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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CAMPUS FLORIANÓPOLIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
CAROLINA VELOSO COSTA
“Conheço histórias mil que a História esconde”
UMA LEITURA DE BOLERO, DE VICTOR GIUDICE
Florianópolis
2021
Carolina Veloso Costa
“Conheço histórias mil que a História esconde”
UMA LEITURA DE BOLERO, DE VICTOR GIUDICE
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Lite-
ratura da Universidade Federal de Santa Catarina para a
obtenção do título de doutora em Literatura.
Orientador: Profa. Tereza Virginia de Almeida, Dra.
Florianópolis
2021
Carolina Veloso Costa
“Conheço histórias mil que a História esconde”
Uma leitura de Bolero, de Victor Giudice
O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
Prof.(a) Maria Teresa Santos Cunha, Dr.(a)
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Prof. Jair Tadeu da Fonseca, Dr.
Universidade Federal de Santa Catarina UFSC
Prof.(a) Tiago Hermano Breunig, Dr.
Universidade Federal do Pernambuco UFPE
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção do título de doutor em literatura.
____________________________
Coordenação do Programa de Pós-Graduação
____________________________
Prof.(a) Tereza Virginia de Almeida, Dr.(a)
Orientador(a)
Florianópolis, 2021.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, por conceder a bolsa GD durante o período integral de pesquisa e redação deste
trabalho.
À professora Tereza Virginia de Almeida, por acreditar e orientar a execução deste trabalho.
Palavras não são suficientes para descrever a importância que tiveste em minha trajetória para
além da Universidade. Em poucas palavras, muito obrigada por todo ensinamento acadêmico e
de vida.
Aos meus eternos orientadores, Artur Vaz, Joselma Noal, Andrea Ciacchi e Sylvie Dion, por
partilharem e me ensinarem tanto.
À professora Maria Teresa e ao professor Jair Tadeu, pela leitura atenta e pelos comentários de
incentivo desde a qualificação até o processo final do doutoramento. Agradeço também ao pro-
fessor Tiago Hermano, por aceitar fazer parte da banca de defesa e dividir a sua leitura conosco.
À família de Victor Giudice, principalmente a sua esposa Eneida e sua filha Renata, pela aten-
ção e disponibilidade durante os anos dedicados ao estudo da obra do escritor.
À minha família, pelo apoio em todos os momentos que precisei. Sobretudo, à Monica Veloso,
por ser a minha pessoa e me dar forças quando eu já não tinha mais.
Aos companheiros Labfloridos, pelas trocas, quase que diárias, ao longo desses anos. Em espe-
cial, ao Elton Rodrigues pelo incentivo, pelas risadas e leituras compartilhadas, principalmente,
pela companhia em tantos momentos na Universidade e fora dela.
À Denise Machado, Anna Viana e Carla Mello, pela leitura atenta de muitas fases desta tese.
Ao Rafael Sens, por fazer uma bela releitura da arte de Bolero que ilustra a capa deste trabalho.
Aos amigos de longa data, Wellington Machado, Yéssica Lopes, Ana Alves, Yanna Karlla e
Lucas Gasparotto, pela parceria, pelas mensagens certeiras, pelas visitas e por cada partilha. E
a todos meus amigos, por compreenderem meus sumiços, minhas crises e, principalmente, por
se fazerem presente sempre que precisei.
RESUMO
Esta tese propõe-se a estudar o romance Bolero (1985), de Victor Giudice, como uma obra de
subversão aos romances de fundação nacional. Neste trabalho, buscou-se compreender o papel
da narrativa giudiciana nos contextos político e literário brasileiro do final do século XX, de-
senvolvendo a noção de desfundação como princípio norteador. Inserida em uma conjuntura
autoritária, a literatura dos anos de 1960 a 1980 rompe com a estrutura da narrativa tradicional
ao apresentar características avessas aos padrões da literatura nacional e com fortes marcas de
experimentalismo na estrutura e no conteúdo. Encontra-se essa lógica em outras duas obras de
Victor Giudice publicadas nesse período, Necrológio (1972) e Os banheiros (1979), as quais
estabelecem relações diretas com o romance em questão. Com efeito, para compreender Bolero
como um romance subversivo, faz-se importante trazer leituras de autores anteriores e contem-
porâneos a Victor Giudice, contextualizando-as historicamente com os momentos de crise e
transição política nacional. Nesses termos, a hipótese de ler Bolero como um romance de des-
fundação também pode vir a contribuir para uma leitura do processo de redemocratização bra-
sileiro e do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Palavras-chave: Victor Giudice. Romance de fundação. Autoritarismo. Democracia. Romance
de desfundação.
ABSTRACT
This thesis proposes to study the novel Bolero (1985), by Victor Giudice, as a work of subver-
sion to foundational romances. This work seeks to understand the role of Giudice’s narrative in
the Brazilian political and literary contexts of the late twentieth century, developing the notion
of defoundation as its guiding principle. Inserted in an authoritarian conjuncture, the literature
from the 1960s to the 1980s breaks with the structure of traditional narrative by presenting
characteristics that are contrary to the standards of national literature and with strong traits of
experimentalism in its structure and content. This logic can be found in two other works by
Victor Giudice published in that period, Necrológio (1972) and Os banheiros (1979), which
establish direct relations with the novel in question. Therefore, in order to understand Bolero as
a subversive novel, it is important to bring out readings from previous and contemporary au-
thors to Victor Giudice, contextualizing them historically with the moments of crisis and na-
tional political transition. Thus, the hypothesis of reading Bolero as a defoundational romance
can also contribute to an interpretation of the process of Brazilian redemocratization and of the
impeachment of President Dilma Rousseff.
Keywords: Victor Giudice. Foundational romance. Authoritarianism. Democracy. Defounda-
tional romance.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Ilustração de capa do livro Necrológio ........................................................................... 36
Figura 2 O jovem Victor Giudice ............................................................................................... 203
Figura 3 Victor Giudice no restaurante Café Lamas/Rio de Janeiro .......................................... 204
Figura 4 Victor Giudice com adorno de carnaval durante expediente no Banco do Brasil ........ 205
Figura 5 Victor Giudice trabalhando em sua casa/Rio de Janeiro .............................................. 206
Figura 6 Ilustração para capa de Bolero ..................................................................................... 207
Figura 7 Ilustração do personagem Ladislau .............................................................................. 208
Figura 8 Ilustração sem título ..................................................................................................... 209
Figura 9 Partitura da canção Caixinha de música, composição de Victor Giudice .................... 210
SUMÁRIO
Apresentação ..................................................................................................................................... 11
1. O DESAFIO DE LER VICTOR GIUDICE ................................................................... 12
2 O CIRCO ESTÁ ARMADO: O UNIVERSO LITERÁRIO DE VICTOR GIUDICE26
2.1 EXPERIMENTALISMO COMO RESPOSTA AO AUTORITARISMO ............................... 26
2.2 A NOVA PROPOSTA DE NECROLÓGIO ......................................................................... 34
2.3 A INTRATEXTUALIDADE EM NECROLÓGIO, OS BANHEIROS E BOLERO ............... 41
2.4 O MOVIMENTO TRANSGRESSOR DE BOLERO ............................................................. 52
3 REGULAMENTO E REI: O PROCESSO DE DESFUNDAÇÃO NACIONAL ........ 64
3.1 UMA HISTÓRIA DAS FICÇÕES DE (DES)FUNDAÇÃO NO BRASIL ............................. 66
3.2 A SUBVERSÃO DE VICTOR GIUDICE ............................................................................ 90
4 PICADEIRO, PLATEIA E PENSAMENTO: A ESCRITA DO LUTO .................... 112
4.1 DE ALIENADO A ÚNICO REPUBLICANO NA ATIVA .................................................. 119
4.2 O PENSAMENTO COMO ESTOPIM PARA A REVOLUÇÃO ........................................ 136
5 A CONTEMPORANEIDADE DE BOLERO E O GOLPE DE 2016: A TRAGICOMÉDIA
BRASILEIRA.................................................................................................................................. 154
5.1 O ESPETÁCULO SATÍRICO DE BOLERO ..................................................................... 160
5.1.1 A transição ....................................................................................................................... 166
5.2 COMO VIEMOS PARAR AQUI? ..................................................................................... 174
6 DESCONHEÇO HISTÓRIAS MIL .............................................................................. 188
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 195
ANEXO: Sobre Victor Giudice ...................................................................................................... 203
11
Apresentação
Inverno de 2016. Em uma bela manhã ensolarada, levantei e decidi que iria à praia.
Mas não somente para pegar sol ou arriscar um banho de mar gelado, eu decidi ir à praia acom-
panhada de Bolero. Comecei a leitura pontualmente às sete horas, “Meu casamento com
Cynthia durou onze meses de profana convivência mais os sete anos que passei sentado no
corredor da maternidade ...”. Quando me dei por conta, o sol estava se pondo e eu estava lendo
a última frase do romance: “A esquerda que espere”.
Ao terminar, eu tinha muitas perguntas e poucas respostas. Ansiosa por partilhar a
leitura, lembrei que em poucos dias teríamos uma aula inteira sobre Bolero e, então, eu poderia
dividir com minha orientadora e os estudantes todo esse turbilhão de pensamentos. No entanto,
isso não foi o suficiente. Quanto mais debatíamos sobre o romance, mais questões surgiam. E,
agora, cá estou, quatro anos depois, apresentando uma tese sobre Bolero.
Durante o processo de escrita, preocupei-me em considerar quem serão os meus leito-
res e quais as suas perspectivas e expectativas com esta leitura de Bolero. Os primeiros a lerem
este trabalho, provavelmente, serão meus mestres e colegas acadêmicos, mas creio que o prin-
cipal público deva ser os leitores de Victor Giudice e os estudantes de graduação em Letras.
Por isso, procurei considerar, da maneira mais didática possível, a organização dos primeiros
raciocínios e a escolha dos caminhos que me levaram à hipótese de ler o romance primogênito
de Victor Giudice como uma obra subversiva.
Ao final dessa leitura, você poderá perceber que não respondi a todas as perguntas
suscitadas pela obra. Pelo contrário, Bolero é inesgotável. Giudice não poupou esforços para
nos surpreender. Por isso, espero que o romance também tenha surpreendido vocês e que meu
olhar possa ajudá-los a responder algumas questões e levantar tantas outras.
Desejo-lhes uma boa leitura,
Carolina Veloso
Florianópolis, dezembro de 2020.
12
1. O DESAFIO DE LER VICTOR GIUDICE
O ato da leitura transforma uma pessoa. Já nos primeiros momentos da vida, observa-
mos os gestos, as expressões faciais, o timbre da voz, o ritmo dos sons, até que então, somos
maravilhados com a constituição de uma frase, um parágrafo, um conto, um verso, um poema,
um romance e todas as demais possibilidades que a língua nos proporciona. Todas essas peque-
nas e, por vezes, despercebidas situações compõem o ato da leitura; por isso, acredito que esse
ato se constitua como um dos principais elementos necessários para conhecer o mundo, as pes-
soas e a nós mesmos.
A mágica da literatura está na sua relação conosco, os leitores. Somos nós que iremos
fazê-la transcender o papel, a voz, o corpo, seja qual for o meio de difusão utilizado pelo escri-
tor. Enquanto leitora, posso afirmar que a obra do escritor carioca Victor Giudice (1934 – 1997)
tem um caráter instigante, no qual os detalhes constroem um universo único e ao mesmo tempo
múltiplo; seus personagens conectam-se, encontram-se e reencontram-se para contar ou se dei-
xarem ser contados; já os narradores, por vezes podem ser cínicos, alienados ou somente bons
observadores.
Segundo Nelly Novaes Coelho1, Giudice usa e abusa da estilística literária através de
uma escrita diferenciada. Os recursos visuais e linguísticos exploram elementos sonoros e fo-
néticos, primordiais para o contexto da narrativa, fazendo com que o leitor necessite utilizar de
todo seu conhecimento extraliterário para compreender a proposta. É o que ocorre, por exem-
plo, em Necrológio e Bolero.
Tão logo tive contato com a sua obra, soube que nosso encontro não seria por acaso.
Motivada pela minha orientadora, Profa Tereza Virginia, realizei no ano de 2016 o estágio do-
cência na disciplina Estudos Literários II – Literatura, política e ideologia que, por sua vez, teve
como base a obra de Victor Giudice publicada durante o Regime Militar (1964 – 1985). O plano
de ensino incluía as três primeiras obras do escritor, Necrológio, Os banheiros e Bolero – duas
coletâneas de contos e um romance, respectivamente. O fato de nessas obras predominarem o
teor crítico social e político foi um fator importante para escolher Victor Giudice como base
para o projeto de tese.
1 Nelly Novaes COELHO, 2013
13
Sempre demonstrei muito interesse pela sociedade brasileira, sua formação e consti-
tuição, e acredito que ao considerarmos a literatura uma reelaboração imaginada da sociedade2,
a obra literária torna-se um campo potencial de múltiplas leituras e sentidos, a depender do
leitor. É isso que a leitura da obra de Giudice provoca desde a primeira frase, o primeiro pará-
grafo, a primeira página, como será possível observar no romance Bolero, obra que guiará os
pensamentos e diálogos expostos neste trabalho. Porém, antes de adentrar na hipótese, nos pres-
supostos e na análise, faz-se necessário compreender os caminhos literários que motivaram a
escrever sobre essa obra tão peculiar.
Giudice e eu nos conhecemos em 2015, através de uma crítica que o indicava como
um dos principais escritores brasileiros do século XX. Por não o conhecer, fiz uma breve pes-
quisa online sobre sua vida e obra. Instantaneamente, como resultado da pesquisa, surgiram o
miniconto “O arquivo” e uma informação muito interessante: publicado em jornais no ano de
1969, essa narrativa está entre os contos brasileiros de maior alcance internacional devido a sua
tradução e publicação em oito países. Li esse e mais alguns contos avulsos que estavam dispo-
níveis no site dedicado ao autor. Pareceu-me que nada superou a astúcia com que Giudice de-
senvolveu “O arquivo”: o texto é de uma impressionante técnica literária e linguística, sobre-
tudo pela maneira com que o autor aborda a problemática da desvalorização da classe trabalha-
dora brasileira.
Depois desse primeiro contato, só fui retomar a leitura e conhecer realmente a obra de
Giudice em 2016, conforme já mencionei. Seu primeiro livro, Necrológio, publicado em 1972,
foi também minha primeira leitura. A capa, desenhada pelo próprio escritor3, possibilita ao lei-
tor notar desde o primeiro contato, que não se trata de um livro qualquer. O conto de abertura
do livro é o já mencionado “O arquivo”, e se inicia exatamente nesse paratexto (isto é, a capa
apresenta o início do conto). De pronto, já nos é demonstrado o teor experimental e transgressor
que o autor propõe na obra. No decorrer dos treze contos, Victor Giudice joga com a imaginação
do leitor, utilizando imagens, aliterações, aglutinações, onomatopeias, símbolos, parênteses e
espaços para construir sentidos frente ao enredo proposto nas narrativas, que, por sua vez, car-
regam um registro semântico intenso.
Tal como anuncia o título, Necrológio apresenta a morte como elemento principal de
suas histórias, as quais denunciam a desigualdade social, a desvalorização do trabalhador, a
2 Wolfgang ISER, 2013. 3 Além de Necrológio, Victor Giudice também desenhou uma capa para Bolero, no entanto, o livro foi publicado
com uma arte desenhada por Aloísio Neves (Ver Anexo Figura 06).
14
extravagância da burguesia e a arrogância dos intelectuais. Ainda que nas entrelinhas dos contos
o autor desenhe o retrato da sociedade brasileira nos últimos anos da década de 1960 e início
de 70, os textos contêm uma carga de atualidade que os torna contemporâneos, já que nos con-
frontamos ainda hoje com os mesmos problemas sociais daqueles anos narrados.
É importante destacar o fato de Giudice ter trabalhado vinte anos como funcionário do
Banco do Brasil4, algo que pode ser considerado um motivador para que suas narrativas tragam
muito dos problemas enfrentados pela classe trabalhadora. É possível observar exemplos dessa
abordagem em diversos contos de Necrológio, como os que apresentarei a seguir:
“O arquivo” narra a jornada de um jovem trabalhador desde seu primeiro e único em-
prego até sua aposentadoria. Em quarenta anos de contribuição, joão (note-se aqui a ausência
da letra maiúscula inicial5) progrediu gradativamente até ascender ao cargo máximo da em-
presa. Porém, ao contrário do que se almeja de uma carreira, o personagem regride profissional,
psicológica e fisicamente a cada promoção. Seguindo essa mesma ideia, no conto “In Perpe-
tuum”, a personagem principal, Debi Mediocriz, é uma funcionária de banco que passa trinta
anos procurando uma diferença de dez centavos. Mediocriz possui uma vida medíocre, mora
em uma pensão e, diariamente, de forma mecânica e automática, acorda antes de tocar o des-
pertador e desloca-se de condução para seu local de trabalho, “um prédio cinzento com portas
de ouro”6. Por fim, Victor Giudice denuncia no conto “Grão Medalha” a relação de poder abu-
siva no ambiente de trabalho das Indústrias S.A7, administrada pelo “ex-agiota” e empresário
de nome homônimo ao título do conto. A narrativa inicia com o funeral de Grão Medalha, em
que os funcionários comemoram a morte do patrão e os abutres rondam o seu corpo putrefato.
Conforme o regulamento das Indústrias, os funcionários eram obrigados a trabalhar de joelhos
e sem equipamentos de trabalho especializado.
4 Victor Giudice foi considerado durante seus 64 anos como uma pessoa múltipla. Ainda que a burocracia o tenha
acompanhado por mais de vinte anos, as artes sempre estiveram muito presente em sua vida. Desde cedo floresceu
em si o gosto pela música, pelo teatro, pelo cinema, pela filosofia e, em especial, pelas letras, dedicando-se para-
lelamente ao trabalho burocrata no banco e à paixão pelas artes. Entre os anos de 1950 e 60, frequentou os cursos
de Estatística e Direito, e em 1975 concluiu o curso de Letras, mas somente depois de aposentar-se, em 1986,
retomou a carreira de professor de teoria e criação literária, interrompida na década anterior. (Fonte: http://victor-
giudice.com/). 5 A grafia do nome joão proporciona diferentes reflexões sobre o conto. Uma delas está no fato de Giudice ter
grafado a nome em letra minúscula, levando-nos a lê-la como uma palavra genérica. Ou seja, joão pode ser qual-
quer trabalhador brasileiro, inclusive, por esse nome ser um dos mais comuns no território nacional. 6 Victor GIUDICE, 1972, p. 94. 7 A dinâmica de trabalho das Indústrias S.A é retomada no romance Bolero, sendo possível, a partir de um samba
enredo composto pelos funcionários, compreender a relação abusiva entre patrão e funcionários.
15
O mesmo tom observei na segunda coletânea de contos Os banheiros, publicada em
1979. Dessa vez, Victor Giudice aposta em uma estrutura tradicional nas narrativas, através de
uma escrita clara e enxuta que busca falar da hipocrisia e indiferença dessa mesma sociedade,
com destaque à observação da classe média e da violência de gênero. No conto “Eles”, um dos
principais da obra, o autor traz um exemplo clássico da dupla exploração, de classes e racial.
Um típico casal de classe média alta que, provavelmente, vive alheio aos problemas socioeco-
nômicos que o rodeiam se vê obrigado a dar suprimentos de necessidade básica a “seres” no-
meados no conto apenas por “eles”, os quais são descritos como uma massa disforme e escura
sem identificação. Ao final, o personagem-narrador não suporta o fato de seu dinheiro ser des-
tinado à necessidade dos outros, em vez de aplicado em suas futilidades; o que seria algo cabí-
vel, visto que o orçamento familiar não sofreria qualquer tipo de desfalque.
O segundo conto, “Lei do silêncio”, também presente no livro Os banheiros, apresenta
mais uma vez a desigualdade econômica e o modo como a lei privilegia determinados grupos
sociais – em especial, os homens. A narrativa conta o momento em que um homem comete
feminicídio ao matar sua esposa devido a uma discussão sobre a quantidade de açúcar no chá.
Além disso, há a cumplicidade do assassino com o policial, que compreende a situação e pro-
põe-se a buscar o corpo no outro dia, desde que se respeite a “lei do silêncio” depois das vinte
e duas horas.
O autor capta a atenção do leitor pelo conteúdo de seus contos e pela forma como
escreve. É perceptível que cada pontuação, cada palavra, cada repetição ou a falta desses ele-
mentos foram meticulosamente pensados pelo autor. Dono de uma técnica de escrita singular,
Giudice destaca-se entre os jovens leitores. Além disso, durante a leitura desses contos, os alu-
nos da disciplina de Estudos Literários na qual estagiei demonstraram grande interesse pelas
obras: da mesma forma, eu também me senti instigada a ler e conhecer cada vez mais para
poder, junto a eles, tornar-me o “leitor atento” que Nelly Novaes Coelho diz ser indispensável
para compreender a obra giudiciana8.
As leituras foram realizadas na ordem cronológica de publicação: primeiro Necroló-
gio, na sequência, Os banheiros, e, por último, o romance Bolero. A proposta de estudar as duas
coletâneas por completo (e não contos isolados) foi importante para desenvolver no leitor uma
competência de leitura que os contos e o romance exigem, principalmente Bolero. Sua estrutura
fragmentária e polifônica, bem como a mescla de gêneros e a relação intratextual com os outros
8 COELHO, 2013.
16
dois livros requerem do leitor uma leitura atenta e dinâmica, necessitando por vezes buscar
referências literárias e históricas. Aliás, essas características são as responsáveis pela constru-
ção da hipótese e da noção de desfundação. Nesse caso, proponho que esse romance pode ser
lido como subversão aos romances considerados pela historiografia como de fundação nacional
e como consequência do sentimento de luto causado pelas contrariedades do período pós-dita-
torial.
Bolero é uma narrativa construída durante a ditadura militar brasileira e concretizada
no período pós-ditatorial, com publicação em 1985, ano que marca o fim do regime militar e o
início do processo de redemocratização no Brasil. Narrado, principalmente, em primeira pessoa
por um protagonista anônimo, o romance relata a história de um homem que fica sete anos em
uma sala de maternidade à espera de sua esposa em trabalho de parto e, dessa forma, acaba não
percebendo o tempo passar e nem as mudanças que haviam ocorrido no país. O personagem
entra no hospital em uma república e sai em uma monarquia ditada pela opressão, hipocrisia,
alienação e absurdo caos: esse é o ponto que torna a obra fundamental como alegoria do estado
ditatorial.
A temática afim ao contexto sociopolítico brasileiro da década de 1980 coloca em
pauta a transição de um governo monárquico para um republicano, mimetiza o caos do sistema
político brasileiro e possibilita a leitura do romance como uma sátira aos romances de fundação
nacional. Segundo Antonio Candido9, o teor social vem como um norteador para esclarecer a
estrutura da obra e as ideias apresentadas, validando-as e determinando o efeito entre os leitores.
Para alcançar tal objetivo, a presente tese demanda algumas etapas que serão divididas em qua-
tro capítulos.
O primeiro capítulo, intitulado O circo está armado: o universo literário de Victor
Giudice, apresenta a relação entre as três primeiras obras do escritor. Essa leitura é importante
para que seja possível reconhecer Necrológio e Os banheiros como partes essenciais para en-
tender a proposta do autor no romance Bolero, bem como pensar nos três livros como obras
sincrônicas.
O efeito alienante em Bolero se concretiza na apresentação isolada dos números do
circo feita pelo palhaço Eusebius. Os espectadores não conseguem conceber a correlação entre
os números e, consequentemente, compreender o espetáculo circense como uma grande farsa
política. O mesmo acontece com a leitura isolada das três obras giudicianas: o autor não avisa
9 Antonio CANDIDO, 2014.
17
o leitor da necessidade de correlacioná-las. Cabe a este, portanto, ter perspicácia e atenção para
perceber os detalhes textuais e paratextuais que envolvem essas narrativas e que as fazem ser
verdadeiros manifestos em um universo que se cruza em diversos momentos. Creio que a pala-
vra “universo” seja a melhor para descrever essa grande teia de relações construída por Giudice.
Temáticas, personagens e fragmentos presentes em Necrológio e em Os banheiros são
reencontrados em Bolero, fazendo com que o romance seja uma construção que vai muito além
de um texto isolado. Seria possível ler o romance sem ter conhecimento das obras anteriores?
Sim, mas a leitura seria outra. As referências clareiam situações que, em uma leitura descom-
promissada não seriam de grande importância para os acontecimentos narrativos ou passariam
despercebidas pelos olhos do leitor.
Para tanto, faz-se necessária a (re)leitura e a análise das obras anteriores para conceber
o romance em sua completude, buscando nos contos, nos personagens e nos paratextos os pon-
tos em que há o (entre)cruzamento das obras, procurando compreender também de que modo
esse conjunto de fragmentos e referências converte-se em um novo gênero literário: o romance.
Nesse sentido, o capítulo propõe outros quatro subcapítulos para discutir essas relações: “Ex-
perimentalismo como resposta ao autoritarismo”; “A nova proposta de Necrológio”; “A intra-
textualidade em Necrológio, Os banheiros e Bolero”; e “O movimento transgressor de Bolero”.
A intratextualidade em Giudice apresenta-se da seguinte maneira: em Bolero, Victor
Giudice retoma personagens dos contos de Necrológio, de 1972, além do conto “Pôquer” que
deveria ser um fragmento do romance e foi publicado com alterações em seu conteúdo, con-
forme pesquisa no acervo do escritor na Fundação Casa de Rui Barbosa. Já em Os banheiros,
de 1979, é possível reconhecer citações e notas de rodapé com personagens que estarão presen-
tes em Bolero, além dos contos “Narrativa do Número Um” e “Miguel Covarrubra”10. O pri-
meiro aparece na íntegra como um dos capítulos da obra; já o segundo narra parte da história
da cidade onde o romance está ambientado. Constitui-se, portanto, um emaranhado de informa-
ções que só poderão ser compreendidas pelo leitor em 1985, com a publicação do romance.
Por fim, em Bolero, Victor Giudice retoma o experimentalismo proposto anterior-
mente em Necrológio, mas agora por outra perspectiva e outro gênero, ou melhor, outros gêne-
10 Há referências no conto “Os banheiros” que levam a crer que seu narrador seja o mesmo do conto “Miguel
Covarrubra”. Nas duas narrativas consta um narrador em primeira pessoa que menciona a construção de um ba-
nheiro extra em sua casa para o exilio de seu avô, o qual passara o resto dos dias enclausurado declamando trechos
de De rerum natura. (GIUDICE, 1979, p.13-16)
18
ros. Os capítulos são como fragmentos que poderiam facilmente ser lidos e publicados de ma-
neira independente. Além disso, o romance conta com a presença da polifonia e da mescla de
gêneros literários, o que contribui para que seja compreendido como subversivo à estrutura
tradicional do gênero, tendo em vista que desde o advento do romance moderno essas estruturas
foram abandonadas, sendo retomadas de tempos em tempos por escritores transgressores.
De acordo com Idelber Avelar11, os escritores, compositores e artistas contemporâneos
aos regimes autoritários utilizavam diversos meios para driblar a censura, enriquecendo a forma
e o conteúdo de suas obras através do experimentalismo. A maneira como Giudice estrutura seu
texto em sintonia com o enredo sociopolítico corrobora com a ideia de que o ativismo político
também pode ser feito através da arte. Entretanto, esse aspecto pode virar-se contra o autor,
que, de tanto experimentar e ousar na estrutura do texto, dificulta a leitura e a compreensão por
parte do leitor, restringindo sua obra a uma pequena parcela da sociedade.
No segundo capítulo, Regulamento e rei: o processo de desfundação nacional, e em
seus dois subcapítulos: “Uma breve história das ficções de (des)fundação no Brasil” e “A sub-
versão de Victor Giudice”, proponho-me a pensar algumas ideias que cercam as ficções de
fundação, tendo como base a proposta de Doris Sommer, na obra Ficções de fundação: os ro-
mances nacionais da América Latina (2004), em que romances latino-americanos são aborda-
dos como alegorias de suas nações, sua fundação e sua formação de identidade política.
Há um momento no Bolero em que o pierrô branco percebe que sua performance es-
tava sob controle do poder monárquico, ou seja, submissa ao que o próprio personagem chama
de dois erres: regulamento e rei. Em meio ao seu monólogo, o pierrô faz uma longa explanação
sobre o que é o regulamento, para o que serve, e como surgem as novas normas. Segundo o
palhaço triste, o processo de criação de regulamentos se dá no instante em que alguém descum-
pre a norma existente. Eis o desafio: difícil não é cumprir os regulamentos, difícil seria des-
cumpri-los12. Os dois erres são basicamente a censura e a repressão por parte do governo, uma
vez que, conforme as palavras do pierrô, “o rei é uma instituição antes de ser um rei, é um
objeto proibido de ser homem. Um rei é um ser proibido proibindo ser”13.
Essa relação dá base para ler Bolero enquanto subversivo aos romances de fundação.
O autor utiliza da alegoria do nacional e da busca por uma identidade para trazer uma nova
11 Idelber AVELAR, 2003. 12 GIUDICE, 1979, p. 109; 1985, p. 52. 13 GIUDICE, 1979, p. 115; 1986, p. 60.
19
ideia: a desconstrução de um modelo literário. Em outras palavras, ele utiliza o próprio regula-
mento para descumpri-lo e assim gerar um novo. E, conforme conclusão do pierrô branco, só é
possível se opor ao regulamento através do pensamento14.
A ideia de desfundação não pretende ser o contrário das ficções de fundação, mas sim
um contraponto e uma nova maneira de escrever sobre o nacional sem se ater à busca de uma
identidade ou atenuar os problemas nacionais. Através dessa nova abordagem da teoria, pode-
remos compreender o que de fato torna possível essa leitura de Bolero, bem como considerar
por que, talvez, ela também seria possível em outros romances brasileiros modernistas e con-
temporâneos, que por ora são considerados de fundação. Nesse sentido, será necessário revisitar
os romances brasileiros citados por Doris Sommer em sua obra e outros que também são con-
siderados de fundação pela crítica. A partir daí, cabe retornar aos conceitos de “literatura naci-
onal”15, os quais variam de acordo com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada
momento histórico.
Como exemplos de romances brasileiros pensados a partir do conceito de fundação, é
possível citar O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, durante o Romantismo;
Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, na primeira fase do Modernismo; Grande sertão:
veredas (1958), de Guimarães Rosa, concomitantemente ao chamado “boom latino-ameri-
cano”. Resumidamente, de diferentes formas, todos pretendiam construir uma identidade naci-
onal e registrar uma parte da história brasileira, e, portanto, são considerados pela crítica ro-
mances de fundação16.
De antemão, uma primeira leitura de Bolero permite reconhecer as referências satíri-
cas, paródicas e irônicas sobre literatura e a sociedade brasileira. As alegorias utilizadas pelo
autor se referem ao sistema político dos anos 1970 e 1980, o que facilmente nos faria ler a obra
como ficção de fundação. Entretanto, os elementos sociopolíticos brasileiros que compõem a
narrativa e a estética literária giudiciana, como o discurso de denúncia social, o experimenta-
lismo estrutural, os personagens e as relações intratextuais levam-nos à ideia de que a situação
sociopolítica brasileira durante o período de 1964 a 1985, bem como o sentimento ambíguo dos
artistas, críticos e teóricos sociais sobre a pós-ditadura e a redemocratização corroboram para
que Bolero seja um romance de desfundação.
14 GIUDICE, 1979, p. 115; 1985, p. 59. 15 Utilizo o termo “literatura nacional” para me referir à literatura com temáticas afins ao nacional e ao conceito
de nação, conforme propõe Eduardo F. Coutinho (2002). 16 Eduardo COUTINHO, 2002; SOMMER, 2004.
20
Esse clima de queda do regime ditatorial e início do processo de redemocratização do
sistema político brasileiro que dá base para a terceira parte do trabalho: Picadeiro, plateia e
pensamento: a escrita do luto. Retomo neste momento a tese proposta pelo pierrô branco, de
que só é possível combater os regulamentos por meio do pensamento, ou melhor, dos “três pês”:
picadeiro, plateia e pensamento. Com isso, quero dizer que, para propor uma nova abordagem
sobre as ficções de fundação, faz-se necessário considerar o contexto sociopolítico em que os
processos de escrita da obra e o de sua publicação estão inseridos. Principalmente, o momento
e as circunstâncias em que esse texto é concebido pelo leitor, de tal modo que o efeito da re-
cepção da obra é um dos fatores que define a concepção do romance a partir da ideia de funda-
ção ou de desfundação. Também proponho interpretar a tríplice dos três pês proposta pelo pierrô
da seguinte forma: o picadeiro seria o livro como matéria; a plateia, os leitores; o pensamento,
a ideia e, por conseguinte, o efeito da obra. É impossível trabalhar esses elementos de forma
independente.
Dividido em duas partes – “De alienado a único republicano na ativa” e “O pensamento
como estopim para a revolução” –, esse capítulo está diretamente relacionado ao progresso do
personagem-narrador. O leitor já sabe que o personagem-narrador inicia a narrativa como um
alienado que desconhece os acontecimentos políticos e sociais de seu próprio país. Entretanto,
por influências externas, ele se torna um militante político, também conhecido como “o único
republicano na ativa”. Essa transição ideológica do personagem culmina na morte do palhaço
Eusebius, que surge ao final como o verdadeiro rei, marcando a farsa da queda do regime mo-
nárquico e o início da república. Essa morte, por sua vez, não passou de um número do circo,
pois “os punhais do pensamento ferem ideias, mas não matam ninguém17”. A transição de poder
ocorre de forma pacífica, sem provocar qualquer abalo grave nas estruturas sociais e sem que a
população interfira no processo, conforme a tradição da Cidade, mais uma vez alheia às mu-
danças políticas.
A controvérsia do romance e o estopim desse capítulo estão nas últimas páginas, em
que nos é revelado que, após tornar-se o agente principal da transição de regime político, o
personagem-narrador se adapta ao sistema corrupto viciado, levando-nos à conclusão de que
tudo não passa de uma grande farsa política. Por fim, aquilo que deveria retomar a ordem surge
como um grande acordo nacional dentro do qual os valores éticos e morais permanecem os
mesmos, a sociedade continua alienada e a política é somente burocracia.
17 GIUDICE, 1985, p. 322.
21
Esse é o ponto que faz com que a obra possa ser lida como uma alegoria dos aconteci-
mentos do Brasil pós-64, ou seja, como fruto do período ditatorial. Portanto, as alegorias utili-
zadas pelo autor podem ser percebidas enquanto consequências do sentimento de fracasso na
transição do regime militar para uma democracia neoliberal. Victor Giudice apresenta um pa-
norama muito interessante sobre o período transitório no Brasil, que, ao invés de uma vitória
política (como muitos acreditaram ter sido), não passou de uma manobra e de um grande acordo
a partir do qual os militares deixam o governo. Há então eleições diretas, porém sob a perspec-
tiva de uma doutrina neoliberal, de modo que a grande mudança esperada (mais democracia e
menos desigualdade) não foi alcançada com êxito pelos militantes da esquerda.
É importante atentar para o teor pessimista da obra de Giudice em relação às transfor-
mações decorrentes da redemocratização brasileira de 1984. Para essa análise, serão fundamen-
tais dois processos críticos, que em realidade são inseparáveis: um que constrói a memória dos
acontecimentos do período ditatorial e outro que questiona o processo de transitologia (ditadura
– democracia). Esses são processos que deixam à mostra uma continuidade ocultada entre di-
tadura e pós-ditadura e, simultaneamente, dispõem-se a entender as novas circunstâncias.
Giudice apresenta, através da alegoria da monarquia-república, um ceticismo com re-
lação à transição ditadura-democracia. E é esse ceticismo giudiciano que provoca tanto o leitor
da época quanto o atual: é inevitável terminar a leitura de Bolero com a frase “A esquerda que
espere”18 sem se incomodar. Por vezes, a leitura da obra leva à crença enganosa de que toda
forma de governo seria uma falácia. Acredito que, na obra, a construção da Cidade com base
em vícios sociais é uma denuncia e uma possibilidade para que reais mudanças aconteçam.
Essas questões dão base para a construção do quarto e último capítulo desta tese: A contempo-
raneidade de Bolero e o golpe de 2016: o espetáculo tragicômico brasileiro.
Bolero não é uma sátira somente dos turvos anos de 1964 a 1984, mas também dos
anos em que me dediquei à escrita desta tese, período que vai de 2016 a 2020. Concordo com
Hegel ao afirmar que o pensamento percorre caminhos cíclicos19, consequentemente, a história
também deve movimentar-se ciclicamente. Contudo, ainda acredito na possibilidade da revolu-
ção de classe como realidade, através de um futuro menos desigual, de mais justiça, sem trau-
18 GIUDICE, 1985, p. 338. 19 Georg HEGEL, 1999.
22
mas e rupturas. Mas, até que isso seja concretizado, precisamos lidar com uma jovem democra-
cia ameaçada pelas forças do grande capital, das brechas constitucionais e dos discursos auto-
ritários que surgem como salvadores da nação20.
Com o capítulo dividido em dois momentos – “O espetáculo satírico de Bolero” e
“Como viemos parar aqui?” –, procurarei fazer uma linha do tempo desde o processo de tran-
sição até a atual conjuntura política nacional com base na farsa circense de Bolero. Para isso,
procurarei dar ênfase nas principais problemáticas do processo de consolidação democrática e
suas implicações no processo que culminou na destituição da presidenta Dilma Rousseff em
2016.
O romance opera com o sentimento de impotência e de derrota perante a política naci-
onal, levando-nos a conceber, na narrativa, uma consciência de que a mudança é necessária e
que em breve ocorrerá, ainda que talvez não conforme o esperado. As ações do personagem-
narrador conduzem o leitor, inicialmente, a acreditar na revolução e a se rebelar. Por outro lado,
a reviravolta final possibilita enxergar a ruína da revolução e a continuidade do ciclo vicioso
político. Não se trata de uma obra utópica: o leitor sabe desde o princípio que é remetido a outro
lugar narrativo, que, no entanto, lhe permite construir relações com o atual contexto político
brasileiro.
A farsa circense de Bolero remete-nos ao grande espetáculo do golpe21 de 2016,
quando o Brasil viu sua jovem democracia ruir aos aplausos de homens de terno e aos panelaços
de uma classe média de verde e amarelo. Entre patos, bonecos infláveis e coreografias, as ma-
nifestações a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff clamavam pelo fim da cor-
rupção e, algumas vezes, pela intervenção militar. Cenário muito semelhante constituiu-se na
eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2018. Observamos, incrédulos, cenas
e situações absurdas tornarem-se realidade, fazendo com que seja possível a relacionar às situ-
ações absurdas do texto giudiciano.
20 Para contribuir com a discussão sobre democracia utilizarei como base os trabalhos dos seguintes pesquisadores:
Luciana BALLESTRIN, 2017; Jacques RANCIÈRE, 2014; Steven LEVITSKY & Daniel ZIBLATT, 2018. 21 Conforme será desenvolvido mais adiante, há controvérsias sobre a legitimidade do processo que culminou no
impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Segundo especialistas, críticos e cientistas políticos, não houve crime
de responsabilidade e nenhum fundamento na lei que justificasse a continuidade do processo, por isso, termos
como soft coup, golpe de estado, golpe parlamentar são utilizados para nomear essa sequência de acontecimentos
na política brasileira. Para contribuir com essa discussão buscarei suporte em textos de Michael LÖWY, 2017;
Mauro LOPES, 2016; Francisco Lopes DIAS, 2016; Luis Felipe MIGUEL, 2016, entre outros.
23
O riso funciona, na narrativa de Giudice, como um gesto social proporcionado pelo
contexto de urgência crítica em que a sátira está inserida. Isto é, a desmistificação e a degrada-
ção de um sujeito que manifesta desvios de caráter aproximam a sátira de uma realidade me-
lhorada, seja ela sobre um passado nostálgico ou sobre um futuro utópico, em que o sujeito
seria o personagem-narrador. Dessa forma, o texto satírico leva o leitor, através da situação
narrada, a olhar sua história com outros olhos, menos inocentes, provocando nele também, con-
sequentemente, o riso22 – ainda que esse riso seja de nervoso.
A sutileza satírica de Giudice percorre todo o seu romance. Em Bolero, a apatia da
população da Cidade, satisfeita em ir ao circo e esperar pela multiplicação dos pães, somada a
uma dinâmica viciada de transitologias23 e à falta de mudanças reais, torna o cenário insusten-
tável para o desenvolvimento de uma política social eficaz. Sob o olhar do narrador-protago-
nista e das inúmeras vozes que compõem o texto, percebe-se como a sociedade da Cidade se
organiza, desde as relações privadas até as relações públicas, e o momento em que elas se en-
trecruzam. O funcionamento dessas relações desmascara essa sociedade de aparências repleta
de farsas, tal qual a do rei caricaturado em palhaço.
Teoricamente, Bolero pode ser lido como um romance fantástico, que beira o absurdo,
mas, conforme o próprio Victor Giudice afirma, “A ficção parece absurda porque é a realidade
despojada de todas as mentiras”. Eis a melhor explicação para a sátira apresentada pelo escritor
no romance; vale notar também, como ela aparenta ser tão contemporânea a nós. Somado ao
conto “Miguel Covarrubra”, de Os banheiros, conseguimos compreender a relação entre a so-
ciedade e a organização política da Cidade de Bolero, o processo de transição do regime dita-
torial para a democracia, e, até mesmo, o nosso próprio contexto político. O Golpe de 64 nos
parece similar ao golpe de 2016 por ambos serem, segundo Leonardo Boff, “golpes de classe,
dos donos do dinheiro e do poder: o primeiro usa os militares, o outro o parlamento. Os meios
são diferentes, mas o resultado é o mesmo: um golpe com a ruptura democrática e violação da
soberania popular”24. O golpe mascarado de impeachment, nas palavras de Mauro Iasi, “abre
22 Henri BERGSON, 1987. 23 Termo proposto por Dankwart Rustow (1970) para se referir aos estudos sobre as mudanças de regime, princi-
palmente ao que diz respeito aos processos de redemocratização. 24 Leonardo BOFF. Golpe de 1964 e golpe de 2016: a mesma natureza de classe. Disponível em: https://leonardo-
boff.wordpress.com/2016/09/05/golpe-de-1964-e-golpe-de-2016-a-mesma-natureza-de-classe/. Acesso em 4 de
fevereiro de 2019.
24
mais um capítulo nesta novela fundada numa trama de mal gosto e operada por atores meno-
res”25. A concretização desse ato contra a democracia culminou no reestabelecimento total do
poder às elites econômico-financeiras e à casta política conservadora, culminando em reformas
votadas em tempo recorde durante o governo ilegítimo26 de Michel Temer e na eleição do ex-
deputado Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018.
Não devemos encarar Bolero como um romance premonitório, ainda mais tendo em
vista que o estudo sociológico não justifica o fenômeno literário. No entanto, o romance cola-
bora com uma possível leitura que esclarece alguns aspectos de ambos os saberes, literatura e
sociologia27. É necessário entender a fragilidade do sistema político brasileiro que não só per-
mitiu o golpe de 64, mas também colaborou com o processo de transição do regime militar para
o regime democrático entre os anos de 1984 e 1988 até a ruptura democrática de maio e agosto
de 2016, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff. Tal qual a plateia do picadeiro do
romance, nós, brasileiros, também nos enxergamos como espectadores de um grande espetáculo
circense que se tornou o Congresso Nacional.
Uma escrita como a de Victor Giudice exige do leitor atenção literária, linguística e
social; é impossível ler seus textos sem entrar em crise, sem se indignar e sem exercitar o senso
crítico. Mais uma vez a leitura torna-se essencial para complementar nosso entendimento da
vida. O leitor deverá empenhar-se em todas as competências comunicativas para compreender
a obra de arte literária giudiciana. Apesar de estar concretizado em um livro, o texto transcende
o papel, e a voz ecoa nas entrelinhas dos contos e do romance. Bolero foi e é para mim realmente
um desafio. E foi isso o que me motivou a escrever esta tese e a compartilhar com os demais
leitores questões que me inquietam como estudante, professora, crítica literária, e, principal-
mente, leitora.
25 Mauro IASI, “A adaga foi desembainhada”, Blog Boitempo, 8 de dezembro de 2015. Disponível em
https://blogdaboitempo.com.br/2015/12/08/a-adaga-foi-desembainhada/. 26 Ao assumir a presidência da República após o impeachment da presidenta eleita, Dilma Rousseff, o até então
vice-presidente Michel Temer teve seu governo considerado ilegítimo por muitas autoridades políticas e intelec-
tuais do mundo e movimentos sociais e políticos (Giovanni ALVES, 2016). 27 CANDIDO, 2014.
25
Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava
(...)
Eu quero é que este canto torto feito faca corte a carne de vocês
(BELCHIOR, 1976)
26
2 O CIRCO ESTÁ ARMADO: O UNIVERSO LITERÁRIO DE VICTOR GIU-
DICE
2.1 EXPERIMENTALISMO COMO RESPOSTA AO AUTORITARISMO
1964, a aliança civil-militar conspira e depõe o presidente João Goulart, dando início
a um período de vinte anos de regime militar no Brasil. 1968, o presidente Artur Costa e Silva
decreta o Ato Institucional número cinco (AI-5). 1969, o escritor carioca Victor Giudice publica
seus primeiros contos em jornais e revistas nacionais e internacionais. 1972, seu primeiro livro
de contos, Necrológio, é publicado pela editora O cruzeiro, e é sujeito ao crivo da Divisão de
Censura de Diversão Pública, fruto do AI-5. 1979, mediante à forte repressão à oposição do
governo Geisel e, posteriormente, ao declínio ditatorial com Figueiredo, Giudice publica sua
segunda coletânea de contos, Os banheiros, também analisada pela DCDP. 1985, às vésperas
da redemocratização brasileira, Victor Giudice publica seu primeiro romance, Bolero.
O ciclo narrativo iniciado em Necrológio e finalizado em Bolero caminha ao lado dos
principais acontecimentos políticos e sociais do Brasil, tanto pela época de publicação como
pela temática abordada em seus enredos. Essa característica não se restringe somente a Victor
Giudice, tendo em vista que um expressivo número de escritores latino-americanos desse perí-
odo buscou em seus respectivos países a fonte necessária para escrever uma literatura com no-
vos padrões e que se desvinculasse do colonizador europeu.
Até meados dos anos 50 do século XX, a produção literária da América Latina estava
diretamente relacionada à estética europeia, bem como aos seus conflitos sociopolíticos, ainda
que estes também afetassem diretamente os países latino-americanos. Com algumas exceções,
não havia, em um panorama geral, uma literatura latino-americana que não estivesse sempre às
sombras das fontes e referências de leitura dos artistas28. Há ainda uma grande dificuldade entre
acadêmicos, críticos e autores de desvincular a potência literária dos países emergentes das
influências externas, e, principalmente, do cânone ocidental, ou seja, da herança literária dos
escritores. A década de 1960 foi o cume desse processo de independência literária que durou
28 Silviano SANTIAGO, 2000; Roberto SCHAWARZ, 1987.
27
cerca de quinze anos29 até se consolidar. Países como Cuba, Argentina, Uruguai, México, Co-
lômbia e Peru, além de terem uma história de colonização e exploração semelhantes à do Brasil,
estavam passando pelas mesmas transformações políticas e sociais que os levariam a governos
totalitários; consequentemente, isso influenciou a arte de diferentes formas. Ou seja, crises po-
líticas nacionais podem ser consideradas momentos importantes e definidores para a arte.
A busca, consciente ou inconscientemente, na temática do nacional, era a de construir
novas identidades ou justificar as que já existiam. Esse será um ponto a ser discutido mais
adiante, mas que já é possível verificar ao considerar o boom latino-americano e a produção de
Giudice durante o período que inicia na década de 1960 e vai até o início dos anos 80. Os
críticos tentaram definir de muitas maneiras o que foi esse movimento artístico e literário, ora
para afirmar sua real existência e importância, ora para desqualificar e até mesmo provar que
ele não existiu (ou considerá-lo somente uma jogada editorial que deu certo). De fato, a litera-
tura latino-americana ganhou um reconhecimento que até então se restringia a poucos escrito-
res.
Conforme destacado por Angel Rama30 e Júlio Cortázar31, não são as editoras que fa-
zem o sistema literário. A qualidade estética e a recepção das obras pelos leitores são fatores
muito mais importantes e definidores de um movimento literário, da sua permanência no sis-
tema e até mesmo no cânone. Os escritores ganharam o público com suas características pecu-
liares que se diferenciavam daquilo que costumava ser importado do exterior, principalmente
da América do Norte e da Europa.
De acordo com Silviano Santiago32, ocorreu de os críticos e acadêmicos abandonarem
o método crítico reducionista conhecido, que buscava fontes e influências passando, então, a
focar na diferença e na originalidade das obras e dos autores. Ao mesmo tempo, a literatura
latino-americana ganhou espaço e reconhecimento internacional ao ser traduzida e publicada
em editoras dos Estados Unidos, Alemanha, México, Nicarágua, Polônia, entre outros países,
devido à boa crítica que recebeu e à popularização de suas obras nacionalmente e entre os países
vizinhos. Essa nova perspectiva dos críticos e leitores em relação à literatura latino-americana
29 Os críticos e teóricos que acreditam no início e fim da ascensão da literatura latino-americana são os mesmos
que afirmam tratar-se de um fenômeno editorial e não artístico. Discordo; acredito que esse não seja um processo
finito, mas que está em contínuo crescimento à medida que as fronteiras literárias se expandem. 30Angel RAMA, s/d. 31Julio CORTÁZAR, 1972 apud RAMA, s/d. 32 SANTIAGO, 1971.
28
contribuiu para que autores anteriores à década de 1950 fossem republicados com tiragens mai-
ores, resultando em um maior reconhecimento em nível global.
Os contos “O banquete”, “In perpertuum” e “O arquivo”, de Victor Giudice, foram
publicados avulsamente em jornais e revistas dentro e fora do Brasil na década de 1960. Esses
três contos bem como grande parte da produção literária de outros autores desse momento,
tinham os rumos políticos e sociais da América Latina – e, de maneira mais abrangente, a con-
dição humana – como temática principal. “O arquivo”, que abre o livro Necrológio, por sua
vez, é um dos contos brasileiros mais conhecidos mundialmente, uma vez que foi publicado em
oito países.
Pouco se sabia o que estava acontecendo durante os dias de regime militar. A mídia
era manipulada e manipuladora, o governo obstruía e destruía informações e os opositores eram
silenciados pela repressão, perseguição e morte. A arte assumiu e ocupou nesse momento um
espaço que é seu por excelência, em que os escritores mais engajados nas causas sociais busca-
ram a literatura para denunciar, esclarecer e registrar a história que talvez os livros viessem a
omitir futuramente. Em outras palavras, enquanto o regime, por meio do complexo jogo polí-
tico, tentava engessar determinadas lembranças sociais, a literatura engajada contribuía para
desmistificá-las através da construção de outras. Dessa forma, esse fazer artístico (re) escrevia
a história do Brasil por meio de obras díspares e plurais.
Além disso, segundo Julio Cortázar33, a crise política contribuiu com a necessidade do
leitor de buscar uma identidade que correspondesse à nova realidade social, fazendo com que
o número de leitores aumentasse e, consequentemente, entre as obras mais lidas, se destacassem
aquelas que continham implícitos ideais políticos sob uma ótica de esquerda.
As obras publicadas em diferentes países nesse mesmo período têm muitas caracterís-
ticas em comum, mas também divergem em tantas outras. Elas representam a junção de uma
arte de qualidade com temáticas engajadas politicamente, uma vez que os escritores eram artis-
tas e também ativistas sociais diante das imposições dos regimes autoritários que governavam
os países latino-americanos. Ainda que essas atitudes tenham desencadeado resultados pouco
favoráveis, como a perseguição e o exílio de muitos deles no exterior, a produção literária se
manteve em uma crescente durante esse período. Na década de 1970, com o aumento da censura
pelo governo, houve um declínio nas tiragens das obras pelas editoras. A consequência disso
33CORTÁZAR, 1972 apud RAMA, s/d.
29
foram as publicações clandestinas e independentes, a circulação em grupos restritos de escrito-
res e seguidores e as publicações de editoras no exterior.
Escritores de toda América Latina sofreram com os abusos dos regimes militares e
autoritários; o exílio passou a ser comum entre eles. Nenhuma novidade diante da história po-
lítica desses países, tendo em vista que, em regimes autoritários anteriores, muitos escritores
sofreram extradições forçadas ou voluntárias como retaliação às ideias e atitudes contrárias aos
governos vigentes. Vale lembrar o caso do Brasil com Euclides da Cunha, na década de 1920;
Graciliano Ramos, em 1936; e Jorge Amado, em meados de 1940. Seus escritos denunciavam
a realidade do país, as violências sofridas pelo povo. Segundo Creuza Berg34, os fatos retratados
contradiziam a ideia de país harmônico e cordial que o governo ditatorial procurava representar
dentro e fora do país.
A violência sofrida pelos artistas e literatos latino-americanos em períodos de autori-
tarismo político e militar refletia em suas obras. As temáticas abordadas nos livros desse perí-
odo tinham a pretensão de proporcionar aos leitores e aos próprios escritores uma experiência
diferente da que o sistema oferecia, além de fazê-los pensar e idealizar uma nova realidade e
identidade nacional. Velada ou explícita, física ou psicológica, a violência caracteriza a identi-
dade, principalmente, quando o país está passando por fortes mudanças sociais e políticas.
Uma viagem pela história do Brasil permite que se constate que a violência está na
base constitutiva de nossa sociedade35, a começar pela chegada truculenta dos portugueses às
terras tupis – que resultou no extermínio de grande parte da população indígena – bem como o
processo de colonização que se seguiu. Os quase trezentos anos de escravidão africana legali-
zada e os tantos outros em que permaneceu na ilegalidade reverberam nos problemas sociais
atuais. Por fim, os governos autoritários se fazem frequentes, tanto durante a monarquia quanto
na república ditatorial e democrática. Essa sequência de acontecimentos mantém até hoje a
desigualdade social e os preconceitos de raça, classe e gênero36. Por isso, faço questão de des-
tacar que a formação autoritária do Brasil foi constitutiva da subjetividade e da literatura, atra-
vés da qual, segundo Jaime Ginzburg37, os escritores representaram e ainda representam em
suas obras a condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico.
34 Creuza BERG, 2002. 35 Karl Erik SCHOLLHAMMER, 2000. 36 Carolina VELOSO, 2018. 37 Jaime GINZBURG, 1999.
30
O tema ganha uma importância diferente dependendo do contexto sócio-histórico em
que está inserido. A narrativa giudiciana tem a violência como fio condutor, seja nos contos de
Necrológio, d’Os banheiros ou no romance Bolero. O que os diferencia, além da estrutura e do
gênero, é o foco dado pelo autor. Em Necrológio, por exemplo, Giudice apresenta a morte como
elemento principal de suas histórias para denunciar a desigualdade social, a desvalorização do
trabalhador, a extravagância da burguesia e a arrogância dos intelectuais. Por outro lado, em Os
banheiros, o autor retoma a temática da violência para criticar o regime político e a sociedade
contemporânea, com destaque à alta classe média e à violência de gênero. Já o romance Bolero
apresenta todas essas violências em destaque, com foco na perseguição política e nos abusos de
autoridade, sejam eles militares, políticos ou trabalhistas. Nas entrelinhas dessas narrativas,
com um tom, por vezes, cômico e desesperançoso, Victor Giudice desenha o retrato da socie-
dade brasileira nos últimos anos da década de 1960 até meados de 1980.
A obra de Victor Giudice publicada entre os anos de 1968 a 1979 foi submetida ao
crivo da Divisão de Censura de Diversões Públicas, iniciativa do Ato Institucional nº5 (1968),
criado pelo presidente Costa e Silva. Sobre essas circunstâncias sombrias, Roberto Schwarz
destaca que os anos entre 1968 e 1975 seriam brutais especialmente para a produção cultural
do país:
Se em 1964 fora possível à direita ‘preservar’ a produção cultural, pois bastara liqui-
dar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o
público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros
já constitui massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os pro-
fessores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores – noutras
palavras, será necessário liquidar a própria cultura viva do momento.38
Escritores, como Victor Giudice, encontraram diferentes maneiras de driblar as nor-
mas de censura, burlar o sistema imposto pelo governo e ter suas obras publicadas por editoras
oficiais. Cada escritor encontrou sua maneira de ludibriar o sistema e alcançar o seu leitor, por
métodos linguísticos, estilísticos, semânticos ou estruturais. É possível dizer, inclusive, que es-
sas estratégias e mecanismos operaram como uma forma de autocensura imposta pelos próprios
autores. Segundo Cecilia Salles, os escritores “buscavam vencer a contingência do esqueci-
mento e a frustração de ver as coisas acontecerem e não poder contar”39.
38 SCHWARZ, 1978, p. 63. 39 Cecília Almeida SALLES, 1990, p. 161.
31
O experimentalismo literário não é uma característica única desse período. Em outros
momentos da história da literatura brasileira, observamos o mesmo fenômeno: escritores utili-
zando novas ferramentas e metodologias para criar obras transgressoras, ainda que isso não
tenha sido a intenção inicial deles. A noção de transgressão está relacionada à noção de origi-
nalidade da obra literária, ou seja, ocorre quando esta rompe com o lugar comum. Dentre os
inúmeros fatores que fazem com que a literatura rompa com as fronteiras instituídas e enraiza-
das, por exemplo, situações-limite de uma sociedade, como regimes totalitários, ditaduras, ge-
nocídios, transição de regimes etc. A consequência disso são mudanças artísticas necessárias,
ora por motivos estéticos ora por motivos políticos – ou seja, um processo de revisão da relação
entre literatura e realidade.
A título de exemplo, O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, Macu-
naíma (1928), de Mário de Andrade, e Grande sertão: veredas (1958), de Guimarães Rosa,
foram escritos e publicados em momentos que marcaram revoluções políticas, artísticas e soci-
ais no Brasil. Coincidentemente ou não, essas obras buscam o encontro com uma noção de
nação importante para responder às inquietações da população ou do sistema vigente, a partir
de ritos construtores de uma identidade brasileira.
Por mais que haja uma resistência ao nacional por parte dos artistas, ele parece irresis-
tível40 e presente na literatura brasileira. No entanto, cabe a nós ler o nacional literário com
outros olhos, ir além da simples ideia desses romances como fundação de uma nação ou forma-
ção de sua identidade. No caso de Macunaíma e Grande sertão: veredas, há ironia e crítica a
mitos e valores do povo brasileiro, cabendo uma sutil categorização de ambos naquilo que
chamo de romance de desfundação41. Já na obra giudiciana, não há espaço para sutilezas. Os
textos de Victor Giudice evidenciam a hipocrisia e as contradições dos valores nacionais, per-
sistindo a preocupação de desmascarar e problematizar costumes, valores e a História oficial.
Com base no contexto histórico em que Victor Giudice está inserido e nos assuntos
que atravessam as suas obras, não há dúvida de que os três livros do autor abordam questões
diretamente relacionadas aos últimos acontecimentos do Brasil ditatorial, mas que também re-
metem às questões relacionadas à formação da sociedade brasileira, da burguesia e da classe
média. Ao questionar e denunciar as organizações sociais e políticas do país, as alegorias feitas
por Giudice são facilmente perceptíveis. Nesse sentido, é interessante perceber o modo como
40 SOMMER, 2004. 41 No segundo capítulo, ficará mais clara a discussão sobre essas obras modernistas poderem ou não ser lidas
enquanto romance de desfundação.
32
os indícios do nacional se manifestam nas obras: os contos e o romance não têm como princípio
justificar ou dar alento ao leitor sobre as dificuldades e problemas políticos frente à crise e à
transição de regime do país, tampouco construir uma nova identidade nacional, trata-se, sim,
de desconstruir uma imagem criada através de farsas e manipulações políticas.
Bolero, por exemplo, facilmente poderia ser lido como um romance de fundação, con-
forme os termos estabelecidos por Doris Sommer, tendo em vista o fato de que constrói uma
imagem do Brasil e uma identidade nacional através do processo de transição política e das
relações pessoais e institucionais. No entanto, isso é construído de um modo às avessas àquele
que estamos acostumados na história da literatura brasileira. Victor Giudice aposta em uma
perspectiva do nacional sob a qual máscaras sociais e políticas tendem a cair. Há uma compre-
ensão de que a identidade nacional não precisa estar atrelada aos pontos positivos de uma soci-
edade ou dar razão e ênfase a um único lado da História. Portanto, faz-se necessário compre-
endê-la como plural e desconstruir aquilo que se entende como certo ou errado na sociedade.
As três obras de Giudice vão contra a corrente do que estamos acostumados, suge-
rindo-nos um novo olhar sobre as ficções de fundação. Para atingir essa ideia, é preciso percor-
rer o ciclo que se inicia em 1964, com o Golpe militar, e termina em 1985, com a redemocrati-
zação. Necrológio, Os banheiros e Bolero são densas amostras de um período autoritário que
vão além do óbvio. Giudice denuncia as ações de um regime e, principalmente, de uma socie-
dade opressora. As obsessões que permeiam as relações humanas e as instituições sociais inco-
modam o leitor. Esse efeito catártico provocado pela obra de Giudice atinge os mais diversos
níveis de leitores, de diferentes classes sociais. Sua obra de modo algum é ingênua; não só se
detém a denunciar a violência de ordem pública, mas também a de ordem privada.
Dentro desses dezesseis anos, vinte e seis contos e um romance foram publicados,
sendo somente um conto, de título “O hotel”, reprovado pelo censor da Divisão de Censura de
Diversões Públicas. Presente inicialmente em Necrológio, o conto foi publicado posterior-
mente, em 1994, no livro Museu Darbot e outros mistérios. O motivo da censura é um tanto
quanto nebuloso, tendo em vista que a denúncia social e a política estão presentes em todos os
contos de Giudice da década de 1970. Diante desse quadro, é possível fazer algumas suposições
sobre os motivos que levaram à proibição dessa narrativa, em 1972. Dos catorze contos de
Necrológio analisados pelos agentes da Divisão de Censura, somente treze foram autorizados
para publicação. Em uma primeira análise, constatei que a diferença desses treze textos foi a
ruptura com o conto convencional, uma vez que a estrutura e a linguagem dificultam a leitura
33
ou não despertam interesse dos leitores menos assíduos. O censurado “O hotel”, por outro lado,
obedece à estrutura tradicional do conto.
No artigo “Anos 70: censura e violência na obra de Victor Giudice”42, realizei uma
breve análise de Necrológio e de Os banheiros para tentar compreender o processo de censura
do conto “O hotel”. A conclusão a que cheguei foi a de que “a equipe da Divisão de Censura
não foi capaz de compreender a obra giudiciana, e, por isso, censurou o único conto de Necro-
lógio em que a leitura poderia ser realizada por leitores de diferentes níveis intelectuais”43.
Tentei ir um pouco além de minhas especulações ao levar em consideração que “incluir um
único conto de estrutura tradicional, dentre tantos experimentais, não foi uma ação arbitrária de
Giudice. Acredito que o autor tinha pretensão de persuadir ou testar os técnicos da Divisão de
Censura ao adicionar “O hotel” nesta coletânea”44. E a sua confirmação se deu com o relatório
técnico que informava a liberação do livro, com exceção de uma narrativa.
Em contrapartida, Os banheiros também foi encaminhado para Divisão de Censura em
1979, mesmo sua estrutura sendo em grande parte tradicional, sem tanto experimentalismo,
com exceção do conto “A última ceia do Dr. Ordoñez”45. A obra passou incólume, talvez por
consequência de o regime estar em fase de abrandamento e os censores focados em cúpulas
específicas que se detinham em questões envolvendo a música, o teatro popular e a televisão.
Conforme os estudos desenvolvidos pela historiadora Creuza Berg46, os pareceres emitidos pe-
los técnicos da Divisão de Censura demonstravam total consciência dos governos militares so-
bre a ignorância e falta de escolaridade da grande massa popular, distinguindo quais segmentos
artísticos, com quem e com o que deveriam realmente se preocupar.
Por acaso, a literatura não estava incluída nesse nicho. O governo brasileiro pouco se
preocupou ao longo dos anos, em investir em educação básica, e muito menos se importou em
diminuir o abismo que separava (e ainda separa) as classes sociais. Conforme Berg, “os gover-
nos militares estavam cientes da ignorância popular gerada pelo progressivo processo de ‘de-
seducação’ a que o povo foi submetido nas próprias escolas (ou pela falta delas) e pela cen-
sura”47. O que me faz repensar, por outro ponto de vista, o fato de somente “O hotel” ter sido
42 VELOSO, 2018. 43 VELOSO, 2018, p. 132. 44 VELOSO, 2018, p. 132. 45 Publicado pela primeira vez na Antologia de Ficção Científica Nº. 3, em 1973, pela Globo Editora, de Porto
Alegre. 46 BERG, 2002. 47 BERG, 2002, p. 111.
34
censurado: os pareceristas da DCDP tinham total consciência de que grande parte dos leitores
não compreenderia a crítica nas entrelinhas dos demais contos de Necrológio. Na sequência,
Os banheiros também não teria leitores suficientes a ponto de preocupar o governo, uma vez
que a tiragem impressa era mínima e o número de leitores no Brasil também não era um pro-
blema devido à “deseducação” e ao escasso acesso à cultura no país. Isso não quer dizer que a
censura literária foi irrisória. Conforme Loyola Brandão, apesar dessa “despreocupação” do
DCDP, “cerca de quinhentos livros acabaram nos porões. De ficção ou ensaio. Vai ver os livros
são mais perigosos do que pensamos...”48.
Esse tipo de prática autoritária desencadeia uma série de reações dos intelectuais. In-
dependentemente da época, o autoritarismo visa ao anti-intelectualismo, e, com isso, através da
censura, buscar empobrecer as criações e estreitar a própria capacidade reflexiva da população.
Por outro lado, essa prática aguça a reação dos artistas que não deixam de produzir por causa
da pressão ou por medo. A resistência desses grupos se dá por meio da intelectualização e so-
fisticação da linguagem, do conteúdo e da estrutura de suas obras, ou seja, uma espécie de
revolução através da estética da arte.
Tendo como base do enredo a denúncia, os dois primeiros livros de contos de Giudice
utilizam diferentes metodologias em sua construção, principalmente na estrutura da obra como
um todo. Enquanto Necrológio apresenta muitos mecanismos visuais e sonoros, Os banheiros
rompe com o tradicional a partir dos paratextos escolhidos pelo autor para integrar a sua obra.
Bolero não pode ser considerado um simples romance, se é que podemos chamar de romance
um texto de aspecto tão fragmentado. O experimentalismo literário praticado por Victor Giu-
dice e tantos outros escritores é uma reação aos abusos e tiranias impostas pelos regimes reaci-
onários, que não serve simplesmente para burlar a censura, mas constitui-se como forma de
engajamento sociopolítico e ativismo literário que ousa estar além das temáticas de denúncia.
2.2 A NOVA PROPOSTA DE NECROLÓGIO
Victor Giudice contribui com a interrupção da continuidade de uma tradição da litera-
tura ao publicar uma obra que traz o experimentalismo formal como principal característica de
sua obra de estreia. É possível identificar em Necrológio a presença de polifonia, bem como o
protagonismo do significante e um inegável apelo sinestésico; essas características são compa-
tíveis com a categorização presente no ensaio “O barroco e o neobarroco”, de 1972, de Severo
48 Ignácio Loyola BRANDÃO, 1994, p. 177.
35
Sarduy. Ao propor o neobarroco como um estilo artístico que coloca em evidência a particula-
ridade latino-americana, Sarduy apresenta uma teoria atualizada do barroco conforme as pecu-
liaridades da América Latina, como parte do processo que teve início por volta da década de
1950 e se prolongou até meados de 1980, dependendo do país, resultando no amplo desenvol-
vimento da literatura latino-americana.
Nessa perspectiva, os artistas da modernidade estariam retomando operações que já
prefiguraram no barroco, pervertendo a cronologia localizável; deixando de ser um estilo his-
tórico, para tornar-se um estilo de cultura. Para Sarduy, a literatura contemporânea, de 1950 até
meados de 1980, tem muito de barroco em sua natureza, sendo, portanto, o neobarroco a marca
principal de sua estética. Nesse mesmo período, Necrológio chega às livrarias com uma nova
proposta literária. Isoladamente, algumas estratégias narrativas se repetem e são passíveis de
diálogo com outros escritores, como é o caso do argentino Julio Cortázar. Conforme destaca
Nelly Novaes Coelho:
Escolhendo a perspectiva de um “realismo ao avesso”, na linha do fantástico-absurdo,
Victor Giudice lhe dá, porém, um tratamento que não é exatamente o mesmo que
encontramos, por exemplo, num Júlio Cortázar (com quem ele mantém inúmeras afi-
nidades). Tal como o genial escritor argentino, Victor apreende de maneira satírico-
realista a objetividade aparentemente comum do real, onde o fantástico e o absurdo
irrompem como elementos integrantes e irredutíveis. Mas seu registro é mais direto.49
O “realismo ao avesso”, grifado por Nelly Novaes Coelho, e o experimentalismo lite-
rário elevam o nível do texto giudiciano. Há uma relação analógica ao panorama histórico bra-
sileiro em um cenário fantástico, de modo que a desumanização e a morte estão presentes em
todas as narrativas e no próprio título da obra que, por sua vez, significa elogio à morte ou a
uma pessoa falecida. Desde título, a capa e a contracapa até os contos, somos bombardeados
por inquietações do autor, tendo em vista que todos os detalhes, inclusive gráficos, foram pen-
sados e desenhados por Victor Giudice. Segundo Severo Sarduy50, a ruptura com o convencio-
nal é a própria natureza do neobarroco, e manifesta um amadurecimento da literatura latino-
americana. Em decorrência de os escritores não demonstrarem mais disposição para seguir os
parâmetros esperados pela crítica internacional, tornou-se comum, cada um com sua especifi-
cidade, brincar com os gêneros literários, com a linguagem e com as mais variadas temáticas,
com destaque às narrativas de cunho político e social.
49 COELHO, 2013, p.926-927. 50 Severo SARDUY, 1979.
36
Observo, em Necrológio, a tentativa do autor de desafiar o seu leitor em todos os sen-
tidos. Essa proposta de transgressão estimula tanto o “leitor distraído” quanto o “atento”, fa-
zendo-os criar uma nova relação com o texto literário em que seja necessária uma leitura dinâ-
mica que integre os diversos níveis de significação – visuais e semânticos51. Os contos abusam
da utilização de metáforas, do entre lugar do real e do imaginário, do grotesco e da transgressão
de gênero, além dos inúmeros recursos linguísticos. Mesmo dessa forma, Giudice consegue
alcançar uma estética literária impecável e um alto teor crítico da realidade político-social bra-
sileira.
Necrológio desafia o leitor da capa até a contracapa, as quais, desenhadas pelo próprio
autor, “apela[m] para a evolução crítica de formas”52 e instigam as mais inúmeras interpretações
do leitor.
Figura 1 Ilustração de capa do livro Necrológio
Conforme é possível observar na ilustração, a grafia da palavra “necrológio” brinca
com o imaginário do leitor. O meu olhar sobre a capa de Giudice difere da interpretação de
51 VELOSO, 2018. 52 Maria Albertina Freitas de MELO, 2011, p. 90.
37
Nelly Novaes Coelho. Enquanto a autora53 considera os dois “ós” como as faces de uma caveira
e de uma brejeira, sorridente, piscando o olho para o leitor, a meu ver, “o acento agudo no
penúltimo ‘o’ se assemelha a uma bomba prestes a causar danos, enquanto o último [‘o’] ob-
serva e sorri; eis aqui [...] a imagem do oprimido tornando-se uma bomba e do opressor tor-
nando-se um tolo”54. Essa estrutura tipográfica vai percorrer toda a coletânea de contos, bem
como a expressão da sátira tragicômica que é o ponto central das narrativas. Por exemplo, é
possível notar na capa o início do conto “O arquivo”, logo abaixo do título e do nome do autor.
É somente depois dessa largada que o autor dá início ao livro tal qual de costume, com os
devidos paratextos pré-textuais: ficha catalográfica, sumário etc.
As primeiras cinco linhas do conto são marcadas pela linguagem visual: a palavra “re-
dução” destacada em vermelho, em contraste com o resto do texto em amarelo, e a palavra joão,
nome do protagonista, grafada em letras minúsculas, contrariando a regra dos nomes próprios.
O personagem joão é um funcionário exemplar, sua boa conduta no trabalho faz com que seja
promovido inúmeras vezes em sua carreira. Entretanto, essas promoções são inversões dos va-
lores e dos direitos trabalhistas. Ao invés de crescer profissionalmente, joão é rebaixado de
posto continuamente até ficar desassalariado, e isso é recebido pelo personagem de forma na-
tural e até mesmo orgulhosa por ter seu trabalho reconhecido.
– Seu joão. Nossa firma tem
uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal
de modéstia.
– Sabemos de todos os seus
esforços. É nosso desejo dar-lhe
uma prova substancial de nosso
reconhecimento.
O coração parava.
– Além de uma redução de
dezesseis por cento em seu orde-
nado, resolvemos, na reunião de
ontem, rebaixá-lo de posto.5556
A grafia do nome do protagonista em letras minúsculas “joão” pressupõe sua desuma-
nização e seu apagamento enquanto sujeito social e de sua própria vida, afinal, a reviravolta do
conto está na metamorfose do protagonista em arquivo de metal. A alienação de joão e dos
53 COELHO, 2013. 54 VELOSO, 2018, p. 117-8. 55 GIUDICE, 1972, s/p. 56 A formatação das citações de Necrológio e de Bolero respeita a estrutura original do texto.
38
demais personagens do livro não é o que provoca o absurdo no texto, mas a passividade do
narrador diante dos disparates que ocorrem a todo momento.
Observe que o mesmo ocorre em “Oz gueijos”, conto no qual Giudice utiliza de recur-
sos fonéticos e da espacialização para alcançar o seu objetivo. Faz-se necessário, por vezes, a
leitura em voz alta do texto devido ao efeito produzido pelo jogo fonético e ao diálogo frag-
mentado, conforme podemos observar no seguinte trecho:
Só Magda ouviu o telefone:
– Alô?
– Gláááro, glááro, glááro. A regonsdiduizão da
ebiderme brozeza-se gom ezdraordi
– Zim, zou eu mesma.
– nária rabidez,
uma vez que o dezido zelular re
– Gomo?
– zebe uma zérie
de ezdímulos
– O zenhor
boderia
– broveniendes de um
– rebedir?
– gomblegzo vida-
mínigo
– Mas já denho gonvi
– brevimende
– dados e
– gue voi?57
O conto relata uma reunião social com queijos e vinhos para comemorar o aniversário
de Magda (inclusive, o convite aparece como epígrafe do conto). A aniversariante é a única
personagem nomeada; os demais recebem apelidos conforme sintagmas definidores: Marido,
Mulher de Branco, Homem Gordo, Dama Obesa, Homossexual, Pintora Baiana e Moça Magra.
Ao nomear com termos que fazem referência a estereótipos, Giudice apresenta uma caricatura
da burguesia brasileira e denuncia a anulação do ser de uma classe social morta.
É importante levar em consideração todo o conjunto desse conto, o enredo e a sua
estrutura, com destaque na nasalização das falas e na disposição dos diálogos entre os persona-
gens. O jogo fonético, técnica que Victor Giudice maneja com precisão, é abordado por Severo
Sarduy de um ponto de vista intratextual do neobarroco. Para o crítico, a sonoridade e aliteração
são máscaras textuais, “artifícios e divertimentos fonéticos”, ou seja, uma operação “tautológica
e paródica”58. Segundo Nelly Novaes Coelho, Giudice utiliza da tautologia como um meio de
57 GIUDICE, 1972, p. 53. 58 SARDUY, 1979, p.173.
39
denunciar uma burguesia viciada em uma falsa realidade que se distancia da sociedade brasi-
leira, tendo em vista a “notação fonética da linguagem que, já a partir do título [Oz gueijos],
predomina em toda a narrativa, denunciando, entre outras coisas, o mimetismo de comporta-
mento à que as convenções sociais obrigam”59.
Segundo Severo Sarduy, “o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a de-
sarmonia, a ruptura de homogeneidade, do logos como absoluto, a carência que constitui nosso
fundamento epistêmico”60. Assim ocorre também na disposição dos diálogos no conto giudici-
ano, que, à primeira vista, aparentam estar desarmônicos e desorganizados, mas na verdade
constitui um artifício de simulação da realidade, importante para a compreensão da narrativa e
da crítica à sociedade burguesa.
O leitor terá que desenvolver o máximo de competências cognitivas possíveis para
compreender essas características de “Oz gueijoz” e as demais narrativas da coletânea. À me-
dida que a leitura dos contos é realizada, o leitor se depara com novos artifícios linguísticos,
sonoros e estruturais. O seguinte trecho do conto “Curriculum mortis” contém duas novas ca-
racterísticas neobarrocas: o uso de parênteses para registrar um pensamento dos personagens e,
principalmente, a descrição de sons e a utilização de caixa alta. A presença de tais elementos
implica a vocalização e a corporificação do texto, ou seja, um apelo à sonoridade. Isso ocorre
através de uma mistura de letras minúsculas e maiúsculas e do uso de onomatopeias, reforçando
a intensidade do discurso.
– Bom dia
– Bom dia
(continua sorrindo / ainda SOU um GAFI-
LHÃO de SABURGO)
(( tum tum tum-tchtun))
(BOLAS!)
– O senhor leu a carta?
– A proposta?
– Sim.
– Está aqui. A quantia que o senhor solicita,
(o sorriso aumentou)
– Vinte e três ...
justo.61
Para citar um último exemplo das características neobarrocas na obra de estreia de
Victor Giudice, elegi o conto “Synephryza”. Este conto apresenta um tema presente na década
59 COELHO, 2013, p. 934-935. 60 SARDUY, 1979, p.178 61GIUDICE, 1972, p. 134.
40
de 1970, mas que se repete nos dias atuais: o protagonista Bebé vive uma vida de farsa e in-
compreensão junto com sua tia Siné e outras senhoras, que não aceitam a sexualidade do pro-
tagonista e também não são sinceras sobre as suas. Para denominar as personagens, Giudice
utiliza-se dos recursos da proliferação, justaposição e aglutinação, conforme observamos na
voz do narrador: “Sinephryza era a noventeúm de um grupo de oitenteoito, oitentenove e no-
venta. [...] Cabeleireiro amador, penteava as amigas, sessentessete, sessenteoito, sessentenove
e, então, setenta”62.
Segundo Severo Sarduy, na utilização desses recursos, os signos “[são] esvaziados de
suas funções [...] não nos conduz[em], nem de um modo sutilmente alegórico, a nenhum signi-
ficado preciso”63. No caso giudiciano, a tia Synephryza e alguns personagens são nomeados por
números, sem uma justificativa aparente. O leitor não sabe se corresponde às idades ou a algum
número de registro, tendo em vista que narrativa está inserida em um contexto de ditadura, ou
se seria uma atribuição arbitrária do narrador.
Em outros momentos do livro, o escritor utiliza palavras que só possuem sentido no
contexto literário ficcional, o que para o crítico Sarduy consiste em um processo de condensa-
ção e proliferação febril de palavras64, ou seja, em “servir de suporte e de ossatura à produção
transbordante das palavras”, por vezes sem sentido, “puro jogo ao acaso fonético”65. Para citar
alguns exemplos dos contos: “Sinephryza”, sinestamorta; “A válvula”, chefdigrupo, chefdise-
ção, chefdidepartamento; “Oz gueijos”, marginalimagda, magdalando, marimagdo maridifi-
cando, aniversaliências, magdassunto, medmagdo, remagdalou, casalomossexobeso, magda-
medicasal, feminescalizou-se, coragengoliu, acaldamobesimava; “Grão Medalha”, sorriboqui-
dente; “Harmonizópolis”, cervejamonipresuntópolis, harmonigente, THEREZimundimorta,
morteapodrecida; “In perpetuum”, desdorme, maldormido66.
Depois dessa breve análise do livro mais experimental de Victor Giudice, é compre-
ensível que ele cause uma resistência ao leitor à primeira vista, mas encante e deslumbre quem
se aventura na leitura. Todas essas estratégias utilizadas por Victor Giudice não são por acaso.
Se considerarmos que Severo Sarduy publica seu largo estudo sobre o neobarroco na literatura
latino-americana concomitantemente ao lançamento da obra de Giudice, é possível entendê-la
62 GIUDICE, 1972, p. 18. 63 SARDUY, 1979, p.165. 64 Técnica também utilizada por Haroldo de Campos, no livro Galáxias, por Gramino de Matos, em seus dois
livros, Urubu-rei e Os morcegos, e por Waly Salomão em seus poemas, entre outros escritores. 65 SARDUY, 1979, p. 167. 66 VELOSO, 2016.
41
como mais um exemplo da repercussão do experimentalismo nas suas mais variadas formas em
diversos países da América Latina.
2.3 A INTRATEXTUALIDADE EM NECROLÓGIO, OS BANHEIROS E BOLERO
O ciclo literário de Giudice é formado por três obras publicadas durante o regime mi-
litar e que se conectam de diferentes formas. Apesar de Bolero ter sido lançado mais de uma
década depois de seu livro de estreia, o autor retoma personagens que são velhos conhecidos
nossos presentes em Necrológio: “Grão Medalha”, do conto homônimo ao personagem, Auri-
déa, de “A peregrinação da velha Auridéa”, e toda a aurifamília, de “Pôquer”.
A intratextualidade de Necrológio é bem sutil. No conto “Grão Medalha”, somos apre-
sentados ao personagem homônimo ao título da narrativa, um agiota que se torna empresário.
No decorrer do conto, ele adquire sérios problemas de saúde, e, à medida que enriquece por
extorquir os outros, seu corpo apodrece até desaparecer em sua própria podridão: “a maquiagem
se tornou incapaz diante das escamas da pele ungulada. Ninguém o viu mais”67. Já no romance
Bolero, somos informados de que, após a morte de Grão Medalha, quem passa a administrar as
Indústrias S.A. é o Gordo, o homem mais rico da Cidade, Holofernes68.
Sendo um pouco mais explícito, Victor Giudice anuncia junto ao título do conto “Pô-
quer” que este é um fragmento69, mas fragmento do quê? Essa resposta virá somente treze anos
depois, em 1985, quando o leitor conseguirá identificar as similaridades da narrativa com um
episódio no meio do décimo segundo “capítulo” de Bolero.
Narrado em primeira pessoa, o episódio relata o momento em que o narrador é apre-
sentado à família de Auriflor: ao desenvolver da narrativa descobriremos que ele seria o mesmo
narrador-personagem do romance. Logo no início do trecho, conseguimos perceber a relação
entre os personagens e as sutis diferenças entre os textos:
Necrológio:
– Papai. Titio.
– Prazer.
– Prazer.
– Prazer.
– O senhor que lhes falei. Estão lembra-
dos?70
Bolero:
67 GIUDICE, 1972, p. 72. 68 GIUDICE, 1985, p. 127. 69 GIUDICE, 1972, p. 139. 70 GIUDICE, 1972, p.143.
42
– Papai, titio, um amigo.
– Prazer.
– Prazer.
– Prazer.
– O senhor de quem lhes falei. O do corredor. Está lembrado? Titio, se lembra?71
Devido ao capítulo do romance ser mais extenso que o conto, o autor acrescentou mai-
ores informações sobre os envolvidos na cena e os últimos acontecimentos da narrativa. Isso
complementa e justifica o fato de o fragmento apresentar algumas partes do texto desmembra-
das e agregadas a outros diálogos entre os mesmos personagens concomitantes a pensamentos
do narrador. Por exemplo, o personagem-narrador faz uma breve divagação sobre a criação de
uma nova pontuação: a semivírgula, “(em lugar desse ponto aí de cima, achei preferível uma
vírgula, mas não ficava perfeito, porque o melhor seria uma semivírgula, coisa que não existe
e precisa ser inventada para sublimidade de certas compreensões [...])”72. Situações como essas
são recorrentes do experimentalismo de Necrológio e assim também são em Bolero.
No entanto, o fator mais importante desse fragmento e da intratextualidade das obras
está na aurifamília. Os “auri-qualquer-coisa”73 são recorrentes e possuem uma importância sig-
nificativa nesse contexto literário giudiciano. A primeira aparição desses personagens dá-se no
conto “A peregrinação da velha Auridéa” e, posteriormente, em “Pôquer”.
Auridéa, velha bruxa que desafia Bartolomeu com suas moedas mágicas, não é uma
personagem fixa do fragmento e do romance: ela somente é mencionada em determinados mo-
mentos. Inclusive, sua morte é anunciada em duas situações de Bolero, além de ser lembrada
pelo irmão, auriavô, no episódio do jogo de pôquer e nos seus gemidos agonizantes74 ao final
do romance:
[...] a perguntar pela irmã, falecida em 1920 d.C., na pandemia espanhola:
Auridéia não vem?
E diante do costumeiro não, recurvara uma surpresa no lábio inferior:
Ué, ela vem toda noite...75
Já sua neta, Auriflor, é uma personagem recorrente de “Pôquer” e de Bolero, junta-
mente com o Auritio, Auripai e Auriavô. A enfermeira, “bruxa de pernas-ponteiro”76, é quem
“abre os olhos” do personagem-narrador no hospital, alertando-o que ele se encontrava há sete
anos esperando a esposa dar à luz; é ela também quem o introduz ao novo contexto sociopolítico
71 GIUDICE, 1985, p.81. 72 GIUDICE, 1972, p.141-142; 1985, p.78-79. 73 GIUDICE, 1972, p.145; 1985, p.85. 74 GIUDICE, 1985, p. 311. 75 GIUDICE, 1985, p. 78. 76 GIUDICE, 1985, p. 10.
43
e, juntamente com o Auritio, o transforma de mero coadjuvante a “único republicano ativo”77.
Enquanto Auritio e Auriflor são assumidamente republicanos, Auripai prefere não se posicionar
sobre a política, mas a todo momento alerta-os sobre o perigo de serem presos pela guarda real;
já Auriavô, namorado da Condessa de Monchique, é um partidário da monarquia e em todas as
situações possíveis faz insinuações e ameaças ao narrador, a Auriflor e ao Auritio sobre suas
preferências políticas. Um exemplo disso está no final do episódio de “Pôquer”, quando Auri-
avô sofre as devidas retaliações de seu ato falho durante a jogatina:
Durante as quarenta e nove chineladas, brotaram três filetes escuros, mas o avô
não gemeu. Apenas apertou as gengivas e rugiu promessas:
- Amanhã irei ao palácio e mostrarei o que fazem com um descendente de um
Auri (qualquer coisa que não entendi)
Todavia, a outra descendente de um auri-qualquer-coisa não descolou os olhos
da flagelação, apesar de sorrir uma inocência de café com canela:
- Não adianta. Vovô não toma jeito78.
Observemos a última frase da citação. Há uma leve distinção entre essa mesma fala de
Auriflor no conto e no episódio do romance. Essa diferença é construída por uma simples pon-
tuação que muda a forma como concebemos o personagem Auriavô e a própria Auriflor. Em
“Pôquer”, a enfermeira afirma que seu avô jamais tomará jeito, conformada tanto com a rouba-
lheira de seu antecessor como com a monarquia como forma de governo vigente. Já no romance,
ela faz questionamentos, dando a primeira impressão ao personagem-narrador de que há espe-
ranças de que seu avô deixe de roubar no jogo ou de ser partidário fiel da monarquia. Auriflor
também acredita em uma mudança política, ou seja, na revolução: “Será que um dia vovô toma
jeito?”79
As estratégias experimentais em Os banheiros são tão presentes quanto em Necroló-
gio, no entanto, elas podem passar despercebidas aos leitores que desconhecem as demais obras
do escritor. Na época, foi possível dizer que Victor Giudice abandonou o projeto experimental
ao escrever Os banheiros (1979), um livro mais acessível no que diz respeito à linguagem e à
estrutura, como percebe Elizabeth Lowe, no prefácio: “A síntese fragmentada e ultraexperi-
mental de seu volume de estreia se corporificou numa prosa fluída e magnífica sem perder
nenhuma característica de sua mordacidade”80. A particularidade da coletânea de contos de
1979 está no fato de Victor Giudice trazer em seu conteúdo elementos de sua obra posterior,
Bolero, lançada seis anos depois d’Os banheiros. Esses elementos intratextuais estão tanto no
77 GIUDICE, 1985, p. 296. 78 GIUDICE, 1972, p. 145; 1985, 86. 79 GIUDICE, 1985, p. 86. 80 Elizabeth LOWE, 1979, p.8.
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texto em si como nos paratextos que compõem a obra, nas epígrafes, notas do autor, referências
e um fragmento.
A primeira informação que nos leva a entender a intratextualidade no livro de contos
é anunciada pelo próprio autor junto ao título do conto “Narrativa do Número Um”. No lugar
da epígrafe, consta a seguinte informação: “(fragmento do romance Bolero)”81. Já no conto
“Pôquer”, pelo contrário, não há informações sobre a procedência do fragmento. A estratégia
de publicar um fragmento do romance funciona como uma maneira de despertar a curiosidade
dos críticos e dos leitores sobre sua próxima criação, bem como aumentar as expectativas sobre
o que esperar do romance devido às circunstâncias da narrativa – no caso, o monólogo de um
preso político.
Esse trecho é um capítulo do romance Bolero. Narrado em primeira pessoa pelo per-
sonagem conhecido como Número Um, a história é a de um menino que costumava frequentar
o circo da cidade, fascinado pelo número do pierrô branco que, ao som de uma valsa, fazia
aparecer sobre o corpo uma esfera prateada equilibrada com incrível destreza. A esfera aparecia
do nada; aparentemente o pierrô entrava no picadeiro de mãos vazias. Somente ao acorde inicial
da banda do circo ela surgia. Por sua vez, esse menino curioso viria a se tornar o sucessor do
pierrô, dominando a técnica do seu antecessor e desenvolvendo outras tantas. Em certo mo-
mento, o novo pierrô percebe que a plateia não tem emoção; por mais que ele se esforçasse em
se superar, o público permanecia apático e alheio a tudo. Diante dessa insensibilidade e meca-
nicidade dos aplausos, o pierrô resolve, em vez de esferas, materializar seu pensamento em luz:
uma grande obra. No entanto, os agentes do governo compreendem o espetáculo como um ato
subversivo e prendem o pierrô branco. Assim o prisioneiro da cela quarenta e nove finaliza sua
história, apresentando-se como o segundo pierrô branco, conhecido agora como Número Um.
Com características de um monólogo, o fragmento apresenta tons poéticos, políticos e
filosóficos, tendo em vista que o Número Um está sempre citando Fausto, de Goethe, os Pen-
sées, de Pascal, e estabelecendo debates profundos a fim de esclarecer e afastar o personagem-
narrador – ou, no caso do conto, afastar o leitor do alheamento existencial e político em que se
encontra(va). O texto tem a estrutura baseada em um único e extenso parágrafo; as marcas de
diálogo são perguntas retóricas, marcadas, principalmente, pela expressão “Hem? Que tal?”,
repetida seguidas vezes pelo narrador. É possível observar a utilização dessa estratégia no tre-
cho a seguir:
81GIUDICE, 1979, p. 105.
45
Houve um tempo em que um menino passava por baixo das lonas do circo e ia assistir
ao espetáculo. Isso acontecia todas as noites, porque sempre houve e sempre haverá
circos de lona e meninos curiosos. Hem? Que tal? Você fazia assim também? Não
responda.82
Esse fragmento/capítulo é considerado pelos críticos como um momento de grande
inspiração literária e criativa de Giudice, na medida em que ele consegue transcender o signifi-
cado do pensamento ao ponto de torná-lo uma alegoria da liberdade suprema, um último alento
de dignidade e humanização83. Nesse sentido, esse episódio pode ser lido como uma manifes-
tação sobre a criação artística.
A materialização do pensamento representado pela imagem do punhal espetado no
cérebro do pierrô branco é perfeita para fazer significar, de modo metafórico, o poder do livre
pensar. Além disso, essa imagem da materialização do pensamento representa a capacidade de
produzir uma arte que esteja fora dos parâmetros estabelecidos.
José Felipe Conceição faz uma leitura muito interessante sobre essa questão:
O número do pierrô branco, portanto, representa a materialização do pensamento, sua
capacidade de criar novas realidades e produzir um tipo de arte que não se deixa ins-
trumentalizar pelos signos e discursos do poder político constituído. Por isso, o ter-
ceiro e mais importante ponto abordado é o da função sublimadora da arte, sua capa-
cidade de criar outras realidades. Assim, pensamento e arte andariam unidos, pois a
expansão artística, seja através da música, da escultura, da pintura ou da literatura,
seria a concretização simbólica e ideológica do pensar.84
O pensamento e a arte andariam juntos; entretanto, a arte discutida por Número Um é
a da ficção, em um sentido em que a realidade ficcional ou literária mostra-se superior à reali-
dade comum:
Você deve estar achando que esse negócio é pura ficção e que eu sou um mentiroso
desavergonhado. Pode ser que seja ficção mesmo. Sabe o que é ficção? É quase a
mesma coisa que realidade. É uma realidade sem visões falsas. É isto que atrapalha.
A ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas as mentiras85.
Portanto, todas as verdades são ficções e todas as realidades são mentirosas86.
A realidade e a ficção são constituídas por ordens e regulamentos a serem seguidos,
seja pelo cidadão ou pelo artista. Por um lado, os regulamentos tendem a limitar o sujeito social
e artístico, enquanto que, por outro, eles têm sua raiz no poder do pensamento. Isso ocorre
porque não é difícil cumprir os regulamentos; difícil é burlá-los, e essa ação desencadeia novos
82GIUDICE, 1985, p. 49. 83 Carlos Alberto DE MATTOS, 1985, s/p. 84 Felipe CONCEIÇÃO, 2010, p. 104. 85 Essa frase marca mais um aspecto intratextual entre as obras, pois ela aparece na contracapa de Necrológio, em
1972. [grifo meu]. 86 GIUDICE, 1985, p. 57.
46
regulamentos, em um movimento cíclico. O personagem Número Um desenvolve um longo
raciocínio sobre a existência de regulamentos e a sua obediência, além de outras questões que
regem a sociedade, tornando seu monólogo bastante significativo para compreender não só as
esferas sociais, mas toda dinâmica que exija uma ordem e metodologia de desenvolvimento.
A finalidade dos regulamentos está na simples ambição de padronizar o comporta-
mento social para que a obediência de uma maioria enalteça a autoridade de uma minoria. Por-
tanto, cumprir os regulamentos sociais é fácil: basta seguir as normas estabelecidas. Nesse sen-
tido, o fato de Giudice transgredir as normas tradicionais da literatura com seus experimentos
torna-o um desobediente. Consequentemente, a sua desobediência pode culminar em um novo
gênero literário. Mas, antes de adentrar na teoria literária para compreender a ideia de gênero
proposta por Victor Giudice, ainda se faz necessário falar das últimas pistas intratextuais d’Os
banheiros.
O livro tem uma quantidade expressiva de paratextos que trazem informações aparen-
temente descontextualizadas, de modo que essas lacunas somente serão preenchidas seis anos
mais tarde, com a leitura de Bolero. Algumas citações utilizadas pelo autor não possuem refe-
rências, e, por enquanto, o leitor não consegue estabelecer uma ligação com a obra como um
todo, tampouco com os contos de maneira isolada. Por exemplo, a epígrafe surge para Giudice
como uma ferramenta textual importante – praticamente todas suas obras e contos são precedi-
dos desse paratexto. É possível observar tal ocorrência no conto “Miguel Covarrubra” e no livro
Os banheiros, pois ambos possuem a mesma epígrafe, se diferenciando no fato de o livro trazer
uma estrofe inteira do capítulo “A lenda dos doze rios”87, de Bolero, e o conto apresentar so-
mente os dois últimos versos:
Desonras ancoraram nesses portos
onde as honradas velas são mofinas.
Gastei meus passos em caminhos tortos
em busca de passagens cristalinas.
Já vi verdades mortas sob os mortos
de guerras vergonhosas e assassinas.
Perguntas sei às quais ninguém responde.
Conheço histórias mil que a História esconde.
(Ladislau de Monchique, sobrinho de Mme Odhontyna Alberycca Euphrozyna Al-
pharraz Bethançon do Gammedal – Condessa de Monchicque)88
87 GIUDICE, 1985, p.93 – 111. 88 GIUDICE, 1979, s/p - 37; 1985, p. 110.
47
As localizações das epígrafes dão significados distintos para cada uma delas. Segundo
Compagnon, quando a epígrafe tiver alguma relação lógica com outro texto, ela pode ser con-
siderada um símbolo: “Mas, ela é, sobretudo, um ícone, no sentido de uma entrada privilegiada
na enunciação”89. A fim de complementar essa ideia, procurei a definição do crítico francês
Gerard Genette, o qual afirma que “epigrafar é um gesto mudo cuja interpretação fica a cargo
do leitor”90. Nesse sentido, Compagnon e Genette concordam que a epígrafe está diretamente
relacionada com o texto, sua existência não é arbitrária, o leitor deve buscar o seu significado
na relação direta ou indireta com o texto, como uma charada que poderá ter seu sentido escla-
recido através de uma leitura minuciosa do texto.
No caso, a primeira epígrafe está relacionada a todo o conteúdo d’Os banheiros. Ou
seja, ela se constitui como uma forte crítica à classe média e à burguesia brasileira. Enquanto
isso, a segunda está diretamente relacionada ao conteúdo do conto, sendo representada na his-
tória de vida privada e pública da família Covarrubra em suas relações com a conjuntura política
da Cidade. Devido ao contexto histórico de 1979, notamos a clara alegoria à história da transi-
tologia brasileira. Como se sabe, a história do Brasil é repleta de escândalos de corrupção e
fraude nos acordos políticos e econômicos, o que nos faz questionar o conceito de “verdade”
da narrativa dita como oficial, tal como o autor insiste em destacar em suas duas obras: “Co-
nheço histórias mil que a História esconde”.
A referência a esse capítulo e a esses personagens, em especial, é recorrente n’Os ba-
nheiros. São seis as menções ao sarau e à família da Condessa de Monchicque, sendo que cinco
estão presentes no conto “Miguel Covarrubra”. A história da família Covarrubra tem relação
direta com a história da cidade de Bolero. Essa informação é fornecida pelo próprio autor em
sua primeira nota sobre os personagens e heróis da primeira monarquia, Miguel Covarrubra e
Duque de Gammedal:
“Do Gammedal o Duque portentoso,
ao ver em sua frente a face ousada,
tomada Glória a Estrela e, generoso,
concede ao moço a fala dilatada.”
Tem-se como certo que Miguel Covarrubra é o moço a que se refere a Condessa
de Monchicque em sua famosa narrativa (N. do A.)91
O verso destacado na nota consta no sarau noturno na casa de Alpharraz e Gammedal,
o mesmo da epígrafe de abertura d’Os banheiros e do conto. Esse capítulo do romance conta a
89 Antoine COMPAGNON, 2007, p.120. 90 Gerard GENETTE, 2009, p.141. 91 GIUDICE, 1979, p. 39.
48
“História da Fundação da Cidade” em forma de tragédia com caráter cômico, justamente pelos
dois narradores divergirem de opinião sobre o Duque de Gammedal. Para o sobrinho Ladislau,
um farsante; para a tia, por vezes, um herói (por outras, nem tanto). A Condessa representa a
dualidade de sua família, que ora defendia a Monarquia, os Monchicques, e ora a República, os
Monchiques92. Pelo menos é isso que o leitor observa no conflito e nas intervenções de Ladislau
com sua tia. Esta, por sua vez, ao final revela-se tão ciente quanto o sobrinho sobre as inverda-
des da história oficial:
ODHONTYNA: Não roubes de meu verso esta mentira
e as outras que decerto hão de surgir.
Porque só delas é que o Homem tira
as forças do passado e as do porvir.
Se o ser não mente, a mente não se inspira,
pois a verdade só nos leva a rir.
Mentindo empresto aos homens tanta glória,
quão mentirosa é toda a Humana História.93
No romance há uma recorrente lembrança de que a Madame é uma das últimas des-
cendentes de Gammedal, enquanto no conto há a preocupação de negar seu parentesco com
Miguel Covarrubra. O autor deixa registrado, em nota, que a personagem de Bolero nada tem
em comum com a esposa de Miguel Covarrubra, Estefânea de Monchique: “O nome Monchique
não guarda nenhuma relação com os Monchiques atuais, o que não deixa de ser louvável para
ambos os lados (N. do A.)”94. Nesse trecho, observamos mais uma ficha de leitura dada pelo
autor: o termo “atuais” faz-nos refletir sobre a temporalidade do romance e do conto. Pode-se
cogitar que o narrador d’Os banheiros é contemporâneo ao narrador do romance, pois, além de
fazer referência direta a Madame em suas notas, em Bolero nos é fornecida a informação de
que ela e Ladislau são os últimos Monchiques que restaram na cidade e representantes vitalícios
dos bens (e dos males).
Madame Odhontyna Alberycca Euphrozina Alpharraz Bethançon de Gammedal, co-
nhecida como Madame Monchicque, e seu sobrinho Ladislau de Monchicque são os últimos
descendentes do fundador da cidade, Duque de Gammedal95, assim como os vizinhos do narra-
dor do conto são os últimos descendentes de Miguel de Covarrubra. Os dois narradores descre-
vem as casas desses últimos descendentes como decadentes e empoeiradas, reflexo de uma
cidade que vive na sombra de um passado pouco memorável. No romance: “Sarau noturno na
92 Atente-se nesse momento a grafia do sobrenome da Madame que varia conforme o regime político da Cidade. 93 GIUDICE, 1985, p. 111. 94 GIUDICE, 1979, p. 40. 95 GIUDICE, 1985, p. 91.
49
Casa de Alpharraz e Gammedal. Cenário decadentíssimo. Cristais empoeirados em poeiras cris-
talizadas”96. No conto: “E, finalmente, vi que todas as coisas – móveis, medalhas, memórias e
Cidade – estavam cobertas de poeira”97.
Além dessas relações dos paratextos com o romance, o próprio enredo do conto torna
possível a sua leitura como uma parte da história da Cidade. Em Bolero, o personagem-narrador
entra na maternidade em uma cidade republicana e sai, sete anos depois, com um regime mo-
nárquico em vigência. O conto, através da voz de um rapaz de vinte seis anos, relata a história
política da família Covarrubra desde a primeira monarquia até os “dias atuais”, quando um dos
seus vizinhos, últimos descendentes dos Covarrubras, estavam envolvidos em escândalos sexu-
ais e pedofilia. Por trás dessa saga familiar está uma forte crítica às transições de regime e à
banalização da política pelos governos, seja qual for a opção ideológica, considerando que,
apesar das inúmeras transições, nenhuma mudança social efetiva acontece – são sempre os mes-
mos envolvidos no governo, direta ou indiretamente.
Para demonstrar essa indiferença, o autor utiliza de uma estratégia narrativa desafia-
dora ao leitor. Com muita astúcia, o narrador repete uma mesma informação ao se referir à
monarquia e à república. O personagem Pedobarão representa a classe que está no topo da pi-
râmide social. Ele exerce um importante papel na política da Cidade, pois, ao jogar com os
governos, consegue privilégios tanto da Sexta Monarquia quanto da Quinta República.
Na Sexta Monarquia:
Pedobarão se casou com a sobrinha de uma cunhada do rei, Alzira, fato que não só
lhe angariou mais prestígio social, como também lhe facultou algumas liberdades
quanto ao recolhimento dos impostos reais. Quando o monarca estava cansado, pas-
sava um momento na Pedra Negra, servindo-se de escravas que Pedobarão lhe ofere-
cia.98
Com a queda da monarquia deu-se início à quinta república, e a família Covarrubra
continuou suas relações com a política. Entretanto, diz o narrador sobre Pedobarão:
Dessa vez casou-se com a sobrinha de uma cunhada do presidente, Júlia, fato que não
só lhe angariou mais prestígio social, como também lhe facultou algumas liberdades
quanto ao recolhimento dos impostos republicanos. Quando o presidente estava can-
sado, passava um momento na Pedra Negra, servindo-se de escravas que Pedobarão
lhe oferecia.99
96 GIUDICE, 1985, p.93. 97 GIUDICE, 1979, p. 54. 98 GIUDICE, 1979, p. 42. 99 GIUDICE, 1979, p. 42.
50
A tênue ironia de Victor Giudice leva o leitor ao riso, mas esse mesmo riso pode ad-
quirir significados que vão além do cômico – como na expressão “rir de nervoso”, a qual serve
bem para esse contexto. Os três tempos de leitura a) 1979, Os banheiros, b) 1985, Bolero, e c)
a última metade da década de 2010, contemporânea a nós, levam o leitor a outras expressões e
compreensões sobre as questões levantadas pelo autor e pelo seu humor peculiar. As cenas
absurdas e risíveis são passíveis de análises críticas sobre a conjuntura nacional ou sobre a sua
própria consciência como sujeito social, tendo em vista que situações como a de Pedobarão e
tantas outras recorrentes nos contos e no romance são comuns no sistema sociopolítico brasi-
leiro, dado que as fronteiras entre as relações públicas e privadas são mal definidas e permeá-
veis.
As palavras de Roberto Damatta são suficientes para entender o sistema brasileiro
exemplificado pela vida e pelas relações de Pedobarão Covarrubra: “Daí a profunda verdade
sociológica do ditado: ‘Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo’. Dir-se-ia, na argumentação que
se amplia no decorrer deste volume, que: ‘aos bem relacionados, tudo; aos indivíduos (os que
não têm relações), a lei’”100 Os interesses pessoais sobressaem aos interesses públicos; o Brasil
está longe de ser um modelo de Estado conduzido por normas impessoais e racionais, indepen-
dentemente do governo, monárquico ou republicano, ditadura ou democracia. Como no conto,
o personalismo se sobressai na construção social do Brasil, de modo que as leis existem para
serem descumpridas por quem pode e cumpridas por quem deve.
Os estudos desenvolvidos pelo antropólogo Roberto Damatta101 ajudarão mais adiante
a entender, em Bolero, essas dialéticas de ordem e desordem, público e privado e casa e rua. O
personagem Pedobarão foi citado como um breve exemplo das relações que serão encontradas
na leitura do romance, como as peripécias vividas pelo personagem-narrador e os demais per-
sonagens. Outro exemplo é observado, no último capítulo, com a descoberta do que realmente
aconteceu após a queda da monarquia. Segundo a carta102 do personagem-narrador direcionada
a sua ex-esposa, Cynthia, todo o esforço realizado em prol da república foi em vão – a sucessão
de poder não passou de uma simples manobra, tal qual no conto “Miguel Covarrubra”. Nada
mudou a não ser as nomenclaturas, reorganizações de cargos e as cores da bandeira. O sistema
100 Roberto DAMATTA, 1997, p. 23. 101 DAMATTA, 1997; 1997. 102 A informação de que o último capítulo é uma carta para Cynthia consta nos manuscritos disponíveis no acervo
da Fundação Casa de Rui Barbosa.
51
permaneceu o mesmo. E, para minha surpresa (ou não), o próprio personagem-narrador de Bo-
lero embarca nessa rede de relações e tramoias.
A estrutura narrativa giudiciana retrata o estado social fragmentado da década de 1960
e, ao mesmo tempo que ataca o regime imposto com o Golpe de 64, revela as expectativas à
redemocratização ao final de 1980. Giudice cria um universo literário singular em que as obras
formam um ciclo narrativo com início, meio e fim. A articulação intratextual enriquece a obra
do autor, e também a nossa experiência como leitores. Por isso, é preciso estar atento às epígra-
fes, às notas do autor, aos personagens e aos fragmentos. Segundo informações obtidas no
acervo103 de Victor Giudice, disponível na Fundação Casa Rui Barbosa, e em contato com a
viúva do escritor104, Eneida Vieira, Bolero foi escrito durante o ano de 1984. Mas, conforme
defenderei ao longo desse trabalho, a intratextualidade entre as três primeiras obras de Giudice
leva-nos a crer que a ideia inicial acompanhou Giudice durante todos os tortuosos anos de 1964
a 1984.
Textos semelhantes ao enredo de Bolero foram encontrados no acervo da Fundação,
mas não se tem conhecimento de sua publicação oficial, assim como não constam na obra prin-
cipal. Definitivamente, Bolero é uma obra que vai na contracorrente dos romances que estavam
sendo publicados na época, mas, ao mesmo tempo, segue a tendência transgressora e neobar-
roca que outros escritores não só brasileiros mas latino-americanos em geral vinham arriscando.
Em Bolero, Giudice inclui todos os mecanismos linguísticos e literários propostos inicialmente
nas coletâneas de contos, e tantos outros que já mencionei anteriormente. No próximo subcapí-
tulo, darei um pouco mais de atenção à polifonia, aos gêneros literários e à intertextualidade
presente na obra.
103 O material disponível no acervo foi doado pela esposa do escritor, Eneida Vieira, com autorização dos dois
filhos de Victor Giudice, em 2016, após organização da Profa. Dra. Tereza Virginia de Almeida, principal refe-
rência no que diz respeito à pesquisa sobre a obra de Victor Giudice. Dentre os documentos que constam no acervo,
foram utilizados para esta pesquisa manuscritos, cópias, revisões, críticas e traduções de suas obras. É importante
destacar que o material não sofreu triagem e sua organização está em responsabilidade dos profissionais da Fun-
dação Casa de Rui Barbosa. 104 Um dos locais favoritos de Victor Giudice, na adolescência, foi a biblioteca de seu vizinho e futuro sogro, Dr.
Azevedo Lima. Aliás, foi nessa época que começou a namorar Leda, com quem se casou anos mais tarde e teve
dois filhos, Maurício, matemático, e Renata, jornalista. Já, sua segunda esposa, Eneida Vieira, foi sua principal
leitora e colaboradora a partir de 1984 até a madrugada de 17 de novembro de 1997, quando o escritor foi vítima
mortal de um tipo raro de tumor cerebral. (Fonte: http://victorgiudice.com/vida.html).
52
2.4 O MOVIMENTO TRANSGRESSOR DE BOLERO
Após treze anos de sua estreia, Giudice publicou seu primeiro romance, Bolero, o qual,
assim como Necrológio, também tem como característica principal o caráter experimental. O
seu estilo fragmentário juntamente com a mescla de gêneros, rompe com a estrutura convenci-
onal de um romance, tanto em sua forma quanto no conteúdo de que trata. Dessa forma, a crítica
da época não pôde deixar de notar a busca constante do autor por novas e diversas técnicas
narrativas.
Segundo Lucia Helena105, a estrutura do romance convencional encontrava-se desgas-
tada, repetitiva e não correspondia às expectativas do momento, de modo que Giudice abriu um
novo caminho desafiador para a literatura brasileira. Para completar, Mauro Gama, em sua co-
luna crítica no jornal Suplemento Literário, em 1986, propõe que a classificação de Bolero no
gênero romance não seja a mais adequada. Concordo com o crítico e penso que talvez o motivo
de a obra não se encaixar em nenhuma nomenclatura já existente seja proposital, haja vista a
necessidade de se repensarem os conceitos de gênero literário.
De acordo com a proposta de Todorov, é possível admitir que um novo gênero suceda
da transformação e transgressão de um ou de vários gêneros:
O fato de a obra “desobedecer” a seu gênero não o torna inexistente; somos quase
obrigados a dizer: pelo contrário. E isso por uma dupla razão. Primeiro, porque a
transgressão, para existir como tal, necessita de uma lei – que será, precisamente,
transgredida. Poderíamos ir mais longe: a norma não se torna visível – não vive –
senão graças às suas transgressões106.
Nesse sentido, também é admissível propor uma nova terminologia para obra giudici-
ana. Aliás, acredito que o autor nos chama a refletir sobre esse assunto no capítulo monólogo,
quando o personagem Número Um questiona a existência e a origem de novos regulamentos
que regem a sociedade. Conforme o trecho a seguir:
Outro dia conversamos sobre os regulamentos. Cumprir os regulamentos é facílimo.
Não cumprir é que é o diabo. Você sabe como nasce um regulamento? Quando alguém
resolve desobedecer ao antigo e fazer outro novo. E sabe por que não se cumpre um
regulamento? Por que se acredita numa coisa mais importante. Concorda? O que eu
estou pedindo é mais difícil do que acreditar, porque estou pedindo que acredite em
sua própria crença. Não é difícil?107
Os gêneros literários formam um sistema em contínua transformação, “um ‘texto’ de
hoje deve tanto à ‘poesia’ quanto ao ‘romance’ do século XIX”108. Como qualquer instituição,
105 Lucia HELENA, 1985, p.53. 106 Tzvetan TODOROV, 1980, p. 44-45. 107 GIUDICE, 1985, p. 52. 108 TODOROV, 1980, p.46.
53
os gêneros evidenciam os aspectos correspondentes à sociedade em que estão inseridos, de tal
forma que a transgressão ocorre naturalmente. No caso, a subversão é a própria evolução do
gênero. A transgressão de Giudice ao regulamento do sistema literário incide na desobediência
ao sistema político imposto pelo governo ditatorial e às novas estruturas da redemocratização
pós-ditatorial. Portanto, o texto fragmentado e polifônico deixa com o tempo de ser uma trans-
gressão experimental para ser uma estrutura regular na literatura, ou seja, passa de uma ruptura
revolucionária para ordinária. Conforme destaca o Número Um, para criar um novo regula-
mento basta desobedecer ao regulamento já existente e assim continuamente.
A crítica de Carlos Alberto de Mattos109 é pertinente nesse momento, pois ele define
Bolero como uma obra transgressora e multifacetada, a ponto de incorporar diversas formas de
registro literário. Os capítulos são como episódios que podem ser lidos e publicados indepen-
dentemente, além de ter a presença de diferentes vozes narrativas e um enredo que não respeita
um tempo lógico e previsível. Essa característica, por sua vez, possibilita a leitura da obra como
um debate de ideias opostas, perceptível pela própria estrutura do texto: fragmentária e polifô-
nica.
Em verdade, toda a trama pode ser considerada um espetáculo; todo o romance é tra-
çado por episódios fantásticos e absurdos, difíceis de assimilar em um primeiro momento. Por
se tratar de uma narrativa híbrida, a espetacularidade de Bolero não se encontra somente no
enredo, mas também no próprio estilo do texto: um bilhete em forma de soneto; um samba
enredo110111 cantado por funcionários de uma indústria; um poema épico no estilo camoniano
para contar a história da fundação da Cidade; um monólogo de um pierrô branco que cita sin-
fonias de Beethoven e os Pensées de Blaise Pascal; uma peça de teatro para relatar uma reunião
de vítimas da tortura; e, para finalizar, uma carta de despedida. Giudice apresenta em um só
espaço diversas manifestações literárias, de modo que todos esses discursos convivem entre si
harmoniosa e democraticamente na narrativa.
109 DE MATTOS, 1985. 110 Em conversa com Domingos de Oliveira, Victor Giudice cantarola trecho do samba enredo “Ópera louca dos
carnavais”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jZ4zeKDesng. 111 Entre os anos de 2016 e 2017, a professora Tereza Virginia realizou um trabalho de recuperação das canções
de Victor Giudice em parceria com o musicista Julio Córdoba e com o auxílio da esposa e da filha do escritor. De
acordo com Julio Córdoba, seu trabalho consistiu em uma espécie de arqueologia musical, pois também foi reali-
zado nesse período o resgate de algumas partituras de músicas instrumentais escritas por Giudice. Como parte do
projeto Museu Victor Giudice, Tereza Virginia interpretou, em shows e palestras musicais, algumas dessas canções
juntamente com Julio Córdoba, como violonista e arranjador, em Florianópolis, e, no Rio de Janeiro, em parceira
com o violinista e compositor Marcos Melo.
54
Bakhtin112 encara esse hibridismo dos gêneros como de caráter complementar e divide-
os em gêneros secundários e primários. Secundários são aqueles que circulam em circunstâncias
de comunicação cultural complexa, no caso, o romance; já os gêneros primários são aqueles
que constituem o secundário, conservando sua forma, no caso, outros gêneros inseridos no ro-
mance. Dessa maneira, o aspecto híbrido da composição narrativa e a interação entre os gêneros
correspondem à maneira com que Giudice concebe a formação da literatura. Bolero pode ser
considerado uma paródia da estrutura do romance tradicional, porque rompe com a consciência
monológica e fechada do tal regulamento, bastante comum nas narrativas do romantismo. E
essa paródia pode ser uma das chaves de leitura para considerá-lo uma ficção de desfundação.
De um ponto de vista monológico, ou seja, do romance tradicional113, Bolero parece
um aglomerado de informações, de fragmentos avulsos, além de caótico pela heterogeneidade
de estilos e demais gêneros que o compõem. Há momentos na obra em que o personagem-
narrador toma para si a voz e assume seu papel de narrador, e é através dessa voz e do seu ponto
de vista que o leitor acompanha situações absurdas que lhe ocorrem após sair do hospital. Quase
todos os capítulos narrados pelo protagonista envolvem sua confusão em relação aos últimos
acontecimentos de sua vida. Há também uma oscilação na narrativa, a partir de outras vozes e
gêneros que podem ser vistos como uma maneira de buscar uma definição do eu e do seu lugar
na sociedade.
Em determinados momentos, o personagem-narrador deixa de narrar os fatos e seu
discurso parece implicar em diálogos sem resposta, por vezes filosóficos e existenciais. Isso
fica bem evidente nos microcapítulos direcionados a sua esposa desaparecida, por exemplo:
“Cynthia, onde foi que você se meteu? Em que dentro? Não consigo sair desse dentro das coisas
que são sempre dentro que existe dentro de outro dentro que nós chamamos de lado de fora,
etc.”114.
O personagem-narrador está imerso em uma confusão identitária e existencial que
deixa o leitor tão confuso quanto ele próprio. Aparentemente, tentar assimilar os últimos acon-
tecimentos e desabafar por meio dos monólogos ajuda-o a se aproximar de algo familiar, como
é apresentado no trecho seguinte:
112 Mikhail BAKHTIN, 2003. 113 Entende-se como romance tradicional, principalmente, as estruturas que obedecem às modalidades literárias
tradicionais, ou seja, monológicas e lineares. 114 GIUDICE, 1985, s/p.
55
Não faça julgamentos precipitados, Cynthia, mas estou começando a divini-
zar nossa experiência conjugal. Ultimamente eu tenho me sentido como aquele pro-
fessor de Matemática da reunião dos Gabone. O tal que ficava com saudade das tor-
turas.
Em certas ocasiões, era tudo tão chato...115
Esses monólogos são partes isoladas da narrativa e quebram a linearidade do texto por
não darem continuidade aos capítulos anteriores e nem apresentarem os posteriores. Não são
demarcados por páginas no texto, enquanto os demais capítulos têm sua numeração crescente,
tal como ocorre tradicionalmente nos livros. Como se fossem pensamentos do narrador, esses
microcapítulos visam refletir sobre sua atual situação e sobre as transformações pelas quais
precisa passar para poder encontrar um espaço naquele novo contexto político sem esposa e
filho.
Ao longo da narrativa, a nova identidade do narrador vai sendo literalmente constru-
ída, sendo Auriflor quem o acolhe após a prisão e o coloca no patamar de revolucionário repu-
blicano. As fases dessa construção identitária são narradas por ele e pelas demais vozes que
compõem a narrativa: a negação de ser um preso político; as marcas da tortura; a vida clandes-
tina; até assumir o papel de responsável por derrubar o poder monárquico. O protagonista en-
contra uma oportunidade de ressignificar sua existência e agora com um propósito maior. No
entanto, os monólogos com Cynthia desmarcaram essa farsa construída ao longo do livro. Seus
comentários expõem o quanto ele é suscetível às circunstâncias, com vista a buscar sua própria
sobrevivência. Desabafar com sua ex-esposa serviu como uma válvula de escape daquela rea-
lidade absurda que lhe foi imposta:
Viu, Cynthia, em que é que deu sua brincadeira de esconde-esconde? Vezirrê
Budru e o Ajudante Máximo estarão de olho em mim até que a Monarquia se estupore.
Auriflor? Por favor. Não Chore. Auriflor será sempre uma incongruência chovendo
fetiches no deserto. Eu já te disse isso? Perdão. Está certo116.
No último capítulo, constituído pela carta de despedida para Cynthia, o narrador revela
o que realmente aconteceu após a queda da monarquia e a morte simbólica de Vezirrê Budru.
O personagem-narrador parafraseia um dos versos da fábula de fundação da Cidade: “Eu tam-
bém conhecia histórias mil que a História esconde”117.
115 GIUDICE, 1985, s/p. 116 GIUDICE, 1985, p. 157. 117 GIUDICE, 1985, p. 328.
56
Ainda que essas passagens sejam primordiais para o entendimento da obra, é no mo-
mento em que nosso herói dá voz aos outros personagens que o texto se engrandece na expres-
são, pois a polifonia se concretiza nos mais diversos gêneros literários. Seguindo a ordem de
manifestação na narrativa, iniciarei essa análise pelo já conhecido monólogo do Número Um,
aquele mesmo fragmento presente em Os banheiros.
O monólogo exterior não é muito comum na literatura porque prevê que haja a pre-
sença de outro que o escute como espectador solitário ou plateia. É muito mais recorrente o
monólogo interior, ou um fluxo de consciência que não necessite diretamente de um ouvinte.
Entretanto, penso que o propósito da narrativa do prisioneiro Número Um era descrever o epi-
sódio de um espetáculo, no qual o personagem-narrador era a única e perfeita plateia para ma-
terializar, pela linguagem, os acontecimentos internos do pierrô e dar um significado a mais
para sua história de vida. Portanto, esse foi o recurso escolhido pelo autor para esclarecer ao
personagem-narrador o caótico funcionamento da Cidade, da monarquia e do circo, além de
apresentar o enigmático pierrô branco e prisioneiro, Número Um.
Desde quando se conheceram na cela quarenta e nove, exatamente no mesmo dia em
que a flor dourada foi roubada, Número Um chamou o personagem-narrador de republicano e
preso político: “Você é um herói republicano com o crânio cheio de merda. É isso. Você é a
escuridão e o fim. E aquele que acreditar em você, ainda vivo, morrerá. Por que é que foi logo
apanhar uma flor dourada?”118 Nesse momento foi iniciada a formação da nova identidade do
suposto herói da Cidade.
O monólogo do palhaço triste acompanhou-o durante toda sua saga, ainda que o pro-
tagonista tenha demorado a assimilar e acreditar em toda aquela história absurda. Da mesma
forma, o acompanharam também os aforismos de Pensées. O narrador deste episódio declamou
todos os dias os pensamentos de Pascal e insistia em perguntar ao herói republicano se já havia
lido os Pensées, como no último diálogo que tiveram antes de iniciarem um silêncio absoluto.
Você se meteu numa gaiola que não era sua, e agora não pode sair porque a
fechadura enferrujou. Hem? Que tal? Não sabe por quê? Nem eu. Mas pensando bem,
acho que está tudo certo. Já leu os Pensées?
Não.
Então leia. Sua ingenuidade seria muito comovente se não fosse o resultado
de tanta cegueira. Não faz mal. Já acreditei na sua história. Agora estamos quites.
Satisfeito? Você nem é capaz de mentir. Ora, vá à...
118 GIUDICE, 1985, p. 34-35.
57
Aquela tarde marcou o início de um silêncio interminável. Nunca mais eu
teria oportunidade de conversar com Número Um, embora ainda fossemos trocar al-
gumas palavras119.
Seu reencontro aconteceu na execução do Número Um, isso quando o personagem-
narrador de Bolero já vivia na clandestinidade. Só nesse momento ele entendeu o real sentido
da história contada pelo velho pierrô:
Só então, compreendi que o Número Um, muito antes, já estava condenado à própria
arte que lhe fora transmitida pelo primeiro pierrô e que ele soubera aprimorar através
da purificação do pensamento, numa cega obediência aos princípios da beleza. E é por
esse motivo que ele nunca foi uma coisa nem outra. Este era o perigo de vida apontado
pelo Pirata. Talvez um dia ele transmitisse tudo a um terceiro pierrô e este até um
quarto, um quinto ou até ao último dos republicanos ativos. Até quando?120
Número Um tornou-se uma referência para o personagem-narrador. Sua narrativa foi
o estopim para a construção do herói que viria a se tornar fora da prisão, assim como “A lenda
dos doze rios”, que também colabora com sua formação e compreensão do processo de transi-
ção de regime da Cidade.
Antes de alguns capítulos, o personagem-narrador expõe ao leitor o gênero, o narrador
e/ou os personagens do próximo episódio. Por exemplo, ao ser convidado a participar de um
jantar na casa de Madame Odhontyna, ele apresenta a anfitriã e esclarece o capítulo como uma
performance teatral, dividida em cenas, cenário, personagens e plateia.
Cena única: A Lenda dos Doze Rios
Sarau noturno na Casa de Alpharraz e Gammedal, Cenário decadentíssimo. Cristais
empoeirados em poeiras cristalizadas. Personagens: Odhontyna e seu sobrinho, La-
dislau de Monchicque, Plateia: espermatomúltipla.121
“A lenda dos doze rios” ou “História da Fundação da Cidade”122 é uma das atrações
do sarau artístico na casa da madame Odhontyna, também conhecida como Condessa de Mon-
chi(c)que, narrada pela própria anfitriã com interrupções irônicas de seu sobrinho Ladislau.
Com uma estrutura semelhante ao fragmento de uma epopeia, o texto inicia com uma breve
narrativa e segue com uma estrutura poético-narrativa, em decassílabos. Assim como os roman-
ces tradicionais que tinham como principal temática as histórias de heróis da realeza e de gran-
des conquistas, o enredo da cena tem como tema as bravas aventuras que levaram o Duque de
Gammedal a fundar a Cidade.
119 GIUDICE, 1985, p. 68. 120 GIUDICE, 1985, p. 304. 121 GIUDICE, 1985, p. 92. 122 GIUDICE, 1985, p. 93-111.
58
Conforme é possível observar no trecho a seguir, “as inoportunas intervenções de seu
sobrinho Ladislau de Monchicque”123 possibilitam que a narrativa incorpore o tom satírico no
épico:
ODHONTYNA:/…/ Logo foi feita enorme cruz maciça, de paus vermelhos
parecendo brasa. E ainda sob um sol de luz mortiça, e como se estivesse em sua casa,
rezou o Duque uma primeira missa.
LADISLAU: Esta primeira foi a que deu asa a essas beatices muito pias…
ODHONTYNA: Isto é sagrado, Ladislau, não rias. Depois da missa construiu-
se a igreja,
LADISLAU: que construiu depois a Monarquia.
ODHONTYNA: E veio a fé, tão forte e benfazeja, que os homens, recebendo
a eucaristia, multiplicaram-se…
LADISLAU: … na própria igreja, nos cantos lúbricos da sacristia.
ODHONTYNA: Não sejas, Ladislau, tão venenoso, ao referir-se a tal passado
honroso124.
As falas críticas de Ladislau não se destinam a convencer a tia dos erros da versão
histórica oficial. Pelo contrário, a estrutura ideológica que a princípio parece opor dois pensa-
mentos, monarquia e república, revela-se como uma estratégia de provocação ao leitor. É inte-
ressante ter em vista que se esse episódio pode ser lido como mais uma das farsas de Bolero,
pois se descobre logo que a porta-voz da versão histórica oficial e defensora ferrenha da pri-
meira, segunda e terceira monarquia é, na verdade, republicana125.
Após passar toda a narrativa em confronto com o sobrinho, Madame Odhontyna revela
ao final o caráter farsesco da tragédia narrada por ela. Atente-se que toda a cena foi uma per-
formance, de tal modo que existe a possibilidade de todas as falas serem programadas, até
mesmo as alfinetadas de Ladislau. A própria Condessa refere-se ao suposto heroísmo do Conde
fundador como uma farsa, assim como outras, necessárias para a história:
ODHONTYNA:
Não roubes do meu verso esta mentira
e as outras que decerto hão de surgir.
Porque só delas é que o Homem tira
as forças do passado e as do porvir.
Se o ser não mente, a mente não se inspira,
pois a verdade só nos leva a rir.
Mentindo empresto aos homens tanta glória,
quão mentirosa é toda a Humana História126.
123 GIUDICE, 1985, p. 93. 124 GIUDICE, 1985, p. 107-8. 125 Cláudia PESSANHA, 2002. 126 GIUDICE, 1985, p. 111.
59
O espetáculo não se restringe somente ao espaço do circo da Cidade. Cada fragmento
da narrativa corresponde a um número desse grande espetáculo que é o romance giudiciano, o
que nos leva às torturantes confissões dos torturados: tragédia em um ato.
A tragédia é um fragmento de uma peça teatral, que possui como tema o papel
do intelectual no regime autoritário e os destinos do país pós-64. Dividido em duas partes, a
peça inicia com a apresentação detalhada dos personagens: os anfitriões, os torturados do clube
e os não torturados. Na sequência, há a descrição que não poupa detalhes sobre o ambiente, os
móveis e a posição social dos anfitriões, para então dar início ao debate:
Cena: Sala em formato de L do apartamento dos Gabone. Móveis escuros e de
bom gosto. Não se notam os exageros barrocos que desmoralizam as salas de uma
certa classe média em ascensão. [...] Terminado o almoço, anfitriões e convidados,
com exceção do porteiro, acomodam-se na extremidade do L que acabo de descrever.
Depois do licor, do charuto de Gabone e das risadas, ele sorri para mim127
As falas são devidamente marcadas e apresentam personagens-tipo, denominados con-
forme sua principal característica ou profissão: o Jornalista, a Jornalista, o Universitário, o Pro-
fessor, o Romancista, o Doutor, a Desquitada, o Porteiro do edifício. Atitude típica, vale notar,
de uma primeira impressão – no caso, a do personagem-narrador, o mais novo integrante do
Clube dos Torturados. Os únicos personagens denominados formalmente são os anfitriões Lé-
tera e Vitral, Auritio e Morgana, sendo a última, desprovida de fala no romance, com uma
participação marcada pelo seu emblemático suicídio. O personagem-narrador, inclusive, que
também é um personagem anônimo, tem sua participação no diálogo marcada por uma forma
pessoal de nomear – “EU”.
Com características peculiares ao roteiro de uma peça teatral, o fragmento não possui
narrador. Todas as informações, além do diálogo entre os personagens, são dadas entre parên-
teses e com fonte cursiva itálica, por exemplo: “(Gargalhada quase geral, devendo-se o quase
a Létera e Morgana)”; (Pausa); “Létera: (Para o Professor.) Mas é tão fácil recuperar tudo
isso. É só você não divinizar o fenômeno. (Morgana não ri.)”128. Por último, há ainda a indica-
ção de “Fim” ao término do episódio.
Marcado pelo dialogismo, o relato permite ao autor mais uma vez transferir o debate
extraliterário para o âmbito da ficção. A presença do personagem Romancista como contesta-
dor, e um pouco implicante, pode ser lida como uma autocrítica de Victor Giudice como escritor
e militante. Nesse sentido, pode levar o leitor a crer que a voz desse personagem equivale à voz
127 GIUDICE, 1985, p. 237. 128 GIUDICE, 1985, 244; 245; 245.
60
do romancista autor. No entanto, não considero a situação dessa forma. Concordo com Cláudia
Pessanha ao explicar que
o personagem Romancista aqui referido, ao contrário do que se poderia ser levado a
pensar, não dá voz ao ponto de vista do autor. De modo diverso do que ocorre até
mesmo em obras que elaboraram de modo artístico o dado documental, como A Festa,
de Ivan Ângelo, o personagem Romancista da tragédia de Victor Giudice atua antes
como opositor das teses que parecem ser sustentadas pelo autor, as quais aparecem
defendidas por uma outra personagem, Létera Gabone, professora de Literatura e an-
fitriã do lauto jantar-cenário. Desse modo, a figura do romancista assume a função de
“advogado do diabo”: ao contestar as teses de Létera, permite que ela possa melhor
defendê-las.129
As teses da professora de literatura Létera são persuasivas e desesperançosas em rela-
ção à sociedade hipócrita e ao sistema político falido. O trecho a seguir possibilita a confirma-
ção de tal ideia:
LÉTERA: (Sem dar ouvidos. Morgana olha para ela.) O processo vem de cima
para baixo. Os poderosos da primeira classe exibem seus slides aos da segunda. Os da
segunda aos da terceira e assim por diante. Até chegar à última, à mais ínfima, que
além de não ter seus próprios pratos de comida, não dispõe de uma classe inferior à
qual possa exibir slides. É justamente a essa classe que estamos dirigindo nossa tortura
milenar.
A JORNALISTA: Ah, mas não é a mesma coisa. Isso é filosófico demais.
LÉTERA: Se é filosófico eu não sei. Mas não é a mesma coisa porque é muito
pior.
O UNIVERSITÁRIO: Sem essa.
O ROMANCISTA: Que tolice. Isto é só mais um dos seus sofismas. Nós, in-
telectuais, sabemos muito bem de todas as...
LÉTERA: Nós, intelectuais, acabamos de devorar as costelas de carneiro de
Vitral, temperadas com ervas aromáticas e cozidas em vinhos importados, apesar da
fome de não sei quantos milhões de famintos.
O UNIVERSITÁRIO: Mas não há filosofia política nenhuma que demonstre...
LÉTERA: Que filosofia política droga nenhuma! A única filosofia de quem é
faminto é a fome. Será que ninguém nota?
(Para o Romancista.)
Será que nem os intelectuais percebem?130
Mais uma vez o fragmento presente em Bolero, agora do gênero dramático, apresenta-
se como componente de uma literatura engajada, tendendo mais para o sentido sociopolítico do
que para a arte. No entanto, conforme foi possível observar no trecho do debate entre Létera e
o Romancista, há um grande apelo ao papel do intelectual enquanto agente público nos movi-
mentos de classe e na luta pela redemocratização.
Pensando na questão de gênero e no enredo da trama, a transgressão da literatura a
partir do rompimento da estrutura tradicional do romance também está representada pela tran-
129 PESSANHA, 2002, 112. 130 GIUDICE, 1985, p. 248.
61
sição do próprio personagem-narrador (de alienado a republicano). As passagens citadas con-
firmam a possibilidade de que a polifonia na narrativa tem por objetivo construir/constituir sua
nova identidade, se é que algum dia houve uma anterior.
O looping político ao qual a Cidade está destinada desde sua fundação enraizou a ali-
enação entre seus cidadãos ao ponto de não perceberem o verdadeiro caos em que estavam
inseridos. Em todas as gerações de monarquia da Cidade existiram os opositores, assim também
ocorreu na República. Isso se dá porque não existe luta sem oposição. A diferença está em quem
quer tomar o poder e de quem parte a resistência. Ou seja, a diferença entre o Golpe e a revo-
lução está no sujeito desses processos. Nesse sentido, a “parábola do jogo de xadrez” na voz do
pirata Pons, um personagem tão enigmático quanto o Número Um, traz uma das principais
reflexões da obra de Giudice.
Ao contar a história da pior de todas as monarquias sob o controle da qual a Cidade já
esteve, Pons explica ao personagem-narrador que inteligência e tirania são qualidades opostas.
Vale notar o caso do líder máximo da Sétima Monarquia, que, por não compreender as regras
do jogo de xadrez, ordenou a execução de treze enxadristas da Cidade, desde um menino de
quatorze anos até um idoso de oitenta e nove anos. Tudo para evitar que frases de ameaças a
reis fossem pronunciadas em seu governo:
Um dia [o rei] cismou que o campeão de xadrez estava contra o regime, só porque o
sujeito teve a infelicidade de dizer que nenhum rei ficaria de pé se um peão atingisse
a sétima casa. [...] Quando o rei da Sétima tomou conhecimento, foi a conta. Achou
que o negócio era com ele...131
No entanto, nas palavras de Pons, “o rei mata os enxadristas mas não mata o xadrez”132.
Consequentemente, ao contrário do que o soberano esperava, a jogatina retornou na surdina
pelo irmão do menino de quatorze anos assassinado. Em seguida, o bispo que havia sido rebai-
xado e seus fiéis estavam jogando; a mulher, a prostituta, o bêbado, o ladrão, o policial, todos
“jogavam até sentir que a liberdade se resumia no prazer de um xeque-mate na estupidez mo-
nárquica”133. E a Cidade inteira se transformou em um grande tabuleiro de xadrez.
Todas as vozes e histórias presentes em Necrológio, Os banheiros e Bolero têm um
único propósito: despertar no seu leitor o poder de pensar, ou seja, de produzir e utilizar sua
principal arma contra os regimes opressores. Portanto, cabe aqui a afirmação de que toda arte é
131 GIUDICE,1985, p.266. 132 GIUDICE,1985, p.265. 133 GIUDICE,1985, p.267.
62
engajada, seja para reafirmar a ordem vigente ou para subvertê-la134. Assim, cada fragmento do
romance acrescenta uma característica importante no caráter do nosso herói durante sua transi-
ção identitária.
Novamente, Victor Giudice utiliza da ficção para problematizar questões sociais, lite-
rárias e filosóficas, tanto na estrutura do romance como em seu conteúdo. Pode soar passional,
e isso é exatamente o que eu almejo no decorrer desta tese. Paixão. A paixão pelo pensamento
que transcende a obra de Giudice nos faz compreender enfim sua obra como um romance de
desfundação. Posto isso, terminada a viagem pelo universo literário giudiciano, a qual visou
apresentar e analisar os mecanismos literários e algumas ideias presentes em sua obra, posso
dar continuidade à próxima etapa.
134 CONCEIÇÃO, 2010.
63
Se eu demorar uns meses
Convém às vezes você sofrer
Mas depois de um ano, eu não vindo
Bota a roupa de domingo e pode me esquecer
(ADELAIDE135, 1974)
135 Devido à canção “Acorda amor” ter sido censurada, na década de 1970, Chico Buarque usou pseudônimos
para burlar a ditadura.
64
3 REGULAMENTO E REI: O PROCESSO DE DESFUNDAÇÃO NACIO-
NAL
A sociedade monárquica de Bolero segue as leis dos dois erres: regulamento e rei. O
personagem Número Um desenvolve uma longa tese sobre como o excesso de regulamentos e
a obediência a esses limitam o desenvolvimento de um indivíduo e, consequentemente, da so-
ciedade uma vez que a desobediência ou qualquer atitude impulsiva pode ser motivo suficiente
para criação de novas regras.
No capítulo anterior, ao considerar essa tese como um manifesto sobre a criação artís-
tica observo que pode ser interessante utilizar essa mesma ideia para entender os caminhos que
percorri para transpor o conceito de romance de fundação à noção de desfundação. Nesse sen-
tido, retorno ao primeiro ano de faculdade e à disciplina de teoria literária. Lembro-me que uma
das primeiras informações que adquiri é de que um texto deve obedecer a certas regras para ser
considerado literário ou não-literário136 bem como para pertencer a um gênero ou outro; desse
modo, no decorrer das leituras e estudos tornara-se possível identificar os traços de desenvol-
vimento pelos quais os gêneros literários passaram ao longo do tempo.
Jacques Derrida em seu ensaio intitulado La ley del género afirma que pode ser limi-
tante submeter um texto apenas às normas de um gênero literário específico137, e que é impos-
sível praticar a lei da pureza. Dito em outras palavras, um texto não precisa pertencer a um
gênero específico, pois nele é possível participar um ou vários gêneros, ou nas palavras do
autor: “todo texto participa de uno o varios géneros, no hay texto sin género, siempre hay género
y géneros, pero esta participación no es jamás una pertenencia”138.
Pode-se também dizer que a própria literatura moderna já não compreendia a ideia de
submissão à distinção dos gêneros e notava-se uma necessidade de romper com os limites. Por
outro lado, todavia, ainda há uma preocupação em classificar o texto literário.
A literatura, segundo Todorov139, é uma instituição viva e por isso fruto de uma se-
quência de transgressões e combinações de diferentes gêneros: um novo gênero surge a partir
do próprio ato de transgressão de modo que a exceção é o que permite reconhecer uma regra
136 TODOROV, 1980, p.22. 137 Jacques DERRIDA, 1980. 138 DERRIDA, 1980, p. 10. 139 TODOROV, 1980.
65
como tal: “para ser exceção a obra pressupõe necessariamente uma regra; mas, além disso,
assim que reconhecida em seu estatuto excepcional, essa obra torna-se, por sua vez, uma regra,
graças ao sucesso de livraria e à atenção dos críticos”140.
Esse foi o caminho percorrido pelos gêneros literários ao longo dos séculos. Por exem-
plo, o romance tal qual o conhecemos hoje é um gênero que surgiu justamente com a burguesia
e com o início do processo de mercantilização da vida141. Ao longo dos séculos XIX e XX
podem-se observar transformações quanto à forma e à temática desse gênero literário, que muito
deve às narrativas orais.
Para Lucien Goldmann142, foi o processo de transformação da realidade social que
tornou necessárias essas transições e transgressões do romance. O autor tem como base a teoria
de György Lukács que, por sua vez, em uma de suas teses, caracteriza o gênero pela presença
de um herói problemático e um mundo degradado. Ou seja, no “novo romance” ocorre a trans-
posição da vida cotidiana para o plano literário de modo que é possível observar por meio da
história e da psicologia do personagem o retrato da sociedade em que o autor estava inserido.
De acordo com Goldmann:
o romance é, necessariamente, biografia e crônica social, ao mesmo tempo; fato so-
bremodo importante, a situação do escritor em relação ao universo que ele criou é, no
romance, diferente da sua situação em relação ao universo de todas as outras formas
literárias143.
Não há motivos para alongar essa questão pois, a partir desse momento, daremos aten-
ção à trajetória do romance de fundação brasileiro e alguns de seus principais autores e obras
literárias. A intenção, além de diminuir o isolamento de Victor Giudice nessa jornada, é também
notar as transformações e transgressões do romance brasileiro. Conforme Haroldo de Cam-
pos144 nos diz, o grande poder inventivo de escritores de diferentes épocas contribuiu para de-
cidir o futuro da literatura brasileira.
A ideia é pensar os romances de desfundação como uma consequência da trajetória da
literatura nacional aliada à história social brasileira, a ponto de conseguir analisar com maior
criticidade a conjuntura sociopolítica do Brasil a partir do livro Bolero.
140 TODOROV, 1980, p. 45. 141 LUKÁCS, 1962 apud Ferenc FEHÉR, 1997. 142 Lucien GOLDMANN, 1976. 143 GOLDMANN.1976, p. 12 144 Haroldo de CAMPOS, 1977.
66
3.1 UMA HISTÓRIA DAS FICÇÕES DE (DES)FUNDAÇÃO NO BRASIL
Tanto os historiadores quanto os filósofos sabem muito bem que o processo de forma-
ção dos estados-nação deve muito à literatura. Nas palavras de Otto Bauer145, aprendemos a
amar a nação quando se torna possível enxergar em suas especificidades a nossa própria natu-
reza, isto é, cada nação possui um conjunto particular de características físicas e mentais que
constitui o seu caráter nacional e possibilita diferenciá-la das outras.
A construção dos projetos de nação ganhou difusão por meio dos intelectuais, como
aconteceu no século XIX nos países latino-americanos. No caso do Brasil, aliados ao naciona-
lismo, os intelectuais românticos teceram as bases do que seria hoje considerada a literatura
brasileira. Dedicados ao projeto de nação, assumiram entre tantos compromissos políticos um
“sentimento de missão” que os levou a “[...] considerar a atividade literária como parte do es-
forço de construção do país livre”146.
A partir do distanciamento do racionalismo iluminista, os intelectuais românticos rom-
peram com os rigorosos padrões clássicos ao exaltar a natureza, os costumes do povo, as tradi-
ções etc. Assim, alguns artistas e intelectuais buscaram inspiração em sua própria realidade na
tentativa de superar os valores tradicionais econômicos e sociais. Nesse sentido, pode-se dizer
que a ideia de nação se constitui por força de um fato histórico, mas deveria constituir-se da
conexão étnica, da língua, da cultura, das raças ou, em outras palavras, um processo natural
resultante de uma evolução histórica. Entretanto, para usar os termos de Benedict Anderson, as
nações são “comunidades imaginadas”147 criadas em contextos históricos específicos e ligadas
a determinados interesses políticos.
De acordo com Antonio Candido, diante do contexto de consolidação do Estado Mo-
nárquico após a separação de Portugal, esse pareceu ser o “caminho favorável à expressão pró-
pria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que permitiam afirmar o
particularismo, e, portanto, a identidade, em oposição à metrópole, identificada com a tradição
clássica”148. A proclamação da independência por Dom Pedro I tornou-se um dos principais
acontecimentos da história do país. Havia, então, um governo que precisava se consolidar e
uma sociedade que necessitava reconhecer-se pertencente a uma nação.
145 Otto BAUER, 2000. 146 CANDIDO, 1971, v.1, p. 26. 147 Benedict ANDERSON, 2008. 148 CANDIDO, 2002, p. 20.
67
Esse processo foi conduzido sem grandes surpresas pela elite do país que, consequen-
temente, favoreceu transformações rasas onde prevaleceu o escravagismo, a monocultura ex-
portadora, o predomínio e crescimento do latifúndio e da educação elitizada.
Diante desse complexo contexto de forte oposição à dependência política, econômica
e cultural oriundas da condição de colônia, a construção da identidade nacional se prolongou
até o período republicano, e quiçá ainda seguimos na busca.
No Segundo Império, com os investimentos nas artes por Dom Pedro II a idealização
do Brasil ganhou impulso e os românticos forneceram à sociedade um ideal nacionalista ade-
quado às necessidades de autovalorização do país. Desenhou-se uma imagem que pretendeu se
afastar da antiga metrópole e possibilitar características originais para as independências cultu-
ral, política e nacional através de um passado que organiza “a origem” da nação. Assim, as
peculiaridades locais como a natureza, os sentimentos e a linguagem desenham um sistema
simbólico que colocou o indígena como foco das artes românticas de ênfase fundacional.
Ainda no Brasil Colônia, a figura indígena apareceu pela primeira vez no período lite-
rário denominado de Arcadismo não como o herói tão nobre tal qual acontece nas representa-
ções românticas, mas como simples elemento nativo. Por exemplo: O Uraguai (1769), de Ba-
sílio da Gama; Caramuru (1781), de Santa Rita Durão.
Em 1836, Gonçalves de Magalhães publicou Suspiros poéticos que, por sua vez, po-
deria ser considerado o precursor do Romantismo brasileiro devido sua contribuição para o
movimento atendendo as causas revolucionárias do período em oposição às formas e temas
clássicos.
No entanto, foi na simplicidade da Canção do exílio (1843), de Gonçalves Dias, que
de fato o nacionalismo e o amor à pátria fizeram-se presentes. O escritor também foi o respon-
sável por trazer pela primeira vez a heroicidade do índio sem honras à estética e aos valores
europeus com o poema I-juca-Pirama, de 1848.
O período romântico brasileiro prosperou na poesia, no teatro e, principalmente, na
prosa, tendo como principal nome o romancista José de Alencar. Antes mesmo de escrever
romances, o escritor já carregava em sua bagagem artigos e crônicas em oposição ao imperador
Dom Pedro II e seus apoiadores. Tendo como público-alvo a casta da burguesia letrada, sempre
publicou em revistas e jornais, incluindo seus textos literários como O guarani (1857) e Ira-
cema (1865). Este segundo romance lhe rendeu fortes críticas sob acusação de cometer excesso
68
de liberdade com a língua portuguesa149, o que mais adiante Mário de Andrade defenderá di-
zendo que significou a primeira tentativa de representar a brasilidade através da linguagem, ou
seja, da língua brasileira150.
Inicialmente, as obras de José de Alencar podem ser consideradas como um projeto de
fundação nacional para depois se tornar um projeto de fundação da literatura nacional. Segundo
Eduardo Coutinho, a literatura nacional ou os romances de fundação tem como princípio con-
tribuir para a grandeza de uma nação recém-formada, desse modo, O Guarani e Iracema são
essenciais para compreender o período que sucede a independência do Brasil151. O escritor
apresentou as diferenças entre os dois povos, nativo e colonizador, e “procurou deslocar o seu
olhar, propondo que se procurasse pensar, ao menos por alguns instantes, segundo a lógica dos
indígenas152”.
Nesse período do Romantismo os escritores buscaram no povo nativo o protagonista
que precisavam para autoafirmar o Brasil diante do colonizador, contudo, o efeito foi quase
insignificante diante da missão europeia de implantar uma civilização branca e cristã no país.
Nas palavras de Eduardo Coutinho,
no afã de delinear o que deveria vir a ser uma literatura própria, esses escritores in-
correram em contradições, que conferiram um toque especial a produção da época:
movimentos estéticos europeus eram importados pela intelligentsia brasileira e trans-
formados significativamente no contacto com a nova terra, mas a visão de mundo que
os havia originado se mantinha muitas vezes quase inalterada, ocasionando, no dis-
curso literário, dissonâncias insolúveis. Afirmavam-se valores locais com um olhar
internalizado da Europa e defendia-se a construção de uma nova tradição, que tinha
como referencial a antiga matriz.153
Esta contradição está exposta no próprio indianismo, a vertente mais expressiva do
Romantismo no Brasil que, por sua vez, também teve origem na Europa, todavia com foco nos
cavaleiros medievais. Seja lá ou cá, é inegável a importância histórica das obras de cunho fun-
dacional, por isso a consequente inclusão e permanência de leituras obrigatórias escolares
“como fonte de história local e de orgulho literário”154.
As ficções de fundação não são nenhuma novidade nos estudos literários, tendo em
vista que a temática do nacional está presente na história literária brasileira desde antes de sua
149 Outros escritores também foram alvos de críticas por subverter a língua portuguesa, como Feliciano de Casti-
lho (1800 - 1875) e Franklin Távora (1842 - 1888). 150 Mário de ANDRADE, 1942. 151 COUTINHO, 2002. 152 Éder SILVEIRA, 2007, p. 147. 153 COUTINHO, 2002, p.55-6. 154 SOMMER, 2004, p. 18.
69
formação. A literatura como tradição documental foi consolidada no Brasil junto à literatura do
colonizador a qual, através de relatórios históricos e geográficos, contribuiu para escrever a
história pós-invasão portuguesa e para obstruir a que já existia nessas terras. Além disso, em
outros momentos, a presença do nacional no gênero romance foi fundamental tanto para a lite-
ratura como para a história.
Na primeira metade do século XX, com a crise da República Velha, o Brasil enfrentou
problemas não só econômicos, mas também sociais, políticos, ideológicos e culturais. Se na
pós-independência houve uma preocupação e mobilização dos intelectuais com a construção de
identidade da nação que estava se formando, no Modernismo esta questão voltou a ser o centro
dos debates culturais. Inclusive, o historiador Éder Silveira sugere que, devido às interpretações
de cultura brasileira propostas por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, o movimento mo-
dernista poderia ser chamado de neorromantismo.
Porém, o primeiro diferencia-se por se apropriar de aspectos de várias correntes da
vanguarda europeia155 acrescentando um filtro crítico e paródico do movimento romântico.
Pode-se até dizer que o Modernismo teve seu impulso inicial importado da Europa, mas com o
decorrer do tempo os desdobramentos internos acabaram por destruir ou, ao menos, minimizar
esse primeiro ímpeto.
A Semana de Arte Moderna de São Paulo, realizada em fevereiro de 1922, e posteri-
ormente a Exposição Geral de Belas Artes em 1931, no Rio de Janeiro, também conhecida
como Salão Revolucionário, foram os marcos do movimento. Os dois eventos reuniram tanto
intelectuais quanto artistas que, esgotados da dependência econômica e cultural a qual o país
estava atrelado, procuraram rever os critérios estéticos e de brasilidade presentes na literatura e
em outras artes. Vale salientar que nesse momento o Brasil já apresentava uma imagem de
nação e um cânone constituído.
Não cabe a mim desenvolver longas análises e críticas ao movimento modernista, pois
outros mais autorizados já o fizeram. Porém, faz-se importante relembrar o seu contexto histó-
rico e literário bem como as questões relacionadas à identidade nacional. Em dezembro de 1917,
a pintora Anita Malfatti participou de uma exposição em São Paulo que chocou o público pre-
sente: ainda que não tenha sido intencional o espanto causado por suas ousadas pinceladas ex-
pressionistas e cubistas foi o pontapé para que em cinco anos se realizasse a Semana de Arte
Moderna.
155 ANDRADE, 1974.
70
Segundo Mário de Andrade, a inteligência brasileira passou a exigir uma expressão
artística que manifestasse a identidade nacional. O escritor também ressalta em sua palestra O
movimento modernista, proferida em 1942, que no âmbito literário e extraliterário o romantismo
foi “absolutamente necessário” devido seu “espírito revolucionário”. Em suas palavras,
Este espírito preparou o estado revolucionário de que resultou a independência polí-
tica, e teve como padrão bem briguento a primeira tentativa de língua brasileira. O
espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou o es-
tado revolucionário de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a se-
gunda tentativa de nacionalização da linguagem156.
Mário de Andrade entende que muitas das conquistas alcançadas no Modernismo só
foram possíveis por efeito do que os românticos iniciaram, principalmente no que diz respeito
às questões de brasilidade e identidade através da linguagem. De acordo com Eduardo Couti-
nho, esse movimento fez
uma leitura crítica da própria tradição brasileira, máxime do período romântico, mo-
mento crucial de afirmação da nacionalidade. Desse processo arguto e minucioso, re-
presentado pela própria imagem central do movimento, a da antropofagia, resultou
um discurso literário ao mesmo tempo afirmativo e crítico, que, embora ainda preo-
cupado com uma perspectiva ontológica de construção da “brasilidade”, substituiu a
naiveté romântica por tintas fortemente paródicas157.
Há nessa citação a referência ao Manifesto antropófago158, de Oswald de Andrade, que
foi esclarecedor durante o processo de revisão pelo qual a arte brasileira transitava. Segundo o
próprio Oswald, o manifesto foi um divisor de águas político do Modernismo brasileiro. Com
a fórmula paródica “Tupy or not tupy” abrindo seu texto, o escritor buscou na figura do índio
antropófago o mito de origem que precisava para “re-escrever a história da nacionalidade bra-
sileira como uma outra civilização, que cada vez mais precisava demarcar sua independência
com relação à Europa159”. Essa preocupação em consolidar a independência acompanhava os
literatos desde o Romantismo conforme observamos anteriormente, mas aqui ganhou uma ver-
são mais “agressiva e barulhenta”160.
Publicado em 1928, ainda nos efervescentes primeiros anos do movimento modernista
brasileiro a antropofagia foi como um ápice ideológico, uma aproximação com a realidade po-
lítica que orientou escritores, intelectuais e artistas para o futuro. Quase duas décadas após a
156 ANDRADE, 1974, p. 66. 157 COUTINHO, 2002, p. 58. 158 Oswald de ANDRADE, 1928. 159 SILVEIRA, 2007, p. 194. 160 SILVEIRA, 2007, p. 194.
71
publicação do Manifesto, em uma conferência na capital mineira intitulada O caminho percor-
rido, Oswald de Andrade afirmou que naquele momento se fazia necessário “ocupar nosso lugar
na história contemporânea. Num mundo que se dividiu em um combate só, não há lugar para
neutros ou anfíbios. [...] O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como guerreiro
da primeira linha”161.
Em 1944, já se havia vivenciado a Primeira Guerra Mundial e, às vésperas de finalizar
a Segunda, o movimento modernista seguia com força e tornava-se ainda mais necessário ao
Brasil reafirmar-se enquanto nação democrática. De acordo com Mário de Andrade, “o espírito
modernista reconheceu que vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso
instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade162”.
Dentre as grandes obras publicadas durante o movimento é importante destacar, a fim
de compreender as fases das ficções de fundação no Brasil, a obra de estética renovadora Ma-
cunaíma, publicada em 1928. Nela, o escritor Mário de Andrade buscou idealizar a síntese da
nação por meio de uma mescla de mitos, lendas e tradições populares de todo o país a partir do
relato sobre a vida de um herói/anti-herói que representa as três principais etnias do brasileiro:
negro, indígena e europeu.
Outro romance essencial chama-se Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, pu-
blicado quase trinta anos depois de Macunaíma. Desde então, não há mais lugar para a busca
por uma identidade nacional em termos ontológicos como as propostas anteriores sugeriram,
mas através da pluralidade de significação e da construção linguística múltipla e mutável163.
Diante dos contextos históricos e literários apresentados nota-se que as ficções de fun-
dação são uma constante no cânone brasileiro. Porém, não é simples definir um único conceito
tendo em vista que a “literatura nacional”164 possui múltiplas particularidades e objetivos que
variam de acordo com o período sócio-histórico da obra. De acordo com Eduardo Coutinho, “a
‘literatura nacional’ não será nunca um conceito homogêneo, mas, ao contrário, uma construção
em aberto, com amplas e diversas facetas, e que variará de acordo com as necessidades de
afirmação e autodefinição de cada momento”165.
161 ANDRADE, 1991, p. 100. 162 ANDRADE, 1974, p. 51. 163 COUTINHO, 2002. 164 Utilizei o termo “literatura nacional” para se referir à literatura com temáticas afins ao nacional e ao conceito
de nação, conforme propõe Eduardo F. Coutinho. 165 COUTINHO, 2002, s/p.
72
O espaço ocupado por temáticas como memória ou expressão social nacional possibi-
lita construir representações de uma realidade e do pensamento social. Em um dado momento
observa-se a inserção do indígena como parte formadora do Brasil e da ideia de nação. No
entanto, o branco colonizador, por necessitar, segundo os parâmetros da época, ser a “raça alfa”,
não estabelece uma relação de igualdade com o indígena na sociedade tampouco na literatura.
Em outro momento, surge o mito da democracia racial mascarado pela ideia de miscigenação
entre as raças formadoras do povo brasileiro: branco, negro e indígena. Em seguida, as carac-
terísticas culturais e linguísticas de cada região do país foram exaltadas na literatura como uma
reafirmação da diversidade e grandiosidade nacional e descentralização cultural.
Ainda que os movimentos artísticos sejam independentes e suas manifestações se
deem por diferentes motivações não é possível desvinculá-los dos principais acontecimentos
políticos que os anteciparam ou que lhes foram concomitantes. Nesse sentido, a política nacio-
nal serve também como alavanca para a literatura abordar questões de identidade e crítica, con-
sequentemente, passa a participar como colaboradora ativa da historiografia e enquanto forma-
dora de opinião entre os leitores.
Faz-se necessário entender que a literatura não se resume ou se define por replicar a
realidade, mas a importância de sua participação na formação da sociedade e na escrita da his-
tória é inegável. Se a sociedade brasileira como um todo foi palco de conflitos violentos e crises
políticas em diversos momentos desde a chegada de Portugal em 1500 ou, se preferirem, desde
1822 com a Proclamação da Independência, por que haveria de ser diferente no campo das
artes?
As ficções de fundação trazem muitas marcas de seu tempo, isto devido às obras do
gênero romance serem frutos de momentos de crise política nacional em que se fez necessária
a autoafirmação enquanto nação e sociedade. Essa ocorrência aparece principalmente nas tran-
sições e consolidações de regimes como independência nacional, proclamação da república,
ditaduras, golpes militares e parlamentares, redemocratização etc.
Com base nisso, pode-se afirmar que a permanência ou até mesmo a insistência166 das
temáticas do nacional e principalmente das ficções de fundação indicam que expressões discur-
sivas e ideologias influenciaram e ainda são presentes em muitas das formas de construção e
afirmação da identidade brasileira.
166 Doris Sommer e Flora Sussekind afirmam que os escritores insistem na temática do nacional e que isso pode
vir a ser um problema no desenvolvimento e crescimento estético da literatura. Mais adiante será possível se apro-
fundar e discutir essa problemática do nacional como tema literário constante.
73
Não é à toa que muitas obras do passado longínquo ou recente brasileiro se fazem tão
contemporâneas. O filósofo Giorgio Agamben nos convida a ter uma compreensão ampla do
conceito de contemporaneidade, que pode ser “voltar a um presente em que jamais estive-
mos167”. Ou seja, o autor propõe uma descontinuidade do próprio tempo de modo a fixar o olhar
na sombra do presente e nele entrever outras temporalidades. Assim sendo, o contemporâneo
pode ser a relação que o sujeito estabelece com seu próprio tempo (ou com qualquer outro
tempo) bem como com a origem (o passado), e que consiga questioná-la sobre suas consequên-
cias. Entender a literatura como um reflexo de sua sociedade exige que constantemente se faça
o exercício de retornar às origens para compreender processos recentes.
Essas ideias nos reportam aos estudos desenvolvidos por Doris Sommer fundamenta-
dos em seu livro Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina, o qual reitera
a concepção de que a literatura tem a capacidade de intervir na história e contribuir com sua
construção. Ao condicionar os aspectos fundacionais de um romance no fato de um dia lhe ser
atribuído a obrigatoriedade de leitura nas escolas de seus respectivos países, a autora também
assume nesse contexto a função da literatura como mecanismo historiográfico, pois a partir da
sua leitura podem-se obter informações sobre a história, os hábitos e os sentimentos que preva-
leciam em uma determinada época e que se modificaram de acordo com os acontecimentos
sociais e políticos nacionais.
Além disso, a autora contesta a questão de as obras de cunho histórico e político terem
outros interesses subentendidos além do artístico e da crítica social transcendente. Prossegue
dizendo que haviam os escritores que pareciam estar mais integrados às lutas partidárias e aque-
les que não desejavam ser uma liderança política, que “escreviam a partir de uma posição ‘na-
tivista’ ou reformista, a fim de fazer mudar a opinião sobre, digamos, relações de raça ou polí-
tica econômica”168.
No século XX há exemplos de escritores que, concomitantes à vida literária, também
exerceram importantes papéis na política nacional:
em 1948, o romancista Rómulo Gallegos se tornou o primeiro presidente livremente
eleito na Venezuela; em 1962, o romancista e contista Juan Bosch teve vitória esma-
gadora na República Dominicana [...]; e, em 1990, Maria Vargas Llosa quase venceu
a campanha pela presidência do Peru169.
167 Giorgio AGAMBEN, 2009, p. 70. 168 SOMMER, 2004, p. 19. 169 SOMMER, 2004, p. 20.
74
Sobre o Brasil170, Doris Sommer limita-se a discorrer a respeito da vida literária e po-
lítica de José de Alencar. Paralelamente à sua carreira de escritor, o precursor do romance fun-
dacional no país ocupou diferentes cargos políticos durante o Segundo Reinado: deputado geral
pelo Ceará e ministro da justiça171. Vale destacar que há muita discórdia sobre os seus posicio-
namentos políticos; enquanto uns creem que seja progressista e liberal, outros consideram-no
um conservador liberal.
Os comentários da pesquisadora a respeito de Alencar apontam o clima de conciliação
entre conservadores e liberais no governo, seu posicionamento sobre a escravização e a repre-
sentação dos negros na literatura. Em suas palavras, “o escravocrata brasileiro José de Alencar
certamente tentava escrever sobre os negros também quando escrevia sobre os índios conveni-
entemente submissos”172. De fato, é indiscutível a predominância dos povos indígenas como
representante da cor da terra nas obras alencarianas, bem como a supremacia dos brancos e a
omissão dos negros no processo de construção da nação brasileira.
Presente nas peças de teatro do autor, o negro resumia-se ao estereótipo de inferiori-
dade, característica ainda constante na literatura e sociedade contemporâneas, como serviçais e
subalternos, sendo a morte a conclusão eminente das histórias de Alencar. Os protagonistas
negros de Alencar têm o mesmo fim trágico de Iracema e certa semelhança com a história de
Peri, de O guarani. Na peça Mãe, tem-se uma mulher negra que tira a própria vida para que o
filho mestiço (mulato), representante da união das raças, não conviva com o obstáculo de ter
familiares negros vivos e, assim, tenha oportunidades melhores que a dela. E, em O demônio
familiar, o negro escravo recebe a alforria e é mandado embora da casa pelo senhor branco
ofendido enquanto Peri, também escravo, é mandado embora na companhia da filha do senhor
português; este, por sua vez, na sequência da trama comete suicídio. Segundo Doris Sommer,
“o suicídio do aristocrata pode não ser uma expressão de ‘inferioridade’ racial, como é em Mãe,
porém o suicídio faz dele um obstáculo para seu próprio projeto colonizador”173.
170 Para além dos citados pela autora, muitos escritores brasileiros do século XX participaram ativamente da vida
partidária nacional e alguns fizeram ou tentaram carreira política. Por exemplo: Oswald de Andrade foi candidato
à deputado federal em 1950, pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT), mas antes foi militante, de 1931 até
1945, no Partido Comunista Brasileiro (PCB); Graciliano Ramos também foi ativo na militância do PCB, ao qual
se filiou formalmente em 1945; Jorge Amado foi deputado federal mais bem votado de São Paulo, também pelo
Partido Comunista, em 1945; por fim, o próprio Victor Giudice não era apenas um crítico ferrenho da sociedade e
política brasileira: o escritor foi filiado ao PDT durante muitos anos.
171 José de Alencar foi por muitos anos filiado ao Partido Conservador, pelo qual foi eleito várias vezes ao cargo
de deputado geral do Ceará. 172 SOMMER, 2004, p. 37. 173 SOMMER, 2004, p. 185.
75
Para finalizar essa questão, retomo as palavras de Nelson Werneck Sodré sobre a di-
ferença do tratamento dado aos negros e aos indígenas na literatura nacional do século XIX:
Trata-se, no fundo, do conceito que se esmerava em ver no índio o homem bom por
natureza, bom por origem, dotado da bondade natural que tanto seduziu os Enciclo-
pedistas. Em contraposição, o negro seria ruim, ruim por natureza, ruim por origem,
dotado de ruindade natural, tema que tanto seduziu a ideologia do colonialismo174.
Como visto, os indígenas foram os primeiros protagonistas dos romances de fundação
do século XIX juntamente com o colonizador. Sommer analisa variados romances latino-ame-
ricanos de grande repercussão no século XIX175 a fim de chegar a um consenso: todos eles, uma
vez que são frutos dos processos de independência nacional e, devido a isso, têm como objetivo
concretizar uma ideia de nação apoiando-se em um enredo de amor erótico. Na perspectiva da
pesquisadora, os romances reforçam respectivamente dois sentimentos: o de amor à pátria e o
de amor (apaixonado) heterossexual.
Ainda que seu foco seja os romances do século XIX, ela menciona brevemente alguns
exemplos de escritores e romances do século XX acusando-os de, apesar de negarem as ficções
de fundações, repetirem em suas obras os mesmos moldes adotados por seus antecessores. No
entanto, acredito que nesse ponto haja uma problemática que reduz a potência das ficções do
século XX a moldes pré-estabelecidos, e também falta especificidade ao generalizar o negaci-
onismo sobre os românticos.
O conjunto de questões levantado pela autora sobre os romances do século XIX con-
trastado com os do século XX, conforme examinarei mais adiante, leva-me a questionar as
transformações do próprio gênero romance bem como a (s) ideia (s) de nação preeminente nos
períodos para, então, aprofundar-me na noção de desfundação.
Sigo a mesma premissa de que não existe um gênero literário puro176 para explicar
essa relação. Ao entender que todo gênero compreende um ou mais gêneros, e que isso é con-
sequência de um longo processo de transgressões e subversões, penso que a evolução do ro-
mance somada ao contexto histórico possibilita a subversão dos romances de fundação. Em
outras palavras, as “desobediências” aos moldes das ficções de fundação deram margem à lei-
tura das ficções de desfundação. Não são conceitos antagônicos; pelo contrário, fundação e
desfundação são complementares.
174 Nelson Werneck SODRÉ, 1995, p. 157. 175 Os romances analisados por Dóris Sommer são Facundo e Amalia (Argentina), Sab (Cuba), Martín Rivas
(Chile), El Zarco (México), O Guarani e Iracema (Brasil). 176 DERRIDA, 1980; TODOROV, 1980.
76
As ficções de fundação se apresentam como uma consequência social em que a cons-
trução de uma história, de uma sociedade e de uma identidade nacional faz-se necessária. Dessa
mesma forma deve-se considerar a ficção de desfundação, mas, em contrapartida, essa última é
vista como um efeito das expectativas criadas pelas primeiras.
Para compreender a sutileza das similaridades e distinções entre ambas, primeiramente
é necessário ter consciência de que o Brasil é um país em constante construção por consequên-
cia dos prejuízos causados pelos governos autoritários e pelas transições e consolidações de-
mocráticas fracassadas. Portanto, a ficção de desfundação não significa a desconstrução de uma
identidade nacional, muito menos prevê uma nova. Sua singularidade reside no desenraiza-
mento de concepções sobre o país e seus cidadãos sem o caráter utópico tão comum nas litera-
turas nacionais. Dito em outras palavras, o leitor deve encarar uma identidade política e social
sem idealizar um passado, um presente e um futuro.
As histórias de amor, segundo Doris Sommer, são utilizadas pelos romancistas do sé-
culo XIX como estratégia na construção da sociedade, ou seja, como forma de dar um padrão
social ao novo mundo:
a paixão romântica [...] forneceu uma retórica para os projetos hegemônicos, no sen-
tido gramsciano de conquistar o adversário através do interesse mútuo, ou do “amor”,
ao invés da coerção. [...] E mesmo quando terminam com um casamento satisfatório,
o fim do desejo para além do qual as narrativas se recusam a ir, a felicidade projeta a
realização do crescimento e da consolidação nacional, um objetivo que passa a ser
visível177.
A presença dessas histórias e, principalmente, a felicidade do casal correspondem ao
êxito no processo de consolidação da nação. Então, conforme a leitura de Dóris Sommer, pode-
se justificar o fato de os romances de fundação serem uma constante na literatura brasileira
devido às representações de relações românticas nem sempre gozarem de finais felizes:
Os exemplos clássicos na América Latina são quase inevitavelmente histórias de
amantes perseguidos pela desgraça representando determinadas regiões, raças, parti-
dos, interesses econômicos e outros. A paixão deles pela união conjugal e sexual
chega até um público sentimental na esperança de conquistar as mentes partidárias
juntamente com seus corações178.
Dóris Summer elege Iracema e O Guarani de José de Alencar para sua análise sobre
os romances de fundação, pois são os mais populares no que diz respeito à construção da iden-
tidade nacional. Além da presença dos povos indígenas como figura nacional, a autora frisa nos
romances a relação das histórias de amor e o processo de consolidação política. De igual modo,
177 SOMMER, 2004, p. 20- 21. 178 SOMMER, 2004, p. 20.
77
seguirei com os mesmos exemplos, do século XIX, e trarei outros do século XX, destacando
algumas questões pertinentes para a análise.
Em Iracema, uma indígena tabajara homônima ao título do romance apaixona-se pelo
conquistador europeu Martim, o qual a chama de “minha esposa”, como se isso legitimasse a
relação matrimonial dos dois. Ainda assim, ele a abandona grávida. Iracema dá à luz um filho,
Moacir, que significa “filho da dor”. O guarani é protagonizado por Peri, um nobre indígena
brasileiro, e por Cecília, também conhecida como Ceci, uma bela moça que descendia de euro-
peus.
Enquanto no primeiro romance tem-se uma mulher indígena que se apaixona por um
homem branco, no segundo um homem indígena se apaixona por uma mulher branca. Peri era
a exceção entre os seus porque, apesar de escravo, possuía características dignas de respeito
entre os seus senhores. Do ponto de vista do narrador, seria como uma figura nobre, um cava-
lheiro de cor que se sacrifica para satisfazer os caprichos da mulher branca, como certa vez em
que a jovem lhe pede para descer em um penhasco cheio de serpentes a fim de resgatar seu
lenço perdido.
Iracema, uma mulher livre morre ao dar à luz, mas o elemento indígena permanece em
seu filho. Metade indígena e metade branco, Moacir deixa o espaço selvagem para ser criado e
educado por seu pai português. Por outro lado, Peri, apesar de falar e agir como branco, é um
indígena e mantém-se vivo até o final da narrativa. A aparente igualdade entre os brancos do-
minantes e os indígenas subalternos em O guarani “somente é possível porque Peri escolhe se
embranquecer. Um traidor de sua própria tribo, como Iracema”179, que larga tudo para viver
com um branco.
Diferente de outros escritores que simbolicamente exterminaram os indígenas por
completo da história através de sua representação literária, José Alencar mantém vestígios da-
queles que primeiro estiveram aqui. De acordo com Doris Sommer, devido à situação política
da época pedir certa conciliação entre aqueles passíveis de formar a sociedade brasileira, “Mar-
tius180 e Alencar são forçados a concluir que o elemento indígena fora nobre, generoso, poético,
até mesmo tecnicamente avançado”. Desse modo, o projeto de nação resumiu apenas em duas
raças os responsáveis pela formação do brasileiro. E se esse posicionamento fosse diferente, o
179 SOMMER, 2004, p. 190. 180 Doris Sommer está se referindo a Karl Friedrich Philipp von Martius, o naturalista alemão que venceu o con-
curso de ensaios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1843.
78
brasileiro estaria desde sempre condicionado a um grau de inferioridade em relação ao europeu
por não o conter em seu gene identitário.
Dentro da alegoria política, esses casos de amor entre o colonizador e o indígena re-
presentam a consolidação do processo de transição política e, consequentemente, a fundação da
nação. Em síntese, o final feliz de Iracema representado pelo nascimento de seu filho e seu
retorno à natureza através de sua morte e metamorfose em árvore, bem como o laço estabelecido
com o europeu diz respeito ao futuro auspicioso do povo brasileiro. Já a união gratificante do
casal de O guarani representa, em uma primeira leitura, também a união dos povos tendo em
vista a ambientação da narrativa em um passado distante.
Porém, a obra permite outra leitura que a traz para uma realidade mais específica e
contemporânea à época de escrita de José de Alencar. Doris Sommer lê a união de Peri e Ceci
como o equilíbrio da conciliação entre liberais e conservadores que, por sua vez, garantiu ao
Brasil uma aparente política autônoma e estável. Nas palavras da autora:
Peri é a metade da equação equilibrada que ele forma com Ceci. Ela primeiramente o
acompanhou porque estava seguindo as ordens de seu pai, assim como os conserva-
dores foram reconciliados com os liberais, seguindo as ordens de Dom Pedro. Porém,
no final é o amor que a une ao índio181.
Anos após a publicação de O guarani, José de Alencar transpareceu sua insatisfação
com o governo de Dom Pedro II, provavelmente por ter perdido a nomeação de senador na
época. O fato é que o ritmo lento e indeciso do governo lhe causou incômodo, bem como a
imposição de aliança entre partidos opostos. Apesar de o governo de conciliação não ter funci-
onado tal qual o esperado, ainda assim, os “casamentos políticos e culturais” realizados por
Dom Pedro oportunizaram conquistas promissoras para o Brasil. Nas palavras de Doris Som-
mer, “talvez a conciliação nunca tivesse dado certo, ou talvez fosse apenas um caso de amor
passageiro. Contudo, o caso de amor deu frutos assim como aconteceu com Iracema e Mar-
tim”182.
A harmonia esperada pelas relações estabelecidas nos romances de fundação não está
no fato de serem satisfatórias ou não. Afinal, os casos de amor romântico representados desem-
penham um papel importante na história e possibilitam duas leituras: uma sobre a construção
da identidade nacional; e uma segunda, sobre projetos idealizados do futuro do país, como se
percebe claramente em O guarani.
181 SOMMER, 2004, p. 197. 182 SOMMER, 2004, p.200.
79
Quando consideramos os laços de afetividade entre o casal protagonista, Peri e Ceci,
como uma alegoria da real situação política brasileira, podemos observar outra questão sobre a
noção de desfundação: as transições de regime não consolidadas contribuem com a recorrência
da temática do nacional na literatura brasileira.
Ao refletir por essa perspectiva, é possível constatar que há uma mudança progressiva
nas relações amorosas dos romances de fundação bem como nos projetos de nação do século
XIX para o século XX. Do ponto de vista de Sommer, “assim como os índios deste [Alencar],
a versão modernista abria-se para os europeus, mas agora principalmente com a boca”, diz a
autora referindo-se ao canibalismo proposto no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade
e às novas formas de retratar a brasilidade.
Apesar dos escritores do século XIX como José de Alencar, Machado de Assis etc.
empenharem-se em fazer uma literatura totalmente brasileira, não é possível negar que os mo-
delos literários eram importados do hemisfério Norte. Esse mesmo empenho retornou com força
logo no início do século XX, quando se verificou um ímpeto dos artistas e escritores em olhar
para outros lugares além dos centros europeus, da efervescente Rio de Janeiro e da caótica São
Paulo, as principais referências culturais, políticas e econômicas da época.
Mais uma vez a literatura recorreu à natureza para construir uma nova (ou melhor, uma
autêntica) perspectiva sobre o Brasil e, consoante a isso, para a literatura nacional. Porém, dessa
vez, diferente do século XIX, a literatura estava aliada à crescente industrialização do país e
suas consequências sociais.
Em 1920, o mundo acabara de ter uma de suas experiências de guerra mais traumáticas,
a I Guerra Mundial. O Brasil também sofrera consequências internas e externas, pois se encon-
trava em plena crise da República Velha e às vésperas do Golpe de 30, momentos cruciais para
a nossa história. Comentei anteriormente a importância desse momento para o contexto artístico
brasileiro, vide a Semana de Arte Moderna em 1922 e sua repercussão nos anos posteriores.
Mário de Andrade foi um dos nomes que mencionei como destaque desse período com
a obra Macunaíma, publicada em 1928. A trajetória do protagonista no romance faz com que o
leitor viaje pelos contrastes do país: da floresta até o centro industrial. Além disso, o escritor
utiliza da rapsódia como mecanismo para mostrar todo seu conhecimento de cultura brasileira:
são lendas, mitos, tradições, comidas, crenças etc. que desenham um Brasil diverso, multicul-
tural e proporcionalmente desigual.
80
Nascido na floresta amazônica, o protagonista Macunaíma é herói e anti-herói como o
próprio título propõe: é um “herói sem nenhum caráter”. Ele possui características que o fazem
nem melhor nem pior que outra personagem; ou se levarmos para o nível extraliterário, que
outra pessoa.
Os heróis e heroínas dos romances de fundação precisam passar por inúmeras situações
conflituosas para ao final ascender à natureza seja através do amor, da justiça, do fracasso, da
autocrítica ou do suicídio. Esses romances pressupõem a existência de uma harmonia no texto
para que, então, a alegoria estabelecida com a história nacional seja a consolidação do projeto
político em questão. Em outras palavras, por meio da alegoria de uma sociedade ainda em for-
mação com identidades plurais183,os romances almejam alcançar o projeto nacional de tornar o
brasileiro um cidadão consciente e partícipe da construção da nação184.
Nesse sentido, Mário de Andrade atribui ao personagem múltiplas características que
não o enaltecem, mas colocam-no o mais próximo possível de um cidadão brasileiro comum:
uma mistura de malandragem, egoísmo, vingança e, ao mesmo tempo, inocência. Suas escolhas
no decorrer da narrativa surpreendem o leitor por ir na contramão do esperado de um herói
nacional, principalmente o gosto pela vida fácil e prazerosa.
No que diz respeito ao ponto-chave da questão dos romances de fundação, o amor
romântico por vezes não parece ser o forte do personagem. Macunaíma se envolve com inúme-
ras mulheres. Nesse caso, a relação amorosa do personagem, nos termos de Doris Sommer, não
é satisfatória, pois não há um relacionamento promissor. Nesse momento, poder-se-ia dizer que
Macunaíma possibilita a leitura como um romance de desfundação, pois admite o Brasil e o
brasileiro tais quais são sem impor expectativas, aceitando e lidando com suas derrotas.
Por outro lado, ao final da narrativa, Macunaíma reconcilia-se com o seu interior e
exterior, ou seja, com a natureza e suas origens — assim como Iracema; e ascende aos céus
encontrando o júbilo final. É através da desilusão amorosa que o personagem transforma-se
postumamente na constelação Ursa Maior185 para passar a eternidade ao lado de Ci, sua amada,
que outrora virara uma estrela após a morte do filho. Portanto, sua metamorfose representa a
183 Cabe ressaltar que a alegoria da formação do brasileiro faz-se por Macunaíma juntamente com seus dois irmãos:
Maanape e Jiguê. As representações, portanto, do europeu na transformação de Macunaíma, do africano na pele
de Jiguê, o irmão feiticeiro, e de Maanape, o irmão que nasce e morre índio. 184 Maria Veloso SANTOS, 1999. 185 Constelação do hemisfério celestial Norte formada por inúmeras estrelas.
81
possibilidade de melhora do personagem (ou do brasileiro), e também a harmonia que o texto
precisa para que a alegoria política proposta na obra seja satisfatória ou que anseie por isso.
Daremos agora um salto temporal de 1928 para 1956, ano de publicação do romance
Grande sertão: veredas. Outro ótimo exemplo de ficção de fundação, o romance de Guimarães
Rosa destoa de Macunaíma mas nem tanto pois, ao que tudo indica, o Brasil ainda não havia
constituído uma política emancipatória nem o sentimento de comunidade186. Por consequência,
o nacional persiste como temática recorrente nas obras literárias do período. Claro que, por
questões de contexto político e social, tanto o conceito de nação como o de formação nacional
têm significados distintos daqueles de meio e até mesmo de um século atrás.
O romance de Guimarães Rosa destaca-se por ser uma proposta diferente, mas que
segue a linha das produções anteriores do autor, principalmente Sagarana, de 1946. As obras
ambientadas no sertão brasileiro possivelmente são frutos de imersões que o escritor teve du-
rante viagens ao sertão mineiro em 1952, e do período em que atuou como médico também em
Minas Gerais, em 1945. A própria estrutura da obra denuncia a importância dessa marcação
regional. Por exemplo, o tratamento da linguagem sertaneja característica de uma narrativa oral
contrasta com o modelo tradicional de escrita literária, bem como o modelo de romance de
formação erudito. Ainda que dialogue com a proposta defendida por Mário de Andrade de uma
língua brasileira, Rosa propõe uma pluralidade linguística e semântica.
O enredo coloca em cena problemas cruciais da história do país desde o período do
desenvolvimentismo getulista até a eleição de Juscelino Kubitschek, ou seja, vai do Golpe de
30, passa pelo Estado Novo e chega até a República Nova. O desejo de integração da sociedade
brasileira em termos econômicos e sociais faz contraste com a modernização capitalista traba-
lhando intensamente na segunda metade do século XX. Nesse sentido, Grande sertão: veredas
ao ser lido como um romance de fundação contextualiza um processo de transição e consolida-
ção de um projeto mal encaminhado e pouco desenvolvido. Segundo Danielle Corpas, os estu-
dos de Heloísa Starling a respeito da obra indicam que
a formação da esfera política na república brasileira é descrita como uma sucessão de
tentativas malogradas de consolidação de um todo dotado de organicidade, tentativas
alegorizadas pelas atuações dos sucessivos chefes jagunços (Medeiros Vaz, Joca Ra-
miro, Zé Bebelo e o próprio Riobaldo)187.
186 Heloísa STARLING, 1999. 187 Danielle CORPAS, 2008, p. 266.
82
A conjuntura organizacional do sertão aliada ao sofrido drama amoroso de Riobaldo
acabam por caracterizá-lo como um herói problemático188. O conflito reside no fato do prota-
gonista apaixonar-se profundamente por um colega, o que provoca nele vários sentimentos con-
traditórios e de repressão já que a paixão homossexual era uma relação impossível de ser aceita
no meio de jagunços. Esse conflito o leva a uma intensa reflexão sobre a existência humana até
que, ao final da trama, lhe é revelada a identidade feminina do companheiro após morrer em
um duelo.
Mais uma vez temos indícios que tornaria possível a leitura da obra enquanto romance
de desfundação se não fosse pela revelação final. Grande sertão: veredas sugere uma releitura
do país ao alegorizar problemas de base no processo de formação do Brasil moderno, porém
também sinaliza possibilidades esperançosas de superá-los.
Tanto os desfechos de Iracema e Macunaíma quanto o de Grande sertão: veredas
apresentam relações amorosas (heterossexuais) correspondidas, mas sem o famoso final feliz.
No entanto, os protagonistas são compensados de outra forma para alcançar a harmonia em prol
do projeto de nação, conforme o contexto histórico-social a que remete.
A crítica estadunidense Doris Sommer encara o percurso literário da segunda metade
do século XX como um tipo de “colapso da história”. Segundo a autora, esse processo iniciado
durante o fenômeno boom não fora bem-sucedido, principalmente no que diz respeito à pro-
posta inicial de distanciar-se dos romances de fundação do século anterior189.
Além disso, propõe que a literatura latino-americana do século XX, ou de “terceiro
mundo” como destaca, possui uma leitura difícil devido à “incansável experimentação formal,
técnicas que buscavam deitar por terra o percurso linear da narrativa tradicional”190. Cita como
exemplo Cien años de soledad (1967), de Gabriel Gárcia Marquez, e questiona os reais propó-
sitos da obra tendo em vista que, segundo sua ótica, trata-se da história da Colômbia, ou seja,
de um romance de fundação:
As paródias do Boom, suas finas ironias e seu estilo jocoso são uma espécie de nega-
ção infindável que eventualmente irá produzir o efeito contrário, isto é, a admissão,
de modo que seus círculos viciosos narrativos comentam a frustração dos escritores
bem como as desilusões com o desenvolvimento: quanto mais se deve resistir ao ro-
mance nacional, mais ele parece irresistível191.
188 Davi ARRIGUCCI, 1994. 189 Doris Sommer utiliza como justificativa entrevista com escritores latino-americanos, como Vargas Llosa e
Carlos Fuentes que, na época, renegaram as produções anteriores ao Boom e enalteceram o amadurecimento da
literatura latino-americana. 190 SOMMER, 2004, p.16. 191 SOMMER, 2004, p.17.
83
A meu ver, o romance de Gabo rompe com toda uma tradição literária e, desse modo,
ressignifica a literatura nacional. De certa forma, o mesmo acontece com Macunaíma e Grande
sertão: veredas. Nos dois momentos, não há mais lugar para o que as propostas anteriores su-
geriram tendo em vista a definição de nação como um produto inacabado de um processo his-
tórico ininterrupto e em andamento. Por isso, apesar de insistirem em pautar os projetos de
nação e identidade nacional não seguem os mesmos moldes e padrões anteriores dos romances
de fundação.
O que Doris Sommer chama de “insistência” aos romances de fundação, Flora Sus-
sekind denomina de “repetição” e “eterno retorno” naturalista. Segundo as autoras, a literatura
latino-americana e a literatura brasileira do século XX, respectivamente, voltam-se sempre para
questões identitárias da nação seja através da literatura fantástica, da parábola, do testemunho,
da escrita de si etc. Conforme dito anteriormente, esse trajeto da temática do nacional como
uma constante ocorre de maneira espontânea.
O imediatismo desses retornos não nos soa muito bem, tendo em vista que são conse-
quências de crises políticas em níveis macro e micro, “sobretudo quando se encara o presente
com desalento, a possibilidade que eles venham a se repetir é desesperadora”192. Assim, é pos-
sível afirmar que esse “eterno retorno” aos romances de fundação e ao naturalismo está condi-
cionado à crença em um futuro utópico, onde as deficiências nacionais sejam solucionadas sem
encarar as mágoas e feridas do passado. E, com base nos estudos de Doris Sommer, todo esse
processo está representado alegoricamente pelas relações amorosas heterossexuais.
Flora Sussekind observou que o estudo isolado desses romances dificulta compreendê-
los enquanto um sistema específico e dotado de continuidade histórica193. Além disso, parece
haver um quê de verdade nas linhas ou nas entrelinhas dessas obras de modo que se dissolve “a
ficcionalidade própria do romanesco e obriga-se o leitor a olhar o fato ficcional sempre em
analogia a um referente extratextual”194. No entanto, ao fazer uma linha do tempo da literatura
brasileira começa-se a perceber mudanças na forma de expressão e de concepção da realidade
exposta nos romances naturalistas e, principalmente, nos que possibilitam a leitura pelo viés
das ficções de fundação. Assim, constata-se que a repetição não é em sua totalidade conserva-
dora, mas pertence a um grupo diferencial. Digamos que o objetivo seja o mesmo, porém a
192 Flora SUSSEKIND, 1984. p. 61. 193 SUSSEKIND, 1984. 194 SUSSEKIND, 1984, p. 38.
84
prática corresponde às expectativas de cada período, à evolução do gênero e ao constante de-
senvolvimento estético da literatura.
As ideias naturalistas e o conceito de ficção de fundação se repetem pela impossibili-
dade de restaurar e representar o projeto de nação. Ao mesmo tempo em que a noção de des-
fundação demanda a necessidade de encarar a realidade nacional com suas divisões, traumas e
transições não consolidadas. Nesse sentido, para dar continuidade aos exemplos de (possíveis)
romances de (des) fundação direciono meu olhar agora para o romance pós-64.
A ditadura militar das últimas décadas do século XX (1964-1985), junto a todos os
acontecimentos políticos anteriores, foi um divisor de águas no que tange aos romances de fun-
dação. Até o final da década de setenta percebia-se nos romances muito mais o tom de denúncia
e escracho contra o regime ditatorial do que uma proposta de projeto nacional. Isso ficaria a
cargo das obras posteriores, aquelas construídas à luz dos anos oitenta, final da ditadura e reto-
mada da redemocratização195.
A obsessão pelo retrato de nacionalidade volta ao centro das discussões dos intelectu-
ais e das criações artísticas. Flora Sussekind observa esse fenômeno nos níveis “tanto de lin-
guagem quanto comportamentais. Tanto nos textos quanto na vida literária brasileira”196. As
noções e percepções de nacionalidade também sofrem alterações no decorrer dos anos e das
fases políticas do país, de modo que os romances publicados na década de 1970 não apresentam
mais o molde proposto por Doris Sommer. Segundo Flora Sussekind,
Torna-se ainda mais difícil atribuir identidade a um país marcado pela dominação
colonialista e neocolonialista e por uma trajetória cultural cheia de “influxos exter-
nos”, cortes e descontinuidades, mais próxima do desenraizamento e da “gravitação
de ideias” do que de possíveis unidades nacionais197.
Nesse contexto, as histórias de amor romântico e heterossexuais não servem mais
como base para as obras. Grande Sertão: veredas, de certa maneira, serviu como precursor do
debate de uma nova proposta de relações afetivas como centro narrativo. A própria ideia de
herói vem sendo desconstruída desde o Modernismo, uma vez que em uma sociedade marcada
por traumas não há espaço ou sanidade para procurar e esperar um salvador.
A literatura pós-64, sobretudo da década de setenta, substitui as histórias de amor ro-
mântico por problemáticas sociais, políticas e literárias dentro de diversos contextos. Contudo,
195 O Brasil não tivera um processo de democratização consolidado, tendo em vista os frequentes golpes que o
Estado sofrera ao longo de sua história: conforme destacarei no último capítulo desta tese. 196 SUSSEKIND, 1985, p. 27. 197 SUSSEKIND, 1984, p. 43.
85
de forma alguma busca uma solução para esse conjunto de questões uma vez que o enredo
prioriza o escracho e a leitura não deixa espaço para a passividade por parte do leitor.
Com o decorrer do tempo, passa-se a manifestar nas criações artísticas uma renovação
nos moldes de narrar como a escrita fragmentada, o alto fluxo de consciência, a falta de linea-
ridade narrativa e a atenuação dos limites entre poesia e prosa198. Esse processo de transforma-
ção da arte articula-se a acontecimentos extraliterários, ou seja, está condicionado a fatores
externos à obra199; no caso, a uma sociedade altamente dividida e despedaçada que demanda
uma nova figuração da arte.
No âmbito da prosa, muitos escritores abandonaram o Realismo e passaram a olhar o
mundo complexo e em constante mudança tal qual o próprio gênero literário. Incidente em An-
tares, de Érico Verissimo, me parece ser uma boa ideia para ilustrar a transição da narrativa
pós-64. Publicado em 1971, o romance desenha com nitidez os primeiros anos da ditadura mi-
litar, bem como a mudança estilística que muitos escritores optaram ou fizeram por necessidade
dada a forte repressão às artes. Érico Veríssimo destacou-se na história da literatura brasileira
por ser um escritor clássico e de romances históricos, e é nesse sentido que Incidente em Anta-
res200 se diferencia de suas demais obras.
O romance, dividido em duas partes, relata a história de Antares desde sua fundação
até o dia do “incidente”, uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963201. Em um primeiro momento
a obra apresenta-se como romance histórico a partir de um narrador-historiador. Porém, ao con-
trário das outras obras do escritor, o narrador de Incidente em Antares não se mantém em ter-
ceira pessoa, mas alterna a narração com a primeira pessoa do plural. Essa estrutura narrativa
não é possível em um discurso oficial de modo que as intrusões, opiniões e interrupções do
narrador-historiador atuam como um dialogismo paródico com a tradição historiográfica.
No segundo momento, a narrativa dá um salto para o absurdo e a sátira política. Para
escrever essa parte o escritor abandona o narrador-historiador e passa a relatar os fatos a partir
198 CAMPOS, 1977. 199 Theodor ADORNO, 1982. 200 Maria da Glória BORDINI (2006) nos fornece uma informação muito interessante sobre o processo criativo de
Veríssimo, que se assemelha à intratextualidade de Victor Giudice. Segundo a pesquisadora, alguns personagens
do inacabado A hora do sétimo anjo migraram para as páginas de Incidente em Antares, como Valentina e Martim
Francisco Terra. 201 Alusão ao dia 13 de dezembro de 1968, sexta-feira, em que foi decretado o Ato Institucional nº 5.
86
da perspectiva de um narrador onisciente em terceira pessoa. Na verdade, trata-se de um narra-
dor-organizador tendo em vista que ele divide a tarefa com outras vozes, como a dos persona-
gens padre Pedro Paulo e do jornalista Lucas Faia.
O enredo dessa segunda parte do romance gira em torno do incidente em que sete
pessoas da cidade morreram e retornaram à “vida” para reivindicar seus respectivos enterros.
Essa situação aconteceu em decorrência do movimento de greve dos trabalhadores da fábrica
aliados ao sindicato e a trabalhadores de outros segmentos, como os coveiros.
Não há no romance um casal de protagonistas, como Doris Sommer sugere aos roman-
ces de fundação, de modo que as relações amorosas se dividem entre casais infelizes e relações
extraconjugais. Por outro lado, entre os mortos há um personagem que desempenha um papel
importante na narrativa por ser um preso político e, principalmente, por procurar sua compa-
nheira após a morte. O militante João Paz é o único personagem que mantinha um elo com o
mundo dos vivos por possuir uma relação afetiva e familiar saudável.
Joãozinho, como era conhecido, estava desaparecido após ser preso por “subversão
política”, e sua família e amigos estavam sendo procurados, interrogados e torturados pela po-
lícia local. Por isso, sua primeira reação ao retornar dos mortos é articular um plano para salvar
sua esposa grávida. Portanto, a morte desse personagem, a sobrevivência de Ritinha, sua esposa,
e o nascimento de seu filho revelam traços de esperança e perseverança na narrativa.
Esse episódio possibilita ler Incidente em Antares não só como uma literatura fantás-
tica de denúncia política, mas também como uma ficção de fundação. A proposta de alegoria
política representada pela relação amorosa entre Joãozinho — um militante morto pela violên-
cia policial — e Ritinha, que dá à luz a um filho do casal, permite crer que, apesar do esforço
policial em eliminar toda oposição política, um novo projeto de nação democrática é possível.
No entanto, esse breve tom de esperança não se sobrepõe à ideia de escracho e desespero que
permeia os próximos episódios da narrativa.
Assim que a greve dos trabalhadores encerrou e o tão esperado enterro dos mortos
aconteceu, restou a preocupação de que as acusações feitas pelos mortos ao povo de Antares
repercutissem para além daqueles que presenciaram a cena no coreto. Para solucionar tal im-
passe o personagem Libindo Olivares, professor da escola local, propôs a “Operação borracha”
que tinha como intuito apagar o incidente da história da cidade. As autoridades políticas e eco-
nômicas acataram a sugestão do professor e imediatamente a operação entrou em vigor. As
87
principais ordens eram proibir qualquer veiculação midiática do ocorrido e silenciar a popula-
ção através do negacionismo e de outros meios de manipulação. Segundo Maria da Glória Bor-
dini a “Operação borracha” não diz respeito apenas ao retorno dos mortos à vida, mas também
às denúncias feitas por eles:
Toda a denúncia das arbitrariedades do regime de governo de Antares se apaga, ima-
gem mais do que eloquente do período do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, em que a apa-
rência de normalidade, mantida pelo silenciamento forçado da mídia e pelo incre-
mento dos espetáculos televisivos e futebolísticos, escondia as tentativas de revolução
armada e os desmandos dos militares202.
As denúncias mencionadas por Bordini fazem referência ao episódio no coreto da
praça. No evento cada um dos sete mortos, ao contar sua história de vida/morte, representa uma
denúncia sobre a sociedade antarense: Cícero Branco, as falcatruas políticas municipais; Qui-
téria Campolargo, artifícios da classe dominante para se manter no poder; Barcelona e Erotildes,
a hipocrisia dessa mesma classe dominante em relação à moral e os bons costumes; Pudim de
Cachaça, descaso dos governantes com a periferia; Melandro Olinda, o artista malsucedido;
João Paz, oposição ao governo e preso político. Por fim, na virada do ano de 1963 para 1964, a
“Operação Borracha” é dada por encerrada e bem-sucedida, pois até mesmo os que presencia-
ram e sentiram o odor putrefato dos mortos passaram a duvidar se aquilo realmente aconteceu.
Essa estratégia adotada pelo governo de Antares pode ser associada a uma outra ope-
ração que ocorreu dias após o Golpe de 64, a “Operação limpeza”. Enquanto a proposta do
professor Libindo visava apagar da memória o escracho contra a sociedade antarense a operação
do governo brasileiro tinha como intuito perseguir apoiadores do governo deposto e os líderes
políticos que fizessem oposição à intervenção militar. Há também uma relação com o fato de
os governos autoritários desejarem controlar o passado, o presente e o futuro sendo a manipu-
lação dos fatos uma prática constante. Essa tensão entre o discurso oficial e o não-oficial foi
bem colocada na primeira parte do romance, e na sequência torna-se claro o que estava por trás
do incidente e das informações desencontradas do narrador.
202 BORDINI, 2006, p.277.
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Maria Bordini, na citação anterior, faz uma observação sobre as tentativas do governo
militar de manter uma “aparente normalidade” na sociedade. Essa estratégia manipula o imagi-
nário social de modo que, assim como em Antares, a população esqueça, duvide e até mesmo
não tenha conhecimento dos fatos ocorridos naquele período203.
A narrativa de Érico Verissimo não surpreende ou desconstrói uma tradição literária,
inclusive, Flora Sussekind afirma que Incidente em Antares propõe uma alegoria óbvia do re-
gime ditatorial204. Porém, essa perspectiva de leitura se constrói ao longo da narrativa e somente
passa a ser o centro do enredo nas páginas finais do romance quando o escritor apresenta sua
crítica à conjuntura política, conforme pode-se observar no último trecho do romance:
Aconteceu passar por ali nessa hora um modesto funcionário público que levava para
a escola, pela mão, o seu filho de sete anos. O menino parou, olhou para o muro e
perguntou:
— Que é que está escrito ali, pai?
— Nada. Vamos andando, que já estamos atrasados…
O pequeno, entretanto, para mostrar aos circunstantes que já sabia ler, olhou para a
palavra de piche e começou a soletrá-la em voz muito alta:
— Li-ber…
— Cala a boca, bobalhão! - Exclamou o pai, quase em pânico. E, puxando
com força a mão do filho, levou-o, quase de arrasto, rua abaixo205.
Se pensarmos no período de escrita nos anos iniciais do golpe e auge da ditadura, en-
tenderemos um pouco melhor o porquê de não haver uma idealização nacional ou um senti-
mento de esperança nas narrativas publicadas durante os anos de 1964 e 1980. Havia uma ne-
cessidade entre os intelectuais de pautar e problematizar os crimes cometidos pelo governo.
Citei aqui um exemplo, mas poderia trazer tantos outros procedimentos estéticos — romances
históricos, fantásticos, realistas, memorialísticos, romances-reportagem, escritas do eu etc. —
que se configuram como uma espécie de pluralidade estética e temática apesar desse disfarce
não impossibilitar a leitura dos personagens enquanto representação de toda a história brasileira
do período, pelo contrário, é inevitável não fazer essa leitura.
As produções literárias de setenta usufruíram das contribuições de movimentos literá-
rios anteriores206, um procedimento necessário e observado no debate sobre transgressão de
gênero. Por exemplo, o romance Confissões de Ralfo (uma autobiografia imaginária) (1975),
de Sérgio Sant’Anna, apresenta uma estrutura dividida em “nove pequenos livros” de diferentes
203 O resultado disso pode ser notado atualmente no negacionismo histórico sobre o Regime Militar e no discurso
pró-ditadura de setores da sociedade e de políticos, como o do atual presidente da República. (Retornarei a esse
assunto como pauta da discussão no último capítulo desta tese). 204 SUSSEKIND, 1985. 205 Érico VERISSIMO, 2006, p. 489. 206 Janete Gaspar MACHADO, 1981.
89
gêneros (poesia, teatro, monólogo, relatos de viagem, biografia) e que “se subdividem, por sua
vez, em outras unidades ou episódios, em número trinta e dois”207. Assim como em Victor
Giudice, a estrutura proposta por Sant’Anna subverte as normas literárias vigentes além de sua
trama estar pautada em farsas do início ao fim.
No último episódio da narrativa intitulado “Literatura Ralfo”, o personagem-escritor
da obra tem seu romance submetido ao crivo da “COMISSÃO INTERNACIONAL DE LITE-
RATURA208”. Durante o “julgamento”, o personagem utiliza da sua posição de narrador para
questionar a autoridade do escritor enquanto autor; a autenticidade dos fatos narrados; a crítica
e a teoria literária. No entanto, Ralfo tem sua condição de escritor profissional negada, sua obra
desaprovada e condenada à destruição total.
A acusação da promotoria baseia-se na inaceitável ruptura com os moldes convencio-
nais de enunciação tanto no que diz respeito à linguagem quanto aos gêneros discursivos. Na
frustrada tentativa de classificar o texto como romance, o promotor condiciona-o à necessidade
de criar uma terminologia: o romance desestrutural. Tal termo alude ao processo sobre os con-
ceitos de liberdade e obediência às leis de gênero e a uma estética literária dominante, conforme
é possível observar no seguinte trecho do romance:
Tomado em seu conjunto, este livro demonstra, como os senhores devem ter perce-
bido em sua leitura, o mais completo desprezo pelas regras estruturais do romance, a
sutil combinação de partes entre si. Eis que, sem a menor cerimônia e verossimilhança,
os capítulos do livro e aventuras deste senhor vão se acumulando, quase sempre com
uma impossível e inadequada relação de causa e efeito. Não fosse o receio de criar
mais uma infame terminologia, diríamos que o autor inaugura o romance desestrutu-
ral209.
A postura admitida pelos juízes e pelo promotor de refutar a publicação da autobio-
grafia de Ralfo se configura como uma crítica à desaprovação que os textos experimentais so-
freram nos anos seguintes ao Golpe de 64. De acordo com Flora Sussekind, ao invés dos escri-
tores somente “descrever(em) de modo mágico ou naturalista210” as tensões políticas, incorpo-
raram-nas em sua própria linguagem e estrutura.
A lógica da proposta de romance desestrutural de Sérgio Sant’Anna poderia servir de
classificação para Bolero e para tantas outras obras escritas nas décadas de 1970 e 1980. Tam-
bém é possível estabelecer relação com a noção de romance de desfundação tendo em vista que
ambos são uma consequência dessas multiplicidades de procedimentos e referências, além de
207 Sérgio SANT’ANNA, 1975, s/p. 208 SANT’ANNA, 1975, p.217. 209 SANT’ANNA, 1975, p.222. 210 SUSSEKIND, 1985, p.27.
90
serem uma resposta para as fórmulas literárias tradicionais como as propostas pelas ficções de
fundação e ao contexto histórico problemático e traumatizado que o Brasil já não pode mais
negar.
Portanto, não é possível que a literatura se exima quando a democracia é ameaçada,
pois a arte não sobrevive sem democracia. De certo modo, é possível afirmar que enquanto não
houver uma democracia sólida sempre haverá espaço para discutir conceitos de nação e identi-
dade nacional.
Tal qual foi possível observar ao longo desse capítulo, as obras brasileiras do século
XX também trazem essa pauta com propostas diferentes daquilo que outrora foi considerado
como ficções de fundação. Inclusive, seria possível considerá-las como desfundação, mas ainda
restam elementos que mantêm a esperança na harmonia nacional através de projetos de nação
futuros. Por isso, não basta apenas problematizar questões referentes ao conceito de nação e da
constituição da ideia de brasilidade, faz-se necessário encarar e assumir os traumas nacionais.
E é nesse sentido que Bolero pode ser lido como uma subversão, uma maneira de ler
a literatura nacional a partir de uma trama farsesca que retira as máscaras uma vez atribuídas à
nação pelos romances de fundação nacional do século XIX.
3.2 A SUBVERSÃO DE VICTOR GIUDICE
Depois dessa breve viagem literária do século XIX e XX, enfim adentramos na con-
turbada década de 1980. Com a gradual (e lenta) abertura política do final de 1970, os anos
oitenta chegaram com a consolidação da indústria e do mercado cultural. Nos primeiros cinco
anos, o Brasil ainda estava vulnerável a uma ditadura que insistia em travestir-se de democracia.
Ao fim desse pesadelo, o país deparou-se com mais um momento crucial de sua história: a
redemocratização; uma oportunidade de recomeço.
Marcelo Ridenti afirma em seu livro Em busca do povo brasileiro (2000) que, nova-
mente, procurou-se no passado a solução para o futuro e, por isso, chama essa fase de roman-
tismo revolucionário dado que o imaginário da intelectualidade de esquerda da época via o
homem do povo como um homem novo, ou seja, admitia o conceito de povo como um grande
herói capaz de formar uma nova nação. Podemos destacar algumas obras como Ganga Zumba,
de Carlos Diegues (1963); e Quarup (1967), de Antonio Callado; além da peça de teatro Arena
conta Zumbi (1965); e do filme Deus e o Diabo na terra do sol (1963), de Glauber Rocha.
91
Aparentemente, logo no início da década de 1970 ocorreu uma suspensão e estagnação
nesse projeto de nação e de brasilidade. E ainda que uma parcela dos escritores tenha dado
continuidade a ele, o projeto somente foi retomado na década seguinte, quando da abertura
política e democrática, mas não em sua totalidade. O que pareceu ser um suspiro aliviado se
reverteu em momentos de tensão e de reavaliação dos projetos nacionais anteriores.
Não é por acaso que Victor Giudice construiu Bolero ao longo dos vinte anos em que
o Brasil esteve sob o regime antidemocrático e o finalizou às vésperas das eleições indiretas
que “deu fim” à ditadura. Não existe, no romance, a busca por um homem novo muito menos
por uma nova nação. Apesar da base do texto ser uma farsa, a essência por trás das cenas cômi-
cas, das sutis ironias e dos trágicos absurdos é legítima. Por exemplo, a Cidade é constituída
por uma população alienada, representada pelo povo que vai ao Circo semanalmente esperar
pela multiplicação dos pães; além de descrever uma burguesia que se diz contra a Monarquia,
mas anseia por um herói republicano que irá livrá-los da tirania do rei; ou seja, não há uma
representação romântica do homem brasileiro, pois o personagem dito como herói em nada
assemelha-se com esse homem novo proposto anteriormente.
O diferencial giudiciano está na maneira como a narrativa encontra-se organizada, a
começar pelas relações estabelecidas pelos personagens seja na esfera do público ou do privado.
Nessa perspectiva, a questão levantada por Doris Sommer sobre as histórias de amor serem uma
alegoria da política nacional somente será possível se se conceber o processo de transitologia
brasileiro como uma farsa tal qual as relações românticas do livro, o que é até viável, porém,
para a autora, os romances de fundação “buscavam superar a fragmentação política e histórica
através do amor211”, e no romance de Giudice isso não fica claro, pois não há a ideia de supe-
ração e sim de conformismo e indiferença. É nesse sentido que a noção de romance de fundação
proposta pela autora desencontra da proposta de Bolero e contribui com a leitura de desfundação
a qual pretendo descrever neste trabalho.
Victor Giudice é um subversivo nato. Seus próprios amigos relembram os tempos de
bancário com graça, pois o escritor costumava quebrar o clima sério e burocrático do banco
com humor, fantasias e imitações baratas212. Essa estratégia de surpreender seus colegas no
ambiente de trabalho reverbera em sua obra. Basta ver a maneira como se inicia a narração de
211 SOMMER, 2004, p. 43. 212 Informações obtidas por conversas com amigos e familiares do escritor, bem como de seu site pessoal:
http://victorgiudice.com/vida.html. (Ver anexo – Figura 04)
92
Bolero: “Meu casamento com Cynthia durou onze meses de profana convivência mais os sete
anos que passei sentado no corredor da maternidade esperando ela dar à luz”213.
Sete anos esperando na maternidade da Avenida Seis de Outubro214. Não foram dias
nem meses: foram anos de espera; ou ainda nas palavras do narrador: “Sete anos. Dois mil
quinhentos e cinquenta e sete dias. Sessenta e uma mil trezentas e setenta e oito horas215”. Um
tanto surreal e inacreditável. A credibilidade e verossimilhança dos fatos são asseguradas pela
cumplicidade da enfermeira de pernas-ponteiro chamada Auriflor, que lhe informa sobre o
tempo decorrido desde que Cynthia e seu filho entraram no “Centro cirúrgico - Não entre”.
Contudo, ela não aparece como testemunha ocular do personagem-narrador quando ele é preso
e tem sua história colocada sob suspeita. Na verdade, em momento algum o personagem é in-
vestigado ou, até mesmo, julgado, somente interrogado e torturado.
A vida amorosa e a vida política do personagem-narrador estão diretamente relaciona-
das, tanto que as primeiras informações que o leitor recebe são relativas às suas relações amo-
rosas com Cynthia e Auriflor, sua futura esposa. Antes do episódio da maternidade não havia
problemas, ele estava em uma relação matrimonial satisfatória e prestes a gerar um fruto desse
amor, mas o desaparecimento inexplicável de sua primeira esposa e do suposto filho não é
assimilado com facilidade, deixando-o desnorteado durante toda a trama. Aos poucos a ordem
é (aparentemente) restaurada e um novo romance se inicia com a enfermeira. Entretanto, evi-
denciamos ao longo da narrativa que ambos os relacionamentos são problemáticos, assim como
sua trajetória de alienado a militante republicano.
Poderíamos, aliás, tomar o romance como um diário onde o personagem-narrador es-
creve sobre sua vida pós-espera na maternidade como uma maneira de ajudá-lo a recuperar a
memória que afirma ter perdido e entender o que acontecera durante todos aqueles sete anos.
Todavia, logo nos primeiros capítulos/fragmentos, o leitor consegue perceber que não se trata
de um diário216, e que o relato foi escrito após a transição da Monarquia para República.
213 GIUDICE, 1985, p. 07. 214 O nome da maternidade pode ser uma referência ao Golpe de 30, pois no dia seis de outubro de 1930, Getúlio
Vargas, derrotado nas eleições brasileiras por Júlio Prestes, não aceita o resultado e lidera um movimento militar
que culminou no referido Golpe. 215 GIUDICE, 1985, p. 10. 216 Na página 48 do romance, o personagem-narrador abre parênteses para fazer uma reflexão nostálgica sobre sua
relação com Número Um. Nesse trecho, ele comenta sobre o episódio final da morte do rei Vezirrê Budru / palhaço
Eusébios e as atividades festivas em prol da recém proclamada República. Já na página 330, ele informa que já se
passaram quatro anos desde a implantação da República.
93
Enquanto esteve na maternidade, a enfermeira mantinha um diálogo silencioso com o
narrador através de piscadas de olho e do ir e vir de suas pernas:
O que contava era o diálogo com a tabuleta da sala de partos: Centro cirúr-
gico - Não entre. Sem falar no outro diálogo com os joelhos pontudos da enfermeira
sorridente que me piscava o olho esquerdo e que me servia café numa xícara de bran-
quíssima porcelana217.
O ir e vir das pernas e as sombras na parede de azulejo eram as únicas fontes de de-
marcação de tempo que o narrador tinha desde que viu sua esposa pela última vez até o mo-
mento que tem sua espera interrompida. Essa cena emblemática lembra a de um homem em
situação de tensão e preocupação, de modo que sua única ação é sentar e esperar, possivelmente
com a cabeça baixa apoiada em suas mãos.
Cynthia, como sempre, não desperdiçou palavras lacrimejantes. Sorriu para
mim, a porta se fechou sobre nossa gravidez e fiquei prostrado no tempo, enquanto o
tempo se mesclava em uma ou outra imagem dependente da precisão dos azulejos da
enfermaria, desencontrados em harmonia maçônica, conferindo panteísmos a uma
simples estrutura de concreto218.
Apesar da observação feita sobre a enfermeira, o personagem-narrador não tem noção
de tempo e, na verdade, isso não lhe interessa, pois a todo momento coloca em questão o con-
ceito, concluindo que o tempo nada mais é que “uma imposição dos relógios”219. Seu desinte-
resse está refletido em suas atitudes, como quando foi alertado sobre os anos decorridos no
hospital em que não questiona, apenas sai em direção à rua. A passividade extrema também
pode ser um sintoma de transtorno, este que se agrava conforme suas intervenções narrativas
sobre o desaparecimento de Cynthia ocorrem no texto — como os fluxos de consciência inten-
sos registrados entre parênteses, os quais denunciam questões-chave sobre o momento da nar-
rativa e sobre a sua vida anterior à maternidade.
Em síntese, as primeiras páginas de Bolero apresentam um personagem apaixonado e
vítima dessa paixão não correspondida, tendo em vista o desaparecimento da esposa em traba-
lho de parto. A consequência desse primeiro trauma amoroso reflete em sua memória, mais
especificamente em suas recordações sobre a Cidade: pouco, ou quase nada, ele lembra sobre
o local em que morou todos os seus (quase) 33 anos220.
217 GIUDICE, 1985, p. 08. 218 GIUDICE, 1985, p. 09. 219 GIUDICE, 1985, p. 07. 220 A informação sobre a idade do narrador está no penúltimo capítulo do romance. Ao ser convidado para fazer
parte da equipe do Circo, como pierrô, o personagem recusa alegando estar muito velho: “já cruzando a idade de
Cristo” (p. 323). Ao final da narrativa ele informa que se passara quatro anos desde o número do punhal, logo,
estima-se que sua idade seja 37 anos.
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Desde o momento em que saiu da maternidade e foi preso por tirar um flamboyant
dourado do canteiro central o personagem aparenta ter consciência de que sua vida não voltaria
a ser a mesma, assim como Cynthia jamais retornaria. Afinal, a cidade onde nasceu, cresceu e
gerou um filho tornara-se então desconhecida. Seu desespero inicial está transcrito em suas
primeiras horas fora da prisão: “No tempo de Cynthia, eu nunca vira aquela praça, eu nunca
vira aquela gente, eu nunca vira aquelas bandeiras, eu nunca vira aquelas cores reunidas, eu
nunca vira aquela tarde, eu nunca vira aquele sol. Onde estavam as pessoas, os dias e os poentes
de minha existência anterior?”221.
Há um ditado popular que diz que “o amor é cego”. O amor do personagem-narrador
por Cynthia não o deixara somente cego sobre sua relação, mas totalmente alheio à vida. Há
ainda um trecho em que ele se declara um conhecedor e desconhecedor de sua própria terra
natal:
a Cidade que eu conhecia e desconheceria sempre que pudesse vê-la por inteiro, so-
breposto a ela, mergulhado nela, enterrado nela, vivendo ou morrendo nela.
(como é possível amar uma Cidade?)
[...] Ali estávamos os dois, minha Cidade e eu, eu e minha Cidade contem-
plando-nos envergonhados de nosso mútuo desconhecimento222.
Cynthia o abandonou e o deixou livre para recomeçar. Ela representa um passado que,
supostamente, pode desaparecer sem deixar rastros. Já a presença de Auriflor na saída da prisão,
por sua vez, representa um recomeço através de um novo interesse amoroso. A participação
dessa personagem é um pouco confusa e mal contada pelo narrador; mas é ela quem torna crível
a história dos sete anos, pois nem ele sabia o tempo que esteve esperando; ao mesmo tempo,
ela sabia exatamente o dia e a hora que ele sairia da prisão e, sem muitos questionamentos de
ambas as partes, levou-o para a casa de sua família. Um amparo, uma amizade, um amor e uma
esperança inesperada.
Ao esperá-lo na porta da prisão e abrigá-lo em sua residência junto à sua família, Au-
riflor instintivamente traçou o destino do personagem com base nas suas expectativas (e de seu
tio). Não fica claro quais foram as motivações para ajudar uma pessoa desconhecida, além do
flerte proporcionado pelas piscadas na sala de espera. De certa forma, esse comportamento re-
produz o início de uma relação extraconjugal, pois o fato de o personagem-narrador estar na
sala de espera de uma maternidade pode ser automaticamente associado ao nascimento de um
221 GIUDICE, 1985, p. 73. 222 GIUDICE, 1985, p. 173.
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filho, todavia Auriflor não parece se importar muito com isso nem ele, pois em nenhum mo-
mento da narrativa conversam sobre Cynthia.
Os indícios de que o personagem pode ser uma construção de Auriflor e Auritio apa-
recem assim que ele inicia a sua jornada pós-prisão. No dia de sua soltura, enquanto acompa-
nhava a moça sem saber o seu destino, em um de seus longos monólogos reflexivos se autode-
nomina um “cão amestrado”. A metáfora aqui utilizada pode ser lida em seu sentido literal de
que caminhava atrás da enfermeira como um cão ensinado a seguir seu tutor.
Por outro lado, em um sentido mais amplo da história que nos conta, afinal, sabemos
que isso foi escrito depois de todos os acontecimentos: o cão amestrado faz referência ao revo-
lucionário que ele irá se tornar à custa das vontades dos dois membros da aurifamília e, princi-
palmente, pela atração sexual por Auriflor. Em outras palavras, o cão alienado e abandonado
por Cynthia tornou-se o cão revolucionário e adestrado por Auriflor:
A desgraça da história é ser amestrado. O meu ângulo visual se encontrava
restrito às nádegas de maçã da Senhorita Auriflor. [...] Auriflor é uma encenadora de
encenações maquiavélicas, e pensa que eu não sei o que ela pensa. E eu sei. Sei
mesmo? Claro que sei. [...] A Senhorita Auriflor comanda a trajetória e me arrasta ao
futuro223.
Assim que chegaram na auricasa224, o narrador divagou mentalmente sobre Auriflor e
seus “papos-de anjo em lugar de joelhos, e matraqueava bobagens, adoçando as palavras numa
calda de sensualidade ocasionada por um defeito de prolação”225. A princípio, julgou que as
intenções do amparo oferecido pelas pernas-ponteiro eram somente sexuais, assim como as
suas; no entanto, conforme conversavam o rumo dos assuntos mudou e surgiram os primeiros
indícios do interesse político da enfermeira:
– Há alguma coisa que não seja inútil?
– Quer dizer que fui preso inutilmente?
– Existe quem seja preso utilmente?
– Por que não responde você mesma?
– Não acha muito pior estar livre inutilmente?
– É o meu caso?
– Será?
– Haverá um tempo em que não seja?226
Esse interesse fica explícito quando ela o apresenta a seu pai e seu tio, e acaba por
revelar que já havia comentado aos parentes sobre a existência e situação do visitante. A própria
223 GIUDICE, 1985, p. 71. 224 A auricasa está situada na rua Quatorze de Fevereiro, data mundialmente conhecida como Valentine’s day.
Coincidentemente, ou não, Auriflor destaca-se por ser a namorada e futura “esposa” do personagem-narrador. 225 GIUDICE, 1985, p. 78. 226 GIUDICE, 1985, p. 79.
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iniciativa em dar-lhe auxílio teria sido um conselho do tio por estranharem o seu desapareci-
mento repentino após sair do hospital.
No discurso de Auriflor nota-se um direcionamento sobre seus princípios e até pensa-
mento políticos, vide os questionamentos filosóficos sobre liberdade e prisão, ao contrário do
personagem-narrador que não demonstra nenhuma predisposição ideológica. Afinal, ele não
compreendia o motivo de sua prisão muito menos o porquê ser chamado de republicano pelo
prisioneiro Número Um:
– Roubei uma flor. Uma daquelas que estão no meio de um parque. Acho que
há uma proibição, porque...
[...]
– Você é um herói republicano com o crânio cheio de merda. É isso227.
O envolvimento com a política não era sua prioridade nem uma preocupação, e sim
uma saída favorável tendo em vista a falta de perspectiva diante de suas opções: vagar pelas
lacunas de sua memória ou se debater contra as informações que não tinha. Nesse caso, a atração
sexual foi a motivação necessária para que o personagem abandonasse sua existência passada
e assumisse uma nova identidade.
Na segunda noite com a aurifamília, o personagem conheceu os demais integrantes de
uma grande teia de relações: Condessa (namorada do simpatizante da Monarquia, Auriavô); seu
sobrinho e artista inacabadista Ladislau228; o irmão de Ladislau (funcionário e cunhado do em-
presário Holofernes); e o Ajudante Máximo (guarda real e responsável pela segurança do rei
nos espetáculos do Circo). Na ocasião, todos estavam presentes para assistir ao sarau protago-
nizado pela Condessa e por seu sobrinho Ladislau.
Ao final da noite, o segurança real fez algumas perguntas sobre as marcas no rosto do
personagem-narrador e sua ausência nas sessões anteriores do sarau ao que, para alívio do per-
sonagem, Auriflor interrompeu-o inventando “uma série de quatorze voltas ao mundo” e o Aju-
dante Máximo demonstrou ter outras prioridades. Do ponto de vista do visitante, “o interesse
vermelhoazuldourado pelas narissorridências era pecaminosamente maior”229. O personagem
se coloca diante de uma cena de ciúmes e um triangulo amoroso com os outros dois persona-
gens. Porém, essa situação não é desenvolvida no decorrer da narrativa.
227 GIUDICE, 1985, p. 34. 228 No acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa encontra-se uma ilustração do personagem Ladislau desenhada
pelo próprio escritor (Ver anexo – Figura 07). 229 GIUDICE, 1985, p. 116.
97
O interessante está no fato de que o narrador afirma não ter certeza alguma sobre aquilo
que relata deixando o leitor desconfiado sobre a veracidade da narração, conforme é possível
observar em suas palavras: “Não tenho certeza da ocorrência desse diálogo, assim como não
estou certo de nenhum dos fenômenos que presencio hoje em dia”230. O personagem coloca-se
em um contexto absurdo onde ele próprio não consegue compreender ou justificar como verí-
dico.
Entretanto, ao mesmo tempo que se coloca em posição de quem realmente sofre de
perda de memória, em outros momentos parece manipular os demais personagens (e o leitor)
com sua falsa ingenuidade. No trecho a seguir, ele se questiona sobre a intenção de Auritio
quando afirma estar “tratando do seu caso, ouviu? Mas bico fechado231”:
De minha parte, eu procurava uma explicação mental para a falta de açúcar
do meu café e para a informação do Auritio. Tava tratando do meu caso e meu caso
era múltiplo: a espera na maternidade, o desaparecimento de Cynthia e do meu duvi-
doso filho e, para completar, a descoberta da flor dourada, com direito a prisão e tor-
turas. Afinal, a qual dos casos ele se referia? Ou será que englobara todos num só, a
fim de conferir ao comunicado um tom lacônico mais condizente com a situação?232
Ou, na vez em que, ao passear pelo parque com Auriflor antes de irem finalmente ao
Circo, o personagem-narrador fixou o olhar interrogativo na manchete de jornal que noticiava
a repressão da Guarda Real aos “ajuntamentos” dos operários nas indústrias:
– Ainda não percebeu que estamos vivendo sob uma monarquia? Não lhe dis-
seram isso na prisão?
Desabei. A imagem do Número Um difundindo loucuras numa cela sem espe-
rança bailou em minha frente uma possibilidade macabra, mas Auriflor engatilhou
outra incerteza:
– Afinal de contas, quem era você, antes de passar aqueles sete anos na mater-
nidade?
– Quem eu era?
De repente, vi que não seria possível responder nem mesmo quem eu era de-
pois dos sete anos. Quando mais antes:
– Um republicano? É isso que você quer que eu responda?233
Auriflor termina esse diálogo questionando ironicamente se o personagem vivia ou se
só nasceu quando ela o acordou na maternidade. Ao que tudo indica, ele era um alienado que
vivia somente para o seu relacionamento, conforme afirma em pensamento um pouco antes da
supracitada conversa: “É claro que eu nunca teria visto aquele coreto antes, nem os flamboyants,
nem nada. Antes, eu só via Cynthia”234. Sua cegueira era tamanha que esquecera inclusive do
230 GIUDICE, 1985, p. 116. 231 GIUDICE, 1985, p. 132. 232 GIUDICE, 1985, p. 133. 233 GIUDICE, 1985, p. 135. 234 GIUDICE, 1985, p. 134.
98
Circo, instituição que, segundo a história da Cidade, existia independente de monarquias ou
repúblicas.
Durante as primeiras apresentações do Circo, a lucidez alastrou-se pelo personagem e,
aos poucos, começou a perceber que algo muito apavorante ocorria naquela Cidade. A plateia
ria desvairadamente de todos os números e até do que não era número; qualquer movimento era
motivo de riso e aplauso. Um riso nervoso que também tomou conta dele: “Havia medo ema-
grecendo as vontades e engordando os sorrisos. Inclusive o meu, pois a partir do instante em
que tomei conhecimento do terror da plateia, me associei a ela e passei a rir de todas as tramas
urdidas no picadeiro”235.
Pouco a pouco, a leitura sobre o regime monárquico da Cidade se aproxima do regime
ditatorial brasileiro e um paralelo cada vez maior vai se criando entre o romance de Giudice e
a história nacional, conforme será possível perceber no desenrolar da sua primeira experiência
no Circo. Ao mesmo tempo em que esse momento é apavorante também é atenuado por estra-
tégias lúdicas para distrair a população: o famoso pão e circo.
Depois de tantos números medíocres em que rir e aplaudir eram reações baseadas na
obrigação e no medo, ao final do espetáculo, o número especial dos irmãos Pons e a cena da
multiplicação dos pães deixaram o personagem extasiado e incrédulo. A política do pão e circo
realmente funcionava na Cidade. Em um curto espaço de tempo, cabeças rolaram, corpos deca-
pitados levantaram, cabeças voltaram aos seus corpos, de um pão surgiram milhares de pães e,
por fim, se deu a descoberta de que o rei se chamava Vezirrê Budru. Segundo o personagem-
narrador, essa foi a informação mais importante do dia, “porque quando se vive numa cidade e
esta Cidade é governada por uma Monarquia, o nome do Rei, seja ele qual for, é um conheci-
mento obrigatório”236.
Em um dado momento, as novas informações sobre a Cidade e as perguntas não res-
pondidas por Auriflor começam a ocupar espaços antes preenchidos por Cynthia. Espaços físi-
cos e mentais, pois os locais que antes o personagem-narrador visitara com sua primeira esposa
são substituídos agora pela presença da enfermeira; assim como a importância de seu desapa-
recimento com o filho convertera-se em “coisa descartável”. A narrativa segue seu compasso
cada vez mais enfática sobre a transformação do protagonista: quanto mais se envolvia com
235 GIUDICE, 1985, p. 140. 236 GIUDICE, 1985, p. 150.
99
Auriflor, mais seu destino de republicano era traçado e desenhado pelo Auritio com as bênçãos
da sobrinha.
Para o jovem que havia despertado de sua alienação, o dia depois do Circo era de
comemoração: esquecer Cynthia, conhecer o Circo e chegar ao ápice de sua aproximação com
a enfermeira até o momento — as mãos dadas para sair do metrô e o toque de joelhos durante
a apresentação dos irmãos Pons. Ao retornarem para casa, o personagem-narrador estava pres-
tes a converter sua atração por Auriflor para além de sua imaginação e finalmente roubar a
“outra flor que, por certo, não seria dourada e nem de plástico”237, no entanto, seu esquema
lascivo fora interrompido por Auritio.
Como comentei anteriormente, os planos de Auritio e Auriflor eram distintos das in-
tenções do personagem-narrador. Enquanto um parecia estar fazendo turismo em sua própria
cidade, os outros dois interpretavam como “boa política” o rapaz ter ido ao Circo mesmo sendo
um notável ex-preso político. Além disso, segundo Auritio, existia a possibilidade de uma se-
gunda prisão devido à falta de esclarecimento sobre a espera na maternidade e as relações esta-
belecidas pós-prisão.
Quando se está sob suspeita, não existem relações privadas; todas são de ordem pú-
blica. E isso serve tanto para o personagem-narrador quanto para Ladislau. Por isso, uma das
preocupações do Ajudante Máximo estava na conversa que aquele teve com o artista inacaba-
dista durante o sarau. Não fica claro qual é a questão do sobrinho da Condessa, ainda que ser
um artista subversivo da escola inacabadista não devesse soar muito bem aos olhos do grande
monarca. Para resolver o impasse, o personagem-narrador definitivamente precisava fugir no
trem da meia noite e quarenta rumo à clandestinidade. Isso significaria abandonar sua chance
de (re) recomeçar na Cidade que um dia foi seu lar.
Um passado que não quer e não se deixa ser esquecido, pois no breve espaço de tempo
em que o personagem-narrador decidira deixar para trás Cynthia e consumar seu amor com
Auriflor, o fantasma do passado retorna e tira-o do que poderia ser uma relação amorosa prós-
pera. Assim, culpa a esposa desaparecida por sua infeliz condição de perseguido político: “Viu,
Cynthia, no que deu a sua brincadeira de esconde-esconde?238”.
237 GIUDICE, 1985, p. 152. 238 GIUDICE, 1985, p
100
No caminho da estação de trem o personagem deu seu primeiro passo na tomada de
consciência sobre sua paixão e seu papel na história da revolução. Enquanto no início da narra-
tiva, sua única pretensão era “dar meia-volta no tempo, até o instante em que eu pudesse read-
quirir Cynthia”239, nesse momento, prestes a se tornar um clandestino e exilado, a caminhada
pelas treze quadras levou-o a refletir sobre o que desejava de sua nova vida:
Por uma estranha dependência do destino em relação à memória, veio-me à
cabeça a imagem do Ajudante Máximo. Ele e sua comparsaria trocando sorrisos sub-
servientes e protegendo, sob o estigma da crueldade, aquela corja putrefata que lhe
entornava baldes de gelo derretido na cabeça.
E eu fugindo.
Mas pensei no Auritio e em Auriflor. Que horas seriam? Meu trem poderia
estar saindo e todo o trabalho deles iria por terra.
Olhei o relógio da estação: meia-noite.
Olhei a existência: meia vida.
Olhei meu futuro: meia-volta.
E voltei240.
Decidir permanecer na Cidade significava para o personagem-narrador assumir seu
passado — sete anos de espera na maternidade —, encarar o seu presente como inimigo da
Monarquia e caminhar em direção a um futuro revolucionário ao lado de sua nova paixão. A
partir de então, não haveria mais a possibilidade de retorno. O pessoal do clube já teria se arris-
cado muito ao fornecer os documentos falsificados de vendedor ambulante, bem como o Barão
para recebê-lo e iniciá-lo na clandestinidade.
Desse modo, o processo de despertar estava concluído. De agora em diante, restava-
lhe iniciar (e concluir) a construção do herói municipal, como o próprio personagem havia se
autodeclarado. Ao menos contava com o auxílio do Barão, líder republicano. Contava ainda
com o pessoal do clube dos torturados; da persona grata, Condessa e; claro, “defendido por
Auritio, sob o patrocínio de sua sobrinha alucinada241”.
Ao ser interpelado por Auriflor sobre o motivo que o teria feito mudar de ideia no
caminho da estação, o personagem percebeu que não havia uma resposta para tal pergunta. Ele
considerava, inicialmente, arriscado e irracional deixar de salvar a própria pele em troca de um
relacionamento que “havia começado um pouco mais de uma semana e não passara de meia
dúzia de sorrisos, carícias de mão para mão, duas brigas de joelhos e um prelúdio interrom-
pido242”. Entretanto, “o romantismo foi infalível”, pois o personagem-narrador conduziu sua
239 GIUDICE, 1985, p. 29. 240 GIUDICE, 1985, p. 175. 241 GIUDICE, 1985, p. 167. 242 GIUDICE, 1985, p. 162.
101
despedida de Auriflor de maneira tão premeditada e romântica que não lhe restou alternativa a
não ser voltar. Em suas palavras:
– Foi por minha causa?
Seria? Que tal se eu lhe fizesse um relatório de minha odisseia nas treze
quadras? Talvez não compreendesse que ela própria fosse a essência das causas, assim
como as causas pudessem estar contidas nela, com tudo que se interliga, deteriora até
se desfazer em passado ou em nada que possa preencher a mais ínfima lembrança. As
causas das causas243.
As opções eram claras: de um lado, ser um clandestino e perseguido político fora da
jurisdição do Ajudante Máximo; de outro, viver na clandestinidade sob o mesmo céu que Ve-
zirrê Budru, a Guarda Real, o reizinho-underwood e todos os vermelhoazuldourados.
O personagem-narrador diante das escolhas de permanecer e de colocar a oportunidade
de um relacionamento próspero acima de sua própria vida antecipam a harmonia da narrativa.
Nessa mesma noite, finalmente, a relação do novo casal foi consumada: o sexo, ápice de troca
de cumplicidades em um relacionamento, somente pôde ser realizado depois do despertar do
personagem-narrador. A concretização do ato sexual entre o casal é muito simbólica no que diz
respeito à importância da ligação entre eles para a conjuntura política da Cidade e do romance.
De antemão, pode-se reconhecer essa relação como símbolo de esperança de um novo
projeto de nação que supera os desprezíveis anos ditatoriais e encarrega-se de uma redemocra-
tização bem-sucedida. Nesse caso, a alegoria de Victor Giudice teria sido satisfatória a ponto
de possibilitar a leitura de Bolero como romance de fundação, segundo a tese de Doris Sommer.
Conclui-se que o fracasso do casamento do protagonista com Cynthia e a consumação com
Auriflor significam o final feliz para o amor romântico e a possibilidade de reconstrução da
nação por outros meios. Isso, claro, em conformidade com a ideia de que a união de um alienado
e de uma pessoa com consciência social e política seria a melhor saída tanto para o caso ficci-
onal de Bolero — terminar com a tirania monárquica — bem como para o caso brasileiro — a
transição de ditadura para democracia; isso se não fosse pela continuidade dos fatos.
Durante o tempo em que estavam no restaurante comemorando o retorno do persona-
gem-narrador, Auriflor sugeriu que dançassem ao som do bolero, pois aquele poderia ser o
último. A abordagem utilizada para o convite deixou o narrador confuso. Afinal, decidir voltar
significava um recomeço, uma segunda chance, e não o fim. Porém, para haver um começo, é
necessário primeiro um final. Do ponto de vista do personagem-narrador, o final consistia em
deixar sua história com Cynthia para trás. No entanto, a proposta de Auriflor referia-se para
243 GIUDICE, 1985, p. 180.
102
além daquele exato momento. Ela provavelmente já estava a conjecturar que o retorno do per-
sonagem representava a possibilidade de mudança em um contexto macro, pois enquanto sua
situação com a monarquia não fosse resolvida ele teria que viver como clandestino e, provavel-
mente, demorariam para ter outra oportunidade de dançarem.
Enquanto Cynthia tomava cada vez mais a rota em direção ao “desvão do inconsci-
ente”, a enfermeira deixava sua posição de estado presente para simbolizar o futuro do perso-
nagem-narrador. Sempre com respostas sagazes e sarcásticas, Auriflor, desde o início da narra-
tiva, dava sinais a ele que, consciente ou inconscientemente, funcionavam como um tipo de
código ou, até mesmo, instruções. O primeiro desses sinais diz respeito às piscadelas de olho
na maternidade.
Piscar um único olho em direção a alguém é popularmente conhecido como uma ação
amistosa, um flerte com conotação sexual ou, até mesmo, uma provocação entre pessoas para
sinalizar que algo exposto naquele momento é uma mentira ou não deve ser levado a sério. As
piscadelas de Auriflor apresentam um pouco de cada um desses significados, mas o fato de ser
o olho esquerdo pode adquirir também uma conotação política, levando-se em consideração o
cenário em que a obra foi construída e publicada.
Ao analisar as ocorrências notam-se similaridades entre os momentos das piscadelas.
Durante um dos cafés da manhã em companhia da aurifamília, Auritio sugeriu estar cuidando
do caso do personagem, ao que este imediatamente lança um olhar questionador para ela a fim
de alguma resposta: “Como sempre, diante de uma abstração, olhei para Auriflor, e foi o sufi-
ciente para que ela me piscasse o olho esquerdo244”. Esse movimento acontece no texto repeti-
das vezes acompanhado de uma pergunta “sem resposta”, fato muito comum nos diálogos entre
eles.
Algumas dessas perguntas são relativas ao funcionamento da Cidade e do Circo, con-
sideradas pela enfermeira como perguntas idiotas, tal qual na primeira ida ao picadeiro: “Quem
é esse Eusebius? Auriflor me encerrou no cinismo habitual e me piscou o olho esquerdo: Você
não queria conhecer o Circo? Então por que não olha pra frente em vez de fazer perguntas
idiotas?245”. Outra vez, foi durante o ato da multiplicação dos pães: “Quase aos brados, para
sobrepor minha voz à selvageria da plateia na luta para recolher os pães atirados nela, procurei
a explicação em minha companheira: É isto a multiplicação? Auriflor sorriu, piscou o olho
244 GIUDICE. 1985, p. 133. 245 GIUDICE, 1985, p. 137.
103
esquerdo e se ensurdeceu nos aplausos246”. O único momento em que não há marcação de lado
foi quando o narrador conheceu Auriavô: “Muito bonito. Ainda bem que eu trouxe o médico
para lhe dar uma injeção. Virou o rosto para mim e piscou o olho [...] - Assustou-se com meu
avô?247”. A ausência de sugestão pode simbolizar que o avô da enfermeira é uma pessoa neutra
na disputa de poder, apesar de se autodeclarar monarquista.
Além das piscadelas, há outras referências à direita e esquerda. Novamente, no início
da narrativa, ainda na maternidade, o personagem-narrador faz um breve comentário sobre a
necessidade de ajustar os parafusos de um tipo de marionete: “Adeus, boneco de engonço. Não
se esqueça de trocar o parafuso da canela esquerda. O da direita ainda aguenta.248”. Essa men-
sagem é muito significativa quando descobrimos que ele viria a se tornar um revolucionário
republicano por intermédio ou, como o próprio afirma, um amestrado pela enfermeira de per-
nas-ponteiro e seu tio.
Durante a primeira visita ao Circo, ele surpreende-se por perceber, em uma de suas
mãos, um dos pães provenientes da multiplicação: “meu desgosto atinge um nível irrespirável
ao surpreender na mão direita um dos pães da multiplicação. Como veio para aqui?249”. Essa
aparição não é por acaso: o termo “direita” não aparece com tanta frequência quanto “esquerda”,
mas, em sua maioria, remete às ações relativas à Monarquia; como na própria cena referida, ou
quando os músicos reais surgiram “numa das vielas da direita250”, ou ainda na disposição da
mesa do reizinho-underwood: “Porém, nada disso era tão atraente quanto o espetáculo vislum-
brado à direita: uma escrivaninha diminuta, uma underwood de museu, cujo restos mortais en-
vergonhavam a velhice sob pilhas de processos251”.
Para citar uma última referência, retorno ao momento em que o personagem-narrador
caminhava rumo à estação. Auriflor acompanhou-o até o início das trezes quadras na Av. Pri-
meiro de Abril. Ali, no meio da rua, com um calor de trinta e sete graus e o ponteiro marcando
vinte e uma horas, eles tiveram uma despedida romântica e comovente com juras de um reen-
contro e promessas de amor. Ao final, a enfermeira instruiu-o a caminhar para a direita. Esco-
246 GIUDICE, 1985, p. 146. 247 GIUDICE, 1985, p. 77. 248 GIUDICE, 1985, p. 15. 249 GIUDICE, 1985, p. 146. 250 GIUDICE, 1985, p. 17. 251 GIUDICE, 1985, p. 21.
104
lher partir para clandestinidade e sucumbir à pressão da Monarquia significava seguir em dire-
ção à direita, ao passo que ficar e resistir, à esquerda. Portanto, a relação amorosa dos dois
personagens está diretamente associada aos pensamentos de esquerda.
Auriflor contribuiu como nenhum outro personagem nesse processo de transição (do
personagem e do regime). Por ora, o romance de Victor Giudice decerto seria um caso exemplar
de concretização amorosa harmônica e de superação nacional. Apesar do personagem-narrador
ser quem executa o ato que leva à deposição da Monarquia, é a enfermeira com suas perguntas
e piscadas quem desperta a atenção e o desejo do protagonista, além dos indispensáveis incen-
tivos filosóficos de Número Um e das diretrizes políticas fornecidas por Auritio. Tal ideia está
reforçada nas palavras do narrador durante a consumação da relação com a enfermeira, “o tá-
lamo comprovou a responsabilidade do marceneiro que o construiu, e nós comprovamos que o
amor é um ato histórico”252.
Por outro lado, dentro da perspectiva dos relacionamentos do personagem-narrador,
uma nova leitura é possível ao considerar a intratextualidade estabelecida entre Bolero e as
obras anteriores de Victor Giudice, Necrológio e Os banheiros. Os trechos que descrevem o
namoro do personagem-narrador com Cynthia são similares ao conto “Mahablan”, publicado
em Os banheiros.
Narrado em primeira pessoa, o conto relata um diálogo de Mahablan com seu amante.
Na verdade, a narrativa se aproxima muito mais de um monólogo do amante, tendo em vista
que não é concedido a ela o direito de resposta. Portanto, todas as informações são fornecidas
pela voz e pelo olhar do primeiro. Resumidamente, o conto traz à tona a história de um femini-
cídio motivado pela fúria de um namorado rejeitado.
A personagem Mahablan foi, durante muitos anos, explorada e chantageada pela avó.
Segundo o amante, ela deveria manter relações sexuais com ele de luzes acesas, enquanto a avó
observava pela maçaneta e, em troca, teria direito à herança:
A avozinha enlouquecera de uma paixão não correspondida, depois de um
casamento providencial com um homem que não amara, mas que lhe deixara o sufi-
ciente para bisbilhotar os quatro cantos do mundo com a mesma facilidade com que
bisbilhotamos as quatro ruas do nosso quarteirão253.
252 GIUDICE, 1985, p. 183. 253 GIUDICE, 1979, p. 100.
105
Pouco se sabe sobre a vida do personagem-narrador de Bolero antes da maternidade.
Por isso, o diálogo entre o conto e o romance é estabelecido através dos poucos relatos confes-
sionais de sua intimidade com a esposa desaparecida.
Ficávamos estirados no tapete, degustando César Frank, ao som do chá com
papos-de-anjo. Cynthia se enfurecia às vésperas de um orgasmo, quando interrompí-
amos o amor para virar o disco e recomeçar o Psyché, flutuando entre o silêncio he-
donista dos corpos e a perplexidade de um olho de lagartixa254.
Assim como o narrador de Bolero e sua esposa, Mahablan e seu amante também fazem
de Cézar Frank a trilha sonora de seus momentos íntimos:
Os orgasmos ficaram reduzidos a perfídias profiláticas, enquanto sua avó
pegava as bonecas e ia dormir, cantarolando o cravo-brigou-com-a-rosa. Só então era
nossa vez de viajar para as montanhas de Sodoma - a briga sexual nas almofadas -
lambuzados de Cézar Frank, papos-de-anjos e... o que mais?255
Além da música e dos papos-de-anjo a relação entre as narrativas fica acirrada, e eu
diria inevitável, à medida que o narrador do romance divaga sobre seu “eu anterior” e insere
uma nova personagem: a avó.
À noite, assim que a avó de Cynthia guardava as bonecas e ia para a cama,
cantarolando o-cravo-brigou-com-a-rosa, nós fugíamos para a vitrola para os discos
de Schubert e para o César Frank, no tapete, com chá, papos-de-anjo, asteroides e
brigas sexuais256.
Tal qual foi observado na citação do conto “Mahablan”, a presença da avó constitui
um elemento importante na aproximação dos dois textos. Ela é a principal motivadora da ex-
ploração sexual da protagonista e de sua consequente morte. Além disso, ao final da narrativa,
descobre-se que a personagem não se chama Mahablan, tampouco nos é revelado o seu verda-
deiro nome. Trechos como esse denunciam as afinidades dos textos e possibilitam que as per-
sonagens do conto sejam, na verdade, as mesmas do romance.
Uma vez que isso seja aceito, a história dos sete anos na maternidade passa a ser uma
falácia, ou seja, um álibi encontrado pelo personagem-narrador para reescrever sua história e se
eximir da responsabilidade de assassino. No momento em que Mahablan revela ao seu amante
que tudo não passara de uma mentira, ela oferece-lhe “parte de sua herança com a condição de
desaparecer para sempre”; ele completa que “para sempre não é um tempo tão curto quanto da
loucura257”.
254 GIUDICE, 1985, p. 16. 255 GIUDICE, 1979, p. 99. 256 GIUDICE, 1985, p. 29. 257 GIUDICE, 1979, p. 101.
106
Em contrapartida, no romance, Cynthia é quem desaparece e a loucura recai nos de-
mais personagens. Afinal, ao conversar com o Número Um, o narrador afirma ter saído da ma-
ternidade para cair em um mundo de loucos. Diante disso, por sabermos da dificuldade em se
desvincular do antigo relacionamento, colocá-la como desaparecida pode ter sido a maneira
mais fácil que encontrou para lidar com o trauma de tê-la matado.
Por outro lado, há informações que não coincidem como: em “Mahablan” o narrador
diz ser confeiteiro enquanto que o personagem-narrador de Bolero afirma ter sido funcionário
de um banco antes de ir para a maternidade. O mesmo acontece sobre a passagem de tempo:
em Bolero, o relacionamento com Cynthia “durou onze meses de profana convivência258” mais
os sete anos na maternidade, já o relacionamento de Mahablan durou “três anos imortais259”.
Essas informações não interferem diretamente na análise dos textos e, ao considerar todo o
contexto de farsa que constitui Bolero, é possível que o personagem-narrador tenha omitido e
manipulado informações sobre seu passado para não criar suspeitas sobre sua relação com o
assassinato de Mahablan/Cynthia. Aliás, o próprio nome atribuído à esposa pode ser uma cria-
ção para, assim, não levantar suspeitas em sua história.
As três relações: Mahablan260, Cynthia e Auriflor são descritas pelos narradores com
um potente fascínio sexual, o que contribui para a construção de imagens eróticas. Além disso,
há uma mudança tanto de linguagem quanto de comportamento dos personagens durante a ide-
alização e depois da concretização do relacionamento amoroso. Há uma tendência ao discurso
poético e erótico, de modo que a concretização tende a uma profanação carnal ao invés da
contemplação do amor romântico. No conto, o narrador interpela Mahablan, “repita comigo
que a felicidade do universo não ardia tanto em meus olhos quanto na noite em que profanei
seu corpo261”; no romance, “a bela condessa Auriflor deitara-se no suave leito recamado de
arminhos alvíssimos e veludosas almofadas de precioso lavor, numa fingida sesta ordenada
pelos mais irrecusáveis apetites de sua incontrolável lascívia262”, e “Cynthia gostava do meu
258 GIUDICE, 1985, p. 07. 259 GIUDICE, 1979, p. 101. 260 Por reconhecer a relevância da intratextualidade na obra de Victor Giudice torna-se imprescindível trazer para
o debate a relação do romance com o conto “Mahablan”. No entanto, tendo em vista que o leitor não é obrigado a
conhecer toda a obra do escritor, a falta dessa informação não impossibilita a leitura de Bolero e, muito menos,
sua compreensão como romance de desfundação. 261 GIUDICE, 1979, p. 99. 262 GIUDICE, 1985, p. 80.
107
pijama vermelho, e eu, da camisola preta, que libertava o corpo, numa mistura de pele e sensu-
alidade263”.
Inclusive, ambos os narradores expressam atração pelos joelhos das personagens fe-
mininas. No conto, as pernas de Mahablan “flertavam tremores, enquanto os joelhos me olha-
vam insistências de pura obscenidade264”; no romance, o desejo pela enfermeira é instantâneo
e de “belíssima grandeza metafórica e onomatopeica, mas redundante no que tange aos aspectos
da sexualidade semeada pelo vislumbre das rótulas de Auriflor265”. O mesmo ocorre ao trazer
a imagem das montanhas de Sodoma para referir-se às nádegas das amantes. De acordo com o
relato bíblico, Sodoma teria sido destruída por Deus devido aos atos imorais, segundo os pre-
ceitos cristãos, cometidos por seus habitantes o que, por sua vez, deu origem ao termo sodomia.
Ronaldo Vainfas afirma no livro História das mulheres no Brasil que o pecado de sodomia está
associado aos “desvios de genitalidade’, incluindo-se aí o coito anal, o sexo oral e outros con-
tatos contra natura266”.
Nesse sentido, as referências metafóricas à Sodoma no conto “Mahablan” apresentam
as imagens eróticas “penetrar[em] os linhos dos lençóis que embranqueciam as montanhas de
Sodoma267”. Já em Bolero a metáfora sodomita é utilizada para exaltar a pureza e a decência de
Auriflor em oposição à Cynthia, que não pertence à luxúria de Sodoma nem ao decoro de uma
dama: “As coisas que se veem na montanha pertencem unicamente à montanha e nunca a uma
enfermeira de pernas-ponteiro. Afirmar que as coisas belas da montanha podem ser encontradas
em Cynthia é dizer mal da montanha e de Cynthia268”.
Os narradores enaltecem suas relações passadas e futuras, ao ponto que a consumação
e a realidade matrimonial diminuem a potência do desejo sexual. O presente não é exaltado,
mas dá brecha ao amor corrupto adquirido nos prostíbulos, como o de Madame Dedé Bundica
e nos bordeis que o personagem-narrador de Bolero almeja ao sair da maternidade.
Nessa perspectiva, a proposta de ler os casos de amor como uma alegoria da nação
reafirma a exaltação de um passado através das memórias e de um futuro através da imaginação.
Dito em outras palavras, diviniza-se o sexo que outrora se teve esquecendo-se as mazelas e
recordando somente aquilo que trouxe êxtase; e idealiza-se o sexo não concretizado, o fetiche
263 GIUDICE, 1985, p. 29. 264 GIUDICE, 1979, p. 100. 265 GIUDICE, 1985, p. 79. 266 Ronaldo VAINFAS, 2006, p.117. 267 GIUDICE, 1979, p. 100. 268 GIUDICE, 1985, p. 88.
108
sobre o futuro inesperado. Nas palavras do narrador do conto “Mahablan”: “O prazer físico é
atemporal e imensurável. E a moral só existe no tempo e no espaço269”.
Consentir que Cynthia e Mahablan são as mesmas personagens apenas corrobora que
o personagem-narrador manipulou a história e se aproveitou da aurifamília e, consequente-
mente, de Auriflor. Afinal, não seria nenhuma dificuldade considerar a história dos sete anos
na maternidade como uma mentira. Primeiro, porque a própria narrativa não sustenta sua vera-
cidade; segundo, porque toda a trama do romance baseia-se em farsas.
Victor Giudice confronta os hábitos do amor romântico previstos pelos romances de
fundação ao traduzir as relações em puro desejo carnal e profanação. O fracasso dos casos de
amor dos romances do boom e o erotismo político desencaminhado, de acordo com Doris Som-
mer, “faz-nos confrontar os hábitos do desejo romântico que aprendemos com o romance naci-
onal270271”. Por sua vez, Bolero reavalia as histórias de amor descritas nos romances nacionais
ao trabalhar propositalmente com a decepção do leitor ao começar com um relacionamento
fracassado.
A importância alegórica atribuída às relações amorosas, em um primeiro momento
parece encontrar harmonia com a personagem Auriflor por fazer a transição de um passado
problemático a um presente conturbado e, enfim, a um futuro tranquilo. Para Doris Sommer, há
nas ficções de fundação do século XIX “a esperança da nação de realizar uniões produtivas272”.
Não há a necessidade de os finais serem felizes para o casal, mas sim que a sua união seja
frutífera à transição e consolidação dos projetos de nação. Por isso, o fato de o personagem-
narrador não conseguir casar-se oficialmente com Auriflor devido à impossibilidade do divór-
cio com Cynthia influi diretamente no resultado do processo de consolidação ao qual sua rela-
ção alude.
Seu novo casamento só poderá ser reconhecido legalmente caso utilize do poder das
relações adquiridas através de seu novo emprego. Em suas palavras: “o despachante encarre-
gado do processo afirma que mais dia menos dia a coisa se ajeita, porque nesta cidade nada se
cria, nada se perde: tudo se consegue. É só descobrir o caminho273”. Surge, então, a necessidade
de olhar para além das relações amorosas estabelecidas no romance e compreender o processo
269 GIUDICE, 1979, p. 101. 270 SOMMER, 2004, p. 46. 271 No caso, a autora refere-se ao romance A morte de Artemio Cruz (1964), de Carlos Fuentes, por traduzir casos
de amor em estupros e jogos de poder. 272 SOMMER, 2004, p. 41. 273 GIUDICE, 1985, p. 330.
109
de transição do narrador de alienado a revolucionário e presidente das Industrias S.A. (conforme
trarei no próximo capítulo), o que, de certa forma, também está diretamente relacionado ao
fracasso da consolidação de monarquia para república e às futuras transições de regime que a
Cidade ainda sofrerá.
Ao mesmo tempo em que há um personagem-narrador vítima de abandono, há um
homem dissimulado que conjectura promiscuidades com quem lhe ajuda; do mesmo modo que
se tem um alienado tem-se também um projeto de herói. Em suas palavras: “O homem é apenas
verdade, verdade, verdade e mentiras. A grande verdade coletiva é sempre demonstrada pelo
disfarce e pela hipocrisia274”. Ele tem consciência do que os outros desejam que seja e se apro-
veita dessa situação para construir sua nova identidade, bem como as narrativas pré e pós espera
na maternidade.
A própria referência à rua que caminha rumo à estação está representada pela data
popularmente conhecida como Dia da Mentira, Av. Primeiro de Abril, e também a data do
Golpe de 64. Esse foi o mesmo caminho que utilizou para voltar após decidir não ir embora no
trem e, também, será o local onde comprará um apartamento para morar com Auriflor e os
filhos depois da transição de regime.
Desde o início de seu relato, o personagem-narrador confirma que as informações dis-
postas na narrativa são passíveis de dúvida, “a memória falha em comprimentos e larguras”275,
e ainda diz que a literatura não se distancia muito disso, tendo em vista a constatação de que
nos livros da maternidade “quase sempre a verdade prometida na primeira página se desmentia
na última276”.
É nesse sentido que Victor Giudice constrói um personagem que a todo momento es-
tabelece uma rede de esperança, mas decepciona. A decepção está fundamentada principal-
mente nas mensagens enviadas à Cynthia, pois interrompem o fluxo narrativo e trazem à tona
as preocupações com o cenário em que se encontra, já que tornar-se o único republicano na
ativa nunca fora sua intenção.
Se não fosse por essas mensagens seria possível acreditar no real progresso do prota-
gonista em superar sua relação passada, bem como em seu envolvimento com Auriflor como
um reflexo de superação política. Diante disso, a espera na maternidade e a Monarquia ficariam
no passado junto com sua relação com Cynthia, e o presente significaria um regime republicano
274 GIUDICE, 1985, p. 89. 275 GIUDICE, 1985, p. 18. 276 GIUDICE, 1985, p. 08.
110
e uma família bem-sucedida com Auriflor e seus respectivos filhos. Contudo, o personagem-
narrador vive em uma constante antítese de esquecer e odiar Cynthia, ou lembrar e amá-la. Até
mesmo quando parece estar tudo bem em sua nova vida com Auriflor e com a luta republicana,
ele clama pela esposa desaparecida.
Essa composição alude ao contexto de desfundação de Bolero, de modo que a conso-
lidação política do processo de redemocratização brasileira não será efetiva devido a impossi-
bilidade de o Brasil desvincular-se de seu passado antidemocrático. Isto é, não existe um projeto
de nação que supere os traumas dos projetos anteriores sem esquecê-los, mas que preze por
direcionar-lhes um olhar crítico e com responsabilidade social.
Portanto, Victor Giudice problematiza, através dos casos de amor do personagem-nar-
rador, a efetividade do processo de transição da ditadura e consolidação democrática. Nos ro-
mances do início do século XX, dá-se início à consciência de que os projetos de nação anteriores
foram malsucedidos e de que se deve realizar uma análise de conjuntura árdua, crítica e consis-
tente. Porém, esses mesmos textos apresentam esperança em novos projetos com base nos mo-
delos antigos. Já através da literatura pós-ditatorial consegue-se ter uma visão mais ampla desse
conteúdo e de uma política boomerang, a qual o Brasil e grande parte dos países latino-ameri-
canos estão sujeitos e amarrados.
Não há esperança para novos projetos nacionais antes que se encarem os traumas dos
anteriores. Há uma necessidade clara de enfrentar as consequências do passado nacional tal qual
ele é, sem farsas e sem “histórias de amor”. Por isso, volto a atenção agora para a proposta do
personagem Número Um sobre o pensamento ser a única arma possível contra qualquer tipo de
tirania.
111
Argumenta um líder negro que nenhuma transformação pela raiz será possível sem a participação efe-
tiva das ditas minorias, que, no caso dos negros, nem mesmo podem ser considerados minoria. Ao
povo brasileiro, sobretudo o de cor, ao invés de lhe dar pão e circo, conseguiu-se habitualmente, atra-
vés do futebol e do Carnaval, que ele próprio se transformasse no circo.
(SANT’ANNA, 1986)
112
4 PICADEIRO, PLATEIA E PENSAMENTO: A ESCRITA DO LUTO
No capítulo anterior, iniciei a discussão a respeito dos romances brasileiros de
(des)fundação com a tese destacada do personagem Número Um sobre os dois erres: regula-
mento e rei. Segundo ele, não importa o regime que esteja no poder porque, de todo modo, são
impostos regulamentos que requerem obediência e também oposição, pois a criação de regras
está diretamente associada à sua própria subversão. De nada adianta somente infringir as regras
impostas, é necessário combatê-las e é, nesse sentido, que aos dois erres opõem-se aos três pês:
picadeiro, plateia e pensamento.
A tríplice dos pês agrega a noção de desfundação por diferentes ângulos. Ao mesmo
tempo em que justifica o tom de desesperança da narrativa, questiona se, de fato, não há espe-
rança ou se o romance é um chamado para a luta. Para isso, é preciso ler Bolero como uma
alegoria do Brasil pós-ditatorial onde a transição de monarquia-república remete à ditadura-
democracia, sem esquecer que o centro político do romance é um circo, ou seja, um local em
que a farsa é o cerne, inclusive, do próprio pensamento.
Por fim, será possível entender como os três pês estão diretamente relacionados à re-
cepção da obra, ao tom de desesperança e, consequentemente, à noção de desfundação. Mas,
antes de desenvolver esses pontos, faz-se indispensável conhecer um pouco mais da história do
preso político Número Um, sua tese sobre os três pês e, finalmente, sua grande obra.
Um dia, o velho prisioneiro foi uma criança que entrava escondida no Circo para acom-
panhar a grande plateia e assistir ansioso à apresentação principal do palhaço triste, o pierrô
branco. O jovem ficava abismado com a destreza do palhaço e sua capacidade de fazer aparecer
e desaparecer a esfera de prata. Nessa época, nem imaginava que um dia viria a substituí-lo no
picadeiro.
Um pouco mais adiante, quando já havia sido convidado pelo pierrô para treinar e
aprender a técnica das esferas de prata, o jovem aprendiz compreendeu que não era um simples
truque de malabarismo: “O pierrô entrava com as mãos abanando, fazia um gesto, concentrava
o pensamento e pronto. A esfera aparecia material, de verdade, fazia as evoluções, o compasso
da valsa e era uma vez”277. Eis o segredo do palhaço: utilizar a massa encefálica e domar o
pensamento.
277 GIUDICE, 1985, p. 52.
113
O jovem pierrô amadurecia a concepção sobre o pensamento também: de mero entre-
tenimento a potencial de criação e, enfim, a meio de desalienação e revolução. A primeira fun-
ção atribuída ao número é o óbvio, tendo em vista o espaço que ocupa e a sua função social. É
de conhecimento geral que os espetáculos que compõem o picadeiro são historicamente reali-
zados para entreter os espectadores, uma prática instituída como lazer social e válvula de escape
do governo, conforme apontei anteriormente ao comentar sobre a política de pão e circo desen-
volvida durante muitos anos e por diferentes governos na Cidade, cada um com sua especifici-
dade. Essa política visa retirar o foco dos principais problemas sociais, políticos e econômicos
fazendo com que a população direcione sua atenção acrítica para outro departamento, ou mesmo
nenhum.
De acordo com Creuza Berg, durante os anos do Golpe de 64 houve insistência do
governo em promover um tipo de “anti-intelectualismo”, ou seja, dificultar o acesso da popu-
lação à educação, arte e cultura. Como já discutido em outros momentos, a divisão de censura
foi uma das protagonistas no processo de repressão no campo cultural, mas não foi a única
estratégia adotada pelos governos depois de 1964, houve também incentivo para aqueles que
produzissem conteúdo às “massas”, como a televisão e a linguagem de espetáculo no cinema
que, por sua vez, “acaba por ocasionar o nivelamento, a uniformização do pensar, que eleva o
medíocre e tolhe os cérebros mais brilhantes278”.
Os governos autoritários proporcionam e incentivam educação, arte e cultura, porém
nos moldes que lhe parecem mais adequados para distração, em outras palavras, sem teor crítico
ou construtivo e sem a preocupação com a qualidade estética do produto artístico. Isso é o que
Flora Sussekind chama de “estética do espetáculo” que, segundo a pesquisadora, se define como
“uma estratégia repressiva ladeada pela determinação de uma política nacional de cultura, e um
hábil jogo de incentivos e cooptações279”. É nesse contexto que a política de pão e circo ofere-
cida pelos espetáculos da Cidade se enquadram. Até mesmo a técnica do pierrô branco procu-
rava inicialmente desenvolver um pensamento limitado e dentro dos parâmetros aceitáveis pe-
los regulamentos impostos pelo rei.
Porém, diferente de seu mestre o segundo pierrô quis ir além da simples repetição de
movimentos e pensamentos pré-estabelecidos. O jovem não se conteve em simplesmente ma-
terializar uma esfera de prata, mas quis multiplicá-la: “Se naquele momento alguém já estava
278 BERG, 2002, p. 68. 279 SUSSEKIND, 1985.
114
habituado à aparição de uma única esfera e assistia ao número mecanicamente, deixando o ra-
ciocínio se perder em outros caminhos, o aparecimento de duas esferas colocou a atenção na
estrada certa”280.
Ele percebeu que era necessário fazer do pensamento um meio de expressão e não
simplesmente de reprodução. À medida que as esferas se multiplicavam, o espetáculo se aper-
feiçoava e, consequentemente, o fluxo de pensamento e de ideias também. No total, foram du-
zentas e oitenta e sete esferas materializadas ao mesmo tempo pela ânsia de envolver a plateia
e despertar alguma emoção, interesse, motivação ou qualquer coisa que os tirassem daquela
monotonia. No entanto, “os aplausos continuaram mecânicos, mas a boca e a pupila da arqui-
bancada se apagaram”281.
Não havia interesse por parte da plateia em mudar aquele espaço de entretenimento
sem contemplação, bem como seus companheiros de picadeiro em sua plena obediência. Esta-
vam todos confinados em sua própria alienação: o pierrô, “condenado a própria arte [...] numa
obediência cega aos princípios da beleza282”, e a plateia numa prisão sem grades.
O Circo está sempre presente entre monarquias e repúblicas. Porém, naquela época,
estava sob o comando da realeza (tal qual ocorre no tempo “presente” da narrativa):
O palhaço: Quem mata a fome negra do freguês?
O público: O rei! O rei! O rei!
O palhaço: Quem paga mil salários todo mês?
O público: O rei! O rei! O rei!
O palhaço: Quem multiplica um pão por mais de seis?
O público: O rei! O rei! O rei!
O palhaço: Quem enche a pança, camponês?
O público: O rei! O rei! O rei!
O palhaço: E a casa do operário de mercês?
O público: O rei! O rei! O rei!
O palhaço: Quem corta mil cabeças de uma vez?
Antes que a plateia respondesse, surgiram em cena dois clowns vestidos carica-
turalmente à moda da tal guarda pretoriana283.
Nesse trecho, o palhaço Eusebius utilizou-se de uma performance aparentemente ino-
cente como ferramenta para demarcar o poder da Monarquia. Por meio do humor, o rei testa a
obediência, o respeito e, inevitavelmente, o medo da plateia. De acordo com a tese do segundo
pierrô, o picadeiro representa os artistas do Circo, súditos fiéis do rei; a plateia é a população
alienada que segue o fluxo dos regulamentos impostos pelo mesmo monarca; e o pensamento,
280 GIUDICE, 1985, p. 56. 281 GIUDICE, 1985, p. 59. 282 GIUDICE, 1985, p. 59. 283 GIUDICE, 1985, p. 142.
115
um elemento fora do alcance real. Desse modo, picadeiro e plateia são elementos visíveis e
estão diretamente a favor do monarca, ao passo que o pensamento pertence ao invisível e, dessa
forma, pode ser utilizado para fins contrários ao rei.
O pierrô não compreendeu a grandeza do pensamento como potencial de criação e
mudança quando aprendeu a manusear a esfera de prata pela primeira vez. Provavelmente, seu
antecessor e mestre não tinha noção do poder que tinha em mãos, ou o medo do inimigo lhe fez
acomodar-se no simples ato de reproduzir. Com o passar do tempo, o aprendiz compreendeu
que não importava quantas esferas manuseasse durante o espetáculo se não pudesse sacudir dois
mil cérebros não pensantes e transformá-los em dois milhões de ideias. Por isso, descobrir que
o pensamento é invisível aos olhos do grande monarca significava o domínio do poder. Esse
despertar foi denominado por ele de “a grande obra”, e essa para acontecer “bastava o invisível
dominar o visível, a verdade se sobrepor à realidade e à realeza284”.
Foi necessário ter um panorama de todos os envolvidos no processo de criação e re-
cepção para poder surpreendê-los, tendo em vista que a plateia tinha total conhecimento do que
esperar do picadeiro e vice-versa:
O pê de plateia era feito da mesma massa do pê de padaria, prostíbulo,
putrefação, pobreza, pavor, provisório, preguiça, pândega, proselitismo, perjúrio. Um
pê petrificado na própria podridão. Mas restavam dois: o de picadeiro e o de pensa-
mento. O pê de picadeiro eliminava-se facilmente, pois era ele que produzia o pê de
plateia. Hem? Que tal? Sobrava o pensamento285.
O pensamento era o único meio de provocar nos espectadores algum tipo de reação
como o medo, o riso, a comoção e o estranhamento. Era “um pê solitário entre tantos pês pu-
trefatos. O único ainda invisível e por isso mesmo intocável. Pensamento e purificação [...] o
pensamento é feito do mesmo pê da procura, do provável e do possível286”. Antes mesmo que
conseguisse colocar sua grande obra em prática, seu parceiro, o clown Corsário, foi preso, tor-
turado e morto como suspeito de iniciar um ato subversivo durante o espetáculo. Uma simples
luz derramada do pensamento do pierrô causou a morte de um inocente bem como a sua prisão,
após confissão. Diante disso, a grande obra, que nem chegou a ser realizada foi também o mo-
tivo pelo qual ele tornou-se o Número Um, preso político e companheiro de cela do persona-
gem-narrador.
284 GIUDICE, 1985, p. 58. 285 GIUDICE, 1985, p. 61. 286 GIUDICE, 1985, p. 61.
116
Assim como Minimus, o Grande287, ousou encarar por um segundo o rei durante uma
acrobacia e no segundo seguinte já estava morto, o Pierrô teve o mesmo destino, não a morte
eminente, mas ao tentar ser exceção tornou-se a regra. Nas várias prisões, entre monarquias e
repúblicas, o Pierrô percebeu que
quem vive na obediência restrita aos regulamentos, será conivente com a
grande massa corruptora. Fui contra uma e acabei preso pela outra. Fui contra outra e
acabei preso pela uma. Depois não me soltaram mais porque descobriram que eu lim-
paria o rabo com qualquer regulamento que me apresentassem288.
O pensamento deveria ser a exceção entre os três pês. Era no que ele acreditava. No
decorrer da narrativa, o personagem-narrador também ousou pensar, e sua revolta impulsionou
a materializar um punhal e matar o rei. Mas, por fim, descobriu que tudo fazia parte do espetá-
culo, somente mais um número do circo.
Talvez o pensamento não deva ser uma exceção, e sim parte de um conjunto que resulta
da soma da totalidade dos pês. O “pierrô perdia-se por não perceber os efes perdidos nos pês.
A fraqueza e a falha do pensamento solitário. [...] Nunca teria feito o que fez ou pelo menos
tentado, se tivesse um minuto de burrice289”, ou seja, o pensamento isolado do contexto real-
mente fere somente ideias, contudo não traz mudanças, de fato.
O pierrô branco sucumbiu ao luto por tantas tentativas malsucedidas de realizar sua
grande obra e, devido a isso, entregou-se de uma vez por todas ao cárcere. Não era mais o jovem
prodígio e sonhador espectador do circo; não era mais o fascinante pierrô das duzentas e oitenta
e sete esferas: tornou-se o prisioneiro Número Um, o baixo cantante, o amigo do maestro de
capuz negro e o companheiro de cela do personagem-narrador.
O ex-pierrô e agora eterno prisioneiro político foi o primeiro a chamar o protagonista
do romance de republicano, simplesmente pelo fato deste ter retirado uma flor de plástico dou-
rada do canteiro central da Cidade. Além disso, por ter infringido um dos principais regulamen-
tos e o negar constantemente, o pierrô acusa-o de ser o pior criminoso que já passara por ali,
seja na prisão monarquista ou republicana.
Apesar da relação dos dois não ter sido a mais amigável por causa das circunstâncias,
os diálogos que traçaram foram imprescindíveis para a construção da identidade revolucionária
do personagem-narrador. Para além das teses sobre os dois erres e os três pês, a influência do
287 Um dos maiores acrobatas do tempo do pierrô branco morreu com uma “faca engavetada em suas costelas” por
ter a “petulância de encarar a monarquia” (1985, p. 60). 288 GIUDICE, 1985, p. 45. 289 GIUDICE, 1985, p. 61.
117
prisioneiro Número Um foi tamanha que, ao chegar na casa da aurifamília, o personagem-nar-
rador não hesitou ao pegar na estante aquele livro que tantas vezes lhe foi questionada a leitura:
“Já leu os Pensées? Não? Então leia290”. O personagem-narrador teve sua vida virada ao avesso
ao ser preso e conhecer Número Um, mas, na realidade, tudo começou quando dera entrada na
maternidade da Seis de Outubro.
O tempo é um elemento essencial na narrativa: tem-se o tempo psicológico, marcado
pela perda de memória do personagem; e o tempo físico, da transição de regimes. Tudo acon-
teceu num intervalo de sete anos: ele e a esposa foram dar à luz a um filho numa república; saiu
sem filho, sem esposa e numa ditadura monarquista. Depois não se tem informação de quanto
tempo esteve preso nem quanto tempo se passou até o incidente com o punhal.
Sua evolução acontece à medida que toma consciência sobre a conversa que teve com
o personagem Número Um na prisão. As informações, que, a princípio, soaram surreais, come-
çaram a fazer sentido: “a realidade despojada de todas a mentiras291”. Se um dia o personagem
escolheu viver alheio aos acontecimentos ao seu redor, limitando-se apenas a Cynthia, isso já
não era possível. Seu relacionamento com Auriflor serviu como gatilho para a guinada rumo a
desalienação e a (nova? antiga?) república.
Ainda que seus relacionamentos amorosos digam muito sobre o processo político ao
qual a narrativa giudiciana nos remete, faz-se importante e essencial olhar também para os de-
mais personagens que compõem esse emaranhado de relações. Principalmente aqueles que, de
alguma forma, contribuíram para esclarecer as mudanças ocorridas na Cidade durante e após o
tempo em que o protagonista estivera “preso” na sala de espera da maternidade.
O despertar do pensamento, a passagem de alienado político a último republicano na
ativa, o reconhecimento do luto sobre o relacionamento falido com Cynthia e sobre a transição
política da Cidade são elementares para fundamentar a noção de desfundação. Esse sentimento
de luto provocado pelo fracasso do despertar do pensamento como a grande obra, tanto do pierrô
quanto do protagonista, ressoa na desesperança expressa ao final da narrativa.
Segundo Idelber Avelar292, as narrativas do luto pós-ditatoriais não são necessaria-
mente aquelas escritas durante ou depois do processo de redemocratização, mas sim aquelas
que conseguem incorporar a reflexão sobre a derrota em seu sistema. Em outras palavras, a
literatura pós-ditatorial propicia uma análise crítica desse momento sem tapear, dissimular ou
290 GIUDICE, 1985, p. 44. 291 GIUDICE, 1985, p. 57. 292 AVELAR, 2003.
118
embelezar um processo falho, além de carregar as sombras e consequências de uma sociedade
viciada em transições e consolidações fracassadas.
A narrativa de desfundação, assim como a pós-ditatorial, dá um “empurrão que faz do
passado não realizado a alegoria mesma de um presente em crise que faz, portanto, que o pre-
sente, se reconheça no rosto do passado falido293294”. Pressupõe-se que, ao contar uma história
que remeta a um passado não muito distante, conseguem-se perceber as falhas do presente, ou
seja, a transição de ditadura para democracia e suas futuras consequências295.
A Cidade de Bolero encontra-se claramente em ruínas no que diz respeito à política.
O personagem-narrador representa um reflexo desse contexto caótico, pois, fruto de uma histó-
ria mal contada, o alienado torna-se herói republicano. É fundamental olhar para esse encadea-
mento da formação do personagem do mesmo modo que se olha para a nação traumatizada.
Porém, isso somente será possível se voltarmos às suas memórias, como o próprio faz ao escre-
ver suas memórias (ou falta delas).
Sua memória fragmentada se espelha na narrativa, também fragmentada e polifônica.
O personagem recorre a outras vozes para conseguir restituir sua vida e escolher qual realmente
é a sua identidade: a de marido e pai abandonado por Cynthia grávida; a de alienado e preso
por engano; ou a que Auriflor, Auritio e o Número Um consciente e inconscientemente espera-
vam que ele fosse, revolucionário republicano.
Como um quebra-cabeças, o quadro não estaria completo sem as pistas deixadas nos
contos e nos paratextos de Necrológio e Os banheiros. O mesmo pode ser dito sobre as relações
estabelecidas no decorrer da narrativa, a iniciar pela primeira prisão, a fase de preso político,
os encontros com o maestro de capuz negro, a arte inacabadista do amigo Ladislau, as cicatrizes
forjadas no ateliê, a reunião do clube dos torturados, a clandestinidade, o circo etc., todos esses
elementos lhe (nos) ajudam a compreender o sistema político da Cidade e seu papel diante de
tudo isso.
293 AVELAR, 2003, p. 29. 294 Idelber Avelar nesse trecho refere-se ao romance Em liberdade, de Silviano Santiago, mas creio que a reflexão
cabe para Bolero e, consequentemente, para a noção de desfundação. 295 Conforme discutiremos melhor no capítulo seguinte.
119
4.1 DE ALIENADO A ÚNICO REPUBLICANO NA ATIVA
“Ao atravessar a porta da prisão e pisar na rua, estava eu saindo da prisão ou en-
trando nela? De que lado das grades de uma cela existe a liberdade?296”
Bolero narra a história de um sujeito perdido. Perdido no tempo e no espaço. Perdido
em sua própria existência. As lembranças dos sete anos de espera na maternidade se resumiram
em uma cadeira e nos cafés oferecidos pela enfermeira de pernas-ponteiro. Ao sair de lá, o
personagem deparou-se com a surpresa de não viver mais em uma república, e sim em uma
monarquia. O esquecimento de sua própria história naquela Cidade levou-o a tornar-se, por
acaso, um preso político.
É muito fácil identificar o romance como alegoria do Brasil nos anos oitenta. Qualquer
uma das inúmeras sinopses a seu respeito que fiz ao longo desse trabalho podem nos levar a
essa conclusão. Ao escolher utilizar a alegoria como mecanismo literário de Bolero, Victor
Giudice não se distanciou muito dos seus colegas escritores e nesse caso, provavelmente, não
foi para burlar a censura.
Apesar do livro ter sido construído entre as décadas de 1970 e 1980, a esposa de Victor
Giudice informou que a obra teve sua escrita concretizada ao longo de 1984, momento em que
a censura aos intelectuais e artistas já não estava tão ativa, devido ao declínio do regime militar.
Logo, não é possível dar os méritos da obra aos generais da ditadura.
Idelber Avelar problematiza, em seu livro Alegorias da derrota297, a relevância dada,
por vezes, à repressão da ditadura militar sobre produções de grande valor estético298. Sua po-
sição está pautada na dicotomia entre a genialidade do artista e a obrigação de inovar nas téc-
nicas em decorrência da censura contra aquelas de denúncia. Isso significaria “conceder aos
censores argentinos qualquer mérito por Respiração artificial, de Ricardo Piglia [...] ou ainda
aos generais brasileiros pelas canções de Chico Buarque de Hollanda299”.
Por outro lado, faz-se importante considerar todo o contexto social, histórico e artístico
tendo em vista que tanto o experimentalismo quanto a alegoria são artifícios que se sobressaem
durante os governos autoritários, principalmente pelo fato de a alegoria ser um “estratégico
296 GIUDICE, 1985, p. 114. 297 AVELAR, 2003. 298 AVELAR, 2003. 299 AVELAR, 2003, p. 20.
120
instrumento ideológico” e, quanto maior a repressão na sociedade, o “seu valor de uso passa a
ser basicamente seu valor de troca300”.
A Cidade de Bolero, sob o comando da monarquia, pode ser relacionada ao Brasil da
ditadura militar e a república como democracia. Em uma leitura rasa, essa seria a maneira de
considerar a alegoria nacional da obra como uma substituição metafórica de um elemento por
outro. No entanto, a relevância da proposta de Victor Giudice está na forma e no contexto em
que foi construída a alegoria, de modo que o conjunto do enredo faz alusão ao Brasil durante o
processo de transição dos regimes, seus traumas e suas consequências.
Isso ocorre, primeiramente, pelo fato de ambos os regimes — monarquista e republi-
cano — terem suas origens alicerçadas em governos autoritários, conforme o próprio Número
Um conta. E pelo fato de nunca ter ocorrido entre as transições um processo de consolidação
política efetivo, tal qual foi possível compreender através da intratextualidade do conto “Miguel
Covarrubra”, presente no livro Os banheiros.
O Brasil, que havia vivido nos últimos vinte anos um de seus piores momentos da
História, caminhava em direção à esperança: a tão sonhada democracia; mas, antes mesmo de
ser dada como certa, a sociedade continuava respirando os ares ditatoriais. Diante desse quadro,
Victor Giudice propõe pensar além dos últimos acontecimentos, ao dispor de questões do pas-
sado para problematizar o presente (e o futuro), de modo que os elementos alegóricos da narra-
tiva atuam para além da transição política de monarquia/ditadura para república/democracia.
De acordo com Flávio Kothe,
A alegoria é um índice da história que poderia ter sido mas não foi. Ela é a manifes-
tação e denúncia implícita do reprimido. Não explicitando essa denúncia em seus
agentes, mancomuna-se com a repressão, ainda que a contragosto às vezes não lhe
resta alternativa. Mas, em geral, a alegoria tem sido utilizada para que os principais
chavões da ideologia da classe dominante sejam reiterados como logotipos de amplo
espectro comunicativo301.
Todos os episódios da trama têm como alicerce a farsa e cada cena adquire um signi-
ficado complementar, ou seja, onde parece terminar a alegoria é onde realmente começa a lei-
tura alegórica302. Portanto, como já foi possível ver, ao longo desse trabalho, todos os fragmen-
tos presentes em Bolero poderiam ser lidos independentemente e terem suas interpretações des-
vinculadas do enredo “principal” do romance. Porém, quando se propõe fazer a leitura “por
300 Flávio KOTHE, 1986, p. 21. 301 KOTHE, 1988, p. 67. 302 KOTHE, 1988.
121
inteiro”, percebe-se que os elementos alegóricos presentes em cada um potencializam a pro-
posta geral.
Para ir além da problemática da transição de regimes e contemplar a leitura de Bolero
como uma subversão ao romance de fundação, deve-se passar a olhar os fragmentos como eta-
pas do processo de transformação do personagem-narrador de alienado a republicano. E, tam-
bém, tomá-lo como figura representativa dos traumas nacionais.
Assim sendo, os sete anos que passou na maternidade alienado de todos os fatores
externos é a primeira derrota apresentada na narrativa, mesmo se considerarmos o que ele conta
sobre Cynthia e o filho ou outra história que está sendo omitida na narrativa. Verdade ou não,
a história do desaparecimento de sua esposa durante o parto pode ser vista como uma forma do
personagem mudar e não precisar lidar com o passado conturbado. Ao invés de encarar o pro-
blema, torna-se mais fácil construir uma nova narrativa sobre ele. Nesse sentido, duas interpre-
tações são possíveis alegoricamente: a primeira diz respeito ao período de transição de um pro-
jeto de nação para o outro; a segunda, aos regimes antidemocráticos e autoritários.
Ao ter um projeto fracassado e, na sequência, o início de outro, comumente opta-se
por não olhar com a devida responsabilidade para os erros cometidos ao longo desse processo.
Em consequência, surgem novos traumas com grande possibilidade de potencializar os anteri-
ores. Portanto, a alienação do personagem-narrador e a perda de memória sobre a história da
cidade em que nasceu e cresceu são coniventes para que dê o próximo passo.
Já sobre o outro ponto, os governos autoritários tendem a manipular os meios de co-
municação para que a história registrada seja aquela que os favoreçam, tanto sobre o presente
quanto sobre o passado. Nesse caso, o governo se aproveita da alienação da população para
implementar a política do esquecimento e alterar a percepção dos acontecimentos históricos.
Desse modo, a alienação do personagem lhe possibilita construir uma nova identidade indepen-
dente de sua vida anterior.
Essas duas possibilidades de interpretação são complementares, tendo em vista que
estamos considerando os projetos de nação fracassados e os regimes antidemocráticos que in-
tegram a nossa história nacional, o que nos leva à segunda derrota do personagem-narrador: a
prisão e a tortura. Segundo Ivete Keil, “a tortura foi o coração do drama que constituiu a vigên-
cia da ditadura militar no Brasil. Institucionalizada pelo Estado, a tortura adquiriu, além de um
conteúdo ético, um conteúdo político303”.
303 Ivete KEIL, 2004, p. 41.
122
Nessas circunstâncias de clausura forçada, a pessoa perde a noção de tempo e de es-
paço de modo que, do ponto de vista simbólico, a espera sem fim pela chegada do filho na
maternidade pode também ser considerada sua primeira experiência de prisão e tortura. Já a
segunda, ao invés da sala de espera, tem-se uma cela na companhia dos monólogos do compa-
nheiro Número Um e dos encontros com o “maestro de capuz negro”.
Foram duas prisões, e ambas deixaram marcas que ultrapassaram os limites do corpo
e do tempo. Mas, ainda assim, a veracidade de parte da história do personagem é colocada em
dúvida: não é possível provar a espera de sete anos na maternidade, pois ele dispõe apenas do
testemunho ocular da enfermeira de pernas-ponteiro. Já a tortura na prisão sim, essa deixou
marcas em seu corpo, conforme seu relato sobre a reação dos vermelhoazuldourados ao con-
duzi-lo à “câmara de.”: “A transformação de minha cara e de algumas partes do meu corpo
proporcionava-lhes o mesmo deleite de um conhecedor de Arte numa galeria do Louvre304”.
No livro testemunhal de Roberto Salinas, Retrato calado (1988), há um trecho em que
o escritor afirma não ser possível comparar diferentes sistemas repressivos. Contudo, constata
que há um padrão universal e invariável no “imaginário repressivo” que os aproximam. Salinas
está se referindo aos métodos de tortura utilizados pela polícia da qual foi vítima durante a
ditadura miliar brasileira305.
É óbvio que um abismo separa o sistema repressivo posto em ação a partir de 68 e,
por exemplo, aquele que vigorou no auge do stalinismo, na União Soviética. Certo:
muitos dos métodos de tortura foram idênticos e, lá como cá, o desempenho do poder
de polícia parece fornecer demonstração eloquente de como são universais e invariá-
veis as estruturas do imaginário repressivo306.
O discurso trava e, por vezes, busca-se na metáfora uma forma de recuperar as expe-
riências vividas. O escritor dedica poucas linhas ao relato da tortura em si pois, uma vez que
não é possível descrevê-la, seu livro consiste em longas páginas sobre as sensações que viveu
e presenciou dentro e fora das prisões, detalhando alguns métodos físicos e psicológicos dos
quais foi vítima. Até mesmo na ficcionalização de suas memórias há hesitação e é possível
perceber o esforço, a coragem e a dificuldade em expressar em palavras o que um dia sofrera
nos porões da ditadura.
304 GIUDICE, 1985, p. 38. 305 Segundo o livro Brasil: nunca mais, o ato de tortura, defendido pelas ditaduras militares, era considerado “mé-
todo científico”, sendo o Brasil exportador de tal tecnologia. Como parte do sistema repressivo, havia aulas e
demonstrações didáticas dos métodos com a utilização de cobaias (2011, 31-3). 306 Roberto SALINAS, 2018, p. 41.
123
Já Bolero não é um registro de ocorrência, documento, diário ou depoimento memori-
alístico; é uma literatura de pura ficção e, mesmo assim, o personagem-narrador hesita, treme
e teme ao evocar suas memórias mais dolorosas: a espera na maternidade e a tortura na prisão:
“A tortura é irmã gêmea de uma sinfonia de Beethoven. Tanto na grandiosidade quanto na
intensidade da emoção transmitida. (...) Ninguém descreve Beethoven. Ninguém descreve a
tortura. Alguém sente Beethoven307”; essas são suas palavras para contar o que viveu na “câ-
mara de.”. Segundo o personagem, ao final de cada peça sinfônica os espectadores ficam lem-
brando as outras excelentes performances que presenciaram, mas é impossível revivê-las ou
descrevê-las, pois cada apresentação é um evento único. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto
o prazer quanto a tortura chegam a parecer quase irredutíveis ao plano discursivo.
Victor Giudice não escreve o horror; ele se limita a refletir sobre a possível lógica que
rege o ato da tortura, conforme as palavras do personagem-narrador:
Não há linguagem capaz de descrevê-la, desde o momento em que cesse de
ser exercida. Já li e vi extensas narrativas a respeito de pessoas torturadas até a morte,
e sempre me ficou a impressão de um amontoado de baboseiras que não conseguem
nenhuma apreensão do real308.
Como dar forma ao incompreensível? No capítulo/fragmento intitulado ‘Ludwig e o
carrasco309310’, Giudice emprega uma combinação inesperada da beleza da quarta sinfonia de
Ludwig van Beethoven com a brutalidade do ato da tortura. Tal comparação, para uns poderia
soar como absurdo, mas esse contraste representa o limite tênue, singular e inesquecível da
impecabilidade que se espera tanto da atuação do maestro quanto do carrasco.
[...] as notas de Ludwig ficarão ecoando de vitral em vitral, num eterno cânon, até o
dia em que se perceber que foi para esta catedral esférica e inescapável que um surdo
perdeu o precioso tempo, rabiscando as pautas da perpetuidade. Se tal dia existir,
ótimo. Se não, ótimo também, pois a derradeira prova da existência de uma civilização
vai retinir de espaço em espaço nos acordes de uma sinfonia, acompanhados pela per-
cussão de um carrasco311.
Contudo, as ausências de conotação emocional no discurso e dos detalhes sobre a vi-
olência não retira o aspecto de denúncia contra a repressão, pois a intensidade da tortura não
307 GIUDICE, 1985, p. 39-40. 308 GIUDICE, 1985, p. 39. 309 Os capítulos do romance não recebem titulação, mas o manuscrito encontrado no acervo indicava a informação
entre parênteses de que se tratava de um fragmento. Interessante pensar na pretensão de Victor Giudice em publicar
esse fragmento como conto, e o porquê não o fez. 310 Identifiquei no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa outros manuscritos com a indicação de fragmento de
romance e titulação, mas que também não foram publicados como contos avulsos: “Dueto, recitativo e ária”, “O
último natal de Holofernes: o gordo”, “Parábola do jogo de xadrez” e “Prezada, Cynthia” ou “Carta a Cynthia”. 311 GIUDICE, 1985, p. 40.
124
suscita somente palavras, mas também silêncio. Ao retornar à cela depois de sua visita matinal
ao “maestro de capuz negro”, o protagonista recebeu cuidados do seu companheiro cujo rosto
também apresentava marcas de sangue.
Nesse momento de cumplicidade, o prisioneiro Número Um perguntou detalhes de seu
encontro utilizando um tom trivial sobre o ocorrido, mas, apesar da indignação, a resposta li-
mita-se ao silêncio:
As palavras eram ruídos de fumaça, cuja compreensão só fazia irritar. Não fosse a
cordialidade do trapo nos ferimentos, não sei como teria reagido. Fiquei no catre, in-
sensível aos movimentos do velho. Acho que houve um cochilo meio prolongado312.
Após o ocorrido, o personagem-narrador evita falar sobre o assunto seja com seu com-
panheiro de cela, com sua nova namorada ou com qualquer pessoa, apesar de todos a todo
momento lembrarem-no de que ele é um torturado.
Segundo Márcio Seligmann-Silva, olhar para a história como trauma coloca em pauta
a possibilidade de construir uma representação, pois o trauma é, por definição, algo irrepresen-
tável e que se evita lembrar, pelo grau intolerável de dor a qual está associado313; são situações
que querem ser esquecidas, mas não podem.
Victor Giudice encontrou na metáfora sobre arte uma maneira de descrever o indescri-
tível. Já Sérgio Sant’Anna faz diferente em Confissões de Ralfo: o escritor denuncia o absurdo
da tortura não pela violência, mas através das perguntas descabidas do carrasco. De acordo com
Flora Sussekind, a estratégia utilizada por Sant’Anna “tematiza de maneira extremamente efi-
ciente a dificuldade de se tratar literariamente da tortura” e serve “tanto para obrigar o leitor a
perceber a gratuidade da violência, quanto para impedi-lo via humor, de derramar lágrimas
amargas pelo que o texto sugere314”, ou seja, o humor não tem o intuito de fazer graça ou dimi-
nuir a dor alheia, mas de causar incômodo ao outro (leitor) e deixá-lo desconfortável.
Nota-se em Bolero e em Confissões de Ralfo que o cômico aparece nas imagens cons-
truídas sobre os agressores. O personagem do torturador em Bolero não possui nome nem lhe
é dada a palavra na narrativa. A princípio, constrói-se sobre ele uma imagem grotesca, aquele
que ri “antes. Durante. Depois. Depois. Durante. Antes. No antes: perguntava e ria. No durante
e no depois, só ria315”.
312 GIUDICE, 1985, p. 41. 313 Márcio SELIGMANN-SILVA, 2008. 314 SUSSEKIND, 1985, p. 51. 315 GIUDICE, 1985, p. 38.
125
De acordo com Maria Rita Kehl, a tortura é uma ação por excelência humana, pois não
se conhece outro animal capaz de “instrumentalizar o corpo de um indivíduo da mesma espécie,
e de gozar com isso316. Segundo o relato do personagem-narrador, o “maestro de capuz negro”
ria durante as sessões de tortura, o que lhe concedeu de início um desvio de caráter. Nesse
sentido, o riso atua em conjunto com a violência como manutenção do poder, uma forma de se
impor e estabelecer seu lugar na hierarquia política e, inclusive, sobre a vítima, principalmente
nas circunstâncias do protagonista — que foi preso por cometer crimes “graves”, como retirar
uma flor dourada do canteiro da Cidade.
Na sequência, à medida que os dias na prisão vão passando e os encontros tornando-
se mais frequentes, ao torturador é dada a alcunha de “maestro de capuz negro”, “o intérprete
do terror desenterrando o mistério das manhãs, ao ritmo de uma sinfonia desafinada317”. Toda
informação sobre o torturador nos é fornecida pelos depoimentos do narrador e de Número Um
que, por sua vez, divergem de opinião já que o ex-pierrô surpreende o narrador e o leitor ao
defender aquele.
Segundo o ex-palhaço triste, o carrasco — que o protagonista tanto odeia e teme — é
neto de um grande amigo seu e, sobretudo, é um senhor respeitável, chefe de uma família. Esse
é o breve momento da narrativa em que o algoz ganha destaque. Número Um insiste em dizer
que ser torturador é uma profissão como outra qualquer, embora seja reconhecida sua indigni-
dade. Em suas palavras: “Isso faz com que o carrasco mereça mais pena do que ódio318”, uma
vez que está em posição de subordinado ao receber e obedecer às ordens de outrem; como se
isso o destituísse de qualquer responsabilidade. Segundo Kehl,
A tortura moderna não desarticula apenas, no torturado, o corpo e a linguagem: ela
desarticula um homem (torturador) da relação com seu semelhante (torturado) que o
primeiro faz sofrer, às vezes até a morte, como se não tivesse qualquer participação
subjetiva nesse ato. Desarticula também dessa forma a relação entre um homem no-
vamente o torturador e seu próprio desejo, que o fez aceitar o “trabalho sujo” e acatar
as ordens que se limita de maneira falsamente impessoal319.
Pela perspectiva da autora, apesar do prisioneiro Número Um insistir, não é possível
justificar a participação do carrasco no sistema repressivo como uma profissão qualquer ou por
sua obediência cega ao sistema.
316 Maria Rita KEHL, 2004, p.13. 317 GIUDICE, 1985, p. 42. 318 GIUDICE, 1985, p. 44. 319 KEHL, 2004, p. 18.
126
Mas é fato que ambos perderam sua dimensão humanizada e dificilmente a recupera-
rão, pois o sujeito que sofre violência tem seu corpo transformado em objeto nas mãos daquele
que destitui da vítima sua possibilidade de defesa. Para tanto, a tortura jamais poderá ser con-
siderada desumana, pois, conforme destaca Kehl, “a tortura só existe porque a sociedade, ex-
plícita ou implicitamente, a admite [...] Ela é humana”320.
Por outro lado, a familiaridade e a cumplicidade entre o carrasco e o prisioneiro Nú-
mero Um podem também ser lidas como uma consequência do trauma. Afinal, há cinquenta e
quatro anos aquele é vítima de torturas diárias, situação que lhe concedeu um rosto desfigurado
e uma pele calejada de tanta pancada. De acordo com as impressões do personagem-narrador
ao olhar claramente para o companheiro de cela:
O retângulo do sol, prenunciado na véspera, traçou um relatório visual das mazelas da
masmorra. As sucessivas metamorfoses da massa facial de meu companheiro não se
moldavam em medo envelhecimento. As rugas rompiam ao redor das órbitas e escor-
regaram pelo rosto, rasgando riscos ou rabiscos de irrigações recriadas pelo artifício
do carrasco321.
Para o narrador, não faz sentido algum continuarem torturando o velho ex-pierrô: de-
pois de tanto tempo, qual poderia ser sua contribuição para as investigações do governo? Nada.
Nota-se, nesse caso, que a tortura perde seu caráter político e a sua condição de “método cien-
tífico” de investigação para ser apenas um protocolo e, diante disso, está muito mais relacionada
ao poder que coloca os torturadores em posição de total dominação diante do torturado.
A violência desses procedimentos quebra por completo o indivíduo torturado, de tal
forma que o prisioneiro Número Um após tantos anos de torturas diárias já não possuía nenhum
pedaço para reconstruir, e talvez seguir visitando o “maestro de capuz negro” significava uma
forma de dar propósito à sua existência limitada. Tanto é que o personagem passa a dignificar
a tortura e se coloca em posição de privilegiado por recebê-la: “Tenho tanto direito à tortura
quanto qualquer canário dessa gaiola. As pessoas torturadas são as que ainda têm alguma coisa
para dizer. Só os eleitos sofrem torturas. Se não sabia, fique sabendo. Já leu os Pensées?322”.
As técnicas de crueldade são tão agressivas que prejudicam as faculdades mentais e
físicas daqueles que sofreram tais atos, impossibilitando-os de voltar a ser uma ameaça ao sis-
tema. Isso significa, no contexto da narrativa, impedi-lo de utilizar o pensamento e voltar-se
320 KEHL, 2010, p. 130. 321 GIUDICE, 1985, p. 42. 322 GIUDICE, 1985, p. 44.
127
novamente contra o poder estabelecido. Daí a importância e o perigo que representa ser um ex-
prisioneiro e torturado na sociedade da Cidade e em qualquer outro sistema repressivo.
Quando o personagem-narrador finalmente saiu da prisão e retornou à sociedade, per-
cebeu que sua vida mudara por completo. Nunca mais seria o sujeito na maternidade, conforme
constatou em certo momento: “Viu, Cynthia, em que é que deu sua brincadeira de esconde-
esconde? Vezirrê Budru e o Ajudante Máximo estarão de olho em mim até que a Monarquia se
estupore323”.
Ajudante Máximo, chefe da guarda circense, aproveita todos os encontros inusitados
com o protagonista para questioná-lo sobre suas atuais intenções, sobre seu passado e sobre as
suas relações. Uma vez preso político, sempre estará na mira da vigilância nacional e terá al-
guém para lembrá-lo disso; ainda que não seja necessário. A ação do chefe da guarda adiciona
outra forma de tortura, a psicológica, tão “eficiente” quanto a física. Muitas vezes atuam juntas,
afinal, a tortura deixa marcas, muitas vezes invisíveis, nos corpos.
O discurso do torturado conserva uma íntima relação com o corpo. Um corpo que não
se restringe às marcas, mas se expande para o seu íntimo. Nas palavras do personagem-narrador,
“a tortura só é válida ou mensurável quando praticada324”, indescritível e inimaginável para
aqueles que nunca passaram por tal situação. Por esse motivo também, ser vítima dela é tão
importante para fazer parte do “Clube dos torturados” como o próprio nome sugere, e princi-
palmente para ser considerado um republicano na ativa.
Ao sair da prisão e receber o apoio e abrigo da aurifamília, o personagem-narrador
estava inconscientemente aceitando sua posição como ex-prisioneiro político e atual revoluci-
onário republicano. Auritio e Auriflor estruturaram uma rede de relações para torná-lo a perso-
nificação da esperança. No entanto, em certa altura da narrativa descobre-se que a tortura não
havia deixado marcas em seu corpo.
Cadê as cicatrizes?
[...]
Sabia que as torturas não deixaram nem uma só marquinha pra contar a his-
tória?
[...]
Corri para o espelho do armário. Era verdade. Pouco restava do círculo arro-
xeado em meu olho esquerdo e dos dois cortes ao lado da boca e abaixo da orelha.
Mais uma semana e minha condição de ex-torturado estaria prejudicada pela recons-
tituição da pele325.
323 GIUDICE, 1985, p. 157. 324 GIUDICE, 1985, p. 39. 325 GIUDICE, 1985, p. 183-4.
128
O diálogo acima suscita-nos a reflexão sobre o embate entre a vontade do torturado de
esquecer e a necessidade de denunciar e provar o suplício. Nesse caso, o que fazer quando sua
única prova física desaparece? Um problema a ser resolvido, pois para fazer parte do “Clube
dos torturados” era necessário também apresentar as marcas que comprovassem a veracidade
dos atos sofridos na prisão. Como um símbolo que, em meio a tantas farsas, representa a única
prova a fim de obter o aval para ingressar na luta contra a tirania do rei, portanto, pode-se dizer
que as cicatrizes são como metáforas da memória, elas falam por si só.
A solução é apresentada pelo Auritio, o responsável por introduzir o personagem-nar-
rador entre os (ex) militantes republicanos; apesar deste nunca ter afirmado ser republicano,
mas o fato de ter roubado uma flor da praça, ter sido preso e ter desistido de ir embora fazem
com que aquele o reconheça como um militante comprometido com a causa, conforme sua
declaração ao vê-lo regressar da estação:
Quer dizer que resolveu permanecer na luta? Assim é que se fala. Aliás, sua
cara nunca me enganou. Desde aquela primeira noite que eu senti... que eu senti ...
(punhos cerrados sublinhando o senti)
que
eu senti que você era uma parada dura e que não tinha nada com esses merdas do
clube. Mas a gente depende deles326.
Para solucionar o problema das cicatrizes desaparecidas, Auritio e o Barão arrumaram
um esquema: submeter o personagem-narrador a procedimentos cirúrgicos que lhe garantissem
marcas tão reais quanto a tortura que um dia sofreu na prisão. O protagonista não questionou,
não problematizou, não se negou nem afirmou. Ele simplesmente fez o que lhe disseram ser
necessário, como se a espera na maternidade seguida da prisão lhe tivessem tirado tudo: filho,
esposa e o livre arbítrio, ou em suas palavras:
Na realidade, muitas vezes as pessoas não são o que pensam que são e sim o que outras
determinam que elas sejam. Minha condição de republicano fora promulgada pelo
Auritio, sob os orgulhos desatinados da sobrinha, e pelas senhas do Barão. O que
ocorria comigo era uma espécie de transmutação gradativa diante da desumanização
da Cidade e de seus habitantes327.
Seu comportamento revela uma total perda de segurança e autoridade sobre o próprio
corpo e sobre sua vida. Por isso, esse momento caracteriza-se como sua terceira derrota na
narrativa. Segundo Kehl, o corpo do torturado “é um corpo que não pertence mais a si mesmo
e transformou-se em objeto nas mãos poderosas de um outro (torturador) [...], corpo objeto do
326 GIUDICE, 1985, p. 186. 327 GIUDICE, 1985, p. 194.
129
gozo maligno de outro corpo328”. Novamente, o protagonista de Bolero teve seu corpo objetifi-
cado e condicionado à violência, porém dessa vez consciente, anestesiado e por “vontade pró-
pria” (ou não): “Confesso que senti uma ponta de arrependimento por não haver pegado o trem
da meia-noite e quarenta, vinte dias antes329”.
Não canso de afirmar que a narrativa de Giudice é baseada em farsas, desde a constru-
ção dos personagens até o cenário político da Cidade. Essas são sempre acompanhadas do ele-
mento cômico e absurdo, como essa “plástica às avessas” a qual o protagonista é submetido. O
cirurgião plástico encarregado de fazer o serviço mantinha seu consultório aos fundos de “um
apartamento elegante, onde uma modista e duas auxiliares costuravam vestidos para donas-de-
casa burguesas e, na maioria, monarquistas330”.
A ironia do espaço ocupado pelo “(centro-cirúrgico-entre)331” comparado ao edifício
cinzento a que esteve preso estava no fato de que neste não haveria perguntas: “No quarto dos
fundos, o médico esculpia rostos clandestinos, extraía balas tão monarquistas quanto as fregue-
sas da moda, curava torturas e, ocasionalmente, executava outras. Foi o meu caso332”. Durante
todo o procedimento no consultório clandestino, entre picadas e incisões, o personagem-narra-
dor pôde observar no ambiente e na sua condição uma irônica e ao mesmo tempo poética sur-
realidade, como é possível observar na seguinte passagem do texto:
O que eu queria era comentar com ela [Auriflor] as relações entre o cirurgião dos
fundos e a modista da frente: ela costurava vestidos e ele bordava cicatrizes. Podia ser
trágico, mas que havia relações, havia. Quase ri, mas se o fizesse o aspecto profissio-
nal do ambiente desmoronaria como o palacete imperial333.
Finalizada a etapa da “plástica às avessas”, Auritio e o Barão acharam conveniente que
a recuperação fosse realizada em um local mais seguro do que a auricasa devido à presença do
monarquista veterano Auriavô, e do isento Auripai. Segundo o narrador, “não se chegou a dis-
cutir porque a única opção plausível me transferiria sem armas e bagagens para a Mansão Mon-
chicque334”, o que acabou por resumir-se em uma oportunidade perfeita para estreitar os laços
entre o mais novo republicano e o artista inacabadista Ladislau bem como seu irmão econo-
mista.
328 KEHL, 2004, p. 9-10. 329 GIUDICE, 1985, p. 189. 330 GIUDICE, 1985, p. 191. 331 A expressão é uma referência à placa na porta da maternidade em que Cynthia entrou e nunca mais saiu: “centro-
cirúrgico-não-entre”. 332 GIUDICE, 1985, p. 191. 333 GIUDICE, 1985, p. 192. 334 GIUDICE, 1985, p. 192.
130
Ladislau pode ser descrito como uma figura excêntrica, um pouco perturbada, “um
gênio incompreendido335”. Sua primeira aparição no romance foi durante o sarau dos Monchi-
cques, noite em que apresentou ao lado de sua tia a tragédia “A lenda dos doze rios”. Agora, ao
conhecer seu ateliê, o personagem-narrador também conheceu um pouco do seu estilo artístico,
o inacabadismo:
O estilo inacabadista consiste em levar o observador a se julgar diante de uma obra
acabada. Através de uma percepção mais aguçada, ele pesquisa na pintura a expressão
de certos pormenores, fato que aos críticos acadêmicos pareceria abominável. A partir
desse instante, a arte monchecquiana instaura uma espécie de participação obrigatória
do espectador336.
O sobrinho da Condessa demonstrou ser um conhecedor do pensamento, tal qual o
personagem Número Um. Consequentemente, pode-se dizer que é um crítico político pouco
valorizado e desacreditado na mudança. Segundo ele, todas as pessoas são vítimas de um sis-
tema que destrói toda forma de pensamento por privá-las da arte:
Quando iniciei minha busca, eu já sabia de todas as vítimas de nosso tempo. E sei das
que ainda virão. [...] Você é a grande vítima de outra vítima. Nós todos seremos víti-
mas de outras vítimas. A mente humana está destruindo a mente humana. Dentro de
poucos minutos a Arte será nula, o pensamento será nulo, o homem será nulo337.
Até esse primeiro momento, o personagem-narrador não tinha clareza da importância
dessas palavras em sua trajetória política. Somente foi compreender o significado das telas
brancas inacabadas e da potência de uma bela peça sinfônica durante os dias de convalescência
na companhia do pintor: “A música me causava uma espécie de malefício benéfico e me trans-
mitia uma impressão quase material intimamente condicionada à memória, recriando em mim
momentos essenciais338”. Foi depois desse momento de total entrega aos efeitos da arte musical
que o personagem compreendeu que Ladislau respeitava e reconhecia a luta republicana, mas
sua consciência política estava muito além da simples escolha de lado — república ou monar-
quia. Por esse motivo, o personagem representava um perigo aos olhos dos líderes políticos
locais e foi preso pelo Ajudante Máximo na manhã de Natal.
A prisão do pintor inacabadista estimulou no personagem-narrador a semente plantada
pelo prisioneiro Número Um, de modo que o punhal do pensamento começou a penetrar em
sua mente e a torná-lo definitivamente o “único republicano na ativa”, conforme o seguinte
trecho de sua conversa com Madame Odhontyna naquela tarde de Natal:
335 GIUDICE, 1985, p. 123. 336 GIUDICE, 1985, p. 123. 337 GIUDICE, 1985, p. 123. 338 GIUDICE, 1985, p. 190.
131
[...] Quando estive preso conheci uma pessoa assim como ele [Ladislau].
Mas estava presa, não estava? Quer dizer, não podia mostrar a superioridade
aos outros.
O punhal me forçava a prosseguir:
Condessa, a superioridade não é feita para ser mostrada.
[...]
Então para que serve?
[...]
Para ser sentida, Condessa. A superioridade é uma energia que se comunica
aos outros seres. A energia do meu colega de prisão me contaminou, e mesmo que
não tenha me tornado superior, deixou uma espécie de semente no meu espírito. De-
pois daqueles poucos meses de convivência com ele, eu não me sinto mais a mesma
pessoa. É como se o pensamento pudesse mudar de roupa. A senhora está enten-
dendo339?
Ao mesmo tempo em que discutiam a importância da arte e de pessoas como Ladislau
na sociedade, nas Indústrias S.A. iniciava-se uma grande greve dos trabalhadores para deses-
pero do “irmão de Ladislau”, atual presidente devido à morte precoce de Holofernes, o Gordo.
A situação estava preocupante, de acordo com o economista:
Lá nas Indústrias, aqueles bobalhões resolveram fazer uma greve. Assim. De uma
hora para outra. Sabe quantos foram presos? Cento e vinte nove. Sentiu? Cento e vinte
e nove. O que que eu posso fazer? Regulamentos estão aí para serem obedecidos340.
A greve iniciou logo depois da notícia de que Holofernes havia aparecido morto na
praça da Cidade no Natal341, mesmo motivo que levou Ladislau a prestar depoimento na dele-
gacia, apesar de que o pintor não tinha relação alguma com a morte do empresário, mas naquele
momento todos eram suspeitos e toda Guarda Real estava em alerta até segunda ordem.
Bem, não há nada a fazer. Apenas sou eu que estou de joelhos agora, pe-
dindo, implorando a vocês, a você, Auriflor, ao seu pai, ao seu avô, ao seu tio, que
não deixem de ir ao enterro de meu sogro, amanhã. Por favor, tenham juízo. Caso
contrário, vai ser outra enrascada.
Olhares342.
A influência de Holofernes para a economia e política locais era tamanha que toda
Cidade compareceu em seu velório, incluindo os republicanos e o recém-operado. Ainda, o
personagem-narrador aproveitou a ocasião para fazer uma visita às Indústrias S.A. com o irmão
do Ladislau. Para sua surpresa, o economista mostrou-se também ser amante das artes plásticas
e musicais, porém sua preferência estava nas experiências visual-sonoras: “música é coisa para
ser vista e não para ser ouvida. Mas vamos assistir à Quinta [de Beethoven]343”.
339 GIUDICE, 1985, p. 196-7. 340 GIUDICE, 1985, p. 199. 341 O relato da morte do personagem Holofernes consta nos manuscritos como um fragmento intitulado “O último
natal de Holofernes, o Gordo”. Porém, não há informações sobre sua publicação anterior ao romance. 342 GIUDICE, 1985, p. 201. 343 GIUDICE, 1985, p. 209.
132
Possivelmente o convívio com os sobrinhos da Condessa deve tê-lo inspirado em sua
analogia sobre a tortura e a Quarta de Beethoven, além de fazê-lo entender as diferentes formas
de apreciar a arte e, claro, compreender aos poucos o funcionamento da Cidade e das forças
monárquicas e republicanas.
Nas Indústrias, o personagem esteve frente a frente com a opressão do sistema traba-
lhista. Diante dos portões de entrada “mil oitocentos e oitenta e nove homens344” brigavam e
gesticulavam para conseguir um emprego, vigiados por dois guardas com metralhadora. Se-
gundo o irmão de Ladislau, a empresa representava a principal fonte de renda da Cidade.
Enquanto em uma das seções, oitocentas e dezenove mulheres trabalhavam em perfeita
sincronia vinte quatro horas diárias: “De duas em duas horas elas têm dez minutos de des-
canso345”; na seguinte, quinhentos e trinta operários trabalhavam sem parar em meio a chapas
de aço quentes na qual “no mês passado um operário morreu aí dentro. Foi uma merda346”;
outras trezentos e quatorze mulheres e duzentos e noventa e cinco homens desempenhavam
funções similares; assim por diante, seção por seção.
A logística da companhia parecia um perfeito baile carnavalesco em que todos traba-
lhavam similarmente, sincronicamente e caracterizados, principalmente a seção experimental
da ala das lixadeiras:
Neste conjunto quase todas as operárias eram negras. [...] As componentes da ala im-
pulsionavam alavancas, movimentando lixas sobre tábuas mal aparelhadas. Os movi-
mentos repetiam o mesmo ritmo, numa divisão perfeita do compasso binário347.
Aparentemente, para os dois irmãos pouco importava quem estivesse no poder, con-
tudo, o economista preocupava-se com o trabalho, com os lucros provindos das Indústrias e de
que maneira o governo influenciaria nisso: “Na verdade eu estou cagando e andando pra essas
repúblicas de papelão e pra essas monarquias de bosta. O que eu quero mesmo é botar essa
Cidade pra frente e jantar no Sésamo348”.
O falecido Holofernes soube ensinar as prioridades capitalistas a seu genro e sucessor
com tamanho empenho que ambos tinham o mesmo sonho de jantar no Sésamo349, e trabalha-
vam para isso sem importar quantos funcionários fossem presos ou mortos ou quem estivesse
344 GIUDICE, 1985, p. 212. 345 GIUDICE, 1985, p. 210. 346 GIUDICE, 1985, p. 211. 347 GIUDICE, 1985, p. 216. 348 GIUDICE, 1985, p. 220. 349 “O Sésamo é um restaurante que há numa dessas cidades ricas. Tem quarenta garçons e só serve um jantar por
ano, para uma pessoa” (1985, p. 220).
133
no governo da Cidade durante esse processo. Infelizmente, Holofernes morreu sem alcançar a
façanha enquanto que o irmão de Ladislau conseguirá reservar uma mesa no restaurante quatro
anos depois da implantação da República, com uma breve fila de espera de três anos. Segundo
o personagem-narrador, cedo ou tarde, todos conseguem realizar os seus maiores sonhos
“mesmo que seus esforços só sejam coroados no derradeiro limite da posteridade350”. Todavia,
não creio que se incluam nessa afirmação os funcionários das Indústrias ou os moradores de
rua que encontrou no caminho da estação de trem.
Os segmentos institucionais da Cidade assumem a posição política de quem estiver no
poder, seja a polícia, os hospitais ou o comércio. Eles trabalham para aqueles que estão fazendo
o sistema funcionar. Segundo o irmão de Ladislau, no regime anterior
os monarquistas pintaram e bordaram. Quando a coisa ficou preta, o gover-
nador fugiu para outra cidade. Pediu asilo político. A turma da Guarda Republicana
se passou pro lado de Vezirrê Budru e ele foi coroado em sete dias351.
De acordo com o irmão economista, “o idiota do Ladislau costuma dizer que os mo-
narquistas nada mais fizeram que substituir as proibições da República por outras e acrescentar
algumas. Ele não deixa de ter suas razões352”. Possivelmente, na República os dois erres sejam
substituídos por um erre e um gê: regulamento e governo ou algo semelhante.
Essas declarações somadas às do prisioneiro Número Um e de seu irmão reforçam o
discurso sobre o sentimento de derrota por compartilharem a opinião de que as sucessivas tran-
sições de regime servem apenas para encobrir problemas maiores. Foi com base nessas opiniões
e teses que o personagem-narrador começou a ter senso crítico sobre o jogo de poder que en-
volvia o sistema político da Cidade.
Após longos dias e noites de recuperação na mansão dos Monchicques, enfim, acon-
teceu o jantar do “Clube dos Torturados”. Nesse momento, o personagem-narrador já aderira
ao papel de ativista, modificando completamente sua história desde a saída da maternidade
deixando de ser um preso por engano para ser mais um torturado político pela monarquia. Tal
transição pode ser observada em dois trechos descritos a seguir. O primeiro está presente em
um diálogo com o personagem Número Um:
Chega. Pare de falar. Eu não estou mentindo porcaria nenhuma. Vocês é que
são uns filhos da puta. Passei sete anos na Avenida Seis de Outubro, na maternidade,
e caí num mundo de loucos. Você inclusive, seu velho porco. Não tenho nada com rei
nem com bandeiras ou com flores artificiais. O que eu quero é sair daqui, ouviu bem?
350 GIUDICE, 1985, p. 338. 351 GIUDICE, 1985, p. 220. 352 GIUDICE, 1985, p. 221.
134
Podem me torturar quantas vezes quiserem que eu não contarei nada. E sabe por quê?
Porque não tenho nada para contar353.
E o segundo, na tragédia dos torturados:
O AURITIO: (Formando três bolinhas.) Não. Não é nada disso. Você está confun-
dindo tudo. Ele [o personagem-narrador] passou sete anos na clandestinidade.
Depois é que foi preso.
[...]
EU: (Sem conseguir eliminar a timidez) Bom, o negócio é que eu... eu funcionava
perto da ... perto da maternidade da Seis de Outubro e... e quando minha mulher
foi dar à luz, houve complicações, o parto foi um pouco demorado e eu resolvi
sair para dar uma volta. A sobrinha dele estava lá. Você deve conhecer...
[...]
EU: Essa mesma. Auriflor. Ela me aconselhou a tomar um pouco de ar. Eu saí passe-
ando e quando vi as flores... as tais flores douradas...
O ROMANCISTA: Ficou revoltado.
EU: Fiquei. Bom... quando vi as flores, tirei uma delas.
O AURITIO: Uma, não. Tirou muito mais.
EU: Primeiro tirei uma. Depois é que tirei as outras354.
Uma famosa frase diz que “uma mentira repetida entre cem a mil vezes torna-se um
dia verdade355”. Apesar de referir-se à estratégia dos governos autoritários de manipulação da
história, de certa forma, essa frase faz muito sentido, nosso herói que o diga.
Os dois trechos que destaquei mostram a incoerência de seu discurso em momentos
distintos da trama. Primeiro, quando recém tinha sido preso e não conseguia entender o porquê
de todas as desventuras que lhe ocorriam, negando veemente o roubo intencional de uma flor
dourada da praça central da Cidade. Mas, no segundo momento, de tanto afirmarem que seu ato
falho foi na verdade um ato político de coragem e bravura, ele incorpora o personagem criado
e passa, também, a reproduzir a história como verídica – ou seja, afirma que o roubo (não mais
de uma flor, mas de várias flores) tinha a intenção de ser um ato ilegal e republicano.
A dramática reunião do “Clube dos Torturados” deveria ser um momento de articula-
ção entre os republicanos da cidade, entretanto o jantar resumiu-se a comidas, bebidas, charutos,
competição de cicatrizes e egos entre intelectuais ex-torturados terminando, por fim, com a
morte “voluntária” de um dos membros, Morgana.
Conforme o Auritio comentou, não é um grupo articulado de militantes, são ex-tortu-
rados que se reúnem periodicamente para compartilhar cumplicidades sobre o trauma. Ao que
353 GIUDICE, 1985, p. 47-8. 354 GIUDICE, 1985, p. 239. 355 O filósofo Friedrich Nietzsche (1978) foi quem proferiu a frase pela primeira vez, no entanto, posteriormente,
foi atribuída a Joseph Goebbels, ministro de propaganda e sucessor de Adolf Hitler na Alemanha nazista.
135
tudo indica, os integrantes do clube tornaram-se ativistas inoperantes após suas respectivas pri-
sões e torturas e, ainda que neguem, Létera afirma que noventa e nove por cento dos torturados
“divinizam a experiência” como se a prisão fosse o auge de sua militância. O Romancista a
responde afirmando que conheceu no cárcere um sujeito chamado Aristóteles que nunca parou
de militar, fora preso e torturado seguidas vezes: “o Aristóteles não divinizou a experiência
dele. Foi metralhado há dois anos, quando distribuía panfletos contra Vezirrê Budru356”.
Para reforçar a ideia, O Professor relata sua experiência de clausura com saudosismo,
como se não houvesse outra chance de aquilo acontecer novamente, ou seja, uma oportunidade
única na vida.
O PROFESSOR: [...] Quando fui preso foi a mesma merda. Na primeira semana eles
não perguntavam nada. Pegavam a gente e caíam de porrada. A gente nem
sabia por que é que estava apanhando. Era porrada leve. Chicotada nas pernas,
nos braços. Como doía. Só uns quinze dias depois é que começava o interro-
gatório. Aí, endurecia. Aí é que a barra ficava pesada. Era alicate nas unhas,
no umbigo. Choque elétrico no saco. E depois, um calor filho da puta! [...]
Tem horas que dá uma saudade...
A JORNALISTA: Saudade?
LÉTERA: (Para o Professor.) Mas é tão fácil recuperar tudo isso. É só você não di-
vinizar o fenômeno.
(Morgana não ri.) 357
Létera enxerga a questão com mais profundidade: a personagem questiona o posicio-
namento de seus colegas ao disputarem egos e intelectualidades enquanto muitas pessoas atra-
vessam por situações reais e piores como a fome, conforme é possível observar no seguinte
depoimento:
LÉTERA: Nós, intelectuais, acabamos de devorar as costeletas de carneiro de Vitral,
temperadas com ervas aromáticas e cozidas em vinhos importados, apesar da
fome de não sei quantos milhões de famintos.
O UNIVERSITÁRIO: Mas não há filosofia política nenhuma que demonstre...
LÉTERA: Que filosofia política droga nenhuma! A única filosofia de quem é faminto
é a fome. Será que ninguém nota?
(Para o Romancista.)
Será que nem os intelectuais percebem358?
A anfitriã dos torturados consegue ver os reais problemas sociais da Cidade além da
simples disputa de poder entre republicanos e monarquistas, mas sua tentativa frustrada de mos-
trar os verdadeiros problemas aos colegas acaba por lhe render o título irônico de “panfletária-
guerrilheira”, proferido pelo O Doutor; como se aos intelectuais não coubessem tais preocupa-
ções.
356 GIUDICE, 1985, p. 244. 357 GIUDICE, 1985, p. 244-5. 358 GIUDICE, 1985, p. 248.
136
O debate entre os integrantes do Clube causa no personagem-narrador reações do pen-
samento. Ele sente seu cérebro pulsar cada vez mais intensamente e, por isso, Auritio intervém
enaltecendo suas qualidades de herói municipal para conseguir imediatamente sua aprovação
no grupo.
O JORNALISTA: Na prisão você chegou a soltar alguma coisa importante para eles?
EU: Para eles?
O JORNALISTA: É. Pro pessoal da Real.
O AURITIO: (Infinitas bolinhas) Nada. Não é por estar na presença dele, mas este
rapaz é um sujeito de fibra. Agora mesmo, quando vi que a situação dele estava
perigando, arrumei uma fuga com o Barão, mas ele resolveu ficar. Vocês sa-
bem muito bem. Estamos aqui pra isso. Pra resolver o caso dele. Se for preciso
clandestinidade, tudo bem. Mas já estava tudo preparado. Salvo-conduto, pas-
sagens, o diabo. E ele voltou da estação. É desses que a gente precisa aqui no
clube.
A JORNALISTA: (Rindo para o Auritio, entre crítica e simpática.) Aqui no clube. Eu
acho uma graça. O senhor fala dum jeito que quem ouve vai pensar que tam-
bém foi preso, torturado ...359
A reunião termina sem alarde com a morte silenciosa de Morgana. Já a primeira parte
do processo de transição do personagem-narrador finaliza, conforme suas próprias palavras,
“assim que os torturados, numa reunião posterior à dos Gabone, decretaram minha clandestini-
dade temporária360”.
4.2 O PENSAMENTO COMO ESTOPIM PARA A REVOLUÇÃO
“[...] além do nariz vermelho, nada mais se acrescentava à minha fisionomia. Depois,
vestiram-me uma camisa azul e um par de calças da cor da bola de pingue-pongue, com sus-
pensórios dourados361”. A clandestinidade nunca foi a vontade do personagem-narrador, muito
menos tornar-se um militante político. No entanto, desde que saiu da maternidade e “perdeu”
sua memória, todos os acontecimentos — desde a prisão política, a tortura, os procedimentos
cirúrgicos desnecessários e, agora, a clandestinidade — contribuíram para a anuência de sua
condição de último republicano na ativa.
Aceitar essa condição e ser aceito entre os renomados intelectuais torturados foi o pri-
meiro passo concreto rumo à revolução, e isso só foi possível graças às diferentes personalida-
des que cruzaram seu caminho. Cada um contribuiu de uma maneira distinta para ajudá-lo em
seu processo de reconhecimento e formação de sua nova identidade pós-Cynthia, bem como
359 GIUDICE, 1985, p. 241. 360 GIUDICE, 1985, p. 252. 361 GIUDICE, 1985, p. 252-3.
137
para encontrar as respostas que lhe faltavam para superar os traumas passados. Esses novos
laços estabelecidos são do âmbito do público, pois sua única relação privada era com Cynthia.
Segundo Roberto DaMatta, o espaço privado reflete uma espécie de ambiente da casa,
aquele que representa a morada, a calma e a tranquilidade. Em suas palavras: “Tudo, afinal de
contas, que está no espaço da nossa casa é bom, é belo e é, sobretudo, decente362”, por isso a
única memória que o personagem guarda do passado faz alusão aos seus dias com Cynthia. Por
mais que se sentisse abandonado pela esposa é à figura dela e à vida antes da maternidade que
recorre sempre que necessita, por exemplo, durante a clandestinidade no Circo, direciona um
breve comentário sobre sentir saudades de sua vida conjugal comparada à nova vida, por mais
torturante e entediante que fosse aquela:
Não faça julgamentos precipitados, Cynthia, mas estou começando a divini-
zar nossa experiência conjugal. Ultimamente eu tenho me sentido como aquele pro-
fessor de Matemática da reunião dos Gabone. O tal que ficava com saudade das tor-
turas.
Em certas ocasiões era tudo tão chato363.
Segundo DaMatta364, o espaço “da rua” está reservado ao perigo e ao imprevisível e,
por esse motivo, a clandestinidade parece tão desgostosa ao personagem fazendo-o resgatar
suas saudosas lembranças com a esposa. O mais próximo de um espaço privado que ele conse-
guiu chegar pós-saída da maternidade foi com a aurifamília, porém sua relação foi interrompida
pelas perseguições da Guarda Real e, consequentemente, pela clandestinidade, sendo assim,
aqueles continuaram fazendo parte do espaço público, ao menos até a transição de regime.
A segunda parte do processo de desalienação do personagem diz respeito às relações
que estabeleceu trabalhando no Circo somadas aos aprendizados anteriores, dado que já estava
começando a sentir os primeiros impulsos mentais. A casa dos Monchicque e dos Gabone foram
os espaços em que teve suas primeiras experiências com a força do pensamento, de modo que
estava agindo conforme sua mente impulsionava as ideias sobre os assuntos debatidos, isto é, o
despertar do pensamento também foi o seu despertar para os problemas sócio-políticos da Ci-
dade.
Em função desse progresso inesperado, ao assumir a função de comerciante no Circo
o personagem julgou estar regredindo e perdendo oportunidade de participar mais ativamente
362 DAMATTA, 1986, p. 18. 363 GIUDICE, 1985, p. s/n. 364 DAMATTA, 2001.
138
da luta republicana. Segundo afirma, sua função “se resumira em receber mensageiros incógni-
tos com mensagens cifradas do Barão ao Auritio e do Auritio ao Barão365”. Contudo, depois
descobriu que seu trabalho de confeiteiro lhe garantiria tempo para praticar o pensamento:
A queda do padrão social fazia parte da clandestinidade e das lutas republicanas. E,
não sei se para o bem ou para o mal, o ofício de confeiteiro passou a me lisonjear, no
dia em que associou de modo incisivo às minhas excitações mentais366.
As excitações mentais baseavam-se no simples ato de materializar o pigmento colorido
nos doces, o que lhe proporcionou uma sensação similar àquela que o jovem pierrô branco teve
na primeira vez que conseguiu materializar e manipular uma esfera. Os personagens estavam
diante da iniciação do potencial de criação do pensamento, que nada mais é que um estímulo
mental seguido de uma forte pressão, como a de um punhal, conforme pode-se observar nos
três trechos a seguir. A primeira vez foi relatada pelo jovem pierrô:
Pensou na esfera e sentiu o milagre. A ponta do punhal começou a se arredondar e a
escorregar pela massa encefálica. Estava saindo. O rapaz ergueu as mãos para retirá-
lo e sentiu que não era mais um punhal. Era uma esfera. De prata367.
A segunda, pelo personagem-narrador na casa dos Monchicques:
Eles odeiam a pintura de Ladislau. Por que será?
A observação me causou uma revolta e uma dor aguda no cérebro, como um
punhal estivesse penetrando-o
[...]
Verifiquei que a dor não era dor. [...] A dor apertou [...] O punhal me for-
çava a prosseguir368.
E a terceira vez, na casa dos Gabones:
LÉTERA: (Depois de me olhar fixamente.) [...]
Ele também sabe que daqui a poucos anos vai surgir outra sociedade. Sabe ou
não sabe?
EU: (sentindo novamente a excitação cerebral.) É bem possível.
(Atenção geral sobre mim)369.
É importante recordar que o pensamento possui fases. O protagonista passou pela fase
da curiosidade e da vontade de pertencer a algo maior; isso levou-o ao estímulo mental em
situações que lhe incitavam a necessidade de participar e tomar partido, tal qual a criança que
entrava escondida no Circo para admirar as habilidades do pierrô branco e um dia teve a opor-
tunidade de aprender a técnica a ponto de poder aperfeiçoá-la. Na clandestinidade, começou a
365 GIUDICE, 1985, p. 254. 366 GIUDICE, 1985, p. 253. 367 GIUDICE, 1985, p. 53. 368 GIUDICE, 1985, p. 196. 369 GIUDICE, 1985, p. 250.
139
adquirir consciência de que é possível criar através do pensamento. O trecho seguinte descreve
o que para muitos seria uma banalidade, mas para ele significou uma grande descoberta:
Não faz colorido?
Era terrível dar de troco uma negação e deixar a coisa por isso mesmo. Senti
pena do garoto e o sentimento ligou o mecanismo do cérebro. Em nome da verdade,
não vou dizer que um punhal se espetara em minha cabeça, mas a sensação foi pró-
xima. Peguei um dos flocos, virei-me de costas para o menino e liberei o pensamento.
Meu susto se deu cinco segundos depois, quando constatei que o algodão se tingira de
azul [...] E eu me inaugurei como pierrô dos algodões azuis370.
Tingir o algodão-doce branco de azul e materializar uma esfera de prata, conforme
comentei anteriormente, representam uma categoria do pensamento admitida pelas autoridades,
mas ainda não configurava um ato subversivo porque para descobrir a real motivação do pen-
samento fazia-se necessário muito trabalho e treino. O personagem-narrador pensou no desa-
parecimento de sua esposa Cynthia, no suposto filho, na prisão, na tortura, nas conversas com
Número Um, no seu relacionamento com Auriflor, nas atividades que exercia para a comuni-
dade republicana e em tudo aquilo que julgava importar para sua causa. Mas nada disso funci-
onou, porque o pensamento não pertence a uma causa pessoal.
Os dias estavam passando e sua única ação continuava sendo colorir algodões-doces
no Circo. Sem muito o que fazer, assistir aos espetáculos tornou-se seu passatempo. Segundo
ele, era muito mais fácil forçar (ou não) o riso nas performances dos colegas do que nas parti-
cipações de Eusebius, “o palhaço que acompanhava funerais dos poderosos, com a cara lavada
e deslavada371”. Em um dado momento, em casa, relembrando essas cenas, percebeu que o
estímulo aumentava à medida que visualizava na memória o ato da multiplicação dos pães, bem
como a reação de Eusebius e dos espectadores: “A gota do mal contagiou meu espírito com a
salubridade do ódio, e o cérebro respondeu com uma reação quase imediata. Por que motivo
estaria odiando Eusebius? Não quis saber372”. Continuou pensando naquilo, mas não teve tempo
para muito e, quando menos esperava, o punhal surgiu: “A excitação atingiu um clímax nunca
experimentado antes e o punhal mergulhou na cabeça. Realmente, Número Um. O pensamento
é um punhal espetado no cérebro373”. Aquilo que um dia imaginou ser loucura da cabeça de um
velho calejado de tanta tortura finalmente tornou-se realidade. Lembrar de seu amigo ao mesmo
tempo em que se deslumbrava por conseguir a proeza do pensamento fez com que entrasse em
colapso mental.
370 GIUDICE, 1985, p. 253. 371 GIUDICE, 1985, p. 255. 372 GIUDICE, 1985, p. 255. 373 GIUDICE, 1985, p. 255.
140
Queria conselhos de um pensador, por isso começou a conversar com um Número Um
imaginário. Em sua mente, corria o questionamento sobre o significado de tudo aquilo. Poderia
ele ser um candidato a pierrô branco? O punhal estava ali literalmente, espetado em sua nuca;
seu cérebro havia materializado uma “arma branca de má qualidade374”: não era uma esfera,
não eram cores, era um punhal que mais parecia uma faca de cozinha sem grandes utilidades.
Finalmente, encontrou uma motivação para manipular o pensamento. Só faltava des-
cobrir por que essa motivação era o palhaço Eusebius. Para ele, a multiplicação dos pães era a
grande obra da qual Número Um tanto falava, mas esse espetáculo do Circo significava o oposto
da grande obra. As atrações bem como a multiplicação atuavam como uma distração para que
os espectadores seguissem em sua alienação apática e obediência cega. Em outras palavras, o
entretenimento de massa causa cegueira diante da real relevância da arte como expressão de
pensamento e também na maneira como ela pode despertar a atenção das pessoas sobre o meio
em que vivem mas, como sabemos, isso não é conveniente para as formas autoritárias de go-
verno.
Apesar dos perigos que rodeavam o narrador, estar no Circo proporcionou-lhe experi-
ências únicas e que possivelmente jamais teriam acontecido caso não estivesse na condição de
perseguido político ou se tivesse fugido no trem da meia noite. Os espetáculos, as crianças, os
artistas e o tempo para exercitar o pensamento foram apenas algumas das oportunidades que
aproveitou, mas a principal circunstância conivente consistiu em poder encontrar respostas so-
bre o passado, o presente e, quiçá, sobre o futuro, seu e da Cidade.
Para isso, precisava conhecer mais uma pessoa e ele sabia exatamente quem. Diferente
dos demais personagens que conhecera através de eventualidades, como na prisão ou por meio
de Auriflor e Auritio, dessa vez ele foi atrás do palhaço de pernas de pau, o pirata Pons.
Número Um contou-lhe algumas histórias sobre o Circo de sua época, e nelas incluía
alguns parentes do palhaço Pons. O pirata nasceu e cresceu no Circo, e sua familiaridade com
o pierrô branco foi adquirida por meio de histórias que sua tia contava sobre o artista e amigo,
somente depois de anos quando também foi preso por uma das monarquias foi que realmente
conheceu o pierrô, “o velho teimoso”. Por conseguinte, se alguém poderia ajudá-lo a achar
respostas esse alguém deveria ser Pons.
O pensamento estava plantando sementes em sua mente, e ele plantando na mente dos
outros:
374 GIUDICE, 1985, p. 255.
141
Virou-se sobre a perna de pau e capengou para o Circo. Porém, eu tinha a mais
absoluta certeza de que voltaria. Notei que uma pequena
(ou enorme)
semente fora plantada, e o
tapa olho escondia uma luz muito tênue que poderia alastrar-se e iluminar minha pe-
numbra. Havia um mistério a mais na retaguarda de todos aqueles acontecimentos375.
As intenções do personagem-narrador estavam claras em todas as perguntas e respos-
tas que fazia e dava ao palhaço Pons, por exemplo: “Está com fome? Da sua omelete e da
verdade que está dentro dela376”. Ele não tinha dúvidas que estava diante da sua melhor fonte
sobre os enigmas da Cidade e do pensamento que ainda não havia desvendado.
Entre uma história sobre o Grão-vizir e a sopa dos pobres, Pons o surpreendeu com a
“parábola do jogo de xadrez”, a mesma história que o personagem Número Um o questionou
se conhecia, e também a que o irmão de Ladislau disse que lhe contaria em outra ocasião quando
visitou as Indústrias.
Já comentei em outro momento sobre a importância desse fragmento para a narrativa,
mas creio ser necessário retomá-lo porque consegue explicar inclusive a divinização da tortura
pelos integrantes do clube.
O rei da Sétima Monarquia mandou matar todos os enxadristas e destruir todas as peças
e tabuleiros por insinuarem durante o jogo a morte do rei; por fim, proibiu toda a população de
jogar xadrez. No entanto, ao restar uma pessoa que conhecia as regras, o jogo recomeçou e, de
uma hora para a outra, todos estavam jogando. Quando o rei descobriu, a Cidade inteira havia
se transformado em um grande tabuleiro:
Porém, o exército da Sétima Monarquia, que jogava com as pretas, perdeu
quatro peões, um cavalo, a dama e a partida. Depois do xeque-mate, o corpo do rei foi
sepultado sem as honras de praxe.
No dia seguinte, o povo inteiro jogava xadrez nos botequins, praças e bordéis,
enquanto cantava em altas vozes: O céu da República será mais azul377.
O pirata tentou explicar através da parábola que de nada adiantava o rei eliminar seus
opositores, pois a resistência não reside nas pessoas e sim nas ideias — assim como não é
possível acabar com o xadrez matando seus jogadores. O que de fato ocorreu foi que a resistên-
cia da população enxadrista derrubou o mais tirano de todos os monarcas da história da Cidade
e deu início à Sexta República. Por isso, as monarquias passaram a seguir a política das torturas
e não mais das execuções.
375 GIUDICE, 1985, p. 261. 376 GIUDICE, 1985, p. 262. 377 GIUDICE, 1985, p. 269.
142
Segundo o projeto Brasil: nunca mais378, poucos são os relatos sobre as consequências
das torturas nos processos políticos da Justiça Militar brasileira. Mas sabe-se que seus atos ma-
nifestam o medo e a impotência do sujeito torturado, de modo que o torturador detém seu do-
mínio físico, psicológico e moral.
Na monarquia da Cidade, poucos são os que retornam à ativa depois de passarem pelos
porões da prisão. Aquilo que os integrantes do Clube chamam de divinização dos atos de tortura
reflete o trauma ao qual ainda estão condicionados, bem como ao auge de suas “carreiras” no
movimento de oposição ao governo.
Segundo o pirata Pons, todos aqueles depois de serem torturados tornam-se cartas fora
do baralho da Monarquia. O personagem Barão é o último exemplo da narrativa sobre os efeitos
da tortura nos militantes republicanos. Segundo Auriflor, depois de ser preso, torturado e solto
pela Guarda Real, o guerrilheiro Barão “confessou que estava desencantado com a política mu-
nicipal, que a maré não estava pra peixe e que ia reassumir suas funções de dentista num con-
sultório do subúrbio até a poeira assentar379”.
No Brasil, o Sistema Nacional de Informação, aliado aos organismos repressivos já
existentes da Polícia Federal e polícias estaduais, agia de acordo com a ordem repressora: “in-
vestigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e ma-
tando380”.
Segundo as informações do projeto BNM, a tortura faz parte de um mecanismo de
investigação e controle, de modo que a morte arbitrária ou através da tortura é uma consequên-
cia da luta contra a subversão. Porém, após 1978, num segundo momento da ditatura militar
brasileira foram suprimidas as penas de morte e prisão perpétua das Leis de Segurança Nacio-
nal:
foram alterados alguns pontos que eram objeto de crítica sistemáticas feitas pelos fó-
runs democráticos internacionais. Foram suprimidas as penas de morte e de prisão
perpétua, abriu-se a possibilidade teórica de verificação de saúde física e mental do
detido, reduziu-se o prazo de incomunicabilidade e foram alterados outros aspectos
de importância diminuta. Mas, no essencial, o espírito da lei permaneceu intacto381.
378 BRASIL: nunca mais, 2019. 379 GIUDICE, 1985, p. 290. 380 BNM, 2019, p. 96. 381 BNM, 2019, p. 98.
143
Quando a morte acontecia devido às medidas extremas durante a tortura física, as in-
vestigações bem como as justificativas eram manipuladas através de confissões falsas, depoi-
mentos e suicídios forjados e os desaparecimentos políticos. Há também relatos dos prisioneiros
que preferiam a morte à tortura, conforme o projeto BNM:
No Rio, o estudante Luiz Arnaldo Dias Campos, de 21 anos, declarou, ao depor em
1977, que ‘pediu até que o matassem, para que parassem os suplícios e, como resposta,
disseram-lhe que permaneceria vivo, a fim de sofrer ainda mais382’.
Dentro da lógica do romance, a morte do militante sob tortura o torna um mártir, e
mártires são seguidos e usados como exemplo fortalecendo, assim, as causas da oposição. As
torturas subtraem a dignidade do sujeito por meio da violência: não lhe resta muito, além de
inúmeras sequelas. Por esse motivo, poucos são os que permanecem na luta após passarem por
situações semelhantes, como o republicano Aristóteles que morreu por sua insistência e resis-
tência. Segundo o palhaço Pons, “hoje em dia, eles quase não matam mais ninguém. Só um ou
outro”. Aristóteles foi um e, depois de cinquenta e quatro anos de cárcere, o Número Um foi o
outro.
O personagem-narrador insiste em dizer que um rei deve ser tirano e matar seus opo-
sitores; ele não entendeu a mensagem que o irmão de Ladislau tentou passar-lhe: “quem abrisse
a boca ia pra solitária, a pão e água, torturas e o diabo. Pena de morte só em último caso, porque
eles não queriam que acontecesse de novo a tal história dos enxadristas da Sétima Monar-
quia383”.
Segundo Tereza Virginia de Almeida, não é apenas na moral da parábola sobre os
enxadristas que está expressa a resistência da população da Cidade à Sétima Monarquia, mas
também no ritmo do relato sobre a transmissão do jogo como conhecimento através do parale-
lismo entre as orações:
O padre se apaixonou pelo xadrez e ensinou a um fiel. O fiel ensinou a outro. O outro
ensinou à mulher, a mulher ensinou à criada, a criada ensinou ao operário, o operário
ensinou ao colega, o colega ensinou à prostituta, a prostituta ensinou ao bêbado, o
bêbado ensinou ao policial, o policial ensinou à amante, a amante ensinou ao artista,
o artista ensinou ao médico, o médico ensinou ao doente, o doente ensinou ao morto,
o morto ensinou ao verme, o verme ensinou à semente, a semente ensinou à terra, a
terra ensinou ao vento e o vento ensinou à Cidade. Agora, havia cento e sessenta e
nove jogadores prontos a enfrentar qualquer partida384.
De acordo com a autora:
382 BNM n. 700. V. 2º, p. 504-507 apud BNM, 2019, p. 299. 383 GIUDICE, 1985, p. 221. 384 GIUDICE, 1985, p. 267.
144
É possível observar o quanto esta simetria entre os números de sílabas das orações
criam uma regularidade rítmica que alude à própria coordenação entre as mais dife-
rentes pessoas da cidade. Trata-se de uma uniformização da diferença, da unificação
de forças que se expressam em nome da resistência ao rei385.
Portanto, embora o punhal de pensamento somente seja capaz de ferir ideias e não de
matar pessoas, os tiranos matam pessoas e não as ideias. De acordo com o prisioneiro Número
Um, o pensamento é a única arma real e a ele outros três pês estão conexos: o da procura, do
provável e do possível. A resistência sempre haverá de existir, seja ela monárquica ou republi-
cana, e é necessário tomar a esperança como principal aliada.
A parábola do jogo de xadrez e o conto “Miguel Covarrubra” nos ensinam que ideias
jamais podem ser destruídas. Elas podem até ser mantidas sob controle do governo, mas sempre
haverá uma ponta de esperança daqueles que querem a mudança, seja essa para o “bem” ou
para o “mal”; não é à toa que a Cidade passou por tantas transições políticas.
Em um diálogo entre o personagem-narrador e a Condessa de Monchicque há uma
singela crítica aos movimentos de luta armada e observa-se uma clara predileção ao pensamento
como principal arma contra o autoritarismo. No trecho, a Condessa comenta sobre as circuns-
tâncias em que o Barão fora preso e, segundo a personagem, liderar guerrilhas nas fronteiras da
Cidade era um ato ingênuo e que de nada adiantaria diante da organização da monarquia:
E as guerrilhas não deram em nada?
É uma doce ilusão achar que alguém pode alguma coisa contra o poderio da
Guarda. Já se foi o tempo em que meia dúzia de românticos liquidava uma monarquia.
A coisa mudou muito. Eu mesma já assisti à queda de duas delas. Mas agora? Com
essas armas e esses tais computadores que eles recebem das cidades ricas? Agora é
diferente386.
Na história real, a esquerda brasileira comandou alguns confrontos armados, porém
não havia unanimidade entre os partidários sobre essa questão. Por exemplo, o Partido Comu-
nista Brasileiro, mantinha posição contrária ao enfrentamento direto às forças militares, dando
preferência ao crescimento político e intelectual. Outras organizações derivadas surgiram como
a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária; o Partido Comunista do Brasil; a
Ação Popular; entre outras que não tinham ligação partidária como a Ação Libertadora Nacio-
nal, liderada por Carlos Marighella; o Movimento Nacional Revolucionário; o Comando de
Libertação Nacional; a Vanguarda Armada Revolucionária etc.
385 Tereza Virginia de ALMEIDA, 2016, p. 62. 386 GIUDICE, 1985, p. 277.
145
Pelo menos em dois momentos houve enfrentamento armado da esquerda contra o sis-
tema repressor. Na primeira, em 1935, pela Intentona Comunista liderada pela Aliança Nacional
Libertadora sob o comando de Luiz Carlos Prestes, com o objetivo de derrubar o governo de
Getúlio Vargas. E a segunda, entre os anos de 1968 e 1974, pela esquerda marxista. De acordo
com o Jacob Gorender, em seu livro Combate nas trevas, um dos fatores que ocasionou o fra-
casso das tentativas, principalmente no que diz respeito ao segundo momento durante o Golpe
de 64, foi o mesmo indicado pela Condessa no romance: o governo ditatorial já estava organi-
zado e preparado para combater a oposição:
Não travada em março-abril de 1964 contra o golpe militar direitista, a luta armada
começou a ser tentada pela esquerda em 1965 e desfechada em definitivo a partir de
1968, quando o adversário dominava o poder do Estado, dispunha de pleno apoio nas
fileiras das Forças Armadas e destroçara os principais movimentos de massa organi-
zados387.
As opiniões divergem sobre a necessidade e relevância da luta armada. Outros pesqui-
sadores indicam que a falha estava no abismo entre o projeto revolucionário e a sociedade388.
Existe até hoje um misto de frustração pela falta de preparo militar, pelas cisões internas da
esquerda brasileira e pela falta de adesão popular. Há também aqueles teóricos e militantes que
demonstram total contrariedade a toda forma de violência decorrente dos processos autoritários
pelo mundo.
Stéphane Hessel389, em seu manifesto intitulado Indignai-vos faz um chamado à resis-
tência, porém de forma não violenta. Embora compreenda a ação violenta, o autor discorda das
estratégias tomadas pelos grupos de luta armada e justifica que de nada adiantaram para a causa
em jogo. Ainda que seu texto faça referência às respostas palestinas nos ataques de Israel, pode-
se dizer, de uma forma generalizada, que sua justificativa converge com a da Condessa.
Nas palavras do personagem-narrador de Bolero, “o vínculo entre o passado, o pre-
sente e o futuro é a indignação. Todo ser que não se indignar é indigno de ser390”, ou seja, o
pensamento está para a indignação assim como a indignação está para a resistência. O pesqui-
sador norte-americano Malcolm Silverman caminha nessa mesma linha de raciocínio em aná-
lise do romance em seu livro Protesto e o novo romance brasileiro: “Aclamado como primeiro
romance da Nova República, Bolero compreende uma transferência de poder, bem como uma
387 Jacob GORENDER, 1987, p. 249. 388 Daniel Aarão REIS, 1990; Denise ROLLEMBERG, 2003. 389 Stéphane HESSEL, 2011. 390 GIUDICE, 1985, p. 318.
146
repressão orwelliana391”. Ao que parece, além da literatura distópica de George Orwell, o ro-
mance foco desta tese também se assemelha à descrição fantástica que o escritor faz dos méto-
dos utilizados pela repressão, “a desmitificação da ditadura militar [...] onde o faz-de-conta é
realidade392”.
Silverman se refere ao romance 1984, publicado em 1949, onde há uma crítica a toda
forma de totalitarismo. Em um universo distópico, o centro da narrativa está em uma sociedade
sob o comando de um líder capaz de controlar não somente o futuro, como também o presente
e o passado. O cenário da narrativa é Oceania, um dos três fictícios superestados do mundo, e
o enredo tem como base um regime de governo totalitário comandado pelo Partido Ingsoc, cujo
lema é “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA393”.
O sistema de Ingsoc estabelece um complexo controle psicológico de todos seus mem-
bros através de diferentes departamentos, os quais são responsáveis por detectar os crimes e
enviá-los para suas respectivas punições. Esses departamentos são chamados de Polícias e con-
tam com o suporte das “teletelas” que, por sua vez, são dispositivos de segurança do sistema.
Segundo o personagem-narrador Winston, tais dispositivos são capazes de reconhecer
através do olhar, das expressões corporais e das palavras quando um membro do Partido dis-
corda da política do governo. Um dos principais crimes do ponto de vista do Grande Irmão,
como chamam o líder do Partido, consiste no “crimepensamento”, o qual restringe todo tipo de
liberdade de expressão e de imaginação.
Os crimes imaginários são detectados por meio das teletelas que estão distribuídas por
toda Oceania, inclusive na casa dos membros do Partido. Quando um “crimepensamento” é
reconhecido imediatamente os seguranças são enviados para apreensão e, em seguida, se dá a
tortura e morte do indivíduo. Nas palavras do narrador: “O crimepensamento não acarreta a
morte, o crimepensamento é a própria morte394”.
Mais uma vez, o pensamento aparece como principal inimigo do sistema repressor.
Contudo, diferente de Bolero, em que não existe mais pena de morte àqueles que discordam da
Monarquia, em 1984 a morte é a consequência final da insubordinação de qualquer membro do
Partido. Para além disso, todos que são presos em Oceania desaparecem da história como se
nunca tivessem existido: sem passado, sem presente e, muito menos, futuro.
391 Malcom SILVERMAN, 1995, p, 242. 392 SILVERMAN, 1995, p. 242. 393 George ORWELL, 2005, p. 7. 394 ORWELL, 2005, p. 39.
147
Os governos totalitários e autoritários acreditam que é possível controlar o tempo e a
História bem como a própria linguagem. No romance de Orwell também existe a política de
alteração do idioma. A Novilíngua é um tipo de subversão do significado das palavras e supres-
são de vocábulos. O objetivo era eliminar ao máximo a possibilidade de raciocínio até dizimar
certos tipos de pensamentos ou torná-los impensáveis. Segundo o narrador: “Até a literatura do
Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer ‘liberdade é escravi-
dão’, se for abolido o conceito de liberdade?395”
Em Bolero, Auritio conta ao personagem-narrador sobre a época em que participou da
seleção para o cargo de Oficial da Guarda Republicana. A seleção consistia em realizar uma
prova de múltipla escolha sobre desconhecimentos gerais. Conforme o Auriavô assinalou, todos
os membros da Guarda, independente se republicana ou monarquista, eram analfabetos, por
isso era necessário que Auritio passasse por um rigoroso despreparo: “ [...] Eu era primeiro
aluno. Já se esqueceu? [...] Quem souber alguma coisa está reprovado. [...] Que foi que eu fiz?
Me despreparei sozinho. Comecei pela tabuada. Decorei respostas erradas para qualquer mul-
tiplicação396”.
Mas, apesar do personagem ter conseguido errar todas as questões da prova, não pas-
sou na seleção porque, aparentemente, assinar o nome já confirmava a existência de vestígios
de inteligência no sujeito, e isso não é de interesse de nenhum tipo de regime governamental
nos moldes apresentados pela Cidade e pela Oceania. O “crimepensamento” unido à Novilingua
impossibilitaria de uma vez por todas que algum membro pudesse agir ou pensar contra o Par-
tido ou os regimes republicanos ou monárquicos.
Contudo, Winston — protagonista do livro de Orwell — utilizava os minutos antes de
dormir para pensar e usufruir de um pouco de liberdade, pois
só depois das onze da noite, quando já estava em casa deitado na cama – no escuro,
onde a pessoa fica protegida até da teletela, desde que guarde silêncio –, teve condi-
ções de pensar de forma continuada397.
E, mesmo assim, foi preso e submetido a fortes sessões de tortura que lhe fizeram
confessar crimes que cometeu e outros que sequer havia cometido, bem como denunciar sua
amante.
395 ORWELL, 2005, p. 54. 396 GIUDICE, 1985, p. 161. 397 ORWELL, 2005, p. 133.
148
Um dos seus crimes era o fato de ter em seu poder um diário, item proibido pelo Par-
tido, bem como por ter lido diversos livros de história e de ficção. Crimes semelhantes a esses
corroboraram com a coerção de Auritio pois, segundo o personagem Ajudante Máximo menci-
ona, a Guarda Real havia recebido denúncias sobre as preferências políticas do tio de Auriflor
e, por isso, precisava do depoimento do Auripai para assegurar que todos na auricasa eram
monarquistas. Devido à preocupação da Condessa sobre a situação, Ajudante Máximo confes-
sou que apenas os intelectuais eram detidos, e a isso se resumia qualquer pessoa que tivesse
interesse em arte ou literatura, como Ladislau e Auritio:
Não sei, mas alguém nos informou que seu irmão costuma ler livros estra-
nhos, e o senhor sabe como é. Eu, particularmente, não acho que estas coisas sejam
perigosas. Afinal, cada um tem o direito de ler o que bem entender. O diabo é depois.
Odhontyna fez um esforço para engolir o riso:
Depois?
[...]
A senhora sabe muito bem o que pode acontecer depois de certas leituras ...
depois de certas conversas... certas influências398.
As pessoas ficam atordoadas e desesperadas por efeito da tortura ou de interrogatórios.
Winston entregou sua amante pensando que isso lhe livraria das longas sessões de tortura; Au-
ripai em um interrogatório “não violento” entregou as intenções de Auritio e, talvez, do perso-
nagem-narrador acreditando que isso poderia ajudá-los a se afastarem da militância republicana
e de um fim trágico:
Mas, papai. O Máximo deve ter compreendido. Indiretamente o senhor fez
uma denúncia.
O Auripai se levantou:
Não fiz denuncia alguma! Mas antes tivesse denunciado! Não quero ver filha
minha e meu irmão metidos numa cadeia suja, sofrendo torturas medievais, só por
causa de um cabeça oca399.
Auripai é a típica figura do cidadão comum da Cidade. A diferença entre ele e o per-
sonagem-narrador, outrora alienado, está no fato daquele ter conhecimento dos problemas po-
líticos, ainda que sem se envolver, pois, em suas próprias palavras, “Há quase sessenta anos
que eu ouço a mesma conversa. Cai república, vem monarquia, cai monarquia, vem república,
não sai disso. Luta aqui, grita dali, morre acolá e nada se resolve400”. Quanto ao protagonista,
398 GIUDICE, 1985, p. 281-2. 399 GIUDICE, 1985, p. 289. 400 GIUDICE, 1985, p. 287.
149
já sabemos que nunca se interessou por política até o momento em que se apaixonou por Auri-
flor: “Logo eu, que nunca me dei ao trabalho de passar os olhos numa simples manchete de
jornal. [...] Nunca soube se havia repúblicas ou monarquias indigestas regendo meu destino”401.
Nem todo mundo utiliza o pensamento a favor de uma causa maior como Auritio, aliás,
muitos preferem seguir uma rotina de obediência ao invés de se incomodarem. A Condessa,
apesar de ser uma representante oficial da casta da Cidade, mantém opiniões enérgicas sobre as
transições de regimes apesar de namorar anos um velho monarquista. Para ela, mais vale um
monarquista convicto que um alienado político:
O Auripai subiu as escadas e, só então, percebemos a Condessa de pé, no
andar de cima, apoiada ao corrimão. Ouvira tudo. Quando o pai de Auriflor passou
por ela, sua voz foi clara:
É bem melhor ser um monarquista de pedra como o avô, do que um saco
vazio como você.
A réplica se perdeu no corredor:
Ora, Condessa...
Senti pena dele402.
A empatia do personagem-narrador com o Auripai se justifica exatamente pelo fato de
ver no sogro um reflexo do seu eu anterior: “Realmente, eu não passava de um cabeça oca.
Afinal de contas, antes da maternidade, eu nada mais era do que um auripai com emprego
fixo403”.
Reconhecer a própria alienação é um progresso na trajetória do personagem ainda mais
que, depois da deserção do Barão e da prisão de Auritio tornara-se, finalmente, o único repu-
blicano na ativa da Cidade e, de acordo com o pirata Pons, “Se é republicano, tem que temer o
temor dos monarquistas”, ou seja, o pensamento, “mas se não é nem uma coisa nem outra, você
corre perigo de vida404”. Todavia, é somente na execução de Número Um que o protagonista
compreendera a última lição ensinada pelo companheiro, pois sua morte estava premeditada
desde que aquele decidiu não ser uma coisa nem outra, nem monarquista nem republicano.
Os gatilhos para que o pensamento reagisse com maior afinco e efetividade para a
materialização do punhal foram a prisão de Auriflor, cumplice do último republicano da Cidade,
e a oferta de Pons para comer omelete no intervalo do espetáculo. O cérebro começou a palpitar
e o intervalo soou como um “prelúdio de uma solução405”. A sensação descrita pelo personagem
401 GIUDICE, 1985, p. 284. 402 GIUDICE, 1985, p. 289. 403 GIUDICE, 1985, p. 289. 404 GIUDICE, 1985, p. 294. 405 GIUDICE, 1985, p. 311.
150
diz que parecia haver uma janela aberta sobre sua cabeça, que se fechou logo que chegou ao
camarote real e encontrou o palhaço Eusebius adormecido no trono.
Descobrir que este era, na verdade, Vezirrê Budru foi desolador, mas menos que des-
cobrir o que lhe esperava a partir daquele momento. Segundo o rei-palhaço, a Monarquia já
havia terminado, só que precisavam de uma cena cabível para entrar para a história.
Não tenho mais forças para nada. Esta Monarquia quase acabou comigo. Estamos
todos tão podres, tão inúteis, tão cobertos de poeira, que você nem imagina. Carregar
este Circo nas costas não é brincadeira. Cada número que eu apresento me custa anos
de vida. E pra quê? Esta Cidade não tem jeito [...] Outra coisa. Não aguento mais ver
estas cores na minha frente. Essas bandeiras. [...] Se as estatísticas tiverem certas, você
é a minha única esperança406.
O personagem-narrador ficou entre um misto de indignação e aceitação. Novamente
seu cérebro voltou a raciocinar e retomar o impulso anterior e, dessa vez, seria obediente à
indignação que lhe movia pernas e cérebro.
Ergui os braços e levei às mãos à nuca. Pons me soltou e deu um passo capenga para
trás. O maestro, desesperado, ajustou um dos laços no próprio pescoço. Senti o cabo
do punhal na mão direita. Pons arregalou o olho. Um dos palhaços foi até o fundo do
picadeiro e tornou a girar a manivela do realejo. Vezirrê Budru foi erguido do solo,
pendurado na ponta da corda. Meus dedos retiraram o punhal do cérebro e da dor
cessou. O olho de Pons se dividia entre meu rosto e a arma em minhas mãos. Não era
mais a faca de cozinha imprestável que eu produzira na pensão. Dessa vez, o pensa-
mento foi sublime. Tratava-se de um punhal de lâmina retilínea, feita de um aço mais
reluzente do que o machado de Eusebius.
O pensamento unido ao espetáculo encerrou mais uma Monarquia e deu início a outra
República. Tudo muito bem ensaiado por todos, menos pelo personagem-narrador que não per-
cebeu de imediato que seu ato heroico significava só mais um número do Circo. Ao final do
espetáculo, Eusebius o chamou ao camarim para elogiá-lo pela grandiosa atuação naquela noite:
“Eu não lhe disse que a noite era nossa? Você brilhou, rapaz. Máximo, me dá a toalha [...] Viu
só? Até as toalhas estão como novas407”. Enfim, entendera o que Pons havia dito: “os punhais
de pensamento ferem ideias, mas não matam ninguém408”.
A transição de regimes havia sido realizada com sucesso, bem como a transição do
personagem-narrador de alienado a republicano. Pode-se dizer que o dilema entre suas vidas e
identidades antes e depois de Cynthia está ligado ao contexto pós-monarquia, ou pós-ditatorial,
no caso do Brasil.
406 GIUDICE, 1985, p. 315. 407 GIUDICE, 1985, p. 322. 408 GIUDICE, 1985, p. 322.
151
Conforme destaca Idelber Avelar, a sociedade pós-ditatorial não consegue recompor
suas perdas, pois não há tempo para isso. O prefixo pós nada tem a ver com o conceito de
superação: estar no tempo pós-trauma significa continuar habitando esses traumas, as perdas e
suas consequências. Portanto, a fragmentação da narrativa está relacionada à incapacidade do
personagem-narrador em lidar com todos os traumas sofridos antes e durante o tempo narrado:
perder Cynthia, ser preso e torturado, viver na clandestinidade, forjar as cicatrizes da tortura
etc. Nesse sentido, a incapacidade do personagem-narrador de lidar com o trauma é a mesma
incapacidade da Cidade de lidar com as transições políticas de maneira coerente.
Portanto, a noção de desfundação está incluída em todo o processo de transição e for-
mação do pensamento, pois demanda uma análise de conjuntura profunda do contexto histórico
nacional.
Auripai talvez não seja um alienado como o personagem-narrador foi um dia, talvez
ele seja somente um cidadão desesperançado em razão de tantas transições e consolidações sem
mudanças efetivas, tendo em vista que os “períodos de mudança de regime são momentos fun-
dadores-chave para entender o desenvolvimento político ulterior409”. O pai da enfermeira de
pernas-ponteiro é um cidadão fruto de processos de transição realizados para serem ineficientes
e, consequentemente, consolidações malsucedidas pois “a maneira em que se dá a transição [...]
teria direta relação com os problemas e desafios que devam ser enfrentados durante a fase de
consolidação das instituições democráticas restauradas410”.
A transição política no romance ocorreu de maneira pacífica sem o envolvimento do
restante da população, que permaneceu como espectadora passiva; nem do picadeiro, que atuou
como se fosse um número corriqueiro do Circo. Havia apenas um elemento entre eles que acre-
ditava de fato em um ato revolucionário: o personagem-narrador, os demais republicanos foram
torturados e desistiram da luta ou estavam presos no momento do golpe.
No Brasil, o processo de transição pós-ditatorial ou de consciência democrática iniciou
com a abertura política proposta pelo governo Geisel. Para muitos brasileiros, esse momento
significou a derrota da ditadura militar, porém outros tantos tinham a consciência de que aqueles
nunca perderiam o controle da situação política, ou seja, eles implantaram, endureceram e abri-
ram o regime de acordo com seus projetos411. É nesse clima tenso e com forte sentimento de
409 Gabriel VITULLO, 2001, p. 55. 410 VITULLO, 2001, p. 55. 411 Anita Leocádia PRESTES, 2014.
152
derrota que Victor Giudice constrói a farsa sobre a transição de monarquia para república da
Cidade.
O personagem Número Um tem um discurso muito esclarecedor ao sugerir que aos
dois erres, regulamento e rei, se opõem os três pês: picadeiro, plateia e pensamento. Se estamos
levando em consideração o pensamento como estopim da revolução, também precisamos com-
preender que ele é apenas um elemento de uma tríade.
Por exemplo, na musicologia, a tríade se refere às três notas musicais necessárias para
a formação de um acorde, ou seja, um conjunto harmônico de notas. Nessa mesma lógica fun-
ciona a grande obra proposta por Número Um: para que haja harmonia de ideias é necessário a
conjunção dos três pês, de modo que somente o pensamento agindo solitário não é capaz de
mudanças reais.
O palhaço Pons é quem consegue resumir a questão da desfundação de que tanto fala-
mos nessas páginas: “E o grande mal de toda essa gente, inclusive o meu, é que desprezamos o
passado, odiamos o presente e falsificamos o futuro. O futuro só vale a pena quando o presente
pratica as lições do passado412”. O pensamento aparece no romance como sinônimo de indig-
nação e resistência e, unido ao picadeiro e a plateia, torna-se capaz de materializar a grande
obra. No entanto, não é possível que essa transformação ocorra de uma hora para outra, princi-
palmente na transição de um sistema repressor para outro semelhante.
Conforme destacado ao longo deste capítulo, 1984 e Bolero têm o cenário de um sis-
tema repressor em comum: situações que, porventura, são definidas como distopias e fantásticas
estão muito próximas da sociedade de Stéphane Hessel, George Orwell e de Victor Giudice e,
por sua vez, nem um pouco distante da nossa contemporaneidade, conforme veremos no pró-
ximo capítulo.
412 GIUDICE, 1985, p. 265.
153
pelos malsãos
contra a mudança de sexo nas escolas
pela minha tia eurides que cuidou de mim quando meu bilau era pequeno
pela grande bunda em campo da puta morena mais linda do brasil
pela família nelsonrodrigueana
pela inocência das crianças abençoadas pelos padres nas sacristias
contra o cumunismo
em memória do coronel diamante ustra e do terror
pelas redes sociáveis
pelo meu pai pelo patriarcalismo
pelo polvo brasileiro
pela minha famiglia
pelos evangélidos
contra o instatuto do desmamamento
pelos militares de 64
contra o 69
pelas polícias e milícias
em nome de lúcifer
por meus filhos ilegítimos e bastardos
por minha esposa e por minha amante
pelos meus ais e meu estado de quero mais
pela família circular evangélida
pela br-666
pela minha mãe lucifemar
pela paz de matusalém
pela misericórdia aos meus por esta nação
porque o brasil tem enjeito sim
pelo prefeito de montes claros e rabo obscuro
por thyagho deyvidy gahbryel matheuss
pela minha mãezinha que morreu no parto
pelo desnorte de minas
pelos agricultores escravizantes
que se não plantam ninguém almoça nem jantam
pelo aniversário da minha netinha
que se senta em meu colinho
por todos os corretores de seguro
por deus e o diabo na terra do sol
sim sim sim sim sim sim sim
(DEMARCHI, 2017)
154
5 A CONTEMPORANEIDADE DE BOLERO E O GOLPE DE 2016: A TRAGICO-
MÉDIA BRASILEIRA
Não quero, de modo algum, dizer nesse trabalho que Bolero é um livro à frente de seu
tempo e que previu acontecimentos no Brasil. O que faz do romance contemporâneo ao Golpe
de 2016 não são episódios análogos, mas as circunstâncias do enredo e os contextos de publi-
cação e de recepção. A atualidade da obra está exatamente no efeito catártico proporcionado
por sua leitura junto aos acontecimentos históricos do Brasil, sejam eles anteriores ou posteri-
ores à escrita e publicação do romance.
Esse encontro do efeito catártico com os acontecimentos tanto da ficção quanto da
realidade torna possível pensarmos na ideia de tragicomédia. O povo brasileiro possui um
“dom” de tornar risível sua própria tragédia, de modo que elementos e situações trágicas e ab-
surdas podem parecer cômicas. No romance, o personagem-narrador não reage dessa maneira
às situações as quais é submetido e às consequências de seus atos. No entanto, o leitor reage.
Nos capítulos anteriores, comentei sobre a narrativa giudiciana manter uma relação
íntima com seu leitor. Nelly Novaes Coelho chama a atenção para a necessidade de um “leitor
atento” tanto no que diz respeito aos aspectos literários quanto extraliterários, pois tudo inter-
fere diretamente na interpretação de quem lê, ou seja, na recepção da obra. De acordo com a
autora, “para o leitor distraído talvez essa leitura não diga nada413”, pois o texto narrativo nada
vale por si só. Ouso dizer que uma certa suficiência sócio-histórica, política e até mesmo ética
possibilita um maior alcance de significação da obra literária.
Ainda nessa perspectiva, Coelho destaca a sátira tragicômica que permeia toda a obra
e seu efeito catártico como mecanismo transgressor. A autora sugere essa tônica para Necroló-
gio, mas, devido ao elo estabelecido entre as três primeiras obras de Victor Giudice podemos
incluir Bolero nessa leitura.
Uma das características atribuídas aos contos, pela autora, é a denúncia da “mesmice
do cotidiano que aprisiona o homem” o que, por sua vez, Giudice o faz de maneira direta e
através de “um contato de choque414”. Dos personagens giudicianos tem-se alienação e do nar-
rador passividade diante dos fatos absurdos relatados. No romance, há um processo de evolução
do personagem-narrador que inicia a história nessa posição de alienado e passivo, saindo da sua
413 COELHO, 2013, p. 932. 414 COELHO, 2013, p. 927.
155
zona de conforto ao ser abandonado pela esposa na maternidade para culminar num sujeito
consciente política e socialmente.
O episódio das cicatrizes parece-me adequado para exemplificar a naturalidade e indi-
ferença dos personagens tanto do Auritio, quando sugere os procedimentos cirúrgicos, como do
protagonista, ao receber a informação e submeter-se à cirurgia às avessas. Esse seria o momento
ideal para aflorar sua consciência do absurdo-trágico a que estava sendo exposto, entretanto,
isso não ocorre. Há alguns personagens que têm esse despertar, mas são explorados dentro do
contexto tragicômico e absurdo, como o prisioneiro Número Um e o artista plástico Ladislau.
Nelly Novaes Coelho retoma Metamorfose, de Kafka, para ilustrar a semelhança com
a naturalidade com que os personagens e o narrador de Giudice assistem às tragédias absurdas
às quais são submetidos. Os personagens kafkianos “estavam mergulhados em um viver alie-
nante [...] essa mesma naturalidade [...] é um dos elementos-chave utilizados pelo autor [Giu-
dice] para intensificar a impiedade e contundência da denúncia415”. Os personagens de Bolero,
em determinadas situações, demonstram posicionamentos críticos sobre a realidade, mas aca-
bam por sucumbir ao que a autora chama de “vida maquinal”.
Ao longo do romance, o leitor acompanha a história desse homem que passou sete
anos na sala de espera de uma maternidade. Com a mesma naturalidade com que recebeu a
notícia do tempo decorrido, o protagonista encarou uma sociedade completamente diferente da
que um dia “conheceu”.
O protagonista foi preso, liderou um golpe político e, por fim, em meio aos inúmeros
acasos que lhe ocorreram, é possível crer em sua transformação de alienado à revolucionário,
bem como em uma grande obra capaz de provocar mudanças através do pensamento. No en-
tanto, o sentimento de derrota diante da farsa que derrubou a monarquia não surpreende ou
causa alguma revolta nesse personagem, isso também fica a cargo do leitor.
O capítulo/fragmento final, intitulado no manuscrito como “Carta a Cynthia”, reúne
todas essas sequências mencionadas. Tal qual um resumo de tudo que aconteceu nos últimos
anos da Cidade. De início, o texto parece ser um tipo de desfecho de sua história pessoal em
forma de despedida, porém, ao longo da leitura, verificamos que, na verdade, configura-se como
um relato sobre os acontecimentos que sucederam o golpe e suas consequências.
A análise de conjuntura que faz sobre sua vida e sobre a Cidade denuncia que a farsa
tragicômica ultrapassou o esquema da transição de regimes. Ela atinge uma dimensão ampla
415 COELHO, 2013, 929.
156
onde não há mais distinção entre o público e o privado, entre o limite da vida individual e a
esfera política. É nesse sentido que a farsa tragicômica giudiciana desenha uma caricatura crí-
tica da sociedade ficcional e da sociedade brasileira.
Ao longo da carta, o personagem-narrador desmascara a transição de regime e a ma-
nipulação política na qual ele próprio estava inserido. Ele pode ter deixado de ser um alienado,
mas seu despertar político foi apenas ocasional, considerando que assumiu a presidência das
Indústrias S.A. por meio de um golpe que envolveu falsificação de assinatura e documentos. A
questão consiste no fato de que, para ser merecedor de uma “posição” na sociedade, faz-se
necessário saber manipular situações a seu favor, caso contrário, não é possível sobreviver à
turbulência do sistema. Usando o termo de Coelho, a desalienação do personagem-narrador está
em saber operar a “vida maquinal” e seus absurdos-trágicos.
“O que posso fazer? Não posso perder meu emprego416”; declarações como essa apro-
ximam o leitor da voz narrativa de Bolero, tendo em vista que o brasileiro vive um eterno dilema
entre identificar-se como indivíduo (espaço público) ou como pessoa (espaço privado). Tais
circunstâncias definem uma linha tênue entre a ordem e a desordem, àquilo que pode e o que
não pode.
Segundo Roberto DaMatta417, o brasileiro adota um comportamento nesse entremeio
em que é permitido tomar atitudes que lhe favoreçam mesmo que infrinja regulamentos, normas
e leis. Importante destacar que essa ideia se opõe à tese do prisioneiro Número Um sobre deso-
bediência aos regulamentos, já que uma questão é subverter o sistema como oposição e resis-
tência a uma causa, outra é fazê-lo arbitrariamente para benefício próprio ou de próximos.
O personagem adapta-se aquilo que o sistema lhe oferece: sai da clandestinidade,
torna-se um empresário, amasia-se com Auriflor, tem (outros) filhos, compra um apartamento
na Avenida Primeiro de Abril etc.. No entanto, preso a um passado em aberto continua à espera
de notícias de sua esposa. Afinal, o sumiço de uma das partes envolvidas no divórcio faz da
legalização de seu atual casamento um caso impossível, a não ser que espere por um “jeitinho”.
Ao assumir a presidência das Indústrias S.A., o personagem-narrador torna-se uma
espécie de autoridade na Cidade com referências, ou seja, pode utilizar meios não convencio-
nais para conseguir o que almeja. Há uma proximidade frágil entre resolver os casos burocráti-
416 GIUDICE, 1985, p. 202, 221, 330. 417 DAMATTA, 1997a.
157
cos com criatividade e a corrupção propriamente dita. E, nas circunstâncias em que o persona-
gem-narrador se encontra, corromper o sistema parece ser a opção mais viável. Nesse sentido,
o “jeitinho” dado pelo despachante responsável pelo caso está aliado ao rito “Você sabe com
quem está falando?” sugerido por Roberto DaMatta418. Um tipo de recurso de poder utilizado
para burlar ou facilitar burocracias.
A Condessa de Monchicque, por exemplo, comenta em diferentes momentos do texto
sobre a sua “importância” na Cidade, principalmente quando questiona o tratamento dado a ela
e ao nome de sua família quando prenderam seu sobrinho Lasdislau: “Nem a mim eles respei-
tam mais”419. Inclusive, em outro momento, diz para Auriflor que pessoas como ela não preci-
sam se preocupar com retaliações políticas:
Ai, minha filha. Conosco não há perigo. Politicamente, não somos consi-
derados republicanos ou monarquistas, porque antes de qualquer ideologia, somos Al-
pharraz, Bethançon, Gammedal e Monchicque. Eles respeitam muito mais esses no-
mes420.
Todas as pessoas que o personagem-narrador conheceu pós-Cynthia fazem parte de
um grupo social privilegiado dentro de uma sociedade onde as relações pessoais são predomi-
nantes, porém sua situação é bem distinta dos demais: ele não tem passado, não era ninguém
até conhecer Auriflor, sua família e amigos. Dentro da perspectiva de DaMatta421, estar no en-
tremeio de indivíduo e pessoa faz dele um malandro.
Para o malandro, a palavra de ordem é sobrevivência. Assim como tudo em Bolero
acontece ao acaso, a categoria de herói não é uma conquista do personagem-narrador por mé-
rito, mas por conveniência das circunstâncias. Por exemplo, na obra de Mário de Andrade, Ma-
cunaíma, em sua constante busca pela pedra (Muiraquitã), tem sua figura de herói construída
com base em sucessivos atos fortuitos e visando, muitas vezes, dois alvos opostos422. O perso-
nagem-narrador do romance de Giudice também não planeja objetivamente as suas decisões
nem prevê os consequentes acontecimentos.
O golpe orquestrado sub-repticiamente por Eusebius, e executado e protagonizado
pelo personagem-narrador foi uma manobra digna de aplausos. O ato fez tanto sucesso entre os
espectadores que o personagem foi convidado a integrar oficialmente o time circense. Mediante
a recusa da oferta de emprego e o retorno à auricasa, ele percebeu que poderia associar-se às
418 DAMATTA, 1997a. 419 GIUDICE, 1985, p. 196. 420 GIUDICE, 1985, p. 300. 421 DAMATTA, 1997a. 422 Gilda de Mello SOUZA, 1979.
158
contradições apontadas por Ladislau na fábula sobre a fundação da Cidade: “pelo menos num
de seus versos: eu também conhecia histórias mil que a História esconde423”. Ele fizera parte
de uma grande manobra política para derrubar a monarquia falida e abrir as portas para uma
república promissora (ou algo do tipo).
A única certeza sobre os acontecimentos políticos da Cidade está nas trivialidades as
quais se tornaram as trocas de regime, já que provavelmente essa não foi a última monarquia
nem será a última república. Apesar do palhaço Eusebius simular a morte do rei Vezirrê Budru
e afastar-se do cenário político, não descartou a possibilidade de retornar:
Não estou querendo dizer que eu vá me aposentar. Mas, pelo menos por
uns tempos, vou sumir de cena. É bom não cansar a turma com os mesmos espetáculos
todas as noites. Esse pessoal gosta de variedade. Depois, um dia, quem sabe? O futuro
a Deus pertence424.
Mas por ora, o comando do Circo fica nas mãos de seu filho, Florestan. Enquanto isso,
depois de tanta espera finalmente o personagem-narrador entrou na maternidade da Seis de
Outubro com um propósito e saiu com um filho: Auripedro. E talvez esteja à espera de outro;
se for menina se chamará Aurinata. Essa prole pode um dia representar a continuidade da li-
nhagem política da aurifamília: Aurideia, Auriavô, Auritio, Auriflor e, por último, o persona-
gem-narrador. Caberá ao futuro dizer se serão monarquistas, republicanos ou os dois, como
Pedrobarão Covarrubra; quem sabe seja nem um nem outro, como Número Um; há também a
hipótese de ser um alienado, visto que tal pai, tal filho. Observa-se, portanto, que as relações
sociais, familiares e políticas da Cidade estão todas interligadas, de modo que esse pode ser
considerado um dado estrutural na sociedade do romance.
No Brasil, não há uma separação absoluta entre público e privado, tornando-se assim
um sistema conduzido por normas pessoais e irracionais. De acordo com DaMatta425, o perso-
nalismo e o patriotismo são impasses constituídos desde a formação cultural do país, possibili-
tando que posições e cargos administrativos sejam utilizados para benefícios pessoais. Salvo o
personagem-narrador ingressar na prestigiosa aurifamília, também ascende à presidente do mo-
nopólio econômico da Cidade, ou seja, pode não ter conseguido (ainda) casar-se oficialmente
com Auriflor mas, como exposto, sua relação e posição social já lhe renderam frutos que na
outra relação lhe foram negados.
423 GIUDICE, 1985, p. 328. 424 GIUDICE, 1985, p. 324. 425 DAMATTA, 1997b.
159
Assim como na Cidade de Bolero, para entender o Brasil e suas relações políticas tam-
bém se faz necessário compreender o papel das grandes famílias. Segundo o cientista político
e sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, existe no país uma tradição nepotista que dificulta o
funcionamento do sistema político nacional426. Inclusive, algumas dinastias estão enraizadas no
poder desde o período Colonial427.
De igual modo, tanto o romance Bolero quanto o conto “Miguel Covarrubra” denun-
ciam os elos de parentesco entre os governantes da Cidade, o que pode justificar a falta de
mudança efetiva nos processos de transição e consolidação. Para Oliveira, não há perspectiva
de mudança política enquanto o país continuar sendo uma república de famílias, pois configura-
se um fenômeno social e político do atraso que está intimamente ligado ao conservadorismo428.
“A esquerda que espere”, frase com que o personagem-narrador finaliza a narrativa e
conclui sua carta para Cynthia, simboliza o seu conformismo e a direção que a política local
tomará a partir do golpe em diante.
Ao analisar por um viés estrito do contexto literário, tem-se a transição de um regime
autoritário monárquico para uma república. Ao que tudo indica, o novo regime será nos mesmos
moldes do anterior, tendo em vista que o golpe contra a monarquia foi orquestrado pelo próprio
rei. Tal situação nos remete a outro momento da literatura, dessa vez escrito por Machado de
Assis.
Em Esaú e Jacó, de 1904, o personagem Custódio entra em conflito sobre o nome de
seu estabelecimento comercial assim que a República é proclamada. A situação ocorre devido
ao local chamar-se “Confeitaria do império” há pelo menos trinta anos. E agora deveria mudar
a tabuleta recém pintada com tinta viva e bonita para “Confeitaria da República”? Essa opção
parecia coerente, se não fosse lembrar-se em conversa com Conselheiro Aires que, “se daqui a
um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez
o dinheiro429”. Por fim, a proposta de mudar para “Confeitaria do Custódio” pareceu-lhe mais
adequada.
426 Ricardo Costa de OLIVEIRA, 2012. 427 Por exemplo, conforme o estudo publicado por Oliveira, a família do governador do estado de São Paulo está
envolvida na política brasileira desde o século XVI. 428 Nos partidos de esquerda começam a surgir famílias políticas. Por exemplo, o perfil parlamentar do Partido dos
Trabalhadores era formado principalmente por lideranças oriundas diretamente dos sindicatos, no entanto, com as
sucessivas eleições surgem hoje carreiras políticas familiares. 429 Machado de ASSIS, 2008, p. 1158.
160
Portanto, pode-se dizer que essa frase final de Bolero e a situação e Custódio implicam
e reiteram a farsa das transições e, consequentemente, as poucas mudanças políticas, sociais e
culturais decorrentes da consolidação desses regimes. Por sua vez, também confirma um dos
motivos pelos quais Auritio não acreditou na efetividade e na fidedignidade do golpe e do novo
governo.
Por um viés do contexto político nacional, a palavra “espere” faz um forte paralelo
com o clima de esperança que pairava em 1984, ano de construção do romance e marco histó-
rico do movimento pelas eleições diretas pós-ditadura. Nesse sentido, a frase “A esquerda que
espere” arremata o contexto satírico em que o romance está inserido, podendo manifestar tanto
esperança no futuro da nova nação democrática quanto desesperança diante da maneira como
que esse processo estava sendo arranjado.
5.1 O ESPETÁCULO SATÍRICO DE BOLERO
Na época em que foi realizada a leitura do romance na disciplina de Estudos Literários
II, lembro-me de relatos dos alunos sobre um certo incômodo com o desfecho da trama em
contraponto aos momentos de humor e perplexidade causados pelas cenas improváveis às quais
os personagens estão condicionados. Ao entender que parte dessa mescla de sensações resultava
de questões externas à obra literária e vivenciadas por nós naquele momento, comecei a pensar
na interseção entre a recepção dos leitores e o contexto da obra.
Muitos são os fatores que influenciam no efeito que uma produção escrita tem sobre o
leitor e vice-versa. É possível iniciar esse debate a partir do próprio texto literário e dos indícios
que implicam em tais sensações e reações, como o humor proporcionado por intermédio da
maneira disparatada com que ocorrem os acontecimentos no romance. No entanto, o cômico de
Giudice está diretamente relacionado ao sentimento de indignação, ambos resultados da iden-
tificação do leitor diante das situações absurdas narradas e da relação que estabelece com fatores
externos à criação literária.
As palavras do personagem Número Um, em resposta à incredulidade do personagem-
narrador sobre o número das esferas de prata, são perfeitas para tentar entender essas relações:
“Sabe o que é ficção? É quase a mesma coisa que realidade. É uma realidade sem visões fal-
sas430”. Digo isso por perceber que os disparates não são de todo modo ilógicos, pois surgem
de uma ideia que paira no real e, quanto mais próximo, maior o incômodo.
430 GIUDICE, 1985, p. 57.
161
O riso provocado pelas cenas absurdas, de acordo com Henri Bergson431, funciona
como um trote social que também é humilhante para aquele que serve como seu objeto. Nesse
sentido, as desventuras do personagem-narrador instigam um tipo de riso por serem vistas, em
um primeiro momento, como literatura de pura ficção. Em outras palavras, o relato não é teste-
munhal e não é memorialístico, ele faz referência a um espetáculo onde tudo é farsa. Esse ce-
nário circense da narrativa potencializa a distância entre a ficção e a realidade. Por outro lado,
a relação do cômico e do incômodo apresenta uma oposição entre aquilo que o leitor assimila
como “pura ficção” e o momento em que aproxima a cena da sua realidade.
O tempo de escrita e a publicação do romance condizem, também, com o entremeio
da abertura política e da construção e aprovação da Constituição de 1988. Como em outras
obras do período, Bolero traz em seu enredo pontos referentes ao regime militar e especula
sobre o futuro democrático que se acercava. No entanto, Giudice também problematiza outras
questões que estão patentes na sociedade brasileira do período como a crítica à burguesia, à
falta de direitos sociais, ao sistema trabalhista etc., esses que são assuntos enraizados na forma-
ção nacional. Por isso, o texto configura-se tão contemporâneo e incômodo ao leitor de diferen-
tes momentos históricos.
Para os leitores da segunda metade da década de 1980, as sensações de vitória e derrota
dividiam o mesmo espaço diante do momento decisivo da história brasileira, de modo que o
discurso do romance não faz um apelo positivo sobre os próximos passos políticos do Brasil.
Pelo contrário, o escritor opta por utilizar mecanismos linguísticos e literários que estimulem a
criticidade do leitor sobre as reais circunstâncias as quais dispõem o processo de transição po-
lítica.
Nesse sentido, as ligações entre o real e o fictício no romance encontram sua forma de
expressão através da alegoria; e os efeitos da recepção dependem da relação do sujeito leitor
com a leitura e as marcas que relacionam o texto com os acontecimentos históricos e literários.
Esse riso passa a ser praticamente impossível de controlar assim que ocorre a identificação.
Diante disso, pode-se dizer que se ri do seu próprio infortúnio, um riso que através dos
olhos do escritor é cáustico, para o leitor torna-se estranho e incômodo. Nas palavras de Albeiro
431 BERGSON, 2018.
162
Trujillo, “quem ri enquanto tem uma dor, não a está superando: só está tendo um ataque histé-
rico432”. Isso ocorre devido ao elemento risível não ser aquele engraçado, prazeroso, de puro
humor; na verdade, pode-se dizer que se aproxima muito mais de um riso nervoso.
A crítica feita sobre a tragicomédia tem o riso como instrumento que utiliza as peripé-
cias dos personagens para fazer crítica social, desestabilizar os grupos que estão no poder e,
então, combater o sistema vigente. Apesar de Trujillo fazer uma análise da tragicomédia nas
narrativas picarescas, sua interpretação a respeito dos pícaros serve também para uma análise
sobre Bolero. Em ambos os casos, não há necessidade do protagonista ser um personagem épico
ou um herói, pelo contrário, este apresenta características ordinárias, e por vezes de anti-herói.
Em um dado momento, as atitudes do personagem-narrador levam-nos a crer em sua
aliança com a luta revolucionária, mas logo percebemos que seu maior desejo é viver, tal qual
Trujillo descreve sobre o pícaro: “comodamente, usufruindo dos benefícios das classes privile-
giadas e, nesta tentativa por se acomodar, termina fazendo grandes críticas sem querer, que
desmascaram o sistema dominante sem o saber433”. Mas, é importante ponderar que diferente
da análise de Trujillo sobre o pícaro, não creio que a crítica presente no discurso do persona-
gem-narrador de Bolero seja ingênua, pois nele há marcas de sátira e ironia que acabam por
revelar suas intenções e perspicácia ao associar-se, por exemplo, como funcionário das Indus-
trias S.A..
Friso que a sátira giudiciana manifesta-se no ato da recepção, ou seja, na identificação
do leitor com o tempo histórico em questão ou com a própria crítica existente na trama. Con-
forme nos propõe Matthew Hodgart, a sátira é uma forma de arte datada, ou seja, o que provoca
riso ou incômodo em um determinado período histórico pode não causar em outras circunstân-
cias. Nas palavras do autor, “sátira es una palabra que se usa en diversos sentidos [...] Los
medios de expresión de la sátira, así como sus temas, son efímeros a menudo434”. Sua potenci-
alização ocorre pelo fato de o leitor poder identificar-se por diferentes vieses de leitura. Caso
isso não ocorra, provavelmente não surtirá efeito e o texto provocará outra resposta.
O satirista atrela à sua crítica ideias que estão em constante movimento e são histori-
camente marcadas, podendo mudar a qualquer momento. E a ironia aparece no romance como
o recurso elegido pelo escritor para construir a sátira presente na alegoria sobre o contexto social
e a mudança de regime político.
432 Albeiro TRUJILLO, 2007, p. 19. 433 TRUJILLO, 2007, p. 14. 434 Matthew HODGART, 1969, p. 7.
163
Aparentemente, existe uma necessidade de se desvincular do que se entende por sátira
dentro da literatura tradicional e olhar a maneira como o escritor busca, através da troça e da
crítica direta, alcançar seu objetivo. De acordo com Hodgart:
Sin embargo, lo que comúnmente se denomina sátira constituye una parte bien defi-
nida de la literatura: los lectores expertos coincidirían en su aplicación de este término
a alguna de sus lecturas. Pero, al tratar de definirlo lo más acertado será abandonar los
métodos tradicionales de clasificación literaria y observar, en su lugar, la actitud del
satírico ante la vida y los diferentes medios de que se vale para dar a conocer esta
actitud en forma literaria435.
Apesar dos elementos risíveis em sua obra, Giudice não é um escritor cômico. Esse
não é o elemento central de seus textos, tendo em vista que se insinua através de frestas. Por
isso, pode-se dizer que o romance está inserido dentro de uma leitura satírica em que o riso está
em um lugar de passagem.
A tonalidade do satírico é um aspecto capaz de ocupar qualquer espaço da comunica-
ção. Nesse caso, o discurso satírico pode ser descrito como empenhado, no sentido de engajado,
de tal modo que o texto apresenta em seu contexto um interesse extraliterário. Conforme obser-
vei na obra de Victor Giudice ao longo desse trabalho.
Essa perspectiva leva-me a somar à discussão a classificação de Dustin Griffin sobre
sátira: para o autor, esse recurso valoriza o exagero e a ficcionalidade,
contudo não abandona o ‘mundo real’ completamente. As suas vítimas vêm desse
mesmo mundo, e é graças a este fato, juntamente com um tom mais escuro ou mais
nítido, que ela consegue separar-se da pura comédia436.
A moralização do discurso satírico ocorre através de marcas do ridículo e do exagero,
como é possível observar em diversas situações a que o personagem-narrador de Bolero foi
disposto, como na cena com o reizinho underwood datilógrafo na delegacia ou nas descrições
sobre o espetáculo do Circo.
Dustin Griffin reforça o argumento de que existe uma força subversiva da sátira que
também é controlada pela recepção. Nesse sentido, a subversão atua conforme a sátira age de
forma oculta fazendo provocações, tirando o leitor do lugar comum de conforto, desafiando
ideias e convicções. Nas palavras de Griffin, “questionando e levando dúvidas, mas não dando
respostas, desta forma a sátira tem finalmente consequências políticas437”. Direta ou indireta-
mente, a maioria das cenas de Bolero fazem crítica política, institucional e social.
435 HODGART, 1969, p. 12. 436 Dustin GRIFFIN, 1994, p. 1, tradução nossa. 437 GRIFFIN, 1994, p. 160, tradução nossa.
164
A provocação satírica pode ser sutil, como nas cenas descritas pelo personagem-nar-
rador durante sua caminhada pelas treze quadras em direção à estação de trem. Logo nas pri-
meiras quadras da Avenida Primeiro de Abril, o personagem relata a existência de um “valha-
couto de milionários” muito bem protegidos “pela ferocidade dos cães [que] parecia a única
prova de existência de vida438” no local. Mais adiante, no número sessenta e quatro, seus pen-
samentos foram interrompidos por uma “alegria tropical” vinda de um restaurante de luxo,
sixty-four’s. O estabelecimento, que faz referência ao ano do Golpe militar, era frequentado
pela elite da Cidade. Naquele momento, o irmão de Ladislau, sua noiva, o sogro e os amigos
jantavam e divertiam-se assaltando com armas de fogo os funcionários e outros clientes do
restaurante. Além disso, faziam troça dos demais fregueses incluindo o chefe da Guarda Real.
Essa cena configura-se como uma espécie de retrato da impunidade que a elite adquire por meio
de seu poder monetário e status social privilegiado.
A partir da segunda quadra, o cenário sofreu algumas mudanças, não havia mais man-
sões, mas as casas e prédios mantinham um padrão de classe média. Até esse momento o per-
sonagem estava começando a desenvolver um sentimento ufanista para o qual antes era indife-
rente: “(como é possível amar uma Cidade?) [...] Ali estávamos nós dois, minha Cidade e eu,
eu e minha Cidade contemplamo-nos envergonhados de nosso mútuo desconhecimento439”. Ao
caminhar mais um pouco, as fachadas das casas começaram a apresentar deterioração até não
existir mais moradia e, concomitante a isso, ocorria a decomposição de seu sentimento nacio-
nalista.
Até chegar na estação de trem, o personagem cruzou com todas as formas de desigual-
dade. A partir do abismo entre as classes sociais da Avenida Primeiro de Abril, ele descreve
uma espécie de pirâmide social. Conforme o trecho seguinte:
Numa janela iluminada por um lampião de querosene, vi a doença e o des-
conforto, vi uma concha de feijão ser dividida por onze pessoas. Registrei a desgraça
no corpo de uma menina nua. Surpreendi um casal de negros que se amavam numa
cama feita de caixotes. [...] Fingi que não tinha visto duas mocinhas que esmagavam
formigas numa travessa de barro para comê-las com farinha.
Embaixo, a cidade fluorescente, odiosa como um polvo eletrônico.
(como é possível odiar uma cidade?)440
Só nesse episódio do romance, o personagem oscila entre amar, odiar e aceitar sua
cidade natal. Até que, um pouco antes de chegar na estação de trem, ele percebe que sua melhor
438 GIUDICE, 1985, p. 168. 439 GIUDICE, 1985, p. 173. 440 GIUDICE, 1985, p. 174.
165
alternativa é desistir da clandestinidade para participar da luta republicana e poder ter um rela-
cionamento com Auriflor. Ironicamente, após a mudança de regime político, o personagem co-
meçou a frequentar o restaurante sixty-four’s e comprou um apartamento na mesma Avenida,
um reflexo de ascensão social como presidente das Indústrias S.A. e aliado do irmão de Ladis-
lau, bem como da hipocrisia de quem oscila entre os discursos e posicionamentos políticos
aderindo-os quando convém.
Essa mesma ironia percorre a narrativa ao explorar a caricatura do rei, líder máximo
da monarquia, como um palhaço no comando de um circo e, posteriormente, a eleição do eco-
nomista apolítico irmão de Ladislau para vice-governador da República. Conforme destaca An-
dré Scoville sobre a crítica presente no romance,
Um dos alvos preferidos por Giudice ao qual dirige sua crítica irônica e muitas vezes
abertamente satírica é exatamente a postura autoritária de quem detém certo poder.
Essa postura é apontada em diversas esferas da sociedade, como na doméstica e fami-
liar, do trabalho e da política. Dos diferentes “reis” dessas diferentes esferas, Giudice
expõe a pequenez. São apenas reizinhos que uma vez que perdem o poder revelam sua
“real mediocridade”441.
Para serem compreendidas, a ironia e a sátira exigem um conhecimento específico ou
prévio de algo, ou seja, um leitor inserido numa determinada comunidade discursiva. Por isso,
o discurso está sempre à mercê de interpretações errôneas, de tal modo que a estratégia literária
pode não alcançar o objetivo desejado de um lado, mas ainda assim funcionar para outro. A fim
de entender melhor essa ideia, Linda Hutcheon nos diz:
Desnecessário dizer, a ironia pode ser provocativa quando sua política é conservadora
e autoritária tão facilmente quanto quando sua política é de oposição e subversiva:
depende de quem a está usando/atribuindo e às custas de quem se acredita que ela está
funcionando. Tal é a natureza transideológica da ironia442.
Nessa lógica, Bolero pode ser lido como um chamado para a indignação e luta ou como
uma ideia indiferente com relação às transitologias e aos contextos políticos. De acordo com
Hodgart, “[...] la sátira no solo es la forma más corriente de la literatura política, sino que, em
cuanto pretende influir en la conducta pública, es la parte más política de la literatura443”. Em
outras palavras, a sátira é a prática literária diretamente associada à política em termos amplos,
seus debates e a todos os conflitos que a ela implica.
O processo de transição descrito no último capítulo do romance acaba por ser a chave
de leitura do fenômeno satírico da obra. Enquanto no decorrer da narrativa leem-se as sátiras e
441 André SCOVILLE, 2004, p.107. 442 Linda HUTCHEON, 2000, p. 34. 443 HODGART, 1969, p. 32.
166
ironias independentemente, nesse episódio, elas passam a fazer sentido como um todo, propor-
cionando-nos a leitura da alegoria ao processo de redemocratização e, consequentemente, sua
contemporaneidade ao Golpe de 2016.
5.1.1 A transição
O personagem-narrador não conta uma história sobre o presente e sim sobre o passado.
O tempo narrativo está datado em quatro anos após a implantação da República; apenas o último
capítulo/fragmento transcorre no tempo presente. Mas, ainda assim, o fato desse último episó-
dio ser uma correspondência destinada à Cynthia faz dele um relato memorialístico da sua vida
e de testemunho sobre a Cidade. Essas informações, por sua vez, possibilitam a leitura do ro-
mance como uma escrita do luto, conforme pontuo a seguir.
Inicialmente, o único desgosto do personagem está em não conseguir solucionar o caso
de sua esposa desaparecida. Contudo, à medida que tece comentários a respeito de sua nova
vida com Auriflor, ele também fornece informações sobre a farsa do processo de transição e o
atual mecanismo político da Cidade.
Para Idelber Avelar, não é possível abordar o luto de uma derrota como um caso iso-
lado, faz-se necessário considerar, “sobretudo, a capacidade de contar uma história sobre o pas-
sado444”. Em outras palavras, o luto como derivado do sentimento de derrota não é uma reação
momentânea, e sim decorre de uma sequência de erros e traumas aos quais não foi dada a devida
atenção e, por isso mesmo, suas consequências ocupam o presente. No caso do romance, a
relação com Cynthia e com o contexto político local são os focos narrativos que corroboram
esse viés de leitura, tanto no que diz respeito ao luto como à contemporaneidade da obra.
O personagem-narrador descreve com naturalidade os trâmites administrativos e soci-
ais que se encaminharam após o golpe que matou simbolicamente o rei Vezirrê Budru, reafir-
mando a ideia de que a transição consistiu em meros protocolos burocráticos. Por exemplo,
imediatamente as bandeiras vermelhoazuldouradas foram substituídas por “um verde-garrafa e
a outra, numa cor desenxabida que não foi possível identificar445”; o cigarro deixou de se cha-
mar Soberanos para ser Republicanos; a Guarda Real passou a ser Guarda Republicana, com o
mesmo encarregado no comando; no outro dia já teve a posse de uma junta governamental
provisória etc. Não houve nenhum tipo de complicação na transição e sequer há relato sobre
444 AVELAR, 2003, p. 31. 445 GIUDICE, 1985, p. 322.
167
uma análise de conjuntura ou julgamento sobre a postura do regime anterior. Portanto, a tran-
sição constitui-se como uma mera passagem institucional de um governo monárquico para um
republicano.
Considerando-se que o personagem Ajudante Máximo permaneceu como chefe da
Guarda, pressupõe-se que as estratégias de segurança também permaneceram as mesmas. Aliás,
em seguida à “morte” do rei, o militar Máximo informou que Auriflor e Auritio seriam soltos
pela Guarda Republicana em questão de minutos. Bastava assinar os papéis de anistia. Assim,
o prisioneiro Número Um, mais uma vez, tinha razão ao dizer que todos os regimes exigem
cega obediência aos seus regulamentos, de modo que, ao invés de prenderem os republicanos,
a partir de agora prenderão e torturarão os simpatizantes da monarquia.
Por conseguinte, o mais antigo monarquista da Cidade, o avô de Auriflor, foi uma das
vítimas da ação da nova Guarda. Segundo o protagonista, a medida de mandar fuzilar Auriavô
foi um ato fictício realizado apenas para abrandar a situação e acalmar os ânimos do monar-
quista derrotado:
Um dia, o velho confessou a Madame que sua recuperação física se deveu a um pro-
blema de orgulho pessoal. Disse que um monarquista de fibra não podia morrer na
cama, como um covarde. [...] Máximo conseguiu um julgamento fictício e o Auriavô,
último dos monarquistas ativos da Cidade, foi condenado à morte por fuzilamento446.
Dentro do contexto em que o romance Bolero foi construído e publicado, em agosto
de 1979, o presidente general Figueiredo — também para abrandar o momento de crise —
declarou anistia aos presos e perseguidos políticos, bem como a abertura política. É sabido que
os afazeres e interesses acontecem muito rapidamente no período de transição em uma socie-
dade autoritária, de tal maneira que tanto a implementação de leis de perseguição e censura são
instituídas de uma hora para outra também são anuladas de igual modo.
Ao sancionar a lei de anistia política, Figueiredo possibilitou o retorno ao país de mui-
tos perseguidos que estavam em exílio no exterior. No entanto, se por um lado essa abertura
significou a esperança para retomar a consolidação da democracia, por outro, significou uma
alternativa para o governo militar apaziguar as emoções e dar brecha para o esquecimento das
atrocidades ocorridas durante todo o período da ditadura.
Luís Carlos Prestes foi um dos principais problematizadores sobre o período. Durante
toda a década de 1980, o político destacou-se por criticar a maneira como ocorreu a abertura
política e denunciar o que afirmava ser a falsa democracia que se formava no Brasil pelo nome
446 GIUDICE, 1985, p. 335.
168
de Nova República. Para Prestes, estavam todos se deixando enganar pelo pouco que lhes era
oferecido pelos militares:
Ao emprenhar-se na luta pela efetiva democratização do Brasil, ao denunciar a per-
manência do regime ditatorial durante o governo Figueiredo repelindo as teses dos
liberais e da direção do PCB de que estaria atravessando um período de “transição”
para a democracia Prestes insistia na continuidade do “poder militar”, ao qual voltaria
a referir-se repetidas vezes aqueles anos447.
Em 1982, Figueiredo abriu espaço para eleições de governadores estaduais através de
eleições diretas, e para presidência da República por eleição indireta, em 1984. Tancredo Ne-
ves448 estava entre os favoritos para ocupar o cargo de presidente da Nova República, princi-
palmente por parte dos militares. Segundo Prestes, Tancredo estava
a serviço do poder militar, e o Brasil vai continuar sendo governado por um general,
à paisana. [...] Como os militares estavam desgastados, o alto comando achou que
deveria se manter no poder através de um candidato civil e de preferência oposicio-
nista449.
No romance, diante de uma sociedade viciada em golpes políticos, fez-se importante
manter como liderança política local alguém que não vislumbrasse mudanças e mantivesse a
estratégia anterior com salvas diferenças, como a descentralização do Circo e a permanência da
política de multiplicação dos pães. Novamente, o prisioneiro Número Um já havia informado
que as trocas de regime na Cidade nunca significaram o fim da opressão, tendo em vista que
ele havia sido preso por todas monarquias e repúblicas dos últimos sessenta anos.
Nessa última transição, as eleições da Cidade aconteceram um ano depois do término
da monarquia. Não nos é fornecida a informação de quem ocupou o cargo máximo da Repú-
blica, mas sabe-se que o irmão de Ladislau era o candidato favorito e foi eleito vice-governador
com ampla maioria dos votos. O sobrinho da “Madame Odhontyna Alberycca Euphrozina Al-
pharraz Bethançon do Gammedal450”, genro do monarquista (e homem mais rico da Cidade)
Holofernes o Gordo, sem dúvida era o personagem perfeito para ocupar esse cargo político, até
mesmo o de Governador. Sua figura representava um ciclo de relações de parentesco na política
e de uma classe social rica e poderosa. Por identificar-se como apolítico, o irmão de Ladislau
interessava-se estritamente pela manutenção do poder sem importar-se com os meios utilizados
para alcançar tais objetivos.
447 PRESTES, 2014, p. 119-120. 448 Tancredo Neves não chegou a assumir o cargo presidencial devido ao seu óbito precoce meses após as eleições
indiretas. 449 Luís Carlos PRESTES, 1985 apud PRESTES, 2014, p. 134. 450 GIUDICE, 1985, p. 93.
169
Esse caráter do personagem reverbera nos critérios utilizados na escolha de seu suces-
sor na presidência das Indústrias. Como é possível observar no trecho a seguir:
O escritório central mandou fazer um levantamento cadastral de nós cinco e nada foi
constatado que desabonasse nossas condutas. Éramos cidadãos absolutamente hones-
tos. Nossa probidade se colocava fora de qualquer suspeição. Foi quando tive a ideia
luminosa [...] Numa das reuniões da Diretoria, num desses momentos de descontra-
ção, roubei a caneta de ouro do irmão de Ladislau [...] E, na semana seguinte, com a
mesma caneta sob as vistas de dona Marilinda, falsifiquei a assinatura dele em seis ou
sete documentos. Inclusive num cheque451.
Consciente de que o ato de desonestidade seria revelado pela fiel e zelosa secretária
após descoberto, em três dias, o personagem-narrador foi nomeado presidente das Indústrias.
Os dois personagens reconheceram inúmeras vezes desinteresse e desdém pelos assuntos rela-
cionados à política da Cidade: o irmão de Ladislau, em conversa com o personagem-narrador,
afirmou estar “cagando e andando para essas repúblicas de papelão e para essas monarquias de
bosta452”; além disso, considerava uma doença ser republicano, pois “quem nasce republicano,
morre republicano. Não adianta discutir453”. Portanto, esse homem que dizia não se importar
com monarquias e repúblicas, ainda que demonstrasse certa simpatia com o monarca Vezirrê
Budru, tornou-se um dos líderes do governo na nova República. Ou seja, mais um exemplo de
pessoa que não toma partido, mas se mantém ao lado do poder tal qual fez Pedrobarão, do conto
“Miguel Covarrubra”.
O romance de Giudice anuncia temerosamente sobre os próximos passos da democra-
cia brasileira. Infelizmente, pode-se dizer que o escritor conseguiu fazer uma boa leitura desse
momento, pois o processo de redemocratização não ocorreu de forma bem-sucedida, tanto a
transição quanto a consolidação.
Após a publicação do romance, os anos que se seguiram ratificaram a manipulação da
passagem da ditadura para democracia. Ainda naquele período, entre os anos de 1985 e 86, Luís
Carlos Prestes destacava que a Nova República não teria demonstrado a que viera nem promo-
vera “qualquer modificação substancial nas velhas estruturas política, social e econômica” e
continuava em vigor “a mesma legislação fascista, criada nos 21 anos de governos generais454”.
De acordo com a historiadora Janaina Teles, o debate sobre as ações dos militares bem
como as perdas sofridas durante esses anos era de todo modo evitado. Essa estratégia foi am-
plamente aderida a fim de impedir maiores conflitos que pudessem prejudicar e inviabilizar o
451 GIUDICE, 1985, p. 332. 452 GIUDICE, 1985, p. 220. 453 GIUDICE, 1985, p. 221. 454 PRESTES, 1985 apud PRESTES, 2014, p. 137.
170
processo de consciência democrática455 e impulsionar um retorno do regime ditatorial. Essa
falta de debate sobre os crimes cometidos pelos militares456 deu brecha para a interpretação de
que a anistia foi recíproca para os dois lados, beneficiando torturadores e vítimas em nome da
conciliação nacional.
Embora haja narrativas de memória e crítica à ditadura, as quais são muito importantes,
esse pensamento equivocado se mantém devido à leitura errônea da expressão “crimes cone-
xos457” constante na lei de conciliação. Além disso, é inaceitável que o crime de tortura seja
entendido como crime político e concedido anistia ou prescrição. Segundo Flávia Piovesan, a
Corte Interamericana nos casos Barrios Altos versus Peru (2001)
realçou a inviabilidade do decreto de “autoanistia”, por implicar a denegação de jus-
tiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar,
punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-
humanidade458.
Aliada a essa falsa ideia de “autoanistia” ou dupla anistia está também a memória do
esquecimento. O impedimento ao direito à verdade sobre os turvos tempos de ditatura e os
crimes cometidos contra a humanidade provocou danos à identidade nacional, à História e à
memória coletiva. De acordo com Vladimir Safatle, a falsa tese de que “o esquecimento dos
excessos do passado é um preço doloroso pago para garantir a estabilidade democrática” revela-
se como “a verdadeira causa do caráter deformado e bloqueado de nossa democracia”459.
Os discursos que afirmam não ter ocorrido tortura no Brasil ou que a justificam por se
tratar de uma “situação de guerra” fortalecem a naturalização da violência; ou seja, a ideia de
que toda violência se equivale e que pode ser justificável. Podemos observar tal questão na cena
da morte arranjada e naturalizada do personagem Auriavô pela Guarda Republicana, bem como
o espetáculo que foi a execução do prisioneiro Número Um pela Guarda Real. As mortes desses
personagens nada têm a ver com a luta por justiça contra a impunidade dos crimes do Estado.
Afinal, ambos os personagens são, de certa forma, vítimas do sistema, ao passo que foram as-
sassinados por seus opositores. No entanto, corroboram com a mediocrização da violência à
medida que incentivam a memória da tortura e da manipulação do corpo em ambos os cenários
políticos.
455 Janaina TELES, 2010. 456 TELES, 2010. 457 Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em suas causas. Não
se pode falar em conexidade entre os fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. (Flávia PIO-
VESAN, 2010, p. 100). 458 PIOVESAN, 2010, p. 102. 459 Vladimir SAFATLE, 2010, p. 240.
171
Desse modo, a naturalização da violência é uma consequência da memória do esque-
cimento. Assim como o personagem-narrador de Bolero questiona se seria “melhor passar uma
borracha implacável nos acontecimentos antigos460”, em Incidente em Antares isso é efetivado
através da “Operação borracha”. São catorze anos de diferença entre os romances, mas eles se
identificam e se aproximam do que de fato aconteceu no desenredo dos acontecimentos pós-
ditadura brasileira e de tantos outros momentos da história nacional. Nas palavras de Maria Rita
Kehl, “não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do
esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da histó-
ria de uma sociedade”461.
Portanto, a falsa anistia, a impunidade daqueles que cometeram crimes contra a huma-
nidade, a destruição de documentos e o impedimento do direito à justiça às vítimas da ditadura
somam-se ao sentimento de luto pós-ditatorial. Conforme destaca Saúl Sosnowski,
Trata-se além do mais, da imperiosa necessidade de elaborar as perdas desses anos
como dolo, como um luto nacional que exibe cicatrizes que não podem nem devem
ser ocultadas, e muito menos apagadas. Enquanto uma nação não enfrenta radical-
mente sua perda, toda reparação será provisória. E ao dizer “perda” não me refiro
somente ao número de vítimas nem a tantas outras tragédias que em si já teriam pre-
enchido toda a acepção de perda, mas sim a essa carência que atravessa a própria fibra
das transformações estruturais da nação, essa pulsão que se dirige ao que fomos e ao
como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante462.
Essa ausência de olhar para os traumas e reparar dívidas do passado é o que nos conduz
ao eterno retorno em busca de uma identidade nacional, bem como é o eixo de fundamentação
para a continuidade do autoritarismo. Maria Rita Kehl chama a atenção da “tradicional cordia-
lidade brasileira463” como condicionadora dessa continuidade que “desvirtua a gravidade dos
conflitos desde o período colonial464”. Como se o presente nada aprendesse com o passado e,
por isso, “o eterno retorno como lugar absolutamente sem memória465”. Nesse sentido, então,
podemos dizer que o Brasil nunca teve uma democracia efetiva, pois ideologias autoritárias
servem como referência até hoje, conforme verificaremos mais adiante.
Normalmente, a transição é um processo realizado em um período curto. No entanto,
no Brasil, ela sofreu um retardo proposital através de uma abertura lenta, gradual e segura (para
460 GIUDICE, 1985, p. 330. 461 KEHL, 2010, 126. 462 Saúl SOSNOWSKI, 1994, p. 15. 463 No sentido que Sérgio Buarque de Hollanda tomou emprestado de Ribeiro Couto. (KEHL, 2010, p. 123). 464 KEHL, 2010, p. 123. 465 AVELAR, 2003, 209.
172
o grupo dominante) logo no início da presidência do general Ernesto Geisel (1974 – 1978)466.
Além disso, a falsa dupla anistia serviu para coroar a transição democrática que, por sua vez,
foi/é um processo controlado pelos grupos de elite e sem participação popular, o que dá margem
ao continuísmo autoritário.
Werneck Vianna ao analisar esse contexto de transição retoma o processo de indepen-
dência em 1822, que também não constituiu um movimento revolucionário de libertação naci-
onal frente ao colonialismo. Segundo o autor, o processo foi dirigido pela classe dominante,
sem participação popular e conservando uma estrutura política e social que privilegiava o mo-
nopólio de terra e a elite agrária do país:
Revoluções passivas são processos de revolução sem revolução em que as elites polí-
ticas das classes dominantes se apropriam total ou parcialmente da agenda dos setores
subalternos, cooptando suas lideranças, afastando outras, em uma estratégia de con-
servar-mudando, tal como nas palavras de um personagem do romance O leopardo, a
obra-prima do italiano Giuseppe Lampedusa, que sentenciava ser necessário mudar
para que as coisas permanecessem como estavam467.
Nessa mesma lógica, o processo de conscientização democrática ou de “transição” do
regime autoritário para o regime democrático preservou o caráter de continuidade com o pas-
sado, qual seja, sem rupturas e pela manutenção do conservadorismo. A sociedade dividia-se
entre vibrar e ter esperança na democracia que se acercava e lidar com as marcas de um doloroso
trabalho de superação das perdas e de esquecimento. Segundo Ana Maria Machado:
[...] com todo esse desalento e a indignação de uma geração que sente que deu a me-
tade mais importante de sua vida para combater a ditadura, pagando um preço em
vidas, sangue, dor, liberdade, sonhos, para dar nisso que está aí. Continuamos às voltas
com os mesmos problemas do início dos anos 60, campanhas por reformas de base,
inflação incontrolável, ameaças de golpe militar, tutela econômica internacional468.
Diante desse contexto, percebia-se a movimentação das grandes massas ocupando lu-
gares públicos na luta pela reforma política e por melhores condições de vida, tendo em vista o
aumento da desigualdade e violência social e racial. Muitos dos integrantes desses movimentos
estavam mobilizados pelo vislumbre de uma Constituinte que significasse a refundação nacio-
nal, mas, contraditoriamente, também pela descrença na posição do governo de manter uma
política horizontal sem grandes mudanças.
466 Edson TELES, 2010, p. 309. 467 Luiz WERNECK VIANNA, 2011, p. 172. 468 Ana Maria MACHADO, 1994, p.87.
173
A promulgação da Constituição de 1988 foi um marco no processo de transição. Ainda
que, dias após sua aprovação, o então presidente da República José Sarney (1985-1990) infrin-
gisse as leis recém-instituídas ao ordenar o ataque do exército a uma atividade da greve dos
metalúrgicos da Usina de Volta Redonda. Todavia, a Carta Magna deixou muitas brechas, prin-
cipalmente a manutenção da tutela militar nos artigos 142 e 144, em que cabe à polícia militar
a responsabilidade pela segurança pública.
Na palestra “O que resta da ditadura?469”, Renan Quinalha inicia sua fala trazendo
pontos que “ajudam a entender como a ditatura permanece atualizada na democracia na demo-
cracia brasileira” e levanta uma questão muito pertinente ao debate “Quem é o inimigo em uma
democracia?”. A sua pergunta faz referência aos militares que, em nota e dossiês, negaram
participar da Comissão da verdade, alegando, inclusive, não colaborar com o inimigo.
O questionamento de Quinalha também faz referência à relação civis e militares, pre-
sente nos artigos 142 e 144 da Constituição. Nesse sentido, qual a necessidade de ter uma força
armada para manter a ordem civil? Afinal, o policiamento urbano, que deveria ter como princí-
pio defender a população de ataques externos, sugere o combate à violência proporcionada pela
própria população (contínua guerra civil às periferias).
O processo de transição teoricamente deveria ter finalizado com a aprovação da Cons-
tituição de 1988, mas, de certa forma, estendeu-se pela década de 1990. Nesse sentido, a era da
conciliação e consolidação democrática iniciou em 2002 com o governo Lula e encerrou entre
2015 e 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Desde então, estaríamos vi-
vendo os anos de destruição e devastação de uma democracia supostamente “natimorta”.
No entanto, antes de adentrar aos anos de conciliação e consolidação democrática, faz-
se importante entender que o sentimento de derrota e impotência fomentado pelo processo dis-
paratado de redemocratização não somente se assemelha ao sentimento provocado pelo Golpe
de 2016 como também é uma de suas consequências. Quando a leitura do romance é realizada
entre os anos de 2016 e 2020, a frase final dita pelo protagonista, “A esquerda que espere”, soa
como uma provocação e realça o sentimento de desesperança com a atual conjuntura política
nacional.
469 Palestra proferida no Seminário Internacional "Democracia em colapso?" (2018). Disponível no canal TVBoi-
tempo (25m20s) https://www.youtube.com/watch?v=BWB_9dLi8V4. Acesso em 31 de março de 2020.
174
O Brasil é um país acostumado a equilibrar-se entre a tragédia e a esperança, conforme
afirma o sociólogo e filósofo Michael Löwy ao retomar Hegel e Marx para dizer “que aconte-
cimentos históricos se repetem duas vezes: primeiro como tragédia, segundo como farsa470”.
Por isso, o incômodo experimentado pelo leitor contemporâneo é desencadeado pelo fato de se
encontrar exatamente na situação de Auritio, atônito e impotente diante de um golpe conduzido
pela “república das famílias”.
Löwy, inclusive, afirma que o Golpe de 1964 foi uma tragédia enquanto o de 2016 “é
uma farsa, um caso tragicômico, em que se vê uma cambada de parlamentares reacionários e
notoriamente corruptos derrubar uma presidente democraticamente eleita471”. A indignação
urge do absurdo tragicômico que ressoa entre a ficção e a realidade. Conforme os pensamentos
de Stéphane Hessel472, a indignação instiga a esperança e, talvez, a esquerda tenha realmente
que [continuar a] esperar. Mas, até quando?
5.2 COMO VIEMOS PARAR AQUI?
Conforme venho comentando ao longo deste capítulo, o romance pode dizer muito
sobre o contexto que culminou no Golpe de 2016. E é sobre esse ponto que gostaria de fixar a
atenção nesse momento e lançar um brevíssimo olhar sobre a conjuntura política contemporâ-
nea.
Até aqui, foi possível compreender a relação do romance com a ditadura militar e o
processo de transição de regimes; fatos históricos necessários para entender a obra de Giudice
e seu diálogo com o recente Golpe contra a democracia brasileira. Os caminhos indicam que os
últimos acontecimentos decorrentes da atual crise política nacional são (também) consequên-
cias do luto pós-ditatorial. Além disso, correlacionar o Golpe de 2016 com as transições de
regime e os projetos de nação torna-se chave para justificar a leitura de Bolero como um ro-
mance de desfundação. Afinal, as ficções de fundação são recorrentes em períodos de transição
de regimes (monarquia/ditadura para república/democracia), bem como em momentos de crises
política, como o caso do recente impeachment e o retorno dos discursos antidemocráticos e
autoritários.
Vale ressaltar que os processos de transição e os projetos de nação considerados malsu-
cedidos são, na realidade, leituras possíveis, pois eles podem ser funcionais para aqueles que
470 LÖWY, 2017, p. 64-65. 471 LÖWY, 2017, p. 65. 472 HESSEL, 2011.
175
implementaram o projeto e conduziram a transição. A fim de esclarecer esse ponto, retomo a
lógica da república das famílias que citei anteriormente pois, de acordo com Ricardo Costa de
Oliveira, o nepotismo está diretamente ligado às instituições políticas frágeis e se faz presente
no sistema brasileiro desde a colonização473. Então, não é de se surpreender que os projetos de
nação e os processos de transitologia revelem relações marcadas pelo poder, principalmente
familiar e econômico.
Os fenômenos do familismo e do nepotismo na política aparecem na regra da heredi-
tariedade monárquica, passando para as grandes oligarquias fundiárias e comerciais na repú-
blica para, então, enraizar-se na política brasileira a ponto desse cenário permanecer e até
mesmo aumentar com a redemocratização474.
O conto “Miguel Covarrubra” traz uma boa representação dessa hereditariedade na
política, bem como as relações entre as esferas públicas e privadas. Tal qual descrevi e analisei
nos capítulos anteriores, Gastão de Holanda reforça em sua crítica sobre o livro Os banheiros
(1979), ao dizer que a crítica social do conto “reconstitui toda uma heráldica brasileira armorial,
arraigada à nossa história familiar saudosista”475.
Em estudo realizado na Universidade Federal do Paraná, Oliveira aponta que “há cerca
de 60 famílias políticas controlando o poder político contemporâneo no Paraná476”, e que nas
eleições de 2012 “ao menos 19 filhos ou netos de políticos foram candidatos a prefeito de 14
das 26 capitais brasileiras477”. Isso significa que, apesar das aparentes intenções de mudança,
através dos processos de transitologia e consolidologia desde a monarquia brasileira, os projetos
de nação não vislumbravam mudanças efetivas na configuração política e social, e o que enten-
demos por malsucedidos foram na realidade um grande sucesso.
Ao longo do tempo, o nepotismo esteve diretamente relacionado à concentração de
poder e renda, responsável pela formação de desigualdades e carências sociais478: a começar
pela exterminação e aculturação de milhões de indígenas e pelo tráfico e escravização de afri-
canos por quase 350 anos.
A configuração dessa estrutura social e genealógica corrobora com a justificativa do
eterno retorno aos governos autoritários. Desse modo, sempre que o contexto não obedecer à
473 OLIVEIRA, 2012. 474 OLIVEIRA, 2012. 475 Gastão de HOLANDA, “Giudice, canonizando a penumbra do subúrbio”, Jornal do Brasil, s/p, s/d, 1979. 476 OLIVEIRA, 2012, p. 15. 477 OLIVEIRA, 2012, p. 267. 478 OLIVEIRA, 2012.
176
configuração almejada ou não corresponder aos interesses das elites familiares e econômicas,
faz-se necessário intervir no seio político nacional. Tal qual ocorreu, por exemplo, em 1954,
com Getúlio Vargas; em 1964, com João Goulart; e em 2016, com Dilma Rousseff.
Segundo o jornalista Mauro Lopes479, quatro famílias foram decisivas e responsáveis
por derrubar o governo democrático em 2016: os Marinho (Organizações Globo), os Civita
(Grupo Abril/Veja), os Frias (Grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado); com o apoio de
outras mídias de segunda linha: os Alzugaray (Editora Três/Istoé), os Saad (Rede Bandeirantes)
e os Sirotsky (RBS). Algumas dessas já haviam feito o mesmo para derrubar João Goulart e,
anos antes disso, Getúlio Vargas. Soa espantoso pensar que essas três articulações de Golpe
foram realizadas sob o discurso de preservar as instituições, a democracia e os direitos indivi-
duais. Nesse sentido, devo concordar com o filósofo Vladimir Safatle ao afirmar recentemente
que “não é possível perder algo que nunca tivemos: a democracia480”, pois, no Brasil, a regra é
o golpe, a democracia resume-se a breves flertes ao longo da história.
Dois discursos repercutiram nas camadas sociais brasileiras durante as movimentações
do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, e em 2018 na campanha
eleitoral seguida pela vitória de Jair Bolsonaro: por um lado, o discurso sobre a ruína e morte
da democracia brasileira e, por outro, o pedido de retorno da ditadura. Esses dois discursos
sinonímicos reiteraram a falha do processo de finalização do último período ditatorial, suas
causas e consequências, bem como questionam a efetividade da consolidação democrática no
país. Tal como Francisco Lopes Dias sugere o termo “natimorta481” para referir-se à democracia
durante o processo de impeachment em 2016.
Segundo Dias, “nas poucas vezes em que foi concebida, a democracia não concluiu
seu ciclo gestacional. Por isso, os raros e frágeis experimentos da soberania do povo no Brasil
podem ser qualificados de natimortos482”. Seguindo essa mesma linha de pensamento, pode-se
dizer que o Golpe de 2016 marca uma ruptura na experiência democrática iniciada em 1985.
O sistema democrático não pode ser confundido com uma forma de governo ou com
um modo de vida social. Jacques Rancière483, em seu livro Ódio à democracia (2014), defende
479 LOPES, 2016. 480 Em palestra intitulada “Limites da democracia no Brasil” para o evento “Democracia em colapso”, disponível
no canal TVBoitempo (1h00m07s) https://www.youtube.com/watch?v=D8HaJXn6Zbs. Acesso em 6 de novembro
de 2019. 481 Um feto é considerado natimorto quando a gravidez é interrompida num período igual ou superior a 20 semanas,
por analogia, a última democracia teve uma gestação de 31 semanas, 19852016. 482 DIAS, 2016, p. 64. 483 RANCIÈRE, 2014.
177
que não há governo democrático propriamente dito. Tanto no presente quanto no passado as
sociedades são organizadas através do jogo das oligarquias, da minoria para a maioria e, desse
modo, a democracia moderna parece resumir-se ao voto popular que, através da eleição, apenas
legitima um representante membro dessa oligarquia.
A definição de democracia como poder do povo ou governo do povo acaba por ser
considerada uma utopia484, tendo em vista que quanto mais a sociedade se aproxima desse ce-
nário mais próximo está também de uma crise democrática. Para Rancière, “o que provoca a
crise do governo democrático nada mais é que a intensidade da vida democrática”, por sua vez,
“a ‘vida democrática’ identificava-se com o princípio anárquico, que afirmava o poder do
povo485”. Nesse sentido, a democracia só é possível quando concebida com inúmeras exceções
e obedecendo às regras de determinado jogo, caso contrário emergem os movimentos antide-
mocráticos. Essa é a premissa que respalda o fato de os projetos nacionais não serem conside-
rados malsucedidos, mas sim planejados desde o princípio para o fracasso.
De acordo com Francisco Dias, a fecundação da democracia não aniquila os valores,
as ideias e os interesses antidemocráticos, de modo que, à medida que a falsa anistia dos mili-
tares foi efetivada no país, criou-se precedente para que os mesmos políticos antidemocráticos
permanecessem atuando e travestindo-se de democratas486. Diante disso, nos primeiros anos
democráticos, o país somou um impeachment e uma suposta compra de reeleição487, posterior-
mente, nos anos 2000 vivenciou o mais próximo de um governo popular e democrático até
então.
O primeiro presidente eleito pelo voto popular (voto direto) depois da ditadura militar,
em 1989, Fernando Collor (PRN) (1990-1992) foi também o primeiro presidente do Brasil e da
América Latina a ser deposto através de impeachment. Já Fernando Henrique Cardoso foi pre-
sidente durante dois mandatos (PSDB, 1995-2003), sendo que sua reeleição foi permitida atra-
vés de emenda constitucional apresentada ao Congresso Nacional em 1997. A proposta teve
repercussão polêmica e, meses após sua aprovação, parlamentares governistas admitiram ter
vendido seus votos e alguns renunciaram a seus mandatos. Em 2002, Luís Inácio Lula da Silva
foi eleito pelo Partido dos Trabalhadores, permanecendo na presidência por dois mandatos,
484 RANCIÈRE, 2014. 485 RANCIÈRE, 2014, p. 16. 486 DIAS, 2016. 487 Laurez CERQUEIRA, “A compra de votos para reeleição de FHC”. Carta Maior. Disponível em: http://demo-
craciapolitica.blogspot.com/2012/08/a-compra-de-votos-para-reeleicao-de-fhc.html. Acesso em 7 de novembro de
2019.
178
2003 – 2011. Posteriormente, Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil, foi eleita em 2010
e reeleita em 2014, até ser deposta do cargo em decorrência do Golpe de 2016.
A partir de 2013 intensificam-se as perseguições aos movimentos sociais, os discursos
antidemocráticos, o extermínio dos povos indígenas, bem como da população negra e pobre
pela polícia militar para, por fim, resultar no afastamento de uma presidenta democraticamente
eleita. Por sua vez, essa última ação foi difundida erroneamente como um ato em defesa da
democracia por estar levemente fundamentada e prevista na Constituição brasileira de 1988.
Luis Felipe Miguel salienta que a derrubada da presidenta Dilma Rousseff não foi
constitucional e sim ilegal, pois não houve crime de responsabilidade identificado488. Na mesma
linha de pensamento, Ciro Gomes, em artigo intitulado “Por que o Golpe acontece?”, afirma
que “as pedaladas fiscais não passam de manobras fiscais que por mais que sejam uma anomalia
não estão previstas na Constituição como passíveis de crime de responsabilidade489”. Tais ques-
tões sinalizam a ineficiência das instituições e a ruptura de que o voto é o único meio legítimo
de se alcançar o poder no país.
As regras constitucionais estão sempre sujeitas a interpretações conflitantes, e isso não
é uma característica exclusiva brasileira. Conforme destacam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
no livro Como as democracias morrem490: governos “autoritários em busca de consolidar seu
poder com frequência reformam a Constituição, o sistema eleitoral e outras instituições de ma-
neira que prejudiquem ou enfraqueçam a oposição, invertendo o mando de campo e virando a
situação de jogo contra os rivais”491. Vários presidentes ao redor do mundo assumiram seus
mandatos por meio do voto democrático, mas tornaram-se governos autoritários e utilizaram-
se de meios “legais” para conduzir a nação de acordo com suas ideias, como é o caso do presi-
dente peruano Alberto Fujimoro (1990-2000)492.
488 MIGUEL, 2016. 489 Ciro GOMES, 2016. 490 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018. 491 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 90. 492 Fujimoro não planejou ser ditador. Professor e reitor universitário, tinha como ideia inicial concorrer a uma
cadeira no Senado em 1990, mas as circunstâncias levaram-no a concorrer com Mário Vargas Llosa nas eleições
presidenciais. Segundo Levitsky e Ziblatt, “os peruanos admiravam Vargas Llosa, que ganharia um Prêmio Nobel
de Literatura. Praticamente todo o establishment político, mídias, líderes empresariais apoiava Vargas Llosa, mas
os peruanos comuns o viam como demasiado íntimo das elites, que se mostravam surdas às suas preocupações.
Fujimoro, cujo discurso populista capitalizava esse ódio, sensibilizou muitas pessoas como a única opção real de
mudança. Ele ganhou”. (2018, p.76)
179
No Brasil, podemos considerar a manipulação das regras constitucionais uma questão
histórica que voltou a ser muito presente recentemente. Para falar apenas no período pós-Cons-
tituição de 88, na década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), conforme
comentei, foi acusado de ter manipulado o sistema para garantir sua reeleição através de uma
emenda constitucional; em 2016, o Congresso Nacional, junto a outros setores, moveu diferen-
tes ações para retirar a presidenta do governo e frear as investigações contra grande parte dos
parlamentares e aliados.
O ano de 2016 entrou para a história nacional e mundial, pois ocorreram diversos
acontecimentos marcantes que abalaram as democracias do Ocidente. Nas palavras de Luciana
Ballestrini:
No ano de 2016 em diferentes partes do mundo pelo menos quatro eventos foram
capazes de questionar os limites da democracia representativa, liberal e ocidental. Na
Inglaterra, um plebiscito demonstrou a preferência majoritária dos ingleses pela saída
da União Europeia; Na Colômbia, o referendo pelo acordo de paz com as FARC foi
rejeitado pela maioria; nos Estados Unidos, uma vitória inesperada elegeu o empresá-
rio Donald Trump para a presidência da maior potência mundial; por fim, no Brasil,
um tumultuado processo de impeachment foi aprovado para a destituição da ex-presi-
denta reeleita Dilma Rousseff, fundamentado em um controverso crime de responsa-
bilidade fiscal493.
De acordo com a autora, esses movimentos são indícios do avanço de uma nova onda
política que ela denomina de pós-democracia:
Dois diagnósticos básicos da pós-democracia: 1) a destruição da democracia está
sendo possibilitada por dentro das instituições democráticas e 2) as forças que têm
impulsionado esse fenômeno conversam e/ou provêm de um campo supostamente
externo, historicamente apartado, diminuído ou desconsiderado pela disciplina494.
A pós-democracia ajuda-nos a compreender esse “retorno” dos discursos antidemo-
cráticos e até mesmo o “ódio à democracia” assinalado por Rancière. Os cientistas políticos
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt fazem uma profunda análise sobre essa onda conserva-
dora/pós-democrática, mais especificamente sobre a eleição de Donald Trump para presidência
dos Estados Unidos em 2016 e suas consequências no país e no mundo. Eles utilizam a dinâmica
de uma partida de futebol para entender como autocratas eleitos minam as instituições. Em suas
palavras, “capturar os árbitros dá ao governo mais que um escudo. Também oferece uma arma
poderosa, permitindo que ele imponha a lei de maneira seletiva, punindo oponentes e favore-
cendo aliados”495.
493 BALLESTRIN, 2017, p.2. 494 BALLESTRIN, 2017, p.5. 495 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 82.
180
Para fundamentar essa analogia, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt citam também go-
vernantes que almejavam blindagem contra questionamentos constitucionais e a cooptação dos
“árbitros” como uma arma “legal” para atacar seus oponentes. No entanto, essa mesma estraté-
gia pode ser utilizada para derrubar um governo democrático, ou seja, como meio de orquestrar
um soft coup 496, como ocorreu em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012. Em ambos os
países, governos direitistas e autoritários substituíram os progressistas, com o apoio do imperi-
alismo americano497.
Assim podemos começar a entender como ocorre a ruína de democracias (aparente-
mente) consolidadas. Segundo Levitsky e Ziblatt:
Nem mesmo as constituições bem-projetadas são capazes, por si mesmas, de garantir
a democracia. Primeiro, porque constituições são sempre incompletas. Como qualquer
conjunto de regras, elas têm inúmeras lacunas e ambiguidades. Nenhum manual de
operação, não importa quão detalhado é capaz de antecipar todas as contingências
possíveis ou prescrever como se comportar sob todas as circunstâncias498.
A ruptura democrática não precisa de um plano, de modo que a captura dos árbitros
ocorre de forma discreta, conforme observamos nos trâmites que precederam e sucederam o
Golpe de 2016. Para tentar entender um pouco do que aconteceu, precisamos retornar para um
tempo em que um Golpe não era uma possibilidade visível no horizonte.
O governo de Luís Inácio Lula da Silva, antecessor de Dilma Rousseff, enfrentou ame-
aças de seus opositores desde o início de seu mandato em 2002. Para não precisar enfrentá-los
diretamente, o presidente optou por mudanças sociais através de programas governamentais ao
invés de leis e reformas eficazes e de longo prazo. Promoveu, com isso, um tipo de “persona-
lismo político” que, segundo Danilo Marstucelli, acontece quando o governo prioriza progra-
mas governamentais em vez de direitos constitucionais. Esse tipo de estratégia “torna vulnerá-
vel a implementação de determinado programa à mudança de governo, ou mesmo à alteração
da linha de política do governo que executa tal programa”. Além disso, a “lógica do persona-
lismo político secretado na figura do presidente da República que passa a ser visto como o
criador e o responsável exclusivo pela execução do programa”499.
496 O termo soft coup (silent coup) ou golpe brando (golpe branco) ou foi utilizado por Chomsky e outros estudiosos
para descrever os recentes acontecimentos no Brasil (e no Paraguai, em 2012). Resumidamente, o termo é um
neologismo utilizado para referir-se a uma suposta conspiração que tem como objetivo a tomada do poder do
Estado e a troca de liderança política, promovido por frações do legislativo sem violência. 497 LÖWY, 2016. 498 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 100 1. 499 Danilo MARTUSCELLI, 2014, p. 206.
181
Apesar disso, os programas sociais fomentados pelos governos do Partido dos Traba-
lhadores fizeram enorme diferença diante do cenário de reconstrução em que a política e a so-
ciedade brasileira se encontravam. De acordo com Paulo Vannuchi,
em 2003, a democracia já havia avançado bastante em seus aspectos institucionais
desde o final da ditadura. Mas ninguém tinha cuidado de introduzir nesse processo
acumulativo um conjunto elementar de requisitos materiais da igualdade, palavra que
vale como fio condutor de toda a ideia democrática500.
Muitas dessas carências latejavam nos poros da sociedade e, por serem frutos das in-
contáveis violações de direitos humanos, ansiavam (e ainda anseiam) pelo fim de seu esqueci-
mento. Afinal, após os últimos anos de regime ditatorial, só aumentou o número de traumas que
vinha sendo colecionado há pelo menos cinco séculos.
Para começar a reparação histórica, a primeira ação do Governo Lula foi de criar três
importantes secretarias ministeriais – Direitos Humanos, Igualdade Racial e Políticas para as
Mulheres. Segundo Paulo Vannuchi, a escolha estava
entre prosseguir na trilha do recalque e da interdição de qualquer debate, que condena
ao eterno retorno e à repetição, ou encarar de modo corajoso um processamento que
pode ser incômodo e até doloroso, mas que valerá como única chance para propiciar
um desejável anseio de reconciliação501.
As palavras de Vannuchi aliam-se à ideia de eterno retorno aos romances de fundação
em detrimento da ausência de se olhar para os traumas passados. Não debater ou deixar de
fomentar políticas públicas de restituição às vítimas dos principais acontecimentos brutais da
história como as populações afrodescendente e indígena, as mulheres, os nordestinos, os tortu-
rados, os desaparecidos políticos e seus familiares etc. não fortalece o país, pelo contrário, as
feridas abertas o deixam vulnerável.
Nesse sentido, por mais que as ações do governo PT não tenham sido “as mil maravi-
lhas”, não é possível negar a importância das ações e dos programas desenvolvidos durante seus
governos para a reparação histórica. Conforme as palavras de Paulo Vannuchi a seguir,
Todos os conhecedores do assunto sabem que, em sua acepção ampla, esses direitos
foram alargados de múltiplas formas pelo êxito incontestável de programas como o
Bolsa Família, Fome Zero, Programa Universidade para Todos (Prouni), Territórios
da Cidadania, Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, e vários outros. As políticas
públicas de combate à pobreza e à desigualdade na distribuição de renda [...] valeram
como uma espécie de redescoberta do Brasil perante os olhos céticos de todos os ana-
listas adictos à droga do pensamento elitista que fez da exclusão seu leitmotiv durante
cinco séculos502.
500 Paulo VANNUCHI, 2013, p. 340. 501 VANNUCHI, 2013, p. 337. 502 VANNUCHI, 2013, p. 338.
182
Com o governo Lula iniciou-se um longo e lento processo de rememoração coletiva e
inserção social de uma parcela da sociedade até então excluída. As políticas públicas promovem
um avanço aos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, contribuindo com a constru-
ção nacional e a participação ativa de milhões de pessoas que integram o subsolo da sociedade
meritocrática. A sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2010, deu continui-
dade ao seu plano de governo e exatamente por isso também causou incômodo em uma velha
elite e em uma nova classe média que viria a se formar com o passar desses anos.
Segundo André Singer, Dilma Rousseff “tentou encontrar uma saída para continuar
avançando dentro da conjuntura econômica negativa que se abriu em 2011. Como se sabe, o
lulismo foi fruto de uma situação particularmente favorável [...] tendo começado a mudar em
2008”503. As tentavas de, a partir de uma aliança com a burguesia industrial, dar continuidade
à diminuição da desigualdade fracassaram, pois não havia interesse por parte da burguesia de
um possível confronto mais sério com outras frações do capital, inclusive internacional.
Em meio às dificuldades internas e externas, a popularidade de Dilma começou a de-
cair à medida que as manifestações de 2013 mudaram de direção. Os protestos convocados pelo
Movimento do Passe Livre que, em um primeiro momento foram motivados pelo aumento da
tarifa do transporte coletivo, passaram a apresentar outras pautas, e principalmente outras ban-
deiras. André Singer relata que na quarta chamada do Movimento:
Surge quase um cartaz por manifestante, o que leva a uma profusão de dizeres e pau-
tas: “Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”, “Queremos
hospitais padrão Fifa”, “O gigante acordou”, “Ia ixcrever augu legal, maix fautô
edukssão”, “Não é mole, não. Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”, “Era um
país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Todos contra a corrupção”,
“Fora Dilma! Fora Cabral! pt = Pilantragem e traição”, “Fora Alckmin”, “Zé Dirceu,
pode esperar, tua hora vai chegar”, foram algumas das inúmeras frases vistas nas car-
tolinas504.
No Rio de Janeiro, o principal foco das manifestações foi a Copa das Confederações,
repetindo-se as cenas de repressão policial, mas com maior intensidade, sendo comparadas in-
clusive com “‘cenas de guerra’ ao céu aberto”505. Ainda que algumas pautas importantes tenham
permanecido por um tempo, os protestos foram tomando uma nova face e surgiram novos inte-
grantes. Segundo Marina Amaral, muitos manifestantes passaram a repudiar as bandeiras ver-
melhas e partidárias, aderindo ao “verde e amarelo” com a justificativa dessas serem as cores
de todos os brasileiros:
503 André SINGER, 2016, p. 155. 504 SINGER, 2013, p. 25. 505 SINGER, 2013, p. 25.
183
Condenavam os black blocs e exaltavam a política militar, que reprimira com violên-
cia os protestos convocados pelo Movimento Passe Livre. Suas principais bandeiras
eram contra a “roubalheira” e contra “tudo isso que está aí”, paulatinamente substitu-
ídos por um simples “Fora PT”506.
O grupo denominado Movimento Brasil Livre passou a liderar os protestos dizendo-
se a nova juventude sem partido e defendendo velhas propostas como: “liberdade absoluta para
o mercado, privatizações, Estado mínimo e o fim de políticas públicas distributivas. Ou seja, o
velho neoliberalismo, acrescido de toques ‘libertaristas’ (libertarians, em inglês)”507. No en-
tanto, houve denúncias de que “os partidos PMDB, PSDB, DEM e Solidariedade financiavam
panfletos, caravanas e lanches em manifestações”508, Dava-se início às etapas que, de acordo
com Giovani Alves, precederam o Golpe através da “inquietação das camadas médias que tor-
naram-se alvo de manipulação dos agentes ideológicos da direita organizada”509.
Essas manifestações contra o governo Dilma tinham como estrategista o “grande ca-
pital” com o objetivo de pressionar o governo e conseguir aprovar as reformas e políticas neo-
liberais510. Conforme destaca Mauro Iasi511, em um primeiro momento não havia intenção do
“grande capital” em destituir a presidenta, tanto que Dilma Rousseff foi reeleita nas eleições de
2014 e parte das reformas começaram a ter alguns encaminhamentos. Por exemplo, a nomeação
da peemedebista Katia Abreu como ministra da Agricultura, emblemática empresária pecuarista
ligada ao agronegócio; ou seja, a presidenta seguiu o oposto exigido pelos trabalhadores rurais.
Por outro lado, o país já estava declaradamente polarizado, a crise econômica aguçada
e o jogo de poder envolvendo os três dos principais partidos nacionais (PT, PMDB e PSDB)
havia sido declarado. Giovanni Alves em sua coluna no Blog da Boitempo, faz questão de no-
mear os personagens visíveis e os invisíveis envolvidos direta e indiretamente no Golpe, o qual
chega a denominar de “matilha de cães da direita oligárquica - neoliberal e reacionária”512.
A oposição inconformada por ter fracassado na estratégia de derrubar o governo PT
por meio do voto popular, nas eleições de 2014, deu início ao mecanismo complexo de um soft
506 SINGER, 2013, p. 25. 507 SINGER, 2013, p. 25. 508 SINGER, 2013, p. 25. 509 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/08/o-golpe-de-2016-no-contexto-da-crise-do-capita-
lismo-neoliberal/. Acesso em 7 janeiro de 2017. 510 Ballestrin destaca que “falar sobre democracia hoje requer falar em capitalismo” (2017, p. 11) e para entender
o Golpe de 2016 é preciso entender os avanços das políticas neoliberais no Brasil e no mundo. 511 Mauro Iasi em entrevista para o Correio da Cidadania em 14 de setembro de 2014, disponível em:
https://www.esquerda.net/dossier/mauro-iasi-pcb-verdadeira-tarefa-da-esquerda-vem-depois-das-eleicoes-cons-
truir-alternativa. Acesso em 7 de novembro de 2020. 512 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p.
184
coup. O movimento teve o apoio do vice-presidente Michel Temer e as articulações entre Con-
gresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Procuradoria Geral da República, Ministério Pú-
blico Federal e a Polícia Federal juntamente com a Operação Lava Jato, liderada pelo juiz Sér-
gio Moro, a imprensa e uma avalanche de notícias falsas513.
Nesse intervalo de tempo, a Constituição brasileira esteve em parte inoperante. Em
outras palavras, manipulável de acordo com o interesse do grupo envolvido. Conforme escreveu
Celso Rocha de Barros em um artigo para revista Piauí em 2018:
Na verdade, o Brasil teve outra Constituição em 2016, e ela foi revogada após o im-
peachment. Em 2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e en-
cerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido nomear ministros
para lhes dar foro privilegiado; em 2017, deixou de ser. Em 2016, os juízes eram vistos
como salvadores da pátria, em 2017 viraram “os caras que ganham auxílio-moradia
picareta”. Em 2015, o sujeito que sugerisse interromper a guerra do impeachment em
nome da estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017 tor-
nou-se o adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo. Em 2015, presi-
dentes caíam por pedaladas fiscais; em 2017 não caíam nem se fossem gravados na
madrugada conspirando com criminosos para comprar silêncio de Eduardo Cunha e
do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a acusação de que Dilma teria tentado influenciar
uma decisão do ministro Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em
2017, Temer jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal
Federal que julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das acusações da Pro-
curadoria-Geral da República contra ele, Temer, ao Congresso. Em 2015, Gilmar teria
cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017, não cassou514.
Eis aqui um resumo de como foram conduzidas as cenas da peça teatral que resultou
na atual conjuntura política nacional. Se o governo de Temer tivesse recuperado a economia
nacional e se o país tivesse crescido, os envolvidos no golpe teriam conseguido vender a narra-
tiva de que a culpa da crise era a corrupção petista dos governos Lula e Dilma. Desse modo, a
saída de um governo “manchado pela corrupção” e a entrada de outro em condições ainda mais
comprometedoras, conforme é possível observar no relato de Rocha de Barros, fortalece perso-
nagens de direita mais reacionários, tal qual o caso da recente eleição do ex-deputado Jair Bol-
sonaro515.
A manipulação midiática516 que ignorou as denúncias contra o Golpe e protegeu polí-
ticos como Eduardo Cunha, notório corrupto, presidente da Câmara de Deputados e principal
513 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p. 514 Celso Rocha de BARROS. “O Brasil e a recessão democrática”. Piauí, n. 139, abr.2018. Disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-brasil-e-recessao-democratica/. Acesso em 8 de novembro de 2019. 515 “Jair Bolsonaro, atualmente o maior representante da antipolítica nacional, tinha 8% das intenções de voto em
dois dos cenários simulados pelo instituto [Datafolha]. Entre os mais ricos, o deputado fascista é o primeiro colo-
cado em todas as projeções” (Murilo CLETO, 2016, p. 48). 516 Segundo o jornalista Mauro Lopes, a mídia nacional se “meteu em uma queda de braço com a imprensa inter-
nacional na narrativa do Golpe. Enquanto no Brasil alardeavam um processo constitucional de impeachment, o
ataque à democracia foi denunciado em todos os principais meios de comunicação do planeta” (2016, p. 122).
185
articulador do Golpe no Congresso, soma-se à descrença na política por parte da população.
Constata-se um conjunto de fatores que dá margem à ascensão de discursos de ódio disfarçados
de salvadores da pátria. Conforme destaca Murilo Cleto,
É no interior desse vácuo [descrença do povo na política] que surgem os salvadores
da pátria, impostores moralistas e exterminadores de rostos, multiplicidades, diferen-
ças e intervalos de uma democracia ainda em formação e mais uma vez atacada em
nome de um projeto oligarca de poder517.
A proposta desses indivíduos apoiadores do Golpe é acabar com o modelo conciliató-
rio (chamado também de neodesenvolvimentismo) e resgatar por inteira a agenda neoliberal.
Assim, o que o “grande capital” não conseguiu por completo com a presidenta Dilma Rousseff,
o presidente interino Michel Temer abriu e cedeu aos seus temas centrais, apoiando políticas e
aprovando reformas em tempo recorde. Nas palavras de Löwy,
a oligarquia de direito divino do Brasil a elite capitalista financeira, industrial e agrí-
cola não se contenta mais com concessões: ela quer o poder todo. Não quer mais
negociar, mas sim governar diretamente, com seus homens de confiança, e anular as
poucas conquistas sociais dos últimos anos518.
A retirada de direitos conquistados em décadas de luta é o maior perigo dessa agenda
neoliberal que, por sua vez, poderia ser evitada se os governos PT tivessem, no ponto de vista
de André Singer, “apresentado, quando havia maioria para tanto, a chamada Consolidação das
Lei Sociais (CLS). Se a CLS tivesse passado, hoje a situação seria mais difícil para as forças
conservadoras progressistas”519.
Aliás, esse não é um movimento exclusivo do Brasil, já que outros países passam pela
mesma demanda de ter que defender suas democracias de fascistas e da extrema direita. Se-
gundo Michel Löwy, “a democracia atrapalha, ela não facilita o trabalho da política capita-
lista”520. E como Rancière desenvolve em sua tese sobre ódio à democracia, o excesso de de-
mocracia possibilita o crescimento de discursos antidemocráticos.
Muito do que comentei até aqui é fruto da política do esquecimento planejada e atuante
desde a invasão de Pedro Álvares Cabral às terras indígenas que hoje conhecemos como Brasil.
Um longo processo marcado por crise econômica e moral, fraudes e manipulações, bem como
a loucura coletiva. Não há termo melhor para definir esse momento do que a tragicomédia.
Dentre os absurdos que sequer sabemos como serão narrados nos livros didáticos de história,
destaca-se a farsa que deu base para que tudo isso fosse possível.
517 CLETO, 2016, p. 48. 518 LÖWY, 2016, p. 64. 519 SINGER, 2016, p. 154. 520 LÖWY, 2016, p. 61.
186
Desse modo, a ficção deixa de parecer absurda quando se para para pensar um pouco
na história nacional. Esses dias escutei Mauro Iasi comentar, em um episódio de seu programa
Café bolchevique na TVBoitempo, que “Marx teria dito diante da atual situação que a história
só surpreende quem de história não entende”. Tal frase levou-me de volta à época em que li
Bolero e decidi escrever essa tese, uma tarde no Labflor, dividida entre os estudos e acompanhar
o julgamento de Dilma Rousseff. Naquele instante, entre diferentes sentimentos que me aco-
metiam, percebi que não passávamos de espectadores, tal qual os habitantes da Cidade. Vive-
mos em um país viciado em manipulações políticas: a Cidade, entre monarquias e repúblicas,
e nós, entre governos antidemocráticos e democráticos.
Os olhares voltam-se para procurar o que restou da democracia e da nação brasileira:
a identidade de um povo claramente dividido; não mais fundação, desfundação. O que antes
chamei a atenção ser a desfundação do luto pós-ditatorial, agora desfundação do luto pós-de-
mocrático.
Ballestrin e Boaventura de Sousa Santos521 associam o prefixo “pós” ao “anti”, pois a
pós-democracia, segundo eles, vai dando lugar ao anti-intelectualismo, característica tão co-
mum e marcada nos discursos de governos autoritários. Nas palavras de Ballestrin: “Desespe-
rança política e preguiça intelectual por um lado, intolerância e violência de outro”522. Afinal,
a primeira ação de governos antidemocráticos, na maioria das vezes, é a perseguição à educa-
ção, à universidade e à pesquisa.
O mesmo autor que denominou a democracia brasileira de “natimorta” também faz
uma leitura do Golpe de Estado de 2016 como uma encenação tragicômica em cinco atos. Se-
gundo Francisco Dias,
O enredo do gênero literário tragédia é feito com base na adversidade, na calamidade,
no flagelo. A tragédia é um drama cuja cena final é uma desgraça, catástrofe. Nas
comédias são abordados temas sociais, políticos, morais etc., e os atores buscam os
risos da plateia. Já os conteúdos de uma tragicomédia são ora trágicos, ora cômicos523.
No entanto, diferente das demais tragicomédias, que têm um “final feliz”, nem Bolero
e, muito menos, o Brasil tiveram. Apesar de o personagem-narrador do romance ter constituído
família com Auriflor e conseguido uma boa colocação nas Indústrias S.A, segue preso ao pas-
sado e a esquerda que espere a próxima oportunidade. Já o Brasil teve sua democracia grave-
mente ferida e segue na amargura de ter um presidente autodeclarado pró-ditadura.
521 Boaventura SOUSA SANTOS, 2016, apud BALLESTRIN, 2017. 522 BALLESTRIN, 2017, p.13. 523 DIAS, 2018, p. 66.
187
A frustração sobre a ficção alia-se à sensação de impotência e de meros espectadores
diante da ruína de nossa jovem democracia, ou, como diz Francisco Dias, natimorta democracia.
O país de inúmeras narrativas, muitas verdades e muitas farsas, está em recessão democrática.
Como a Cidade, vivemos um eterno retorno, uma eterna transição de regimes, de jogos políticos
e golpes contaminados pela teatralidade.
Enquanto Giudice, em 1984, afirma que a esquerda deve esperar, Vladimir Safatle, em
2020, sugere a necessidade de matá-la. Alvo de muitas críticas, o filósofo justifica seu posicio-
namento alegando que matando-a talvez se consiga salvá-la: “a sobrevivência da esquerda na-
cional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente ‘nós morremos’ é a primeira
condição para nos livrarmos do que nos matou”524. Nesse sentido, retomo a pergunta-título
dessa seção, “Como viemos parar aqui?”, cuja resposta está longe de ser definitiva e concisa,
mas que se escreve ao longo de cinco séculos e que podemos ler através dos romances de fun-
dação e desfundação, como o aqui proposto Bolero.
524 Vladimir SAFATLE. “Para a esquerda: morrer é só o começo”. El país. 27 de fevereiro de 2020. Disponível
em https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-27/para-a-esquerda-morrer-e-so-o-comeco.html. Acesso em 8 feve-
reiro de 2020.
188
6 DESCONHEÇO HISTÓRIAS MIL
O romance Bolero foi um divisor de águas em meu processo formativo. Sua leitura
excepcional provocou a mudança do meu projeto de tese e levou-me à dedicação de estudos,
quase que exclusivo, da obra de Victor Giudice e suas implicações nos estudos literários e na
sociedade brasileira.
Logo no início da pesquisa sobre o autor, em 2017, eu já havia terminado de ler toda
a sua obra. O que não é nenhum grande feito haja vista que são somente quatro livros de contos,
a saber, Necrológio (1972); Os banheiros (1979); Salvador janta no Lamas (1989); e Museu
Darbot e outros mistérios (1994) –; dois romances, Bolero (1985) e O sétimo punhal (1995); e
um texto inacabado, Catálogo das flores, publicado anexo à reedição do premiado Museu Dar-
bot e outros mistérios em 1999. Essas leituras foram essenciais para entender a escrita giudici-
ana e, consequentemente, pensar a estrutura e apresentação da tese, conforme destaquei na in-
trodução.
A própria escolha do título “‘Conheço histórias mil que a História esconde’ Uma lei-
tura de Bolero, de Victor Giudice”, não foi por acaso e sim fruto das leituras e especulações
sobre o processo criativo do escritor. Conhecer e desvendar as histórias existentes nas entreli-
nhas de suas obras, mais especificamente nas publicadas entre as décadas de 1970 e 1980, foi
fundamental para imaginar uma linha do tempo de Victor Giudice.
Seu marco inicial está datado em 1972, quando da publicação do livro experimental
Necrológio, passando pelos contos d’Os banheiros, de 1979, para finalmente adentrar e encer-
rar, em 1985, no romance Bolero. Ainda que para a política e para a história essa cronologia
não se confirme e não seja estanque, faz-se, no mínimo, interessante pensar os textos concomi-
tantemente aos acontecimentos políticos brasileiros.
Provavelmente Giudice não pensou de antemão na intratextualidade de seus textos,
mas assim que Bolero se tornou público não seria mais possível a leitura de Necrológio e Os
banheiros sem correlacioná-las e visualizá-las como obras complementares, tanto no que diz
respeito ao conteúdo quanto à forma. Digo isso porque, se um dia consideraram Os banheiros
como um abandono ao experimentalismo proposto na sua obra anterior, com a publicação de
Bolero essa teoria torna-se infundada. No romance, Giudice retomou diversos, se não todos os
mecanismos experimentais presentes na estrutura de Necrológio. Enquanto isso, Os banheiros
189
passou a ser uma importante chave de leitura através dos contos “Miguel Covarrubra” e “Nar-
rativa do Número Um”, bem como das referências ao romance em seus paratextos e entrelinhas,
como no conto “Mahablan”.
Em 2018, durante pesquisa no acervo do escritor na Fundação Casa de Rui Barbosa
observei a presença de alguns originais com a indicação de “fragmento de romance” que não
constavam em Bolero, apesar de a temática e os personagens serem os mesmos. Percebi, ainda,
outros manuscritos e rascunhos que não tinham a indicação de fragmento, mas eram fáceis de
identificar como pertencentes ao seu material artístico (ou seja, faziam parte do processo de
criação do escritor).
Após um tempo de dedicação, foi possível identificar que os fragmentos foram incor-
porados ao romance com alterações, com a exceção do conto “A farsa” que, por sua vez, não
consta no romance e, a princípio, não se tem conhecimento de sua publicação em outros livros
ou em outros meios de comunicação. Um indicativo interessante está no fato de esses fragmen-
tos possuírem títulos, ao contrário dos capítulos de Bolero que não apresentam identificação
alguma. Pode ser que, em algum momento, o autor tenha cogitado publicá-los individualmente
tal como fez com os contos “Narrativa do Número Um” e “Pôquer”.
A intenção ao trazer essas informações está na possibilidade de especular sobre Giu-
dice ter ou não previsto a intratextualidade como um elemento experimental de Os banheiros.
No entanto, em 1984, durante o processo criativo de escrita de Bolero, a meu ver, as conexões
entre as duas obras foram inevitáveis. Se a única referência ao romance fosse o conto “Narrativa
do Número Um” seria possível descartar o experimentalismo como característica, entretanto,
muitas são as indicações ao romance.
No prefácio de O fictício e o imaginário, de Wolfgang Iser, Dau Bastos nos lembra
que: ao escritor não confere “consciência plena de suas decisões e medidas, tampouco lhe fa-
culta controle absoluto sobre o resultado alcançado; no entanto, a própria adoção de certas al-
ternativas e não de outras já lhe diz da intencionalidade do texto”525. Em outras palavras, é
possível conjecturar outras possibilidades de processo criativo além do proposto no projeto li-
terário do escritor. Portanto, também é possível considerar as três obras como um ciclo narrativo
que se inicia em 1972, auge da ditadura militar no Brasil, e se encerra em 1985, na expectativa
de redemocratização do país.
525 Dau BASTOS, 2013, p.10.
190
Pensar essa relação entre suas composições literárias contribui para uma análise ampla
do romance bem como para entendê-lo como subversivo ao gênero e às ficções fundacionais.
Tanto a leitura separadamente como a intratextualidade entre elas são respostas ao momento
crítico do país, levando-nos a pensar no panorama da época em questão. É possível considerar
o que se sentia e o que se pensava através do olhar do escritor, de modo que o texto literário
nos coloque de frente com uma determinada realidade temporal e sua leitura auxilie na nossa
percepção sobre a história, a sociedade e o mundo. Por isso, os momentos de crise política e os
governos autoritários são indicativos de transgressão nos mais diversos meios artísticos, con-
forme salientam as palavras de Octavio Paz: “Uma literatura nasce sempre frente a uma reali-
dade histórica e, frequentemente, contra uma realidade”526.
Por conseguinte, a literatura nacional também se torna recorrente, porém, nunca como
um conceito homogêneo. Nas palavras de Coutinho, a noção de nacional variará “de acordo
com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada momento”527. Em contrapartida,
Doris Sommer afirma que quanto mais os escritores latino-americanos de meados do século
XX negavam a temática do nacional, mais ela parecia irresistível. Isso é uma questão de pers-
pectiva, pois, se a literatura nacional e, consequentemente, os romances de fundação são resul-
tados de um período histórico em crise, o nacional permanecerá como protagonista das obras
enquanto os países latino-americanos não consolidarem de fato uma democracia. O que signi-
fica, talvez, que a negação ao conceito de literatura nacional tenha sido confundida com a ne-
gação aos moldes canônicos da época.
Portanto, deve-se encarar a ficção de desfundação como uma nova abordagem sobre o
olhar nacional na literatura e como resultado de uma série de desventuras históricas, de trans-
gressão do gênero romance e de subversão à própria história da literatura brasileira. É possível
resumir sua definição em uma frase emblemática de Victor Giudice: “a ficção [de desfundação]
é a realidade despojada de todas as mentiras”. A ideia a ser mantida é a de pertencimento ao
processo histórico em construção. Além da literatura estar inserida em um país sobre o qual não
é possível definir uma identidade nacional, mas sim múltiplas identidades. A própria estrutura
do Bolero mimetiza um caos que pode ser lido como o próprio sistema operacional brasileiro:
desestrutural, tal qual o personagem Ralfo, de Sério Sant’Anna, utiliza como nova terminologia
para o seu romance.
526 Octávio PAZ, 2015, p. 126. 527 COUTINHO, 2002, s/p.
191
Alguns romances brasileiros do século XX como Macunaíma, Grande sertão: Vere-
das, Incidente em Antares, Confissões de Ralfo, entre outros, são promissores dentro dessa lei-
tura sobre os romances de desfundação. Esses romances, de certa forma, problematizam ques-
tões sobre gênero literário, crises políticas, identidades nacionais e projetos de nação. O citado
romance desestrutural de Sérgio Sant’Anna, Confissões de Ralfo, nos ajuda a entender que o
prefixo “des” não necessariamente pressupõe uma leitura antagônica da palavra a qual está as-
sociado, ou seja, não nega o outro sentido, conforme sugere o prefixo em sua análise morfoló-
gica e até mesmo semântica. Desse modo, as noções de desestrutural e, principalmente, des-
fundacional surgem para expandir e complementar às ideias anteriores, estrutural e fundacional,
possibilitando-se novas linhas de leitura e perspectivas sobre a arte literária.
A leitura dos textos como desfundação pretende, a princípio, apresentar um resultado
do processo de consciência sobre as problemáticas fundacionais. Por isso, a importância de
revisitar esses romances nacionais construídos ou publicados em épocas cruciais para a nossa
história, como Iracema e O Guarani, de José de Alencar. Tanto os romances de fundação
quanto os de desfundação voltam-se para a identidade nacional, um para justificá-la e outro
para questioná-la. É nesse sentido que outras questões além do contexto histórico de publicação,
como os contextos literário e o narrativo, devem ser consideradas para identificar essas mani-
festações na literatura nacional.
Os traumas sofridos pela sociedade brasileira em sua formação são fundamentais para
compreender essa expressão nos romances. Os projetos de nação mencionados ao longo desse
trabalho, através de obras canonizadas no sistema literários brasileiro, são resultados de proces-
sos intensamente violentos cujas consequências reverberam até hoje. Poucos foram os momen-
tos que a sociedade teve para avaliar e recuperar os inúmeros subsequentes projetos de nação
malsucedidos. Nas palavras do historiador Daniel Aarão Reis, “a memória do silêncio e seus
conselhos: olhar para frente, ignorar o espelho retrovisor”528. Desse modo, os romances de des-
fundação tentam superar as armadilhas da memória e sugerem uma autocrítica sem pretensão
de um novo projeto nacional.
Sobre esse aspecto, retomo o suposto riso oferecido por Bolero, e em especial pela
cena das cicatrizes forjadas, que não deve ser lido como um apagamento nem pacificação do
trauma. Seu efeito implica o contrário; procura não deixar que as cicatrizes e os inventários
desapareçam, que não se caia no esquecimento nem na impunidade de quem as cometeu, tendo
528 Daniel Aarão REIS, 2019, p. 275.
192
em vista o silêncio e a cumplicidade de parte da população da Cidade e mesmo a adesão dos
grupos republicanos e monarquistas às práticas de tortura.
Logo em uma primeira leitura do romance, percebi um retorno à memória das perse-
guições políticas do período ditatorial e também a importância desse material para a memória
coletiva e para a democracia brasileira, que clama por atenção e socorro. Agora, mais íntima
dessa obra tão surpreendente e inesgotável, penso que as cicatrizes deixadas pela tortura não se
restringem apenas àquelas da ditadura militar. As marcas suprimidas da superfície do corpo do
personagem-narrador precisam ser expostas novamente. Exigem serem vistas para, então, se-
rem lembradas. Creio que sejam marcas de todos os traumas coletivos causados por tantas vio-
lações aos direitos humanos que nosso país carrega em sua história. Foram muitos os períodos
históricos de perseguição a grupos étnicos, raciais e políticos que jamais poderão se perder nos
cruzamentos de nossa memória individual e coletiva, nacional e mundialmente. Afinal, todos
eles são frutos dos projetos de nação desenvolvidos ao longo dos últimos cinco séculos de Bra-
sil.
Essas memórias do trauma ecoam como grito pelas ruas, becos, vielas e servidões de
todas as cidades brasileiras. Mas a obra de Giudice tem cor local. Por meio da metanarrativa, o
escritor apresenta a “Lenda dos doze rios” — História de fundação da Cidade, narrada por Ma-
dame Odhontyna e seu sobrinho Ladislau. Embora a Cidade do texto possa ser qualquer cidade,
não podemos esquecer de onde o escritor fala, como é possível observar no seguinte trecho:
Última noite. Os homens não dormiram.
O peito murcho, o estômago vazio.
Mas, de repente, os raios que surgiram
da rósea madrugada e doce estio
mostraram-lhes visões que nunca viram.
Quanta beleza junta num só rio.
O Gammedal foi quem gritou primeiro:
“Como é formoso o rio de janeiro.”529
Niteroiense, radicado carioca, ele deixa nas entrelinhas de Bolero a vista de sua janela
para a Quinta da Boa Vista, no bairro São Cristóvão do Rio de Janeiro. Palco de tantos espetá-
culos históricos, aos que por ali passeiam, chama a atenção os jardins de flamboyants. Uma das
espécies botânicas exóticas presentes no parque, a flor é a mesma que o personagem-narrador
retirou do canteiro da Cidade e custou-lhe a liberdade, e talvez a mesma a que se faz menção
na lenda fundacional.
“Cada centímetro é uma paisagem
tão diferente da que está vizinha,
529 GIUDICE, 1985, p. 107.
193
que vista ao longe parece a miragem
de uma flor que se louva em ladainha.
Vegetação em forma de mensagem,
cujo segredo nunca se adivinha.”
E ouviu-se a voz ducal, na imensidade:
“Aqui eu fundarei nossa cidade.”530
Mas não esqueçamos que essa lenda é apenas uma parte das “histórias mil que a His-
tória esconde”. Nas palavras de Odhontyna:
Não roubes de meu verso esta mentira
e as outras que decerto hão de surgir.
Porque só delas é que o Homem tira
as forças do passado e as do porvir.
Se o ser não mente, a mente não se inspira,
pois a verdade só nos leva a rir.
Mentindo empresto aos homens tanta glória,
quão mentirosa é toda a Humana História531.
Em tempos tão estranhos como o nosso, o sétimo verso soa como um dos meus favo-
ritos, “pois a verdade só nos leva a rir”. Ouso dizer que o romance de fundação torna épica a
nossa história não tão épica enquanto o romance de desfundação a torna absurda, no sentido
giudiciano do termo. Desse modo, a ficção tanto pode enobrecer uma história medíocre como
pode torná-la mais palatável por meio da ironia e da sátira. No caso, se consideramos a arte
literária como um meio de documentar a estrutura de sentimentos das pessoas que viveram
determinado tempo, ela também aparece como estudo das diferentes narrativas que percorrem
a história. Por isso, a análise que faço sobre Bolero e os romances de fundação e desfundação
está longe de se esgotar, pois estamos no início de uma história cheia de cruzamentos e possi-
blidades. Precisamos acompanhar os próximos capítulos da novela sociopolítica brasileira para
fazer conexões com as produções literárias que surgem e ressurgem em nossos horizontes de
expectativas.
Diante dos recentes acontecimentos da política brasileira, percebemos um país à beira
do abismo. O retorno de discursos autoritários e o descaso com o meio ambiente e a população
não podem ser reduzidos a um “produto mecânico de um passado que não passa”532, mas uma
das consequências de ações tomadas em um passado longínquo e próximo também.
O risco que nossa democracia corre está diretamente relacionado a um processo de
transição tendencioso, mas, ao mesmo tempo, é resultado do início da reparação histórica do
país com as incontáveis violações dos direitos humanos. A própria perseverança do familismo
530 GIUDICE, 1985, p. 107. 531 GIUDICE, 1985, p. 111. 532 REIS, 2019, p. 275.
194
e do nepotismo na política nacional tem relação direta com os projetos de nação e, consequen-
temente, com a memória do esquecimento, as desigualdades sociais e o recente Golpe contra a
democracia.
Nesse sentido, a noção de desfundação seria aplicável a um movimento bem grande
para pensar sobre formação de brasilidade dentro da ótica de cada momento histórico e, princi-
palmente, sem prever uma utopia sobre o tempo futuro, mas questionar a história do tempo
presente.
Há muito o que se pesquisar sobre o tema, pois desfundação está longe de ser uma
noção fechada, tendo em vista que, nas palavras de Safatle, “nenhum país conseguiu consolidar
sua substância normativa sem acertar as contas com os crimes de seu passado”533. E estamos
diante desse processo que só será efetivo se de fato continuarmos focando nossos olhares para
os direitos humanos, visto que escancarar os traumas e suas cicatrizes é o pontapé inicial para
debater noções de brasilidades de uma forma plural, aberta e em constante movimento.
Assim sendo, finalizo este trabalho convidando-nos a voltar nosso olhar às produções
literárias contemporâneas, inclusive seus meios de produção, publicação e divulgação. Afinal,
se consideramos os romances de fundação e desfundação frutos de crises políticas e sociais, o
recente ataque à jovem democracia brasileira, bem como a eleição de um presidente da repú-
blica autodeclarado autoritário, pode vir como poderosa fonte para rediscutir questões de iden-
tidade nacional e de gênero literário.
533 SAFATLE, 2010, p. 252.
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