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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
THOMÉ MENDES RIBEIRO BISNETO
URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO
O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da
União Soviética – 1961-1982
FLORIANÓPOLIS,
2021
THOMÉ MENDES RIBEIRO BISNETO
URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO
O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da
União Soviética – 1961-1982
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt
FLORIANÓPOLIS,
2021
Thomé Mendes Ribeiro Bisneto
URSS: UM ROCK SUBTERRÂNEO SOVIÉTICO
O Fenômeno do Rock através da lente da Agência, Cultura e Underground na Juventude da
União Soviética
O presente trabalho em nível de Mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr.
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Alexandre Busko Valim, Dr.
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Lauro Meller, Dr.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Prof. André Pereira Leme Lopes, Dr.
Universidade de Brasília
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção do título de Mestre em História Global.
____________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação
____________________________
Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr.
Orientador
Florianópolis, 20 de agosto de 2021.
AGRADECIMENTOS
Finalmente, após quatro anos de intenso trabalho e conciliação da atividade
pesquisadora, nesta sexta-feira, após uma categórica Banca de Defesa oficialmente, este que
vos fala é: Mestre Em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Em tempos de caos e incerteza, ter sustentado a postura irreverente e resiliente se fez
fundamental para alcançar este objetivo. E para isso, ter contado com excelentes insumos
demonstrou-se algo sublime – portanto, endereço agora meus agradecimentos para tais.
Agradeço sobejamente à minha família, por terem tido total reciprocidade com minha
estirpe: do sarcasmo ao fascínio, dos debates às consonâncias, do apoio até as exigências, com
vocês as dicotomias se faziam oposições complementares, disposições salutares e composições
instigantes. Meus pais, Nelson e Salete, me proporcionaram a base teórica e o amor pelo saber
em alinhamento com toda uma desenvoltura para me expressar; enquanto meus irmãos, Nelson
e Rita, me forneceram as interlocuções preliminares para debater ideias e afirmar a
personalidade – vós sois meu exemplo basilar, caríssimos. À minha esposa, Indaiá, só lhe posso
ser correspondente no empenho e sonhos, nos planos e no fascínio por descobertas históricas
intrigantemente instigantes (e por toda a paciência e entusiasmo com cada conquista),
observando que meus filhos (Amora Victhória, Theodoro e Dimithri) me foram mestres,
sobretudo, com seu ‘aprender’, pois parafraseando um velho mestre, ‘todo aquele que aprende
[filho] ensina ao aprender, também um pouco, á aquele que aprende, portanto, ao ensinar [pai]’
– vós sois meu conitnuum, portanto. Ao meu fiel amigo canino, at last, but not least, Bob, lhe
agradeço a confidente companhia e ora ruidosa, ora silenciosa psicologia do seu jeito autêntico
– tal como o paradigma daquilo que eu conflituo a coexistr no âmbito social. A vocês, cada qual
ao seu quinhão, muito me fizeram maior, e queira eu, ter-lhes correspondido ... Grato!!!!!
Não menos grato ao meu Orientador, Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt, cujas reticências
embora poucas houvessem, nunca foram maiores do que o crédito em meu potencial e no trato
imparcial quanto à criticas e reconhecimentos. Ter me concedido a honra de poder ingressar na
empreitada historiográfica, onde pude estar a abordar um assunto que tanto prezo (cultura,
música e dissidência, ou traduzindo, minha saga pelo Rock na URSS), foi um privilégio, aviado
apenas por termos nos reconhecido como mútuos observadores críticos dessa 'fine art' rebelde
e inusitada: o Rock N' Roll (aonde quer que se manifeste). Frank Zappa e David Bowie
poderiam entender ...
Sem menor quilate, agradeço com grande relevo aos caríssimos Doutores Alexandre
Valim (UFSC), André Pereira Leme (UnB) e Lauro Vanderlei Meller (UFRN)], cuja articulação
em colocare-se tão prontamente em favor da proposta inusitada, avalia-la, sorvendo-a e me
oportunizando essa possibilidade de debate e adorável colóquio, se fez enaltecedor,
maravilhante e fantástico!! Bravo, caríssimos: muito grato!!!
De modo muito especial, aproveito a agradecer o trabalho e a iniciativa corajosa dos
heróis do rock de múltiplas gerações, sem os quais, não poderia estar a fazer este trabalho.
Lennon, Berry, Richard, Mercury, Bowie, Zappa – and still here – Gillan, Vedder e Dylan:
thank you all!!
Com destaque especial, agradeço aos músicos da antiga URSS, Yuri Schevchuk, Stas
Namin, Yuri Ermakov, Andrei Makarewicz e Boris Grebenschichikov. Sem olvidar os
estelares, Yuri Morozov, Viktor Tsoi e Vladimir Vysotsky. Spacibo, tovaricz!!!
Grande abraço, terráqueos, Ziggy Stardust está na linha, tenho que desconectar ....
Evocar em um certo alguém um sentimento que outro alguém haja experimentado e tendo evocado
neste, então, através de movimentos, linhas, cores e sons, ou formas expressas em palavras, poder transmitir o mesmo sentimento pelo outro sentido em sua experiência – eis o propósito da arte.
Arte é uma atividade humana que consiste nisso, aquela em que um sujeito conscientemente, por meio
de sinais exteriores, entrega para os outros sentimentos pelos quais ele passou, para que essas outras pessoas possam ser infectadas [zarazhenie] por estes sentimentos e também possam desfrutar-lhes.
Leon Tolstoi, em O Que É Arte?, de 18961
Na República Soviética operária e camponesa, toda a organização da instrução, tanto no domínio da instrução política em geral, como, mais especialmente, no domínio da arte, deve estar impregnada do
espírito da luta de classe do proletariado pela realização vitoriosa dos objectivos da sua ditadura,
isto é, pelo derrubamento da burguesia, pela supressão das classes e pela eliminação de toda a exploração do homem pelo homem.
[...] O marxismo conquistou a sua significação histórica universal como ideologia do proletariado revolucionário porque não repudiou de modo algum as mais valiosas conquistas da época burguesa,
mas, pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de
desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos. Só o trabalho efectuado nessa base e nesta
mesma direcção, inspirado pela experiência prática da ditadura do proletariado como sua última luta contra toda a exploração, pode ser considerado como o desenvolvimento duma cultura
verdadeiramente proletária.
Vladimir Ilych Ulyanov – Lênin, em Projeto de Resolução, de 19202
Eles me criticam por dizer 'Power To The People' e dizem que nenhuma parcela social deveria ter o
poder. Bobagem. O povo não é uma parcela. O povo significa todos.
Eu acho que todos deveriam possuir tudo igualmente e que as pessoas deveriam possuir parte das
fábricas e deveriam ter alguma palavra a dizer sobre quem é o chefe e quem faz o quê. Os alunos
deveriam poder selecionar professores.
Pode ser como o comunismo, mas eu realmente não sei o que é o verdadeiro comunismo.
John Lennon, em entrevista à revista Hit Parader, em 19723
1CUSHMAN, 1995; p. 102 2LÊNIN, V. I. Projecto de Resolução (08 de outubro de 1920) [Publ. Orig. na revista Krasnaia Nóv, nº 3, em
1926]; In: V. I. Lenine - Obras Escolhidas; t. 51, 5ª edição, Ed. Edições Avante, Lisboa, 1977. pp. 336-337;
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/10/08.htm; Acesso em: 20/06/2021 3LENNON, John; Alan Smith (New Musical Express). John Lennon Interview: Hit Parader Magazine, february
1972. USA; In: SPANGLER, Jay. The Beatles Ultimate Experience; Disponível (em inglês) em:
http://www.beatlesinterviews.org/db1972.02jl.beatles.html; Acesso em: 20/06/2021
RESUMO
O presente trabalho, tem por objetivo abordar o fenômeno do rock na União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – URSS, desde seu ingresso (em 1957), passando por sua primeira
realização (em 1961) e realizando a cobertura de seus eventos até o final do governo do
secretário-geral Leonid Brejnev (em 1982). Dentro desse recorte temporal, preconiza-se
investigar sob quais influências esse fenômeno tenha sido possibilizado, seus atores locais, as
condições materiais e culturais, bem como o papel das reformas levadas à cabo pelos
mandatários soviéticos ao período – no caso, o ‘Degelo’, sob Nikita Kruschev (1953-1964) e a
‘Zastoya’ sob Leonid Brejnev (1964-1982) – através de um cenário Oriental que passava por
transformações e ainda se encontrava incidido da bipolaridade da Guerra Fria. A prospecção da
pesquisa, procura focar, mais especificamente no caso da RSFS da Rússia, através do estudo da
cena universitária do rock em Moscou (durante os anos 60) e um olhar sobre a cena
underground do ritmo em Leningrado (situada à anos 70), passando por eventos que ao tema
incidentes e correlatos – como a Beatlemania, Magnitofonnaia Kul’ tura, Bigbit, VIA, Tusovka
e Bard Rock. Para essa abordagem, com relevo, utiliza-se dos conceitos de disposição estética
em Bourdieu (1982), subcultura em Gordon (1940), agência em Thompson (1987), e cultura
em Williams (1969). Bem como conta com o suporte material inicial encontrado nas obras de
Thomas Cushman (1995) e Vladimir Marochkin (2011).
Palavras-chave: rock; rock soviético; tusovka; bard rock; VIA
ABSTRACT
The present work, aims to address the phenomenon of rock in the Union of Soviet Socialist
Republics - USSR, from its entry (in 1957), through its first local realization (in 1961) and by
covering its events until the end of the government of the General Secretary Leonid Brezhnev
(in 1982). Within this time-lapse, it is recommended to investigate under which influences this
phenomenon was made possible, its local actors, the material and cultural conditions, as well
as the role of the reforms carried out by the Soviet leaders at the time - in this case, the 'Thaw'
under Nikita Kruschev (1953-1964) and the 'Zastoya' under Leonid Brezhnev (1964-1982) –
through an Eastern scenario that was undergoing transformations and still faced with the
bipolarity of the Cold War. Prospecting the research seeks to focus, more specifically on the
case of the Russian SFSR of Russia, through the study of the university rock scene in Moscow
(during the 60s) and a look at the ‘underground’ rhythm scene in Leningrad (situated in the
70s), passing through events to the theme incidents and correlate – such as beatlemania,
magnitofonnaia kul'tura, bigbit, VIA, tusovka and bard rock. For this approach, with relief, one
uses the concepts of aesthetic disposition as found in Bourdieu (1982), subculture in Gordon
(1940), agency in Thompson (1987), and culture in Williams (1969). As well as the initial
material support found in the works of Thomas Cushman (1995) and Vladimir Marochkin
(2011).
Keywords: rock; Soviet rock; tusovka; bard rock; VIA
Lista de Figuras
Figura 1. Capa do álbum Strannye Ânguely (Strange Angels), do artista soviético Yuri Morozov. ..153 Figura 2 Capa alternativa do álbum Strannye Angely (Strange Angels) de Yuri Morozov. .............155 Figura 3 Capa do álbum The Cherry Garden of Jimi Hendrix de Yuri Morozov (1973). ..................156
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
PRIMEIRA PARTE: LEON, LÊNIN, LENNON 19
1.1 THE BEATLES KNOCK AT THE (BACK) DOOR OF KREMLIN: EXPLICAÇÕES,
ORIGENS E MEMÓRIAS DO ‘FAB FOUR’ NA VANGUARDA DE INFLUÊNCIAS DO
ROCK DA URSS 19
1.2 UM INUSITADO ENSAIO DE ROCK: DA CULTURA OCIDENTAL À POSSÍVEIS
HIPÓTESES SOBRE A COMPOSIÇÃO DA CENA MUSICAL SOVIÉTICA 27
1.3- CONSIDERAÇÕES BREVES A UMA TRAJETÓRIA DO ROCK EM SEU INÍCIO –
DO MACARTHISMO A MCCARTNEY 39
1.3.1 Primeiramente, ao Macarthismo: ou entendendo o ‘palco’ da Guerra Fria com seu
quadro político econômico aquecido, a Bipolaridade e aspectos que fomentariam as
características de berço do rock 41
1.3.2 E finalmente, a McCartney: ou do surgimento do rock em meio ao cenário social
Ocidental do início da Guerra Fria 46
1.4 O PRÓLOGO DO EPÍLOGO: A CONSTRUÇÃO DAS ESTRUTURAS DA CULTURA
SOVIÉTICA – UMA FUNDAÇÃO CONCRETA, REALISTA E DURADOURA 62
1.4.1 Entre Estampidos e Marteladas: O marcial e o proletário na Música Realista
Concretista Soviética sob Stálin 74
1.5 ON THE ROCKS: OS POLÊMICOS ASPECTOS DO DEGELO DE KRUSCHEV
ABREM CAMINHO PARA O ROCK N’ ROLL 83
SEGUNDA PARTE: DO DEGELO À DÉTENTE 91
2.1 1960´S LADO A: KOMSOMOL E O CONSUMISMO: OU A URSS A CAMINHO DAS
ESTRELAS 91
2.1.1 The Rocket and The Rock - Ensaios e Experiências: Dos satélites até Moscou, nomes
de músicos e bandas de rock da URSS de 1961 a 1970 93
2.1.2 Experiências de Consumo: Um Esclarecimento Histórico, uma Magnitofonnaia
Kul´tura e um fisiologismo com a produção estatal 107
2.1.3 Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo (... mas não sem Resistência) 124
2.1.4 Experiências de Retiro: hippies e rock soviético experimentalista 142
2.2 1960'S LADO B: O REVERSO DA MEDALHA – OU OS LIMITES DO PROCESSO
(CONTRA) CULTURAL 164
2.2.1 Amigáveis Informantes: Os Druzhinniki e a frieza do Degelo 165
2.2.2 Uma Forma Muito Interessante de Psicose: o raio-x de uma abordagem nada
amigável – entre a voz de um bardo e o eco do manicômio estatal 171
2.2.3 O Degelo em Números: crescimento urbano, cenário econômico e condicionantes à
circulação de cultura na gestão Kruschev [uma ascensão meteórica e o despencar de uma
estrela] 183
2.2.4 Uma Queda A 70.000 Pés: A Guerra Fria esquenta o Degelo, o Perigo Nuclear e o
Começo do Fim da Era Kruschev 187
2.3 UM COMPACTO DE TRÊS ESTRELAS: O TERCEIRO LADO DOS ANOS 1960 –
BEATLES, BREJNEV E ВИА OU COMO O ROCK SOVIÉTICO SE TRANSFORMARIA
DE SUBCULTURA EM PRODUTO CULTURAL – PARCIALMENTE 191
2.3.1 Brejnev e o Bloqueio à Desestalinização: O breve Resfriar da Liberdade de
Expressão e o brevíssimo Reaquecer da economia 193
2.3.2 O Resfriamento em Brejnev: o Processo Sinyavsky-Daniel 195
2.3.3 O Aquecimento da Economia em Brejnev: o Ministro Kosygin, os passos tortuosos
para o incremento das condições de vida na URSS e outras questões sociais pertinentes
198
2.3.4 ВИА: Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль – VIA: Conjuntos vocais
instrumentais ou Eram os rockeiros cosmonautas!? 203
TERCEIRA PARTE: ENTRE A SALA, A COZINHA, O LABORATÓRIO E A
SARJETA 211
3.1 O FALCÃO E AS FLORES ANTE A MÁQUINA DO TEMPO E O AQUÁRIO: UM
RECORTE PANORÂMICO DO ROCK NA URSS NO PERÍODO 1965-75 COM FOCO NAS
TRANSIÇÕES SOCIAIS E MUSICAIS PROTAGONIZADAS POR QUATRO
IMPORTANTES BANDAS LOCAIS 211
3.2 ENQUANTO UM FALCÃO SOBREVOAVA, MOSCOU FLORESCIA: O PRIMEIRO
ROCK, PRIMEVAS GUITARRAS E (IM)POSSIBILIDADES PARA MÚSICOS
PROFISSIONAIS E NÃO-PROFISSIONAIS NA URSS 213
3.3 SOBRE NOBRES PEDAÇOS DE MADEIRA E PATACAS DO VIL METAL:
RELAÇÕES ENTRE A CONFECÇÃO DAS GUITARRAS, PRODUÇÃO INDUSTRIAL-
ARTESANAL E ACESSIBILIDADE DE CUSTO NA REALIDADE ECONÔMICA
PLANIFICADA DA URSS DOS ANOS 1970 221
3.3.1 Um Relato Sobre o Comércio de Guitarras na União Soviética e Bloco do Leste na
Década de 1970: Refletindo-se acerca de ‘grana’ e aquisição de ‘ferramentas do rock’
produzidas no Bloco Oriental 223
3.2.2 Do Hardware ao Hardwork: Sobre Pickups/Captadores e Fiação das Guitarras
Soviéticas [ou o Underwood do Underground] 232
3.4 A TRILHA SONORA DE UMA CRISE: O JINGLE ESTATAL A URSS É MEU
ENDEREÇO E DEPOIMENTOS DE PESO EM MEIO A UM TURBILHÃO CULTURAL E
O ‘LONGO INVERNO’ DE UMA ECONOMIA ESTAGNADA 236
3.4.1 Lecionando uma Cruzada Conformista: Cifras de um comércio dirigido, claudicações
sutis e um crime organizado – num subúrbio nem tanto – ladeando as origens da Campanha
Estatal em apoios sociais conservadores 244
3.5 Da Máquina do Tempo ao Aquário: O terreno subterrâneo germinado entre Leningrado e
Moscou, o ácido sabor de um ‘Rock na Cozinha’, o bard rock e o significado de Tusovka 250
4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS 267
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 274
ANEXOS 287
14
INTRODUÇÃO
O trabalho aqui principiado, teve seu início durante os eventos de 2017 e 2018, onde
uma vez mais, no cenário brasileiro chegariam notícias de movimentações inquietantes
provenientes da Rússia. Naquele momento, a manchete anunciava as manobras militares
conhecidas como Vostok (2018), ribombando em situações como a retomada da Criméia (da
Ucrânia) e exercícios militares provocantes à OTAN – trazendo nisso, ecos há tempo
esquecidos, do evento da Guerra Fria. A dissolução da URSS (em 1991) e interpretações
precipitadas em torno do evento global, haviam, ilusoriamente, permitido negligenciar
conhecer-se um pouco mais da banda Oriental. Revolvendo-se a camada de obscurantismo que
vigera durante toda bipolaridade entre URSS e EUA, tendo alimentado contrastantes
especulações de pesadelo e fascínio à diferentes observadores, passava a aparecer, do fim do
cenário das tensões de outrora, um ainda intrigante ponto no mapa por se desvendar – um que
tão geograficamente distante do Brasil, quanto ainda culturalmente desconhecido.
No entanto, cumulando interesses pessoais de trajetória (estudos no Cinema Soviético e
a proveniência de uma cidade catarinense de forte presença da cultura caucasiana, Porto União,
terra de descendentes poloneses e ucranianos, situada no Planalto Norte do estado) com os
eventos que traziam ao noticiário um estímulo revigorado em se compreender a trajetória da
sociedade russa (de hoje e de outrora), surgiria o interesse em proceder uma investigação
histórica e cultural situada geograficamente em sua porção. O que, somado a um gosto pelo
peculiar e inusitado, acabaria por firmar a decisão em um tema polêmico e obscuro: o trânsito
cultural, pouco conhecido, do rock na URSS, em plena Guerra Fria e sua assimilação local
segundo tensões e condições estruturais, desde a década de 1960.
Daí por diante, o presente trabalho abordaria este tema inusitado a partir das seguintes
premissas: teria havido um rock soviético? Em tendo-o havido, como fôra possível, levando-se
em consideração a estrutura ideológica soviética e o antagonismo bipolar da Guerra Fria? E
por último, em algum momento, como ocorrera tal assimilação, e como este ritmo,
eventualmente, pudesse ter sofrido algum tipo de absorção e uso pelo aparato estatal da URSS?
Tais inquietações que motivariam esta pesquisa, não viriam sem causa, pois ao
investigar fenômenos de cultura da produção soviética (no caso, do Cinema Oriental), travaria-
se contato com o período conhecido como Degelo: uma fase de distensão entre URSS e EUA,
propiciada pela assunção de Nikita Kruschev e o princípio de reformas políticas e sociais – num
panorama denominado de Coexistência Pacífica.
A partir daí as dúvidas cresceriam, contemplando preencher lacunas deixadas pela
15
posição de observador alheio ao cenário das superpotências – onde daqui, do Brasil, apenas
pelas notícias superficiais e com toda a carga de influência de uma histórica hegemonia
narrativa pró-Ocidente, consequentemente, se obteria apenas resquícios de versões cheios de
lacunas acerca do funcionamento da sociedade soviética.
Seria por isso, então, que a pesquisa se nortearia por uma busca ampla por respostas: tão
ampla quanto a desinformação acerca da cultura e sociedade da URSS, tentando em meio a
tudo, rastrear o objeto de pesquisa – rock soviético – contornando-lhe uma fisionomia,
minimamente crível, honesta e factível de se compreender.
Foi com esse esforço que o trabalho se realizou, tentando em cada parte, perseguir
explicações que situassem o fenômeno, mundialmente – por seu teor de choque cultural ou
trânsito de informações – e localmente – por suas características de sociedade planificada,
controlada e dirigida segundo toda uma ideologia e aparato desconhecidos do autor.
Deste modo, explicando as etapas do trabalho, seu recorte temporal se propões a
investigar eventos situados entre dois marcos importantes ao tema: a criação da primeira banda
soviética (em 1961, na Letônia), sob a gestão do secretário-geral Nikita Kruschev, e a transição
do rock underground soviético para o cenário ‘mainstream’ da URSS, durante o final do
governo de Leonid Brejnev (em 1982). Com efeito, o intuito da Primeira Parte seria apresentar
a chegada dos Beatles à URSS, como forma de introduzir a discussão de quais seriam as
condições que precipitariam a isso. O rock ingressara antes do ‘fab four' e já possuiria alguns
exemplares locais tentando seus acordes. Entretanto, somente com o advento dos Beatles, já
situado durante o governo sucessor (1964) é que se poderia fazer uma perspectiva acerca da
magnitude do movimento, contrapondo-o a outros elementos no cenário interior e exterior.
Seria desse momento em diante, que amparada no fenômeno da Beatlemania, a realização local
do fenômeno ganharia vulto – tornando-se necessário conhecer a natureza dessa influência, para
ao entendê-la, delinear o caráter de sua dimensão. Ainda na primeira parte, por este ínterim,
trabalha-se num movimento pendular de epílogo e prólogo – começando com um epílogo sobre
a relação dos Beatles com a União Soviética. Em seguida, compara-se características do
fenômeno com a da realidade soviética (tentando entender sua afinidade), passa-se a um breve
retrospecto das origens do rock e sua importância como uma resposta à diferentes tensões, até
chegar-se a uma investigação mais detalhada sobre as estruturas que o antecederiam na
realidade soviética (o Realismo Concretista, à década de 1940), e suas possibilidades de
sedimentação a partir do Degelo (entre os bens de consumo à Coexistência Pacífica).
Mais à frente, na segunda parte, recobrada parte da estrutura que precipitara o rock, seu
contato e sua entrada à URSS, passaria-se a investigar os detalhes da estrutura social, política e
16
econômica da URSS, dentre o Degelo de Kruschev e a transição à Brejnev. Onde para entender
a fisionomia do rock local, se o faria situando numa analogia ao Long Play, evocando na
metáfora seus contrastes (Lado A e Lado B) e considerando informações de, um lado, em seu
âmbito social, junto à hábitos de consumo, de produção e circulação alternativas, de
consagração de músicos e de experimentalismos, enquanto de outro, se consideraria abordar a
circunstância política e econômica determinada, observações sutis por novos operadores civis
em nome do Estado, e uma transformação econômica que colateral a uma expansão urbana
(fundamental ao rock, posto que ritmo de cena urbana). Transitando em meio à Guerra Fria,
choques geracionais e de identidade em relação à nova música e uma parábola entre as relações
Ocidente-Oriente – recomporia-se um período que começara com eventos de boa-vontade e
cooperação, mas que devido à competitividade acirrada (com a Corrida Espacial e
Armamentista), se deterioraria em um quadro de novos tensionamentos.
Em conclusão à segunda parte, chegaria-se a um ‘compacto’, como um disco solo, onde
a estrela seria a da gestão de Leonid Brejnev, contemplando uma série de reformulações
culturais e sociais (da Economia à Liberdade de Expressão), e como seriam estas relacionadas
ao rock local: como a alternativa estatal ao rock, o VIA (sigla de vocalnye instrumentalnyi
ansambl; conjuntos vocais instrumentais) – alternativa estatal que em prenùncio à guinada
conservadora de logo a seguir (virada dos anos 70).
Na terceira parte, após olhares mais panorâmicos acerca do movimento, se migraria a
‘lente’ para a circunstância de personagens mais localizados, ambientados nas capitais Moscou
e Leningrado, e ilustrados a partir do estudo por sobre o acompanhamento da biografia de
grupos e a implementação da confecção e circulação de instrumentos voltados ao rock na
URSS. Quanto à perspectiva do acompanhamento, situaria-se em quatro importantes grupos
do rock soviético: Sokol, Tsvety, Machina Wremenyi e Akvarium – cujas histórias, em percurso,
ajudariam a compor a fisionomia do movimento cultural da música entre a juventude no período
de cobertura do final dos anos 60, pela década de 1970 adentro e ao final do governo Brejnev.
É nessa década que se situam as transformações de fase mais importantes no cenário do rock
local, como a Estagnação Econômica, um conservadorismo revigorado, o uso estatal do rock
em uma campanha musical (A URSS É Meu Endereço, de 1972-3) e a bifurcação do rock
anterior em duas vertentes: de um lado a produção autorizada e comercial do VIA (patrocinada
pelo Estado e situado em Moscou), e do outro o surgimento de um robusto movimento
underground, alternativo e contraventor (produzido numa ‘guerrilha cultural’, da escassez e
situado na cidade de Leningrado).
Finalizando a terceira parte e precipitando as Considerações Finais, comentaria-se
17
acerca do cenário/movimento cultural chamado de tusovka e sua singularidade de causa junto
a um âmago soviético de compreensão da cultura, situada localmente em Leningrado, e
temporalmente no princípio da década de 1980, nos estertores da Era Brejnev, acompanhando
à recessão econômica e o princípio das reformas finais da União Soviética.
Com a ‘obsessão’ de entender a fisionomia do fenômeno cultural e avidez de
compreensão de uma sociedade considerada, em costumes, antípoda, desconhecida e exótica a
um brasileiro oriundo de uma formação escolar que apenas mencionara superficialmente as
características da URSS, somada à busca por entender como os eventos atuais de reavivamento
da Rússia no cenário internacional, mesmo à luz de um estudo sobre eventos inusitados como
o rock conectariam com essa trajetória social, política e cultural, se procederia essa pesquisa, A
partir desse escopo, aliado ao entusiasmo honesto em investigar a História, esse trabalho seria
realizado – conseguindo ao final, ao menos parcialmente, compreender a incidência, período,
características e personagens do rock na URSS – ainda a repercutir no cenário da cultura e da
sociedade locais.
Acerca do caráter referencial teórico adotado no desenvolvimento da pesquisa, cabe
mencionar que procurou-se trabalhar com o suporte de três conceitos principais: o de agência
– incidente em diversas menções na pesquisa – segundo Edward Palmer Thompson (em A
Formação da Classe Operária, 1987); o de cultura, segundo Raymond Williams (em Cultura
e Sociedade, 1969) e importantes contribuições do sociólogo Thomas Cushman (em Notes
From The Underground, 1995), cujas investigações acerca do tema da música, sociedade e
circulação/produção cultural em sua pesquisa sobre a década final da União Soviética,
ofereceriam interessantes saídas à realização composição dessa discussão sobre o tema, sua
cultura e sua história. E para o complemento crítico, perspectivando o cenário da cultura como
campo em disputa e ambiente de localização à grupos menores, buscou-se utilizar,
respectivamente, da disposição estética (segundo Pierre Bourdieu, 1982) e da subcultura
(conforme Milton Gordon, 1940).
Como esclarecimentos finais dessa parte introdutória, cabe frisar que a metodologia
empregada, contemplaria a remissão bibliográfica e procura aficionada por artigos e temáticas
relativas ao tema – que por fortuito das atuais tecnologias, contam além do suporte dos livros,
com farto (embora, por vezes, de difícil acesso) material informático – em sites, acervos e
bibliotecas digitais4.
4A destacar, dentre outros integrantes do acervo, os materiais oriundos dos trabalhos de autores como o jornalista
russo Vladimir Marochkin (2011; 2011c), do historiador ucraniano Sergei Zhuk (2012); do historiador Timothy
Ryback (1990), do jornalista russo Artemyi Troitsky (1987), do sociólogo estadunidense Thomas Cushman (1995),
18
No horizonte dessa empreitada, como barreira mais significativa, estaria também a
língua russa, cujo cirílico, alfabeto russo, demandaria horas de estudos em um curso de
Introdução Básica no idioma – complementado em alguns momentos, pelo suporte de
mecanismos de tradução e revisões bibliográficas de hermenêutica e gramática textual russa,
em acervos pertinentes a essa finalidade5. É por isso que muitos dos autores citados, dentre
outros fatores, constituem nomes ainda novos a pesquisa histórica nacional, cujo tema, ainda
não absorvido completamente pelo selo oficial de amplas produções bibliográficas, ainda se
encontra disponível, majoritariamente, em inglês ou em russo – no circuito acadêmico e popular
dos países que partilham sua comunicação nesses idiomas.
Tendo isso por dito, cabe mencionar como encerramento o papel da música como
importante elemento de encanto, entretenimento e entusiasmo ao longo da história observada e
mesmo durante a confecção do trabalho. Pois, em se tratando de anos caóticos, assombrados
por uma pandemia e horizontes incertos na política internacional, o expediente promissor
possibilitado pela música, mais que uma fuga, constituiria razão de ser dentre as incumbências
desenvolvidas em paralelo – que neste caso particular, da docência, do estudo, da pesquisa e da
paternidade – insuflando-lhes um novo sentido de esperança e energia (emprestando as palavras
do músico russo Boris Grebenshchikov), fundamentais à toda esta realização.
Рок Жив!! [O Rock Está Vivo !!] Viva o Rock!!
do historiador russo Vladymyr Rekshan (2015), sem olvidar depoimentos de músicos como SALNIKOV (2005),
MATSENOV (2017) e o acervo digital de fontes primárias Seventeen Moments of Soviet History (2003). 5Com destaque, o repertório angariado com o Curso de Russo: Do Básico ao Avançado, realização gráfico-digital,
coordenada pelo Prof. Vinícius de Oliveira Egídio.
19
PRIMEIRA PARTE: LEON, LÊNIN, LENNON
1.1 THE BEATLES KNOCK AT THE (BACK) DOOR OF KREMLIN: EXPLICAÇÕES,
ORIGENS E MEMÓRIAS DO ‘FAB FOUR’ NA VANGUARDA DE INFLUÊNCIAS DO
ROCK DA URSS
Eu tocava piano em casa, e então, sim, em Suvorovskoye6, nas minhas horas vagas aprendia a
dominar o violão. Era um desses de sete cordas, então dobramos a sétima atrás do braço, reforçando-
a com um fósforo, afinamos como um violão de seis cordas, ligamos os Beatles e "seguimos" Harrison e McCartney.
Stas Namin, fundador do grupo soviético Tsvety (‘Flores’), de 19697
A pergunta renitente sobre um tema como o evento de origem do rock na União
Soviética, em plena Guerra Fria, há de ser sempre a seguinte: como foi possível!? Nesse sentido,
no esforço de se responder com alguma justiça e melhor esclarecimento sua possibilidade, deve-
se começar a investigação com as lentes voltadas para um ponto específico da Europa Ocidental
(Reino Unido), onde um fenômeno de cultura global, todo sorvido e proporcionado pelas
circunstâncias que o alicerçaram e circundavam, acabaria por ser protagonizado e atingiria
dimensão inédita, sob qualquer mensura, na indústria cultural e na circulação de mídia, através
de um grupo de rock proveniente do distrito industrial de Liverpool: The Beatles. Seria à década
de 1960 que o rock ganharia juventudes extra-anglófonas, num terreno cercado de muitas
descobertas, importantes acontecimentos e intrigantes episódios, que tanto cultural, quanto
político-economicamente repercutiriam de modo indelével no cenário mundial – os quais,
pertinente e detalhadamente, serão objeto de análise nesse trabalho, ao longo de variados temas
relacionados ao estudo do assunto abordado.
Por ora, há que se elucubrar em torno do fato primordial dessa pesquisa, seu evento de
ignição, por assim dizer, numa investigação provocante e de difícil traçado de explicações:
Quais eram as características desse fenômeno de música no cenário da União Soviética, como
teria construído arranjos possíveis em meio à disputa da Guerra Fria e como seria sua relação
interna ante o aparato institucional estatal? A princípio, antes de mergulhar no deslinde de
tantas imbricadas questões, é necessário compreender como houve a chegada do ritmo
estadunidense (embora tendo feito escala na terra da rainha, ainda tido como elemento do
‘adversário’) em terras soviéticas – e a reboque de quais eventos. Neste ínterim, ao se pesquisar
acerca do tema rock soviético, é invariável encontrar-se recorrentes menções ao quarteto de
6Instituição de ensino superior de formação militar durante a URSS, situada em Moscou. 7VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]. Российская Газета (Rossiskaya
Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html. Acesso em:
30/02/2021
20
Liverpool. As fontes mais diretas acerca de datas, mencionam o rock n´roll como ingressado
na URSS em 1958 (durante o Festival Internacional dos Estudantes)8 e o surgimento de uma
banda autóctone em 1961 (os Revengers, de Riga, RSFS da Letônia)9 – portanto, durante a Era
do Degelo. Já a fonte que menciona a primeira abordagem local oficial sobre os Beatles (numa
revista soviética, a Krokodil) data de 1965 – portanto, durante a Era Brejnev (DIMITRIEVSKY,
1990). Pudera, na década em que o rock emergia na URSS como um movimento juvenil,
precedido pelas condições do chamado Degelo de Kruschev (secretário-geral antecessor do
então vigente, Leonid Brejnev), era o momento em que, simultaneamente, do outro lado das
tensões da disputa indireta, o quarteto britânico explodia ao redor do globo, com as gravações
de sucessos insofismáveis, tanto crítica, quanto comercialmente.
Assim, através do mercado alternativo, por revistas que passavam pela via de circulação
clandestina ou trazidos em bagagens de diplomatas soviéticos e seus filhos, os Beatles chegaram
à União Soviética, embalando sonoramente também àqueles jovens principiantes orientais da
batida frenética. Sobre os caminhos de aquisição desses materiais, principalmente os de cunho
fonográfico, deve se frisar que chegaria por mais de uma via, através do consumo de álbuns
contrabandeados (da Europa Ocidental) e também pelas estações de rádio (e mesmo de
televisão, cujas transmissões e acesso eram mais frequentemente acessíveis em países do Leste
Europeu, como a República da Romênia), visto que embora embaralhadas nos sinais de
transmissão (pelo aparato, através das torres interceptadoras da Gostelradio), em algumas
épocas do ano podiam ser mais facilmente capturadas as frequências de ondas longas das redes
ocidentais – (MAROCHKIN, 2011a).
Comentando acerca dessa circulação do produto cultural do rock, com fulcro no âmbito
do contrabando de discos, o jornalista inglês Pete Paphides, ao cobrir parte da experiência do
fenômeno do rock em terras soviéticas – em sua reportagem Bootlegs Pressed in X-Rays, ao
The Guardian, em 2015 – traz o depoimento de um jovem londrino à época, Rudy Fuchs, que
a partir de suas memórias oportunizou importante relato referente a articulação e modus
operandi dessa peculiar rede de contatos que desviaria, a partir da capital londrina, discos do
fab four à uma jovem rede contraventora:
Eu costumava fazer doações de sangue para receber uma soma em dinheiro. Com esse
dinheiro, eu comprava LP´s numa loja e repassava para os rapazes. Eu gostava de
8MALAKHOVA, Irina. Култура.РФ. Кто первым играл рок-музыку в России? [Trad. Livre: Site Kultura.RF;
Quem foi o primeiro a tocar o rock na Rússia?] (2013-2020); Ministério da Cultura da Rússia; Disponível (em
russo) em: http://culture.ru/s/vopros/rok-v-rossii/; Acesso em: 20/02/2021 9MAROCHKIN, Vladimir. Everyday Life of the Russian Rock Musician. BORISOV, Alexey. KORNEV, Oleg;
Shum.Ru Experimental Music In Russia. 2011. Disponível em: <http://shum.info/index/vladimir-
marochkin/vladimir-marochkin-everyday-life-of-the-russian-rock-musician/>.
21
fazer isso. O que mais circulava era Rock Around The Clock do Bill Halley and The
Comets e Boogie Woogie Boy [...], depois foi com os Beatles. Certa vez me
apanharam, as autoridades locais queriam que eu entregasse pra quem eu repassava o
material. Me recusei a responder. Fiquei detido. Mas por mim ninguém foi entregue.
[Tradução do inglês e grifos nossos]10
Ao longo da reportagem, o jornalista articularia como esse caminho tortuoso dos discos
londrinos, viria encontrar-se com ‘consumidores paralelos’ soviéticos. Ainda na mesma
reportagem, entrevistando a um colecionador de Londres, Stephen Coates, organizador de uma
exposição sobre os roentgenitzdat (os outrora citados, vinis piratas em chapas de raio-x da
URSS), o jornalista obteria mais memorabilia e depoimentos acerca do fenômeno da
beatlemania soviética. Durante a exposição, Paphides tomaria um conhecimento mais
prospecto da incidência do movimento do rock em terras orientais, o que o levaria, mais adiante,
a buscar em terras russas, maiores detalhes dessa memória cultural. Com sucesso, chegaria entre
outros relatos ao depoimento – curto mas eloquente – de um octogenário cidadão de São
Petersburgo (recordando os tempos do rock quando ainda Leningrado) Nikolay Vasim,
colecionador e integrante da cena leningradense de aficionados, que mais do que lhe mostrar
itens de sua coleção particular (entre discos, encartes e recortes de jornais e revistas) lhe
confessaria em termos diretos a importante presença dos Beatles na estruturação de influências
durante a URSS, ao enfatizar o apego da juventude local pela banda inglesa: ´Nós ouvíamos
muito os Beatles (mostra encartes de Paul McCartney, Ringo Starr, George Harrison e John
Lennon, dando ênfase ao mencionar este)´ – (PAPHIDES, 2015).
Nesse mesmo sentido, o sociólogo estadunidense Thomas Cushman, no livro Notes
From The Underground: Rock Music and Counterculture in Russia (1995) – importante
realização sobre o tema aqui dissertado e prolífico contribuinte em inúmeras informações e
relatos esclarecedores à composição desse fenômeno local/global de cultura – aponta diversas
menções referentes aos Beatles na trajetória do rock soviético. O vocalista da banda DDT, uma
das importantes protagonistas do cenário do rock russo soviético da década de 1980 (e que ainda
existente à atualidade), Yuri Schevchuk, cita em torno de sua memória de albores rockeiros (p.
55):
A minha biografia musical começou na cidade de Ufa, nos Urais Meridionais. Desde
a minha infância só possuía duas paixões – pela pintura e pela música. Eu ouvi Beatles
quando estava no quinto ano. Eu fui fisgado na hora. Isso ainda era no Cáucaso, e alguém me trouxe uma revista – havia alguns rapazes de guitarras nas mãos e cabelos
compridos. Então eu sintonizei a Voice of America, tentando encontrar algo naquilo
tudo, e quando eu escutei pela primeira vez, eu me recordo, fiquei em estado de
choque. Como um jovem rapaz eu senti a energia da época. Eu senti a fórmula. Eu
simplesmente não sabia que isso existia. Mas eu precisava disso. E eu ouvi Beatles,
Rolling Stones, Morrison, Lennon, e é claro, fiquei chocado. Como é isso possível?
10PAPHIDES, Pete. Bone music: the Soviet bootleg records pressed on x-rays. The Guardian. Edição: 29 de jan.
Londres. 2015.
22
Em algum lugar do podre Ocidente, onde tudo é ruim – conforme éramos ensinados
– onde todas as pessoas são ruins e burguesas, como é possível que haja pessoas que
cantem essas maravilhosas canções que me fazem chorar? Acho que foi a primeira
vez que me veio um pensamento antisoviético na cabeça [risos] [Tradução do inglês
e grifos nossos]
A citação pontua relevantes noções acerca do carisma juvenil do grupo britânico, mas
também ilustra e dá lastro às afirmações acerca dos meios de prospecção dessa cultura no
cenário local. A grande possibilidade ocasionada com o Degelo de Kruschev, seria essa do
contato, da possibilidade de ir conhecer, ainda que tortuosamente, o curioso e proibido mundo
estrangeiro Ocidental. A impressão da juventude, pessoal (nos encontros e festivais estudantis
e nas universidades inauguradas durante a década)11 ou de maneira interposta (pelos veículos
de mídia, consoante possibilidades e acesso a produtos do circuito cultural estrangeiro) mudaria
em torno do Ocidente, que outrora obscurantizado, agora podia ser conhecido com alguma
fisionomia mais positiva, ou ao menos, não tão exagerada quanto propunha a tradição
ideológica local.
Nesse sentido, estimulados pela ávida busca por informações (musicais, principalmente)
no circuito de rádio, não apenas a Voice of America seria procurada dentre as estações, mas as
rádios Free Europe e Free America, teriam sinais em ondas longas passíveis de alcançar o
território soviético – sendo pertinentemente, alvo de jamming de sinal pelas torres de
transmissão do aparato soviético. Naquele momento (1964), deve-se ressaltar, não apenas o
governo soviético recrudescia em torno da cultura, na URSS de um Brejnev, recém-empossado:
ao redor do mundo se ensaiariam princípios de cerceamento institucionalizado a elementos
políticos e culturais taxados como subversivos, como por exemplo, na América do Sul (sob o
escopo de regimes militares que se alinhavam aos interesses estadunidenses, como o Brasil), na
República Popular da China (prestes a vivenciar os eventos da chamada Revolução Cultural
11Como a Universidade da Amizade dos Povos, inaugurada em 1960, na porção meridional da capital Moscou
(renomeada em 1961, Universidade Patrice Lumumba, em honra do estadista congolês articulador do movimento
político pela libertação da República Democrática do Congo), que ofereceria bolsas de estudo e possibilidades de
intercâmbio a estudantes da Ásia, África e da América Latina, oportunizando o contato de toda uma diversidade cultural de personagens globais, de distintas culturas, dentro da sociedade urbana da URSS – somando-se a já
descrita diversidade experimentada por sua ampla composição em nações da federação soviética. Os programas
de intercâmbio forneciam aos visitantes um salário-estadia e todos os direitos de assistência de saúde e educação
proporcionados aos cidadãos soviéticos, integrantes do corpo discente acadêmico, procurando garantir assim a
possibilidade de instalação dos alunos e a demonstração de boa-vontade da política local com receptividade de
diferentes culturas – evidentemente, também servindo ao propósito do Secretário-Geral de tecer influência
favorável ao Socialismo a países há pouco saídos do colonialismo (de teores anti-imperialistas), passíveis de virem
a figurar como novos integrantes ou adeptos do regime soviético. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1968 - Third
World Friendships; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003).
Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1968-2/third-world-friendships/; Acesso em: 21/07/2020
23
Chinesa; 1965-1976)12 e nos supostamente livres integrantes da OTAN – onde nos EUA, que
havia uma década protagonizara o Macarthismo, ainda se experimentaria da polêmica tradição
de censura do Código Hays (1930-1968)13 em vários segmentos artísticos e culturais, enquanto
que no Reino Unido, rádios consideradas clandestinas e de conteúdo proibido, teriam de
encontrar a alternativa em veicular seus programas a partir de estações em barcos particulares
posicionados no limite das águas internacionais14.
Ainda assim, embalando juventudes ao redor do mundo, rompendo barreiras e
impulsionando a indústria cultural como nunca outrora (conforme mencionado no princípio
desse trabalho), os Beatles marcariam época e as trajetórias de jovens ao redor do mundo. Na
URSS, de modo indistinto, ao mencionar-se das motivações em torno da escolha pela vertente
do rock e a carreira musical, o nome seria pronunciado muitas vezes. Viktor (CUSHMAN,
1995; pp. 34-37), guitarrista russo, colocaria os Beatles como estopim de sua opção pela carreira
de músico, enfatizando o processo de imitação das bandas ocidentais como importante forma
de tornar frequente o hábito local do rock, antes da chamada fase de russificação (russificatsia)
do ritmo. O músico comentaria ainda, relacionando o quarteto a outros exemplares posteriores
– como o Deep Purple (grupo inglês fundado à década de 1960, estrelado pela voz de Ian Gillan
e a guitarra de Ritchie Blackmore, banda precursora de experimentalismos intensos e
característicos), ao lado dos coetâneos grupos do cenário britânico, Black Sabbath e Led
Zeppelin, frequentemente vinculados aos primórdios do estilo metal, e ao experimentalismo do
12HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX [1914-1991], 2ª edição. São Paulo: Companhia
das Letras. 1995. p. 268 13TRINDADE, Heidi. A História do Sistema de Censura no Cinema dos Estados Unidos e como ele funciona hoje.
Filme No Mundo. 2007. Disponível em: <https://filmenomundo.wordpress.com/2014/02/014/a-historia-do-
sistema-de-censura-no-cinema-dos-estados-unidos-e-como-ele-funciona-hoje/>. Acesso em: 21/07/2020. 14O filme britânico Pirate Radio (tradução brasileira: Os Piratas do Rock; 2009; Reino Unido), dirigido por
Richard Curtis, musicalizado por Hans Zimmer e estrelado por Bill Nighy e grande elenco, reconstitui parte desses
eventos, ao cobrir o dia-a-dia de uma rádio clandestina na década de 1960, tocada por Quentin (Bill Nighy) e seu
grupo de DJs e locutores rebeldes, que encontrariam uma forma inusitada de desafiar o establishment inglês. Num
esquema muito peculiar: fazendo funcionar uma estação radiofônica pirata em uma embarcação,
permanentemente, situada além do limite das águas britânicas, em alto-mar. A película trata, embora pelo recurso
da ficção, de um evento verdadeiro, sobre a existência de rádios piratas na programação europeia dos anos 1960, que contribuiriam a lançar importantes artistas e veicular materiais alternativos no circuito cultural europeu –
chegando às casas de uma juventude entusiasmada. Em seus pontos altos, a película conta com toda uma bonita
reconstituição que remonta desde as vestes até aparatos de rádio-estação e tecnologia, bem como personagens do
mundo do rádio e da música, sem olvidar a presença de linguajar próprio ao período (reconstituição do giriesco) e
uso constante de exclamações obscenas (muito correntes durante a irreverente programação). Um destaque
especial se deve à presença de canções marcantes do período (em geral, do cancioneiro do rock inglês influenciado
pela febre do estilo Mod), quase intermitentemente, embalando as transmissões. Da análise do filme, é possível
compor-se um pano-de-fundo ao registro de costumes em um momento de férvidas discussões sobre cultura e
contracultura, dramas pessoais, sociedade e conflito de gerações, que encontravam importância e evidência através
da música e faziam do rock, mais especificamente, sua grande caixa de ressonância.
24
estilo progressive rock, sem olvidar o T-Rex (grupo sessentista britânico do vocalista e
guitarrista inglês Marc Bolan, vinculada ao estilo glam rock inglês) – sobre a questão da
permanência desses elementos de cultura e diferenciações de cenário Ocidental/Oriental, os
quais, tal qual o quarteto de Liverpool, ficariam na memória e na prática ambiente soviéticas,
por conta do conceito de fixação cultural15. Consiste tal conceito em ferramenta sociológica
que opera de maneira contribuinte à análise entre cenários sociais distintos (econômica, cultural
e socialmente), quando observando uma predominância de algum elemento de cultura
específico oriundo de uma fonte emanadora (como um grupo ou canção provenientes da banda
Ocidental) em relação às transformações ocorridas nos cenários de recepção (como o cenário
da URSS, receptor dessas canções/bandas).
Nesse aspecto, estaria relacionada ao descompasso (lag; no sentido de atraso) entre os
eventos culturais ocorridos no comparado entre as diferentes sociedades da Guerra Fria, onde
partindo-se de uma perspectiva de falta de acesso a novos materiais no circuito fonográfico
soviético (principalmente estrangeiros), a periodização de troca desses em relação ao Ocidente,
seria muito menos frequente, fazendo com que certos nomes da música estrangeira não apenas
chegassem depois no cenário local, mas ficassem por mais tempo gozando do status de ícones
ao cenário rockeiro soviético, do que o aconteceria em outras regiões da Europa Ocidental ou
da América do Norte. Nesse sentido, a ausência de mercado fonográfico nos moldes capitalistas,
também contribuiria nessa fixação, pois, um mesmo material não teria de ser reposicionado por
outro, como produto, periodicamente – ato exemplificado pelo músico, com a persistência, por
exemplo, da influência da T-Rex mesmo em meados dos anos 1980, ainda em alta no cenário
soviético, enquanto no Ocidente a banda estaria encerrada e reposicionada por outros nomes
consagrados, já nos anos 1970.
Por isso, sublinhadamente, maior a importância do registro dos Beatles na URSS
durante 1964, revelando a singularidade de um contexto onde por um breve período, os canais
de conexão no cenário bipolar da Guerra Fria experimentaram uma ligeira e incomum
simultaneidade, oportunizando um fluxo de trocas que levaria a que esses jovens soviéticos
experimentassem uma ‘onda’ recente de um fenômeno cultural estrangeiro, ainda durante seu
acontecimento – algo que, em geral, só ocorreria com tremenda defasagem temporal em relação
à situação Ocidental. A importância dessa momentânea sintonia para a possibilidade de
configuração de uma singular estrutura de sentimento do período (evocando o teórico galês
15CUSHMAN, Thomas. Notes From The Underground: Rock music counterculture in Russia; 1ª Ed. New
York: Editora State University. 1995; pp. 27-29; 258;285
25
Raymond Williams) é descrita como uma ‘atmosfera de comunhão pela música’ no depoimento
do ex-guitarrista do grupo Falcon, Yuri Ermakov (MAROCHKIN, 2011a):
[...] Nos anos 60 quando estávamos apenas começando, nossos rockeiros sentiam uma
relação íntima e orgânica com a comunidade internacional do rock. “Pensávamos –
disse Ermakov – que nossos ”Rolling Stones“ favoritos, eram irmãos na luta contra o
sistema totalitário. Em geral, a música não tem nacionalidade, nem fronteiras. Como, digamos, a marcha não poderia ser alemã ou russa, uma marcha é uma marcha em
toda parte. E [o mesmo com a] música rock! Não tem limites, mas se crescemos com
Chuck Berry ou “Rolling Stones”, não significa que sejamos britânicos ou
americanos. Apesar de tocarmos rock, éramos russos, sentíamos muito
conscientemente que estávamos aqui, na Rússia, e, claro, tudo isso levou ao fato de
quando começaríamos a escrever nossas próprias canções [...] [Tradução do inglês e
grifos nossos] À despeito do posicionamento pessoal de Ermakov quanto à questão de totalitarismo
(que melhor será esmiuçada mais adiante), cabe refletir sua impressão acerca do sentimento
estruturado, transfronteiriço, em torno do fenômeno do rock, a partir da perspectiva da
juventude e da comunidade musical da URSS. Por conta desse sentimento de comunidade com
os fenômenos em simultâneo – explicada por esse elo em comum de juventude e entusiasmo de
protesto – e além dessa rara possibilidade de canais abertos ao fluxo informacional, o senso de
estar-se num pertencimento à algo que transbordava à instituição soviética, sua fronteira e seu
processo de identificação, fazia criar uma espécie de sensação de deslocamento – evidenciada,
embora com senso de fraternidade e tributo, também com forte senso de demarcação da
identidade cultural local.
Também segundo o relato, devido ao incidente da fixação cultural, não apenas nomes
menores ao cenário rock do Ocidente ficariam importantes na circunstância soviética, mas ainda
se fariam maiores e mais importantes, àqueles que se haviam tornado lendas do lado Ocidental
– como na citação, os marcantes Rolling Stones e Chuck Berry, coetâneos e correlatos aos
rapazes de Liverpool.
Conquanto não se acredite tratar-se de uma unanimidade e sem o intuito de direcionar
uma interpretação forçada, apenas sendo fiel às fontes pesquisadas, em praticamente todos os
depoimentos analisados durante a pesquisa, de protagonistas locais, entre músicos e aficionados
da URSS relacionados com vulto, à década de 1960, constantemente nos excertos encontra-se
menção dos Beatles: nos relatos de Yuri Morozov (músico de Vladikavkaz, hippie e engenheiro
de som), Yuri Shevchuk (músico e artista plástico de Kolyma, Sibéria, radicado em São
Petersburgo e líder da DDT), Vladimir Salnikov (ex-músico moscovita em seu depoimento
acerca do grupo de rock soviético sessentista Skifh [Scythians]); Vladimir Marochkin
(jornalista e radialista russo), Andrei [Tropillo] (radialista leningradense e produtor musical de
magnitoalbomy), e conforme visto, nos depoimentos colhidos pelos jornalistas estrangeiros,
Pete Paphides (The Guardian, 2015) e Luke Harding (The Guardian, 2019), respectivamente
26
cobrindo os bootlegs sessentistas da URSS e o movimento hippie soviético, sem olvidar ao
próprio Yuri Ermakov (ex-frontman de um dos pioneiros grupos soviéticos, o Sokol [Falcon]),
que descreve, corroborando em outro depoimento, a importante colaboração transformadora
dada pelo fab four – em Marochkin (2011a):
Tivemos um ímpeto muito poderoso dado pelos Beatles – diz Yuri Ermakov. – Até
eles, depois que a cena do rock anglo-americano se construíra, ela fôra inteiramente
regida por outras leis, ela consistia em estrelas separadas, que exigiam tratamento para
si enquanto ídolos, e estavam terrivelmente longe do povo – todos esses, Neil Sedaka,
Paul Anka, Cliff Richard. E os Beatles mostraram que a banda de rock podia aparecer
a cada entrada. Então, havia todos esses The Searchers, Kinks, Spencer Davis Group,
Cream. Então aí estamos. Em geral, devo dizer que as tendências gerais da moda, da
música, são comuns a todo o mundo. Elas são capazes de superar quaisquer barreiras
ideológicas, elas não são capazes de conter-se sem paredes, sem censura. Claro, distintos países têm algumas diferenças, mas o charme e imagem dessa geração, em
regra, se fez único para o mundo [...] [Tradução do inglês e grifos nossos] A despeito das barreiras culturais e sua complexa percepção, por conta dessa fortuita
permeabilidade informacional entre as fronteiras políticas e ideológicas de cada sistema social
econômico da Guerra Fria, a qual trazia consigo do advento tecnológico de novas formas de
consumo musical e de produção de música, o rock se fazia não apenas conhecido, mas por uma
camada emblemática da URSS, também discernido em relação ao seu cenário de origem. Yuri
Ermakov, como já salientado, guitarrista e frontman da banda moscovita Falcon/Sokol, em seu
depoimento, não se limita a demonstrar como entre a população local houvesse substancial
possibilidade de discernimento fluente das ocorrências do cenário cultural europeu Ocidental e
estadunidense (obviamente, a uma exígua parcela privilegiada e segundo características
bastante particulares), mas também se delimita nessa percepção aos Beatles como reincidentes
na trajetória de influências locais, ao se apontar para a percepção, inédita até então, de como o
grupo de tornara mais próximo do público dos espetáculos, demolindo o cânone do artista
principal (crooner) solo, intransigente e soberbo, ao apresentar um comportamento que
subvertia o usual das estrelas da música Ocidental – predominado até então, pelo
distanciamento da plateia com uma aura de superioridade.
Entre outros fatores, essa aparente jovialidade que os Beatles deixavam transparecer,
somada com sua proximidade à faixa etária que os ouvia e seguia e sua empatia junto ao público,
transformaria o grupo em uma espécie de contraponto à tradição usual da música, que além do
ritmo, trazia como contestação pela atitude, o ato de desafiar nos modos, não apenas a sociedade
tradicional, mas o tradicional estamento do estrelato comercial: embora poderosamente
influentes, os rapazes de Liverpool pareciam acessíveis e a um passo de distância de seus fãs.
Inobstante, isso impulsionaria a que os fãs, vendo-se em familiaridade com seus ídolos,
se sentissem atrevidos a tentar a mesma forma de protagonismo realizada pelo jovem quarteto
britânico: ora, se eles podiam, será que não poderíamos nós também!? – seria esse o
27
pensamento de uma geração, ao ver com ineditismo, uma vanguarda musical não apenas
direcionada aos jovens, mas protagonizada por estes e com um comportamento que não era
adequado, pura e simplesmente ao estabelecido, mas que fazia o estabelecido (e o mercado),
paulatinamente, ao seu estilo adequarem-se.
Por ora, os Beatles ocupariam nessa análise relacional, um paralelo fundamental e
basilar ao estudo da vertente local desse fenômeno cultural da música. Deixando-se justificado
o quanto tenham comparecido e sido seminais à atividade em território Oriental, encerra-se o
comentário em torno dessa posição relacional, a fim de ir tratar do grupo com um olhar mais
específico, consoante o fato de que embora a banda traga consigo, não apenas elementos que
tenham caído no gosto e identidade locais da URSS, haja importantes considerações em torno
de sua fisionomia para com sua estrutura cultural de proveniência (música e cultura Ocidentais).
Considerações as quais, antes de quaisquer investigações em terreno alheio, devem ficar melhor
esclarecidas, por isso, a necessidade de debruçar-se em torno de uma noção mais sociológica
do rock ao redor do quarteto e da história transicional do ritmo na porção Ocidental.
1.2 UM INUSITADO ENSAIO DE ROCK: DA CULTURA OCIDENTAL À POSSÍVEIS
HIPÓTESES SOBRE A COMPOSIÇÃO DA CENA MUSICAL SOVIÉTICA
Tive a sensação de que durante toda a minha vida anterior, eu usava algodão nos ouvidos e, de
repente, ele foi retirado. Eu apenas senti fisicamente como algo dentro de mim estava se sacudindo e girando, se movendo, mudando irreversivelmente. Os dias dos Beatles começaram. Ouvindo Beatles
de manhã até a noite. De manhã, antes da escola, imediatamente depois e até as luzes se apagarem.
No domingo, ouvia os Beatles o dia todo. Às vezes meus pais, exaustos dos Beatles, me jogavam na varanda com o gravador, e aí eu fazia o som no volume completo para que todos ao redor também
ouvissem os Beatles ...
Andrei Makarevicz, músico russo, frontman da banda Machina Wremenyi16
Quem quer que observasse em seu início a fisionomia do rock e aquilo que seriam suas
consequências genealógicas e de cenário na cultura, jamais poderia imaginar o tanto e quão
distantemente atingiriam. Com uma árvore genealógica mais capilarizada e distinta em
disparidades estético-sonoras e estético-fisionômicas do que qualquer outro fenômeno da
música, o rock se apresenta como um formidável bizarro, cuja fisionomia é encantadoramente
confusa e, simultaneamente, nos detalhes, palatável e familiar a muitas culturas. Uma menção
que muito bem descreve o rock, vem da percepção de dois baluartes dentre o fenômeno musical
na URSS, um o líder do grupo Akvarium (Leningrado), icônica banda de rock local surgida em
16MAKAREVICZ, Andrei. Всё очень просто... [Trad. Livre: É tudo simples...] Рассказики - Андрей
Макаревич [Histórias; Andrei Makarevicz]. Dispnível em:
http://shevkunenko.narod.ru/raznoe/razzakov2/glava194.htm. Acesso em: 24/06/2021
28
1972 – Bóris Grebenshchikov17 – que salienta como sua característica principal a energia, solar,
original, elementar e impulsiva, de força motriz, que se complementa na visão do outro, um
jornalista e radialista russo – Vladimir Marochkin (2011a), através de sua autointitulada
‘biografia criativa do Rock Soviético’: Everyday Life Of The Russian Rock Musician (Trad.
Livre: ‘Vida Cotidiana do Músico de Rock Russo’) – argumentando sobre a presença dos
elementos de plasticidade do ritmo, facilmente amalgamável a outros elementos. Segundo suas
opiniões, talvez seja o rock essa passionalidade furiosa e gregária, que o torna terno e rebelado,
simultaneamente, e inspira, persistentemente, uma harmonia jovem e inconstante naquilo em
que, embora decano sempre inédito e em algum ponto, sempre próximo dos consumidores de
música.
É a partir dessa amalgamar-se e plasticidade em diferentes cenários, que se busca
empreender o esforço de delinear aquilo que tenha sido o fenômeno em terras soviéticas.
Em relação a isso, do precedente originário estadunidense, destacaria-se a história de
seus principais semblantes influentes, tais como Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry e
James Dean – inescapavelmente, icônicos. A seguir, subversivamente, artistas jovens que
puderam protagonizar o uso do velho sistema, até certo ponto, para operar segundo suas
características de juventude – figurando nisso, os Beatles.
Assim como fariam os jovens soviéticos um momento depois, os garotos de Liverpool,
seriam precursores em, progressivamente, afastarem-se do modelo originário de influência.
Situados em uma geração que trazia na bagagem os anseios da juventude da década anterior
(1950), fariam da ‘permissão de ser jovem’ uma exigência durante os anos 60, pleiteando assim
seu reconhecimento. São evidências que ilustram tal afirmação que, no mundo onde os Beatles
seriam ponta-de-lança de um fenômeno musical, despontaria a jovem modelo Twiggy, com sua
silhueta grácil, mais ao estilo de uma suave Audrey Hepburn do que a robustez das
fisionomicamente maduras estrelas do cinema (como Sophia Loren e Marilyn Monroe, ou a
17MAROCHKIN, Vladimir. Everyday Life of the Russian Rock Musician. BORISOV, Alexey. KORNEV, Oleg;
Shum.Ru Experimental Music In Russia. 2011a. Disponível em: <http://shum.info/index/vladimir-
marochkin/vladimir-marochkin-everyday-life-of-the-russian-rock-musician/>.
29
pin-up Betty Page), rescaldos do movimento beatnik18 e do Pop Art19 (com suas concepção
estética provocante), a revolução fonográfica (esboçada com o advento dos Hi-fis)20 e a
explosão da chamada indústria cultural, que assumia como fatia importante um segmento de
consumo voltado para os jovens (HOBSBAWM, 1995). Surgia nisso, uma afirmação da
preferência pela estética juvenil, tendência, onde não mais ser jovem significava ter de se vestir
ou parecer, precocemente, com os modelos adultos de fisionomia – mas sim, afirmar-se em uma
fisionomia juvenil e adolescente, desafiadoramente, ostentada.
Sinalizava-se com isso a migração consolidada do rock estadunidense para o
conturbado cenário britânico – em direção da fúria juvenil do movimento angry men mob, que
se impregnava no cinema e cultura musical das cidades britânicas, culminando no surgimento
de um novo rock, mais insolente e de vertente mais de nicho – embora, ainda sobejamente
explorado pelo mercado cultural fonográfico21. Outro fator importante, é que embora fossem
‘comissionados’ os integrantes dessa nova onda, logo gerariam um rebuliço na composição
desse quadro social standard previsto pela indústria fonográfica, pois como o fora com o jazz
18Movimento artístico e literário estadunidense, caracterizado pelo antimaterialismo, uma postura de vanguarda
nas artes e uma revisitação do cânone estético monumental Ocidental. Capitaneado por escritores como John
Clellon Holmes, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, entre outros expoentes, o movimento refletia em torno do estilo
de vida consagrado pela sociedade norte-americana e de como uma antítese dos costumes baseada na iniciativa de
desafio e desapego à instituição social de realização da vida (conseguir um emprego, estabilidade, sonhos de
consumo), constituía em forma de autorrealização e propunha uma forma de (re)contato com o idílio do lazer e da
experimentação artística (saraus literários, vida boêmia e fuga da consagração ‘sob os holofotes’). O movimento
é datado em início ao ano de 1948 e estendeu-se, com ênfase, até os anos de 1960, tendo sua terminologia no
sufixo beat associada a característica da sociedade compreendida nessas duas décadas (beat, em inglês quer dizer
bater; uma geração que encontrava seu caminho batendo de frente com o estabelecimento, mas de forma sutil na batida dos novos ritmos culturais e musicais daquele momento). Credita-se o nome Beatles, da famosa banda
britânica de Liverpool, a uma junção do descolado termo (beat) com a palavra besouro (beetle), criando um
trocadilho sonoro que demonstrava o espírito jovem e filiado a essa perspectiva de vanguarda artística. Fonte:
PHILLIPS, 1995. Op. Cit. 19Artistas plásticos como Andy Warhol e Roy Liechtenstein, figuram entre os protagonistas dessa ruptura nas artes
ocorrida nos anos 50, trazendo influências, atitudinal e esteticamente inovadoras. A partir de experimentos
estéticos de uma ousadia duvidosa, divisora de opiniões, arregimentando nesse turno dos elementos de imagem
acessíveis ao grande público (justamente, retirando-se de personalidades conhecidas e de caracteres do design
publicitário, dos produtos e da própria identificação popular com o aspecto estético simplório/estilizado da
propaganda), matizariam a composição gráfica de suas obras e caracterização de seu conceito. Obras como a
afamada pintura da lata de sopa Campbell (Campbell Soup Cans, de 1962) ou as reproduções matizadas de Marilyn
Monroe (Marilyns, de 1964) – ambas de Warhol – bem como as cenas quadrinísticas (de HQs) em tomada focal – como Girl With Hair Ribbon, de 1965, de Lichtenstein – trariam uma desconstrução do erudito face ao popular e
subverteriam o cenário estético com uma resposta ao padrão embalado de conceitos de arte publicitária. Sua crítica
estaria focada na percepção de que o cenário de cultura de massa incidia em consumo, trazendo a partir de sua
proposta estética provocante, uma forma de posicionamento crítico. Fonte: HOBSBAWM, 1995. Op Cit. 20Referência aos aparelhos de música High Fidelity (Alta Fidelidade), contendo toca-discos e rádio embutidos. 21Como é notório, os Beatles, assim como outras bandas do cenário britânico e estadunidense, seguiam o esquema
de contrato com as gravadoras e utilização de estúdios do circuito comercial fonográfico. A citar em sua carreira,
a Polydor Records, a EMI, a Apple – entre outros nomes. Quanto aos estúdios, ao longo da trajetória utilizariam-
se de vários eventualmente, mas o que teria maior destaque seria o de Abbey Road, cuja incorporação ao ethos do
grupo, dadas suas gravações no local terem ocorrido mais frequentemente e emblematicamente, levariam a que o
atribuíssem como título do álbum de 1969.
30
anteriormente, muitos de seus integrantes como Chuck Berry e Little Richard, eram afro-
americanos, num país ainda muito segregacionista e preconceituoso com as populações negras,
hispânicas e nativo-americanas.
Embora com contornos mais modestos, os jovens soviéticos experimentariam dessa
revolução de costumes no princípio da década de 1960 – fruto da admissão pelo secretário-
geral, Kruschev, de medidas políticas e sociais modernizadoras (reformas). Enquanto os Beatles
compartilhavam caracteres com a esguia Twiggy (em ternos de corte justo e cabelos cortados
ao estilo ‘colegial’), a juventude soviética assistiria o congraçamento com o Festival
Internacional da Juventude e dos Estudantes, a partir de 1958. Enquanto o fab four se afastava,
demarcadamente, das feições dos chamados band leaders em suas orquestras, as big bands,
partilhando nisso do apelo provocante de artistas afro-americanos como Little Richard e
Esqueritas, ícones do rock nos EUA, a juventude de moscou passava a conhecer calças jeans e
a imagem desconhecida do ‘temível’ Ocidente.
E se num meio termo eficaz, a aparência inicial dos rapazes de Liverpool seria
suficientemente aceitável para convencer a aprovação ao mundo tradicional de produtores de
televisão e de discos, bem como conciliariam ainda certo ar familiar (aos olhares de pais
conservadores), enquanto tenuemente rebelde (aos olhares dos jovens), sua performance se
tornava aposta convincente ao mercado e, dentro em pouco, verdadeira febre dentre a juventude.
Enquanto na URSS, o tom da modernidade, não apenas com produtos ou performances se
desenhava: mas com os avanços acompanhados da Revolução Tecnológica Aeroespacial. Por
este motivo, por muitos aspectos, o sentimento vivido era de uma afinidade momentânea na
Modernidade, onde as grandes potências da Guerra Fria, cediam ao protagonismo de seus
jovens.
Há que se recordar, também, outros artifícios arrojados do quarteto, que o fariam
estreitar-se à URSS: sua aparente acessibilidade, proveniente desde o linguajar (com gírias)
mas de sua postura de palco. Em demonstração prática dessa atitude, cabe recordar o relato do
músico e pioneiro do rock (pelo grupo Falcon/Sokol) na Rússia Soviética, Yuri Ermakov ao
lembrar que: ‘a cena do rock anglo-americano [...] consistia em estrelas separadas, que
exigiam tratamento enquanto ídolos, e estavam terrivelmente longe do povo [...] E os Beatles
mostraram que a banda de rock podia aparecer a cada entrada22 – essa acessibilidade do artista
ao público, seria completada no uso coloquial da língua, como em Love Me Do (do álbum Please
Please Me, de 1963) onde, por exemplo, os Beatles se utilizariam de uma linguagem
22MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.
31
gramaticalmente errônea, propositadamente23, para aproximar-se ao jeito real da fala entre os
grupos juvenis e de uma metáfora (em que se sugere que amor não faz julgamentos, comete
equívocos, exageros, extravagâncias). Essa atilada percepção, faria ressonância, evidentemente,
em países anglófonos, tornando restrita sua captura. Porém, ao embalar a atitude com a
sonoridade contagiante, em performances alegres e sinceras, se comunicariam universalmente
com a circunstância dos demais jovens do planeta – sem requerer tradução.
Sua ousadia pela inovação e sua inovação pela ousadia, refletindo a plasticidade própria
do rock, se transformaria em espécie de elemento agregador em diferentes culturas – como no
caso, da Ocidental (estadunidense e britânica) para a soviética – muitas vezes, como visto ao
longo da pesquisa, sequer necessitando-se entender uma palavra do idioma descrito para
contagiar-se por seu clima provocante.
É claro, sensatamente, há que se situar muito bem, as características oportunizadoras
dessa ocorrência: as sociedades urbanizadas industriais – que na própria Rússia soviética,
delineada por um boom urbano situado no princípio da década de 1960, simultâneo a um surto
de consumo e oportunidade tecnológica de informação, bem como vinculado ao relaxamento
das tensões em relação à censura interna, e em relação ao Ocidente24. Sublinha esse fator, que
considerando regiões menos urbanas, mais agrárias e tradicionais ao cenário local, diminuiria
a possibilidade de penetração desse fenômeno cultural. O que aliado a toda uma diversidade
cultural-social encontrada dentro da Rússia (apenas institucionalmente reunida sob a Nação
Soviética), permitiria apenas alguma comunicabilidade substancial do fenômeno no Bloco
Oriental e diferentes matizes de resistência.
Quanto ao típico indivíduo apreciador do rock na URSS, pode-se dizer que seria sujeito
jovem urbano, em busca por diferenciação e ineditismo e com alguma possibilidade de alcance
cultural mais amplo (camada acadêmica), figurando eventualmente numa posição confortável
junto ao acesso às estruturas oficiais do aparato (filhos/parentes de integrantes da classe
diplomática e de membros da administração).
Chegando-se nisso a mais uma importante consideração: a que concerne ao sentido
musical dos Beatles na musicalidade local. Se por um viés Ocidental, a continuidade se daria
23Onde a colocação pronominal inglesa correta seria Love Does Me (trad. livre: ‘o amor me faz’), onde Love é um
sujeito na frase, regulado pela terceira pessoa (impessoal, de coisas) com o pronome It; portanto, acompanhado de
flexão do verbo to be nessa terceira pessoa (does) e antecedente ao pronome pessoal na primeira pessoa do singular
(me). Fonte: GOMES, Elaine de Almeida. The Beatles: Letras e Canções Comentadas. 1ª Edição, São Paulo:
Lira. 2004. 24Conforme: SIEGELBAUM, Lewis. 1961- Krushshevs Slums. Seventeen Moments of Soviet History: An
online archive of primary sources (2003). Disponível em: <http://soviethistory.msu.edu/1961-2/the-khrushchev-
slums/>. Acesso em: 10/07/2020.
32
por uma identificação, ao considerar familiaridade linguística e etária, também sustentada em
canções cujos conteúdos amadureceriam junto ao próprio crescimento de seus apreciadores, tal
fenômeno de continuidade, seria explicável por outros fatores na banda Oriental. No polo
soviético, uma continuidade do grupo enquanto identificação seria também verificada, mas por
conta de haver uma fixação cultural (CUSHMAN, 1995), conceito pelo qual, da defasagem de
reposição do produto musical estrangeiro na URSS, em relação ao ocidente, nomes que já
figurassem obsoletos na porção Ocidental, ainda ali, fizessem muitos adeptos e permanecessem
por mais tempo como elemento icônico.
Não obstante, o selo do ecletismo do grupo – que tão bem metaforiza com o rock n’ roll
– pode ser verificado em seu trânsito temático, do ‘comportado ao psicodélico’, que dialogaria
diretamente com os anseios de uma juventude soviética que passaria por mudanças entre o
Degelo e a Era Brejnev. Assim, dos temas de conflitos geracionais e de amores, sexuais ou
melancólicos de adolescente, para tomadas de atitude mais revoltadas, recheadas de discussão
política e protesto contra as tradições da ordem estabelecida, os artistas e seus admiradores
estariam dialogando com seus cenários em transição.
E por tudo isso, considerando as estruturas erigidas em meio à essas transições, busca-
se reconstituir os mecanismos relacionados à cultura musical e parte das tensões que
antecederam a oportunidade do rock soviético, para que durante sua abordagem propriamente,
se consiga perceber continuidades e transformações que demarcariam fases em sua trajetória.
Por esse exemplo, considerando-se avanços produzidos durante a administração stalinista
(conforme KELDICHA, 2000), encontra-se muitas das possibilidades materiais de produção e
circulação, das quais se favoreceria a produção cultural e musical nas décadas seguintes (e das
quais o rock se utilizaria para acontecer). Mais do que isso, ao recobrar parte dessa realização,
recobrando tradições e recursos técnicos, perceber a produção da indústria cultural da música
soviética como ferramenta robusta, afasta a pretensão de se conjecturar a ausência de
possibilidades técnicas na porção Oriental – afastando pretensas opiniões que deponham os
êxitos de sua autonomia tecnológica e cultural. Outro entendimento, busca desmistificar que,
embora marcada de precedentes de censura, sob monitoramento constante de órgãos estatais,
não se tenha oportunizado sua grande realização criativa, enquanto utilização fundamental de
vanguarda na educação popular, acadêmica e ideológica locais.
E com esse mesmo olhar se procedeu a análise dos demais períodos, com vulto, a linha
de tempo coberta entre 1961 e 1982, situada como cenário de importantes mudanças, dentro
das quais o rock na URSS transitaria, se assentaria e se sovietizaria com diferentes arranjos em
relação ao seu entorno interno e exterior. E para isso, o estudo das condições materiais à sua
33
possibilidade e circulação passariam por entender parte das estruturas envolvidas nesta
sociedade planificada.
Afastando a contradição sustentada de que a própria estrutura forneceria por seus meios
a oportunidade à uma produção alternativa, observa-se que para ela acontecer e ‘distorcer’ sua
função original (de serviço ao estado), teria de estar presente um elemento de agência –
conforme Thompson (1987). E a agência importa em atores. Portanto, ao considerar a agência
popular dos indivíduos locais em possibilitar o rock soviético, teria-se de levar em consideração
suas características, seu ânimo de ação (seu ímpeto de gerar materiais de rock, produzindo-os
e repassando-os) somado à um domínio técnico (condições de tecnologia voltadas à finalidade)
– tudo isso que já ali presente. Para isso, voltando o olhar as tradições e as impressões dos
relatos, pode-se depreender parte dos sentimentos ali envolvidos e as expectativas que se tinha
em jogo, em relação à estrutura e as mudanças que a suceder.
Recobrando uma dessas formas de agência e seu sentimento correlato, os chamados
samizdat – publicações clandestinas distribuídas em redes paralelas ainda no século XIX –
pode-se perceber que o recurso de circulação alternativa de ideias, movido por um espírito
contraventor, não se inauguraria a partir do rock. Pelo contrário: este emprestaria daquele.
Desconstruindo as afirmações que busquem situar o fenômeno como um elemento exclusivo da
manifestação popular local. Nesse ínterim, do domínio técnico alcançado na segunda metade
do século XX, proporcionando fitas, gravadores à essa ainda presente manifestação residual de
cultura (segundo WILLIAMS, 1969), o alcance de repercussão dessa possibilidade de
manifestação (agência) local, ganharia novos contornos – sendo o suporte material da
tecnologia, como recurso, tão importante de se investigar quanto o da atitude de sua realização
(através do rock). Segundo Williams (1969)25, a despeito de um suporte técnico empregado,
através de desvio, como suporte às práticas do rock na URSS, sua dependência das tradições já
presentes de circulação e produção cultural clandestina seria fundamental (como demonstrado
no caso do samizdat, que se tornaria em magnitzdat). E tal presença de práticas arcaicas
entremeadas na produção cultural tradicional (precisamente à Rússia) ligada a distribuição
direta através de indivíduos (village culture, segundo Cushman, 1995; p. 41), sub-reptícia e
realizada artesanalmente, seria uma própria manifestação residual de cultura – ocorrendo em
paralelo ou entremeada à indústria cultural tradicional da URSS, em menor proporção em
relação ao grande estamento da cultura institucional (MENDONÇA, 2008)26. Sendo-lhe o rock
25WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional.1969. 26MENDONÇA, Luciana F. M. Culturas Populares e Identificações Emergentes: Reflexões a partir do manguebeat
e de expressões musicais brasileiras contemporâneas. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 82. Centro de
34
soviético tributário, em método e tradição contraventora, posto que perpetuado através de
comunidades de apreciadores e metodologias de produção artesanal retomadas, um exemplar
importante desse conceito em relação à 'grande' cultura (musical) institucional soviética em
curso.27.
A esse ‘segmento alternativo’ importaria, numa consideração de proporção cultural
dentro da sociedade, uma manifestação de subcultura. Por subcultura, segundo Milton Gordon
(1940), se entenderia uma manifestação de cultura em ocorrência dentro de uma margem de
cultura maior, onde, em outras palavras, a ordem cultural majoritária em curso na URSS seria
a ocupada pela presença da cultura soviética estatalmente orientada e seguida pela maioria da
população. Enquanto que o rock, bem como manifestações menores em proporção de outros
elementos dentro dessa cultura, embora legítimos em sua existência, não se servissem, de início,
a prestar como exemplos ou modelos de cultura mais característicos dentro dessa atmosfera
social. Portanto, se o rock existira e até se utilizara dos meios de produção (por desvio) presentes
na estrutura soviética, ainda assim, ele – de início – não seria suficiente a representá-la.
Outro ponto, é esse que se relaciona com a característica de ‘comunicativa’ da agência
empregada pelos indivíduos em sua forma de ‘correspondência cultural’. Recordando à E. P.
Thompson28, onde o desvio de uso de um meio de produção ou ferramenta, ou mesmo de um
conhecimento, comunicam impressões em comum de uma sociedade onde os indivíduos
encaram a tremendas transformações. Nesse sentido, emprestando do exemplo trazido em As
Sociedades de Correspondência (em A Formação da Classe Operária Inglesa, 1987) mesmo em
considerando períodos e sociedades diferentes, o exemplo dos trabalhadores ingleses que
passavam a ser evangelizados no credo Protestante, no século XVIII, ofereceria um padrão de
análise interessante à compreensão do rock na URSS. Conforme Thompson, a exigência técnica
de profissionais alfabetizados, mais sofisticados, para poderem trabalhar na linha de produção
que se industrializava, seria uma necessidade à indústria, mas também passaria pelo interesse
de setores ingleses ligados à religião (Protestante), na captura de fiéis.
Desse quid pro quo, trabalhadores que seriam alfabetizados para conseguir ler a Bíblia
– favorecendo a um interesse alheio, que interessava às cúpulas desse segmento religioso –
passariam a dominar a ferramenta da leitura e escrita, cuja finalidade inicial seria a de poder
ingressar num moderno setor de produção fabril, mas cuja amplitude de aplicações, poderia
Estudos Sociais- CES. Universidade de Coimbra. 2008. pp. 85-109. Disponível em:
<https://journals.openedition.org/rccs/622/#ftn13>. Acesso em: 22/07/2020 27MENDONÇA, 2008. Op Cit. 28THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Volume I. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987.
35
uma vez adquirida, redundar em finalidades diversas daquela inicialmente pretendida. O que
fatalmente aconteceria, quando um momento depois, esses mesmos trabalhadores ‘letrados’,
passariam a utilizar desse saber para a produção de panfletos e sociedades de correspondência
trabalhista (futuramente, socialista).
Essa ‘rede de correspondentes’ disseminadores, produtores, aficionados em torno do
rock se ‘corresponderia’, tanto no gosto, um sentimento de entusiasmo em torno do rock, quanto
a prática – ao oportunizar a materialidade da produção alternativa. Utilizando o mesmo
raciocínio, a sociedade industrial soviética (um exemplar de sociedade da informação, segundo
CUSHMAN, 1995) atuaria em correspondência, apesar de Socialista, tecnologicamente e em
valores ideológicos de progresso e ciência, com as demais sociedades da informação
contemporâneas – mesmo a de seu opositor, os EUA. Sendo assim, possível o elo de
correspondência entre a circulação de mídias naquele momento.
Outro reflexo dessa característica das sociedades da informação, seria a que – como em
Thompson (1987) – ao emancipar seus cidadãos com o conhecimento, voltado a prepará-los,
com aporte técnico, para uma utilização pela economia local (pela indústria, ciência) e na
protuberação dos valores ideológicos do Socialismo (sofisticação da sociedade), ofereceria,
simultaneamente, os meios para que conseguissem criar ‘distorções’ de uso para essas
capacidades – demonstrando, tal e qual os trabalhadores ingleses do exemplo, que a autonomia
dada pela emancipação, através da agência, poderia tornar-se produtora de subversões a esse
sistema (tais como o seu uso para o rock n’ roll).
Da manifestação de cultura residual à agência, delinearia-se uma autossuficiência local
no provimento de elementos a existir, resistir ao estabelecimento ou contrapor-se a quaisquer
vanguardas ocasionais estrangeiras – onde o rock na URSS, por conta de uma ‘memória do
sangue’ (MAROCHKIN, 2011a) teria suas percepções próprias, apesar da influência
estrangeira. Desse modo, como bem lembrariam os rockeiros locais na russificação do ritmo
Ocidental, haveria mais elementos de resistência local por serem recobrados e tributados ao
fenômeno russo-soviético do rock, do que ao rock, produto cultural estadunidense,
propriamente dito. A própria admissão pela russificação, já se demonstrava a linhagem de uma
trajetória muito ciosa em manter seus costumes e características arraigados, em dar seu jeito às
coisas trazidas/ingressadas do exterior. Na URSS, não seriam os jovens soviéticos que
encontrariam o rock, seria o rock que encontraria com essa fascinante juventude. Uma
juventude que não estaria passiva diante de influências exteriores, produto de uma tradição
acostumada a não aceitar, pura e simplesmente, novos pretensos elementos influenciadores. Ao
menos, não os aceitando sem fazer importantes modificações de assimilação. Conforme
36
Mendonça (2008):
Um aspecto a chamar a atenção nestas considerações é o que Galinsky chama de incorporação crítica das tradições, qualificação que se justifica pelo fato de diversas
bandas ligadas ao movimento [...] integrarem os elementos tradicionais
contextualizando-os no tempo e no espaço [...]. Assim as formas musicais resultantes
da mistura escapam ao pastiche e à paródia, recursos habitualmente utilizados nas
manifestações de produção cultural dita pós-moderna.
Contudo talvez a definição do retorno ao tradicional pelo moderno como paradoxal
seja tributária de uma concepção do popular como algo original e pouco aberto à
transformação e ao diálogo intercultural [...] Também em leituras que enfatizam o
vínculo entre produção musical e classe social (na concepção marxista), a
incorporação de influências estrangeiras, quando não correspondem às condições
materiais de existência de uma determinada classe, pode ser encarada como heteronomia [Grifo nosso]29
Se um século XIX de literatos e pensadores políticos, havia feito explodir uma revolução
de caracteres sem precedentes na história humana, de uma hora para outra não estaria sumido
o mesmo potencial de contestação, ainda presente, nestes filhos e filhas da cultura local. Onde
o rock, portanto, não seria um estandarte de vitória da influência estrangeira, mas apenas o
pretexto dessa juventude, para uma nova forma de insurgência face o estabelecido, institucional
e esteticamente falando30. Indo contra o institucional ideológico, por vezes, da própria URSS,
contra sua forma de produção artística e simultaneamente, indo contra o modelo sartorial da
indústria cultural Ocidental estadunidense, pela qual o rock viria embalado até se tornar objeto
de consumo, pura e simplesmente. De modo diverso, os jovens locais desempacotariam esse
rock e o misturariam ao tempero local, até criando uma reprodução do original de início, mas
mais adiante, uma reconfiguração do sobredito produto: em um totalmente novo e singular
fenômeno de cultura. Seriam elas, recobrando as fases do movimento, que autenticamente
estabelecidas por seus atores (e não pelo estabelecimento): num primeiro momento, a de caráter
universitário; num segundo, a de características underground; e num terceiro, o bard rock.
Tais manifestações, atuando como ponto de transição que os colocaria, aí sim, na
transformação em uma legítima contracultura: o posicionamento, enquanto grupo, de
desafio/divergência à cultura estabelecida, representando para além de seus códigos e sua
produção autotrófica, uma ruptura com o sistema cultural de inserção local.
Pode-se dizer, conquanto muito aqui se tenha esforçado em demonstrar, que o rock
Ocidental viria a alcançar esse status contracultural a partir da segunda metade da década de
1960, onde fica mais claramente evidente, a eclosão do movimento hippie da URSS (com seu
29MENDONÇA, 2008. Op. Cit. 30Recordando a Yuri Ermakov (MAROCHKIN, 2011): [O sentimento em torno dessa geração do rock] Não houve
limites, mas termos crescido com Chuck Berry ou “Rolling Stones”, não significava que éramos britânicos ou
americanos. Apesar de tocarmos rock, éramos russos, sentíamos muito conscientemente que estávamos aqui, na
Rússia, e, claro, tudo isso foi levado em conta quando começamos a escrever nossas próprias canções[...]
37
caráter pacifista e devotado ao retiro).
Como o rock Oriental, também seus ícones, The Beatles, seguiriam por três fases: da
cena rock inglesa (fase subcultural) ao mercado musical (cultura popular), até uma afirmada
contraventora (fase contracultural).
O rock, bem como os Beatles, seria também tributário de um momento econômico,
social e de inovação tecnológica – desde a indústria cultural de massa até o princípio
individualista de consumo, com a proliferação da guitarra elétrica e dos aparelhos de toca-
discos/ toca-fitas domésticos, até a cultura da gravação no vinil em detrimento de uma do
concerto (WALD, 2009), cuja profusão do mercado fonográfico, faria alcançar as fronteiras
soviéticas. Sob quaisquer das hipóteses, enfim, há que se considerar o rock em seu papel escalar,
fluido e transeunte, bem como ao grupo dos Beatles como um personagem fundamental desse
característico fenômeno de disseminação rockeira, cuja influência se tenha constituído
elemento marcante e distintivo do ritmo em matizes de cultura em movimento. Pondere-se, com
certa segurança, que seriam os Beatles, parafraseando Freud, em toda essa linha de eventos um
símbolo ‘fásico’ do rock – carregada toda essa rude afirmação, de sutileza crítica por sobre uma
infame constância gritante do ritmo: a de que durante boa parte do movimento o protagonismo
tenha acontecido associado, majoritariamente, sob um perfil bem delimitado – a do indivíduo
jovem, sexo masculino, em geral, residente urbano, por vezes europeu ou euro-influenciado;
tendo em integrantes masculinos, mormente, seus principais apreciadores e protagonistas, e
apenas eventualmente, constando de expoentes femininas – numa iconografia de reprodução da
masculinidade, andro-orientada e excludente, muitas vezes, de protagonismo feminino31.
Fechando as pontas dessa discussão encetada com as provocações de outrora, após
observar-se os Beatles e sua representação junto ao rock, cabe complementar-se alguns patentes
elementos até aqui revelados, em sua(s) fisionomia(s): nos costumes, o fenômeno é oriundo da
31Levando-se em conta nisso, criticamente, talvez tanta masculinidade seja fruto de fatores incidentais ligados à
lascívia sexual ou a agressividade, associadas à cultura masculina, sobretudo em sociedades patriarcais,
corroborado ainda por uma renitente agressividade/intensidade/imaturidade reincidente no estilo (algo que já
investigado por autores como KELLNER, 2015; FRIEDLANDER, 2002; WALD, 2009). Para fazer justiça a
existência de precedentes femininos no rock, com relevo, o do cenário Ocidental, comentando adiante de nomes
consagrados como Janis Joplin (intérprete de rock, jazz e blues, à década de 1960) e Joan Jett, líder dos Black Hearts na década de 1970, cabe citar um grupo feminino que também proveniente de Liverpool, integrante do
movimento MerseyBeat (o mesmo que originaria os Beatles), e que já em 1964, teria uma formação exclusiva de
meninas (jovens de dezesseis anos), num quarteto musical chamado The Bikinis. A heurística em torno de grupos
como o referido e sua obscurecida presença no modelo industrial cultural em sua macro-escala, é motivo de
inúmeras reflexões e controvérsias, mas, ao momento, serve esse exemplar a suscitar a percepção de, ‘se de fato,
não tenha havido tantas mulheres protagonistas no rock’ (dadas muitas das suas restritivas características), ou ‘se
somente tenham sido invisibilizadas ou preteridas durante a ocorrência do fenômeno’ (que ficaria, em geral,
setorizado por um protagonismo masculino dominante). Fonte: Nostalgia Central – The way things used to be.
Nostalgia Central. Disponível em: <https://nostalgiacentral/music/music-genre/merseybeat>. Acesso em:
22/07/2020
38
sociedade industrial, da economia e da circulação de informações, situado na primeira Guerra
Fria; como cultura num circuito comercial (do popular ao subcultural), um pródigo do mercado
fonográfico; e num sentido de superação momentânea de seu circunstancial alinhamento
mercadológico sartorial, ao guinar-se o rock, mais e mais por sua atitude de desvinculação e
menos por uma imbricação à indústria cultural, a aquisição de seu status como contracultural.
O qual, muito ardilosa ou convenientemente, voltaria a ser motivo de controversos refluxos
com o advento da profissionalização dos seus músicos experimentais na década seguinte.
Tendo isso por dito, no que tange à perspectiva do fenômeno em terras soviéticas (e em
sua reconfiguração local) no mesmo período, também se pode considerar de um esboço de
fisionomia. No intuito de recapitular alguns aspectos já observados, do rock soviético
sessentista – que seria por lá chamado, na verdade, de bigbit32 – se pode notar inicialmente
que: tenha se originado no Degelo (Era Kruschev: 1953-1964), sua paisagem sonora
(predominante) tenha sido urbana (em Moscou e Leningrado), tenha possuído um princípio
dicotomizado (pelo canal de privilegiados filhos de oficiais e diplomatas; público do gosto33,
juntamente a manifestações, separadas e simultâneas, com outros grupos de indivíduos
populares que na produção clandestina; roentgenitzdat34), integrava o circuito jovem, escolar e
universitário (cultura do gosto35).
De Brejnev em diante, por sua vez, possuiu um princípio seishnov36 (de apresentação
[concertos], mais do que gravado ou veiculado por meio mediato [proibição de acesso]), que
inicialmente tenha sido estritamente reprodutivista (versões de canções de bandas ocidentais) e
após passado por uma assimilação local caracterizada (russificação37), alcançou uma
bifurcação: de um lado, cooptado pelo sistema de produção estatal; e de outro, entremeando-se
aos fragmentos da circulação e produção disponíveis, uma manifestação underground (relações
na clandestinidade, com contrabando e samizdat, organizando-se em comunidades eletivas38
por meio de produção alternativa, mas também realizado com algum suporte da estrutura
proporcionada pelo Estado). Até alcançar, próximo ao final da gestão do mandatário, a
característica de bard rock39.
32MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 33CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 34PAPHIDES, 2015. Op. Cit. 35CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 36MAROCHKIN, 2011a.Op. Cit. 37CUSHMAN, 1995. Op. Cit 38CAILLOIS apud CUSHMAN, 1995. Op. Cit 39Idem.
39
O rock soviético ao longo do período coberto (1961-1982), dotaria-se
predominantemente das características próprias de uma subcultura – nicho cultural em relação
à cultura estabelecida. Suas estruturas de realização passariam pelo suporte técnico fonográfico,
utilizado subrepticiamente ou sob eventuais concessões; intermédio pessoal (gerenciadores e
fiscais locais); instituições (ligadas a Juventude Comunista); e locais de apresentação (institutos
superiores e técnicos; escolas, estádios; estabelecimentos sob concessão estatal [cafés,
restaurantes, quiosques]).
E afinal, o que oferecem as características observadas até aqui para o escopo de análise
do fenômeno local: uma arquetipia suficiente a descrever-lhe ou apenas uma etapa sintomática
de suas possibilidades ao período e enquanto em sua primeira fase? Como a própria questão
aponta, há pistas e esclarecimentos para se confirmar e contrapor. E no sentido de responder tal
questão e dar complemento às considerações dessa perspectiva de análise, salutar uma breve
imersão no mundo político, social, cultural e econômico da União Soviética durante a década
de 1960, situando a heurística do trabalho em torno de personagens – principalmente, mas não
de modo exclusivo – oriundos da República Federativa Socialista Soviética da Rússia (de
Leningrado e Moscou) e em considerações referentes a momentos de trajetória a ela
relacionados, tanto anteriores (por exemplo, em que se investigando a estruturação da cultura
antes do Degelo de Kruschev, na Era Stálin), quanto posteriores (como das consequências desse
movimento durante a década de 1970, ainda sob Brejnev e no hiato entre a primeira e segunda
Guerras Frias, sucedidas da ascensão do rock soviético underground no cenário oitentista
através da Perestroika).
1.3- CONSIDERAÇÕES BREVES A UMA TRAJETÓRIA DO ROCK EM SEU INÍCIO –
DO MACARTHISMO A MCCARTNEY
Mas afinal, o que é o rock n’ roll!? Não há consenso – seria o mais prudente afirmar. Muitas
respostas vêm à mente quando a questão se apresenta, mas considerando-se a História e uma
pitada grave de política, talvez uma resposta seja mais específica. O rock é um legítimo filho,
rebelde, da cultura emergida nas sociedades industriais – enviesadas do ethos da Modernidade
Industrial (urbanização), do fenômeno da Indústria Cultural e o advento de inúmeras
tecnologias de mídia e consumo – durante a chamada Guerra Fria.
Também ela, a Guerra Fria, ausente de um consenso quanto à sua caracterização periódica,
a qual varia conforme a opinião dos historiadores, se do fim do conflito mundial em 1945 até a
Queda do Muro de Berlim, em 198940, ou se da firmatura dos pactos político-econômicos e
40HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 117.
40
militares das duas superpotências, a partir de 1947 (a partir da contraposição pública entre os
outrora Aliados, EUA e URSS, selada, respectivamente, com a edição da Doutrina Truman e
do Relatório Zhdanov 41 – sobre os quais se comentará logo adiante), até a dissolução do regime
soviético em 1991. Sobre as características do rock, retomando-o no introito dessa jornada, cabe
a consideração de um importante contribuinte, o jornalista russo e integrante do extinto
Laboratório de Rock de Moscou (existente entre 1981 a 1992) Vladimir Marochkin com a
seguinte proposição:
E o mundo do rock em 2003 completou 50 anos. O aniversário da música é celebrado
em todo o mundo, 12 de abril: em 1953, o dia em que Bill Haley em um baile no
Madison Square Garden realizou pela primeira vez seu famoso hit "Rock Around The
Clock". No entanto, no programa [guião da apresentação; repertório da noite de
apresentações] ele seria listado não como "rock 'n' roll", mas como "foxtrote".
E desde então, têm-se este rock – do lado lá, desde 1953; do lado de cá [Rússia e Leste
Europeu] desde 1961 – furioso e que reflete bem o resultado da disputa em curso sobre
o que seja o rock. Em primeiro lugar, os musicólogos o descreveram como a música
tocada na guitarra elétrica, com ênfase na parte forte. Essa definição estaria correta,
mas apenas para o início dos anos 60, [no caso russo-soviético] os tempos de big beat.
A evolução da música tem mostrado que é possível, por exemplo, formas sinfônicas
de rock, onde a distribuição de pontos fortes e fracos de partes do ritmo é bastante
diferente do original. E personalidades vívidas como o americano Frank Zappa, nosso
Sergei Kurehin ou o grupo iugoslavo “Laibach”, provaram que o rock 'n' roll pode ser
feito [também] da marcha, [ou a partir de] uma valsa de rock and roll.
Na verdade, a guitarra elétrica revolucionou a música. Porém, [não menos do que vemos] em grupos dos anos 70, como “Kraftwerk” [grupo experimentalista de música
eletrônica alemão], “Emerson, Lake & Palmer” [power trio progressivo britânico],
assim como muitos artistas disco, ou como hoje nos grupos, que vêm realizando um
estilo “techno” a todo custo sem guitarras, mas cuja música não se demonstra menos
fatal. Então, os musicólogos propuseram uma nova definição: música rock – é algo
que tem uma base rhythm and blues [R n´ B]. Mas esta é, em princípio, uma afirmação
verdadeira em tempo determinado, prestes a tornar-se obsoleta, porque [já] nos anos
90 do século XX, haveria muitos músicos – escoceses, islandeses, chineses,
tuvanianos42, russos – que se substituíram completamente a criatividade do rythm e a
estrutura do blues pelo folclore nacional. Além disso, essas experiências já
começariam no final dos anos 60, quando o virtuoso guitarrista Carlos Santana substituiria seu blues pelo flamenco. E quem poderia afirmar, que mesmo assim nesse
começo, Santana não tenha sido rock!? [Trad. do inglês e grifos nossos]43.
As colocações e provocações do autor são importantes, mesmo que extrapolando um pouco
ao período inicial dessa análise da origem do rock. Em seu bojo, entretanto, encontram-se as
evidências sobre o estilo acerca de seu local de surgimento: os EUA, em 1953, protagonizado
pelo grupo The Comets do músico estadunidense Bill Halley e sua aparente inovação, colocada
do evento de sua ainda impassível classificação: atribuído nem como Rythm n ́ Blues, nem
41Ibidem. p. 132 42Relativo à província de Tuvan, berço de uma das múltiplas composições étnicas da Rússia. 43MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.
41
como rock propriamente dito, mas como foxtrot – considerando-se nessa precoce classificação,
um despreparo da crítica que perspectiva a tonalidade germinal de sua fase à época.
Tornando-se ao rock, especificamente, em relação a análise de seu período de origem,
brevemente, vislumbra-se que sua existência se tenha dado pelo produto de um elenco de
transições que localizadas na parte Ocidental, imbricariam-se a toda uma conjuntura de eventos
complexos e às singularidades e discrepâncias próprias da conjuntura estadunidense dos anos
1950.
1.3.1 Primeiramente, ao Macarthismo: ou entendendo o ‘palco’ da Guerra Fria com seu
quadro político econômico aquecido, a Bipolaridade e aspectos que fomentariam as
características de berço do rock
A segunda metade da década de 1940 seria tão decisiva na história mundial, quanto fora
a primeira. Se na primeira parte o mundo se via diante do enorme conflito da Segunda Guerra
Mundial (1938-1945), da vitória dos Aliados, resoluções teriam de ser tomadas para administrar
o que viria a seguir. À Europa Ocidental restavam escombros, com seu cenário tendo servido
de front e alvo em ataques continuados e seu povo tendo vivido grande parte dos impactos
bélicos e sociais decorrentes da guerra. Na Europa Oriental, não se encontrava situação muito
diferente, pois boa parte da detenção do avanço nazista, havia se dado pelo protagonismo da
atuação militar soviética, com o preço alto de muitas vidas dilaceradas no processo e o
arrasamento de sua estrutura urbana e econômica. Do lado estadunidense, no entanto, a guerra
não havia pisado materialmente, e embora se sentissem efeitos decorrentes da campanha militar,
a economia e a estrutura social continuavam adequadas, tendo inclusive, registrado-se avanços
durante os anos da guerra.
O Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA, cresceria, batendo a cifra de 85% de superávit
entre 1939 e 1945 e com isso, a economia gozaria de expensas para agir em possível socorro às
depauperadas economias europeias44. Em 1947, o Secretário de Estado estadunidense, General
George C. Marshall, proporia um plano nesse sentido, o qual incluiria empréstimos e doações
aos países afetados, com a troca de estabelecimento de parcerias econômicas com os EUA45. O
chamado Plano Marshall, seria posto em prática pelo presidente Harry Truman, o qual assumira
o cargo no lugar de Franklin D. Roosevelt, que falecera pouco antes do fim da campanha militar.
A ideia com o referido plano era de estabelecimento de uma integração econômica, no pós-
guerra, com um alinhamento ao capitalismo de chamadas áreas de influência, sob a orientação
44HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 45 45HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Stálin. Coleção: Os Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultural.
1987. p. 89.
42
estadunidense, evitando assim a possibilidade de alinhamento dessas ao modelo socialista
soviético46.
Como bons negociadores, os estadunidenses tentariam persuadir logo a zona de
influência mor nessa realidade, tentando um apelo que cooptasse a boa vontade do próprio
mandatário da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, outrora aliado Josef Stálin, a fim
de que aceitasse o esforço de cooperação. Entretanto, a URSS perceberia que ali se precipitava
o estabelecimento de uma aludida nova ordem mundial. Stálin vocacionava o esforço da
reconstrução, com recursos próprios, da União Soviética – utilizando-se para isso, do modelo
de gestão da década de 1930, anterior ao conflito, com a retomada dos chamados Planos
Quinquenais47 (sucessores da Nova Política Econômica48, que havia antecedido a fundação da
URSS, em 1922)49.
Em 1947, a percepção estadunidense do crescimento soviético, autônomo e influente,
culminaria com a chamada Doutrina Truman50, cujo princípio político e ideológico passaria a
afirmar a existência de uma aludida bipolaridade, apelando nisso, para a agenda ideológica em
torno da liberdade e da democracia: de um lado, figurando um pólo mundial provido de
democracia e propiciado pelo sistema capitalista, contraposto ao outro, um pólo autoritário,
munido do sistema socialista – colocando essas contraposições num alarde de batalha pela
liberdade do destino dos povos.
46HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 16; 48 47Os chamados Planos Quinquenais seriam a sistemática de planejamento e execução econômica sob o governo
do secretário-geral Josef Stálin (alçado ao posto em abril de 1922), a partir de 1928. Viriam em substituição ao projeto dos NEP (que haviam fracassado em suas expectativas), buscando retomar o controle da economia,
prejudicada pela luta interna Stálin-Trotsky, desencadeada por dissidências políticas sobre a construção do
Socialismo (visto por Trotsky, como de uma necessária Revolução Permanente, tendo de se espraiar pelo globo,
antes de consolidar-se; enquanto Stálin proporia a consolidação se desse em um país de cada vez, com o conceito
de Socialismo Em Um Só País). A partir da fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1922,
sob o comando do secretário-geral, a economia e a política se encaminhariam para uma recentralização, em que a
tese de Socialismo Em Um Só País sairia vitoriosa e culminaria no novo encaminhamento da administração local
e na expulsão, progressiva, de seus detratores. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; HOBSBAWM, 1995 48NEP; New Economic Policy, transliteração das medidas político-econômicas estabelecidas a partir de 1921; Essa
adoção político-econômica teria principiado com Lênin, no início da década de 1920 e consistia em medidas de
substituição ao Comunismo de Guerra (vigente durante a Guerra Civil de 1918-1920), a contemplar o emprego de
medidas de flexibilidade econômica às práticas do capitalismo, como forma de recuperar a economia depauperada pelos conflitos em sucessão (em retrospecto: a participação da rùssia na Primeira Guerra; a Revolução Russa e a
Guerra Civil). Dentre suas possibilidades, estavam permissões de comércio interno e salários, criação de empresas
privadas e empréstimos de capitais estrangeiros; cabendo ao Estado, por seu turno, supervisionar tais atividades e
gerir a economia, com controle de setores vitais, comércio exterior, sistema bancário e industrial de base. Para
facilitar essa centralização, estabelecia-se no mesmo período o unipartidarismo sob o escopo do Partido Comunista
(substituindo-se a denominação Bolchevique sustentada até então). Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987, pp. 36-
37 49HOOBLER, HOOBLER, 1987. Op. Cit. p. 85 50Seria durante a vigência da Doutrina, que seria criada a CIA (Central Intelligence of America; trad. livre: Central
de Inteligência Americana), principal agência de inteligência dos EUA cujo papel seria bastante protagonístico
durante estratégicos eventos da Guerra Fria.
43
Enquanto isso, a resposta à tal narrativa Ocidental viria sob Stálin, com o anúncio do
chamado Relatório Zhdanov (1947), um documento com pretensões semelhantes ao da doutrina
referida e que denunciando como real propósito da intenção estadunidense, a precipitação do
mundo em um novo conflito mundial. Simultaneamente, haveria com isso uma importante
estratégia junto aos países do Leste recém-aderidos, administrando-se toda uma sede captadora
de fontes de recursos, no sentido de obter, além do trabalho sincronizado das nações integrantes
do regime soviético, a aquisição de parceiros europeus orientais, sob o estabelecimento do
chamado Kominform (sigla de Komitet Informatsia, ou Comitê de Informações)51, o qual
organizaria esses novos agremiados através de metas e instruções comuns em boletins político-
econômicos emanados diretamente pela nova instituição, a partir do Kremlin. Esse processo de
integração seria coroado em 1949, pelo acordo conhecido por COMECON (Conselho de
Assistência Mútua Econômica), onde se proporia a criação de um mercado comum integrado
pela URSS e o Leste Europeu.
Stálin seria esse velho camarada, cuja intransigência ao alinhamento sob a doutrina do
capital obstaria a continuidade da aliança no pós-guerra, realizaria a reconstrução da economia
em sua agremiação de países (URSS), embasado em suas próprias metas, com a prospecção de
carvão, petróleo, energia elétrica, aço e maquinário, que levariam a que durante os Planos
Quinquenais de 1946-1950, a União Soviética fosse reconfigurando a robusta malha de
transportes, abastecimento energético, comunicações e indústria pesada. Outro importante pilar
da reconstrução nacional seria o investimento maciço na educação pública, que outrora
consolidada e expandida no princípio dos Planos, anteriormente à guerra, agora visava expandir
o conhecimento técnico e superior, a atingir a formação ainda maior de profissionais técnicos,
através da reconfiguração do ensino universitário nos institutos superiores – permanecendo
nisso, contemplar os já consagrados índices de erradicação do analfabetismo e a obrigatoriedade
da frequência escolar aos integrantes infanto-juvenis da sociedade soviética.
Não obstante, uma fronteira se estabelecia na questão ideológico-econômica do setor de
consumo soviético: se a produção de bens de consumo local (baseada majoritariamente em
artigos de vestuário, utensílios de uso diário, eletrodomésticos, entre outros) havia sido baixa
no período anterior à guerra (durante os dois Planos Quinquenais iniciais), no pós-guerra a
austeridade econômica e a retomada nos investimentos nas áreas de autonomia energética e
bens de produção (como maquinário pesado e de indústria basilar), levariam a que o mercado
soviético não fosse um parceiro muito agradável às pretensões estadunidenses, pois consumiria
51Segundo Hobsbawm (1995; p. 186), Departamento de Informação Comunista.
44
no limite do necessário, e embora fossem milhões de unidades em consumo, não haveria o
hábito do ‘comprar por cultura’ (ou uma cultura de bens de consumo como a incentivada no
Ocidente). E pior ainda: daquilo a ser consumido, majoritariamente, haveria seu suprimento
pela própria produção estatal – algo ‘intragável’ ao modelo em expansão protagonizado pelos
EUA, que se via obstaculizado em pretensões comerciais nos países aderentes ao estilo de
economia do regime socialista da URSS.
Nos Estados Unidos, que não teriam de passar por um processo de reconstrução, a
pujança financeira serviria como escopo à correnteza de sua ideologia de pujança de consumo.
Sairiam as armas e as exportações petrolíferas como prospecção principal da economia, para
entrar a produção e venda maciça de bens de consumo (utensílios para o lar, moda e brinquedos,
tecnologias de entretenimento/mídia, eletrodomésticos e automóveis)52.
Isso desencadearia na economia local, um crescimento vertiginoso do padrão de vida
médio. Assim, operários e integrantes da classe média passariam a adquirir bens de consumo
de massa (cuja produção cultural, desde a década de 1920 seria compreendida em indústria
cultural, e seu pólo consumidor, uma cultura de massa), ancorados em um padrão de
modernização social, em todos seus setores de produção, estimulados pela propaganda de um
estilo americano de se levar a vida – o afamado American Way of Life53.
Hábitos disseminados como a cultura televisiva, o consumo maciço de rádios e eletrolas,
o fast-food e a promoção do jeito americano, se somaria ao ingresso das famílias de classe
média que passavam a ocupar os subúrbios das cidades estadunidenses, criando um bolsão de
prosperidade que figuraria por algumas décadas. Enquanto isso, setores específicos da
população local, como imigrantes hispânicos e afro-americanos, encontrariam-se engrossando
o contraste social (segundo dados referentes à época, numa disparidade social econômica de
cerca de 25% dos integrantes desses bolsões de população figurando na linha da pobreza54).
52HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 54; 157 53O termo aqui utilizado, requer que se entenda, contextualmente, como um senso de estilo, modo e padrões de
vida e orientações político-estéticas e ideológicas, que também passaria por mudanças, Assim, por exemplo, o
American Way of Life dos anos 1920, ou ‘dos loucos anos 20’, com seu rebote às tensões da Primeira Guerra
Mundial e a conquista dos EUA como grande economia mundial (desde 1913), durariam como uma espécie de
‘transe de libertinagens’ para uma camada social beneficiária, que duraria até a Grande Depressão de 1929. Portanto, esse ‘jeito americano/estadunidense’, nessa época, não seria o mesmo que aquele encontrado no pós-
Depressão, onde o mesmo epíteto serviria a reagrupar sentimentos em torno da reconstrução da economia ao invés
do esbanjamento. Bem como, o mesmo se aplica ao ‘fenômeno’ logo após a Segunda Guerra Mundial, onde as
pretensões de vitória e o aceno (segundo HOBSBAWM, 1995) do prelúdio de uma duradoura ‘Era de Ouro’,
mesmo sob a Guerra Fria, demonstrava o percurso de uma estabilidade na bonança – algo que propiciaria alguns
dos elementos geracionais, àquele momento, para eclosão de fatores que desendeariam o rock (a partir dos anos
1950). A essas distinções semânticas do termo em questão, tentar-se-á colocar boas balizas durante a explanação,
mas, eminentemente, cabe-se atentar tratar-se de distintas conotações ao longo do trabalho, para não se
proporcionar interpretações equivocadas. 54Ibidem. p. 84
45
Tal e qual a riqueza estadunidense, essa recuperada União Soviética moldaria o destino
das próximas décadas com a figura respeitável de uma sólida instituição ideológico-econômica.
Se nos anos 1950, o projeto ia bem na Europa Ocidental, na Europa Oriental o avanço da
economia socialista que se recuperava rapidamente, sem adesão ao modelo do capital,
preocupava e urgia tomada de medidas locais (dos EUA) para contra-argumentar ao
Comunismo.
No seio dessa contenda, radicalizando em torno dos argumentos da outrora propalada
Doutrina Truman, um senador estadunidense, Joseph Raymond MacCarthy, anticomunista,
político pelo estado de Wisconsin, ex-militar e ideólogo conservador norte-americano, se
investiria da tarefa de patrulhamento ideológico e iniciativa persecutória a dissidentes locais
com inclinações socialistas – fisionomizando uma verdadeira caça às bruxas. A chamada
Doutrina Maccarthy – ou Macarthismo (também grafado, por vezes. Macartismo) – constituiria
sistemática perseguição de artistas, literatos, políticos e civis da sociedade dos EUA,
promoveria uma série de inquéritos judicialmente extravagantes (com auxílio, inclusive, do já
preteritamente estabelecido, Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas, criado em
1938)55, investigando possíveis infiltrados afiliados ao suposto regime opositor, bem como
demonstrações de conduta anti patrióticas evidenciáveis nos inquiridos. O sistema de
julgamento, o qual contaria com o revestimento da estrutura judiciária formal, trabalharia pela
intimidação e apontamento de culpados, e possíveis suspeitos (delações) para novas
investigações. De 1950 a 1955, a paranoia – difundida sob o epíteto de Red Scare, ou terror
vermelho – em torno dos avanços do Comunismo em terras ocidentais, geraria nos EUA a
expansão do chamado Macarthismo, marcando muitos setores da sociedade civil com o temor
de um estado de vigilância – amparado pelo próprio estabelecimento estadunidense. A doutrina
em questão, só seria paulatinamente dirimida ao longo da década, devido às contribuições da
imprensa questionadora acerca da reputação e intenções de McCarthy.
Se o Macarthismo fora episódico em manifestação, o acirramento das tensões
metaforizadas em seu bojo, não seria nada episódico em conjuntura. A Guerra Fria progrediria
e com ela, as ofensivas de ambos os lados, que embora não direta ou declaradamente militares,
55Originalmente grafado como House Un-American Activities Committee (HUAC), traduzido como Comitê de
Investigação de Atividades Anti-Americanas (ou Não-Americanas). Nesse sentido, importante salientar sobre a
Doutrina MacCarthy e a HUAC, que essas iniciativas de investigação (amparadas politicamente) não se tratavam
do mesmo bureau, e embora pudessem atuar, por vezes, em conluio, dispunham de soberania e constituição
próprias, cada qual com diferentes abordagens de investigação sobre o assunto estratégico-político do Comunismo
interno e internacional. Nesse ínterim, cabe evidenciar que embora costumeiramente associados, os tribunais do
macarthismo não eram subordinados a HUAC – e nem àqueles, tendo sido sua duração até 1975 (enquanto o
Macarthismo estaria a viger apenas durante os anos 50). Fonte: PATRICK DOHERTY, Thomas. Cold War, Cool
Medivm: Television, McCarthyism and American Culture. 2003. pp. 15-16
46
endureceriam setores de suas sociedades, ideológica e culturalmente – ocasionando um pairante
clima de permanente e indireto enfrentamento. E quanto a isso, os jovens teriam marcante
protagonismo.
1.3.2 E finalmente, a McCartney: ou do surgimento do rock em meio ao cenário social
Ocidental do início da Guerra Fria
Se o ‘berço do rock’ seria chacoalhado por tensões relativas à reconstrução econômica
de países de um lado e a pujança econômica de um outro cenário, onde por sua consequência,
uma revolução de acesso à tecnologias de informação se faria possível, tais discrepâncias
haveriam de aguçar velhas tensões. Na Europa e na URSS, o peso da guerra e do conflito
geracional com as incumbências de trabalho pesado na reconstrução. Nos EUA, de outro modo,
um conflito geracional provocado com o modelo vitorioso a ser seguido, impondo a muitos
jovens uma precoce adequação ao estabelecimento, enquanto que ignorando e excluindo a
participação fundamental de outros segmentos dentro desta celebração da vitória.
Do mencionado em pregresso, cabe salientar então, algumas importantes características
do rock, esse fenômeno cultural, contendo particulares precedentes e protagonistas e toda uma
intrincada forma de repercussão. Nesse ínterim, embora com marcadas vicissitudes peculiares,
o rock rastreia-se como fenômeno que surge entre jovens escolares dos EUA, pela década de
1950, tensionados pela imposição de um ortodoxismo comportamental retirado do modelo da
Era de Ouro, onde os Estados Unidos traziam consigo a vitória na Segunda Guerra Mundial,
seguida de uma pujança econômica e fartura de consumo consequente e a afirmação de um
modelo de vida estandardizado: o american way of life, pelo qual o tornar-se adulto, seguindo
exemplo dos responsáveis homens de família, dos vitoriosos e valorosos marines e dos bem-
sucedidos capitães-de-indústria, se transformava em imposição à faixa etária juvenil estudante.
Esse adultizar-se precoce, acompanhado ainda de um recrudescido puritanismo, desdobrado
socialmente em repressão sexual nos aspectos educacionais e familiares, bem como os já
tensionados aspectos de uma emergente luta pelos direitos civis e a igualdade racial, em certos
setores da sociedade (visto que a população afro-americana já representasse expressiva camada
da classe artística comercializada, com vulto, graças ao sucesso do jazz, do blues, e da indústria
fonográfica; JOHNSON, 2006) compunham o clima de um mal-estar presente à mesa farta da
sociedade norte-americana.
Seriam frutos destes eventos, jovens e excluídos sociais, que padeciam de dificuldades
em aspectos de sua colocação enquanto cidadãos e indivíduos na sociedade, pela razão do
47
preconceito e desfavorecimento social-econômico maciço, a redundar em marginalização.
Conforme se predica, isto germinaria um revide, levando a que muitos atores sociais juvenis se
aglutinassem numa forma contestadora de comportamento que se mesclava ao emergente
fenômeno de cultura do surgimento das big bands56 – evento de escala cultural e comercial
consistente de grupos musicais com bateria, guitarra elétrica, contrabaixo e a presença do
crooner, vocalista e em geral, bandleader desses grupos – fazendo criar assim, a um estilo
próprio de manifestação, esboçado em um jeito jovem de compor e dançar a música dos bailes
juvenis. Surgiria o rock, já miscigenado e com apenas uma identidade em comum: a da
imaturidade reivindicada como direito de manifestação em meio a uma atmosfera ordeira.
Surgia um novo ritmo, chamado a princípio de be-bop-a-lula (FERRI, 2001) contendo
uma mescla de hereditariedade negra (swing e improviso próprios do jazz, e gravidade e
balanço, nos acordes de contrabaixo do blues) e branca (no vocal roufenho e ágil, próprio do
honky-tonk blues caipira, advindo dos rednecks [pescoços-vermelhos; designação pejorativa
e vulgar atribuída aos habitantes interioranos dos Estados do Sul dos EUA, brancos,
descendentes de alemães e holandeses], e no agito dançante das polkas, impregnadas no
country, em artistas como Hank Williams, e posteriormente em Johnny Cash). Este rock
primitivo seria protagonizado por jovens artistas de diferentes folhetos étnicos da sociedade
americana, trazendo ainda mais diversidade e caindo ao gosto jovem com maior
suscetibilidade.
Conforme o exemplo requer, cabe citar que desde jovens artistas brancos como Jerry
Lee Lewis57, Bill Halley58, Buddy Holly59 e Elvis Presley60 ficariam conhecidos, quanto
56Em tempo: enquanto as big bands afirmavam parte do establishment, conquanto fossem disseminadoras de
produtos da indústria cultural de massa (e que para terem onde tocar, seguiam a cadência dos costumes e do
mercado), o seu ato de disseminação cultural musical, esse sim, foi catalisador daquilo que viria ser o caldeirão de
contestações principiado pelo rock. 57(1935 - ) Cantor e pianista estadunidense, famoso pela canção de rock Great Balls of Fire, 1958. 58(1925-1981) Músico e produtor estadunidense, que fez fama com o grupo The Comets, com a canção Rock
Around the Clock, de 1950. Uma curiosidade acerca da canção, é que ela é tida por muitos estudiosos do fenômeno de rock (como FERRI, 2001), como sendo a primeira canção de Rock n’ Roll. Versão essa que contestada por
outros entendidos do fenômeno cultural, com a proposição de Rocket 88, de 1951, de autoria do cantor Ike Turner,
como verdadeira primeira canção do rock. Por duas razões: em primeiro lugar, a classificação nos cartazes de
promoção dos concertos de Bill Halley, anunciava seu hit como foxtrot, e não rock; e em segundo lugar, a presença
do riff de guitarra na canção de Ike, a torna com uma estrutura musical sonora mais própria do gênero. Fonte:
FERRI, René. Be-bop-a-lula!. São Paulo: Nova Sampa Diretriz. 2001. 59(1936-1959) Cantor, guitarrista e intérprete estadunidense, que fez sucesso com a canção Peggy Sue, 1957. 60(1935-1977) Cantor e intérprete estadunidense, epitetado o Rei do Rock, realizador de diversos sucessos
musicais, com destaque: Hound Dog, 1952, Love Me Tender, 1956 e Jailhouse Rock, 1957. Astro de filmes e
programas de auditório, o cantor ficaria conhecido por danças provocantes e performances de palco contraventoras
para a época (anos 1950).
48
também consagrar-se-iam as negras vozes de Little Richard61 (também pianista), do guitarrista
blueseiro B.B. King62 e do guitarrista Chuck Berry63, sem olvidar o hispânico vocal de Richie
Valens64 (originalmente, Ricardo Valenzuela, guitarrista californiano descendente de
mexicanos), intérprete de La Bamba. E no sentido de evocar (e sustentar) a premissa de afiliar
tais jovens a pertença às classes trabalhadoras, mostrando, patentemente, tratar-se o rock de
um fenômeno popular e não erudito, se demonstravam nuances dessa afirmação na própria
trajetória de seus intérpretes e nos locais de execução de suas apresentações: Elvis Presley era
caminhoneiro; Little Richard, fora lavador de pratos numa lanchonete; Chuck Berry era filho
de modestos agricultores do interior da Louisiana; e Richie Valens (originalmente, Ricardo
Valenzuela), vinha e perpetuara a messe de latinos colhedores de laranjas nas plantações de
Pacoima, Califórnia. Ainda nisso, quanto aos locais dos espetáculos, em lugar dos
consagrados salões de baile (como um Savoy em Nova Iorque), ou renomados clubs (como o
Ritz), as apresentações ocorriam, em geral, em quadras de basquete de ginásios de escolas
secundárias (FERRI, 2001). A indústria fonográfica, ávida por novos nomes retirados dos
bolsões mais modestos da sociedade estadunidense (como fizera duas décadas antes com os
negros, no fenômeno do jazz), não demorou em amealhar tais jovens intérpretes e artistas sob
o selo das gravadoras, fazendo sua música espalhar-se das rádios norte-americanas pelo
mundo afora.
Ditas essas noções dissertativas, mas, fundamentalmente, pertinentes, recobrando a
circunstância inicial do argumento e atendo-se a aspectos fundamentais ao entendimento da
sociedade outrora descrita, nos Estados Unidos do auge do rock, convivia-se com a imposição
pequeno-burguesa de uma vida de trabalho, tarefas e cumprimento do dever (quer na guerra,
quer com a família e no cotidiano). A moral básica – e por que não se referir, WASP (White
Anglo-Saxonian Protestant, em tradução livre, Branca Anglo-Saxônica e Protestante),
61(1932-2020) Artista, cantor e pianista afro-americano filiado aos gêneros Rythm n’ Blues (R & B), Soul, Funk-
Soul e Rock n’ Roll. De grande sucesso com a canção Tutti Frutti, 1955, uma das mais emblemáticas canções da
fundação do gênero Rock n’ Roll, cuja a introdução com a onomatopeia a capella (A-wop-bop-a-loo-lop-a-lop-bam-boom!), ficaria mundialmente famosa na sua interpretação e na regravação por Elvis Presley (1956). 62(1925-2015) Artista afro-americano, cantor e compositor de blues. Considerado um dos maiores guitarristas de
todos os tempos, pelo Rock n’ Roll Hall of Fame, ao lado de nomes como Jimi Hendrix, Eric Clapton e Jimmy
Page. 63(1927-2016) Guitarrista, cantor e intérprete afro-americano, famoso pelos hits em canções como Maybellene,
1955, Roll Over Beethoven, 1956, Rock and Roll Music, 1957 e Johnny B. Goode, 1958. Seu estilo marcante nos
riffs rápidos de guitarra, e um passo de dança conhecido como Duck Walk, o tornariam emblemático no cenário
pioneiro do Rock n’ Roll – e o fariam influência a artistas como o guitarrista Angus Young, da banda australiana
AC/DC. 64(1941-1959) Guitarrista, cantor, compositor e intérprete hispano-americano, famoso com as canções La Bamba,
Donna e Come On, Let 's Go!, todas gravadas em 1958.
49
respectiva aos valores morais dessa parcela social – de amadurecer rápido, arrumar-se
emprego e família e adequar-se aos ideais políticos e comportamentais mais puritanos. O rock
vinha assim, a estremecer as bases dessa aludida organização social, colocando uma carga de
lascívia juvenil, apelo sexual, integração (racial e étnica, haja vista, a presença de
protagonistas negros e latinos no ritmo) e refreameanto da adultização, em nome de legitimar-
se uma postura de entretenimento e proveito da vida – próprios daquela juventude e dos
movimentos intelectuais afins, como o cenário do movimento beatnik, por exemplo.
Portanto, o jovem estadunidense (por excelência, integrante da juventude branca),
imerso no galardão de uma sociedade vencedora, rica e próspera, vivenciaria uma tensão que
se colocaria mais próxima do conflito geracional e de costumes, em relação às demais camadas
de sua sociedade, ainda que, estivesse essa também acompanhada daqueles aspectos colaterais
vividos em sociedade, com elementos étnico-civis e de afirmação social. Enquanto que,
demarcadamente, em outras terras anglófonas, onde o rock aportaria dentro em breve, a
atmosfera social teria componentes tensionadores ainda mais delicados e complicados por se
considerar.
Nesse sentido, à década de cinquenta no Reino Unido, futuro berço do brit rock,
encontrava-se o jovem britânico tendo de lidar com o desemprego/subemprego maciço nas
fábricas (como o setor de metalurgia, em Manchester), a carestia de recursos, medidas de
austeridade e aspectos de sobrevivência a imporem uma adultização precoce (a incontinência
de vir a tornar-se arrimo de família e ser integrante na reconstrução do país). O cenário era
distinto do estadunidense, pois a guerra havia colocado escombros reais e emocionais na
sociedade britânica, depauperado a economia e imposto um sistema de reconstrução que faria
o hábito de vida local guinar-se de uma supremacia anterior por uma de modéstia e trabalho
incessantes, soçobrada de novos baluartes do cenário mundial. O fruto dessa geração de jovens
britânicos, ficaria conhecido cerca de uma década depois como angry young men (algo como,
movimento/geração dos jovens enraivecidos, segundo Dirks, 2010)65
Enraivecidos pela pobreza, pelos escombros e por horizontes de trabalho pouco
promissores, que numa reconstrução como a que o país passava, acenavam, não raro, aos mais
pobres com um futuro certo como integrantes da camada operária, o rebuliço juvenil inglês
65DIRKS, Tim. The History of Film: The 1960s. The End of the Hollywood Studio System, The Era of
Independent, Underground Cinema, AMC Film Site Home, 2010.
50
geraria uma forma de contestação mais nervosa66, cuja rebeldia passaria por desafio
sistemático e escrachado dos costumes – na marca da sexualidade e da provocação – e o
congraçamento com o ritmo estadunidense que recém surgira, o rock, fomentaria uma cena
local muito diversificada e promissora, com baluartes em importantes cenários suburbanos,
em Liverpool (com o agito do Merseybeat) e Londres (nos acordes do be bop-a-lulla), onde
inicialmente destacariam-se nomes como os Beatles e os Rolling Stones, dando princípio à
toda uma messe posterior, que redundaria no hard rock, prog (rock progressivo;
experimentalista) e no heavy metal67 – e essa febre em torno do rock, seria um catalisador
importante em terras mais orientais do que a britânica porção insular e será algo de que
falaremos em específico mais adiante durante o trabalho.
Um ponto importante de se mencionar rememora que a levada musical agressiva da
juventude britânica, teria seu princípio com influências bem mais baladescas, num swing todo
tomado de influências afro-americanas, cujo rock mais pareceria um figurativo veículo de
apreciação, um meio de deixar-se influenciar por essas fontes emanadas. Constam como
importantes influências da cena rock britânica os ritmos do blues e do jazz, que nas décadas
de 1940 e 1950, já seriam encontrados fortemente na capital londrina e importantes centros
urbanos do Reino Unido. Artistas estadunidenses, afro-americanos, como Muddy Waters,
Chuck Berry e Howlin Wolf (em tempo, sem confundir-se o bluesista das décadas de 1940-
50 com o epíteto atribuído à Robert Plant, vocalista do Led Zeppelin, no final dos anos 1960),
são relembrados como ícones introdutórios ao estilo do rock na juventude inglesa – por
ninguém menos que o guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards, em seu documentário
biográfico Keith Richards – Under The Influence (2015)68. Segundo a percepção do músico,
referente ao momento musical vivenciado no ano de 1957: ´Achava que só eu, no sudeste da
Inglaterra, conhecia esses caras’ – até ver sair do metrô seu amigo de adolescencência e de
bairro, Mick Jagger, carregando um dos álbuns de Muddy Waters. Seria ao músico, esse o
momento no qual situaria o ponto de clivagem para os Rolling Stones, uma das mais
importantes bandas de rock do cenário inglês, que começaria como grupo no princípio dos
anos 1960, a partir de uma canção do músico estadunidense de blues e jazz.
66Cenário britânico de tensões, que é didaticamente descrito em HOBSBAWM; 1995; p. 43 67As classificações variam muito nesse sentido, dando margem a múltiplas conotações musicais a cada banda
daquele cenário e momento. Atenha-se aqui, à classificação encontrada em DUNN, Sam. Metal: A Headbanger's
Journey. Dir. Scot McFadyen; Jessica Wise. Toronto: Seville Pictures. 2005. 68RICHARDS, Keith; Keith Richards – Under The Influence. Distribuição: Netflix. Produção: EUA/ Reino
Unido, 2015, Dir. M. Neville. Trecho dos minutos 15 a 18.
51
Inclusive, compondo ao relato do músico, seriam esses estilos musicais, também
importantes constituintes de uma revolta nos subúrbios londrinos, reunida em torno da
população afro-britânica e eventuais frequentadores e apoiadores do estilo de vida boêmia
local. Em meio ao cenário de reconstrução econômica e social da Inglaterra do pós-guerra, era
possível evidenciar também, a presença de uma tensão de afirmação racial e civil, encabeçada
pelas populações dos subúrbios e reunida em torno do estilo lascivo e malemolente do jazz.
Tal circunstância, sublinhadamente marcante, seria trabalhada na obra de outros
importantes músicos locais, influenciados por esse momento cultural: como o músico inglês
David Bowie (1947-2016), que décadas após gravaria o álbum Young Americans (1973),
fortemente embasado em influências musicais afro-americanas, como tributo à essa
importante vertente da música (jazz) no cenário britânico subsequente. Não obstante, o músico
também seria integrante e realizador da trilha sonora do filme britânico Absolute Beginners
(de 1986, dirigido por Julien Temple), cuja história aborda esse nicho cultural e é ambientada
na década de cinquenta em Londres, focando no cenário boêmio local, impregnado de jazz e
musicalidade negra, representada na história de amor entre o jovem Colin e a modelo Crepe
Suzette. A narrativa, busca reaver parte da episódica da cena jazz londrina e os distúrbios
trabalhistas, étnicos e civis vividos na Londres de 1950, os quais contribuiriam a configurar o
sentimento britânico, urbano, periférico e musical, permeado por outras tensões que
obscurecidas pela principal tensão vivenciada com a reconstrução do país, da economia e da
cultura nacionais.
Desse background pós-guerra, amalgamado de tensões, música e diferentes
personagens, o rock estadunidense ingressante no Reino Unido se encontraria com um escopo
cultural efervescente e jovem, cuja avidez por manifestar-se, rebeldemente, demonstrava-se
premente. Do repertório de influências estadunidenses rockeiras, para adiante das citações
aqui abordadas, duas das canções mais recorrentemente gravadas nas ilhas, oriundas da
primeira era do rock oferecem a composição pretendida a explicar o sincretismo que o rock
promoveria, de integração e ingresso franco do ritmo em diferentes estratos de distintas
sociedades.
Primeiramente, a emblemática Tutti Frutti (1956), composta e interpretada pelo
músico afro-americano Little Richard e notória por seu princípio cheio de energia e
onomatopéias (<<Whoa-bap-lu-bap-bam-boom!!>>), a ser reconhecida nas vozes de
inúmeros cantores pelas décadas subsequentes, e por seguinte, mas não menos marcante, a
52
singela Be-bop-a-lula, She's My Baby, com autoria atribuída ao músico Gene Vincent
(também de 1956), ambas entoadas por diversos intérpretes famosos, em destaque flagrante,
às interpretações dos ícones Jerry Lee Lewis, Elvis Presley e, posteriormente, nas vozes de
John Lennon e Paul McCartney. Mais precisamente a segunda canção (Be Bop- A-Lulla ...) é
um exemplo de produto cultural em circulação, que mesmo desapegado de sua atmosfera
original – cuja matriz seria a de sonoridade cadenciada influenciada da gramática rítmica do
blues, própria do âmago negro sulista estadunidense, mas que realizada por um intérprete
branco), cairia no gosto popular da juventude dos EUA, e finalmente, atravessando o oceano
e as distintas tensões vividas, se faria espraiar nas plagas do Reino Unido, se transformando
novamente, em apelo de outra juventude – o seminal movimento/estilo chamado de Be Bop-
A-Lulla.
Certamente, citar dessa confluência em rede, de um produto/elemento cultural
originário dos EUA sulista e interiorano, passando pela atmosfera urbana das cidades e
quadras ginasiais de bailes estudantis (ainda nos EUA), até chegar em solo britânico, se
demonstra mais nítido por tratar-se, até aqui, de realidades entre países correspondentes tanto
comerciais, quanto linguísticos (sociedades capitalistas e falantes de língua inglesa),
permeados, portanto, de importantes similaridades, como a vivência, àquele momento, de uma
revolução tecnológica de bens de consumo (uma revolução do rádio69, pela qual se permitiria
a veiculação mais vultosa de elementos da produção/indústria cultural, acompanhada pelo
advento da aquisição doméstica de aparelhos de reprodução fonográfica [vitrolas e eletrolas],
acompanhadas de outro fenômeno da cultura, toda novíssima vertente da audiência televisiva),
totalizando que seus jovens protagonistas, pudessem percorrer um caminho mais facilitado
entre a aquisição/circulação do produto cultural.
Um importante e esclarecedor episódio desse caminho percorrido entre a influência
estadunidense e o vivenciar do protagonismo local seguinte do rock, é bastante evidenciado
com a trajetória de quatro jovens rapazes da cidade de Liverpool, distrito de Mersey, que
ávidos consumidores de be-bop-a-lula de Gene Vincent e fãs confessos da batida da guitarra
elétrica de Chuck Berry, começariam sua aventura na música no final dos anos cinquenta.
Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr – os rapazes de Liverpool, que
viriam, futuramente, a formar os animados, febris e revolucionários Beatles, no início da
década de 1960.
69HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 156
53
A origem da banda, que se tornaria febre mundial, remonta ao ano de 1957, quando
John Lennon e George Harrison convidariam Paul McCartney para integrar um quarteto
chamado The Quarrymen. Dali por diante, reformulações no grupo seriam feitas e dentre elas,
a adoção de um novo nome: The Beatles, em 1960. Situados em meio a uma importante cena
cultural principiante em Liverpool, o quarteto seria integrante do cenário do merseybeat. Para
constar, no ano de 1961, na região de Liverpool, no chamado Merseyside, haveria cerca de
350 bandas tocando o estilo de rock inventado no local, uma batida ligeira e ‘swingada’
chamada de merseybeat. O merseybeat daria fama a pelo menos uma dúzia de grupos locais,
entre os quais se destacariam os Swinging Blue Jeans e os The Kinks70, além do quarteto ainda
desconhecido. As apresentações aconteceriam no circuito de salões de dança locais, mas
também em pavilhões de igreja, em bares noturnos e em bailes estudantis. O cenário de
Liverpool também seria um de interconexão com Manchester e seus grupos de rock locais,
visto que as cidades se localizassem próximas. A juventude à época, composta de muitos
filhos e filhas da classe trabalhadora local, veria a formação de alguns dos conjuntos juvenis
a partir de outrora constituídas gangues locais – o que seria acompanhado com alarme e muitas
reticências pelo establishment britânico, preocupado com a influência do rock na juventude e
que tomado como um sinal de alerta, serviria a colocação do fenômeno em status de
desaprovação e perseguição pelas autoridades.71
Ainda assim, a marcha do ritmo seria acelerada e contagiante entre os britânicos. De
olho em um mercado em ascensão, as gravadoras locais ficariam alvoroçadas em patrocinar e
lançar bandas do brit rock. Nesse ínterim, no princípio do ano de 1962, egressos do boom
desencadeado pelo merseybeat, os Beatles seriam chamados a um teste nos estúdios da
gravadora Decca (ainda com a formação Paul McCartney – Baixo/vocal; John Lennon –
Guitarra-base/vocal; George Harrison – Guitarra-solo; Pete Best – Bateria), e a partir daí, a
conquista da plateia inglesa começaria – contemplando a troca de bateristas, com a saída de
Pete Best, para a entrada de Ringo Starr próximo ao final desse ano, com cuja formação o fab
four conquistaria o mundo. Com um sucesso grandioso em solo britânico, em 1963 os Beatles
gravariam seu primeiro disco: Please Please Me.
70Emblemático conjunto musical inglês, que explodiria em 1964 com a gravação da clássica canção ‘Girl You
Really Got Me’. 71Nostalgia Central – The way things used to be. Nostalgia Central; Disponível em:
https://nostalgiacentral/music/music-genre/merseybeat; Acesso em: 22/07/2020.
54
Do cenário inglês, notavelmente, outros importantes nomes também coetâneos
saíriam pelo mundo afora representando a verve rockeira. São alguns desses demais
contemporâneos do movimento rockeiro inglês, que seguramente, ao revisitarem o blues
sonoro de Be bop-a-lula e o transformando em um teor mais provocante, fariam do rock inglês,
voz às suas tensões locais: eis o caso das bandas, The Rolling Stones – fúria e lascívia,
impregnadas às performances de palco de Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones (e
posteriormente, substituído por Ron Wood) e Charlie Watts72 – e The Who – carregada de
uma sonoridade rica em drive, e não menos marcante com as ‘explosivas interpretações’ de
Roger Daltrey, John Entwistle, Pete Townshend e Keith Moon – cuja influência perigosa e
agressiva se espraiaria através de movimentos posteriores, como o hard rock e o punk, todos
conhecidos expoentes da iconoclastia sonora e atitudinal, e por vezes, também protagonistas
de um virtuosismo musical ou de uma aversão completa a esse.
Curiosamente, da linha – mais – suave do brit rock dos rapazes de Liverpool,
integrantes dos Beatles, é que proviria a grande – em termos econômicos – aquisição hostil e
a patente marcha disseminadora do mercado fonográfico da indústria cultural à década. Tidos
e romantizadamente oferecidos como comportados, os integrantes do quarteto seriam levados
pela indústria cultural como um elemento de consumo interessante à mocidade local e,
futuramente mundial.
No que concerne ao público juvenil coetâneo ao fenômeno dos Beatles, ficava a
presença de um estereótipo de consumo, cujas roupas (terninhos justos e botas italianas,
inspirado nos beatniks), o corte de cabelo característico (o famoso estilo ‘beatle hair’)73 e a
postura como músicos de rock, vinham a figurar como objeto de desejo, juntamente ao
consumo do produto fonográfico. Este momento todo singular de consumo (televisionado,
radiofonizado e transmitido de modo intercontinental) e protagonizado por uma camada social
antes pouco considerada pelas pretensões do mercado cultural (os jovens), levariam a outro
72À título de curiosidade, antes da meteórica e longeva formação dos Rolling Stones com Charlie Watts na
percussão (em atividade quase ininterrupta desde 1963), seria esta precedida por outras que contavam, adiante do
elenco costumeiro, com Mick Avory (1962) e Tony Chapman (1962-63) à cargo da bateria. 73Segundo consta, de uma visita do fab four à Hamburgo (Alemanha), em 1961, visitando ao jovem casal de
fotógrafos e estetas Astrid e Stuart Sutcliffe, Astrid teria apresentado Stuart ostentando um cabelo cortado por ela,
ao estilo francês, com a franja longa em tigela, que contrastava com os topetes à la Elvis consagrados pelo rock e
o movimento Merseybeat de até então. John Lennon teria gostado e logo todos os Beatles adeririam ao estilo
capilar, que se consagraria como mais um dos signos distintivos da banda ao longo de sua carreira. Fonte:
FRANCO, André. Como Nasceu o Famoso Corte de Cabelo ‘Beatle’ - Beatlepedia. O Canal dos Beatles
(29/05/2013). Disponível em: https://canaldosbeatles.wordpress.com/2013/05/29/como-nasceu-o-famoso-corte-
de-cabelo-beatle/. Acesso em: 21/04/2021
55
passo o fenômeno de disseminação da mídia, o qual protagonizaria o princípio de um franco
fluxo global de mídia e comercialização musical em escala massiva pelo mundo afora. O
cenário de pujança econômica dos EUA e a estabilização econômica da Europa Ocidental
formaria o terreno fecundo para frutificação de uma vertente econômica voltada à exploração
do entretenimento, dos fenômenos de cultura de massa. Com os fluxos de mercado fechados
pelos acordos comerciais dos estadunidenses e dos ingleses, os bens de consumo carregariam
em seu elenco materiais fonográficos (aparelhos e discos) e junto com o capitalismo aquecido,
em vários quintões do mundo, aportariam os Beatles.
Os Beatles estourariam o limite do conceito, levando a reboque a colocação do que se
classificava enquanto popular e erudito, ou mesmo enquanto cultura, posto serem os baluartes
de um fenômeno juvenil, considerável em escala e protagonismo. E se em parte isso se devia
ao talento inerente aos rapazes de Liverpool, com seu charme e carisma como credenciais,
não menos interessante e fundamental o veículo para tal sucesso, o novo ritmo veiculado
(rock), o qual, com um potencial de assimilação frente ao mundo que se estreitava, econômica
e culturalmente, teria um potencial de assimilação muito plástico em diferentes culturas:
Nesse sentido segundo Mendonça (2008):
Muitos estudos já têm destacado a plasticidade das possibilidades de apropriação do
rock em contextos locais, gênero que veio a se constituir um pano de fundo ou uma
linguagem que, por estar nos ouvidos de todos, permite a comunicação translocal. [...]
A dita “universalidade” do rock (e dos gêneros seus tributários) está ligada ao facto de ele fazer parte da cultura internacional-popular e veicular, junto com a música,
um conjunto de práticas, um repertório de expressões corporais e de emoções
institucionalizadas.
Entretanto, a despeito de uma pretensa ‘universalidade’ presente no rock como
elemento de assimilação, cabe recordar que sua incidência seria predominante ao cenário
urbano (Ocidental e Oriental), situando-se em torno de características mais ou menos ligadas
à modernidade industrial. Corroborando esse entendimento, cabe considerar o conceito de
paisagens sonoras (soundscapes) de Murray Schaefer (1970)74:
Define-se como paisagem, os contextos culturais que permitem analisar continuidades
e descontinuidades e pensar o intercruzamento de elementos diversos para formar
conjuntos de referências, símbolos e significados característicos de meios culturais
específicos. Por extensão, uma paisagem sonora (soundscape), se aplica aos
conjuntos sonoros que marcam os diferentes ambientes humanos.
74MENDONÇA, 2008. Op. Cit.
56
Para o rock, então, o contexto de paisagens sonoras urbanas, partilhado pelas
sociedades estadunidense, inglesa e soviética seria um dos fatores primordiais a permitir um
elo de características em comum – mesmo levando-se em conta a bipolaridade e outras
idiossincrasias de cenário. Por extensão, o momento de expansão econômica e possibilidade
crescente de acesso a meios de informação (aquisição), também possibilitaria uma paridade
relativa dentro destas condições de circulação ao ritmo ocidental – fosse por meio da televisão,
discos ou através do rádio no Ocidente, fosse por meio do mercado paralelo ou souvenires de
viagens de uma elite diplomática, na porção Oriental.
Nesse sentido, determinando sua classificação por etapas, desde sua estadunidense
origem, o rock se tornaria um elemento cultural urbano e juvenil, num macro-cosmo de
manifestações com outras composições de paisagem, geográfica e etária. Também seria o
rock, parte subcultural (enquanto estilo de vida e atitude) e parte industrial cultural, mas
distinguindo-se em meio ao panorama geral com o estabelecimento de uma distinta cena
cultural. Pelo conceito de cena, por um lado, supera-se, em parte, o conceito outrora
mencionado de subcultura (embora, nele se lastreie) ao buscar explicações para o fenômeno
de consumo cultural entre os jovens, através de uma perspectiva que refuta a proposição de
enquadramento ao mero desdobramento mercadológico e à mera classificação em cultura
popular (tradicional)75, enquanto por outro, constitui a característica desse fazer cultural –
como um que trabalha com circuitos de produção e consumo interligados, mas não
uniformizados em termos estéticos76. Sua porção subjetiva, reunindo indivíduos de uma cena
cultural, redundaria na classificação destes como tribos urbanas (ou ‘neo-tribos’)77. A
demarcação pelo comportamento, pela partilha de linguagens e atitudes, mais do que apenas
o consumo, apontam uma ferramenta importante para entender-se o rock, por exemplo, em
sociedades de distinto sistema econômico – como a URSS em relação ao Ocidente, aonde a
circulação da produção cultural estaria adstrita a outros caracteres de realização, como o
mercado alternativo e o underground. E, sintonicamente, conforme Misiano (2005), entende-
se aqui o sentido do conceito de underground enquanto:
Essa alternativa tipológica à cultura oficial. Ser alternativo passa a ser o princípio
constitucional do underground, que, ao se posicionar em relação a uma cultura mais
75BARROS, Lydia Gomes de. Subculturas - Um Conceito Em Construção. Artigo publicado no evento XXX
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação realizado pelo INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares de Comunicação. Vol. I. 29/ago-3/set, Santos, 2007. Pp. 1-14 76MENDONÇA, 2008. Op. Cit. 77BARROS, 2007. Op. Cit.
57
ampla, se apropria de seus princípios disciplinares de consolidação [...] ocorre dentro
dos contornos do que costuma ser denominado cultura oficial.78
Uma vez compreendidos tais predicados metodológicos, pode-se compreender a
relação entre a crônica em torno dos Beatles e a metáfora da trajetória desse rock n’ roll entre
três localidades (até chegar na URSS, objeto de estudo) e por ‘sobre quê’ se assentariam as
realizações do ritmo (no aspecto sociológico), e congregando à quais circunstâncias e
expectativas em jogo àquele momento. Nisso, atendo-se ainda à crônica em torno da
magnitude do fenômeno The Beatles, e sua miríade de repercussões, figuram como
exemplares importantes de uma análise do rock como fenômeno que amadureceria, através da
própria episódica de evolução quarteto britânico. A esse respeito, sobre a composição crítica
na qualidade sonora dos acordes e arranjos das músicas e na abordagem de temas que refletiam
e problematizavam o jovem e a sociedade, demonstram-se marcos experimentais dos Beatles
em diversos campos: da estética, da língua, da sonoridade, do olhar sobre temas outrora
banalizados – enfim, uma seminal, inédita e promissora pluralidade de minúcias, inesperadas
para tão precoces protagonistas. Nesse sentido, desde o primeiro grande hit mundial (com a
canção Help!, em agosto de 1965, dando origem às primeiras turnês mundiais) observaria-se
um enfoque característico do estilo do grupo, por exemplo, no encare com olhar sério da
juventude e seus apelos – como fica emblemático ao observar-se a melodia e letra, maduras,
de Yesterday, de 1965, dissertando sobre o sentimento amoroso juvenil, sem puerilidade, mas
com melancolia e resultando em uma das canções mais belas e bem-sucedidas de todos os
tempos. No campo da intersecção estética, do pictórico com a sonoridade, encontra-se a
animação Yellow Submarine, de 1966, numa assumida atitude de encampamento das
experiências psicodélicas e lisérgicas – cujas formas sinuosas e tortuosas dos traços do
desenho retratando o grupo em uma narrativa surreal de viagem submarina, acompanhadas
das cores berrantes, comporiam alusão a importante vertente da Psicodelia, grassante ao
período, em grande apologia às impressões sensoriais obtidas pelo uso de psicotrópicos
(conforme destacam-se, àquele momento, as aventuras da pesquisa acadêmica do assunto,
realizadas por Timothy Leary). Há ainda, intersecção entre a estética da narrativa jornalística
(indústria da informação) e a música, como na canção A Day In The Life (1967), composta a
partir de recortes de jornais, abordando a partir de fragmentos linguísticos dos tabloides e
frases, desprovidos de pessoalidade e humanidade (talvez, a grande picardia intentada pelo
78MISIANO, Viktor. The Cultural Contradictions of The Tusovka. Художественный Журнал - Moscow Art
Magazine, Section: Analysis, Ed. nº1, 2005. Disponível em:
<http://moscowartmagazine.com/en/issue/41/article/794>. Acesso em: 24/06/2021.
58
quarteto) uma análise da vida cotidiana, dotada de impessoalidade e massificada pela
formalidade jornalística (em cuja melancolia, soa uma crítica sutilmente esboçada acerca da
banalização dos fatos da vida, todos os dias, substituíveis e consumíveis pelo público).
Há que se levar em conta ainda, que outras metamorfoses estilísticas evidentes nos
Beatles, seriam vetores característicos, absorvidos pela estética e circunstância do rock, em
geral, logo em seguida. Nesse sentido, a transfiguração de canções em importantes acervos de
imagens, vídeos do grupo, com os álbuns Sargeant Pepper's Lonely Heart Club Band, de
1967, e Magical Mistery Tour, e mais especificamente, as composições imagético-melódicas
da psicodelia em Yellow Submarine e Lucy In The Sky With Diamonds, demonstrariam a
partir de sua impressão estético-sonora o fenômeno de refluxo do ritmo, onde os outrora
influenciados britânicos devolveriam sua verve de influência aos músicos e à música de todo
o mundo. Registra-se nisso, por influência da estética psicodélica, em muito, disseminada pelo
quarteto britânico, mesmo nas experimentações e cadências musicais de outros importantes
músicos ao momento, como o virtuoso guitarrista afro-americano Jimi Hendrix (do grupo Jimi
Hendrix Experience, de 1966-70), dono de uma estilística muito peculiar na guitarra (entre o
cigano e o blues), o qual regravaria a canção de Sargeant Pepper's Lonely Heart Club Band –
toda dotada do seu drive característico e em tributo direto, à influência exercida pela
sonoridade experimentalista e de vanguarda emprestada pelo fab four.
Não obstante, em menção ao uso do rock como veículo e púlpito às inquietações e
conotações políticas muito atiladas, realizadas pelo conjunto, encontra-se a bem-humorada
canção Back In The USSR (de 1968), fazendo menção alegórica ao contexto da Guerra Fria79.
Em manifestações seguintes, particularmente à atitude de John Lennon, já como músico solo,
caberia ainda importante uso do status adquirido pelo estrelato como instrumento de
ressonância política – como no libelo pela paz inscrito na canção Imagine (de 1971) ou no
disco Power to the People, de 1972 (em composição e lançamento, apenas lançado em 1975),
em teor assumidamente crítico, social e ideologicamente.
Se nas décadas seguintes o estilo do rock transitaria por mudanças nítidas de feição,
considerando-se suas fases de contracultura e experimentalismo seminal – do Folk-
Psicodelismo Hippie, ao Experimentalismo Profissional Prog, ou passando pela nervosa
manifestação da agressividade Punk e dos estrondosos Hard Rock e Heavy Metal, na década
79GOMES, 2004. Op. Cit.
59
de 1970 em diante – a grande marca persistente nesse estilo ficaria associada ao seu conceito
não assimilado, do comportamento e da atitude, sonoramente (com marcas específicas de
proezas de palco e performances em linhagens estilísticas perpetuadas) e esteticamente (com
vestes e petrechos específicos em cada estilo ou época), sempre provida de elementos
provocantes na caracterização da fisionomia, trejeitos e produção musical – sob o emblema,
absolutamente, presente, de sempre manifestar-se como alguma forma de contestação.
Basicamente, é daí que se entende como desde os EUA do presidente Harry Truman
(tradicional, conservador)80, até uma Inglaterra ainda sob o Primeiro-Ministro Winston
Churchill (político conservador e chefe de governo do Reino Unido no período que aqui
concernente, entre 1951-55), as juventudes tensionadas, ainda que em diferentes localidades
e por pressão de diferentes tensões, se colocassem, simultaneamente, como protagonistas
desse ritmo musical e seu fenômeno de agência juvenil correlato, realizando o que aqui se
procurará defender ao longo do trabalho de que: o rock, apesar de estadunidense de origem,
integrou-se a fatores locais de sua experimentação, e neles veio a tornar-se um ritmo novo,
digno de novas considerações, que não mais apenas o rock n roll, mas um rock n roll dentre
tantos ambientes de inserção e fases do estilo. Exemplo disso, como em qualquer outro
movimento, fenômeno ou evento a perdurar pela história, a consideração de distintas
localidades e de modais distintos, pode ser evidenciada no rock dos EUA, onde, tampouco, se
caberia homogeneizá-lo – quer por locais, como o cenário rock nova-iorquino, completamente
distinto do rock de Seattle; quer por movimentos, como o punk distinto do grunge, por
exemplo; quer por épocas, como num rock dos anos 1970, bem distinto do rock dos anos 1990.
Esclarecidos estes predicados, fica bem mais apropriado entender de qual rock se
esteja falando quando este fenômeno/produto cultural, alcança à URSS (mais precisamente,
quando repercute na RSFS da Rússia): seria durante o período político conhecido como
Degelo (1955-1961) que o rock estadunidense de Little Richard e Gene Vincent, revisitado
através da sonoridade do brit rock dos Beatles (também tributário de Chuck Berry em
influências), viria chegar aos ouvidos de uma juventude soviética sob o governo de Nikita
Kruschev (1953-1961). Tal juventude (em russo, molodiozhi; comumente substituído por
komsomol, em referência à juventude soviética), com nuançado isolamento de circulação de
informações ocidentais, oriundo das características de administração adotadas durante o
governo de Stálin (1925-1953), seria essa que numa tradição de governo austera (pela guerra
80MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Abril Jovem. 1987.
60
e pelo cenário político interno) contemplara até então, muitos artistas de seu tempo – com
vulto, escritores, da prosa e poesia, músicos, intérpretes e dançarinos – serem exilados, presos
e proibidos de produzir sua arte e expressão de opinião (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006)
– pelo simples fato de não obedecerem ao alinhamento político (ideologia comunista, sob a
batuta de Stálin), estético (a do movimento realista concretista soviético ou realismo
concretista) e ideológico institucionais – em signos e periodização engendrados segundo
interesses oriundos da cúpula administrativa partidária, no Comitê Central, e o estilo de
governo de cada Secretário-Geral, em cada período de mandato.
Segundo a perspectiva adotada nesta pesquisa, após perscrutar caracteres culturais e
musicais locais importantes e anteriores ao rock na URSS caberia dividir a progressão da
música da URSS, vislumbrada ao longo do período coberto, como que composta em três fases
distintas: em primeiro lugar, o princípio da sonoridade soviética através da música estatal com
ênfase ao estilo clássico e de palco (no período entre 1922 a 1955); em segundo lugar, uma
fase de consumo mais francamente popular, mediada pelo Estado, mas dotada de
protagonismo de radiodifusão (magnitofonnaia kult’ura; de 1955 à primeira metade da década
de 1960, momento no qual o rock apareceria); e em terceiro lugar, uma fase de patrocínio
oficial ao surgimento dos grupos autorizados VIA (periodizada da segunda metade dos anos
1960 e por toda a década de 1970, sendo essa uma fase mais televisiva e comercialmente ‘pop’
– cujo termo equivalente russo é popsovy (CUSHMAN, 1995). Fases essas que
vislumbrariam, alternativamente, o surgimento de redes de cultura musical underground, cujo
fortalecimento e ápice chegaria na última fase da União Soviética – à década de 1980 e
princípio dos anos 1990.
E tudo isso, segundo as fontes atestam, nada disso teria começado sem a administração
de Nikita Kruschev: a chamada Ottepel – ou, em bom português, o Degelo Cultural e Político,
decorrido entre 1955 e 1964.
Voltando no olhar do tempo, seria agora, nesse chamado Degelo (em russo,
Оттепель; segundo KEPLEY JR., 2017), alcunha otimista atribuída ao período de gestão de
Nikita Kruschev, que muitos dos dissidentes de outrora, dentre estes, artistas vários, poderiam
ser reabilitados e re-entregues à circulação e veiculação públicas, acompanhando a isso, ainda
adiante, a possibilidade de novas experimentações de arte, oportunizando não apenas a entrada
de novos produtos da indústria cultural em solo soviético, como também a excursão de artistas
locais a irem visitar apresentações e festivais exteriores à URSS (como por exemplo, a ventura
61
da Nova Onda da Cinematografia soviética, de excursões relatadas nas memórias do diário
pessoal do diretor soviético Andrei Tarkovski, importante cineasta local, junto a outros
cineastas jovens promissores, para os Festivais de Veneza e Berlim, no final da década de
cinquenta81).
Da Era Kruschev, ficariam marcantes as atitudes em senso de integração da URSS
(relações exteriores; doutrina da Coexistência Pacífica) e da promoção juvenil – como no
florescimento de um cenário acadêmico integrador e cosmopolita urbano na URSS; os
encontros e apresentações culturais do cenário acadêmico e escolar os festivais de integração
e celebrações de música e artes internacionais (como exemplos, o 6º Festival Mundial da
Juventude e dos Estudantes, sediado em Moscou, em 195782, demonstrando o sinal de uma
nova política de boa-vontade ao cenário internacional e o Concurso Internacional
Tchaikovsky, em 1958, onde canções do clássico compositor russo, seriam interpretadas por
músicos competidores de diferentes regiões do mundo, sagrando-se campeão o pianista
estadunidense Van Cliburn)83; as múltiplas edições em competições esportivas (com a
retomada das Spartakiads, olimpíadas internas das nações soviéticas, acompanhadas da
participação inédita de atletas soviéticos nos Jogos Olímpicos de Verão, durante as décadas
de 1950-60); e os saraus de poesia e literatura dos pavilhões do povo, realizados no circuito
acadêmico soviético e em salões de uso comum das agremiações de trabalhadores
(fomentando a promoção de uma vanguarda literária, provida do frescor das novas atribuições
político-culturais do período).
Se o rock estadunidense já estava virando produto e sinal de diferenciação social entre
os jovens do outro lado do oceano (ou da fronteira com a Europa Ocidental), na realidade
soviética do Degelo, seria sua atmosfera de novidade que cativaria os jovens. Sobretudo, em
uma juventude que sentia estar passando por sua segunda revolução: a Revolução Bolchevique
lhes dera um ideal, mas as reformas de Kruschev, devolviam a liberdade de poder-se abrir
para o mundo – onde mesmo sem entender uma palavra do idioma entoado nas baladas
ocidentais que adentravam, se poderia balançar ao som da linguagem universal da música,
embalando um frenesi local da mocidade. Eis o que o rock representaria para além de terras
81HUNTER-BLAIR, Kitty. Time Within Time: The Tarkovski Diaries 1960-1970. Great-Britain: Faber and
Faber Limited. 1994. 82A fonte dessa datação remete ao encontrado em MALAKHOVA (2013). 83MCDANIEL, Cadra P. American-Soviet Cultural Diplomacy. Londres: Ed. Lexington Books. 1984. p. 32
62
anglófonas, uma fonte de energia (MAROCHKIN, 2011a), na tímida juventude soviética,
ainda reticente quanto aos seus papéis, limites e aspirações nesse cenário em transformação.
Conforme abordar-se-á mais adiante, distintas fases das sociedades, divergentes fases
dos governos, com singulares tensões juvenis e não menos distintas fases de um fenômeno de
cultura, se entremeiam na configuração e análise desse pretendido Rock Russo Soviético –
que consoante se adverte, não apenas existiu e foi possível, aquilo que por excelência o faria
passível de realizar-se e prosperar – procurando-se a partir disso, defender a hipótese do rock
como de pertencimento dos jovens, por sua agência e atitude, muito mais do que um
revanchismo/triunfalismo entre sociedades do Ocidente e Oriente.
Doravante, entender um pouco de como é fazer rock soviético russo, é também
entender o cerne de sua sociedade, seu sentimento, através da análise suas composições, de
como se produz suas letras e melodias, bem como a seus costumes, sensibilidades e,
notadamente, tradições e experiências. Nesse sentido, entender como aquela imensidão, ora
tida, como gelada, inóspita e hermética por tantos séculos, cuja ascendência viking, tártara e
cossaca (segundo Schilling, 2008), se amalgamou na psiqué de seus habitantes, ajuda e requer
passar por entender-se o produto também cultural de seus arranjos políticos, o catalisar dos
eventos sociais e o porquê da sua condição singular entre as nações euroasiáticas. E nesse
ínterim, muito relevante entender, primeiramente, um pouco do que seja e signifique ser
soviético, mergulhando, necessariamente, em meio às estruturas ocasionadas por seu grande
evento durante o século XX, a lhe repercutir inúmeras configurações de mundo, personalidade
e sociedade: uma ligeira imersão na estrutura desencadeada pela Revolução Socialista
soviética, que desde 1917, conformaria a sociedade da URSS com características próprias de
cultura e instituição, nuançadas e nada presumíveis aos seus antípodas ocidentais – tanto mais,
em se tratando de produção e circulação culturais, marcos estéticos e distinções de
musicalidade e seu papel como ofício e ferramenta na educação social.
1.4 O PRÓLOGO DO EPÍLOGO: A CONSTRUÇÃO DAS ESTRUTURAS DA CULTURA
SOVIÉTICA – UMA FUNDAÇÃO CONCRETA, REALISTA E DURADOURA
É chegada a hora das balas perfurarem os museus!
Leon Trotsky84
Todo artista, cada um que considere a si próprio um artista, tem o direito de criar livremente de
84DOBRENKO, Evgeny. A Revolução Soviética Entre A Cultura E O Stalinismo. Plataforma SCIELO - Estudos
Avançados. São Paulo, vol.31, n.91, Sep./Dec. 2017. pp. 25-39. Disponível em: <http:
//dx.doi.org/10.1590/s0103-40142017.3191004>. Acesso em: 08/07/2019
63
acordo com seu ideal. Entretanto, nós somos comunistas e não nos devemos deixar ficar com as
mãos nos bolsos (passivos), assistindo e permitindo que o caos se desenvolva ao seu agrado. Nós devemos sistematicamente guiar esse processo e dar forma ao seu resultado.
Vladimir Ilyich Ulyanov - Lênin85
A fim de se entender como o rock surgiu na União Soviética, cabe fazer-se alguns
esclarecimentos de maneira pregressa. Primeiramente, o eixo artístico da URSS desde a
Revolução de 1917, por preconização de Lênin86, seria organizado no intuito de que o aparato
estatal pudesse prover o povo de cultura, oportunizar-lhes o protagonismo nessa produção
cultural e transformar dessa cultura em veículo de educação e do engajamento (DOBRENKO,
2017). Para isso desde 1918 até 1921, seriam criadas três agências estatais o AgitProp87 (ou o
85LÊNIN, Vladimir; Lenin, O Kulture i Iskusstv (Lênin, sobre a Cultura e a Arte). Departamento de Arquivos
Históricos do Governo da URSS, Moscou, 1957; pp. 519-520 86Do cirílico, агитпроп; AGITPROP ou acrônimo de Otdel Agitatsyi i Propaganda, em tradução transliterada:
Departamento de Agitação e Propaganda (posteriormente, nomeado Departamento de Ideologia). Órgão do aparato
estatal soviético, voltado a realização de propaganda política (bolchevique), por meio de imprensa, publicidade
(panfletos) e artes em geral (literatura, teatro, encenações, filmes, etc.), preconizado no período revolucionário
(1917; e da Guerra Civil Bolchevique-Menchevique, 1918-21), por Lênin, para tornar possível e pulverizado o
acesso aos ideais socialistas (marxistas-leninistas). Utilizava-se de diversos meios de realização: desde a estrutura
pregressa à revolução (como a revitalização e estatização do jornal Pravda [Verdade], censurado pelo regime tsarista), até a inédita utilização de veículos de alarde público (trens, carros e motocicletas, pintados e decorados
com motivos e cores associadas à Revolução, que a carregar consigo e disseminar de material impresso e gráfico
nas comunidades interioranas remotas da URSS; bem como recurso pessoal de apoio, com propagandistas por
agitação oral, trajados com uniformes partidários). Tudo isso, no intuito de realizar reclame aos ideais socialistas
(posteriormente, soviéticos), confrontando e remindo uma vasta comunidade trabalhadora (servos, principalmente)
da chaga do não-letramento (analfabetismo letrado e funcional), através da oportunização de recursos de mídia
mais, universalmente, acessíveis (compreensíveis), capazes de principiar a instrução maciça (por meio ilustrado,
mais simples) e a educação nas distintas camadas populares – com provimento, a partir disso, do interesse
partidário de mobilização e engajamento político das massas, por conseguinte. Campanhas de letramento
específicas, junto às demais estruturas administrativas estatais – como o preconizado Comissariado Popular de
Esclarecimento, a ser melhor abordado em capítulo específico durante esse trabalho – também compunham a agenda deste segmento da burocracia soviética. Entretanto, o pastiche de suas produções artísticas muito prosaicas
e maniqueístas (compostas de personagens demasiado caricatos; assumidamente maus ou bons, propositadamente
compostos a fim de serem ilustrativos aos espectadores mais obtusos), fez com que com passar do tempo integrasse
uma porção desprestigiada – criticada – do ProletKult (como nos argumentos dos Cadernos de Cultura de Trotsky,
de abril de 1932), mas ainda assim, fundamental braço do conceito estético do Realismo Socialista Concretista
Soviético (principalmente sob Stálin, período em que houve maior império dessa estética estatal, estabelecida com
princípios de traduzir os ideais socialistas em formas de arte instrutiva). Ainda assim, expoentes artistas do período,
da poesia (como Maiakóvski) ou do teatro (inclusive, extra-soviéticos, como o dramaturgo alemão Bertolt Brecht),
figuram como importantes realizadores da proposta de agitação e propaganda, em suas respectivas áreas. Fonte:
KENEZ, Peter. The Birth of Propaganda State: Soviet Methods of Mass Mobilization, 1917-1929. Cambridge:
Cambridge University Press. 1985. Pp. 29-78. 87O termo Agitki, em russo quer dizer energia, agitação, ignição; remete ao conceito de fazer as ideias engajadas
entrarem em ação, serem insufladas, não ficarem na mera idealização. Há um ensaio de Sergei Eisenstein (cito
pela historiadora inglesa Jane Gaines, em sua análise sobre a produção do melodrama cinematográfico pré-
soviético), em que o cineasta soviético, debatendo em como se chegar ao agitki através do cinema, para dar-se
energia a juventude soviética (komsomol) e despertar nessa juventude a ação que motivaria o socialismo e mais
adiante o comunismo, criticiza de como o cinema soviético possui as diretrizes, mas carece do mecanismo,
enquanto a produção norte-americana, possui deste mecanismo, mas o utiliza de forma frívola, sem zelo pela
mensagem educadora formativa [entretenimento]. Eisenstein vai escrever sobre o cineasta estadunidense D.W.
Griffith, à década de 1920, e de como os EUA haviam descoberto a energia (agitki) para o cinema americano.
Fonte: GAINES, Jane. Revolutionary Theory/Prerevolutionary Melodrama. Discourse Post-Future/Soviet &
Eastern European Cinema Vol. 17, No. 3, Wayne State University Press. 1995.
64
Escritório de Promoção de Propaganda Partidária e Panfletária, para a criação e produção de
material propagandístico gráfico e audiovisual; cujo um dos braços, seria a Goskino, ou do
círilico transliterado, Gosudarstvenny Po Kinematographyi, o Escritório de Produção de
Cinema e Audiovisual); o Glavlit88 (ou Escritório para acabamento e mediação e recurso das
produções artísticas de cunho literário, inicialmente; na prática a funcionar como agência do
governo para mediação de verbas de produção artística e órgão de censura e avaliação de
conteúdos)89; e o ProletKult90, facção não-institucionalizada governamentalmente pelos
artífices da Revolução, instituída enquanto movimento e departamento de Produção de
Cultura Popular, a receber colaborações e produções dos trabalhadores, camponeses e
operários.
Sobre o ProletKult (acrônimo de Proletarskaya Kultura; Cultura Proletária), deve se
considerar que sua concepção inicial, se dera a partir de discussões iniciais de 1904-05, entre
dois, então, parceiros de debate de filosofia (entre as linhas do pensamento materialista
histórico-dialético de Karl Marx e do Empírio Criticismo, de Ernst Mach), Vladimir Lênin e
Alexander Bogdanov. Companheiros de debate e engajamento político (integrantes do então,
Partido Social-Democrata Revolucionário da Rússia, que reuniria muitos dos membros que
futuramente, fundariam o Partido Bolchevique, antecessor do Partido Comunista da União
Soviética91), a Lênin e Bogdanov – respectivamente um que, àquele momento, advogado,
88Do cirílico, Главлит; GLAVLIT ou acrônimo de Glavnoye Upravlenie po Delam Literatury i Izdatelstvo, em
tradução transliterada: Direção-Geral de Assuntos Literários e Editoriais, posteriormente renomeado (à década de 1980), Direção-Geral dos Segredos de Estado na Imprensa (tradução transliterada de Glavnoye Upravlenie Po
Okhrana Gosudarstvenyikh Tain V Pechaty). Principal órgão de censura do aparato administrativo soviético,
fundado em 1922 e com funcionamento até o ano de 1991. Seria responsável, inicialmente, por direcionar o setor
de publicações na URSS, em cuja qual a forma escrita (literatura) figurava como principal ferramenta de instrução
e difusão dos ideais socialistas soviéticos, a constituir, portanto, em grande importância ao aparato burocrático
estatal, no sentido de controlar materiais e conteúdos, e de mitigar o acesso às notícias e propagação pulverizada
de ideais inconvenientes aos anseios da administração local. Com o progredir das tecnologias associadas a difusão
de mídia ao longo do século XX (advento do Cinema e, posteriormente, do Rádio e da Televisão), se desdobraria
em demais setores de censura específicos. Exemplificam isso, os escritórios censores de conteúdos materiais de
caráter audiovisual – respectivamente, para o cinema, com a GOSKINO, acrônimo de Gosudarstvenny Po
Kinematographyi [ou Departamento de Supervisão Cinematográfica], e para rádio e televisão, com a
GOSTELRADIO, acrônimo de Gosudarstvenyi Po Televisor i Radio [ou Departamento de Supervisão de Conteúdos de Televisão e Rádio]. Em seu auge, o Glavlit seria composto por mais de 70.000 integrantes da
burocracia administrativa, a serem incumbidos na tarefa de rigoroso processamento de todas as formas de mídia
de massa na URSS. Fonte: NEPOMYNYASCHCHY, Catharine; In: SMORODINSKAYA; EVANS-ROMAINE;
GOSCILO, 2007; p. 230. Verbete: Glavlit. 89BUKOVSKY, Vladimir. To Build a Castle: My Life as a Dissenter. New York: Viking Press. 1979. 90DOBRENKO, 2017. Op. Cit. 91A trajetória tortuosa desse(s) partido(s) se deveria ao clima de perseguições e conflitos político-militares do final
do século XIX e princípio do século XX. No precursor, Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR),
agremiação formada no estertor do século antecedente (no primeiro Congresso do Partido, em 1898), com ideais
socialistas marxistas e liberais democráticos, seriam influentes nomes como Georgi Plekhanov, Vladimir Ilyich
Ulyanov (Lênin), e Lev Bronstein (Trotsky). Em 1903 (II Congresso), haveria uma cisão na linha ideológica
65
agitador político e periodista, enquanto que o outro, escritor, ensaísta e esteta – lhes inquietava
a ideia sobre o conceito a se adotar como movimento de Cultura Proletária, proveniente do
empreendimento da revolução e acerca de que destino a cultura – e que cultura – deveria
tomar, e qual papel desempenharia, aos meandros de uma Revolução bem-sucedida e durante
o processo de seu período sucessor.
Lênin defenderia que a cultura deveria ter papel assumidamente político, engajador,
por meio da superação da falta de instrução da massa popular, a qual buscaria prover através
de uma educação socialista, a qual utilizaria os resquícios e artefatos da cultura anterior (pré-
revolucionária; cânone burguês consagrado), como ferramentas re-encaminhadas pelo olhar
materialista e socialista, a consecução dos objetivos revolucionários (o que buscaria levar a
cabo com Trotsky, através do AgitProp e do Departamento de Esclarecimento Do Povo,
órgãos vinculados à questão da cultura, com preocupação política instrutiva, instaurados após
o curso da Revolução de 1917 e da vitória da facção bolchevique do PCUS na Guerra Civil,
de 1918-22).
partidária: os Mencheviques (minoria, em russo), pleiteando uma revolução costurada a partir de alianças políticas
com os setores liberais, esperando-se o desenvolvimento estabelecido do capitalismo para iniciar sua contrafação;
já os Bolcheviques (maioria, em russo), entenderiam uma revolução sem tréguas aos burgueses, sem alianças e
com o estabelecimento do poder estatal sob o domínio da classe operária e dos camponeses, unidos sob um só
partido. Tal cisão precipitaria os eventos da mal-fadada Revolução de 1905, onde se indispondo contra a campanha
militar da Rússia contra o Japão, a carestia geral e a má administração do Czar Nicolau II, tentariam sua deposição.
O saldo seria negativo aos revolucionários, que vencidos seriam criminalizados e perseguidos ou exilados – e o
partido dissolvido. Somente com a reorganização (reagregando mencheviques e bolcheviques, novamente, em
1906, no IV Congresso) e a nova mobilização política promovida pelos sovietes (conselho, em russo; conselhos
populares regionais permanentes de trabalhadores), por volta do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que novamente, conclamando o povo a se insurgir contra as más condições de vida, a crueldade e a incapacidade
logístico-militar administrativa do Czar (que reconduzira em desastrosa campanha o exército russo, no conflito
mundial), os resquícios do partido, agora organizado em facções Mencheviques e Bolcheviques, separadamente
(de modo oficial, no VI Congresso), voltaria a se reconfigurar para a revolução. A agremiação partidária
Bolchevique (Bandeira Vermelha; agremiação essencialmente de orientação marxista), liderada por Lênin e
Trotsky, seria a grande promotora da Revolução de 1917, sendo instaurada entre as facções protagonistas (Bandeira
Branca, de liberais; Bandeira Negra, de anarquistas de Makhnov; Bandeira Verde, populares camponeses sem
ideologia estabelecida politicamente) como principal artífice e administradora de regiões fundamentais do
território russo, bem como setores vitais ao prosseguimento da campanha (como os transportes ferroviários e o
Exército Vermelho, chefiado por Leon Trotsky). Após a campanha vitoriosa (na Revolução de 1917 e da Guerra
Civil que se daria entre as facções), ainda sob o nome de POSDR, a facção Bolchevique, liderada por Lênin, atua intensamente na construção e implementação do Socialismo. Em 1918, após o VII Congresso, o POSDR adota o
nome Partido Comunista da Rússia (PCR) e se torna, essencialmente, bolchevique. No X Congresso, as facções
internas são banidas – há a unificação partidária (o bolchevismo resiste ainda como ideologia). Em 1922, seria
fundada, oficialmente, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ainda sob o mandato interino de
Stálin. Com isso, o PCR teria sua denominação alterada em 1925 (XIV Congresso), em Partido Comunista
Unificado-PCU; como partido único da recém-fundada instituição. Culminando com sua denominação (ainda sob
o secretário-geral Stálin) em 1939, como: Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –
PCURSS (no XVIII Congresso). Em 1952, por ocasião do XIX Congresso, o PCURSS passaria a ser chamado, de
modo definitivo, como Partido Comunista da União Soviética – PCUS. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987;
MEDVEDEV, Zhores A.; MEDVEDEV Roy A. Um Stalin Desconhecido. Rio de Janeiro: Record. 2006.
66
Bogdanov, por outro lado, entenderia que a dimensão de uma cultura revolucionária,
deveria ser também ela uma concepção revolucionária, depositora da forma anteriormente
postulada do cultural (iconoclasta ao cânone burguês), e criadora de um novo conceito de arte
(o que, numa das linhas propostas, redundaria no futurismo, grupo estético formado por
indivíduos que propugnavam a obliteração das formas/conteúdos provenientes da arte
estabelecida, sua aniquilação, vista como monumento burguês em sua essência), caso
contrário, a arte e a cultura decorrentes do modelo anterior (burguês e monárquico),
constituiriam em si, uma perigosa brecha de permanência desse próprio modelo, dentro na
realidade revolucionária – precedente de que a partir de seu exemplo, se evitasse a constituição
da autêntica revolução e seu progresso consequente (DOBRENKO, 2017).
Lênin defenderia ainda, que a cultura revolucionária deveria figurar como elemento
controlado e assistido pelo aparato estatal e a interferência do partido; enquanto Bogdanov, a
achava incapaz de produzir originalidade e autenticidade, se deixada sem o elemento de uma
livre manifestação – extrapartidária. Demasiado irretorquíveis de suas posições, a disputa
ideológica da cultura e seu viável de execução, acenaria, entre outras condições, com a vitória
à perspectiva leninista. Sendo que este seria alçado o líder mor do processo revolucionário
(desde a intentona mal sucedida de 1905, até a campanha vitoriosa de 1917), ao passo que o
opositor, figuraria ainda como um coadjuvante no processo, chancelado por Lênin, mais a
frente, de um procedimento junto ao ProletKult, como faceta não atrelada à administração e
encaminhamento partidários (desvinculação essa, a qual cessaria após o exílio de Trotsky e
expulsão dos Companheiros de Viagem, da URSS, durante o rigor stalinista, realocando o
ProletKult como braço estatal da cultura)92.
Seria o ProletKult, precisamente uma das grandes preocupações que figurariam no
interesse de outro importante artífice da revolução: Leon Trotsky. Como consequência ao fato
de que, após a morte de Lênin em 1923, assumisse como sucessor mandatário, Josef Stálin, o
qual, por dissidências políticas pregressas com Trotsky, o exilaria (destituindo-o do Partido
Comunista da União Soviética - PCUS), levando assim que mantivesse como vínculo com a
URSS apenas correspondência de mensagens com o grupo organizador da Cultura Proletária:
os chamados Companheiros de Viagem93, amigos pessoais de Trotsky, intelectuais e artistas,
92DOBRENKO, 2017. Op. Cit. 93Aqui citados os de DOBRENKO, 2017. Entretanto, das referências aqui utilizadas, como TROTSKY (1932),
aparecem os companheiros de viagem com a grafia camaradas de estrada, em texto do jornalista francês Maurice
Parijanine, a cobrir reportagem com Leon Trotsky, em séries de correspondências em torno da questão da cultura
proletária (Reportaje A La Cultura Proletária, Abril de 1932).
67
que amealhados desde antes de seu ingresso nas realizações revolucionárias, seriam
convocados a integrar as discussões sobre a composição de uma forma de arte inovadora
atrelada aos princípios de revolução, socialismo e às premissas de ruptura com a vigente
iconografia artística.
Ressalte-se que, ainda sob o principiante governo vigente, seriam os companheiros de
viagem, tolerados com certa discricionariedade de ação, sob o rigoroso regime. Em uma das
correspondências referidamente trocadas entre o grupo e o revolucionário, Trotsky comentaria
duramente contra os encaminhamentos da cultura na URSS, sob o condão da estética Realista
Concretista, relatando dentre suas frustrações, o baixo teor de qualidade e originalidade das
obras artísticas em vanguarda na estilística estética partidária (da literatura à pintura,
principalmente), em comparação ao que se havia nutrido como expectativa para esta produção
autêntica e proletária cultural, e seu produto real, logo nos primeiros anos após a revolução94.
Eis o excerto do revolucionário, em comento ao assunto em troca de cartas com o
jornalista francês Maurice Parijanine, em Reportagem a Cultura Proletária, datado de 1932:
Exprimo minha atitude em relação à cultura proletária em meu livro Literatura e Revolução. Oposição da cultura proletária à cultura burguesa é incorreta, ou apenas
parcialmente correta. O regime burguês e consequentemente também a literatura
burguesa, desenvolvida ao longo de vários séculos. O regime do proletariado tem uma
vida muito curta, é um regime de transição para o socialismo. Enquanto o regime
transitório (a ditadura do proletariado) existir, ele não pode criar uma cultura de classe
que seja de certa forma completa. Ele só pode adaptar os elementos de uma cultura.
O objetivo do proletariado não é criar uma cultura proletária, mas produzir uma
cultura socialista baseada na sociedade sem classes (TROTSKY, 1932; traduzido aqui
do espanhol).
Dissertando acerca das precipitações com as quais se deveria tomar cuidado, ao
preconizar o empreendimento de um ProletKult, Trotsky afirmava em torno da proposição de
que não estivessem ainda prontos seus protagonistas, demasiado grosseiros e insofisticados
de uma educação formal no Socialismo95. O revolucionário volveria a carga, com a morte do
líder Lênin, com grande furor à figura de Stálin, onde em ocasião futura, seria empreendido o
conceito estético preconizado de ser o tradutor do marxismo em forma de arte – o Realismo
Concretista Soviético, de que se falará com mais detalhes a seguir96. A esse respeito,
94TROTSKY, 1932. Reportaje a La Literatura Proletária, Abril de 1932. Disponível em:
<http//www.ceip.org.ar/APENDICE>. Acesso em: 08/06/2019. 95Segundo Trotsky: ‘Na medida em que uma cultura é proletária, ainda não é cultura, a cultura não é mais
proletária’; Parijanine segue a esse respeito: Sua ideia é muito clara: uma vez que o proletariado toma o poder,
quanto mais alta sua cultura, mais ela deixa de ser proletária para se dissolver em uma cultura socialista. Fonte:
TROTSKY, 1932. Op. Cit. 96A estética em menção possui uma variedade de nomes para descrever o mesmo movimento: Realismo Concreto,
68
desacatando a manifesta mediocridade da produção de arte literária em voga na URSS,
comentaria o seguinte:
Caros amigos: Eu recebi o interessante jornal mural, e a cópia do Oktyabr que contém
o artigo de Serafimovich. [2] Acredita-se que essas curiosidades
dos labirintos burgueses de Lettres estão destinadas a criar uma literatura" proletária.
Obviamente, não é mais do que uma falsificação pequeno-burguesa da segunda ou
terceira ordem. Seria igualmente correto dizer que a margarina é "manteiga
proletária". [3] O bom e velho Engels caracterizou perfeitamente esses senhores,
especialmente quando se referiu ao escritor francês "proletário" Valles. .[4] Engels
escreveu a Bernstein em 17 de agosto de 1884: “Não há razão para você ser tão
satisfeito com o Valles. É um charlatão literário deplorável, ou melhor, com
pretensões literárias, o que representa absolutamente nada por si mesmo. Devido à
falta de talento, ele superou os elementos mais extremistas e tornou-se um escritor "com uma causa" para trazer à luz sua literatura podre. [Aqui o sublinhado é de
Trotsky. M.Parijanine]. Nossos clássicos eram implacáveis nesses assuntos, mas os
epígonos transformam a 'literatura proletária' em um saco de mendigos em que eles
pegam as migalhas da mesa burguesa. E quem não está disposto a aceitar estes
mendigos como literatura proletária é chamado de 'capitulador'. Ah! Aqueles
personagens vulgares! Aqueles charlatães! Essas pessoas desagradáveis! Esta
literatura é ainda pior do que a malária que já está começando a se espalhar aqui de
novo ... (TROTSKY, 1932; traduzido aqui do espanhol)97
Sua crítica provinha do próprio conceito de cultura em debate entre os socialistas
àquele momento. O qual se circunscreveria nas demais discussões de cultura colocadas no
amplo cenário de deposição de uma cultura burguesa, para instalação de uma cultura
socialista. A esse respeito, pontuaria (em nova correspondência a M. Parijanine, em 2 de abril
de 1932):
Uma nova literatura e cultura não podem ser criadas a partir de indivíduos isolados que vêm das classes oprimidas. Eles só podem ser criados por toda a classe, todo o
povo, uma vez libertos da opressão. Violar as proporções históricas - que neste caso
significaria superestimar as possibilidades da literatura e da cultura proletária - tende
a desviar a atenção dos problemas revolucionários, derivando-os aos problemas
culturais. Ela isola jovens escritores ou "aprendizes" de escritores de sua própria
classe. Ela os corrompe moralmente e, com demasiada frequência, os torna imitadores
de segunda classe com pretensões ilusórias. Na minha opinião, isso e apenas isso é o
que temos de lutar implacavelmente ("TROTSKY, 1932; traduzido do espanhol)98
Não seria, a proposta estética atacada, no entanto, resolução tomada por acaso:
detentores de três ferramentas poderosas de organização e distribuição da cultura na URSS (já
referidas supra), os dirigentes revolucionários – com vulto, sob o regime de Stálin –
perceberam a necessidade de um elemento ideológico e cultural, que se veiculasse como teor
estético, a fim de que se traduzisse às massas (majoritariamente, iletradas) os ideais políticos
revolucionários nas mais variadas formas de arte. Para isso, somava-se ao aparato, a criação
Realismo Concretista Socialista, Realismo Concretista Social, Socialismo Concretista ou Realismo Socialista
Concretista Soviético. 97TROTSKY, 1932. Op. Cit. 98Idem.
69
de um padrão estilístico de estética engajada a fim de funcionar como uma ferramenta
imaterial de orientação para o produto de realização artístico-intelectual alinhado à revolução:
o Realismo Materialista Soviético, uma corrente estética que insuflaria nos artistas locais um
espírito de ode a realização revolucionária, na figura do trabalhador, do soldado, do militante
e da mobilização, e pelo ufanismo à URSS. E por seu caráter materialista e realista, sempre
preconizando que em tais produções se pautasse como utilidade primeira à produção artística,
a função de educação e o ensinamento de valores partidários e desprovidos do apego a
conotações burguesas decadentes. Assim, por exemplo, ao invés do produzir-se de obras de
fantasia, ficção irrealista, melodramas e outros dilemas diletantes, dava-se insumo a produção
de obras extraídas a partir da realidade, nas quais se pudesse explorar o sentimento, a angústia,
a esperança, a revolta, a miséria humana e a redenção a partir do trabalho e da militância e do
engajamento político (DOBRENKO, 2017).
As características diferenciais desse movimento estético em relação a outros tantos
correntes à época, era o que estava em jogo: enquanto correntes estéticas como o Dadaísmo99
e o Surrealismo100, por exemplo, se voltavam à desconstrução da forma de arte (como
propusera de forma similar, Alexander Bogdanov) ou representariam em forma imagética o
subconsciente da teoria freudiana, a preconização do Realismo Concretista seria bem mais
direta e palpável: propaganda e consolidação em estandarte fisionômico da doutrina socialista.
Se um quadro de Dali se torna complexo ao olhar em sua tarefa de pincelada psicanalítica da
interpretação do sonho, de função estética pela estética, embora distinta em objetivo, não
menos árdua era a tarefa do Realismo concretista, em como traduzir um sonho possível de um
socialismo ideal – e real. A querela em que se adentrava, é que enquanto ia se fazendo de fato
o Socialismo, em medidas políticas, em Novos Planos Econômicos, em campanhas militares
e de modernização da União Soviética, ia se construindo, simultaneamente, essa fisionomia
do que representava o verdadeiro espírito desse Socialismo. Acabaria, em muito de sua
produção, em se tornar um pastiche publicitário, editor das características reais da vida
socialista, selecionando apenas os momentos dignos de serem transformados em panfleto: e
99Movimento artístico fundado em Paris por artistas franceses e alemães, com destaque a contribuição do artista
plástico romeno Tristan Tzara (Manifesto Dada), em 1919, que se opunha à beligerância e a nocividade da Primeira
Guerra e se traduziria em dimensões estéticas do tema pacifista-crítico de desconstrução estética, na pintura,
literatura e escultura. Fonte: HOBSBAWM, 1995; p. 144 100Movimento artístico-estético de vanguarda, fundado na França por André Breton, em 1924, com o Manifesto
Surrealista. Seu princípio estético de orientação seria o da recusa da forma convencional de sentir e a expressão
fisionômica dos processos de inconsciente, tradução em imagem do processo do sonho e da teoria psicanalítica de
Freud. Seriam seus baluartes, pintores como o espanhol Salvador Dalí, o francês René Magritte e o próprio Breton,
na literatura. Fonte: HOBSBAWM; 1995; p. 144
70
sob essa acusação, restaria considerado como um idealismo sobre o socialismo real que se
presenciava. Por exemplo, se as fábricas de metal pesado da engenharia, produziam bem, ou
as minas de carvão forneciam um exemplar modelo de conduta, como o mineiro Stakhanov101,
isso se tornava digno de figurar esteticamente, se tornando traduzido realista
concretisticamente. Agora, se um grupo de insurgentes, por divergências políticas, tinha de
ser reprimido pelo exército ou mães reclamavam da ausência de pão no mercado local, isso
jamais figurava como elemento retratável pelo movimento estético em questão. Por esse
modo, traía-se o que havia feito Gorki com suas denúncias da amargura e sordidez da vida,
ou aquilo que fora feito da obra de Dostoiévski, exemplificando a miserabilidade humana, e
se impunha uma versão irreal da realidade nas obras. Essa crítica, que se fazia em análise ao
produto do movimento, fazendo o balanço entre suas pretensões e as reais realizações
alcançadas, ficaria marcada na análise de GÜNTHER (apud DOBRENKO, 2017):
[...] são características dessa linha estética, o super-realismo, retrato da realidade com
intuito de demonstrar da arte provinda diretamente do elemento retratado, mas que
não se prende ao naturalismo, de modo que seleciona um aspecto idealizador do
retratado e nisso, cria uma noção que supera a do real, a aproximar-se do mito,
monumentalidade, se afigura e afilia em torno do épico e do grandioso, fazendo com que cada obra possua características que a categorizem como manifestação categórica
da representação ou forma máxima de arte, em cada gênero artístico, heroicidade,
remete a um ideal de representação máxima do elemento exemplar, redentor na arte,
algo lendário ou artificialmente concebido pela alegorização da vida,
autotrofia/tipicidade, na medida em que retrata um ideal da realidade, cria do recorte
retratado a própria conotação do que seja o real, e nesse reinterpretar, constrói aquilo
que esteja interpretando. Em outras palavras, se o ideal estético socialista concretista
buscava retratar o que de socialismo havia na realidade, ao fazer seu retrato, criava
esse próprio conceito de socialismo, retirado do real, mas que não verificável na
totalidade de seu elemento [...] apenas em seu produto artístico, onde em lugar de
conseguir capturar elementos sutis de um socialismo já impresso na realidade, a
recortava.
Seriam expoentes dessa linha estética, autores soviéticos em diversas searas ao longo
do tempo: Vladimir Maiakovski, na poesia (poeta revolucionário, em mobilização e estilo,
associado ao movimento Futurista; autor de À Esquerda, em 1920); Maxim Gorki, na
literatura (escritor romancista russo, guindado ao patamar de ícone maior da literatura do
Realismo Concreto Socialista; detém grande marco de sua produção literária com a escrita de
A Mãe, de 1906); Sergei Eisenstein (diretor russo e pioneiro do cinema soviético, contribuinte
101Operário modelo da URSS, que à década de 1930, teria conseguido bater o recorde de extração de carvão
mineral, utilizando-se apenas de sua ferramenta de trabalho, um método de divisão de tarefas entre carregadores e
extratores da carbonífera local e o princípio pessoal de fazer o melhor possível naquilo que fosse sua função, por
seus companheiros e pelo avanço do Socialismo. Seria levado por Stálin a excursionar, por breve período, pela
União Soviética, a fim de que ensinasse seu método de trabalho e ideologia pessoal aos diversos setores da
produção. Fonte: COURTINE, Jean-Jacques. Os stakhanovistas do narcisismo: body-building e puritanismo
ostentatório na cultura americana do corpo. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade. 1995. pp. 81-114
71
com sua obra magna, na película Encouraçado Potemkin, 1925) e Vsevolod Pudovkin (diretor
russo da geração pioneira da Universidade estatal de Cinema Soviética, fundada em 1918, por
preconização de Lênin, e onde desenvolveria-se, a partir de Pudovkin, a técnica de produção
chamada de justaposição, na cinematográfica montagem soviética), na cinematografía;
Alexander Rodchenko na fotografia (fotógrafo russo do AgitProp, com grande influência da
chamada tomada geométrica, cujas imagens em muito contribuiriam à composição estética e
comunicadora dos panfletos partidários; elenca-se de sua obra, O Pioneiro com a Corneta),
na música com Dimitri Shostakovich (sinfonista russo, criador de montagens de ópera e
ballets; conhecido por grande contribuição com a montagem do ballet The Bolt [tradução
inglesa], de 1938) e na produção musical áudio-visual, Dziga Vertov (Enthusiasmus: Sinfonia
Donbassa), entre outros. A fim de melhor ilustrar, sinestesicamente, esta profusão de ideais,
transformada em obra artística, servem como amostra os exemplares de esculturas oferecidos
a Mao Tsé-Tung, como presente dado por Stálin, logo após a Grande Marcha (1947-1949),
onde as feições dos trabalhadores e suas posições esculpidas em concreto remetem a estética
da arte moderna, no sentido da economia de detalhes e o aligeiramento dos traços
fisionômicos, ao mesmo tempo em que remetem a imponência esperada para o ato
revolucionário protagonizado pelos trabalhadores através de grandes membros (braços,
pernas, mãos e pés), cuja a robustez, procuraria sugerir o fato de que no território soviético
não havia espaço para a delicadeza ou vacilação na trajetória revolucionária e nem à
sensibilidade com mesuras burguesas (muito bem representada como uma ojeriza aos traços
finos e, em seu lugar, dando-se ênfase ao investimento na representação monolítica e sólida
de figuras fortes e pujantes dos homens e mulheres protagonistas do ideal soviético)102.
Esta estética realista soviética, bem como o aparato estatal correspondente, constituiria
um alicerce muito peculiar para determinadas produções soviéticas e, simultaneamente, um
entrave extremamente grande para outras. Por exemplo, artistas que houvessem sido
simpáticos ou partícipes na causa bolchevique, como o poeta Óssip Mandelstam (1891-1937),
mas não se dispusessem ao ofício de sua arte pelo caráter da vigente máquina de propaganda,
eram considerados subversivos e perseguidos (HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 98). Em
outro exemplo, as produções de cunho político-partidário reflexivo em sentido opositor ou
crítico ao regime, bem como, obras de ficção científica ou fantasia, seriam barradas, vetadas
e, inclusive, poderiam ensejar a investigação de seus autores e resultar em sua prisão. A
exemplificar essa afirmação, o caso do escritor russo Alexander Soljenitsin, preso durante a
102SOUZA, Henfil de. Henfil na China: Antes da Coca-Cola. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Codecri. 1981.
72
Era Stálin, e que reabilitado em 1962, pôde realizar e publicar de sua obra Um Dia Na Vida
de Ivan Denissovitch, literatura de conteúdo revelador sobre a situação dos campos de trabalho
forçado da URSS, o qual seria inviável de veiculação no regime anterior ao Degelo. Outra
crônica interessante, refere-se a obra do autor polonês Stanislaw Lem, que teve alguns de seus
escritos recolhidos na primeira versão de sua obra Hospital Intergaláctico, de 1953, por
conteúdo suspeito, fazendo-o migrar, posteriormente, por seguridade pessoal e melhor
possibilidade de publicação, para o gênero da ficção científica (cunho menos político, com
menor chance de comprometimento à observação censora). Soljenitsin ficaria mundialmente
afamado pela denúncia categórica do regime prisional estatal com a obra Arquipélago Gulag
(1957-68, versão clandestina em manuscrito; publicado do russo ao francês em 1973-74) e
Lem, ficaria conhecido como autor do romance de suspense da Corrida Espacial103 (do lado
soviético), Solaris, de 1961 – posteriormente, adaptado ao cinema pelo diretor soviético
Andrei Tarkovsky, em 1972.
Sobre esse aspecto do uso político da corrente estética em referência, deve-se observar
que a direção ideológica da URSS no momento de sua realização, ficava a cargo desse
estrategista político, agressivo e pouco dado a inclinações sobre o sublime e o belo104, com
uma finalidade nada sutil: o culto à personalidade de Stálin, que seria (re)nutrido, após a
Grande Guerra Patriótica, de 1946 em diante, através do serviço de dois comissários leais e
implacáveis, Andrei Zhdanov (o mesmo que daria nome ao Relatório em resposta à Doutrina
Truman) e Vyacheslav Molotov – com destaque ao primeiro, a quem se atribuiria o nome da
era de terror de Zhdanovchichina, ou Terror de Zhdanov105 – promotores da política
103Disputa ocorrida durante a Guerra Fria, sucedendo a primeira fase da chamada Corrida Armamentista (Arms
Race), entre os protagonistas estadunidenses e soviéticos, envolvendo a questão da prospecção de tecnologia
bélica, onde a intenção com os avanços aeroespaciais, apresentaria uma continuidade do intuito de propaganda da
pujança técnico-militar de cada uma das potências, em forma de estratégia de defesa/ataque, em caso de conflito
deflagrado entre as mesmas. O termo em inglês para definir os eventos desse período, cunhou-se como Space Race
(Corrida Espacial), onde os avanços de cada sociedade ficavam medidos, segundo essa circunstância, pelos
avanços de sua capacidade tecnológica aeroespacial. Como exemplo disso, o lançamento dos Sputnik 1 e 2 (do
cirílico, Companheiro), satélites soviéticos lançados entre 1957-59 e o voo extraorbital do cosmonauta russo-
soviético Yuri Gagarin (Projeto Vostok; do cirílico, Oriente), em 1961, colocariam a URSS em vantagem nessa carreira espacial. Entretanto, ao final da década de 1960, o projeto da NASA (National Aeronautics and Space
Agency; traduzido livremente: Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço estadunidense), faria o pouso bem-
sucedido de três astronautas (Neil Armstrong, Michael Collins e Edwin ‘Buzz’ Aldrin) na superfície lunar (1969),
e colocaria, brevemente, um fim na disputa espacial, com vantagem norte-americana. Após isto, ambos os países
trabalhariam em esforço cooperativo na década seguinte, para poder realizar a colocação em órbita da Estação
Espacial Internacional (International Space Station, ISS; designada oficialmente como Soyuz, do cirílico, União),
em 1972-73. Fonte: Verbete Space Race, ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA; 104Utilizando de forma irônica, a expressão mordaz de Dostoiévski na obra Notas do Subsolo, de 1864, ao referir
ao pensamento kantiano, utilizado por certos críticos e intelectuais presunçosos de sua época, enquanto banalizava-
se de questões de miséria moral. Fonte: DOSTOIÉVSKI, 2013 105O chamado segundo terror, posto que o primeiro se daria durante os Expurgos (1934-1938), na fase de 1937-
73
persecutória mais intensiva durante a fase mega propaganda do pós-guerra – em lugar do
carisma faltante à Stálin. Não por acaso, a fonte emanadora de significativa parte dessa
vertente de publicidade/arte realista concretista, seria o AgitProp, enquanto Diretório Central
de Propaganda do governo. Nem por acaso, por exemplo, uma asseveração ao fato de que toda
remessa de arte tivesse de passar com anterioridade, necessariamente, pelo crivo dos órgãos
de censura e processamento de informações soviéticas. A questão era crucial: havia a
necessidade premente de reconstrução da União Soviética e uma forte urgência de não deixar
que o heroísmo da campanha militar vitoriosa viesse projetar ideias revolucionárias
fragmentadoras na unidade ideológico-territorial política da URSS, ou mesmo possíveis
nomes heróicos em concorrência à Stálin, o qual, por essa época, já daria sinais de uma saúde
cada vez mais prejudicada, demonstrada com constantes temporadas de retiro nas regiões
campestres ao redor de Moscou. Para endossar tal observação, observa-se o argumento de
MEDVEDEV, MEDVEDEV (2006, pp. 81-82):
O culto de um líder nunca pode basear-se exclusivamente no terror e na falsificação
da história, embora em seu Discurso Secreto de 1956, Kruschev alegasse que assim
havia sido. É preciso também que haja outros elementos, acima de tudo, realizações
concretas em escala histórica. Costuma haver também essa rara qualidade psicológica
e de personalidade que ficou conhecida como carisma. Max Weber pôs essa palavra
em circulação pelo fim do século XIX, sustentando que havia uma diferença
fundamental entre autoridade decorrente da lei e da tradição e a autoridade gerada por uma personalidade carismática. [...]. Mas existe ainda um outro fenômeno, o
pseudocarisma, que resulta em grande parte de propaganda muito eficiente ou
megapropaganda, não sendo indício de um intelecto extraordinário ou incomparáveis
dons proféticos. A megapropaganda contribuiu para criar uma aura de carisma ao
redor de Hitler, e foi também o que aconteceu com Stálin. [...] O poderio ilimitado
pode ter-se escorado no medo e num aparato de terror, mas foi fortalecido pela
existência de uma autêntica adoração de massa, estimulado e nutrido por uma rede de
propaganda e censura ubíqua e extremamente eficaz, capaz de sufocar qualquer
crítica.
Embora o poder do mandatário dos Expurgos não fosse apenas embasado na violência
é substantivo reputá-la e ao aparato de sua propaganda, papéis fundamentais na realização de
seu sucesso. E isso redundaria nessa observância de um cuidadoso direcionamento dos
conteúdos que iriam configurar o cotidiano e a ideologia do seu momento de gestão –
acompanhados de estratégicas e eficazes medidas políticas, sempre articuladas com uma dose
de desconfiança em relação à conduta de todos ao seu redor.
E nesse ínterim, conquanto a percepção do mandatário fosse aguda em relação ao papel
político e propagandístico da arte em sua administração e brindando o fato de que essa seja
uma pesquisa sobre cultura musical e suas imbricações sócio-políticas, para melhor ilustrar
1938. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 1995; p. 76
74
acerca do assunto, importante salientar a situação da música local e dos seus músicos em meio
às fases do governo de Stálin – entre às oscilações estéticas da exigência realista concretista e
os pendores políticos conturbados de um período perigoso ao ofício de tamanho prestígio
circunstancial.
1.4.1 Entre Estampidos e Marteladas: O marcial e o proletário na Música Realista
Concretista Soviética sob Stálin
Vivemos sem sentir a Rússia embaixo, não se ouvem nossas vozes a dez passos.
Mas onde houver meia conversa – sempre se há de lembrar do montanhês do Kremlin.
Seus grossos dedos são vermes obesos; e as palavras – precisas como pesos
Sorri – largos bigodes de barata; e as longas botas brilham engraxadas. Rodeiam-nos cascudos manda-chuvas; seu jogo: os meio-homens subjuga.
Um assobia, um rosna, um outro mia, só ele quem açoita, quem atiça.
E prega-lhes decretos ferraduras na testa, no olho, na virilha, na nuca. Degusta como quem prova uma framboesa, o osseta de amplo tórax.
Óssip Mandelstam (poeta russo, vitimado nos Expurgos) em Epigrama Contra Stálin, de 1933106
Embora marcante em suas características (quer de arte, quer de hâmstva107), no
período situado antes de se chegar ao terror de Zhdanov, a primeira fase108 da música da URSS
estaria em seu, por assim dizer, quarto movimento. O primeiro, logo após a revolução, seria
rumo à adesão ao Estilo Clássico (música clássica), favorecido durante o governo Stálin, com
intuito de tornar a pretensão de Lênin uma realidade: levar ao povo a sofisticação da educação
socialista através da oportunidade de acesso ao conteúdo de produção musical de requinte
com orientação ideológica construtiva. Figurariam ao longo dessa trajetória, ilustrativamente,
compositores clássicos como Sergei Prokofiev, Dmitri Shostakovich, e Aram Khachaturian.
Nesse ínterim, nos primeiros anos da administração stalinista, escolheria-se temas locais em
detrimento de experiências com conteúdo (Ocidental) estrangeiro, fracassando nesse ínterim,
por exemplo, a Associação de Músicos Contemporâneos, em 1927, por ser essa entidade
106MANDELSTAM, Óssip; ‘Vivemos sem sentir ...’; Trad. Boris Schnaiderman; Criação/Poesia; In: Revista
Estudos Avançados da Universidade De São Paulo, v. 12, n. 32(1998), p. 112; Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/eav/issue/view/694; Acesso em: 20/03/2021 107 Atribui-se ao escritor soviético Sergei Dovlâtov, a mais inteligível definição do âmago semântico dessa
expressão russa (sem equivalentes vislumbráveis em outros idiomas): “Esse intraduzível “khâmstvo”. Ali, ele
comenta que o “khâmstvo” (pronuncia-se “hâmstva”) “não é nada além de grosseria, arrogância e insolência
multiplicados pela impunidade”. Fonte: AMINOVA, Dária; 10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir; In:
Russia Beyond (10 de junho de 2017); Disponível em: https://br.rbth.com/arte/2017/06/10/10-palavras-russas-
impossiveis-de-traduzir_777840; Acesso em: 20/02/2021 108Por didatismo, reforçando aquilo de já mencionado, pode-se colocar a progressão da música da URSS,
vislumbrada ao longo do trabalho, como dividida em três fases principais: primeiramente, música estatal com
ênfase ao estilo clássico (de 1922 a 1955); em seguida, fase popular de radiodifusão (magnitofonnaia kult’ura; de
1955 até a primeira metade da década de 1960); sucedida pela fase dos grupos VIA (fase mais televisiva e
comercialmente ‘pop’ – cujo termo equivalente russo é popsovy (CUSHMAN, 1995).
75
desprovida dos caracteres elencados pelas novas preconizações ideológicas – ficando assim,
sem captura de recursos. Em seguida, durante os Planos Quinquenais (1928-32), o escopo da
antiga associação tornaria-se a Associação Russa de Músicos Proletários – RAPM [Russian
Association of Proletarian Musician, na transliteração ao inglês]109 (KREBS, 1970; p. 49)110.
A atenção do partido ao desenvolvimento da economia levaria ao segundo movimento,
onde em 1932, o Nacionalismo (re)impregnaria a musicalidade soviética, com a fundação da
União dos Compositores Soviéticos (braço do Ministério da Cultura) e a necessidade de
adesão dos músicos ao Partido (PCUS), como forma de garantir maiores recursos e
permissões. É aplicada a partir dessa época, a estética do Realismo Concretista à música.
Nesse sentido, temas como o sucesso dos planos econômicos, os avanços da produção local,
a prosperidade das colheitas, bem como, finais felizes que demonstrassem no cenário soviético
a possibilidade do êxito insuperável (como visto, por exemplo, até em reconstituições de
Romeu e Julieta, que na URSS, terminava com o casal vivo e feliz; MORRISON; 2016), se
tornariam progressivamente, não apenas sugestões, mas uma orientação a ser observada
rigorosamente na delimitação das produções artísticas. De modo indistinto, na música isso
figuraria importante imposição, importando em abandono a temas ocidentais, em busca de
inspirações mais tradicionais locais, no intuito de traduzir o Socialismo e seus ideais em
vanguarda sonora. Fazendo assim, com que os compositores trocassem o progressivismo
musical (experimentalismo) pelo patriotismo. A ópera Tikhii Don, em 1935, de autoria de Ivan
Dzerzhinsky, se tornaria um modelo icônico ao preconizado estético, em detrimento de Sra.
Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934), que embora composta pelo consagrado Shostakovich,
ganharia má-recepção e crítica no jornal Pravda (KREBS, 1970; p. 52). Os devaneios de
criação, inspirações inovadoras e as ideias de possíveis experiências na execução das obras,
daria lugar, àquela ocasião, a um profundo rigor de cartilha, sem grandes oscilações e
fortemente observado pelo escopo do aparato. Às portas dos grandes expurgos (1934-1938),
comandados pelo partidário Nikolai Yezhov, com a anuência de Stálin, qualquer peça ou
produção musical (óperas e novos ballets, por exemplo) que tivesse em seu conteúdo algo
considerado subversivo, mesmo por ligeira referência aos assuntos delicados à impressão do
governo, se tornava alvo, bem como seu idealizador, da perseguição local (MORRISON,
109A título de esclarecimento, em algumas obras, o referido coletivo [RAPM] é mencionado como Sindicato dos
Músicos da União Soviética. 110KREBS, Stanley D. Soviet Composers and the Development of Soviet Music. New York: W.W. Norton.
1970; p. 49
76
2016; pp. 276-78)111. Acusações de traição, destituições, retiradas de peças e libretos de cartaz
e obras em série desprestigiadas, seriam o saldo nas artes, daquilo que na política se tornara
uma tragédia. No âmbito das carreiras dos artistas, tal qual ao cenário político-militar, o
infortúnio de consequências mais profundas também seria vivenciado.
Com a campanha militar da União Soviética na 2ª Guerra Mundial (a Grande Guerra
Patriótica, de 1941 a 1945), a restrição e a ortodoxia à estética estatal diminuiriam
momentaneamente. Como acontecera com o efetivo militar e oficialidade do exército, os quais
haviam sido fortemente prejudicados com o terror das purgas de Stálin112, o número geral de
músicos também padecera e com isso, a falta de contingente às produções, bem como o
esforço colateral de guerra, levariam a uma trégua nas exigências estilísticas restritivas. Com
isso, a música clássica vivenciaria novo período com ênfase experimental (embora, por conta
do conflito ainda em curso, hinos e marchas também tenham marcado sua produção no
período). Com o fim da campanha militar e esgotado o papel ocupado outrora pela música de
111A metáfora destes dois importantes personagens da música clássica soviética resume uma bela representação
do clima geral vivenciado àquele momento. O autor comenta que produtores consagrados como Shostakovich e
Prokofiev seriam alvos dos Expurgos, tendo sido enquadrados duramente na produção de suas obras musicais
seguintes. Desde a má recepção da obra Sra. Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934) e de outra peça, o ballet O
Córrego Límpido de 1933, Shostakovich esteve em observação constante e foi afastado de produções futuras
envolvendo óperas ou ballets (mesmo tendo sido consagrado musicista ainda sob Kruschev e Brejnev). Prokofiev,
por outro lado, chegara da França pelo mesmo período (1935), como que para ocupar o lugar do colega de artes,
trazido sob as graças de um filho pródigo e brilhante em retorno à URSS. Entretanto, rapidamente, perceberia que embarcara em um embuste, ao ver que seu passe de saída para Paris de outrora, agora ficara retido e sua instalação
dentro da União Soviética era indeterminada e sob a categoria de produção ideológica, imposta pelo regime. Se a
música antes fora alvo de recepção ou vexame, em tempos anteriores, naquele momento, poderia significar o preço
da prisão ou mesmo de uma condenação ainda mais extrema: Shostakovich e Prokofiev seriam poupados, mas sua
produção musical e sua integridade psicológica não seriam mais as mesmas. Fonte: MORRISSON, 2016; p. 277 112Os dados são imprecisos e obscurecidos pela política local ao longo das décadas. Por exemplo, números entre
civis, de dados que estiveram disponíveis na Sociedade do Memorial de Moscou abertos ao público, continham
fichas de cerca de 11.000 pessoas condenadas (MORRISON, 2016; p. 287). No entanto, para além dos dados
disponibilizados outrora, numa estimativa muito pouco clara, os números das purgas flutuam entre 7 milhões e 23
milhões de aprisionados. Contudo, o número entre partidários é mais preciso, sendo que de 1934 a 1937, apenas
quinze candidatos eleitos do PCUS, de cada 140 que se haviam elegido, conseguiriam ainda figurar em liberdade.
Dois terços dos oficiais, nesse contexto, indivíduos que ocupavam cargos com importante imbricação política, seriam atingidos por essa persecução implacável (HOOBLER, HOOBLER; 1987; 61-62). Resultado: com a
oficialidade e efetivo militar em desfalque de grandes proporções, tornaria-se o Exército Vermelho, inicialmente,
suscetível a derrotas em sua iniciativa de resposta ao conflito mundial que se desenrolava (sublinha-se o episódio
de 1939, contra as tropas do General Mannerheim, da Finlândia, cuja ofensiva do Exército Vermelho não seria
páreo para as tropas de esquiadores do modesto efetivo militar finlandês, melhor treinado e aclimatado ao seu
terreno local; HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 70). Somente após dois anos de campanhas militares cruentas e
muito sofridas, as quais incluiriam ainda o esforço popular, a estrutura militar soviética se recuperaria, e assim
traria consigo as primeiras vitórias contra os nazistas, nas defesas das estratégicas cidades de Moscou, Stalingrado
e Leningrado – sob às ordens de importantes oficiais como o General Zhukov (Cerco de Stalingrado, 1941-43) e
o Marechal Timoshenko (Defesa de Moscou-Smolensk, 1941) – HOOBLER, HOOBLER, 1987; pp. 74-83.
77
ufanismo e estímulo às tropas, em 1946, a música soviética chegaria seu referido quarto
movimento, com o recrudescimento da censura sob o Terror de Zhdanov113.
Interessantemente, é observável que no decurso desse novo delicado momento de final
de década (1949), apareceria pela primeira vez na sociedade local um marcante movimento
juvenil de dissidentes culturais: os stilyagi (caçadores de estilo, em tradução do cirílico;
CUSHMAN, 1995; p. 36)114, coletivo de apreciadores de jazz estadunidense e de vestimentas
desafiadoras ao estilo sartorial dos cidadãos (e da juventude) soviéticos. Adeptos de uma
fisionomia com influência claramente Ocidental – usuários de capotes compridos (suítes zoot),
em berrantes cores (preferentemente, de tom esverdeado), sapatos de solas grossas e calças
estreitas, sem deixar de faltar, aos rapazes, o cabelo mais comprido (penteado com gomalina,
para trás) – esses jovens apareceriam tanto em Leningrado (fundando numa importante praça
local, epitetada Broad, espécie de Broadway em versão soviética, no Prospekt Nevskiy, local
corriqueiro de suas reuniões), quanto em Moscou se tornando, embora em número modesto,
motivo de assunto local e, naturalmente, de espanto e de reprovação, sendo institucionalmente
satirizados – em suplementos juvenis humorísticos como o Krokodil, destinados à juventude
– e recriminados – pelo Komsomolskaya Pravda, segmento jovem do jornal Pravda estatal.
Em sua curta saga de congregação de adeptos, reunidos em torno de uma demarcação
de estética, visual e musical (contando com uma rede de circulação/ produção de materiais
clandestinos literários e fonográficos, que mormente abordados adiante no trabalho),
curiosamente, não seriam perseguidos por Stálin, posto talvez, terem sido vistos como algo
minoritário e frívolo, de tendência juvenil urbana (sem contar que, simultaneamente, o
mandatário estaria mais preocupado com situações como seu estado de saúde cada vez mais
debilitado e a circunstância político-biológica do chamado Complô dos Médicos115). Os
113Segundo opiniões de especialistas em cultura e arte, a música clássica da URSS após esse período, ficaria
marcada pela transição de uma complexidade estrutural tonal e de temas progressivos para um ligeiro declínio,
devido à abertura a outras possibilidades experimentais ocasionadas pelo cenário ‘permissivo’ da Era Kruschev
(Degelo). Fonte: KREBS, 1970; p.58 114O autor, Cushman (1995), se referiria ao trabalho de STARR (1983), sobre como a influência do Jazz Ocidental,
foi de instrumental importância na formação de uma cultura de jazz bem-desenvolvida na Rússia. Fâs do ritmo eram muitas vezes chamados de Stilyagi, ou algo como caçadores de estilo, combinando estilos ocidentais no
vestir (como zoot suits), jargões próprios do movimento beat (corruptela, possivelmente, de beatnik), presentes no
repertório da cultura do Jazz, e uma voraz vontade de adquirir tal ritmo como modo de formar uma vibrante
subcultura dentro da complexa infraestrutura da repressão cultural. Tal capacidade de criatividade simbólica
(processo de uso ativo da cultura por atores a fazerem significado à sua existência; WILLIS, 1990 apud
CUSHMAN, 1995; p. 34), segundo comenta o autor, futuramente, seria fundamental à emergência da subcultura
musical do rock na Rússia. 115Também chamada Conspiração Mingreliana. Foi um incidente de perseguição no final da Era Stálin (início dos
1950), onde acusava-se a atuação de médicos soviéticos, de ascendência semita, como responsável pela eliminação
sistemática de importantes dirigentes do Partido – resultando na detração de suas imagens e condenações criminais.
78
stilyagi teriam como um baluarte comentarista o jovem Vasiliy Aleksenov, um emigrado
provinciano que viera estudar no Instituto Superior de Moscou (Universidade de Moscou) e
lá se tornara porta-voz do estilo. Já nesse rudimentar movimento dos stilyagi, embora de
efêmera duração, ficaria presente a característica recorrente em movimentos culturais locais
(e cosmopolitas) logo a seguir: apelo por tendências estrangeiras, fator urbano, um caráter
jovem protagonístico e ligado a camada privilegiada local – entre os estudantes de ensino
superior e filhos de integrantes do serviço oficial e diplomático116.
A despeito de episódicos exemplares de dissidência na estrutura da URSS, em geral, a
música soviética até a década de 1950, seria revestida de forte apelo local, com intenção de
autonomia de concepção original e soviética. Toda revestida, majoritariamente, de uma
compostura muito metódica, a música soviética tinha consigo por definição, a pretensão de
ser um novo estágio na arte musical – sob influência direta do Realismo Concretista e formada
sob patrocínio e supervisão estatal partidária117. Nisso, conforme esmiuçado a seguir, seus
quatro principais gêneros viriam a desempenhar importante papel.
Como outrora observado, a música clássica, era a mais privilegiada, a figurar na porção
estética mais requintada, onde sua execução e sofisticação pudessem servir de estandarte,
ápice e forma de mediar os mais altos preceitos da educação socialista ao povo (temas
patrióticos, heroicos, triunfais, épicos), servindo (por si só ou em conluio ao ballet), como
exemplar excelente aos visitantes provenientes do exterior dos avanços alcançados pela
cultura socialista.
Já no circuito local, a chamada canção de massa (Massovaya Pesnya), ocuparia a
função de suprir o consumo interno, com composições mais simples e palatáveis ao gosto e
entendimento populares, oportunizando ainda assim, princípios educativos, embasados em
O episódio, é hoje revisto segundo novas informações (as quais não sugerem conclusivas as evidências levantadas),
na perspectiva de um estratagema anti-semita perpetrado dentro do regime soviético stalinista, com o objetivo de
destituição de figuras importantes no mundo científico da URSS. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006 116O relato aqui trazido é composto pela coleta de informações, principalmente, de duas fontes: COOKSON,
Matthew. The spark that lit a revolution. Socialist Worker, 2004. pág.7. Disponível em:
<https://w532/p7c.htmlww.iso.org.au/socialistworker>. Acesso em 08/08/2019; GELDERN, James Von. 1954 –
Stilyaga. Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível em:
<http://soviethistory.msu.edu/1954-2/stilyaga/>. Acesso em: 20/07/2020 117KELDICHA, Y. Massovaya (Mass Song). Music Encyclopedia. музыкальная энциклопедия_ м.: советская
энциклопедия, советский композитор. пoд пeд. ю. в. kельдыша. 1975-1982 [Tradução livre: Enciclopédia
Musical_ m: Enciclopédia soviética, compositores soviéticos. Sob supervisão de Y. V. Keldicha]. Academician,
2000-2021. Disponível (em russo) em:
<https://dic.academic.ru/dic.nsf/enc_music/4827/%D0%9C%D0%B0%D1%81%D1%81%D0%BE%D0%B2%
D0%B0%D1%8F>.
79
apreço do conteúdo lírico por sobre temas cotidianos, da natureza, da vida e do sentimento,
bem como de exaltação dos valores político-sociais – sempre com forte tendência otimista,
patriótica e de educação popular aos valores do Socialismo. Seu estilo seria menos épico e
triunfal que o da música clássica, mas ainda assim solene, a consistir em hinos e coros de
vozes, buscando coletivizar a performance, centradamente, vocal118.
A Canção de Massa estaria ladeada por mais dois gêneros (por vezes, considerados
subgêneros dela própria): a Estradnaya Pesnya, também chamada de Estrada Muzika (ou
simplesmente Estrada), a canção de palco (ou de apresentação), estilo de música interpretado
por artistas em performance solo, acompanhados por orquestra, contemplando temas
populares (por vezes, considerada junto à canção de massa, de acordo com o relevo de seu
conteúdo); e a Bitovaya Pesnya (músicas do dia-a-dia), canções folclóricas e patrióticas
populares, aparecidas em filmes, como trilha sonora e incorporadas a partir do repertório
popular ao proveito de uma nova gramática de conteúdo socialista – a tornar-se aí, novamente,
em repertório popular119.
A terminologia, bem como o estilo, da Canção de Massa teria seu apogeu entre as
décadas de 1920 e 1950, até ser substituída pelo termo Canção Soviética (Sovetskaya Pesnya),
com conotação semelhante, mas figurando um patamar maior que o da anterior – talvez, no
sentido de absorver os outros dois gêneros populares, Estradnaya e Bitovaya. Como no caso
dos outros dois gêneros descritos, a Canção de Massa também seria veiculada através de
filmes, trilhas sonoras, rádio e apresentação de artistas. Todavia por sua característica de
solenidade, aliada à sua forma sem acompanhamento, com relevo ao jogo-de-vozes e
performances corais, em geral, seriam devotada a ocasiões singulares, como celebrações de
datas festivas, aberturas de apresentações e eventos diplomáticos – sempre gravitando em
torno de marchas, cantos líricos e canções de cunho socialista ufanista.
Em resumo de trajetória, até as reformas de Kruschev, as formas de consumo de
música na União Soviética oscilariam em torno de três tipos principais de experiência:
apresentações de coros/artistas em locais públicos e eventos oficiais/ institucionais; trilhas
sonoras de filmes e produções televisivas; e reproduções em rádio (domésticas, mais raras, ou
118KELDICHA, 2000. Op. Cit. 119Idem
80
em veiculação em locais institucionais, mais corriqueiras), de materiais fonográficos
realizados por artistas, chancelados e produzidos segundo a égide do aparato e do Partido120.
Parte das oscilações partiriam do escopo político, mas também haveria toda uma sede
de questões materiais de possibilidade restritivas à realização da cultura em terras soviéticas.
Não fosse apenas o direcionamento algo bastante importante de se considerar, a produção de
arte local padecia de outro fator em defasagem. Esse fator, seria o do suprimento necessário
de uma autonomia na produção técnica inovadora pelos artistas, uma exigência partidária que
levava a que os artistas soviéticos tivessem que, atiladamente, produzir seus próprios meios
de possibilitação das obras artísticas, caso estes não estivessem disponíveis no aparato estatal
soviético. Para exemplificar, o cinema falado, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, já
seria uma realidade desde a segunda década do século XX, mas em terras soviéticas, esta
técnica chegaria apenas uma década após, pois seria quando os cientistas soviéticos
desenvolveriam a tecnologia de um cinematógrafo audiovisual complexo, integralmente
nacional. Não obstante, os recursos de produção deveriam passar por uma lista de submissão
ao Ministério da Cultura e ao Comitê Para Assuntos Artísticos (Komitet Po Delam Iskusstvo),
através de cada um dos respectivos departamentos específicos de cada obra artística (como
supracitado, para literatura, o precursor, Glavlit; para o cinema a Goskino; para a radiodifusão
a Gostelradio121, e assim por diante), trazendo como consequência que as produções (de cada
setor) tivessem que competir umas com as outras para que pudessem chegar à admissibilidade
do projeto, até passarem para a segunda concorrência: a dos recursos de produção. Daí por
diante, restavam sucessivas remessas do material produzido aos fiscais, para
acompanhamento, alterações e edições, e finalmente, as disponibilizações dos momentos de
lançamento122. Mesmo havendo estúdios setoriais para rodagem e gravação, todos respondiam
a um órgão estatal (selo) central – cinematograficamente, à Mosfilm; estúdio estatal de
cinema; e em radiodifusão, à gravadora estatal Melodiya – de modo que, tudo ficava a
depender de uma subordinação ao aparato estatal, num circuito composto por aprovação-
recurso-produção-lançamento-distribuição.
120Idem 121As transmissões ocidentais de rádio (em frequência AM ou de amplitude de ondas longas) alcançavam a
fronteira soviética e isso era previsto pelas autoridades locais: sinais de embaralhamento (jamming) e interrupção
das transmissões, enviadas de torres do setor de radiodifusão governamental, se opunham à circulação franca de
material da cultura proveniente do Ocidente. Ainda assim, significativo material musical Ocidental (resquícios de
transmissões de programas de rádio) conseguiria chegar até o público local. Fonte: CUSHMAN, 1995; p. 36 122Tudo isso pode ser nitidamente acompanhado nos diários do cineasta Andrei Tarkovski, traduzidos para o inglês
na obra Time Within Time (O Tempo Dentro do Tempo), da escritora inglesa Kitty Hunter-Blair (1994).
81
Isto porque, entre outras coisas, para além de propaganda, o conceito de cultura
preconizado pelo realismo soviético buscava uma sofisticação123 do seu público consumidor
(educação de massa), tornando-se este seletivo, o que asseverava a ‘peneira’. Consoante a
isso, no tocante ao consumo, a estrutura ofertada na União Soviética na administração de
Stálin, era um tanto precária em sortimento de alternativas de experiência de consumo, em
relação ao Ocidente, pois suas aquisições eram perpetuadas, em geral, na modalidade coletiva,
e desse modo, mais de música se ouvia através das rádios, ao invés de vitrolas e gramofones,
em geral (bem como, o audiovisual se assistia no cinema, muito mais do que em televisores
residenciais), ficando adstrita, também na distribuição, a uma demanda popular, exiguamente
discricionária (pouco espaço de alternativismo de gosto). Portanto, havia poucos meios de
consumo particular de produtos culturais e todos esses, desde discos a livros, ainda assim, a
serem oferecidos por meio da estrutura centralizada institucionalmente, distribuídos através
exibições ou locais de acesso público ou pelas lojas do Estado124.
Sem traçar paralelo de valor, a distinção da filosofia de consumo coletiva e socialista,
em relação a individualista capitalista Ocidental, acaba por constituir um problema de
123Segundo o preconizado por Lênin, os êxitos culturais burgueses não deveriam ser ignorados ou obliterados, mas
readequados, reorientados em proveito da construção do Socialismo. Dentre esses êxitos, pode-se considerar por
sofisticado aquilo relativo à uma Cultura standard; uma cultura consagrada. Cânone cultural, segundo Bourdieu.
O autor vai remeter-se em sua obra, A Distinção: Crítica a Razão Social do Julgamento (1982), entre outros
assuntos, de como esta aludida cultura constitui-se em baliza de uma distinção na disputa entre as distintas classes
sociais, um elemento de baliza aos processos de conquista de capital simbólico – o qual reflete, não raro, condições
do capital real – e trocas desse capital em condições mais favorecidas e opulentas, socialmente. Argumenta a esse
propósito, sobre caracteres de uma análise junto ao fenômeno da experimentação artística, a qual levaria a uma disposição estética (uma das dimensões institucionais, pelo ensino ou exposição, a serem incorporadas no
repertório do habitus), cultivo e refinamento (requinte), em oposição ao juízo de gosto (juízo de valor, de contato
e afinidade; popular, direto, não requintado), e a uma (progressiva busca pela) neutralização do eu em relação ao
produto da arte, ao invés da afirmação do eu pelo consumo – que resultaria em diferenciação social entre os
experimentadores de experiência de arte (contato) providos de disposição estética (neutros e requintados; em geral,
ricos, integrantes da elite) e os experimentadores vulgares (com juízo de gosto; em geral, populares), nuançando
uma distinção cultural evidenciada pelo escopo do modo de contato/interpretação relativo à produtos de cultura,
com a relação de pertença a distintas classes. Ressalta o autor, de como isso se faz determinante para a formação
do indivíduo, a auferir a que do lócus onde inserido o sujeito (a partir da análise dessa pregressa
inoportunidade/oportunidade), demonstram-se variáveis reveladoras de sua identidade e identificação (posição e
trajetória) no âmbito das classes, além de sua passagem e circulação nos diversos núcleos de capital simbólico e
junto às instituições culturais em suas instâncias. No que concerne ao esboçado dessa teoria e o encontrado na URSS então, considerando-se que mesmo da ausência de uma corrida por distinção com finalidade de afirmação
de classe, ainda haveria espaço para sofisticação enquanto apêndice da educação/instrução segundo a necessidade,
apontada por Lênin, de conseguir-se, por esse entendimento, uma disposição estética que pela educação superasse
à fase de juízo do gosto e se tornasse necessariamente apta a formar uma nova messe de intelectuais e profissionais
técnicos no Socialismo – algo a ser atingido por sobre os alicerces da cultura standard reconfigurada
ideologicamente pelos aparelhos estatais pertinentes e orientada segundo o Marxismo Científico. 124Como se veria no governo de Kruschev, as lojas estatais de departamentos: GUM; transliteração de Glavnoye
Unversaltsalyie Magazin, ou Principal Magazine de Gêneros Diversos, conceito de empreendimento de vendas
soviético, destinada ao atendimento de demandas de consumo, sob controle estatal, e que na década de 1950, após
o período Stálin, ofertaria um sortimento mais amplo de produtos aos consumidores soviéticos. Fonte: REID, 2002.
82
perspectiva acerca de uma análise da possibilidade de uma indústria cultural soviética, pois
por mais que se procure promover um distanciamento ao tratar desta análise, o vício de tomar-
se, precipitadamente, o modelo Ocidental como arquétipo de consumo de arte, leva a se retirar
conclusões distorcidas por sobre a interpretação na cultura e sua circulação em âmbito
soviético. Tomado este cuidado, e desmistificado o falso notório de que no Socialismo (ao
período em alusão, principalmente) sequer houvesse consumo em trocas pecuniárias ou
mesmo propriedade privada individual (objetos, pertences), torna-se muito mais palatável
entender que os bens de arte haviam, eram consumidos (havia mercado local), sua produção
não era demasiadamente heterodoxa em etapas, da do processo Ocidental e a única distinção,
seguramente relevante, é quanto a sua fonte emanadora (Estado) e sua finalidade –
sofisticação/educação socialista, voltado ao povo, mas tendo de atender mais à apreciação do
aparato (agradar-se ao Estado) do que um consumo mero ou de gosto, apelo de demanda
(agradar-se ao consumidor)125 – ficando próxima de uma fisionomia como a emprestada pela
análise de Walter Benjamin ao tratar do paradoxo acerca da arte e do público: a arte tem que
servir a todos, mas não pode ser para todos126.
Muitas mudanças ainda ocorreriam, de forma e conteúdo, elastizações e
recrudescimentos em torno das manifestações artísticas e da música, especificamente, nessa
trajetória soviética. Entretanto, para os fins pretendidos com essa pesquisa, tornar-se-á a falar
sobre os temas de produção, circulação e relações de consumo relativas à realização cultural
125Embora didática, essa não é uma referência precisa. Em geral, o artista na União Soviética, tinha de saber
equilibrar-se num agrado a ambas as partes dessa conjuntura simultaneamente, contemplando ao Estado e ao
Público. Importantes obras que a despeito de sua boa apreciação partidária não figurassem em sucesso na opinião
popular, também eram postas em observação e seus produtores/idealizadores, eram recriminados por má-qualidade
técnica ou quaisquer das classificações tendentes a desfazer de seu conteúdo, rumo a reformulações de adequação.
Fonte: MORRISON; 2016; p. 275 126O filósofo ponderava acerca da questão aludida por Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, se
o bem cultural produzido em massa, produziria o mesmo efeito a sensibilidade que o contato que o meio de arte
original. Quer no Ocidente, quer no Oriente, ainda hoje, tal qual outrora, se debate este acesso, se de fato seja
franco, quando da reprodução; e se quando balizado pelo gosto, se meramente mercadológico. A debruçar-se por
sobre o tema, BENJAMIN (1987), refutaria afirmações como as que debatidas no ínterim da indústria cultural, por
Adorno e Horkheimer, esta que entenderia haver mesmo um dilema de qual seria a autêntica a experiência estético-
cultural: se a do contato com a obra exclusiva (original), mas que não pode chegar a todos (situação em que se questionaria a que proveito se prestaria, então, se por sua exclusividade, menos operando como desenvolvedor
coletivo, do que como objeto/experiência de diferenciação), ou se da possibilidade reproduzida (como frisado em
termos de uma indústria cultural de massa), quando a muitos/todos do público chegada, a obra poderia preservar
de sua integridade experiencial o mesmo teor. Levando-se a ponderar: seria a arte da URSS mais autêntica, posto
que mais exclusivo seu processo; ou muito ao contrário, extremadamente artificial, por seu condão coletivo,
orientado e interferido estatalmente? Ponderações sem resposta, mas que se procura vir a dar possíveis
considerações, utilizando-se da análise do artigo do historiador russo Evgeny Dobrenko (no artigo, A Revolução
Soviética Entre A Cultura e O Stalinismo, de 2017), a trazer-se em seu bojo, a complexidade da composição destes
produtos de arte – quer na perspectiva desse realizado e transformado em discurso, do lado posterior do hemisfério,
quer do observado e estereotipicamente concluído como fisionomia do fenômeno, pelo lado de cá.
83
na URSS, num capítulo posterior (O Komsomol e o Consumismo), mas de maneira preliminar,
o que se deseja cristalizar em torno do até aqui aludido, principalmente, é o seguinte ponto:
para se fazer música na União Soviética – muito embora se possa pensar o contrário – se
haveria de atender a uma demanda determinada pelo mercado e coordenada pelo Estado127,
nos caracteres ideológicos e de produção. Tanto mais em se tratando de ritmos considerados
estrangeiros e estandardizados de culturas alheias ou antagonistas ao sistema vigente. Este
cenário, implacável em Stalin, viria a se abrandar consideravelmente durante o governo de
seu sucessor, Nikita Kruschev, o qual trazendo sérias divergências no tocante a administração
do antecessor, empreenderia diversas reformas suavizadoras à intromissão partidária e estatal
nos assuntos da sociedade civil, além de, promover uma reinterpretação da forma de se seguir
o materialismo dialético – imiscuído na instituição governamental e também na arte soviética.
1.5 ON THE ROCKS: OS POLÊMICOS ASPECTOS DO DEGELO DE KRUSCHEV
ABREM CAMINHO PARA O ROCK N’ ROLL
‘Stálin era um homem muito desconfiado ... Era capaz de olhar para alguém e perguntar: ‘Porque
você está assim, hoje, com esse ar astuto?’
Nikita Kruschev, Secretário-Geral da URSS de 1955 a 1964, autor do Discurso Secreto (Dos Vícios
do Culto à Personalidade, onde denunciaria Stálin, seu antecessor)128
A primeira menção ao rock and roll na URSS data de 1957, quando o Festival Mundial da Juventude e Estudantes aconteceu em Moscou. Ao mesmo tempo, surgiria a moda do jeans, tênis e badminton.
Antes mesmo das bandas soviéticas de rock 'n' roll, surgiram os primeiros grupos beat [...] A música
beat antecipou o rock, combinou elementos de rock and roll, rhythm and blues e soul.
Irina Malakhova, ‘Quem Foi o Primeiro a Tocar o Rock na Rússia?’129
127O epíteto vem justificado: conforme aludido anteriormente, em nota similar, era prática comum, entre outros
elementos do aparato, pra além da burocracia e a orientação, restringir-se a liberdade do acesso ao sinal
radiofônico-televisivo estrangeiro, por meio de torres de interferência que embaralhavam o sinal e eram operadas
pela Gostelradio, setor de monitoramento e distribuição do serviço de telecomunicações e comunicações de rádio
estatais, a serviço do Glavlit (aparato de comando central do monitoramento e censura do governo soviético). O
fato interessante, comentado por Vladimir Bukovsky, em sua obra de memórias de dissidente ao regime (How to
Build a Castle: My Life As A Dissenter, de 1979), fica em torno de como iniciativas de transmissão
intercontinentais, como as rádios Free Europe e Free America, por vezes burlassem esses empecilhos, através de
transmissões em ondas longas, e alcançassem com certa limpidez, o público soviético. Por conta disso, embora
pesem argumentos de liberdade à seu favor, na Era Kruschev, tais rádios seriam duramente combatidas com
fortalecimento das tecnologias de interrupção, bem como, com a investigação/repressão detalhada e mais discreta
possível, dos envolvidos em sua facilitação (HORNSBY, 2013). São elementos que mostram a dura realidade da
livre veiculação e sua (im)possibilidade ante o aparato das URSS. 128HOOBLER, HOOBLER, 1987. Op. Cit. p. 88 129MALAKHOVA, Irina. Култура.РФ. Кто первым играл рок-музыку в Pоссии? [Trad. Livre: Kultura.RF,
Quem foi o primeiro a tocar o rock na Rússia?] (2013-2020); Ministério da Cultura da Rússia. Disponível (em
russo) em: <http://culture.ru/s/vopros/rok-v-rossii/>. Acesso em: 20/02/2021
84
Recapitulando: se o período de assunção de Lênin seria considerado a Revolução de
Outubro130, seguido da Guerra Civil (1918-1921), a transição seria marcada pelos complicados
anos dos NEP, a assunção hegemônica de Joseph Stálin e seu estilo de governo peculiar, a viger
de 1922-1953. Desse período, inicialmente, a marca política mais notável seria a da fundação
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, em 1922), a transformação do Partido
Bolchevique, oficialmente em Partido Comunista da União Soviética (PCUS), seguida das
realizações na economia, como a deposição dos NEP empreendidos por Lênin e o Fechamento
do Regime Socialista na URSS ao modelo Soviético (Socialismo em Um Só País), decretado
em conjunto à perseguição dos kulaks (resquício das NEP, onde havia a presença tolerada de
pequenos proprietários [privados] de terras na administração agrária coletiva local) e a
Coletivização Agrária em massa (levadas a cabo antes e durante o Primeiro e Segundo Planos
Quinquenais; de 1928-32 e 1934-38). Mais adiante, sua política rumaria a um recrudescimento
ideológico e policial, antecedido pelo período moderado (1932-1934), que seria marcada pelos
Grandes Expurgos131 (1934-38), o assassinato de Trotsky (1940) e a colaboração juntos aos
Aliados, da URSS na campanha da Grande Guerra Patriótica – denominação local da Segunda
Guerra Mundial, que refere-se efetivamente, em declaração oficial, às defensivas contra o
avanço do exército alemão, de 1941 a 1945 [HOOBLER; HOOBLER, 1987] – precipitando ao
período do Terror de Zhdanov (de 1946-47) e derradeiramente, o Fim da Era Stálin (1953).
As pretensões políticas pessoais de partidários influentes próximos à Stálin, sucedendo
ao fim de seu governo (1953), dariam lugar a uma luta engalfinhada pela sucessão do poder.
Pouco antes do encerramento, por ordem de hierarquia, figuravam na lista de possíveis
sucessores ao posto de Secretário-Geral, os nomes de importantes militares e influentes
dirigentes políticos do partido – na seguinte ordem: Giorgyi Malenkov, Lavrentiy Beria,
Vyacheslav Molotov, Konstantin Voroshilov, Nikita Kruschev, Bulganin e Lazar Kaganovich
(e figurando como suplentes, Anastas Mikoyan e Alexey Kosygin)132. Embora não fosse o
imediato substituto segundo a linhagem da constelação política que se desenhava, Kruschev
130Assim designada pelos soviéticos, cuja ocorrência na contagem do calendário local vigente (modelo juliano),
corresponderia à data de 17 de outubro de 1917. No calendário Ocidental, seu marco de ocorrência se situa próximo
ao dia 25 de novembro do mesmo ano. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 99 131Purgas de Stálin, de 1934-1938, nome atribuído à perseguição sistemática de opositores político-ideológicos
do regime de Stálin (como exemplificado com o Caso Mingreliano e o Complô dos Médicos; MEDVEDEV,
MEDVEDEV, 2006), a qual consistiria em prática perpetuada institucionalmente até o fim do governo, em 1953.
Cronologicamente, a grande intensidade dessa perseguição, se daria no interregno pré-segunda guerra, contra
dissidentes do regime, em todas as esferas da sociedade soviética, amealhando desde cidadãos comuns até artistas
e políticos, com a consequência de que fossem julgados e sentenciados em processos legais questionáveis, e
levados ao encarceramento em campos de trabalho forçado (vulgos Gulag; REID, 2002), ou mesmo executados. 132MEDVEDEV, MEDVEDEV; 2006. Op. Cit. p. 66
85
articularia-se de modo a figurar como artífice na sucessão que seria decidida através de um
Conselho Ministerial provisório (o qual incluía os supra referidos nomes) – onde ao tomar as
decisões junto ao Presidium133, a figura de Kruschev começaria a se destacar (com seu mandato
principiando, oficialmente, em 1953, em conluio; e como secretário-geral, a partir de 1955).
Como em uma ardilosa e hábil manobra, aproximando de importantes generais e comandantes
soviéticos, Kruschev iria afastando Malenkov, Beria e Molotov (fato que só seria consumado
após 1957), que perdendo influência para o astuto partidário, seriam logo demovidos de seus
cargos de chefia, até culminar com seu desligamento compulsório do Partido (MEDVEDEV,
MEDVEDEV, 2006). Por último, Voroshilov seria afastado (1958), e em seguida, abriria-se
caminho para Kruschev estabelecer-se de vez no comando.
Longe de ser uma unanimidade, Kruschev encararia nos primeiros anos dessa transição
ao poder, duros ataques sofridos. Após a tentativa de reafirmação do alinhamento dos países
socialistas com a assinatura do Pacto de Varsóvia, em 1955 (cujas motivações e
desdobramentos, serão abordados na seção seguinte), e procurando promover sua linha de
administração pautada num distanciamento do estilo perpetrado por Stálin, Kruschev faria em
1956 – por ocasião da realização do 20º Congresso do Partido Comunista, por ele convocado –
o polêmico Discurso Secreto (assim conhecido por ter sido a portas fechadas e apenas aos
principais comissários àquele momento), onde expunha os vícios e terrores engendrados pelo
antecessor, denunciando que Stálin agira de forma corrupta e falseadora em nome de garantir
sua continuidade no poder, fomentada através do culto de sua personalidade. Mais do que isso,
assinalava aí o compromisso de não repetir tais atrocidades e de encaminhar a URSS para novo
momento na história (MEDVEDEV, MEDVEDEV, p. 42). Aproveitava para emendar com
isso, a defesa de uma nova forma de administração, voltada para o restabelecimento soviético
no cenário internacional e a retomada das relações estrangeiras com nações outrora preteridas
(entenda-se, potências capitalistas, da Europa Ocidental e da América do Norte). Essa postura
lhe custaria caro em sentido de aliança global: o Partido Comunista Chinês, comandado por
133Presidium do Soviete Supremo; Escritório central (chamado também de Comitê Central) do Partido,
responsável pela execução (Poder Executivo) das decisões do Soviete Supremo, ou Assembleia dos Secretários
Máximos da Administração Soviética (Poder Legislativo; espécie de Parlamento). Presidido pelo Secretário-Geral
(por vezes, cumulado ao cargo de Secretário-Geral do Soviete Supremo, mas não o de premier, cujas características
difeririam um pouco da convenção Ocidental), era organizado segundo a hierarquia de escolha dos membros
votantes. Conforme a estrutura do Partido Comunista da União Soviética se desse em membros candidatos e
membros efetivos, só poderiam figurar postulantes a integrar o Presidium, os últimos. Até 1966, seria chamado
segundo essa designação (Presidium) estatuída por Stálin a partir do 18º Congresso do Partido Comunista (em
1939), substituta a do outrora chamado Birô Político do Comitê Central da União Soviética. Na administração de
Leonid Brejnev (1967), ganharia uma nova denominação: Politburo. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006;
p. 65
86
Mao Tsé Tung, veria na deposição do stalinismo e na aproximação com o Ocidente uma conduta
revisionista134 e com isso, romperia relações com a égide da administração soviética,
procurando segmentar sua postura de influências locais, num estilo próprio, intensificadamente
– e provocantemente ao teor soviético – nacionalista.
Contudo, não tardaria a que no ano ainda em curso, houvesse o primeiro indício de
ruptura de sua assimilação dos companheiros dentre o Bloco do Leste: a Revolta Húngara e o
Outubro Polaco135 (ambas insurgências principiadas em outubro de 1956), movimentos que
discordavam da tomada de atitude que se instaurava em torno da teoria de Coexistência
Pacífica, defendida por Kruschev e esperavam liderança mais forte e representativa que a dessa
política de brandura. Sob argumentos de claudicador e derrotista em relação ao Ocidente,
Kruschev teve de demolir as insurgências com eficaz e severa atuação do Exército Vermelho,
reprimindo os levantes com violência e demonstrando que a liderança de Moscou não perderia
o controle da situação na porção Oriental. Ainda nesse ano, questões acerca do estabelecimento
do salário mínimo em sua administração, levariam a que se colocasse em delicada posição junto
ao apoio da população. Contornaria essa situação, fazendo uma descentralização das funções
administrativas do Kremlin, ao migrar parte considerável da administração burocrática e
centralizada no aparato de Moscou, para a coadministração e supervisão pelos Conselhos do
Povo (sovnarkhozes), que até 1957, o colocariam em vantagem de apelo popular significativa,
mas disposto perigosamente distante de seus dirigentes próximos no Partido e na sede
administrativa.
Conseguiria com isso, uma sobrevida até novo distúrbio: ainda em 1957, o complô Anti-
Partidário, levado a cabo e encabeçado por seus outrora companheiros de Comitê Ministerial –
e contendentes da sucessão – Lavrentiy Beria, Vyacheslav Molotov, Lazar Kaganovich, Georgy
134Terminologia crítica dentro da doutrina socialista, para referir-se àqueles que se desviam de uma interpretação
correta da teoria marxista, optando por uma interpretação revisada, segundo suas próprias inclinações ou
entendimento. É tida, segundo o teórico socialista francês Ludo Martens (1990), como um dos estágios de pejoratividade da classificação de conduta de um mau praticante político do Socialismo: o reformista, seria o
caráter mais leve, inclinado a apascentar tensões, através de política de promoção de pequenas mudanças
estruturais, ao invés de revolucionar realmente a estrutura em questão; o revisionista, como descrito, seria o
moderado, mas ainda assim, claudicador, por ferimento à teoria dos princípios socialistas; e finalmente, o
reacionário, visto como aquele que se coloca em oposição á hipótese da revolução ou, entreguisticamente, apoia
iniciativas da economia de mercado (capitalismo) e a continuidade da estrutura de classes. 135O uso do termo ‘polaco’ – em nada aqui pejorativamente colocado – em referência ao levante Polska Oktyabria,
cuida preservar a terminologia conforme encontrada nas fontes (GARAUDY, 1970; MEDVEDEV, MEDVEDEV,
2006) e na grafia anterior à reforma semântica da palavra no português, adequando-se ao vernáculo coetâneo ao
fato (que apenas atualmente, contempla a outras conotações).
87
Malenkov e Dimitri Shepilov136. Novamente, conjuminando forças com outros influentes
partidários (como o chefe do exército, General Zhukov137), Kruschev derrotaria os querelantes
e garantiria o caminho a novas realizações. Com o lançamento do satélite artificial pioneiro da
humanidade – o Sputnik – ao espaço, começaria a demonstrar qual seria o caminho da
administração da Era Kruschev: uma gestão progressista e espetacular, marcada pela
controvérsia, mas que retiraria de grandes feitos o apoio que lhe faltava em solidez de alianças.
E nesse sentido, a contraposição inaugurada desde logo sob as formas de uma Era
Kruschev, ficaria conhecida como a de um estado mais esperançoso do que aterrador. O epíteto,
conforme aludido anteriormente, seria o Degelo, tirado de uma homônima novela literária local
da época (em cirílico, Oteppel), referência em alusão ao período de relativa abertura política e
social, onde muitos dos outrora perseguidos haveriam de ser reintegrados bem como, acenaria-
se em circuito exterior, concomitantemente, com um apelo ameno à tentativa de retomada das
relações entre a União Soviética e o Ocidente – que viria a ser empreendida a partir do primeiro
grande encontro dessa transição, protagonizado por Kruschev e o presidente dos EUA, Dwight
Eisenhower, em 1955.
Assim, as atenções estariam mais voltadas ao mundo exterior, do que ao da sociedade
soviética como um cenário fechado, em duplo teor: a Corrida Espacial (Space Race, entre os
estadunidenses e os soviéticos) começaria a ensaiar seus primeiros passos marcantes rumo ao
espaço sideral e o contato com o pólo antagonista seria uma realidade mais palpável. Destaca-
se do período de Degelo de Kruschev, uma série de reformas, dentre as quais, por relevância
marcante: as trocas diplomáticas de 1955, entre a URSS e os EUA (com publicações recíprocas
entre os países, das revistas Amerika e USSR, contendo novidades sobre produtos, tecnologia e
costumes em ambas as sociedades138) que culminariam em uma visita aos EUA durante o
governo do Presidente Dwight D. Eisenhower, em 1959; a revisão acerca dos conceitos
estéticos artísticos, permitindo que autores soviéticos pudessem frequentar Festivais da Europa
Ocidental, de cinema, teatro, dança e apresentações culturais de maneira mais franca139; a
136TAUBMAN, William. Kruschshev: The Man and His Era. New York: W. W. Norton. 2004. 137O carisma político de Zhukov era devido aos seus feitos anteriores: entre as proezas de combate na Grande
Guerra Patriótica, ainda sob Stálin, o general havia sido o responsável pela derrota das frentes nazistas comandadas
pelo Marechal Von Paulus, durante as Operações Barbarossa, em 1943. Além disso, na ofensiva Vistula-Oder,
em 1945, seria o comandante que levaria o Exército Vermelho a ser o primeiro dentre os Aliados a marchar
vitorioso sobre Berlim. Fonte: HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 74 138HIXSON, Walter; Parting the Courtain: Propaganda, Culture and The Cold War, 1945-1961; Mac Millan,
1997. p. 117 139O parêntese pertinente a esta intersecção cultural da URSS com o Ocidente, recebe o epiteto de franco, para
diferenciar pretéritos contatos entre a cultura soviética e a Ocidental. Uma vez que estes já haviam ocorrido
88
reformulação dos ideais de consumo na União Soviética, acerca de propriedade individual,
permitindo que, não somente adentrassem gêneros musicais e de outros estilos artísticos vindos
da produção estrangeira para solo soviético, mas também permitindo que dentro da União
Soviética, artistas locais pudessem se experimentar dentro de outros gêneros de produção
artística – inclusive no sentido de reproduzir gêneros estrangeiros.
No aspecto nacional interno, o novo mote das reformas de governo ainda teria por
contemplar a consideração maciça da camada juvenil da sociedade soviética. Embora, pela
tradição revolucionária, desde o princípio houvesse papel e consideração à juventude
(Komsomol; esboçado nas brigadas da Juventude Leninista e Comissários Populares da
Juventude), o aceno da Era Kruschev com novas atrações para os estudantes e atletas, através
da realização de festivais culturais da juventude (como o memorável VI Festival Internacional
da Juventude e dos Estudantes, em 1958, a reunir em Moscou, jovens pensadores de vários
continentes, convidados a conhecer uma pujante e receptiva URSS140) e jogos internos das
nações soviéticas (Spartakiads), revelariam o grassar de tempos gloriosos por sobre uma
sociedade outrora horrorizada pela atmosfera claustrofóbica do sovietismo penoso de Stálin
(MEDVEDEV; MEDVEDEV, 2006; citando a Kruschev), marcado pela ação policial (do
MKVD/KGB) e obscurecido pela circulação restritiva de conhecimentos e contatos com a
sociedade exterior.
Neste ínterim, com uma mudança social que ía de um abrandamento ideológico-
partidário sobre certos temas, a reabilitação de artistas e possibilidade de contato com
diferentes ritmos musicais vindos da porção Ocidental (no caso estadunidense, o folk, o country
e o rock ), passando-se ainda, por uma flexibilização do império ideológico do realismo
anteriormente, em casos como a cooperação EUA e URSS referentes a pesquisas de alimentos (culturas agrícolas,
técnicas de colheita e produtos possíveis de produção alimentar em solo soviético) – como as realizadas pelo
premier Anastas Mikoyan, a serviço de Stálin, durante a década de 1920. Também se salienta o caso dos Trophy
Films, filmes estadunidenses entregues à Stálin, durante o período de integração da URSS junto aos Aliados (na Grande Guerra Patriótica), e que seriam exibidos – muito seletivamente – durante o fim da década de 1940, por
conta do depauperamento das produções cinematográficas soviéticas, devido ao maciço esforço de guerra, que
levaria a uma diminuição tremenda da produção nacional local e a necessidade de recorrer-se aos conteúdos
cinematográficos entregues pelos estadunidenses, como forma de manter atuante, com diversidade de títulos, o
funcionamento dos cinemas locais – KEPLEY JR., Vance; Kruschev Thaw. Não obstante, endossam essa
afirmação de contato soviético-estadunidense, as apresentações dos famosos corpos de ballet russo, Kirov e
Bolshoi, a audiência dos diplomatas e autoridades dos EUA, em solo soviético, durante Stálin, servindo de
embaixadores político-diplomáticos da cultura da União Soviética, muito antes da coexistência pacífica da doutrina
política promovida no período do Degelo de Kruschev. Fonte: CROFT, 2009. 140CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 36
89
soviético, criou-se o cenário fundamental a geração de uma nova vanguarda de artistas musicais,
bem como uma camada consumidora diferenciada à do período anterior.
No âmbito social, acerca das transformações vivenciadas, desencadeadas por essa
política de Kruschev, deve-se frisar que a partir desses jovens recém libertados, deslumbrados
com a abertura, curiosos e ávidos por consumir e conhecer, estaria ofertada um novo elenco de
possibilidades, em que agora poderiam ouvir rock141, jazz e entre outras músicas estrangeiras,
podendo adquiri-las no circuito de consumo usual e também clandestino (como discorrer-se-á
mais adiante). Há que se recordar, que mesmo antes de Kruschev, essa juventude deslumbrada
estaria tendo como precedentes, conforme outrora descrito, o jovem movimento cultural urbano
Stilyagi 142, ávidos consumidores da moda, da estética e da sonoridade estadunidense –
principalmente, do jazz, do foxtrot e outros ritmos precursores ao rock – aos quais se reputaria,
não sem alguma razão, uma posterior iniciativa da formação de um rock da União Soviética. E
nesse sentido, quanto às possibilidades urbanas mais propícias ao fenômeno na Era Kruschev,
se estaria vivenciando uma urbanização sem precedentes na história soviética, primeiramente,
numa escala de território nacional, novamente gravitando em torno da República Federativa
Socialista Soviética da Rússia (RSFSR), por ser a república central do sovietismo, polo diretivo
político-administrativo dentre as muitas nações da URSS e por ser a maior exportadora,
produtora e diretora cultural das produções artísticas soviéticas – seguida de longe pelas demais
capitais culturais e administrativas, Kiev e Odessa, na República Federativa Socialista Soviética
da Ucrânia e pela capital polonesa Varsóvia. Por conseguinte, considerando-se a geografia
especificamente urbana e situada dentro da RSFS da Rússia, destaca-se o cenário de duas
cidades: Leningrado (São Petersburgo) e Moscou.
Como esclarecimento reincidente à justificativa dessa escolha de cobertura, deve-se
recordar o compromisso com um recorte temporal-temático preconizado com essa pesquisa,
que por questões de exequibilidade, procura evidenciar o cenário cultural musical do rock russo
soviético, abrangido nessas duas principais cidades, Leningrado (São Petersburgo) e a capital
federal Moscou, cuja demografia e relevância logísticas pertencentes a sua circunscrição
141Aqui se alude majoritariamente a influência do rock estadunidense, por respeito à trajetória de criação deste
ritmo, oriundo de variantes do blues, do jazz e do country, em solo norte-americano. Contudo, é vital mencionar
que nas décadas de 1950 e 1960, a invasão britânica protagonizada pelos Beatles e os Rolling Stones, constituiria
marcante passagem na URSS. Como um dado a ser considerado nesse sentido, ressalta-se que boa parte dos discos
pirateados, nessa época, seria de reimpressões de vinis do Fab Four. Fonte: PAPHIDES, 2015 142Fonte: Jazz in the USSR: Freedom, Popular Culture and the Decadent West. Acesso em: 05/03/2019.
Disponível em: https://honoursreview.com/blog/2019/3/29/jazz-in-the-ussr-freedom-popular-culture-and-the-
decadent-west
90
territorial, as tornariam centros fundamentais à circulação do capital cultural e intelectual mais
expressivo, tradicionalmente, na região – a servirem, portanto, de ponte cultural e de palco
majoritário ao incipiente fenômeno no território soviético – embora fique mencionado mais
adiante, e reconhecido como trajetória, a passagem e importância do cenário rock local em
outras eventuais cidades durante a história desse movimento cultural na URSS.
91
SEGUNDA PARTE: DO DEGELO À DÉTENTE
2.1 1960´S LADO A: KOMSOMOL E O CONSUMISMO: OU A URSS A CAMINHO DAS
ESTRELAS
O que o socialismo condena na ‘sociedade de consumo’ é que seja um sistema social cuja mola
mestra é o lucro e onde, sendo os artigos produzidos em massa os mais rentáveis, é preciso criar
artificialmente necessidades a escoá-los: é exercida então uma pressão constante para modelar os comportamentos estereotipados, entre os quais, o lançamento de ídolos para os jovens é a expressão
mais notória [...] A recusa socialista desse modelo de sociedade, não significa em absoluto a recusa
em se adquirir os meios que libertem-nos de trabalhos repetitivos e penosos, a fim de conquistar espaço e tempo à uma vida propriamente humana. Recusar por princípio os frutos do progresso
técnico, as riquezas criadas pelo trabalho e gênio dos homens, é uma forma de austeridade arcaica e,
em última análise, de malthusianismo, inteiramente contrária ao espírito do marxismo.
Roger Garaudy, filósofo e militante comunista francês em Toda A Verdade143
Torna-se agora, durante o Degelo promovido por Kruschev, a uma análise mais voltada
aos aspectos sociais que foram possibilitados com os fatores de novas características de
consumo e a nova possibilidade de trânsito de informações e pessoas na região. O rock, em
palavras diretas, só poderia se desdobrar como fenômeno local, a partir de um consumismo e
caráter internacional presentes, os quais provinham dos fatores possibilitados pela doutrina da
Coexistência Pacífica e as reformas da Era Kruschev. Não obstante, uma revolução tecnológica
também se fazia grassar pelo território soviético. A partir das discussões com o presidente
estadunidense Eisenhower, no final dos anos 1950, o mandatário da URSS se colocara a refletir
por sobre um dilema doméstico: seria de fato uma nação progressista aquela que não fazia as
benesses de seus avanços alcançarem a vida cotidiana de seus cidadãos?
Àquele momento, há que se considerar que a metal-mecânica industrial e bélica
soviética haviam atingido patamares sem precedentes na história da humanidade. Um satélite
avançado havia sido lançado, logo sondas espaciais e mísseis intercontinentais se seguiriam, na
chamada Corrida Espacial. Seriam essas conquistas nacionais, indubitavelmente, mas ao
observar-se a estrutura de moradia e o acesso à produtos de que seu povo dispunha, Kruschev
se questionaria de qual seria o papel desses progressos. Como bem observaria, em seus
discursos durante os Congressos do Partido (a fim de justificar as reformas às quais daria
segmento), o sortido dos bens de consumo direto (das lojas estatais, do mercado local), era
escasso e de qualidade inferior (considerando-se os padrões da Europa Ocidental e do demais
do Ocidente), e as moradias padeciam de um formato que não favorecia, segundo sua análise,
143GARAUDY, Roger. Toda A Verdade. Trad. De Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 1985. p.
71
92
a estrutura familiar com maior intimidade – o ápice da discussão Eisenhower-Kruschev, tocara
num ponto delicado das privações sociais domésticas locais, acerca da ausência de cozinhas
individualizadas (em russo, individualnyy kukhni), para cada família, visto que aos olhos
ocidentais, a URSS ainda se representasse sisuda, embora potente, parecia paupérrima em
aspectos de conforto e acesso populares.
Com esse pensamento, durante a American National Exhibition (tradução livre: Mostra
Nacional Americana) em 1959, contando com exibição de bens de consumo e tecnologia
estadunidenses numa feira temporária sediada em Moscou e aproveitando-se da boa fase das
relações URSS-EUA, o então vice-presidente Richard Nixon provocaria os brios do mandatário
local, Kruschev, ao falar da superioridade capitalista a partir da perspectiva de uma cozinha.
Suscetível a provocações (TAUBMAN, 2004), Kruschev naquele momento refletiria acerca
dessa evidente pedra-de-toque do orgulho socialista: o bem do povo, pontuando-se nisso, com
a descrição comezinha e mordaz em torno do jogo-de-cozinha e a inexistência de seu espaço
nos habitáculos populares, de como uma mãe de família, trabalhadora e partidária, deveria ter
a oportunidade de poder desfrutar de um momento mais tranquilo, nesse ambiente integrador
do espaço doméstico, ao tornar à sua casa e encontrar-se com sua família ao final de cada dia
de trabalho. Deve-se observar a data dessas opiniões, onde ambas as sociedades, embora com
suas distinções devidas, viam um papel muito conservador ainda em torno da instituição
familiar (principalmente, no tocante ao papel da mulher nesse ínterim doméstico). Não obstante,
isso colocaria o secretário-geral a pensar sobre as necessidades de consumo locais, ainda que
tais valores em jogo tratassem de princípios ideológicos demasiado discrepantes, pois a URSS
tal como era, seria uma sociedade com orientação socialista, portanto, uma sociedade do
coletivo, e os valores a serem considerados da fala do vice-presidente estadunidense,
necessariamente, remeteriam a preocupações de ordem social adequadas a uma tradição do
modelo capitalista.
A questão entre Kruschev e Eisenhower, ficaria conhecida como Questão das Cozinhas
(REID, 2002; pp. 223-24), e culminaria num inédito programa de revisão do modelo de acesso
e variedade, nos padrões de consumo soviéticos: desde a construção de conjuntos habitacionais
populares, que seriam realizados já com a presença de novas cozinhas individuais, os quais
ficariam conhecidos como Kruschevskayas144 (ou Moradias de Kruschev); até um alargamento
144KHARCHENKO, Serhiy. As Khrushchovkas. The Ukraine Observer. 06 de fev. Kiev: The Willard Group.
2007. Disponível (em inglês): <http://web.archive.org/web/20070206132350/www.ukraine-
observer.com/articles/228/993>
93
dos gêneros de produção artística disponível. Como evidenciado anteriormente, tais reformas
seriam fortemente atacadas pelos detratores do regime, integrantes da linha rígida do Partido,
que veriam nesse consumismo recente, um precedente de cultura burguesa, uma decadência dos
valores do Socialismo.
No entanto, para a música, isto seria fundamental à circulação e ao acesso a novos
produtos culturais, novas experiências de consumo e contato com gêneros ainda desconhecidos
pelo público e da juventude locais. Assim, através do estabelecimento de uma rede mais vasta
de produtos nas lojas de departamentos, além da reforma urbana e de habitação, a sinalizar essa
nova ideologia estatal, Kruschev trazia uma tonalidade simpática à sua revolução de costumes
(ou reforma), angariando empatia junto ao povo para sua administração, enquanto nos aspectos
políticos e militares procurava continuar a imagem austera e eficaz do comando, ora superando
distensões no Bloco Socialista, ora superando crises internas contra seus administrados diretos.
A atitude de Kruschev, em um importante aspecto, trazia consigo uma tremenda
coerência: não apenas evitaria repetir Stálin, como simplesmente não o poderia. Então, desde
logo a única opção, pelo distanciamento de seu método de trabalho em relação ao do antecessor,
passava por estabelecer sua própria marca, onde talvez o apelo popular (ou populista, segundo
MARTENS, 1990), trouxesse a resposta aos seus anseios de caracterização.
Mesmo nos avanços militares, a oportunidade do tom de espetáculo se fazia sentir: o
Camarada Celeste (epíteto atribuído ao satélite artificial Sputnik), em 1957 e o sorridente
primeiro-tenente da Aeronáutica Soviética, Yuri Gagarin, a bordo da bem-sucedida viagem
extra orbital da nave Vostok, em 1961145, buscavam resumir numa demonstração poderosa, o
potencial do progresso socialista soviético. Como um sublime balão vermelho amarrado à ponta
de um barbante em uma AK-47, os projetos da cosmonáutica alcançariam os céus suscitando
um misto de encanto e pavor, e maravilhariam o mundo ao remeter o tom, interna e
externamente, que a sofisticação do poderio científico-militar da URSS, não seria subestimável
– e tampouco, o governo de Kruschev.
2.1.1 The Rocket and The Rock - Ensaios e Experiências: Dos satélites até Moscou, nomes
de músicos e bandas de rock da URSS de 1961 a 1970 O rock russo antes disso, nos
145REID, Susan, The Khrushchev Kitchen: Domesticating the Scientific-Technological Revolution. Journal of
Contemporary History n 40. Essex: Sage Publications. 2005.
94
anos 60, era completamente diferente. "Falcons"146, "Crickets", "Forest Brothers"147 e outros tocavam
exclusivamente música estrangeira, cantavam Beatles, Rolling Stones, Beach Boys, depois Jimi Hendrix, etc. Eles se apresentavam exclusivamente em bailes, em cafés de estudantes. Ninguém os
perseguiu, eles estavam em perfeita ordem e se multiplicaram em grandes números. Essa música não
era chamada de rock, mas de beat ou big beat.
Artemiy Troitsky, Vou Apresentá-lo ao Mundo Pop148
Uma curiosidade importante e esclarecedora repousa em torno do termo satélite na
linguagem russa. Em cirílico, a palavra é sputnik (спутник), e significa companheiro; parceiro;
camarada – daí sua alusão ao satélite artificial e aos países ao redor das fronteiras da RSFS da
Rússia. Os países-satélite, seriam, então, os camaradas da Rússia Soviética, que lhe fariam
fronteira ao contato Ocidental europeu, como uma membrana protetora, ou um fosso em redor
de um castelo, cuja ponte-levadiça seria guindada ou baixada conforme as pretensões políticas
dos administradores locais do Kremlin. Essa permeabilidade fronteiriça faria desses lugares,
importantes territórios de contato com o Ocidente, e por excelência, a primeira linha de defesa
da ideologia local ou da diplomacia permitida com a coexistência pacífica – resultando em um
trânsito singular, aumentado ou diminuído, das mudanças promovidas pelas reformas do
Degelo.
Seria precisamente durante esse momento de mudanças e afirmações, e por conta do
trânsito intenso de personagens estrangeiros na região, que o rock n roll chegaria como
realidade palpável à URSS. Tudo começaria em 1961 – enquanto as atenções se voltavam para
o espaço com o acontecimento do voo de Yuri Gagarin – numa das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, a RSFS da Letônia, o rock seria realizado inauguralmente por protagonistas
soviéticos. Ainda não seria a Rússia, mas o embalo da banda Revengers, composta por
estudantes filhos de adidos do serviço diplomático soviético, vinha dar nova perspectiva à
discussão de cultura da região. É claro, muito provavelmente essa não fosse sua pretensão
àquele momento, mais do que apenas a vontade de reproduzir o que se havia escutado na Europa
Ocidental ou trazido das viagens diplomáticas à terra do Capitalismo (EUA), sob a forma de
vinis e nos acordes da guitarra elétrica (MAROCHKIN, 2011a). Deve-se recordar que a
precariedade e o rudimentar acompanhariam essa aventura até mesmo no nome: Revengers é
146A citação refere-se ao grupo moscovita Sokol, por vezes traduzido Falcon ou Falcons ao inglês, posto ser esse
o significado da palavra e nome de distrito da capital federal soviética (Sokol: Falcão em russo). Fonte:
MAROCHKIN, 2011a 147Os nomes das bandas constam em inglês, grafadas conforme a transliteração encontrada na fonte. Dos grupos
Falcons e Forest Brothers, possivelmente se possa depreender como em referência aos grupos ‘Sokol’ e ‘Lesnya
Brath’, respectivamente, situados na cena rock/bigbit de Moscou dos anos 1960. Já acerca do grupo Crickets,
dados supervenientes ficaram de ser encontrados para uma afirmação mais precisa. 148MALAKHOVA, 2013. Op. Cit.
95
uma forma coloquial, de corruptela, de se falar a palavra inglesa Avengers (Vingadores) –
evidenciando-se assim, um desconhecimento específico do grupo, sobre tais terminologias
estrangeiras149. Todavia, exigir-se àquele momento, de alguns integrantes dessa juventude
soviética principiante no ritmo, um conhecimento impecável da língua inglesa, ademais de
exagero de zelo, seria quase uma impossibilidade, pois embora houvesse tais casos locais, eram
circunspectos à realidade geral, onde o número de falantes orientais eslavos em língua inglesa,
até a atualidade, permanece modesto150.
Ainda assim, os garotos da Revengers se arriscariam na reprodução dos acordes e da
língua exótica e tentariam, cantando em inglês, fazer do rock uma realidade local – algo que
seria descoberto logo a seguir por outros dos seus colegas de pioneirismo. E sobre esse início,
entre entusiasmado e tímido, comenta o jornalista e radialista russo Vladimir Marochkin,
através de sua autointitulada biografia criativa do rock soviético: Everyday Life of the Russian
Rock Musician (tradução livre: Vida Cotidiana do Músico de Rock Russo), disponível em
língua inglesa151152 e traduzida desse idioma, nas passagens constantes aqui durante o trabalho:
Nosso rock em 2011 completará 50 anos. Isso porque muito tempo se passou desde o
inverno de 1961, quando Valery Saiftudinov, natural de Riga (capital da República
Federativa Socialista Soviética da Letônia), apelidado de "Seyntski", colecionou o
primeiro registro de uma banda de rock nossa, da Pátria. Foi intitulada de Revengers
149Há que se esclarecer ao menos ligeiramente, que essa interpretação para a solução de nome do grupo provém
da explicação de Marochkin (2011a). No entanto, os termos ingleses venge/ to venge, avenge e revenge possuem
conotações próprias e peculiares. Por exemplo, venge/to venge se aproximaria do sentido de vingança, mas quase
como em uma vendetta contra uma ação sofrida [sentido de inconformidade; ato de lavar a honra], enquanto avenge
seria o ato de vingar a um terceiro [sentido de proteção; guarda]. Já revenge, no sentido de revenger, se daria com
o sentido de uma vingança mais profunda, rica em vileza e com um senso de sentimento muito propositado – diferenciando-se assim do sentido ‘de orgulho ferido’ de to venge, ou de ‘heroica atitude’ de avenge. Portanto,
Revengers, segundo essa conotação, traria consigo (se fosse tomado esse alvitre dos músicos), uma sutil
demonstração de reação a partir da atitude musical, a uma situação desagradável que os cercava, com a sutileza de
uma ação proposital e esquematizada – não meramente casual, nem heroica, mas de forma contundente. 150Este argumento, de fato, não totalmente determinado, baseia-se em indícios retirados de pareceres dentre os
depoimentos de Cushman (1995), também corroborados em Marochkin (2011a; 2011c), sem olvidar menções a
partir do Curso de Russo: Do Básico ao Avançado (Profº Vinícius de Oliveira Egídio). No entanto, cabe ponderar
que a informação acerca do número de falantes e compreendentes do idioma inglês na URSS (bem como na
atualidade da Rússia), ainda permanece uma incógnita. Isso porque, deve-se levar em conta que o ensino de língua
inglesa constituiria após o período do Degelo, mais e mais, parte integrante do ensino regular escolar soviético,
tomando-se em relevo a necessidade de se poder conhecer melhor o lado opositor e, eventualmente, estabelecer realações diplomáticas (algo que ZHUK [2015] irá melhor mencionar, ao mencionar do estabelecer-se ao longo
dos anos 60-70, de um campo de estudos acadêmicos americanistas na URSS). O que pode ter colaborado a
proporcionar um estigma Ocidental acerca do número reduzido de falantes reais do idioma bretão em terras
orientais, se deve a caracterização de personagens provenientes da URSS e Leste Europeu, muito caricatamente
retratados na mídia Ocidental (com forte sotaque russo na pronúncia inglesa, ou simplesmente, recorrendo à direta
interpelação a tradutores para a mediação em conversações entre estadunidenses, em geral, e soviéticos) –
observando-se que tal resultara como estratégia de disseminação de uma imagem depreciativa da cultura e preparo
do polo socialista. Por isso, à despeito da inconclusividade da apuração mais precisa, apenas em reciprocidade
com as fontes, procurou-se preservar o teor dessa argumentação. 151MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 152MAROCHKIN, 2011. Op. Cit.
96
["Vingadores"]. Eu não sei de quem ele estava se vingando [“Revengers” traduzido
para o inglês remete à “The Avengers”], mas foi equilibrado e não foi exagerado. Sua
banda tocava uma mistura de boogie-woogie, jazz e rock and roll, ou mais
simplesmente, dzhampl-jive [transliteração do termo referente ao estilo jump-jive, um
dos precursores do rock]. Essa foi a música, que formou a base da subcultura dos
jovens daqui, ainda antes de Bill Haley no grande palco e, a propósito, o apelido que
Seyntski recebeu, como se costuma dizer, proveio do nome de um dos sucessos
eternos do jazz "When The Saints Go Marchin 'In ”[“ Quando os Santos Marcham
Adiante ”], que ele tocava em um violão convencional sempre que fosse possível (e
mesmo quando não). Quando Seyntski começou a tocar, ele tinha 17 anos. No início dos anos 70, ele
emigrou para os Estados Unidos, onde, juntamente com Alexander Lehrman e Yuri
Gross, participaram do primeiro grupo russo-americano, "Sasha e Yura", tornou-se
famoso graças a seu homem na costa oeste153, e apareceu em programas com os mais
lendários rockeiros americanos. Agora ele tem seu próprio - e muito decente - estúdio
em San Diego, onde foi gravado por muitos músicos famosos. Seyntski visitou
recentemente Moscou. Seu cabelo ficou grisalho há muito tempo, mas aos seus olhos
há uma luz demoníaca do rock 'n' roll, movimentos rítmicos e, em geral, ele é
jovem! Surpreendente! Quase sessenta anos de rock'n rollschik; Seyntski sob outros
– muitos! – garotos de vinte e poucos anos, contornaram a festa do rock 'n' roll. Sim,
o homem que toca rock and roll é diferente da pessoa que não toca rock and roll ... [Tradução do inglês e grifo nossos]154
Na trajetória de um personagem da cultura local como Seyntski, muitos elementos se
transversalizam nessa imbricação cultural soviético-Ocidental. Jazz, boogie-oogie, rock e a
ousadia de precursionar na URSS o ritmo frenético. Da banda estoniana de Seyntski e seus
amigos, o precedente do rock rumaria até a capital administrativa soviética. Ainda em 1961, o
rock chegaria à Moscou por vozes locais – quer dizer, moderadamente. Integrantes da
Universidade Popular Estatal de Moscou (também chamada de Instituto Superior de Moscou),
os intercambistas poloneses da banda Mirage (banda cujo guitarrista seria Seweryn Krajewski,
futuro líder da emblemática banda do rock polonês, Red Guitar) e da Cockroaches (Taraskany,
em cirílico: Тараскани), fariam pequenas apresentações no campus, trazendo a nova
modalidade desse ritmo contagiante do rock n roll. No repertório, canções dos Rolling Stones
e os Beatles, que já seriam conhecidos pela circulação de discos e revistas de cultura juvenil, e
embora não fossem tão febris nas terras do Leste, faziam chamar a atenção daquela juventude
(MAROCHKIN, 2011a).
Em 1963, uma aparição efêmera faria a demarcação da tentativa russo-soviética de
principiar o rock local, os rapazes da banda russa Brothers (Bratya; em idioma cirílico, Братя),
se apresentariam em pequenas sessões estudantis, com um repertório mais firme em língua
153Faz referência a um contato de Seyntski (possivelmente, agente ou promotor musical) da Costa Oeste
estadunidense (provavelmente, na Califórnia) – entretanto, ao longo do texto, o ator não dá maiores pistas sobre
sua identidade. 154MAROCHKIN, 2011. Op. Cit.
97
inglesa e uma organização menos ocasional que as experiências anteriores (MAROCHKIN,
2011a).
Mas seria de fato em 1964, no circuito acadêmico moscovita, que prosperariam mais
solidamente as primeiras bandas autóctones da República Socialista Soviética da Rússia: a
Slavyanne (em cirílico, Славяннe) e a Falcon (em russo transliterado, Sokol; em cirílico:
Сокол)155, ainda com apelo em língua inglesa, mas com ousadia à maiores realizações. Por sua
influência estadunidense e britânica, essas primeiras bandas soviéticas invariavelmente se
colocavam a reproduzir os hits consagrados do lado Ocidental, com a máxima fidelidade
possível. Cantar em idiomas locais, à princípio, estaria fora de cogitação. Entretanto, reza a
lenda que de uma sessão de ensaio, confabulando com seus companheiros de música em 1965,
o líder da banda Falcon (Sokol), Yuri Ermakov (vocal e guitarra), faria a pergunta dourada:
afinal, qual o limite!?156 Qual seria o limite daquele projeto ousado, cantar em inglês – muitas
vezes –emulando o conhecimento em outro idioma, sem saber uma palavra ou se arriscar a
colocar a língua russa no rock n’ roll!? Seria essa a grande dor-de-cabeça que ficava entre o
idioma intimidador e o ritmo contagiante, que com ousadia, faria ganhar à segunda opção, e
com isso, surgiria a primeira canção de rock da Rússia soviética, fruto da composição dos
integrantes Yuri Ermakov e Igor Goncharuk157, oficialmente em língua eslava: Где Тот Край!?
(transliterada como Gdye Tot Kray? [Onde Está o Limite ?]158 – fruto de uma tentativa de
encontrar e arranjar palavras da língua local que conseguissem caber na temporalidade ligeira
do ritmo estadunidense (MAROCHKIN, 2011c159).
155MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 156A tradução de Gdye Tot Kray?, expressão russa que dá nome à famosa canção pioneira, pode ser traduzida,
alternativamente como: Onde Está A Fronteira?, ou Onde Fica Essa Terra? – referindo-se, tanto ao
questionamento enquanto metáfora (limite do projeto), quanto a fronteira territorial, pois kray (ou krai), é uma
expressão que designa território, distrito – muito provavelmente, evocando a distância real (geográfica) e de
circunstâncias entre a Rússia Soviética e o mundo Ocidental, de onde provinha o rock. Fonte: MEDVEDEV.
MEDVEDEV, 2006 157MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 158Segundo fontes pouco confiáveis, devido à escassez de confirmação, essas músicas teriam saído num álbum da
banda, gravado naquele ano sob o nome de Pretty Things (1965). Entretanto, Pretty Things (ou a versão
transliterada desse título), corresponderia de fato ao nome de um outro grupo à época em Moscou e o álbum não
poderia ser realmente do grupo Falcon/Sokol, pois este nunca teria obtido permissão para gravar um disco pelo
selo oficial estatal, tendo como seu registro remanescente apenas, uma canção em um disco que incluiria vários
artistas: a trilha sonora Filmh, Filmh, Filmh, do desenho animado de mesmo nome, realizado na URSS em 1968.
Fonte: MAROCHKIN, 2011. 159MAROCHKIN, Vladimir. ГРУППЫ 60-Х – ГРУППА <<СОКОЛ>> [Trad. livre: Grupos dos Anos 60 –
Grupo Sokol {Falcon}] Arq. De 17/out/2011; In: AGEEV, Alexandr; PAVLOVA, Marina; Internet Archive
Wayback Machine – ROCKANET (2003-2011); 2011c. Disponível em: web-
archive.org/web/2011101703050513/http://rockanet.ru/60/Sokol/phtml; Acesso em: 25/07/2020
98
A idéia do nome da canção seria a de encontrar expressões curtas em russo que numa
pronúncia ligeira fizessem bom tom ao compasso do rock, permitindo que a sonoridade fosse
evidenciada ao invés de prejudicada pelo entoamento das canções. Os rapazes da Falcon,
desprovidos de uma boa capacidade em tradução ao inglês, viam-se na contingência de terem
de recorrer ao repertório local, produzindo uma literatura lírica melodiosa e que traduzisse o
espírito do rock, em seu sentimento, mais do que em qualquer conotação semântica. Dificuldade
conhecida na literatura, essa de se traduzir num texto, mais que a semântica lexicográfica, o
respeito à métrica e ao âmago, providos na composição original, seria encarada com elegante
engenhosidade pelos músicos da Falcon, que talvez pela própria despretensão de sua intenção,
chegassem num resultado interessante, autêntico, preocupados que estivessem àquele
momento, apenas em dar voz aos sentimentos diante dessa circunstância de fronteira – onde a
língua evocaria muitas das distâncias entre os mundos ali matizados pelo rock n ́roll.
Com esse limite inicial contornado, agora começava a proliferar a presença de músicos
amadores no ritmo que se espraiava na URSS: logo no mesmo ano, o grupo moscovita Integral,
faria a canção Весенний Дождь (em transliterado, Vecennyi Dojdh, ou Chuva de Primavera),
de autoria de Bari Alibasov e Mikhail Arapov160. Nesse mesmo interregno, em ‘cada grupo
escolar’ (com vulto, à cercania do mundo acadêmico) da capital russa, eclodiriam bandas de
rapazes aspirantes no ritmo frenético. Era a transição de 1965 para 1966, e como conta Vladimir
Ratskevich – outro baluarte pioneiro da época e integrante da banda Ruby Attack – foi onde
tudo começou:
No começo, o rock era um fenômeno altamente elitista161, mas depois de 1965, chegou
a hora de aparecer em "milhares de cores" e, em 1966 - 1967, que se pode dizer que a
explosão ocorreu, e literalmente todos os grupos de escolas começaram a aparecer, às
vezes dois ou três ao mesmo tempo. “Era uma espécie de nova cultura, sem nada
comparável [...] Essa carga emocional não era possível de ser sentida por nenhuma
outra forma de arte. Depois vieram os músicos. Imediatamente e em
bando. Inicialmente, tocava-se The Doors, mas também gostávamos da interpretação
dos Beatles, Kinks, Swinging Blue Jeans. E essa vida na garagem evoluiu lentamente
para a formação de diferentes grupos. [Traduzido do inglês]162
Cabe-se salientar, que embora embalado e propiciado em seu início durante as reformas
levadas à cabo por Kruschev, o rock soviético teria sua corrente mais marcante durante o
governo do sucessor, o secretário-geral Leonid Brejnev (1964-1982) – em simultâneo, como
será observado adiante, a outros fenômenos de mídia e a explosão da chamada beatlemania.
160MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 161O sentido dessa afirmação do rockeiro Ratskevich será explorado num tópico adiante acerca da russificação do
rock, seus fatores de possibilidade e suas consequências. 162MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.
99
Nesse ínterim, em seguida ao espraiar do movimento, começariam a aparecer seus primeiros
ídolos locais. A grande banda dos anos 1960 apareceria com uma estrela digna de um Jimi
Hendrix: os Scythians163 (Citas; em cirílico: Скифы [Skifh]), grupo integrado pelo virtuoso
guitarrista Sergei Dyuzhikov, que faria causar frisson no cenário de Moscou, emplacando
sucessos, aqui em menção transliterada, como Autumn, Songs of The Birds, I Follow Against
The Wind, entre outros e a participação em uma produção de televisão da época, a película
Once Again About Love (direção de A. Nathanson; não encontrado em tradução local), com
participação dos Scythians na trilha sonora e em aparições esporádicas. Registro importante da
carreira do grupo é encontrado numa gravação cuja origem rastreável remete à Krasnoiarsk
(cidade-distrito da RSFS da Rússia) em 1966, emplacando o sucesso Polyubil Dievchonku Ia
(cuja tradução equivalente seria ‘Me Apaixonei Por Você Menina’)164 – em cuja canção,
evidencia-se o tema romântico embalado em uma sonoridade de batida (balada) de rock
característica das bandas sessentistas como os Beatles, Ventures e o Shadows – que rapidamente
cairia no gosto popular juvenil local. Uma curiosidade importante referente à canção em
questão, é que a mesma seja composta de ritmo ao estilo surf beat, uma das vertentes de rock
que estavam em alta na década de 1960. Segundo Vladimir Salnikov (2005), ex-guitarrista
(guitarra base) do grupo, a marca dessa e de outras composições dos Scythians nesse estilo,
seria a forte presença de influência das citadas bandas estadunidenses Ventures e Shadows –
coetâneas do período. E especificamente The Ventures, no caso, teriam sido – segundo o
baterista profissional e aficionado, Daniel Glass, professor musical do site DRUMEO165 – os
163Com o intuito de desambiguação, cabe salientar que durante os anos 1960, dois grupos seriam bem expressivos
na URSS sob o mesmo epíteto Scythians. Primeiramente, referindo-se aos Scythians de Moscou, enumera-se o
grupo como partícipe do movimento precursor do bigbit soviético, cuja carreira se iniciaria em 1965 e contaria
com integrantes como Sergei Dyuzhikov (guitarra elétrica solo), Yuri Salnikov (guitarra elétrica base) e Yuri
Valov (bateria) – e cujos maiores detalhes da carreira e influência serão descritos ao longo do trabalho. Em seguida,
cabe relatar dos Scythians da região de Samara, um grupo musical jovem formado em 1966, com grande foco em
versões de canções de ritmos ocidentais, integrado por Vlad Bocharnikov (vocais), Gueorgui Somov (guitarra
elétrica base), S. Diadichev (guitarra elétrica solo) e os irmãos Makarewicz (teclados e contra-baixo) – na formação
logo posterior, os irmãos Makarewicz dariam lugar à Scherbakov (teclados) e Bibisov (baixista). Segundo as
fontes, a carreira do grupo de Samara compreenderia anos de atividade entre 1966 e 1974, fazendo, inclusive, parte
do movimento musical que traria versões locais de canções do grupo estadunidense Bee Gees (nos estilos pop
music e disco music). Já os Scythians de Moscou, focariam no estilo surf beat, na verve do rock ‘russificado’ e teriam princípio e encerramento ainda durante a década de 1960. Fontes: SALNIKOV (2005); MAROCHKIN
(2011; 2011c). Свесдный Дождь: Скифы 35 лет спустя [Trad. Livre: ‘Chuva de Estrelas’ – Skifh 35 anos
depois]. RealMusic. Disponível (em russo) em: https://www.realrocks.ru/albums/21553; Acesso em: 28/06/2021. 164Fonte do vídeo-clipe da canção: ВИА Скифы (Красноярск 66) Полюбил девчонку я [VIA Skif
(Krasnoyarsk 66) Polyubil Devchonku Ia]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MPLNR9Cmzr8.
Acesso em: 21/07/2020 165Segundo o músico, esse estilo de batida é cadenciado em oito notas, no compasso 1-2-3 e 4/1-2-3 e 4, com
origem possível, no shuffling dos pratos, aplicado aos tambores. Sua aplicação como marca, teria sido ouvida pela
primeira vez, em circuito comercial, na canção Walk Don´t Run, de 1964, do grupo Ventures (trecho 1:09 min. da
vídeo-aula). Fonte: GLASS, Daniel; DRUMEO – The Ultimate Online Drum Lessons Experience; Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=64u4ETmKNNA; Acesso em: 23/07/2020
100
precursores da batida do surf beat, com a canção Walk Don't Run (de 1964), juntamente com
outros artistas da época, como o guitarrista Dick Dale (e os Del Tones, na canção Misirlou) e o
grupo Surfaris (com a canção Wipe Out) – algo que explicaria como uma banda soviética, alheia
ao cenário praiano, tivesse incorporado tal batida ao seu repertório musical. Em 1968, a banda
daria origem a uma verdadeira skyfomania (termo concebido a partir da pronúncia de scythians
em russo: skifh ou skifians, somada ao sufixo mania), com apresentações tendo de ser
interrompidas nos salões de concerto, por conta ‘do medo das autoridades locais de que a pista
de dança pudesse desabar (e junto dela, o prédio inteiro)’ – conforme relata o baixista da banda
à época, Yuri Valov (MAROCHKIN, 2011a).
Um detalhe interessante acerca dos Scythians é encontrado na biografia pessoal do seu
ex-guitarrista (guitarra solo), Sergei Dyuzhikov, e que demonstra as diferenças de restrição e
circulação de informações de cultura nas distintas regiões da URSS – narrado por Marochkin
(2011a):
O sucesso dos "Scythians" foi associado à participação no grupo do fantástico
guitarrista Sergei Dyuzhikov. Os boatos que circulavam sobre um guitarrista talentoso
vinham do ano anterior ao sucesso [1965]. Dyuzhikov era proveniente de uma família
cujo pai integrava a oficialidade soviética e, portanto, havia passado sua infância viajando pela metade do país. Quando tinha 13 anos, seu pai foi enviado para a cidade
de Izmail [Ucrânia], quase na fronteira com a Romênia. Lá, Dyuzhikov não só podia
ouvir o rádio, mas também assistir às apresentações da televisão romena de famosas
bandas de rock ocidentais. Por causa disso, ele provavelmente era o único homem em
Moscou que fazia direito o rock 'n' roll, tocava guitarra e conhecia muitos truques, que
foram usados por Chuck Berry, Rolling Stones, e que em Moscou, ninguém mais sabia
fazer. [Tradução do inglês e grifo nossos]166
As diferentes tonalidades e aparições do movimento do rock soviético, fora das
fronteiras da RSFS da Rússia, também são emblemáticas a entender seu surgimento e
pulverização (embora, futuramente, mais e mais se encaminhasse a aglutinar tal cenário na
Rússia, em Moscou e Leningrado). Nesse sentido, retrocedendo um pouco ao ano de 1966, já
se encontraria, por exemplo, na Ucrânia, registros dessa rebelião musical, a qual daria origem,
mais a frente, a bandas importantes como a Red Guitar (Krasnaya Guitaryi) e a Red Demons
(Krasnaya Dimons) – (MAROCHKIN, 2011a). Embora ainda fizessem suas músicas a partir de
reprodução maciça de sons estrangeiros, tal e qual sucedia com as bandas russas, o fato de sair
da capital (Moscou), esse bit rock, seria o motivo de muita vivacidade e intensidade de
participações pelos jovens da vizinha ucraniana. Em Kiev, capital local, o surgimento das
bandas Chimes, Red Demons e Second Breath (nomes transliterados) festejadas como as
166MAROCHKIN, 2011ª. Op. Cit.
101
precursoras do movimento do rock ucraniano-soviético, transformariam o ano em questão
(1966) no marco inicial do rock ucraniano, em pouca coisa posterior ao marco inicial do rock
russo (1961). Seu sucesso seria mais modesto que o das bandas moscovitas, devido à posição
no cenário geográfico-cultural do movimento na URSS, mas amplamente tributada sua
iniciativa e talento, ainda reconhecidos no circuito local.
O uso do termo bit rock, descrito acima durante o relato do jornalista sobre os primórdios
do rock na Ucrânia, também guarda consigo uma significância particular. Por motivos de se
evitar atritos com a censura soviética, muitas vezes o termo rock (notoriamente, estadunidense),
ou mesmo o seu equivalente em cirílico, rok, seriam substituídos nas ementas das
apresentações, para que aos olhos dos fiscais e diretores de arte (coordenadores da avaliação
dos espetáculos), não se chegasse a conflitos com a administração da URSS, levando a
reprovação do conteúdo e até mesmo, o cancelamento das apresentações. Em lugar do termo
rock, nos anos 1960, na URSS, o principal termo para se definir o ritmo seria big-bit167 (de big-
beat; grande batida; em cirílico: виг вит, transliterada em bigbit), com transliterações e
variantes equivalentes: bigbit, bit ou mesmo, bitnik. A esse respeito, salutar a desambiguação
com outro fenômeno cultural, no comentário de GOLOLOBOV, PILKINGTON, STEINHOLT
(2014), de que:
O bitnik [referindo-se ao bigbit] foi o mais visível apelo de cultura juvenil na União
Soviética, desde o início dos anos 1960, uma era marcada pela Corrida Espacial e o
otimismo com o futuro. Quando a Beatlemania atingiu a URSS, bitnik se tornou sinônimo de novas danças ocidentais, tais como o twist. A conexão ao movimento
americano dos Beatniks é puramente fonética. [Tradução do inglês e grifos nossos]168
Nesse sentido, o jornalista Vladimir Marochkin (2011a), complementando ao assunto,
esclarece a quem se reputavam os rockeiros soviéticos daquele momento e o porquê da opção
pelo termo mais neutralizado:
No entanto, tudo isso não se encontra no rock no entendimento de hoje. Naquele
momento, essa música era chamada big-bit. O guitarrista do The Scythians, Yuri
Valov, disse: “A palavra rock” nunca era usada, porque só doía [incomodava]. Afinal,
em algum lugar para se apresentar, a banda de estudantes e acadêmicos tinha que ser
mantida adequada à linha do partido, pois embora não fosse da alçada do comitê
regional do Komsomol, estaria ao menos, ao nível da organização local do
Komsomol: onde alguém seria responsável [responderia] por tudo o que havia entrado
em cena. [...] A palavra rock não estava em tudo. E em seguida seria chamada de big-
167MALAKHOVA, 2013. Op. Cit. 168GOLOLOBOV, Ivan. PILKINGTON, Hillary. STEINHOLT, Yngvar B. Punk in Russia: Cultural Mutation
from the useless to the moronic. New York: Ed. Routledge – Taylor and Francis Group. 2014. Nota número 1
(Notes)
102
beat. E rock só seria considerado aquilo que havia sido feito nos anos 50: Elvis.
[Tradução do inglês e grifo nossos]169
O relato transparece a gravidade de um assunto que, à primeira vista ou
superficialmente, poderia ser tomado como pueril. Entretanto, como observado nos desígnios
da Cultura Soviética, desde sua fundação, e seu total imbricamento com o papel educacional da
sociedade, tal acepção ganha um relevo diferenciado. Tanto mais, considerando-se a juventude
local, cuja formação era crucial para a continuidade do funcionamento do Estado, do exército,
da administração, da economia e da ideologia socialistas. Nesse aspecto, cabe observar o quanto
a juventude soviética constituía parte importante nos planos da sociedade da URSS, e por isso,
desde o princípio de sua fundação, teriam sido os assuntos à ela relativos, em orientação e
formação, reunidos sob a coordenação de um órgão específico: o Komsomol170, ou União da
Juventude Comunista (acrônimo do transliterado russo: Komunnistchesky Soyuz
Molodiozhi)171, organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética, estabelecida
desde 1922, para tratar dos assuntos inerentes ao educar, engajar e gerir os diretórios regionais
de representação juvenil, junto à função política e social na União Soviética. Ainda assim, por
hierarquia de urgência (como por exemplo, assuntos que pusessem em risco a segurança
nacional ou a integridade real dos cidadãos soviéticos), os assuntos eram ou não remetidos aos
altos-escalões administrativos: nesse escopo, para a periclitância representada pelos eventos
descritos – de um fenômeno de cultura exótico e estereotipicamente hostil ideologicamente,
protagonizado por jovens – antes de se dar relato à fiscalização maior, se lhes faria submetidos
aos encargos do Komsomol, bem como, seria sua responsabilidade cobrir da incidência e
169MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 170A formação escolar e acadêmica na União Soviética era aberta a todos. Entretanto, embora todas as crianças
ingressassem em grupos com possíveis aspirações, aqueles designados, conforme aprovação dos comitês, seriam
os que ingressariam na possível carreira política. Desde pequenas, as crianças soviéticas frequentavam a formação
de crianças e jovens, dividida em três etapas, segundo as idades. Do ingresso escolar até os nove anos, formava-
se o Grupo de Pequenos Outubristas. Dos nove aos quatorze, o Grupo de Jovens Pioneiros. Dos quatorze até os
vinte oito anos, poderia-se fazer parte do Komsomol (Divisão Juvenil da formação Comunista). A Casa dos
Pioneiros, constituiria a segunda fase dessa formação, cujo ingresso no Komsomol, posteriormente, poderia proporcionar na fase adulta, com os devidos contatos e a adequada aptidão, um indivíduo indicado pelo comitê a
integrar os quadros baixos do partido – dando início assim, a uma possível carreira como partidário do Partido
Comunista da União Soviética. O Komsomol, em especial, ganharia força como instituição de auxílio, formação,
fiscalização, gerenciamento e direcionamento de assuntos dos jovens soviéticos, a partir da promulgação do
Código Moral do Construtor do Comunismo, sob Kruschev, em 1961. Fonte: FIELD, Deborah. 1961-Código
Moral do Construtor do Comunismo. In: Seventeen Moments In Soviet History: An online archive of primary
sources. Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/moral-code-of-the-builder-of-communism/; Acesso
em: 03/07/2020 171Reforçando, é importante salientar que em algumas passagens de autores e para algumas ocasiões, por
associação, o termo Komsomol é utilizado como sinônimo de juventude soviética. Vide-se CUSHMAN, 1995;
103
alastramento de tais eventos, onde apenas conforme maiores gravidades, seriam reportados à
instâncias superiores da administração.
Conquanto seja costumeiro pensar em uma administração centralizada, hegemônica e
verticalizada da União Soviética, deve-se observar que haveriam maiores preocupações, mesmo
em se tratando de um tema indigesto como o rock juvenil, para se dar atenção dentro do governo
local. Não obstante, embora a hierarquia vertical administrativa existisse, a URSS se ramificava
em birôs e escritórios menores, horizontalmente, imbuídos de fazer valer as mais variadas
funções do interesse público – as quais, como no caso do Komsomol, dariam a adequada
minúcia aos eventos, sem interferir ou tomar o tempo dos níveis mais fundamentais da estrutura
soviética. Por isso, a menção em hierarquias locais e regionais, sobre tais eventos, que ficaria a
cargo dos komsomolets locais. O rock – ou melhor, big bit – embora não perigoso em demasia,
não seria de trato comezinho, constituindo um desses assuntos, que inspirariam apreensão
moderada e presente, junto às suas articulações/realizações, pela fiscalização local.
Por conseguinte, deve-se considerar as estratégias empreendidas pela juventude local,
no sentido de (des)associação e escamoteamento, considerando esse necessário escopo de
fiscalização e a dependência de suporte, ao fim e ao cabo, submetido ao escrutínio da referida
administração. Ora, se a associação de Elvis com o rock, também seria do conhecimento da
administração URSS àquele momento, tornando o ritmo um alvo emblemático de rechaço ao
retirar-se a palavra rock, trocando-a por big beat, e executando canções de reprodução de outros
artistas (que não o icônico rei do rock), e, de preferência, também com os títulos traduzidos em
russo (MAROCHKIN, 2011a), conseguiria-se angariar alguma tolerabilidade ao material
submetido, mas ainda assim, presente um subterfúgio para afrouxar o rastreamento dessas
canções e performances como possível material indesejável.
Pode-se dizer que o saldo dessas estratégias seria promissor ao rock no cenário soviético
daquele momento, pois, após a aplicação dessa ‘suavização’ do ritmo exótico, com ligeira
frequência, se poderia encontrar competições estudantis, performances em ambientes escolares
(e acadêmicos, também) e grupos notórios e vitoriosos em concursos culturais que
oportunizavam essa modalidade rítmica, durante os anos 1960 na URSS – o jornalista Vladimir
Marochkin usa o termo quase toda semana para enfatizar essa afirmação (no seguinte relato):
A atmosfera de seyshnov era alegre e comemorativa – quase toda semana havia
alguma apresentação – e, segundo os próprios músicos, nenhum rockeiro era
“perseguido”. Se ocorreu algum "ataque", então, como regra geral, foi uma iniciativa
104
ideológica privada, protagonizada por cidadãos individuais. [Tradução do inglês e
grifo nossos]172
A atmosfera a que o autor se refere – seishnov – consiste, segundo Cushman (1995, p.
82) numa derivação do termo seyshn, uma transliteração russa para session, no sentido de
performance (apresentação) ou ensaio (jam session; rehearsal), a se referir a todas as
performances em curso naquele momento (de rua, em escolas, universidades, de/em palcos,
etc.), em torno do rock na URSS. Esse clima favorável pairando na atmosfera juvenil cultural
soviética, é corroborado em demais relatos, entretanto, conforme será abordado mais adiante,
as características mais precisas dessa suposta ‘favorabilidade’ requerem ser postas em
perspectiva, posto que seriam instáveis demais para se afirmar tão simples e tranquilamente –
e referente à isso, no subcapítulo pertinente, Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo
(...mas não sem resistência), será mencionado o porquê dessa crítica.
Por ora, ainda em continuidade à problemática de fiscalização/suporte realizada pelo
aparato administrativo e sua relação com o rastro desse fenômeno que o rock/bigbit ia se
tornando na União Soviética, é importante sublinhar que ainda que sob uma constante
observação, pareceria interessante a certos setores oficiais, o princípio de uma metodologia de
promoção dessas atrações juvenis, pois embora a URSS não fosse uma sociedade capitalista,
circulariam determinados recursos destinados à realização das performances culturais – e isso
atrairia a atenção para o rock soviético, como uma oportunidade ‘lucrativa de negócio’. Nesse
sentido, indo além das supervisões do Komsomol e de todo seu aparato correlato, haviam as
figuras de gerentes (também referidos como agenciadores), funcionários designados com a
finalidade de coordenação das agendas de itinerário e apresentação dos músicos, no
agenciamento das bandas, atuando como facilitadores, intermediários, que por se entenderem
melhor com a administração e conhecerem as pessoas certas, conseguiam favorecer o caminho
para muitas vantagens, oportunidades e promoções – para os grupos, mas também para si
próprios. Comentando a esse peculiar cenário, importante descrição sobre o circuito de
produção gerencial mediado pela articulação dos agenciadores em torno das bandas – nesse
relato referente ao caso dos Scythians, em episódio referente ao ano de 1968:
Desde o início, a comunidade de rock de Moscou foi formada em torno dos gerentes
do Instituto de Músicos que organizaram shows e distribuíram ingressos. Os gerentes
mais conhecidos foram Yuri Aizenshpis, Arthur Makarov, que mais tarde se tornou
um popular radialista, Valeriy Shapovalov, apelidado de "Coronel" e, mais tarde –
Antonin Krylov, apelidado de "Tubarão"173. No entanto, a maior parte dos shows nos
172MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 173Como será abordado mais adiante, essas terminologias referentes aos produtores, como tubarão (em russo,
105
anos 60 quem arranjou foi o Komsomol, que era obrigado a se envolver com os jovens.
A apoteose foi o final do Festival de Conjuntos Estudantis, que ocorreu em maio de
1968 no Palais des Sport Luzhniki [famoso estádio de Moscou] – para um evento de
recepção aos cosmonautas. Seus vencedores (incluindo a lendária banda "The
Scythians") foram enviados para o sul para entreter os atletas soviéticos que se
preparavam para os Jogos Olímpicos na Cidade do México. No mesmo ano de 1968
em Yerevan [capital da República Socialista Soviética da Armênia], no Palais des
Halterofilisme se realizou um festival de rock, que pode ser considerado um [evento]
favorável174. Organizado pelo gerente Rafik Mkrtchyan, que convidou os melhores
artistas da capital armênia e também de Moscou, Leningrado, Ucrânia e Países
Bálticos [...] [Tradução do inglês e grifo nossos]175
A atuação fundamental ao sucesso e possibilidade da veiculação de determinados
grupos, se deveria ao protagonismo e os intermédios ocasionados por seus gerentes (como fica
evidente, por exemplo, nos relatos de MAROCHKIN, 2011a; CUSHMAN, 1995, p. 62 e
SALNIKOV, 2005), podendo determinar desde modestas participações televisivas ou a
gravação de canções junto aos álbuns de variedades (trilhas sonoras), até a grande exibição em
festivais de estudantes ou na recepção de autoridades. Ainda assim, o caminho tortuoso e as
intenções questionáveis de alguns desses gerentes, seriam produto de análise mais severa pela
administração local e as consequências e o desfecho de suas atividades – bem como o
entendimento de como operavam em níveis de articulação com os grupos – serão melhor
levantados no capítulo seguinte (Experiências de Atrito) e num relato posterior (no capítulo,
ВИА: Вокальнные Инструментальный Ансамбль – VIA: Conjuntos vocais instrumentais ou Eram os
rockeiros cosmonautas!?).
Antes do final da década de 1960, ainda despontariam alguns grupos soviéticos
expoentes no cenário do rock seyshn sessentista (aqui citados, com títulos transliterados):
Vanguard-66, Argonavts e Flamingus176. Os dados disponíveis referentes às mesmas, foram
escassos durante a pesquisa (exceto sobre a Argonavts)177, mas conforme se pode obter em
akula), estariam como no Ocidente associadas à ideia de que estes indivíduos desempenhassem um papel nefasto
no gerenciamento dos grupos e da atividade mediadora musical. A simples associação com o ato de comércio da
música ou seu patrocínio pelo Estado, seria visto pela comunidade rockeira soviética do circuito alternativo,
progressivamente, de maneira suja, inautêntica e poluída (nechistye liudi). Fonte: CUSHMAN, 1995; p. 127 174O termo utilizado pelo autor é proc, em russo: favorável; pró; referente, provavelmente, à atmosfera demarcada
pelas apresentações de um momento favorável, marco de relativa aceitabilidade do ritmo pela estrutura
institucional (demonstrada com o prestígio gozado em se poder apresentar aos baluartes da ideologia da União Soviética: oficiais e atletas locais). Prós, também pode ser no sentido de abreviatura de professionalny
(profissional), referente ao fato de que se tratassem de apresentações mais bem produzidas, de caráter semelhante
ao profissional. 175MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 176MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 177Embora não haja muitas menções sobre o grupo, pode-se rastreá-lo dentre a trajetória do importante músico
Sergei Dyuzhikov (Scythians), como tendo sido seu primeiro grupo de participação, quando ainda à escola em
1965, na cidade Izmail (Ucrânia). O grupo consistia em um power trio (guitarra elétrica, bateria e contra-baixo;
com vocais desempenhados entre os integrantes) cujas músicas cobriam desde reproduções fiéis até versões de
canções de grupos de rock ocidental. O fato de Dyuzhikov estudar o idioma bretão desde a oitava série, contribuiria
106
Marochkin (2011a), seguiriam o mesmo esquema já relatado de reprodução fiel de músicas de
grupos de rock Ocidental (como Beatles e Rolling Stones) e sua grande curiosidade, ficaria em
torno do fato de que embora gozassem de boa projeção àquele momento, seriam absorvidas
pelo esquema de produção seguinte (o VIA), e teriam suas carreiras encerradas no princípio da
década seguinte – com integrantes vindo a se articular em outros grupos ou seguindo carreiras
divergentes à da música.
No quesito sonoro e de realização musical, cabe dizer que do princípio ao encerramento,
o rock sessentista da URSS, com poucas exceções, ficaria marcado por essa predominância do
esquema de covers de sucessos anglo-americanos em versões locais (zapevchey)178, algo que
mudaria com o passar do decênio, para uma noção mais experimental e ousada, bem como, a
cena rock soviética (predominantemente originalmente moscovita) migraria, ao final da década,
paulatinamente da capital Moscou para a cidade de Leningrado (São Petersburgo), onde um
fluxo expressivo de músicos começava a germinar um rock com elementos mais definidamente
contraculturais. Seria o princípio de uma era de experimentalismos e a criação de novas
estratégias de realização – e enfrentamento (MAROCHKIN, 2011a).
Conforme o descrito, na década observada, a participação de muitos e influentes
personagens com envolvimento no aparelho governamental (como os outrora referidos
integrantes Komsomol e os gerentes de instituições estatais ligadas à música, segmento da arte
e cultura soviéticas), não apenas tornaria possível o ‘dúbio’ âmago receptivo que o fenômeno
do rock soviético desfrutava179, como também se buscaria, progressivamente, tentar sua
submissão ao controle estatal direto, observando-se seu potencial como elemento de
propaganda das modernidades da sociedade soviética sob Brejnev, aquecimento do mercado
a uma relativa facilidade nesse processo de assimilação musical, que o introduziria aos Beatles e que mais adiante,
se tornaria a saída para o músico ingressar no ensino superior junto ao Instituto de Tradutores Militares (em
Moscou, 1966), conciliando assim, a possibilidade de estudo com a carreira da família (cujo pai, o coronel
Alexander Ivanovicz, seria da aviação da URSS, enquanto a mãe, teria uma experiência musicista no acordeon). Através desses estudos, ocasionaria em seguida, estando na cátedra de Filologia da Universidade Estatal de
Moscou [Instituto M.V. Lomonosov], a circunstância onde conheceria seus futuros parceiros em uma nova
empreitada musical: a formação do grupo Scythians. Fonte: MAROCHKIN, 2011c. 178MAROCHKIN (2011a) usa o termo zapevchey para se referir a essas produções locais das canções estrangeiras.
Zapevchey, que em russo, significa canção, cantor, cantador do povo; empresta o sentido de composição de
canções (e referência aos cantores) no estilo popular, dentro dessa iniciativa do rock traduzido para a língua local.
Importante não confundí-la com as canções populares dos gêneros estatais: Estradnaya (Estrada), Massovaya e
Bitovaya, as quais integrariam a indústria cultural soviética e a cultura popular soviética de fato, ao invés de um
exemplar de nicho, como o rock local. 179Entenda-se esse desfrutar como situado em grandes centros urbanos, pois conforme se tratará ao longo do
trabalho, sua penetração territorial seria restrita.
107
fonográfico e ferramenta de entretenimento (panem et circensis) – uma estratégia durante o
aparato brejnevista, que teria consequências muito dicotômicas no futuro que lhe sucederia.
Não obstante, remontando precisamente a questões políticas em transição e curso na
URSS, junto a essa epopeia cultural inédita, tem-se de considerar que a mudança do governo
da URSS, das mãos de Nikita Kruschev para o comando de Leonid Brejnev, trazia consigo
muitas considerações em desdobramento a que se reputar.
À título de esclarecimento, optou-se principiar – como objeto do capítulo 1960’s Lado
A – com um foco detalhado da questão da cultura, pois, como horizonte urgente, não caberia
perder-se o controle do movimento de cultura principiado no início da década, bem como o
lastro dessa juventude que dele se apropriara e assimilara à sua circunstância – e com esse
propósito se segue até o desfecho deste capítulo (dividido em quatro sub-capítulos) relatando
para adiante de uma remissão inicial das Bandas Soviéticas, outras Experiências da juventude
local – de Consumo, de Atrito e de Retiro – pertinentes ao entendimento do rock soviético.
Assim sendo, considerando que ainda acerca desse fenômeno e do escopo cultural de 1960,
hajam aspectos culturais-sociais importantes de se explorar. Por essa opção de argumento,
tratar-se-á da propriamente dita discussão político-econômica, interior e exterior ao escopo da
Guerra Fria, por suas características que demandam especial atenção, apenas num momento
posterior – na parte [de título] 1960’s Lado B.
2.1.2 Experiências de Consumo: Um Esclarecimento Histórico, uma Magnitofonnaia
Kul´tura e um fisiologismo com a produção estatal
O que é, então, “pôshlost”? Nabokov180 dava os seguintes exemplos para tentar explicar esse enigma:
“Abra uma revista e você certamente encontrará algo assim: uma família acaba de comprar um rádio
(ou um carro, uma geladeira, prataria ou qualquer outra coisa). A mãe está batendo palmas, doida de alegria. As crianças se reúnem, boquiabertas, ao redor dela. O bebê e o cachorro estão apoiados na
mesa onde o objeto de idolatria foi colocado. Um pouco de lado está em pé, vitorioso, o pai, o
orgulhoso provedor da família. A “pôshlost’icidade” intensa dessa cena não vem do falso exagero da dignidade de determinado objeto útil, mas da suposição de que tal alegria possa ser comprada e de
que tal compra enobrece o comprador.”
Dária Aminova, ’10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir’181
Ao observar-se o fenômeno do rock soviético algumas questões vêm à mente,
principalmente, considerando-se as diferenciações de sociedade existentes entre o modelo do
180Vladimir Nabokov (1899-1977); Famoso escritor russo radicado nos EUA, autor do romance Lolita (1955). 181AMINOVA, Dária; 10 Palavras Russas Impossíveis de Traduzir. Russia Beyond. 10 de jun. 2017. Disponível
em: https://br.rbth.com/arte/2017/06/10/10-palavras-russas-impossiveis-de-traduzir_777840; Acesso em:
20/02/2021
108
Socialismo da URSS, para o da sociedade capitalista Ocidental. Entretanto, embora distintas
em muitos aspectos, por questões de trajetória e fatores de suas próprias configurações, há que
se considerar, como Cushman (1995; pp.18-19) salienta, os pontos que as simultaneizariam,
sob o escopo da chamada modernidade industrial (tais como sentido de temporalidade e
arranjos reincidentes dessa circunstância, políticos e sociais), a ponte que permitiria suas
conexões:
O pós-guerra promoveu uma tremenda aceleração no crescimento e difusão de mídia
de comunicação em massa no sistema-mundo global. Não apenas informação cultural
carreada por esses canais, mas também pelo crescente número de cidadãos provindos
das sociedades industriais ocidentais, os quais desfrutavam de uma liberdade de
movimento dentro do sistema-mundo, historicamente sem precedentes. Rádio,
televisão, a possibilidade de posse individual de tecnologias de reprodução cultural, e
o deslocamento de cidadãos de novas e bem-desenvolvidas sociedades de informação
às sociedades com menor grau de desenvolvimento, permitindo por um alargamento
da circulação de símbolos e signos através do mundo. Essa circulação também
atingiria os países do bloco socialista, ainda que de maneira limitada.
Localmente, o processo de modernização liberaria forças sociais e culturais as quais
simplesmente não poderiam ser contidas, mesmo sob a existência de formidáveis
barreiras erigidas dentro de uma sociedade autoritária. Sociedades modernas
industriais – mesmo as de cunho autoritário – necessitam educar seus cidadãos para
criarem e utilizarem novas tecnologias e para envolver-se nas complexas tarefas da
produção industrial. Educação a serviço do socialismo, entretanto, seria uma faca de
dois-gumes. Um aumento no letramento verbal e tecnológico não leva apenas ao
aumento da capacidade produtiva de uma sociedade, mas também a conduz para mais
sofisticadas formas de cognição, as quais permitem o desenvolvimento da liberdade de discernimento e o potencial para refletir e pensar criticamente o mundo à sua volta.
De fato, como argumenta Anthony Giddens (1990, 1991), é a capacidade dos
indivíduos de pensar reflexivamente sobre seu entorno social, de imaginar sua própria
biografia em relação ao mundo, ao qual eles reconhecem, também, como um produto
de sua construção, o que se demonstra um dos principais marcos das sociedades
industriais. [Traduzido do inglês]
O autor considera aqui uma circunstância de sistemas-mundo, onde embora separados
por uma série de características, caracterizam-se pela coexistência no mesmo plano global e em
ocorrência simultânea, de modo que tais realidades por vezes se toquem e imbriquem, com mais
ou menos intensidade e frequência, umas dentro das outras. Sobre esse sistema de análise
histórica, considera-se o argumento de Conrad (2019; pp. 66-70), no tocante ao uso do sistema-
mundo deve-se observar que a noção processual – econômica e a desdobrar-se em fluxos de
pessoas e mercadorias, sobretudo, informações – é, com vulto, a parte aqui considerada
interessante. Desde o início do trabalho, abordando-se a economia, a circulação cultural e o
rock em deslocamento (dos EUA ao Reino Unido, de lá através do fenômeno dos Beatles), foi-
se rastreando uma rede de entrelaçamento e fluxos, numa investigação que procurava encontrá-
los e evidenciá-los. Portanto, isso pondera acerca de formas estruturadas de interdependência
109
– econômica, mas também, política e cultural – encadeadas relacionalmente e em simultâneo
(p. 69), as quais contemplam o escopo do que aqui se tem objetivado perfazer.
Tampouco, espera-se como característico do sistema-mundo, focar somente na
integração econômica e seus processos ou mesmo numa macro análise que não se aprofunda:
pelo contrário, recorrendo-se a Jacques Revel (2008) com seu jogo-de-escalas (transitando
entre os olhares micro e macro analíticos), com devidas adequações sempre que possível,
procura-se orientar num esforço pautado em fazer-se da análise uma fisionomia histórica em
perspectiva, cuja complementaridade escalar se dê com foco dinâmico. Ou seja, a pretensão
dessa narrativa de pesquisa aqui empreendida, embora vincule um autor que disserte
considerando o sistema-mundo como terminologia (conforme a tradição de Samuel Wallerstein,
por exemplo), não é outra senão a de tentar tecer um escopo mais amplo, de caráter (histórico)
global.
Observando isso, há que se ponderar um fator catalisador em comum nessas trajetórias.
O fator catalisador do pós-guerra é visto como uma constante que fez proporcionar muito desses
eventos. No Ocidente, a pujança econômica decorrida da vitória na campanha, traria afirmação
estadunidense no alinhamento ao modelo de American Way of Life e a disseminação de valores
decorrentes desse novo arranjo e a ênfase no consumo de mídias de entretenimento baseadas
no perfil individualista de fruição. O produto dessas relações em jogo quanto aos fatores
desencadeados, teria como uma das respostas a repercutir, a criação de um estilo de vida
contracultural, protagonizado pelos jovens, esses que alienados desse processo de escolha, por
força de fatores de assimilação determinantes ao redor. E, novamente, como uma das
possibilidades entre todas essas repercussões, surgiria o rock.
No lado Oriental, a mesma campanha vitoriosa, também produziria afirmação do projeto
de governo perpetrado até então, o qual, no entanto, teria uma reviravolta com o fim de seu
mandatário realizador. Os caminhos tomados a partir daí, acenariam a necessidade de uma
sucessão, na qual relutava-se entre a possibilidade de reafirmação do estilo anterior de gestão
ou o abandono desse por outra linha sucessória. Novamente, como um dos caminhos possíveis
de se manifestar, manifestou-se uma reviravolta moderada (reformista), onde embora se
mantivesse a circunstância do aparato e dos objetivos principais da ideologia socialista, as
formas e os métodos tomariam nova vertente. Surgiria daí todo um novo espaço para
comunicação e o trânsito de outras realidades à URSS.
110
Talvez, numa hipótese crítica, a única diferença (embora não pequena) balizadora em
todo esse processo, entre os objetivos de uma sociedade em relação à outra, seja: a presença do
interesse mercadológico em uma, e da ausência deste, na outra. Para melhor se fazer
compreender de tal afirmação, cabe se observar como em reflexo às afirmações do estilo de
vida Ocidental, repercutiram na disseminação de uma série de produtos à sanha do consumo da
sociedade que se sentia vitoriosa após a Segunda Guerra. De modo distinto, não como
consequência direta, mas por circunstâncias próprias na gestão soviética, tais produtos,
eventualmente, viriam a chegar à porção Oriental. A ausência de uma necessidade de mercado
específica levava a que o modelo anterior, de gestão soviética (stalinista, que determinava, em
reflexo, o modelo social e político que se apresentava) pudesse ou não pudesse continuar se
perpetuando ao longo de novo período. Enquanto que, na porção Ocidental, invariavelmente,
uma resposta ao mercado seria ofertada, pois esse, por suas características, teria de capitalizar:
quer por sobre o lado dos mais afetados (atuando como mediação no processo de recuperação
econômica, como no caso da reconstrução britânica e Ocidental alemã, e mesmo na
administração desse processo, como no mandato do General Douglas MacArthur no Japão),
quer por sobre o lado dos menos afetados (como na disseminação comercial interna, em âmbito
social do American Way of Life na sociedade estadunidense, na chamada Era de Ouro,
desencadeando a ampliação das redes de contato do seu sistema de sociedade com demais
sociedades ao redor do globo), mesmo que sob os matizes de uma oposição ideológica –
verificada na alternativa do caso da União Soviética.
Em outras palavras: a determinação teleológica de que o rock n’ roll devesse chegar a
existir (como o produto da rebeldia juvenil face à imposição que a pressionava), bem como a
noção determinista de que uma vez realizado, se viesse a perpetuar em terras soviéticas, por
pura naturalidade, é completamente frágil. Aconteceu, primeiramente, porque houve condições
para acontecer – e não porque houvesse de acontecer. E em segundo aspecto, porque os canais
e circunstâncias propícios a esse contato estivessem em momentânea sintonia. Acaso, tivessem
os jovens estadunidenses respondido com a apatia, ao invés de uma manifestação de rebeldia,
o produto artístico fosse outro. De outro modo também, não fosse a repercussão desse fenômeno
de cultura suficiente aos interesses de se explorar do mesmo enquanto uma nova vertente
cultural por sobre seus aficionados, talvez nunca desses produtos tivesse chegado à Europa. E
não fosse o governo àquele momento na URSS, um que inclinado a apresentar tanta
receptividade às possibilidades estrangeiras, mesmo com os dois outros fatores, nada disso teria
ocorrido. Ademais, se mesmo tendo tudo isso ocorrido, por acaso, os jovens soviéticos não
111
apresentassem afinidade com o ritmo inédito em sua localidade, talvez nunca ele tivesse tido a
continuidade que o transformaria em fenômeno.
Com tal ponderação espera-se somente demonstrar os elementos de autenticidade e
plasticidade do fenômeno envolvidos em sua realização: onde por nenhum modo, nem por
fatores de consumo (em afinidade momentânea), nem pela circulação cultural, se pode justificar
pensamentos como de uma inexorável submissão ao modal estadunidense, nem sequer sua
unanimidade e uniformidade de processo – em que cada juventude, embora com tênues
afinidades de cenário e de tensões, responderia, diametralmente diferente em cada localidade
da incidência do rock. Partilhava-se o momento em comum, e algumas tensões de um repertório
comum (a guerra nos seus alicerces de geração), mas afora isso, eram mundos muito diferentes,
apenas com algo similar: seu tamanho e a ‘ponte’ enquanto sociedades voltadas ao progresso
técnico da informação.
É sabido que a História não lida com o subjuntivo (se), mas por vezes, somente a
consideração de cenários alternativos (não ocorridos), recupera a perspectiva que demole a
teleologia de uma narrativa escatológica histórica. Parece óbvio, que o que aconteceu não
poderia acontecer de outra maneira (caso contrário, haveria o produto manifesto de outra
circunstância histórica), entretanto, de modo algum se pode recair em uma noção de
inexorabilidade dessa circunstância. E sobre isso, há que se considerar um momento onde as
circunstâncias fortuitas ao fenômeno que aqui se estuda, se simultaneizariam. Acima de tudo,
a principal simultaneidade receptiva entre esses fenômenos de cultura reside no partilhamento
de visões, que embora dicotômicas, figuram nos pólos da modernidade industrial, com forte
apelo progressista, assimilação científico-tecnológica, proporções gigantescas, influenciadoras
e protagonistas em sua polaridade e uma busca por realização dos meios de informação e
mecanismos correlatos, sem os quais, descompassadas essas características de mundo, cada
qual dos sistemas, se veria de fato, colonizando ao outro – o que, por ocasião da similitude de
suas escalas e da similaridade de hierarquia de suas complexidades estruturais, não aconteceu,
devendo-se entender que tudo tenha figurado, apenas, como uma troca ou sedimentação
cultural. Em outras palavras, sem a hierarquia pretensamente esperada por uma ‘colonização
do estilo’, emanada dos centros do capitalismo. Chegando-se muito mais, a soluções de
realização por características locais.
E, sobretudo, ao interesse histórico, o que mais retumba é o fato de que acontecido, e
com a sincronia que somente fatores possíveis e não premeditados possuem. E uma vez tendo
112
ocorrido, o rock não apenas foi conhecido, mas paulatinamente, veio se tornar assimilado pela
juventude local, embora, é claro, segundo concessões.
Precisamente isso, cabe aqui ser esmiuçado, pelo seguinte motivo: embora se tenha
abordado, grosso modo, as bandas, músicos e o assunto fulcral musicalidade – e nada mais, na
primeira parte deste capítulo (no bojo das etapas anteriores), não se pode esquecer de que houve
uma transição de governo no meio da década de 1960, na URSS. Dessa transição, o clima de
aurora cultural da Era Kruschev e seu Degelo, dariam lugar ao estilo governamental de outro
mandatário, Leonid Brejnev, o qual, por muitas vozes de seu tempo, seria chamado
neostalinista182. Consoante não seja o fulcro dessa etapa da narrativa tratar dos aspectos
políticos referentes a essa transição (que se destina a discutir no subcapítulo intitulado Lado B),
ao menos superficialmente, se deve dar entendimento de que esse câmbio na administração
mudaria o tom das coisas em relação ao rock, a juventude e certo cenário permissivo àquele
momento. Embora não se cogitasse tornar aos tempos e rigores de Stálin, a perspectiva do
mandatário a assumir em 1964 (Brejnev), acenaria com um recrudescimento da linha ideológica
mais formal do Socialismo, baseada, fortemente, na deposição de muitas das iniciativas
empreendidas por Kruschev (por motivos que se estudará no momento pertinente). Assim, após
o Degelo, preliminarmente, no tocante aos produtos culturais, a circulação de conteúdo
Ocidental na União Soviética ficaria a cargo de uma mediação mais criteriosa pelo sistema
partidário, com novas formas, mais ou menos restringidas de circular e de se adquirir, dando-
se assim, ênfase na música, por exemplo, ao consumo de material local ou mais
tradicionalmente/ideologicamente orientado.
Isso repercutiria no rock soviético com as seguintes consequências: haveria uma gradual
dicotomização entre os caminhos tomados por certos músicos e bandas, rumo a aderir ou não
a uma afinidade estatal (como se estudará quando chegar-se ao tocante à questão do VIA),
resultando de uma parte, num circuito de produção e veiculação de músicas comerciais, mais e
mais, aglutinador de protagonistas conformistas e patrocinados/chancelados pelo Estado,
enquanto que outra parte do circuito fluiria de modo contraventor, resistente e às margens do
escopo do aparato estatal. É sobre os primórdios dessa rede underground (subterrânea) de
produção e distribuição fonográfica, ainda sob Kruschev, que se pretende falar a seguir, e como
ela esteve ligada a uma série de situações paradoxais em sua oportunidade de realização.
182GORBACHEV, Mikhail. The first steps towards a new era. The Guardian. Ed 26 de abr. Reino Unido –
Londres. 2007.
113
Situações essas, que levam a suscitar, que embora duráveis, as instituições do aparelho estatal
(tal e qual seus cidadãos) também passavam por evoluções, desgastes e transformações.
Dito isso, e agora com algum cabedal em torno das bandas sessentistas da URSS e
também da ocasião catalisadora do rock soviético, cabe perscrutar sua realização material:
Como chegaria o rock às mãos e ouvidos de seus apreciadores? Como se adquiriria o rock em
uma sociedade Socialista? Como circularia a partir daí? Para responder essas indagações,
deve-se considerar aquilo que havia de presente nessa sociedade e que por qualquer motivo
singular, pudesse prestar serviço à tarefa de fazer do ritmo uma categoria exequível na porção
soviética.
Primeiramente, há que se considerar o aparato. O próprio aparelho estatal que se nutrira
de forças e esquemas para fazer valer sua implacabilidade diante de manifestações dos cidadãos,
seria um desses canais a serem utilizados para disseminação do rock. Anteriormente, fôra
através dele, de maneira formal, com a abertura de Kruschev à entrada de bens de consumo
diferenciados ao público local que o produto rock n ́ roll ingressaria na URSS. Posteriormente,
através do uso desse aparato de maneira informal, pelos protagonistas da realização do
empreendimento de um rock soviético. Assim, por exemplo, seriam criadas estratégias
clandestinas para a realização de determinadas obras de cunho artístico – seguindo-se à tradição
inaugurada, ainda na imberbe intelectualidade russa do século XIX, com o samizdat (cuja
definição apresenta-se a seguir).
O samizdat, ou literatura clandestina, estratégia de produção e disseminação alternativa
e marginal de escritos políticos subversivos, ainda no czarismo de Nicolau I (segunda metade
do dezenove) longe de ser um hábito abandonado, havia sido incorporado pelos intelectuais
soviéticos como parte das ferramentas de aquisição sub-reptícia de informações. Um exemplo
interessante, era o de como os acadêmicos dos estudos de Psiquiatria e Psicologia, fariam para
poder obter contato com as obras de Freud, uma vez que fosse esse um autor banido pela
ideologia socialista (nas primeiras décadas de existência da União Soviética), por conta de sua
teorização em torno do voluntarismo positivo da personalidade e o individualismo presente em
seu estudo sobre o inconsciente (linhas de pensamento desafiadoras aos pressupostos da
ontologia e epistemologia marxista, observadora de um determinismo e coletivismo implícitos).
Segundo a tradição, considerando que um pedido afirmativo de estudo fosse seguramente
negado de acesso pelos canais oficiais, o pedido vinha escamoteado na seguinte estratégia:
requeria-se junto à biblioteca da instituição superior, a disponibilização dos principais autores
114
atacantes da obra de Freud, suas teses e teorias, com o pretexto de produção de trabalhos
acadêmicos para criticar a proposição freudiana. Uma vez liberados esses conteúdos e autores,
pela oposição, se tinha acesso à partes e conteúdos da obra original do psicanalista, e esses
excertos eram compilados em literatura informal e circulados pelo meio acadêmico, por uma
rede articulada de redação e distribuição clandestina (CUSHMAN, 1995; p. 36).
E essa tradição contestadora e de redes subterrâneas de circulação cultural, por
conseguinte, seria outro meio de difusão de materiais: um meio termo entre o uso do aparelho
estatal e o consumo individual, considerando que encontraria com a tecnologia oportunizada
pelas novas experiências de consumo oferecidas no Degelo. Proporcionada pelo advento da
possibilidade de aquisição doméstica dos magnitofon (toca-discos; dispositivos de
gravação/reprodução bobina-a-bobina) e a criação, nos anos 1960, do dispositivo gravado em
modo fita-cassete183, sem olvidar os discos de vinil, criados e disseminados cerca de duas
décadas antes (1948), mas que mais francamente, na URSS seriam adquiridas em escala sob
Kruschev, no início da década – segundo Cushman (1995; p.195) – surgiria uma modalidade
de gravação e compartilhamento de materiais fonográficos: a magnitofonnaia kul´tura (ou
cultura do magnetófono, referente à prática de reprodução artesanal fonográfica a partir de
gravações domésticas de discos e fitas-cassete).
Em primeiro lugar, no que concerne ao fenômeno de cultura do magnitofon na URSS,
deve-se esclarecer de quando e como se produziu o tal ‘dispositivo magnético de bobina-a-
bobina’ – recorrendo à tradução mais próxima daquilo que descreva o conceito de um
magnitofon (gravador de fita magnética). Na URSS, os primeiros estudos acerca de registro
magnético remontariam à década de 1930, contando com a participação de pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Científica do Comitê de Radiodifusão da União Soviética (segmento
ligado à Gostelradio), com gravadores bobina-a-bobina bem-sucedidos, tendo sido produzidos
ainda antes da Segunda Guerra Mundial. Em 1942, seria produzido o SM-45, e em 1944, a série
MAG (com os protótipos MAG-1 e MAG-2), direcionados com especial propósito aos centros
de radiodifusão estatais. Apesar de sua pouca escala de produção àquele momento (cerca de
setenta aparelhos), no pós-guerra haveria um florescimento e desdobramento ávido dessa
produção: com a criação de um Instituto de Desenvolvimento à Gravação Sonora e toda uma
estrutura de base para a indústria local com essa finalidade. Daí, surgiriam os protótipos
simplificados, projetados para o consumidor de massa (embora, de fato, à época, seu preço
183HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 208
115
ainda fosse vultoso e inacessível ao grande público), os quais, a partir de 1949, com a realização
do gravador bi-bobinado Dniepr, produzido na RSS da Ucrânia (em Kiev), teriam a aquisição
por organizações (coletivos) muito acessibilizada, gerando possibilidade, durante a metade dos
anos 1950, para que se alargasse o segmento rumo ao consumidor. Assim, de Moscou sairiam,
pioneiramente ao circuito doméstico, os modelos Yauza e Astra, e do pólo de produção sediado
em Vilnius, sairia o Elfa, os quais, até o final da década (1959) seriam de ampla abrangência e
domínio técnico junto à produção local.184
Decorrente dessa revolução tecnológica do magnitofon, viria o amplo acesso dentre a
população, disponível a quase todas as categorias populares, a qual ocasionaria seguir, a
chamada Magnitofonnaia Kul’tura ou cultura do magnitofon/gravador bobina-a-bobina, bem
como o termo correlato, Magnitzdat (registro magnético ou, propriamente, fita magnética)
contribuinte a disseminação precoce do chamado ‘VIA semi-underground’, sem olvidar
performances estrangeiras e de bardos locais. Embora não fossem aprovadas pelo selo estatal,
tais produções ganhariam vulto e ficariam muito populares185.
Dentre as fontes aqui utilizadas apontam-se diferentes metodologias e épocas de
florescimento dessas práticas. PAPHIDES (2015) situa sua ocorrência durante os anos 1960,
com ênfase na entrada de discos de rock de artistas britânicos por meio de atravessadores
ingleses que se correspondiam com contatos da União Soviética (não ficando especificado se
tratando de cidadãos com privilégios, como filhos de diplomatas e dos oficiais ou se integrantes
da própria estrutura oficial com relações ao mercado negro). A principal indicação do autor se
refere à produção e disseminação de reproduções clandestinas em formato de discos (chamados
de roentgenitzdat, ou impressos em raio-x), consistindo em versões piratas (bootleg) dos vinis
originais – dos Beatles, principalmente – impressos nas superfícies de materiais alternativos
disponíveis na União Soviética.
O método de realização dessa via clandestina de produção cultural é parcialmente
reconstituído nos primeiros trechos da película russa Stilyagi (traduzido ao Ocidente como
Hipsters), de Valery Todorovski, de 2008. No filme, que busca retratar o movimento local da
juventude jazzista durante a década de 1950 na União Soviética, há a demonstração de uma
engenhoca, composta por dois aparelhos com superfície de toca-discos, posicionados em
184Музыка 70-80-х Музыка Катушечных Магнитофонов!!! Музыка 70. Музыка 80; (2011) [Trad. Livre:
Música das Décadas de 70 e 80 – Música de Gravadores Bobina-a-Bobina; Ficheiro: Músicas dos Anos 70;
Músicas dos anos 80] Disponível (em russo) em: https://abrgen.ru/magnitofony/; Acesso em: 02/03/2021 185Idem
116
paralelo, que através da execução da melodia na superfície de um disco de vinil original, de um
lado, fazia vibrar em simultâneo a uma haste provida de agulha (similar a apresentada na
estrutura de toque do toca-discos) do outro, só que esta ao passar na superfície da chapa
colocada em paralelo, ao invés de ir executando uma melodia (como a estrutura disposta ao seu
lado), lhe ia gravando ranhuras – correspondentes às executadas pelo disco original –
produzindo um negativo do disco, utilizado para produzir cópias em escala do material
fonográfico utilizado como base.
Pete Paphides (2015), jornalista britânico pelo The Guardian, realizador de reportagem
importante referente ao assunto, relata que formas plásticas de bolo, placas de sinalização e
mesmo chapas descartadas de exames de raio-x seriam superfícies de gravação empregadas
nesse processo de confecção dos roentgenitzdat, rudimentar e clandestina. Não obstante,
ressalta-se como algo a impelir a prática, o fato de que os materiais ocidentais adquiridos fossem
muito caros e mesmo suas gravações locais (em compactos de coletâneas aprovadas pela
gravadora estatal) se dessem disponibilizadas por elevados preços186. Sobre os roentgenitzdat
e a repressão local à essa forma de produção alternativa, mais adiante se dissertará, ao analisar
outra fonte: o filmete educativo estatal – traduzido ao inglês – Shadows On The SideWalks, de
1960 (URSS), como parte do argumento do capítulo Amigáveis Informantes: Os Druzhnniki e
o caráter frio e calculista do Degelo.
Já Cushman (1995), enumera a hereditariedade dessas práticas, através de outra solução
de produção do circuito alternativo, numa faceta da disseminação dos chamados
magnitoalbomy (ou álbuns de artistas gravados em fita-cassete), uma solução encontrada pelos
músicos locais, principalmente perto da década de 1980187, como forma de possibilitar a
produção doméstica de gravações (não mais apenas reproduções, mas inclusive, originais de
186Há o relato de certo músico entrevistado por Cushman, cujo nome não é mencionado, que informava ter pago a
soma de quarenta rublos em um único álbum estrangeiro (contrabandeado). Considerando-se, que isso
representasse um quarto do salário mensal de um trabalhador médio soviético, tal preço tornaria, por essa via,
disponível para poucos a aquisição de materiais dessa categoria na realidade local. Fonte: CUSHMAN, 1995; p.
40 187Referências correntes a essa modalidade são apresentadas no trabalho, frequentemente, ligadas e situadas à
década de 1980 (Marochkin, 2011; Cushman, 1995). Entretanto, não se tem precisão de quando tenha principiado
a prática dos magnitzdat (se durante Kruschev ou se logo depois), posto que a existência dos cartuchos magnéticos
e das fitas-cassete remonte, respectivamente, em terras ocidentais (e por extensões dos bens de consumo
soviéticos), às décadas de 1950 e 1960. Além disso, pelas fontes, é factível que pelo mercado negro ou pelos
consumíveis da Era do Degelo, algo dessa natureza viesse a figurar na União Soviética, conforme se disserta ao
longo desse trabalho – no exemplar de caso de um bardo local, Bulat Okudzhava – embora pouco rastreável, não
se demonstraria impossível – e por isso, situar-se os dois meios de disseminação nessa etapa (anos 1960), mesmo
tendo um deles (magnitzdat) maior vulto na década de 1980, pois pelo relato em análise da história desse bardo
(adiante dissertada), pode-se situar de tal precedente junto ao do, mais evidentemente rastreável, vinil pirata
(roentgenitzdat) nessa reconstrução narrativa referente aos anos 1960.
117
bandas locais), através da utilização da modalidade (clandestina188 ou paralela189) de fitas-
cassete – chamadas localmente de magnitzdat, ou registros magnéticos. A qualidade do
material seria discutível (sonoridade precária), posto haver pouca oferta de variedades de fitas-
cassete e ficar esse sortimento, a depender da circulação local (regravações). Em geral, as fontes
de disseminação desses materiais, seriam as redes de amigos e relações dos indivíduos
apreciadores, que gravando uma mesma fita e regravando-a diversas vezes (em um esquema de
cópias das cópias), fariam chegar a extensão dos gravados não apenas a circunscrição territorial
da cidade (como Moscou e Leningrado), mas, muitas vezes, de todo o país. Um tiro incerto,
seguramente, mas cuja amplitude fazia valer a pena o risco.
Como Cushman (1995; p. 41) observa, embora fosse uma sociedade da modernidade
industrial, a ausência de produção em massa desse método (para esse segmento), faria lembrar
a estrutura de uma cultura aldeã (village culture), onde a disseminação pelo ‘boca-à-boca’ e o
repasse direto de produtos, cumpria função de substituir o que em outro cenário seria
desempenhado pelo aparato mercadológico.
A partir dessas iniciativas ora descritas, em radiodifusão, constatam-se então, duas
modalidades alternativas de produção: a) primeiramente, o roentgenitzdat (em tradução literal,
registro no raio-x190) ou vinis piratas, os quais eram prensados – ante a carestia de alcance
facilitado ao recurso do vinil – em chapas de acetatos de exames de raio-x (PAPHIDES, 2015);
e mais adiante, b) o magnitzdat (em tradução literal, registro magnético), fitas-cassete piratas
para a gravação de música de uma forma ainda mais barata e dotada de subterfúgios, sem
188Confecção de material por meio das já mencionadas atividades ilícitas, contraventoras. 189Confecção dos materiais por meio de estúdios independentes, como os apresentados em Marochkin (2011), já
existentes no princípio dos anos 1980, embora subsistisse a adequação ao Socialismo, na região de Moscou e
Leningrado. 190Aqui cabe um parêntese em relação à terminologia. Embora o nome Roentgenitzdat, signifique, gravado em
raio-x, isso é apenas fruto do uso corrente de uma equivalência do termo original cirílico, a sua denominação
Ocidental (onde o roentgen, corresponde ao raio-x). Entretanto, deve-se considerar nessa etimologia, que a Rússia
durante muito tempo, foi tributária do pensamento e dos conceitos provindos da Alemanha, e quando em 1895,
Wilhelm Von Röntgen, físico e engenheiro alemão, descobriu e processou os efeitos da radiação eletromagnética, resultando na confecção das primeiras chapas de raio-x, seu experimento levou seu nome em tributo, chamando-
se inicialmente de Chapas de Röntgen. Daí o nome chegar ao cirílico, por metonímia, como o ato de se fazer um
Roentgen, vir a ser sinônimo de fazer chapas gravadas à moda de Röntgen, através do uso de raio-x. Por justiça à
literalidade do termo, raentgenitzdat, é um substantivo que amalgama a outrora referida terminologia de literatura
clandestina (samizdat), com o nome dessa técnica de gravação (Roentgen/ raio-x), onde o sufixo raentgen presente
em raentgenitzdat, equivaleria, em realidade, ao termo de Gravado em Röntgen, em alusão menos à técnica (raio-
x) e mais ao seu descobridor (Röntgen, que em cirílico, se translitera em Raentgen) – resultando daí, a composição
desse importante nome da cultura fonográfica marginal da URSS: os discos gravados nas chapas de Röntgen (ou,
de raio-x). Fonte: KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas (1963); 2ª Ed. Editora da UFPR,
Curitiba, 2012
118
esquecer de mencionar, sua facilidade de produção em escala artesanal de reprodução do vinil
para o meio magnético, a partir de um aparelho doméstico.
O modus operandi das gravações, também se complexificaria ao longo do tempo, indo
para além de regravações de materiais importados, para o registro local das performances das
bandas. Esse funcionamento dependeria, antes de qualquer outro item, de um mínimo de
conhecimento, tanto musical, quanto da aparelhagem necessária ao propósito (que será
abordada em tópico mais a frente) e o acesso aos seus instrumentos.
Devido à estrutura de educação soviética prever a formação musical em seu amplo
escopo cultural, não raro, os estudantes possuíam alguma experiência musical de aprendizado.
Ainda por cima, o acesso a determinados instrumentos ficava possibilitado através dos contatos
adequados. Referente a isso, Ryback (1990) pondera uma crônica, no tocante à aquisição da
guitarra elétrica, emblemática ferramenta à realização do rock, que muito escassa ainda àquela
década na URSS. O autor relata que a comunidade jovem local resolveria o problema, a partir
de meios muito particulares: ou do atravessamento de materiais por meio contrabandeado (em
geral da Alemanha Oriental) ou por meio da vandalização de telefones públicos, disponíveis
em número substantivo nas localidades urbanas, e a partir de cujas peças, com um ofício
artesanal de luthieria (fabrico de instrumentos), se poderia arranjar os captadores e partes
metálicas do mecanismo do instrumento191. Nesse sentido, noutro relato, o músico Vladimir
Salnikov, ajuda a ilustrar essa questão, comentando acontecimentos do verão de 1966, onde se
reuniria com amigos da Universidade Estatal de Moscou, na primeira formação dos Scythians,
em um episódio da trajetória do já mencionado guitarrista virtuoso Sergei Dyuzhkov:
[...] Encontramos Yura, nos conhecemos e dez minutos depois, com a ajuda de amigos
ele trouxe sua riqueza: uma bateria Trowa, guitarras – Musima Elguita e Hernzsdorf
– e um baixo caseiro com estacas simples e cordas para violoncelo e um
amplificador caseiro. [...] [Mais adiante quando tornamos a nos encontrar]
Soubemos com grande lamento que a guitarra Elguita de Yura, pela qual
tínhamos vindo tinha sido levada por credores. [...] No começo, tudo era dado com
dificuldade, havia uma diferença entre nossos níveis de treinamento e o treinamento
dele [Dyuzhikov]. Mas gradualmente começou a dar certo. De ensaio para ensaio, o
grupo tornou-se mais bem coordenado. Sergei tocou a guitarra Hernzdorf, um
instrumento rítmico com um captador e um timbre bastante baixo. Ela
claramente não tinha altas frequências. Mas o que você pode fazer, não havia
dinheiro para comprar uma segunda guitarra. [...] Yura Malkov em uma conversa,
descobriu que [um outro colega do grupo] Boris tinha dinheiro com ele e então, pediu
que lhe emprestasse 180 rublos para comprar de volta a guitarra. Boris, que era uma
alma bondosa, não viu jeito de negar o pedido e assim Dyuzhikov adquiriu um
[modelo] Musima Elguita. Sergei, um grande inventor, reorganizou as cordas: a
terceira foi substituída pela segunda, a quarta pela terceira, e assim por diante.
191RYBACK, Timothy. Rock Around The Bloc: A history of rock music in Eastern Europe and Soviet Union.
1ª Ed. New York: Oxford University Press. 1990
119
Com isso ele reduziu a resistência das cordas ao executar curvas (flexões, como
o próprio Dyuzhikov diria). É verdade que as cordas ficariam ruins para as
oitavas depois disso, mas ele simplesmente resolveu isso puxando as cordas para
cima enquanto tocava com os dedos. Naqueles dias distantes os acessórios para
guitarra eram escassos e a um elevado preço. [Tradução do russo e grifo nossos]192
O enaltecimento das passagens em torno de pouca suficiência material instrumental,
com uso dos termos riqueza em contraste aos de ordem técnica, dificuldades e o episódio da
tomada de um desses materiais por credores (guitarra), ilustra o grau de exclusividade e valor
desse suporte material na localidade soviética, mesmo em se tratando da capital Moscou. Não
obstante, a descrição das alternativas criadas para poder realizar adaptações nos materiais
(re)adquiridos ou construídos, muito se assemelham às das dificuldades técnicas encontradas
pelos músicos suburbanos estadunidenses mais pobres – principalmente, os de origem hispânica
e afro-americana, precursores do rock nos anos 50193.
Contemplando outra dimensão de ordem técnica, a de gravação, durante o período, essa
seria majoritariamente inacessível aos rockeiros. Entretanto, músicos que fossem autorizados
pelos gerenciadores, conseguiriam figurar em suplementos televisionados de cultura
(Karnival), e por conta disso, serem gravados em vídeo-clipes – mas ainda assim, raramente
àquele momento. A característica predominante do rock soviético dos anos 1960 seria a do rock
de apresentação (seyshnov), com predominância dos espetáculos na modalidade de convite para
tocar, em instituições de caráter estudantil, mediadas pela atuação dos gerenciadores à serviço
do Komsomol. Sua disputa no mesmo terreno de os outros baluartes, profissionais, da canção
soviética (como os músicos do gênero Estrada, cujo tema será melhor abordado mais adiante),
só seria melhor evidenciada na década seguinte – com a criação da iniciativa VIA194.
192SALNIKOV, Vladimir. ГРУППА «СКИФЫ». КАК ВСЁ НАЧИНАЛОСЬ… [Trad. livre: Grupo Skifhs
(Scythians): como tudo começou]. Radio Special (Specialnalnya Radio); em russo. Seção Musical Lexicon: artigo
de 01 de jan. 2005. Disponível em:
https://specialradio.ru/art/id101/?fbclid=IwAR1lmA2YvgS7AhSdAmkTXoa8QTbLfRvXtsNk1GyWzBKqlphGz
BmzCRuOmgw; Acesso em: 20/07/2020 193Nesse sentido, uma breve curiosidade desse universo de precariedade técnica vivenciado por alguns músicos do
rock, aproximaria em biografia, a trajetória do Jimi Hendrix local, Dyuzhikov, com seu ídolo estadunidense:
Hendrix era um adolescente negro de Seattle, que no fim dos anos 1950, conseguiria uma guitarra destra (sendo
que o guitarrista era canhoto). A primeira adaptação proviria do fato de inverter as cordas para poder tocar. Sem instrução, aprenderia a manuseá-la de modo autodidata, utilizando uma moeda em lugar de palheta. Surgiria o
gênio, cuja marca, o emprego da amplificação distorcida, também teria história no driblar de uma disfunção de
ordem técnica: a distorção amplificada da guitarra, seria tradição desde Rocket 88, de Ike Turner (considerada a
primeira canção de rock n´ roll), onde o músico estaria utilizando-se nisso, de um amplificador danificado, o qual
não tivera condições de trocar, mas que a partir daí, emprestaria um ruído de fundo (roufenho) e deixaria o timbre
da melodia mais grave que o natural – algo que agradaria ao músico e se tornaria um precedente ao universo do
uso do drive sonoro no rock. Fonte: ANDRADE, João Paulo. De Seattle para a Eternidade. Whiplash.com. Edição
de 06/04/06. Disponível em: https://whiplash.net/materias/biografias/038478-jimihendrix.html; Acesso em:
20/07/2020. 194Vocalnyie Instrumentalnyie Ansambly (transliteração de conjunto vocal-instrumental). Respeitando as etapas
120
A gravação clandestina dos roentgenitzdat existente nos anos 1960, por seu caráter,
seria mais tímida. Já a dos aludidos magnitoalbony (ou magnitofonnaia albomy; álbuns
magnéticos), os álbuns de fitas-cassete, seria mais evidente, mas sua maior tiragem se daria a
partir no princípio da década de 1980. A comparação é pertinente, no sentido de salientar a
persistência de uma metodologia de enfrentamento à escassez e às restrições, evidenciada nos
caracteres de uma rede de produção em clandestinidade – de característica autônoma doméstica,
ilícita, não comercial e perpendicular ao circuito oficial – e de precariedade contornada em
ambas as realizações. Do que decorre dar relevo, justamente, a esse importante aspecto
material-formal de acesso: o que concerne às formas encontradas a suprir a indisponibilidade
de canais e material mais robustos para gravação na União Soviética. Caractere que por conta
de sua fundamentalidade ao processo e complexidade de aquisição, estrategicamente, seria
segmentadamente supervisionado e permeado/regulado pela via oficial, sempre a figurar sob o
domínio de alguma instituição a serviço do aparato (como a gravadora estatal ou em repartições
ligadas à administração pública soviética). Entretanto, artificiosamente, da participação de
certos personagens locais e uma dose de condescendência das autoridades fiscalizadoras,
sucederia a possibilidade de seu uso – oportuna e, por vezes, corriqueiramente:
No porão do prédio195 havia um pequeno estúdio de gravação no qual, um homem que
atendia pelo nome de Andrei196, produzia álbuns de fita-gravada de certos músicos
independentes de Petersburgo (Leningrado). O esquema funcionava da seguinte
maneira: um grupo ou músico solo vinham até esse produtor para uma audição, na qual ele decidiria o que iria ou não ser digno de gravar. Depois de tomar sua decisão,
o produtor faria cópias das músicas, reproduzindo-as uma a uma em fitas separadas,
e distribuindo-as aos aficionados de rock da cidade. Por sua vez, esses produtos de
rock eram reproduzidos e distribuídos através de canais de comunicação dessa cultura
de gravadores-de-fita que já se havia estabelecido firmemente na cidade. Por conta da
falta de acesso aos meios de reprodução em massa, essas formas de difusão eram,
inerentemente, limitadas. Ainda que, se deva mencionar, ironicamente, assim como
do trabalho, o tema do VIA e da profissionalização do estilo, será devidamente abordado em partes mais avançadas
dessa dissertação, ao esmiuçar-se acerca da gestão do princípio da Era Brejnev. 195O prédio a que o narrador se refere, é o do suposto domicílio de trabalho do produtor Andrei, a Casa dos
Pioneiros, em Leningrado (CUSHMAN, 1995. p. 197). A Casa dos Pioneiros era o primeiro degrau na formação
das crianças/adolescentes na educação soviética partidária. Era o berço da trajetória de aspirantes à carreira oficial,
atuando como instituição soviética de ensino, equivalente à escola infantil atual, na educação brasileira (educação
infantil e anos iniciais), destinada à formação inicial das crianças soviéticas. Era seguida pela etapa no ensino
ginasial do Komsomol (etapa destinada aos jovens, conforme descrito anteriormente). Nessa instituição, enquanto funcionasse como uma escola, vários cursos preparatórios eram oferecidos, bem como, por meio de arrecadações
e atividades culturais recebia-se materiais de descarte em caráter de doação, inclusive do aparato do Estado. 196Não há uma certeza patente acerca da identidade desse radialista irreverente entrevistado por Cushman (1995).
Entretanto, cruzando fontes (CUSHMAN, 1995; MAROCHKIN, 2011a), entre a descrição de sua atuação e sua
influência marcante na cena rock da URSS, através do exame de um relato de Marochkin (2011), acerca dos anos
1980, encontram-se características as quais correspondem à figura do radialista de Leningrado Andrei Tropillo:
[...] Apareceram os primeiros colecionadores amadores: em Moscou – como Alexander Ageev (fundador do
estúdio "Bell"), Victor Alice, Victor Lukinov; em São Petersburgo [Leningrado] – como Andrei Tropillo e Sergey
Firsov, que tinham a coleção completa de tais discos, eles espalharam a magnitoalbomia [mania do
magnitoalbomy] entre amigos. [Trad. do inglês e grifo nossos]
121
acontecia a outros produtos de samizdat, a demanda por produtos de música informais
fosse muito maior do que aquela por produtos provenientes das instituições formais
de produção de cultura, como a Melodiya. [Traduzido do inglês]197
Excetuada a parte do firmemente estabelecido – posto que o relato remonte à década de
1980, momento onde a corrente underground de disseminação de magnitofonnaia albomy
(álbuns de artistas gravados em fita), se encontrava de fato consolidada em terreno soviético198
– parte desse padrão de funcionamento descrito seria o mesmo desde os primórdios da cultura
da magnitofonnaia kul´tura – já verificável na disseminação de outros estilos à década de 1960,
na URSS (nesse sentido, um desses gêneros difundidos àquele momento pela via magnética
alternativa seria o blatnaya, protagonizado pelo bardo Bulat Okudzhava, de que se falará mais
adiante). Destaca-se no caráter subterfugioso da questão – produção pirata – duas importantes
observações. Em primeiro lugar, como outrora mencionado, não obstante a realidade atroz de
concorrência por recursos e a pertinente aprovação do órgão de censura e edição, muitas vezes
ainda, o grande percalço era que se o artista não tivesse o selo partidário (se não fosse o artista
considerado engajado pelo Partido), seu nome sequer entrava na lista de possibilidade de
produção pela gravadora estatal – Melodiya – e sequer poderia ser realizado por via franca. Em
segundo lugar, mesmo na realização clandestina, havia uma peneira baseada num juízo de gosto
e no faro do produtor ‘alternativo’ sobre se tal música ou artista tinham possibilidades de fazer
sucesso. Como dito, apesar de não haver dinheiro vultoso em jogo como nas operações do
mercado fonográfico Ocidental, na realidade soviética, determinadas tendências musicais, se
permitidas, tinham promissora possibilidade de captar recursos junto ao aparelho estatal, e
quando não, conseguiam por meio da obscuridade, alguma vantagem significativa199. E daí a
persistência no método, onde se um músico ou um estilo de música, em seu conteúdo, não fosse
considerado adequado ou seu nome não grassasse entre a vanguarda artística, a via ilegal
pudesse ser tão interessante: afinal, uma vez que rechaçado no meio oficial, senão por meio
clandestino, esta música/autor, talvez jamais chegasse a uma realização.
197CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 197 198O jornalista russo Vladimir MAROCHKIN (2011a) ressalta esse entendimento: Nos anos 80 floresceria a
cultura da gravação de fitas domésticas. Músicos de rock e mesmo alguns músicos de outros ritmos estavam aptos
a gravar no estúdio ou mesmo em casa os chamados álbuns de cozinha [v kukhne albomy], por períodos iguais ao
do disco (35-40 minutos), e então gravavam isso replicado em uma fita-cassete. O grupo por si próprio usualmente
produzia de 20 a 30 cópias, às vezes até centenas do álbum original em caixas com capas, produzidas a partir do
trabalho de alguns de nossos melhores artistas e fotógrafos. No futuro, outros fãs de rock simplesmente passariam
essas cópias de um para outro. Fonte: MAROCHKIN, 2011a. 199Em abordagem futura, referente a essa afirmação, a grande questão de uma sociedade de economia planificada,
não reside no retorno financeiro, mas principalmente, no capital simbólico proveniente da reputação, a qual garante
trocas e relações importantes dentro dos grupos desejados,
122
Outro fator a ser investigado é o da circulação geográfica, do circuito de produção,
consumo e fiscalização desses materiais. A migração do estilo (rock) de Moscou para a cidade
de Leningrado, ao longo da década de 1960, por exemplo, se deveria entre outros fatores, não
apenas às condições similares de caractere urbano, mas também ao seu âmago local –
Leningrado seria a renomeação soviética de São Petersburgo – como a histórica capital da
cultura, cidade de presença e trânsito de muitos artistas na Rússia, e também ao fato de ficar
mais distante de epicentro da vigilância oficial, sediada em Moscou. Acerca dessa afirmação, o
depoimento de um colega próximo do produtor citado por Cushman (1995), Andrei, ajuda a
esclarecer um pouco mais sobre algumas características das estratégias desenvolvidas ao longo
do tempo nesse empreendimento clandestino de cultura:
Formalmente, ele trabalhava em uma escola para crianças, ensinando-as como utilizar
aparelhos de solda em eletrônicos e como consertar e montar esses equipamentos,
desde os esquemas de circuitos. Ele estava conectado com a cena do rock e sempre se
interessou por isto, e então lhe ocorreu de montar e desmontar não apenas aparelhos
de rádio, mas também aparelhos de gravação. De fato, não era uma atividade
criminosa – uma pessoa qualquer poderia montar um aparelho de toca-fitas em casa e
usá-lo como se o tivesse comprado numa loja. E uma vez que ele possuía amigos na
Melodiya [estúdio estatal], através deles ele comprava saldos de equipamentos
obsoletos, recondicionava-os, e os instalava. Por esse meio tempo, depois de curto
período ele já possuía um estúdio adequadamente decente, o qual podia renovar
regularmente. Assim era, quando a Melodiya estava adquirindo materiais novos, as coisas velhas eram, praticamente, automaticamente compradas pela Casa dos
Pioneiros. E desse jeito, Andrei também colaborava com a Melodiya em alguns
projetos, desde que ele tivesse algum negócio em mente, certas permissões, e
participasse de alguns negócios... E penso que isso fosse do conhecimento das
autoridades, mas por alguma razão era mais vantajoso manter essa fonte aberta, do
que perder o contato com outras fontes, fechando-a. Porque estava claro a alguns que
se o rock se dispersasse, ficaria muito difícil controlá-lo. [Tradução do inglês e grifo
nossos]200
Naquela localização (específica cidade, Leningrado; específica função, professor de
eletrônica), a possibilidade de proporcionar fatores tais como: a distância ideal entre as
estruturas estatais e o ato clandestino, o fato de se possuir um emprego estável, com
proximidade ou relacionamento afim das autoridades responsáveis e ainda se poder realizar
todas as atividades dentro do limite da circunstância da lei (pois conforme a legislação soviética,
o uso não autorizado de equipamento estatal para finalidade particular era considerado crime,
punível com detenção; CUSHMAN, 1995; pp. 22-33), considerando que tudo era adquirido
legalmente na rede de descarte das instituições da URSS, permitia a que indivíduos, mesmo
antes do produtor Andrei [Tropillo], conseguissem dispor de uma estratégia de produção viável
e, de certo modo, uma vida tolerada aos olhos dos oficiais. Não obstante, a ideia do aparato,
muito ardilosamente, em manter as atividades de certos personagens demarcados, com tolerante
200CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 198
123
permissão, constituía como que um meio de contato a alcançar os demais protagonistas dessa
prática, músicos e consumidores de rock, permitindo-se traçar uma rede de rastreamento – o
que tornava a situação toda bastante conveniente para os órgãos fiscalizadores locais.
Entretanto, cabe salientar que nem sempre seria essa a realidade verificada, e na mesma
década onde tão prolificamente surgiriam metodologias clandestinas de produção e circulação
musical, com sublinhada leniência e patrocínio das autoridades, haveriam incidentes de
perseguição e apreensão, sistemática, de materiais fonográficos alternativos (clandestinos) –
algo que, ao comentar-se dos druzhnikki e toda a atmosfera de contradições entre
liberdade/restrição da Era Kruschev, será melhor abordado.
Em derradeiro, e como complemento a esse elenco dos meios de aquisição, formais ou
clandestinos, há que se ressaltar que dentro da URSS, mesmo em presença de uma estrutura
econômica planejada e planificada, como outrora aludido, contava-se com a existência de uma
rede substancial de gêneros contrabandeados, circulados através do mercado negro. Esses
gêneros e seus atravessadores, conforme Martens (1990) seriam de conhecimento das
autoridades, sendo por vezes, comerciados com a cumplicidade dos mesmos (destaca-se desse
comércio, principalmente ao exterior, desvios de remessas de caviar beluga e lotes de vodca,
além de diamantes, comercializados com total conhecimento do alto-escalão partidário). Com
isso, a entrada de discos de vinil ou outras formas de material fonográfico importado, para além
da raridade do mercado franco local, poderia ser encontrada, eventualmente, através dos meios
ilícitos – e com altos preços. No relato de outro aficionado do gênero (um baixista e médico,
apelidado Vitya), numa menção ao mercado negro praticado dentro da URSS, mais um indício
dessa alegada leniência das autoridades quanto ao assunto:
Bem, era o final dos anos 60, e isso era, de fato, um ato criminoso. Mas eu nunca
havia me dado conta de tais proibições!![Ênfase dada pelo entrevistado] Então eu comprei essa gravação, e era de música proibida. Não havia muito disponível por aí.
Havia pouco desse tipo de (produto) música, simplesmente, porque era difícil de se
comprar, pois não era produzido e tampouco distribuído. Era apenas uma questão de
falta. Eu nunca senti nenhum apelo político claro. Simplesmente era escasso. Comecei
a sentir que se tratava de algo mais político, quando fui estudar no instituto superior.
Isso foi em 1974. Ainda assim, penso que isso fosse mais profundamente sentido junto
àquele meu círculo de amizades. [Traduzido do inglês]201
Não é seguro afirmar se tal aparente leniência seria fruto, meramente, de displicências
e corrupções estatais somente, visto que haviam outras coisas mais importantes a competirem
por atenção e recursos na administração local (como se procurará evidenciar no capítulo Lado
201CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 97
124
B: O reverso da medalha). Há que se considerar a possibilidade também, de que essa
inobservância se devesse a uma premeditação de conveniência (estratégia de vigilância indireta)
ou mesmo à ineficiência do aparato fiscalizador diante de um fenômeno pulverizado e setorial.
Entretanto, é flagrante a distinção entre esse cenário e seu controle brando, em relação à cultura,
quando em comparação ao vivenciado em Stálin. Ainda existiriam as agências de censura
(como o órgão central Glavlit, ou em específico à música, barreiras impostas pelo
credenciamento à União dos Compositores Soviéticos [RAPM] e ao selo estatal [Melodiya], a
sujeitar-se à uma submissão a aprovação de conteúdos literários e mesmo, letras de canções),
e mesmo o AgitProp (cuja produção de propaganda, agora, focava densamente na campanha
espacial202, com o programa Vostok, a Cosmonáutica e as sondas lunares da série Luna;
GEROVITCH, 2007), mas como demonstrado pelos indícios, a atividade rockeira estaria de
modo pendular na mira das autoridades – ora refreada, ora permitida, mas muito mais
constantemente permeada de uma mediação pelos komsomolets (fiscais da juventude) e dos
gerenciadores estatais (como diretores artísticos, que atuariam, inclusive, na década posterior;
MAROCHKIN, 2011a), do que nas incumbências da camada hierárquica mais robusta da rede
institucional oficial.
Considerado isso, e com algum grau de esclarecimento, compreendido o método pelo
qual se tenha dado o contato com essa música estrangeira e os meios de sua perpetuação, fica
mais palpável como se tenha formado a partir de ‘gosto’ do ritmo do rock Ocidental, um público
em torno de sua apreciação. Contudo, levando-se em conta que gosto não figure apenas na
dimensão dos sujeitos (subjetiva), a parte objetiva em torno desse fenômeno cabe ser mais
detalhada. Rumo ao desvendamento de como o rock tenha se correspondido, tão
magnificamente, com a cultura local – a ponto de vir a integrá-la.
2.1.3 Experiências de Atrito: O Rock se torna Russo (... mas não sem Resistência)
Podemos supor que o rock russo começou com essa música e ainda está travando essa batalha e não
entende que ainda está lutando consigo mesmo – como Mike Naumenko203 certa vez cantou.
202Episódio representativo desse direcionamento enfatizado à promoção da Era Espacial Soviética àquele período,
o episódio em que os Scythians, seriam escolhidos para as apresentações em honra aos cosmonautas soviéticos,
durante os concertos no Palácio dos Esportes Luzhniki, no final da década de 1960. Fonte: SALNIKOV, 2005. 203Mikhail Vaylievicz Naumenko; Músico underground do rock russo soviético, líder e fundador do grupo de rock
Zoopark (da cidade de Leningrado), fundamental integrante do movimento de eclosão do estilo na década de 1980,
considerado um dos ícones de criação de iniciativas do cenário rock Leningrado-Moscou, muito querido dentre o
movimento na URSS. De uma carreira musical começada ainda em 1975, para adiante da atuação solo
(majoritariamente nas composições), faria parcerias com Viktor Tsoi (Kino) e Bóris Grebenschchikov (Akvarium)
em sua trajetória ao longo da década de 1980. Seu estilo seria considerado pelos críticos algo comparável ao de
Bob Dylan – cujas composições, algumas, seriam ‘adaptadas’ pelo artista soviético a partir da obra do
estadunidense para a realidade local soviética (como por exemplo, Zolotoy Lvi [Leões Dourados], uma versão da
125
Artemiy Troitsky, ‘Vou Apresentá-lo ao Mundo do Pop’
Para se entender como o rock soviético calhou em ser recepcionado na cultura local, a
mera oportunidade do acaso, como aludido outrora, não seria suficiente. Existe um precedente
de identificação, um senso de afinidade que leva a que determinados indivíduos se deixem
cativar por uma experiência de consumo/contacto com determinado tipo de arte. Essa afinidade,
segundo o entendimento de Pierre Bourdieu (1982), pode ser definida, quando de sua
apreciação despretensiosa, sem senso estético mais apurado envolvido, como uma dimensão do
aprazível, mexendo com caracteres da personalidade da pessoa, seu âmago e as características
daquilo que componha sua identidade. Um juízo estético de gosto, é desprovido de
imparcialidade, indo pelo contrário, muito próximo à total desconsideração da experiência
estética por sua própria natureza (‘neutralidade’) e sim, utilizando-se dela como veículo a uma
locupletação dos sentidos, oferecida por essa oportunidade de identificação entre a afinidade, a
intensidade e a experimentação.
Parte da definição de Bourdieu coloca-se a serviço da explicação de como o rock se
tenha feito incorporar ao repertório local, considerando que, minimamente, por serem dotados
de algumas características contribuintes (fato de serem jovens, em geral seus apreciadores;
desfrutadores de uma nova aurora cultural vivenciada àquele momento, nos anos 1960 da URSS
e por estarem consumindo agora, nova modalidade de aquisição doméstica de um produto
cultural também novo [Ocidental, estrangeiro]), o gosto se tenha manifestado em alguns desses
jovens, em relação à experiência musical que adentrava ao seu cenário de vida. Como
acontecera com os stilyagi, movimento em torno da apreciação do jazz na União Soviética à
década de 1940, oportunizando do contato de jovens soviéticos com esse ritmo Ocidental
(trazido outrora, por compositores clássicos locais a serviço da estética Realista Concretista, os
quais desfrutariam de um breve período de experimentalismo musical entre os Grandes
Expurgos e o Terror Zhdanoviano; KREBS, 1970), novamente, na URSS, jovens tinham a
oportunidade de esboçar um juízo de gosto por sobre um produto diferenciado, ingressado no
cenário cultural local. Por enquanto, a discussão permanece em torno desse gosto, apresentado
canção Idiot Wind, de Dylan). Assim como Tsoi, sua partida precoce, em 1991 lhe transformaria em um mito da
música local, tornando-o objeto de documentários sobre a música e vértice muito importante para a compreensão
da cena artístico-musical ao período (como se pode observar na cinebiografia Leto [Verão], produzida na Rússia
em 2018, que reconstitui dessa parceria/rivalidade entre Naumenko e Tsoi, situada numa Leningrado do princípio
da década de 1980, cercada de todas as dificuldades e conflitos da realidade musical àquele momento). Fonte:
MAROCHKIN, 2011a.
126
na comunidade local, e as etapas que o levaram de uma experiência de apreciação a um a um
protagonismo por intérpretes locais.
Tomando-se isso por consideração, cabe se entender de dois conceitos importantes sobre
a questão cultural, e que colaboram a entender essas etapas em alusão: o público de gosto e a
cultura de gosto. Segundo GANS (apud CUSHMAN, 1995; p. 36), o público de gosto é a
porção subjetiva de uma cultura de gosto, que consiste na parte consumidora e usuária de
determinado produto dessa cultura em particular. Por sua vez, cultura de gosto, constitui a
porção objetiva dessa relação, cujos produtos apenas remontam a um sistema de composição e
troca de valores e formas culturais, essas que expressam esses valores, por meio de significados
e sua produção e circulação, perfazendo assim um sistema cultural desses valores, numa
composição de compartilhamento (de signos e símbolos dessa cultura, em forma de produtos),
refletidos em uma manifestação específica a qual se comunica através de meios pessoais,
interpessoais e de massa.
Por esse modo, primeiro o rock seria apreciado como uma experiência contemplativa na
URSS (‘ouvintes de rock’ surgidos durante o Degelo), em dimensão consumível (de gosto) e
somente a partir desse público consumidor – público de gosto do rock – surge a pretensão de
alguns de seus integrantes virem a figurar como protagonistas dessa prática (‘músicos de rock’
surgidos, com maior respaldo, a partir de Brejnev): transformando o outrora gosto apreciado –
público de gosto; ou fase passiva da apreciação do estilo – em gosto (re)produzido –
protagonismo ativo; cultura de gosto do rock. Sem um público do gosto, que assimila um
fenômeno primeiramente, não há que se falar em cultura de gosto – pois este conceito, bem
como a ordem de suas etapas, aplica-se a fenômenos oriundos de influência (como o rock,
Ocidental, que rumava à URSS) e não a manifestações culturais espontâneas locais.
Por este sentido, a exposição a uma forma de cultura antecede a possibilidade de
formação do gosto, assim como o gosto antecede a formação do público de gosto, e esse
antecipa possibilidade de uma cultura de gosto respectiva. Nesse ínterim, parece um passo
natural o desenvolvimento de uma identidade local associada a essa cultura de gosto, a ser
desenvolvida em consequência ao protagonismo desencadeado pela parte de produção e
circulação dos signos e significados dessa determinada cultura, a partir de atores locais, nesse
cenário local. A formação de uma identidade local, como mencionado do perpetrado pelas
bandas de rock soviéticas nos argumentos anteriores, não se resume à reprodução de caracteres
estrangeiros em território local. Ou mesmo, a sua realização em forma de linguagem local.
127
Embora contemple tudo isso, a formação de uma identidade local do rock soviético, passa pela
consideração das características locais: para ser mais preciso, pelo enfrentamento de certas
características ao seu processo de assimilação.
Recordando a Bourdieu (1982), a cultura é também – e, sobretudo – um campo em
disputa, e um elemento cultural estrangeiro, não vem ocupar um vazio devoluto de caracteres
culturais, mas sim, se encontra ao chocar-se com os valores presentes, onde mesmo presente o
gosto, relativo à existência de uma afinidade inicial superficial, apresentam-se características
circundantes mais profundas que se desafinizam com esse elemento exótico – e também, e
principalmente, a essas, se deve considerar durante o processo de assimilação.
Para sua possibilidade, a realidade do rock na URSS teria de considerar a priori as
características inerentes do ritmo em questão: o rock, por sua trajetória, um elemento cultural
urbano, cuja circulabilidade dependeria de um uma estrutura de sedimentação prévia dotada de
algum cosmopolitismo, constituinte de um elemento desafiador em cenários sociais mais
fechados ou propensos a uma postura conservadora dos caracteres culturais tradicionais.
Também, por suas características, um ritmo essencialmente ligado à juventude, com menor grau
de cativação nas camadas mais maduras de um cenário social (mesmo urbano)204. Sobretudo,
um ritmo de proveniência Ocidental, produto cultural e de valores da sociedade que em
antagonismo ideológico ao da URSS, por conta da configuração prévia ligada ao escopo de
estrutural próprio do sistema capitalista. De modo que, para a possibilidade de uma
circunstância de penetração do estilo em terras soviéticas, se tivesse de verificar a existência de
alguns requisitos locais – tais como: oportunidade de cenário urbano, com algum grau de
cosmopolitaneidade, possibilidade de recepção/ aquisição de bens de consumo e produtos
culturais segundo uma suficiente equivalência ao modo de circulação Ocidental e, a partir disso,
a possibilidade de trânsito local de seus próprios signos culturais e produtos culturais oriundos
dessa produção local.
204Como é notório, integrantes das faixas etárias mais maduras da sociedade, tendem a preferir outros ritmos
musicais, com outro apelo. E, em geral, os integrantes dessas faixas etárias que apresentam gosto pelo ritmo, quase
sempre, o fazem porque foram ingressados nesse gosto ou se interessaram por ele, quando ainda eram jovens,
nutrindo desde então essa afinidade pelo estilo musical em questão. Por suas características, o rock raramente é de
penetração social pós-juventude. É sim, pelo contrário, algo do qual, em geral, se pode gostar desde a juventude e
com o qual se vai crescendo e contemplando/praticando até a maturidade. Não se nega que possa haver epifanias
tardias em relação ao rock, mas elas costumam ser raras, em relação ao cenário geral. Corroboram essas
impressões, as narrativas encontradas em FERRI (2001); FRIEDLANDER (2002); CUSHMAN (1995);
MAROCHKIN (2011a).
128
Essa afirmação, em cada uma de suas etapas, fica mais clara durante a exposição do
fenômeno, na opinião de integrantes do próprio movimento. No tocante à localidade urbana e
cosmopolita, conforme se pode depreender do relato do músico russo Dimitry Matsenov,
baixista, integrante do grupo Notchnoi Prospekt (uma das expoentes bandas do cenário New
Wave do rock soviético nos anos 1980), historicamente, o rock na URSS se viu ligado ao
ambiente de quatro principais cidades russas: Moscou, Leningrado (atual São Petersburgo),
Novosibirsk e Sverdlovsk (atual Yekaterinburg) – as quatro grandes, segundo sua observação.
Como salienta, Leningrado seria o lar de um rock soviético mais experimental, enquanto que,
Novosibirsk e Sverdlovsk, apadrinhariam a verve do rock estilo bardo205 – bard rock –
considerado como a vertente mais pura do rock nacional (soviético russo)206. Embora não seja
a pretensão do trabalho cobrir as quatro grandes (por opção de exequibilidade, mostrando foco
em duas, Moscou e Leningrado), da fala do músico, se pode retirar essa afirmação presente, de
como o rock soviético tenha sempre estado ligado ao cenário das cidades – não raramente, das
capitais. Dos relatos do jornalista russo Vladimir Marochkin, menciona-se das cidades-capitais
como Riga na Letônia, Moscou (como precursora local russa), Yerevan na Armênia e
finalmente, Leningrado – todas essas, centros administrativos e/ou culturais em suas
circunscrições territoriais (cidades de referência).
Em Cushman (1995; p. 76), mais relatos nesse sentido: por exemplo, ao entrevistar o
músico Yuri Schevchuk207 (frontman e instrumentista da banda russa DDT; em cirílico, ДДТ)
há uma comparação acerca do diferencial desse ambiente urbano para o das demais localidades
da União Soviética. O comentário seria referente à percepção de uma certa liberdade – de
expressão, atitude – presente em Leningrado, que devido à sua experiência pregressa, tendo
nascido na distante região de Kolyma (Sibéria) e residido em Ufa, pólo ferrífero soviético –
fariam-no chegar a essa constatação. Cabe salientar, que não apenas o caractere populacional
conte ao considerar essa colocação, pois, embora a população das províncias siberianas seja,
205Um exemplar marcante dessa verve musical russa, do estilo bardo, será trazido ao longo da narrativa, quando
chegar-se à discussão músicos que serviram de inspiração ao fenômeno do rock local. 206MATSENOV, Dimitry. Moscow – 1980´s: A self-interview on russian new wave culture and related
phenomena. Unearthing the Music: Sound and Creative Experimentation in Non-Democratic Europe, 2017.
Disponível em: https://unearthingthemusic.eu/posts/moscow-1980s-a-self-interview-on- russian-new-wave-
culture-and-related-phenomena/. Acesso em: 26/06/2020. 207O músico é aqui identificado cruzando-se informações de biografia do músico, disponíveis no relato oferecido
à Cushman (1995) e confirmadas em fontes recolhidas do ficheiro da banda DDT no site russo RussMuss e na
entrada Personalidade: Yuri Chevchuk, no site russo Gorod Tomsk. Fonte: Gorod.Tomsk.Ru: городскфя
социалная серт (13 de fevereiro de 2008) [Em russo] [Trad. Livre: Cidade. Tomsk. Ru: Certificado Social da
Cidade]; Tomsk, 2008; Ficheiro: Шевчук [Personalidade: Yuri Chevchuk]; Disponível em:
http://gorod.tomsk.ru/index-1202839649.php; Acesso em: 26/06/2020
129
em geral, mais modesta que a de uma capital como Leningrado (desde os anos 1970, com mais
de três milhões de habitantes), somente o fator não explicaria o caso de Ufa, um pólo de
prospecção siderúrgica com cerca de um milhão de habitantes. Levando-se isso em conta, mais
do que apenas relevar-se a questão do tamanho da circunscrição urbana, há que se ponderar em
torno das condições que a tornariam, mais ou menos, restritiva à possibilidade cultural do rock
em terras soviéticas. Nesse sentido, após o comentário de Yuri, emenda-se o depoimento de
outro músico (não identificado no trecho citado), o qual comentaria de sua proveniência à
cidade Magadan (pequeno distrito da região da Sibéria), e de como haveria, em relação aos
centros culturais/administrativos urbanos, uma sensação marcante de um horror vivido na
periferia, territorial e culturalmente. Em sequência o autor observa que:
A pequenez das cidades e vilas da periferia, especialmente essas às quais faltaria uma
elite cultural à qual se pudesse opor um movimento de contracultura local, foram
verdadeiramente cruciais à vigilância e repressão cultural. Como resultado, músicos
muitas vezes migraram para Petersburgo (Leningrado) onde puderam encontrar, não
apenas melhores condições estruturais para possibilitar sua expressão cultural, mas
também, uma cidade que lhes proveria de uma fonte de profunda inspiração criativa.
Incidentalmente, enquanto São Petersburgo [Leningrado] tivesse a reputação de ser
uma cidade conservadora, devido ao seu tamanho e população (mais de cinco milhões
de habitantes), serviu em certo ponto a impedir os esforços dos dirigentes da cultura
estatal para barrar a musicalidade independente do rock. Mais do que isso, sua
proximidade à Europa, tanto cultural quanto geograficamente, a fez tornar-se uma valiosa fonte de informação cultural Ocidental, a qual seria o componente vital à
cultura russa do rock. [Traduzido do inglês]208
Em referência ao trecho mencionado, se percebe mais nitidamente os outros caracteres
aludidos junto à questão da localidade favorável, para possibilidade do rock na URSS. Como
mencionado, não bastaria apenas haver uma cidade grande, mas se ter nela a possibilidade de
capital cultural significativo, com fluxo de diferentes personagens, provenientes de diferentes
localidades (cosmopolitaneidade), também um local favorecido pelo fluxo de
mercadoria/produto cultural estrangeiro e capaz de prover aos músicos, uma rede de
correspondência de sua atividade. Conforme mencionado no subcapítulo anterior, numa cidade
tal qual Leningrado, seria possível a atividade, ainda que clandestina, de confecção
(reprodução) e disseminação dos magnitzdat e roentgenitzdat (pela rede de distribuição entre
aficionados, das fitas e discos produzidos de maneira ilegal), bem como sua produção, mais
adiante (por regravação de originais ocidentais ou pela gravação de performances locais em
estúdio [magnitofonnaia albomy]).
208CUSHMAN, 1995. Op. Cit p. 76
130
Outro fator que cabe ser considerado é que, por se tratar de uma cidade robusta em
tamanho e diversidade de produções culturais, embora deva-se considerar a presença mais
evidente do aparato (escritórios, burocracia e oficialidade), por um lado, sua ampla magnitude
e população colaborariam, por outro, a diluir tal ação clandestina em meio a um elenco maior
de atividades culturais e artísticas variadas, facilitando sua escamoteação. E nesse sentido,
também seria a cidade um polo de produção fonográfica de cultura estatal, possuindo-se, farto
material descartado ou possível de utilização paralela (proveniente do estúdio oficial
Melodiya), para poder ser empregado nessa produção/ circulação clandestina. Ou seja, a própria
presença da cultura estatal, constituiria não apenas a presença ostensiva do aparato
(fiscalização, gerenciamento e censura), mas também a oportunidade de tê-lo a proporcionar
um meio a ser utilizado como ferramenta e canal à essa atividade cultural clandestina (como
visto, pelo uso alternativo, o desvio de seus recursos).
E dentro dessa realidade, outro caractere teria de ser enfrentado: para além da cultura
‘ideologicamente direcionada’, presente por conta da ubiquidade do aparelho estatal socialista,
haveria a presença de uma cultura tradicional muito manifesta, a qual, arraigada ao cerne da
personalidade local (russa e soviética), traria à sedimentação do rock também um motivo de
conflito.
Para se citar acerca disso, a russificação (russificatsia; conforme CUSHMAN, 1995 e
MAROCHKIN, 2011a) do rock não aconteceria apenas da tentativa de encaixar palavras locais
na sonoridade do ritmo, também o seria, para melhor adequar-se à permissividade pendular da
fiscalização local, cujas apresentações eram disponibilizadas pelos gerenciadores e fiscalizadas
pelo Komsomol. O evitamento, já observado, do uso do termo rock, substituído por big-
beat/bigbit, seria complementado com o cuidado prévio relativo ao roteiro das performances a
serem reproduzidas nas apresentações, incluindo-se nisso, submeter-se à exibição prévia de
cada canção e indumentária de palco, acompanhada de um selecionar do conteúdo das canções
e a tradução de seus títulos ao idioma russo – tudo para que melhor se pudesse garantir a
aceitação dos conteúdos a uma apreciação oficial. Algo que, se inicialmente de aparência
ingênua, revelaria, de fato, uma disputa implícita nesse cenário cultural: a da identidade
soviética, cujos músicos deveriam cuidar em preservar durante as apresentações, e ainda a
questão da reputação, em nome da qual os funcionários designados para gerenciar tais
apresentações, deveriam tomar cuidado ao lidar com um elemento potencialmente subversivo
– conforme observa-se no relato de Yuri Valov, da banda Scythians:
131
E lá estávamos nós tocando: (Rolling) "Stones and The Beatles, Animals e The Kinks,
e os nomes de suas músicas estavam todos escritos em russo:" Balada de um herói ","
Memórias dos marinheiros mortos. [...]´´ Era tudo regado209 [disso], e de fato
anestesiava210 esses chefes da organização [Komsomol; autoridades], mas eles não
percebiam. [Traduzido do inglês]211
Mais adiante, retornar-se-á a esse meandro de construção e destituição de
identidades/reputações dentro do processo de russificação – revelado aí, no exemplo das
traduções. De momento, há que se focar no elemento amplo de disputa que nela contido, em
que tal russificação, não seria uma demanda direcionada exclusivamente à observância das
regras em relação ao aparato, uma vez que socialmente, o julgamento popular das figuras
realizadoras do rock, seria mais frequentemente agressivo que o efetuado nesses canais oficiais.
Nesse sentido, o relato de outro músico, Yuri Morozov, ajuda a compor a fisionomia do fazer
rock quanto à aceitação local no contexto da URSS:
Eu devo mencionar que eu vivia primeiramente, não em Leningrado, mas no Cáucaso
[região situada entre a Europa Oriental e Ásia Ocidental, entre o Mar Negro e Mar
Cáspio], na cidade de Ordzhinokidze a qual agora é chamada de Vladikavkaz. Ela
tornou ao seu nome anterior. No Cáucaso as relações são nacionalistas. Se você sai
pela rua e topa com um bando de Georgianos ou Ossetianos [indivíduos provenientes, respectivamente, de duas outras regiões do Cáucaso, na Geórgia e na Ossétia do Sul],
eles lhe esmurram feio, por qualquer razão. E é bem assim. Em qualquer situação.
Mesmo se você só estiver por aí com seu violão, eles pulam em cima de você e partem
ele aos pedaços. Isso é algo meio sombrio. [...] Pra encurtar a história, tudo aconteceu
porque eu desisti desse joguinho e comecei a me sentar calmamente pra tocar meu
violão, enquanto que esses caras da cidade, ali de Vladikavkaz, não tocavam nada e
nem compunham, então eu comecei a tocar num grupo amador [o autor refere-se ao
seu primeiro grupo, Bozyiaki], ali no instituto (superior), no qual eu trabalhava como
pedreiro. E bem, nós iríamos para o palco, tocaríamos Beatles, os Rolling Stones, e
tudo estaria bem. E aí nós anunciaríamos orgulhosamente: - Agora, um pouco de
nossas próprias composições!! E de repente, isso não funcionaria. Primeiro, porque
nossas composições eram em Russo – e canções em russo não se conectam com a plateia que só quer vê-las, ali, em inglês. E mesmo se em russo, teríamos de cantar,
então, algo do tipo do Singing Guitars (Poyuschichyie Guitary) [grupo de VIA,
vocalnyie instrumentalnyie amsambly; modalidade de conjuntos vocais instrumentais
conformistas, de que se falará mais adiante]. Então, nós tínhamos de escolher desse
209O termo empregado no registro original de Marochkin (2011) é zalitovano; onde zalit em russo significa regar;
inundar, portanto, consiste numa forma coloquial de dizer que o relatório das músicas entregues aos oficiais seria
zalitovano – inundado – regado, permeado de expressões que soassem politicamente adequadas (traduções conformistas de canções estrangeiras, como estratégia de fazer passar os materiais submetidos). 210A terminologia original no trecho citado é duril´: do russo, entorpecer; narcotizar; anestesiar. É empregada no
sentido de dizer que as traduções utilizadas pelos rockeiros, escamoteavam o conteúdo original com uso de termos
adequados, tornando-as em conteúdo adequado ao preceito requerido pelo Komsomol, pois assim refreariam a
possibilidade intransigente de censura (embevecendo os oficiais, que apaziguados com as letras conformadas pró-
estabelecimento, deixariam os músicos tocarem o material submetido). O desconhecimento da língua inglesa por
(boa) parte dos oficiais colaboraria com o processo, pois embora o conteúdo dos títulos fosse transcrito, as canções
ainda soavam no idioma ‘estrangeiro e desconhecido’ com sua integridade de composição anglófona – que em
muito inofensiva, considerando, como já observado, que boa parte do público também não partilhasse desse
conhecimento linguístico. 211MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.
132
repertório dos Singing Guitars. Se nós tocássemos algo diferente, ninguém daria
ouvidos. Minhas mágoas são disso daí – eu ficava lutando um, dois, três anos,
compondo, cantando – e isso não interessava a ninguém. Em geral. Eles não
precisavam das nossas composições. [Traduzido do inglês]212
A primeira parte do relato do músico evidencia um elemento muito agreste nas tensões
da União Soviética: a pluralidade de nações e etnias, as quais, muito previamente existentes à
circunstância do rock, o tornavam ainda mais alvejado por seus anfitriões locais. A abrupta
aglutinação de nações sob o regime comunista soviético, não faria impacto apenas às tensões
decorrentes da luta de classes, ela também se mostraria tenaz contra o cultivo do conceito de
outra possibilidade diferencial, a nacionalidade, vista como elemento sectarizador social e um
impeditivo à pretensão de unidade socialista e soviética. Na Constituição Soviética,
inicialmente, mesmo sob Stálin, figuraria o crime de nacionalismo, como cometimento grave e
apenado com detenção. Tudo porque, reunindo-se múltiplas nações, de diferentes línguas,
diferentes etnias e povos, sob um mesmo Estado e uma mesma ideologia, naturalmente que
indisposições internas teriam de ser controladas – ainda que de maneira institucional e, portanto,
artificialmente. Entretanto, isso mudaria com o advento da Grande Guerra Patriótica, onde em
nome do esforço de guerra, a exaltação nacionalista, principalmente russa, emergiria forte,
como forma de motivar os soldados no combate nas frentes de batalha contra os nazistas
(HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 77).
Este revés nos princípios unificadores do Socialismo, aparentemente, necessário ao
momento em questão, deixaria espaço irreversível para o reavivamento das tensões locais,
sobretudo nos núcleos urbanos pequenos. Assim, as já presentes rixas entre indivíduos, as
afirmações linguísticas locais – e também seu oposto, o desdém por esse elemento linguístico
(russo) quando associado ao elemento cultural estrangeiro (rock) – se intensificavam e
ganhavam pretexto com o advento do ritmo exterior, que adentrava como um visitante estranho
e estereotipicamente Ocidental (portanto, visto por uns como inimigo, alvo da apreciação
combativa em defesa do tradicional e simultaneamente, por outros, em geral os jovens, tido
como instigante, por seu senso de inédito e ligeiramente proibido), no cenário das pequenas
cidades locais. Por evidente considerar que também nas grandes cidades muitas destas tensões
sucedessem, entretanto, a pulverização entre o número de indivíduos, diversamente
constituídos, colaborava a diminuí-la – havendo, mesmo aí, como mais adiante observado,
episódios de rechaço característicos ao rock.
212CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 21
133
Em sequência, o músico Yuri Morozov evidencia, a partir de uma experiência particular,
outro choque vivenciado pela sociedade soviética, onde mesmo no cenário urbano, por conta
da majoritária conjuntura habitacional agregada (apartamentos comunais), haveria dificuldades
de assimilação dos costumes desse estilo de vida exótico do rock, pelos residentes (famílias)
habituais:
E então aconteceu – o meu pai era de um escritório. Ele era nascido na Criméia, então
havia tido toda sua carreira no Cáucaso, e daí se mudou para Leningrado. Em
Leningrado, os dois primeiros anos meus foram totalmente no underground. E então
eu fui num desses espetáculos da Academia de Artes onde os Myths (Mify) e os
Russians (Rossiiane), estavam tocando. O que me chocou foi ver que eles tocavam
mais de metade do repertório de material próprio e as pessoas ouviam e aplaudiam.
Tudo certo. Bem, eu pensei, é isso. Muito rapidamente, eu juntei um pequeno grupo,
era apenas provisório. Eu tinha dois ou três companheiros, com os quais eu iria gravar, em casa, é claro. Em casa – bem, os vizinhos ficavam com dor-de-cabeça o dia todo
por conta do trepidar da bateria!! Bem, então, nós adaptamos o horário para tocarmos
quando as pessoas saíssem para trabalhar. Aliás, muitos grupos começaram assim –
por exemplo, a Kino [famoso grupo local, surgido no início da década de 1980]. As
pessoas saíam para trabalhar e nós arrebentávamos, gritando e tocando. Ao anoitecer,
é que o humor criativo aparecia. À tarde, não era muito produtivo ... e daí as pessoas
começavam a gritar e ameaçar – Já chega!! Ou nós vamos chamar a polícia! – [e
dizíamos] Só mais um minuto ... – Não, vamos chamar a polícia agora!! [Tradução
do inglês e grifos nossos]213
O relato de Yuri Morozov é didático para vislumbrar o impacto social causado pelo
fenômeno de recepção do rock no seu princípio na URSS. A citação às bandas Myths e
Rossiiane (Russians), empresta sincronia com os primórdios do rock da URSS, à década de
1960 (segundo a crônica de MAROCHKIN, 2011a). Nesse relato, se evidencia o rechaço ao
ritmo também por conta de situações materiais, de espaço físico, muito presentes durante o
adensamento demográfico das cidades soviéticas e que se tornavam alvos de anedotas e críticas
populares (que serão mencionadas em capítulo específico à frente). Também a questão das
primeiras impressões do músico sobre o rechaço cultural implícito com a questão linguística
local em arranjos exóticos, demonstrariam que o limite para a tradução das letras ou a
composição em vozes locais, para além do encaixe do cirílico ao rock, ficava também por conta
da receptividade do público, afeito a esperar que o ritmo estrangeiro, viesse num formato
(linguístico) estrangeiro – algo que ligeiramente relativizado, por um público mais sofisticado
à experimentação de propostas culturais, como no espaço receptivo da Academia de Artes
leningradense.
Não obstante, o rechaço, já na cidade de Leningrado, dos vizinhos reclamando do
barulho, leva a pensar num conflito de trajetórias. Num comparado com seus vizinhos de prática
213CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 22
134
musical, provenientes da camada privilegiada da sociedade soviética (os filhos de diplomatas e
oficiais), os quais, mais facilmente, conseguiam onde ensaiar sem grandes preocupações (em
salas designadas, e alojamentos nas universidades) e executavam suas performances em
espaços gerenciados através de sua rede de influências (inclusive tocando para oficiais e atletas,
em apresentações bem-reputadas), músicos como Yuri Morozov, filhos de funcionários mais
modestos nos quadros da administração, teriam de encontrar nos apartamentos coletivos dos
subúrbios, seu local de ensaio. Quanto aos seus incomodados vizinhos de moradia, em geral,
haveria uma discrepância tanto de ocupação, quanto de geração. Os jovens integrantes das
bandas, músicos não profissionais, não dispunham, por vezes, de local adequado para ensaiar,
tendo de recorrer ao espaço domiciliar para isso. Essa situação decorria do fato de não estarem
vinculados a uma instituição, como músicos de carreira, fazendo com que sua veiculação
musical, embora lícita, fosse irregular no quadro social soviético, onde nos apartamentos
comunais, moravam trabalhadores, os quais os utilizavam para sua prevista finalidade:
domicílio, convívio e descanso.
Também se situa aí, o fator do choque geracional onde tais jovens, desocupados de
outras atribuições (exceto às atividades estudantis), vinham a fazer estardalhaço, num espaço
onde o objetivo seria residencial. O conflito com o estabelecimento, não se deveria, conforme
uma análise maldosa ou superficial poderia resumir, a uma mera adequação ao exigente aparato
estatal socialista: a grande questão é que o rock (bem como seus intérpretes e protagonistas)
por sua natureza, constituía a figura de um inconveniente para múltiplos setores daquela
estrutura social planificada.
Não obstante, o rock em sua prática, para além do contemplativo (apreciação), seria um
modo alternativo de vida, numa sociedade que, institucionalmente, via de regra, não estaria
acostumada às exceções. Basicamente, segundo o pensamento local, se a pretensão de alguém
fosse da música, pois que transformasse isso numa carreira e dela fizesse seu ofício – e fosse
ensaiar no local designado para isso. Hobbies como se concebe usualmente, provém de um
estabelecimento ligado a um mundo de trabalho que preconiza no lazer uma prática de
desdobramento da consideração individual da vida, a ser exercida, inclusive no âmbito do lar.
Isso porque, num caso como esse, na tradição Ocidental, pressupõe-se o lar (e o hobby), como
uma potestade advinda da consagração estatal da propriedade individual, privada e, inclusive,
um exercício do direito consagrado da privacidade. Portanto, tais valores e atitudes similares,
numa estrutura de preconização coletiva, podiam causar certo descompasso com a observância
dos conceitos de fruição e função pessoal ou de locais designados a cada prática. Em resumo:
135
se alguém desejasse utilizar seu espaço de moradia para uma finalidade diversa do pretendido,
as autoridades locais prontamente poderiam ser acionadas, pois o limite do interesse individual
seria, justamente, o respaldo prevalecente desta coletividade.
Logicamente, que mesmo na tradição Ocidental, ambientes de condomínio,
estabeleçam regras a serem observadas, decorrentes da multiplicidade de interesses em jogo e
de integrantes de uma mesma porção residencial, entretanto, isso fica sublinhado em uma
sociedade coletiva, onde os conceitos de função e direcionamento têm de atentar a uma
pluralidade implícita de interesses – em lugar de uma consagração implícita de liberdade
individual. O rock, por sua concepção, em uma sociedade capitalista e de tradição liberal, prevê
nos seus caracteres mais diminutos, a perpetuação de práticas que requerem liberalidade –
evidenciando o conflito indivíduo x sociedade214.
Mais ainda, como Yuri Morozov perceberia além no seu relato (CUSHMAN, 1995; p.
26), o grande percalço de uma prática como o rock na União Soviética seria a carga de
individualidade necessária para a realização de sua filosofia de vida. Não apenas na prática ou
nas experiências de produção e disseminação, embora se contasse com o amparo de uma rede
de personagens (sem os quais, esse manifesto de atitude, não se oportunizaria), a noção geral
do âmago rockeiro é a de uma contestação, um rebelar-se, e isso não prevê (propriamente
falando) engajamento, nem à instituição consensual de coletividade usual (koletivinazthyi;
coletividade), nem à identidade regulamentar soviética (sovietsky lichnasty; identidade
soviética) ou a acolhida do ingresso na carreira (zhisnennyi put ́; carreira; caminho de vida) –
distinção importante entre a identidade do rock e o estabelecimento, que o perfaz em sua
trajetória de rebelde no Ocidente e que também presente na URSS, em relação ao preconizado
partidário. O manifesto do rock gravita em torno de um auto manifesto, com uma carga
implícita de introspecção, para apartar-se do establishment, e a transformação do fermentado
nesse apartar-se, em produto de devolução em forma de manifestação provocante e estrondosa,
algo que, numa sociedade coletiva, constitui de uma possibilidade muito restrita e
demasiadamente desafiadora aos preceitos locais.
214Algo que seria, precisamente na gestão de Kruschev, uma temática a ser explorada com seu alinhamento
segundo o Código de Conduta Moral do Construtor do Comunismo, que mais adiante se investigará, evidenciando
uma campanha política de supressão do individualismo.
136
Retomando a observação acerca dessa relutância em integração, há que se considerar,
como aludido anteriormente, manifestações ainda mais diretas e agressivas de
rechaço/hostilidade à assimilação do fenômeno. Nesse sentido:
Em alguns casos, certos grupos da sociedade russa se organizavam em torno de manter
as formas tradicionais de comportamento, corporal e ideologicamente aceitáveis como
estilo, em expressão a um comprometimento com a normalidade (entenda-se, soviética) dos modos de vida locais. Um desses grupos de jovens atenderia pelo nome de liubery
(baseado em suas origens, no subúrbio de Moscou, um distrito de nome Lyubertsy). Os
liubery eram caracterizados por sua defesa dos valores das tradições soviéticas e
expressavam disso, através do conjunto de códigos culturais os quais refletissem temas
da cultura dominante: fisionomia atlética de força e saúde, cabelos curtos, estilo
convencional de vestimenta, uso de simbologia oficial soviética (pingentes, medalhas,
placas), e por aí vai. Esses códigos eram, simbolicamente, opostos a estes utilizados
pelos músicos de Petersburgo como um todo. O método usual dos liubery consistia em
visitar os bairros boêmios, parques e locais de apresentação de concertos da cidade,
procurando por qualquer um que pudesse ser considerado diferente. Uma vez
encontrando tais pessoas, criavam uma perturbação e batiam nesses indivíduos, muitas vezes, gravemente. Os liubery estavam convencidos de sua superioridade moral e se
viam como vigilantes cuja tarefa era restaurar a ordem cultural e a normalidade em suas
cidades. Eles defendiam valores tradicionais soviéticos e russos e as políticas oficiais e
viam os músicos de rock como metáforas da decadência Ocidental e a erosão do status
russo/ soviético e do respeito nesse sistema-mundo. De acordo com um proeminente
jornalista, os liubery eram particularmente hostis contra hippies e
apreciadores/integrantes de bandas de heavy metal (TROITSKY, 1990 a; p. 244).
Enquanto os liubery em sua forma original existiam somente em Moscou, grupos de
jovens que possuíam configuração análoga existiriam em outras cidades soviéticas e
praticariam de forma similar a defesa da cultura soviética, por meio do confronto direto
contra sua contra face dessa modernidade (ibid.) [Traduzido do inglês]215
A descrição do grupo extremista cultural de Moscou – liubery – remete, principalmente,
aos eventos desdobrados ao longo das décadas seguintes do rock na URSS (compreendidos do
final dos anos 1960 até o princípio dos anos 1980). No entanto, desde a década de ingresso do
ritmo na sociedade soviética, tais grupos e manifestações, podiam ser encontrados e vivenciados
pela juventude musical afeita ao estilo Ocidental. Embora tais manifestações diretamente
agressivas, não fossem uma constante, as afiliações com pessoas poderosas do cenário
administrativo, tornariam tais indivíduos hostis, muitas vezes, resguardados de menção oficial
de envolvimento e blindados de qualquer investigação. Nesse aspecto, conforme Marochkin
(2011a):
[...] segundo os próprios músicos, nenhum rockeiro era, de fato, perseguido. Se
ocorreu algum "ataque", então, como regra geral, foi uma iniciativa ideológica
privada, de cidadãos individuais. Por exemplo, um fato triste memorável desse tempo,
foi a descoberta de um esquadrão "Birch, que se dirigia até a porção hippanov
metropolitana (hippies na cidade de Moscou), na chamada " Broadway " moscovita,
ou seja – vindo pelo lado esquerdo da rua, da Gorky's Pushkin Square até o Hotel Moskva – mas ao que tudo indica, no último minuto, o grupo principal desse manifesto
não se organizou. Criar um esquadrão antihippovogo [anti-hippies] de impacto foi
uma iniciativa pessoal de vários jovens comunistas. Curiosamente, nos anos de
215CUSHMAN, 1995. Op. Cit. pp. 182-183
137
estagnação216, muitos participantes “Birches” ocuparam cargos importantes e
responsáveis nos escalões superiores do Partido Comunista, tornando-se secretários
de vários comitês da cidade e do partido regional. [Tradução do inglês e grifos
nossos]217
Esse trecho, fundamental de ser explorado em minúcias, será retomado adiante no
subcapítulo Experiências de Retiro, mas já aqui deixa espaço a uma reflexão. Um parêntese,
delicado e importante, deve ser realizado em torno da forma de orientação (centralizada e
irredutível em torno de uma figura, tendência ou comportamento tidos como adequados) e de
operação (tocaias grupais contra indivíduos solo de grupos considerados inferiores, de forma
hostil e sistematizada) no produto de ação dessas descritas brigadas de jovens pró aparato
soviético. Conquanto haja diferenças gritantes, em orientação ideológica e circunstância
geográfica, a abordagem dos Liubery e dos Birchs218, se assemelha muito a de outros grupos de
atitude e ideologia extremistas encontrados na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, após os
anos 1970. Tais grupos apresentariam modus operandi muito similar em suas iniciativas,
envolvendo discursos de ódio e o uso de confronto direto com agressões e emboscadas a
indivíduos isolados e grupos minoritários. Também apresentariam discursos em favor do
estabelecimento (pró status quo), de caráter intolerante à divergência e à diferença, e com a
afirmação de existência de uma cultura dominante e valores tradicionais da sociedade
estabelecida. Sublinhando: embora por instituições ideológicas completamente discrepantes
entre Oriente e Ocidente, as atitudes tomadas por esses grupos de jovens indivíduos hostis,
contribuem apenas a fortalecer uma imagem de que cada movimento de contracultura por essas
ações combatido, na verdade é legitimamente um holofote instalado dentro de cada respectiva
sociedade, onde do combate hostil apenas se revela que, não apenas deva essa contracultura
216O termo ‘Estagnação’ por vezes é utilizado para referir-se ao período econômico e social situado entre a
deposição de Nikita Kruschev (1964) até a inauguração das linhas políticas da Glasnost (transparência) e
Perestroika (reconstrução) em 1985 – sob a gestão Gorbachev. O período seria vivido na URSS sob os sucessivos
comandos de Leonid Brejnev, secretário-geral entre 1964 e 1982, sucedido pelos governos de Yuri Andropov
(1982-84) e Konstantin Chernenko (1984-85) e levaria em consideração o grave cenário de recessão econômica
vivido pela superpotência soviética, com vulto, o situado entre a primeira metade da década de 1970 até o final da
administração Brejnev. No entanto, cabe ponderar que alguns autores aqui utilizados (como Medvedev, Medvedev,
2006), referem-se à época como ‘estabilidade’, recobrando o sentido de que a situação econômica fosse
‘confortável’, enquanto a social estivesse mais estagnada em relação ao período anterior (Degelo), devido a uma guinada de setores sociais da União Soviética para uma retomada do conservadorismo. A terminologia no léxico
político internacional, como Era da Estagnação (Period Zastoya), seria atribuída em invenção ao secretário-geral
Mikhail Gorbachev – utilizador do termo, de maneira crítica aos governantes antecessores – empregada em análise
negativa do período, durante o relatório do XXVII Congresso do PCUS: ‘Na sociedade, emergiu-se uma
estagnação nas esferas econômica e social’. Fonte: MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; GORBACHEV, 1987 217MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 218Mais a frente, se discutirá em torno do significado dessa designação (diferente terminologia birch, para um
possível mesmo grupo, liubery). Por enquanto, há que se evidenciar uma questão de pronùncia, o bairro moscovita
Lyubertsy, que seria o da proveniência dos Liubery, na pronúncia sincopada do cirílico de torna liubirchy, de onde
birch, pudesse vir a figurar como uma variação do termo original, liubertsy – por meio de corruptela de sua
metonímia (de tomar-se o pessoal pelo local, acrescida da forma no diminutivo – birch).
138
existir, mas tenha a função primordial de denúncia dos excessos cometidos pela cultura
estabelecida. Num paradoxo, onde as ações de hostilidade cometidas pelos pró-
estabelecimento, mais legitimariam a existência do contracultural.
Acima de tudo, o que fica mais evidente, novamente, é o fisiologismo com o aparato
estatal, envolvido no acobertamento das atitudes de hostilidade. Como aludido na fala de
Vladimir Marochkin, muitos integrantes dessa atitude de defesa da estrutura convencional,
seriam importantes cooptados e artífices do sistema local partidário no governo seguinte – sob
a tutela de comandados diretos de Leonid Brejnev. Outro detalhe que fica ressaltado na fala do
jornalista seria esse de um caráter episódico dessas manifestações de hostilidade, mais evidente
em um contraste de postura do aparato em relação ao rock, como salientado no relato seguinte:
E afinal, quem sairia "atropelado" num concerto do grupo de "Falcon", se o pai do
guitarrista do grupo, Yuri Ermakov, integrava a chefia da principal defesa do país?
Em certa ocasião, o grupo "Falcon" iria a uma festa acompanhado pela KGB, mas sua
tarefa não seria a de "perseguir" os músicos, mas, de fato, protegê-los de contatos
indesejados. Muitos dos shows de nossos grupos aqui discutidos, foram realizados em
embaixadas estrangeiras, e a KGB manteve uma vigia atenta para garantir a segurança,
evitando que não se chegasse (atingisse), através de seu filho, a um pai poderoso em
segredo. [Traduzido do inglês]219
Tal atitude, como mencionado anteriormente, não seria incomum. Recordando ao
grande guitarrista do grupo Scythians, Sergei Dyuzhikov, seu pai era integrante do alto-
comando dos oficiais da Força Aérea Soviética (MAROCHKIN, 2011a), e assim como valeria
para Yuri Ermakov, personagem do relato supracitado, nenhum ‘pai da administração da
URSS’, deixaria passar uma questão delicada como a exposição de um filho junto a um
conteúdo tão polêmico, de maneira relapsa. Esse cuidado, não fosse apenas pela questão da
própria segurança filial, também seria, fundamentalmente, para evitar exposições e
constrangimentos possíveis do envolvimento com o ritmo Ocidental. Para melhor entender-se
tal afirmação, importante observar que figurar em uma posição de comando na URSS
(especialmente na conturbada década de 1960), era estar o tempo todo sob forte pressão oriunda
de instabilidades ligadas à política e reputação, e com um tema complicado como gerenciar o
rock, para uma posição privilegiada, esse terreno seria ainda mais inóspito:
Sim, era um negócio ingrato – pois muitos deles ocupavam posições importantes. Por
exemplo, o pai de Valentine Nekrassov, guitarrista da banda Balm, e Krasnaya Dimons nos anos 1960, era reitor do Instituto Bauman. Um dos colegas de Valentine,
começou a escrever uma série de denúncias, talvez por razões ideológicas. Mas uma
219MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit.
139
vez que essas denúncias chegaram à sua mesa, o reitor em desgraça, foi expulso do
instituto em questão. [Traduzido do inglês]220
Se aos ‘mais velhos’ (pais) o caminho da reputação seria tortuoso, aos filhos, jovens,
isso também deveria ser considerado quando da tomada de rumo pelo caminho do rock: a
questão da carreira (zhisnennyi put ́). Numa sociedade de economia planificada como a
socialista, as regras de status, não se regulam pelos mesmos caracteres dos da sociedade
capitalista. Como consequência, o dinheiro não seria a principal moeda de troca nesse processo
de afirmação social, permitindo que outra coisa figurasse como elemento de distinção
(BOURDIEU, 1982), quer no teor de identidade (pessoal), quer de reputação (coletiva). No
caso da URSS, seria a formação e essa estaria ligada à carreira. Ter uma boa formação, num
instituto superior, universidade ou instituição diplomática, levava a que o indivíduo alcançasse
uma reputação: kulturnyi (possuidor de cultura; ser culto)221, e por conseguinte, tivesse as
credenciais para figurar em postos de trabalho mais especializados, em posições de diretoria e
comando – tanto políticas, quanto institucionais. A formação, por esse mote, seria o bilhete de
ingresso à carreira oficial ou política e, portanto, algo muito sério segundo a consideração local.
No sentido da universalização do acesso, a diferenciação de oportunidade para poder se
obter a formação, seria mínima. Entretanto, a carreira escolhida – ou abandonada – determinava
a demarcação de uma postura de vida também, convencional ou inconvencional. Isso
determinaria, por exemplo, que um músico, com formação acadêmica, mesmo com as
credenciais necessárias à uma vida confortável e uma posição interessante no cenário social
soviético, pudesse ser encontrado exercendo um emprego modesto, como resultado de uma
destituição de reputação ou mesmo, como consequência de escolha por opções que figurassem
contraventoras – como se observará logo adiante, mesmo num simples libelo de inconformidade
com a estrutura de adequação ao carreirismo institucionalmente alimentado nessa sociedade.
Outro aspecto, é o de que na URSS, não obstante, por seu diferente acesso a
oportunidade de formação em relação ao da sociedade Ocidental, não raro, indivíduos de
diversas ocupações/formações, podiam ter acesso à uma educação sofisticada e parte desse
repertório, contendo a prática da música e alguma afinidade com algum instrumento em
específico – tanto mais, é claro, se tal formação fosse voltada à carreira de músico.
220MAROCHKIN, 2011a. Op. Cit. 221CUSHMAN, 1995. Op. Cit p. 49
140
Nessa carreira em específico, haveria uma forma de aproveitamento ligada ao aparato,
que muito ofereceria benefícios: a carreira de músico do exército222, onde embora não se tivesse
a mesma periculosidade dos demais camaradas de caserna, desfrutava-se das patentes e
posições oficiais. Para se ter uma margem dessa opção, deve-se levar em consideração que o
serviço militar na União Soviética era obrigatório aos homens e uma carreira respeitável para
as mulheres. Ainda que a obrigação em se prestar o serviço militar constituísse uma tremenda
angústia a muitos jovens, a carreira militar tinha muitas vantagens ao seu redor. Primeiramente,
por sua diversidade de aproveitamento de formações, onde desde integrantes das áreas de
Engenharias, Diplomacia e Relações Internacionais, até a Música, podiam ter aproveitamento
nessa trajetória de escolha vocacional. Por conseguinte, a aquisição de uma reputação ligada à
instituição integrada, também seria um conveniente de conforto e distinção. E por derradeiro, a
facilidade de acesso a instrumentos e pessoas importantes para articular-se a aquisição de
recursos, gerenciamento e oportunidades de saída para apresentações. Com o preço, é claro, de
submeter-se a uma rigorosa agenda de observações de conduta e trabalho, designadas pelo
aparato militar.
No entanto, a despeito de todas essas possibilidades, como o inusitado, que tão bem
representa a verve rockeira numa sociedade planejada e coletiva, sempre haveria daqueles que
tomariam decisões divergentes e optariam pela renúncia ao estilo de vida confortável junto ao
estabelecimento, em nome de um posicionamento enviesado em relação a este. E nesses
detalhes, também aí, se evidenciariam das contradições de uma sociedade que embora
controlada, acabaria por dar as ferramentas à promoção de práticas heterodoxas a sua ideologia:
Eu tive um desses amigos que possuiu um dos primeiros álbuns gravados em fita,
jamais feitos. E desde que eu já podia tocar o piano – eu podia tocar de ouvido
qualquer música que eu escutasse – de repente, na mesma época, essas gravações começaram a aparecer. Beatles, Pink Floyd – todo o circuito – Beatles, Rolling Stones,
Led Zeppelin. Para nós isso era tudo – eles (o governo) nunca nos deram nada, e não
havia para onde ir – na rádio não havia o que escutar. Para nós isso era completamente
novo, e nos atraiu com sua sinceridade, com sua crueza. [...] Durante meu quarto ano
na universidade, ficou claro pra mim que não queria ser tradutor de Inglês ou um
professor de Inglês em uma escola [o entrevistado estudava faculdade de filologia em
língua inglesa, na universidade]. E em geral, eu não me sentia ‘fervendo daquele
mingau’ (ne khochet´sai varit´siav etoi kashe) [expressão popular russa referente ao
fato de não se identificar com alguma coisa], porque na universidade eles não
passavam de um bando de carreiristas. Pessoas que estavam continuamente tentando
222Em CUSHMAN (1995; p. 170-72), há um excerto falando da vida de um jovem guitarrista, entrevistado pelo
autor, de nome Zhenya. Zhenya possuía formação em música clássica (tocava trompa no instituto superior onde
se formara), e foi recrutado pelo líder do Exército Vermelho a integrar a carreira de musicista marcial. Conforme
descreve ao longo do seu relato, essa era uma forma de cumprir a obrigatoriedade do engajamento temporário,
escapando às agruras e riscos de ocupação de outros postos militares.
141
subir mais alto que os outros.[...] E então eu comecei a trabalhar de caldeirista223.
Técnico de uma caldeira de calefação. Nós tínhamos bons caldeiristas por lá. Os
caldeiristas do rock. [...] [Tradução do inglês e grifos nossos]
O excerto sublinha, novamente, o conhecimento acerca de grupos ocidentais em terras
soviéticas (Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin, etc.), e o músico que descreve
essa narrativa, colhida por Cushman (1995; pp. 59-60), é identificado como Misha e nascido
durante a década de 1960. Por tratar-se de um relato em algo posterior ao período observado,
vale ressaltar que sua afirmação, embora retrate uma realidade posterior ao período
(evidenciada pela menção das bandas, cujos nomes de algumas, se consagrariam somente na
década seguinte), corrobora os pontos levantados pelo músico russo Yuri Morozov
(CUSHMAN, 1995), de como haveriam alternativas, tanto à existência de figuras rockeiras
pertencentes à elite acadêmica ou filhos de oficiais, bem como uma alternativa de ocupação
para ingressantes, pode-se dizer, mais ‘populares’ ao estilo.
Ainda referente ao depoimento, evidencia-se sua prática de abandono da carreira
acadêmica/profissional regular e deslumbramento com o rock, não é uma história isolada na
trajetória da URSS. O exercício de uma profissão mais modesta (kochegary roker; rockeiros da
caldeira), aponta algumas das estratégias encontradas pelos músicos locais para evadir-se das
ocupações da carreira convencional. Em empregos modestos, ficava-se, praticamente, invisível
à observação do Estado, e ainda assim, conseguindo cumprir a lei – que pela Constituição
Soviética, previa o crime de vadiagem, levando a que cada cidadão sempre trouxesse consigo
sua carteira de trabalho (trudovaia khnidzhka224), para conferência – utilizando o salário com
suficiência para viver (cerca de três rublos por semana, pois os preços eram congelados,
transporte público muito barato e assistência de saúde gratuita; CUSHMAN, 1995) e o restante
do tempo de folga, dedicando-se à composição musical, produção de materiais fonográficos e
circulação, desses materiais e performances em locais designados. Tendo entendido o esquema
de funcionamento de sua sociedade, esses indivíduos saberiam como obter dela os recursos que,
tão desidiosamente, lhes eram sonegados.
223Na Rússia e em outros países da Europa (Oriental e mesmo em partes da Ocidental), o inverno rigoroso requer
o uso contínuo de calefação para as residências. Na URSS, esse serviço era de pouca complexidade e exercido por
indivíduos de funções subalternas, com pouca formação. Consistia, em manter regulada a seguinte logística: as
quantidades de carvão, a pressão do vapor e sua distribuição por serpentinas, comunicadas a um boiler central,
geralmente, localizado no porão dos prédios. 224A tradição dessas carteiras de trabalho (designando região, local de exercício da atividade, ofício e frequência
de cumprimento), a funcionarem como passaportes internos, obrigatórios de se portar na União Soviética,
remontaria a primeira fase da repressão (Expurgos) sob Stálin, em 1932 (HOOBLER, HOOBLER, 1987; p. 53).
Naquele momento, criava-se assim, um modo de evitar a evasão ao trabalho através da fiscalização burocrática.
Vigiam desde então, por toda existência do regime soviético.
142
Não obstante, conforme se pode concluir até esse momento da narrativa, diferente da
Era Stálin, o aparato estatal a partir de Kruschev seria bem menos severo (embora mais
conjunturalmente articulado, como se observará mais adiante) para reprimir a ação de
contravenção ou clandestinidade desses evadidos do coletivo convencional. Cônscios dessa
realidade, esses atores locais do rock, iriam desenvolvendo mais intrincadamente sua rede de
relações e metodologias de sobrevivência cultural, com uma crescente e marcante presença de
revanche à desídia do Estado: se o Estado os negaria de existir, então aí mesmo que eles
sobreviveriam. E se o Estado, mais preocupado estivesse em ignorá-los do que em aplicar-lhes
uma repressão específica, então, eles também passariam a ser desidiosos com esse Estado,
ignorando-o no conteúdo de suas práticas, atitudes, poesias e canções – até o limite do
razoavelmente exequível (com conteúdos de letras que evitariam a dimensão de conteúdos
políticos ou do embate político, conforme se observará oportunamente).
Considerando tudo de observado, contemplando fatores como indivíduos providos de
educação, por vezes repertório em música e um senso de apreciação em línguas e na vertente
da literatura, não tardaria que entre os cidadãos soviéticos logo se começasse – como se
pretende esmiuçar a seguir – a realização de experimentos ainda mais sofisticados/inusitados
com o final da década que chegava. As resistências não haviam se esgotado, mas o rock mais e
mais, se tornaria russo, soviético e, naturalmente, contraditório.
2.1.4 Experiências de Retiro: hippies e rock soviético experimentalista
‘Lai-ra-ra-rai-Solntse Nad Nami/
Lai-ra-ra-rai-Solntse Nad Nami’
[Lai-ra-ra-rai-O Sol Sobre Nós/
Lai-ra-ra-rai-O Sol Sobre Nós]
Trecho do refrão de Solntse Nad Nami (1968), do grupo moscovita Sokol,
Canção considerada o ‘hino hippie’ da juventude soviética
Antes de principiar-se essa etapa da narrativa, deve-se recordar que durante a década de
1960, o mundo como um todo passaria por um período de grande circulação de influências.
Precipitadas não apenas por tecnologias da informação, mas oriundas do resgate em cada
sociedade, de princípios em torno de uma vida mais essencial, menos beligerante e mais voltada
a proporcionar-se experiências de liberdade. Evidentemente, as características e o diapasão de
tais experiências variariam muito de local para local e, substantivamente, entre um Ocidente
capitalista e um Oriente socialista. Ainda assim, por uma convergência de fatores, algumas
143
pontes seriam estabelecidas, e algumas similitudes e trânsitos de ideias circulariam. Pudera,
recordando novamente à Raymond Williams, a estrutura de sentimento evocada pela Guerra
Fria se faria sentir com maior força por sobre os habitantes de suas nações mais protagonistas:
na URSS e nos EUA, a partir da Crise dos Mísseis, o clima de que em algum momento uma
hecatombe nuclear pudesse aniquilar o planeta e por tudo a perder para todos, se se tratava de
mero slogan ou artifício de controle dos governos ou não, acabaria por proporcionar uma
geração de jovens indivíduos que se encaminhariam, quase num ‘anti-civilizacionismo’, contra
os caminhos da guerra, resgatando para isso, o libelo da paz e a retomada de práticas mais
primitivas e despojadas de vida, Como se poderá observar nessa etapa, inclusive – e talvez
surpreendentemente – haveriam movimentos com características hippies entre a sociedade
soviética, já identificáveis no final dos anos 1960 (conforme VASILENKO, 2020;
VASYANIN, 2010; CUSHMAN, 1995; HARDING, 2019) e que durante essa panorâmica
sobre o assunto, segundo observa-se, teriam influências autóctones e por seus próprios
caminhos enveredariam num inusitado movimento – chegando mesmo a embaraçar as
autoridades locais.
Naquilo que tange ainda ao experimentalismo, mas evocando o sentido musical, requer
fazer menção a uma das principais características diferenciais entre a trajetória do rock soviético
em relação à do rock Ocidental: a formação de seus músicos. Conforme mencionado
anteriormente, por conta da acessível formação estudantil superior, muitos indivíduos que se
tornariam artífices do rock local, seriam egressos de faculdades, e não raro, como também
mencionado, com alguma experiência em artes e música. Para constar, o baixista e médico
Vitya, era filho de um pai maestro. Yuri Schevchuk, músico também citado anteriormente, era
artista plástico de formação. Mesmo o rockeiro das caldeiras, Misha, teria formação não
concluída em filologia da língua inglesa, tendo tido contato com poemas e textos nessa língua
de formação (CUSHMAN, 1995). Esse background complexo, um repertório de formação,
levava a que suas impressões populares entre jovens soviéticos em relação ao rock, fossem mais
sofisticadas, em geral, do que o costumeiramente vivenciado pelas camadas jovens apreciadoras
do ritmo na porção Ocidental. Como analisado nos capítulos iniciais da primeira parte do
trabalho, o rock surge em meio aos folhetos populares dos Estados Unidos, permeado de
protagonismo juvenil nas high schools (ensino regular), e com fortes raízes na trajetória de
ritmos realizados por músicos autodidatas e sem oportunidade de formação, provenientes das
camadas pobres da sociedade estadunidense, como músicos negros dos subúrbios e brancos
144
interioranos – os quais, não raro, construíam seus próprios instrumentos, ou ao adquiri-los, sem
formação musical, os aprenderiam a tocar por seus próprios meios.
Assim, conquanto arrisque-se uma hipótese, a visão inicial que o rock passava, quer por
suas origens, quer por seu público de afetação, seria a do ‘baixo’ nível cultural (aqui entendida,
não como um valorativo, mas teor num comparativo, como aquela de matriz popular, cultura
vulgar, extravagante e pouco complexificada, com baixo nível de sofisticação). Não obstante,
sua exploração como produto cultural de massa, em rádios e na televisão, transformaria sua
fisionomia em espécie de produto enlatado, comercializado em caracteres de fácil acesso e
baixo nível de exigência para apreciação.
Distintamente, na URSS, embora o rock viesse pelas camadas juvenis e fosse adquirido,
por vezes, no circuito underground, seu meio de afetação seria mais sofisticado, contemplando
indivíduos, que pela oportunidade característica de urbanidade soviética, dispunham de maior
aporte cultural e também musical, possibilitando que sua observação em torno do rock, por
vezes o entendesse como uma vertente musical do experimentalismo, quase numa linha de
desdobramento equivalente, ao que se havia feito com a imersão em outras vertentes da cultura
local (como por exemplo, a música clássica). Ou seja, embora a música clássica e o rock fossem
diferentes, e também na URSS isso fosse perceptível, a noção de que tanto o rock, quanto a
música clássica fossem terrenos legítimos a atitude experimental, não era vista com hierarquia
por seus protagonistas: pelo contrário, embora ainda houvesse resistência na opinião de
musicistas tradicionais (em geral, credenciados às associações de músicos da URSS), não se
podia negar que o ritmo inédito seria um terreno fecundo a novas modalidades de arranjo e
sonoridade. No princípio, jamais seria assim no Ocidente, sendo que apenas duas décadas após
o seu princípio (1960-70), o rock começaria por influências de músicos Ocidentais que
possuíam repertório anterior (de conservatório, por vezes) a ter um tratamento progressivo,
vindo a desdobrar-se em virtuosismo e experimentações diversificadas e mais sofisticadas.
Essa diferença fundamental de atores em trajetórias e localidades distintas levaria a que
o rock na União Soviética fosse visto, ao contrário do que se possa pensar, paulatinamente,
como uma forma de arte sofisticada, tão considerada, quanto seriam a poesia, a fotografia, a
escultura e a literatura modernista (CUSHMAN, 1995; p. 45). É claro, frise-se que essa atitude
faria valer, mormente, entre a comunidade de seus protagonistas, ciosos por manter um padrão
experimental e distante da aura comercial de produto tutelado. Para os integrantes da música
comercial, da linha partidária e da vanguarda musical soviética (classicista), o estilo do rock
145
seria marcado de controvérsias, com opiniões favoráveis e contrárias, mas fundamentalmente,
negativas, não por conta de sua natureza harmônico-sonora, mas por sua elementaridade
Ocidentalizada.
É por isso, que embora por trajetórias distintas, ao final da década de 1960, ambos os
hemisférios estariam a fazer migrar o rock para uma nova vertente de sensações psico-musicais.
O mundo via em suas sociedades industriais dotadas de modernidade, impulsionado pela
pujança econômica de uma ‘Era de Ouro’, o surgimento de uma revolução cultural225:
perspectivizando a partir do Ocidente, os costumes sexuais mudavam (com o advento da pílula
anticoncepcional, discussões sobre o aborto, militâncias feministas, sociais e de raça, com todo
um escopo político imbricado), a deposição de elementos tradicionais ligados ao corpo, à
hierarquia social ou a posição social do gênero, o trânsito entre estilos de diferentes classes, a
aparição de uma esteticização do vulgar/popular, até seu ápice: a consagração do
individualismo como manifestação de personalidade (‘cada um na sua’; DIY: do it yourself/faça
você mesmo), como forma de cultura e experimentação de entretenimento (favorecido,
conforme WALD, 2009226; pelo advento industrial cultural do long play/disco de vinil, em
lugar do concerto musical) – e posteriormente, havia a reconfiguração desses ‘grupos de
indivíduos’, reamealhados em torno de uma cultura, gosto ou significado em comum, no
conceito de novas tribos urbanas227.
Na contracultura, em meio às considerações nefastas do mercado, consumismo e do
apelo patriótico da guerra do Vietnã, laboratório da Guerra Fria, ingressado pelos Estados
Unidos, após a campanha militar na Coréia, na década de 1950228, muitos jovens se
encaminhariam por filosofia de vida e expressão alternativa aos costumes sociais
tradicionalmente consagrados. Reunindo-se desde em torno do artístico, estético e
esotérico/místico, passando pelo recreativismo no uso de drogas e substâncias como forma de
desalienação aos produtos chancelados, até a mobilização política subversiva, a qual redundaria
no movimento hippie, culminaria no evento marcante do Verão do Amor, em San Francisco,
California (1968). Num episódio importante desse momento cultural, levas de moças e rapazes,
caroneiros e andarilhos, se reuniriam em demonstrações diversas: de artísticas apresentações e
confraternização num momento de idílico pacifismo no fim dos anos 60, até manifestações
225HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. pp. 254-260 226WALD, Elijah; How The Beatles Destroyed The Rock N’ Roll: An alternative History of american
popular music; 1ª Ed; Oxford University Press, USA, 2009 227BARROS, 2007. Op. Cit 228HOFFMAN, Abbie. Steal this Book. New York: Groove Press. 1971.
146
políticas, como a dos protestos em Chicago (1968), cujo clímax se daria com o julgamento de
manifestantes por falsas acusações de incitação à violência e anti-patriotismo. 229
Não obstante, as manifestações culturais juvenis do período, dos eventos musicais
remanescentes desse espírito, ficaria também marcantemente célebre a presença do rock n´roll,
embalando a revolução – não – televisionada (nas palavras de Jimi Hendrix, em 1968) e tido
como gênero/estilo símbolo dessa revolução cultural e forma de celebrar tal filosofia de vida –
como ficaria épico no afamado Festival de Woodstock, realizado numa fazenda na cidade de
Bethel, estado de Nova York, em 1969. Nesse festival, com o rock em alta em sua vertente
experimental, na falta de nomes consagrados à época, como o dos grupos Led Zeppelin, The
Who, os Rolling Stones ou os Beatles, se fariam renomados determinados artistas locais, menos
conhecidos àquele momento, e que por isso mais independentes. Para citar, desses nomes
icônicos da história do rock, marcantes em performances no festival, figuram: Carlos Santana,
Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison (com sua banda, The Doors)230 – alguns deles que,
inclusive, transbordando as fronteiras ideológicas-políticas da Guerra Fria, se fariam pela
vertente do rock, conhecidos entre os jovens soviéticos – quase simultaneamente. Como aqui
se pode observar, em excerto de Marochkin (2011a) referindo-se a um pioneiro guitarrista do
rock soviético moscovita:
Por causa disso, ele provavelmente era o único homem em Moscou que fazia direito
o rock 'n' roll, tocava violão e conhecia muitos truques, que foram usados por Chuck
Berry, Rolling Stones – e que em Moscou, sabia como ninguém.
A imagem de (Sergei) Dyuzhikov em Moscou poderia até se comparar com a chegada
de Jimi Hendrix, na Inglaterra: que enquanto o rhythm n’ blues na Inglaterra estava
pronto para entrar em um novo estágio de desenvolvimento, mas ninguém sabia como
fazê-lo – só quem conhecia o jeito, seria Hendrix. [Traduzido do inglês].
Seria então que, no emergir de uma ‘contracultura Oriental sessentista’, lutando contra
uma série de percalços estruturais advindos da bipolaridade política, transversalizada no
fenômeno cultural do rock, com parcos recursos de realização, a juventude local teria solução
a partir do insumo do seu repertório de formação (educação formal e superior, oportunizadora
de conhecimento em línguas e música) e sua avidez por um experimento inédito no cenário
soviético – utilizando nisso, com picardia, dos recursos disponíveis.
Para endossar esse argumento proposto, cabe observar interessante relato trazido pelo
músico Yuri Morozov (CUSHMAN, 1995; pp. 20-33), onde esse narra em sua trajetória,
229No polêmico e notório caso Trial of The Chicago Seven (Julgamento dos Sete de Chicago, em 1969). 230HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 258
147
algumas dessas inusitadas e desconhecidas oportunidades de contato e retiro – em plena
realidade da URSS. Das agruras já conhecidas de seus relatos anteriores na senda do rock, o
músico relata do momento em que, após evadido de Vladikavkaz (cidade do interior soviético),
ingressaria no curso superior em Leningrado, contemplando uma rotina dupla entre a dedicação
à formação técnica no instituto superior e às apresentações arranjadas junto à gerenciadores,
para sua banda na cidade. Por essa época, estudando e cercado de contatos na grande metrópole
soviética, conseguiria algumas oportunidades de concerto, ainda se apresentando, no entanto,
com total sujeição à disponibilidade da estrutura estatal. Mais à frente, receberia convites para
figurar no elenco autorizado em pequenos bailes do clube de oficiais e concertos para plateias
escolares. Sendo então, que finalmente, por volta do princípio dos anos setenta, conseguiria
pela amizade de um de seus colegas de instituto – filho de um figurão da música estatal – a tão
sonhada possibilidade de protagonizar saídas às propriedades de campo remetidas aos membros
do partido (suntuosas dachas; casas de campo), em temporadas dedicadas ao ensaio e à música
(num cenário extra-urbano)
Pontua-se nisso, as evidentes diferenças entre contracultura ‘da pesada’ do Ocidente e a
sutil insubordinação, em estratégias culturais soviéticas. Se à princípio uma saída à casa de
campo não se possa comparar com queima de documentos de convocação ao conflito do Vietnã,
ou mesmo à queima de sutiãs, as implicações do ato de liberdade e a estreiteza dos canais
necessários para consegui-lo, num cenário como o da URSS, munido de toda uma estrutura
sistemática de monitoramento e burocracia (e ideologicamente voltado à uma lógica do
coletivo, em depressão da individual), acentuam o grau de transgressão envolvido no ato do
jovem músico. Outro caractere bem evidenciado, é o de que (assim como observado em outros
depoimentos de músicos) embora o rock fosse estrangeiro e extravagante, seria conciliável a
outras atividades da realidade local (como a formação acadêmica, por exemplo), e que, uma
vez que figurasse autorizado por certos integrantes da elite (oficial), também funcionaria para
esses como elemento de distinção (sofisticação) – de acesso à exóticos produtos de cultura e
um conhecimento acerca de vanguardas da arte Ocidental.
Não obstante, no tocante a como conseguiria sua possibilidade de trânsito e experiências
de saída dedicadas à atividade musical, o músico contaria de sua afiliação a um colega cujo pai
seria um dos músicos agraciados pela gravadora estatal. Ainda nesse aspecto, Yuri apontaria
como a partir desse favorecimento, aproveitaria sessões de ensaio ao final da década, rumo à
uma região próxima à Leningrado, onde ficaria reunido a outros músicos, retirado por semanas
e até alguns meses, em completo clima de seyshn (performance).
148
Há que se ressaltar que vigendo, como recorda Cushman (1995; p. 53), a lei de
obrigatoriedade de assiduidade ao trabalho, essas oportunidades de retiro evidenciadas pelo
músico, tinham de estar vinculadas a uma autorização de saída especial, concedida aos músicos
ou estudantes em processo de formação musical ou autorizados para atividades de cunho
cultural ou de pesquisa. Munidos das autorizações e desfrutando de um local com instrumentos
de boa qualidade (uma casa de campo confortável, de uso dos músicos da Melodiya, localizada
numa região montanhosa nas cercanias de um lago), esses retiros se tornavam um refúgio para
inspiração e alento em contraste à claustrofobia e atmosfera burocrática das instituições urbanas
soviéticas. E precisamente por isso, a presença fundamental do colega ‘bem relacionado’, a qual
possibilitaria tal chancela e a realização desses momentos singulares, mesmo dentro do cenário
restritivo vivenciado na circunstância laboral geral. Novamente, a demonstração de um
contraste, que embora proveitoso, denunciava a discrepância das configurações na sociedade
local. A despeito disso, do produto dessas sessões em meio à natureza e suas gravações que
marcariam profundamente o músico, tiraria inspiração para imersões futuras, junto a outras
vertentes experimentalistas – referentes a novas sonoridades e também a novas filosofias de
vida.
Yuri se referiria nesse ponto, ao seu contato posterior com a música indiana (raggha) e
os preceitos corporais do exercício transcendental (meditação) e jejum – o que na União
Soviética, embora fosse pouco conhecido ao exterior, não seria absurdo, posto muitas dessas
influências existissem e desde que não ofensivas aos preceitos oficiais, eram toleradas. Pouco
se sabe acerca de registros em torno de praticantes dessa e de outras influências da Índia na
Rússia soviética dos anos 1960, mas segundo a obra de Vladimir Lebedko, em História dos
Sannyas Russos, uma corrente dessas meditações correria a Rússia dos anos 1970, promovendo
sincretismo religioso entre religiosidades ancestrais (dos ritos indianos e do Cristianismo) e
criaria situações complicadas às autoridades, que rastreariam a localização dos adeptos e os
internariam, sistematicamente, em clínicas psiquiátricas a serem tratados com terapia à base de
insulina231 – há ainda nesse sentido, relatos de que muitos jovens na virada da década (1960-
1970) estariam por conta de influências locais e circulação de elementos da cultura hippie
231VASILENKO, Sergey [Artigo publicado em 20/10/2020]; In: KHODAREV, Vasyly; VOLKOV; Andrei;
Русская Семерка (2017) [Trad. Livre: Russkaya Semyerka] Editora LLC Tura; Disponível em:
https://russian7.ru/post/vladimir-tosha-shuktomov-chem-glavnyy/
149
Ocidental232, migrando a jornada da autodescoberta com um ‘tempero todo eslavo’ e marcante
da verve local: o Tolstoísmo.
Uma hipótese à origem de tal prática de ascetismo contemporâneo seria embasada no
precedente da biografia do afamado escritor realista russo Leon Tolstoi (1828-1910), de
conhecimento notório na sociedade russa, e que consistia no hábito do retiro e no
vegetarianismo. Produto dessa convicção e de sua desilusão com a forma como se constituíra a
sociedade de sua época (czarista), o escritor deixaria de vez, em dado momento da vida, suas
posses e títulos em São Petersburgo para ir morar em uma chácara [dacha] em Astapovo,
província a leste na Rússia. Tolstoi, que também seria um ferrenho defensor da causa animal e
um pacifista (a trocar cartas com Mahatma Gandhi, no princípio do século XX), teria juntado
consigo uma leva significativa de seguidores e sua enorme repercussão enquanto personalidade
e figura moral, fariam em episódio de seu passamento, com que o próprio Czar Nicolau II (em
1910), tivesse de tomar medidas as quais dessem conta de evitar uma peregrinação de milhares
de pessoas, ao local onde se instalara (TOLSTOI, 2013; Prefácio).
Em uma Rússia de múltiplos costumes e raízes étnicas, Tolstoi não estaria sozinho em
sua senda pelo ascetismo, embora de maneira mais específica o literato e seus seguidores
fossem modelos circunspectos associados às práticas de retiro, em sua prática alimentar teriam
companhia de outras celebridades, ainda na Rússia soviética, importantes expoentes culturais e
referências de proceder à época: como se pode ilustrar o poeta Sergei Yesenin, o escritor
Maksim Gorki, o pintor Nikolai Gê – entre outros que seriam importantes baluartes do
movimento vegetariano local, com posicionamentos que se alicerçavam numa defesa de um
caráter mais coerente com a causa animal até uma ênfase em hábitos de vida mais saudáveis.233
Interessante em mais de um sentido ao intuito da narrativa aqui empreendida, o relato
em torno do poeta Yesenin seria fundamental para entender uma importante simbologia russa.
Esse que faria um libelo em torno da luta da existência ante os caprichos e imposições da rudeza
da vida humana mundana e a relutância de aceitá-la, mesmo na constatação melancólica de sua
presença. Adepto que era do movimento romântico evocaria a partir da figura da Bétula (bereza,
em cirílico), árvore muito simbólica dos prados do Cáucaso, a figura protagonista desse embate
232HARDING, HARDING, Luke. La História Perdida de Los Hippies Soviéticos. El Diário (colaboração The
Guardian). Ed 06/nov/2019. 233AMINOVA, Dária. O vegetarianismo e a literatura russa desde Tolstoi. Russia Beyond. Disponível
em:https://br.rbth.com/arte/receitas/2016/05/15/o-vegetarianismo-e-a-literatura-russa-desde-tolstoi_592861;
Acesso em: 25/07/2020
150
(por alguns críticos, entendido como uma sutil forma de crítica aos rigores da administração da
época, sob Stálin). Sua introspecção e postura filosófica não poupariam de um desfecho
precoce, onde desgostoso com o estado das coisas em sua sociedade, se negaria a viver, por
escolha.
Assim, conquanto a ‘filosofia’ hippie proviesse, com vulto mais visível, de uma
circunstância Ocidental específica (EUA), precedentes locais já existentes e atuantes na
configuração soviética (por sua tradição russa) já evidenciariam em si semelhantes tomadas de
atitude – demonstrando, mais do que qualquer aculturamento possivelmente cogitável, uma
afinidade dessa tendência por registros já familiares ao ethos russo-soviético. E, inclusive no
tocante à questão esotérica, embora a União Soviética não fosse um Estado tendente a
manifestações de cunho religioso – por sua vinculação a uma interpretação escorreita do
materialismo histórico dialético (cujos preceitos encaminham a laicidade e o ateísmo como
premissas) – havia uma tradição e a possibilidade de existência e de circulação de
conhecimentos religiosos (a própria Igreja Ortodoxa, subsistia234), místicos e de cunho
filosófico transcendental, tanto da verve remanescente local, quanto essas de proveniência
exótica, mesmo sob a estrutura institucional do aparato235.
Tais conhecimentos, assim como distintas filosofias de vida e como as de canções e
produções de outros países, desde que não utilizadas com apelo político, gozavam desde aquele
momento da década de 1960 de certa capilaridade, podendo ser toleradas como conteúdo
histórico e mesmo, formas de aprendizado nas formações na URSS. Ora, se como visto, embora
escasso o número de falantes, havia estudos de língua inglesa e como mais adiante se verifica,
o conhecimento até mesmo de nomes clássicos da literatura Ocidental, não se poderia duvidar
da possibilidade e trânsito, embora mais rareado, de outras fontes de conhecimento (orientais
antigas, por exemplo) na sociedade local. Conhecimentos étnicos também figurariam essa
hipótese, como os de cunho religioso ou artístico de povos do Oriente, pois estes serviam a
melhor compreender certas culturas com as quais os cidadãos e diplomatas poderiam vir a ter
contato, eventualmente – em geral, por interesses políticos, comerciais ou de circulação de
234Mesmo sob Stálin, a Igreja Ortodoxa Russa encontraria uma forma de contemporizar o Estado. A tal ponto que
em face dos eventos da Guerra Patriótica, o Patriarca Sergei (equivalente ao título católico do Papa) através da
ressonância de sua Igreja, exortasse Stálin como um ‘Eleito da Providência’. Fonte: HOOBLER, HOOBLER,
1987; p. 78 235Há o registro disso no prefácio do blog de MAROCHKIN (2011), ao se referir às sonoridades étnicas e
folclóricas que compunham o mosaico cultural da União Soviética no principiar do rock local. Há menção
específica a ritmos orientais, indianos, cazaques e de outras proveniências, que segundo seu relato, não apenas
entrariam na URSS, mas constituiriam repertório conhecido e utilizado pelos músicos locais.
151
informações. Também há que se considerar que numa multiplicidade de nações, compostas de
plúrimas etnias dispostas em fronteiras diretas com o Oriente Longínquo e outras porções
asiáticas, resta pouco provável que da matriz de seus saberes não proviessem alguns cujas fontes
remontassem aos de outras culturas do circuito Oriental236.
Assim, o evento possível de hippies soviéticos, embora inusitado e impressionante,
apenas ajuda a ilustrar de maneira mais clara, as contradições e fluxos culturais presentes nessa
sociedade e a permeabilidade de circulação e trânsito de influências, históricas locais e de
mundos em simultânea ocorrência, desmentindo a distorção sofrida nas lentes de observação
histórica ocidentais, que em geral, produziram uma narrativa baseada em uma versão muito
restrita da interpretação do funcionamento da modernidade industrial socialista, bem como, do
potencial de agência e reconfiguração de arranjos sociais, por atores dessa estrutura social.
Também conforme se tem buscado evidenciar ao longo dessa narrativa, com consoante colheita
de evidências, a circulação de conhecimentos provenientes, tanto do Ocidente, quanto do
Oriente, dentro da URSS, variaria de acordo com o tempo, em fases passadas por seu aparato e
de acordo com personalidade e gestão reflexivas a cada temperamento/época de seus
governantes. Não seria a União Soviética um bloco monolítico de perpetuidade intransigível,
embora sua imagem coesa e solene desejasse, por vezes, passar. Também nela, as mudanças
aconteceriam e o espaço para manifestações insuspeitas, devidamente possibilitadas, ficaria
marcado em precedentes coletivos e individuais.
Em teor de um desses emblemáticos precedentes, tornando a Yuri Morozov (em relato
descrito por CUSHMAN, 1995; p. 35) torna-se a esse quando chamado de sua jornada no
‘transcendental’, de volta à ‘realidade’, ao figurar no princípio dos anos 1980 – posto ainda
continuasse muito adiante, de suas práticas e filosofia de vida entre outras excentricidades à
realidade local – no escopo de denúncia do partido: acusado por suposto desvio de material
estatal para finalidade particular. O argumento, provinha da alegação que o pequeno estúdio
que Yuri tocava, utilizaria fitas e aparelhos de pertença estatal para suas produções
independentes.237 De forma mordaz, o Estado arrumava assim um argumento a pô-lo, por seu
estilo heterodoxo, em observação, mais por conta de seu tipo esdrúxulo ao padrão soviético –
236Basquires, tártaros e chauchus, dentre outros povos, representam algumas das etnias dentre os povos russo-
soviéticos (hoje, inclusive, constituindo algumas províncias autônomas), cujas características, tanto culturais,
quanto geno-fenotípicas, guardariam grande parentesco com correntes antropologicamente espalhadas pela
Mongólia, China, Japão e Paquistão. 237O trecho refere-se, conforme Cushman (1995), a produções não autorizadas, de cunho religioso; um crime,
segundo a Constituição Soviética, menos pelo conteúdo, que pelo procedimento, àquele momento.
152
barbas e cabelos compridos e práticas esotéricas, destoantes gritantemente da fisionomia tanto
sartorial, quanto ideológica do cidadão soviético comum, predominada por vestes alinhadas,
corte de cabelo curto e corpos exercitados e exaltação dos cânones partidários, conforme
Cushman (1995; pp. 180-85) – que chamaria a atenção dos jovens e que associados à sua prática
radiofônica (de cunho esotérico místico), oportunizavam que se tornasse um ícone potencial
como elemento subversor, do que, de fato, por sua pretensa atitude ilícita no ‘suposto’ desvio
de material às gravações particulares.238
Uma vez mais, a astúcia da agência individual ocasionaria a burla do aparato – nesse
caso, o de investigação. Para sair-se incólume da situação, utilizando da gramática que conhecia
do funcionamento do procedimento de inquérito oficial, Yuri compareceria ao interrogatório
para a KGB, trajando sua jaqueta militar, demonstrando suas diligentes obrigações com o
Estado (servira no exército, algo respeitável na URSS, àquele momento). Não obstante, quando
requisitado a dar os materiais de prova que evidenciariam de sua culpa na atividade (supostas
gravações de cunho religioso cristão; uma das vertentes filosóficas, de fato, da intimidade de
credo de Yuri; CUSHMAN, 1995, p. 33), este pediria um prazo para a juntada do material e tão
logo o procedesse, enviaria à submissão dos fiscais locais. De forma estratégica, regravaria boa
parte do material compilando-o de forma confusa e pouco inteligível, tornando questionável a
qualidade das provas, e com isso a procedência da alegação – uma vez que disso resultasse um
material produzido, considerado, ainda que ‘desagradável’, inofensivo produto à apreciação das
autoridades.
Da trajetória do músico, aqui utilizada como metáfora a essa narrativa de
experimentalismo do rock local, empresta-se alguns registros de sua carreira (fotos), não apenas
demarcando o argumento ora descrito, mas demais elementos interessantes, como o
conhecimento manifesto nas imagens, de tendências ocidentais e orientais extras soviéticas,
bem como uma franca familiaridade em relação aos artistas ocidentais e, sobretudo, a
constatação da forma como o rock soviético conseguiria criar distinções de fases visíveis entre
etapas de sua trajetória em menos de uma década. Procede-se a seguir, com a análise das
pertinentes imagens:
238Que segundo Cushman (1995) relata, teriam inofensivo teor e se preservadas, muito vantajosamente, tornariam
rastreável toda uma rede de contravenção, formada pelos aficionados, sob a observação do aparato.
153
Figura 1. Capa do álbum Strannye Ânguely (Strange Angels), do artista soviético Yuri Morozov. Ano: 2014
(coletânea) Domínio Público (Fonte: Site Buried Treasure; Disponível em:
https://buriedtreasure.bandcamp.com/album/strange-angels. Acesso em 26/06/2020
A começar pela análise do fotograma239 da Imagem 1, crê-se que produzido dentro do
selo de qualidade estatal (GOST, para filmes fotográficos, equivalente ao ASA estadunidense
e ao DIN alemão, à época; respectivos códigos/selos internacionais de classificação e padrões
de qualidade, os quais permitem rastrear locais de origem de cada produto), provavelmente em
captura 35 mm (pequeno formato), por ser o mais utilizado entre profissionais e amadores à
época; também, nota-se que trata-se do de registro de um filme de alta sensibilidade
(equivalente ISO 800 a 3200), por ter sido a foto tirada em ambiente escuro (interno), com
pouca insolação (ou iluminação artificial), demandando de alta-sensibilidade de captura à luz.
A imagem parece alterada num filtro noturno, no qual transparece, ainda assim, parte de sua
densidade original/saturação (que lhe empresta a fisionomia de algo com possibilidade de
correspondência com uma tomada capturada nos anos 1960-70).
Quanto a análise de imagem, propriamente dita, a captura é uma tomada frontal, com o
protagonista de pernas cruzadas, levemente centralizado, há disposição de objetos de seu uso
239Análise fotográfica, a partir de elementos de base, retirados considerando as informações acerca de padrões de
qualidade de filme fotográfico, disponibilizadas no Arquivo Nacional (Conarq), páginas 9-10, seção Câmara
Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográficos e Sonoros – CTDAIS. Brasília-DF, 2014
154
costumeiro (gravador de rolo [magnitofon], e algumas imagens de pinturas ao fundo).
Provavelmente, a imagem incite a divulgação do material fonográfico do autor, Yuri Morozov,
onde a presença do gravador ilustra ligação à música, e as figuras pintadas representam
personagens pagãos, ligados à filosofia Oriental (provavelmente, ao estudo do Zoroastrismo).
A semântica que se pode evocar do registro, é a de ressaltar a dicotomia vivenciada entre o
ofício da música moderna (ligado à tecnologia) e o hábito de perpetuação de conhecimentos
antigos (ligados a culturas muito anteriores ao contemporâneo). Dessa dualidade, o músico
pronuncia uma ideia de como a URSS possuísse figuras singulares como tal, em pleno momento
de vivência contracultural, semelhante ao vivenciado na porção Ocidental (pelos hippies e seu
cultivo do esoterismo). Posto que, embora o rock soviético ainda fosse já se encaminhando para
sua própria construção local, seria àquele momento muito tributário das tendências encontradas
no rock Ocidental.
Adiante, passa-se a análise da Imagem 2 (na página subsequente). Essa, que composta
de uma tomada em ambiente externo, com o personagem principal descentralizado (à direita),
em pose de prática meditativo-contemplativa, com torso e pernas desnudos, e uma vegetação
ao fundo, remetendo a um simbolismo de integração ao mundo natural. A crítica (ou evidência)
passada pela tomada é, a partir do precedente de Yuri Morozov, vislumbrar-se de como haveria
um curso de informações de cultura Oriental antiga, filosófica e holística, dentro do circuito
soviético. Práticas corporais e pensamentos metafísicos poderiam ser encontrados, embora não
se constituísse nisso uma constante social, nos centros urbanos maiores e entre cidadãos – com
vulto, integrantes das artes (como a música, ligada em seu processo, a muitos segmentos de
referências e inspiração).
Quanto à composição do fotograma, por suas características, acredita-se que
corresponda em época ao registro anterior (com lastro na fisionomia do retratado aparentar-se
mais jovem que a da primeira imagem). Não obstante, por ser em tomada exterior, o filme
apresenta baixa sensibilidade, provavelmente de 35 mm novamente (escolha mais corriqueira
entre amadores e profissionais, para uma tomada assim). Ambas as fotos, ficam a integrar o
acervo de imagens disponível no site do músico240, organizado por sua filha Nina Morozovna e
pelo jornalista russo Andrei Burlaka, autor de Encyclopaedia of Russian Rock (ambos
consultados; disponíveis em russo e aqui traduzidos). A determinação da datação de ambas as
240Юрий МОРОЗОВ 06.03.1948-23.02.2006: музыкант, писатель, звукорежиссёр [Yuri Morozov-
06.03.1948 – 23.02.2006: Musician (2011), writer, song engineer - The SteppenWolf Running With Hunger And
Freeze, Understand me]; Disponível em: http://www.zcinzsar.ru/disks_eng.php; Acesso em: 28/06/2020
155
fotos, corresponde aos relatos da biografia de Yuri encontrados no site, bem como de dados
disponíveis em sua discografia (também nesse site) e corroboram os relatos realizados a
Cushman (1995; pp. 20-33), acerca de suas influências e práticas pessoais.
Figura 2 Capa alternativa do álbum Strannye Angely (Strange Angels). Artista: Yuri Morozov. Ano: 2014
(coletânea) Domínio Público (Fonte: Site Buried Treasure; Disponível em:
https://buriedtreasure.bandcamp.com/album/strange-angels; Acesso em 26/06/2020)
Essas duas primeiras imagens analisadas do acervo da obra de Yuri Morozov, também
figuram como capa de uma coletânea organizada sobre materiais (músicas) da década de 1970
desse artista, com encarte organizado contendo similitude (pictórica) no site referido. Nessas
imagens, seguindo ao relato de Cushman (1995), ficam presentes evidências da prática Oriental
indiana de que o cantor se referia no depoimento (meditação), bem como iconografias ligadas
ao esoterismo e ao ascetismo, presentes, embora raras, na sociedade da União Soviética.
A imagem seguinte mostra a capa de um dos discos de Morozov lançados no princípio
de 1970 (dados disponíveis na seção Discografia do site dedicado à sua obra), contendo
referência explícita ao músico Ocidental (estadunidense) Jimi Hendrix:
156
Figura 3 Álbum: The Cherry Garden of Jimi Hendrix Artista: Yuri Morozov. Ano: 1973 (relançado em 1975)
Domínio Público Fonte: Site Discogs; Disponível em: https://www.discogs.com/Yury-Morozov-Cherry-Garden-
Of-Jimi-Hendrix/release/5758551.
As imagens encontradas figuram em sites de colecionadores de discos raros e
coletâneas, e mesmo as incursões ao site do músico, infelizmente, não permitem reunir o
material no seu estado mais original, uma vez que, conforme estejam já em língua inglesa suas
nomenclaturas, provavelmente, se tratem de versões atualizadas (provavelmente
remasterizadas) das obras originais, impossibilitando assim uma fonte originária, que não seja
a partir da encontrada por meio dos relatos, obter a seguridade total acerca de sua procedência.
Contudo, o registro fotográfico, conforme cruzamento de referências em sites como o
Russ.Mus.Net, especializado em artistas locais, atuais e anteriores da Rússia contemporânea e
também do site pessoal do cantor, bem como as afirmações do próprio músico, consoante o
registro oferecido em relato na obra de Cushman (1995), apresentam importantes indícios que
emprestam veracidade e correspondência a evidência das argumentações de afinidade com as
práticas de retiro e filosofia de vida indianas presentes na União Soviética, bem como do contato
dessa com a contracultura estadunidense proveniente de Woodstock e seu movimento também
permeado de influências. Corroborando com isso, que na União Soviética, embora fosse algo
157
notoriamente incomum, houve resquícios de práticas equivalentes à do movimento hippie (pelo
Tolstoísmo ou pela circulação de conteúdo da contracultura estadunidense) – citado, inclusive,
por Marochkin (2011a), ao relatar do caso dos birches perseguidores de hippanovoga (gente
hippie; no episódio de Moscou, no final da década de 1960):
Um fato triste memorável desse tempo foi a descoberta de um esquadrão "Birch", que
se dirigia até a porção hippanov metropolitana [hippies na cidade de Moscou], na
chamada "Broadway"241 moscovita, ou seja – vindo pelo lado esquerdo da rua, da
Gorky 's Pushkin Square até o Hotel Moskva – mas ao que tudo indica, no último
minuto, o grupo principal desse manifesto não se organizou. Criar um esquadrão antihippovogo [do russo, anti-hippies] de impacto foi uma iniciativa pessoal de vários
jovens comunistas. Curiosamente, nos anos de estagnação [período de governo de
Brejnev, na década de 1970], muitos participantes “Birches” ocuparam cargos
importantes e responsáveis nos escalões superiores do Partido Comunista, tornando-
se secretários de vários comitês da cidade e do partido regional. [Tradução do inglês
e grifos nossos].
Esse excerto acima mencionado permite verificar duas coisas: primeiramente, a
existência pregressa, aos anos 1960, de jovens soviéticos com comportamento hippie,
verificados em um incidente ocorrido, possivelmente, entre a segunda metade da década ou no
princípio da posterior (1970); em segundo lugar, a existência de grupos conservadores tendentes
à preservação do estabelecimento local, identificados como birches. A palavra (birch) é uma
tradução inglesa (idioma do site em que consta a notícia) do termo bétula (uma árvore nogueira
típica de climas temperados), que em russo se pronuncia bereza. Bereza é uma das canções do
livro de saudações do Coro do Exército Vermelho, que discorre sobre a temática da natureza
para evocar a alegoria de resiliência dessa árvore durante o inverno hostil, um ufanismo militar
e os valores resistentes ao achaque de tendências derrotistas. Cogita-se aqui, que o uso da
terminologia bereza, para se referir aos integrantes da manifestação anti-hippie soviética, seja
uma forma de atribuir-lhes, em forma de jargão característico (gíria, do repertório pejorativo e
provocatório), o atestado terminológico de sua atitude conservadora, alinhada ao status quo
soviético, militar e nacionalista – por extensão, utilizaria-se do termo evocando os emblemas
dessa tradição militar.
Outra informação que corrobora essas duas presenças (de hippies e berezas; ou gente
do aparato), é o relato de incidente semelhante, trazido no documentário Soviet Hippies (2017),
dirigido pela diretora estoniana Terje Toosmitsu, entrevistada pelo jornalista Luke Harding,
para o jornal inglês The Guardian (com matéria cedida e traduzida ao periódico espanhol El
241Conforme visto com o relato dos Stilyagi, à década de 1940, provavelmente, o epíteto seja atribuído a um local
onde de modo similar os apreciadores de cultura Ocidental se reunissem na circunstância urbana da capital federal.
158
Diario; La História Perdida de Los Hippies Soviéticos, 2019). A descrição do incidente é
entremeada de muitos detalhes importantes:
O movimento hippie soviético emergiu em Moscou e Leningrado entre 1966 e 1967,
durante os primeiros anos do governo de Leonid Brejnev. Os primeiros hippies
vermelhos foram filhos e filhas da camada privilegiada soviética, os filhos bem-
educados das famílias da elite, os quais tinham acesso à música e aos cowboys do
mundo capitalista. No princípio dos anos 1970, o movimento já era suficientemente
grande e revoltoso a ponto de chamar a atenção das autoridades, ainda que segundo
Toosmitsu, a quantidade de hippies não passasse de alguns milhares. A polícia secreta
começou a seguir esses jovens que possuíam cabelos compridos. Em junho de 1971,
os hippies locais obtiveram permissão para manifestar-se contra a Guerra do
Vietnã, às portas da Embaixada Estadunidense em Moscou.
Era uma armadilha. A KGB cercou e prendeu os manifestantes, com o objetivo
de eliminar a cultura hippie. Alguns manifestantes foram enviados a instituições
psiquiátricas onde lhes injetavam insulina, outros foram enviados ao exército e
para campos de prisioneiros próximos da fronteira com a China. O
documentário recria o cenário dessa investida e utiliza fotos de vigilância
achadas nos arquivos da KGB na Lituânia.
Segundo Lampmann, era comum sofrer-se o assédio da polícia e da KGB. Um de
meus melhores amigos acabou na cadeia, relata. Os hippies eram condenados por
delitos penais, ao invés de políticos. Podiam encontrar-se compartilhando cela com
assassinos e criminosos comuns. Para evitar ser preso, Lampmann conta que sempre
trazia consigo seus documentos pessoais em ordem. [Tradução do espanhol e grifos
nossos].
O relato da diretora ao jornal, conta com o depoimento (oferecido ao documentário) de
um desses participantes do movimento local à época, o estoniano Axel Lampmann. A partir de
sua narrativa, seria marcante nas origens desse fenômeno cultural local, a influência da música
de grupos como os Beatles e a circulação do rock nas Repúblicas Socialistas Soviéticas, que
variaria de acordo com os lugares, em possibilidade e frequência, mas seria uma realidade já
corrente a partir da segunda metade da década de 1960. Sua adesão ao movimento seria
consolidada em 1969, constatando por sua rede de contatos, integrantes que se estendiam do
Mar Báltico à Criméia. Em percepção da época registrada no documentário, resumiria aquele
ímpeto local com as seguintes palavras: ‘A vida nos cobrava mais cor, àquele momento!’
(HARDING, 2019).
Retomando-se a questão do incidente, propriamente dito, evidencia-se a figura de
autoridades locais na vigilância e repressão ao movimento, num aspecto mais severo do que a
realizada pelo Komsomol242, nos anos do Degelo de Kruschev. Mais do que isso, como ilustrado
pelo músico russo, Dimitri Matsenov (2017), uma típica ação escamoteada das autoridades
locais (que seria perpetuada durante as décadas seguintes também):
242Ora aludidos, Comitês de Fiscalização ligados ao Movimento da Juventude Soviética.
159
Ah, aqui outro fato memorável dessa época! Era extremamente popular nas escolas
de Ensino Médio e nas Universidades algo chamado de concursos de talentos
amadores (é o mais próximo que posso traduzir do original russo o qual soaria
totalmente ridículo e eu não pretendo fazer isso). Usualmente, devotados a alguma
agenda político-cultural (paz internacional, amizade, direitos dos trabalhadores).
Então, os jovens iam lá ler poesias, cantar, etc. – com certo apelo político. A beleza
da coisa era que, por sob a capa de luta contra o imperialismo nós podíamos fazer
alguns acordes bem legais. Por exemplo, rock n´ roll ou blues, podiam vir mascarados
sob o tema canções dos negros americanos por seus direitos. Baladas Country, e até
certo ponto o rockabilly, podia vir sob o escopo de canções de fazendeiros e da gente comum da América (de novo, nessa pegada de direitos e coisa e tal...) [Tradução do
inglês e grifos nossos].
Ou seja, se nas décadas seguintes, durante a Glasnost (época do relato acima descrito,
já durante as reformas do governo de Mikhail Gorbachev, nos anos 1980), o escopo de temáticas
nacionalistas e dos trabalhadores, ou contra imperialistas, pudesse emprestar tonalidade
condescendente com o manifesto contra cultural do rock e suas consequências, essa prática já
daria indícios de existência com outro viés: no complicado período de recrudescimento da
censura e repressão sob Brejnev, nos anos 1960-70, ela seria utilizada sob um alarde de – falsa
– tolerância a constituir – verdadeiro – ardil para poder atrair possíveis adeptos das causas
consideradas dignas de supervisão, engendrando, primeiramente, localizá-los e identificá-los, e
num momento seguinte, apanhá-los, registrá-los e puni-los.
A agência local dos atores soviéticos em lidar com tais circunstâncias restritivas, como
outrora haviam feito ao criar a partir da disseminação de gravadores domésticos de música
(magnitofons), sob a abertura consumista de Kruschev, uma magnittofonnaia kul´tura (cultura
de compartilhamento e reprodução de material fonográfico, citados em CUSHMAN, 1995; p.40
e em PAPHIDES, 2015), burlando a fiscalização local e a carestia de materiais fonográficos
estrangeiros no mercado da União Soviética, seria espelhada tal agência na circunstância desse
movimento hippie vivenciado, através da criação de uma rede de correspondência e
solidariedade dentre seus indivíduos, facilitando a instalação de seus integrantes em cidades
vizinhas, durante deslocamentos, ou por conta de perseguições e encarceramentos (que por
vezes, levariam indivíduos provenientes de uma localidade, para outra muito distante).
Essa rede de amparo mútuo fortaleceria os laços entre os adeptos do movimento e
permitiria, mesmo sub-repticiamente, a sobrevivência de seu manifesto e a perpetuação da
iconografia, músicas, símbolos e outras produções culturais desse nicho ao longo de toda
duração posterior do regime soviético. Os hippies soviéticos estariam ligados em origem, ao
surgimento do rock local, mas figurariam em outra dimensão de atitude, mais voltada ao
pacifismo e essas experiências de peregrinação, meditação e retiro e menos à questão da
guerrilha cultural empreendida por seus fraternos de contracultura. No entanto, o mundo das
160
coisas etéreas e transcendentais, embora um ideal de vida teria de se ancorar na estrutura de
possibilidades factuais, como a dessa intrincada rede de solidariedade dos adeptos: encontrada
entre indivíduos propriamente hippies, mas também, na solidariedade da comunidade rock
soviética. Esse senso de comunidade (ou communitas), dos hippies e do próprio séquito de
adeptos do rock locais, é descrito com o conceito de comunidade eletiva dentro da modernidade
socialista industrial, que segundo Caillois (apud CUSHMAN, 1995; p. 166):
É uma comunidade a qual tem suas origens e se estrutura unida por um sentimento
comum de desilusão com o senso dominante de sagrado, e conversivamente, une-se
em torno de uma alternativa e compartilha essa definição e senso de sacralidade na
qual é articulado um modo específico de vida.
Esse sagrado pode ser entendido como algo esotérico, qual o apresentado, mas também
a recuperação, em torno da música, de um sentido de encanto nessa sociedade. Tal senso se
mistura ao conceito de cultura enquanto resposta à vida, encontrado em WILLIAMS (Cultura
e Sociedade, 1969; p. 3), no qual o linguista galês evidencia a atitude desencadeada em
determinadas manifestações de arte e cultura, como um produto e forma de
enfrentamento/consequência de pressões e movimentos desencadeados pelo compasso social,
político e de outras manifestações culturais. Nessa jornada do etéreo e do transcendental
experimentado pela juventude e vanguarda artística local, e considerando o proposto pelo
referido autor, outra característica singular do processo de russificação/sovietização do rock, a
qual cabe ser ressaltada, seria a presença, por essa verve letrada dos seus protagonistas, do
mesclamento de sua temática com a literatura. Principalmente, no campo da poesia: Yuri
Schevchuk, falaria dessa importante distinção causada pela música quando baseada num
princípio de poesia pura (kruto; krutaia), e quando mero produto do desdobrar do enfrentamento
diário da realidade (CUSHMAN, 1995; p. 168). Para ele, a música, consoante uma expressão
poética, seria a única forma de preservar-se ao fazer a arte, sem se deixar mergulhar no abismo
de se tornar como aqueles que pela música, se esperaria afastar. Deste modo, por exemplo, seria
mais tendente ao conteúdo do rock da comunidade local, como algo legítimo, sacral, uma vez
que a versar sobre conteúdos de poesia, do sublime, do etéreo e sobre temas acerca de questões
da existência, em lugar do circunstancial mundano – discussões essas, muito polêmicas, que se
relacionariam fundamentalmente ao posicionamento do movimento em relação à questão
política, que aqui situadas ao final do trabalho.
Insistindo neste ponto, o músico citado, Schevchuk, enfatizaria esse apelo poético –
considerado a marca do rock local, menos político do que um observador Ocidental esperaria –
no papel preponderante às composições do estilo, do uso e presença de diferentes fontes
161
poéticas, incluindo desde literatos e poetisas locais, como Leon Tolstoi e Olga Akhmadullina,
até ícones da música barda russa contemporânea, como Bulat Okudzhava e Vladimir Visotsky
(definidos pelo cantor como esteio da chamada ‘música bandida’/ blatnaia muzyka;
CUSHMAN, 1995; p. 74). Também em Marochkin (2011a), encontra-se mais evidências desse
sincretismo cultural do rock soviético, entre o poético e o material, etéreo e marginal, segundo
a observação local:
Ou talvez o rock – seja Pushkin243? É o que afirma Roman Suslov, líder da "Polited
Reffusal244". De fato, no crisol do rock perekipeli [no cadinho do rock se
misturavam]245blues, na música boogie-woogie dos caipiras americanos, na tradição
sinfônica européia, na raga indiana, na música cigana, nas danças celtas pagãs e até
na dança russa! E aconteceu que toda essa mistura de tradições européias e africanas
no século XX voltou à Europa, dando vida à música folclórica no Velho Mundo, que
parecia ter evoluído nessa época em uma exposição de museu!! [Tradução do inglês
e grifos nossos].
E a poesia, corolário da presença de uma importante verve literária local, abriria
possibilidade à busca por outras literaturas como fonte de inspiração, fazendo o produto dessa
composição rockeira, tanto mais, sublime. Reincidente, isso seria algo que também percebido
na fala de outros músicos, como o guitarrista Viktor (citado em CUSHMAN, 1995; p. 53), o
qual relataria influências inusitadas de outras fontes para sua gramática melódica e de
composições: as obras da literatura estadunidense de Ambrose Bierce, Edgar Allan Poe e
Flannery O´Connor, além de elementos próprios da corrente literária do existencialismo alemão
– e todas essas, tidas como influências que acreditava mais adaptáveis à (sua visão de)
transposição de uma sonoridade do rock local. Outro importante relato, é o de Boris
Grebenschishcov, músico que tido por muitos, como baluarte poeta e precursor do movimento
do rock underground soviético (líder da banda Akvarium), e argumentaria já no seguinte
sentido – seu muito próprio jeito de interpretar, poeticamente, a função do rock como matriz de
um sentimento – em Marochkin (2011a):
Do que seja o rock ... ele é como um centro (não, não é como, ele é o centro) de que
se extrai sua energia e é a estrutura do núcleo central, a energia da luz. Rock – é uma
forma, a forma original, e que nunca parou de se conectar e conectar esses ou outros
canais – os de outras gerações, e aqueles e outros setores – mas sempre sendo ele,
sempre, o principal. Ou seja, é algo que existe apenas: energia [energia] natural, como,
por exemplo, o sol, que não pode sair nem ir, nem rolar, ser apenas para esta geração
e não para a próxima. É uma coisa eterna, eterna e absoluta! "...[Tradução do inglês e
grifos nossos].
243Famoso literato russo, cuja literatura compreenderia prosa e poesia, sobre temas do cotidiano e conflitos
existenciais, fisionomizados na vivência de Moscou e São Petersburgo, ambientes de vida e obra do autor, ao final
do século XVII e princípio do XIX. 244 Importante banda russo-soviética, surgida em Moscou nos anos 1980. 245 Crisol: cadinho; perikipeli: palavra russa para ferver, cozinhar, misturar;
162
Para os músicos locais, haveria algo difícil de explicar no rock, que pela definição local,
não poderia ser aproximado de nada que não fosse uma forma de impulso, ação de rompante,
uma energia (energiia, no termo russo transliterado). Essa energiia, como fora lá atrás com os
literatos do século XIX, quando se transformara em agitki (GAINES, 1995)246 e fizera eclodir
em manifestações políticas revolucionárias, faria agora nesse momento, o papel de ir
transcender um cenário pouco encantador e claustrofóbico, mostrado como adorável aurora
cultural, mas vivenciado com olhares de incerteza pelos habitantes locais. Como um mundo
que se parecia maior olhando da atmosfera das conquistas espaciais, e no plano da Terra, ficava
cada vez mais distante dessa grandiosidade, o rock migraria ao longo da década seguinte (1970),
por questões criativas e de produção, do cenário moscovita de sua primeira fase, para a criação
progressiva e experimental à capital da cultura São Petersburgo/Leningrado – se transformando,
qual a metáfora de sua partida, em um elemento que fugia do controle estatal, transitando sutil
ao embate político e paulatinamente, dotando-se de mecanismos próprios de estabelecimento
tanto de seu caráter, quanto de sua realização, consagração e disseminação. Nisso dos
mecanismos, a transformação não seria tanto referente a esses, que como visto, o tornavam
dependente do fator objetivo do aparato, mas aqueles mais humanos, subjetivos, dependentes
apenas de seus protagonistas e em postura de repúdio à conformidade estrutural.
O rock seria, também ele, segundo tais considerações, algo a funcionar como uma
experiência de retiro, não apenas corporal), mas mental (através da poesia) e social, no sentido
de fuga à atmosfera política ubíqua dessa sociedade moderna industrial e planificada. Também
seria o rock, uma experiência a demonstrar que mais do que a analogia de uma cortina-de-ferro,
essa que uma redoma a recobrir beligerante e ideologicamente seus integrantes sociais,
coubesse o lugar de outra metáfora: a de membrana celular, considerando a modernidade
socialista como uma entidade viva, dotada de gradientes de concentração a possibilitar ou
impedir entradas de elementos exógenos, mas sem a concretude de algo inanimado e sim, com
a fluidez e dinamismo de um organismo vivo, onde cada uma de suas organelas seriam seus
atores locais com suas atitudes de organização dentro dessa homeostase (funcionamento) social.
246Referência ao conceito empregado pelo diretor soviético Sergei Eisenstein (1898-1948), que ao dissertar sobre
os elementos de cativação promovidos pela linguagem cinematográfica, ressaltava a importância de se
obter/insuflar da/na plateia um agitki, terminologia russa para agitação, fervor, impulso (de agitatsi, agitar). Com
isso, buscava encerrar a essência do engajamento através da arte veiculada, que por sua exibição ao público,
conforme uma narrativa cativante e orquestrada, conseguisse passar energia, impulso e atitude a que a plateia
busca-se manifestar a partir de seus exemplos, uma tentativa de concretizá-la na vida real. Tal conceito estaria
ligado à uma tradição politizada e revolucionária (desencadeada por esse sentimento, agitki) e aos objetivos que a
cultura soviética possuía, principalmente no seu início, de educar e politizar as massas, através do conteúdo das
produções artísticas locais.
163
Atores esses, que constituiriam o rock da URSS, não como na tradição do encare
Ocidental mas algo a ser visto da perspectiva de uma forma de arte singular, de continuidade
direta de uma produção cultural soviética progressista aliada à um assoalho de tradição, presente
em suas manifestações residuais de cultura (conforme WILLIAMS, 1987), a migrar
paulatinamente, do contato com o novo, para a construção de sofisticadas manifestações de arte.
Nesse sentido, mesclando muito das considerações descritas acima acerca do fenômeno do rock
na circunstância local:
Nos primeiros anos de nossa comunidade de música rock, fluia um único fluxo – o
big-bit. [...] No entanto, eles tinham um problema: trazer aos amantes da música o som exato de suas músicas favoritas. Portanto, o nível de "inclinação" de um músico
era medido pela precisão com que ele copiava o original. No final dos anos 60, quando
até à nossa comunidade de rock surgiu a idéia hippie e sons psicodélicos, a
simplicidade elegante do big-bit - big-beat - deu lugar a composições rítmicas
complexas, os solos instrumentais passaram à distorção conceitual detalhada, rica
coloração de timbre. [...] Nossos rockeiros começaram a escrever suas próprias
músicas. Mas, logo que isso aconteceu, manifestou-se a memória do sangue e das
passagens melódicas nacionais penetradas na nova música. Os rockeiros mais
avançados marcharam para experimentos com um som folk. Alexander Lerman,
Alexander Gradskyi, os “Tin Soldiers [Olovyannie Soldatiki]” e a “Mosaic” já
estariam nos anos 60, intuitivamente sentindo a tendência correta, tentando combinar
rock com melodias folclóricas tradicionais russas e poesia clássica russa. [Trad. do
inglês e grifos nossos]247
Emprestando das palavras de Marochkin, como uma memória do sangue: haveria a
poiésis (MATURANA; VARELA, 1995)248 da russificação do elemento estrangeiro na poesia,
tradição, localidade, cultura, trajetória, música e reconfiguração – passando pelo rock
psicodélico e o hippie, nesse cenário complexo. Todos esses argumentos a ilustrar a
consideração de peculiares elementos que como numa membrana, seriam muitos a mais do que
se presumiria esses oriundos de uma ‘fisionomia monolítica’ propagandeada em discursos
oficiais, resultantes em um suposto ‘isolamento’ – como pressupunha o cenário binário da
política na Guerra Fria. Elementos esses, de cultura e contracultura, que haveriam de passar e
passariam, deixando marcas importantes na caracterização da compreensão acerca dessa
sociedade e seu período. Produto dessa circunstância, situada em um cenário muito mais
conectado aos acontecimentos do globo, do que se poderia supor, a URSS e suas evidências de
rock soviético entrariam em uma nova fase no final da década 1960, contra espinhosas e
perigosas progressões, também de fase, da conjuntura social política, econômica e da artimanha
estrutural de repressão, controle e cooptação.
247MAROCHKIN, Vladimir. 2011a. Op. Cit. 248MATURANA, Humberto; VARELA, Franscisco. A Árvore do Conhecimento: As bases biológicas do
entendimento humano. Trad. Jonas Pereira dos Santos. São Paulo: Editorial Psy II. 1995
164
Retomar-se-á dessas discussões acerca de relações de transição, conflitos entre
privilegiados e desprovidos no cenário musical local, e do suporte necessário à prática do rock
soviético, durante os capítulos que abordarão o ВИА (VIA), as trajetórias de músicos em
profissionalização, os cenários culturais estatal e subterrâneo (bifurcação), e as apresentações
de cada cenário (televisivas x v kukhne). Elementos esses, que na terceira parte, destinada ao
encerramento de toda essa análise do trabalho, se pretende esmiuçar traçando uma fisionomia
mais conclusivamente composta do rock local.
Por ora, como advertido anteriormente (ao final do subcapítulo The Rockets and the
Rock, que remitiu superficialmente as principais bandas do período 1961-70 da URSS), se passa
à análise de fatores e ponderações de cunho político, que tanto quanto ao fenômeno em estudo
neste trabalho – localizado na circunstância do Degelo de Kruschev – contribuiriam a repercutir
na configuração de seu surgimento, bem como na reconfiguração da sociedade local durante
esse período, delineado por mudanças ocasionadas pelo aparato e sua recepção pelo povo, bem
como da resposta popular às transformações no cenário social e político em transição. Mais do
que um mero capricho, colocar esses fatores em complemento à narrativa de entendimento do
rock soviético, colabora a colocá-lo em perspectiva, situando-o no espaço dos acontecimentos
de sua estrutura conjuntural, e a tomar-lhe, portanto, necessariamente, como produto possível
e agente interferente dentro dessa circunstância.
2.2 1960'S LADO B: O REVERSO DA MEDALHA – OU OS LIMITES DO PROCESSO
(CONTRA) CULTURAL
Conforme aludido anteriormente, relevante retomar-se a cronologia desse enredo em
que o rock soviético principia: no período de 1960 a 1970, cenário no qual muitas coisas
mudariam na URSS, com a transição de governo, em 1964, do mandatário Nikita Kruschev
para a gestão de Leonid Brejnev – consoante a estratégia dessa narrativa se organize em
simultaneidade dos eventos do rock na URSS com seu momento político.
Saliente-se, que embora se aproveitando de uma onda de favoritismo popular, com
grande apelo de atitudes modernas, tanto na tecnologia e cultura, quanto na administração –
para recordar, o sucesso dos Festivais da Juventude e aberturas consumistas locais, bem como
o sucesso tecnológico-militar da campanha aeroespacial; além da estabilização econômica sob
comando do outrora premier, Alexei Kosygin – Kruschev não seria entusiasta da chamada
invasão Ocidental e nem apreciador ou consumidor de sua estilística artística (frise-se, gêneros
musicais dela provenientes, como rock ou jazz), a todo o tempo, buscando deixar isto claro e
165
demarcando sua posição de ojeriza no tocante a esta atitude frívola e juvenil – nas palavras do
secretário-geral soviético, em comento à possível apreciação pelo estilo Ocidental de melodia
(1961): Nós terminantemente rechaçamos esta música cacofônica. Esse tipo de lixo não pode
servir ao nosso povo como ferramenta ideológica.249.
2.2.1 Amigáveis Informantes: Os Druzhinniki e a frieza do Degelo
Stáryi Drug Lutche Novhik Dvukh
[Um velho amigo vale mais que dois recém conhecidos]
Provérbio russo
Em meio ao cenário político conturbado um posicionamento particular do Secretário-
Geral em desaprovação ao mote Ocidental, não seria de suficiente convencimento aos olhos das
autoridades, sendo a figura de Kruschev com sua gestão, vista pelo partido como capitulação
dos preceitos socialistas ortodoxos – pela ala mais rígida – e extravagante, reformista – pela ala
moderada.
Afinal, se ele se indispunha com tais manifestações, tinha sido ele próprio a abrir o
precedente para tal, com suas atitudes de autorização às novas modalidades de circulação
cultural e comercial locais, bem como, com seu estreitamento de relações diplomáticas com
países do Ocidente. Tendo de se equilibrar entre sua marca de gestão distanciada do estilo da
de Stálin e simultaneamente, tendo de apresentar uma coerência com a observância do
Comunismo, Kruschev se veria necessitado a tomar medidas que mitigassem em parte, suas
tomadas de postura iniciais – incluindo-se nisso, um substancial retrocesso da atmosfera de
aurora cultural e jovialidade popular. Nesse sentido, especificamente, considerando-se a
questão do aumento de circulação de consumíveis de música do gênero Ocidental, decidiria por
estabelecer para além da fiscalização já existente (do Komsomol e das demais autoridades,
incluindo-se a KGB), uma espécie de brigada popular dos bons costumes – sob o nome de
druzhinniki (os amigáveis ou a irmandade; do russo, druga: irmão; amigo; amigável250). Essa
brigada popular levaria, portanto, a que fosse promovida uma campanha estatal no início da
249SCHWARZ, Boris. Music And Musical Life In Soviet Russia, 1917-1970. New York: New York Norton,
1972; pp. 416-439. 250Na Idade Média (sécs. XII e XIII), durante a unificação do chamado Canato do Rus e Kiev (quando as
populações da região eslava hoje correspondente à Rússia, Ucrânia e Geórgia estavam dispostas em grupamentos
militares semelhantes à cidades-estado), os druzhinniki eram o séquito que acompanhava os líderes
militares/administrativos, como uma espécie de guarda pretoriana e grupo de asseclas de confiança. Fonte:
SCHILLING, 2018
166
década de 1960251 para repressão do comportamento juvenil subversivo. Ainda que não da
maneira hostil como poderia ter sido outrora, mas marcada pela realização de documentários e
cartilhas que seriam produzidos para desincentivar o apego a filosofia de vida Ocidental (como
a dos Stilyagi) e com apelos de reeducar/reengajar os jovens252.
Uma iniciativa estatal estaria em curso e em iminente rota de colisão com a chegada do
rock na URSS – tema do capítulo a seguir – e entendê-la em detalhes, passaria por conhecer o
proceder de sua agenda, seu método e seu grupo. Em revelador registro das ações desse grupo
– Druzhinniki – aqui trazido em exemplar de sua atitude enquanto brigada civil de policiamento
para o aparato, providencial a análise de dois trechos (um de 1 min. 45 sec. e outro de 0:41 sec.,
respectivamente) do filmete estatal Shadows On The Sidewalks, de 1960 (em russo, traduzido
ao inglês e disponível no site Seventeen Moments of Soviet History), cuja transcrição se
procede a seguir:
[0:02]-Nós garantimos a ordem pública porque queremos nossas ruas para se viver como se deve. Nós, que atendemos por um simples nome: druzhinniki. [0:12]-Nós
mesmos somos pessoas dessa rua. Somos os mesmos trabalhadores, inventores,
estudantes, pais e amantes. [0:37]-Nós conhecemos nossa rua pelos rostos, apesar de
estarmos vendo alguns desses rostos pela primeira vez. [0:54]-Nós não costumamos
apenas ficar fitando as sombras. Porque você não encontrará nas sombras esses
pensamentos e sentimentos, que você vê nos rostos ao redor de nós. [1:06] – D-
Druzh!? – Druzh!? – Druzhnik !? – DRUZHINNIKI. Os guardiões do povo! – Não,
eu não o entendo. Eu penso que você não saiba o que está acontecendo aqui... [1:16]-
Nada disso, nós sabemos o que está acontecendo. Nós sabemos o porquê das
celebrações joviais a que nossos bons vizinhos se apressam em chegar. [1:29]-Como
sabemos sobre estes arruaceiros em estado lamentável, tomando lugar atrás da cerca
do local onde se vende a cerveja. [Legendas do filme, traduzidas do inglês]253
251A bem da verdade, a iniciativa dos Druzhnniki surgiria a partir do decreto partidário de 02 de maio de 1959,
onde Kruschev estabeleceria um organograma de atividades e funções voltadas à administração em parceria, entre
aparato e setores civis, criando destacamentos populares de voluntários, incumbidos das funções de segurança,
vigilância, fiscalização, e até mesmo julgamentos (conforme decreto soviético de 03 de julho de 1961). Tal escopo,
bem como a consecução de mais corpos de voluntários durante sua gestão, viria ganhando força logo no início da
década de 1960, com a promulgação do Código Moral do Construtor do Comunismo (apresentado no 22º
Congresso do Partido) e do decreto Anti-Parasitismo, ambos de 1961. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1961 - Anti-
parasite Law. In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003).
Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/anti-parasite-law/; Acesso em: 03/07/2020 252Shadows On The Sidewalks. Documentário disponível a partir do acervo do Arquivo Estatal da Rússia de
Filme e Fotografia de Krasnoiarsk. Ano de realização: 1960. Origem: URSS. Nesse filme, é possível observar-se
a fisionomia dos integrantes do movimento stilyagi, posto que os mesmos sejam censurados e repreendidos durante o exibido no conteúdo áudio-visual. Realizado com intuito estatal de contrapropaganda ao movimento apreciador
de cultura Ocidental e em ação de reeducação juvenil nos ideais partidários e nacionalistas. As tomadas de câmera,
a taciturna expressão dos jovens e os dizeres, traduzidos, de admoestação negativa dos jovens, apontam em que
situação se encontrava o modo de realização do rock russo: tolerado, mas não incentivado, perseguido, mas não
eliminado. Disponível em: Seventy Shades of The Soviet History. Em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-
goesrussian/rock-goes-russian-video/shadows-on-the-sidewalks-1960/ 253Shadows On The Sidewalks. 1 min. 42 sec. 1960. União Soviética. Russian State Film & Photo Archive at
Krasnoiarsk. Rússia. 2000. In: Seventeen Moments In Soviet History: An online archive of primary sources.
1961: Anti-parasite Law; Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-2/anti-parasite-law/shadows-on-the-
sidewalks-1960/; Acesso em: 03/07/2020
167
O excerto em destaque é um filme em preto e branco, falado e musicado, com
acompanhamento por um narrador (do qual as legendas são transcritas, e provavelmente, algum
oficial do aparato, do setor de audiovisual), falando em idioma russo, de maneira eloquente e
objetiva. Tomadas diurnas, em sequência, de uma grande cidade, com seus prédios e tráfego
são mostradas, demonstrando uma realidade soviética urbana e progressista. Embora à porção
soviética, em muitos detalhes, o cenário remete a uma típica fisionomia urbana Ocidental à
década de 1950-60. A população é mostrada, com ênfase, pessoas bem vestidas, homens e
mulheres, a caminho do trabalho ou em deslocamento, trajando vestes de meia-estação (casacos
gabardine e chapéus, para os homens; vestidos e lenços, adornando as mulheres). De repente,
uma figura se distingue na multidão: um homem alto, de boa aparência, com casaco de chuva,
um chapéu ‘Fedora’ e óculos, observa a corrente humana. Leva ao braço uma braçadeira, e nela,
palidamente os dizeres: Druzhinniki. Esse homem se mostra atento e solícito, sempre
observador ao fluxo de pessoas e atendendo a quem lhe pede informações (como um menino,
de boné e casaco, que lhe vem pedir certa orientação e a recebe com o apontamento de uma
direção qualquer). A música de fundo é orquestrada e faz remeter a um dia cotidiano, agradável
e ordeiro naquela cidade, sendo somente interrompida, pelas entradas de voz do narrador.
Num momento clímax do trecho observado (0:54), a canção fica distorcida, parece
cômica, e acompanha a tomada de um indivíduo jovem, em roupas de trabalho, passeando
trôpego pela rua (provavelmente, embriagado), até ser detido por um jovem brigadista, de
braçadeira, com cabelos curtos e capote, o qual interrompe a caminhada do jovem ébrio e lhe
interpela para uma inquisição. Acompanham os dizeres: - Nós não costumamos apenas ficar
fitando as sombras. Porque você não encontrará nas sombras esses pensamentos e sentimentos,
que você vê nos rostos ao redor de nós. A mensagem do narrador dá a entender que o caráter
de aparição de semelhante figura (um ébrio à luz do dia) naquela circunstância, é algo que
destoa e fica inadequado ao padrão habitual e frequente daquela população. Bem como tenta
mostrar, que a ação dos Druzhinniki não se trata de perseguição sistemática das pessoas que lá
transitem, mas, a fiscalização setorial e periódica de certos tipos inadequados. Em seguida, com
a mesma sonoridade distorcida (cômica), faz-se pano-de-fundo ao depoimento de um homem
maduro, visivelmente alterado (sem ser possível saber se trata-se de uma atuação ou da
abordagem real à um embriagado), com roupas amarfanhadas, desalinhado e de barba por fazer,
que balbucia as palavras – Druzh!? – Druzh!? – Druzhinnik!? Que parece confuso ao ser
interpelado por um dos integrantes da brigada civil (o que evidencia ao tentar responder
tropeçando nas palavras). Uma voz direta lhe reporta: – DRUZHINNIKI. Os guardiões do povo!
168
(muito provavelmente, um dos integrantes dessa brigada, a lhe interrogar sobre seu proceder).
Ao que o transeunte embriagado responde: – Não, eu não o entendo. Eu penso que você não
saiba o que está acontecendo aqui – tentando sem sucesso, justificar-se em sua ação, aturdido
pela abordagem e completamente entregue ao escrutínio do seu interpelador (e nesse sentido, a
narrativa deixa passar a noção de implacabilidade dos brigadistas, aos quais, não se cabe
mentir).
Nisso, a câmera corta na direção de uma tomada externa, onde jovens bem-vestidos, de
cabelos curtos e sorridentes passeiam (alguns aparentam ter a braçadeira), acompanhados pelo
narrador nos seguintes dizeres: – Nada disso, nós sabemos o que está acontecendo. Nós
sabemos o porquê das boas celebrações a que nossos bons vizinhos se apressam em chegar.
Essa fala deixa passar a impressão de certa ubiquidade do aparato, como se aqueles indivíduos
soubessem em detalhes cada atitude e cada funcionamento da área coberta por sua vigilância.
Também transparece uma aparente petulância destes brigadistas, como se fossem cidadãos
melhores, mais conscientes que os demais, e por isso, destacados para a presente função.
Finalmente, uma tomada cobre um local com indivíduos bebericando em copos
(novamente, sem ser possível distinguir se atores ou flagrantes reais), em plena luz do dia, num
grupo (composto de desleixados, extravagantes, reunidos taciturnamente, com vestes
desalinhadas e trajando gorros) ao redor de uma sacola, acompanhada da seguinte fala: – Como
sabemos dos lamentáveis arruaceiros tomando lugar por detrás da cerca do local onde se
vende a cerveja. Nisso, a câmera vai acompanhando a breve fuga de alguns deles (que parecem
notar os observadores da brigada), enquanto são pegos por esses brigadistas e conduzidos a um
escritório – pouco antes de o filmete se encerrar – em cuja porta constam, numa placa de metal,
os seguintes dizeres: Dabrovnoy Narodnoy Druzhnyi Po Diriake Obchechstivenoggo Poriadka
[transliteração do cirílico: добровольной народной дружный по дириаке общественного
порядка] – ou Escritório de Voluntários Populares Amigáveis de acordo com a ordem
comunitária [Tradução minha] (aparente sede local da brigada Druzhnniki acompanhada na
filmagem).
A linguagem visual é bastante forçada – o que leva refletir, inconclusivamente, acerca
do próprio caráter do filmete, se de sua natureza, trataria-se de tomadas de abordagens reais
(filme documental), reunidas em forma de produção, ou de uma produção puramente dirigida
(ficção realista), didaticamente orquestrada, conduzida pelo aparato estatal – é de uma forma
tão literalmente maniqueísta (boas pessoas, boa aparência; más condutas, pessoas
169
desalinhadas), que perfaz algo cômico ao fundo de sua interpretação. Entretanto, o didatismo e
a expressividade de valores em códigos visuais/sonoros facilmente acessíveis, bem como
conteúdos educativos (de certo e errado e modos de conduta e padrão fisionômico), também
seriam um traço de herdade presente da trajetória do movimento do realismo concretista. Cujo
objetivo, conforme abordado outrora, seria um vetor educativo com tradução fiel e didática dos
preceitos socialistas, em veículo de arte, num modo e linguagem amplamente acessíveis a
quaisquer dentre os distintos tipos de cidadãos soviéticos.
Não obstante, tornando-se ao momento de existência dessa brigada popular, Druzhnniki,
cabe evidenciar que viria na esteira de uma série de medidas tomadas por Kruschev, no intuito
de controlar as atividades populares, sem arranhar sua, aparente, postura simpática. Sutil
estratagema: de forma distinta da do seu antecessor, Kruschev tornaria a União Soviética um
Estado mais vigiado e, em certo ponto, controlador do que o antecedente (HORNSBY, 2013),
com a distinção de uma metodologia de trabalho.
Para começar, tal descentralização das funções estatais para setores populares, como no
caso dos Druzhinikki, seria uma estratégia do mandatário de manter sua reputação menos
repressora em relação a do anterior (Stálin), mas simultaneamente, cooptando de seu bom apelo
popular, o protagonismo de funções, em meio ao povo, da manutenção do Socialismo em seus
preceitos – infiltrando e desse modo, pulverizando a função fiscalizadora/repressora entre
populares da URSS. Ora, fosse uma autoridade da KGB a tomar tal função, diretamente e de
maneira truculenta, seu governo de bom-mocismo ficaria descaracterizado. No entanto, ao
utilizar-se de gente do povo, não diretamente ligada ao aparato, tais ações ficavam como de
iniciativa orgânica da própria população, cumprindo-se a finalidade pretendida pelo Estado, e
dando oportunidade de protagonismo civil nesse policiamento para uma parcela conservadora
do povo. A qual, extremamente grata por ter uma oportunidade de devolver a Kruschev, com
seu zelo pelo Socialismo, às benesses angariadas por sua gestão menos severa que a do período
stalinista.
Os Druzhnniki ganhariam ainda mais força a partir do 22º Congresso do PCUS, em
1961, com a proposição do Código Moral do Construtor do Comunismo e do decreto Anti-
Parasitismo. No primeiro, o Código do Construtor do Comunismo, ficariam estabelecidas as
normas de proceder de cada cidadão, com regras simples, totalizando cerca de doze
apontamentos principais, abordando temas em torno de: sexo, família, comportamento, amor,
atitude política e civismo. Como principal tópico, o princípio de lealdade extrema ao
170
Comunismo e a ideologia de submissão da vontade particular ao interesse público, procurando-
se por meio disso, investir a que o povo soviético levasse à sua esfera íntima, não apenas uma
relação fisiológica aceitável do aparato, mas ainda, fizesse o máximo enquanto esforço
individual pela supressão de interesses privados em nome de uma cordialidade coletiva. Em
outras palavras: um livro de cabeceira de como se comportar, pública e privadamente,
administrando a adequação harmônica de interesses domésticos (individuais) e públicos. Não
obstante, para fazer valer tais predicados, compunha-se uma rede de cooperação, a contar com
a União do Comércio, o Komsomol, os Druzhnikki, Sindicatos, setores partidários, instituições
de ensino e demais entidades, estatais e civis. A medida vinha acompanhada de uma série de
enfatizações de que a individualidade não fosse apenas controlada, mas suprimida,
paulatinamente em um interesse social. Curiosamente, a estratégia viria em administrar a
distribuição dessa ‘individualidade’ pulverizada como recompensa à sociedade que passava a
se comportar sob a nova etiqueta (respondendo como uma reafirmação de seu compromisso de
obediência ao Estado), oferecendo-lhe ‘alegóricas’ concessões à liberdade individual, tais
como: reestruturação e afastamento paulatino da polícia (KGB) da vida dos cidadãos; facilidade
majorada na aquisição do direito de divórcio; construção de moradias com maior conforto e
adequação de instalação familiar; temas literários e cinematográficos que exploravam a faceta
individual da personalidade, como contribuinte (e não entrave) a cooperação social (doutrina
do herói que cada um pode ser, só depende de você)254.
Pelo segundo ato, Lei Anti-Parasitismo de 1961, ficava estabelecida uma forma de
combate às possíveis violências a que se sujeitavam os trabalhadores na época de Stálin, quanto
à questão laboral. Dificuldades de mudar-se de emprego, poucas permissões de saída e dispensa
compulsória, ficavam atormentando cidadãos e sindicatos ao redor da União Soviética. Embora,
desde o primeiro Plano Quinquenal (1928-1931), já se alardeasse a meta atingida de cem
porcento de aproveitamento do efetivo de trabalho na União Soviética – algo que só se viria
concretizar ao longo da década seguinte (SIEGELBAUM, 2003). Por esse modo, Kruschev
previa que a lei vinha reforçar o compromisso com o trabalho duro e a assiduidade, mas
simultaneamente, tornando as garantias pleiteadas uma realidade menos complicada que a do
cenário da gestão anterior. As reformas laborais começariam desde o ano de 1955 e se
consubstanciariam em decreto apenas no começo da década (1961). Como visto no depoimento
254FIELD, Deborah. 1961 - Moral Code Of The Builder Of The Communism. In: Seventeen Moments of Soviet
History: An online archive of primary sources (2003) Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1961-
2/moral-code-of-the-builder-of-communism/; Acesso em: 03/07/2020
171
de um dos músicos entrevistados por Cushman (1995), o crime de vadiagem era algo bastante
grave na sociedade soviética e ter consigo a carteira de trabalho (trudovaia knidzhka), tornava-
se um comportamento obrigatório, a fim de se conferir se os dias de jornada estavam sendo
cumpridos e se a frequência de local e comparecimento batiam com a função de cada cidadão
– e conforme observado, essa tradição se reforçaria durante o Degelo.
Desdobramento dessa linha de pensamento que culminaria nas reformas, a atuação dos
Druzhnniki seria voltada a monitorar, principalmente, bêbados eventuais, arruaceiros, vadios
contumazes e todo e qualquer evadido do sistema, passível de ser enquadrado na categoria de
parasita. No entanto, conforme Hornsby (2013), esse escopo de combate à inadequação ao
trabalho, seria utilizado com finalidades muito amplas, rumo a enquadrar dissidentes políticos
e outros indivíduos indesejáveis. Assim como observado por Siegelbaum (2003), de que o
Código de Conduta Moral do Construtor do Comunismo encontraria obstáculos em seu intuito
de diminuir o ‘individualismo’255 na sociedade soviética ao fortalecer-se seu uso civil em
práticas de próprio benefício (ampliando atitudes individualistas dos cidadãos, ao invés de
dissuadi-las), a Lei Anti Parasitária, serviria, a uma distorção de proporções perigosas, a qual
mais se adequaria a caracteres obscuros dos planos de Kruschev: a progressiva intrusão do
Estado no cotidiano popular e o uso de medidas alternativas de apenamento e repressão, com
uma face aceitável à agenda do Degelo.
Como anunciado em seu discurso de maio de 1959 (publicado no Pravda), com a
seguinte declaração: Àqueles que clamam oposição ao Comunismo [...] inclusive agora,
podemos assegurar que exista quem contra ele lute [...] Só podemos dizer uma coisa acerca
dessas pessoas: seu estado mental não é normal (HORNSBY, 2013; p. 240) – a literalidade (ou
não) da metáfora do mandatário haveria de ser observada.
2.2.2 Uma Forma Muito Interessante de Psicose: o raio-x de uma abordagem nada
amigável – entre a voz de um bardo e o eco do manicômio estatal
Nascido em 1957, se revelara desde cedo dotado de uma inteligência descomunal, constituindo
precocemente um prodígio [...] Fôra internado diversas vezes desde o sétimo ano por seu
comportamento excêntrico e fora expulso do instituto superior por aproximar-se de literatura ilegal
[...] O tratamento para os indivíduos considerados esquizofrênicos, à base de injeções de insulina e a alimentação pesada, administrado pelas instituições estatais de tratamento psiquiátrico soviéticas,
embotava a mente dos indivíduos e estes viviam a ver a vida em preto-e-branco, a partir daí. No
entanto, com ele não funcionara, após sua derradeira internação, próximo ao início dos anos 1980,
saíra em peregrinação e se refugiara nas florestas da Carélia.
255Como visto, o individualismo seria um gargalo na sociedade soviética: por distintas óticas de referencial, visto
pelas autoridades da administração como presente e crescente e pelos indivíduos, cidadãos, como diminuto e quase
imperceptível.
172
Sergey Vasilenko (2020), em relato acerca de Alexandr S., um dissidente local e expoente asceta soviético dos anos 1970, praticante de meditação indiana e pregador religioso cristão, enquadrado em
distintos momentos com suposto diagnóstico de esquizofrenia
Quando lá atrás, ao citar-se o surgimento do rock na União Soviética, fez-se a menção
precursora do grupo Revengers, na Letônia, logo no princípio da década (1961), por fluidez da
narrativa, optou-se por não mencionar o conturbado contexto político e social que se
desenrolava no cenário local. Como visto, desde o final da década de 1950, embora o estado
sob Kruschev se encaminhasse para as características mais suavizadoras do Degelo, haveria a
necessidade de reafirmar sua imagem perante seu coletivo político diretivo e ainda, manter-se
a respeitabilidade de seu governo diante de mais de vinte nações. A tomada de medidas
descentralizadoras de tarefas fiscalizadoras/policiais, ora ocupadas pelas militsyia (equivalentes
aos corpos policiais ocidentais, chefiados pelo MVD e posteriormente pela KGB), para
formação de brigadas de cidadãos (Druzhinniki, estabelecido em decreto de 1959), bem como
a atuação de outros grupos nessas atitudes de policiamento civil (como o próprio Komsomol, e
as ligas de comerciantes/união do comércio), colaborariam a fazer uma imagem atenuadora das
iniciativas de coibição e repressão estatais, visto que seriam interpretadas mais como de
iniciativa local, cidadã e menos, francamente, relacionadas ao aparato.
Com esse mesmo intuito, e por volta dessa mesma época, o uso do artigo 58-10 da
Constituição Soviética (sancionado entre 1959 e 1960), referente às diretivas de hospitalização
imediata de pessoas mentalmente perturbadas que constituíssem perigo social256, começaria a
fazer valer com grande substancialidade ao procedimento de monitoramento e persecução de
elementos não assimiláveis à realidade soviética. Conforme retirado da obra Protest, Reform
and Repression in Kruschev ́s Soviet Union (2013; disponível em inglês e aqui traduzida nas
passagens pertinentes), do historiador inglês Robert Hornsby, no capítulo The Application of
Force [Trad. livre: A Aplicação da Força] (pp. 237-52), demonstra-se como foi que a internação
psiquiátrica tornou-se um dos meios mais recorrentes de política punitiva contra dissidentes
durante o período Kruschev (ao lado dos já conhecidos campos de trabalhos forçados e das
prisões).
Nesse sentido, o autor analisa como as diretivas de hospitalização estabelecidas em
1961, dirigidas aos mentalmente perturbados (classificados como perigosos socialmente),
256HORNSBY, Robert. Protest, Reform And Repression in Kruschev Soviet Union. Reino Unido: Cambridge
University. 2013. p. 247
173
continham provisões médicas genéricas o suficiente a permitir um escopo bastante amplo de
justificativa à imediata internação forçada de indivíduos (HORNSBY, 2013; p. 247). Essa
prática, conforme o autor observa, vinha ao encalço da Lei Antiparasitária de Kruschev, e
colocava a noção de parasita social em uma consideração muito vaga, podendo se estender
desde aos já evidenciados evadidos do trabalho, bêbados e arruaceiros, até dissidentes do
sistema político. Para reforçar esse argumento, são citados pelo autor entre outros documentos,
laudos atribuídos durante a década em curso. Um emblemático caso marcaria evidência da
sistemática de punições psiquiátricas por motivo político: o arresto de Yuri Grimm e Petro
Grigorenko, cidadãos soviéticos internados no Hospital Psiquiátrico de Leningrado, em julho
de 1961, após incidentes de protestos e panfletagem contra o governo (com o agravante de uma
atribuição a Kruschev da recriação do culto à personalidade, algo que enfureceria o mandatário,
já temperamental a críticas; HORNSBY, 2013; p. 244). Yuri e Petro, só seriam soltos em 1964,
quando da assunção do novo governo soviético, e estariam ladeados por outros exemplares, que
segundo Hornsby (2013), seriam vítimas desse mesmo enquadramento por circunstâncias
políticas de discordância ao regime – Petr Estaf ́ev (março de 1960), Kasim Minibaev (julho de
1960), Vasili Lopatin (janeiro de 1964), entre outros [p. 241]. O autor salienta ainda, que o
tratamento de dissidentes incluiria em seus motivos, também o caso de jovens evadidos do
serviço militar e até mesmo escritores proeminentes investigados por crimes de opinião ao
período (como Mikhail Maritsa, autor de A Canção Não Cantada [p. 244] e Valery Tarsis, autor
de A Garrafa Azul [p. 241]).
No perfil desses internados, as estatísticas apontariam tratar-se majoritariamente de
sujeitos do sexo masculino (92,7 % dos pacientes com arquivos encontrados), na faixa etária
variante entre 20-35 anos, contendo o período de internação média de cinco anos e meio de
duração e residentes na porção urbana da União Soviética – muitas das características das quais
partilhavam integrantes do próprio movimento do rock soviético, em geral. Embora, como
ressaltado pelo autor, de grande dificuldade a catalogação do material desses arquivos médicos,
sua notória existência seria registrada em obras de outros importantes autores referindo-se ao
regime – como no caso, o relato de experiência do dissidente político soviético Vladimir
Bukovsky, cito anteriormente aqui no trabalho em notas referentes a censura, pelo conteúdo da
obra How To Build a Castle: My Life As A Dissenter, de 1979. Ponderando acerca dessa
questão, o autor refletiria que:
Uma das mais compelidas peças de evidência a sugerir essa alegação de que a
habilitação da prática de internar dissidentes tenha provindo do mais alto escalão, veio
à tona em maio de 1959, quando o Pravda publicou um recente discurso de Kruschev
174
(cujo conteúdo emblemático, foi citado no final do subcapítulo anterior) [p.240]
Sobre essa política em questão, há um ponto mais amplo a ser visto aqui, o de que
possivelmente, o uso punitivo da Psiquiatria tenha oferecido às autoridades como que
uma via colateral para lidar com indivíduos problemáticos: uma forma de conduzir a
repressão política sem ter de fazê-la pala base formal. O uso de diagnósticos médicos,
proveria tudo de uma importante dose de legitimidade, dado que fossem conferidos
por médicos, muito mais do que atribuídos pelo mero aparato penal. De fato, na teoria
ao menos, à imagem exterior, a hospitalização era assim apresentada como uma forma
de terapia e amparo [p. 245] [Tradução e grifo nossos]257.
Considerando-se os argumentos trazidos até aqui, o princípio da década de 1960 na
União Soviética não seria apenas marcado por Gagarin e a Vostok ou da aurora cultural de
novas práticas, seria também o aumento sutil da vigilância em torno de elementos subversivos,
no terreno perigoso da intromissão estatal – do patrulhamento civil à internação psiquiátrica.
Cujo destino incerto àqueles que destoassem dos preceitos do regime vigente poderia ser de
proporções catastróficas. E tudo isso, amparado com arcabouço legal e chancelado pelo birô
político, garantindo assim, a preservação da imagem de amigabilidade relativa à política de
Kruschev. Assim, atentando a essas evidências, torna-se um pouco mais inteligível a análise de
um segundo excerto do filme Shadows On The Sidewalks (1960) – cuja primeira parte da
descrição principiou-se aqui no subcapítulo anterior. Nesse trecho (apresentado a seguir),
observa-se uma abordagem dos druzhinikki em torno de jovens locais supostos
consumidores/disseminadores de cultura musical Ocidental clandestina – onde aparecem
evidências de como se realizavam algumas das estratégias de coibição e repressão à circulação
informal de cultura:
[0:10]-Isto fez mudar a esses jovens os quais trocaram suas escolas pela porta dos
fundos da GUM. É aqui onde eles vendem os produtos de sua própria produção.
[0:20]-Fox Trots em chapas de raio-x, que por seu exemplo levam simultaneamente
gravadas a escassa anatomia de sua pobreza espiritual [0:35] – Hei, Zhenia Gorkum,
o que o mundo lhe parece por através desse estreito buraco de um raio-x de rock
n`roll? [Traduzido do inglês]258
Nesse segundo excerto do filmete estatal produzido no contexto da gestão Kruschev, ao
início da década de 1960, continua-se a cobrir as ações de patrulha e abordagem dos
Druzhinniki, dessa vez, começando a cena com uma reunião de jovens, amealhados em pé na
calçada de uma movimentada rua, em torno de uma escadaria à sombra por sobre cuja soleira
se encontram dispostos alguns materiais. Esses jovens (cinco, do que se pode divulgar na
imagem), aparentam recém ter saído da adolescência, são rapazes e apresentam-se vestidos em
casacos gabardine longos (capotes de chuva), com calças sociais e sapatos, e utilizam cabelos
curtos (pouco mais compridos que os dos integrantes da patrulha civil, mas com alguns
257HORNSBY, 2013. Op. Cit. pp. 240-245 258Shadows On The Sidewalks. Op. Cit.
175
penteados menos formais). A filmagem toda possui as mesmas características anteriormente
citadas (em preto-e-branco, com narração, tomadas em justaposição, etc.), posto tratar-se de
trecho subsequente do mesmo filme já principiado em análise.
Na primeira incursão do narrador no trecho em análise (0:10), a fala começa com o
pronome indicativo isto – Isto fez mudar a esses jovens, os quais trocaram suas escolas pela
entrada dos fundos da GUM ... = referindo-se ao ato perpetrado (venda clandestina) sob a
influência negativa da música Ocidental, onde segue descrevendo que seus jovens protagonistas
ficam localizados nas portas dos fundos das lojas de departamento estatais (GUMs),
aproveitando-se do fluxo de francos consumidores desses locais, para convenientemente,
distribuírem de modo colateral os produtos informais. Os magazines estatais (lojas de
departamentos) representariam durante a vigência do regime socialista, o meio principal de
contato com os chamados bens de consumo, sendo, portanto, àquele momento (e durante toda
a duração da União Soviética), espaços de grande circulação de pessoas nas capitais soviéticas,
aonde as famílias e seus filhos, jovens, iríam adquirir os bens de consumo disponíveis no
mercado local.
A narrativa parece inferir com a observação, de que a música Ocidental viesse a deturpar
o comportamento juvenil ali protagonizado, fazendo migrar da conduta desejável da frequência
escolar a uma atitude decadente de produção clandestina de gêneros musicais ocidentais. O fato
de enfatizar-se o ‘produto de sua própria produção’, não apenas se reveste de tom recriminador
ao ato clandestino e por si, precário da qualidade dos produtos, mas ainda transborda o tom de
que, segundo a lei local – durante todo o regime soviético, como visto nos subcapítulos
anteriores com os casos do radialista Andrei [Tropillo] e do músico Yuri Morozov;
CUSHMAN, 1995 – o produto confeccionado pudesse provir de desvio de uso de material de
utilização estatal, constituinte de crime apenável pela Constituição Soviética. Entretanto,
conforme se pode observar mais adiante, a brecha utilizada pelos integrantes dessa rede de
distribuição sub-reptícia, seria justamente a imprevisão legal de tipicidade penal para produtos
decorrentes de produção doméstica (a partir dos magnitofon/ gravadores e tocadores de fitas-
cassete e discos) – recaindo-se, no máximo, em contravenção de comércio ilegal ou repreensão
por conta de seu conteúdo não-patriótico.
Daí entender-se o porquê, supostamente, de a abordagem ser realizada pelos
Druzhinniki, pois se o delito fosse de maior gravidade, a autoridade penal seria da própria KGB.
Assim, simultaneamente ao desfecho da narrativa inicial, a imagem mostra a emboscada dos
176
integrantes da patrulha civil, que aparecem e abordam os rapazes, apontando os indivíduos do
grupo e levando-os conduzidos pelos braços até um veículo específico (possivelmente, uma
viatura da patrulha).
Na segunda incursão do narrador, durante sua fala, são exibidos os jovens abordados em
um procedimento que se assemelha ao de um interrogatório (conduzido por um sujeito maduro,
de cabelo impecavelmente engomado e aparência séria, provavelmente, autoridade em uma das
sedes da patrulha), onde são apresentados os produtos da apreensão: pequenos discos feitos de
chapas de raio-x, contendo – segundo a averiguação daquelas autoridades – músicas de
conteúdo Ocidental. Nisso, aludindo ao conteúdo gravado, uma música de fundo é reproduzida,
enquanto um aparelho de som na sala toca um dos discos; mas pela edição de imagem, não se
pode afirmar se provém, de fato, do material apreendido. O caráter artesanal dos discos fica
evidente, pois seus formatos não são bem acabamentados e quando fora do toca-discos, suas
finas superfícies enrolam-se por sobre as mãos do fiscalizador e de um dos rapazes que aparenta
tentar explicar a procedência desse material.
A fisionomia dos rapazes durante o referido trecho (interrogatório) é constrangida, com
aparente tensão no olhar. Um dos presentes mastiga macilentamente uma goma de mascar,
talvez propositadamente selecionado pelos idealizadores das tomadas, para evidenciar o tom de
desprezo pela autoridade presente. No entanto, pode-se perceber que o olhar do rapaz contém
o cenho franzido e o mesmo evita – bem como todos os demais jovens do filme – olhar
diretamente para câmera ou para o fiscal, limitando-se a fitar o chão ou a direção do aparelho
de som posicionado na sala. A função dessa tomada sugere um tom moralizador da parte do
aparato, que embora operando pela ação descentralizada dos Druzhnikki, inspira consequências
e transforma o registro em um momento de reflexão e admoestação aos jovens: acerca da
pobreza de caráter contida na atitude, tanto da clandestinidade, quanto do conteúdo veiculado
(em referência pejorativa à música Ocidental). Com grande mordacidade e categoricidade, o
narrador estabelece uma analogia entre conduta, confecção e artefato, evocando um tom
mórbido, com resumo na frase: Fox Trots em chapas de raio-x, os quais por seu exemplo levam
simultaneamente gravados a escassa anatomia de sua pobreza espiritual.
Nessa menção específica ao ritmo foxtrot, apresenta-se a constatação de referência ao
ritmo estadunidense, um dos conteúdos da veiculação/reprodução clandestina, que contribui a
reflexão sobre o momento vivido pela música Ocidental em terreno soviético: o rock que
chegaria à região, ainda seria o mesmo veiculado no princípio do movimento nos Estados
177
Unidos, e boa parte da influência de músicas ocidentais também proviria de outros gêneros
musicais já consagrados há mais tempo que o novíssimo rock n´ roll e, portanto, mais
disponíveis – como o jazz e o foxtrot – que inclusive, guardariam certa similitude sonora àquele
período, com o ritmo em surgimento (FERRI, 2001). Quanto à técnica de gravação, fazendo
alusão a uma outra estratégia da Magnitofonnaia Kul´tura (cultura da reprodução de fitas-
cassete), encontra-se a confirmação daquilo que evidenciado pelo jornalista britânico Pete
Paphides, e aqui trazido em comento à sua reportagem anteriormente mencionada, Bone Music:
Bootlegs of Beatles Pressed in X-Rays (THE GUARDIAN, 2015), de que sim, tenham havido
e se disseminado na porção soviética, os discos produzidos clandestinamente utilizando a
prensagem de acetatos de raio-x – chamados de roentgenitzdat [gravados em raio-x] – como
forma de solucionar a escassez de acesso ao recurso do vinil (cuja produção e distribuição era
de monopólio estatal local). No exemplo citado na matéria do jornalista, já sucedendo à
veiculação de foxtrote e rock n ́ roll primevo, ressaltaria-se uma maior atenção ao caso da
reprodução informal local de músicas dos Beatles, mas a despeito disso, fica atesto que o
veículo utilizado para essa reprodução alternativa já era de conhecimento pregresso (à própria
beatlemania) pela juventude local.
Por derradeiro, na parte que encerra o trecho escolhido para análise do filme (0:35), a
narrativa se dirige especificamente a um dos integrantes do grupo contraventor (referindo-se
pelo nome Zhenya Gorkum, usando de uma evocação a partir de um cognome masculino muito
corriqueiro na Rússia, Zhenya [diminutivo do nome Evgheni; apelido]; e que poderia ser, de
fato, pertencente a um dos interrogados). A narrativa interpõe uma espécie de inquisição acerca
da natureza de sua atitude, como que, em complemento ao tom moralizador citado outrora, se
buscasse recuperar desse indivíduo o senso de absurdo e desperdício de potencial do que
estivesse fazendo: Hei, Zhenya Gorkum, que o mundo lhe parece por através desse estreito
buraco de um raio-x de rock n´roll? Novamente, apelando para incitar no(s) jovem(ns), a
reflexão entre a atitude deplorável e o destino certo de um desagradável desfecho (‘estreito
buraco’), relacionando esse desfecho em uma analogia entre o caráter objetual dos discos (raio-
x) e de seu conteúdo (rock n ́roll) – perpetrados na atitude contraventora.
Se parece fácil após esses eventos e situações, considerar que apenas o rock local do
período sessentista não tenha se desenvolvido sem obstáculos, deve-se levar em consideração
que a iniciativa dos Druzhinniki, tenha durado até o evento da dissolução da União Soviética
(em 1991). Além disso, também a política de repressão psiquiátrica, atingiria seu topo após o
período, durante o princípio da década de 1970, sob o governo de Leonid Brejnev (HORNSBY,
178
2013). Não obstante, ao se considerar as medidas tomadas pelo aparato com essas sutis formas
de repressão, há que se levar em conta a proporção que a própria cultura musical local, em geral,
vinha tomando na União Soviética.
A música seria um ponto importante na curva da cultura e da postura educacional sob
Kruschev: durante o Degelo, a chamada massovaya pesnya (canção de massa) seria
transformada na Sovietskaya Muzika (Música Soviética) – reunindo os estilos englobados pelo
gênero anterior e açambarcando os demais, como o Estradnaya Pesnya (Estrada) e o Bitovaya
Pesnya (dos quais já se falou anteriormente). Do ponto de vista da música erudita, sob a linha
chancelada pela estética estatal, durante o Degelo, se observaria na música clássica um aumento
da possibilidade experimental, incursões em outros estilos, devido ao relaxamento das
exigências junto ao padrão do Realismo Concretista. Imbricações com ritmos provenientes do
Ocidente, como o Jazz – introduzido à década de 1920, por Valentin Parnakh e que sofrera
oscilações de aceitação durante o período stalinista259 – trariam uma composição diferenciada
ao repertório do aparato e sua música orquestrada. Também fariam fomentar, como outrora
descrito, a primeira rede de movimento subterfugioso de circulação musical Ocidental soviética
– os outrora mencionados, Stilyagi.
Já na musicalidade popular, haveria a disseminação do gênero Estrada (da Estradnaya
Pesnya; Canção de Palco/Apresentação), com aumento no investimento performático solo,
cujas exibições vocais excelentes seriam acompanhadas por coro ou orquestra, protagonizadas
por instrumentistas e compositores locais (filiados a RAPM, ao Coletivo de Produtores de
Música [ProKoll], ou a União dos Compositores da União Soviética, entre as principais
agremiações estatais), fazendo requerer do aparato uma atenção toda especial acerca da questão
etapística de seu controle de produção/veiculação. Pois, embora a suposta aurora cultural de
Kruschev avançasse, as características estatais de controle permaneciam, tornando impossível
uma realização totalmente autoral ou protagonística, pela via oficial, das apresentações e da
produção dos artistas locais. Embora um músico tivesse uma voz proeminente e boas ideias às
canções, ou mesmo habilidade nos instrumentos, cada função ficaria, em geral, setorizada a um
segmento autorizado dos componentes musicais (letras, com os compositores;
259Desde a sua introdução, o jazz seria um elemento mais assimilável à realidade de censura soviética, por sua
associação com a comunidade afro-americana, tida como uma resistência ao establishment estadunidense.
Entretanto, como outros ritmos cosmopolitas estrangeiros, passaria nos anos 1940 pela campanha do Terror
Zhdanoviano do pós-guerra, com (re)asseveramento da intolerância aos ritmos não autóctones e partidariamente
alinhados, até a chegar-se à década de 1950, onde evidenciaria-se um ligeiro surto do estilo por meio de samizdat
e circulação de produção fonográfica alternativa.
179
acompanhamento instrumental, com os músicos; conferência, autorização e veiculação das
músicas, com o aparato). Da Era do Degelo pelo regime soviético adentro, entre os nomes
expoentes da indústria cultural soviética oficialmente suportada, figurando importantes e
consagrados na popularização e crescimento do gênero Estrada, destacariam-se: Eduard Khill,
Vadim Mulerman, Lyudmila Senchina, Edita Piekha, Heli Lääts, Uno Loop, Maya
Kristalinskaya, Anna German, Valery Obodzinsky, Muslim Magomayev, Lyudmila Zykina, Alla
Pugacheva, Valery Leontiev, Vladimir Troshin, Sofia Rotaru, Lev Leshchenko, Iosif Kobzon,
Valentina Tolkunova e Sergey Zakharov – entre outros260.
Com uma revolução no sentido do consumo, que agora angariara a veiculação doméstica
com os magnitofons, e um surto de apelo popular em seus gêneros musicais, não tardariam
aparecer fenômenos em simultâneo por canais alternativos da cultura oficial local. Assim,
antecedentemente ao papel desempenhado pelo rock nesse processo de guerrilha cultural,
haveria a aparição de precedentes locais que, mais importantemente do que um produto de
mídia exterior, trariam consigo o brilhantismo da persistência diante da estrutura institucional
e a utilização dos mecanismos clandestinos de reprodução fonográfica. Estes que, muitas vezes
aliados a circunstância desafiadora de uma proveniência local – como se ilustra a seguir, na
crônica em torno da obra do bardo moscovita Bulat Okudzhava.
A história do músico, desde o princípio, esteve ligada à sua cidade natal (a capital russa,
Moscou), onde se faria cantor e compositor dos detalhes da realidade sórdida e sublime dessa
importante cidade. Dotado de uma voz anasalada e pouca virtude como violonista, o grande
trunfo de Bulat Okudzhava seria a sensibilidade de suas composições, falando de momentos
tristes da guerra, as dores da luta cotidiana no trabalho e pelo sustento e as alegrias comezinhas
da gente sofrida da capital e seus arredores. Seu estilo apegado à uma tradição decana da Rússia,
a dos bardos cantantes, fazia com que sua aceitabilidade pelo aparato fosse algo mais tolerada
que a do polêmico ritmo estadunidense. Entretanto, sem a necessária adesão ao esquema de
associação partidária, bem como sem a apropriada submissão ao esquema de produção do
circuito local, quer de músicos, quer de compositores e ainda, trazendo suas letras contundentes
e críticas, embora de maneira singela, da realidade local, ocasionaria que Okudzhava fosse
tomado como mais um entre os indesejáveis à gravação pelo selo estatal (Melodiya), a resultar
que seu sucesso disseminado só pudesse provir de uma fonte: a distribuição clandestina de suas
260KELDICHA, 2000. Op. Cit.
180
apresentações locais, gravadas e copiadas a partir de matrizes originais, registradas por pessoas
próximas do artista.
Assim, repentinamente, no começo da década de 1960 e muito antes da revolução da
reprodução fonográfica em fitas-cassete – nos anos oitenta – citada por Cushman (1995) e
Marochkin (2011a), Okudzhava se tornasse no princípio da década de 1960, um grande
fenômeno cultural, poético e fonográfico pela magnitofonnaia kul´tura em grande parte da
União Soviética261.
Tornando-se ícone entre os artistas de sua época e aclamado pelo povo, Bulat
Okudzhava seria responsável pelo primeiro grande fenômeno da Magnitofonnaia Kul´tura262,
que caracterizado pela música barda263 russa, observado de perto pelas autoridades, mas
inatacável em muitos aspectos por seu apelo junto ao público – em mais um exemplo de agência
cultural dentre os eventos dessa narrativa soviética264.
Se Bulat Okudzhava conseguiria estimular uma rede informal de disseminação, mais
marcante seria esse caráter de sua intocabilidade perante o Estado. De mesmo modo, mas por
motivos distintos, essa intocabilidade seria partilhada pelos pioneiros do rock soviético, devido
a ocuparem uma camada privilegiada de estudantes universitários e filhos de oficiais e
diplomatas. Mas, e como ficaria a situação de indivíduos comuns, aqueles sem credenciais ou
amigos que as tivessem, como ficariam diante das exigências dessa intromissão/persecução e
outras demandas institucionais?
261GELDERN, 2003. Op. Cit. 262Isso, considerando-se que o Jazz dos Stilyagi, mais fosse associado ao samizdat (publicações clandestinas sobre
música) do que propriamente as gravações, bem como a atuação dos jovens disseminadores de roentgenitzdat,
fosse mais comezinha, de menor aporte e com apreciação local nas capitais (Leningrado e Moscou). Enquanto que,
Okudzhava, se tornaria célebre com sua música por uma grande extensão da União Soviética, àquele momento. 263Esse estilo de canção na realidade local ocuparia um posto semelhante ao do estilo Estrada, porém com apelo e
proveniência estritamente populares, tradicionais e não necessariamente produzidos pela indústria cultural oficial
soviética. Isso porque, ante a necessidade de absorção do trabalho de integrantes da classe artística filiada ao
estatalmente, a figura do bardo cantante, por sua interpretação cumulativa das funções de composição, voz e
instrumento em uma figura só, restaria como uma forma contraventora às predições de adequação locais, só podendo vir a ser realizado, por poucos indivíduos, e em geral, passando por eventuais restrições. Ainda assim, no
caso citado, o músico moscovita se tornaria um fenômeno e abriria caminho para outros intérpretes: como o
emblemático Vladimir Vysotsky, o qual além de músico, figuraria com grande sucesso na televisão local e na
dramaturgia. Aliaria, assim como seu predecessor, a experiência de uma consideração proscrita, conciliando
momentos de repressão (contando, embora afamado, com poucos álbuns gravados, produto da perseguição ao seu
estilo de vida intimorato) e de relativa liberdade (como por exemplo, a possibilidade de apresentações nos EUA e
na Europa Ocidental durante os anos 1970), e seria tido, sob o olhar oficial, mormente como um dissidente cultural
na URSS, sendo considerado por aclamação popular (e reconhecimento de outros artistas) um dos mais importantes
poetas marginais da geração dos anos 1960-70. 264GELDERN, 2003. Op. Cit.
181
Deve-se tomar em consideração, antes de responder-se a essa pergunta, um pouco do
que seria uma trajetória de vida segundo os padrões de adequação locais. As escolhas de ir
afinizar-se a carreiras institucionais, partia da formação, e essa, seria a baliza de diferenciação
entre as camadas dessa sociedade. Não obstante, a faixa etária onde se haveria de tomar tais
decisões, seria marcada por conflitos e indecisões: a juventude, momento que seria tomado de
pressões familiares, patrióticas e ideológicas por opções de estabilidade. Há que também se
recordar que entre os apreciadores do ritmo contraventor, muitos desses jovens seriam rapazes,
e por conta da legislação local, haveria-se de passar pelo cumprimento do serviço militar
obrigatório. Esse momento da vida juvenil se tornava uma espiral de aborrecimentos, devido
ao constrangimento de ir ingressar-se o caminho de uma vida socialista conformada (zhisnenyi
put )́, num Estado envolto em ufanismo e valores militares, que constantemente precipitado em
conflitos: arrastando consigo, cidadãos ao risco da carreira das casernas (e no horizonte real de,
porventura, sair-se sacrificado durante tal processo) ou ao perigo de evadindo-se desse, ficar-
se à margem da estrutura social como um parasita, sendo até mesmo, passível de enquadramento
penal por isso. Assim, não raras vezes, essa tensão exacerbada se tornava um suplício e a
perturbação chegava a tal ponto que em muitos desses indivíduos tensionados, chegava-se a
opção por uma solução capital – pelo suicídio.
Vê-se em Cushman (1995; p. 61), a investigação dessa circunstância, ao perceber em
muitos dos seus entrevistados masculinos, escoriações específicas na região dos pulsos,
evidências de tentativas mal-sucedidas do propósito em questão. O autor salienta que tudo isso
seria preferível ao ingresso na mais alienante e horripilante instituição do mundo soviético –
o serviço militar. Não obstante, haveria também um componente, por vezes, de picardia nessa
atitude, onde as escoriações podiam ser feitas propositadamente e serviriam de indício a um
afastamento da obrigatoriedade militar, por demonstração de insanidade. Conforme se explicará
a seguir, a via do tratamento psiquiátrico não seria apenas uma alternativa aproveitada pelo
aparato local para tratar os indesejáveis, mas como subterfúgio, serviria ao intuito desses
próprios indesejáveis de conseguirem afastar-se de incumbências legais torturantes. Por um
método extremo, uma convicção e alguma consciência do funcionamento burocrático local,
muitos jovens enveradariam pela opção tortuosa da evasão militar psiquiatricamente motivada,
como se pode depreender do depoimento do kochegary roker, Misha (no trecho de sua
entrevista a CUSHMAN, 1995; p. 60):
Cushman: Você decidiu se tornar músico?
182
Misha: Sim, apesar de que eu não fosse ganhar nenhum dinheiro com isso. E aí, por
dois anos o escritório do serviço militar ficou a me sondar. Eles queriam me jogar no
exército. Então eu decidi ir pra casa dos pirados [no original o entrevistado usa uma
gíria, nut house]. Por um mês eu trabalhei em mim (sic).
Cushman: Melhor do que ir para o exército, não?
Misha: Sim, eu decidi trabalhar nisso com a minha mãe. Eu falei, Mãe, melhor eles
não me darem uma arma nas mãos senão vou acabar atirando em um oficial. Você
deve ir ao psiquiatra e explicar minha situação, de que eu possa usar uma arma pra
algo errado em algum momento. Eu penso que minha mãe acreditou nisso. E como
resultado, me colocaram em observação. Por trinta dias me observaram, como eu
caminhava, como me comportava, se sorria ou se não sorria. Eu estava deprimido. Eu
realmente estava. Eu tinha de estar. Eu saí de lá com um bom diagnóstico: psicopatia
esquizóide. Artigo 7B estampado em meu documento, dispensado do serviço militar.
[Traduzido do inglês]
Juntando-se esse depoimento, da saída encontrada por alguns músicos a fim de poderem
seguir suas carreiras, ao relato de SMITH (apud HORNSBY, 2013; p. 251), em torno do fato
de que muitos Hospitais Psiquiátricos fossem administrados por oficiais da KGB – desde
Kruschev até o final dos anos 1980, a qual os utilizaria como meio de chantagem junto aos
parentes de internos – o perigoso flerte entre a evasão militar/dissidência e a insanidade mental,
poderia acabar em uma aventura muito perigosa e cara aos jovens locais. De forma não linear,
mas traumaticamente episódica, o desdobramento político dessas práticas e seus grupos
chancelados se faria evidenciado junto ao fenômeno cultural do rock soviético: como no caso
dos birches perseguidores de hippies (citados por MAROCHKIN, 2011a) e no acontecimento
da repressão psiquiátrica com injeções de insulina (no episódio descrito pela cineasta Terje
Toosmitsu, em reportagem de HARDING, 2019 ao The Guardian), demonstrando-se que sim,
como afirmado nos subcapítulos anteriores, o rock encontraria além das resistências políticas e
sociais locais, embora remanesçam poucos registros conclusivos, a intervenção psiquiátrica
como uma das querelas a se enfrentar durante o processo da infiltração do aparato estatal na
vida cotidiana e cultural do Degelo e pelo decurso da década em diante.
Igualmente, nos próprios trechos descritos acima, no filmete estatal analisado, como um
antecedente, mostraria-se a complicada trajetória do rock soviético em seu início inusitado: um
trânsito entre o consumo formal x informal, entre a cultura tolerada x intolerada, e entre o
festivo e o tortuoso. Em meio a uma abertura estatal propagandeada e a truculência de uma
repressão – nada – sutil. Se oficialmente o rock não seria considerado caso de insanidade,
embora estivesse longe de figurar como um exemplo de conduta mental.
Pelos predicados locais, o rock seria tomado por algo exótico, e até decadente. Devido ao seu
público de afetação (jovens), seria tido como algo de nicho e rebelde. Na melhor das hipóteses,
183
constituiria algo frívolo. Sem mencionar que entre o próprio povo, a imagem do rock seria tida
como uma schizophrenia (esquizofrenia). Essa opinião ululante de sua conotação local, melhor
se resume no argumento (alegórico e mordaz) esboçado pelo pai (musicista clássico) do
guitarrista Vitya (entrevistado por CUSHMAN, 1995; p. 54): Bem, com certeza, em tudo e por
tudo, o rock é uma forma muito interessante de psicose!
2.2.3 O Degelo em Números: crescimento urbano, cenário econômico e condicionantes à
circulação de cultura na gestão Kruschev [uma ascensão meteórica e o despencar de uma
estrela]
Os construtores da Revolução de Outubro, como os da Revolução Chinesa, tiveram de conduzir
frontalmente a luta pela construção do socialismo e a luta contra o subdesenvolvimento, o que exigiu
rigorosa centralização de recursos, dos poderes e das esperanças, e uma luta armada que só poderia
ser vitoriosa mediante uma disciplina de ferro, de tipo militar. [...] Mas Lênin ensinou-nos a distinguir, com a Revolução, o que tem caráter universal e o que decorre de condições históricas. [...]
O problema da centralização do poder, da censura à imprensa, das relações da classe operária e de
seus aliados, da pluralidade de partidos, da articulação entre plano e mercado, entre as exigências científicas da planificação e a necessária iniciativa dos trabalhadores na tomada de decisões, todos
esses problemas se apresentam de uma nova maneira.
Roger Garaudy, Toda A Verdade265
Talvez a grande explicação do porquê de o Estado não conseguir imbricar-se melhor no
processo de disseminação dessa cultura clandestina, oportunizada no próprio Degelo, criando-
se assim, uma espécie de caixa de Pandora – fosse, justamente, produto da própria
circunstância do arranjo social local e das pretensões desejadas com o processo de abertura.
Primeiramente, ao se falar de experiências de consumo doméstico em relação ao arranjo
social na União Soviética, há que se entender sua configuração doméstica em geral. No
princípio da década de 1960, a população soviética registrava um significativo aumento da
ocupação residencial urbana, sendo que àquele momento (e desde os censos de 1926, quando
se contabilizara o início dos projetos de assentamento urbano de trabalhadores, durante os
primeiros planos quinquenais), atingia-se a marca de metade da população geral instalada nas
cidades – numa densidade ocupacional de área útil de até 8,8 metros quadrados por morador.
No cenário urbano de Leningrado, por exemplo, em 1961, mais da metade das famílias se
encontravam dispostas em moradias coletivas, totalizando 55,6% da população local a conviver
nessas condições de instalação. Isso corroboraria em parte, o cenário amplo da própria
República Socialista Federativa Soviética da Rússia, como um todo, onde cerca de 56% dos
habitantes urbanos residiriam nos conjuntos de apartamentos coletivos, contra 37% de
265GARAUDY, 1985. Op. Cit. pp. 156-157
184
moradores residenciais particulares, proprietários ou em caráter de sub-locação, e cerca 7%
residentes em albergues266.
As acomodações dessas residências comunais urbanas seriam constituídas de blocos de
apartamentos, cuja divisão por núcleos familiares (em grupos de compartilhamento de até
quatro famílias) se dava por habitáculos (quartos de cada família), mas partilhando as áreas
comuns, incluídas nisso, as dependências de banheiro e cozinha. Embora a questão da moradia
fosse uma querela importante a se sanear, os investimentos realizados ao longo dos governos
de Stálin e Kruschev não dariam conta de atendê-la a contento. Para citar, desde o princípio da
década de 1950, sob os Quintos Planos Quinquenais (1951-1955), ainda que com as transições
de gestão, os investimentos maciços em construção de moradias dobrariam em relação ao dos
planos anteriores e, em seguida, nos novos planos quinquenais (sob Kruschev, de 1956-1960),
receberiam um ávit de um quarto em relação às metas antecedentes. Sob Kruschev, a
intensificação seria bastante visível, como exemplificado no grande surto de edificações
populares nas regiões de Moscou (nas margens da cidade, no distrito de Novyie Cheremushki)
e Leningrado.
No entanto, na opinião popular, pela qualidade precária, devido ao mote de escassez
planejada dos empreendimentos e o modo apressado de construção, a atmosfera geral das
moradias seria motivo de piada entre o povo: o termo komunal ́nye kvartiry (ou sua abreviação
corriqueira komunal´ki), para designar moradia coletiva, daria lugar à corruptela kaka,
trocadilho sugestivo ao ato de defecar. Também, da tentativa de criação de um maior
atingimento da população instalada, a densidade demográfica por local de moradia sugeriria no
senso popular a noção de favelas de Kruschev, e infelizmente, a despeito dos esforços da gestão,
a impressão em torno das Kruschevskayas (ou moradias de Kruschev), seria o da anedota local:
krushchebyi trushchebyi – equivalente a lixões de Kruschev267.
Ora, tendo-se isso por considerado, fica mais inteligível compreender da dificuldade de
controlar uma experiência de consumo doméstica, onde num habitáculo transversalizado do
convívio de diferentes famílias, com filhos de idades próximas e jovens, se pudesse apenas a
partir do circuito interno de consumo (ouvindo-se por um aparelho de som ao conteúdo
Ocidental), muito se fazer pela circulação principiante desses materiais decorrentes de acesso
informal. Ou seja, o próprio conceito de doméstico numa sociedade do coletivo como a da
266SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit. 267SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.
185
modernidade industrial socialista, levaria a que um bem adquirido por uma família (com
integrantes propriamente ditos, seus amigos e conhecidos reunidos ao redor de um toca-discos),
pudesse ser um pólo de apropriação de material cultural por muitas mais ao redor e a aquisição
de um material fonográfico, pudesse protagonizar uma disseminação muito pulverizada a partir
dos elementos do cenário local (algo que no mundo da privacidade Ocidental, seria impensável
no mesmo teor).
E eis aqui, então, que surgiria espaço a uma contradição. Não obstante, considerar-se o
que se tinha como pretensões do processo de abertura cultural, encontraria-se um elemento
intensificador desse processo de consumo: a circunstância econômica vivenciada àquele
momento pela gestão do Degelo, onde séries de crises vivenciadas pela instabilidade política e
o quadro inconstante de sucessos e fracassos, em diferentes setores da prospecção
socioeconômica, levassem a que, muito possivelmente, a atmosfera da aurora cultural não fosse
apenas uma manobra supostamente populista ou amigável de Kruschev, mas a consideração da
necessidade de aquecimento da economia interna pela venda de bens consumíveis – localmente
disponibilizados.Ora, se majoritariamente a doutrina explicaria a estratégia de Coexistência
Pacífica como uma manobra, manobras pressupõem controle, e a economia não se poderia
controlar. Referente a esse ponderar, o jornalista Simon Morrison, em sua obra Bolshoi
Confidencial (2017), dissertando acerca do ballet soviético durante o período, propõe
importantes evidências contextuais acerca da situação do consumo/exportação de gêneros de
cultura (arte) e sua imbricação financeira junto às motivações da suposta abertura:
O Kremlin fez a política e as ambições nacionalistas parecerem as principais
motivações para a turnê em Londres, seguida de outras turnês entre as décadas de
1950 e 1960. Mas o verdadeiro intuito era financeiro: as viagens estavam
planejadas para render lucro. Stálin havia deixado o Tesouro soviético em
condições catastróficas, e o complexo industrial e militar estava tão dilapidado que
aviões dos EUA espionavam o território soviético à vontade. Organizações de
intercâmbio cultural e de amizade internacional (VOKS/SSOD) fizeram o que outros
balés, em outras partes, como o Balé Sadler´s Wells, na Inglaterra, haviam feito em
tempos imprósperos, e organizaram turnês lucrativas; o Balé Bolshoi poderia
competir com essas companhias em todo o mundo. Tornou-se um produto a ser
vendido – como os depósitos de prata de Transbaikalia ou as pérolas dos rios da
península de Kola. O KGB [referência aqui, optada pelo autor em terminologia masculina] não queria autorizar a viagem por temer as deserções, mas o argumento
financeiro venceu. Explorar o potencial comercial do Bolshoi significava descartar os
ideólogos amadores das organizações de amizade, em favor de empresários
profissionais como Sol Hurok, nos Estados Unidos. Os ministros da Cultura sob
Kruschev fizeram um bom trabalho disseminando os valores soviéticos no
estrangeiro, mas, para o Comitê Central, a questão era trazer os necessários
fundos estrangeiros. Assim, o degelo na Guerra Fria foi autorizado para evitar a
bancarrota – ao menos até que a renda com o petróleo subisse, com Brejnev, levando
186
a um novo congelamento político, à corrida armamentista e à retomada do
ultraconservadorismo [Grifos nossos]268.
A retórica do texto é emblemática, aproveitando-se de uma provocante contradição, a
evidenciar uma notória narrativa Ocidental que perpetuara o uso pragmático das artes pelos
soviéticos, como se apenas, de uso lucrativo ou propagandístico, alinhando-os em uma
perspectiva de grosseria e falta de sensibilidade estética real. Por isso, embora o excerto seja
enfático e a contradição evidente (se o Degelo fora produto de ‘populismo’ ou
‘depauperamento’), há indícios importantes de se explorar criticamente em seu bojo, que se
erroneamente interpretados, tendem a conduzir à uma visão descontextualizada269. Em primeiro
lugar, sobre a questão de bancarrota atribuída e a possível dilapidação do Tesouro (por Stálin),
cabe contra argumentar que haveria um número marcante de recursos durante o Degelo,
evidenciado pelas reformas desenvolvidas: na habitação, com a demonstração de investimentos
em urbanização acrescidos continuamente; na prospecção energética, a construção entre 1955
e 1961, da colossal usina hidrelétrica de Bratsk (no distrito lindeiro ao Mar de Bratsk contíguo
ao Desfiladeiro de Padun e situada no Rio Angara)270, seguida da instalação de um pólo de
exportação e escoamento madeireiro no local; na tecnologia, os lançamentos da engenharia
espacial (Sputnik e Vostok, de 1957 a 1961), cujo represamento de recursos à empreitada,
inicialmente, levaria a conjecturar, principalmente da opinião pública, o aparente
enfraquecimento das reservas271 – sendo na verdade, tremendo e bem-sucedido
empreendimento militar e propagandístico da pujança soviética, interna e externamente; bem
como, e não minoritariamente, o ligeiro sucesso das reformas econômicas da administração de
Alexey Kosygin, ministro da economia, que se ocuparam em aquecer e dinamizar as relações
do mercado interno.
Finalmente, chegando-se ao ponto interessante da alegação do envolvimento fisiológico
entre cultura, consumo e arte com as finanças locais, percebe-se que sim, a promoção de uma
268MORRISON, Simon. Bolshoi Confidencial. Trad. Cristina Cavalcanti, 1ª Ed. Rio de Janeiro: Record. 2017;
pp. 237-38 269MARTENS (1990) coloca pontuações interessantes sobre o quadro econômico principiado em Kruschev:
trazendo dados de dois importantes escritores sobre o tema da economia da URSS (Roger Kerran e Thomas Keeny,
em O Socialismo Traído), aponta-se que desde a abolição de práticas capitalistas (retomadas nos NEP sob Lênin,
temporariamente), os mais vertiginosos crescimentos econômicos soviéticos se dariam entre 1929 e 1952 (durante
Stálin), alcançando índices entre 12 e 15 porcento ao ano de crescimento, somente no regime de economia
planificada. Após a abertura parcial de Kruschev às práticas do Capitalismo (bens de consumo e aberturas relativas
de mercado; economicismo), os índices não seriam maiores do que três ou quatro porcento ao ano, de crescimento
econômico – tornando um tanto questionáveis as alegações de afirmatividade do suposto depauperamento em torno
do cenário econômico da URSS, na transição Stálin-Kruschev 270SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit. 271GELDERN, 2003. Op. Cit
187
crescente abertura de consumo poderia estar relacionada a uma captura de investimentos. Nesse
sentido, embora a educação socialista visse o papel de sua arte como fundamental e formadora,
determinados setores de alta-sofisticação, frente à nova leva de investimento nas áreas
essenciais, se veriam empurrados a ir conseguir alternativas de recursos. Assim, para alguns
setores específicos da cultura e da produção artística, a opção por se fazer uma captura de
recursos a partir de uma controlada trajetória de excursões e investidas ao estrangeiro, pareceria
uma importante forma de contornar a precarização de investimentos nesses setores, evitando
que sua importante função cessasse e ao mesmo tempo, privilegiando direcionar o recurso
principal do Estado para os projetos fundamentais.
Em outras palavras, entravam os rock e os ritmos ocidentais e saiam o ballet e a música
clássica a circular além das fronteiras soviéticas (uma novidade não observada sob Stálin)272.
O ballet, bem como a música clássica, por serem artes de vanguarda, necessitariam àquele
momento de maior aporte de finanças e, por simultâneo, teriam as características desejáveis de
cultura e educação socialistas bem-sucedidas, sendo possivelmente entendidas como passíveis
de servirem ao propósito pretendido e condições de gerar demanda, por sua excelência, frente
ao público estrangeiro. Sem olvidar a função de propaganda, demonstrando a sofisticação da
formação educacional socialista – uma fonte de inspiração e expensas, a captar investimentos
em momentos cruciais pelos quais a economia passava.
2.2.4 Uma Queda A 70.000 Pés: A Guerra Fria esquenta o Degelo, o Perigo Nuclear e o
Começo do Fim da Era Kruschev
At midnight all the agents and the superhuman crew Come out and round up everyone that knows more than they do
Then they bring them to the factory where the heart-attack machine
Is strapped across their shoulders and then the kerosene
Is brought down from the castles by insurance men who go Check to see that nobody is escaping to Desolation Row
Bob Dylan, Midnight All The Agents And SuperHuman Crew (1965)
272Assim como o ballet e suas apresentações, o esporte soviético e seus atletas, só poderiam ingressar em
competições exteriores à União Soviética, a partir do Degelo. A incrível habilidade desses atletas, a qual ficaria
emblemática nos Jogos Olímpicos [de Verão] desde então, marcaria não apenas a expoência da escola esportiva russa e seus fundamentos (treinados e experimentados em competições internas, como os Jogos Estudantis das
Nações Soviéticas e as Spartakiads, espécie de Olimpíada local), mas a colocação ideológica do Socialismo eficaz
à promoção social do esporte, à disciplina e à realização de atletas mais focados e eficientes. Tal cenário, por
consequência, também seria palco à rivalidade entre as superpotências da Guerra Fria (sob Kruschev, nos Jogos
de 1956, 1960, 1964), e com vulto, na Ginástica e na Natação (com destaque para Alemanha Oriental), o quadro
geral de medalhas ficaria sobrepujado pela presença maciça de atletas locais. Ginastas como a soviética Larissa
Latynina, seriam inesquecíveis em performance e conquistas: a atleta chegaria à marca histórica de nove medalhas
de ouro num total de dezoito conquistadas durante os três eventos – feito que só seria superado muito depois do
fim da URSS, pelo atleta estadunidense da natação, Michael Phelps, em 2012. Fonte: HOOBLER, HOOBLER,
1987. p. 51.
188
O rock não seria a única coisa a chacoalhar a realidade soviética no princípio da década
de 1960. Longe disso, o que mais agitaria os ânimos àquele momento, seria o outrora costurado
cenário político. Com os olhares atentos ao interior da sociedade soviética, por conta do
fenômeno de cultura aqui estudado, fica contundente lembrar-se do papel protagonista da União
Soviética no cenário da Guerra Fria, onde logo no início da década, o clima entre as poderosas
nações do duo-bloquismo iria esquentar – perigosamente.
É importante destacar que apenas mais a frente, a chamada corrida armamentista,
ganhasse seu lugar relevado na história das relações de URSS e EUA (durante o governo de
Leonid Brejnev e seu contraponto estadunidense, Richard Nixon, inicialmente, e mais a frente,
entre Brejnev e o presidente Ronald Reagan), entretanto, àquela altura, as demonstrações de
tecnologia da Corrida Espacial não se prestariam pouco ao propósito de demonstrar suas
intenções bélicas. O satélite Sputnik, lançado em 04 de outubro de 1957, era especulado pelo
Ocidente como um meio dos soviéticos de obterem informações, por vigilância remota e
transmissão de sinal, operados com o advento do aparelho. Não obstante, a tecnologia que
antecederia a do programa Vostok, em que o cosmonauta soviético Yuri Gagarin seria bem-
sucedido na missão de vôo extra orbital de 12 de abril de 1961, estaria situada em um arquétipo
nada pacífico: o desenvolvimento dos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM), estudada
pelos engenheiros militares soviéticos, para transportar bombas e serem pilotados em caso de
necessidade de um possível ataque à porção Ocidental (GEROVITCH, 2007). Do lado
estadunidense, de mesmo modo, boa parte dos físicos e engenheiros que empreenderiam em
torno da realização da NASA (Agência Aeronáutica e Espacial Nacional dos Estados Unidos),
seriam os mesmos que anteriormente, haviam trabalhado na confecção da bomba atômica – no
Projeto Manhattan.
Embora exuberantes os feitos demonstrados pela conquista espacial, sua natureza
indissociavelmente militar e seu uso como estandarte político em provocações mútuas que
envolviam o escopo dessas realizações pelas superpotências da bipolaridade, colocariam o
mundo estupefato, não pelo fascínio, mas pelo temor: precipitando-se o cenário ameaçador de
um colapso nuclear e deteriorando-se profundamente a relação estadunidense-soviética.
Retroagindo um pouco na linha dessa narrativa, cabe lembrar de que havia pouco, em
1959, uma das repúblicas latino-americanas, Cuba se tornaria independente do protetorado
estadunidense (sob a administração local de Fulgêncio Batista) e aderido ao Socialismo, na
chamada Revolução Cubana – de 1953-59, empreendida em Sierra Maestra, contando com
grande protagonismo popular e o sob o comando principal de Ernesto Che Guevara e Fidel
189
Castro – colocando-se como personagem central às controvérsias da Guerra Fria àquele
momento (HOBSBAWM, 1995).
Cuba, não se haveria de pronunciar se seu Socialismo teria alinhamento à política do
Bloco (linha soviética), até ser submetida à constantes embargos econômicos, cumulados com
sua expulsão, em 1961, da Organização dos Estados Americanos (OEA), sob a alegação de que
a ilha fosse gerida por um governo não democrático – alegação essa, fortemente motivada por
uma retaliação estadunidense a um incidente anterior: a Crise da Baía dos Porcos. Nesse evento,
ocorrido no ano antecedente (1960), uma incursão à costa cubana, sob patrocínio governamental
militar estadunidense e promovida com auxílio de exilados políticos cubanos, tentaria =
infrutiferamente – a deposição do governo socialista local e a retomada do regime anterior na
ilha.
A campanha militar empreendida pela superpotência Ocidental acabaria em vexame
amargado e redundaria, como resposta, em possibilidades políticas de boicote ao Socialismo
instalado na ilha. Ameaçado, o novo governo cubano buscaria apoio junto ao alinhamento
soviético de Kruschev e com isso, oportunizaria-se a possibilidade de uma colocação estratégica
do Bloco Oriental, geograficamente próximo ao território estadunidense (Flórida). E
aproveitando-se do clima acirrado entre os cubanos e o governo dos EUA, apareceria a
possibilidade a mais uma investida à disputa ‘indireta’: o plano de estacionamento na região de
Cuba, em 1962, de ogivas nucleares soviéticas ao arsenal dos recém-alinhados revolucionários
de Sierra Maestra, enviadas em um cargueiro militar por ordem direta de Kruschev, em
atendimento ao clamor do regime socialista caribenho de se proteger ante as investidas do
poderio estadunidense.
Embora houvesse a sinalização da coexistência pacífica de outrora e até bem pouco, os
olhares do mundo se voltassem aos céus com Gagarin e a revolução espacial promovida pela
União Soviética, esse movimento desencadeado em 1962 seria o atrativo de todas as atenções
ao redor do globo. Como poucas vezes na história da humanidade, se colocava o risco real de
repercussões globais de um conflito, por conta dos efeitos de uma devastação nuclear,
promovida pela possibilidade de um confronto entre as superpotências. Ainda estava fresco na
memória Ocidental, o acontecimento japonês que colocara fim a Segunda Guerra Mundial, e
de forma alguma, se esperaria vivenciar tal massacre em território estadunidense. As diretrizes
assumidas por John Kennedy foram rápidas e em terreno desafiador: o posicionamento de
ogivas nucleares estadunidenses em bases da Turquia, com proximidade e possibilidade de rota
190
para o território soviético. Numa tensão que se estenderia por cerca de treze dias, as duas
maiores nações da Guerra Fria se encontravam negociando os limites da ofensiva, sob a
flagrante ameaça de DEFCON-1 – o código para deflagração de conflito iminente de
características nucleares (segundo terminologia militar empregada pelo governo estadunidense,
a referir-se ao incidente à época).
Utilizando-se da prudência e da barganha pelo reposicionamento dos mísseis hostis para
longe das fronteiras soviéticas, Kruschev cederia à retirada das ogivas desencadeadoras do
conflito e conseguiria com isso, amargar um novo blefe derrubado diante da superpotência
opositora. Sua imagem arranhada em dois incidentes internacionais em sequência (em
referência ao incidente do U-2)273, somadas à crise de abastecimento de grãos de 1963274 e a
indisposição de seus companheiros de birô político com suas medidas de bens de consumo275,
fariam com que o mandatário fosse progressivamente enfraquecido de sua influência, a ponto
de ser deposto do cargo de Secretário-Geral do Partido, em outubro do ano de 1964.
A mesma camada que o deporia, seria composta pelo corpo de burocratas soviéticos que
o ajudara a crescer, esses que privilegiados e ameaçados pelo rumo de suas reformas,
visivelmente descontentes com a gestão do Degelo: a Nomenklatura276. Seria ela que
273Recorda-se que a Crise dos Mísseis, teria sido antecedida pelo U-2 Incident (incidente de espionagem do avião
estadunidense U-2), cujo início se dera em 1960 e que decidido ao final (em 1962), com a entrega do piloto da
Força Aérea Americana Francis Gary Powers pelo espião soviético, capturado em Nova Iorque, Rudolf Abel. Neste episódio, Kruschev e Eisenhower trocariam farpas durante a Cúpula de Paris – iniciada da à data de 1º de
maio – quando da ocorrência do abatimento da aeronave estadunidense, enquanto essa voava no espaço aéreo
soviético (em Sverdlovsk). Da vantagem de captura de um soldado da USAF e a demonstração patente, com o
acontecimento, das manobras ‘desonestas’ utilizadas pela superpotência capitalista no cenário da Guerra Fria,
Kruschev tripudiaria impondo uma retratação formal, enquanto promoveria o julgamento do pretenso espião
capturado (em Tribunal moscovita). Entretanto, seu pedido de desculpas nunca viria formalmente (apenas uma
admissão superficial e constrangida, da admissão da prática pelo Pentágono, sustentando uma justificativa de ação
como resposta às táticas da URSS) e o capturado, seria negociado com o já empossado presidente dos EUA, John
Kennedy, a ser entregue numa troca de prisioneiros arranjada na Alemanha Oriental (cujo ponto demarcado para
a mútua extração seria o da Glienicke Brücke [Ponte Glienicke]). Como fora recusado em seu pedido (visto pelo
Comitê Central como um ‘blefe’) e, ao final, cedera a uma troca em condições paritárias com o inimigo, após
demonstração de atitude hostil deste (espionagem e desplante), a cúpula central da administração soviética veria como uma derrota da gestão Kruschev, o incidente principiado com manifesta vantagem Oriental. Fonte:
POWERS, GENTRY, 1970; BERTRAN, 1979 274A Crise do Milho de 1963, um fracasso na implantação desse cultivar aliado às crescentes exigências de safra
do abastecimento soviético – cujo clima seria um fator crucial. Tal episódio, levaria a um desagradável revés
econômico e moral, o qual imporia a necessária compra da commoditie de países do Ocidente – inclusive os
Estados Unidos – para subsistência local. Fonte: 1962 - The Corn Campaign; GELDERN, 2003. Op. Cit. 275Segundo Hobsbawm (1995); p. 64: Reformas estas, que desde o início pela alta cúpula do Partido, bastante
relutadas, e agravadas pelo inchaço da burocracia soviética em dobra do número de ministérios relacionados à
produção. 276Hobsbawm (1995, p. 64), sublinharia os desgastes promovidos por essa camada administrativa nos caminhos
tomados na gestão a seguir.
191
engendraria a nomeação de um partidário expoente, com trajetória adequada ao propósito da
transição pretendida, nesse momento de oscilação no poder local. O confiável e articulado
Leonid Brejnev assumiria a gestão da União Soviética, com o compromisso de restabelecer a
economia e romper com a desestalinização do Estado. O sorridente e irritadiço Kruschev,
precursor do Degelo e sempre envolto numa atmosfera dúbia de humor e de intenções políticas,
entre os acenos e as recusas para com a liberdade local e com o próprio Ocidente, seria
substituído por um modelo com feições de pretendida seriedade: um Brejnev de semblante
severo, cuja fisionomia buscaria transparecer o resgate daquilo que entenderia uma parte
fundamental do Socialismo (a recomposição da figura de Stálin, o espraiar da influência e
controle soviético nas politicas de outras nações socialistas e a retomada do crescimento da
URSS no cenário interior-exterior) nas pretensas características adotadas, inicialmente, por seu
novo modelo de governo.
Com tamanha égide de acontecimentos, não é de se impressionar que os eventos
relativos à circunstância local do rock, em suas origens, ficassem obscurecidos. Embora
aparentemente tranquila, a primeva incursão do rock em terreno soviético se fez, como se faria
tradicionalmente: cercada de vigilância e interposições. Afinal, antes de as guitarras agitarem o
terreno local, seriam os políticos e suas pretensões estelares, que estremeceriam a vida dos
cidadãos. Se de início, pareceria óbvio um encampamento de valores ocidentais na localidade
soviética, sob a noção dos eventos apresentados – conforme o elenco: o Degelo, a Coexistência
Pacífica, as políticas reformistas dos padrões de consumo e mídia, acompanhado do surto de
crescimento urbano e um novo trânsito de pessoas e cultura na URSS, numa Guerra Fria que
chegara ao seu momento mais quente. Diluindo-se assim, a primeira possível impressão de que,
por uma afinidade momentânea, quaisquer das referidas nações viesse, agradavelmente, a ceder
a outra.
E o produto dessas transições e suas características incidentes ao fenômeno do rock
local, guardaria ainda mais intrigantes configurações apenas um momento a seguir: quando o
ponto de impasse passaria a emanar de dentro da própria estrutura soviética, em lugar dos
recentes atritos à política exterior.
2.3 UM COMPACTO DE TRÊS ESTRELAS: O TERCEIRO LADO DOS ANOS 1960 –
BEATLES, BREJNEV E ВИА OU COMO O ROCK SOVIÉTICO SE TRANSFORMARIA
DE SUBCULTURA EM PRODUTO CULTURAL – PARCIALMENTE
A mania do rock 'n' roll cresceu como uma bola de neve e, é claro, essa bola rolou para a União
Soviética. Os escalões superiores reagiram a esse fenômeno com grande desconfiança e decidiram
192
que a música da liberdade deveria ser mantida sob controle, se fosse impossível bani-la por
completo. Bem, a juventude pegou o rock and roll com força. Quase todos os institutos começaram a ter suas próprias bandas amadoras que tocavam rock. Na maioria das vezes, eram os Beatles ou
outras bandas ocidentais famosas.
Irina Malakhova, O Rock N’ Roll Está Vivo!277
Se ao longo dessa análise da década de 1960, já se comentou acerca das origens do rock
local, bem como em torno de algumas bandas soviéticas e das características sociais e de
transição em alguns elementos desse movimento cultural, agora, na parte referente à transição
do governo de Nikita Kruschev para o de Leonid Brejnev, espera-se delinear em qual forma e
sob quais vetores esse fenômeno de cultura seria incorporado à cultura soviética: não apenas no
sentido de uma parcela popular e juvenil urbana, mas, progressivamente, no amplo aspecto da
produção cultural soviética.
Brevemente, recordando indícios e relatos trazidos durante a introdução desse trabalho,
o fenômeno da ‘invasão britânica' protagonizada pelos Beatles, não deixaria incólume nem
mesmo a União Soviética, onde desde antes da explosão quarteto, ocorrida de maneira sólida
em circuito global a partir de 1964 (ano em que Brejnev assumiria o poder local), o público
juvenil criado sob as condições do Degelo, demonstrara apelo pelo ritmo do rock n´roll e uma
tendência a aventurar-se em protagonizá-lo.
Os Beatles, com sua indumentária e batida inconfundíveis, ilustrariam revistas e
embalariam ondas sonoras, captadas eventualmente nos rádios domésticos ou através de discos
contrabandeados – encantando e colocando dilemas morais aos jovens orientais, conforme visto
anteriormente no intróito do trabalho. Nesse sentido, o senso de comunidade, uniria jovens
protagonistas soviéticos no sentimento de estar-se a fazer um ritmo para adiante do musical,
mas parte de uma atitude desafiadora, libertadora e entusiasmante. Nesse mesmo ínterim, o
desejo por estabelecer-se ante uma indústria cultural robusta e voltada para a formação
educacional popular, como era a da URSS, fazia com que o rock local, diferente do acontecido
com o fab four no exterior, fosse realizado nas margens concedidas pelo sistema – o que abriria
espaço, futuramente, para um rechaço a esse e a assunção de uma vertente marginal
(underground). Por outro lado, o ímpeto de fazer da música estrangeira, um elemento que não
se sobrepusesse ao seu âmago local (russo-soviético), também clamaria por um processo de
localização do ritmo – russificação – fazendo-o ter características ora miméticas ao do
parentesco Ocidental, ora completamente inéditas e originais à sua circunstância local. E como
observado, até mesmo nisso o papel indômito diante das carências e dificuldades renderia
277MALAKHOVA, 2013. Op. Cit.
193
intervenções perspicazes, da produção e circulação clandestina de gravados e materiais
contrabandeados à luthieria artesanal dos instrumentos, passando pela inusitada composição
das letras e melodias em gramática local – numa demonstração de agência segundo aludido em
Thompson (1987).
Se afastando do estilo Ocidental, mais e mais, e se posicionando ante o seu próprio
estabelecimento interno (aparato estatal soviético), ora numa assimilação (como será discutido
sobre o ВИА [VIA]), ora num distanciamento evidente (underground), o rock soviético
delinearia sua própria cultura, costumes e identidade. Tendo Brejnev como um dos fatores dessa
função, o quarteto de Liverpool, que já constituira elemento de inspiração, catapultado às
grassantes transformações que surgiam no governo, intensificariam a presença de sua
iconografia na composição de fatores locais num arranjo delicado de fisionomia – o qual,
destrinchando inúmeros detalhes, começa-se a compreender a seguir.
2.3.1 Brejnev e o Bloqueio à Desestalinização: O breve Resfriar da Liberdade de
Expressão e o brevíssimo Reaquecer da economia
As revoluções sociais, a Guerra Fria, a natureza, limitações e falhas fatais do “socialismo realmente
existente” e seu colapso são discutidas à exaustão. Mesmo assim, convém lembrar que o impacto
maior e mais duradouro dos regimes inspirados pela Revolução de Outubro foi a grande aceleração
da modernização de países agrários atrasados. Na verdade, nesse aspecto suas grandes realizações coincidiram com a Era de Ouro capitalista. Como veremos, até o início da década de 1960 elas
pareciam no mínimo emparelhadas, visão que parece absurda à luz do colapso do socialismo
soviético, embora um primeiro-ministro britânico, em conversa com um presidente americano, ainda
pudesse considerar a URSS um Estado cuja “exuberante economia [...] em breve ultrapassará a sociedade capitalista na corrida pela riqueza material” (Horne, 1989, p. 303).
Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos278
Se os Beatles e as primeiras bandas de rock na RSFS da Rússia surgiriam localmente
durante a Era Kruschev, seria sob Brejnev que o rock n’ roll, de fato, se sovietizaria. Isso
porque, embora o rock, como aparição, já estivesse presente desde o Degelo, isto não
significava que sua presença fosse unanimidade e muito menos, que fosse esse um terreno
jejuno em disputas. A trajetória citada das bandas e músicos soviéticos durante os anos 1960,
interrompida por uma devida análise do período, merece ser melhor colocada, evidentemente,
também no tocante ao cenário sob Brejnev – afinal, se o fenômeno cultural lá aconteceu, foi
por sobre e através de fatores propiciados, tanto por influência exterior, quanto por
possibilidades internas da configuração que se assentava. As turbulentas transformações da
sociedade soviética na segunda metade da década de 1960, não seriam apenas motivadas pela
278HOBSBAWM, 1995. Op. Cit. p. 16
194
influência cultural: mudanças de ordem político-estrutural também dariam o tom do início da
Era Brejnev.
Nesse sentido, ainda que pairem dúvidas acerca de como a economia estivesse de fato
no período, pela escassez de material disponível ao acesso público e ainda, a inconfiabilidade
de pretensos boletins oficiais mais propagandísticos que estatísticos (conforme visto em
MORRISON, 2016; MARTENS, 1990), o que se percebe é que em Kruschev a economia
buscara se reestruturar no rescaldo ainda do pós-guerra, com iniciativas que insuflariam
participação/responsabilidade civil na realização da economia e dos valores do Socialismo
(como os editos legais, Antiparasitários e do Código do Cidadão na Construção do
Comunismo), se retomaria o contato com o exterior (doutrina de Coexistência Pacífica) e
criaria-se uma nova indústria de bens de consumo na sociedade soviética (consumismo no
Degelo). Com esse mesmo apelo, desde sua assunção na gestão local, Brejnev teria de fazer
reformulações nos setores da economia, que ao mesmo tempo a reabilitassem e ainda
trouxessem o estabelecimento de uma marca pessoal, mais diferenciada da postura anterior do
Degelo – uma vez que, os argumentos que o colocariam no poder, proviriam das críticas do
Comitê Central às claudicações e debacles sofridas por um Kruschev reformista, decorrentes
do Relatório sobre o Discurso Secreto, apresentado por Dimitri Suslov em outubro de 1964
(MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p. 87). A saída encontrada, ao que parece, segundo
Martens (1990), seria refrear a desestalinização que Kruschev promovera e reabilitar uma
administração com nuances mais firmes: corroborando-se a tese aludida que após sua
deposição, as críticas veiculadas a Stálin, praticamente, cessariam279.
Todavia, conforme MARTENS (1990) preceitua, afirmar peremptoriamente que o novo
mandatário, simplesmente, ojerizasse ou desaprovasse o anterior, pode ser muito precipitado:
Brejnev reconheceria durante os 23º e 24º Congressos do Partido Comunista, a importância das
teses levantadas por Kruschev, dentre as quais, as que denunciavam os vícios do culto à
personalidade, em Stálin. Assim, Brejnev e sua equipe teceriam uma forma singular de sustentar
a narrativa ideológica sob sua gestão: uma que não mais criticasse à Stálin e que não reabilitasse
Kruschev – cuja influência era evidente na configuração da Doutrina Brejnev, realizada a partir
de teores do Pacto de Varsóvia
Ampliando o vetor do Pacto, a Doutrina se aliaria a um investimento na retórica de um
Bloco Oriental coeso, uma sociedade eliminadora da luta de classes e da discórdia ou
279MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006. Op. Cit. p. 87
195
dissidência ideológicas280 entre as nações soviéticas (comunistas, socialistas e frente-
trabalhistas, integrantes da URSS ou pertencentes à porção geográfica do Leste Europeu) e
emergentes nações a liberarem-se do colonialismo e imperialismo (na Ásia, África e América
Latina).
Internamente, a batalha seria a de insuflar credibilidade novamente nos setores de
produção e na sociedade civil, que resultassem em confiabilidade e correspondência nas metas
estabelecidas, moral e economicamente. Não obstante, se haveria de continuar garantindo
articulações com a camada político-burocrática, pois não conviria perder o apoio daqueles que
recém haviam deposto um secretário-geral. Além disso, não se poderia tolerar, quer no setor
popular, quer no político, surgisse espaço para uma forma qualquer de divergência ou apelo ao
modelo anterior de governo, de modo que, a postura adotada propiciava uma espécie de
eloquente pacto do silêncio – eloquente, porque essa seria a marca da autopropaganda soviética
nos discursos de Brejnev (nos quatro congressos ao longo de sua gestão) e pacto de silêncio,
porque ninguém mais ousaria desafiar-lhe sem consequências.
A repercussão dessas transformações, repercutiria em emblemáticas mudanças de
cenário cultural que se seguiriam sob o novo mandatário no pós-Degelo, repercutindo,
inclusive, no destino do que seria feito com o rock local.
2.3.2 O Resfriamento em Brejnev: o Processo Sinyavsky-Daniel
Est’ Pravda, v Est’ Istina.
[Há a ‘verdade’, e há a verdade ‘verdadeira’]
Provérbio russo
Contrapondo-se ao anterior cenário de abertura cultural, em setembro de 1965 já
apareceriam indícios de mudanças nas liberalidades cultivadas até então pela política do
Degelo. Nesse ano (em 13 de setembro), ficaria afamada a polêmica em torno da prisão do
literato russo-soviético, Andrei Sinyavsky, acusado por práticas de agitação e propaganda anti
soviética (artigo 70 da Constituição Soviética), as quais vinham sendo investigadas, através de
informantes e da KGB, desde o ano de 1959 (tempo em que o escritor se encontrava escrevendo
de Paris, como colaborador a um suplemento satírico soviético, Phoenix, e utilizando-se do
280Surgiria nessa circunstância, toda uma própria linha partidária de interpretação do Marxismo-leninismo,
apontada segundo Brejnev, em seu aparente revisionismo da teoria, como interpretações criativas consequentes
do progresso da ideologia socialista. À essa forma de proceder revisionista, MARTENS (1990) afirma que
Kruschev a teria inaugurado e dela partilhasse Brejnev – como mais uma das evidências de inconsistência das
teorias que defendem que o mandatário agisse em detração à figura do antecessor.
196
pseudônimo Abrm Tertz, para veiculação de suas obras). A prisão do literato mobilizaria a
camada de intelectuais soviéticos, culminando no mês de novembro daquele ano em uma
passeata em Moscou (a Glasnost Mitinig, ou em tradução do russo, Reunião por
Transparência), liderada pelo escritor Yuri Galanskov, o matemático Alexander Esenin-Volpin
e acadêmicos, como, àquele momento, o escritor Vladimir Bukovsky. Nesse mesmo período,
outro literato estaria sob mira de investigações (sendo preso no dia 18 de setembro), o escritor
Yuli Daniel, que publicara conteúdo investigado, desde 1961, e atuava sob o pseudônimo de
Nikolai Arzhak. Seria inédito na história soviética, até aquele momento, que o artigo 70 da
Constituição fosse aplicado em exemplares de ficção. A acusação, reafirmada no bojo das
audiências no tribunal, seria a de que no suplemento satírico da revista (Phoenix) e de textos
como Assim Se Fala Em Moscou (de Daniel, de 1961), haveria conteúdo que exporia de maneira
maledicente, vexatória e inapropriada à imagem da sociedade e da administração soviética,
contribuindo-se à produção de uma noção falsa e insidiosa, espalhadora de mentiras sobre a
realidade local no imaginário exterior.
Decorrente dessas acusações, durante o princípio de 1966, os escritores seriam julgados
em Moscou no chamado Processo Sinyavsky-Daniel (em russo, Процесс Синиавскии-
Данель), sendo condenados, após as audiências iniciadas em 10 de fevereiro (nas datas de 12 e
13 do mesmo mês), à pena de prisão e trabalhos forçados (em sete anos, para Sinyavsky e cinco
anos, para Daniel), gerando grande comoção social e intelectual soviética e repercussões
internacionais. No circuito cultural interno, mobilizações de escritores, acadêmicos e
intelectuais se seguiriam, em uma carta da União dos Escritores Soviéticos – conhecida como
Carta dos 63 – constando nomes importantes literatos – dirigida ao Presidium, por conta do
acontecimento. Também nesse período, se remeteria à cúpula da administração local uma carta
aberta (A Carta dos 25), contendo libelos em nome da liberdade de expressão e contra a
arbitrariedade da medida, assinada pelos intelectuais Andrei Shakarov, Vitaly Ginzburg, Yakov
Zeldovich, Mikhail Leontovich, Igor Tamm, Lev Artsmovich, Pyotr Kapitsa e Ivan Maisky –
acadêmicos – Konstantin Paustovsky, Viktor Nekrassov – escritores – Dmitri Shostakovich,
Maya Plisetskaya, Innokenti Smoktunovsky e Oleg Yefremov – artistas da ópera, teatro e ballet.
Em trecho dessa publicação, percebe-se a tonalidade das repercussões locais do evento,
comparando-as ao sofrimento sob Stálin:
Nós pensamos que qualquer tentativa de evocar Stalin pode causar uma grave cisão na sociedade soviética. Stalin tem a responsabilidade não só pelas numerosas mortes
de pessoas inocentes, por nossa falta de preparação para a guerra [Segunda Mundial],
mas também pelas divergências das normas leninistas do partido e da vida do Estado.
Seus crimes e delitos distorceram a ideia de comunismo, a tal ponto que o nosso povo
nunca iria perdoá-lo. [...]
197
A questão da reabilitação política de Stalin não é apenas um problema nosso, interno,
mas também para a nossa política externa. Qualquer passo para a sua reabilitação, sem
dúvida, leva a uma nova divisão dentro do movimento comunista mundial – agora,
entre nós e comunistas no Ocidente. Do seu ponto de vista, essa recuperação seria
considerada como a nossa capitulação para os chineses [liderança comunista]. [...]
Hoje em dia, quando somos ameaçados tanto pela atividade dos imperialistas norte-
americanos e os alemães ocidentais em busca de vingança e pelos líderes do Partido
Comunista da China, seria absolutamente razoável se criar um pretexto para uma
divisão, ou mesmo para novas dificuldades em nossas relações com os fraternos
[comunistas] em partes do Ocidente.281
A repercussão interna, já transpareceria o entendimento que o evento desencadearia
externamente. Por toda sua bagagem, o nome de Stálin evocava polêmicas e proscrições. Como
de costume, os comunistas chineses (simpáticos ao mandatário de Tbilisi) que haviam visto em
Kruschev um traidor das medidas stalinistas, veriam o julgamento com bons olhos, sinalizando
uma reaproximação em Brejnev com a estrutura original – que de fato, nunca se consumaria,
nem durante Brejnev, nem depois (MARTENS, 1990)282. Quanto à negatividade e falta de apoio
ao evento em terras ocidentais, rapidamente, da parte de eminentes socialistas como o filósofo
francês Jean Paul Sartre, bem como de intelectuais ao redor do mundo, além de correspondentes
do The New York Times e da Radio Liberty, se faria manifesta, utilizando-se do incidente para
retomada de discussões acerca da liberdade política e de expressão, dentro do conflito de
ideologias no curso da sonante Guerra Fria. Ilustrando esse aspecto, em 1968 o embaixador
estadunidense na Organização das Nações Unidas - ONU, Arthur Goldberg, por ocasião da
Comissão Internacional de Direitos Humanos, faria pronunciamento acerca do tema,
ressaltando a necessidade de se colocar em pauta afirmações pelos direitos de expressão,
referindo-se ao episódio de supressão como afronta a um estamento básico do ser humano e um
ultraje – algo que seria rechaçado por representantes da delegação soviética e de outras
delegações alinhadas à orientação comunista, culminando no pedido de exclusão do texto dos
registros de discurso da comissão.
O saldo da circunstância inaugurada com o julgamento Sinyavsky-Daniel, é que não
281OUSHAKINE, Alex Serguei, The Terrifying Mimicry of Samizdat. Public Culture 13(2). 191-254; Duke
University Press. 2001; p. 197 282Essa opinião seria corroborada em fatos ainda no final da década: uma grave crise se precipitaria entre a URSS
e a República Popular da China em 1969, por conta da disputa pela territorialidade das ilhas Damankski/Chenpao
o limite fluvial do rio Ussuri. Farpas trocadas em acusações de alinhamento ao Imperialisnmo e chauvinismo do
grande poder, seriam direcionadas da cúpula chinesa ao Comitê Central soviético. Em contrapartida, Brejnev e
seus integrantes do Politburo retribuiriam com acusações de que a China estivesse se tornando uma sectarista ao
Comunismo internacional e agregadora de um excesso de nacionalismo. O acirramento da disputa chegaria ao seu
clímax com uma exigência de Moscou de retirada incontinenti de tropas chinesas e coletivos em exercício militar
da região, sob ameaça de utilização do arsenal nuclear e mobilização das tropas do Exército Vermelho. Receosos
de darem um passo incauto, os partidários chineses cederam às exigências e o clima entre as nações entraria em
uma trégua ríspida e indeterminada. Fonte: SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.
198
somente a perseguição aos dissidentes da cultura no regime soviético ficaria reafirmada, como,
consequentemente, isso viesse a engrossar os incidentes de protesto durante os momentos
posteriores. Fruto dessa conjugação de fatores, em 1967, outro caso de literatos viria a
julgamento: o Processo Galanskov-Ginsburg, onde os outrora libeladores por Sinyavsky e
Daniel, escritores Alexander Ginsburg (compilador de um relatório sobre o julgamento, o
chamado Livro Branco, de 1967, se tornaria acusado por sua realização) e Yuri Galanskov
(poeta e organizador da manifestação Reunião por Transparência, em 1965, e que seria acusado
oficialmente por iniciativa na mesma), reforçariam o cenário de enfrentamento a um aparato
que se remodelava em sua gestão, através da retomada do circuito de retaliações sobre atitudes
das dissidências soviéticas.
A cobertura dessa sequência de eventos por tabloides Ocidentais e por veículos de mídia
(como as rádios BBC, Deutsche Welle, Free Europe, Voice of America, além dos demais já
citados suportes de informação), colaborariam a estabelecer o antagonismo no cenário
internacional, em torno de uma narrativa de contraposição ocidente-oriente em torno da
liberdade contra o autoritarismo – semelhante à vivenciada durante o embate da Doutrina
Truman contra o Relatório Zhdanov, décadas antes. Nesse mesmo escopo, com a re-stalinização
de Brejnev e a recrudescida Revolução Cultural a que a China daria início a partir de 1966, se
construiria uma imagem de que o Comunismo mundial seria constituído de regimes de
perfilamento ideológico totalitário, sem espaço para liberdade de expressão ou alternativas de
dissidência.
Curiosamente, desmentindo essa impressão dada como oficial, a atuação de indivíduos
no sentido de rebater a imposição estabelecida, faria grassar com enorme impulso a circulação
de material literário clandestino – os samizdat, que desde outrora, e como de costume, se fariam
participantes em momentos de refreamento cultural283. E nesse sentido, a utilização do mercado
paralelo (segundo mercado, na expressão local), que se faria crescente em consequência das
reformulações econômicas de Brejnev, seria uma ferramenta fundamental à disseminação
cultural alternativa, essa que tradicionalmente escrita.
2.3.3 O Aquecimento da Economia em Brejnev: o Ministro Kosygin, os passos tortuosos
para o incremento das condições de vida na URSS e outras questões sociais pertinentes
O mercado em questão não era um mercado capitalista, mas um que socialista, e isso, precisamente,
que permitiria articular tal mercado com uma planificação a longo prazo e criar um novo modelo
283WALKER, Barbara, Moscow Human Rights Defenders Look West: Attitudes towards U. S. jornalists in the
1960´s and 1970´s. Kritika: Explorations in Russian and Eurasian History. Semantic Scholar, 2008.
Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Moscow-Human-Rights-Defenders-Look-West%3A-
Attitudes-Walker/01f23cef705a13172dd83c463d6f4796e380fa56. Acesso em: 21/08/2020
199
humano de civilização técnica. Numa primeira etapa, concluída em 1965, evidenciou-se o papel da
participação dos trabalhadores nos benefícios materiais para estimular a produção e a produtividade. Na segunda etapa, em 1966, introduziu-se modos de fixação de preços e lucros em função do custo e
das necessidades de capital circulante. A terceira etapa, começada em 1967, concederia maior
autonomia às empresas, [...] A regulação e a orientação do mercado futuro e do consumo, não se
realizam, portanto, de maneira mecânica e autoritária, através de um plano concebido e dirigido de cima. A comissão estatal o elabora e por mediação de mercado, mudanças de estrutura social e
desenvolvimento das necessidades humanas se modifica o modelo de consumo.
Roger Garaudy, Toda A Verdade284
Do ano de 1965 até o final da década, não apenas os incidentes em torno de um – suposto
– retorno à repressão cultural estavam em curso na URSS. Pudera, não se estaria mais vivendo
em décadas passadas, mas em uma sociedade cujo processo de experimentação de muitas
transformações desde Stálin, não permitiria que mais uma vez e com a mesma fórmula as
nuances de um governo rígido se viessem instalar. Conquanto isso fosse uma verdade a se
observar, haveria ainda um espaço para autoridade dentro da administração, com o aumento da
intromissão dos órgãos fiscalizadores – oficiais, como KGB, Komsomol e União de Comércio,
até populares, como os druzhinnikki – na vida cotidiana civil.
Esse espaço seria aproveitado pela administração para impor-se. A economia, que
costumeiramente experimentara surtos de desenvolvimento e períodos de crise intercalados,
seria um gargalo a contornar, pois se Kruschev havia tido de lidar com depauperamento do
erário e processo de reconstrução na década do pós-guerra (1950), Brejnev teria de lidar com
formas de contornar a imagem precária que a URSS ganhara na atenção Ocidental: uma nação
contrastada por conquistas tecnológicas exorbitantes, mas afetada economicamente nas
colheitas e no consumo popular, além de politicamente enfraquecida – pelas concessões ao
lado opositor, EUA, durante os eventos de espionagem e da Crise dos Mísseis. A economia,
então, para além de uma necessidade seria vista como uma aposta para constituir um estandarte
da nova administração, recuperando a imagem soviética, ampliando sua influência política e
reavendo junto ao povo seu melhor potencial de produção.
Com este entusiasmo – e ciente das carências que teriam de ser enfrentadas – a cúpula
administrativa soviética elegeria o partidário Alexei Kosygin para a tarefa a Pasta da Economia,
concomitantemente, seria nomeado o presidente do Conselho Ministerial soviético, órgão
diretor do poder legislativo local (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p. 87). Sob sua tutela
decisória, desde 1965, se adotaria na União Soviética uma Economia Responsiva 285 um
programa de reformas que recepcionariam certas práticas do repertório capitalista, com intuito
284GARAUDY, 1985. Op. Cit. p. 73 285GELDERN, 2003. Op. Cit
200
de tornar a economia mais flexível e reativa. Por esse mote, o planejamento do crescimento
econômico não mais se daria pelo índice de produção alcançado, mas pelo número de produtos
vendidos no mercado consumidor interno. Adotaria-se ainda, a cobrança de taxa de juros por
fundos de capital e a possibilidade de livre reinvestimento dos lucros das empresas locais. Essas
medidas, que seriam bem recepcionadas pelo setor produtor, também garantiriam a
continuidade do controle pela porção estatal (a qual ainda ficava a cargo da fixação de preços)
– o que parecia um bom acordo para ambas as partes naquele momento.
Entretanto, tão logo as medidas foram postas em prática os setores produtivos se deram
conta de que as coisas não seriam tão simples assim: sem liberdade de fixação de preços, o
avanço do setor não conseguia acompanhar as metas de produção e consumo, deixando-se criar
a partir da falta de motivação estabelecida, uma segunda economia (mercado paralelo) de
produtos locais (e importados, inclusive), fornecidos ilegalmente por canais clandestinos da
sociedade local. Paradoxalmente, essa circulação ilegal se mostrava necessária a suprir a
demanda local, posto que as empresas responsáveis pela produção, bem como seus
trabalhadores, se viam pouco propensas a contribuir com um esforço local desproporcional no
aspecto de retorno, ocasionando que o desabastecimento de certos gêneros acabasse sendo
contornado pela ação de atravessadores ilegais – como os tolkachi (traficantes), que acabariam
sendo pouco fiscalizados por atuarem como espécie de base fundamental não apenas da
chamada ‘segunda economia’, mas da própria economia formal. Tal comportamento abriria
margem a perverter o intuito da administração responsiva, criando uma corrupção endêmica e
setorial no estabelecimento local, onde quem era visto buscando cumprir as metas ou fazer um
serviço favorável à economia planejada, era tido como ingênuo ou colaborador com o regime
oficial286. A Economia Responsiva fracassaria assim, em suas metas, sendo boicotada por
aqueles que teriam sido esperados como seus principais artífices, posto perceberem que o
esforço empreendido não seria recompensado equivalentemente.
Conjuntamente às novas demandas populares, resultantaria também que os setores de
produção local estivessem mais habilidosos em perceber formas de contornar o sistema de
controle de planificação e distribuição da produção: se por picardia ou vileza, a realidade é que
muitos dos bens em falta no abastecimento cotidiano, seriam de fato produzidos, só não seriam
direcionados ao consumo local, sendo então, verdadeiramente, encaminhados diretamente ao
mercado negro para serem oferecidos, à preços elevados, por atravessadores confiáveis
286Idem
201
paralelos ao setor produtivo soviético287. Não à toa o historiador britânico mencionar
criticamente acerca da Nomenklatura: precisamente, o setor central e demais setores de alto-
escalão da administração teriam ciência de todo esse trajeto irregular, ocasionando que parte
substantiva da sociedade precisasse simbioticamente da colaboração dessa camada dos setores
produtivos, para atendimento de suas necessidades de consumo e gestão. Como visto no relato
de Salnikov (2005) ou do músico Vitya288, a pouca disponibilidade de materiais incidiria
também aos músicos e aficionados do rock, tornando que momentaneamente aquilo que para o
restante da sociedade constituísse um segundo mercado, fosse a primeira opção para aquisição
de determinados instrumentos e discos (mesmo sob preços exorbitantes). Comentando a isso, o
luthier Yuri Dimitrievsky (1990) recobra parte dessa relação entre a Economia Responsiva
(cujo ápice seria em 1968) com o surgimento das primeiras guitarras elétricas na URSS, e como
haveria uma relação entre produção paralela, preços exorbitantes e ‘caminhos irregulares’ de
fiscalização:
Só em 1968-69 as primeiras guitarras elétricas soviéticas feitas de fábrica começaram
a aparecer nas lojas de música. A primeira se chamava "Tonika". Design estranho,
superpesada, difícil de tocar; ainda assim, nós, adolescentes, ficamos fascinados. Foi
um assunto dos nossos sonhos! Mas logo, ficou evidente que elas dificilmente
poderiam competir com nossos próprios machados [pickguards] feitos em casa,
embora pudéssemos apenas sonhar com todas as madeiras estragadas pelos
fabricantes de "Tonika". Aquelas primeiras guitarras elétricas russas tinham escalas
de ébano! Mais tarde, Tonika juntou-se a Aelita, Ural e várias outras marcas,
produzidas por quatro ou cinco fábricas musicais em diferentes cidades da URSS, e
normalmente com preços na faixa de 200 rublos. Esses instrumentos ruins eram
geralmente comprados – não por músicos sérios, mas por sindicatos para desperdiçar os fundos sociais e culturais que sobravam do fim do ano. [...] O mesmo
desenvolvimento ocorreu com instrumentos acústicos: não apenas com violões, mas
também com todos os instrumentos folclóricos de cordas. Os instrumentos acústicos
teriam, no entanto, uma vantagem aqui sobre os elétricos: quase todas as fábricas
tinham um pequeno grupo de artesãos qualificados trabalhando sob encomenda junto
com a linha de produção regular. Esses instrumentos personalizados eram
drasticamente superiores – alguns deles eram até peças de arte. [...] Eu costumava me
fazer uma pergunta ingênua, por que isso acontece? [...] Um pesadelo? Não, apenas
um evento comum que qualquer russo pode explicar para você. [...] Os fiscais, via de
regra, podiam ser comprados, e o procedimento era descrito como "saque interno".289
Como o excerto recobra, seria a partir de seu próprio exemplo, por indiscrições e
favorecimentos pelos próprios integrantes do aparato oficial, esfacelaria pouco a pouco a
qualquer chance de sucesso à reforma e se veria passível de empreender concessões e
subterfúgios à corrupção em lugar de fiscalizá-la, puni-la e eliminá-la, segundo a ótica
idealizada na observação escorreita dos princípios morais socialistas – opinião essa corroborada
287GELDERN, 2003. Op. Cit. 288CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 97 289DIMITRIEVSKY, Yuri. Glasnost Correspondence With A Russian Guitarplayer (1990). In: CHIVERS, J.
Cheezy Guitars (2001-2003). Disponível em: http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 24/06/2021
202
também em Hobsbawm, 1995, Garaudy, 1985 e Martens, 1990.
O clima esquentava, mas não apenas no sentido econômico. Em 1968, na República
Socialista da Tchecoslováquia, chefiada pelo líder político Alexandr Dubcék, a juventude e
setores da sociedade civil fariam aflorar o movimento intitulado Primavera de Praga, importante
evento de dissidência política. Clamando por melhores condições de autonomia na gestão local,
por uma identidade mais humana e solidária do Socialismo e a retomada dos princípios na
administração pública, num manifesto epitetado como Programa de Ação (redigido em de abril
de 1968), baseados na premissa leninista de um ‘Comunismo construído não apenas para os
trabalhadores, mas pelos trabalhadores (p. 77), as manifestações ganhariam repercussão,
fazendo estremecer o conceito ‘únivoco’ da interpretação política e ideológica do Socialismo,
ampliando a voz de setores locais tchecos (apoiados, inclusive, por partidários em outros países)
requerentes de uma visão mais efetiva da democracia socialista, e provocando com isso, o
tensionamento com o aparato oficial do Politburo. Em advertência pela dissolução dos
protestos, tropas do Exército Vermelho seriam deslocadas até Praga e com a persistência da
atitude, seria autorizado o uso da força – criando-se cenário para a primeira grande repercussão
violenta, em sentido político, do regime de Brejnev.
O rock não poderia vir a encaixar-se em um momento mais afeito às suas características:
na controvérsia, no terreno das tensões e com manifestação juvenil nuançada, a as tonalidades
da revolução cultural ecoariam desde os gritos parisienses contra o governo de De Gaulle,
quanto às manifestações anti-Guerra do Vietnam dos EUA e pelos direitos civis. Enquanto isso,
em terreno interno da RSFS da Rússia, também matizadas por pipocantes contradições, Moscou
serviria-se a reafirmar o já nuançado cenário de disputa e choque geracional (generation gap;
GELDERN, 2003) evidenciado desde um princípio tímido durante a metade da década: não
apenas entre estudantes, mas em suplementos juvenis como o Krokodil (como já salientado,
revista soviética de grande circulação à época)290, já se evidenciaria a preferência dos jovens
por novas tendências de comportamento, uma crise no modelo sartorial de costumes local e a
colocação de um estilo de vida ligado a percepções mais humanistas (GARAUDY, 1985; p.
63). Se nos Estados Unidos se estaria vivendo o Flower Power e o libelo contra o Vietnã e na
França se observaria dos Distúrbios de 68, na URSS, seria pela música, que se evidenciaria uma
pronunciada dissidência juvenil, acompanhada pelo apelo de transformações291.
Em meio às reviravoltas juvenis, em 1969, que do recém alimentado clima flower power
290GELDERN, 2003. Op. Cit. 291Idem
203
(em 1968), outro jovem estudante e aspirante músico, Anastas ‘Stas Namin’ Mikoyan, fundaria
seu grupo Tsvety (‘Flores’), na capital federal. Em simultâneo, um jovem estudante também de
Moscou, Andrei Makarewicz fundaria o grupo The Kids (transliteração de Mal´chiki), que
dentro em breve se tornaria uma das mais importantes bandas do rock local: a Machina
Wremenyi (‘Máquina do Tempo’) – demonstrando ao momento, que ainda existente um seyshn
local, o qual propiciaria a futura geração de protagonistas do rock soviético.
A década que se encerrava e com ela inúmeras bandas (conforme visto no capítulo 2.3.1
The Rocket and The Rock), dando surgimento a novas e perspicazes aparições. Aguçando sua
percepção, o aparato se impelia a capturar os fenômenos locais, sobretudo os situados dentre a
juventude, como constituintes de um elemento favorável ao estabelecimento soviético. Em
contrapartida, em outros setores, o rock se constituía uma comunidade distinta.
Em algum senso, se afirmaria um recrudescimento cultural sob Brejnev (evidenciado
por um início bombástico, com os julgamentos de literatos, por exemplo), mas de aspectos
matizados. Àquele momento, o teor intimidador, acompanhado de medidas de controle (na
sociedade e na economia), tendia a funcionar como uma propaganda, uma projeção
remanescente, da unidade e do controle da administração sobre a sociedade e a ideologia –
tendo a cultura, papel fundamental nessa composição.
2.3.4 ВИА: Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль – VIA: Conjuntos vocais
instrumentais ou Eram os rockeiros cosmonautas!?
‘Kto khochet, ne mozhet. Tot, kto mozhet, ne khochet. Kto khochet i mozhet, eto zapreshcheno.’
[Aquele que quer, não pode. Aquele que pode, não quer. Aquele que quer e pode, é proibido.]
Anedota Soviética
O som dos acordes do rock na comunidade acadêmica, se fizera uma realidade em
Moscou. Munidos da bagagem das guitarras, jovens estudantes soviéticos estariam na jornada
de fazer a sonoridade estrangeira localizar-se, mais e mais. Como visto com o fenômeno dos
Beatles, do intrigante de um ineditismo do estilo, até a desmistificação da música Ocidental,
surgiria apelo ao experimentalismo: esse que na própria pele, no desafio de ir tocar e cantar um
rock local. Em Brejnev, ao observar-se uma economia com oscilações entre a imagem da
bonança e o cenário da crise, permeada de atravessadores e burocratas vacilantes em relação à
construção do Comunismo, surgiriam formas de aquisição dos instrumentos e de gerenciamento
às apresentações das bandas recém-formadas.
Enquanto a administração nos altos escalões não se importasse com as apresentações,
204
tudo ficava confortavelmente escamoteado. Contudo, numa atmosfera em que a imagem oficial
desejava impor-se (como no caso do julgamento-espetáculo Siniavisky-Daniel), os primeiros
casos de apuração judicial acerca das operações dos grupos musicais juvenis (dentre os
komsomolets) ficava evidente e cobrava-se uma postura do Partido. Um dos marcos precedentes
desst apuração – citado por SALNIKOV, 2005 – seria o julgamento, no fim da década, do
gerente do grupo Falcon (Sokol), Yuri Aizenshpis, por crime de enriquecimento ilícito,
atribuído ao uso do aparato estatal para favorecimento de atividades estudantis mediante lucro
e evasão fiscal (VOLODYN, UDOVENKO, 2009). Nesse momento, duas coisas ficavam
assinaladas: a administração soviética prestara atenção nas atividades culturais daqueles jovens
estudantes, bem como em sua música estrangeira e seus facilitadores, mas, sobretudo, ao
impacto que ela causara na sociedade local, num sentido de apelo comercial e de cultura.
Da perspectiva dos jovens músicos estudantis, uma verdade era evidente: o final da
formação nos Institutos Superiores chegava e com isso, o momento de assumir as profissões
para as quais se haviam formado. Cabe recordar, que o exercício de atividade irregular era
infracional (CUSHMAN, 1995; p. 75), portanto, a atividade musical exercida por um não
músico, nunca poderia ser tratada, oficialmente, como sua fonte profissional de sustento. Por
outro lado, para seguir a via oficial, carecia-se da credencial na União dos Compositores
Soviéticos (RAPM) e para isso, uma base de formação musical autorizada – que em Moscou,
por exemplo, ficava a cargo da formação acadêmica ou em conservatórios, como o renomado
Instituto Gnessin.
Resultado dessa conjunção de fatores, é que algumas das importantes bandas surgidas
pela década, teriam ao longo dos 1960, seu encerramento, rumando cada qual dos seus
integrantes ao exercício de suas respectivas carreiras profissionais de formação
(MAROCHKIN, 2011a). Mas, e a despeito disso, o que aconteceria a alguns dentre esses ex-
universitários, os quais haviam descoberto vocação a partir da música despretensiosa do circuito
acadêmico e decidindo fazer-lhe profissão? E com um agravante: utilizando para isso, do
polêmico rock dentro do sistema cultural soviético?
Em meio à tantos movimentos em cruzamento o panorama que se construía era de uma
convergência de interesses. De um lado, a instituição estatal soviética dispunha de poder de dar
continuidade aos projetos (visto que partia dela a autorização), bem como os em métodos de
rastreamento de dissidentes. De outro lado, tinha-se de dar atenção às transformações que já se
observava àquele período, no tocante à circulação de informações e produtos culturais. Então,
para fazer-se uso da polêmica sonoridade (com guitarras, contra-baixo, bateria e vocais), tudo
teria de passar por uma conversão – em outras palavras, não bastava mais ser um rock tolerado,
205
mas um que produzido em nível institucional, a sovietizar-se oficialmente. A alternativa
encontrada seria o encampamento oficial do estilo musical (rock e outros ritmos de influência
Ocidental) sob a tutela de produtores ligados e subordinados ao Partido e aos interesses locais:
surgiam assim os VIA, sigla de Vocalnyi Instrumentalnyie Ansambly (em cirílico, ВИА; sigla
de Вокальнные Инструментальнии Ансаmбль) ou Conjuntos Vocais Instrumentais
(CUSHMAN, 1995; p. 6), grupos estatais patrocinados, constituídos por alguns dos jovens
músicos experimentais de outrora e o suporte de demais profissionais filiados, gerenciados e
produzidos sob supervisão, submetidos ao esquema de produção estatal (que incluía a
possibilidade de acessar-se a Melodiya), entoando canções e letras compostas por músicos e
compositores credenciados. Nessa barganha, atendia-se os anseios musicais dos jovens
aspirantes, a darem vazão aos seus pendores musicais, enquanto adequava-se a produção a um
controle, conformista e absorvedor dos valores e da estrutura de produção artística local
(CUSHMAN, 1995; p. 62).
Quanto a essa absorção dos profissionais da estrutura local, uma importante saída
encontrada pela administração soviética, junto a da iniciativa VIA, seria a criação de uma
variante: o chamado Rock Filarmônico (Philharmonic Rock), onde um corpo musical atuava
em suporte às apresentações dos conjuntos, constituído de músicos de formação mais erudita
(escola clássica), realizando os concertos em parceria a um grupo de rock. Tanto os integrantes
do VIA, quanto esse corpo de suporte, eram constituídos de músicos credenciados ao aparato,
e a iniciativa do rock filarmônico, se comportava de maneira similar ao acompanhamento
emprestado aos intérpretes do gênero Estrada (onde saía a figura do crooner solo e adentrava a
figura do conjunto principal, VIA, amparado pelos músicos secundários, sinfônicos)292. Com
tal estratégia, mais do que articular-se um controle sobre a produção e circulação da música
com influência estrangeira, a nova iniciativa possibilitava servir de propaganda, internamente
e ao exterior, das modernizações e do progresso pretendido pela vigente administração – não
mais uma nação sisuda, mas situada nas influências contemporâneas e que se importava com
os interesses do consumidor interno.
No que concerne às vantagens de se associar ao modelo VIA, essas incluíam a maior
facilidade de acesso aos recursos de produção e distribuição da indústria cultural soviética:
locais para apresentação (em excursões patrocinadas a diferentes institutos superiores e
complexos esportivos), eventos (desde bailes estudantis até suplementos culturais em
celebração aos alcances da Cosmonáutica), autorizações para apresentações (passes internos
292CUSHMAN,1995. Op. Cit. p. 62
206
agenciados pelos gerenciadores), possibilidade de gravação e exibição em rádio e televisão
(acesso à Melodiya e transmissão ao público espectador em programas como o Karnival), além
de acesso a melhores instrumentos, em sortimento e qualidade. Não obstante, podia-se ganhar
salário pelas exibições e angariar recursos relativos a direitos de composição e produção, de
maneira autorizada pelo aparato.
A desvantagem, seria ceder à absorção pelo sistema, que não permitiria certas
composições ou conteúdos e ainda, impunha programações e temas para o esquema de produção
e oportunidade dos espetáculos. Como recorda um dos entrevistados por Cushman (1995; pp.
81-83), o guitarrista virtuoso Igor Romanov293, sua barganha faustiana em poder tocar junto
ao circuito comercial do VIA, lhe proveria alegrias e desagrados. Com foco nos desagrados,
contabilizaria o manejo, muitas vezes displicente, dos gerentes (o músico menciona um certo
Camarada K., referência satírica aos membros oficiais designados para fiscalização da produção
cultural), os quais por serem indivíduos que articulavam as possibilidades de espetáculo e
recursos de apresentação, constantemente interferiam na banda e, não mais que burocratas
treinados, desprovidos de uma maior profundidade ou sensibilidade musical sobre os ritmos
dessa nova vanguarda, não concebiam distinção de qualidade entre o material do processo
artístico e do programa institucional designado.
Desse modo, não raro, atrapalhava-se apresentações, surgiam letras estapafúrdias (mas
politicamente aceitáveis), substituía-se músicos sem aviso prévio dos demais integrantes e
impunha-se alterações de material e itinerário, que muitas vezes ocasionavam dissabores e
conflitos de perspectiva entre os integrantes dos VIA e o interesse do aparato. Na sua opinião,
haviam dois interesses conflitantes a se considerar: por um lado, a questão da necessidade de
boa circulação comercial, pois embora patrocinados, o sucesso comercial garantia a aquisição
de mais instrumentos (de melhor qualidade, sortimento e mais caros) e outros elementos, que
só eram possibilitados pela administração aos grupos que estivessem fazendo maior sucesso
(‘Nós precisávamos de um monte de dinheiro para os instrumentos e tudo o mais.’;
CUSHMAN, 1995; p. 84); e por outro, que o encare frívolo dos oficiais com o assunto,
ocasionava incessantes dissoluções dos grupos, que somado à imposição de letras e programas
‘ruins’ nos repertórios (apenas uma entoação de slogans partidários, conformistas e
293O músico é aqui identificado, a partir de cruzamento de fontes acerca da formação do grupo Rossiiane (ao qual
o músico se referia estar integrante na década de 1970, ao momento em que relatava à Cushman, 1995). A presença
de Igor Romanov bate com a formação do grupo de Leningrado descrito no ano de 1976, após a saída do líder
fundador da banda, Alexander Krol e a assunção de G. Hordonovsky. Fonte: VOLODIN, V; UDOVENKO, O;
Группы СССР, Рок – Это Жизнь [Em russo] [Trad. Livre: Grupos da URSS: Rock – É Vida]; Moscou, 2009.
Ficheiro: Россияне [Rossiiane]; Disponível em: http://www.gruppasssr.ru/; Acesso em: 21/01/2021
207
propagandistas; CUSHMAN, 1995; pp. 83-84), levavam a derrocada de grupos estabelecidos
e reconfiguração em novos projetos – gerando um clima permanente de instabilidade.
Dentre as alegrias rememoradas com a experiência em circuito comercial, o músico Igor
observaria que através do VIA, podia-se fazer a diferença e obter-se com sua atuação, episódios
sublimes de virtuosismo, aos músicos e às plateias insuspeitas. Essas, que inclusive, se
maravilhariam em desfrutar, não dos concertos estabelecidos, mas justamente desses momentos
de improviso, liberdade criativa e reconfiguração de arranjos, que intercalavam cada
oportunidade de concerto. Em sua própria descrição recordando a uma dessas oportunidades:
E então nós estávamos tocando aquela música complexa [...] e nos apresentávamos
em diferentes institutos. [...] Tínhamos de fato, um grupo decente. Muitas pessoas
apreciavam. Me surpreendia que aqueles que vinham aos concertos preferiam a
música complexa, aquela que vinha do fundo dos nossos corações, muito mais do que
a parte comercial que imaginávamos que agradaria ao público. Lembro que uma vez
estávamos tocando uma seyshn e havia um monte de gente assistindo. Nosso grupo
era, então, bem conhecido e ao encerrarmos a primeira parte de nossa apresentação, o
público recebera de tal maneira o material, que um sujeito pulou no palco e nos prestou
uma reverência, e saiu. Estávamos perplexos. Havíamos pensado que se tocássemos por uma hora, sem parar, do nosso material de improviso, o concerto seria um
fracasso. Depois de uma pausa, retomamos os assentos e começamos novamente a
tocar. Quando terminamos houve uma pausa de cerca de meio minuto, silêncio, e
então o público explodiu numa ovação e aplausos, gritando.
Então ficou claro pra nós de que devíamos fazer aquilo que sentíamos [...] aquilo feito
com o coração, não em nome de alguém. [...] Todos éramos profissionais. E todos
havíamos nos graduado em escolas de música, tínhamos muita experiência, e
prestávamos mais atenção à música, acima de tudo, embora tivéssemos composições
interessantes, também. [Tradução do inglês e grifos nossos]294
O uso da estrutura para o alcance e disseminação de um sublime, partiria desses músicos
com um propósito, aparentemente, diverso, extrapolador do pretendido pela instituição
soviética oficial, e nisso constituindo-se outro importante exemplo de agência em relação ao
aparato, colocando, como Cushman (1995) delimita, o estabelecimento de um outro significado
a sua música em meio àquela realidade. Ainda assim, esse tipo de atividade musical junto ao
cenário comercial soviético (VIA) seria visto por outros músicos, exteriores ao circuito de
produção oficial, como algo não rockeiro.
Como observado no excerto, o músico enfatiza o fato de todos ali serem profissionais
da música e possuírem formação musical. Entretanto, nem todos conseguiriam preencher esses
requisitos, e nem por isso, deixariam para trás o sonho com os acordes. Nesse sentido, da
geração de bandas da década anterior, um segmento soviético, com base à tradição da música
marginal, clandestina, traria uma outra concepção acerca do papel e da atitude do rock –
centraria, justamente, em preterir-se às facilidades providas da estrutura comercial, procurando
294CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p.83
208
assim, preservar sua autenticidade. Em meio a esses músicos não profissionais, egressos de
bandas da década anterior, não enquadrados e amealhados a outros aficionados do estilo,
também não credenciados, começaria a surgir uma comunidade de rockeiros (uma outra cultura
do gosto) dotada de particularidades, com códigos próprios e uma ética interna de classificação
de suas práticas, demarcando o surgir de um sistema simbólico à parte do ‘conformista’,
chancelado pelo Estado.
Uma das mais relevantes comunidades nesse aspecto dentro da União Soviética,
segundo Cushman (1995; pp. 166-169), seria a comunidade de rock de Leningrado que
atuaria, desde o princípio da década de 1970, em contraposição ao cenário comercial moscovita
e pela demarcação de que estar à serviço do Estado na capital federal, não constituía rock, mas
‘apenas uma música, guitarras e pessoas cantando’ – sem muitas das características que
constituintes ‘extramusicais’ do ritmo, como a presença de um ideal, energiia e
desprendimento, e a ênfase na poesia, na produção artesanal e intensa rede de contato e
disseminação de cultura musical.
Dali por diante, ao longo da década de 1970 poderia-se começar a falar em dois cenários
‘rockeiros’ bifurcados na URSS: um, o que se tornaria a Fase Televisivo-Radiofônica do Rock
Soviético, representado pela metade patrocinada, encabeçada pelo VIA, e o outro, esse que de
Fase Underground, em continuidade com as práticas evidenciadas com a cultura do
roentgenitzdat (em bootlegs de rock, jazz e foxtrot) e do magnitzdat (com os magnitoalbomy de
música barda; blatnaya muzika) na década anterior, sendo tal, por característica, a metade
desprovida de recursos patrocinados ou comerciais, atuando autonomamente, na
clandestinidade.
E enquanto, no cenário interno, essa dicotomia acontecia num dos segmentos da cultura
soviética, no cenário exterior, o Estado soviético parecia propenso a reaproximação com o
Ocidente, demarcada no começo da década, por dois eventos importantes: a assinatura dos
tratados internacionais de desarmamento nuclear mútuo e a colaboração na prospecção espacial
através da Estação Espacial Internacional.
Acerca da sinalização de boa-vontade entre as nações em conflito indireto, os esforços
colaborativos entre ambos na prospecção espacial, demonstrava-se que as duas superpotências
da Guerra Fria entravam numa fase de distensões, a chamada Détente295 (galicismo de
Detenção; relaxamento; que segundo autores, demarcaria o fim da primeira Guerra Fria; em
russo, razriadka). Produto do acordo de colaboração entre cosmonautas, astronautas e
295SIEGELBAUM, 2003. Op. Cit.
209
engenheiros aeroespaciais soviéticos e estadunidenses, resultaria a Estação Espacial
Internacional (International Space Station – ISS). Tudo sinalizava à superação dos
ressentimentos da Space Race, principiada ainda entre Kruschev-Eisenhower, cuja vantagem
inicial fora da URSS, após o Sputnik, o míssil inter-continental balístico Semyorka e o vôo
extra orbital de Gagarin (de 1957 a 1961), mas que fecharia a década sinalizando a vanguarda
americana, a partir da NASA, do programa Apollo e o pouso na Lua (em 1969) – na fase da
disputa ocorrida entre Brejnev-Nixon. E se a Space Race embalava-se em ventos de mudança,
se caberia ajustar interesses à realização de um refrear da Arms Race (Corrida Armamentista).
No que tange aos tratados de desarmamento, suas rodadas de início situavam-se na
transição do decênio (1969-72), culminando no chamado SALT (sigla de Strategic Arms
Limitation Talks, ou Conversações Sobre a Limitação de Armas Estratégicas) a serem
assinalados entre URSS e EUA, após conversações realizadas entre Leonid Brejnev e Richard
Nixon sobre a formas de materializar o compromisso – Hobsbawm, 1995; p. 191. Com a
realização do SALT I, das negociações principiadas no encontro internacional em Helsinque
(Finlândia), em 1969, se estabelecia uma redução da reposição dos arsenais nucleares entre as
duas potências, culminando na firmatura de um acordo bilateral em 1972.
Contudo, retrocedendo ao início dessa circunstância, uma Détente que começava com
um ‘sorriso amarelo’ entre as superpotências, acrescia-se no cenário interno da URSS, a
evidência de um refreamento no quadro de crescimento econômico, ao qual se seguiria uma
deterioração expressiva da economia local – a fase chamada de Zastoya, ou Estagnação, no
idioma russo – responsável por um cenário impactante ‘socialmente, muito mais do que
propriamente econômico’ (MEDVEDEV, MEDVEDEV, 2006; p.85).
A aurora do esquema VIA não se dera ao acaso, situando-a na reaproximação com os
EUA, pode-se observar de seu uso como estratégia de propaganda do governo Brejnev, o qual
passaria a retirar dos recursos dessa carismática ferramenta (entretenimento), amealhados das,
ainda restantes, glórias da cosmonáutica (reanimada com o trunfo da Estação Espacial
Internacional), o estandarte para dissipar indícios de desconfiança sobre os rumos da
administração. Enquanto que, em paralelo, sob o clima da Détente, tratava de avançar seu leque
de influências por sobre outros territórios296 – não com ‘guitarras elétricas’ mas da proposição
296Ao longo da década de 1970, durante a Détente, os soviéticos avançariam por sobre as insurgentes (ex)colônias
de África (Angola, por exemplo) e Ásia (nos países da antiga Indochina, de Vietnã, Camboja e Laos), buscando
alinhá-las politicamente, ao financiá-las em suas revoluções e reconstruções pós levantes contra suas metrópoles.
Em contrapartida, ao mesmo período, Henry Kissinger, tido por Nixon como o ‘articulador das relações exteriores’,
amealharia contatos com países como o Brasil, a Indonésia, a Turquia e o Irã, em tentativa de rivalizar ao avanço
da égide diplomática comunista. O reconhecimento, a partir do Acordo de Helsinque (1975) de fronteiras
demarcadas após a Segunda Guerra Mundial, seria um tapa de luva dos soviéticos ao ‘revanchismo’, e iriam ao
210
de uma doutrina militar que ficaria conhecida por Guarda-Chuva Brejnev (MARTENS, 1990).
Como fora de costume, desde Kruschev, a cada pedra no sapato da administração,
apelaria-se, ainda uma vez mais, ao charme da cosmonáutica. Coincidência ou não, recordando
a Salnikov (2005) e Marochkin (2011a), a trilha sonora a embalar esses novos tempos da URSS
e sua última façanha Cosmonáutica, se confirmaria sendo a do rock soviético, recepcionando
os ‘ases estelares da oficialidade militar soviética’ com as timidamente brilhantes ‘estrelas do
bigbit’ local The Scythians (Skifh) – em concerto autorizado, no Palácio dos Esportes Luzhniki,
em Moscou, 1968
Por ora, furtando-se a nuances mais amplamente políticas em torno do fenômeno de
cultura, e pouco antes de adentrar-se à análise do fenômeno de bifurcação do rock local e seu
cenário, passa-se à biografia de algumas das bandas mais relevantes no período de transição,
em cuja trajetória fica bem patente a fisionomia do impacto ocasionado pela implantação do
VIA e as mudanças em curso pelas quais passavam a sociedade e a produção cultural soviética
ao longo do período de Détente. E aproveitando da análise de suas características, agora que se
dispõe dos dados acerca dos elementos do VIA, deixa-se a seguinte provocação: afinal teriam
sido essas bandas, autênticos expoentes do rock ou somente produtos culturais patrocinados!?
Colocando em termos que remontam ao uso do cosmos como um propagandístico da URSS,
em voga àquele momento: Verdadeiras estrelas do rock ou apenas rockeiros cosmonautas!?
encontro daquilo que Kruschev, ainda antes, entabulara com a pregressa doutrina de Coexistência Pacífica – ao
reconhecerem-se, mutuamente as superpotências, como necessárias de dividir funções e apaziguamento em um
mundo cujas lideranças globais não mais se sustentavam sob uma ‘Pax Americana’ ou uma ‘solidez monolítica’
do Socialismo (haja vista, o caso da China). No entanto, a eleição do democrata Jimmy Carter (EUA) em 1976 e
a intervenção da URSS no confronto afegão em 1979, iriam entre outras dissidências, culminar no início da década
de 1980, com o fim desse refreamento e o princípio da Segunda Guerra Fria. Fonte: SIEGELBAUM, Lewis. 1973
- Détente; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível
em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/detente; Acesso em: 21/02/2021
211
TERCEIRA PARTE: ENTRE A SALA, A COZINHA, O LABORATÓRIO E A
SARJETA
3.1 O FALCÃO E AS FLORES ANTE A MÁQUINA DO TEMPO E O AQUÁRIO: UM
RECORTE PANORÂMICO DO ROCK NA URSS NO PERÍODO 1965-75 COM FOCO NAS
TRANSIÇÕES SOCIAIS E MUSICAIS PROTAGONIZADAS POR QUATRO
IMPORTANTES BANDAS LOCAIS
[Que eu me lembre ...] As primeiras informações sobre os Beatles já publicadas na Rússia foram encontradas em uma das edições de 1965 da revista "Krokodil" (Crocodile). Foi uma "sátira"
perversa e estúpida descrevendo quatro loucos burgueses que nada tinham a ver com a True Music.
Que efeito a "desaprovação" oficial dessa música teve na geração mais jovem da época? Bem, eu tinha um amigo que tocava na banda da nossa escola. Dez anos depois de sairmos da escola, ele
mandou seu próprio filho para a creche pela primeira vez. Quando o menino voltou da escola, ele
disse ao pai: "Pai, por que você não me disse que existem canções russas além dos Beatles? Nós as
cantamos hoje com o professor!
Yuri Dimitrievsky, luthier soviético297
Com alguma ciência da trajetória do rock e seu ingresso na URSS, o fenômeno local da
beatlemania, o surgimento das bandas locais no estilo e a alternativa estatal do VIA, é possível
tentar-se agora, dinamicamente, um olhar enfoque sobre o fenômeno cultural do rock soviético
a partir do protagonismo de três importantes bandas locais moscovitas – a já mencionada Sokol
(Falcão), surgida em 1964, o grupo Tsvety (Flores), de 1968, a Machina Wremenyi (Máquina
do Tempo), surgida de uma formação anterior (Mal’ Chiki, ou Os Garotos, de 1968-9) e
consolidada com o epíteto definitivo em 1970 – e uma leningradense – Akvarium (Aquário),
liderada pelo poeta e músico, considerado o ‘Bob Dylan russo’ – conforme Cushman (1995) –
Boris Grebenschchikov (ou simplesmente ‘BG’), e fundada em 1972.
Embora já tenham sido mencionadas (ou de seus integrantes, como a Akvarium) em
momentos pertinentes desta narrativa, o enfoque nessas bandas em particular é provido de um
propósito muito claro: sua importância relevada no cenário cultural local e seu pioneirismo de
fase, em momentos diferentes, dentro do fenômeno cultural aqui estudado. Por exemplo, pode-
se vislumbrar a partir da Sokol (fundada no distrito de mesmo nome na capital federal russa,
ainda durante o Degelo), o princípio autêntico e relevante desse que seria o rock soviético, com
letras em russo e de maior repercussão (posto que as bandas anteriores, como a Revengers da
Letônia [de 1961] e a russa Brothers [Bratya, de 1963], não alcançassem a envergadura de
fenômeno como o iniciado a partir do grupo moscovita).
297DIMITRIEVSKY, 1990. Op. Cit
212
De mesmo modo, o nome da Tsvety, de Stas Namin e o nome da Machina Wremenyi,
fundada pelo músico Andrei Makarewich (banda de rock independente, que passaria a se
associar ao modelo rock filarmônico durante a década para poder subsistir) – constituindo essas
três bandas, importantes exemplares de diferentes manifestações pertencentes à dita ‘primeira
fase do rock soviético’, localizada entre o fim da primeira metade dos anos 1960, durante toda
a segunda metade dessa década e no princípio da década seguinte. De modo indistinto, a
Akvarium constitui um precedente reincidentemente mencionado (em Marochkin, 2011a;
Cushman, 1995; Volodyn, Udovenko, 2009 – entre outros), grupo considerado importante e
seminal, que enumera em meio aos demais, não apenas um exemplar do circuito rockeiro de
Leningrado à década de 1970 (e seguintes, posto que como a citada antecedente, ainda encontre-
se em atividade) pela contribuição poética e musical de ‘BG’, mas configura em sua trajetória
um autêntico remanescente da contracultura soviética, surgido e perpetuado no esquema
underground.
Não obstante, é com essas bandas que se pode lançar um olhar panorâmico, dinâmico,
acerca de eventos importantes ao fenômeno aqui estudado. Por exemplo, pode-se compreender
a partir da análise da música Gdye Tot Kray (Qual O Limite?, de 1965)298, elaborada pela Sokol
e tida como a primeira canção do rock da URSS (MAROCHKIN, 2011a; MALAKHOVA,
2013; VOLODYN, UDOVENKO, 2009; CHIVERS, 2001) – a qual será melhor trabalhada
num subcapítulo específico mais adiante, juntamente a outras canções do grupo, com uma
decomposição poético-crítica de sua letra, tradução e musicografia – os desafios encarados
durante o final do Degelo e o papel fundamental do grupo em disseminar a possibilidade de se
realizar em língua eslava o ritmo Ocidental, que faria fomentar o surgimento de um circuito
rockeiro entre a juventude de Moscou.
Em comparado, o pioneirismo de Gdye Tot Kray pode ser colocado em perspectiva com
o não menor pioneirismo das canções dos grupos Machina Wremenyi e Akvarium, a demarcar
precisamente no momento de ingresso no período da chamada Détente, o apelo juvenil
protagonizado pelos músicos, com uma postura questionadora, que contrastaria com o padrão
conformista usual ao VIA e rivalizaria com a proposta, não menos conformista, do jingle estatal
rockeiro A URSS É Meu Endereço, lançada ao som da guitarra – VIA – de D. Tukhmanov e V.
298Сокол - Где тот край. Татарин и К film [Sokol - Gdye Tot Kray. Tatarin i K film]; Disponível
em:https://www.youtube.com/watch?v=wyMWvIGad68&ab_channel=%D0%90%D0%BB%D0%B5%D0%BA
%D1%81%D0%B5%D0%B9%D0%A2%D0%B0%D1%82%D0%B0%D1%80%D0%B8%D0%BD%D0%B8%
D0%9A; Acesso em: 19/04/2021
213
Kharitonov como campanha estatal entre 1972-73. E tudo isso, acompanhado também do
contributo de outras bandas, protagonistas do cenário, em situações pertinentes ao entendimento
desse período fundamental de consolidação do ritmo na porção Oriental do globo.
3.2 ENQUANTO UM FALCÃO SOBREVOAVA, MOSCOU FLORESCIA: O PRIMEIRO
ROCK, PRIMEVAS GUITARRAS E (IM)POSSIBILIDADES PARA MÚSICOS
PROFISSIONAIS E NÃO-PROFISSIONAIS NA URSS
‘Ty mozhesh' ne poverit', Sokol, no eta istoriya proizoshla.’
[Você pode não acreditar, Falcão, mas esta história aconteceu.]
Maksim Gorki, Makar Chudrá, 1892
Se o grupo Bratya (Brothers ou Irmãos) de 1963, sediado em Moscou, estava em
encerramento no ano seguinte, serviria em seu período de atividade modesto a colocar em
evidência ao cenário bigbit dois músicos, o tecladista Vyacheslav Chernysh e o baterista Sergey
Tymashov (MAROCHKIN, 2011c). Fruto desse destaque, atrairiam a atenção do guitarrista e
vocalista Yuri Ermakov, filho de um reputado general da aviação militar soviética, e que
residente na rua Novo-Peschanaya, no distrito de Sokol (Falcão, em russo), em Moscou – local
onde também viviam os demais músicos e ainda o futuro baixista da banda, Igor Goncharuk.
Assim, com idades semelhantes e vivendo o mesmo momento cultural, num espaço geográfico
lindeiro, natural que se reunissem a formar um conjunto, que por homenagem ao local de
fundação – distrito moscovita de Sokol – ganharia o nome do lugar. Desse modo, em 1964,
durante o outono surgiria o grupo Sokol, cujo primeiro local de ensaios seria sediado no
Leningradsky Prospekt, nº 75 – local onde instalada uma das Casas de Propaganda, outrora
ligadas ao AgitProp. O debut da banda, converge quanto à data, tendo-se como fonte o dia 06
de outubro de 1964, mas o local gera controvérsia: segundo Marochkin (2011c), esse local seria
o Centro Recreativo Kauchuk, enquanto segundo Alekseev (2009)299teria ocorrido no Café
Impromptu – ambos estabelecimentos particulares sob concessão localizados na capital federal.
A carreira do grupo seria amadora de início, pois os integrantes estudavam no Instituto
de Tecnologia Química Mendeleev de Moscou (influenciados pelo tecladista, Chernysh, que
ingressara primeiro na vida acadêmica nesse local)300. A princípio, causariam excelente
impressão no meio estudantil e chamariam a atenção das autoridades do Instituto
299ALEKSEEV, A.C. Кто есть кто в российской рок-музыке.[Trad. Livre: Quem é quem no rock
russo] — М. : АСТ: Астрель : Харвест, [Edições por ACT; Astrel; Harvest] 2009; pp. 451, 452. — ISBN 978-
5-17-048654-0 (АСТ). — ISBN 978-5-271-24160-4 (Астрель). — ISBN 978-985-16-7343-4 (Харвест). 300MAROCHKIN, 2011c;
214
(MAROCHKIN, 2011c). Em parte, pelo fato de estarem àquele momento como integrantes do
corpo musical de popular programa televisivo, o KVN, exibido na televisão estatal. Resultaria
com isso, série de convites para irem tocar em casas de cultura, pistas de dança e cafés pela
capital. Assim, do sucesso angariado em suas apresentações (seyshn), todas com apelo na
reprodução fiel de canções de Elvis Presley301, Bill Halley e os Beatles, surgiria o ímpeto para
uma ousadia: a composição de uma canção em língua russa, que da colaboração entre Igor
Goncharuk e Igor Ogarev (poesia) e Yuri Ermakov (melodia)302, se tornaria a primeira canção
do rock russo-soviético: Gdye Tot Kray [Onde Está O Limite?] (da qual já mencionou-se
anteriormente no trabalho). Com a emblemática canção, o grupo conseguiria realizar sua
primeira apresentação pública, em 1965 (MAROCHKIN, 2011c).
Do lançamento de Gdye Tot Kray em 1965, no circuito estudantil da capital federal
soviética muitas oportunidades se desencadeariam: no verão (entre julho e agosto de 1966),
seriam chamados a integrar o corpo de baile do clube litorâneo Burevestnik-2, situado na região
do Mar Negro (entre Tuapse e o distrito Lazaryevisky), que se transformara em um efervescente
acampamento para estudantes locais e internacionais dos institutos superiores, e logo em
seguida, seriam convidados a integrar em caráter semi-profissional (como músicos
acompanhantes) a Orquestra Filarmônica de Tula303 – associação com o rock filarmônico, como
já outrora descrito (junto às explicações sobre o VIA) que permitia que músicos amadores
ingressassem em uma aceitabilidade menos restritiva junto ao aparato. Dessa parceria,
excursionariam com o programa (turnê) Canções das Nações do Mundo, sob o codinome
Cerebyanie Struni (transliteração equivalente à ‘Cordas de Prata’)304 nos anos de 1966 e 1967.
Nesse ínterim, algumas reformulações na formação ocorreriam: Vladimir Doronin assumiria a
bateria (no lugar outrora ocupado por Tymashov), e adiante, esse posto da percussão e arranjos
seria entregue à Viktor Ivanov. Na parte vocal, durante um período (1966-7-67), o músico Lev
Pilschik, integrante do grupo estrada (orquestra) de L. Rozner, estaria acompanhando o grupo
durante as performances – (MAROCHKIN, 2011c).
Interessantemente, embora influenciados pelo fab four (como o próprio guitarrista Yuri
301A fonte que descreve essa circunstância, a qual contrasta com a afirmação já anteriormente evidenciada de que
Elvis fosse uma epítome indesejável e emblemática demais ao Ocidente, para obter a aceitabilidade junto às
autoridades culturais locais, estaria no documentário Grupo de Rock ‘Falcon’: ‘Onde está está essa vantagem?’
(2014). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RRxI1YBo3pY. Acesso em: 19/04/2021 302MAROCHKIN, 2011c 303MAROCHKIN, 2011c; ALEKSEEV, 2009 304ALEKSEEV, 2009
215
Ermakov salientou com reiteração à Marochkin, 2011a) as possibilidades musicais da Sokol
sucederiam com importantes distinções do modo como no Ocidente as coisas estariam
acontecendo. Assim, ao observar-se os Beatles, por exemplo, nesse mesmo período se
encontrariam revolucionando o mercado fonográfico Ocidental e boa porção da estrutura de
consumo cultural global com uma ênfase na disseminação de sua música através de álbuns
gravados ou apenas turnês para promoção desses álbuns em questão (o que, segundo essa lógica,
enfatizava a aquisição e consumo em caráter individual em lugar das exibições em concerto)305.
Enquanto isso, em Moscou, os rapazes do grupo moscovita estariam adstritos ao sistema de
exibição presencial, fruto das possibilidades de circulação do esquema de gerenciamento, cuja
repercussão fundamentalmente se daria no formato de concerto – seyshn – posto que não fossem
admitidos, necessariamente, para gravação pelo selo estatal.
No que tange à questão de circulação, por exemplo, o tecladista Chernysh, que por
questões de trabalho e estudo estaria mais firmemente estabelecido em Moscou (no distrito de
Sokol), acabaria por constituir um grupo alternativo para poder exercer sua vocação musical –
o grupo Melomania306, em 1967. No que concerne à questão de (im)possibilidade de gravações
pelo estúdio oficial (Melodiya), uma única exceção de registro referente àquele momento do
grupo, seria com a canção Filmh, Filmh, Filmh, gravada em 1968, como parte da trilha sonora
de um filme homônimo de animação produzido pelo diretor V. Khrituk para a televisão
soviética. Entretanto, mesmo nessa oportunidade prática, a referida canção seria entoada para a
versão gravada apenas contando com a participação de um músico credenciado, Leonid Berger,
vocalista por outro grupo (o conjunto musical Orpheus), que atuava adstrito ao esquema de
músicos profissionais (MAROCHKIN, 2011c).
Por esse e outros motivos, o registro de muitas das canções rastreáveis do grupo, só
pode ser encontrado em edições posteriores às versões originais da década de 1960, em
regravações que seriam produzidas a partir de reunião de alguns dos membros originais,
acrescidos de músicos convidados, a fim de elaborar-se uma recomposição desse momento
musical bigbit da União Soviética.
Outro importante fator, ficaria a cargo da figura de Yuri Aizenshpis, seu jovem gerente,
305WALD, 2009 306Segundo Marochkin (2011c) o grupo seria formado por Chernysh (teclados), acompanhado de Viktor Ivanov
(bateria), Anatoly Markov (vocais), Yuri Gavrilov (guitarras), Alexey Sinyak (contra-baixo; substituído por
Goncharuk, mais à frente). Esse grupo teria existido em paralelo ao da Sokol, durante um período de cerca de um
ano.
216
e como a subordinação do grupo a essa ‘figura clandestina do gerenciamento’307 não os eximiria
de inconvenientes futuros, que culminariam com o encerramento do grupo.
Conforme Spiridonov (2021), seria esse mesmo ‘enérgico jovem’ visionário – o qual à
década de oitenta se tornaria diretor do emblemático grupo soviétivo (punk) Kino – que
combinando uma atuação junto ao underground, assim como toda um interesse pelo rock, uniria
seu talento como empresário ao intuito de produzir o primeiro grupo beat russo. No caso de
Yuri, tais ‘talentos’ redundariam não apenas na projeção do grupo, mas na denúncia e acusação
deste, até o final da década, por envolvimento em supostas atividades ilegais relacionadas à
fraude monetária, situação pela qual, Yuri seria condenado (em sentença de dez anos), em
dezembro de 1969, tendo suas atividades junto ao setor de promoção cultural monitoradas a
partir de então – as quais só seriam reabilitadas pelo Partido apenas na primeira metade da
década de 1980.308
Situando alguns acontecimentos da biografia da banda em perspectiva, pode-se
mencionar que pelos mesmos idos, desde 1965, o fenômeno musical do grupo Scythians (Skif
ou Citas) também se encontraria em curso – com relevo para o sucesso desse e uma ‘skifomania’
local na capital. Entretanto, segundo Marochkin (2011c), em 1967 o grupo do distrito de Sokol
se consolidaria o líder honorário do rock soviético, devido ao seu êxito com as canções pioneiras
em russo e refletido em apresentações com lotação esgotada no Palácio da Cultura Energetik,
situado no Raushskaya Enbankment, distrito de Moscou.
Nesse ínterim, pode-se destacar também a menção a outros grupos que ajudam a compor
esse binômio dos concertos. Entre eles, o grupo Rossiiane (Os Russos, em idioma local),
surgido em 1968, sendo importante conjunto musical do estilo bigbit que também fundado e
com atuação majoritária no circuito moscovita. Inaugurado por músicos locais, o grupo
Rossiiane seria também agenciado por um gerente estatal (sob o pseudônimo de ‘Camarada K’,
segundo o relato do músico Igor Romanov, integrante do grupo a partir de 1973, conforme
VOLODYN, UDOVENKO, 2009; CUSHMAN, 1995), e embora não seja precisa a motivação
de suas circunstâncias, era uma banda que se apresentava em quiosques locais, cafés e
restaurantes, na modalidade de música ao vivo e com pedidos dos consumidores. Há a menção
do nome de um desses estabelecimentos na região central de Moscou, o café Na Upchala, que
307MAROCHKIN, 2011c 308SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A Primeira Dose
de Rock Russo]. Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um Quadro e Não Apenas];
Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021
217
teria sido disponibilizado pelo sistema de gerenciamento para apresentações dos músicos entre
os anos de 1968-69. Quanto aos valores, diferentes relatos (VOLODYN, UDOVENKO, 2009;
CUSHMAN, 1995) mencionam somas entre 12 e cinquenta rublos por apresentação,
distribuídas entre os músicos e seu gerente específico. Outros relatos de músicos, posteriores
ao período, também se referem à valores gravitando em torno das somas mencionadas.
Corroborando a afirmação de que as apresentações do bigbit não aconteceriam apenas
em salões estatais, instituições de ensino regular ou acadêmico, mesmo fora da capital federal,
encontra-se a menção de REKSHAN (2015), relatando, ainda um pouco mais adiante acerca do
rock, de como o movimento juvenil de rockeiros e hippies leningradenses, faria à década de
1970, do Café Saigon (Leningrado) um importante ponto de encontro e espaço a apresentações
de grupos.
Tendo-se um pouco mais consolidada essa existência de características de concessão
privado/públicas no âmbito do rock local, cabe-se ponderar em torno dos valores dessas
apresentações. Colocando-se em perspectiva, as somas recebidas em uma economia planificada
e orientada por valores diferentes do capitalismo Ocidental, podem oferecer outra margem de
conclusões em lugar da precipitada noção de baixo orçamento. Não obstante, percebe-se dois
importantes registros nos relatos, que permitem situar o escopo de apresentações em uma
amplitude um pouco maior do que a até aqui demonstrada no circuito seyshn: a de que, sim,
havia a presença majoritária da distribuição das canções e repercussão dos grupos através de
concertos, porém, nem sempre apenas em locais públicos e de consumo aberto, mas também
em locais de caráter privado, como cafés, restaurantes e quiosques. Se isso seria uma realidade
recorrente aos músicos ingressantes no rock n’ roll na URSS, é incerto dizer, mas do relato de
Salnikov (2005), integrante do também importante grupo local sessentista, os Scythians, retira-
se a presença de evidências que corroboram esses incidentes de apresentações mais particulares
e mediante pagamento. Mesmo porque, não se deve tomar com redobrada estranheza o
incidente de apresentações pagas, considerando, como já mencionado pelo músico Igor
Romanov (em CUSHMAN, 1995) que havia instrumentos e demais recursos por se adquirir
durante as apresentações, posto que alguns deles não fossem disponibilizados pela Estrutura
Estatal. Nesse sentido, cabe situar que as guitarras elétricas, emblemáticas ferramentas à
atividade musical rockeira e que outrora obtidas por meio de luthieria artesanal (Ryback, 1990)
e mesmo por contrabando, via Alemanha Oriental (Salnikov, 2005), já no princípio de 1970
poderiam ser obtidas a partir da produção nacional. Em 1968, seria lançada a guitarra Tonika,
fabricada em Moscou (cuja produção de instrumentos ganharia destaque ao distrito de
218
Liubertsy) e que passaria a rivalizar com a lendária Musima Elguita oriunda de Berlim Oriental.
Ainda ao longo da década seguinte apareceriam os modelos da série Ural (principiados com a
guitarra Ural 650, de 1975) e já à década de 1980, o modelo Solo II (CHIVERS, 2001)309 –
todos instrumentos exclusivamente soviéticos e dos quais se falará melhor no subcapítulo
adiante.
A produção de instrumentos elétricos, de guitarras e contrabaixos no âmbito local da
URSS seria uma importante fatorística não apenas à disseminação do rock de maneira mais
franca na realidade da URSS da década de 1970, mas de toda uma possibilidade musical mais
profissional do estilo, através de protagonistas do VIA, em experimentação em outros ritmos
contemporâneos – como o blues, o folk e ‘groove’ da disco music (que chegaria também à
União Soviética, durante os anos da Détente; ZHUK, 2012).
Os meios de consumo magnético do gênero também seriam atualizados, com novos
exemplares de magnitofon, mais compactos e com valor mais acessível: como os modelos Inyey
302 e o Inyey 303, ambos produzidos a partir de 1972 pela fábrica soviética Novossibirsk
Production Association ‘Luch’, a consistir em gravadores em quatro canais por transistor, com
modo monofônico e cabeças independentes para operação das fitas-cassete (ou cartuchos)310.
Retomando-se ao escopo da banda Sokol, outro importante marco de sua carreira seria
a canção Solntse Nad Nami (ou O Sol Sobre Nós, em russo)311 de 1968, cujas gravações
também, possivelmente, se perderam (se sequer tenham existido), sendo a canção (re)gravada
posteriormente por grupos locais do VIA, como a banda de rock Tsvety (ou Flores, em russo),
de Stas Namin, expoente ainda no princípio da década de 1970. O grupo não contaria com uma
formação permanente – à exceção de seu fundador, o músico Stas Namin, aprsentado abaixo –
e seria oriundo de outros dois projetos da década de 1960 (transliterados, ‘Politburo’ e
‘Sorcerers’), sendo uma de suas características, numca ter formação constante – à exceção de
Namin312.
309CHIVERS, J;. Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em: http://cheesyguitars.com/;
Acesso em: 21/03/2021 310Музыка 70-80-х Музыка Катушечных Магнитофонов!!! Музыка 70. Музыка 80; (2011) [Em russo]
[Trad. Livre: Música das Décadas de 70 e 80 – Música de Gravadores Bobina-a-Bobina; Ficheiro: Músicas dos
Anos 70; Músicas dos anos 80] Disponível em: https://abrgen.ru/magnitofony/iney_302; Acesso em: 02/03/2021 311ERMAKOV, Yuri; GONCHARUK, Igor; Солнце Над Нами [Solntse Nad Nami]; Disponível
em:https://www.youtube.com/watch?v=Wyzt4eYygFY&ab_channel=thecoldestdays; Acesso em: 20/03/2021 312Nos seus mais de cinquenta anos de existência (entre 1969-1990, com um hiato pela década e retomada dos
2000 até a atualidade), a banda contaria com diversos nomes importantes da música russa a lhe integrarem em
diferentes momentos. Destacam-se entre esses, artistas consagrados como: Sergey Dyachkov, Alexei Koslov,
219
Ao mencionar esse fundamental integrante da história do rock soviético, apelidado Stas
Namin, mais se reforça a teoria que explica a fisiologia de oportunidades musicais situada nas
fileiras próximas ao parentesco da camada oficial. Nascido em 1952, Anastas Alekseievicz
Mikoyan, o jovem músico à década de 1960 seria um apaixonado pelo ritmo frenético que
ingressara à URSS. Seu nome relembra, sonoramente, um que aqui já evocado, durante a fase
de sucessão à Era Stálin, dentre os partidários postulantes a grande chefia da União Soviética
(e que não constitui em mera coincidência): Anastas Alekseievicz Mikoyan seria, nada menos
que, neto do importante adido diplomático, premiê durante Stálin e influente partidário do
Comitê Central do PCUS por todo o restante da administração local, Anastas Mikoyan.
Ora, é de se pensar que, tornando-se ao caso de Ermakov (que possuía um pai general
da aviação soviética enquanto desenvolvia seu grupo Sokol) e ao caso de Stas Namin (com um
avô influente partidário, enquanto ingressando com o grupo Tsvety), seja prudente reforçar que,
ao menos no começo, a possibilidade de ingresso bem-sucedida na empreitada do bigbit local,
corresponderia a uma ligeira parcela da população soviética. Desse modo, mesmo entre os
‘privilegiados’ em relação à grande parcela geral nessa oportunidade, haveria diferenças. Se um
general seria potente a proporcionar exceções às excentricidades de um ritmo Ocidental a seu
filho, essas não se poderiam comparar com as regalias oriundas da posição política que um
importante partidário central poderia fazer por um protegido seu (como o neto de Mikoyan,
com seu livre acesso às gravações e instrumentos, mesmo em sede de um patrocínio ao
controverso fascínio pelo movimento hippie). Ainda assim, Stas Namin e Yuri Ermakov, bem
como os demais rapazes da Sokol, seriam amigos, não sendo impeditivo que para adiante do
fator em comum, repercutissem diferentes chances obtidas às suas credenciais de linhagem, as
quais fariam questionar até que ponto poderiam sustentar a isonomia de um relacionamento
criativo – bem como o futuro de seus projetos musicais.
Nesse sentido, a relação com Namin seria de altos e baixos, pois embora o músico
tivesse reverência pelo trabalho do grupo Sokol, sendo entusiasta em convidá-los para projetos
conjuntos e apresentações, as orientações musicais de Namin e, principalmente, de Ermakov,
divergiriam tremendamente. Isso se mostraria flagrante da remota oportunidade de coalizão dos
grupos ocorrida ainda em 1969, durante cinco oportunidades de ensaio, em que ficariam
flagrantes as opiniões da Tsvety, encabeçadas por Namin, pendentes àquele momento ao estilo
Konstantin Nikolsky, Alexander Losev, Sergei Dyuzhkov, Andrei Sapunov, Igor Sarukhanov, Alexander Marshal,
Sergei Voronov, Alexander Marinin – entre outros. Fonte: RussMus.Net; Ficheiro: Tsvety; About The Band;
Disponível em: http://www.russmus.net/band/90/; Acesso em: 22/03/2021
220
estrada (de apresentação de palco), enquanto a Sokol penderia para o rythm n’ blues pesado
(MAROCHKIN; 2011c) – tornando inviável qualquer chance de projeto entre ambas.
Ainda assim, a canção ‘hippannova’ (de estilo hippie) elaborada pelo grupo Sokol
(Solntse Nad Nami), encantaria à Namin, que cultivaria o projeto de adquiri-la para uma
realização futura. Somado a isso, como já mencionado, as formações dos integrantes da Sokol
nos institutos superiores, faziam urgir assumirem suas vocações laborais de formação,
culminando isso com a derradeira exibição do grupo em um concerto no outono de 1969,
sediado na Casa de Cinema de Moscou (MAROCHKIN, 2011c). Em contrapartida, sendo
Namin um filiado ao esquema VIA desde seu princípio com o grupo Tsvety (fundado em 1968)
e levando-se em conta que fosse músico de formação, já ao princípio da década seguinte estaria
apto a gravar, visto que a Tsvety ganhava mais e mais repercussão e público. Assim, pela voz
de Namin e a sonoridade de seu grupo, a canção considerada o ‘hino hippie’ da URSS, seria
imortalizada em empréstimo dos fundadores do rock local (VASYANIN, 2010)313.
As transformações do rock através da iniciativa VIA demarcam em sua biografia de
conjunto musical a transição pela qual passaria a primeira fase do rock da URSS: uma fase em
que se profissionalizava o estilo e ganhava contornos mais aceitáveis aos olhos da ideologia
partidária e da estrutura estatal, encarado como um fenômeno cultural assimilável e moderno,
desde que adotadas as devidas adequações dentre o circuito de produção e distribuição cultural
local. Acompanhando o contexto da Sokol, grupos locais e coetâneos como os já mencionados
Vanguard-66, Argonavts e Flamingus314, mas também Winds of Change, Olavyanie Soldatky,
e o próprio Scythians teriam encerramento junto à década que se encerrava.
Do saldo efêmero da existência desses grupos, uma aventura musical perpetrada entre
filhos de diplomatas e oficiais da administração e universitários moscovitas, ficaria a canção
313VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]. Российская Газета
(Rossiskaya Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html;
Acesso em: 30/02/2021 314Dos poucos dados encontrados acerca da referida banda, dos estertores da década de 1960 na URSS, tem-se o
mencionado pelo historiador, músico e jornalista russo, Vladymyr Rekshan, em seu acervo disponibilizado ao
Rosfoto (site de um importante museu e centro de exposições da Rússia), no seguinte episódio: ‘No outono de
1969, um concerto do grupo Flamingus teve lugar no salão de festas do Instituto Politécnico [Moscou]. Depois
houve um excesso: uma multidão de estudantes se reuniu de toda cidade, demoliu-lhe as portas. Também agravava
o fato, que o grupo fora acusado de trazer garotas nuas para dançar no palco. Um processo criminal foi aberto.
Os anos 1970 se aproximavam – a época do underground’ Fonte: REKSHAN, Vladymyr. История Русского
Рока (Trad. Livre: História do Rock Russo). Росфото – Музейно - Выиставочный Центр (Site do Rosfoto –
Museu e Centro de Exposições); Coleção (mostra) ‘Realidades do Rock Russo’ – Conferências de 16 de julho a
30 de julho de 2015; Disponível (em russo) em: https://rosphoto.org/events/istoriya-russkogo-roka/; Acesso em:
20/06/2021
221
pioneira do rock local e o exemplar para toda uma futura geração de aspirantes no estilo
rockeiro/bigbit em terras soviéticas – como um instante a seguir, se evidenciaria patente, por
outros caminhos, com a Tsvety e com a Machina Wremenyi.
E muito pertinente a isso, corroborando toda a circunstância de mudança pela qual
passava a União Soviética após o precedente do rock local, cabe dar-se relevo a certas
fundamentais personagens desse fenômeno bigbit, que até o momento, apenas ligeiramente
mencionadas: as guitarras elétricas, cujas peças, luthierias, designs e técnicas, constituiriam um
significante processo de transformação, de agência e elaboração para a configuração local do
rock na URSS e demais países do Bloco Oriental.
3.3 SOBRE NOBRES PEDAÇOS DE MADEIRA E PATACAS DO VIL METAL:
RELAÇÕES ENTRE A CONFECÇÃO DAS GUITARRAS, PRODUÇÃO INDUSTRIAL-
ARTESANAL E ACESSIBILIDADE DE CUSTO NA REALIDADE ECONÔMICA
PLANIFICADA DA URSS DOS ANOS 1970
Depois da Revolução de 1917, o caos monetário se instalou. Na primeira tentativa, os bolcheviques
ingenuamente planejaram abolir o dinheiro de uma forma geral – o que, é claro, era inviável. Enquanto isso, durante a Guerra Civil Russa, começaram a surgir moedas locais substitutas em
diferentes partes do país. Todas essas notas estavam perdendo o seu valor aos trancos e barrancos.
[...] Durante o domínio soviético, três reformas monetárias importantes foram realizadas para dar suporte à taxa do rublo. [...] Os russos começaram a chamar o rublo de “dereviannyi” (“de
madeira”), indicando que, ao contrário do caríssimo rublo de ouro pré-revolução, o rublo
contemporâneo não valia mais do que um pedaço de madeira.
Gueorgui Manaiév, O Valor Histórico do Rublo Russo315
Recordando ao observado, o panorama político-econômico da URSS em Kruschev e,
novamente, em Brejnev, seria preponderante de ser entendido no sentido de se entender a
fisionomia mais precisa do rock na URSS. Nas décadas de 1950 e 1960 e princípio da década
de 1970, diversas medidas de caráter trabalhista e de estímulo ao aquecimento do setor
industrial seriam implementadas, pois, desde o princípio da União Soviética, a luta contra a
escassez de determinados gêneros de produção, não poderia ser tolerada a uma agremiação de
nações com tanta necessidade de subsistência e empenhada em tantas frentes. Assim, somente
do advento de atendimento mínimo dessas condições de produção material, todas as demais
passariam a ser preconizadas, e em meio a isso, o governo de Stálin atravessado por dois
períodos de Expurgo e uma Guerra Patriótica, demonstrava que a marcha soviética para
abastecer-se, tanto num sentido técnico, quanto de consumo, levaria um prazo até sua
315MANAIÉV, Gueórgui. O Valor Histórico do Rublo Russo. Russia Beyond (colaboração Rossiskaya Gazeta)
16 de dez. 2013. Disponível em:
https://br.rbth.com/economia/2013/12/15/o_valor_historico_do_rublo_russo_23331; Acesso em: 20/05/2021
222
consolidação. Por isso, em Kruschev apenas, se poderia colher os resultados de boa parte das
realizações da educação e da indústria socialista. E nesse ínterim, apelando ao quesito das
condições materiais, de tanto que se tenha mencionado acerca do rock, seria bastante negligente
desconsiderar a realização técnica dos instrumentos para sua possibilidade – com destaque, à
guitarra elétrica. Essa que, estaria no epicentro de discussões de uma camada juvenil
efervescente por transformações e que vislumbrava a partir dos horizontes sinuosos do
instrumento a realidade monetária absurda de uma sociedade que se precipitaria, dentro em
pouco (ainda na década em curso) no clima de crise de uma recessão econômica muito
duradoura – onde a produção local da guitarra elétrica coincidiria com o período conhecido
como Estagnação (ou em russo, Zastoya).
Conforme já mencionado ao longo do trabalho pelo relato de Salnikov (2005) – ex-
integrante e guitarrista (base) do grupo The Scythians (Skifh), a grande dificuldade para se
realizar o rock na URSS seria a aquisição da guitarra elétrica – resultando que essa, como tudo
que muito proibido e raro, se tornasse um objeto de fetiche entre os jovens músicos do
hemisfério Oriental. O que explica tal dificuldade é que a produção local de instrumentos, por
suas determinações estatais, ignorara por tempo importante a possibilidade de confecção desse
instrumento de cordas, tido, majoritariamente ao seu entendimento de cúpula, como um
emblema da cultura do adversário – os EUA. Isso acarretaria que, a princípio, a fonte de
proveniência das guitarras na sociedade soviética não proviesse da produção estatal, e, portanto,
nem mesmo viesse pelo comércio estatal regular, mas pela ação dos atravessadores (tolkachi),
já mencionados anteriormente, como um segmento em crescimento na economia paralela da
atmosfera das reformas da Era Brejnev. Como do relato de Salnikov (2005), ao referir-se a
lendária guitarra Musima Elguita, uma das fontes de prospecção seria a Alemanha
Oriental (República Democrática Alemã – RDA), que embora afinizada com a URSS, enquanto
integrante signatária do Pacto de Varsóvia, possuia outras possibilidades de produção.
Consequência disso, a procura por formas alternativas de realização do instrumento
símbolo do rock n’roll pelos jovens soviéticos redundaria em uma criativa e prolífica messe de
luthierias artesanais – com vulto, localizadas em exemplares de Leningrado e Moscou. Como
já informado, as bandas soviéticas começariam em 1961 (em Riga, Letônia), e propriamente na
Rússia soviética, já desde 1963, contemplando os fenômenos em torno da Sokol (Falcão) e da
Skifh (Scythians), desde 1964 e 1965 respectivamente – o que antecederia em três anos, a
produção da primeira guitarra nacional: a Tonika, feita em Moscou, em escala de produção
223
serial a partir de 1968.
Assim, naturalmente, se o grande instrumento necessário ao rock só surgiria, legal e
formalmente, à distribuição comercial quase no final da década de 1960, fica patente que os
exemplares obtidos com os grupos em circulação só poderiam provir de fontes alternativas –
em geral, do artesanato marginal, do contrabando pelo mercado negro ou como souvenirs de
filhos de diplomatas em viagem ao Ocidente.
Dessas três possibilidades, então, as guitarras soviéticas poderiam provir no interregno
pré-produção estatalmente suportada: como lembranças/presentes, artigos estrangeiros
provenientes de viagens autorizadas; como produto contrabandeado de outras regiões do Bloco
Oriental; ou como produto de adaptações artesanais de peças de rádio ou telefone (RYBACK,
1990) sobre outros instrumentos convencionais (como, por exemplo, o violão).
E a partir de 1968, com a produção regular do instrumento, mais um elemento de
proveniência se misturaria, o qual, entretanto, ainda muito inacessível aos jovens em geral, por
conta dos preços proibitivos de aquisição (gravitando entre 150 a 200 rublos, em média)316.
Assim, a partir dos relatos trazidos adiante por músicos e luthiers que vivenciaram o fascínio e
as dificuldades em torno da difícil oportunização dessa ferramenta musical nas terras situadas
à margem Leste da Guerra Fria, espera-se delinear melhor um pouco de
uma realidade duradoura em torno do instrumento e os bastidores obscuros e curiosos de um
rock n’ roll anterior às apresentações.
3.3.1 Um Relato Sobre o Comércio de Guitarras na União Soviética e Bloco do Leste na
Década de 1970: Refletindo-se acerca de ‘grana’ e aquisição de ‘ferramentas do rock’
produzidas no Bloco Oriental Money/ Get away
You get a good job with good pay and you're okay Money/ It's a gas
Grab that cash with both hands and make a stash
New car, caviar, four star daydream Think I'll buy me a football team
Pink Floyd, Money (1973)
Antecipando a epopéia da guitarra na URSS, cabe salientar que devido ao uso das
316NEDVETSKY, Andrey; От Тоники до Музимы. Обзор рынка электро-музыкальных инструментов
в 1975 году.
Ностальгических заметки постаревшего участника школьного ВИА [Trad. Livre: De Tonika a Muzima.
Revisão do mercado de instrumentos musicais elétricos do ano de 1975 – Notas nostálgicas de um idoso da escola
VIA]; In: CHIVERS, 2001 Op. Cit.
224
terminologias empregadas nesta etapa do trabalho, para obter-se uma adequada compreensão
de seu conteúdo, requer-se um mínimo de esclarecimento (aos leigos) acerca da ‘anatomia’ do
instrumento317:
● Corpo/Body: Também conhecido como ‘escudo’, ‘machado’ ou ‘deck’, é a
parte larga de madeira que se assemelha a um escudo, na qual sustentam-se o
braço do instrumento, as partes eletrônicas principais (captadores,
potenciômetros, volumes e o orifício de entrada do cabo que liga ao
amplificador) e algumas partes metálicas importantes (como a ponte e o
tailpiece);
● Picareta ou pickguard: Por sobre o corpo, acopla-se uma peça plástica
chamada pickguard/picareta, que consiste em uma fina camada de plástico ou
acrílico que reveste o escudo do instrumento, logo abaixo das cordas e serve a
encobrir algumas das peças e fiações encaixadas no corpo da guitarra elétrica.
Sua função também é estética e aumenta a vistosidade do aparelho. No caso das
guitarras elétricas soviéticas (como adiante se observará), poderia conter ainda
uma estrutura acoplada de aparelhagem (contendo botões, fiações e regulagens,
inclusive captadores, embutidos), no que se chamava então, picareta completa;
● Pescoço ou Braço: Por vezes conhecido também como cabo (não confundir-se
com o plug, ou cabo de entrada que comunica amplificador e instrumento), é a
estrutura comprida de madeira (em geral, em bordo ou mogno) que se estende a
partir do corpo, e na qual se encontram fixados os trastes (peças de metal finas,
segmentadas ao longo do braço, que determinam tonalidades às vibrações das
cordas durante o toque; formando no braço uma área chamada tastieira ou
fretboard, feita de uma segunda chapa de madeira fixada no braço para melhor
captura sonora). Dentro do braço se encontra a peça chamada de tensor/alma,
uma estrutura de metal que lhe empresta resistência e sustentação ao torque e
tensionamento causado pelas cordas. O arremate do braço se dá na linha da
noz/copo (peça de osso ou material similar, que sucede a região dos trastes),
sendo sucedida pela peça chamada pegbox (cabeça ou cabeçote), local onde se
localizam as pegs/tarraxas que fixam as cordas na extremidade opositora ao
corpo;
● Cordas: As cordas estão fixadas por sobre o corpo através de uma peça, a
ponte, parte metálica que contém parafusos de fixação e molas de regulagem da
tensão do cordame – por vezes, arrematada alternativamente pelo tailpiece (uma
segunda chapa metálica de fixação das cordas ao escudo) e se estendem ao longo
do braço – por sobre a região dos trastes/fretboard – até alcançar a pegbox
(cabeçote), onde ficam enroladas nas superfícies contíguas às tarraxas/pegs;
● Alavanca ou Vibrato: também conhecida como tremolo, é uma peça que se
acopla a parte de fixação das cordas na região do corpo e possui a função de
causar efeitos sonoros durante a vibração das cordas – deixando o som
‘entortado’ ou ‘tremido’ (efeito sonoro de sinuosidade causado pelo
afrouxamento momentâneo produzido na tensão do cordame, através do
acionamento do aparelho);
● Captadores ou Pickups: também conhecidos como ‘microfones’, são
componentes da chamada parte eletrônica da guitarra elétrica (que acompanham
317Site Guitarrriego; Partes De Uma Guitarra e Suas Funções (27 de janeiro de
2020); Disponível em: https://guitarriego.com/pt/guias-pt/partes-de-guitarra-eletrica/ ; Acesso em 21/03/2021
225
a fiação, o cabeamento de plugs, e os botões e chaves conhecidos como
potenciômetros, capacitores e seletores) e consistem em peças feitas de metal,
revestidas de plástico ou acrílico, que contém em seu interior um esquema de
magenete(s), envolvido(s) por uma bobina (em geral, feita de cobre) – que pode
ser única (no chamado captador simples) ou no padrão humbucker (também
chamado singlecoil em paralelo) ou duplo – e fixado no corpo da guitarra
elétrica, logo abaixo às cordas que se estendem da ponte rumo ao braço –
oportunizando assim sua função de captura das vibrações do cordame tocado,
que é convertido por sua ação em pulso elétrico e transmitido como sinal (via
plug) ao aparelho amplificador (ou caixa amplificadora);
À título de informação complementar, as categorias dos elementos (partes) da guitarra
elétrica se organizam segundo seguinte padrão: a) mobília/furniture (a consistir no corpo e no
braço, partes dificilmente removidas do instrumento); b) ferragens ou o conjunto formado
pelos ‘metais’ – pegs/tarraxas, ponte, tailpiece e alavanca – também chamado de hardware;
e c) eletrônica (como já enumerado anteriormente, composição que consiste nos captadores e
demais acessórios eletrônicos que conferem a característica sonoridade do instrumento).
A seguir, minimamente compreendida a composição e partes integrantes da guitarra
elétrica, passa-se a análise detalhada do relato muito abrangente de um insuspeito personagem
do apreço e do protagonismo na confecção das guitarras da URSS: o luthier russo e
‘apaixonado’ guitarrista Andrei Nedvetsky, cujos trechos de seu rico artigo sobre o assunto
(traduzido do cirílico), De Tonika a Muzima: Revisão do mercado de instrumentos musicais
elétricos do ano de 1975 – Notas nostálgicas de um idoso da escola VIA, servem a colocar mais
insumo aos elementos já discutidos sobre o rock soviético até aqui – disponível em CHIVERS,
2001:
Até o outono de 1975, este mundo simplesmente não existia para mim. […] E em
1975, vários eventos importantes aconteceram que mudaram irrevogavelmente toda a minha vida futura: em primeiro lugar, as gravações de Deep Purple chegaram a
Zhukovsky, uma pequena cidade perto de Moscou onde eu morava. Ou seja, naquela
época nem sabíamos que era Deep Purple, e ainda mais porque um disco Deep Purple
In Rock foi gravado no carretel [magnitoalbomy, referência a um álbum da banda
inglesa que o autor teria conseguido gravar no magnitofon de carretel; toca-fitas]
girando no antigo [modelo] "Comet", mas o efeito foi incrível – esta música mudou
todas as ideias sobre o meio ambiente, o mundo. […] Certa vez, na primavera, minha
amiga Mishka e eu estávamos caminhando no parque, mas começou a chover e
corremos para nos esconder no teatro de verão. E lá, no palco, alguns caras de cabelos
compridos tocaram guitarras fantasticamente lindas e cantaram algo como "Eu te dei
esta pequena flor-o-o-o-r!!!!"318. E alguns dias depois eu vi como esses mesmos
"hipari" trouxeram a bateria para nossa escola para tocar no baile, onde nós alunos da sexta série, é claro, não éramos permitidos. E, finalmente, no verão, meus pais e
eu saímos de férias para os lagos da Bielo-Rússia, onde conheci um menino, Dima
318 Em russo (transliterado): Ya Padari Tebe Étot Tsvetotchek – de autoria desconhecida.
226
Korablev, de Moscou. Esse Dima falou sobre sua banda da escola "Fried Nails"319,
onde tocava bateria, sabia os nomes de todos os integrantes dos "Beatles" e era
incrivelmente legal. Tudo isso foi o suficiente para que eu adoecesse de rock and roll
por um longo tempo, e o principal sintoma dessa doença era uma paixão claramente
doentia pelo mundo dos instrumentos musicais, sobre o qual este mesmo rock and
roll naquela época estavam tocando. E a escolha não seria, infelizmente, promissora
[...]
O músico/artesão descreve em pitadas de nostalgia e bom humor a dura realidade do
enveredar pelo caminho do rock na URSS, corroborando outros relatos já trazidos e
colaborando a situar de como houvesse chegado a demonstrar interesse pelo icônico
instrumento, que passaria de um fetiche a uma ‘profissão’. Em seguida, disserta em artigo sobre
a primeira hipótese para realização local da guitarra elétrica na sociedade soviética: a via
artesanal. Descrevendo acerca de Guitarras e baixos, aponta que ‘a maioria das bandas
amadoras da época tocavam as chamadas "self-made" – guitarras
caseiras’. Tais guitarras, seriam confeccionadas em ambientes não industriais – em garagens,
oficinas de escolas, ou apenas em casa. Com entusiasmo, descreve o passo-a passo da confecção
caseira, relativa a cada parte do instrumento, costumeiramente adotada pelos incipientes
artífices do rock local:
1.Corpo do instrumento
Opção Um) Um violão antigo era cortado ao meio ao longo da concha e, portanto,
ficava duas vezes mais fino. Um pedaço da casca era cortado em arco, virado na
direção oposta e colado. Acabava sendo um corte Les Paul;
Opção Dois) O corpo era cortado de uma placa sólida ou colado de barras de 5
centímetros de espessura. Um de nossos violões foi feito de faia (!). Pesava meia
tonelada, mas parecia ótimo;
Opção Três) Os decks [de deck, escudo da guitarra; corpo anterior ao braço] eram
cortados de madeira compensada. Em forma de concha, foram utilizados blocos de
madeira colados com resina epóxi, que depois foram torneados para se adequar ao
formato do deck;
2. Braço
Na maioria das vezes, o braço era retirado de um violão antigo e a ponta era alterada
a partir dele. Às vezes, porém, o braço era cortado por nós mesmos – em 1976 tentamos fazer um baixo fretless [sem traste], e até um through, [rústico], mas todas
as proporções foram tiradas do teto (!), E ele não foi construído de jeito nenhum. Além
disso, não havia lugar para comprar sintonizadores de baixo, e os sintonizadores
comuns não funcionavam.
3. Eletrônicos
319Aparentemente, correspondente à Zariennie Gvozdyi, grupo escolar soviético do qual não foram encontrados,
à despeito da pesquisa, quaisquer outros dados disponíveis.
227
Em todas as guitarras que vi, foram:
a) “bloco de timbre” [bloqueio de tom], dispositivo constituído por dois singles
[captadores monobobinados] em uma placa metálica decorativa com três botões de
controle (volume, graves, agudos) com soquete em forma de hemisfério convexo (minijack). Tal milagre custava 19 ou 21 rublos;
b) captadores (simples) de 9 rublos – um ímã com uma bobina sob uma caixa de plástico
preto com uma placa decorativa de plástico prateada e um fio blindado fino com um
plug-euro;
Todo o resto era soldado independentemente dos componentes de rádio improvisados.
O soquete sempre era um plug europeu de cinco pinos; [Tradução do inglês e grifos
nossos]
Indo adiante das partes de ‘mobília’ e ‘eletrônica’ das guitarras elétricas, outros
acessórios chamariam atenção como figurantes já encontrados na realidade da URSS da década
de 1970: sintonizadores, às vezes utilizados também em violões (geralmente, 3 peças por
placa), possíveis de serem comprados na loja estatal "Rondo" de Moscou em Neglinnaya – por
1,50 rublos a peça. No tocante ao acabamento (arremate) o suporte, segundo comenta
Nedvetsky, seria mais frequentemente cortado em duralumínio e, em seguida, niquelado em
uma fábrica local. Seria possível também obter esquemas para produção artesanal de algumas
peças, em suplementos destinados aos jovens, àquele momento – como na revista Tekhnika-
Molodiozhi, a qual em uma das edições apresentara um modelo de tremolo (vibrato) de
confecção doméstica. Ainda em complemento à questão dos componentes, cabe citar que as
cordas com maior saída para os músicos iniciantes, segundo Nedvetsky, seriam as
"ferromagnéticas" – cujo custo de aquisição, acessível, estaria na casa de 1,20 rublos; enquanto
os cabos de alimentação custariam cerca de 10,5 rublos, em lojas como a ‘Rondo’ – magazine
com sedes em várias cidades da URSS, como a capital Moscou, até a regional Zhukovsky, de
proveniência do autor.
No que toca à questão de Efeitos de Guitarra Elétrica disponíveis na URSS à década de
1970, embora houvesse poucos, segundo o artesão, destacariam-se os pedais produzidos em
Riga (Letônia), nos modelos da série ‘A’ – Quaker, Fuzz Quaker e Fuzz. Em breve descrição,
seriam pedais de tamanhos iguais, com corpo metálico na cor cinza e almofada nervurada de
borracha, embutida. Com mais dados dentre os três, dá-se relevo ao modelo Fuzz que seria
conhecido como ‘amplificador de impulso’ (ativado por um botão na parte inferior), tendo uma
variante – Fuzz com efeito wah-wah – no modelo Anita (disponível por 42 rublos). Seria
sucedido, segundo Nedvetsky, em 1977, pelo modelo Effect, criação moscovita da produção
em série, proveniente do distrito de Krasnoselskaya, que reunia as funções de fuzz, wah-wah,
228
auto-wah (vibrato timbrado) e vibrato (de amplitude – ‘quase um processador’, segundo o autor.
Encontrado na indefectível versão de caixa-preta, com dois interruptores e botões para ligar-se
efeitos de profundidade e tempo (colaterais ao pedal), esse modelo seria um marco de realização
à indústria musical soviética e estaria ladeado por outras inovações do segmento como os
amplificadores nacionais Raduga (amplificador de graves), Ritm (amplificador geral), e Rodina
(amplificador de dois canais com alto-falante) e os importados BEAG (da Hungria) e Vermona
(da Alemanha Oriental). Sobre os preços desses aparelhos, restam informações sobre os
amplificadores, Raduga e Ritm, com preços respectivos de 360 e 320 rublos.
Outros instrumentos também chamariam a atenção da juventude musical local, como os
teclados nacionais Molodiozhi (no exorbitante preço de 510 rublos!) e o eletro-órgão Lel, e
modelos oriundos da República Democrática Alemã (RDA), como os Vermona e Weltmeister.
Nisso também marcante, o sonho de consumo ‘para se fazer a cozinha’ de uma banda, a
sonoridade da bateria – cuja composição simples (bateria rítmica, chimbal e prato com uma
prateleira), poderia custar de 120 a 605 rublos (a depender dos modelos, muitas vezes,
provenientes das cidades de Riga [Letônia] e Engels).
‘Nas lojas, lindas e inacessíveis, penduravam as seguintes obras-primas da fabricação
de violões e guitarras elétricas, feitas na URSS e nos países do campo social’ – o significado
dessa afirmação só pode ser perspectivizado com dados acerca de custos de instrumentos em
relação às condições econômicas de trabalhadores na URSS, que serão melhor abordadas a
seguir. Primeiramente, no tocante à valores de instrumentos, por exemplo, encontraria-se no
mercado soviético em meados dos anos 1970, uma guitarra elétrica do modelo "Tonika" pela
soma de 210 rublos (modelo com “deck” de design e acabamentos de boa qualidade e
“vibrador” [tremolo]) – à venda em magazines (como cito pelo artesão, a loja de bens culturais
na rua Mayakovsky) ou em certo estúdio local para locação, ambas situadas na cidade de
Zhukovsky, cidade onde residia à época. Nedvetsky relata da incidência também muito comum
nessa loja em descrição, de modelos soviéticos de guitarra semi-acústica (assustadora, segundo
o narrador) de cor cinza escuro, no formato clássico comum, mas com a metade da espessura,
presença de dois captadores, sem tremolo. Seu custo ficaria em torno de 180 rublos – que
segundo a memória do artesão, por esse valor exorbitante à realidade da URSS, nunca teria sido
comprada. Como alternativa aos altos preços das lojas, aponta a aquisição de instrumentos de
segunda mão como uma prática muito corriqueira – citando para isso, o caso de um violão
adquirido de um aluno do ensino médio, por 85 rublos, e posteriormente, uma Aelita, modelo
229
1978 (guitarra elétrica produzida em Rostov-On-Don [concorrente do modelo Stella] com
tremolo, três captadores, quatro botões de sintonização e timbre), adquirida da mãe de um
jovem que ingressara no exército, pela ‘bagatela de 110 rublos’ (uma pechincha perto dos
costumeiros 200 cobrados nas lojas regulares).
Outro dado importante é o que concerne à presença das guitarras importadas nas lojas
soviéticas (no caso de Zhukovsky) citando para isso os modelos de violões e contrabaixos320
Orpheus, provenientes da Bulgária, com características de formato ‘rotundas’ (‘gargalo muito
grosso estreito e gancho no cabeçote, sua marca registrada’), disponíveis em versões semi-
acústicas, cujos elementos marcantes seriam a cor escarlate claro e a presença de dois
captadores single sob tampas niqueladas – encontrado no mercado, pelo preço na linha dos 180
rublos nas lojas regulares ou por cerca de 100 rublos entre os instrumentos de segunda mão.
Também nessa remissão de preços e instrumentos, recordaria os modelos Jolana Star
(conhecido modelo de guitarra elétrica soviética, de design pentagonal, apelidado de ‘chave de
fenda’ por sua fisionomia) e a Jolana Special (modelo semi-acústico, na cor rubro-negra com
"vibrador", três singles e um "botão acordeão" de quatro teclas niqueladas), ambas provenientes
da Tchecoslováquia – encontradas na loja de departamentos da Pushkin Street – ‘maravilhosas
e inacessíveis’, segundo o artesão, devido ao seu preço em torno dos 240 rublos.
Como não poderia deixar de ser, a grande estrela da produção estrangeira, a guitarra
elétrica da linha Musima321 (famosa expoente da República Democrática alemã) – disponível
nas opções de contrabaixo, guitarra ritmo (com dois captadores) e guitarra solo – é também
mencionada na descrição, com suas inconfundíveis características: guitarras elétricas com
corpo em madeira negra, captadores de alta qualidade (até três por instrumento) e uma chave
seletora ao estilo Les Paul – também disponível em versões semi-acústicas, facilmente
encontradas nas lojas Rondo, Accord ou Leipzig – todas situadas em Moscou – ou nas mão de
grupos VIA bem sucedidos.
A partir desse ponto o autor coloca uma informação em comparativo que situaria o preço
alegado como vultoso em relação ao salário de um cidadão soviético médio àquele momento:
o salário de sua mãe (cuja profissão não é descrita) gravitaria em torno de 140 rublos mensais.
320Segundo Nedvetsky, esse contrabaixo em específico seria inspirado no modelo Hoffner, como o tocado por Paul
McCartney, nos Beatles – resultando no seu apelido como Quarter McCartney, entre os jovens músicos da URSS. 321A grafia da linha de guitarras elétricas da Alemanha Oriental é aqui preservada segundo a fonte, escrita como
Musima. Porém, cabe ressaltar que por vezes é encontrada com a grafia Muzima, em algumas fontes (como em
Salnikov, 2005).
230
Colocando esse valor em adição à outros relatos dos músicos e aficionados já apresentados
durante o trabalho, é possível estabelecer uma mensura das possibilidades de aquisição:
Salnikov (2005), citaria o empréstimo de uma soma ‘impressionante’ na casa dos cem rublos
para a compra de sua Musima Elguita; os músicos entrevistados por Cushman (1995), Misha
(músico independente; underground) e Igor Romanoff (músico profissional), falariam,
respectivamente, de um salário de 3 rublos por semana (12 rublos mensais) ganhos pela
profissão de caldeirista (ocupação acessória muito comum a integrantes do cenário ‘marginal’
de cultura); e 12 rublos por apresentação, para divisão entre os músicos que se apresentavam
em cafés, restaurantes e quiosques da(s) capital(is), agenciados pelos gerenciadores estatais.
Para se chegar a uma ideia aproximada da oscilação do poder de compra material do
rublo, acerca dessa época, apela-se ao conversor Historical Currency Converter322, elaborado
por Rodney Edvinsson, professor adjunto da Universidade de Estocolmo e integrante do
Swedish Collegium For Advanced Studies – cuja contribuição consiste em importante
ferramenta de conversão contemplando diferentes taxas de câmbio e valores de indexação
historicamente incidentes entre as moedas comparadas. Se não completamente precisa, tal
ferramenta permite chegar-se a dois valores aproximados: o de que em 1968, momento de
ingresso na reforma econômica da Economia Responsiva, o montante de 100 rublos (RUB)
soviéticos poderia ter o poder de compra equivalente à 19 dólares estadunidenses (USD);
enquanto que, em 1975, logo após as reformas e já na chamada fase de recessão, o montante de
100 rublos da URSS poderia equivaler à cerca de 30 dólares estadunidenses, em poder de
compra. Estes dados, adiante de mostrar a manifesta desproporção entre valores de cotação
entre as moedas – com larga vantagem de paridade de cinco vezes para um (1968) e três vezes
para um (1975), respectivamente, entre o rublo soviético para com o dólar dos EUA –
colaborando a situar a dramática situação financeira vivenciada na aquisição de instrumentos
aos jovens entusiastas do rock soviético, também compõe um quadro que desmistifica, em parte,
a argumentação corriqueira de que a situação econômica da URSS estivesse em piora contínua
desde a assunção de Brejnev. Ainda assim, o poder de compra corroído do rublo, tornava muito
complicado o sonho com instrumentos (locais ou estrangeiros) de valores que ultrapassavam os
próprios salários mensais locais – como o aludido salário da mãe de Nedvetsky (de cerca de
140 rublos), que em 1975, corresponderia à U$ 42,00 mensais.
322EDVINSSON, Rodney; Historical Currency Converter; Disponível em:
https://www.historicalstatistics.org/Currencyconverter.html; Acesso em: 21/05/2021
231
Sublinhando às demais reflexões acerca de dinheiro e seu trato no cotidiano do cidadão-
médio soviético, muito interessante o relato trazido por Cushman (1995), através das
ponderações do depoimento dado por Andrei [Tropillo] – o produtor musical underground de
Leningrado, outrora mencionado na produção de magnitoalbomy e magnitofonnaia kult’ura –
ao contemporizar um balanço dessa relação entre a expectativa de retorno do fazer rock na
URSS com as paupérrimas e ocasionais oportunidades financeiras de pagamento (em
CUSHMAN, 1995; pp. 121-22):
[...] A ideia de fazer dinheiro com a prática era fora de cogitação. O que não quer dizer
que o dinheiro não fosse assunto importante para certos segmentos da população
soviética – como os atravessadores do mercado negro, por exemplo. Nem quer dizer
que não houvessem esses que gozando de grande status não se aproveitassem de um
benefício financeiro em relação à população em geral – elites, por vezes pagas em
‘rublos especiais’ os quais podiam ser gastos em ‘lojas especiais’ nas quais figuravam
bens de consumo ocidentais. Ainda assim, em geral, a relativa falta de importância do
dinheiro como meio de aquisição ou elevação de status para os que viviam na
sociedade soviética é muito menos relevante do que se poderia imaginar em sua
contrapartida em sociedades ocidentais. Músicos estariam ainda menos preocupados, pois reconheciam que fazer dinheiro a partir da prática do rock era simplesmente algo
fora de cogitação na realidade possível. Devemos considerar a visão de Andrei acerca
da questão financeira, bem como à ideia de como o rock fosse fundamentalmente uma
prática na qual o engajamento se desse por um senso de serviço, ou compromisso com
um ideal maior: É como se isso fosse um senso coletivo (de trabalho). Bem, por
exemplo, nós tradicionalmente achávamos desconfortável falar sobre dinheiro. Não
é que o dinheiro fosse proibido, mas é como se para nós não existisse. Em outras
palavras, de lá pra cá, não existe outra coisa semelhante a essa que seja tão
impossível de se falar. Mesmo para mim agora, como um adulto, é às vezes muito
difícil explicar ao meu empregador quanto de dinheiro eu espero ganhar por esse ou
aquele trabalho. Em outras palavras, para mim é complicado. Eu não poderia sequer estimar ou quanto devo ganhar por meu trabalho. Você compreende? Como se isso
fosse uma psicologia muito complicada. Para mim, por exemplo – Eu fiquei chocado
ao saber, lendo, dez anos atrás em alguma publicação por aí, que Ringo Starr
escolhera os Beatles e não um outro grupo qualquer, apenas porque lhe haviam
oferecido pagar dois pounds a mais do que receberia em determinado outro grupo.
Você consegue entender? Para nós isso seria absolutamente uma loucura. É como se
para nós tudo estivesse concebido em torno de uma ideia muito específica de ‘serviço’
(sluzhenie). E, naturalmente, todos nós, mesmo que ilusoriamente, estávamos
devotados à essa ideia. [Tradução do inglês e grifos nossos]
A consequência ainda duradoura em se ter dificuldades a proceder algo quase
automático na atmosfera Ocidental (conversão em valores monetários) é amparada ainda pela
semântica do termo sluzhenie, empregado com o sentido de ‘servir a um ideal’, que se apresenta
como uma aproximação melhor ao conceito do fazer música soviético com uma vocação (à
maneira weberiana) do que com um tipo de negócio. Situando as considerações do artesão
(Nedvetsky) com a do produtor [Tropillo], percebem-se diferentes visões entre indivíduos de
uma mesma época de vivência e lugar, em torno da relação ética com a música, onde há dos
recursos e a possibilidade do rock como um consenso/dissenso na percepção – e memória – da
realidade socialista local. Nedvetsky, situado na macro-região de Moscou, se demonstra um
232
tanto mais pragmático em torno das possibilidades de aquisição das guitarras elétricas no
mercado local e de como, mesmo em sua visão objetiva, se ressentiria da realidade precária de
possibilidades aquisitivas destinadas ao indivíduo cotidiano da URSS. Já Tropillo, por seu
turno, apresenta a reafirmação da ética vigente entre os músicos de Leningrado, de como o agir
dessa comunidade musical já lidasse como parte das contingências de sua atitude, a
impossibilidade de ganhar regularmente com o exercício musical, a falta real de patrocínio e a
realidade mais modesta de produção como um gesto de coerência com uma ‘liberdade
vocacional’. Como uma visão intermediária em torno dessa questão de custo-benefício,
recordando ao músico profissional Igor Romanoff em sua ‘barganha faustiana’ com o VIA, a
possibilidade de aquisição de melhores instrumentos ou, simplesmente, a oportunidade de
‘liberdade de criação para exercício e veiculação da música’ se encontram situadas entre o senso
pragmático do artesão moscovita e algum tipo de idealismo, como o do produtor leningradense.
Se como reincidentemente mencionado, nem todos os músicos do rock da URSS
estariam no esquema pelo dinheiro, mas, muito mais, pela oportunidade de acesso – a espaços,
permissões e instrumentos – teria-se, contraditoriamente, desses que estariam sim, muito
atentos à possibilidade de retorno financeiro, de status e captação de vantagens – como bem
ilustra o circuito VIA desenvolvido com grande força logo no início da Détente. E em meio a
tudo, haveriam esses que mais modestamente só buscariam conhecer e praticar algo ainda
inovador na realidade local: o acorde contagiante da almejada guitarra elétrica, aonde a presença
ainda marcante e ressoante dos Beatles, serviria a fascinar jovens entusiastas do bigbit e, por
vezes, desiludi-los ao reconhecer-se a distância de caráter e valores existentes entre suas
realidades.
3.2.2 Do Hardware ao Hardwork323: Sobre Pickups/Captadores e Fiação das Guitarras
Soviéticas [ou o Underwood do Underground]
Uma desesperada falta de informações sobre o verdadeiro valor, qualidade e características técnicas
de diferentes marcas de guitarras fornece um terreno fértil para negociantes underground
inescrupulosos. As coisas se tornam ainda mais complicadas por causa da ignorância generalizada
dos músicos sobre a configuração básica e a manutenção de seu instrumento. Em muitos casos, a sofisticação técnica básica começou a penetrar nos círculos de nossos músicos tarde demais. [...] Por
outro lado, também existiam muitos bons artesãos. Praticamente todos trabalhavam ilegalmente,
fabricando instrumentos sob encomenda. Alguns deles, entre os mais avançados e habilidosos,
optariam por se envolver na falsificação de instrumentos mundialmente famosos [...] Infelizmente, todos esses artesãos têm pouca escolha a não ser fazer cópias de machados da moda, uma vez que
seria difícil encontrar um cliente que não adorasse marcas da moda.
323Com base em MEDEVDOVSKY; GUZEVICH; Instrumentos Eletromusicais de Palhetada; Energyia, [1979]
In: CHIVERS, Jamie; Cheezy Guitars (2001) – Seção Articles: Soviet Pickups and Wiring (Autor creditado para
o artigo no site: LordBizarre); Disponível (em inglês) em: http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 21/03/2021
233
Yuri Dimitrievsky, luthier soviético324
Explorando um pouco da semântica do título, o hardware (ou as ferragens) necessário
à confecção de uma guitarra elétrica, apesar do nome, poderia ser facilmente adaptado de
violões antigos para uma realização artesanal bem-sucedida. As partes eletrônicas, entretanto,
requereriam um pouco mais de esforço e tempo para uma adequada execução.
Não há precisão quanto à origem do uso do captador nas guitarras elétricas (ou,
primitivamente, em violões e instrumentos de corda convencionais), mas recordando a
Hobsbawm (1995, p. 93), não por acaso, a revolução do rádio tenha estado sempre junto a esse
evento. Embora o historiador inglês não disserte acerca da questão, é curioso pensar que da
ideia de execução da voz com o advento da tecnologia do microfone (criado no início do século
XX) e do advento da transmissão do estímulo físico sonoro por meio de sinal elétrico – na
invenção disputada em pioneirismo entre Guglielmo Marconi e Nikola Tesla – com a criação
do Rádio (na década de 1920), se possa pensar que alguém tenha cogitado a seguinte
ponderação: ‘Ora, se a voz humana pode ser transmitida em sinal elétrico na frente de uma fonte
captadora, que aconteceria se colocássemos um instrumento ligado a esse dispositivo!?’. A ideia
deve ter agitado muitos músicos, radialistas e cientistas experimentais da Física, que colocando
os mais diversos instrumentos em contato com o ‘captador’ obteriam diferentes êxitos e
qualidades sonoras. Trompetes, trombones, tambores – enfim, instrumentos de sopro e
percussão, ou mistos de percussão e cordas (como o piano) muito ao lado destes de
convencionais de cordas devem ter sido testados, mas, por alguma conjuntura de fatores físicos,
a guitarra elétrica é que daria resultado. Não sem motivo: se por um lado seu corpo metálico de
cordame distribuía uma variedade ampla de sons, a presença de seu corpo amadeirado, oriundo
da tradição violão, na mobília do instrumento, forneceria as condições de absorção adequadas
a captação mais agradável do seu timbre estridente – filtrando-o e cadenciando-o. Talvez por
isso, instrumentos metálicos (ex: trompete, trombone, saxofone, etc.), tenham tido um sucesso
menor com o recurso direto do captador, inicialmente, sendo ainda acompanhados por captura
ao microfone (crooner) frontal. A ideia básica proposta é a de que: sem os captadores não
haveria microfones, e sem estes, não seria possível o recurso do rádio. Pelo mesmo mote: sem
a disseminação do rádio, teria sequer surgido a ideia de ‘capturar’ ao invés da voz humana o
vibrar de outras cordas – não vocais, mas violonescas?. Não por acaso, a história do rádio como
tecnologia situar-se na mesmo advento do da guitarra elétrica (primeira metade do XX) e, sem
324DIMITRIEVSKY, 1990 Op. Cit
234
surpresa alguma, o porquê de haver uma correlação entre as fábricas de rádio da URSS, nos
anos 1970, com a disponibilidade de acesso à uma peça fundamental na luthieria artesanal local:
a presença do captador.
O que a guitarra elétrica representa para o rock n’ roll é, dadas as proporções, o que o
captador representa na guitarra elétrica – o princípio de tudo. Recapitulando, o captador (ou
picape; do inglês, pickup), por exemplo, é a parte de uma guitarra elétrica que transmite a
vibração da corda metálica para um conjunto de magnetes presos em paralelo numa placa
metálica contendo bobina envolta em um imã maior. Tudo isso, ligado por uma fiação ao
sistema eletrônico localizado no corpo da guitarra elétrica, que ligada a um cabo, passa o sinal
para uma caixa amplificadora – causando todo o estardalhaço e efeitos característicos do rock
n´roll. Um captador pode ser embutido, já de fábrica no instrumento (como em aparelhos semi-
acústicos e bobinados) ou pode ser posicionado, com as devidas adequações, em um
instrumento acústico (como um violão, por exemplo). A potência do captador depende tanto da
disposição e número de bobinas de seu modelo, quanto da potência do magnete utilizado na
confecção desse componente. Sem essa parte em específico, a guitarra elétrica como se concebe
é um instrumento irreconhecível e sua sonoridade fica descaracterizada – em outras palavras,
sem captadores, sem rock n’ roll.
Por isso a importância de estuda-lo aqui, junto aos demais ‘mecanismos’ da realização
do fenômeno abordado. Vale recordar que em geral, não há registro de captadores soviéticos
do tipo humbucker (modelo Ocidental de captador bibobinado com dois singlecoil
alinhados)325, sendo os modelos produzidos disponíveis, aqueles feitos em bobina simples.
Nesse sentido, cabe salientar que a fabricação independente de hardware326 de guitarra na URSS
era uma realidade muito ampla – tanto em modelos, quanto em alternativas e proveniências –
desde a década de 1960. E nisso, se desde o advento da produção regular do instrumento (a
partir de 1968), parte das fábricas de guitarras na URSS produziria cada um dos seus próprios
modelos de hardware, muitas vezes as versões alternativas de captadores seriam e estariam
disponíveis em sortimento em muitos outros locais (geralmente, contando com o suporte de
fábricas de aparelhos eletrônicos de rádio). Ainda assim, por um bom tempo os captadores de
325Fonte: Site Guitarriego: Partes da Guitarra Elétrica; Disponível em: https://guitarriego.com/pt/guias-
pt/partes-de-guitarra-eletrica/ Acesso em 21/03/2021; 326As partes físicas metálicas da guitarra elétrica, na qual se inclui os captadores (motivo de controvérsia, por vezes
situado junto às partes eletrônicas), trastes, ponte, tarraxas, tremolo (alavanca e sistema de vibrato)e cabeçotes –
exceto as cordas;
235
guitarra independentes não estariam disponíveis para venda (peças individuais) – contudo a
demanda da guitarra em produções artesanais, principalmente durante a década de 1970, faria
surgir captadores "substitutos" e, até mesmo, pickguards (‘picaretas’) completos nos estoques
das lojas da URSS.
Como exemplos de ‘substitutos’, pode-se destacar os pickups Leningrado, feitos para
violões elétricos e acústicos, que eram montados em um pickguard que, por um lado, não
requeria um orifício, mas não era ajustável. Sua composição seria uma base de aço com um ímã
de ferrite preso em seu segmento e uma bobina ao redor do ímã, envolto em um invólucro de
plástico preto com uma abertura retangular e um encaixe de plástico perolóide. Tais captadores
Leningrado, seriam os modelos autônomos mais primitivos vendidos individualmente, embora
não fizessem parte da produção regular que acabasse na configuração industrial local dos
instrumentos.
E no ínterim que remete à uma ‘picareta completa’, destacaria-se a conhecida como
"bloqueio de tom" (ou ‘bloco de tons’), criação russa também produzida em Leningrado – que
fora projetada, originalmente, para ser montada em guitarras elétricas ou acústicas
(convertidas). O bloco apresentava proteção plástica (o escudo da picareta) com dois
captadores, adicionados a três potenciômetros para controles de tom, volume e conector de
saída.
Em menção à participação da produção em série por fábricas de aparelhos de
radiodifusão, consta o modelo do captador Kirovgrad, oriundo da fábrica de artigos de rádio de
mesmo nome, em duas versões: ZS-6 e ZS-4, para guitarra e contrabaixo elétricos. Sua estrutura
era feita em aço, com gabinete de latão – inseridos numa abertura retangular em perolóide.
Ainda que possuidor de duas bobinas, seu esquema em série não o constituía um humbucker,
porém, como cada uma continha 2.500 voltas, sua amplitude de potência era satisfatória.
E se na ‘capital da cultura’ a produção de captadores se demonstraria pujante, a capital
federal, não ficaria para trás. Daquela mesma pequena cidade da região de Moscou de onde
provinham os ‘intimidadores agressores de rockeiros e hippies’ – os liubery (CUSHMAN,
1995) – ironicamente, sairia a produção de uma das peças primordiais ao rock soviético: os
captadores Liubertsy, em homonímia a sua região de proveniência. Lá seriam produzidos
captadores para guitarras e baixos elétricos, mais disponíveis em todos os arredores de Moscou.
Sua montagem arrojada e facilidade de instalação, seria disponível a aumento de tonalidade
236
para as cordas, individualmente – um avanço para a técnica à época.
Outro modelo de pickguard que ganharia destaque na URSS dos anos 1970, seria o
Vinniza – produzido na cidade homônima, numa fábrica de dispositivos eletrônicos
diversificados (não propriamente, guitarras). Não restam modelos completos que apresentem
características totais desse pickguard, pois sua produção, aparentemente, disponibilizada como
parte separada, só foi atrelada, posteriormente, a um instrumento musical produzido pela fábrica
(o violão Vinizza) e insuspeitos exemplares de guitarra encontrados com o conjunto de
pickguard montado.
Em meio aos modelos de arranjo de fiação URSS, uma surpresa técnica marcante é o
registro de um advento da tecnologia desenvolvido à década de 1970 por lá e que somente
adotado, tanto no Ocidente como à Oriente, cerca de uma década depois. Para entendê-lo, deve-
se observar que o esquema de fiação das guitarras elétricas soviéticas obedecia diferentes
arranjos, tais como os captadores e pickguards, decorrentes das distintas requisições e soluções
encontradas para o material musical. Decorrente disso, controles e recursos de efeitos ficavam
também oportunos de muito opcionais e em ampla possibilidade de configuração. Recordando
aos efeitos (pedais; amplificações) disponíveis, as guitarras soviéticas às vezes apresentavam
vários – e muito complicados – controles integrados, sendo um dos mais relevantes, o esquema
de fiação/ligação relativo ao modelo de plug DIN-5 (padrão da indústria da URSS), que,
curiosamente subestimado, já apresentava uma marcante característica inovadora: ao invés de
um conector mono/ simples como usado em guitarras "ocidentais", se parecia muito com uma
conexão MIDI, permitindo várias funções impossíveis a um plug/entrada convencional – e tudo
isso, em plena metade da década de 1970 (!)
3.4 A TRILHA SONORA DE UMA CRISE: O JINGLE ESTATAL A URSS É MEU
ENDEREÇO E DEPOIMENTOS DE PESO EM MEIO A UM TURBILHÃO CULTURAL E
O ‘LONGO INVERNO’ DE UMA ECONOMIA ESTAGNADA
Tenho de estar no meu trabalho às nove/Mas já faltam apenas dez [minutos]
E estou recém acordando/E na minha mesa está meu café E eu preciso terminá-lo/Provavelmente não estarei lá pelas nove
São apenas dez pras nove ...
Vou colocar no meu relatório/ que o motivo foi uma ida ao médico
E eu não vi relógios pelo caminho
Deixe que me repreendam/Em meu emprego Deixe que me desprezem/Em meu emprego
237
São apenas dez pras nove ...327
Viktor Tsoi, frontman do grupo soviético Kino,
em Без Десяти [Bez Desyati; Dez Pras Nove], do Álbum: 46’, de 1983
A década de 1970, conforme observado ao mencionar da Détente, não se tratava de um
período simples ou de características de análise homogêneas, no tocante à situação das
superpotências da Guerra Fria. Entretanto, peculiaridades mais marcantes dariam o tom desse
período, onde, novamente, por força de suas características estruturais e conjunturais, URSS e
EUA haveriam de se aproximar. Afora o já mencionado fato da cooperação na seara de pesquisa
espacial, as questões de fundo eram as mais gritantes motivadoras desse período de relativa paz
entre as potências contendoras, onde despontariam: o prelúdio de uma crise econômica em
ambos os lados da ‘cortina-de-ferro’, precedidos por um desgaste político interno em cada uma
das nações.
Pelo lado soviético, a crise de produção deflagrada após o fracasso das políticas de base
industrial (com relevo, a Economia Responsiva de 1968, que aqui abordada segundo Geldern,
2003, Martens, 1990 e Garaudy, 1970) colocariam Brejnev em uma situação de dedicação mais
exclusiva ao apaziguamento interno de questões sociais e relativas às estratégias de
continuidade de seus apoios junto ao Comitê Central do PCUS. Assim, a URSS já percebia que
mais do que obter do ministro Aleksey Kosygin, possibilidades de driblar as adversidades que
se seguiriam à primeira fase da crise econômica, uma atuação mais endógena do partido, menos
tendente a se contender no cenário internacional com a contraparte estadunidense, se fazia mais
necessária àquele momento. Seria esse o terreno fecundo à prática de um quid pro quo muito
reprovável entre integrantes da cúpula dirigente da União Soviética (conforme Martens, 1990;
Hobsbawm, 1995; Garaudy, 1970).
Isso resultaria em escolhas questionáveis, por conta da urgência de angariar-se
suficiente apoio para poder obter-se continuidade nas propostas, se colocara uma sombra a
pairar por todas as manifestações de autocracia dos dirigentes soviéticos. Precipitaria-se assim
toda uma aceitação, em termos banais, dos maiores e escusos ‘favores’ burocráticos e a
perpetuidade pouco virtuosa de partidários em posições estratégicas que urgiam por
remanejamento. E nisso, ficaria gritante o papel da (auto)propaganda e loquacidade de Brejnev
nos discursos realizados nos Congressos do Partido ao período (como ilustrado por Martens,
327Tradução da canção; Fonte: RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music; Disponível em:
http://www.russmus.net/song/7186#Russian; Acesso em: 21/06/2021
238
1990), como forma de tentar administrar a credibilidade abalada em muitos dos setores internos
e mesmo internacionais do Socialismo.
Pelo lado estadunidense, de não menor modo, o cenário político se esfacelava numa
crise flagrante demonstrada desde os incidentes do escândalo de Watergate, envolvendo os
nomes de republicanos como o Presidente Richard Nixon (1968-73) e seu vice, Spiro Agnew,
numa grande demonstração de corrupção político-empresarial, incitadora de espionagem ao
partido opositor (Democrata). Em estratagemas que iriam desde a manipulação da mídia
(conforme se pode observar no tribunal-espetáculo que indiciaria o jornal The Washington Post,
por fazer questionamento a postura do governo naquilo que referente a campanha do Vietnã)
até a tentativa de direcionamento da opinião pública em torno da Guerra do Vietnã, não apenas
resultara em um fiasco, mas em um fracasso simultâneo da eficácia do exército e do corpo
político dirigente do Congresso dos EUA e da Casa Branca. Era ela quem tinha costurado
argumentos anti-socialistas, patrocinara a estapafúrdia e duradoura campanha militar por quase
duas décadas, dando encerramento às vidas de milhares de inocentes, dentre jovens, idosos,
mulheres e crianças vietnamitas, até as estrondosas baixas militares – de ambos os lados da
contenda – na qual protagonista majoritária, seria toda uma geração de jovens norte-americanos.
A corrupção que alimentara a chacina no Vietnã, empurrara os jovens dos EUA para o abismo
da guerra ou para a criminalidade da não-adesão (criminalizada, sim, e punida como ato anti-
patriótico de dever civil ao serviço militar, como destacado no emblemático incidente do
pugilista Cassius Clay [Muhammad Ali], que assim como muitos coetâneos, ao agir pela via da
escusa de consciência, por não ingressar na guerra seria destituído de seu título de Campeão
dos Pesos Pesados e aprisionado como infrator).
Em outras palavras, ambos os lados da Guerra Fria estariam, pelo menos até a primeira
metade da década em curso (1970), ‘reorganizando a casa’, politicamente, para se recuperarem,
cada qual a seu modo. Curiosamente, ambas as potências estariam, àquele momento, também a
precipitar-se em novas crises logo a seguir. Do lado soviético, a quebra econômica em curso
desde o final dos anos sessenta, conduziria a partir de 1973 a uma recessão econômica, a qual
resultaria numa estagnação da produção do chamado ‘segundo mundo’ em um nível
alarmantemente similar ao de países em desenvolvimento – a chamada Zastoya (KEPLEY JR,
2017). Pelo lado Ocidental, em simultâneo, o avanço imperialista estadunidense se mostraria
enfraquecido. Nisso se observaria, à surpresa geral dos EUA, outro duro golpe em sua
influência no Oriente Médio: o Irã com sua Revolução dos Aiatolás (1979), fulgurantemente
liderado pelo líder religioso Aiatolá Khomeini, levaria setores populares e militares locais a
239
derrubar o governo alinhado aos estadunidenses (desempenhado pelo Xá Reza Pahlevi)
ocasionando logo em seguida, a reboque, um câmbio nos preços do petróleo, desencadeando
uma nova Crise do Petróleo (precedida pelas de 1968 e 1973) – considerada como a última
grande crise do capitalismo do século XX e o fim da chamada Era de Ouro, iniciada no pós-
Segunda Guerra (HOBSBAWM, 1995; pp. 186-192).
De modo mais esmiuçado, fica didático entender porque é que se gozaria então da
sobredita trégua, que nada mais impunha que a confirmação de que ambos os gigantes se
encontravam em desgaste àquele momento e buscando mudar de rumo. No lado Ocidental, seria
o que levaria, por exemplo, a eleição de um governante do partido Democrata na Casa Branca:
Jimmy Carter, em 1977 (precedido que fora pelos republicanos Nixon e Ford), o qual sustaria
o patrocínio aos regimes militares da América Latina, ratificaria a descriminalização dos
evadidos do cumprimento do serviço militar para com a Guerra do Vietnã, assinaria os tratados
conseguintes de redução de armas nucleares (HOBSBAWM, 1995) e buscaria oferecer ao
público, a visão de que seu país careceria de uma ‘perspectiva para anos mais difíceis’ (FICO,
2017).
E na URSS, ainda sob Leonid Brejnev, buscando contornar esses problemas, daria-se
início a uma estratégia ousada propaganda interna: surgiria assim a campanha estatal A URSS
É Meu Endereço, de 1972-73328.
A campanha estatal que surgia, vinha embalada em recentes transformações que
grassavam na porção soviética. Se o VIA era uma realidade a se considerar e, em seu bojo, o
rock trazia o tom da musicalidade da juventude, se fazer popular entre os cidadãos da URSS
era entender e considerar tal demanda. Entre outras verificações que atestam esse ‘tom’ rumo a
uma modernização – ao menos, no sentido mais alegórico de aspectos sociais, visto que,
politicamente esta continuava, majoritariamente, com a estrutura de costume – encontram-se
aquisições de mídia que ganhavam os lares soviéticos, promovidas em meio a economia que
encontrava-se em incerteza: as televisões por moradores/casa na URSS, em 1972, por exemplo,
alcançavam a cifra de 50 % entre a população urbana e programas de televisão como o KVN
(sigla das iniciais de Clube dos Alegres e Engenhosos, em tradução aproximada), ficavam muito
fortalecidos no apupo e gosto populares (EVANS, 2003)329. O KVN, em especial, seria um
328My Adress Is Soviet Union (1972); In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary
sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-
music/my-address-is-the-soviet-union-1972/; Acesso em: 21/06/2021 329EVANS, Christine; 1973 - KVN Cancelled; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of
240
programa de auditório estatal proveniente das criações da Era do Degelo, tendo principiado
ainda em 1961. Seu esquema básico era de um sortimento de variedades, conduzido por
apresentador junto à um público interativo (e os telespectadores), contendo segmentos de jogos,
brincadeiras (gincanas), suplementos de humor, concurso cultural e demonstrações de proeza
intelectual (concurso de perguntas-e-respostas, ao estilo Jeopardy)330. Em seus números,
brilhavam como protagonistas, jovens acadêmicos, em geral do sexo masculino, realizando as
provas e colocando-se em situações, ora cômicas, ora de entretenimento, previamente
autorizadas – (EVANS, 2003).
No entanto, a proporção que o programa ganhara em meio ao seio popular, transmitido
a partir de 1967, da central televisiva de Ostankino, cuja cobertura espraiaria à 70% do território
soviético, somada a influência que despontava de um ‘clima’ de relativa liberalidade, faziam
soar o alarme à administração do aparato soviético de que o programa estivesse conduzindo a
uma indesejável impressão equivocada de ‘libertinagem’, uma influência contra-hegemônica à
ideologia e comando da URSS. O carisma dos apresentadores e o gosto popular pelo
suplemento exibido, levariam a que se tornasse alvo principal do novo dirigente do Comitê
Estatal de Rádio e Televisão (Gostelradio), Sergei Lapin (afeito a uma linha mais intransigente
da administração), o qual, de sua assunção ao cargo em 1972, desde logo preconizaria toda uma
reformulação dos quadros do programa – algo que progressivamente, conduziria ao seu
cancelamento, ainda no ano em questão.331
O duro golpe em plena juventude que se considerava em ‘abertura’ e ansiando por mais
que a conquista do VIA, não seria uma medida encarada sem um sabor impopular. Desse
modo, fazia urgir uma contra-medida atenuante. Seria assim, que convocando o músico e
arranjador David Tukhmanov, proeminente guitarrista soviético, integrante do esquema VIA e
artista querido pelo público, e unindo-o ao talento compositor de V. Kharitonov, seria
primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/kvn-cancelled/; Acesso em:
20/06/2021 330O Jeopardy (do inglês, perigo; risco), é um programa televisivo de perguntas e respostas, ao estilo quiz show,
onde participantes se enfrentam, alternadamente, desafiando-se através de perguntas formuladas segundo temas pré-determinados, que devem ser respondidas pelos adversários, angariando pontos cumulativos a cada acerto (ou
perda de pontos, em caso de erro). Sagra-se vencedor o time (ou participante solo, a depender do caráter
eliminatório da competição) que obtiver o maior número de pontos na rodada final (que pode ser decidida em um
programa ou como fase culminante em uma série de participações durante um período). Seus temas de desafio
contemplam diferentes saberes, cobrindo temas como História, Literatura, Esportes e Música. O programa e seu
esquema original, desde a primeira exibição, surgiria nos EUA, ainda na década de 1960 (com a transmissão
inaugural veiculada pelo canal estadunidense CBS, em 1964), contando atualmente com uma imensa gama de
variações autorizadas em emissoras televisivas ao redor do mundo. Fonte: Jeopardy Official Website. Disponível
em: https://www.jeopardy.com/; Acesso em: 20/06/2021 331EVANS, 2003. Op. Cit.
241
encomendada a composição de uma melodia pulsante, cativante, a qual colocasse entusiasmo à
proposta de um re-engajamento civil – uma verdadeira campanha estatal, espetacular como o
gênero estrada (dançante e popular como as canções de palco), mas com função
ideologicamente esperada, própria da massovaya pesnya (caracterizada por hinos e marchas em
tributo às instituições soviéticas). Com uma letra elaborada pela Associação dos Compositores
da URSS, e a melodia de Tukhmanov, surgiría entre 1972-73 um jingle soviético cadenciado,
à la VIA, contendo uma letra positiva e conformista, pró-estabelecimento, enquanto sintonizada
na sonoridade urdida pelo apelo juvenil popular – com o sugestivo nome A URSS É Meu
Endereço.
Analisando alguns trechos da canção – encontrados na plataforma digital de fontes
primárias Seventeen Moments of Soviet History, 2003 – pode-se perceber nitidamente o
posicionamento tomado pelo aparato, em absorver não apenas o esquema de organização dos
grupos preceito de rock (sob o VIA), mas a própria sonoridade do rock para uma finalidade
destoante daquela que notoriamente difundida e conhecida com o ritmo em questão. Ao invés
de um rock contra, aparecia um rock a favor, cuja atitude, considerando-se as colocações feitas
pela comunidade rockeira de Leningrado (conforme CUSHMAN, 1995), ‘nada teria de rock de
fato, apenas o uso funcional, institucional de uma instrumentalidade de sua música’. Pela qual,
segundo tal interpretação, a gramática do rock seria utilizada, à revelia de seu caráter, como um
elemento qualquer de absorção e promoção da estrutura da indústria cultural soviética. Algo
que se pode observar nos excertos em análise a seguir – cuja versão original está também
presente nos Anexos deste trabalho (contemplando três grafias: em cirílico, em inglês e em
português):
As rodas do vagão ditam/ Onde nos encontramos com urgência
Meus números de telefone/ Estão espalhados pelas cidades
[Estribilho]
O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga
Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço
Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço
Pontos e traços telegráficos/ Você procura por mim nos canteiros de obras
Hoje, assuntos pessoais não são importantes/ Apenas os relatórios do dia de trabalho
O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga
Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço
Eu estou onde os caras são sensatos/ Eu estou onde os cartazes proclamam "para
frente"
Onde uma nação trabalhadora canta/ As novas canções dos trabalhadores
O coração se importa, o coração se preocupa/ O correio embala a carga
242
Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço
Meu endereço não é uma casa ou rua/ A União Soviética é Meu Endereço
Мой Адрес Советский Союз, 1972 [Moy Adres Sovietskyi Soyuz/ A União Soviética É Meu Endereço, 1972]332
As sentenças carregadas de ufanismo, otimismo e positividade, vinham contrastar com
o início do período de uma crise econômico-social pronunciada, de efeitos bastante profundos
na realidade soviética. Mais do que isso, o apelo ao elemento patriótico ao abordar-se o senso
de localização (endereço) com o de pertencimento (à URSS), continham muito daquilo de
reincidente em outros períodos da União Soviética: o nacionalismo/patriotismo soviético, que
fora evocado por Stálin como elemento crucial à coesão de múltiplas etnias durante a Guerra
Patriótica (2ª Guerra Mundial) e rejuvenescido nos avanços tecnológicos de uma Corrida
Espacial – não menos patriótica – perpetrada na Era Kruschev, que fariam presença também
na administração Brejnev, através do recurso da mídia tecnologizada e popularmente acessível.
No conceito de ‘pátria e pertencimento’, grande motor de propulsão do estribilho da
canção, figuraria um elemento conhecido da cultura soviética: o termo rodina (родина). Por
rodina, segundo Cushman (1995; p. 171) entende-se algo que costumeiramente traduzido como
‘terra-mãe’ ou ‘pátria-mãe’, uma das mais emblemáticas formulações do ideário da
‘russianidade’ concebida no século XX, portanto, uma autêntica instituição oficial da cultura
soviética. Por esse conceito, ‘seu lugar primeiro de pertencimento, com que se pode contar e
confiar’, seria a ‘pátria-mãe, sua terra natal’ – algo que, com o passar do tempo, seria revisitado
pela percepção dos cidadãos da URSS, que chegariam a um outro conceito (CUSHMAN, 1995;
p. 109) – como percebe-se no depoimento incisivo do músico Zhenya, entrevistado pelo
sociólogo, que dissertaria sobre a relação com seu pai, um negociante inglês (p. 171):
[...] O que que eu faria na Inglaterra!? Me tornaria um homem de negócios inglês?
Todos os meus amigos e minha vida estão aqui. Você sabe, eles sempre estão por aí
falando de rodina. Você sabe, rodina para mim é onde meus amigos estão. Se meus
amigos estivessem na África, então minha rodina seria na África. [Traduzido do
inglês]
Outro recurso da retórica presente na canção para reavivar um preceito mais tradicional
do sovietismo, é a tentativa flagrante de apelar para o coletivismo e o trabalho. As menções tais
como: ‘Meus Números de Telefone/ Estão espalhados pelas cidades’ [...] ‘Meu endereço não é
332KHARITONOV, V; TUKHMANOV, D; Мой Адрес Советский Союз [Trad. Literal: Meu Endereço É A
União Soviética; Trad. Semântica: A União Soviética É Meu Endereço]; URSS. 1972; A versão aqui utilizada
segue conforme encontrada na entrada My Adress Is The Soviet Union – 1972; In: Seventeen Moments of Soviet
History: An online archive of primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-
2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-music/my-address-is-the-soviet-union-1972/; Acesso em: 21/06/2021
243
uma casa ou rua’ [...] e ‘Hoje, assuntos pessoais não são importantes’ – demonstram-se claras
assertivas no sentido de diluir o elemento mais subjetivo individualista dos cidadãos. Conforme
já mencionado no trabalho, seria o resíduo constante dessa batalha entre koletivinazthyi
(coletividade) e lichnasty (auto-identidade; diferente de sovietsky lichnasty ou ‘identidade
soviética’), cuja tensão seria vista ao longo do tempo, quer por músicos, quer por cidadãos,
como receptáculo de muitas das tensões vividas na sociedade da URSS.
Quanto à ‘ode ao trabalho’, as menções como ‘[...] ‘Assuntos pessoais não são
importantes/ Apenas os relatórios do dia de trabalho’, ou mesmo ‘As rodas do vagão ditam/
Onde nos encontramos com urgência’, seguidas de ‘Estou onde os caras são sensatos’ –
perseguem o ideal de uma sociedade planificada, planejada, cujo aparato de controle se
entroniza nos cidadãos através da realização do trabalho, que estabelece um sentido, uma
direção – dentro dos planos estatais, sem espaço para divergências ou ‘desvios de rota’. Tais
conceitos, se coadunam perfeitamente ao padrão pretendido com os passaportes internos,
consubstanciados pela trudovaia kinidzhka (carteira de trabalho), que não apenas transformava
o trabalho em alegórica forma de rotina do cidadão local, mas num instrumento de fiscalização
de seu proceder, seu trajeto e sua prestação ao Estado. Não obstante, no quesito ‘desvio de rota’,
e, portanto, ainda mais semântica a colocação de ‘Onde as rodas do vagão333 ditam/ Onde nos
encontramos’ – remetem-se ao controle real do direito de ir e vir dos cidadãos, tanto na alegoria
do deslocamento físico autorizado – mas também através do marcante exemplo, dos controles
internos de suspensão e baixamento das pontes de comunicação entre os distritos de
Leningrado, limitando os horários de encontro e circulação de pessoas na cidade (CUSHMAN,
1995; pgs. 174-76) – quanto na representação do sentido de trajeto moral adequado – zhisnenyi
put’ (trajetória de vida).
Se a reificação do ser humano se daria pelo trabalho, segundo a interpretação marxiana
clássica, na interpretação literal soviética, seria este o fundamento e instrumento principal do
seu controle ideológico: não trabalhar constituía um excesso de individualismo, redundando em
crime e vergonha, simultaneamente. Daí, então, o porquê de se tentar amealhar o senso de
pertencimento à ‘pátria-mãe’ pois, segundo Sennett (2015), a personalidade inculcada no
indivíduo daria espaço à construção, voltada ao âmbito coletivo, do caráter.334
333Para adiante das considerações hermenêuticas mais metafóricas da letra, o apelo em torno da figura do transporte
ferroviário em sua relação com o trabalho seria pertinente, uma vez que os trens desempenhariam (principalmente
nas capitais Moscou e Leningrado) importante papel no transporte local de trabalhadores, cotidianamente. 334SENNETT, Richard; A Corrosão do Caráter: As consequências pessoais do trabalho no Novo Capitalismo;
Trad. Marcos Santarrita; 16ª Edição. Rio de Janeiro: Record. 2015
244
3.4.1 Lecionando uma Cruzada Conformista: Cifras de um comércio dirigido,
claudicações sutis e um crime organizado – num subúrbio nem tanto – ladeando as origens
da Campanha Estatal em apoios sociais conservadores
As fronteiras da comunidade socialista são invioláveis e intangíveis. A unidade fraternal dos países socialistas é a melhor muralha contra as forças que tentam atacar e enfraquecer o campo
socialista [...] A aproximação de todas as classes e grupos sociais e o reforço da sua unidade social
produzem-se entre nós com base na ideologia marxista-leninista.
Leonid Brejnev, Discurso durante o XXIV Congresso do PCUS, em 1971335
Não seria apenas a preocupação ideológica que a questão do jingle estatal tentaria
contornar, mas uma questão econômica. Ao posicionar uma ênfase no VIA, chamando-o a
‘modernizar’ a cara da URSS, enquanto mantinha sua estrutura, buscava-se deixar aberto um
leque de opções de consumo aos cidadãos, com os ‘ventos de tempos revigorados’. Assim, a
questão de circulação de mídias e produto cultural interno e exterior no mercado de consumo
local seria pragmaticamente econômica – atuando em diferentes frentes. Conforme o
historiador ucraniano e ex-americanista336, Sergey Ivanovicz Zhuk, ao abordar o tema em seu
artigo – Richard Stites, The Soviet West and the Americanists, de 2015 – deixa transparecer, a
influência Ocidental da mídia viria encontrar-se à circunstância soviética, toda motivada e
precipitada dos eventos que a haviam antecedido (no Degelo), mas também devido à atmosfera
sócio-econômica da Era Brejnev (p. 163):
A gravadora de música soviética Melodiya lançou o primeiro licenciado de discos de
música Ocidental para atender à crescente demanda entre os jovens consumidores
soviéticos de música Ocidental, e ao mesmo tempo, para responder aos novos
requisitos ideológicos da entrada soviética no entretenimento. Entre 1970 e 1975, a
Melodiya lançaria numerosas compilações de músicas que incluíam canções
populares de rock Ocidental, sem qualquer permissão oficial de gravadoras ocidentais.
Na verdade, o primeiro lançamento soviético ‘pirata’ datado de 1967, incluiria uma
compilação da canção dos Beatles, Girl e dos Rolling Stones [I Can´t Get No],
Satisfaction. As compilações mais populares da Melodiya da década de 1970 incluem
House of The Rising Sun, do [grupo] Animals; Holiday, I Can´t See Nobody e To Love Somebody, do Bee Gees; Mary Long e Super Trouper, do Deep Purple; ‘Cause I Lov
You, do Slade; Funny Funny, do Sweet; Hot Love e Bang A Gong (Get It On), do T-
Rex. Na década de 1970 e início dos anos 1980, Melodiya lançaria sucessos populares
de Elton John, Creedence Clearwater Revival, Pink Floyd, Jethro Tull e outros
335MARTENS, 1990. Op. Cit. 336Por americanista deve-se entender, desambiguadoramente, o sentido de um especialista historiógrafo, na
cadeira de Americanismus, cátedra soviética criada ainda na década de 1950, que segundo Sergey Zhuk, em algo
similar aos objetivos estratégicos dos Area Studies estadunidenses, seria uma especialidade acadêmica voltada a
estudar prospectivamente o tema da ideologia, costumes, história, economia e cultura dos EUA, com finalidades
de obtenção de vantagem de conhecimento durante a Guerra Fria. A busca por entender-se como os estadunidenses
haviam conseguido tornar-se prósperos na circunstância da modernidade industrial e seus aspectos de vanguarda
em muitas searas (com vulto, na economia, pesquisa científica civil e militar, ou mesmo na exploração das
ferramentas de distribuição informacional cultural) demarcariam áreas de interesse de conhecimento crescente
entre a cúpula administrativa da URSS, que começaria a implementar com os americanistas, novas formas de
abordar diplomaticamente o Ocidente. Fonte: ZHUK, 2012; pp. 166-69
245
músicos de rock ocidentais. Claro, os Beatles e os Rolling Stones eram representantes
veiculados em uma série de doze minions (versão soviética de discos de música
individuais com quatro canções[semelhante aos singles ocidentais]) que seriam
lançados pela Melodiya sem nenhuma licença oficial de gravadoras ocidentais durante
[o período] 1967-1975. [Tradução do inglês e grifos nossos]
De um lado estaria a influência dos recentes eventos tecnológicos alavancados com o
alcance (como analisado anteriormente) de uma indústria de radiodifusão e instrumentos da
URSS, direcionada ao consumo doméstico, que proporcionaria, ineditamente, magnitofons,
guitarras elétricas e captadores no horizonte de produtos da população local – procurando-se
nisso, de um fomento interno à cultura de gosto, o aquecimento progressivo do consumo e
absorção da produção estatal. Colateralmente, em outra porção, não se pode olvidar, segundo
ZHUK (2012), a preocupação simultânea nesse panorama de ‘guinada de costumes à moderna’,
com o intuito de alimentar um público do gosto, aquecendo assim a procura por produtos
culturais soviéticos, de radiodifusão e a procura pelos espetáculos locais e cinemas soviéticos,
mesmo que oriundos ou orientados pelo referente Ocidental.
Destaca-se nisso o ‘surto’ emblemático e autorizado de diversos conjuntos VIA
protagonistas de ritmos inéditos na URSS, tais como: a disco music (conforme visto na
interpretação de Valeryi Pavlov)337; o rock experimental (como ilustram os grupos Vyselya
Rebiata e Polyuschchi Guitaryi)338; e as modalidades de chanson, à moda americana (com
destaque para o artista soviético Eduard Khill339, com uma persona vocal semelhante a de
nomes canônicos como Frank Sinatra, Tony Abott e Burt Bacharah) e francesa (através da voz
poderosa do músico Alexander Gradsky340, cuja interpretação poderia ser comparável em valor
337Como pode ser conferido nessa ‘disco soviética’, que traria cadência e ritmo muito semelhantes à trilha sonora
do filme estadunidense Saturday Night Fever (1977), no audiovisual da canção Осталовите Музику (Astalavite
Múziku), de 1977, interpretada magistralmente por Valeryi Pavlov – disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AX53syaXUWQ&ab_channel=%D0%A1%D0%B5%D1%80%D0%B3%D
0%B5%D0%B9; Acesso em: 20/06/2021 338ZHUK, 2012. Op. Cit. p.163 339O afamado viral da internet ‘Trolololo’, que consagraria já septuagenário o intérprete Eduard Khill, mostra
apenas uma das versatilidades do cantor de Smolensk, Rússia. Segundo conta em sua biografia, a versão arrojada,
realizada para uma audição em Moscou na URSS de 1970, mostraria o cantor pressionado em uma situação onde
integrantes da produção do programa de televisão onde iria apresentar-se, surpreenderiam-no às vésperas do
quadro, com uma censura quase integral da letra (a qual falaria supostamente de um caubói nas pradarias), tendo assim a ideia ousada de apresentar-se apenas em solfejos e repetições, muito bem executados, das sílabas lo-lo-lo,
causando do seu inusitado, um dos maiores números musicais consagrados no princípio do século XXI e fenômeno
da internet. Fonte: NOVOSTY, 2015 340Formado e condecorado no Instituto Musical e conservatório Gniesin em Moscou, Alexander Gradskyi teria
uma carreira prolífica já anteriormente à década de 1970. Sua participação na década de 1960 em conjuntos de
bigbit como Skomorokhy (‘Os Bufões’), Taraskany (‘As Baratas’), Los Panchos e eventuais participações nos
grupos Myths e Scythians, o levariam a ser considerado no princípio da década seguinte como um dos importantes
ícones do VIA, onde emplacaria êxitos como a magnífica canção Как Молоды Мы Были (Kak Molodyi My
Byli) de 1976, na qual exibiria como em poucas oportunidades, as três oitavas de sua extensão vocal (tenor).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lj0JzDz0vVY&ab_channel=Starkoff; Acesso em:
246
a de Charles Aznavour – todos gêneros que consagrados, embora entoados em língua nacional
(russa), bastante distintos ao costumeiro da produção soviética. Somaria-se a esse argumento,
contextualmente, a compra de materiais audiovisuais ocidentais a abastecerem os cinemas
soviéticos como somente se observara igual durante o período do pós-Guerra Patriótica – onde
Stálin exibira os ‘filmes troféu’ angariados dos Aliados, como forma de manter ativos os
baqueados e depauperados cinemas soviéticos, durante e após o esforço de guerra e
reconstrução (KEPLEY JR., 2008). Segundo Zhuk (2012; pp. 165-66):
Na URSS em meados dos anos 1960, as vendas brutas de ingressos para o cinema
estariam em aproximadamente 1.000.000.000 de rublos anuais, dos quais o Estado
teria coletado 440.000.000 em lucro puro. Eventualmente, a noção de comércio e
sucesso social da indústria cinematográfica soviética levou à sua internacionalização
e compra de mais filmes estrangeiros, o que trouxe mais lucros para a indústria. Para
cada rublo investido de seu orçamento, as autoridades soviéticas, estimariam das compras de filmes estrangeiros, uma receita combinada de retorno de até 5 rublos;
dentre o pacote de filmes de faroeste, podia-se chegar em até 250. O Ministério
Soviético da Cultura começaria a comprar um grande número de filmes estrangeiros
– em 1955, 63 filmes, para 113 em 1958, com planos para mais de 150 em 1960. No
período de 1954-1991 a URSS importaria: 206 filmes da Índia; 41 dos EUA e 38 da
França. Em 1960, cada filme do mundo capitalista atrairia uma audiência média de
mais de 500.000 [espectadores] em Moscou, enquanto as produções soviéticas
alcançariam uma média de 357.000, e as demais produções do Bloco Socialista,
chegariam a 133.000. {...] Durante a Era Brejnev, apenas em 1973 a principal
autoridade soviética para aquisição e distribuição de filmes estrangeiros,
Soveksportfilm, compraria mais de 150 longas-metragens de cerca de 70 países
(cinquenta deles, oriundos do Ocidente capitalista). Durante o período da Détente, esse número cresceria. Mais filmes ocidentais alcançariam a União Soviética – a
cinefilia do final da década de 1970, era maior do que a da década anterior.
O papel dessa exibição, nada inocente, seria marcante, segundo a opinião do autor, na
influência da juventude soviética, para a qual consideraria que ‘os filmes de western exibidos
entre as décadas de 1960 e 1970, por poucos que fossem, representariam um maior contribuinte
à Ocidentalização da juventude local, do que a música e os livros oriundos da banda Ocidental’
(p. 166). Ainda nessa explanação, ressalta que a taxa de consumo de cinema entre os jovens
locais, seria de dois a três filmes por semana, em período escolar, subindo para seis a sete filmes,
durante os recessos letivos – na década de 1970. Sendo 90% desses filmes, originários da
cinematografia do Ocidente capitalista (ZHUK, 2012).
E essa enxurrada de novos materiais ao circuito cultural em terras soviéticas estaria em
crescimento, concomitantemente, ao esquema de intromissão das organizações criminosas
locais – as irmandades de ladrões e criminosos, que na Rússia, intituladas bratvas. Tais
organizações atuariam atravessando desde produtos importados até parte da produção de cultura
21/06/2021
247
alternativa, ostentando um ar de desafio ao proceder estatalmente referenciado (FRIEDMAN,
2000)341. Da máfia russa, cabe mencionar que tenha surgido ainda durante os eventos da Grande
Guerra Patriótica (1941-45), por conta dos re-admitidos egressos dos gulags (sistema prisional),
‘libertos’ às pressas para cumprirem o dever no front de batalha. De delinquentes comuns a
criminosos políticos, essa camada de soldados recrutados ao esforço de guerra, essenciais à
vitória alcançada, teria seu papel, maquiavelicamente, subestimado no período logo posterior,
no qual Stálin optaria por reenquadrar e reencarcerar tais ‘pretensos soldados’. Como
resistência, muitos dos foragidos à tentativa da nova captura, se organizariam em bratvas
secretas, escondendo-se aqui e ali e amealhando-se aos setores de atividade ilícita das capitais
da Rússia – como por exemplo, nas atividades do mercado negro. Conforme visto, em Brejnev,
a função dos atravessadores (tolkachi), durante a Economia Responsiva (1968), cresceria
perigosamente, e seu poder de influência alcançaria, paulatinamente, articulações junto ao
próprio governo, entremeando-se na malha de colaboradores ‘informais’ da Nomenklatura. Não
obstante, sob o olhar leniente (ou seria indefeso?) da administração local, em meio ao cenário
da recessão econômica uma das maiores organizações criminosas soviéticas surgiria: a
Pyramida-5, máfia sediada em Moscou e ramificada em colaboradores por todo o território da
URSS, cuja filha do secretário-geral Brejnev, Galina Brejneva, seria uma das principais
comandantes, coordenando o esquema de crimes como contrabando e tráfico (FRIEDMAN,
2000)342.
Esse mundo controvertido feito de ‘esgarçamento do tecido social estatal’, ainda
encontraria outro movimento juvenil, em simultânea eclosão àquele momento (meados de
1970), desencadeado pelo fenômeno outrora proporcionado pela urbanização de Kruschev: os
gopniks343. A estrutura habitacional da Era Kruschev – formada pelas Kruschevskayas
(moradias de Kruschev; conjuntos habitacionais), durante os anos de 1961-63, faria aglutinar,
promiscuamente, a toda uma geração de ‘filhos moradores’ desses maldosamente epitetados
‘lixões de Kruschev’ (‘kaka’). As moradias comunais, criariam o cenário na década seguinte de
um agrupamento maciço de cidadãos oriundos de diferentes pontos do país, culturalmente e
moralmente diversos entre si e caracteristicamente bastante diferentes dos ‘instruídos
341FRIEDMAN, Robert; Red Mafiya: How The Russian Mob Has Invaded America; 1ª Edição; Ed. Little &
Brown; New York, 2000 342Idem 343Como pontuado em didática cobertura do observador cultural e influencer eslavo (auto-intitulado) Boris
(atualmente, radicado a Estônia, na capital Tallin), no canal Life of Boris, que descreve no episódio Gopnik, boa
parte dessa intrigante subcultura oriunda da estrutura social dos estertores da URSS. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Qif-Qz7NY48&ab_channel=LifeofBoris; Acesso em: 22/06/2021
248
acadêmicos’ artífices do rock n’roll/ bigbit da geração anterior. Kruschev dera origem aos
grandiosos subúrbios de Moscou e Leningrado – ou ‘favelas’, segundo algumas observações –
bem como fizera brotar rapidamente, cidades mais preparadas tecnicamente com suas
edificações, que o próprio âmago de seus cidadãos habitantes.
Inobstante, pelo caráter da economia planificada, a quantidade muito modesta de
recursos financeiros necessária para se custear as condições básicas de sustento e vida na URSS,
permitia principalmente aos indivíduos jovens, ainda sem família constituída, gozar de mais
uma ‘janela de tempo’, podendo chegar-se ao cúmulo de trabalhar apenas dois dias de uma
semana regular, para dispor do salário suficiente à compra de gêneros alimentícios básicos, bem
como bebidas, cigarro e outras formas de recreação triviais. Levando a que muitos desses jovens
se dedicassem a ocupações marginais, individualizantes ou setoriais, dentro de sua própria
existência – da circulação de produtos e personagens clandestinos à realidade local, até a
proliferação de música (rock) marginal no circuito underground das grandes cidades (com
vulto, como já mencionado, em Leningrado). Enquanto a estagnação avançava, a contravenção
era organizada e sua estrutura subjacente, não.
Portanto, o esforço de Brejnev em flertar com uma iniciativa ‘populista/modernista’
soviética que se tentava revigorada através de uma campanha estatal, encontraria um elemento
opositor estrutural em seu próprio bojo: a inquieta juventude. Num trecho de um depoimento
ao jornal soviético Uchitel’skaia Gazeta, edição de 13 de junho de 1972, um professor, L.
Mateto, diretor da Escola Secundária nº 816 de Moscou, esboçaria ilustrativamente o teor de
uma ‘preocupação por uma re-patriotização e civismo’, decorrente dessa indignação com a
postura juvenil efervescente na URSS – na carta intitulada Alienados de Si Mesmos:
Moscou - Nas escolas que visitei, algumas das meninas mais velhas usam maquiagem
nos olhos e alguns meninos têm cabelo até os ombros e usam calças supermod. Se você fizer um comentário, eles responderão: “Isto é o que eu gosto de vestir. Cada um
ao seu gosto. “Algumas mamães e papais também afirmam que a aparência de seus
filhos é assunto seu: eles param para pensar que os jovens às vezes deixam de
experimentar modas estrangeiras para experimentar ideias estrangeiras.
Nós, professores, devemos proteger os jovens de más influências e gostos
vulgares. Afinal, não é apenas o comportamento adequado que estamos inculcando,
mas também a virtude cívica e o patriotismo.
Como isso tem que ser feito? Se dissermos: “Prepare-se e corte seu cabelo amanhã!”
podemos persuadir o aluno à obediência, mas alcançaremos um efeito mais duradouro
dando orientação perspicaz e persistente na distinção entre o bem e o mal. A influência
do coletivo em uma reunião da Liga dos Jovens Comunistas causou impacto em um
jovem de cabelos compridos de nossa escola.
Eu também sugeriria que a própria escola fosse mantida alegre e arrumada, que os
uniformes escolares fossem mais adequados, emblemas especiais fossem criados para
249
fomentar o espírito escolar e dissuadir os alunos de usar emblemas estrangeiros, e
mais literatura sobre o problema fosse publicada para professores e pais.344
A carta, aparentemente real (não produzida, mas selecionada pela imprensa soviética à
época), serve aqui como grande metáfora à reflexão do clima sobre o qual se debruçaria o
substrato à campanha estatal de 1972. Sua redação toca em pontos críticos da disseminação de
influências ocidentais entre a juventude local, tais como a moda e comportamento, aproveitando
para demonstrar, segundo seu ponto de vista, como a permissividade de costumes esboçada na
possibilidade de adesão juvenil pela moda exterior, constituía em avant-premiére ao próximo
passo: o de adesão aos ideais ocidentais, individualistas e contestadores (conforme mencionado
com o trecho ‘os jovens às vezes deixam de experimentar modas estrangeiras, para
experimentar ideias estrangeiras’).
Não obstante, revela-se na sequência da carta, de como se estruturara, de certo modo, a
tendência da administração Brejnev em procurar num slogan/jingle estatal alguma forma de
controle por sobre o processo de disseminação cultural local à época – principalmente entre a
juventude – conforme pode-se interpretar com a menção ‘[...] devemos proteger os jovens de
más influências e gostos vulgares. Afinal, não é apenas o comportamento adequado que
estamos inculcando, mas também a virtude cívica e o patriotismo’. Em outras palavras,
‘poderia-se persuadir o aluno – o povo – à obediência’ do civismo-patriotismo nessa
reeducação engajadora de Brejnev, contando-se com os artífices partidários como ‘professores’
para promover uma atmosfera de ‘influência coletiva’.
A escola real, essa que protuberara a educação soviética durante décadas como uma
instituição, daria lugar à ‘escola alegre e arrumada’, de um jingle ou do slogan, onde o palco
midiático, transmitido através do VIA, ofereceria ‘os emblemas especiais’ – distribuídos como
‘balas’ ao povo, sob a forma de sortidos gêneros musicais, filmes e produções (inclusive do
Ocidente, conforme Zhuk, 2012). Os quais seriam coroados com a veiculação do ‘grande
emblema’: a campanha estatal A URSS É Meu Endereço, voltada a ‘fomentar o apreço à ‘escola
local’ – rock russo do VIA – que, paulatinamente, esperaria-se, fosse ser capaz de permitir
abandonar os produtos exteriores, buscando-se através disso, se bem-sucedido, ‘dissuadir os
alunos de usar emblemas estrangeiros’.
344Fonte: Current Digest of Soviet Press, XXIV, 45/14 (1972); In: Seventeen Moments of Soviet History: An
online archive of primary sources (2003); Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-
russian/rock-goes-russian-texts/western-styles-infect-soviet-youth/; Acesso em: 21/06/2021
250
A consideração que culminava na conclusão de ‘alienados de si mesmos’ aos jovens,
ainda seria essa que eximia sua culpabilidade no ato de ‘aculturar-se’, influenciar-se, como se
restassem tais jovens apenas como produtos das circunstâncias ambientais, pura e
simplesmente, não lhes reconhecendo autonomia nem caráter próprios, nem à sua instância de
juventude, que por esta visão, seria ainda tida como não dotada de juízo particular, de gosto
autêntico ou manifestação de decisões de arbítrio. Pelo contrário, a insistência em apelar-se por
uma responsabilidade de tutela, a ser exercida por pais, professores e instituições, apenas
reforçava a reativa resistência geracional, em reconhecer a legitimidade, particularidade e
autonomia das manifestações do indivíduo juvenil dentre a sociedade soviética. De modo nada
distinto dos EUA, neste aspecto, onde revigorava a tonalidade de um discurso fracassado sobre
pátria e valores, por sobre jovens transeuntes em seu momento de ávida eclosão cultural. Fosse
com discursos sobre a Guerra do Vietnã de um lado, ou com o jingle estatal de outro, o ufanismo
estatal e os valores tradicionais vinham bater-se por sobre a liberdade dos jovens questionadores
– os quais em seus comezinhos precedentes de desobediência, alavancariam com isso o
sentimento de uma demarcação cultural nada modesta.
E a administração não voltaria a carga apenas através questão de circulação midiática.
As ‘estruturas concretas’ deviam ser consideradas a reenquadrar a orientação da juventude,
chegando sob a agenda militar do ‘Guarda-Chuva Brejnev’: o grotesco cenário da Guerra
Soviético-Afegã (1979-1989) – conflito que por suas memórias profundamente e
contundentemente marcadas na juventude local, ficaria registrado em músicas-protesto
soviéticas como Ne Streliay (Não Atire!) de 1982, do grupo bardrock DDT e Gruppa Krovvy
(Tipo Sanguíneo) de 1988, do grupo punk Kino.345
3.5 Da Máquina do Tempo ao Aquário: O terreno subterrâneo germinado entre
Leningrado e Moscou, o ácido sabor de um ‘Rock na Cozinha’, o bard rock e o significado
de Tusovka
São os burocratas que, livres da menor dúvida, são os que decidem o que é bom e o que é mau, o que
as pessoas precisam e o que não precisam. Eles decidem qual música é aprovada na Rússia e qual
música é reprovada. Eles ensinam rouxinóis a cantar no tom certo. Seu guia são as regras do
Realismo Socialista. O realismo socialista, um monstro que ninguém realmente viu a olho nu, trabalhou para isolar qualquer esforço criativo do apoio social. [...] Hoje, embora o monstro esteja
quase morto, brincamos com isso:‘O Realismo Socialista é o espelho mágico para os chefes do
Partido que o perguntam: 'Quem é o mais inteligente e bonito do mundo?' e a resposta retorna consistentemente: 'Vocês: Por que, oficiais do Partido, vocês são’!
345Fonte: RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music; CHEVCHUK, Yuri (DDT). Ne Streliay:
Disponível em http://www.russmus.net/song/3674#2; TSOI, Viktor (Kino); Gruppa Krovyy: Disponível em
http://www.russmus.net/song/7262#2; Acesso em: 21/06/2021
251
Yuri Dimitrievsky, luthier soviético346
Os bufões fazem rock em Moscou, os heróis o fazem em Leningrado.
Viktor Tsoi, frontman do grupo punk Kino347
Para este capítulo, o qual encerra essa prospecção no rock soviético, começa-se com a análise
da seguinte canção:
Tudo é muito simples - há engano em um conto de fadas
A ilha ensolarada desapareceu na névoa.
A Terra não carrega castelos no ar./Alguém estava errado - você ou eu
É muito simples - não existem montanhas de ouro/ As estrelas caem nas mãos de
outros.
Não há ave do paraíso entre os corvos/ Alguém estava errado - você ou eu
Somente na primavera a neve derrete/ E até o mar tem margens.
Uma fé vai aquecer a todos nós,/ Alguém terá tempo - você ou eu?
Tudo é muito simples - há engano em um conto de fadas
A ilha ensolarada desapareceu na névoa.
Uma fé vai aquecer a todos nós./ Alguém terá tempo - você ou eu?
Machina Wremenyi, na canção Você Ou eu, de 1973
Com a convulsiva mídia musical que ressoava na URSS do princípio da década de 1970,
a circulação de produtos musicais, de discos a instrumentos, somada à circunstância de um VIA
que alcançava seu ápice (tornando-se um jingle estatal) o momento e as circunstâncias eram
fortuitas a um revide – e nisso o rock teria importante papel.
Em 1973, o grupo Machina Wremenyi (‘Máquina do Tempo’) já contava quatro anos
de existência (desde a formação pré-grupo, Malchiki/ ‘Os Garotos’), contando com
entusiasmados jovens aspirantes da música – em sua formação à época, Paul Rubin, Igor
Mazev, Yuri Borzov e seu frontman, o cantor e guitarrista moscovita Andrei Makarewich – e
não perderia tempo, explorando dos resquícios da estrutura de produção, todo um espaço a
realização de uma crítica sutil e muito perspicaz ao contexto vivido.
Com a canção Ты Или Я (Ty Ili Ya/ Você ou Eu, transliterado), de 1973 – exposta no
trecho de abertura desse capítulo – a tônica de seriedade em torno do ‘conto de fadas’ alardeado
na Era Brejnev, aguçava os ouvintes, mormente, os apoiadores (conservadores) a irem se
perguntar quem afinal estaria errado? A juventude que denunciava o desgaste social e de ideais
346DIMITRIEVSKY, 1990. Op. Cit. 347GLUKHOV, Dimitry; 10 вопросов о Московской рок-лаборатории [Dez Perguntas para o Laboratório de
Rock Moscou] 23 de outubro de 2020. Роккулт [Rockcult] Disponível (em russo) em: https://rockcult.ru/po/rock-
laboratory-questions/. Acesso em: 20/06/2021
252
da URSS, ou os apoiadores, iludidos com ‘promessas de primavera’ e ‘ilha ensolarada’ –
metáforas caras ao âmago russo, acostumado à iconografia de clima frio. Pelas menções ‘entre
corvos’ e referências a ‘margens’ – encontra-se na primeira, um entendimento acerca de ter-se
sempre elementos cerceadores posicionados à espreita (fiscalizadores), enquanto que sobre a
segunda, pode-se depreender o sentido de limites, mais evidentes a partir de então, no processo
social-cultural.348
Dotado de um propósito instigante e atilado, o grupo faria a resenha crítica não apenas
do momento que vislumbrava, mas do próprio estratagema utilizado com o jingle estatal. E se
cenário do ‘rock patrocinado’ estaria representado com A URSS É Meu Endereço (de
Kharitonov e Tukhmanov), o rock do grupo de Makarewich responderia com Наш Дом (Nach
Dom; Nossa Casa, segundo a transliteração), também em 1973. No que concerne à canção,
Nach Dom, seu sucesso e êxito entre o público juvenil estaria ligado a dois destacados detalhes:
se devia em parte à performance da execução com um ritmo cadenciado e contagiante próprio
da última fase do bigbit, na melodia cuja batida uma toada de country rock estadunidense349 –
ao melhor estilo de Looking Out My Back Door (1970) do grupo estadunidense Creedence
Clearwater Revival – e de outra parte, a muito arrojada letra entoada sob o título ‘Nossa Casa’:
Anos voam como uma flecha/ Em breve estaremos com você
Vamos sair da cidade imediatamente/ Em algum lugar na floresta densa
Ou em uma montanha mais íngreme/ Vamos construir uma casa para nós.
[Refrão]
Existe tanto silêncio ao redor,
Que nunca sonhamos
E por trás desse silêncio, como atrás de uma parede, Espaço suficiente para você e eu.
Vamos consertar as portas do pokrkpche350/ Vamos colocar uma corrente ao lado de/
Oito cães grandes e famintos.
Para que fiquem acordados/ Eles não tinham permissão para entrar em casa
Pesar, inimigos e tolos.
Ao lado da porta gratificante/ Precisamos cavar351 no banco
E na frente dela está um lago sombreado/ Sentar um dia
3481973 – Rock Goes Russian; You Or Me (Você Ou Eu); In: Seventeen Moments of Soviet History: An online
archive of primary sources (2003). Disponível em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-
goes-russian-music/you-or-me-1973/. Acesso em: 20/06/2021 349Para essa afirmação, foi utilizado como fonte o vídeo Our Home, localizado no ficheiro 1973 - Rock Goes
Russian; In: Seventeen Moments of Soviet History: An online archive of primary sources (2003). Disponível
em: http://soviethistory.msu.edu/1973-2/rock-goes-russian/rock-goes-russian-music/our-home-1973/. Acesso em:
20/06/2021 350De покрпче ou ‘coberto’, do verbo cobrir – uma referência coloquial à rancho; galpão; casa rústica. 351No sentido de esculpir; deixar marcas (como no idioma inglês, to carve).
253
Todo mundo pode pensar/ Alguém precisa dele aqui?352
As provocações sutis e escancaradas na mesma canção são interessantes. Se o tempo do
progresso seria o ufanizado na campanha estatal A URSS É Meu Endereço (na metáfora do
ritmo de um ‘vagão de trem’), na canção Nach Dom, a primeira impressão é de que tem-se de
aproveitar a vida, pois o tempo ‘voa como flecha’ e importante é estar com aquilo de que se
gosta. ‘Logo estaremos juntos com você ‘[ao longo da canção, dá-se a entender o retiro; a
natureza]. Novamente, se a campanha estatal apelava ao senso de pertencimento, a canção da
Machina Wremenyi libelava pelo retiro (‘Vamos sair da cidade imediatamente/ Em algum
lugar da floresta densa [...] Vamos construir uma casa pra nós’).
A própria contraposição entre ‘endereço’ na canção estatal, como um algo que implica
número, série, coletividade, chocaria-se com o de ‘casa’, no sentido mais subjetivo, individual,
próximo – de um lar – na canção do grupo moscovita.
Não obstante, a grande provocação no refrão ‘Existe tanto silêncio ao redor/Que nunca
sonhamos/E por trás desse silêncio/Como por trás de uma parede/ Espaço para você e eu’- um
contraste direto com as metrópoles soviéticas erigidas desde Kruschev e inchadas no período
Brejnev, onde mais e mais cresceriam os subúrbios, com condições precárias de privacidade,
conforto e dignidade domiciliar. Sem olvidar, que na canção jingle da URSS, menções como
‘trabalho’ e ‘cidade’, reiteradamente passariam uma noção de movimento, de progresso e de
barulho. Enquanto em Nach Dom, contestando-se à essa afirmação de um âmago pulsante,
urbano e progressista, a paisagem evocada como atávica ao povo local, seria a do campestre,
do bucólico, das veredas e do silêncio – onde o tempo passaria num ritmo diferenciado.
Corroborando tal afirmação, o compasso leve e arranjado da melodia fazia mais parecer um
‘fim de tarde’ em mando percurso, do que o ‘raiar da manhã’ frenético para o trabalho, evocado
na canção estatal.
Nas estrofes finais, ainda mais ‘alfinetadas’. Com a menção ‘Vamos colocar uma
corrente ao lado de/ Oito cães grandes e famintos/ Para que fiquem acordados/ Eles não
tinham permissão para entrar em casa’ – evoca-se que mesmo retirados em um lugar mais
isolado, a sensação permanente de estar-se ‘cercado’, como se sua atitude fosse algo reprovável.
O senso de liberdade que desafia o pertencimento coletivo, se demonstra perigoso (e por isso a
importância de se cercar como que com cães ameaçadores à espera de receber os ‘inimigos’ e
352Letra da canção conforme traduzido de RussMuss.Net: The best online resource for Russian Music;
MAKAREWICH, Andrei (Machina Wremenyi); Nach Dom; Disponível em:
http://www.russmus.net/song/5601#Russian; Acesso em: 20/06/2021
254
os ‘tolos’ do refrão, uma possível referência aos agentes do aparato estatal). Essa afirmação,
longe de ser apenas algum tipo de paranoia ou pessimismo, constitui uma contextualização com
a realidade que sofria uma guinada conservadora no período, enquanto, simultaneamente, em
grupos da sociedade jovem a onda contracultural hippie do retiro faria grande número de
adeptos353 – e com essa filosofia de vida, a sonoridade do rock bem viria a calhar.
No encerramento, a estrofe declara ‘Ao lado da porta gratificante/ Precisamos cavar
no banco/ E na frente dela está um lago sombreado/ Sentar um dia/ Todo mundo pode pensar/
Alguém precisa dele aqui?’: uma metáfora muito cheia de aconchego. A ‘porta gratificante’
evoca o costume do Cáucaso (também presente no Ocidente) de se colocar plaquinhas na
entrada da casa com ‘Boas-Vindas’, comunicados de gratidão como ‘Lar, Doce Lar’ ou , da
tradição ortodoxa ‘ Za Namy Bog’(Deus Está Conosco).
Na menção ‘Precisamos cavar no banco/E na frente dele um lago sombreado/Sentar
um dia’ – o decreto do libelo por deixar-se uma marca ao viver a vida (‘cavar’; esculpir;
marcar), seguido de um ritmo de vida menos intenso, mais humano, contemplativo (como a um
lago) e próximo de cada realidade particular (mais lichnasty e menos koletvinasty). Ao que se
segue a pergunta ‘Alguém precisa dele aqui?’- onde a figura intrusa no cenário natural, é o
‘banco’, produto do trabalho humano, da realização artificial e uma utilidade – que se vê
relativizada ao perceber-se que se pode sentar diretamente á beira do lago.
Enrustidos em uma balada fagueira e provinciana, o emblema do ‘lar’ e a escolha por
uma gramática sonora estadunidense, faziam soar como acintosa resposta ao uso do rock para
falar de assuntos institucionais estatais. Se o rock fora usado de ‘garoto de recados’ do aparato
ideológico soviético, a resposta popular, através da picardia artística, seria fazer uma ‘contra-
canção’ muito elegante, utilizando a roupagem sonora do lado opositor – mesmo em se
considerando o período de distensão vivenciado. Recordando ao conceito de ‘mãe-pátria’, a
rodina dessa canção não seria um ‘endereço’, mas um lar, retirado e situado no terreno agreste
– rochoso – do rock n’ roll (uma ‘embaixada dos dissidentes’).
E isto só seria possível por conta, curiosamente, da situação peculiar vivida pelo grupo
moscovita: simultaneamente, lutando contra o estabelecimento, através de sua arte, e vivendo
dele como um (semi) cooptado do sistema de produção cultural, Machuna Wremenyi,
sobreviveria como grupo constante e para poder gozar de seus atributos de existência, embora
não credenciada ao VIA, obedeceria alguns predicados. Assim em 1972, mesmo sobrevivendo
no underground, figuraria em projetos junto à músicos credenciados e futuramente (em 1979),
353HARDING, 2019. Op. Cit.
255
à subsunção ao conceito de rock filarmônico354, apresentando-se, eventualmente, com a
SoyuzKontsert (Orquestra Sinfônica da RSSF da Rússia)355. Por conta desse detalhe
fundamental de ausência de participação credenciada regular, durante a década de 1970, não
teriam álbuns gravados – sendo seu primeiro disco oficial (V Dobryy Chas/ Tenha Um Bom
Momento) lançado apenas em 1986356.
Quase em simultâneo, contextualizando um cenário de constrastes, o grupo [VIA]
Tsvety lançaria seu primeiro disco: Tsvety I, de produção em 1972 e lançamento no ano de 1973
(que seria seguido de Tsvety II, ainda em 1974)357 – demarcando com sucesso uma tonalidade
hippie na cena musical local da década. Ao longo da carreira, a Tsvety seria a primeira banda a
conseguir o êxito de alcance de música em escala na URSS, que não pertencesse ao gênero
Estrada. Seu montante em venda de discos chegaria à casa dos milhões (estima-se que 60
milhões, durante a totalidade de sua existência soviética), o que da proporção atingida, como
ocorrera com o KVN, alarmaria às autoridades na Zastoya de Brejnev, resultando em uma
restrição de censura ao rock, a qual levaria a que o grupo fosse dissolvido, temporariamente –
passando a funcionar como ‘Stasa Namina Gruppa’ (Grupo Stas Namin), entre 1976 e 1980358.
Por conta disto, algumas de suas emblemáticas canções, como Pistoy Orech [Noz Oca], Idol
[Ídolo] e Ya Ne Sdayus’ [Eu Não Desisto], realizadas entre o período de 1969 a 1982, ficariam
proibidas de gravação até o princípio das reformas do período pós-recessão.
E se as coisas não estariam fáceis, sequer a um ‘neto proveniente da mais distinta
linhagem’ política do Partido, que se dizer dos demais. Makarewicz, que era filho de um pai
ex-militar da Aeronáutica e Professor de Arquitetura e de uma renomada médica pesquisadora
da Tuberculose, concluiria seus estudos de arquiteto e artista gráfico no Instituto de Arquitetura
de Moscou, em 1977.
Essa reafirmação da carreira acadêmica, imbricada no ‘DNA’ do rock soviético, seria
muito mais tortuosa do que se pode imaginar e aconteceria para Makarewich de forma muito
particular: sua ‘desocupação’ musical estaria interferindo no resultado de sua formação. Sua
carreira no ensino superior vinha passando por altos e baixos – até ser interrompida com uma
354CUSHMAN, 1995. Op. Cit. 355GLUKHOV, 2020. Op. Cit. 356RussMus.Net; Machina Wremenyi; Seção: Discography; Disponível em:
http://www.russmus.net/band/55/#disco; Acesso em: 22/06/2021 357RussMus.Net; Tsvety; Seção Discography; Disponível em: http: http://www.russmus.net/band/90/#disco;
Acesso em: 22/03/2021 358VASYANIN, Andrei. Цветы Ну Иянут [Trad. Livre: ‘Flores’ Não Desbotam]; In: Российская Газета
(Rossiskaya Gazeta), Edição de 25/02/2010; Disponível (em russo) em: https://rg.ru/2010/02/25/namin.html;
Acesso em: 30/02/2021
256
expulsão em 1974, ao constar como reprovado, segundo ordens emanadas diretamente de
autoridades do Partido, por conta de sua segunda ‘ocupação’. No entanto, a descarada tentativa
de fazer-se com isso barrar o ímpeto rockeiro do jovem moscovita, acabaria em trégua ao
reconhecer-se de seus talentos e uma dose importante da reputação de seu pai (ex-militar e
proeminente arquiteto), a permitir que o jovem Makarewicz ganhasse um emprego no
GiproTeatr (Instituto Estadual para Desenho de Teatros e Estruturas de Espetáculo), sob
orientação de um reconhecido docente local – o arquiteto Vladimir A. Somov359 – onde
conseguiria por suas realizações a tão esperada formação.
Considerando esse cenário de década, onde os ‘protegidos’ de outrora estavam sendo
silenciados e os ‘contestadores’ passavam a ‘acomodar-se’ institucionalmente para poder
continuar, somente em lugares onde a administração não possuía um alcance tão direto e
evidente como na capital federal, é que teria podido surgir uma alternativa ainda mais
contundente de revide às manifestações conservadoras. Assim surgiria, no mapa do rock da
URSS, a figura de Leningrado, um ‘ponto fora da curva’, com um rock desafiador nos
conteúdos, nos modos e nos métodos de realização – o verdadeiro berço de estabelecimento do
underground soviético (CUSHMAN, 1995).
O grande nome a despontar neste cenário, seria do grupo Akvarium (Aquário), criado
em 1972, liderado e fundado pelo poeta e ex-estudante do Instituto Superior de Matemática
Aplicada de Leningrado, Bóris Borissovicz Grebenschchikov360. Considerado por muitos –
entre admiradores e colegas de música – como o ‘Bob Dylan russo’, Bóris Grebenschchikov –
ou simplesmente ‘BG’ – seria um audacioso pioneiro da proposta de um rock soviético
demarcadamente russo, matizado e extra-moscovita. Sua consideração como um ‘pai do rock
soviético’, viria associada ao seu prolífico linguajar lírico, que circularia entre palavras
autenticamente russas, de verdades sublimes à verdades mundanas em poucos termos
(CUSHMAN, 1995; p. 118). Suas composições complexas – dentre as quais a que fecha o
capítulo – aliadas à performance de ‘palco’ cativante, fariam da Akvarium rapidamente um
motivo de assunto e identificação entre o circuito juvenil local – fazendo a banda atravessar
gerações, em funcionamento contínuo desde a década de 1970 até a atualidade.
O carisma do grupo seria tão grande, que no período da década onde outros conjuntos
estariam sendo preteridos da oportunidade de gravação, da segunda metade da década até o
359GPVN. RU; Андрей Макаревич рассказал о своём участии в проектировании театра драмы [Trad.
Livre: Andrey Makarevich falou sobre sua participação na concepção do teatro]- Edição de 23/10/2019; Disponível
em: https://gpvn.ru/11673; Acesso em: 23/06/2021 360RussMus.Net; Akvarium; About The Band; Disponível em: http://www.russmus.net/band/48/; Acesso em:
23/06/2021
257
início dos 1980, seria uma das únicas exceções do rock a conseguir emplacar álbuns de
estúdio361 durante o final da Era Brejnev – lançando, em 1981, Электричество (Elektrichestvo),
Trugol’nik (Triângulo) e Sniyi Albom (Álbum Ciano), e em 1982, Tabu e Akustika.362.
Em meio à esse cenário de represamento, conforme Marochkin (2011a), o crescimento
vertiginoso das gravações magnéticas (magnitoalbomy e magnitzdat) se daria, e produtores
como Andrei Tropillo e Yuri Morozov, logo adiante, despontariam como importantes artífices
de cultura locais, ultrapassando a mera consideração da reprodução fonográfica, para chegar a
um nível de experimentalismo técnico de vanguarda com as tecnologias de gravação:
Yuri Morozov ocupa um lugar especial no panorama do rock russo das últimas três
décadas: embora seja conhecido principalmente por seus numerosos e diversos álbuns,
cobrindo quase todo o espectro de direções musicais e gêneros da música moderna,
bem como uma lista igualmente impressionante de obras de engenharia de som, talvez
o mais importante em sua biografia seja que Morozov (junto com Andrei Tropillo) foi
o primeiro em nosso país a abordar a gravação de som não como um processo de
fixação mecânica de som de concerto, mas como um ato criativo de valor próprio, e o
álbum - não como um conjunto aleatório de canções, mas como um produto artístico
acabado. (BURLAKA, 2013)
Quanto ao ‘palco’ para essa oportunidade, antes de seu reconhecimento no cenário
soviético, estaria ligado ao esquema de produção alternativo proporcionado entre os músicos
marginais. Considerando-se o cenário crescente dos subúrbios, integrado por moradias
coletivas nas quais habitava uma grande massa de jovens, filhos de trabalhadores da indústria,
361Uma dessas exceções, seria a do músico, já citado anteriormente aqui, Yuri Morozov, que em 1973, lançaria
Jimi Hendrix Cherry Orchard – álbum analisado graficamente no capítulo Experiências de Retiro, atrás de
elementos da presença da psicodelia e do movimento hippie em terras Orientais. A possibilidade para este trunfo
de Morozov, seria produto de uma persistência underground que demandaria criar alternativas à opção estatal: Morozov construíra para si, desde 1971, um pequeno home studio, principiado logo de seu ingresso no Instituto
Politécnico da Faculdade de Automação e Movimentação Eletrônica de Leningrado – ocorrido no mesmo período.
Desde então, mergulharia em experimentalismos com sample e também no overdubbing, sem olvidar o
experimento em técnicas multicanal – realizando todos os instrumentos. Na sequência, em 1972, como empregado
na filial regional da Melodiya (segmento de gravações de Leningrado), ganharia ainda mais expertise técnica,
culminando, quando de sua convocação para o Exército naquele mesmo ano, que fosse destacado para o setor de
comunicações da Defesa Aérea – localizado em Dolgoprudny. Assim, em 1973 já seria detentor de uma
considerável bagagem de experiência na produção e engenharia de som, bem como uma impressionante coleção
de equipamentos (raros ao cidadão soviético comum), chegando com isso, mesmo ausente de figurar nos quadros
espetaculares patrocinados, a gravar e preservar parte de seu acervo pessoal em discografia. Dentre seus álbuns à
época, para adiante de Jimi Hendrix Cherry Orchard, constam: Bozyaki (feito em 1971, recuperando seus trabalhos
com sua primeira banda homônima); Retroskop (realizado entre 1968-71) e Apochrypha (realizado entre 1972-73). Sua reputação como produtor e sonoplasta, músico e multi-instrumentista, levariam-no também a integrar
muitos projetos durante o período – com destaque à sua atuação musical eclética, emprestando sua participação ao
emblemático grupo de jazz de Leningrado, Nu Pogodil – entre 1975 e 1977). Fonte: BURLAKA, Andrei; Рок-
энциклопедия. Популярная музыка в Ленинграде – Петербурге. 1965–2005. Том 2 [Trad. Livre:
Enciclopédia do Rock. Música Popular em Leningrado - Petersburgo. 1965-2005. Tomo 2]; Biblioteca Eletrônica
Iknigi.net (2013-2021); Disponível (em russo) em: https://iknigi.net/avtor-andrey-burlaka/93960-rok-
enciklopediya-populyarnaya-muzyka-v-leningrade-peterburge-19652005-tom2-andrey-burlaka/read/page-
30.html; Acesso em: 23/06/2021 362Russ.Mus.Net; Akvarium, Discography; Disponível em: http://www.russmus.net/band/48/#disco; Acesso em:
23/06/2021
258
acabaria por se consagrar um inusitado: as cozinhas das Kruschevskayas, que outrora tinham
dado o que falar no período de diplomacia do Degelo. Conforme Cushman (1995, p. 38), este
ambiente tão importante para o cenário do rock que se construía, constituia um espaço de
debates, criação musical e a troca de ideias e elementos da cultura underground.
Se os integrantes da elite acadêmica haviam possuído seus espaços nos Institutos
Superiores para apresentações – a fase seyshn – e os músicos profissionais teriam os verdadeiros
palcos, estabelecimentos comerciais com música ao vivo, bem como as gravadoras e a televisão
para se exibir, os músicos das ruas, da marginal cena musical de Leningrado encontrariam no
aconchego clandestino das cozinhas coletivas, um espaço de produção alternativa a sua
materialidade e mediação. Essa cena seria chamada v kukhne, e o ‘rock na cozinha’, assim como
o rock filarmônico, o rock acadêmico e o rock através do VIA, constituiria outra das autênticas
soluções encontradas pela perspicácia local soviética. Como de costume, das cozinhas para
outras peças, como porões e galpões, arranjados de forma a oportunizarem estas secretas
performances, seriam comuns (e fundamentais) no princípio desse contexto underground.
Descrevendo parte do itinerário de uma apresentação nessas condições, o músico Yuri
Chevchuk recobraria na memória parte destes cenários peculiares – em Cushman [1995; p. 73]:
Eu me lembro de ter ido à Sibéria ou para Kazan, sozinho, apenas com o violão. Um
homem que me encontraria, estaria esperando na esquina. Então os policiais [KGB]
não nos notariam, e ele diria, ‘Yura, dobre naquela esquina e algumas pessoas irão
conduzir você adiante’. Eu iria e então entraria em um porão sem eletricidade, mas
com centenas de pessoas. Não havia microfones – caso contrário os policiais
conseguiriam ouvir – e algo aceso ao redor... Enquanto estivemos tocando Led
Zeppelin ou Beatles nas festas e bailes, as autoridades não prestariam atenção. Nós
tocávamos numa festa dançante e dizíamos ‘Esta é uma canção de uma Orquestra Americana’. E seria isso. Tão logo começamos a cantar rock-and-roll em Russo, e,
naturalmente, com o linguajar Russo, a juventude emergiu em problemas sociais, e o
estrangulamento começou a ocorrer quase imediatamente. E essa ‘pressão’ adentraria
a década de 80, com uma força singular. [Tradução do inglês e grifos nossos]
Explorando o depoimento, percebe-se, simultaneamente, observações sobre o ambiente
da música naquele momento. No ambiente, em sentido material, a presença destas dependências
alternativas como espaços de circulação cultural seria marcante e um traço característico da
assimilação da precariedade como traço de configuração, do rock local. Como se dera
costumeiramente com as demais facetas da produção clandestina, a ocupação marginal dos
espaços pelo rock soviético underground, se juntaria ao ‘kit’ de recursos paralelos
demonstrados desde um uso clandestino das estruturas de gravação, do mercado paralelo, dos
empregos modestos, da distribuição de repasse de materiais através de redes de indivíduos, e
do cuidado em alertar-se o mínimo às autoridades – cuidando-se nisso, a fechar-se o rock em
comunidades de iniciados, que muitas vezes, evitariam a ação de infiltrados ou o risco de
comprometer-se sua ação discreta ante as instituições.
259
Também do relato percebe-se a reafirmação de que o contexto estava circundado de uma
atmosfera mais repressora do que aquela vivida ao Degelo, onde o ‘estrangulamento’ das ações
dissidentes tornava a ser desempenhado por indivíduos da KGB. Para a administração, se o
perigo do rock na década passada (1960) estivera ligado à sua raiz no idioma do opositor
ocidental (o inglês), na década que se ingressava, o grande problema era constatar o rock
alastrar-se na ‘ponta da língua’ dos jovens soviéticos – em bom russo, fruto de sua assimilação
local. Em contrapartida, o sentido da agência em criar-se soluções ao reaparelhamento da
interferência do Estado, seria também absorvida como uma assunção de identidade, um código
moral, entre os integrantes do rock ‘subterrâneo’ – tanto mais entre a comunidade de
Leningrado.
Constam a ilustrar parte desse código moral dos músicos oriundos dessa atmosfera
marginal, da ausência de pretensões em se chegar ao palco convencional, se poderia notar uma
progressiva manifestação de recusa à este, marcada pela negação do circuito comercial (num
sentido de desprezo e falta de autenticidade), somado a uma absorção das condições de
precariedade, rusticidade e recursos parcos, como forma legítima de manifestação363. Tal rock
leningradense, seria, portanto, um rock simultaneamente mais abstrato e poético e mais
materialmente ‘sujo’, poluído, visualmente e atitudinalmente – enquanto de sua música,
emanariam finas composições. Não seria apenas um rechaço às instituições, mas um rechaço
aos emblemas estabelecidos socialmente: da carreira de vida, da carreira acadêmica, do
emprego estável, da canção comercial e da produção com suporte. Quanto mais ‘pobre’ em
dinheiro fosse a produção, com artistas divulgados pelo boca-a-boca, encontrando-se em locais
secretos e produzindo sua apresentação para grupos menores, mas mais interessados, maior a
‘riqueza’ de reputação dos artistas. De outro modo, quanto mais ‘rico’ em condições de
produção, divulgação e veiculação, tanto pior, superficial, óbvio e inautêntico. Os rockeiros de
Leningrado repudiariam a utilização ‘em série’ da música – conforme abordado sobre as
definições locais desse movimento, leningradense, observadas por Cushman (1995), no capítulo
Musical Identity and Autenticity (Identidade Musical e Autenticidade).
A partir de Leningrado, nos anos 1970, o rock soviético rumaria a uma bifurcação. De
um lado, situaria-se o rock estatal cooptado (VIA), tributário em origem à tradição do circuito
universitário anterior, que nesse momento passado à execução pela prática de músicos
profissionais – retrato do cenário moscovita. Enquanto que de outro, estaria um rock marginal,
independente e contestador, com realização situada na clandestinidade e a partir de métodos e
363Cushman, 1995. Op. Cit. p. 103
260
personagens mais mundanos do que os encontrados nas elites ocasionais soviéticas – retrato do
cenário leningradense.
Assim, por exemplo, a identidade reunida em torno da poesia, do conteúdo das letras, e
de uma postura mais ligada a explorar a temática do etéreo (do amor e da existência) sem recair
na banalidade, constituiria um ponto de cisma entre as percepções de seus músicos. Afinal, o
rock soviético em Leningrado seria ou não (a)político? – diferentes posições integrariam o
debate.
A resposta mais adequada seria: talvez. O ponto de intersecção dos rockeiros
lenigradenses seria o da atitude, com o rock ocupando um lugar central de impacto. No entanto,
o pendor político causaria divergências. Um número mais expressivo de músicos, penderia para
o posicionamento situado do lado de fora da política e, até mesmo, acima dela. Tal perspectiva,
encamparia a distância premeditada do mundo oficial como uma das marcas do fenômeno local,
por isso sua renúncia manifesta expressa na poesia e na procura por uma verdade e significado
diferentes para a vida364. Essa percepção é resumida na reação de um dos músicos entrevistados
por Cushman (1995; p. 94):
Thomas, porque você pergunta tanto de política!? Estou cheio disso de política.
Pensei que quisesse falar sobre música. Eu respondi que sim, que queria falar sobre
música, mas que sempre foi por mim acreditado que no contexto soviético, a distância
entre música e política não fosse muito grande. Eu disse, de fato, que minha crença
era de que na URSS, a música fosse em si, uma forma de política. Andrei respondeu quase enfaticamente, Não, você está errado. Música é algo exterior à política (muz’ka
vne politiki). Eu fiquei chocado com a afirmação de Andrei, provavelmente, por que
não estivesse preparado para ela, tendo vindo à campo, armado com minha politizada
ontologia do rock. Estando entrelaçado em minhas suposições sobre a identidade do
rock em geral e do rock em particular, simplesmente, não estava preparado para a
afirmação de Andrei. Pedi-lhe para explicar o queria dizer com “música é exterior à
política”, e ele começou a me falar da música como uma forma de energia (energiia).
[...] Quando persisti em questioná-lo, quase ao final, qual o destino dessa energia e o
que o levara a tocar [rock] música, ele respondeu – utilizando uma expressão
corriqueira em russo – que, simplesmente, estava seguindo sua “estrela” [smoye
svezda]. {Tradução e grifos nossos]
Em contrapartida, haveria aqueles que teriam uma interpretação precisamente oposta,
observando no rock local, manifestamente, um papel político atuante e desafiador ao
estabelecimento (conforme o relato do músico Kolya, analisando ao contexto anterior a 1985):
Não se pode separá-los [política e rock]. A situação é que antes [...] era uma forma de
oposição. Oposição política, oposição ao Estado, oposição ‘à imprensa’. Política, mas
não em termos partidários. Seria tão somente uma forma inerente de protesto contra o
que estava acontecendo, para colocar em termos simples. Apenas contra essa vida,
nada de aprofundamentos em dogmas ideológicos, comunismo ou capitalismo, apenas
uma oposição aos dogmas, à uma vida monótona, simplesmente sufocante. [Traduzido
do inglês]365
364Cushman, 1995 Op. Cit. p. 107 365Ibidem; p. 111
261
Esta diferença de perspectivas acerca da política, dentro da comunidade musical,
ademais de produzir uma celeuma, seria também utilizada como elemento distintivo de valor
entre seus integrantes – muitas vezes pendendo a uma consideração pejorativa aos que
utilizassem a semântica do assunto em seus temas (CUSHMAN; 1995; p. 111).
Com o cenário moscovita do rock percebido como conformista, enquanto o cenário
leningradense mergulhava em polêmica, restaria como melhor acepção entre a realidade vivida
e aquela almejada pelo exercício da poética e da música, uma que conseguisse transitar pelos
seus diferentes aspectos, de uma forma tão críptica e sutil, que unisse em simultâneo, as
percepções dessa contradição. Dado que, como numa aporia, quanto mais o rock procurasse se
afastar de sua imbricação política, mais politicamente incidisse como vetor de dissidência366.
Transitando por esse terreno tortuoso, com talento muito singular, o grupo Akvarium
daria a feição dessa construção, da circunstância do rock underground soviético – com a
sutileza semântica que se observa na canção abaixo:
É hora de eu descansar - Estou cansado de ser um embaixador do rock and roll
Em um país irregular.
Não tenho mais medo daqueles que confiam em mim.
Dançamos nas mesas no sábado à noite Somos velhos e não podemos ajudar Mas não queremos incomodar ninguém, Dê uma conta de poupança em um banco – v amos sair correndo; Se você soubesse como estou cansado do escândalo; Estou pronto para sair; ei quem está aqui Reivindica meu pedestal? Onde está aquele jovem punk O que nos apagará da face da terra? Ela se foi, não, não ... Não, não, não... Não, não, não...
Akvarium; Rock n´Roll Geroy [Herói do rock n´Roll], 1981
Com o talento costumeiro de Grebenschchikov em ação, fazendo a resenha ao período
vivido pelo rock soviético desde seu ingresso até o final da Era Brejnev, a canção Rock n´Roll
Geroy (Herói do Rock n´Roll), ganharia notoriedade na URSS, apelando para um sarcasmo e
charme muito especiais.
366Pode-se dizer que, como corolário reverso, quanto mais politicamente se afinizasse, mais estéril fosse sua
utilidade como emblema político. Em outras palavras, o rock teria de ser, em igual medida, marginal, enquanto
elemento com potencial criativo (embora potencialmente subversivo) e passível de uma ampla possibilidade
hermenêutica, enquanto elemento a contemporizar conflitos internos da comunidade, e o grande conflito com o
estabelecimento (embora nisso restasse ambíguo).
262
Com menções como ‘Estou cansado’ e ‘hora de descansar’, acompanhadas de ‘Somos
velhos e não podemos ajudar’ – ‘BG’ e sua turma estariam a fazer troça com o fato de pretensas
vozes locais estarem a depor o papel da recente Akvarium (com apenas nove anos de
existência), como uma verdadeira vanguarda no movimento e cena do rock local. Mais do que
isso os termos ‘velho’ e ‘cansado’, associados a ‘embaixador’, recobrariam a solenidade
tipicamente atribuída a figurões da administração local, partidários e todo o séquito que os
acompanhava. Esse que, de fato, já velhos ocupantes da burocracia e tidos, como os
responsáveis pelo desgaste sofrido pelo país. Nessa brincadeira de associar-se à imagem do
governo, como um ‘assecla’ – com ‘dançamos nas mesas no Sábado à noite‘ referindo-se ao
seu uso pelo governo como entretenimento – Grebenschchikov estaria a fazer a revelação,
autocrítica, que embora pudesse gravar e veicular seu material, mostrando assim, possível
cooptação pelo esquema, que na verdade tudo não passaria de ironia e a utilização, mesmo desse
espaço, como caixa de ressonância para o underground – ou, um underground que aflorava
dentre o mainstream. A menção que denota essa percepção é ‘ estou cansado de escândalo’,
‘pronto pra sair’ e ‘quem aqui reivindica meu pedestal?’ – falas emblemáticas com as quais
rebate qualquer pretenso fisiologismo que dirigido à banda. E como grande coroação, a estrofe
final arremata a inicial demonstrando que o grupo de BG não está para satisfazer ou agradar
nenhuma das pontas da estrutura soviética – ao provocar tanto o estabelecimento com ‘não
tenho mais medo daqueles que confiam em mim’, enquanto cutucava aos recém-ingressos da
geração rockeira da URSS com ‘onde está aquele jovem punk que nos apagará da face da
Terra/ Ele se foi/Não, Não, Não ...’ – demonstrando que seu rock não estaria ali para servir
segmentos, mas para refletir suas próprias contradições.
A canção de BG, bem como sua atitude, atuaria como uma das precursoras de um
período de viragem que se anunciava: esse da gravação de álbuns de rock pela Melodiya (e não
apenas VIA) e a implantação de espaços voltados à realização de espetáculos recorrentes no
autêntico estilo underground. Com esse intuito, seriam criados no princípio dos anos 1980 o
Leningrad Rock Club (1981) e o Laboratório Rock Moscou (1983)367, casas de
espetáculo/galerias destinadas não apenas à execução de concertos, mas com possibilidade a
reunir ao seu redor o entorno do movimento de cultura que surgia com o rock soviético: a
tusovka (do termo russo tasovet, no sentido de reunião; agrupamento).. E para melhor defini-la
– (MISIANO, 2005):
Assim como a reunião é primordial para a esfera das relações sociais, o mesmo é o
367GLUKHOV, 2020. Op. Cit.
263
princípio do envolvimento para os tusovki368: é sem precedentes em sua abertura e
democracia. Para ingressar em uma tusovka, não é necessário possuir virtudes ou
características, nenhum estatuto social ou profissional. A tusovka não é uma reunião
de nobres, nem uma academia de "imortais" ou uma máfia. Para estar na tusovka,
basta estar lá. Esteja no lugar certo na hora certa - no lugar onde a tusovka acontece.
Um participante de tusovka de sucesso é aquele que consegue visitar tantos desses
lugares no menor tempo possível. Tusovka é uma síndrome que surge com a
desintegração da cultura disciplinar e da hierarquia social. Tendo surgido como um
substituto para corporações em desintegração, a tusovka é um tipo de associação
totalmente personalizado. Livre de instituições, ela os substitui por substitutos personalizados. Tusovka não conhece museus, mas tem homens-museus; não conhece
periódicos reais, mas tem diários [jornais] humanos; não tem crítica de arte, mas tem
crítica, não tem estrutura expositiva, mas tem curador; não há reflexão, mas há um
filósofo; não recebe apoio estatal, mas tem ministro próprio. No entanto, esses
substitutos têm um status absolutamente performático, carecendo de toda e qualquer
verificação de suas produções. Um jornal humano não precisa confirmar seu status
por meio de publicações periódicas regulares; basta coletar materiais de seu portfólio
editorial; um curador não é obrigado a organizar exposições para confirmar seu status
(e definitivamente não é obrigado a organizar boas exposições), e a única coisa que
se exige do ministro é aparecer em cada vaga de exposição, segurando um copo na
mão. A tusovka não verifica atividades e não possui critérios adequados para fazê-lo; exige apenas reuniões e nada mais. [Tradução do inglês e grifos nossos]369
O contribuinte aos contornos dessa definição, Viktor Misiano (2005), esteta e
colaborador ao MOSKh (Museu de Arte de Moscou), prossegue salientando aspectos que
aproximam e afastam a definição de underground, encontrada no rock leningradense, com a da
generalidade da tusovka. Nesse ínterim, diferente do underground, a tusovka, seria um:
Meio de auto-organização do meio artístico que encontrado sem qualquer tipo de
repressão externa, em uma situação em que o princípio da consolidação a partir da
concórdia ideológica de opiniões, da ética da oposição e do ‘atuar em comum‘ já
estaria exaurido. [Tradução do inglês e grifos nossos]
Entretanto, enquanto o underground, tomara ‘clandestinamente’ da instituição existente
seu meio de produção, e como uma relação a um amplo aspecto cultural (estabelecimento),
havia adotado o princípio de se apresentar/manifestar como uma alternativa (ser alternativo), a
tusovka não lhe negaria (Estado) como uma alternativa, ao admitir, inclusive, a possibilidade
de mecenas, mas, mais do que isso, estaria preocupada em seu aspecto catalisador de reunir
pessoas segundo um propósito (arte; comunidade em torno da arte), em acontecimentos
ocasionais, onde o ‘princípio de reunião’ seria seu maior vetor característico. Em outras
palavras, o underground pressuporia o estabelecimento, ao situar-se nele e dele ser tributário,
enquanto que a tusovka, estaria mais afeita a congregar diferentes cenas de arte, grupos e colocá-
los em contato – incluindo-se nisso, os ‘estetas’ do rock n´ roll soviético370.
368Aspecto de pessoal; polo subjetivo dessa cena cultural; integrantes de uma tusovka. 369MISIANO, 2005. Op. Cit. 370Outro elemento de contraposição entre ela e o underground, é que não estaria alicerçada em estruturas concretas
do estamento da cultura (como seria com o rock da URSS, uma ‘oposição’ à música estatal, do Estrada ao VIA,
em sua conformidade e esquema de produção) – não podendo ser atribuível como um oposto específico, apenas
como um manifesto plural. Fonte: MISIANO, 2005
264
Contraditoriamente, a postura (a)política do rock local, ao se afirmar através do
underground, assumiria um contorno ‘político’, por comportamento, de oposição e já a tusovka,
essa mais elementar ao fator de convergir o trânsito cultural na possibilidade do encontro
(reuniões, mostras, apresentações, personalidades e momentos ocasionais) adotaria, aí sim, um
caractere menos francamente político. Em tempo, ainda assim muito diferente do apoio ou
conivência ao estabelecimento, bem como distante de manifestações de arte como a ‘boemia
do século XIX’ ou mesmo a ‘da geração Ocidental dos anos 1960’ – não sendo possível
reconhecê-la em nenhuma delas (MISIANO, 2005).
Com um hiato de quase seis décadas, uma resposta robusta e multifacetada ao Realismo
Concretista Soviético proviria a partir de ideais e soluções encontradas na própria circunstância
local, onde o rock, apenas como um dos meios, fazia sala a uma década de muitas
transformações pela frente, com o fim da gestão Brejnev, o incerto desfecho e os rumos da
realidade socialista local. Sobretudo, com a tusovka e o rock underground da URSS, se
demoliria toda suposição banal acerca de como o desgaste interno pudesse estar afetando a
possibilidade de autonomia cultural local – deixando espaço a implementações exteriores, pura
e simplesmente. Pois por fatores locais e com soluções locais, se encontraria um modo de
resistir e perpetuar-se, muito distintamente das manifestações Ocidentais (de quaisquer épocas)
e das do estabelecimento.
O rock underground soviético já se constituira, naquele momento, mais que apenas um
desdobramento das influências ocidentais e tornara-se um bard rock (rock bardo)371 produto de
uma nova configuração a partir de práticas de cultura, como visto em Williams (1969), ainda
remanescentes da tradição local:
Representa uma importante mescla entre essas tradições musicais especificamente
russas – nesse caso Vladimir Vysotsky – com essas que são Ocidentais – no caso, o rock. A tradição russa de música popular é caracterizada por uma distinta tradição de
violeiro solo que atua como poeta e bardo [...] Vysotsky foi um um cantor moscovita,
que cantava e tocava o violão na tradição popular russa, a qual denominada blatnaia
muzyka (literalmente ‘música criminosa’), a qual caracterizada por uma afetada pose
de marginalidade e grosseria, tanto em estilo, quanto em música, procurando com isso,
refletir a experiência da vida na sociedade soviética. [...] Os músicos de Petersburgo,
como todos os russos interessados em música, demonstravam profunda admiração por
Vysotsky, como um contraculturalista e um poeta bardo.[...] Mais do que isso, muitos
rumaram a um enxerto dessas poéticas dimensões com aquilo que eles viam como [...]
poderosa e energética tradição musical Ocidental: o rock. [...] Como um poder
(moshchnost’) do rock no sentido de elevar a tradição barda russa a um novo nível de energia. É impossível subestimar a importância deste senso entre os músicos de rock
russos, tal fusão de tradições representa um passo progressivo no desenvolvimento da
música. [Tradução do inglês e grifos nossos]372
371RussMus.Net: The best online resource for Russian Music; Disponível em: http://www.russmus.net; Acesso
em: 23/06/2021 372CUSHMAN, 1995. Op. Cit. p. 73-74
265
A partir da colocação de uma música barda como precedente fundamental de uma
configuração como o bard rock, genuinamente uma criação soviética, fica improvável sustentar
a hipótese de uma tributariedade, ainda persistente, do fenômeno local ao seu influente de
origem (rock ocidental). Não obstante, além da criação da tusovka e do bard rock (do qual seria
um adepto, Yuri Schevchuk, da DDT)373, as primeiras impressões de desilusão com o outrora
‘deslumbrante Ocidente’, já demonstrariam uma maturidade do estilo local, cujos integrantes
não mais observariam o polo de origem do ritmo, nem com idílio, nem como seu ponto de
orientação:
[Yuri] era um dos poucos russos que haviam viajado ao Ocidente, tendo sido
convidado por um produtor de Nova Iorque para tocar em concertos em Nova Iorque
e na Califórni. Suas experiências com americanos deixariam, segundo suas palavras, ‘um gosto ruim na boca’. Ele constataria, em tom amargo, que os Ocidentais estariam
apenas interessados [...] naquilo que definiria como ‘Rússia Exótica’[russkaia
ekzotika]. Em uma das histórias, conta que o contrato americano estipulava que a
banda deveria conseguir pagar sua passagem de retorno à Rússia, a partir da bilheteria
dos concertos. Tais bilheterias, no entanto, não seriam suficientes e a banda seria
abandonada em Los Angeles e forçada a trabalhar em trabalhos braçais para fazer
dinheiro para as passagens de avião da volta para casa. Como resultado, enquanto a
postura de muitos músicos é bem cooperativa [...] a de Yuri, é mais reservada. Quando
um outro músico chegou para falar-lhe [sobre minha pesquisa], intercedendo por mim,
ele simplesmente disparou: ‘Nós não precisamos de nenhum americano aqui’
{Tradução do inglês e grifos nossos]
Uma opinião importante a se considerar, não apenas por partir de integrante da realidade
soviética, mas por ser este um autêntico artista e reverberador de opiniões dentre aquela
circunstância. A percepção do músico, ajudaria a compreender que, se outrora o rock local se
posicionara contra o sistema interior, naquele momento e dali por diante, também não assumiria
mais vínculos de afinidade com fontes exteriores. Demolia-se, portanto, qualquer noção que o
perfilasse com um parentesco direto ou um esbirro das manifestações das vertentes do rock
Ocidental. A partir do bard rock, manifestamente, o rock soviético se emancipara.
Assim, observando o contexto que se desenhava, com tanta sensibilidade e argúcia,
Grebenschchikov faria ainda mais o significado duradouro de sua composição Rok n’ Roll
Geroy um marco a pontuar as lacunas no precedente de sua época: um momento onde a cultura
soviética e toda sua sociedade atravessavam uma transição, e onde o rock local, que servira de
efeito catalisador nesse meandro, também passava por uma autocrítica – fruto das novas
percepções de seus protagonistas.
O underground como um catalisador real: talvez como um alicerce à possibilidade da
tusovka, que lhe devolveria, em troca, a possibilidade de ingressar-se o rock num caráter mais
373Cushman, 1995. Op. Cit pp 73-74
266
amplo do que o da sua comunidade específica e de seu produto cultural com uma
admissibilidade de reputação complexa, tão complexa, quanto somente, no anonimato, seu
circuito cultural, seus artífices e aficionados já o reconhecessem. O rock se imbricaria a partir
de então com essa cena ampla que se instalaria URSS (Rússia) entre o princípio da década de
1980 e se encerraria na metade dos anos 1990 – numa relação que cabe ser investigada em
pesquisas posteriores à dessa aqui realizada.
Se tributária do rock local ou apenas dos mesmos acontecimentos sociais que o
incidiram, a tusovka seria um destes resultados que só apareceriam após a existência constatada
do fenômeno na URSS. Fenômeno do qual, após o precursor movimento da geração de 1960 e
o novo fôlego oferecido pela geração de 1970, ocasionaria o surgimento, durante a década
posterior, de uma oportunidade, relativamente, mais favorável à eclosão do rock soviético – do
underground a ‘Red Wave’ – demonstrada no aparecimento de alguns de seus mais importantes
nomes – tais como: Kino, DDT, Alisa, Aria, Politted Reffusal, Crematorium, Continente de Mu,
Notchnoy Prospekt, Sektor Gaza, Nautillus Pompillius, entre outros (MAROCHKIN, 2011a).
Verdadeiros ‘heróis do rock’ – muitas ainda em atividade à atualidade – cujos trabalhos,
majoritariamente, encontrariam dissensões com o cenário dos governos pós-Brejnev e com
Perestroika, e que ainda hoje, seguem acontecendo através dos novos desafios e estruturas
proporcionadas pelas reformulações gigantescas da política e da institucionalidade da URSS
(dissoluta em 1991) para a atmosfera de outros tempos de incerteza e novas formas de conflito.
[Mas essa é uma outra história...]
267
4.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O rock soviético não apenas existiu – ele ainda permanece. Seus artistas e artífices,
superando ao gentílico (perdido com a dissolução da URSS em 1991), ainda ‘trepidam os
palcos’ e fazem do revide a marca de suas apresentações. Demonstrações veiculadas em
tabloides internacionais, recordam quando o vocalista Yuri Schevchuk, da DDT (citado aqui
inúmerasvezes), pronunciou-se em questionamento ao governo de Vladimir Putin, atacando
uma de suas iniciativas e recobrando seu papel enquanto mediador, pela arte, do compromisso
de intercessão pela realidade social e política da Rússia374. Eis aí, historicamente, a grande
repercussão do rock: uma que eminentemente social e iminentemente explosiva. Pela qual,
entender-se dele, requer entendê-lo como autêntica manifestação de cultura e arte, requerendo
entender em seu processo, a sociedade e tensões em jogo que o precipitaram em fenômeno – e
vice-versa. Evocando a David Bowie: Rock n’ Roll Is A Fine Art.
Bem no seu princípio, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas situada durante a
Guerra Fria, o rock que ingressara através do governo do secretário-geral Nikita Kruschev
(1953-1964), conhecido como Ottepel (Degelo), oferecia uma pálida noção do exótico
Ocidente, com vulto, da fisionomia do ‘rico e perigoso’ opositor da URSS: os Estados Unidos
da América. Talvez por isso, somente após uma ‘alternativa mais palatável’ o ritmo tenha sido
ingressado ‘de fato’ na ambiência soviética: seria a partir da explosão cultural juvenil
ocasionada pelos Beatles que o rock passaria a ser uma realidade entre a juventude local. Na
URSS, de maneira indistinta, apenas com algum intervalo de tempo e circunstâncias, de modo
mais transformador, após 1964, o som dos rapazes do fab four calharia em chegar também. E
como característico ao rock, traria em sua bagagem, sempre, um emaranhado de tensões.
Nesse sentido, determinando sua classificação por etapas, desde sua estadunidense
origem, o rock seria um elemento cultural urbano e juvenil, num macrocosmo de manifestações
com outras composições de paisagem, geográfica e etária. Também seria o rock, parte
subcultural (enquanto estilo de vida e atitude) e parte da indústria cultural, como sucedera
também às suas vertentes de influência, foxtrot, blues, rhytm n’ blues, country. Por conseguinte,
seria o ritmo também composto e pertencente a diferentes jovens e distintas manifestações.
Considerando-se assim, que culminasse adequado fazer para além de sua composição de
374 Com a seguinte indagação: ‘Só se poderá falar liberalização e democratização reais para um país real, onde
as organizações públicas não sejam sufocadas e as pessoas não sintam medo de um policial na rua’. In: PARFITT,
Tom; Russia Awaits ‘Kremlin Poodle’ Trial As Rocker Takes On Critic Troitsky The Guardian (04 de maio de
2011); Disponível em: https://www.theguardian.com/global/2011/may/04/russia-awaits-kremlin-poodle-trial;
Acesso em: 24/06/2021
268
cenário (paisagens sonoras urbanas), sua observação social junto aos chamados estudos de cena,
no intuito de compreendê-lo enquanto espaço substantivo ao surgimento de manifestações
próprias de agência (THOMPSON, 1987), configurando-se nisso e a partir disso, uma
interpretação de cultura ‘enquanto resposta à vida’ (WILLIANS, 1969).
Após seu surgimento no pós-guerra estadunidense (1953), o rock chegaria durante a Era
Kruschev (Degelo) à URSS, mas sua manifestação seria episódica, eventual e de proporção
modesta, por isso a emblemática consideração sob Brejnev (1964) de que a grande eclosão do
fenômeno local aconteceria.
Recapitulando, em Kruschev estaria situado o surgimento do ritmo na RSFS da Letônia
(com o grupo de Riga, Revengers, em 1961) e o princípio da configuração do contorno do
movimento em terras soviéticas: protagonizado, majoritariamente, por uma camada
privilegiada (acadêmicos, filhos de oficiais e diplomatas) cujo acesso diferenciado ao consumo
permitiria aquisições peculiares. A grande marca do processo estaria demarcada por reformas
estruturais sociais e econômicas que culminariam em uma nova relação com os bens de
consumo e oportunidades de contato com conhecimentos do mundo exterior, enquanto que, no
polo interno, a sociedade soviética passaria por uma tremenda ocorrência de urbanização, com
a implementação de um subúrbio mais robusto ao redor das grandes capitais – voltado a
absorção pelo contingente da indústria local. A Coexistência Pacífica na política, estreitaria
laços com os EUA e oportunizaria a chegada de produtos culturais como o rock. Essa
imbricação entre consumo cultural relacionado à economia e cenário locais, acabaria por
plasmar importantes pontos de uma relação de consumo, disseminação e arte no seio da
modernidade industrial socialista.
Se por um lado muito evidente a tônica de reformulação ‘positiva’ sob Kruschev, seria,
entretanto, esse também o período de primado a vigilância progressiva de práticas dissidentes
a partir de iniciativas mais sutis, como a participação civil no patrulhamento ideológico (como
a brigada Druzhinniki) e a utilização intensificada de expedientes de internação psiquiátrica
para indesejáveis.
Dotado de circunstância urbana, de um fluxo de consumo recente e de um contato maior
com elementos de cultura Ocidentais, o terreno da URSS que principiava com Brejnev (a partir
de 1964), seria um que receberia o fenômeno da beatlemania – voluntária ou involuntariamente.
As pontes abertas pela revolução tecnológica e de acesso a magnitofons (magnetófonos;
gravadores de fita), reconfiguraria a forma de se experimentar a música no cenário local e
269
ofereceria ferramentas à produção e disseminação alternativa mais robusta, de material
fonográfico, entre os jovens – o pelos chamados magnitzdat e roentgenitzdat. Dessa ‘revolução
de produção e circulação’, acompanhava-se a consolidação de uma cena rock universitária
(Institutos Superiores de Moscou), onde surgiriam as bandas Sokol e Scythians, como grandes
baluartes do fenômeno à década. A Sokol, por seu pioneirismo, seria a realizadora da primeira
canção em língua local (Gdye Tot Kray, de 1965), enquanto a Scythians, seria a primeira a
alcançar status de ‘febre juvenil’ dentro da localidade oriental – entre 1966-68. Os elementos
de russificação ou uma assimilação por caracteres próprios do rock na URSS, seriam
importantes a considerar aspectos populares e institucionais. Do polo popular, as rixas e
‘bairrismos’ entre diferentes regiões, aplacadas em parte pela imposição legal soviética, se
veriam reafirmadas mediante à exposição dessa nova forma de entretenimento. Do aspecto
institucional, surgiria a grande polêmica: primeiramente, fiscalizando aos grupos através dos
designados Comitês da Juventude Comunista – Komsomol, que articulariam através de
gerentes, de locais de espetáculo a regimes de pagamento, até mesmo oferecendo suporte a
muitos filhos dos integrantes da elite (através de escoltas e regalias na oportunidade de
aquisições musicais junto à Melodiya). Enquanto que, num segundo momento, a estrutura
institucional acabaria cooptando-os, abertamente, através de uma iniciativa regulamentar para
a produção cultural de entretenimento, controlada por submissão ao esquema e com
oportunidades de gravação e remuneração.
Essa seria a primeira importante transição verificada no rock local: uma que saía de seu
protagonismo por jovens acadêmicos apreciadores, em apresentações arranjadas, mas de caráter
amador (designada fase seishnov) – até a sua absorção pelo aparato e sua progressiva
profissionalização (fase VIA [conjuntos vocais-instrumentais patrocinados pelo Estado]).
Quanto a sua cultural inserção, desse momento em diante, o rock soviético ainda permaneceria
de nicho, não representativo entre a sociedade em geral, porém, migrando de uma subcultura
(implementação a partir do estrangeiro) para uma cultura popular (assimilação local).
Seria ainda sob Brejnev, que uma grande contradição se apresentaria, também fruto
dessa imbricação econômico-social: se por um lado o aspecto ideológico de orientação do
governo penderia para uma espécie de ‘re-conservadorização’ da sociedade da URSS, por conta
da necessidade de captação de recursos, tais medidas ficariam esvazias. Em parte, por conta da
crise econômica proveniente do fracasso com a Economia Responsiva (de 1968), ocasionando
um fortalecimento do mercado paralelo e a função dos atravessadores ilegais (tolkachi) e de
outra parte, por conta da compra regulamentar pela administração, para abastecimento do
270
mercado fonográfico (e cinematográfico) de obras oriundas do Ocidente. Em outras palavras, o
intuito ideológico cederia às pressões econômicas e permitiria aos aficionados do rock local,
tanto a opção de aquisições por contrabando (como discos, instrumentos, revistas e aparelhos),
como pelo mercado regular, apreciações de compactos de música estrangeira e filmes exibidos
nas capitais.
Complementando a isso, com a consolidação da iniciativa VIA, viria um rock com
semelhança rítmica, mas conformista nas letras e nas apresentações. Importantes músicos
fariam do rock um cenário experimental – como o grupo Tsvety, dotado de habilidades oriundas
da formação escolar e acadêmica ampla e eficaz da URSS, bem como de manifestações mais
episódicas, mas muito marcantes, do sincretismo entre música e práticas de vida e cultura
alternativas (como o caso dos hippies soviéticos). Por fontes internas e externas, o ritmo na
URSS se complexificaria, e ingressando à década de 1970, mais uma vez, do cenário
socioeconômico emanaria uma contradição: num momento onde a economia se cercava de uma
recessão – a chamada Zastoya – o cenário de Détente com os EUA e a necessidade de
aquecimento da economia, oportunizariam ainda mais remessas de material audiovisual
exterior, enquanto a indústria local aumentava o sortimento de produções de entretenimento no
estilo rock.
Também da indústria, no início da década de 1970 se observaria no mercado musical
uma oferta maior de instrumentos produzidos na URSS, com destaque à presença de maiores
opções de guitarras elétricas, principiada com a Tonika em 1968 na RSSF da Rússia, e ainda
antes, considerando-se o Bloco do Leste, pela Alemanha Oriental.
E enquanto essa ‘atmosfera fortuita’ em torno do rock parecia anunciar uma suposta
dimuição das restrições, a cúpula administrativa soviética, refletindo a admissão de uma
estrutura institucional e social periclitando em fragmentárias manifestações, faria em reverso a
campanha estatal URSS É Meu Endereço, em 1972-3, que evocava uma coesão através da
rodina (mãe-pátria) e da coletividade, como grandes riquezas do cidadão soviético e
importantes virtudes a desestimular pretensões individualistas – utilizando-se para isso dos
acordes do rock (de Tukhmanov) em sua trilha sonora.
A cartada da administração com essa tentativa de reenquadramento, ocasionaria uma
resposta através de grupos não submetidos ao esquema de produção (ao menos, não
inteiramente). Em 1973, o grupo Machina Wremenyi (de 1968), liderado pelo músico Andrei
Makarevicz, lançaria, alternativamente, as canções Nach Dom (Nossa Casa) e Ty Ili Ya (Você
271
Ou Eu), com provocações sutis, de ritmo e letra à administração local, evocava-se a reflexão
por sobre o clima de hipocrisia pairante na realidade local e apelava-se a uma jornada de
distanciamento, através da metáfora de ‘uma casa’ diferente de um endereço.
Nesse mesmo ínterim, fruto da atmosfera conservadora, o represamento dos recursos de
gravação à artistas do gênero, levaria a uma procura por soluções sub-reptícias, intensificando-
se a produção de magnitoalbomy (álbuns paralelos em fita-magnética) e estimulando o
surgimento de estúdios domiciliares. Tais soluções, que viriam acompanhadas também
intensamente de um crescimento da prática do rock underground soviético, este que mais
estabelecido em Leningrado e com características de configuração muito próprias.
Remanescente desse movimento, surgia a banda Akvarium, grupo liderado por Boris
Grebenschchikov, fundado em 1972, com grande reconhecimento pelo público, por suas
composições poeticamente embaladas em sarcasmo e agudez melódica.
Como produto dessa circunstância de tensões em meio a estabilidade/estagnação, o rock
underground da URSS emergiria como uma bifurcação em relação ao caminho anteriormente
tomado: a) originalmente, um rock acadêmico/elitista de Moscou (que rumara à iniciativa VIA)
e, finalmente b) um rock underground, que se aproximaria de experiências sonoras mais
ousadas e populares. Sua imbricação, a despeito disso com a cultura oficial é evidente, pois,
como característico ao seu ‘ser’ de nicho, o underground utilizaria das estruturas concretas (em
oposição à musicalidade e circuito de produção oficiais) da instituição soviética para estabelecer
seu posicionamento alternativo. Suas apresentações utilizariam, por exemplo,
fundamentalmente, espaços de uso popular, de estrutura arranjada e precária, como as cozinhas
das moradias coletivas fundadas por Kruschev, e como esquema de produção, a
institucionalização do magnitzdat, repassado por redes de aficionados atuando à margem da
fiscalização. A clandestinidade, daria lugar ao reconhecimento, quando ao princípio da década
de 1980, a gravadora estatal, Melodiya, chamaria, a partir do precedente da Akvarium, outros
grupos de rock underground a fazer parte da cena mainstream da URSS – não mais através do
esquema de cooptação estatal, mas da oportunidade de que tivessem espaços reconhecidamente
destinados a essa produção específica (como o Leningrad Rock Club e o Laboratório Rock
Moscou, respectivamente, em 1981 e 1983).
E nesse escopo, adiante de uma estrutura formal de (re)produção fonográfica, a
oportunidade de reconhecimento cultural, enquanto arte, seria o grande galardão angariado com
a tusovka – um misto de meio informal de congraçamento de artistas, com um projeto de arte
272
social embasado nas práticas diretas de seus operadores.
O rock adentrara em surgimento na URSS de Kruschev, no entanto, seria sob Brejnev
que o rock situando-se, de fato, se sovietizaria, ganhando os contornos que o delimitariam um
fenômeno de cultura singular, não tributário essencialmente à matriz original (Ocidental).
No tocante a enfatizar a importância desses dois governos para o destino cultural e o
caminho tomado pelo rock local a seguir, há que se observar que seria durante Brejnev que
muitas das reformas operadas por Kruschev surtiriam efeito – como, por exemplo, a reforma de
urbanização intensificada, cujo produto, subúrbios inflacionados (Kruschevskayas), seriam o
ambiente de surgimento e aglutinação do movimento underground nos anos 1970.
E é somente a partir da tusovka que se vai entender como o rock, de fenômeno ora
marginal, se tenha tornado parte de uma linha estética de vanguarda. Num paradoxo, a vertente
underground local alimentara a possibilidade de estrutura da tusovka, mas somente da admissão
da tusovka, enquanto linha estética de vanguarda mais bem-definida, é que o rock soviético
teria condições de se tornar um produto de envergadura significante, para além dos ‘muros’ de
sua comunidade eletiva.
A tusovka seria o movimento de muitas expressões de arte, que surgindo, talvez a
reboque dos eventos do rock, talvez por espontâneas configurações em simultâneo,
exponenciaria o sentido de uso do rock soviético, o dimensionando e oferecendo-lhe um
elemento poderoso à circunstância de sentido que lhe faltava: a de um caráter junto a
coletividade de outras manifestações artísticas locais.
Ironicamente, ou fatidicamente, esse trabalho iniciado durante os eventos da Vostok
2018, encerra-se neste ano, 2021, rememorando 30 anos da dissolução da URSS – ou melhor,
40 anos do Leningrad Rock Club e 60 anos da primeira banda da URSS (na Letônia), simultânea
ao vôo de Gagarin. Considerando a data mais política desse elenco, naquele momento, músicas
como Gruppa Krovyi, da Kino e Ne Strelyai, da DDT, ainda fariam significado e repercussão
entre a juventude, que olharia perplexa suas tropas deixarem derrotadas a região afegã para a
implantação de um governo local de transição, sob o olhar dos rivais estadunidenses no estertor
da Guerra Fria. Hoje, distintamente, mas ainda com similitudes provocantes, o mundo
acompanha as tropas estadunidenses deixarem, derrotadas, uma longeva campanha no
Afeganistão, onde quem promove a articulação em nome de uma transição, são os dirigentes
russos. E se contra (burocratas e sua estrutura) virava-se o rock, muito mais do que contra a
273
ideologia em si (socialista), com a atual administração, seguem os posicionamentos.
Ora virando-se de costas e dando de ombros, ignorando o mundo mesquinho com lindas
melodias sobre amor e esperança, a recobrar o profundo de coisas essenciais. Ora, se colocando
de frente, e junto a juventude atual, cobrando uma postura nada etérea sobre direitos, justiça,
expressão e liberdade. Afinal, não fosse assim, os grupos e artistas remanescentes do gênero,
não se encontrariam ainda hoje, tal qual as contradições, chocando-se no mesmo
estabelecimento local. Onde a bem da verdade, ainda se encontram e ao vê-las, denunciam ao
povo através de sua arte, que não se pode esmorecer.
274
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287
ANEXOS
Anexo 1- Letra da canção Solntse Nad Nami (O Sol Sobre Nós) – Grupo Sokol (1968)
Anexo 2 - Letra da canção (jingle) da Campanha Estatal A URSS É Meu Endereço (1972)
Anexo 3 - Letra da canção Наш Дом (Nossa Casa) - Grupo Machina Wremenyi (1973) Anexo 4 - Letra da canção Ты Или Я (Você Ou eu) - Grupo Machina Wremenyi (1973)
Anexo 5 - Letra da canção Рок-н-Ролл Герой (Herói do Rock n’ Roll) - Grupo Akvarium (1981)
Anexo 6. Imagem Grupo Sokol (tomada evidenciando Y. Ermakov e I. Goncharuk);
Anexo 7. Imagem Grupo Sokol (imagem da década de 1960); Anexo 8. Imagem Yuri Aizenshpis (gerente do grupo Sokol);
Anexo 9. Imagem Grupo Tsvety (foto de 1972);
Anexo 10. Imagem Capa do disco Tsvety I (1973); Anexo 11. Imagem ‘Hippies Soviéticos’ (imagem da década de 1970);
Anexo 12. Imagem ‘Luminares do Rock Russo’ (Stas Namin, Andrei Makarewicz, Boris
Grebenschshikov); Anexo 13. Imagem Baixo [Modelo] Tonika Rostov (produzido na cidade de Rostov; RFSR da Rússia,
Década de 1970)
Anexo 14. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Tonika Lunacharsky (produzido na cidade de
Lunacharky; RSFS da Rússia, 1970-72) Anexo 15. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Lvov Ritm
Anexo 16. Imagem Guitarra Elétrica [Modelo] Orfeus
288
Anexo 1 - Letra da canção Solntse Nad Nami (O Sol Acima de Nós), 1968
[Autores: Ermakov, Y.; Goncharuk, I.]375
В чаще лесной, в кустах между кочек
Жил в одиночестве белый цветочек
Увы, он был непорочен
Жил он без радости, бедный цветочек
Красный цветок на поляне расцвел А рядом был улей, полон злых пчел
Увы, пчелки напали
Бедный цветочек весь обобрали
Синий цветочек рос у дороги
А ведь там можно легко попасть зверю под ноги
Увы, цветик пропал
Грубый медведь его в землю втоптал
Солнце нам нами!
[Солнце над нами!]
Жили цветы в саду так беспечно
В надежде, что жить и цвести им тут вечно.
Увы, садовник бухал
Он срезал цветы и на рынке прода
No matagal da floresta, nos arbustos entre as
protuberâncias
Vivia sozinha a flor branca
Infelizmente, ela era inocente
Ela viveu sem alegria, pobre flor
A flor vermelha floresceu no prado
E havia uma colmeia próxima, cheia de abelhas
furiosas
Infelizmente, as abelhas atacaram
A pobre flor foi roubada por toda parte
Uma flor azul cresceu na estrada
Mas aí podia facilmente ficar sob os pés da besta
Ai, a flor se foi
Um urso rude a pisou no chão
O sol somos nós!
[O sol acima de nós!]
As flores viviam no jardim tão descuidadamente
Na esperança de que elas vivam e floresçam aqui para
sempre.
Infelizmente, o jardineiro estava a beber
Ele vive de cortar flores e vender
375 Fonte: Текст песни ВИА Сокол - Солнце Над Нами [Trad. livre: Letras de VIA Sokol - O Sol Sobre Nós].
Текстыпесен.com [Trad. livre: Letrasdemúsicas.com]. Disponível (em russo) em:
<https://tekstipesen.com/song.php?id=5008434> Acesso em: 18/08/2021
289
Anexo 2 - Letra da canção (jingle) da Campanha Estatal A URSS É Meu Endereço (1972)
[Autores: Kharitonov, A; Tukhmanov, David]
Колёса диктуют вагонные
Где срочно увидеться нам
Мои номера телефонные
Разбросаны по городам
Заботится сердце сердце волнуется
Почтовый пакуется груз
Мой адрес не дом и не улица
Мой адрес Советский Союз
Мой адрес не дом и не улица
Мой адрес Советский Союз
Вы точки тире телеграфные
Ищите на стройках меня
Сегодня не личное главное А сводки рабочего дня
Заботится сердце сердце
волнуется
Почтовый пакуется груз
Мой адрес не дом и не улица
Мой адрес Советский Союз
Мой адрес не дом и не улица Мой адрес Советский Союз
Я там где ребята толковые
Я там где плакаты вперёд
Где песни рабочие новые
Страна трудовая поёт
Заботится сердце сердце
волнуется
Почтовый пакуется груз Мой адрес не дом и не улица
Мой адрес Советский Союз
Мой адрес не дом и не улица
Мой адрес Советский Союз
The railcar wheels dictate
Where we urgently meet
My telephone numbers
Are scattered throughout the cities
The heart cares, the heart worries The mail packs the cargo
My address is not a house or street
My address is the Soviet Union
My address is not a house or street
My address is the Soviet Union
Telegraphic dots and dashes
You search for me at the
construction sites
Today personal matters aren’t important
Just the work-day reports
The heart cares, the heart worries
The mail packs the cargo
My address is not a house or street
My address is the Soviet Union
My address is not a house or street
My address is the Soviet Union
I am where the guys are sensible
I am where posters proclaim
‘forward’
Where a laboring nation sings
The new workers’ songs
The heart cares, the heart worries
The mail packs the cargo
My address is not a house or street
My address is the Soviet Union
My address is not a house or street My address is the Soviet Union
As rodas do vagão ditam
Onde nos encontramos com urgência
Meus números de telefone
Estão espalhadas pelas cidades
O coração se importa, o coração se preocupa
O correio embala a carga
Meu endereço não é uma casa ou
rua
Meu endereço é a União Soviética
Meu endereço não é uma casa ou
rua
Meu endereço é a União Soviética
Pontos e traços telegráficos
Você procura por mim nos canteiros de obras
Hoje, assuntos pessoais não são
importantes
Apenas os relatórios do dia de
trabalho
O coração se importa, o coração se
preocupa
O correio embala a carga
Meu endereço não é uma casa ou
rua Meu endereço é a União Soviética
Meu endereço não é uma casa ou
rua
Meu endereço é a União Soviética
Eu estou onde os caras são sensatos
Eu estou onde os cartazes
proclamam "para frente"
Onde uma nação trabalhadora canta
As novas canções dos trabalhadores
O coração se importa, o coração se preocupa
O correio embala a carga
Meu endereço não é uma casa ou
rua
Meu endereço é a União Soviética
Meu endereço não é uma casa ou
rua
Meu endereço é a União Soviética
290
Anexo 3 - Letra da canção Наш Дом (Nossa Casa)
(Grupo Machina Wremenyi, 1973)
[Autor: Makarewich, Andrei]
Годы летят стрелою,
Скоро и мы с тобою]
Разом из города уйдем.
Где-то в лесу дремучем
Или на горной круче,
Сами себе построим дом.
Пр: Там вокруг такая тишина,
Что вовек не снилась нам,
И за этой тишиной, как за стеной,
Хватит места нам с тобой.
Двери покркпче справим,
Рядом на цепь посадим
Восемь больших голодных псов.
Чтобы они не спали,
К дому не подпускали
Горе, врагов и дураков.
Рядом с порадной дверью
Надо вкопать скамейку,
А перед ней тенистый пруд.
Чтобы присев однажды
Мог бы подумать каждый,
Нужен ли он кому-то тут ?
Anos voam como uma flecha
Em breve estaremos com você
Vamos sair da cidade imediatamente.
Em algum lugar na floresta densa
Ou em uma montanha mais íngreme,
Vamos construir uma casa para nós.
Refrão: Existe tanto silêncio ao redor,
Que nunca sonhamos
E por trás desse silêncio, como atrás de uma parede,
Espaço suficiente para você e eu.
Vamos consertar as portas do rancho,
Vamos colocar uma corrente ao lado de
Oito cães grandes e famintos.
Para que fiquem acordados
Eles não tinham permissão para entrar em casa
Pesar, inimigos e tolos.
Ao lado da porta gratificante
Precisamos cavar no banco
E na frente dela está um lago sombreado.
Sentar um dia
Todo mundo pode pensar
Alguém precisa dele aqui?
291
Anexo 4 - Letra da canção Ты Или Я (Você Ou eu)
(Grupo Machina Wremenyi, 1973)
[Autor: Makarewich, Andrei]
Ты Или Я
Все очень просто - в сказке обман.
Солнечный остров скрылся в туман.
Замков воздушных не носит Земля.
Кто-то ошибся - ты, или я
Все очень просто - нет гор золотых. Падают звезды в руки других.
Нет райской птицы среди воронья.
Кто-то ошибся - ты, или я
Лишь только весною тают снега.
И даже у моря есть берега.
Всех нас согреет вера одна.
Кто-то успеет - ты, или я ?
Все очень просто - в сказке обман.
Солнечный остров скрылся в туман. Всех нас согреет вера одна.
Кто-то успеет - ты, или я?
Você Ou Eu?
Tudo é muito simples - há engano em um conto de
fadas.
A ilha ensolarada desapareceu na névoa. A Terra não carrega castelos no ar.
Alguém estava errado - você ou eu
É muito simples - não existem montanhas de ouro.
As estrelas caem nas mãos de outros.
Não há ave do paraíso entre os corvos.
Alguém estava errado - você ou eu
Somente na primavera a neve derrete.
E até o mar tem margens.
Uma fé vai aquecer a todos nós. Alguém terá tempo - você ou eu?
Tudo é muito simples - há engano em um conto de
fadas.
A ilha ensolarada desapareceu na névoa.
Uma fé vai aquecer a todos nós.
Alguém terá tempo - você ou eu?
292
Anexo 5 - Letra da canção Рок-н-Ролл Герой (Herói do Rock n’ Roll) (Grupo Akvarium, 1981) [Autor: Grebenschchikov, Boris]
Мне пора на покой - Я устал быть послом рок-н-ролла
В неритмичной стране.
Я уже не боюсь тех, кто уверен во мне.
Мы танцуем на столах в субботнюю ночь,
Мы старики, и мы не можем помочь,
Но мы никому не хотим мешать,
Дайте счет в сберкассе - мы умчимся прочь;
Если бы вы знали, как мне надоел скандал;
Я готов уйти; эй, кто здесь Претендует на мой пьедестал?
Где та молодая шпана,
Что сотрет нас с лица земли?
Ее нет, нет, нет...
нет, нет, нет...
нет, нет, нет…
É hora de eu descansar - Estou cansado de ser um embaixador do rock and
roll
Em um país irregular.
Não tenho mais medo daqueles que confiam em
mim.
Dançamos nas mesas no sábado à noite Somos velhos e não podemos ajudar Mas não queremos incomodar ninguém, Dê uma conta de poupança em um banco - vamos
sair correndo; Se você soubesse como estou cansado do escândalo; Estou pronto para sair; ei quem está aqui Reivindica meu pedestal? Onde está aquele jovem punk O que nos apagará da face da terra? Ela se foi, não, não ... não não não... não não não...
293
Figura 6.
Grupo Sokol (Falcão/Falcon) [Década de 1960]
Descrição: À Esquerda, na parte frontal da imagem: Yuri Ermakov, vocalista e guitarrista; À direita ao
fundo, Igor Goncharuk, vocal de apoio e baixista; Compositores da primeira canção do rock soviético
em idioma local (Gdye Tot Kray, de 1965; composta em russo).
Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A
Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-
russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.
294
Figura 7.
Grupo Sokol (Falcão/ Falcon) [Década de 1960]
Descrição: À esquerda, Yuri Ermakov (vocal e guitarra elétrica principal) e demais integrantes
(possivelmente, uma formação de apoio, não sendo possível reconhecer os integrantes originais). As
vestes denotam ainda um rock soviético em postura ‘comportada’, evidenciado pela presença de roupas de corte social (ternos) e cabelos curtos [seguindo a postura condizente com a linha soviética de
adequação da época].
Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A
Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um
Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.
295
Figura 8.
Yuri Aizenshpis [Gerente do Grupo Sokol] [Década de 1960]
Fonte: SPIRIDONOV, Sergey; СОКОЛ – Перваия Ласкочка Русскога Рока [Trad. Livre: Sokol – A Primeira Dose de Rock Russo]. In: Рок В Кадре И Не Только (2021) [Trad. Livre: Rock Em Um
Quadro e Não Apenas]; Disponível (em russo) em: http://rockvkadre.ru/sokol-pervaya-lastochka-
russkogo-roka/; Acesso em: 20/04/2021.
296
Figura 9.
Grupo Tsvety [VIA] (Flores/Flowers) [Foto de 1972, utilizada como capa do álbum de lançamento;
Tsvety I, de 1973]
Descrição: À frente, no centro da imagem, o músico Stas Namin (frontman do grupo).
Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA <<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor
Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-
meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021
297
Figura 10.
Grupo Tsvety (Flores/ Flowers) [Capa do álbum Tsvety I; URSS, 1973]
Descrição: Evidências estéticas do movimento hippie, importante influência rastreável na trajetória do
grupo, encontram-se presentes na imagem. Observáveis a partir de elementos como as roupas (calças boca-de-sino, cabelos compridos), as letras do nome do grupo em linhas gráficas tortuosas (fonte
psicodélica) e uma tomada com pose despojada em meio natural.
Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA
<<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor
Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021
298
Figura 11.
‘Hippies Soviéticos’ [Década de 1970]
Descrição: Jovens identificados com características atribuíveis ao movimento hippie na URSS,
detectáveis através de elementos como: vestes despojadas, evidências de deslocamento a pé, (como
mochilas e apetrechos), barbas e cabelos compridos e a parada/pose irreverente junto a uma placa indicando diferentes direções a seguir). Quanto à proveniência, sua afirmação obtém-se a partir das
inscrições legíveis na placa, as quais indicam a direção das seguintes cidades (russo) soviéticas:
Moscou (à esquerda superior); Rostov (à direita superior); Dyergachi (esquerda ao meio); Kharkov (direita inferior); as demais encontram-se parcialmente encobertas.
Fonte: Земляничные Поляны, Группа Мифы [Clipe da canção Zemlyanchnyie Polyani
(‘Florestas de Morango’)376, Grupo Myths]; In: Canal Elena Fedorova; Disponível (em
russo) em:
https://www.youtube.com/watch?v=MiHfSXaRE5A&ab_channel=%D0%95%D0%BB%D0
%B5%D0%BD%D0%B0%D0%A4%D0%B5%D0%B4%D0%BE%D1%80%D0%BE%D0%
B2%D0%B0; Acesso em: 01/05/2021
376Por coincidência ou intenção, o nome da canção evoca, embora a melodia não guarde parentesco, a ideia do
título da famosa canção dos Beatles, Strawberry Fields Forever, do álbum Magical Mistery Tour, de 1967 –
atribuidamente, um dos importantes marcos do fab four na transição experimental em vertentes estético-sonoras
como a psicodelia.
299
Figura 12.
Descrição: ‘Luminares do Rock Russo’ – À direita, Stas Namin (Grupo Tsvety)377; À esquerda, Andrei
Makarewicz (Grupo Machina Wremenyi); Ao centro, Boris Grebenschshikov (Grupo Akvarium)378
Fonte: SHAMARIN, Igor; ВИА <<ЦТВЕТЫ>> - <<Цветы>> (1972-1976) [Trad. Livre: VIA <<TSVETY>> - <<Tsvety>> (1972-1976); In: Игорь Шамарин От ‘А’ да ‘Я’ [Trad. Livre: Igor
Shamarin De ‘A’ a ‘Z’]; Disponível (em russo) em: https://igor-shamarin.ru/my-articles/rock-
meloman/rodnoe/1970-e/via-tsvety-tsvety-1972-1976/; Acesso em: 28/06/2021
377Se observar-se o registro como um que condizente ao princípio da década de 80 (pelas evidências colocadas
infra), deve-se considerar que naquele momento, devido às questões complicadas com a administração central, o
grupo Tsvety se encontraria reconfigurado como Stasa Namina Gruppa, ou Grupo de Stas Namin; 378A década da fotografia é incerta, pois, embora o ficheiro se reporte à dados do grupo entre 1972 e 1976, sua
descrição avança ao longo do artigo para um período posterior. Outra evidência que corrobora a possibilidade de
a foto pertencer à década seguinte (1980), é a que corresponde às suas características, naquilo que concerne à
qualidade do filme e o fato de ser colorido, a apontar uma posterioridade em relação aos demais registros de
imagens, aqui mostrados, sobre a banda.
300
Figura 13.
Baixo Tonika Rostov (Década de 1970)
Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:
http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021
301
Figura 14.
Guitarras Elétricas Tonika Lunacharsky (Modelos 1970-72)
Descrição: Há similaridade estrutural entre os modelos da linha Tonika (Lunacharsky, Ordinokhdzhe e
Ural 650-E)
Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:
http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021
302
Figura 15.
Guitarra Elétrica Lvov Ritm (Guitarra Elétrica Rítmica) [Década de 1970]
Fonte: CHIVERS, J.; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:
http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021
303
Figura 16.
Guitarra Elétrica Orfeus ‘Telecaster’ [Década de 1970]
Fonte: CHIVERS, J; Cheesy Guitars (2001-2003); Design: Meatex-X. Disponível em:
http://cheesyguitars.com/; Acesso em: 28/06/2021