços telegráficos/ Você procura por mim nos canteiros de obras

Hoje, assuntos pessoais não são importantes/ Apenas os relatórios do dia de trabalho

O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga

Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço

Eu estou onde os caras são sensatos/ Eu estou onde os cartazes proclamam "para

frente"

Onde uma nação trabalhadora canta/ As novas canções dos trabalhadores

O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga

242

Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço

Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço

Мой Адрес Советский Союз, 1972 [Moy Adres Sovietskyi Soyuz/ A União Soviética É Meu Endereço, 1972]332

As sentenças carregadas de ufanismo, otimismo e positividade, vinham contrastar com

o início do período de uma crise econômico-social pronunciada, de efeitos bastante profundos

na realidade soviética. Mais do que isso, o apelo ao elemento patriótico ao abordar-se o senso

de localização (endereço) com o de pertencimento (à URSS), continham muito daquilo de

reincidente em outros períodos da União Soviética: o nacionalismo/patriotismo soviético, que

fora evocado por Stálin como elemento crucial à coesão de múltiplas etnias durante a Guerra

Patriótica (2ª Guerra Mundial) e rejuvenescido nos avanços tecnológicos de uma Corrida

Espacial – não menos patriótica – perpetrada na Era Kruschev, que fariam presença também

na administração Brejnev, através do recurso da mídia tecnologizada e popularmente acessível.

No conceito de ‘pátria e pertencimento’, grande motor de propulsão do estribilho da

canção, figuraria um elemento conhecido da cultura soviética: o termo rodina (родина). Por

rodina, segundo Cushman (1995; p. 171) entende-se algo que costumeiramente traduzido como

‘terra-mãe’ ou ‘pátria-mãe’, uma das mais emblemáticas formulações do ideário da

‘russianidade’ concebida no século XX, portanto, uma autêntica instituição oficial da cultura

soviética. Por esse conceito, ‘seu lugar primeiro de pertencimento, com que se pode contar e

confiar’, seria a ‘pátria-mãe, sua terra natal’ – algo que, com o passar do tempo, seria revisitado

pela percepção dos cidadãos da URSS, que chegariam a um outro conceito (CUSHMAN, 1995;

p. 109) – como percebe-se no depoimento incisivo do músico Zhenya, entrevistado pelo

sociólogo, que dissertaria sobre a relação com seu pai, um negociante inglês (p. 171):

[...] O que que eu faria na Inglaterra!? Me tornaria um homem de negócios inglês?

Todos os meus amigos e minha vida estão aqui. Você sabe, eles sempre estão por aí

falando de rodina. Você sabe, rodina para mim é onde meus amigos estão. Se meus

amigos estivessem na África, então minha rodina seria na África. [Traduzido do

inglês]

Outro recurso da retórica presente na canção para reavivar um preceito mais tradicional

do sovietismo, é a tentativa flagrante de apelar para o coletivismo e o trabalho. As menções tais

como: ‘Meus Números de Telefone/ Estão espalhados pelas cidades’ [...] ‘Meu endereço não é

332KHARITONOV, V; TUKHMANOV, D; Мой Адрес Советский Союз [Trad. Literal: Meu Endereço É A

União Soviética; Trad. Semântica: A União Soviética É Meu Endereço]; URSS. 1972; A versão aqui utilizada

segue conforme encontrada na entrada My Adress Is The Soviet Union – 1972; In: Seventeen Moments of Soviet

History: An online archive of primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-

2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-music/my-address-is-the-soviet-union-1972/; Acesso em: 21/06/2021

243

uma casa ou rua’ [...] e ‘Hoje, assuntos pessoais não são importantes’ – demonstram-se claras

assertivas no sentido de diluir o elemento mais subjetivo individualista dos cidadãos. Conforme

já mencionado no trabalho, seria o resíduo constante dessa batalha entre koletivinazthyi

(coletividade) e lichnasty (auto-identidade; diferente de sovietsky lichnasty ou ‘identidade

soviética’), cuja tensão seria vista ao longo do tempo, quer por músicos, quer por cidadãos,

como receptáculo de muitas das tensões vividas na sociedade da URSS.

Quanto à ‘ode ao trabalho’, as menções como ‘[...] ‘Assuntos pessoais não são

importantes/ Apenas os relatórios do dia de trabalho’, ou mesmo ‘As rodas do vagão ditam/

Onde nos encontramos com urgência’, seguidas de ‘Estou onde os caras são sensatos’ –

perseguem o ideal de uma sociedade planificada, planejada, cujo aparato de controle se

entroniza nos cidadãos através da realização do trabalho, que estabelece um sentido, uma

direção – dentro dos planos estatais, sem espaço para divergências ou ‘desvios de rota’. Tais

conceitos, se coadunam perfeitamente ao padrão pretendido com os passaportes internos,

consubstanciados pela trudovaia kinidzhka (carteira de trabalho), que não apenas transformava

o trabalho em alegórica forma de rotina do cidadão local, mas num instrumento de fiscalização

de seu proceder, seu trajeto e sua prestação ao Estado. Não obstante, no quesito ‘desvio de rota’,

e, portanto, ainda mais semântica a colocação de ‘Onde as rodas do vagão333 ditam/ Onde nos

encontramos’ – remetem-se ao controle real do direito de ir e vir dos cidadãos, tanto na alegoria

do deslocamento físico autorizado – mas também através do marcante exemplo, dos controles

internos de suspensão e baixamento das pontes de comunicação entre os distritos de

Leningrado, limitando os horários de encontro e circulação de pessoas na cidade (CUSHMAN,

1995; pgs. 174-76) – quanto na representação do sentido de trajeto moral adequado – zhisnenyi

put’ (trajetória de vida).

Se a reificação do ser humano se daria pelo trabalho, segundo a interpretação marxiana

clássica, na interpretação literal soviética, seria este o fundamento e instrumento principal do

seu controle ideológico: não trabalhar constituía um excesso de individualismo, redundando em

crime e vergonha, simultaneamente. Daí, então, o porquê de se tentar amealhar o senso de

pertencimento à ‘pátria-mãe’ pois, segundo Sennett (2015), a personalidade inculcada no

indivíduo daria espaço à construção, voltada ao âmbito coletivo, do caráter.334

333Para adiante das considerações hermenêuticas mais metafóricas da letra, o apelo em torno da figura do transporte

ferroviário em sua relação com o trabalho seria pertinente, uma vez que os trens desempenhariam (principalmente

nas capitais Moscou e Leningrado) importante papel no transporte local de trabalhadores, cotidianamente. 334SENNETT, Richard; A Corrosão do Caráter: As consequências pessoais do trabalho no Novo Capitalismo;

Trad. Marcos Santarrita; 16ª Edição. Rio de Janeiro: Record. 2015

244

3.4.1 Lecionando uma Cruzada Conformista: Cifras de um comércio dirigido,

claudicações sutis e um crime organizado – num subúrbio nem tanto – ladeando as origens

da Campanha Estatal em apoios sociais conservadores

As fronteiras da comunidade socialista são invioláveis e intangíveis. A unidade fraternal dos países socialistas é a melhor muralha contra as forças que tentam atacar e enfraquecer o campo

socialista [...] A aproximação de todas as classes e grupos sociais e o reforço da sua unidade social

produzem-se entre nós com base na ideologia marxista-leninista.

Leonid Brejnev, Discurso durante o XXIV Congresso do PCUS, em 1971335

Não seria apenas a preocupação ideológica que a questão do jingle estatal tentaria

contornar, mas uma questão econômica. Ao posicionar uma ênfase no VIA, chamando-o a

‘modernizar’ a cara da URSS, enquanto mantinha sua estrutura, buscava-se deixar aberto um

leque de opções de consumo aos cidadãos, com os ‘ventos de tempos revigorados’. Assim, a

questão de circulação de mídias e produto cultural interno e exterior no mercado de consumo

local seria pragmaticamente econômica – atuando em diferentes frentes. Conforme o

historiador ucraniano e ex-americanista336, Sergey Ivanovicz Zhuk, ao abordar o tema em seu

artigo – Richard Stites, The Soviet West and the Americanists, de 2015 – deixa transparecer, a

influência Ocidental da mídia viria encontrar-se à circunstância soviética, toda motivada e

precipitada dos eventos que a haviam antecedido (no Degelo), mas também devido à atmosfera

sócio-econômica da Era Brejnev (p. 163):

A gravadora de música soviética Melodiya lançou o primeiro licenciado de discos de

música Ocidental para atender à crescente demanda entre os jovens consumidores

soviéticos de música Ocidental, e ao mesmo tempo, para responder aos novos

requisitos ideológicos da entrada soviética no entretenimento. Entre 1970 e 1975, a

Melodiya lançaria numerosas compilações de músicas que incluíam canções

populares de rock Ocidental, sem qualquer permissão oficial de gravadoras ocidentais.

Na verdade, o primeiro lançamento soviético ‘pirata’ datado de 1967, incluiria uma

compilação da canção dos Beatles, Girl e dos Rolling Stones [I Can´t Get No],

Satisfaction. As compilações mais populares da Melodiya da década de 1970 incluem

House of The Rising Sun, do [grupo] Animals; Holiday, I Can´t See Nobody e To Love Somebody, do Bee Gees; Mary Long e Super Trouper, do Deep Purple; ‘Cause I Lov

You, do Slade; Funny Funny, do Sweet; Hot Love e Bang A Gong (Get It On), do T-

Rex. Na década de 1970 e início dos anos 1980, Melodiya lançaria sucessos populares

de Elton John, Creedence Clearwater Revival, Pink Floyd, Jethro Tull e outros

335MARTENS, 1990. Op. Cit. 336Por americanista deve-se entender, desambiguadoramente, o sentido de um especialista historiógrafo, na

cadeira de Americanismus, cátedra soviética criada ainda na década de 1950, que segundo Sergey Zhuk, em algo

similar aos objetivos estratégicos dos Area Studies estadunidenses, seria uma especialidade acadêmica voltada a

estudar prospectivamente o tema da ideologia, costumes, história, economia e cultura dos EUA, com finalidades

de obtenção de vantagem de conhecimento durante a Guerra Fria. A busca por entender-se como os estadunidenses

haviam conseguido tornar-se prósperos na circunstância da modernidade industrial e seus aspectos de vanguarda

em muitas searas (com vulto, na economia, pesquisa científica civil e militar, ou mesmo na exploração das

ferramentas de distribuição informacional cultural) demarcariam áreas de interesse de conhecimento crescente

entre a cúpula administrativa da URSS, que começaria a implementar com os americanistas, novas formas de

abordar diplomaticamente o Ocidente. Fonte: ZHUK, 2012; pp. 166-69

245

músicos de rock ocidentais. Claro, os Beatles e os Rolling Stones eram representantes

veiculados em uma série de doze minions (versão soviética de discos de música

individuais com quatro canções[semelhante aos singles ocidentais]) que seriam

lançados pela Melodiya sem nenhuma licença oficial de gravadoras ocidentais durante

[o período] 1967-1975. [Tradução do inglês e grifos nossos]

De um lado estaria a influência dos recentes eventos tecnológicos alavancados com o

alcance (como analisado anteriormente) de uma indústria de radiodifusão e instrumentos da

URSS, direcionada ao consumo doméstico, que proporcionaria, ineditamente, magnitofons,

guitarras elétricas e captadores no horizonte de produtos da população local – procurando-se

nisso, de um fomento interno à cultura de gosto, o aquecimento progressivo do consumo e

absorção da produção estatal. Colateralmente, em outra porção, não se pode olvidar, segundo

ZHUK (2012), a preocupação simultânea nesse panorama de ‘guinada de costumes à moderna’,

com o intuito de alimentar um público do gosto, aquecendo assim a procura por produtos

culturais soviéticos, de radiodifusão e a procura pelos espetáculos locais e cinemas soviéticos,

mesmo que oriundos ou orientados pelo referente Ocidental.

Destaca-se nisso o ‘surto’ emblemático e autorizado de diversos conjuntos VIA

protagonistas de ritmos inéditos na URSS, tais como: a disco music (conforme visto na

interpretação de Valeryi Pavlov)337; o rock experimental (como ilustram os grupos Vyselya

Rebiata e Polyuschchi Guitaryi)338; e as modalidades de chanson, à moda americana (com

destaque para o artista soviético Eduard Khill339, com uma persona vocal semelhante a de

nomes canônicos como Frank Sinatra, Tony Abott e Burt Bacharah) e francesa (através da voz

poderosa do músico Alexander Gradsky340, cuja interpretação poderia ser comparável em valor

337Como pode ser conferido nessa ‘disco soviética’, que traria cadência e ritmo muito semelhantes à trilha sonora

do filme estadunidense Saturday Night Fever (1977), no audiovisual da canção Осталовите Музику (Astalavite

Múziku), de 1977, interpretada magistralmente por Valeryi Pavlov – disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=AX53syaXUWQ&ab_channel=%D0%A1%D0%B5%D1%80%D0%B3%D

0%B5%D0%B9; Acesso em: 20/06/2021 338ZHUK, 2012. Op. Cit. p.163 339O afamado viral da internet ‘Trolololo’, que consagraria já septuagenário o intérprete Eduard Khill, mostra

apenas uma das versatilidades do cantor de Smolensk, Rússia. Segundo conta em sua biografia, a versão arrojada,

realizada para uma audição em Moscou na URSS de 1970, mostraria o cantor pressionado em uma situação onde

integrantes da produção do programa de televisão onde iria apresentar-se, surpreenderiam-no às vésperas do

quadro, com uma censura quase integral da letra (a qual falaria supostamente de um caubói nas pradarias), tendo assim a ideia ousada de apresentar-se apenas em solfejos e repetições, muito bem executados, das sílabas lo-lo-lo,

causando do seu inusitado, um dos maiores números musicais consagrados no princípio do século XXI e fenômeno

da internet. Fonte: NOVOSTY, 2015 340Formado e condecorado no Instituto Musical e conservatório Gniesin em Moscou, Alexander Gradskyi teria

uma carreira prolífica já anteriormente à década de 1970. Sua participação na década de 1960 em conjuntos de

bigbit como Skomorokhy (‘Os Bufões’), Taraskany (‘As Baratas’), Los Panchos e eventuais participações nos

grupos Myths e Scythians, o levariam a ser considerado no princípio da década seguinte como um dos importantes

ícones do VIA, onde emplacaria êxitos como a magnífica canção Как Молоды Мы Были (Kak Molodyi My

Byli) de 1976, na qual exibiria como em poucas oportunidades, as três oitavas de sua extensão vocal (tenor).

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lj0JzDz0vVY&ab_channel=Starkoff; Acesso em:

246

a de Charles Aznavour – todos gêneros que consagrados, embora entoados em língua nacional

(russa), bastante distintos ao costumeiro da produção soviética. Somaria-se a esse argumento,

contextualmente, a compra de materiais audiovisuais ocidentais a abastecerem os cinemas

soviéticos como somente se observara igual durante o período do pós-Guerra Patriótica – onde

Stálin exibira os ‘filmes troféu’ angariados dos Aliados, como forma de manter ativos os

baqueados e depauperados cinemas soviéticos, durante e após o esforço de guerra e

reconstrução (KEPLEY JR., 2008). Segundo Zhuk (2012; pp. 165-66):

Na URSS em meados dos anos 1960, as vendas brutas de ingressos para o cinema

estariam em aproximadamente 1.000.000.000 de rublos anuais, dos quais o Estado

teria coletado 440.000.000 em lucro puro. Eventualmente, a noção de comércio e

sucesso social da indústria cinematográfica soviética levou à sua internacionalização

e compra de mais filmes estrangeiros, o que trouxe mais lucros para a indústria. Para

cada rublo investido de seu orçamento, as autoridades soviéticas, estimariam das compras de filmes estrangeiros, uma receita combinada de retorno de até 5 rublos;

dentre o pacote de filmes de faroeste, podia-se chegar em até 250. O Ministério

Soviético da Cultura começaria a comprar um grande número de filmes estrangeiros

– em 1955, 63 filmes, para 113 em 1958, com planos para mais de 150 em 1960. No

período de 1954-1991 a URSS importaria: 206 filmes da Índia; 41 dos EUA e 38 da

França. Em 1960, cada filme do mundo capitalista atrairia uma audiência média de

mais de 500.000 [espectadores] em Moscou, enquanto as produções soviéticas

alcançariam uma média de 357.000, e as demais produções do Bloco Socialista,

chegariam a 133.000. {...] Durante a Era Brejnev, apenas em 1973 a principal

autoridade soviética para aquisição e distribuição de filmes estrangeiros,

Soveksportfilm, compraria mais de 150 longas-metragens de cerca de 70 países

(cinquenta deles, oriundos do Ocidente capitalista). Durante o período da Détente, esse número cresceria. Mais filmes ocidentais alcançariam a União Soviética – a

cinefilia do final da década de 1970, era maior do que a da década anterior.

O papel dessa exibição, nada inocente, seria marcante, segundo a opinião do autor, na

influência da juventude soviética, para a qual consideraria que ‘os filmes de western exibidos

entre as décadas de 1960 e 1970, por poucos que fossem, representariam um maior contribuinte

à Ocidentalização da juventude local, do que a música e os livros oriundos da banda Ocidental’

(p. 166). Ainda nessa explanação, ressalta que a taxa de consumo de cinema entre os jovens

locais, seria de dois a três filmes por semana, em período escolar, subindo para seis a sete filmes,

durante os recessos letivos – na década de 1970. Sendo 90% desses filmes, originários da

cinematografia do Ocidente capitalista (ZHUK, 2012).

E essa enxurrada de novos materiais ao circuito cultural em terras soviéticas estaria em

crescimento, concomitantemente, ao esquema de intromissão das organizações criminosas

locais – as irmandades de ladrões e criminosos, que na Rússia, intituladas bratvas. Tais

organizações atuariam atravessando desde produtos importados até parte da produção de cultura

21/06/2021

247

alternativa, ostentando um ar de desafio ao proceder estatalmente referenciado (FRIEDMAN,

2000)341. Da máfia russa, cabe mencionar que tenha surgido ainda durante os eventos da Grande

Guerra Patriótica (1941-45), por conta dos re-admitidos egressos dos gulags (sistema prisional),

‘libertos’ às pressas para cumprirem o dever no front de batalha. De delinquentes comuns a

criminosos políticos, essa camada de soldados recrutados ao esforço de guerra, essenciais à

vitória alcançada, teria seu papel, maquiavelicamente, subestimado no período logo posterior,

no qual Stálin optaria por reenquadrar e reencarcerar tais ‘pretensos soldados’. Como

resistência, muitos dos foragidos à tentativa da nova captura, se organizariam em bratvas

secretas, escondendo-se aqui e ali e amealhando-se aos setores de atividade ilícita das capitais

da Rússia – como por exemplo, nas atividades do mercado negro. Conforme visto, em Brejnev,

a função dos atravessadores (tolkachi), durante a Economia Responsiva (1968), cresceria

perigosamente, e seu poder de influência alcançaria, paulatinamente, articulações junto ao

próprio governo, entremeando-se na malha de colaboradores ‘informais’ da Nomenklatura. Não

obstante, sob o olhar leniente (ou seria indefeso?) da administração local, em meio ao cenário

da recessão econômica uma das maiores organizações criminosas soviéticas surgiria: a

Pyramida-5, máfia sediada em Moscou e ramificada em colaboradores por todo o território da

URSS, cuja filha do secretário-geral Brejnev, Galina Brejneva, seria uma das principais

comandantes, coordenando o esquema de crimes como contrabando e tráfico (FRIEDMAN,

2000)342.

Esse mundo controvertido feito de ‘esgarçamento do tecido social estatal’, ainda

encontraria outro movimento juvenil, em simultânea eclosão àquele momento (meados de

1970), desencadeado pelo fenômeno outrora proporcionado pela urbanização de Kruschev: os

gopniks343. A estrutura habitacional da Era Kruschev – formada pelas Kruschevskayas

(moradias de Kruschev; conjuntos habitacionais), durante os anos de 1961-63, faria aglutinar,

promiscuamente, a toda uma geração de ‘filhos moradores’ desses maldosamente epitetados

‘lixões de Kruschev’ (‘kaka’). As moradias comunais, criariam o cenário na década seguinte de

um agrupamento maciço de cidadãos oriundos de diferentes pontos do país, culturalmente e

moralmente diversos entre si e caracteristicamente bastante diferentes dos ‘instruídos

341FRIEDMAN, Robert; Red Mafiya: How The Russian Mob Has Invaded America; 1ª Edição; Ed. Little &

Brown; New York, 2000 342Idem 343Como pontuado em didática cobertura do observador cultural e influencer eslavo (auto-intitulado) Boris

(atualmente, radicado a Estônia, na capital Tallin), no canal Life of Boris, que descreve no episódio Gopnik, boa

parte dessa intrigante subcultura oriunda da estrutura social dos estertores da URSS. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=Qif-Qz7NY48&ab_channel=LifeofBoris; Acesso em: 22/06/2021

248

acadêmicos’ artífices do rock n’roll/ bigbit da geração anterior. Kruschev dera origem aos

grandiosos subúrbios de Moscou e Leningrado – ou ‘favelas’, segundo algumas observações –

bem como fizera brotar rapidamente, cidades mais preparadas tecnicamente com suas

edificações, que o próprio âmago de seus cidadãos habitantes.

Inobstante, pelo caráter da economia planificada, a quantidade muito modesta de

recursos financeiros necessária para se custear as condições básicas de sustento e vida na URSS,

permitia principalmente aos indivíduos jovens, ainda sem família constituída, gozar de mais

uma ‘janela de tempo’, podendo chegar-se ao cúmulo de trabalhar apenas dois dias de uma

semana regular, para dispor do salário suficiente à compra de gêneros alimentícios básicos, bem

como bebidas, cigarro e outras formas de recreação triviais. Levando a que muitos desses jovens

se dedicassem a ocupações marginais, individualizantes ou setoriais, dentro de sua própria

existência – da circulação de produtos e personagens clandestinos à realidade local, até a

proliferação de música (rock) marginal no circuito underground das grandes cidades (com

vulto, como já mencionado, em Leningrado). Enquanto a estagnação avançava, a contravenção

era organizada e sua estrutura subjacente, não.

Portanto, o esforço de Brejnev em flertar com uma iniciativa ‘populista/modernista’

soviética que se tentava revigorada através de uma campanha estatal, encontraria um elemento

opositor estrutural em seu próprio bojo: a inquieta juventude. Num trecho de um depoimento

ao jornal soviético Uchitel’skaia Gazeta, edição de 13 de junho de 1972, um professor, L.

Mateto, diretor da Escola Secundária nº 816 de Moscou, esboçaria ilustrativamente o teor de

uma ‘preocupação por uma re-patriotização e civismo’, decorrente dessa indignação com a

postura juvenil efervescente na URSS – na carta intitulada Alienados de Si Mesmos:

Moscou - Nas escolas que visitei, algumas das meninas mais velhas usam maquiagem

nos olhos e alguns meninos têm cabelo até os ombros e usam calças supermod. Se você fizer um comentário, eles responderão: “Isto é o que eu gosto de vestir. Cada um

ao seu gosto. “Algumas mamães e papais também afirmam que a aparência de seus

filhos é assunto seu: eles param para pensar que os jovens às vezes deixam de

experimentar modas estrangeiras para experimentar ideias estrangeiras.

Nós, professores, devemos proteger os jovens de más influências e gostos

vulgares. Afinal, não é apenas o comportamento adequado que estamos inculcando,

mas também a virtude cívica e o patriotismo.

Como isso tem que ser feito? Se dissermos: “Prepare-se e corte seu cabelo amanhã!”

podemos persuadir o aluno à obediência, mas alcançaremos um efeito mais duradouro

dando orientação perspicaz e persistente na distinção entre o bem e o mal. A influência

do coletivo em uma reunião da Liga dos Jovens Comunistas causou impacto em um

jovem de cabelos compridos de nossa escola.

Eu também sugeriria que a própria escola fosse mantida alegre e arrumada, que os

uniformes escolares fossem mais adequados, emblemas especiais fossem criados para

249

fomentar o espírito escolar e dissuadir os alunos de usar emblemas estrangeiros, e

mais literatura sobre o problema fosse publicada para professores e pais.344

A carta, aparentemente real (não produzida, mas selecionada pela imprensa soviética à

época), serve aqui como grande metáfora à reflexão do clima sobre o qual se debruçaria o

substrato à campanha estatal de 1972. Sua redação toca em pontos críticos da disseminação de

influências ocidentais entre a juventude local, tais como a moda e comportamento, aproveitando

para demonstrar, segundo seu ponto de vista, como a permissividade de costumes esboçada na

possibilidade de adesão juvenil pela moda exterior, constituía em avant-premiére ao próximo

passo: o de adesão aos ideais ocidentais, individualistas e contestadores (conforme mencionado

com o trecho ‘os jovens às vezes deixam de experimentar modas estrangeiras, para

experimentar ideias estrangeiras’).

Não obstante, revela-se na sequência da carta, de como se estruturara, de certo modo, a

tendência da administração Brejnev em procurar num slogan/jingle estatal alguma forma de

controle por sobre o processo de disseminação cultural local à época – principalmente entre a

juventude – conforme pode-se interpretar com a menção ‘[...] devemos proteger os jovens de

más influências e gostos vulgares. Afinal, não é apenas o comportamento adequado que

estamos inculcando, mas também a virtude cívica e o patriotismo’. Em outras palavras,

‘poderia-se persuadir o aluno – o povo – à obediência’ do civismo-patriotismo nessa

reeducação engajadora de Brejnev, contando-se com os artífices partidários como ‘professores’

para promover uma atmosfera de ‘influência coletiva’.

A escola real, essa que protuberara a educação soviética durante décadas como uma

instituição, daria lugar à ‘escola alegre e arrumada’, de um jingle ou do slogan, onde o palco

midiático, transmitido através do VIA, ofereceria ‘os emblemas especiais’ – distribuídos como

‘balas’ ao povo, sob a forma de sortidos gêneros musicais, filmes e produções (inclusive do

Ocidente, conforme Zhuk, 2012). Os quais seriam coroados com a veiculação do ‘grande

emblema’: a campanha estatal A URSS É Meu Endereço, voltada a ‘fomentar o apreço à ‘escola

local’ – rock russo do VIA – que, paulatinamente, esperaria-se, fosse ser capaz de permitir

abandonar os produtos exteriores, buscando-se através disso, se bem-sucedido, ‘dissuadir os

alunos de usar emblemas estrangeiros’.

344Fonte: Current Digest of Soviet Press, XXIV, 45/14 (1972); In: Seventeen Moments of Soviet History: An

online archive of primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-

russian/rock-goes-russian-texts/western-styles-infect-soviet-youth/; Acesso em: 21/06/2021

250

A consideração que culminava na conclusão de ‘alienados de si mesmos’ aos jovens,

ainda seria essa que eximia sua culpabilidade no ato de ‘aculturar-se’, influenciar-se, como se

restassem tais jovens apenas como produtos das circunstâncias ambientais, pura e

simplesmente, não lhes reconhecendo autonomia nem caráter próprios, nem à sua instância de

juventude, que por esta visão, seria ainda tida como não dotada de juízo particular, de gosto

autêntico ou manifestação de decisões de arbítrio. Pelo contrário, a insistência em apelar-se por

uma responsabilidade de tutela, a ser exercida por pais, professores e instituições, apenas

reforçava a reativa resistência geracional, em reconhecer a legitimidade, particularidade e

autonomia das manifestações do indivíduo juvenil dentre a sociedade soviética. De modo nada

distinto dos EUA, neste aspecto, onde revigorava a tonalidade de um discurso fracassado sobre

pátria e valores, por sobre jovens transeuntes em seu momento de ávida eclosão cultural. Fosse

com discursos sobre a Guerra do Vietnã de um lado, ou com o jingle estatal de outro, o ufanismo

estatal e os valores tradicionais vinham bater-se por sobre a liberdade dos jovens questionadores

– os quais em seus comezinhos precedentes de desobediência, alavancariam com isso o

sentimento de uma demarcação cultural nada modesta.

E a administração não voltaria a carga apenas através questão de circulação midiática.

As ‘estruturas concretas’ deviam ser consideradas a reenquadrar a orientação da juventude,

chegando sob a agenda militar do ‘Guarda-Chuva Brejnev’: o grotesco cenário da Guerra

Soviético-Afegã (1979-1989) – conflito que por suas memórias profundamente e

contundentemente marcadas na juventude local, ficaria registrado em músicas-protesto

soviéticas como Ne Streliay (Não Atire!) de 1982, do grupo bardrock DDT e Gruppa Krovvy

(Tipo Sanguíneo) de 1988, do grupo punk Kino.345

3.5 Da Máquina do Tempo ao Aquário: O terreno subterrâneo germinado entre

Leningrado e Moscou, o ácido sabor de um ‘Rock na Cozinha’, o bard rock e o significado

de Tusovka

São os burocratas que, livres da menor dúvida, são os que decidem o que é bom e o que é mau, o que

as pessoas precisam e o que não precisam. Eles decidem qual música é aprovada na Rússia e qual

música é reprovada. Eles ensinam rouxinóis a cantar no tom certo. Seu guia são as regras do

Realismo Socialista. O realismo socialista, um monstro que ninguém realmente viu a olho nu, trabalhou para isolar qualquer esforço criativo do apoio social. [...] Hoje, embora o monstro esteja

quase morto, brincamos com isso:‘O Realismo Socialista é o espelho mágico para os chefes do

Partido que o perguntam: 'Quem é o mais inteligente e bonito do mundo?' e a resposta retorna consistentemente: 'Vocês: Por que, oficiais do Partido, vocês são’!

345Fonte: RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music; CHEVCHUK, Yuri (DDT). Ne Streliay:

Disponível em http://www.russmus.net/song/3674#2; TSOI, Viktor (Kino); Gruppa Krovyy: Disponível em

http://www.russmus.net/song/7262#2; Acesso em: 21/06/2021

251

Yuri Dimitrievsky, luthier soviético346

Os bufões fazem rock em Moscou, os heróis o fazem em Leningrado.

Viktor Tsoi, frontman do grupo punk Kino347

Para este capítulo, o qual encerra essa prospecção no rock soviético, começa-se com a análise

da seguinte canção:

Tudo é muito simples - há engano em um conto de fadas

A ilha ensolarada desapareceu na névoa.

A Terra não carrega castelos no ar./Alguém estava errado - você ou eu

É muito simples - não existem montanhas de ouro/ As estrelas caem nas mãos de

outros.

Não há ave do paraíso entre os corvos/ Alguém estava errado - você ou eu

Somente na primavera a neve derrete/ E até o mar tem margens.

Uma fé vai aquecer a todos nós,/ Alguém terá tempo - você ou eu?

Tudo é muito simples - há engano em um conto de fadas

A ilha ensolarada desapareceu na névoa.

Uma fé vai aquecer a todos nós./ Alguém terá tempo - você ou eu?

Machina Wremenyi, na canção Você Ou eu, de 1973

Com a convulsiva mídia musical que ressoava na URSS do princípio da década de 1970,

a circulação de produtos musicais, de discos a instrumentos, somada à circunstância de um VIA

que alcançava seu ápice (tornando-se um jingle estatal) o momento e as circunstâncias eram

fortuitas a um revide – e nisso o rock teria importante papel.

Em 1973, o grupo Machina Wremenyi (‘Máquina do Tempo’) já contava quatro anos

de existência (desde a formação pré-grupo, Malchiki/ ‘Os Garotos’), contando com

entusiasmados jovens aspirantes da música – em sua formação à época, Paul Rubin, Igor

Mazev, Yuri Borzov e seu frontman, o cantor e guitarrista moscovita Andrei Makarewich – e

não perderia tempo, explorando dos resquícios da estrutura de produção, todo um espaço a

realização de uma crítica sutil e muito perspicaz ao contexto vivido.

Com a canção Ты Или Я (Ty Ili Ya/ Você ou Eu, transliterado), de 1973 – exposta no

trecho de abertura desse capítulo – a tônica de seriedade em torno do ‘conto de fadas’ alardeado

na Era Brejnev, aguçava os ouvintes, mormente, os apoiadores (conservadores) a irem se

perguntar quem afinal estaria errado? A juventude que denunciava o desgaste social e de ideais

346DIMITRIEVSKY, 1990. Op. Cit. 347GLUKHOV, Dimitry; 10 вопросов о Московской рок-лаборатории [Dez Perguntas para o Laboratório de

Rock Moscou] 23 de outubro de 2020. Роккулт [Rockcult] Disponível (em russo) em: https://rockcult.ru/po/rock-

laboratory-questions/. Acesso em: 20/06/2021

252

da URSS, ou os apoiadores, iludidos com ‘promessas de primavera’ e ‘ilha ensolarada’ –

metáforas caras ao âmago russo, acostumado à iconografia de clima frio. Pelas menções ‘entre

corvos’ e referências a ‘margens’ – encontra-se na primeira, um entendimento acerca de ter-se

sempre elementos cerceadores posicionados à espreita (fiscalizadores), enquanto que sobre a

segunda, pode-se depreender o sentido de limites, mais evidentes a partir de então, no processo

social-cultural.348

Dotado de um propósito instigante e atilado, o grupo faria a resenha crítica não apenas

do momento que vislumbrava, mas do próprio estratagema utilizado com o jingle estatal. E se

cenário do ‘rock patrocinado’ estaria representado com A URSS É Meu Endereço (de

Kharitonov e Tukhmanov), o rock do grupo de Makarewich responderia com Наш Дом (Nach

Dom; Nossa Casa, segundo a transliteração), também em 1973. No que concerne à canção,

Nach Dom, seu sucesso e êxito entre o público juvenil estaria ligado a dois destacados detalhes:

se devia em parte à performance da execução com um ritmo cadenciado e contagiante próprio

da última fase do bigbit, na melodia cuja batida uma toada de country rock estadunidense349 –

ao melhor estilo de Looking Out My Back Door (1970) do grupo estadunidense Creedence

Clearwater Revival – e de outra parte, a muito arrojada letra entoada sob o título ‘Nossa Casa’:

Anos voam como uma flecha/ Em breve estaremos com você

Vamos sair da cidade imediatamente/ Em algum lugar na floresta densa

Ou em uma montanha mais íngreme/ Vamos construir uma casa para nós.

[Refrão]

Existe tanto silêncio ao redor,

Que nunca sonhamos

E por trás desse silêncio, como atrás de uma parede, Espaço suficiente para você e eu.

Vamos consertar as portas do pokrkpche350/ Vamos colocar uma corrente ao lado de/

Oito cães grandes e famintos.

Para que fiquem acordados/ Eles não tinham permissão para entrar em casa

Pesar, inimigos e tolos.

Ao lado da porta gratificante/ Precisamos cavar351 no banco

E na frente dela está um lago sombreado/ Sentar um dia

3481973 – Rock Goes Russian; You Or Me (Você Ou Eu); In: Seventeen Moments of Soviet History: An online

archive of primary sources (2003). Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-

goes-russian-music/you-or-me-1973/. Acesso em: 20/06/2021 349Para essa afirmação, foi utilizado como fonte o vídeo Our Home, localizado no ficheiro 1973 - Rock Goes

Russian; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível

em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-music/our-home-1973/. Acesso em:

20/06/2021 350De покрпче ou ‘coberto’, do verbo cobrir – uma referência coloquial à rancho; galpão; casa rústica. 351No sentido de esculpir; deixar marcas (como no idioma inglês, to carve).

253

Todo mundo pode pensar/ Alguém precisa dele aqui?352

As provocações sutis e escancaradas na mesma canção são interessantes. Se o tempo do

progresso seria o ufanizado na campanha estatal A URSS É Meu Endereço (na metáfora do

ritmo de um ‘vagão de trem’), na canção Nach Dom, a primeira impressão é de que tem-se de

aproveitar a vida, pois o tempo ‘voa como flecha’ e importante é estar com aquilo de que se

gosta. ‘Logo estaremos juntos com você ‘[ao longo da canção, dá-se a entender o retiro; a

natureza]. Novamente, se a campanha estatal apelava ao senso de pertencimento, a canção da

Machina Wremenyi libelava pelo retiro (‘Vamos sair da cidade imediatamente/ Em algum

lugar da floresta densa [...] Vamos construir uma casa pra nós’).

A própria contraposição entre ‘endereço’ na canção estatal, como um algo que implica

número, série, coletividade, chocaria-se com o de ‘casa’, no sentido mais subjetivo, individual,

próximo – de um lar – na canção do grupo moscovita.

Não obstante, a grande provocação no refrão ‘Existe tanto silêncio ao redor/Que nunca

sonhamos/E por trás desse silêncio/Como por trás de uma parede/ Espaço para você e eu’- um

contraste direto com as metrópoles soviéticas erigidas desde Kruschev e inchadas no período

Brejnev, onde mais e mais cresceriam os subúrbios, com condições precárias de privacidade,

conforto e dignidade domiciliar. Sem olvidar, que na canção jingle da URSS, menções como

‘trabalho’ e ‘cidade’, reiteradamente passariam uma noção de movimento, de progresso e de

barulho. Enquanto em Nach Dom, contestando-se à essa afirmação de um âmago pulsante,

urbano e progressista, a paisagem evocada como atávica ao povo local, seria a do campestre,

do bucólico, das veredas e do silêncio – onde o tempo passaria num ritmo diferenciado.

Corroborando tal afirmação, o compasso leve e arranjado da melodia fazia mais parecer um

‘fim de tarde’ em mando percurso, do que o ‘raiar da manhã’ frenético para o trabalho, evocado

na canção estatal.

Nas estrofes finais, ainda mais ‘alfinetadas’. Com a menção ‘Vamos colocar uma

corrente ao lado de/ Oito cães grandes e famintos/ Para que fiquem acordados/ Eles não

tinham permissão para entrar em casa’ – evoca-se que mesmo retirados em um lugar mais

isolado, a sensação permanente de estar-se ‘cercado’, como se sua atitude fosse algo reprovável.

O senso de liberdade que desafia o pertencimento coletivo, se demonstra perigoso (e por isso a

importância de se cercar como que com cães ameaçadores à espera de receber os ‘inimigos’ e

352Letra da canção conforme traduzido de RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music;

MAKAREWICH, Andrei (Machina Wremenyi); Nach Dom; Disponível em:

http://www.russmus.net/song/5601#Russian; Acesso em: 20/06/2021

254

os ‘tolos’ do refrão, uma possível referência aos agentes do aparato estatal). Essa afirmação,

longe de ser apenas algum tipo de paranoia ou pessimismo, constitui uma contextualização com

a realidade que sofria uma guinada conservadora no período, enquanto, simultaneamente, em

grupos da sociedade jovem a onda contracultural hippie do retiro faria grande número de

adeptos353 – e com essa filosofia de vida, a sonoridade do rock bem viria a calhar.

No encerramento, a estrofe declara ‘Ao lado da porta gratificante/ Precisamos cavar

no banco/ E na frente dela está um lago sombreado/ Sentar um dia/ Todo mundo pode pensar/

Alguém precisa dele aqui?’: uma metáfora muito cheia de aconchego. A ‘porta gratificante’

evoca o costume do Cáucaso (também presente no Ocidente) de se colocar plaquinhas na

entrada da casa com ‘Boas-Vindas’, comunicados de gratidão como ‘Lar, Doce Lar’ ou , da

tradição ortodoxa ‘ Za Namy Bog’(Deus Está Conosco).

Na menção ‘Precisamos cavar no banco/E na frente dele um lago sombreado/Sentar

um dia’ – o decreto do libelo por deixar-se uma marca ao viver a vida (‘cavar’; esculpir;

marcar), seguido de um ritmo de vida menos intenso, mais humano, contemplativo (como a um

lago) e próximo de cada realidade particular (mais lichnasty e menos koletvinasty). Ao que se

segue a pergunta ‘Alguém precisa dele aqui?’- onde a figura intrusa no cenário natural, é o

‘banco’, produto do trabalho humano, da realização artificial e uma utilidade – que se vê

relativizada ao perceber-se que se pode sentar diretamente á beira do lago.

Enrustidos em uma balada fagueira e provinciana, o emblema do ‘lar’ e a escolha por

uma gramática sonora estadunidense, faziam soar como acintosa resposta ao uso do rock para

falar de assuntos institucionais estatais. Se o rock fora usado de ‘garoto de recados’ do aparato

ideológico soviético, a resposta popular, através da picardia artística, seria fazer uma ‘contra-

canção’ muito elegante, utilizando a roupagem sonora do lado opositor – mesmo em se

considerando o período de distensão vivenciado. Recordando ao conceito de ‘mãe-pátria’, a

rodina dessa canção não seria um ‘endereço’, mas um lar, retirado e situado no terreno agreste

– rochoso – do rock n’ roll (uma ‘embaixada dos dissidentes’).

E isto só seria possível por conta, curiosamente, da situação peculiar vivida pelo grupo

moscovita: simultaneamente, lutando contra o estabelecimento, através de sua arte, e vivendo

dele como um (semi) cooptado do sistema de produção cultural, Machuna Wremenyi,

sobreviveria como grupo constante e para poder gozar de seus atributos de existência, embora

não credenciada ao VIA, obedeceria alguns predicados. Assim em 1972, mesmo sobrevivendo

no underground, figuraria em projetos junto à músicos credenciados e futuramente (em 1979),

353HARDING, 2019. Op. Cit.

255

à subsunção ao conceito de rock filarmônico354, apresentando-se, eventualmente, com a

SoyuzKontsert (Orquestra Sinfônica da RSSF da Rússia)355. Por conta desse detalhe

fundamental de ausência de participação credenciada regular, durante a década de 1970, não

teriam álbuns gravados – sendo seu primeiro disco oficial (V Dobryy Chas/ Tenha Um Bom

Momento) lançado apenas em 1986356.

Quase em simultâneo, contextualizando um cenário de constrastes, o grupo [VIA]

Tsvety lançaria seu primeiro disco: Tsvety I, de produção em 1972 e lançamento no ano de 1973

(que seria seguido de Tsvety II, ainda em 1974)357 – demarcando com sucesso uma tonalidade

hippie na cena musical local da década. Ao longo da carreira, a Tsvety seria a primeira banda a

conseguir o êxito de alcance de música em escala na URSS, que não pertencesse ao gênero

Estrada. Seu montante em venda de discos chegaria à casa dos milhões (estima-se que 60

milhões, durante a totalidade de sua existência soviética), o que da proporção atingida, como

ocorrera com o KVN, alarmaria às autoridades na Zastoya de Brejnev, resultando em uma

restrição de censura ao rock, a qual levaria a que o grupo fosse dissolvido, temporariamente –

passando a funcionar como ‘Stasa Namina Gruppa’ (Grupo Stas Namin), entre 1976 e 1980358.

Por conta disto, algumas de suas emblemáticas canções, como Pistoy Orech [Noz Oca], Idol

[Ídolo] e Ya Ne Sdayus’ [Eu Não Desisto], realizadas entre o período de 1969 a 1982, ficariam

proibidas de gravação até o princípio das reformas do período pós-recessão.

E se as coisas não estariam fáceis, sequer a um ‘neto proveniente da mais distinta

linhagem’ política do Partido, que se dizer dos demais. Makarewicz, que era filho de um pai

ex-militar da Aeronáutica e Professor de Arquitetura e de uma renomada médica pesquisadora

da Tuberculose, concluiria seus estudos de arquiteto e artista gráfico no Instituto de Arquitetura

de Moscou, em 1977.

Essa reafirmação da carreira acadêmica, imbricada no ‘DNA’ do rock soviético, seria

muito mais tortuosa do que se pode imaginar e aconteceria para Makarewich de forma muito

particular: sua ‘desocupação’ musical estaria interferindo no resultado de sua formação. Sua

carreira no ensino superior vinha passando por altos e baixos – até ser interrompida com uma

354CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 355GLUKHOV, 2020. Op. Cit. 356RussMus.Net; Machina Wremenyi; Seção: Discography; Disponível em:

http://www.russmus.net/band/55/#disco; Acesso em: 22/06/2021 357RussMus.Net; Tsvety; Seção Discography; Disponível em: http: http://www.russmus.net/band/90/#disco;

Acesso em: 22/03/2021 358VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]; In: Российская Газета

(Rossiskaya Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html;

Acesso em: 30/02/2021

256

expulsão em 1974, ao constar como reprovado, segundo ordens emanadas diretamente de

autoridades do Partido, por conta de sua segunda ‘ocupação’. No entanto, a descarada tentativa

de fazer-se com isso barrar o ímpeto rockeiro do jovem moscovita, acabaria em trégua ao

reconhecer-se de seus talentos e uma dose importante da reputação de seu pai (ex-militar e

proeminente arquiteto), a permitir que o jovem Makarewicz ganhasse um emprego no

GiproTeatr (Instituto Estadual para Desenho de Teatros e Estruturas de Espetáculo), sob

orientação de um reconhecido docente local – o arquiteto Vladimir A. Somov359 – onde

conseguiria por suas realizações a tão esperada formação.

Considerando esse cenário de década, onde os ‘protegidos’ de outrora estavam sendo

silenciados e os ‘contestadores’ passavam a ‘acomodar-se’ institucionalmente para poder

continuar, somente em lugares onde a administração não possuía um alcance tão direto e

evidente como na capital federal, é que teria podido surgir uma alternativa ainda mais

contundente de revide às manifestações conservadoras. Assim surgiria, no mapa do rock da

URSS, a figura de Leningrado, um ‘ponto fora da curva’, com um rock desafiador nos

conteúdos, nos modos e nos métodos de realização – o verdadeiro berço de estabelecimento do

underground soviético (CUSHMAN, 1995).

O grande nome a despontar neste cenário, seria do grupo Akvarium (Aquário), criado

em 1972, liderado e fundado pelo poeta e ex-estudante do Instituto Superior de Matemática

Aplicada de Leningrado, Bóris Borissovicz Grebenschchikov360. Considerado por muitos –

entre admiradores e colegas de música – como o ‘Bob Dylan russo’, Bóris Grebenschchikov –

ou simplesmente ‘BG’ – seria um audacioso pioneiro da proposta de um rock soviético

demarcadamente russo, matizado e extra-moscovita. Sua consideração como um ‘pai do rock

soviético’, viria associada ao seu prolífico linguajar lírico, que circularia entre palavras

autenticamente russas, de verdades sublimes à verdades mundanas em poucos termos

(CUSHMAN, 1995; p. 118). Suas composições complexas – dentre as quais a que fecha o

capítulo – aliadas à performance de ‘palco’ cativante, fariam da Akvarium rapidamente um

motivo de assunto e identificação entre o circuito juvenil local – fazendo a banda atravessar

gerações, em funcionamento contínuo desde a década de 1970 até a atualidade.

O carisma do grupo seria tão grande, que no período da década onde outros conjuntos

estariam sendo preteridos da oportunidade de gravação, da segunda metade da década até o

359GPVN. RU; Андрей Макаревич рассказал о своём участии в проектировании театра драмы [Trad.

Livre: Andrey Makarevich falou sobre sua participação na concepção do teatro]- Edição de 23/10/2019; Disponível

em: https://gpvn.ru/11673; Acesso em: 23/06/2021 360RussMus.Net; Akvarium; About The Band; Disponível em: http://www.russmus.net/band/48/; Acesso em:

23/06/2021

257

início dos 1980, seria uma das únicas exceções do rock a conseguir emplacar álbuns de

estúdio361 durante o final da Era Brejnev – lançando, em 1981, Электричество (Elektrichestvo),

Trugol’nik (Triângulo) e Sniyi Albom (Álbum Ciano), e em 1982, Tabu e Akustika.362.

Em meio à esse cenário de represamento, conforme Marochkin (2011a), o crescimento

vertiginoso das gravações magnéticas (magnitoalbomy e magnitzdat) se daria, e produtores

como Andrei Tropillo e Yuri Morozov, logo adiante, despontariam como importantes artífices

de cultura locais, ultrapassando a mera consideração da reprodução fonográfica, para chegar a

um nível de experimentalismo técnico de vanguarda com as tecnologias de gravação:

Yuri Morozov ocupa um lugar especial no panorama do rock russo das últimas três

décadas: embora seja conhecido principalmente por seus numerosos e diversos álbuns,

cobrindo quase todo o espectro de direções musicais e gêneros da música moderna,

bem como uma lista igualmente impressionante de obras de engenharia de som, talvez

o mais importante em sua biografia seja que Morozov (junto com Andrei Tropillo) foi

o primeiro em nosso país a abordar a gravação de som não como um processo de

fixação mecânica de som de concerto, mas como um ato criativo de valor próprio, e o

álbum - não como um conjunto aleatório de canções, mas como um produto artístico

acabado. (BURLAKA, 2013)

Quanto ao ‘palco’ para essa oportunidade, antes de seu reconhecimento no cenário

soviético, estaria ligado ao esquema de produção alternativo proporcionado entre os músicos

marginais. Considerando-se o cenário crescente dos subúrbios, integrado por moradias

coletivas nas quais habitava uma grande massa de jovens, filhos de trabalhadores da indústria,

361Uma dessas exceções, seria a do músico, já citado anteriormente aqui, Yuri Morozov, que em 1973, lançaria

Jimi Hendrix Cherry Orchard – álbum analisado graficamente no capítulo Experiências de Retiro, atrás de

elementos da presença da psicodelia e do movimento hippie em terras Orientais. A possibilidade para este trunfo

de Morozov, seria produto de uma persistência underground que demandaria criar alternativas à opção estatal: Morozov construíra para si, desde 1971, um pequeno home studio, principiado logo de seu ingresso no Instituto

Politécnico da Faculdade de Automação e Movimentação Eletrônica de Leningrado – ocorrido no mesmo período.

Desde então, mergulharia em experimentalismos com sample e também no overdubbing, sem olvidar o

experimento em técnicas multicanal – realizando todos os instrumentos. Na sequência, em 1972, como empregado

na filial regional da Melodiya (segmento de gravações de Leningrado), ganharia ainda mais expertise técnica,

culminando, quando de sua convocação para o Exército naquele mesmo ano, que fosse destacado para o setor de

comunicações da Defesa Aérea – localizado em Dolgoprudny. Assim, em 1973 já seria detentor de uma

considerável bagagem de experiência na produção e engenharia de som, bem como uma impressionante coleção

de equipamentos (raros ao cidadão soviético comum), chegando com isso, mesmo ausente de figurar nos quadros

espetaculares patrocinados, a gravar e preservar parte de seu acervo pessoal em discografia. Dentre seus álbuns à

época, para adiante de Jimi Hendrix Cherry Orchard, constam: Bozyaki (feito em 1971, recuperando seus trabalhos

com sua primeira banda homônima); Retroskop (realizado entre 1968-71) e Apochrypha (realizado entre 1972-73). Sua reputação como produtor e sonoplasta, músico e multi-instrumentista, levariam-no também a integrar

muitos projetos durante o período – com destaque à sua atuação musical eclética, emprestando sua participação ao

emblemático grupo de jazz de Leningrado, Nu Pogodil – entre 1975 e 1977). Fonte: BURLAKA, Andrei; Рок-

энциклопедия. Популярная музыка в Ленинграде – Петербурге. 1965–2005. Том 2 [Trad. Livre:

Enciclopédia do Rock. Música Popular em Leningrado - Petersburgo. 1965-2005. Tomo 2]; Biblioteca Eletrônica

Iknigi.net (2013-2021); Disponível (em russo) em: https://iknigi.net/avtor-andrey-burlaka/93960-rok-

enciklopediya-populyarnaya-muzyka-v-leningrade-peterburge-19652005-tom2-andrey-burlaka/read/page-

30.html; Acesso em: 23/06/2021 362Russ.Mus.Net; Akvarium, Discography; Disponível em: http://www.russmus.net/band/48/#disco; Acesso em:

23/06/2021

258

acabaria por se consagrar um inusitado: as cozinhas das Kruschevskayas, que outrora tinham

dado o que falar no período de diplomacia do Degelo. Conforme Cushman (1995, p. 38), este

ambiente tão importante para o cenário do rock que se construía, constituia um espaço de

debates, criação musical e a troca de ideias e elementos da cultura underground.

Se os integrantes da elite acadêmica haviam possuído seus espaços nos Institutos

Superiores para apresentações – a fase seyshn – e os músicos profissionais teriam os verdadeiros

palcos, estabelecimentos comerciais com música ao vivo, bem como as gravadoras e a televisão

para se exibir, os músicos das ruas, da marginal cena musical de Leningrado encontrariam no

aconchego clandestino das cozinhas coletivas, um espaço de produção alternativa a sua

materialidade e mediação. Essa cena seria chamada v kukhne, e o ‘rock na cozinha’, assim como

o rock filarmônico, o rock acadêmico e o rock através do VIA, constituiria outra das autênticas

soluções encontradas pela perspicácia local soviética. Como de costume, das cozinhas para

outras peças, como porões e galpões, arranjados de forma a oportunizarem estas secretas

performances, seriam comuns (e fundamentais) no princípio desse contexto underground.

Descrevendo parte do itinerário de uma apresentação nessas condições, o músico Yuri

Chevchuk recobraria na memória parte destes cenários peculiares – em Cushman [1995; p. 73]:

Eu me lembro de ter ido à Sibéria ou para Kazan, sozinho, apenas com o violão. Um

homem que me encontraria, estaria esperando na esquina. Então os policiais [KGB]

não nos notariam, e ele diria, ‘Yura, dobre naquela esquina e algumas pessoas irão

conduzir você adiante’. Eu iria e então entraria em um porão sem eletricidade, mas

com centenas de pessoas. Não havia microfones – caso contrário os policiais

conseguiriam ouvir – e algo aceso ao redor... Enquanto estivemos tocando Led

Zeppelin ou Beatles nas festas e bailes, as autoridades não prestariam atenção. Nós

tocávamos numa festa dançante e dizíamos ‘Esta é uma canção de uma Orquestra Americana’. E seria isso. Tão logo começamos a cantar rock-and-roll em Russo, e,

naturalmente, com o linguajar Russo, a juventude emergiu em problemas sociais, e o

estrangulamento começou a ocorrer quase imediatamente. E essa ‘pressão’ adentraria

a década de 80, com uma força singular. [Tradução do inglês e grifos nossos]

Explorando o depoimento, percebe-se, simultaneamente, observações sobre o ambiente

da música naquele momento. No ambiente, em sentido material, a presença destas dependências

alternativas como espaços de circulação cultural seria marcante e um traço característico da

assimilação da precariedade como traço de configuração, do rock local. Como se dera

costumeiramente com as demais facetas da produção clandestina, a ocupação marginal dos

espaços pelo rock soviético underground, se juntaria ao ‘kit’ de recursos paralelos

demonstrados desde um uso clandestino das estruturas de gravação, do mercado paralelo, dos

empregos modestos, da distribuição de repasse de materiais através de redes de indivíduos, e

do cuidado em alertar-se o mínimo às autoridades – cuidando-se nisso, a fechar-se o rock em

comunidades de iniciados, que muitas vezes, evitariam a ação de infiltrados ou o risco de

comprometer-se sua ação discreta ante as instituições.

259

Também do relato percebe-se a reafirmação de que o contexto estava circundado de uma

atmosfera mais repressora do que aquela vivida ao Degelo, onde o ‘estrangulamento’ das ações

dissidentes tornava a ser desempenhado por indivíduos da KGB. Para a administração, se o

perigo do rock na década passada (1960) estivera ligado à sua raiz no idioma do opositor

ocidental (o inglês), na década que se ingressava, o grande problema era constatar o rock

alastrar-se na ‘ponta da língua’ dos jovens soviéticos – em bom russo, fruto de sua assimilação

local. Em contrapartida, o sentido da agência em criar-se soluções ao reaparelhamento da

interferência do Estado, seria também absorvida como uma assunção de identidade, um código

moral, entre os integrantes do rock ‘subterrâneo’ – tanto mais entre a comunidade de

Leningrado.

Constam a ilustrar parte desse código moral dos músicos oriundos dessa atmosfera

marginal, da ausência de pretensões em se chegar ao palco convencional, se poderia notar uma

progressiva manifestação de recusa à este, marcada pela negação do circuito comercial (num

sentido de desprezo e falta de autenticidade), somado a uma absorção das condições de

precariedade, rusticidade e recursos parcos, como forma legítima de manifestação363. Tal rock

leningradense, seria, portanto, um rock simultaneamente mais abstrato e poético e mais

materialmente ‘sujo’, poluído, visualmente e atitudinalmente – enquanto de sua música,

emanariam finas composições. Não seria apenas um rechaço às instituições, mas um rechaço

aos emblemas estabelecidos socialmente: da carreira de vida, da carreira acadêmica, do

emprego estável, da canção comercial e da produção com suporte. Quanto mais ‘pobre’ em

dinheiro fosse a produção, com artistas divulgados pelo boca-a-boca, encontrando-se em locais

secretos e produzindo sua apresentação para grupos menores, mas mais interessados, maior a

‘riqueza’ de reputação dos artistas. De outro modo, quanto mais ‘rico’ em condições de

produção, divulgação e veiculação, tanto pior, superficial, óbvio e inautêntico. Os rockeiros de

Leningrado repudiariam a utilização ‘em série’ da música – conforme abordado sobre as

definições locais desse movimento, leningradense, observadas por Cushman (1995), no capítulo

Musical Identity and Autenticity (Identidade Musical e Autenticidade).

A partir de Leningrado, nos anos 1970, o rock soviético rumaria a uma bifurcação. De

um lado, situaria-se o rock estatal cooptado (VIA), tributário em origem à tradição do circuito

universitário anterior, que nesse momento passado à execução pela prática de músicos

profissionais – retrato do cenário moscovita. Enquanto que de outro, estaria um rock marginal,

independente e contestador, com realização situada na clandestinidade e a partir de métodos e

363Cushman, 1995. Op. Cit. p. 103

260

personagens mais mundanos do que os encontrados nas elites ocasionais soviéticas – retrato do

cenário leningradense.

Assim, por exemplo, a identidade reunida em torno da poesia, do conteúdo das letras, e

de uma postura mais ligada a explorar a temática do etéreo (do amor e da existência) sem recair

na banalidade, constituiria um ponto de cisma entre as percepções de seus músicos. Afinal, o

rock soviético em Leningrado seria ou não (a)político? – diferentes posições integrariam o

debate.

A resposta mais adequada seria: talvez. O ponto de intersecção dos rockeiros

lenigradenses seria o da atitude, com o rock ocupando um lugar central de impacto. No entanto,

o pendor político causaria divergências. Um número mais expressivo de músicos, penderia para

o posicionamento situado do lado de fora da política e, até mesmo, acima dela. Tal perspectiva,

encamparia a distância premeditada do mundo oficial como uma das marcas do fenômeno local,

por isso sua renúncia manifesta expressa na poesia e na procura por uma verdade e significado

diferentes para a vida364. Essa percepção é resumida na reação de um dos músicos entrevistados

por Cushman (1995; p. 94):

Thomas, porque você pergunta tanto de política!? Estou cheio disso de política.

Pensei que quisesse falar sobre música. Eu respondi que sim, que queria falar sobre

música, mas que sempre foi por mim acreditado que no contexto soviético, a distância

entre música e política não fosse muito grande. Eu disse, de fato, que minha crença

era de que na URSS, a música fosse em si, uma forma de política. Andrei respondeu quase enfaticamente, Não, você está errado. Música é algo exterior à política (muz’ka

vne politiki). Eu fiquei chocado com a afirmação de Andrei, provavelmente, por que

não estivesse preparado para ela, tendo vindo à campo, armado com minha politizada

ontologia do rock. Estando entrelaçado em minhas suposições sobre a identidade do

rock em geral e do rock em particular, simplesmente, não estava preparado para a

afirmação de Andrei. Pedi-lhe para explicar o queria dizer com “música é exterior à

política”, e ele começou a me falar da música como uma forma de energia (energiia).

[...] Quando persisti em questioná-lo, quase ao final, qual o destino dessa energia e o

que o levara a tocar [rock] música, ele respondeu – utilizando uma expressão

corriqueira em russo – que, simplesmente, estava seguindo sua “estrela” [smoye

svezda]. {Tradução e grifos nossos]

Em contrapartida, haveria aqueles que teriam uma interpretação precisamente oposta,

observando no rock local, manifestamente, um papel político atuante e desafiador ao

estabelecimento (conforme o relato do músico Kolya, analisando ao contexto anterior a 1985):

Não se pode separá-los [política e rock]. A situação é que antes [...] era uma forma de

oposição. Oposição política, oposição ao Estado, oposição ‘à imprensa’. Política, mas

não em termos partidários. Seria tão somente uma forma inerente de protesto contra o

que estava acontecendo, para colocar em termos simples. Apenas contra essa vida,

nada de aprofundamentos em dogmas ideológicos, comunismo ou capitalismo, apenas

uma oposição aos dogmas, à uma vida monótona, simplesmente sufocante. [Traduzido

do inglês]365

364Cushman, 1995 Op. Cit. p. 107 365Ibidem; p. 111

261

Esta diferença de perspectivas acerca da política, dentro da comunidade musical,

ademais de produzir uma celeuma, seria também utilizada como elemento distintivo de valor

entre seus integrantes – muitas vezes pendendo a uma consideração pejorativa aos que

utilizassem a semântica do assunto em seus temas (CUSHMAN; 1995; p. 111).

Com o cenário moscovita do rock percebido como conformista, enquanto o cenário

leningradense mergulhava em polêmica, restaria como melhor acepção entre a realidade vivida

e aquela almejada pelo exercício da poética e da música, uma que conseguisse transitar pelos

seus diferentes aspectos, de uma forma tão críptica e sutil, que unisse em simultâneo, as

percepções dessa contradição. Dado que, como numa aporia, quanto mais o rock procurasse se

afastar de sua imbricação política, mais politicamente incidisse como vetor de dissidência366.

Transitando por esse terreno tortuoso, com talento muito singular, o grupo Akvarium

daria a feição dessa construção, da circunstância do rock underground soviético – com a

sutileza semântica que se observa na canção abaixo:

É hora de eu descansar - Estou cansado de ser um embaixador do rock and roll

Em um país irregular.

Não tenho mais medo daqueles que confiam em mim.

Dançamos nas mesas no sábado à noite Somos velhos e não podemos ajudar Mas não queremos incomodar ninguém, Dê uma conta de poupança em um banco – v amos sair correndo; Se você soubesse como estou cansado do escândalo; Estou pronto para sair; ei quem está aqui Reivindica meu pedestal? Onde está aquele jovem punk O que nos apagará da face da terra? Ela se foi, não, não ... Não, não, não... Não, não, não...

Akvarium; Rock n´Roll Geroy [Herói do rock n´Roll], 1981

Com o talento costumeiro de Grebenschchikov em ação, fazendo a resenha ao período

vivido pelo rock soviético desde seu ingresso até o final da Era Brejnev, a canção Rock n´Roll

Geroy (Herói do Rock n´Roll), ganharia notoriedade na URSS, apelando para um sarcasmo e

charme muito especiais.

366Pode-se dizer que, como corolário reverso, quanto mais politicamente se afinizasse, mais estéril fosse sua

utilidade como emblema político. Em outras palavras, o rock teria de ser, em igual medida, marginal, enquanto

elemento com potencial criativo (embora potencialmente subversivo) e passível de uma ampla possibilidade

hermenêutica, enquanto elemento a contemporizar conflitos internos da comunidade, e o grande conflito com o

estabelecimento (embora nisso restasse ambíguo).

262

Com menções como ‘Estou cansado’ e ‘hora de descansar’, acompanhadas de ‘Somos

velhos e não podemos ajudar’ – ‘BG’ e sua turma estariam a fazer troça com o fato de pretensas

vozes locais estarem a depor o papel da recente Akvarium (com apenas nove anos de

existência), como uma verdadeira vanguarda no movimento e cena do rock local. Mais do que

isso os termos ‘velho’ e ‘cansado’, associados a ‘embaixador’, recobrariam a solenidade

tipicamente atribuída a figurões da administração local, partidários e todo o séquito que os

acompanhava. Esse que, de fato, já velhos ocupantes da burocracia e tidos, como os

responsáveis pelo desgaste sofrido pelo país. Nessa brincadeira de associar-se à imagem do

governo, como um ‘assecla’ – com ‘dançamos nas mesas no Sábado à noite‘ referindo-se ao

seu uso pelo governo como entretenimento – Grebenschchikov estaria a fazer a revelação,

autocrítica, que embora pudesse gravar e veicular seu material, mostrando assim, possível

cooptação pelo esquema, que na verdade tudo não passaria de ironia e a utilização, mesmo desse

espaço, como caixa de ressonância para o underground – ou, um underground que aflorava

dentre o mainstream. A menção que denota essa percepção é ‘ estou cansado de escândalo’,

‘pronto pra sair’ e ‘quem aqui reivindica meu pedestal?’ – falas emblemáticas com as quais

rebate qualquer pretenso fisiologismo que dirigido à banda. E como grande coroação, a estrofe

final arremata a inicial demonstrando que o grupo de BG não está para satisfazer ou agradar

nenhuma das pontas da estrutura soviética – ao provocar tanto o estabelecimento com ‘não

tenho mais medo daqueles que confiam em mim’, enquanto cutucava aos recém-ingressos da

geração rockeira da URSS com ‘onde está aquele jovem punk que nos apagará da face da

Terra/ Ele se foi/Não, Não, Não ...’ – demonstrando que seu rock não estaria ali para servir

segmentos, mas para refletir suas próprias contradições.

A canção de BG, bem como sua atitude, atuaria como uma das precursoras de um

período de viragem que se anunciava: esse da gravação de álbuns de rock pela Melodiya (e não

apenas VIA) e a implantação de espaços voltados à realização de espetáculos recorrentes no

autêntico estilo underground. Com esse intuito, seriam criados no princípio dos anos 1980 o

Leningrad Rock Club (1981) e o Laboratório Rock Moscou (1983)367, casas de

espetáculo/galerias destinadas não apenas à execução de concertos, mas com possibilidade a

reunir ao seu redor o entorno do movimento de cultura que surgia com o rock soviético: a

tusovka (do termo russo tasovet, no sentido de reunião; agrupamento).. E para melhor defini-la

– (MISIANO, 2005):

Assim como a reunião é primordial para a esfera das relações sociais, o mesmo é o

367GLUKHOV, 2020. Op. Cit.

263

princípio do envolvimento para os tusovki368: é sem precedentes em sua abertura e

democracia. Para ingressar em uma tusovka, não é necessário possuir virtudes ou

características, nenhum estatuto social ou profissional. A tusovka não é uma reunião

de nobres, nem uma academia de "imortais" ou uma máfia. Para estar na tusovka,

basta estar lá. Esteja no lugar certo na hora certa - no lugar onde a tusovka acontece.

Um participante de tusovka de sucesso é aquele que consegue visitar tantos desses

lugares no menor tempo possível. Tusovka é uma síndrome que surge com a

desintegração da cultura disciplinar e da hierarquia social. Tendo surgido como um

substituto para corporações em desintegração, a tusovka é um tipo de associação

totalmente personalizado. Livre de instituições, ela os substitui por substitutos personalizados. Tusovka não conhece museus, mas tem homens-museus; não conhece

periódicos reais, mas tem diários [jornais] humanos; não tem crítica de arte, mas tem

crítica, não tem estrutura expositiva, mas tem curador; não há reflexão, mas há um

filósofo; não recebe apoio estatal, mas tem ministro próprio. No entanto, esses

substitutos têm um status absolutamente performático, carecendo de toda e qualquer

verificação de suas produções. Um jornal humano não precisa confirmar seu status

por meio de publicações periódicas regulares; basta coletar materiais de seu portfólio

editorial; um curador não é obrigado a organizar exposições para confirmar seu status

(e definitivamente não é obrigado a organizar boas exposições), e a única coisa que

se exige do ministro é aparecer em cada vaga de exposição, segurando um copo na

mão. A tusovka não verifica atividades e não possui critérios adequados para fazê-lo; exige apenas reuniões e nada mais. [Tradução do inglês e grifos nossos]369

O contribuinte aos contornos dessa definição, Viktor Misiano (2005), esteta e

colaborador ao MOSKh (Museu de Arte de Moscou), prossegue salientando aspectos que

aproximam e afastam a definição de underground, encontrada no rock leningradense, com a da

generalidade da tusovka. Nesse ínterim, diferente do underground, a tusovka, seria um:

Meio de auto-organização do meio artístico que encontrado sem qualquer tipo de

repressão externa, em uma situação em que o princípio da consolidação a partir da

concórdia ideológica de opiniões, da ética da oposição e do ‘atuar em comum‘ já

estaria exaurido. [Tradução do inglês e grifos nossos]

Entretanto, enquanto o underground, tomara ‘clandestinamente’ da instituição existente

seu meio de produção, e como uma relação a um amplo aspecto cultural (estabelecimento),

havia adotado o princípio de se apresentar/manifestar como uma alternativa (ser alternativo), a

tusovka não lhe negaria (Estado) como uma alternativa, ao admitir, inclusive, a possibilidade

de mecenas, mas, mais do que isso, estaria preocupada em seu aspecto catalisador de reunir

pessoas segundo um propósito (arte; comunidade em torno da arte), em acontecimentos

ocasionais, onde o ‘princípio de reunião’ seria seu maior vetor característico. Em outras

palavras, o underground pressuporia o estabelecimento, ao situar-se nele e dele ser tributário,

enquanto que a tusovka, estaria mais afeita a congregar diferentes cenas de arte, grupos e colocá-

los em contato – incluindo-se nisso, os ‘estetas’ do rock n´ roll soviético370.

368Aspecto de pessoal; polo subjetivo dessa cena cultural; integrantes de uma tusovka. 369MISIANO, 2005. Op. Cit. 370Outro elemento de contraposição entre ela e o underground, é que não estaria alicerçada em estruturas concretas

do estamento da cultura (como seria com o rock da URSS, uma ‘oposição’ à música estatal, do Estrada ao VIA,

em sua conformidade e esquema de produção) – não podendo ser atribuível como um oposto específico, apenas

como um manifesto plural. Fonte: MISIANO, 2005

264

Contraditoriamente, a postura (a)política do rock local, ao se afirmar através do

underground, assumiria um contorno ‘político’, por comportamento, de oposição e já a tusovka,

essa mais elementar ao fator de convergir o trânsito cultural na possibilidade do encontro

(reuniões, mostras, apresentações, personalidades e momentos ocasionais) adotaria, aí sim, um

caractere menos francamente político. Em tempo, ainda assim muito diferente do apoio ou

conivência ao estabelecimento, bem como distante de manifestações de arte como a ‘boemia

do século XIX’ ou mesmo a ‘da geração Ocidental dos anos 1960’ – não sendo possível

reconhecê-la em nenhuma delas (MISIANO, 2005).

Com um hiato de quase seis décadas, uma resposta robusta e multifacetada ao Realismo

Concretista Soviético proviria a partir de ideais e soluções encontradas na própria circunstância

local, onde o rock, apenas como um dos meios, fazia sala a uma década de muitas

transformações pela frente, com o fim da gestão Brejnev, o incerto desfecho e os rumos da

realidade socialista local. Sobretudo, com a tusovka e o rock underground da URSS, se

demoliria toda suposição banal acerca de como o desgaste interno pudesse estar afetando a

possibilidade de autonomia cultural local – deixando espaço a implementações exteriores, pura

e simplesmente. Pois por fatores locais e com soluções locais, se encontraria um modo de

resistir e perpetuar-se, muito distintamente das manifestações Ocidentais (de quaisquer épocas)

e das do estabelecimento.

O rock underground soviético já se constituira, naquele momento, mais que apenas um

desdobramento das influências ocidentais e tornara-se um bard rock (rock bardo)371 produto de

uma nova configuração a partir de práticas de cultura, como visto em Williams (1969), ainda

remanescentes da tradição local:

Representa uma importante mescla entre essas tradições musicais especificamente

russas – nesse caso Vladimir Vysotsky – com essas que são Ocidentais – no caso, o rock. A tradição russa de música popular é caracterizada por uma distinta tradição de

violeiro solo que atua como poeta e bardo [...] Vysotsky foi um um cantor moscovita,

que cantava e tocava o violão na tradição popular russa, a qual denominada blatnaia

muzyka (literalmente ‘música criminosa’), a qual caracterizada por uma afetada pose

de marginalidade e grosseria, tanto em estilo, quanto em música, procurando com isso,

refletir a experiência da vida na sociedade soviética. [...] Os músicos de Petersburgo,

como todos os russos interessados em música, demonstravam profunda admiração por

Vysotsky, como um contraculturalista e um poeta bardo.[...] Mais do que isso, muitos

rumaram a um enxerto dessas poéticas dimensões com aquilo que eles viam como [...]

poderosa e energética tradição musical Ocidental: o rock. [...] Como um poder

(moshchnost’) do rock no sentido de elevar a tradição barda russa a um novo nível de energia. É impossível subestimar a importância deste senso entre os músicos de rock

russos, tal fusão de tradições representa um passo progressivo no desenvolvimento da

música. [Tradução do inglês e grifos nossos]372

371RussMus.Net: The best online resource for Russian Music; Disponível em: http://www.russmus.net; Acesso

em: 23/06/2021 372CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 73-74

265

A partir da colocação de uma música barda como precedente fundamental de uma

configuração como o bard rock, genuinamente uma criação soviética, fica improvável sustentar

a hipótese de uma tributariedade, ainda persistente, do fenômeno local ao seu influente de

origem (rock ocidental). Não obstante, além da criação da tusovka e do bard rock (do qual seria

um adepto, Yuri Schevchuk, da DDT)373, as primeiras impressões de desilusão com o outrora

‘deslumbrante Ocidente’, já demonstrariam uma maturidade do estilo local, cujos integrantes

não mais observariam o polo de origem do ritmo, nem com idílio, nem como seu ponto de

orientação:

[Yuri] era um dos poucos russos que haviam viajado ao Ocidente, tendo sido

convidado por um produtor de Nova Iorque para tocar em concertos em Nova Iorque

e na Califórni. Suas experiências com americanos deixariam, segundo suas palavras, ‘um gosto ruim na boca’. Ele constataria, em tom amargo, que os Ocidentais estariam

apenas interessados [...] naquilo que definiria como ‘Rússia Exótica’[russkaia

ekzotika]. Em uma das histórias, conta que o contrato americano estipulava que a

banda deveria conseguir pagar sua passagem de retorno à Rússia, a partir da bilheteria

dos concertos. Tais bilheterias, no entanto, não seriam suficientes e a banda seria

abandonada em Los Angeles e forçada a trabalhar em trabalhos braçais para fazer

dinheiro para as passagens de avião da volta para casa. Como resultado, enquanto a

postura de muitos músicos é bem cooperativa [...] a de Yuri, é mais reservada. Quando

um outro músico chegou para falar-lhe [sobre minha pesquisa], intercedendo por mim,

ele simplesmente disparou: ‘Nós não precisamos de nenhum americano aqui’

{Tradução do inglês e grifos nossos]

Uma opinião importante a se considerar, não apenas por partir de integrante da realidade

soviética, mas por ser este um autêntico artista e reverberador de opiniões dentre aquela

circunstância. A percepção do músico, ajudaria a compreender que, se outrora o rock local se

posicionara contra o sistema interior, naquele momento e dali por diante, também não assumiria

mais vínculos de afinidade com fontes exteriores. Demolia-se, portanto, qualquer noção que o

perfilasse com um parentesco direto ou um esbirro das manifestações das vertentes do rock

Ocidental. A partir do bard rock, manifestamente, o rock soviético se emancipara.

Assim, observando o contexto que se desenhava, com tanta sensibilidade e argúcia,

Grebenschchikov faria ainda mais o significado duradouro de sua composição Rok n’ Roll

Geroy um marco a pontuar as lacunas no precedente de sua época: um momento onde a cultura

soviética e toda sua sociedade atravessavam uma transição, e onde o rock local, que servira de

efeito catalisador nesse meandro, também passava por uma autocrítica – fruto das novas

percepções de seus protagonistas.

O underground como um catalisador real: talvez como um alicerce à possibilidade da

tusovka, que lhe devolveria, em troca, a possibilidade de ingressar-se o rock num caráter mais

373Cushman, 1995. Op. Cit pp 73-74

266

amplo do que o da sua comunidade específica e de seu produto cultural com uma

admissibilidade de reputação complexa, tão complexa, quanto somente, no anonimato, seu

circuito cultural, seus artífices e aficionados já o reconhecessem. O rock se imbricaria a partir

de então com essa cena ampla que se instalaria URSS (Rússia) entre o princípio da década de

1980 e se encerraria na metade dos anos 1990 – numa relação que cabe ser investigada em

pesquisas posteriores à dessa aqui realizada.

Se tributária do rock local ou apenas dos mesmos acontecimentos sociais que o

incidiram, a tusovka seria um destes resultados que só apareceriam após a existência constatada

do fenômeno na URSS. Fenômeno do qual, após o precursor movimento da geração de 1960 e

o novo fôlego oferecido pela geração de 1970, ocasionaria o surgimento, durante a década

posterior, de uma oportunidade, relativamente, mais favorável à eclosão do rock soviético – do

underground a ‘Red Wave’ – demonstrada no aparecimento de alguns de seus mais importantes

nomes – tais como: Kino, DDT, Alisa, Aria, Politted Reffusal, Crematorium, Continente de Mu,

Notchnoy Prospekt, Sektor Gaza, Nautillus Pompillius, entre outros (MAROCHKIN, 2011a).

Verdadeiros ‘heróis do rock’ – muitas ainda em atividade à atualidade – cujos trabalhos,

majoritariamente, encontrariam dissensões com o cenário dos governos pós-Brejnev e com

Perestroika, e que ainda hoje, seguem acontecendo através dos novos desafios e estruturas

proporcionadas pelas reformulações gigantescas da política e da institucionalidade da URSS

(dissoluta em 1991) para a atmosfera de outros tempos de incerteza e novas formas de conflito.

[Mas essa é uma outra história...]

267

4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O rock soviético não apenas existiu – ele ainda permanece. Seus artistas e artífices,

superando ao gentílico (perdido com a dissolução da URSS em 1991), ainda ‘trepidam os

palcos’ e fazem do revide a marca de suas apresentações. Demonstrações veiculadas em

tabloides internacionais, recordam quando o vocalista Yuri Schevchuk, da DDT (citado aqui

inúmerasvezes), pronunciou-se em questionamento ao governo de Vladimir Putin, atacando

uma de suas iniciativas e recobrando seu papel enquanto mediador, pela arte, do compromisso

de intercessão pela realidade social e política da Rússia374. Eis aí, historicamente, a grande

repercussão do rock: uma que eminentemente social e iminentemente explosiva. Pela qual,

entender-se dele, requer entendê-lo como autêntica manifestação de cultura e arte, requerendo

entender em seu processo, a sociedade e tensões em jogo que o precipitaram em fenômeno – e

vice-versa. Evocando a David Bowie: Rock n’ Roll Is A Fine Art.

Bem no seu princípio, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas situada durante a

Guerra Fria, o rock que ingressara através do governo do secretário-geral Nikita Kruschev

(1953-1964), conhecido como Ottepel (Degelo), oferecia uma pálida noção do exótico

Ocidente, com vulto, da fisionomia do ‘rico e perigoso’ opositor da URSS: os Estados Unidos

da América. Talvez por isso, somente após uma ‘alternativa mais palatável’ o ritmo tenha sido

ingressado ‘de fato’ na ambiência soviética: seria a partir da explosão cultural juvenil

ocasionada pelos Beatles que o rock passaria a ser uma realidade entre a juventude local. Na

URSS, de maneira indistinta, apenas com algum intervalo de tempo e circunstâncias, de modo

mais transformador, após 1964, o som dos rapazes do fab four calharia em chegar também. E

como característico ao rock, traria em sua bagagem, sempre, um emaranhado de tensões.

Nesse sentido, determinando sua classificação por etapas, desde sua estadunidense

origem, o rock seria um elemento cultural urbano e juvenil, num macrocosmo de manifestações

com outras composições de paisagem, geográfica e etária. Também seria o rock, parte

subcultural (enquanto estilo de vida e atitude) e parte da indústria cultural, como sucedera

também às suas vertentes de influência, foxtrot, blues, rhytm n’ blues, country. Por conseguinte,

seria o ritmo também composto e pertencente a diferentes jovens e distintas manifestações.

Considerando-se assim, que culminasse adequado fazer para além de sua composição de

374 Com a seguinte indagação: ‘Só se poderá falar liberalização e democratização reais para um país real, onde

as organizações públicas não sejam sufocadas e as pessoas não sintam medo de um policial na rua’. In: PARFITT,

Tom; Russia Awaits ‘Kremlin Poodle’ Trial As Rocker Takes On Critic Troitsky The Guardian (04 de maio de

2011); Disponível em: https://www.theguardian.com/global/2011/may/04/russia-awaits-kremlin-poodle-trial;

Acesso em: 24/06/2021

268

cenário (paisagens sonoras urbanas), sua observação social junto aos chamados estudos de cena,

no intuito de compreendê-lo enquanto espaço substantivo ao surgimento de manifestações

próprias de agência (THOMPSON, 1987), configurando-se nisso e a partir disso, uma

interpretação de cultura ‘enquanto resposta à vida’ (WILLIANS, 1969).

Após seu surgimento no pós-guerra estadunidense (1953), o rock chegaria durante a Era

Kruschev (Degelo) à URSS, mas sua manifestação seria episódica, eventual e de proporção

modesta, por isso a emblemática consideração sob Brejnev (1964) de que a grande eclosão do

fenômeno local aconteceria.

Recapitulando, em Kruschev estaria situado o surgimento do ritmo na RSFS da Letônia

(com o grupo de Riga, Revengers, em 1961) e o princípio da configuração do contorno do

movimento em terras soviéticas: protagonizado, majoritariamente, por uma camada

privilegiada (acadêmicos, filhos de oficiais e diplomatas) cujo acesso diferenciado ao consumo

permitiria aquisições peculiares. A grande marca do processo estaria demarcada por reformas

estruturais sociais e econômicas que culminariam em uma nova relação com os bens de

consumo e oportunidades de contato com conhecimentos do mundo exterior, enquanto que, no

polo interno, a sociedade soviética passaria por uma tremenda ocorrência de urbanização, com

a implementação de um subúrbio mais robusto ao redor das grandes capitais – voltado a

absorção pelo contingente da indústria local. A Coexistência Pacífica na política, estreitaria

laços com os EUA e oportunizaria a chegada de produtos culturais como o rock. Essa

imbricação entre consumo cultural relacionado à economia e cenário locais, acabaria por

plasmar importantes pontos de uma relação de consumo, disseminação e arte no seio da

modernidade industrial socialista.

Se por um lado muito evidente a tônica de reformulação ‘positiva’ sob Kruschev, seria,

entretanto, esse também o período de primado a vigilância progressiva de práticas dissidentes

a partir de iniciativas mais sutis, como a participação civil no patrulhamento ideológico (como

a brigada Druzhinniki) e a utilização intensificada de expedientes de internação psiquiátrica

para indesejáveis.

Dotado de circunstância urbana, de um fluxo de consumo recente e de um contato maior

com elementos de cultura Ocidentais, o terreno da URSS que principiava com Brejnev (a partir

de 1964), seria um que receberia o fenômeno da beatlemania – voluntária ou involuntariamente.

As pontes abertas pela revolução tecnológica e de acesso a magnitofons (magnetófonos;

gravadores de fita), reconfiguraria a forma de se experimentar a música no cenário local e

269

ofereceria ferramentas à produção e disseminação alternativa mais robusta, de material

fonográfico, entre os jovens – o pelos chamados magnitzdat e roentgenitzdat. Dessa ‘revolução

de produção e circulação’, acompanhava-se a consolidação de uma cena rock universitária

(Institutos Superiores de Moscou), onde surgiriam as bandas Sokol e Scythians, como grandes

baluartes do fenômeno à década. A Sokol, por seu pioneirismo, seria a realizadora da primeira

canção em língua local (Gdye Tot Kray, de 1965), enquanto a Scythians, seria a primeira a

alcançar status de ‘febre juvenil’ dentro da localidade oriental – entre 1966-68. Os elementos

de russificação ou uma assimilação por caracteres próprios do rock na URSS, seriam

importantes a considerar aspectos populares e institucionais. Do polo popular, as rixas e

‘bairrismos’ entre diferentes regiões, aplacadas em parte pela imposição legal soviética, se

veriam reafirmadas mediante à exposição dessa nova forma de entretenimento. Do aspecto

institucional, surgiria a grande polêmica: primeiramente, fiscalizando aos grupos através dos

designados Comitês da Juventude Comunista – Komsomol, que articulariam através de

gerentes, de locais de espetáculo a regimes de pagamento, até mesmo oferecendo suporte a

muitos filhos dos integrantes da elite (através de escoltas e regalias na oportunidade de

aquisições musicais junto à Melodiya). Enquanto que, num segundo momento, a estrutura

institucional acabaria cooptando-os, abertamente, através de uma iniciativa regulamentar para

a produção cultural de entretenimento, controlada por submissão ao esquema e com

oportunidades de gravação e remuneração.

Essa seria a primeira importante transição verificada no rock local: uma que saía de seu

protagonismo por jovens acadêmicos apreciadores, em apresentações arranjadas, mas de caráter

amador (designada fase seishnov) – até a sua absorção pelo aparato e sua progressiva

profissionalização (fase VIA [conjuntos vocais-instrumentais patrocinados pelo Estado]).

Quanto a sua cultural inserção, desse momento em diante, o rock soviético ainda permaneceria

de nicho, não representativo entre a sociedade em geral, porém, migrando de uma subcultura

(implementação a partir do estrangeiro) para uma cultura popular (assimilação local).

Seria ainda sob Brejnev, que uma grande contradição se apresentaria, também fruto

dessa imbricação econômico-social: se por um lado o aspecto ideológico de orientação do

governo penderia para uma espécie de ‘re-conservadorização’ da sociedade da URSS, por conta

da necessidade de captação de recursos, tais medidas ficariam esvazias. Em parte, por conta da

crise econômica proveniente do fracasso com a Economia Responsiva (de 1968), ocasionando

um fortalecimento do mercado paralelo e a função dos atravessadores ilegais (tolkachi) e de

outra parte, por conta da compra regulamentar pela administração, para abastecimento do

270

mercado fonográfico (e cinematográfico) de obras oriundas do Ocidente. Em outras palavras, o

intuito ideológico cederia às pressões econômicas e permitiria aos aficionados do rock local,

tanto a opção de aquisições por contrabando (como discos, instrumentos, revistas e aparelhos),

como pelo mercado regular, apreciações de compactos de música estrangeira e filmes exibidos

nas capitais.

Complementando a isso, com a consolidação da iniciativa VIA, viria um rock com

semelhança rítmica, mas conformista nas letras e nas apresentações. Importantes músicos

fariam do rock um cenário experimental – como o grupo Tsvety, dotado de habilidades oriundas

da formação escolar e acadêmica ampla e eficaz da URSS, bem como de manifestações mais

episódicas, mas muito marcantes, do sincretismo entre música e práticas de vida e cultura

alternativas (como o caso dos hippies soviéticos). Por fontes internas e externas, o ritmo na

URSS se complexificaria, e ingressando à década de 1970, mais uma vez, do cenário

socioeconômico emanaria uma contradição: num momento onde a economia se cercava de uma

recessão – a chamada Zastoya – o cenário de Détente com os EUA e a necessidade de

aquecimento da economia, oportunizariam ainda mais remessas de material audiovisual

exterior, enquanto a indústria local aumentava o sortimento de produções de entretenimento no

estilo rock.

Também da indústria, no início da década de 1970 se observaria no mercado musical

uma oferta maior de instrumentos produzidos na URSS, com destaque à presença de maiores

opções de guitarras elétricas, principiada com a Tonika em 1968 na RSSF da Rússia, e ainda

antes, considerando-se o Bloco do Leste, pela Alemanha Oriental.

E enquanto essa ‘atmosfera fortuita’ em torno do rock parecia anunciar uma suposta

dimuição das restrições, a cúpula administrativa soviética, refletindo a admissão de uma

estrutura institucional e social periclitando em fragmentárias manifestações, faria em reverso a

campanha estatal URSS É Meu Endereço, em 1972-3, que evocava uma coesão através da

rodina (mãe-pátria) e da coletividade, como grandes riquezas do cidadão soviético e

importantes virtudes a desestimular pretensões individualistas – utilizando-se para isso dos

acordes do rock (de Tukhmanov) em sua trilha sonora.

A cartada da administração com essa tentativa de reenquadramento, ocasionaria uma

resposta através de grupos não submetidos ao esquema de produção (ao menos, não

inteiramente). Em 1973, o grupo Machina Wremenyi (de 1968), liderado pelo músico Andrei

Makarevicz, lançaria, alternativamente, as canções Nach Dom (Nossa Casa) e Ty Ili Ya (Você

271

Ou Eu), com provocações sutis, de ritmo e letra à administração local, evocava-se a reflexão

por sobre o clima de hipocrisia pairante na realidade local e apelava-se a uma jornada de

distanciamento, através da metáfora de ‘uma casa’ diferente de um endereço.

Nesse mesmo ínterim, fruto da atmosfera conservadora, o represamento dos recursos de

gravação à artistas do gênero, levaria a uma procura por soluções sub-reptícias, intensificando-

se a produção de magnitoalbomy (álbuns paralelos em fita-magnética) e estimulando o

surgimento de estúdios domiciliares. Tais soluções, que viriam acompanhadas também

intensamente de um crescimento da prática do rock underground soviético, este que mais

estabelecido em Leningrado e com características de configuração muito próprias.

Remanescente desse movimento, surgia a banda Akvarium, grupo liderado por Boris

Grebenschchikov, fundado em 1972, com grande reconhecimento pelo público, por suas

composições poeticamente embaladas em sarcasmo e agudez melódica.

Como produto dessa circunstância de tensões em meio a estabilidade/estagnação, o rock

underground da URSS emergiria como uma bifurcação em relação ao caminho anteriormente

tomado: a) originalmente, um rock acadêmico/elitista de Moscou (que rumara à iniciativa VIA)

e, finalmente b) um rock underground, que se aproximaria de experiências sonoras mais

ousadas e populares. Sua imbricação, a despeito disso com a cultura oficial é evidente, pois,

como característico ao seu ‘ser’ de nicho, o underground utilizaria das estruturas concretas (em

oposição à musicalidade e circuito de produção oficiais) da instituição soviética para estabelecer

seu posicionamento alternativo. Suas apresentações utilizariam, por exemplo,

fundamentalmente, espaços de uso popular, de estrutura arranjada e precária, como as cozinhas

das moradias coletivas fundadas por Kruschev, e como esquema de produção, a

institucionalização do magnitzdat, repassado por redes de aficionados atuando à margem da

fiscalização. A clandestinidade, daria lugar ao reconhecimento, quando ao princípio da década

de 1980, a gravadora estatal, Melodiya, chamaria, a partir do precedente da Akvarium, outros

grupos de rock underground a fazer parte da cena mainstream da URSS – não mais através do

esquema de cooptação estatal, mas da oportunidade de que tivessem espaços reconhecidamente

destinados a essa produção específica (como o Leningrad Rock Club e o Laboratório Rock

Moscou, respectivamente, em 1981 e 1983).

E nesse escopo, adiante de uma estrutura formal de (re)produção fonográfica, a

oportunidade de reconhecimento cultural, enquanto arte, seria o grande galardão angariado com

a tusovka – um misto de meio informal de congraçamento de artistas, com um projeto de arte

272

social embasado nas práticas diretas de seus operadores.

O rock adentrara em surgimento na URSS de Kruschev, no entanto, seria sob Brejnev

que o rock situando-se, de fato, se sovietizaria, ganhando os contornos que o delimitariam um

fenômeno de cultura singular, não tributário essencialmente à matriz original (Ocidental).

No tocante a enfatizar a importância desses dois governos para o destino cultural e o

caminho tomado pelo rock local a seguir, há que se observar que seria durante Brejnev que

muitas das reformas operadas por Kruschev surtiriam efeito – como, por exemplo, a reforma de

urbanização intensificada, cujo produto, subúrbios inflacionados (Kruschevskayas), seriam o

ambiente de surgimento e aglutinação do movimento underground nos anos 1970.

E é somente a partir da tusovka que se vai entender como o rock, de fenômeno ora

marginal, se tenha tornado parte de uma linha estética de vanguarda. Num paradoxo, a vertente

underground local alimentara a possibilidade de estrutura da tusovka, mas somente da admissão

da tusovka, enquanto linha estética de vanguarda mais bem-definida, é que o rock soviético

teria condições de se tornar um produto de envergadura significante, para além dos ‘muros’ de

sua comunidade eletiva.

A tusovka seria o movimento de muitas expressões de arte, que surgindo, talvez a

reboque dos eventos do rock, talvez por espontâneas configurações em simultâneo,

exponenciaria o sentido de uso do rock soviético, o dimensionando e oferecendo-lhe um

elemento poderoso à circunstância de sentido que lhe faltava: a de um caráter junto a

coletividade de outras manifestações artísticas locais.

Ironicamente, ou fatidicamente, esse trabalho iniciado durante os eventos da Vostok

2018, encerra-se neste ano, 2021, rememorando 30 anos da dissolução da URSS – ou melhor,

40 anos do Leningrad Rock Club e 60 anos da primeira banda da URSS (na Letônia), simultânea

ao vôo de Gagarin. Considerando a data mais política desse elenco, naquele momento, músicas

como Gruppa Krovyi, da Kino e Ne Strelyai, da DDT, ainda fariam significado e repercussão

entre a juventude, que olharia perplexa suas tropas deixarem derrotadas a região afegã para a

implantação de um governo local de transição, sob o olhar dos rivais estadunidenses no estertor

da Guerra Fria. Hoje, distintamente, mas ainda com similitudes provocantes, o mundo

acompanha as tropas estadunidenses deixarem, derrotadas, uma longeva campanha no

Afeganistão, onde quem promove a articulação em nome de uma transição, são os dirigentes

russos. E se contra (burocratas e sua estrutura) virava-se o rock, muito mais do que contra a

273

ideologia em si (socialista), com a atual administração, seguem os posicionamentos.

Ora virando-se de costas e dando de ombros, ignorando o mundo mesquinho com lindas

melodias sobre amor e esperança, a recobrar o profundo de coisas essenciais. Ora, se colocando

de frente, e junto a juventude atual, cobrando uma postura nada etérea sobre direitos, justiça,

expressão e liberdade. Afinal, não fosse assim, os grupos e artistas remanescentes do gênero,

não se encontrariam ainda hoje, tal qual as contradições, chocando-se no mesmo

estabelecimento local. Onde a bem da verdade, ainda se encontram e ao vê-las, denunciam ao

povo através de sua arte, que não se pode esmorecer.

274

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287

ANEXOS

Anexo 1- Letra da canção Solntse Nad Nami (O Sol Sobre Nós) – Grupo Sokol (1968)

Anexo 2 - Letra da canção (jingle) da Campanha Estatal A URSS É Meu Endereço (1972)

Anexo 3 - Letra da canção Наш Дом (Nossa Casa) - Grupo Machina Wremenyi (1973) Anexo 4 - Letra da canção Ты Или Я (Você Ou eu) - Grupo Machina Wremenyi (1973)

Anexo 5 - Letra da canção Рок-н-Ролл Герой (Herói do Rock n’ Roll) - Grupo Akvarium (1981)

Anexo 6. Imagem Grupo Sokol (tomada evidenciando Y. Ermakov e I. Goncharuk);

Anexo 7. Imagem Grupo Sokol (imagem da década de 1960); Anexo 8. Imagem Yuri Aizenshpis (gerente do grupo Sokol);

Anexo 9. Imagem Grupo Tsvety (foto de 1972);

Anexo 10. Imagem Capa do disco Tsvety I (1973); Anexo 11. Imagem ‘Hippies Soviéticos’ (imagem da década de 1970);

Anexo 12. Imagem ‘Luminares do Rock Russo’ (Stas Namin, Andrei Makarewicz, Boris

Grebenschshikov); Anexo 13. Imagem Baixo [Modelo] Tonika Rostov (produzido na cidade de Rostov; RFSR da Rússia,

Década de 1970)

Anexo 14. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Tonika Lunacharsky (produzido na cidade de

Lunacharky; RSFS da Rússia, 1970-72) Anexo 15. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Lvov Ritm

Anexo 16. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Orfeus

288

Anexo 1 - Letra da canção Solntse Nad Nami (O Sol Acima de Nós), 1968

[Autores: Ermakov, Y.; Goncharuk, I.]375

В чаще лесной, в кустах между кочек

Жил в одиночестве белый цветочек

Увы, он был непорочен

Жил он без радости, бедный цветочек

Красный цветок на поляне расцвел А рядом был улей, полон злых пчел

Увы, пчелки напали

Бедный цветочек весь обобрали

Синий цветочек рос у дороги

А ведь там можно легко попасть зверю под ноги

Увы, цветик пропал

Грубый медведь его в землю втоптал

Солнце нам нами!

[Солнце над нами!]

Жили цветы в саду так беспечно

В надежде, что жить и цвести им тут вечно.

Увы, садовник бухал

Он срезал цветы и на рынке прода

No matagal da floresta, nos arbustos entre as

protuberâncias

Vivia sozinha a flor branca

Infelizmente, ela era inocente

Ela viveu sem alegria, pobre flor

A flor vermelha floresceu no prado

E havia uma colmeia próxima, cheia de abelhas

furiosas

Infelizmente, as abelhas atacaram

A pobre flor foi roubada por toda parte

Uma flor azul cresceu na estrada

Mas aí podia facilmente ficar sob os pés da besta

Ai, a flor se foi

Um urso rude a pisou no chão

O sol somos nós!

[O sol acima de nós!]

As flores viviam no jardim tão descuidadamente

Na esperança de que elas vivam e floresçam aqui para

sempre.

Infelizmente, o jardineiro estava a beber

Ele vive de cortar flores e vender

375 Fonte: Текст песни ВИА Сокол - Солнце Над Нами [Trad. livre: Letras de VIA Sokol - O Sol Sobre Nós].

Текстыпесен.com [Trad. livre: Letrasdemúsicas.com]. Disponível (em russo) em:

<https://tekstipesen.com/song.php?id=5008434> Acesso em: 18/08/2021

289

Anexo 2 - Letra da canção (jingle) da Campanha Estatal A URSS É Meu Endereço (1972)

[Autores: Kharitonov, A; Tukhmanov, David]

Колёса диктуют вагонные

Где срочно увидеться нам

Мои номера телефонные

Разбросаны по городам

Заботится сердце сердце волнуется

Почтовый пакуется груз

Мой адрес не дом и не улица

Мой адрес Советский Союз

Мой адрес не дом и не улица

Мой адрес Советский Союз

Вы точки тире телеграфные

Ищите на стройках меня

Сегодня не личное главное А сводки рабочего дня

Заботится сердце сердце

волнуется

Почтовый пакуется груз

Мой адрес не дом и не улица

Мой адрес Советский Союз

Мой адрес не дом и не улица Мой адрес Советский Союз

Я там где ребята толковые

Я там где плакаты вперёд

Где песни рабочие новые

Страна трудовая поёт

Заботится сердце сердце

волнуется

Почтовый пакуется груз Мой адрес не дом и не улица

Мой адрес Советский Союз

Мой адрес не дом и не улица

Мой адрес Советский Союз

The railcar wheels dictate

Where we urgently meet

My telephone numbers

Are scattered throughout the cities

The heart cares, the heart worries The mail packs the cargo

My address is not a house or street

My address is the Soviet Union

My address is not a house or street

My address is the Soviet Union

Telegraphic dots and dashes

You search for me at the

construction sites

Today personal matters aren’t important

Just the work-day reports

The heart cares, the heart worries

The mail packs the cargo

My address is not a house or street

My address is the Soviet Union

My address is not a house or street

My address is the Soviet Union

I am where the guys are sensible

I am where posters proclaim

‘forward’

Where a laboring nation sings

The new workers’ songs

The heart cares, the heart worries

The mail packs the cargo

My address is not a house or street

My address is the Soviet Union

My address is not a house or street My address is the Soviet Union

As rodas do vagão ditam

Onde nos encontramos com urgência

Meus números de telefone

Estão espalhadas pelas cidades

O coração se importa, o coração se preocupa

O correio embala a carga

Meu endereço não é uma casa ou

rua

Meu endereço é a União Soviética

Meu endereço não é uma casa ou

rua

Meu endereço é a União Soviética

Pontos e traços telegráficos

Você procura por mim nos canteiros de obras

Hoje, assuntos pessoais não são

importantes

Apenas os relatórios do dia de

trabalho

O coração se importa, o coração se

preocupa

O correio embala a carga

Meu endereço não é uma casa ou

rua Meu endereço é a União Soviética

Meu endereço não é uma casa ou

rua

Meu endereço é a União Soviética

Eu estou onde os caras são sensatos

Eu estou onde os cartazes

proclamam "para frente"

Onde uma nação trabalhadora canta

As novas canções dos trabalhadores

O coração se importa, o coração se preocupa

O correio embala a carga

Meu endereço não é uma casa ou

rua

Meu endereço é a União Soviética

Meu endereço não é uma casa ou

rua

Meu endereço é a União Soviética

290

Anexo 3 - Letra da canção Наш Дом (Nossa Casa)

(Grupo Machina Wremenyi, 1973)

[Autor: Makarewich, Andrei]

Годы летят стрелою,

Скоро и мы с тобою]

Разом из города уйдем.

Где-то в лесу дремучем

Или на горной круче,

Сами себе построим дом.

Пр: Там вокруг такая тишина,

Что вовек не снилась нам,

И за этой тишиной, как за стеной,

Хватит места нам с тобой.

Двери покркпче справим,

Рядом на цепь посадим

Восемь больших голодных псов.

Чтобы они не спали,

К дому не подпускали

Горе, врагов и дураков.

Рядом с порадной дверью

Надо вкопать скамейку,

А перед ней тенистый пруд.

Чтобы присев однажды

Мог бы подумать каждый,

Нужен ли он кому-то тут ?

Anos voam como uma flecha

Em breve estaremos com você

Vamos sair da cidade imediatamente.

Em algum lugar na floresta densa

Ou em uma montanha mais íngreme,

Vamos construir uma casa para nós.

Refrão: Existe tanto silêncio ao redor,

Que nunca sonhamos

E por trás desse silêncio, como atrás de uma parede,

Espaço suficiente para você e eu.

Vamos consertar as portas do rancho,

Vamos colocar uma corrente ao lado de

Oito cães grandes e famintos.

Para que fiquem acordados

Eles não tinham permissão para entrar em casa

Pesar, inimigos e tolos.

Ao lado da porta gratificante

Precisamos cavar no banco

E na frente dela está um lago sombreado.

Sentar um dia

Todo mundo pode pensar

Alguém precisa dele aqui?

291

Anexo 4 - Letra da canção Ты Или Я (Você Ou eu)

(Grupo Machina Wremenyi, 1973)

[Autor: Makarewich, Andrei]

Ты Или Я

Все очень просто - в сказке обман.

Солнечный остров скрылся в туман.

Замков воздушных не носит Земля.

Кто-то ошибся - ты, или я

Все очень просто - нет гор золотых. Падают звезды в руки других.

Нет райской птицы среди воронья.

Кто-то ошибся - ты, или я

Лишь только весною тают снега.

И даже у моря есть берега.

Всех нас согреет вера одна.

Кто-то успеет - ты, или я ?

Все очень просто - в сказке обман.

Солнечный остров скрылся в туман. Всех нас согреет вера одна.

Кто-то успеет - ты, или я?

Você Ou Eu?

Tudo é muito simples - há engano em um conto de

fadas.

A ilha ensolarada desapareceu na névoa. A Terra não carrega castelos no ar.

Alguém estava errado - você ou eu

É muito simples - não existem montanhas de ouro.

As estrelas caem nas mãos de outros.

Não há ave do paraíso entre os corvos.

Alguém estava errado - você ou eu

Somente na primavera a neve derrete.

E até o mar tem margens.

Uma fé vai aquecer a todos nós. Alguém terá tempo - você ou eu?

Tudo é muito simples - há engano em um conto de

fadas.

A ilha ensolarada desapareceu na névoa.

Uma fé vai aquecer a todos nós.

Alguém terá tempo - você ou eu?

292

Anexo 5 - Letra da canção Рок-н-Ролл Герой (Herói do Rock n’ Roll) (Grupo Akvarium, 1981) [Autor: Grebenschchikov, Boris]

Мне пора на покой - Я устал быть послом рок-н-ролла

В неритмичной стране.

Я уже не боюсь тех, кто уверен во мне.

Мы танцуем на столах в субботнюю ночь,

Мы старики, и мы не можем помочь,

Но мы никому не хотим мешать,

Дайте счет в сберкассе - мы умчимся прочь;

Если бы вы знали, как мне надоел скандал;

Я готов уйти; эй, кто здесь Претендует на мой пьедестал?

Где та молодая шпана,

Что сотрет нас с лица земли?

Ее нет, нет, нет...

нет, нет, нет...

нет, нет, нет…

É hora de eu descansar - Estou cansado de ser um embaixador do rock and

roll

Em um país irregular.

Não tenho mais medo daqueles que confiam em

mim.

Dançamos nas mesas no sábado à noite Somos velhos e não podemos ajudar Mas não queremos incomodar ninguém, Dê uma conta de poupança em um banco - vamos

sair correndo; Se você soubesse como estou cansado do escândalo; Estou pronto para sair; ei quem está aqui Reivindica meu pedestal? Onde está aquele jovem punk O que nos apagará da face da terra? Ela se foi, não, não ... não não não... não não não...

293

Figura 6.

Grupo Sokol (Falcão/Falcon) [Década de 1960]

Descrição: À Esquerda, na parte frontal da imagem: Yuri Ermakov, vocalista e guitarrista; À direita ao

fundo, Igor Goncharuk, vocal de apoio e baixista; Compositores da primeira canção do rock soviético

em idioma local (Gdye Tot Kray, de 1965; composta em russo).

Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A

Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-

russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.

294

Figura 7.

Grupo Sokol (Falcão/ Falcon) [Década de 1960]

Descrição: À esquerda, Yuri Ermakov (vocal e guitarra elétrica principal) e demais integrantes

(possivelmente, uma formação de apoio, não sendo possível reconhecer os integrantes originais). As

vestes denotam ainda um rock soviético em postura ‘comportada’, evidenciado pela presença de roupas de corte social (ternos) e cabelos curtos [seguindo a postura condizente com a linha soviética de

adequação da época].

Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A

Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um

Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.

295

Figura 8.

Yuri Aizenshpis [Gerente do Grupo Sokol] [Década de 1960]

Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um

Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-

russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.

296

Figura 9.

Grupo Tsvety [VIA] (Flores/Flowers) [Foto de 1972, utilizada como capa do álbum de lançamento;

Tsvety I, de 1973]

Descrição: À frente, no centro da imagem, o músico Stas Namin (frontman do grupo).

Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA <<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor

Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-

meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021

297

Figura 10.

Grupo Tsvety (Flores/ Flowers) [Capa do álbum Tsvety I; URSS, 1973]

Descrição: Evidências estéticas do movimento hippie, importante influência rastreável na trajetória do

grupo, encontram-se presentes na imagem. Observáveis a partir de elementos como as roupas (calças boca-de-sino, cabelos compridos), as letras do nome do grupo em linhas gráficas tortuosas (fonte

psicodélica) e uma tomada com pose despojada em meio natural.

Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA

<<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor

Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021

298

Figura 11.

‘Hippies Soviéticos’ [Década de 1970]

Descrição: Jovens identificados com características atribuíveis ao movimento hippie na URSS,

detectáveis através de elementos como: vestes despojadas, evidências de deslocamento a pé, (como

mochilas e apetrechos), barbas e cabelos compridos e a parada/pose irreverente junto a uma placa indicando diferentes direções a seguir). Quanto à proveniência, sua afirmação obtém-se a partir das

inscrições legíveis na placa, as quais indicam a direção das seguintes cidades (russo) soviéticas:

Moscou (à esquerda superior); Rostov (à direita superior); Dyergachi (esquerda ao meio); Kharkov (direita inferior); as demais encontram-se parcialmente encobertas.

Fonte: Земляничные Поляны, Группа Мифы [Clipe da canção Zemlyanchnyie Polyani

(‘Florestas de Morango’)376, Grupo Myths]; In: Canal Elena Fedorova; Disponível (em

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B2%D0%B0; Acesso em: 01/05/2021

376Por coincidência ou intenção, o nome da canção evoca, embora a melodia não guarde parentesco, a ideia do

título da famosa canção dos Beatles, Strawberry Fields Forever, do álbum Magical Mistery Tour, de 1967 –

atribuidamente, um dos importantes marcos do fab four na transição experimental em vertentes estético-sonoras

como a psicodelia.

299

Figura 12.

Descrição: ‘Luminares do Rock Russo’ – À direita, Stas Namin (Grupo Tsvety)377; À esquerda, Andrei

Makarewicz (Grupo Machina Wremenyi); Ao centro, Boris Grebenschshikov (Grupo Akvarium)378

Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA <<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor

Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-

meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021

377Se observar-se o registro como um que condizente ao princípio da década de 80 (pelas evidências colocadas

infra), deve-se considerar que naquele momento, devido às questões complicadas com a administração central, o

grupo Tsvety se encontraria reconfigurado como Stasa Namina Gruppa, ou Grupo de Stas Namin; 378A década da fotografia é incerta, pois, embora o ficheiro se reporte à dados do grupo entre 1972 e 1976, sua

descrição avança ao longo do artigo para um período posterior. Outra evidência que corrobora a possibilidade de

a foto pertencer à década seguinte (1980), é a que corresponde às suas características, naquilo que concerne à

qualidade do filme e o fato de ser colorido, a apontar uma posterioridade em relação aos demais registros de

imagens, aqui mostrados, sobre a banda.

300

Figura 13.

Baixo Tonika Rostov (Década de 1970)

Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:

http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021

301

Figura 14.

Guitarras Elétricas Tonika Lunacharsky (Modelos 1970-72)

Descrição: Há similaridade estrutural entre os modelos da linha Tonika (Lunacharsky, Ordinokhdzhe e

Ural 650-E)

Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:

http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021

302

Figura 15.

Guitarra Elétrica Lvov Ritm (Guitarra Elétrica Rítmica) [Década de 1970]

Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:

http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021

303

Figura 16.

Guitarra Elétrica Orfeus ‘Telecaster’ [Década de 1970]

Fonte: CHIVERS, J; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:

http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021