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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CAMPUS FLORIANÓPOLIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA CAROLINA VELOSO COSTA “Conheço histórias mil que a História esconde” UMA LEITURA DE BOLERO, DE VICTOR GIUDICE Florianópolis 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CAMPUS FLORIANÓPOLIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

CAROLINA VELOSO COSTA

“Conheço histórias mil que a História esconde”

UMA LEITURA DE BOLERO, DE VICTOR GIUDICE

Florianópolis

2021

Carolina Veloso Costa

“Conheço histórias mil que a História esconde”

UMA LEITURA DE BOLERO, DE VICTOR GIUDICE

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Lite-

ratura da Universidade Federal de Santa Catarina para a

obtenção do título de doutora em Literatura.

Orientador: Profa. Tereza Virginia de Almeida, Dra.

Florianópolis

2021

Carolina Veloso Costa

“Conheço histórias mil que a História esconde”

Uma leitura de Bolero, de Victor Giudice

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora

composta pelos seguintes membros:

Prof.(a) Maria Teresa Santos Cunha, Dr.(a)

Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC

Prof. Jair Tadeu da Fonseca, Dr.

Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

Prof.(a) Tiago Hermano Breunig, Dr.

Universidade Federal do Pernambuco UFPE

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado

adequado para obtenção do título de doutor em literatura.

____________________________

Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________

Prof.(a) Tereza Virginia de Almeida, Dr.(a)

Orientador(a)

Florianópolis, 2021.

Para Victor Giudice (in memorian).

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, por conceder a bolsa GD durante o período integral de pesquisa e redação deste

trabalho.

À professora Tereza Virginia de Almeida, por acreditar e orientar a execução deste trabalho.

Palavras não são suficientes para descrever a importância que tiveste em minha trajetória para

além da Universidade. Em poucas palavras, muito obrigada por todo ensinamento acadêmico e

de vida.

Aos meus eternos orientadores, Artur Vaz, Joselma Noal, Andrea Ciacchi e Sylvie Dion, por

partilharem e me ensinarem tanto.

À professora Maria Teresa e ao professor Jair Tadeu, pela leitura atenta e pelos comentários de

incentivo desde a qualificação até o processo final do doutoramento. Agradeço também ao pro-

fessor Tiago Hermano, por aceitar fazer parte da banca de defesa e dividir a sua leitura conosco.

À família de Victor Giudice, principalmente a sua esposa Eneida e sua filha Renata, pela aten-

ção e disponibilidade durante os anos dedicados ao estudo da obra do escritor.

À minha família, pelo apoio em todos os momentos que precisei. Sobretudo, à Monica Veloso,

por ser a minha pessoa e me dar forças quando eu já não tinha mais.

Aos companheiros Labfloridos, pelas trocas, quase que diárias, ao longo desses anos. Em espe-

cial, ao Elton Rodrigues pelo incentivo, pelas risadas e leituras compartilhadas, principalmente,

pela companhia em tantos momentos na Universidade e fora dela.

À Denise Machado, Anna Viana e Carla Mello, pela leitura atenta de muitas fases desta tese.

Ao Rafael Sens, por fazer uma bela releitura da arte de Bolero que ilustra a capa deste trabalho.

Aos amigos de longa data, Wellington Machado, Yéssica Lopes, Ana Alves, Yanna Karlla e

Lucas Gasparotto, pela parceria, pelas mensagens certeiras, pelas visitas e por cada partilha. E

a todos meus amigos, por compreenderem meus sumiços, minhas crises e, principalmente, por

se fazerem presente sempre que precisei.

Estamos todos conectados como uma grande teia invisível.

(HELLINGER, 2008)

RESUMO

Esta tese propõe-se a estudar o romance Bolero (1985), de Victor Giudice, como uma obra de

subversão aos romances de fundação nacional. Neste trabalho, buscou-se compreender o papel

da narrativa giudiciana nos contextos político e literário brasileiro do final do século XX, de-

senvolvendo a noção de desfundação como princípio norteador. Inserida em uma conjuntura

autoritária, a literatura dos anos de 1960 a 1980 rompe com a estrutura da narrativa tradicional

ao apresentar características avessas aos padrões da literatura nacional e com fortes marcas de

experimentalismo na estrutura e no conteúdo. Encontra-se essa lógica em outras duas obras de

Victor Giudice publicadas nesse período, Necrológio (1972) e Os banheiros (1979), as quais

estabelecem relações diretas com o romance em questão. Com efeito, para compreender Bolero

como um romance subversivo, faz-se importante trazer leituras de autores anteriores e contem-

porâneos a Victor Giudice, contextualizando-as historicamente com os momentos de crise e

transição política nacional. Nesses termos, a hipótese de ler Bolero como um romance de des-

fundação também pode vir a contribuir para uma leitura do processo de redemocratização bra-

sileiro e do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Palavras-chave: Victor Giudice. Romance de fundação. Autoritarismo. Democracia. Romance

de desfundação.

ABSTRACT

This thesis proposes to study the novel Bolero (1985), by Victor Giudice, as a work of subver-

sion to foundational romances. This work seeks to understand the role of Giudice’s narrative in

the Brazilian political and literary contexts of the late twentieth century, developing the notion

of defoundation as its guiding principle. Inserted in an authoritarian conjuncture, the literature

from the 1960s to the 1980s breaks with the structure of traditional narrative by presenting

characteristics that are contrary to the standards of national literature and with strong traits of

experimentalism in its structure and content. This logic can be found in two other works by

Victor Giudice published in that period, Necrológio (1972) and Os banheiros (1979), which

establish direct relations with the novel in question. Therefore, in order to understand Bolero as

a subversive novel, it is important to bring out readings from previous and contemporary au-

thors to Victor Giudice, contextualizing them historically with the moments of crisis and na-

tional political transition. Thus, the hypothesis of reading Bolero as a defoundational romance

can also contribute to an interpretation of the process of Brazilian redemocratization and of the

impeachment of President Dilma Rousseff.

Keywords: Victor Giudice. Foundational romance. Authoritarianism. Democracy. Defounda-

tional romance.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Ilustração de capa do livro Necrológio ........................................................................... 36

Figura 2 O jovem Victor Giudice ............................................................................................... 203

Figura 3 Victor Giudice no restaurante Café Lamas/Rio de Janeiro .......................................... 204

Figura 4 Victor Giudice com adorno de carnaval durante expediente no Banco do Brasil ........ 205

Figura 5 Victor Giudice trabalhando em sua casa/Rio de Janeiro .............................................. 206

Figura 6 Ilustração para capa de Bolero ..................................................................................... 207

Figura 7 Ilustração do personagem Ladislau .............................................................................. 208

Figura 8 Ilustração sem título ..................................................................................................... 209

Figura 9 Partitura da canção Caixinha de música, composição de Victor Giudice .................... 210

SUMÁRIO

Apresentação ..................................................................................................................................... 11

1. O DESAFIO DE LER VICTOR GIUDICE ................................................................... 12

2 O CIRCO ESTÁ ARMADO: O UNIVERSO LITERÁRIO DE VICTOR GIUDICE26

2.1 EXPERIMENTALISMO COMO RESPOSTA AO AUTORITARISMO ............................... 26

2.2 A NOVA PROPOSTA DE NECROLÓGIO ......................................................................... 34

2.3 A INTRATEXTUALIDADE EM NECROLÓGIO, OS BANHEIROS E BOLERO ............... 41

2.4 O MOVIMENTO TRANSGRESSOR DE BOLERO ............................................................. 52

3 REGULAMENTO E REI: O PROCESSO DE DESFUNDAÇÃO NACIONAL ........ 64

3.1 UMA HISTÓRIA DAS FICÇÕES DE (DES)FUNDAÇÃO NO BRASIL ............................. 66

3.2 A SUBVERSÃO DE VICTOR GIUDICE ............................................................................ 90

4 PICADEIRO, PLATEIA E PENSAMENTO: A ESCRITA DO LUTO .................... 112

4.1 DE ALIENADO A ÚNICO REPUBLICANO NA ATIVA .................................................. 119

4.2 O PENSAMENTO COMO ESTOPIM PARA A REVOLUÇÃO ........................................ 136

5 A CONTEMPORANEIDADE DE BOLERO E O GOLPE DE 2016: A TRAGICOMÉDIA

BRASILEIRA.................................................................................................................................. 154

5.1 O ESPETÁCULO SATÍRICO DE BOLERO ..................................................................... 160

5.1.1 A transição ....................................................................................................................... 166

5.2 COMO VIEMOS PARAR AQUI? ..................................................................................... 174

6 DESCONHEÇO HISTÓRIAS MIL .............................................................................. 188

REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 195

ANEXO: Sobre Victor Giudice ...................................................................................................... 203

11

Apresentação

Inverno de 2016. Em uma bela manhã ensolarada, levantei e decidi que iria à praia.

Mas não somente para pegar sol ou arriscar um banho de mar gelado, eu decidi ir à praia acom-

panhada de Bolero. Comecei a leitura pontualmente às sete horas, “Meu casamento com

Cynthia durou onze meses de profana convivência mais os sete anos que passei sentado no

corredor da maternidade ...”. Quando me dei por conta, o sol estava se pondo e eu estava lendo

a última frase do romance: “A esquerda que espere”.

Ao terminar, eu tinha muitas perguntas e poucas respostas. Ansiosa por partilhar a

leitura, lembrei que em poucos dias teríamos uma aula inteira sobre Bolero e, então, eu poderia

dividir com minha orientadora e os estudantes todo esse turbilhão de pensamentos. No entanto,

isso não foi o suficiente. Quanto mais debatíamos sobre o romance, mais questões surgiam. E,

agora, cá estou, quatro anos depois, apresentando uma tese sobre Bolero.

Durante o processo de escrita, preocupei-me em considerar quem serão os meus leito-

res e quais as suas perspectivas e expectativas com esta leitura de Bolero. Os primeiros a lerem

este trabalho, provavelmente, serão meus mestres e colegas acadêmicos, mas creio que o prin-

cipal público deva ser os leitores de Victor Giudice e os estudantes de graduação em Letras.

Por isso, procurei considerar, da maneira mais didática possível, a organização dos primeiros

raciocínios e a escolha dos caminhos que me levaram à hipótese de ler o romance primogênito

de Victor Giudice como uma obra subversiva.

Ao final dessa leitura, você poderá perceber que não respondi a todas as perguntas

suscitadas pela obra. Pelo contrário, Bolero é inesgotável. Giudice não poupou esforços para

nos surpreender. Por isso, espero que o romance também tenha surpreendido vocês e que meu

olhar possa ajudá-los a responder algumas questões e levantar tantas outras.

Desejo-lhes uma boa leitura,

Carolina Veloso

Florianópolis, dezembro de 2020.

12

1. O DESAFIO DE LER VICTOR GIUDICE

O ato da leitura transforma uma pessoa. Já nos primeiros momentos da vida, observa-

mos os gestos, as expressões faciais, o timbre da voz, o ritmo dos sons, até que então, somos

maravilhados com a constituição de uma frase, um parágrafo, um conto, um verso, um poema,

um romance e todas as demais possibilidades que a língua nos proporciona. Todas essas peque-

nas e, por vezes, despercebidas situações compõem o ato da leitura; por isso, acredito que esse

ato se constitua como um dos principais elementos necessários para conhecer o mundo, as pes-

soas e a nós mesmos.

A mágica da literatura está na sua relação conosco, os leitores. Somos nós que iremos

fazê-la transcender o papel, a voz, o corpo, seja qual for o meio de difusão utilizado pelo escri-

tor. Enquanto leitora, posso afirmar que a obra do escritor carioca Victor Giudice (1934 – 1997)

tem um caráter instigante, no qual os detalhes constroem um universo único e ao mesmo tempo

múltiplo; seus personagens conectam-se, encontram-se e reencontram-se para contar ou se dei-

xarem ser contados; já os narradores, por vezes podem ser cínicos, alienados ou somente bons

observadores.

Segundo Nelly Novaes Coelho1, Giudice usa e abusa da estilística literária através de

uma escrita diferenciada. Os recursos visuais e linguísticos exploram elementos sonoros e fo-

néticos, primordiais para o contexto da narrativa, fazendo com que o leitor necessite utilizar de

todo seu conhecimento extraliterário para compreender a proposta. É o que ocorre, por exem-

plo, em Necrológio e Bolero.

Tão logo tive contato com a sua obra, soube que nosso encontro não seria por acaso.

Motivada pela minha orientadora, Profa Tereza Virginia, realizei no ano de 2016 o estágio do-

cência na disciplina Estudos Literários II – Literatura, política e ideologia que, por sua vez, teve

como base a obra de Victor Giudice publicada durante o Regime Militar (1964 – 1985). O plano

de ensino incluía as três primeiras obras do escritor, Necrológio, Os banheiros e Bolero – duas

coletâneas de contos e um romance, respectivamente. O fato de nessas obras predominarem o

teor crítico social e político foi um fator importante para escolher Victor Giudice como base

para o projeto de tese.

1 Nelly Novaes COELHO, 2013

13

Sempre demonstrei muito interesse pela sociedade brasileira, sua formação e consti-

tuição, e acredito que ao considerarmos a literatura uma reelaboração imaginada da sociedade2,

a obra literária torna-se um campo potencial de múltiplas leituras e sentidos, a depender do

leitor. É isso que a leitura da obra de Giudice provoca desde a primeira frase, o primeiro pará-

grafo, a primeira página, como será possível observar no romance Bolero, obra que guiará os

pensamentos e diálogos expostos neste trabalho. Porém, antes de adentrar na hipótese, nos pres-

supostos e na análise, faz-se necessário compreender os caminhos literários que motivaram a

escrever sobre essa obra tão peculiar.

Giudice e eu nos conhecemos em 2015, através de uma crítica que o indicava como

um dos principais escritores brasileiros do século XX. Por não o conhecer, fiz uma breve pes-

quisa online sobre sua vida e obra. Instantaneamente, como resultado da pesquisa, surgiram o

miniconto “O arquivo” e uma informação muito interessante: publicado em jornais no ano de

1969, essa narrativa está entre os contos brasileiros de maior alcance internacional devido a sua

tradução e publicação em oito países. Li esse e mais alguns contos avulsos que estavam dispo-

níveis no site dedicado ao autor. Pareceu-me que nada superou a astúcia com que Giudice de-

senvolveu “O arquivo”: o texto é de uma impressionante técnica literária e linguística, sobre-

tudo pela maneira com que o autor aborda a problemática da desvalorização da classe trabalha-

dora brasileira.

Depois desse primeiro contato, só fui retomar a leitura e conhecer realmente a obra de

Giudice em 2016, conforme já mencionei. Seu primeiro livro, Necrológio, publicado em 1972,

foi também minha primeira leitura. A capa, desenhada pelo próprio escritor3, possibilita ao lei-

tor notar desde o primeiro contato, que não se trata de um livro qualquer. O conto de abertura

do livro é o já mencionado “O arquivo”, e se inicia exatamente nesse paratexto (isto é, a capa

apresenta o início do conto). De pronto, já nos é demonstrado o teor experimental e transgressor

que o autor propõe na obra. No decorrer dos treze contos, Victor Giudice joga com a imaginação

do leitor, utilizando imagens, aliterações, aglutinações, onomatopeias, símbolos, parênteses e

espaços para construir sentidos frente ao enredo proposto nas narrativas, que, por sua vez, car-

regam um registro semântico intenso.

Tal como anuncia o título, Necrológio apresenta a morte como elemento principal de

suas histórias, as quais denunciam a desigualdade social, a desvalorização do trabalhador, a

2 Wolfgang ISER, 2013. 3 Além de Necrológio, Victor Giudice também desenhou uma capa para Bolero, no entanto, o livro foi publicado

com uma arte desenhada por Aloísio Neves (Ver Anexo Figura 06).

14

extravagância da burguesia e a arrogância dos intelectuais. Ainda que nas entrelinhas dos contos

o autor desenhe o retrato da sociedade brasileira nos últimos anos da década de 1960 e início

de 70, os textos contêm uma carga de atualidade que os torna contemporâneos, já que nos con-

frontamos ainda hoje com os mesmos problemas sociais daqueles anos narrados.

É importante destacar o fato de Giudice ter trabalhado vinte anos como funcionário do

Banco do Brasil4, algo que pode ser considerado um motivador para que suas narrativas tragam

muito dos problemas enfrentados pela classe trabalhadora. É possível observar exemplos dessa

abordagem em diversos contos de Necrológio, como os que apresentarei a seguir:

“O arquivo” narra a jornada de um jovem trabalhador desde seu primeiro e único em-

prego até sua aposentadoria. Em quarenta anos de contribuição, joão (note-se aqui a ausência

da letra maiúscula inicial5) progrediu gradativamente até ascender ao cargo máximo da em-

presa. Porém, ao contrário do que se almeja de uma carreira, o personagem regride profissional,

psicológica e fisicamente a cada promoção. Seguindo essa mesma ideia, no conto “In Perpe-

tuum”, a personagem principal, Debi Mediocriz, é uma funcionária de banco que passa trinta

anos procurando uma diferença de dez centavos. Mediocriz possui uma vida medíocre, mora

em uma pensão e, diariamente, de forma mecânica e automática, acorda antes de tocar o des-

pertador e desloca-se de condução para seu local de trabalho, “um prédio cinzento com portas

de ouro”6. Por fim, Victor Giudice denuncia no conto “Grão Medalha” a relação de poder abu-

siva no ambiente de trabalho das Indústrias S.A7, administrada pelo “ex-agiota” e empresário

de nome homônimo ao título do conto. A narrativa inicia com o funeral de Grão Medalha, em

que os funcionários comemoram a morte do patrão e os abutres rondam o seu corpo putrefato.

Conforme o regulamento das Indústrias, os funcionários eram obrigados a trabalhar de joelhos

e sem equipamentos de trabalho especializado.

4 Victor Giudice foi considerado durante seus 64 anos como uma pessoa múltipla. Ainda que a burocracia o tenha

acompanhado por mais de vinte anos, as artes sempre estiveram muito presente em sua vida. Desde cedo floresceu

em si o gosto pela música, pelo teatro, pelo cinema, pela filosofia e, em especial, pelas letras, dedicando-se para-

lelamente ao trabalho burocrata no banco e à paixão pelas artes. Entre os anos de 1950 e 60, frequentou os cursos

de Estatística e Direito, e em 1975 concluiu o curso de Letras, mas somente depois de aposentar-se, em 1986,

retomou a carreira de professor de teoria e criação literária, interrompida na década anterior. (Fonte: http://victor-

giudice.com/). 5 A grafia do nome joão proporciona diferentes reflexões sobre o conto. Uma delas está no fato de Giudice ter

grafado a nome em letra minúscula, levando-nos a lê-la como uma palavra genérica. Ou seja, joão pode ser qual-

quer trabalhador brasileiro, inclusive, por esse nome ser um dos mais comuns no território nacional. 6 Victor GIUDICE, 1972, p. 94. 7 A dinâmica de trabalho das Indústrias S.A é retomada no romance Bolero, sendo possível, a partir de um samba

enredo composto pelos funcionários, compreender a relação abusiva entre patrão e funcionários.

15

O mesmo tom observei na segunda coletânea de contos Os banheiros, publicada em

1979. Dessa vez, Victor Giudice aposta em uma estrutura tradicional nas narrativas, através de

uma escrita clara e enxuta que busca falar da hipocrisia e indiferença dessa mesma sociedade,

com destaque à observação da classe média e da violência de gênero. No conto “Eles”, um dos

principais da obra, o autor traz um exemplo clássico da dupla exploração, de classes e racial.

Um típico casal de classe média alta que, provavelmente, vive alheio aos problemas socioeco-

nômicos que o rodeiam se vê obrigado a dar suprimentos de necessidade básica a “seres” no-

meados no conto apenas por “eles”, os quais são descritos como uma massa disforme e escura

sem identificação. Ao final, o personagem-narrador não suporta o fato de seu dinheiro ser des-

tinado à necessidade dos outros, em vez de aplicado em suas futilidades; o que seria algo cabí-

vel, visto que o orçamento familiar não sofreria qualquer tipo de desfalque.

O segundo conto, “Lei do silêncio”, também presente no livro Os banheiros, apresenta

mais uma vez a desigualdade econômica e o modo como a lei privilegia determinados grupos

sociais – em especial, os homens. A narrativa conta o momento em que um homem comete

feminicídio ao matar sua esposa devido a uma discussão sobre a quantidade de açúcar no chá.

Além disso, há a cumplicidade do assassino com o policial, que compreende a situação e pro-

põe-se a buscar o corpo no outro dia, desde que se respeite a “lei do silêncio” depois das vinte

e duas horas.

O autor capta a atenção do leitor pelo conteúdo de seus contos e pela forma como

escreve. É perceptível que cada pontuação, cada palavra, cada repetição ou a falta desses ele-

mentos foram meticulosamente pensados pelo autor. Dono de uma técnica de escrita singular,

Giudice destaca-se entre os jovens leitores. Além disso, durante a leitura desses contos, os alu-

nos da disciplina de Estudos Literários na qual estagiei demonstraram grande interesse pelas

obras: da mesma forma, eu também me senti instigada a ler e conhecer cada vez mais para

poder, junto a eles, tornar-me o “leitor atento” que Nelly Novaes Coelho diz ser indispensável

para compreender a obra giudiciana8.

As leituras foram realizadas na ordem cronológica de publicação: primeiro Necroló-

gio, na sequência, Os banheiros, e, por último, o romance Bolero. A proposta de estudar as duas

coletâneas por completo (e não contos isolados) foi importante para desenvolver no leitor uma

competência de leitura que os contos e o romance exigem, principalmente Bolero. Sua estrutura

fragmentária e polifônica, bem como a mescla de gêneros e a relação intratextual com os outros

8 COELHO, 2013.

16

dois livros requerem do leitor uma leitura atenta e dinâmica, necessitando por vezes buscar

referências literárias e históricas. Aliás, essas características são as responsáveis pela constru-

ção da hipótese e da noção de desfundação. Nesse caso, proponho que esse romance pode ser

lido como subversão aos romances considerados pela historiografia como de fundação nacional

e como consequência do sentimento de luto causado pelas contrariedades do período pós-dita-

torial.

Bolero é uma narrativa construída durante a ditadura militar brasileira e concretizada

no período pós-ditatorial, com publicação em 1985, ano que marca o fim do regime militar e o

início do processo de redemocratização no Brasil. Narrado, principalmente, em primeira pessoa

por um protagonista anônimo, o romance relata a história de um homem que fica sete anos em

uma sala de maternidade à espera de sua esposa em trabalho de parto e, dessa forma, acaba não

percebendo o tempo passar e nem as mudanças que haviam ocorrido no país. O personagem

entra no hospital em uma república e sai em uma monarquia ditada pela opressão, hipocrisia,

alienação e absurdo caos: esse é o ponto que torna a obra fundamental como alegoria do estado

ditatorial.

A temática afim ao contexto sociopolítico brasileiro da década de 1980 coloca em

pauta a transição de um governo monárquico para um republicano, mimetiza o caos do sistema

político brasileiro e possibilita a leitura do romance como uma sátira aos romances de fundação

nacional. Segundo Antonio Candido9, o teor social vem como um norteador para esclarecer a

estrutura da obra e as ideias apresentadas, validando-as e determinando o efeito entre os leitores.

Para alcançar tal objetivo, a presente tese demanda algumas etapas que serão divididas em qua-

tro capítulos.

O primeiro capítulo, intitulado O circo está armado: o universo literário de Victor

Giudice, apresenta a relação entre as três primeiras obras do escritor. Essa leitura é importante

para que seja possível reconhecer Necrológio e Os banheiros como partes essenciais para en-

tender a proposta do autor no romance Bolero, bem como pensar nos três livros como obras

sincrônicas.

O efeito alienante em Bolero se concretiza na apresentação isolada dos números do

circo feita pelo palhaço Eusebius. Os espectadores não conseguem conceber a correlação entre

os números e, consequentemente, compreender o espetáculo circense como uma grande farsa

política. O mesmo acontece com a leitura isolada das três obras giudicianas: o autor não avisa

9 Antonio CANDIDO, 2014.

17

o leitor da necessidade de correlacioná-las. Cabe a este, portanto, ter perspicácia e atenção para

perceber os detalhes textuais e paratextuais que envolvem essas narrativas e que as fazem ser

verdadeiros manifestos em um universo que se cruza em diversos momentos. Creio que a pala-

vra “universo” seja a melhor para descrever essa grande teia de relações construída por Giudice.

Temáticas, personagens e fragmentos presentes em Necrológio e em Os banheiros são

reencontrados em Bolero, fazendo com que o romance seja uma construção que vai muito além

de um texto isolado. Seria possível ler o romance sem ter conhecimento das obras anteriores?

Sim, mas a leitura seria outra. As referências clareiam situações que, em uma leitura descom-

promissada não seriam de grande importância para os acontecimentos narrativos ou passariam

despercebidas pelos olhos do leitor.

Para tanto, faz-se necessária a (re)leitura e a análise das obras anteriores para conceber

o romance em sua completude, buscando nos contos, nos personagens e nos paratextos os pon-

tos em que há o (entre)cruzamento das obras, procurando compreender também de que modo

esse conjunto de fragmentos e referências converte-se em um novo gênero literário: o romance.

Nesse sentido, o capítulo propõe outros quatro subcapítulos para discutir essas relações: “Ex-

perimentalismo como resposta ao autoritarismo”; “A nova proposta de Necrológio”; “A intra-

textualidade em Necrológio, Os banheiros e Bolero”; e “O movimento transgressor de Bolero”.

A intratextualidade em Giudice apresenta-se da seguinte maneira: em Bolero, Victor

Giudice retoma personagens dos contos de Necrológio, de 1972, além do conto “Pôquer” que

deveria ser um fragmento do romance e foi publicado com alterações em seu conteúdo, con-

forme pesquisa no acervo do escritor na Fundação Casa de Rui Barbosa. Já em Os banheiros,

de 1979, é possível reconhecer citações e notas de rodapé com personagens que estarão presen-

tes em Bolero, além dos contos “Narrativa do Número Um” e “Miguel Covarrubra”10. O pri-

meiro aparece na íntegra como um dos capítulos da obra; já o segundo narra parte da história

da cidade onde o romance está ambientado. Constitui-se, portanto, um emaranhado de informa-

ções que só poderão ser compreendidas pelo leitor em 1985, com a publicação do romance.

Por fim, em Bolero, Victor Giudice retoma o experimentalismo proposto anterior-

mente em Necrológio, mas agora por outra perspectiva e outro gênero, ou melhor, outros gêne-

10 Há referências no conto “Os banheiros” que levam a crer que seu narrador seja o mesmo do conto “Miguel

Covarrubra”. Nas duas narrativas consta um narrador em primeira pessoa que menciona a construção de um ba-

nheiro extra em sua casa para o exilio de seu avô, o qual passara o resto dos dias enclausurado declamando trechos

de De rerum natura. (GIUDICE, 1979, p.13-16)

18

ros. Os capítulos são como fragmentos que poderiam facilmente ser lidos e publicados de ma-

neira independente. Além disso, o romance conta com a presença da polifonia e da mescla de

gêneros literários, o que contribui para que seja compreendido como subversivo à estrutura

tradicional do gênero, tendo em vista que desde o advento do romance moderno essas estruturas

foram abandonadas, sendo retomadas de tempos em tempos por escritores transgressores.

De acordo com Idelber Avelar11, os escritores, compositores e artistas contemporâneos

aos regimes autoritários utilizavam diversos meios para driblar a censura, enriquecendo a forma

e o conteúdo de suas obras através do experimentalismo. A maneira como Giudice estrutura seu

texto em sintonia com o enredo sociopolítico corrobora com a ideia de que o ativismo político

também pode ser feito através da arte. Entretanto, esse aspecto pode virar-se contra o autor,

que, de tanto experimentar e ousar na estrutura do texto, dificulta a leitura e a compreensão por

parte do leitor, restringindo sua obra a uma pequena parcela da sociedade.

No segundo capítulo, Regulamento e rei: o processo de desfundação nacional, e em

seus dois subcapítulos: “Uma breve história das ficções de (des)fundação no Brasil” e “A sub-

versão de Victor Giudice”, proponho-me a pensar algumas ideias que cercam as ficções de

fundação, tendo como base a proposta de Doris Sommer, na obra Ficções de fundação: os ro-

mances nacionais da América Latina (2004), em que romances latino-americanos são aborda-

dos como alegorias de suas nações, sua fundação e sua formação de identidade política.

Há um momento no Bolero em que o pierrô branco percebe que sua performance es-

tava sob controle do poder monárquico, ou seja, submissa ao que o próprio personagem chama

de dois erres: regulamento e rei. Em meio ao seu monólogo, o pierrô faz uma longa explanação

sobre o que é o regulamento, para o que serve, e como surgem as novas normas. Segundo o

palhaço triste, o processo de criação de regulamentos se dá no instante em que alguém descum-

pre a norma existente. Eis o desafio: difícil não é cumprir os regulamentos, difícil seria des-

cumpri-los12. Os dois erres são basicamente a censura e a repressão por parte do governo, uma

vez que, conforme as palavras do pierrô, “o rei é uma instituição antes de ser um rei, é um

objeto proibido de ser homem. Um rei é um ser proibido proibindo ser”13.

Essa relação dá base para ler Bolero enquanto subversivo aos romances de fundação.

O autor utiliza da alegoria do nacional e da busca por uma identidade para trazer uma nova

11 Idelber AVELAR, 2003. 12 GIUDICE, 1979, p. 109; 1985, p. 52. 13 GIUDICE, 1979, p. 115; 1986, p. 60.

19

ideia: a desconstrução de um modelo literário. Em outras palavras, ele utiliza o próprio regula-

mento para descumpri-lo e assim gerar um novo. E, conforme conclusão do pierrô branco, só é

possível se opor ao regulamento através do pensamento14.

A ideia de desfundação não pretende ser o contrário das ficções de fundação, mas sim

um contraponto e uma nova maneira de escrever sobre o nacional sem se ater à busca de uma

identidade ou atenuar os problemas nacionais. Através dessa nova abordagem da teoria, pode-

remos compreender o que de fato torna possível essa leitura de Bolero, bem como considerar

por que, talvez, ela também seria possível em outros romances brasileiros modernistas e con-

temporâneos, que por ora são considerados de fundação. Nesse sentido, será necessário revisitar

os romances brasileiros citados por Doris Sommer em sua obra e outros que também são con-

siderados de fundação pela crítica. A partir daí, cabe retornar aos conceitos de “literatura naci-

onal”15, os quais variam de acordo com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada

momento histórico.

Como exemplos de romances brasileiros pensados a partir do conceito de fundação, é

possível citar O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, durante o Romantismo;

Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, na primeira fase do Modernismo; Grande sertão:

veredas (1958), de Guimarães Rosa, concomitantemente ao chamado “boom latino-ameri-

cano”. Resumidamente, de diferentes formas, todos pretendiam construir uma identidade naci-

onal e registrar uma parte da história brasileira, e, portanto, são considerados pela crítica ro-

mances de fundação16.

De antemão, uma primeira leitura de Bolero permite reconhecer as referências satíri-

cas, paródicas e irônicas sobre literatura e a sociedade brasileira. As alegorias utilizadas pelo

autor se referem ao sistema político dos anos 1970 e 1980, o que facilmente nos faria ler a obra

como ficção de fundação. Entretanto, os elementos sociopolíticos brasileiros que compõem a

narrativa e a estética literária giudiciana, como o discurso de denúncia social, o experimenta-

lismo estrutural, os personagens e as relações intratextuais levam-nos à ideia de que a situação

sociopolítica brasileira durante o período de 1964 a 1985, bem como o sentimento ambíguo dos

artistas, críticos e teóricos sociais sobre a pós-ditadura e a redemocratização corroboram para

que Bolero seja um romance de desfundação.

14 GIUDICE, 1979, p. 115; 1985, p. 59. 15 Utilizo o termo “literatura nacional” para me referir à literatura com temáticas afins ao nacional e ao conceito

de nação, conforme propõe Eduardo F. Coutinho (2002). 16 Eduardo COUTINHO, 2002; SOMMER, 2004.

20

Esse clima de queda do regime ditatorial e início do processo de redemocratização do

sistema político brasileiro que dá base para a terceira parte do trabalho: Picadeiro, plateia e

pensamento: a escrita do luto. Retomo neste momento a tese proposta pelo pierrô branco, de

que só é possível combater os regulamentos por meio do pensamento, ou melhor, dos “três pês”:

picadeiro, plateia e pensamento. Com isso, quero dizer que, para propor uma nova abordagem

sobre as ficções de fundação, faz-se necessário considerar o contexto sociopolítico em que os

processos de escrita da obra e o de sua publicação estão inseridos. Principalmente, o momento

e as circunstâncias em que esse texto é concebido pelo leitor, de tal modo que o efeito da re-

cepção da obra é um dos fatores que define a concepção do romance a partir da ideia de funda-

ção ou de desfundação. Também proponho interpretar a tríplice dos três pês proposta pelo pierrô

da seguinte forma: o picadeiro seria o livro como matéria; a plateia, os leitores; o pensamento,

a ideia e, por conseguinte, o efeito da obra. É impossível trabalhar esses elementos de forma

independente.

Dividido em duas partes – “De alienado a único republicano na ativa” e “O pensamento

como estopim para a revolução” –, esse capítulo está diretamente relacionado ao progresso do

personagem-narrador. O leitor já sabe que o personagem-narrador inicia a narrativa como um

alienado que desconhece os acontecimentos políticos e sociais de seu próprio país. Entretanto,

por influências externas, ele se torna um militante político, também conhecido como “o único

republicano na ativa”. Essa transição ideológica do personagem culmina na morte do palhaço

Eusebius, que surge ao final como o verdadeiro rei, marcando a farsa da queda do regime mo-

nárquico e o início da república. Essa morte, por sua vez, não passou de um número do circo,

pois “os punhais do pensamento ferem ideias, mas não matam ninguém17”. A transição de poder

ocorre de forma pacífica, sem provocar qualquer abalo grave nas estruturas sociais e sem que a

população interfira no processo, conforme a tradição da Cidade, mais uma vez alheia às mu-

danças políticas.

A controvérsia do romance e o estopim desse capítulo estão nas últimas páginas, em

que nos é revelado que, após tornar-se o agente principal da transição de regime político, o

personagem-narrador se adapta ao sistema corrupto viciado, levando-nos à conclusão de que

tudo não passa de uma grande farsa política. Por fim, aquilo que deveria retomar a ordem surge

como um grande acordo nacional dentro do qual os valores éticos e morais permanecem os

mesmos, a sociedade continua alienada e a política é somente burocracia.

17 GIUDICE, 1985, p. 322.

21

Esse é o ponto que faz com que a obra possa ser lida como uma alegoria dos aconteci-

mentos do Brasil pós-64, ou seja, como fruto do período ditatorial. Portanto, as alegorias utili-

zadas pelo autor podem ser percebidas enquanto consequências do sentimento de fracasso na

transição do regime militar para uma democracia neoliberal. Victor Giudice apresenta um pa-

norama muito interessante sobre o período transitório no Brasil, que, ao invés de uma vitória

política (como muitos acreditaram ter sido), não passou de uma manobra e de um grande acordo

a partir do qual os militares deixam o governo. Há então eleições diretas, porém sob a perspec-

tiva de uma doutrina neoliberal, de modo que a grande mudança esperada (mais democracia e

menos desigualdade) não foi alcançada com êxito pelos militantes da esquerda.

É importante atentar para o teor pessimista da obra de Giudice em relação às transfor-

mações decorrentes da redemocratização brasileira de 1984. Para essa análise, serão fundamen-

tais dois processos críticos, que em realidade são inseparáveis: um que constrói a memória dos

acontecimentos do período ditatorial e outro que questiona o processo de transitologia (ditadura

– democracia). Esses são processos que deixam à mostra uma continuidade ocultada entre di-

tadura e pós-ditadura e, simultaneamente, dispõem-se a entender as novas circunstâncias.

Giudice apresenta, através da alegoria da monarquia-república, um ceticismo com re-

lação à transição ditadura-democracia. E é esse ceticismo giudiciano que provoca tanto o leitor

da época quanto o atual: é inevitável terminar a leitura de Bolero com a frase “A esquerda que

espere”18 sem se incomodar. Por vezes, a leitura da obra leva à crença enganosa de que toda

forma de governo seria uma falácia. Acredito que, na obra, a construção da Cidade com base

em vícios sociais é uma denuncia e uma possibilidade para que reais mudanças aconteçam.

Essas questões dão base para a construção do quarto e último capítulo desta tese: A contempo-

raneidade de Bolero e o golpe de 2016: o espetáculo tragicômico brasileiro.

Bolero não é uma sátira somente dos turvos anos de 1964 a 1984, mas também dos

anos em que me dediquei à escrita desta tese, período que vai de 2016 a 2020. Concordo com

Hegel ao afirmar que o pensamento percorre caminhos cíclicos19, consequentemente, a história

também deve movimentar-se ciclicamente. Contudo, ainda acredito na possibilidade da revolu-

ção de classe como realidade, através de um futuro menos desigual, de mais justiça, sem trau-

18 GIUDICE, 1985, p. 338. 19 Georg HEGEL, 1999.

22

mas e rupturas. Mas, até que isso seja concretizado, precisamos lidar com uma jovem democra-

cia ameaçada pelas forças do grande capital, das brechas constitucionais e dos discursos auto-

ritários que surgem como salvadores da nação20.

Com o capítulo dividido em dois momentos – “O espetáculo satírico de Bolero” e

“Como viemos parar aqui?” –, procurarei fazer uma linha do tempo desde o processo de tran-

sição até a atual conjuntura política nacional com base na farsa circense de Bolero. Para isso,

procurarei dar ênfase nas principais problemáticas do processo de consolidação democrática e

suas implicações no processo que culminou na destituição da presidenta Dilma Rousseff em

2016.

O romance opera com o sentimento de impotência e de derrota perante a política naci-

onal, levando-nos a conceber, na narrativa, uma consciência de que a mudança é necessária e

que em breve ocorrerá, ainda que talvez não conforme o esperado. As ações do personagem-

narrador conduzem o leitor, inicialmente, a acreditar na revolução e a se rebelar. Por outro lado,

a reviravolta final possibilita enxergar a ruína da revolução e a continuidade do ciclo vicioso

político. Não se trata de uma obra utópica: o leitor sabe desde o princípio que é remetido a outro

lugar narrativo, que, no entanto, lhe permite construir relações com o atual contexto político

brasileiro.

A farsa circense de Bolero remete-nos ao grande espetáculo do golpe21 de 2016,

quando o Brasil viu sua jovem democracia ruir aos aplausos de homens de terno e aos panelaços

de uma classe média de verde e amarelo. Entre patos, bonecos infláveis e coreografias, as ma-

nifestações a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff clamavam pelo fim da cor-

rupção e, algumas vezes, pela intervenção militar. Cenário muito semelhante constituiu-se na

eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2018. Observamos, incrédulos, cenas

e situações absurdas tornarem-se realidade, fazendo com que seja possível a relacionar às situ-

ações absurdas do texto giudiciano.

20 Para contribuir com a discussão sobre democracia utilizarei como base os trabalhos dos seguintes pesquisadores:

Luciana BALLESTRIN, 2017; Jacques RANCIÈRE, 2014; Steven LEVITSKY & Daniel ZIBLATT, 2018. 21 Conforme será desenvolvido mais adiante, há controvérsias sobre a legitimidade do processo que culminou no

impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Segundo especialistas, críticos e cientistas políticos, não houve crime

de responsabilidade e nenhum fundamento na lei que justificasse a continuidade do processo, por isso, termos

como soft coup, golpe de estado, golpe parlamentar são utilizados para nomear essa sequência de acontecimentos

na política brasileira. Para contribuir com essa discussão buscarei suporte em textos de Michael LÖWY, 2017;

Mauro LOPES, 2016; Francisco Lopes DIAS, 2016; Luis Felipe MIGUEL, 2016, entre outros.

23

O riso funciona, na narrativa de Giudice, como um gesto social proporcionado pelo

contexto de urgência crítica em que a sátira está inserida. Isto é, a desmistificação e a degrada-

ção de um sujeito que manifesta desvios de caráter aproximam a sátira de uma realidade me-

lhorada, seja ela sobre um passado nostálgico ou sobre um futuro utópico, em que o sujeito

seria o personagem-narrador. Dessa forma, o texto satírico leva o leitor, através da situação

narrada, a olhar sua história com outros olhos, menos inocentes, provocando nele também, con-

sequentemente, o riso22 – ainda que esse riso seja de nervoso.

A sutileza satírica de Giudice percorre todo o seu romance. Em Bolero, a apatia da

população da Cidade, satisfeita em ir ao circo e esperar pela multiplicação dos pães, somada a

uma dinâmica viciada de transitologias23 e à falta de mudanças reais, torna o cenário insusten-

tável para o desenvolvimento de uma política social eficaz. Sob o olhar do narrador-protago-

nista e das inúmeras vozes que compõem o texto, percebe-se como a sociedade da Cidade se

organiza, desde as relações privadas até as relações públicas, e o momento em que elas se en-

trecruzam. O funcionamento dessas relações desmascara essa sociedade de aparências repleta

de farsas, tal qual a do rei caricaturado em palhaço.

Teoricamente, Bolero pode ser lido como um romance fantástico, que beira o absurdo,

mas, conforme o próprio Victor Giudice afirma, “A ficção parece absurda porque é a realidade

despojada de todas as mentiras”. Eis a melhor explicação para a sátira apresentada pelo escritor

no romance; vale notar também, como ela aparenta ser tão contemporânea a nós. Somado ao

conto “Miguel Covarrubra”, de Os banheiros, conseguimos compreender a relação entre a so-

ciedade e a organização política da Cidade de Bolero, o processo de transição do regime dita-

torial para a democracia, e, até mesmo, o nosso próprio contexto político. O Golpe de 64 nos

parece similar ao golpe de 2016 por ambos serem, segundo Leonardo Boff, “golpes de classe,

dos donos do dinheiro e do poder: o primeiro usa os militares, o outro o parlamento. Os meios

são diferentes, mas o resultado é o mesmo: um golpe com a ruptura democrática e violação da

soberania popular”24. O golpe mascarado de impeachment, nas palavras de Mauro Iasi, “abre

22 Henri BERGSON, 1987. 23 Termo proposto por Dankwart Rustow (1970) para se referir aos estudos sobre as mudanças de regime, princi-

palmente ao que diz respeito aos processos de redemocratização. 24 Leonardo BOFF. Golpe de 1964 e golpe de 2016: a mesma natureza de classe. Disponível em: https://leonardo-

boff.wordpress.com/2016/09/05/golpe-de-1964-e-golpe-de-2016-a-mesma-natureza-de-classe/. Acesso em 4 de

fevereiro de 2019.

24

mais um capítulo nesta novela fundada numa trama de mal gosto e operada por atores meno-

res”25. A concretização desse ato contra a democracia culminou no reestabelecimento total do

poder às elites econômico-financeiras e à casta política conservadora, culminando em reformas

votadas em tempo recorde durante o governo ilegítimo26 de Michel Temer e na eleição do ex-

deputado Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018.

Não devemos encarar Bolero como um romance premonitório, ainda mais tendo em

vista que o estudo sociológico não justifica o fenômeno literário. No entanto, o romance cola-

bora com uma possível leitura que esclarece alguns aspectos de ambos os saberes, literatura e

sociologia27. É necessário entender a fragilidade do sistema político brasileiro que não só per-

mitiu o golpe de 64, mas também colaborou com o processo de transição do regime militar para

o regime democrático entre os anos de 1984 e 1988 até a ruptura democrática de maio e agosto

de 2016, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff. Tal qual a plateia do picadeiro do

romance, nós, brasileiros, também nos enxergamos como espectadores de um grande espetáculo

circense que se tornou o Congresso Nacional.

Uma escrita como a de Victor Giudice exige do leitor atenção literária, linguística e

social; é impossível ler seus textos sem entrar em crise, sem se indignar e sem exercitar o senso

crítico. Mais uma vez a leitura torna-se essencial para complementar nosso entendimento da

vida. O leitor deverá empenhar-se em todas as competências comunicativas para compreender

a obra de arte literária giudiciana. Apesar de estar concretizado em um livro, o texto transcende

o papel, e a voz ecoa nas entrelinhas dos contos e do romance. Bolero foi e é para mim realmente

um desafio. E foi isso o que me motivou a escrever esta tese e a compartilhar com os demais

leitores questões que me inquietam como estudante, professora, crítica literária, e, principal-

mente, leitora.

25 Mauro IASI, “A adaga foi desembainhada”, Blog Boitempo, 8 de dezembro de 2015. Disponível em

https://blogdaboitempo.com.br/2015/12/08/a-adaga-foi-desembainhada/. 26 Ao assumir a presidência da República após o impeachment da presidenta eleita, Dilma Rousseff, o até então

vice-presidente Michel Temer teve seu governo considerado ilegítimo por muitas autoridades políticas e intelec-

tuais do mundo e movimentos sociais e políticos (Giovanni ALVES, 2016). 27 CANDIDO, 2014.

25

Se você vier me perguntar por onde andei

No tempo em que você sonhava

De olhos abertos lhe direi

Amigo, eu me desesperava

(...)

Eu quero é que este canto torto feito faca corte a carne de vocês

(BELCHIOR, 1976)

26

2 O CIRCO ESTÁ ARMADO: O UNIVERSO LITERÁRIO DE VICTOR GIU-

DICE

2.1 EXPERIMENTALISMO COMO RESPOSTA AO AUTORITARISMO

1964, a aliança civil-militar conspira e depõe o presidente João Goulart, dando início

a um período de vinte anos de regime militar no Brasil. 1968, o presidente Artur Costa e Silva

decreta o Ato Institucional número cinco (AI-5). 1969, o escritor carioca Victor Giudice publica

seus primeiros contos em jornais e revistas nacionais e internacionais. 1972, seu primeiro livro

de contos, Necrológio, é publicado pela editora O cruzeiro, e é sujeito ao crivo da Divisão de

Censura de Diversão Pública, fruto do AI-5. 1979, mediante à forte repressão à oposição do

governo Geisel e, posteriormente, ao declínio ditatorial com Figueiredo, Giudice publica sua

segunda coletânea de contos, Os banheiros, também analisada pela DCDP. 1985, às vésperas

da redemocratização brasileira, Victor Giudice publica seu primeiro romance, Bolero.

O ciclo narrativo iniciado em Necrológio e finalizado em Bolero caminha ao lado dos

principais acontecimentos políticos e sociais do Brasil, tanto pela época de publicação como

pela temática abordada em seus enredos. Essa característica não se restringe somente a Victor

Giudice, tendo em vista que um expressivo número de escritores latino-americanos desse perí-

odo buscou em seus respectivos países a fonte necessária para escrever uma literatura com no-

vos padrões e que se desvinculasse do colonizador europeu.

Até meados dos anos 50 do século XX, a produção literária da América Latina estava

diretamente relacionada à estética europeia, bem como aos seus conflitos sociopolíticos, ainda

que estes também afetassem diretamente os países latino-americanos. Com algumas exceções,

não havia, em um panorama geral, uma literatura latino-americana que não estivesse sempre às

sombras das fontes e referências de leitura dos artistas28. Há ainda uma grande dificuldade entre

acadêmicos, críticos e autores de desvincular a potência literária dos países emergentes das

influências externas, e, principalmente, do cânone ocidental, ou seja, da herança literária dos

escritores. A década de 1960 foi o cume desse processo de independência literária que durou

28 Silviano SANTIAGO, 2000; Roberto SCHAWARZ, 1987.

27

cerca de quinze anos29 até se consolidar. Países como Cuba, Argentina, Uruguai, México, Co-

lômbia e Peru, além de terem uma história de colonização e exploração semelhantes à do Brasil,

estavam passando pelas mesmas transformações políticas e sociais que os levariam a governos

totalitários; consequentemente, isso influenciou a arte de diferentes formas. Ou seja, crises po-

líticas nacionais podem ser consideradas momentos importantes e definidores para a arte.

A busca, consciente ou inconscientemente, na temática do nacional, era a de construir

novas identidades ou justificar as que já existiam. Esse será um ponto a ser discutido mais

adiante, mas que já é possível verificar ao considerar o boom latino-americano e a produção de

Giudice durante o período que inicia na década de 1960 e vai até o início dos anos 80. Os

críticos tentaram definir de muitas maneiras o que foi esse movimento artístico e literário, ora

para afirmar sua real existência e importância, ora para desqualificar e até mesmo provar que

ele não existiu (ou considerá-lo somente uma jogada editorial que deu certo). De fato, a litera-

tura latino-americana ganhou um reconhecimento que até então se restringia a poucos escrito-

res.

Conforme destacado por Angel Rama30 e Júlio Cortázar31, não são as editoras que fa-

zem o sistema literário. A qualidade estética e a recepção das obras pelos leitores são fatores

muito mais importantes e definidores de um movimento literário, da sua permanência no sis-

tema e até mesmo no cânone. Os escritores ganharam o público com suas características pecu-

liares que se diferenciavam daquilo que costumava ser importado do exterior, principalmente

da América do Norte e da Europa.

De acordo com Silviano Santiago32, ocorreu de os críticos e acadêmicos abandonarem

o método crítico reducionista conhecido, que buscava fontes e influências passando, então, a

focar na diferença e na originalidade das obras e dos autores. Ao mesmo tempo, a literatura

latino-americana ganhou espaço e reconhecimento internacional ao ser traduzida e publicada

em editoras dos Estados Unidos, Alemanha, México, Nicarágua, Polônia, entre outros países,

devido à boa crítica que recebeu e à popularização de suas obras nacionalmente e entre os países

vizinhos. Essa nova perspectiva dos críticos e leitores em relação à literatura latino-americana

29 Os críticos e teóricos que acreditam no início e fim da ascensão da literatura latino-americana são os mesmos

que afirmam tratar-se de um fenômeno editorial e não artístico. Discordo; acredito que esse não seja um processo

finito, mas que está em contínuo crescimento à medida que as fronteiras literárias se expandem. 30Angel RAMA, s/d. 31Julio CORTÁZAR, 1972 apud RAMA, s/d. 32 SANTIAGO, 1971.

28

contribuiu para que autores anteriores à década de 1950 fossem republicados com tiragens mai-

ores, resultando em um maior reconhecimento em nível global.

Os contos “O banquete”, “In perpertuum” e “O arquivo”, de Victor Giudice, foram

publicados avulsamente em jornais e revistas dentro e fora do Brasil na década de 1960. Esses

três contos bem como grande parte da produção literária de outros autores desse momento,

tinham os rumos políticos e sociais da América Latina – e, de maneira mais abrangente, a con-

dição humana – como temática principal. “O arquivo”, que abre o livro Necrológio, por sua

vez, é um dos contos brasileiros mais conhecidos mundialmente, uma vez que foi publicado em

oito países.

Pouco se sabia o que estava acontecendo durante os dias de regime militar. A mídia

era manipulada e manipuladora, o governo obstruía e destruía informações e os opositores eram

silenciados pela repressão, perseguição e morte. A arte assumiu e ocupou nesse momento um

espaço que é seu por excelência, em que os escritores mais engajados nas causas sociais busca-

ram a literatura para denunciar, esclarecer e registrar a história que talvez os livros viessem a

omitir futuramente. Em outras palavras, enquanto o regime, por meio do complexo jogo polí-

tico, tentava engessar determinadas lembranças sociais, a literatura engajada contribuía para

desmistificá-las através da construção de outras. Dessa forma, esse fazer artístico (re) escrevia

a história do Brasil por meio de obras díspares e plurais.

Além disso, segundo Julio Cortázar33, a crise política contribuiu com a necessidade do

leitor de buscar uma identidade que correspondesse à nova realidade social, fazendo com que

o número de leitores aumentasse e, consequentemente, entre as obras mais lidas, se destacassem

aquelas que continham implícitos ideais políticos sob uma ótica de esquerda.

As obras publicadas em diferentes países nesse mesmo período têm muitas caracterís-

ticas em comum, mas também divergem em tantas outras. Elas representam a junção de uma

arte de qualidade com temáticas engajadas politicamente, uma vez que os escritores eram artis-

tas e também ativistas sociais diante das imposições dos regimes autoritários que governavam

os países latino-americanos. Ainda que essas atitudes tenham desencadeado resultados pouco

favoráveis, como a perseguição e o exílio de muitos deles no exterior, a produção literária se

manteve em uma crescente durante esse período. Na década de 1970, com o aumento da censura

pelo governo, houve um declínio nas tiragens das obras pelas editoras. A consequência disso

33CORTÁZAR, 1972 apud RAMA, s/d.

29

foram as publicações clandestinas e independentes, a circulação em grupos restritos de escrito-

res e seguidores e as publicações de editoras no exterior.

Escritores de toda América Latina sofreram com os abusos dos regimes militares e

autoritários; o exílio passou a ser comum entre eles. Nenhuma novidade diante da história po-

lítica desses países, tendo em vista que, em regimes autoritários anteriores, muitos escritores

sofreram extradições forçadas ou voluntárias como retaliação às ideias e atitudes contrárias aos

governos vigentes. Vale lembrar o caso do Brasil com Euclides da Cunha, na década de 1920;

Graciliano Ramos, em 1936; e Jorge Amado, em meados de 1940. Seus escritos denunciavam

a realidade do país, as violências sofridas pelo povo. Segundo Creuza Berg34, os fatos retratados

contradiziam a ideia de país harmônico e cordial que o governo ditatorial procurava representar

dentro e fora do país.

A violência sofrida pelos artistas e literatos latino-americanos em períodos de autori-

tarismo político e militar refletia em suas obras. As temáticas abordadas nos livros desse perí-

odo tinham a pretensão de proporcionar aos leitores e aos próprios escritores uma experiência

diferente da que o sistema oferecia, além de fazê-los pensar e idealizar uma nova realidade e

identidade nacional. Velada ou explícita, física ou psicológica, a violência caracteriza a identi-

dade, principalmente, quando o país está passando por fortes mudanças sociais e políticas.

Uma viagem pela história do Brasil permite que se constate que a violência está na

base constitutiva de nossa sociedade35, a começar pela chegada truculenta dos portugueses às

terras tupis – que resultou no extermínio de grande parte da população indígena – bem como o

processo de colonização que se seguiu. Os quase trezentos anos de escravidão africana legali-

zada e os tantos outros em que permaneceu na ilegalidade reverberam nos problemas sociais

atuais. Por fim, os governos autoritários se fazem frequentes, tanto durante a monarquia quanto

na república ditatorial e democrática. Essa sequência de acontecimentos mantém até hoje a

desigualdade social e os preconceitos de raça, classe e gênero36. Por isso, faço questão de des-

tacar que a formação autoritária do Brasil foi constitutiva da subjetividade e da literatura, atra-

vés da qual, segundo Jaime Ginzburg37, os escritores representaram e ainda representam em

suas obras a condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico.

34 Creuza BERG, 2002. 35 Karl Erik SCHOLLHAMMER, 2000. 36 Carolina VELOSO, 2018. 37 Jaime GINZBURG, 1999.

30

O tema ganha uma importância diferente dependendo do contexto sócio-histórico em

que está inserido. A narrativa giudiciana tem a violência como fio condutor, seja nos contos de

Necrológio, d’Os banheiros ou no romance Bolero. O que os diferencia, além da estrutura e do

gênero, é o foco dado pelo autor. Em Necrológio, por exemplo, Giudice apresenta a morte como

elemento principal de suas histórias para denunciar a desigualdade social, a desvalorização do

trabalhador, a extravagância da burguesia e a arrogância dos intelectuais. Por outro lado, em Os

banheiros, o autor retoma a temática da violência para criticar o regime político e a sociedade

contemporânea, com destaque à alta classe média e à violência de gênero. Já o romance Bolero

apresenta todas essas violências em destaque, com foco na perseguição política e nos abusos de

autoridade, sejam eles militares, políticos ou trabalhistas. Nas entrelinhas dessas narrativas,

com um tom, por vezes, cômico e desesperançoso, Victor Giudice desenha o retrato da socie-

dade brasileira nos últimos anos da década de 1960 até meados de 1980.

A obra de Victor Giudice publicada entre os anos de 1968 a 1979 foi submetida ao

crivo da Divisão de Censura de Diversões Públicas, iniciativa do Ato Institucional nº5 (1968),

criado pelo presidente Costa e Silva. Sobre essas circunstâncias sombrias, Roberto Schwarz

destaca que os anos entre 1968 e 1975 seriam brutais especialmente para a produção cultural

do país:

Se em 1964 fora possível à direita ‘preservar’ a produção cultural, pois bastara liqui-

dar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o

público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros

já constitui massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os pro-

fessores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores – noutras

palavras, será necessário liquidar a própria cultura viva do momento.38

Escritores, como Victor Giudice, encontraram diferentes maneiras de driblar as nor-

mas de censura, burlar o sistema imposto pelo governo e ter suas obras publicadas por editoras

oficiais. Cada escritor encontrou sua maneira de ludibriar o sistema e alcançar o seu leitor, por

métodos linguísticos, estilísticos, semânticos ou estruturais. É possível dizer, inclusive, que es-

sas estratégias e mecanismos operaram como uma forma de autocensura imposta pelos próprios

autores. Segundo Cecilia Salles, os escritores “buscavam vencer a contingência do esqueci-

mento e a frustração de ver as coisas acontecerem e não poder contar”39.

38 SCHWARZ, 1978, p. 63. 39 Cecília Almeida SALLES, 1990, p. 161.

31

O experimentalismo literário não é uma característica única desse período. Em outros

momentos da história da literatura brasileira, observamos o mesmo fenômeno: escritores utili-

zando novas ferramentas e metodologias para criar obras transgressoras, ainda que isso não

tenha sido a intenção inicial deles. A noção de transgressão está relacionada à noção de origi-

nalidade da obra literária, ou seja, ocorre quando esta rompe com o lugar comum. Dentre os

inúmeros fatores que fazem com que a literatura rompa com as fronteiras instituídas e enraiza-

das, por exemplo, situações-limite de uma sociedade, como regimes totalitários, ditaduras, ge-

nocídios, transição de regimes etc. A consequência disso são mudanças artísticas necessárias,

ora por motivos estéticos ora por motivos políticos – ou seja, um processo de revisão da relação

entre literatura e realidade.

A título de exemplo, O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, Macu-

naíma (1928), de Mário de Andrade, e Grande sertão: veredas (1958), de Guimarães Rosa,

foram escritos e publicados em momentos que marcaram revoluções políticas, artísticas e soci-

ais no Brasil. Coincidentemente ou não, essas obras buscam o encontro com uma noção de

nação importante para responder às inquietações da população ou do sistema vigente, a partir

de ritos construtores de uma identidade brasileira.

Por mais que haja uma resistência ao nacional por parte dos artistas, ele parece irresis-

tível40 e presente na literatura brasileira. No entanto, cabe a nós ler o nacional literário com

outros olhos, ir além da simples ideia desses romances como fundação de uma nação ou forma-

ção de sua identidade. No caso de Macunaíma e Grande sertão: veredas, há ironia e crítica a

mitos e valores do povo brasileiro, cabendo uma sutil categorização de ambos naquilo que

chamo de romance de desfundação41. Já na obra giudiciana, não há espaço para sutilezas. Os

textos de Victor Giudice evidenciam a hipocrisia e as contradições dos valores nacionais, per-

sistindo a preocupação de desmascarar e problematizar costumes, valores e a História oficial.

Com base no contexto histórico em que Victor Giudice está inserido e nos assuntos

que atravessam as suas obras, não há dúvida de que os três livros do autor abordam questões

diretamente relacionadas aos últimos acontecimentos do Brasil ditatorial, mas que também re-

metem às questões relacionadas à formação da sociedade brasileira, da burguesia e da classe

média. Ao questionar e denunciar as organizações sociais e políticas do país, as alegorias feitas

por Giudice são facilmente perceptíveis. Nesse sentido, é interessante perceber o modo como

40 SOMMER, 2004. 41 No segundo capítulo, ficará mais clara a discussão sobre essas obras modernistas poderem ou não ser lidas

enquanto romance de desfundação.

32

os indícios do nacional se manifestam nas obras: os contos e o romance não têm como princípio

justificar ou dar alento ao leitor sobre as dificuldades e problemas políticos frente à crise e à

transição de regime do país, tampouco construir uma nova identidade nacional, trata-se, sim,

de desconstruir uma imagem criada através de farsas e manipulações políticas.

Bolero, por exemplo, facilmente poderia ser lido como um romance de fundação, con-

forme os termos estabelecidos por Doris Sommer, tendo em vista o fato de que constrói uma

imagem do Brasil e uma identidade nacional através do processo de transição política e das

relações pessoais e institucionais. No entanto, isso é construído de um modo às avessas àquele

que estamos acostumados na história da literatura brasileira. Victor Giudice aposta em uma

perspectiva do nacional sob a qual máscaras sociais e políticas tendem a cair. Há uma compre-

ensão de que a identidade nacional não precisa estar atrelada aos pontos positivos de uma soci-

edade ou dar razão e ênfase a um único lado da História. Portanto, faz-se necessário compre-

endê-la como plural e desconstruir aquilo que se entende como certo ou errado na sociedade.

As três obras de Giudice vão contra a corrente do que estamos acostumados, suge-

rindo-nos um novo olhar sobre as ficções de fundação. Para atingir essa ideia, é preciso percor-

rer o ciclo que se inicia em 1964, com o Golpe militar, e termina em 1985, com a redemocrati-

zação. Necrológio, Os banheiros e Bolero são densas amostras de um período autoritário que

vão além do óbvio. Giudice denuncia as ações de um regime e, principalmente, de uma socie-

dade opressora. As obsessões que permeiam as relações humanas e as instituições sociais inco-

modam o leitor. Esse efeito catártico provocado pela obra de Giudice atinge os mais diversos

níveis de leitores, de diferentes classes sociais. Sua obra de modo algum é ingênua; não só se

detém a denunciar a violência de ordem pública, mas também a de ordem privada.

Dentro desses dezesseis anos, vinte e seis contos e um romance foram publicados,

sendo somente um conto, de título “O hotel”, reprovado pelo censor da Divisão de Censura de

Diversões Públicas. Presente inicialmente em Necrológio, o conto foi publicado posterior-

mente, em 1994, no livro Museu Darbot e outros mistérios. O motivo da censura é um tanto

quanto nebuloso, tendo em vista que a denúncia social e a política estão presentes em todos os

contos de Giudice da década de 1970. Diante desse quadro, é possível fazer algumas suposições

sobre os motivos que levaram à proibição dessa narrativa, em 1972. Dos catorze contos de

Necrológio analisados pelos agentes da Divisão de Censura, somente treze foram autorizados

para publicação. Em uma primeira análise, constatei que a diferença desses treze textos foi a

ruptura com o conto convencional, uma vez que a estrutura e a linguagem dificultam a leitura

33

ou não despertam interesse dos leitores menos assíduos. O censurado “O hotel”, por outro lado,

obedece à estrutura tradicional do conto.

No artigo “Anos 70: censura e violência na obra de Victor Giudice”42, realizei uma

breve análise de Necrológio e de Os banheiros para tentar compreender o processo de censura

do conto “O hotel”. A conclusão a que cheguei foi a de que “a equipe da Divisão de Censura

não foi capaz de compreender a obra giudiciana, e, por isso, censurou o único conto de Necro-

lógio em que a leitura poderia ser realizada por leitores de diferentes níveis intelectuais”43.

Tentei ir um pouco além de minhas especulações ao levar em consideração que “incluir um

único conto de estrutura tradicional, dentre tantos experimentais, não foi uma ação arbitrária de

Giudice. Acredito que o autor tinha pretensão de persuadir ou testar os técnicos da Divisão de

Censura ao adicionar “O hotel” nesta coletânea”44. E a sua confirmação se deu com o relatório

técnico que informava a liberação do livro, com exceção de uma narrativa.

Em contrapartida, Os banheiros também foi encaminhado para Divisão de Censura em

1979, mesmo sua estrutura sendo em grande parte tradicional, sem tanto experimentalismo,

com exceção do conto “A última ceia do Dr. Ordoñez”45. A obra passou incólume, talvez por

consequência de o regime estar em fase de abrandamento e os censores focados em cúpulas

específicas que se detinham em questões envolvendo a música, o teatro popular e a televisão.

Conforme os estudos desenvolvidos pela historiadora Creuza Berg46, os pareceres emitidos pe-

los técnicos da Divisão de Censura demonstravam total consciência dos governos militares so-

bre a ignorância e falta de escolaridade da grande massa popular, distinguindo quais segmentos

artísticos, com quem e com o que deveriam realmente se preocupar.

Por acaso, a literatura não estava incluída nesse nicho. O governo brasileiro pouco se

preocupou ao longo dos anos, em investir em educação básica, e muito menos se importou em

diminuir o abismo que separava (e ainda separa) as classes sociais. Conforme Berg, “os gover-

nos militares estavam cientes da ignorância popular gerada pelo progressivo processo de ‘de-

seducação’ a que o povo foi submetido nas próprias escolas (ou pela falta delas) e pela cen-

sura”47. O que me faz repensar, por outro ponto de vista, o fato de somente “O hotel” ter sido

42 VELOSO, 2018. 43 VELOSO, 2018, p. 132. 44 VELOSO, 2018, p. 132. 45 Publicado pela primeira vez na Antologia de Ficção Científica Nº. 3, em 1973, pela Globo Editora, de Porto

Alegre. 46 BERG, 2002. 47 BERG, 2002, p. 111.

34

censurado: os pareceristas da DCDP tinham total consciência de que grande parte dos leitores

não compreenderia a crítica nas entrelinhas dos demais contos de Necrológio. Na sequência,

Os banheiros também não teria leitores suficientes a ponto de preocupar o governo, uma vez

que a tiragem impressa era mínima e o número de leitores no Brasil também não era um pro-

blema devido à “deseducação” e ao escasso acesso à cultura no país. Isso não quer dizer que a

censura literária foi irrisória. Conforme Loyola Brandão, apesar dessa “despreocupação” do

DCDP, “cerca de quinhentos livros acabaram nos porões. De ficção ou ensaio. Vai ver os livros

são mais perigosos do que pensamos...”48.

Esse tipo de prática autoritária desencadeia uma série de reações dos intelectuais. In-

dependentemente da época, o autoritarismo visa ao anti-intelectualismo, e, com isso, através da

censura, buscar empobrecer as criações e estreitar a própria capacidade reflexiva da população.

Por outro lado, essa prática aguça a reação dos artistas que não deixam de produzir por causa

da pressão ou por medo. A resistência desses grupos se dá por meio da intelectualização e so-

fisticação da linguagem, do conteúdo e da estrutura de suas obras, ou seja, uma espécie de

revolução através da estética da arte.

Tendo como base do enredo a denúncia, os dois primeiros livros de contos de Giudice

utilizam diferentes metodologias em sua construção, principalmente na estrutura da obra como

um todo. Enquanto Necrológio apresenta muitos mecanismos visuais e sonoros, Os banheiros

rompe com o tradicional a partir dos paratextos escolhidos pelo autor para integrar a sua obra.

Bolero não pode ser considerado um simples romance, se é que podemos chamar de romance

um texto de aspecto tão fragmentado. O experimentalismo literário praticado por Victor Giu-

dice e tantos outros escritores é uma reação aos abusos e tiranias impostas pelos regimes reaci-

onários, que não serve simplesmente para burlar a censura, mas constitui-se como forma de

engajamento sociopolítico e ativismo literário que ousa estar além das temáticas de denúncia.

2.2 A NOVA PROPOSTA DE NECROLÓGIO

Victor Giudice contribui com a interrupção da continuidade de uma tradição da litera-

tura ao publicar uma obra que traz o experimentalismo formal como principal característica de

sua obra de estreia. É possível identificar em Necrológio a presença de polifonia, bem como o

protagonismo do significante e um inegável apelo sinestésico; essas características são compa-

tíveis com a categorização presente no ensaio “O barroco e o neobarroco”, de 1972, de Severo

48 Ignácio Loyola BRANDÃO, 1994, p. 177.

35

Sarduy. Ao propor o neobarroco como um estilo artístico que coloca em evidência a particula-

ridade latino-americana, Sarduy apresenta uma teoria atualizada do barroco conforme as pecu-

liaridades da América Latina, como parte do processo que teve início por volta da década de

1950 e se prolongou até meados de 1980, dependendo do país, resultando no amplo desenvol-

vimento da literatura latino-americana.

Nessa perspectiva, os artistas da modernidade estariam retomando operações que já

prefiguraram no barroco, pervertendo a cronologia localizável; deixando de ser um estilo his-

tórico, para tornar-se um estilo de cultura. Para Sarduy, a literatura contemporânea, de 1950 até

meados de 1980, tem muito de barroco em sua natureza, sendo, portanto, o neobarroco a marca

principal de sua estética. Nesse mesmo período, Necrológio chega às livrarias com uma nova

proposta literária. Isoladamente, algumas estratégias narrativas se repetem e são passíveis de

diálogo com outros escritores, como é o caso do argentino Julio Cortázar. Conforme destaca

Nelly Novaes Coelho:

Escolhendo a perspectiva de um “realismo ao avesso”, na linha do fantástico-absurdo,

Victor Giudice lhe dá, porém, um tratamento que não é exatamente o mesmo que

encontramos, por exemplo, num Júlio Cortázar (com quem ele mantém inúmeras afi-

nidades). Tal como o genial escritor argentino, Victor apreende de maneira satírico-

realista a objetividade aparentemente comum do real, onde o fantástico e o absurdo

irrompem como elementos integrantes e irredutíveis. Mas seu registro é mais direto.49

O “realismo ao avesso”, grifado por Nelly Novaes Coelho, e o experimentalismo lite-

rário elevam o nível do texto giudiciano. Há uma relação analógica ao panorama histórico bra-

sileiro em um cenário fantástico, de modo que a desumanização e a morte estão presentes em

todas as narrativas e no próprio título da obra que, por sua vez, significa elogio à morte ou a

uma pessoa falecida. Desde título, a capa e a contracapa até os contos, somos bombardeados

por inquietações do autor, tendo em vista que todos os detalhes, inclusive gráficos, foram pen-

sados e desenhados por Victor Giudice. Segundo Severo Sarduy50, a ruptura com o convencio-

nal é a própria natureza do neobarroco, e manifesta um amadurecimento da literatura latino-

americana. Em decorrência de os escritores não demonstrarem mais disposição para seguir os

parâmetros esperados pela crítica internacional, tornou-se comum, cada um com sua especifi-

cidade, brincar com os gêneros literários, com a linguagem e com as mais variadas temáticas,

com destaque às narrativas de cunho político e social.

49 COELHO, 2013, p.926-927. 50 Severo SARDUY, 1979.

36

Observo, em Necrológio, a tentativa do autor de desafiar o seu leitor em todos os sen-

tidos. Essa proposta de transgressão estimula tanto o “leitor distraído” quanto o “atento”, fa-

zendo-os criar uma nova relação com o texto literário em que seja necessária uma leitura dinâ-

mica que integre os diversos níveis de significação – visuais e semânticos51. Os contos abusam

da utilização de metáforas, do entre lugar do real e do imaginário, do grotesco e da transgressão

de gênero, além dos inúmeros recursos linguísticos. Mesmo dessa forma, Giudice consegue

alcançar uma estética literária impecável e um alto teor crítico da realidade político-social bra-

sileira.

Necrológio desafia o leitor da capa até a contracapa, as quais, desenhadas pelo próprio

autor, “apela[m] para a evolução crítica de formas”52 e instigam as mais inúmeras interpretações

do leitor.

Figura 1 Ilustração de capa do livro Necrológio

Conforme é possível observar na ilustração, a grafia da palavra “necrológio” brinca

com o imaginário do leitor. O meu olhar sobre a capa de Giudice difere da interpretação de

51 VELOSO, 2018. 52 Maria Albertina Freitas de MELO, 2011, p. 90.

37

Nelly Novaes Coelho. Enquanto a autora53 considera os dois “ós” como as faces de uma caveira

e de uma brejeira, sorridente, piscando o olho para o leitor, a meu ver, “o acento agudo no

penúltimo ‘o’ se assemelha a uma bomba prestes a causar danos, enquanto o último [‘o’] ob-

serva e sorri; eis aqui [...] a imagem do oprimido tornando-se uma bomba e do opressor tor-

nando-se um tolo”54. Essa estrutura tipográfica vai percorrer toda a coletânea de contos, bem

como a expressão da sátira tragicômica que é o ponto central das narrativas. Por exemplo, é

possível notar na capa o início do conto “O arquivo”, logo abaixo do título e do nome do autor.

É somente depois dessa largada que o autor dá início ao livro tal qual de costume, com os

devidos paratextos pré-textuais: ficha catalográfica, sumário etc.

As primeiras cinco linhas do conto são marcadas pela linguagem visual: a palavra “re-

dução” destacada em vermelho, em contraste com o resto do texto em amarelo, e a palavra joão,

nome do protagonista, grafada em letras minúsculas, contrariando a regra dos nomes próprios.

O personagem joão é um funcionário exemplar, sua boa conduta no trabalho faz com que seja

promovido inúmeras vezes em sua carreira. Entretanto, essas promoções são inversões dos va-

lores e dos direitos trabalhistas. Ao invés de crescer profissionalmente, joão é rebaixado de

posto continuamente até ficar desassalariado, e isso é recebido pelo personagem de forma na-

tural e até mesmo orgulhosa por ter seu trabalho reconhecido.

– Seu joão. Nossa firma tem

uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal

de modéstia.

– Sabemos de todos os seus

esforços. É nosso desejo dar-lhe

uma prova substancial de nosso

reconhecimento.

O coração parava.

– Além de uma redução de

dezesseis por cento em seu orde-

nado, resolvemos, na reunião de

ontem, rebaixá-lo de posto.5556

A grafia do nome do protagonista em letras minúsculas “joão” pressupõe sua desuma-

nização e seu apagamento enquanto sujeito social e de sua própria vida, afinal, a reviravolta do

conto está na metamorfose do protagonista em arquivo de metal. A alienação de joão e dos

53 COELHO, 2013. 54 VELOSO, 2018, p. 117-8. 55 GIUDICE, 1972, s/p. 56 A formatação das citações de Necrológio e de Bolero respeita a estrutura original do texto.

38

demais personagens do livro não é o que provoca o absurdo no texto, mas a passividade do

narrador diante dos disparates que ocorrem a todo momento.

Observe que o mesmo ocorre em “Oz gueijos”, conto no qual Giudice utiliza de recur-

sos fonéticos e da espacialização para alcançar o seu objetivo. Faz-se necessário, por vezes, a

leitura em voz alta do texto devido ao efeito produzido pelo jogo fonético e ao diálogo frag-

mentado, conforme podemos observar no seguinte trecho:

Só Magda ouviu o telefone:

– Alô?

– Gláááro, glááro, glááro. A regonsdiduizão da

ebiderme brozeza-se gom ezdraordi

– Zim, zou eu mesma.

– nária rabidez,

uma vez que o dezido zelular re

– Gomo?

– zebe uma zérie

de ezdímulos

– O zenhor

boderia

– broveniendes de um

– rebedir?

– gomblegzo vida-

mínigo

– Mas já denho gonvi

– brevimende

– dados e

– gue voi?57

O conto relata uma reunião social com queijos e vinhos para comemorar o aniversário

de Magda (inclusive, o convite aparece como epígrafe do conto). A aniversariante é a única

personagem nomeada; os demais recebem apelidos conforme sintagmas definidores: Marido,

Mulher de Branco, Homem Gordo, Dama Obesa, Homossexual, Pintora Baiana e Moça Magra.

Ao nomear com termos que fazem referência a estereótipos, Giudice apresenta uma caricatura

da burguesia brasileira e denuncia a anulação do ser de uma classe social morta.

É importante levar em consideração todo o conjunto desse conto, o enredo e a sua

estrutura, com destaque na nasalização das falas e na disposição dos diálogos entre os persona-

gens. O jogo fonético, técnica que Victor Giudice maneja com precisão, é abordado por Severo

Sarduy de um ponto de vista intratextual do neobarroco. Para o crítico, a sonoridade e aliteração

são máscaras textuais, “artifícios e divertimentos fonéticos”, ou seja, uma operação “tautológica

e paródica”58. Segundo Nelly Novaes Coelho, Giudice utiliza da tautologia como um meio de

57 GIUDICE, 1972, p. 53. 58 SARDUY, 1979, p.173.

39

denunciar uma burguesia viciada em uma falsa realidade que se distancia da sociedade brasi-

leira, tendo em vista a “notação fonética da linguagem que, já a partir do título [Oz gueijos],

predomina em toda a narrativa, denunciando, entre outras coisas, o mimetismo de comporta-

mento à que as convenções sociais obrigam”59.

Segundo Severo Sarduy, “o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a de-

sarmonia, a ruptura de homogeneidade, do logos como absoluto, a carência que constitui nosso

fundamento epistêmico”60. Assim ocorre também na disposição dos diálogos no conto giudici-

ano, que, à primeira vista, aparentam estar desarmônicos e desorganizados, mas na verdade

constitui um artifício de simulação da realidade, importante para a compreensão da narrativa e

da crítica à sociedade burguesa.

O leitor terá que desenvolver o máximo de competências cognitivas possíveis para

compreender essas características de “Oz gueijoz” e as demais narrativas da coletânea. À me-

dida que a leitura dos contos é realizada, o leitor se depara com novos artifícios linguísticos,

sonoros e estruturais. O seguinte trecho do conto “Curriculum mortis” contém duas novas ca-

racterísticas neobarrocas: o uso de parênteses para registrar um pensamento dos personagens e,

principalmente, a descrição de sons e a utilização de caixa alta. A presença de tais elementos

implica a vocalização e a corporificação do texto, ou seja, um apelo à sonoridade. Isso ocorre

através de uma mistura de letras minúsculas e maiúsculas e do uso de onomatopeias, reforçando

a intensidade do discurso.

– Bom dia

– Bom dia

(continua sorrindo / ainda SOU um GAFI-

LHÃO de SABURGO)

(( tum tum tum-tchtun))

(BOLAS!)

– O senhor leu a carta?

– A proposta?

– Sim.

– Está aqui. A quantia que o senhor solicita,

(o sorriso aumentou)

– Vinte e três ...

justo.61

Para citar um último exemplo das características neobarrocas na obra de estreia de

Victor Giudice, elegi o conto “Synephryza”. Este conto apresenta um tema presente na década

59 COELHO, 2013, p. 934-935. 60 SARDUY, 1979, p.178 61GIUDICE, 1972, p. 134.

40

de 1970, mas que se repete nos dias atuais: o protagonista Bebé vive uma vida de farsa e in-

compreensão junto com sua tia Siné e outras senhoras, que não aceitam a sexualidade do pro-

tagonista e também não são sinceras sobre as suas. Para denominar as personagens, Giudice

utiliza-se dos recursos da proliferação, justaposição e aglutinação, conforme observamos na

voz do narrador: “Sinephryza era a noventeúm de um grupo de oitenteoito, oitentenove e no-

venta. [...] Cabeleireiro amador, penteava as amigas, sessentessete, sessenteoito, sessentenove

e, então, setenta”62.

Segundo Severo Sarduy, na utilização desses recursos, os signos “[são] esvaziados de

suas funções [...] não nos conduz[em], nem de um modo sutilmente alegórico, a nenhum signi-

ficado preciso”63. No caso giudiciano, a tia Synephryza e alguns personagens são nomeados por

números, sem uma justificativa aparente. O leitor não sabe se corresponde às idades ou a algum

número de registro, tendo em vista que narrativa está inserida em um contexto de ditadura, ou

se seria uma atribuição arbitrária do narrador.

Em outros momentos do livro, o escritor utiliza palavras que só possuem sentido no

contexto literário ficcional, o que para o crítico Sarduy consiste em um processo de condensa-

ção e proliferação febril de palavras64, ou seja, em “servir de suporte e de ossatura à produção

transbordante das palavras”, por vezes sem sentido, “puro jogo ao acaso fonético”65. Para citar

alguns exemplos dos contos: “Sinephryza”, sinestamorta; “A válvula”, chefdigrupo, chefdise-

ção, chefdidepartamento; “Oz gueijos”, marginalimagda, magdalando, marimagdo maridifi-

cando, aniversaliências, magdassunto, medmagdo, remagdalou, casalomossexobeso, magda-

medicasal, feminescalizou-se, coragengoliu, acaldamobesimava; “Grão Medalha”, sorriboqui-

dente; “Harmonizópolis”, cervejamonipresuntópolis, harmonigente, THEREZimundimorta,

morteapodrecida; “In perpetuum”, desdorme, maldormido66.

Depois dessa breve análise do livro mais experimental de Victor Giudice, é compre-

ensível que ele cause uma resistência ao leitor à primeira vista, mas encante e deslumbre quem

se aventura na leitura. Todas essas estratégias utilizadas por Victor Giudice não são por acaso.

Se considerarmos que Severo Sarduy publica seu largo estudo sobre o neobarroco na literatura

latino-americana concomitantemente ao lançamento da obra de Giudice, é possível entendê-la

62 GIUDICE, 1972, p. 18. 63 SARDUY, 1979, p.165. 64 Técnica também utilizada por Haroldo de Campos, no livro Galáxias, por Gramino de Matos, em seus dois

livros, Urubu-rei e Os morcegos, e por Waly Salomão em seus poemas, entre outros escritores. 65 SARDUY, 1979, p. 167. 66 VELOSO, 2016.

41

como mais um exemplo da repercussão do experimentalismo nas suas mais variadas formas em

diversos países da América Latina.

2.3 A INTRATEXTUALIDADE EM NECROLÓGIO, OS BANHEIROS E BOLERO

O ciclo literário de Giudice é formado por três obras publicadas durante o regime mi-

litar e que se conectam de diferentes formas. Apesar de Bolero ter sido lançado mais de uma

década depois de seu livro de estreia, o autor retoma personagens que são velhos conhecidos

nossos presentes em Necrológio: “Grão Medalha”, do conto homônimo ao personagem, Auri-

déa, de “A peregrinação da velha Auridéa”, e toda a aurifamília, de “Pôquer”.

A intratextualidade de Necrológio é bem sutil. No conto “Grão Medalha”, somos apre-

sentados ao personagem homônimo ao título da narrativa, um agiota que se torna empresário.

No decorrer do conto, ele adquire sérios problemas de saúde, e, à medida que enriquece por

extorquir os outros, seu corpo apodrece até desaparecer em sua própria podridão: “a maquiagem

se tornou incapaz diante das escamas da pele ungulada. Ninguém o viu mais”67. Já no romance

Bolero, somos informados de que, após a morte de Grão Medalha, quem passa a administrar as

Indústrias S.A. é o Gordo, o homem mais rico da Cidade, Holofernes68.

Sendo um pouco mais explícito, Victor Giudice anuncia junto ao título do conto “Pô-

quer” que este é um fragmento69, mas fragmento do quê? Essa resposta virá somente treze anos

depois, em 1985, quando o leitor conseguirá identificar as similaridades da narrativa com um

episódio no meio do décimo segundo “capítulo” de Bolero.

Narrado em primeira pessoa, o episódio relata o momento em que o narrador é apre-

sentado à família de Auriflor: ao desenvolver da narrativa descobriremos que ele seria o mesmo

narrador-personagem do romance. Logo no início do trecho, conseguimos perceber a relação

entre os personagens e as sutis diferenças entre os textos:

Necrológio:

– Papai. Titio.

– Prazer.

– Prazer.

– Prazer.

– O senhor que lhes falei. Estão lembra-

dos?70

Bolero:

67 GIUDICE, 1972, p. 72. 68 GIUDICE, 1985, p. 127. 69 GIUDICE, 1972, p. 139. 70 GIUDICE, 1972, p.143.

42

– Papai, titio, um amigo.

– Prazer.

– Prazer.

– Prazer.

– O senhor de quem lhes falei. O do corredor. Está lembrado? Titio, se lembra?71

Devido ao capítulo do romance ser mais extenso que o conto, o autor acrescentou mai-

ores informações sobre os envolvidos na cena e os últimos acontecimentos da narrativa. Isso

complementa e justifica o fato de o fragmento apresentar algumas partes do texto desmembra-

das e agregadas a outros diálogos entre os mesmos personagens concomitantes a pensamentos

do narrador. Por exemplo, o personagem-narrador faz uma breve divagação sobre a criação de

uma nova pontuação: a semivírgula, “(em lugar desse ponto aí de cima, achei preferível uma

vírgula, mas não ficava perfeito, porque o melhor seria uma semivírgula, coisa que não existe

e precisa ser inventada para sublimidade de certas compreensões [...])”72. Situações como essas

são recorrentes do experimentalismo de Necrológio e assim também são em Bolero.

No entanto, o fator mais importante desse fragmento e da intratextualidade das obras

está na aurifamília. Os “auri-qualquer-coisa”73 são recorrentes e possuem uma importância sig-

nificativa nesse contexto literário giudiciano. A primeira aparição desses personagens dá-se no

conto “A peregrinação da velha Auridéa” e, posteriormente, em “Pôquer”.

Auridéa, velha bruxa que desafia Bartolomeu com suas moedas mágicas, não é uma

personagem fixa do fragmento e do romance: ela somente é mencionada em determinados mo-

mentos. Inclusive, sua morte é anunciada em duas situações de Bolero, além de ser lembrada

pelo irmão, auriavô, no episódio do jogo de pôquer e nos seus gemidos agonizantes74 ao final

do romance:

[...] a perguntar pela irmã, falecida em 1920 d.C., na pandemia espanhola:

Auridéia não vem?

E diante do costumeiro não, recurvara uma surpresa no lábio inferior:

Ué, ela vem toda noite...75

Já sua neta, Auriflor, é uma personagem recorrente de “Pôquer” e de Bolero, junta-

mente com o Auritio, Auripai e Auriavô. A enfermeira, “bruxa de pernas-ponteiro”76, é quem

“abre os olhos” do personagem-narrador no hospital, alertando-o que ele se encontrava há sete

anos esperando a esposa dar à luz; é ela também quem o introduz ao novo contexto sociopolítico

71 GIUDICE, 1985, p.81. 72 GIUDICE, 1972, p.141-142; 1985, p.78-79. 73 GIUDICE, 1972, p.145; 1985, p.85. 74 GIUDICE, 1985, p. 311. 75 GIUDICE, 1985, p. 78. 76 GIUDICE, 1985, p. 10.

43

e, juntamente com o Auritio, o transforma de mero coadjuvante a “único republicano ativo”77.

Enquanto Auritio e Auriflor são assumidamente republicanos, Auripai prefere não se posicionar

sobre a política, mas a todo momento alerta-os sobre o perigo de serem presos pela guarda real;

já Auriavô, namorado da Condessa de Monchique, é um partidário da monarquia e em todas as

situações possíveis faz insinuações e ameaças ao narrador, a Auriflor e ao Auritio sobre suas

preferências políticas. Um exemplo disso está no final do episódio de “Pôquer”, quando Auri-

avô sofre as devidas retaliações de seu ato falho durante a jogatina:

Durante as quarenta e nove chineladas, brotaram três filetes escuros, mas o avô

não gemeu. Apenas apertou as gengivas e rugiu promessas:

- Amanhã irei ao palácio e mostrarei o que fazem com um descendente de um

Auri (qualquer coisa que não entendi)

Todavia, a outra descendente de um auri-qualquer-coisa não descolou os olhos

da flagelação, apesar de sorrir uma inocência de café com canela:

- Não adianta. Vovô não toma jeito78.

Observemos a última frase da citação. Há uma leve distinção entre essa mesma fala de

Auriflor no conto e no episódio do romance. Essa diferença é construída por uma simples pon-

tuação que muda a forma como concebemos o personagem Auriavô e a própria Auriflor. Em

“Pôquer”, a enfermeira afirma que seu avô jamais tomará jeito, conformada tanto com a rouba-

lheira de seu antecessor como com a monarquia como forma de governo vigente. Já no romance,

ela faz questionamentos, dando a primeira impressão ao personagem-narrador de que há espe-

ranças de que seu avô deixe de roubar no jogo ou de ser partidário fiel da monarquia. Auriflor

também acredita em uma mudança política, ou seja, na revolução: “Será que um dia vovô toma

jeito?”79

As estratégias experimentais em Os banheiros são tão presentes quanto em Necroló-

gio, no entanto, elas podem passar despercebidas aos leitores que desconhecem as demais obras

do escritor. Na época, foi possível dizer que Victor Giudice abandonou o projeto experimental

ao escrever Os banheiros (1979), um livro mais acessível no que diz respeito à linguagem e à

estrutura, como percebe Elizabeth Lowe, no prefácio: “A síntese fragmentada e ultraexperi-

mental de seu volume de estreia se corporificou numa prosa fluída e magnífica sem perder

nenhuma característica de sua mordacidade”80. A particularidade da coletânea de contos de

1979 está no fato de Victor Giudice trazer em seu conteúdo elementos de sua obra posterior,

Bolero, lançada seis anos depois d’Os banheiros. Esses elementos intratextuais estão tanto no

77 GIUDICE, 1985, p. 296. 78 GIUDICE, 1972, p. 145; 1985, 86. 79 GIUDICE, 1985, p. 86. 80 Elizabeth LOWE, 1979, p.8.

44

texto em si como nos paratextos que compõem a obra, nas epígrafes, notas do autor, referências

e um fragmento.

A primeira informação que nos leva a entender a intratextualidade no livro de contos

é anunciada pelo próprio autor junto ao título do conto “Narrativa do Número Um”. No lugar

da epígrafe, consta a seguinte informação: “(fragmento do romance Bolero)”81. Já no conto

“Pôquer”, pelo contrário, não há informações sobre a procedência do fragmento. A estratégia

de publicar um fragmento do romance funciona como uma maneira de despertar a curiosidade

dos críticos e dos leitores sobre sua próxima criação, bem como aumentar as expectativas sobre

o que esperar do romance devido às circunstâncias da narrativa – no caso, o monólogo de um

preso político.

Esse trecho é um capítulo do romance Bolero. Narrado em primeira pessoa pelo per-

sonagem conhecido como Número Um, a história é a de um menino que costumava frequentar

o circo da cidade, fascinado pelo número do pierrô branco que, ao som de uma valsa, fazia

aparecer sobre o corpo uma esfera prateada equilibrada com incrível destreza. A esfera aparecia

do nada; aparentemente o pierrô entrava no picadeiro de mãos vazias. Somente ao acorde inicial

da banda do circo ela surgia. Por sua vez, esse menino curioso viria a se tornar o sucessor do

pierrô, dominando a técnica do seu antecessor e desenvolvendo outras tantas. Em certo mo-

mento, o novo pierrô percebe que a plateia não tem emoção; por mais que ele se esforçasse em

se superar, o público permanecia apático e alheio a tudo. Diante dessa insensibilidade e meca-

nicidade dos aplausos, o pierrô resolve, em vez de esferas, materializar seu pensamento em luz:

uma grande obra. No entanto, os agentes do governo compreendem o espetáculo como um ato

subversivo e prendem o pierrô branco. Assim o prisioneiro da cela quarenta e nove finaliza sua

história, apresentando-se como o segundo pierrô branco, conhecido agora como Número Um.

Com características de um monólogo, o fragmento apresenta tons poéticos, políticos e

filosóficos, tendo em vista que o Número Um está sempre citando Fausto, de Goethe, os Pen-

sées, de Pascal, e estabelecendo debates profundos a fim de esclarecer e afastar o personagem-

narrador – ou, no caso do conto, afastar o leitor do alheamento existencial e político em que se

encontra(va). O texto tem a estrutura baseada em um único e extenso parágrafo; as marcas de

diálogo são perguntas retóricas, marcadas, principalmente, pela expressão “Hem? Que tal?”,

repetida seguidas vezes pelo narrador. É possível observar a utilização dessa estratégia no tre-

cho a seguir:

81GIUDICE, 1979, p. 105.

45

Houve um tempo em que um menino passava por baixo das lonas do circo e ia assistir

ao espetáculo. Isso acontecia todas as noites, porque sempre houve e sempre haverá

circos de lona e meninos curiosos. Hem? Que tal? Você fazia assim também? Não

responda.82

Esse fragmento/capítulo é considerado pelos críticos como um momento de grande

inspiração literária e criativa de Giudice, na medida em que ele consegue transcender o signifi-

cado do pensamento ao ponto de torná-lo uma alegoria da liberdade suprema, um último alento

de dignidade e humanização83. Nesse sentido, esse episódio pode ser lido como uma manifes-

tação sobre a criação artística.

A materialização do pensamento representado pela imagem do punhal espetado no

cérebro do pierrô branco é perfeita para fazer significar, de modo metafórico, o poder do livre

pensar. Além disso, essa imagem da materialização do pensamento representa a capacidade de

produzir uma arte que esteja fora dos parâmetros estabelecidos.

José Felipe Conceição faz uma leitura muito interessante sobre essa questão:

O número do pierrô branco, portanto, representa a materialização do pensamento, sua

capacidade de criar novas realidades e produzir um tipo de arte que não se deixa ins-

trumentalizar pelos signos e discursos do poder político constituído. Por isso, o ter-

ceiro e mais importante ponto abordado é o da função sublimadora da arte, sua capa-

cidade de criar outras realidades. Assim, pensamento e arte andariam unidos, pois a

expansão artística, seja através da música, da escultura, da pintura ou da literatura,

seria a concretização simbólica e ideológica do pensar.84

O pensamento e a arte andariam juntos; entretanto, a arte discutida por Número Um é

a da ficção, em um sentido em que a realidade ficcional ou literária mostra-se superior à reali-

dade comum:

Você deve estar achando que esse negócio é pura ficção e que eu sou um mentiroso

desavergonhado. Pode ser que seja ficção mesmo. Sabe o que é ficção? É quase a

mesma coisa que realidade. É uma realidade sem visões falsas. É isto que atrapalha.

A ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas as mentiras85.

Portanto, todas as verdades são ficções e todas as realidades são mentirosas86.

A realidade e a ficção são constituídas por ordens e regulamentos a serem seguidos,

seja pelo cidadão ou pelo artista. Por um lado, os regulamentos tendem a limitar o sujeito social

e artístico, enquanto que, por outro, eles têm sua raiz no poder do pensamento. Isso ocorre

porque não é difícil cumprir os regulamentos; difícil é burlá-los, e essa ação desencadeia novos

82GIUDICE, 1985, p. 49. 83 Carlos Alberto DE MATTOS, 1985, s/p. 84 Felipe CONCEIÇÃO, 2010, p. 104. 85 Essa frase marca mais um aspecto intratextual entre as obras, pois ela aparece na contracapa de Necrológio, em

1972. [grifo meu]. 86 GIUDICE, 1985, p. 57.

46

regulamentos, em um movimento cíclico. O personagem Número Um desenvolve um longo

raciocínio sobre a existência de regulamentos e a sua obediência, além de outras questões que

regem a sociedade, tornando seu monólogo bastante significativo para compreender não só as

esferas sociais, mas toda dinâmica que exija uma ordem e metodologia de desenvolvimento.

A finalidade dos regulamentos está na simples ambição de padronizar o comporta-

mento social para que a obediência de uma maioria enalteça a autoridade de uma minoria. Por-

tanto, cumprir os regulamentos sociais é fácil: basta seguir as normas estabelecidas. Nesse sen-

tido, o fato de Giudice transgredir as normas tradicionais da literatura com seus experimentos

torna-o um desobediente. Consequentemente, a sua desobediência pode culminar em um novo

gênero literário. Mas, antes de adentrar na teoria literária para compreender a ideia de gênero

proposta por Victor Giudice, ainda se faz necessário falar das últimas pistas intratextuais d’Os

banheiros.

O livro tem uma quantidade expressiva de paratextos que trazem informações aparen-

temente descontextualizadas, de modo que essas lacunas somente serão preenchidas seis anos

mais tarde, com a leitura de Bolero. Algumas citações utilizadas pelo autor não possuem refe-

rências, e, por enquanto, o leitor não consegue estabelecer uma ligação com a obra como um

todo, tampouco com os contos de maneira isolada. Por exemplo, a epígrafe surge para Giudice

como uma ferramenta textual importante – praticamente todas suas obras e contos são precedi-

dos desse paratexto. É possível observar tal ocorrência no conto “Miguel Covarrubra” e no livro

Os banheiros, pois ambos possuem a mesma epígrafe, se diferenciando no fato de o livro trazer

uma estrofe inteira do capítulo “A lenda dos doze rios”87, de Bolero, e o conto apresentar so-

mente os dois últimos versos:

Desonras ancoraram nesses portos

onde as honradas velas são mofinas.

Gastei meus passos em caminhos tortos

em busca de passagens cristalinas.

Já vi verdades mortas sob os mortos

de guerras vergonhosas e assassinas.

Perguntas sei às quais ninguém responde.

Conheço histórias mil que a História esconde.

(Ladislau de Monchique, sobrinho de Mme Odhontyna Alberycca Euphrozyna Al-

pharraz Bethançon do Gammedal – Condessa de Monchicque)88

87 GIUDICE, 1985, p.93 – 111. 88 GIUDICE, 1979, s/p - 37; 1985, p. 110.

47

As localizações das epígrafes dão significados distintos para cada uma delas. Segundo

Compagnon, quando a epígrafe tiver alguma relação lógica com outro texto, ela pode ser con-

siderada um símbolo: “Mas, ela é, sobretudo, um ícone, no sentido de uma entrada privilegiada

na enunciação”89. A fim de complementar essa ideia, procurei a definição do crítico francês

Gerard Genette, o qual afirma que “epigrafar é um gesto mudo cuja interpretação fica a cargo

do leitor”90. Nesse sentido, Compagnon e Genette concordam que a epígrafe está diretamente

relacionada com o texto, sua existência não é arbitrária, o leitor deve buscar o seu significado

na relação direta ou indireta com o texto, como uma charada que poderá ter seu sentido escla-

recido através de uma leitura minuciosa do texto.

No caso, a primeira epígrafe está relacionada a todo o conteúdo d’Os banheiros. Ou

seja, ela se constitui como uma forte crítica à classe média e à burguesia brasileira. Enquanto

isso, a segunda está diretamente relacionada ao conteúdo do conto, sendo representada na his-

tória de vida privada e pública da família Covarrubra em suas relações com a conjuntura política

da Cidade. Devido ao contexto histórico de 1979, notamos a clara alegoria à história da transi-

tologia brasileira. Como se sabe, a história do Brasil é repleta de escândalos de corrupção e

fraude nos acordos políticos e econômicos, o que nos faz questionar o conceito de “verdade”

da narrativa dita como oficial, tal como o autor insiste em destacar em suas duas obras: “Co-

nheço histórias mil que a História esconde”.

A referência a esse capítulo e a esses personagens, em especial, é recorrente n’Os ba-

nheiros. São seis as menções ao sarau e à família da Condessa de Monchicque, sendo que cinco

estão presentes no conto “Miguel Covarrubra”. A história da família Covarrubra tem relação

direta com a história da cidade de Bolero. Essa informação é fornecida pelo próprio autor em

sua primeira nota sobre os personagens e heróis da primeira monarquia, Miguel Covarrubra e

Duque de Gammedal:

“Do Gammedal o Duque portentoso,

ao ver em sua frente a face ousada,

tomada Glória a Estrela e, generoso,

concede ao moço a fala dilatada.”

Tem-se como certo que Miguel Covarrubra é o moço a que se refere a Condessa

de Monchicque em sua famosa narrativa (N. do A.)91

O verso destacado na nota consta no sarau noturno na casa de Alpharraz e Gammedal,

o mesmo da epígrafe de abertura d’Os banheiros e do conto. Esse capítulo do romance conta a

89 Antoine COMPAGNON, 2007, p.120. 90 Gerard GENETTE, 2009, p.141. 91 GIUDICE, 1979, p. 39.

48

“História da Fundação da Cidade” em forma de tragédia com caráter cômico, justamente pelos

dois narradores divergirem de opinião sobre o Duque de Gammedal. Para o sobrinho Ladislau,

um farsante; para a tia, por vezes, um herói (por outras, nem tanto). A Condessa representa a

dualidade de sua família, que ora defendia a Monarquia, os Monchicques, e ora a República, os

Monchiques92. Pelo menos é isso que o leitor observa no conflito e nas intervenções de Ladislau

com sua tia. Esta, por sua vez, ao final revela-se tão ciente quanto o sobrinho sobre as inverda-

des da história oficial:

ODHONTYNA: Não roubes de meu verso esta mentira

e as outras que decerto hão de surgir.

Porque só delas é que o Homem tira

as forças do passado e as do porvir.

Se o ser não mente, a mente não se inspira,

pois a verdade só nos leva a rir.

Mentindo empresto aos homens tanta glória,

quão mentirosa é toda a Humana História.93

No romance há uma recorrente lembrança de que a Madame é uma das últimas des-

cendentes de Gammedal, enquanto no conto há a preocupação de negar seu parentesco com

Miguel Covarrubra. O autor deixa registrado, em nota, que a personagem de Bolero nada tem

em comum com a esposa de Miguel Covarrubra, Estefânea de Monchique: “O nome Monchique

não guarda nenhuma relação com os Monchiques atuais, o que não deixa de ser louvável para

ambos os lados (N. do A.)”94. Nesse trecho, observamos mais uma ficha de leitura dada pelo

autor: o termo “atuais” faz-nos refletir sobre a temporalidade do romance e do conto. Pode-se

cogitar que o narrador d’Os banheiros é contemporâneo ao narrador do romance, pois, além de

fazer referência direta a Madame em suas notas, em Bolero nos é fornecida a informação de

que ela e Ladislau são os últimos Monchiques que restaram na cidade e representantes vitalícios

dos bens (e dos males).

Madame Odhontyna Alberycca Euphrozina Alpharraz Bethançon de Gammedal, co-

nhecida como Madame Monchicque, e seu sobrinho Ladislau de Monchicque são os últimos

descendentes do fundador da cidade, Duque de Gammedal95, assim como os vizinhos do narra-

dor do conto são os últimos descendentes de Miguel de Covarrubra. Os dois narradores descre-

vem as casas desses últimos descendentes como decadentes e empoeiradas, reflexo de uma

cidade que vive na sombra de um passado pouco memorável. No romance: “Sarau noturno na

92 Atente-se nesse momento a grafia do sobrenome da Madame que varia conforme o regime político da Cidade. 93 GIUDICE, 1985, p. 111. 94 GIUDICE, 1979, p. 40. 95 GIUDICE, 1985, p. 91.

49

Casa de Alpharraz e Gammedal. Cenário decadentíssimo. Cristais empoeirados em poeiras cris-

talizadas”96. No conto: “E, finalmente, vi que todas as coisas – móveis, medalhas, memórias e

Cidade – estavam cobertas de poeira”97.

Além dessas relações dos paratextos com o romance, o próprio enredo do conto torna

possível a sua leitura como uma parte da história da Cidade. Em Bolero, o personagem-narrador

entra na maternidade em uma cidade republicana e sai, sete anos depois, com um regime mo-

nárquico em vigência. O conto, através da voz de um rapaz de vinte seis anos, relata a história

política da família Covarrubra desde a primeira monarquia até os “dias atuais”, quando um dos

seus vizinhos, últimos descendentes dos Covarrubras, estavam envolvidos em escândalos sexu-

ais e pedofilia. Por trás dessa saga familiar está uma forte crítica às transições de regime e à

banalização da política pelos governos, seja qual for a opção ideológica, considerando que,

apesar das inúmeras transições, nenhuma mudança social efetiva acontece – são sempre os mes-

mos envolvidos no governo, direta ou indiretamente.

Para demonstrar essa indiferença, o autor utiliza de uma estratégia narrativa desafia-

dora ao leitor. Com muita astúcia, o narrador repete uma mesma informação ao se referir à

monarquia e à república. O personagem Pedobarão representa a classe que está no topo da pi-

râmide social. Ele exerce um importante papel na política da Cidade, pois, ao jogar com os

governos, consegue privilégios tanto da Sexta Monarquia quanto da Quinta República.

Na Sexta Monarquia:

Pedobarão se casou com a sobrinha de uma cunhada do rei, Alzira, fato que não só

lhe angariou mais prestígio social, como também lhe facultou algumas liberdades

quanto ao recolhimento dos impostos reais. Quando o monarca estava cansado, pas-

sava um momento na Pedra Negra, servindo-se de escravas que Pedobarão lhe ofere-

cia.98

Com a queda da monarquia deu-se início à quinta república, e a família Covarrubra

continuou suas relações com a política. Entretanto, diz o narrador sobre Pedobarão:

Dessa vez casou-se com a sobrinha de uma cunhada do presidente, Júlia, fato que não

só lhe angariou mais prestígio social, como também lhe facultou algumas liberdades

quanto ao recolhimento dos impostos republicanos. Quando o presidente estava can-

sado, passava um momento na Pedra Negra, servindo-se de escravas que Pedobarão

lhe oferecia.99

96 GIUDICE, 1985, p.93. 97 GIUDICE, 1979, p. 54. 98 GIUDICE, 1979, p. 42. 99 GIUDICE, 1979, p. 42.

50

A tênue ironia de Victor Giudice leva o leitor ao riso, mas esse mesmo riso pode ad-

quirir significados que vão além do cômico – como na expressão “rir de nervoso”, a qual serve

bem para esse contexto. Os três tempos de leitura a) 1979, Os banheiros, b) 1985, Bolero, e c)

a última metade da década de 2010, contemporânea a nós, levam o leitor a outras expressões e

compreensões sobre as questões levantadas pelo autor e pelo seu humor peculiar. As cenas

absurdas e risíveis são passíveis de análises críticas sobre a conjuntura nacional ou sobre a sua

própria consciência como sujeito social, tendo em vista que situações como a de Pedobarão e

tantas outras recorrentes nos contos e no romance são comuns no sistema sociopolítico brasi-

leiro, dado que as fronteiras entre as relações públicas e privadas são mal definidas e permeá-

veis.

As palavras de Roberto Damatta são suficientes para entender o sistema brasileiro

exemplificado pela vida e pelas relações de Pedobarão Covarrubra: “Daí a profunda verdade

sociológica do ditado: ‘Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo’. Dir-se-ia, na argumentação que

se amplia no decorrer deste volume, que: ‘aos bem relacionados, tudo; aos indivíduos (os que

não têm relações), a lei’”100 Os interesses pessoais sobressaem aos interesses públicos; o Brasil

está longe de ser um modelo de Estado conduzido por normas impessoais e racionais, indepen-

dentemente do governo, monárquico ou republicano, ditadura ou democracia. Como no conto,

o personalismo se sobressai na construção social do Brasil, de modo que as leis existem para

serem descumpridas por quem pode e cumpridas por quem deve.

Os estudos desenvolvidos pelo antropólogo Roberto Damatta101 ajudarão mais adiante

a entender, em Bolero, essas dialéticas de ordem e desordem, público e privado e casa e rua. O

personagem Pedobarão foi citado como um breve exemplo das relações que serão encontradas

na leitura do romance, como as peripécias vividas pelo personagem-narrador e os demais per-

sonagens. Outro exemplo é observado, no último capítulo, com a descoberta do que realmente

aconteceu após a queda da monarquia. Segundo a carta102 do personagem-narrador direcionada

a sua ex-esposa, Cynthia, todo o esforço realizado em prol da república foi em vão – a sucessão

de poder não passou de uma simples manobra, tal qual no conto “Miguel Covarrubra”. Nada

mudou a não ser as nomenclaturas, reorganizações de cargos e as cores da bandeira. O sistema

100 Roberto DAMATTA, 1997, p. 23. 101 DAMATTA, 1997; 1997. 102 A informação de que o último capítulo é uma carta para Cynthia consta nos manuscritos disponíveis no acervo

da Fundação Casa de Rui Barbosa.

51

permaneceu o mesmo. E, para minha surpresa (ou não), o próprio personagem-narrador de Bo-

lero embarca nessa rede de relações e tramoias.

A estrutura narrativa giudiciana retrata o estado social fragmentado da década de 1960

e, ao mesmo tempo que ataca o regime imposto com o Golpe de 64, revela as expectativas à

redemocratização ao final de 1980. Giudice cria um universo literário singular em que as obras

formam um ciclo narrativo com início, meio e fim. A articulação intratextual enriquece a obra

do autor, e também a nossa experiência como leitores. Por isso, é preciso estar atento às epígra-

fes, às notas do autor, aos personagens e aos fragmentos. Segundo informações obtidas no

acervo103 de Victor Giudice, disponível na Fundação Casa Rui Barbosa, e em contato com a

viúva do escritor104, Eneida Vieira, Bolero foi escrito durante o ano de 1984. Mas, conforme

defenderei ao longo desse trabalho, a intratextualidade entre as três primeiras obras de Giudice

leva-nos a crer que a ideia inicial acompanhou Giudice durante todos os tortuosos anos de 1964

a 1984.

Textos semelhantes ao enredo de Bolero foram encontrados no acervo da Fundação,

mas não se tem conhecimento de sua publicação oficial, assim como não constam na obra prin-

cipal. Definitivamente, Bolero é uma obra que vai na contracorrente dos romances que estavam

sendo publicados na época, mas, ao mesmo tempo, segue a tendência transgressora e neobar-

roca que outros escritores não só brasileiros mas latino-americanos em geral vinham arriscando.

Em Bolero, Giudice inclui todos os mecanismos linguísticos e literários propostos inicialmente

nas coletâneas de contos, e tantos outros que já mencionei anteriormente. No próximo subcapí-

tulo, darei um pouco mais de atenção à polifonia, aos gêneros literários e à intertextualidade

presente na obra.

103 O material disponível no acervo foi doado pela esposa do escritor, Eneida Vieira, com autorização dos dois

filhos de Victor Giudice, em 2016, após organização da Profa. Dra. Tereza Virginia de Almeida, principal refe-

rência no que diz respeito à pesquisa sobre a obra de Victor Giudice. Dentre os documentos que constam no acervo,

foram utilizados para esta pesquisa manuscritos, cópias, revisões, críticas e traduções de suas obras. É importante

destacar que o material não sofreu triagem e sua organização está em responsabilidade dos profissionais da Fun-

dação Casa de Rui Barbosa. 104 Um dos locais favoritos de Victor Giudice, na adolescência, foi a biblioteca de seu vizinho e futuro sogro, Dr.

Azevedo Lima. Aliás, foi nessa época que começou a namorar Leda, com quem se casou anos mais tarde e teve

dois filhos, Maurício, matemático, e Renata, jornalista. Já, sua segunda esposa, Eneida Vieira, foi sua principal

leitora e colaboradora a partir de 1984 até a madrugada de 17 de novembro de 1997, quando o escritor foi vítima

mortal de um tipo raro de tumor cerebral. (Fonte: http://victorgiudice.com/vida.html).

52

2.4 O MOVIMENTO TRANSGRESSOR DE BOLERO

Após treze anos de sua estreia, Giudice publicou seu primeiro romance, Bolero, o qual,

assim como Necrológio, também tem como característica principal o caráter experimental. O

seu estilo fragmentário juntamente com a mescla de gêneros, rompe com a estrutura convenci-

onal de um romance, tanto em sua forma quanto no conteúdo de que trata. Dessa forma, a crítica

da época não pôde deixar de notar a busca constante do autor por novas e diversas técnicas

narrativas.

Segundo Lucia Helena105, a estrutura do romance convencional encontrava-se desgas-

tada, repetitiva e não correspondia às expectativas do momento, de modo que Giudice abriu um

novo caminho desafiador para a literatura brasileira. Para completar, Mauro Gama, em sua co-

luna crítica no jornal Suplemento Literário, em 1986, propõe que a classificação de Bolero no

gênero romance não seja a mais adequada. Concordo com o crítico e penso que talvez o motivo

de a obra não se encaixar em nenhuma nomenclatura já existente seja proposital, haja vista a

necessidade de se repensarem os conceitos de gênero literário.

De acordo com a proposta de Todorov, é possível admitir que um novo gênero suceda

da transformação e transgressão de um ou de vários gêneros:

O fato de a obra “desobedecer” a seu gênero não o torna inexistente; somos quase

obrigados a dizer: pelo contrário. E isso por uma dupla razão. Primeiro, porque a

transgressão, para existir como tal, necessita de uma lei – que será, precisamente,

transgredida. Poderíamos ir mais longe: a norma não se torna visível – não vive –

senão graças às suas transgressões106.

Nesse sentido, também é admissível propor uma nova terminologia para obra giudici-

ana. Aliás, acredito que o autor nos chama a refletir sobre esse assunto no capítulo monólogo,

quando o personagem Número Um questiona a existência e a origem de novos regulamentos

que regem a sociedade. Conforme o trecho a seguir:

Outro dia conversamos sobre os regulamentos. Cumprir os regulamentos é facílimo.

Não cumprir é que é o diabo. Você sabe como nasce um regulamento? Quando alguém

resolve desobedecer ao antigo e fazer outro novo. E sabe por que não se cumpre um

regulamento? Por que se acredita numa coisa mais importante. Concorda? O que eu

estou pedindo é mais difícil do que acreditar, porque estou pedindo que acredite em

sua própria crença. Não é difícil?107

Os gêneros literários formam um sistema em contínua transformação, “um ‘texto’ de

hoje deve tanto à ‘poesia’ quanto ao ‘romance’ do século XIX”108. Como qualquer instituição,

105 Lucia HELENA, 1985, p.53. 106 Tzvetan TODOROV, 1980, p. 44-45. 107 GIUDICE, 1985, p. 52. 108 TODOROV, 1980, p.46.

53

os gêneros evidenciam os aspectos correspondentes à sociedade em que estão inseridos, de tal

forma que a transgressão ocorre naturalmente. No caso, a subversão é a própria evolução do

gênero. A transgressão de Giudice ao regulamento do sistema literário incide na desobediência

ao sistema político imposto pelo governo ditatorial e às novas estruturas da redemocratização

pós-ditatorial. Portanto, o texto fragmentado e polifônico deixa com o tempo de ser uma trans-

gressão experimental para ser uma estrutura regular na literatura, ou seja, passa de uma ruptura

revolucionária para ordinária. Conforme destaca o Número Um, para criar um novo regula-

mento basta desobedecer ao regulamento já existente e assim continuamente.

A crítica de Carlos Alberto de Mattos109 é pertinente nesse momento, pois ele define

Bolero como uma obra transgressora e multifacetada, a ponto de incorporar diversas formas de

registro literário. Os capítulos são como episódios que podem ser lidos e publicados indepen-

dentemente, além de ter a presença de diferentes vozes narrativas e um enredo que não respeita

um tempo lógico e previsível. Essa característica, por sua vez, possibilita a leitura da obra como

um debate de ideias opostas, perceptível pela própria estrutura do texto: fragmentária e polifô-

nica.

Em verdade, toda a trama pode ser considerada um espetáculo; todo o romance é tra-

çado por episódios fantásticos e absurdos, difíceis de assimilar em um primeiro momento. Por

se tratar de uma narrativa híbrida, a espetacularidade de Bolero não se encontra somente no

enredo, mas também no próprio estilo do texto: um bilhete em forma de soneto; um samba

enredo110111 cantado por funcionários de uma indústria; um poema épico no estilo camoniano

para contar a história da fundação da Cidade; um monólogo de um pierrô branco que cita sin-

fonias de Beethoven e os Pensées de Blaise Pascal; uma peça de teatro para relatar uma reunião

de vítimas da tortura; e, para finalizar, uma carta de despedida. Giudice apresenta em um só

espaço diversas manifestações literárias, de modo que todos esses discursos convivem entre si

harmoniosa e democraticamente na narrativa.

109 DE MATTOS, 1985. 110 Em conversa com Domingos de Oliveira, Victor Giudice cantarola trecho do samba enredo “Ópera louca dos

carnavais”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jZ4zeKDesng. 111 Entre os anos de 2016 e 2017, a professora Tereza Virginia realizou um trabalho de recuperação das canções

de Victor Giudice em parceria com o musicista Julio Córdoba e com o auxílio da esposa e da filha do escritor. De

acordo com Julio Córdoba, seu trabalho consistiu em uma espécie de arqueologia musical, pois também foi reali-

zado nesse período o resgate de algumas partituras de músicas instrumentais escritas por Giudice. Como parte do

projeto Museu Victor Giudice, Tereza Virginia interpretou, em shows e palestras musicais, algumas dessas canções

juntamente com Julio Córdoba, como violonista e arranjador, em Florianópolis, e, no Rio de Janeiro, em parceira

com o violinista e compositor Marcos Melo.

54

Bakhtin112 encara esse hibridismo dos gêneros como de caráter complementar e divide-

os em gêneros secundários e primários. Secundários são aqueles que circulam em circunstâncias

de comunicação cultural complexa, no caso, o romance; já os gêneros primários são aqueles

que constituem o secundário, conservando sua forma, no caso, outros gêneros inseridos no ro-

mance. Dessa maneira, o aspecto híbrido da composição narrativa e a interação entre os gêneros

correspondem à maneira com que Giudice concebe a formação da literatura. Bolero pode ser

considerado uma paródia da estrutura do romance tradicional, porque rompe com a consciência

monológica e fechada do tal regulamento, bastante comum nas narrativas do romantismo. E

essa paródia pode ser uma das chaves de leitura para considerá-lo uma ficção de desfundação.

De um ponto de vista monológico, ou seja, do romance tradicional113, Bolero parece

um aglomerado de informações, de fragmentos avulsos, além de caótico pela heterogeneidade

de estilos e demais gêneros que o compõem. Há momentos na obra em que o personagem-

narrador toma para si a voz e assume seu papel de narrador, e é através dessa voz e do seu ponto

de vista que o leitor acompanha situações absurdas que lhe ocorrem após sair do hospital. Quase

todos os capítulos narrados pelo protagonista envolvem sua confusão em relação aos últimos

acontecimentos de sua vida. Há também uma oscilação na narrativa, a partir de outras vozes e

gêneros que podem ser vistos como uma maneira de buscar uma definição do eu e do seu lugar

na sociedade.

Em determinados momentos, o personagem-narrador deixa de narrar os fatos e seu

discurso parece implicar em diálogos sem resposta, por vezes filosóficos e existenciais. Isso

fica bem evidente nos microcapítulos direcionados a sua esposa desaparecida, por exemplo:

“Cynthia, onde foi que você se meteu? Em que dentro? Não consigo sair desse dentro das coisas

que são sempre dentro que existe dentro de outro dentro que nós chamamos de lado de fora,

etc.”114.

O personagem-narrador está imerso em uma confusão identitária e existencial que

deixa o leitor tão confuso quanto ele próprio. Aparentemente, tentar assimilar os últimos acon-

tecimentos e desabafar por meio dos monólogos ajuda-o a se aproximar de algo familiar, como

é apresentado no trecho seguinte:

112 Mikhail BAKHTIN, 2003. 113 Entende-se como romance tradicional, principalmente, as estruturas que obedecem às modalidades literárias

tradicionais, ou seja, monológicas e lineares. 114 GIUDICE, 1985, s/p.

55

Não faça julgamentos precipitados, Cynthia, mas estou começando a divini-

zar nossa experiência conjugal. Ultimamente eu tenho me sentido como aquele pro-

fessor de Matemática da reunião dos Gabone. O tal que ficava com saudade das tor-

turas.

Em certas ocasiões, era tudo tão chato...115

Esses monólogos são partes isoladas da narrativa e quebram a linearidade do texto por

não darem continuidade aos capítulos anteriores e nem apresentarem os posteriores. Não são

demarcados por páginas no texto, enquanto os demais capítulos têm sua numeração crescente,

tal como ocorre tradicionalmente nos livros. Como se fossem pensamentos do narrador, esses

microcapítulos visam refletir sobre sua atual situação e sobre as transformações pelas quais

precisa passar para poder encontrar um espaço naquele novo contexto político sem esposa e

filho.

Ao longo da narrativa, a nova identidade do narrador vai sendo literalmente constru-

ída, sendo Auriflor quem o acolhe após a prisão e o coloca no patamar de revolucionário repu-

blicano. As fases dessa construção identitária são narradas por ele e pelas demais vozes que

compõem a narrativa: a negação de ser um preso político; as marcas da tortura; a vida clandes-

tina; até assumir o papel de responsável por derrubar o poder monárquico. O protagonista en-

contra uma oportunidade de ressignificar sua existência e agora com um propósito maior. No

entanto, os monólogos com Cynthia desmarcaram essa farsa construída ao longo do livro. Seus

comentários expõem o quanto ele é suscetível às circunstâncias, com vista a buscar sua própria

sobrevivência. Desabafar com sua ex-esposa serviu como uma válvula de escape daquela rea-

lidade absurda que lhe foi imposta:

Viu, Cynthia, em que é que deu sua brincadeira de esconde-esconde? Vezirrê

Budru e o Ajudante Máximo estarão de olho em mim até que a Monarquia se estupore.

Auriflor? Por favor. Não Chore. Auriflor será sempre uma incongruência chovendo

fetiches no deserto. Eu já te disse isso? Perdão. Está certo116.

No último capítulo, constituído pela carta de despedida para Cynthia, o narrador revela

o que realmente aconteceu após a queda da monarquia e a morte simbólica de Vezirrê Budru.

O personagem-narrador parafraseia um dos versos da fábula de fundação da Cidade: “Eu tam-

bém conhecia histórias mil que a História esconde”117.

115 GIUDICE, 1985, s/p. 116 GIUDICE, 1985, p. 157. 117 GIUDICE, 1985, p. 328.

56

Ainda que essas passagens sejam primordiais para o entendimento da obra, é no mo-

mento em que nosso herói dá voz aos outros personagens que o texto se engrandece na expres-

são, pois a polifonia se concretiza nos mais diversos gêneros literários. Seguindo a ordem de

manifestação na narrativa, iniciarei essa análise pelo já conhecido monólogo do Número Um,

aquele mesmo fragmento presente em Os banheiros.

O monólogo exterior não é muito comum na literatura porque prevê que haja a pre-

sença de outro que o escute como espectador solitário ou plateia. É muito mais recorrente o

monólogo interior, ou um fluxo de consciência que não necessite diretamente de um ouvinte.

Entretanto, penso que o propósito da narrativa do prisioneiro Número Um era descrever o epi-

sódio de um espetáculo, no qual o personagem-narrador era a única e perfeita plateia para ma-

terializar, pela linguagem, os acontecimentos internos do pierrô e dar um significado a mais

para sua história de vida. Portanto, esse foi o recurso escolhido pelo autor para esclarecer ao

personagem-narrador o caótico funcionamento da Cidade, da monarquia e do circo, além de

apresentar o enigmático pierrô branco e prisioneiro, Número Um.

Desde quando se conheceram na cela quarenta e nove, exatamente no mesmo dia em

que a flor dourada foi roubada, Número Um chamou o personagem-narrador de republicano e

preso político: “Você é um herói republicano com o crânio cheio de merda. É isso. Você é a

escuridão e o fim. E aquele que acreditar em você, ainda vivo, morrerá. Por que é que foi logo

apanhar uma flor dourada?”118 Nesse momento foi iniciada a formação da nova identidade do

suposto herói da Cidade.

O monólogo do palhaço triste acompanhou-o durante toda sua saga, ainda que o pro-

tagonista tenha demorado a assimilar e acreditar em toda aquela história absurda. Da mesma

forma, o acompanharam também os aforismos de Pensées. O narrador deste episódio declamou

todos os dias os pensamentos de Pascal e insistia em perguntar ao herói republicano se já havia

lido os Pensées, como no último diálogo que tiveram antes de iniciarem um silêncio absoluto.

Você se meteu numa gaiola que não era sua, e agora não pode sair porque a

fechadura enferrujou. Hem? Que tal? Não sabe por quê? Nem eu. Mas pensando bem,

acho que está tudo certo. Já leu os Pensées?

Não.

Então leia. Sua ingenuidade seria muito comovente se não fosse o resultado

de tanta cegueira. Não faz mal. Já acreditei na sua história. Agora estamos quites.

Satisfeito? Você nem é capaz de mentir. Ora, vá à...

118 GIUDICE, 1985, p. 34-35.

57

Aquela tarde marcou o início de um silêncio interminável. Nunca mais eu

teria oportunidade de conversar com Número Um, embora ainda fossemos trocar al-

gumas palavras119.

Seu reencontro aconteceu na execução do Número Um, isso quando o personagem-

narrador de Bolero já vivia na clandestinidade. Só nesse momento ele entendeu o real sentido

da história contada pelo velho pierrô:

Só então, compreendi que o Número Um, muito antes, já estava condenado à própria

arte que lhe fora transmitida pelo primeiro pierrô e que ele soubera aprimorar através

da purificação do pensamento, numa cega obediência aos princípios da beleza. E é por

esse motivo que ele nunca foi uma coisa nem outra. Este era o perigo de vida apontado

pelo Pirata. Talvez um dia ele transmitisse tudo a um terceiro pierrô e este até um

quarto, um quinto ou até ao último dos republicanos ativos. Até quando?120

Número Um tornou-se uma referência para o personagem-narrador. Sua narrativa foi

o estopim para a construção do herói que viria a se tornar fora da prisão, assim como “A lenda

dos doze rios”, que também colabora com sua formação e compreensão do processo de transi-

ção de regime da Cidade.

Antes de alguns capítulos, o personagem-narrador expõe ao leitor o gênero, o narrador

e/ou os personagens do próximo episódio. Por exemplo, ao ser convidado a participar de um

jantar na casa de Madame Odhontyna, ele apresenta a anfitriã e esclarece o capítulo como uma

performance teatral, dividida em cenas, cenário, personagens e plateia.

Cena única: A Lenda dos Doze Rios

Sarau noturno na Casa de Alpharraz e Gammedal, Cenário decadentíssimo. Cristais

empoeirados em poeiras cristalizadas. Personagens: Odhontyna e seu sobrinho, La-

dislau de Monchicque, Plateia: espermatomúltipla.121

“A lenda dos doze rios” ou “História da Fundação da Cidade”122 é uma das atrações

do sarau artístico na casa da madame Odhontyna, também conhecida como Condessa de Mon-

chi(c)que, narrada pela própria anfitriã com interrupções irônicas de seu sobrinho Ladislau.

Com uma estrutura semelhante ao fragmento de uma epopeia, o texto inicia com uma breve

narrativa e segue com uma estrutura poético-narrativa, em decassílabos. Assim como os roman-

ces tradicionais que tinham como principal temática as histórias de heróis da realeza e de gran-

des conquistas, o enredo da cena tem como tema as bravas aventuras que levaram o Duque de

Gammedal a fundar a Cidade.

119 GIUDICE, 1985, p. 68. 120 GIUDICE, 1985, p. 304. 121 GIUDICE, 1985, p. 92. 122 GIUDICE, 1985, p. 93-111.

58

Conforme é possível observar no trecho a seguir, “as inoportunas intervenções de seu

sobrinho Ladislau de Monchicque”123 possibilitam que a narrativa incorpore o tom satírico no

épico:

ODHONTYNA:/…/ Logo foi feita enorme cruz maciça, de paus vermelhos

parecendo brasa. E ainda sob um sol de luz mortiça, e como se estivesse em sua casa,

rezou o Duque uma primeira missa.

LADISLAU: Esta primeira foi a que deu asa a essas beatices muito pias…

ODHONTYNA: Isto é sagrado, Ladislau, não rias. Depois da missa construiu-

se a igreja,

LADISLAU: que construiu depois a Monarquia.

ODHONTYNA: E veio a fé, tão forte e benfazeja, que os homens, recebendo

a eucaristia, multiplicaram-se…

LADISLAU: … na própria igreja, nos cantos lúbricos da sacristia.

ODHONTYNA: Não sejas, Ladislau, tão venenoso, ao referir-se a tal passado

honroso124.

As falas críticas de Ladislau não se destinam a convencer a tia dos erros da versão

histórica oficial. Pelo contrário, a estrutura ideológica que a princípio parece opor dois pensa-

mentos, monarquia e república, revela-se como uma estratégia de provocação ao leitor. É inte-

ressante ter em vista que se esse episódio pode ser lido como mais uma das farsas de Bolero,

pois se descobre logo que a porta-voz da versão histórica oficial e defensora ferrenha da pri-

meira, segunda e terceira monarquia é, na verdade, republicana125.

Após passar toda a narrativa em confronto com o sobrinho, Madame Odhontyna revela

ao final o caráter farsesco da tragédia narrada por ela. Atente-se que toda a cena foi uma per-

formance, de tal modo que existe a possibilidade de todas as falas serem programadas, até

mesmo as alfinetadas de Ladislau. A própria Condessa refere-se ao suposto heroísmo do Conde

fundador como uma farsa, assim como outras, necessárias para a história:

ODHONTYNA:

Não roubes do meu verso esta mentira

e as outras que decerto hão de surgir.

Porque só delas é que o Homem tira

as forças do passado e as do porvir.

Se o ser não mente, a mente não se inspira,

pois a verdade só nos leva a rir.

Mentindo empresto aos homens tanta glória,

quão mentirosa é toda a Humana História126.

123 GIUDICE, 1985, p. 93. 124 GIUDICE, 1985, p. 107-8. 125 Cláudia PESSANHA, 2002. 126 GIUDICE, 1985, p. 111.

59

O espetáculo não se restringe somente ao espaço do circo da Cidade. Cada fragmento

da narrativa corresponde a um número desse grande espetáculo que é o romance giudiciano, o

que nos leva às torturantes confissões dos torturados: tragédia em um ato.

A tragédia é um fragmento de uma peça teatral, que possui como tema o papel

do intelectual no regime autoritário e os destinos do país pós-64. Dividido em duas partes, a

peça inicia com a apresentação detalhada dos personagens: os anfitriões, os torturados do clube

e os não torturados. Na sequência, há a descrição que não poupa detalhes sobre o ambiente, os

móveis e a posição social dos anfitriões, para então dar início ao debate:

Cena: Sala em formato de L do apartamento dos Gabone. Móveis escuros e de

bom gosto. Não se notam os exageros barrocos que desmoralizam as salas de uma

certa classe média em ascensão. [...] Terminado o almoço, anfitriões e convidados,

com exceção do porteiro, acomodam-se na extremidade do L que acabo de descrever.

Depois do licor, do charuto de Gabone e das risadas, ele sorri para mim127

As falas são devidamente marcadas e apresentam personagens-tipo, denominados con-

forme sua principal característica ou profissão: o Jornalista, a Jornalista, o Universitário, o Pro-

fessor, o Romancista, o Doutor, a Desquitada, o Porteiro do edifício. Atitude típica, vale notar,

de uma primeira impressão – no caso, a do personagem-narrador, o mais novo integrante do

Clube dos Torturados. Os únicos personagens denominados formalmente são os anfitriões Lé-

tera e Vitral, Auritio e Morgana, sendo a última, desprovida de fala no romance, com uma

participação marcada pelo seu emblemático suicídio. O personagem-narrador, inclusive, que

também é um personagem anônimo, tem sua participação no diálogo marcada por uma forma

pessoal de nomear – “EU”.

Com características peculiares ao roteiro de uma peça teatral, o fragmento não possui

narrador. Todas as informações, além do diálogo entre os personagens, são dadas entre parên-

teses e com fonte cursiva itálica, por exemplo: “(Gargalhada quase geral, devendo-se o quase

a Létera e Morgana)”; (Pausa); “Létera: (Para o Professor.) Mas é tão fácil recuperar tudo

isso. É só você não divinizar o fenômeno. (Morgana não ri.)”128. Por último, há ainda a indica-

ção de “Fim” ao término do episódio.

Marcado pelo dialogismo, o relato permite ao autor mais uma vez transferir o debate

extraliterário para o âmbito da ficção. A presença do personagem Romancista como contesta-

dor, e um pouco implicante, pode ser lida como uma autocrítica de Victor Giudice como escritor

e militante. Nesse sentido, pode levar o leitor a crer que a voz desse personagem equivale à voz

127 GIUDICE, 1985, p. 237. 128 GIUDICE, 1985, 244; 245; 245.

60

do romancista autor. No entanto, não considero a situação dessa forma. Concordo com Cláudia

Pessanha ao explicar que

o personagem Romancista aqui referido, ao contrário do que se poderia ser levado a

pensar, não dá voz ao ponto de vista do autor. De modo diverso do que ocorre até

mesmo em obras que elaboraram de modo artístico o dado documental, como A Festa,

de Ivan Ângelo, o personagem Romancista da tragédia de Victor Giudice atua antes

como opositor das teses que parecem ser sustentadas pelo autor, as quais aparecem

defendidas por uma outra personagem, Létera Gabone, professora de Literatura e an-

fitriã do lauto jantar-cenário. Desse modo, a figura do romancista assume a função de

“advogado do diabo”: ao contestar as teses de Létera, permite que ela possa melhor

defendê-las.129

As teses da professora de literatura Létera são persuasivas e desesperançosas em rela-

ção à sociedade hipócrita e ao sistema político falido. O trecho a seguir possibilita a confirma-

ção de tal ideia:

LÉTERA: (Sem dar ouvidos. Morgana olha para ela.) O processo vem de cima

para baixo. Os poderosos da primeira classe exibem seus slides aos da segunda. Os da

segunda aos da terceira e assim por diante. Até chegar à última, à mais ínfima, que

além de não ter seus próprios pratos de comida, não dispõe de uma classe inferior à

qual possa exibir slides. É justamente a essa classe que estamos dirigindo nossa tortura

milenar.

A JORNALISTA: Ah, mas não é a mesma coisa. Isso é filosófico demais.

LÉTERA: Se é filosófico eu não sei. Mas não é a mesma coisa porque é muito

pior.

O UNIVERSITÁRIO: Sem essa.

O ROMANCISTA: Que tolice. Isto é só mais um dos seus sofismas. Nós, in-

telectuais, sabemos muito bem de todas as...

LÉTERA: Nós, intelectuais, acabamos de devorar as costelas de carneiro de

Vitral, temperadas com ervas aromáticas e cozidas em vinhos importados, apesar da

fome de não sei quantos milhões de famintos.

O UNIVERSITÁRIO: Mas não há filosofia política nenhuma que demonstre...

LÉTERA: Que filosofia política droga nenhuma! A única filosofia de quem é

faminto é a fome. Será que ninguém nota?

(Para o Romancista.)

Será que nem os intelectuais percebem?130

Mais uma vez o fragmento presente em Bolero, agora do gênero dramático, apresenta-

se como componente de uma literatura engajada, tendendo mais para o sentido sociopolítico do

que para a arte. No entanto, conforme foi possível observar no trecho do debate entre Létera e

o Romancista, há um grande apelo ao papel do intelectual enquanto agente público nos movi-

mentos de classe e na luta pela redemocratização.

Pensando na questão de gênero e no enredo da trama, a transgressão da literatura a

partir do rompimento da estrutura tradicional do romance também está representada pela tran-

129 PESSANHA, 2002, 112. 130 GIUDICE, 1985, p. 248.

61

sição do próprio personagem-narrador (de alienado a republicano). As passagens citadas con-

firmam a possibilidade de que a polifonia na narrativa tem por objetivo construir/constituir sua

nova identidade, se é que algum dia houve uma anterior.

O looping político ao qual a Cidade está destinada desde sua fundação enraizou a ali-

enação entre seus cidadãos ao ponto de não perceberem o verdadeiro caos em que estavam

inseridos. Em todas as gerações de monarquia da Cidade existiram os opositores, assim também

ocorreu na República. Isso se dá porque não existe luta sem oposição. A diferença está em quem

quer tomar o poder e de quem parte a resistência. Ou seja, a diferença entre o Golpe e a revo-

lução está no sujeito desses processos. Nesse sentido, a “parábola do jogo de xadrez” na voz do

pirata Pons, um personagem tão enigmático quanto o Número Um, traz uma das principais

reflexões da obra de Giudice.

Ao contar a história da pior de todas as monarquias sob o controle da qual a Cidade já

esteve, Pons explica ao personagem-narrador que inteligência e tirania são qualidades opostas.

Vale notar o caso do líder máximo da Sétima Monarquia, que, por não compreender as regras

do jogo de xadrez, ordenou a execução de treze enxadristas da Cidade, desde um menino de

quatorze anos até um idoso de oitenta e nove anos. Tudo para evitar que frases de ameaças a

reis fossem pronunciadas em seu governo:

Um dia [o rei] cismou que o campeão de xadrez estava contra o regime, só porque o

sujeito teve a infelicidade de dizer que nenhum rei ficaria de pé se um peão atingisse

a sétima casa. [...] Quando o rei da Sétima tomou conhecimento, foi a conta. Achou

que o negócio era com ele...131

No entanto, nas palavras de Pons, “o rei mata os enxadristas mas não mata o xadrez”132.

Consequentemente, ao contrário do que o soberano esperava, a jogatina retornou na surdina

pelo irmão do menino de quatorze anos assassinado. Em seguida, o bispo que havia sido rebai-

xado e seus fiéis estavam jogando; a mulher, a prostituta, o bêbado, o ladrão, o policial, todos

“jogavam até sentir que a liberdade se resumia no prazer de um xeque-mate na estupidez mo-

nárquica”133. E a Cidade inteira se transformou em um grande tabuleiro de xadrez.

Todas as vozes e histórias presentes em Necrológio, Os banheiros e Bolero têm um

único propósito: despertar no seu leitor o poder de pensar, ou seja, de produzir e utilizar sua

principal arma contra os regimes opressores. Portanto, cabe aqui a afirmação de que toda arte é

131 GIUDICE,1985, p.266. 132 GIUDICE,1985, p.265. 133 GIUDICE,1985, p.267.

62

engajada, seja para reafirmar a ordem vigente ou para subvertê-la134. Assim, cada fragmento do

romance acrescenta uma característica importante no caráter do nosso herói durante sua transi-

ção identitária.

Novamente, Victor Giudice utiliza da ficção para problematizar questões sociais, lite-

rárias e filosóficas, tanto na estrutura do romance como em seu conteúdo. Pode soar passional,

e isso é exatamente o que eu almejo no decorrer desta tese. Paixão. A paixão pelo pensamento

que transcende a obra de Giudice nos faz compreender enfim sua obra como um romance de

desfundação. Posto isso, terminada a viagem pelo universo literário giudiciano, a qual visou

apresentar e analisar os mecanismos literários e algumas ideias presentes em sua obra, posso

dar continuidade à próxima etapa.

134 CONCEIÇÃO, 2010.

63

Se eu demorar uns meses

Convém às vezes você sofrer

Mas depois de um ano, eu não vindo

Bota a roupa de domingo e pode me esquecer

(ADELAIDE135, 1974)

135 Devido à canção “Acorda amor” ter sido censurada, na década de 1970, Chico Buarque usou pseudônimos

para burlar a ditadura.

64

3 REGULAMENTO E REI: O PROCESSO DE DESFUNDAÇÃO NACIO-

NAL

A sociedade monárquica de Bolero segue as leis dos dois erres: regulamento e rei. O

personagem Número Um desenvolve uma longa tese sobre como o excesso de regulamentos e

a obediência a esses limitam o desenvolvimento de um indivíduo e, consequentemente, da so-

ciedade uma vez que a desobediência ou qualquer atitude impulsiva pode ser motivo suficiente

para criação de novas regras.

No capítulo anterior, ao considerar essa tese como um manifesto sobre a criação artís-

tica observo que pode ser interessante utilizar essa mesma ideia para entender os caminhos que

percorri para transpor o conceito de romance de fundação à noção de desfundação. Nesse sen-

tido, retorno ao primeiro ano de faculdade e à disciplina de teoria literária. Lembro-me que uma

das primeiras informações que adquiri é de que um texto deve obedecer a certas regras para ser

considerado literário ou não-literário136 bem como para pertencer a um gênero ou outro; desse

modo, no decorrer das leituras e estudos tornara-se possível identificar os traços de desenvol-

vimento pelos quais os gêneros literários passaram ao longo do tempo.

Jacques Derrida em seu ensaio intitulado La ley del género afirma que pode ser limi-

tante submeter um texto apenas às normas de um gênero literário específico137, e que é impos-

sível praticar a lei da pureza. Dito em outras palavras, um texto não precisa pertencer a um

gênero específico, pois nele é possível participar um ou vários gêneros, ou nas palavras do

autor: “todo texto participa de uno o varios géneros, no hay texto sin género, siempre hay género

y géneros, pero esta participación no es jamás una pertenencia”138.

Pode-se também dizer que a própria literatura moderna já não compreendia a ideia de

submissão à distinção dos gêneros e notava-se uma necessidade de romper com os limites. Por

outro lado, todavia, ainda há uma preocupação em classificar o texto literário.

A literatura, segundo Todorov139, é uma instituição viva e por isso fruto de uma se-

quência de transgressões e combinações de diferentes gêneros: um novo gênero surge a partir

do próprio ato de transgressão de modo que a exceção é o que permite reconhecer uma regra

136 TODOROV, 1980, p.22. 137 Jacques DERRIDA, 1980. 138 DERRIDA, 1980, p. 10. 139 TODOROV, 1980.

65

como tal: “para ser exceção a obra pressupõe necessariamente uma regra; mas, além disso,

assim que reconhecida em seu estatuto excepcional, essa obra torna-se, por sua vez, uma regra,

graças ao sucesso de livraria e à atenção dos críticos”140.

Esse foi o caminho percorrido pelos gêneros literários ao longo dos séculos. Por exem-

plo, o romance tal qual o conhecemos hoje é um gênero que surgiu justamente com a burguesia

e com o início do processo de mercantilização da vida141. Ao longo dos séculos XIX e XX

podem-se observar transformações quanto à forma e à temática desse gênero literário, que muito

deve às narrativas orais.

Para Lucien Goldmann142, foi o processo de transformação da realidade social que

tornou necessárias essas transições e transgressões do romance. O autor tem como base a teoria

de György Lukács que, por sua vez, em uma de suas teses, caracteriza o gênero pela presença

de um herói problemático e um mundo degradado. Ou seja, no “novo romance” ocorre a trans-

posição da vida cotidiana para o plano literário de modo que é possível observar por meio da

história e da psicologia do personagem o retrato da sociedade em que o autor estava inserido.

De acordo com Goldmann:

o romance é, necessariamente, biografia e crônica social, ao mesmo tempo; fato so-

bremodo importante, a situação do escritor em relação ao universo que ele criou é, no

romance, diferente da sua situação em relação ao universo de todas as outras formas

literárias143.

Não há motivos para alongar essa questão pois, a partir desse momento, daremos aten-

ção à trajetória do romance de fundação brasileiro e alguns de seus principais autores e obras

literárias. A intenção, além de diminuir o isolamento de Victor Giudice nessa jornada, é também

notar as transformações e transgressões do romance brasileiro. Conforme Haroldo de Cam-

pos144 nos diz, o grande poder inventivo de escritores de diferentes épocas contribuiu para de-

cidir o futuro da literatura brasileira.

A ideia é pensar os romances de desfundação como uma consequência da trajetória da

literatura nacional aliada à história social brasileira, a ponto de conseguir analisar com maior

criticidade a conjuntura sociopolítica do Brasil a partir do livro Bolero.

140 TODOROV, 1980, p. 45. 141 LUKÁCS, 1962 apud Ferenc FEHÉR, 1997. 142 Lucien GOLDMANN, 1976. 143 GOLDMANN.1976, p. 12 144 Haroldo de CAMPOS, 1977.

66

3.1 UMA HISTÓRIA DAS FICÇÕES DE (DES)FUNDAÇÃO NO BRASIL

Tanto os historiadores quanto os filósofos sabem muito bem que o processo de forma-

ção dos estados-nação deve muito à literatura. Nas palavras de Otto Bauer145, aprendemos a

amar a nação quando se torna possível enxergar em suas especificidades a nossa própria natu-

reza, isto é, cada nação possui um conjunto particular de características físicas e mentais que

constitui o seu caráter nacional e possibilita diferenciá-la das outras.

A construção dos projetos de nação ganhou difusão por meio dos intelectuais, como

aconteceu no século XIX nos países latino-americanos. No caso do Brasil, aliados ao naciona-

lismo, os intelectuais românticos teceram as bases do que seria hoje considerada a literatura

brasileira. Dedicados ao projeto de nação, assumiram entre tantos compromissos políticos um

“sentimento de missão” que os levou a “[...] considerar a atividade literária como parte do es-

forço de construção do país livre”146.

A partir do distanciamento do racionalismo iluminista, os intelectuais românticos rom-

peram com os rigorosos padrões clássicos ao exaltar a natureza, os costumes do povo, as tradi-

ções etc. Assim, alguns artistas e intelectuais buscaram inspiração em sua própria realidade na

tentativa de superar os valores tradicionais econômicos e sociais. Nesse sentido, pode-se dizer

que a ideia de nação se constitui por força de um fato histórico, mas deveria constituir-se da

conexão étnica, da língua, da cultura, das raças ou, em outras palavras, um processo natural

resultante de uma evolução histórica. Entretanto, para usar os termos de Benedict Anderson, as

nações são “comunidades imaginadas”147 criadas em contextos históricos específicos e ligadas

a determinados interesses políticos.

De acordo com Antonio Candido, diante do contexto de consolidação do Estado Mo-

nárquico após a separação de Portugal, esse pareceu ser o “caminho favorável à expressão pró-

pria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que permitiam afirmar o

particularismo, e, portanto, a identidade, em oposição à metrópole, identificada com a tradição

clássica”148. A proclamação da independência por Dom Pedro I tornou-se um dos principais

acontecimentos da história do país. Havia, então, um governo que precisava se consolidar e

uma sociedade que necessitava reconhecer-se pertencente a uma nação.

145 Otto BAUER, 2000. 146 CANDIDO, 1971, v.1, p. 26. 147 Benedict ANDERSON, 2008. 148 CANDIDO, 2002, p. 20.

67

Esse processo foi conduzido sem grandes surpresas pela elite do país que, consequen-

temente, favoreceu transformações rasas onde prevaleceu o escravagismo, a monocultura ex-

portadora, o predomínio e crescimento do latifúndio e da educação elitizada.

Diante desse complexo contexto de forte oposição à dependência política, econômica

e cultural oriundas da condição de colônia, a construção da identidade nacional se prolongou

até o período republicano, e quiçá ainda seguimos na busca.

No Segundo Império, com os investimentos nas artes por Dom Pedro II a idealização

do Brasil ganhou impulso e os românticos forneceram à sociedade um ideal nacionalista ade-

quado às necessidades de autovalorização do país. Desenhou-se uma imagem que pretendeu se

afastar da antiga metrópole e possibilitar características originais para as independências cultu-

ral, política e nacional através de um passado que organiza “a origem” da nação. Assim, as

peculiaridades locais como a natureza, os sentimentos e a linguagem desenham um sistema

simbólico que colocou o indígena como foco das artes românticas de ênfase fundacional.

Ainda no Brasil Colônia, a figura indígena apareceu pela primeira vez no período lite-

rário denominado de Arcadismo não como o herói tão nobre tal qual acontece nas representa-

ções românticas, mas como simples elemento nativo. Por exemplo: O Uraguai (1769), de Ba-

sílio da Gama; Caramuru (1781), de Santa Rita Durão.

Em 1836, Gonçalves de Magalhães publicou Suspiros poéticos que, por sua vez, po-

deria ser considerado o precursor do Romantismo brasileiro devido sua contribuição para o

movimento atendendo as causas revolucionárias do período em oposição às formas e temas

clássicos.

No entanto, foi na simplicidade da Canção do exílio (1843), de Gonçalves Dias, que

de fato o nacionalismo e o amor à pátria fizeram-se presentes. O escritor também foi o respon-

sável por trazer pela primeira vez a heroicidade do índio sem honras à estética e aos valores

europeus com o poema I-juca-Pirama, de 1848.

O período romântico brasileiro prosperou na poesia, no teatro e, principalmente, na

prosa, tendo como principal nome o romancista José de Alencar. Antes mesmo de escrever

romances, o escritor já carregava em sua bagagem artigos e crônicas em oposição ao imperador

Dom Pedro II e seus apoiadores. Tendo como público-alvo a casta da burguesia letrada, sempre

publicou em revistas e jornais, incluindo seus textos literários como O guarani (1857) e Ira-

cema (1865). Este segundo romance lhe rendeu fortes críticas sob acusação de cometer excesso

68

de liberdade com a língua portuguesa149, o que mais adiante Mário de Andrade defenderá di-

zendo que significou a primeira tentativa de representar a brasilidade através da linguagem, ou

seja, da língua brasileira150.

Inicialmente, as obras de José de Alencar podem ser consideradas como um projeto de

fundação nacional para depois se tornar um projeto de fundação da literatura nacional. Segundo

Eduardo Coutinho, a literatura nacional ou os romances de fundação tem como princípio con-

tribuir para a grandeza de uma nação recém-formada, desse modo, O Guarani e Iracema são

essenciais para compreender o período que sucede a independência do Brasil151. O escritor

apresentou as diferenças entre os dois povos, nativo e colonizador, e “procurou deslocar o seu

olhar, propondo que se procurasse pensar, ao menos por alguns instantes, segundo a lógica dos

indígenas152”.

Nesse período do Romantismo os escritores buscaram no povo nativo o protagonista

que precisavam para autoafirmar o Brasil diante do colonizador, contudo, o efeito foi quase

insignificante diante da missão europeia de implantar uma civilização branca e cristã no país.

Nas palavras de Eduardo Coutinho,

no afã de delinear o que deveria vir a ser uma literatura própria, esses escritores in-

correram em contradições, que conferiram um toque especial a produção da época:

movimentos estéticos europeus eram importados pela intelligentsia brasileira e trans-

formados significativamente no contacto com a nova terra, mas a visão de mundo que

os havia originado se mantinha muitas vezes quase inalterada, ocasionando, no dis-

curso literário, dissonâncias insolúveis. Afirmavam-se valores locais com um olhar

internalizado da Europa e defendia-se a construção de uma nova tradição, que tinha

como referencial a antiga matriz.153

Esta contradição está exposta no próprio indianismo, a vertente mais expressiva do

Romantismo no Brasil que, por sua vez, também teve origem na Europa, todavia com foco nos

cavaleiros medievais. Seja lá ou cá, é inegável a importância histórica das obras de cunho fun-

dacional, por isso a consequente inclusão e permanência de leituras obrigatórias escolares

“como fonte de história local e de orgulho literário”154.

As ficções de fundação não são nenhuma novidade nos estudos literários, tendo em

vista que a temática do nacional está presente na história literária brasileira desde antes de sua

149 Outros escritores também foram alvos de críticas por subverter a língua portuguesa, como Feliciano de Casti-

lho (1800 - 1875) e Franklin Távora (1842 - 1888). 150 Mário de ANDRADE, 1942. 151 COUTINHO, 2002. 152 Éder SILVEIRA, 2007, p. 147. 153 COUTINHO, 2002, p.55-6. 154 SOMMER, 2004, p. 18.

69

formação. A literatura como tradição documental foi consolidada no Brasil junto à literatura do

colonizador a qual, através de relatórios históricos e geográficos, contribuiu para escrever a

história pós-invasão portuguesa e para obstruir a que já existia nessas terras. Além disso, em

outros momentos, a presença do nacional no gênero romance foi fundamental tanto para a lite-

ratura como para a história.

Na primeira metade do século XX, com a crise da República Velha, o Brasil enfrentou

problemas não só econômicos, mas também sociais, políticos, ideológicos e culturais. Se na

pós-independência houve uma preocupação e mobilização dos intelectuais com a construção de

identidade da nação que estava se formando, no Modernismo esta questão voltou a ser o centro

dos debates culturais. Inclusive, o historiador Éder Silveira sugere que, devido às interpretações

de cultura brasileira propostas por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, o movimento mo-

dernista poderia ser chamado de neorromantismo.

Porém, o primeiro diferencia-se por se apropriar de aspectos de várias correntes da

vanguarda europeia155 acrescentando um filtro crítico e paródico do movimento romântico.

Pode-se até dizer que o Modernismo teve seu impulso inicial importado da Europa, mas com o

decorrer do tempo os desdobramentos internos acabaram por destruir ou, ao menos, minimizar

esse primeiro ímpeto.

A Semana de Arte Moderna de São Paulo, realizada em fevereiro de 1922, e posteri-

ormente a Exposição Geral de Belas Artes em 1931, no Rio de Janeiro, também conhecida

como Salão Revolucionário, foram os marcos do movimento. Os dois eventos reuniram tanto

intelectuais quanto artistas que, esgotados da dependência econômica e cultural a qual o país

estava atrelado, procuraram rever os critérios estéticos e de brasilidade presentes na literatura e

em outras artes. Vale salientar que nesse momento o Brasil já apresentava uma imagem de

nação e um cânone constituído.

Não cabe a mim desenvolver longas análises e críticas ao movimento modernista, pois

outros mais autorizados já o fizeram. Porém, faz-se importante relembrar o seu contexto histó-

rico e literário bem como as questões relacionadas à identidade nacional. Em dezembro de 1917,

a pintora Anita Malfatti participou de uma exposição em São Paulo que chocou o público pre-

sente: ainda que não tenha sido intencional o espanto causado por suas ousadas pinceladas ex-

pressionistas e cubistas foi o pontapé para que em cinco anos se realizasse a Semana de Arte

Moderna.

155 ANDRADE, 1974.

70

Segundo Mário de Andrade, a inteligência brasileira passou a exigir uma expressão

artística que manifestasse a identidade nacional. O escritor também ressalta em sua palestra O

movimento modernista, proferida em 1942, que no âmbito literário e extraliterário o romantismo

foi “absolutamente necessário” devido seu “espírito revolucionário”. Em suas palavras,

Este espírito preparou o estado revolucionário de que resultou a independência polí-

tica, e teve como padrão bem briguento a primeira tentativa de língua brasileira. O

espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou o es-

tado revolucionário de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a se-

gunda tentativa de nacionalização da linguagem156.

Mário de Andrade entende que muitas das conquistas alcançadas no Modernismo só

foram possíveis por efeito do que os românticos iniciaram, principalmente no que diz respeito

às questões de brasilidade e identidade através da linguagem. De acordo com Eduardo Couti-

nho, esse movimento fez

uma leitura crítica da própria tradição brasileira, máxime do período romântico, mo-

mento crucial de afirmação da nacionalidade. Desse processo arguto e minucioso, re-

presentado pela própria imagem central do movimento, a da antropofagia, resultou

um discurso literário ao mesmo tempo afirmativo e crítico, que, embora ainda preo-

cupado com uma perspectiva ontológica de construção da “brasilidade”, substituiu a

naiveté romântica por tintas fortemente paródicas157.

Há nessa citação a referência ao Manifesto antropófago158, de Oswald de Andrade, que

foi esclarecedor durante o processo de revisão pelo qual a arte brasileira transitava. Segundo o

próprio Oswald, o manifesto foi um divisor de águas político do Modernismo brasileiro. Com

a fórmula paródica “Tupy or not tupy” abrindo seu texto, o escritor buscou na figura do índio

antropófago o mito de origem que precisava para “re-escrever a história da nacionalidade bra-

sileira como uma outra civilização, que cada vez mais precisava demarcar sua independência

com relação à Europa159”. Essa preocupação em consolidar a independência acompanhava os

literatos desde o Romantismo conforme observamos anteriormente, mas aqui ganhou uma ver-

são mais “agressiva e barulhenta”160.

Publicado em 1928, ainda nos efervescentes primeiros anos do movimento modernista

brasileiro a antropofagia foi como um ápice ideológico, uma aproximação com a realidade po-

lítica que orientou escritores, intelectuais e artistas para o futuro. Quase duas décadas após a

156 ANDRADE, 1974, p. 66. 157 COUTINHO, 2002, p. 58. 158 Oswald de ANDRADE, 1928. 159 SILVEIRA, 2007, p. 194. 160 SILVEIRA, 2007, p. 194.

71

publicação do Manifesto, em uma conferência na capital mineira intitulada O caminho percor-

rido, Oswald de Andrade afirmou que naquele momento se fazia necessário “ocupar nosso lugar

na história contemporânea. Num mundo que se dividiu em um combate só, não há lugar para

neutros ou anfíbios. [...] O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como guerreiro

da primeira linha”161.

Em 1944, já se havia vivenciado a Primeira Guerra Mundial e, às vésperas de finalizar

a Segunda, o movimento modernista seguia com força e tornava-se ainda mais necessário ao

Brasil reafirmar-se enquanto nação democrática. De acordo com Mário de Andrade, “o espírito

modernista reconheceu que vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso

instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade162”.

Dentre as grandes obras publicadas durante o movimento é importante destacar, a fim

de compreender as fases das ficções de fundação no Brasil, a obra de estética renovadora Ma-

cunaíma, publicada em 1928. Nela, o escritor Mário de Andrade buscou idealizar a síntese da

nação por meio de uma mescla de mitos, lendas e tradições populares de todo o país a partir do

relato sobre a vida de um herói/anti-herói que representa as três principais etnias do brasileiro:

negro, indígena e europeu.

Outro romance essencial chama-se Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, pu-

blicado quase trinta anos depois de Macunaíma. Desde então, não há mais lugar para a busca

por uma identidade nacional em termos ontológicos como as propostas anteriores sugeriram,

mas através da pluralidade de significação e da construção linguística múltipla e mutável163.

Diante dos contextos históricos e literários apresentados nota-se que as ficções de fun-

dação são uma constante no cânone brasileiro. Porém, não é simples definir um único conceito

tendo em vista que a “literatura nacional”164 possui múltiplas particularidades e objetivos que

variam de acordo com o período sócio-histórico da obra. De acordo com Eduardo Coutinho, “a

‘literatura nacional’ não será nunca um conceito homogêneo, mas, ao contrário, uma construção

em aberto, com amplas e diversas facetas, e que variará de acordo com as necessidades de

afirmação e autodefinição de cada momento”165.

161 ANDRADE, 1991, p. 100. 162 ANDRADE, 1974, p. 51. 163 COUTINHO, 2002. 164 Utilizei o termo “literatura nacional” para se referir à literatura com temáticas afins ao nacional e ao conceito

de nação, conforme propõe Eduardo F. Coutinho. 165 COUTINHO, 2002, s/p.

72

O espaço ocupado por temáticas como memória ou expressão social nacional possibi-

lita construir representações de uma realidade e do pensamento social. Em um dado momento

observa-se a inserção do indígena como parte formadora do Brasil e da ideia de nação. No

entanto, o branco colonizador, por necessitar, segundo os parâmetros da época, ser a “raça alfa”,

não estabelece uma relação de igualdade com o indígena na sociedade tampouco na literatura.

Em outro momento, surge o mito da democracia racial mascarado pela ideia de miscigenação

entre as raças formadoras do povo brasileiro: branco, negro e indígena. Em seguida, as carac-

terísticas culturais e linguísticas de cada região do país foram exaltadas na literatura como uma

reafirmação da diversidade e grandiosidade nacional e descentralização cultural.

Ainda que os movimentos artísticos sejam independentes e suas manifestações se

deem por diferentes motivações não é possível desvinculá-los dos principais acontecimentos

políticos que os anteciparam ou que lhes foram concomitantes. Nesse sentido, a política nacio-

nal serve também como alavanca para a literatura abordar questões de identidade e crítica, con-

sequentemente, passa a participar como colaboradora ativa da historiografia e enquanto forma-

dora de opinião entre os leitores.

Faz-se necessário entender que a literatura não se resume ou se define por replicar a

realidade, mas a importância de sua participação na formação da sociedade e na escrita da his-

tória é inegável. Se a sociedade brasileira como um todo foi palco de conflitos violentos e crises

políticas em diversos momentos desde a chegada de Portugal em 1500 ou, se preferirem, desde

1822 com a Proclamação da Independência, por que haveria de ser diferente no campo das

artes?

As ficções de fundação trazem muitas marcas de seu tempo, isto devido às obras do

gênero romance serem frutos de momentos de crise política nacional em que se fez necessária

a autoafirmação enquanto nação e sociedade. Essa ocorrência aparece principalmente nas tran-

sições e consolidações de regimes como independência nacional, proclamação da república,

ditaduras, golpes militares e parlamentares, redemocratização etc.

Com base nisso, pode-se afirmar que a permanência ou até mesmo a insistência166 das

temáticas do nacional e principalmente das ficções de fundação indicam que expressões discur-

sivas e ideologias influenciaram e ainda são presentes em muitas das formas de construção e

afirmação da identidade brasileira.

166 Doris Sommer e Flora Sussekind afirmam que os escritores insistem na temática do nacional e que isso pode

vir a ser um problema no desenvolvimento e crescimento estético da literatura. Mais adiante será possível se apro-

fundar e discutir essa problemática do nacional como tema literário constante.

73

Não é à toa que muitas obras do passado longínquo ou recente brasileiro se fazem tão

contemporâneas. O filósofo Giorgio Agamben nos convida a ter uma compreensão ampla do

conceito de contemporaneidade, que pode ser “voltar a um presente em que jamais estive-

mos167”. Ou seja, o autor propõe uma descontinuidade do próprio tempo de modo a fixar o olhar

na sombra do presente e nele entrever outras temporalidades. Assim sendo, o contemporâneo

pode ser a relação que o sujeito estabelece com seu próprio tempo (ou com qualquer outro

tempo) bem como com a origem (o passado), e que consiga questioná-la sobre suas consequên-

cias. Entender a literatura como um reflexo de sua sociedade exige que constantemente se faça

o exercício de retornar às origens para compreender processos recentes.

Essas ideias nos reportam aos estudos desenvolvidos por Doris Sommer fundamenta-

dos em seu livro Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina, o qual reitera

a concepção de que a literatura tem a capacidade de intervir na história e contribuir com sua

construção. Ao condicionar os aspectos fundacionais de um romance no fato de um dia lhe ser

atribuído a obrigatoriedade de leitura nas escolas de seus respectivos países, a autora também

assume nesse contexto a função da literatura como mecanismo historiográfico, pois a partir da

sua leitura podem-se obter informações sobre a história, os hábitos e os sentimentos que preva-

leciam em uma determinada época e que se modificaram de acordo com os acontecimentos

sociais e políticos nacionais.

Além disso, a autora contesta a questão de as obras de cunho histórico e político terem

outros interesses subentendidos além do artístico e da crítica social transcendente. Prossegue

dizendo que haviam os escritores que pareciam estar mais integrados às lutas partidárias e aque-

les que não desejavam ser uma liderança política, que “escreviam a partir de uma posição ‘na-

tivista’ ou reformista, a fim de fazer mudar a opinião sobre, digamos, relações de raça ou polí-

tica econômica”168.

No século XX há exemplos de escritores que, concomitantes à vida literária, também

exerceram importantes papéis na política nacional:

em 1948, o romancista Rómulo Gallegos se tornou o primeiro presidente livremente

eleito na Venezuela; em 1962, o romancista e contista Juan Bosch teve vitória esma-

gadora na República Dominicana [...]; e, em 1990, Maria Vargas Llosa quase venceu

a campanha pela presidência do Peru169.

167 Giorgio AGAMBEN, 2009, p. 70. 168 SOMMER, 2004, p. 19. 169 SOMMER, 2004, p. 20.

74

Sobre o Brasil170, Doris Sommer limita-se a discorrer a respeito da vida literária e po-

lítica de José de Alencar. Paralelamente à sua carreira de escritor, o precursor do romance fun-

dacional no país ocupou diferentes cargos políticos durante o Segundo Reinado: deputado geral

pelo Ceará e ministro da justiça171. Vale destacar que há muita discórdia sobre os seus posicio-

namentos políticos; enquanto uns creem que seja progressista e liberal, outros consideram-no

um conservador liberal.

Os comentários da pesquisadora a respeito de Alencar apontam o clima de conciliação

entre conservadores e liberais no governo, seu posicionamento sobre a escravização e a repre-

sentação dos negros na literatura. Em suas palavras, “o escravocrata brasileiro José de Alencar

certamente tentava escrever sobre os negros também quando escrevia sobre os índios conveni-

entemente submissos”172. De fato, é indiscutível a predominância dos povos indígenas como

representante da cor da terra nas obras alencarianas, bem como a supremacia dos brancos e a

omissão dos negros no processo de construção da nação brasileira.

Presente nas peças de teatro do autor, o negro resumia-se ao estereótipo de inferiori-

dade, característica ainda constante na literatura e sociedade contemporâneas, como serviçais e

subalternos, sendo a morte a conclusão eminente das histórias de Alencar. Os protagonistas

negros de Alencar têm o mesmo fim trágico de Iracema e certa semelhança com a história de

Peri, de O guarani. Na peça Mãe, tem-se uma mulher negra que tira a própria vida para que o

filho mestiço (mulato), representante da união das raças, não conviva com o obstáculo de ter

familiares negros vivos e, assim, tenha oportunidades melhores que a dela. E, em O demônio

familiar, o negro escravo recebe a alforria e é mandado embora da casa pelo senhor branco

ofendido enquanto Peri, também escravo, é mandado embora na companhia da filha do senhor

português; este, por sua vez, na sequência da trama comete suicídio. Segundo Doris Sommer,

“o suicídio do aristocrata pode não ser uma expressão de ‘inferioridade’ racial, como é em Mãe,

porém o suicídio faz dele um obstáculo para seu próprio projeto colonizador”173.

170 Para além dos citados pela autora, muitos escritores brasileiros do século XX participaram ativamente da vida

partidária nacional e alguns fizeram ou tentaram carreira política. Por exemplo: Oswald de Andrade foi candidato

à deputado federal em 1950, pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT), mas antes foi militante, de 1931 até

1945, no Partido Comunista Brasileiro (PCB); Graciliano Ramos também foi ativo na militância do PCB, ao qual

se filiou formalmente em 1945; Jorge Amado foi deputado federal mais bem votado de São Paulo, também pelo

Partido Comunista, em 1945; por fim, o próprio Victor Giudice não era apenas um crítico ferrenho da sociedade e

política brasileira: o escritor foi filiado ao PDT durante muitos anos.

171 José de Alencar foi por muitos anos filiado ao Partido Conservador, pelo qual foi eleito várias vezes ao cargo

de deputado geral do Ceará. 172 SOMMER, 2004, p. 37. 173 SOMMER, 2004, p. 185.

75

Para finalizar essa questão, retomo as palavras de Nelson Werneck Sodré sobre a di-

ferença do tratamento dado aos negros e aos indígenas na literatura nacional do século XIX:

Trata-se, no fundo, do conceito que se esmerava em ver no índio o homem bom por

natureza, bom por origem, dotado da bondade natural que tanto seduziu os Enciclo-

pedistas. Em contraposição, o negro seria ruim, ruim por natureza, ruim por origem,

dotado de ruindade natural, tema que tanto seduziu a ideologia do colonialismo174.

Como visto, os indígenas foram os primeiros protagonistas dos romances de fundação

do século XIX juntamente com o colonizador. Sommer analisa variados romances latino-ame-

ricanos de grande repercussão no século XIX175 a fim de chegar a um consenso: todos eles, uma

vez que são frutos dos processos de independência nacional e, devido a isso, têm como objetivo

concretizar uma ideia de nação apoiando-se em um enredo de amor erótico. Na perspectiva da

pesquisadora, os romances reforçam respectivamente dois sentimentos: o de amor à pátria e o

de amor (apaixonado) heterossexual.

Ainda que seu foco seja os romances do século XIX, ela menciona brevemente alguns

exemplos de escritores e romances do século XX acusando-os de, apesar de negarem as ficções

de fundações, repetirem em suas obras os mesmos moldes adotados por seus antecessores. No

entanto, acredito que nesse ponto haja uma problemática que reduz a potência das ficções do

século XX a moldes pré-estabelecidos, e também falta especificidade ao generalizar o negaci-

onismo sobre os românticos.

O conjunto de questões levantado pela autora sobre os romances do século XIX con-

trastado com os do século XX, conforme examinarei mais adiante, leva-me a questionar as

transformações do próprio gênero romance bem como a (s) ideia (s) de nação preeminente nos

períodos para, então, aprofundar-me na noção de desfundação.

Sigo a mesma premissa de que não existe um gênero literário puro176 para explicar

essa relação. Ao entender que todo gênero compreende um ou mais gêneros, e que isso é con-

sequência de um longo processo de transgressões e subversões, penso que a evolução do ro-

mance somada ao contexto histórico possibilita a subversão dos romances de fundação. Em

outras palavras, as “desobediências” aos moldes das ficções de fundação deram margem à lei-

tura das ficções de desfundação. Não são conceitos antagônicos; pelo contrário, fundação e

desfundação são complementares.

174 Nelson Werneck SODRÉ, 1995, p. 157. 175 Os romances analisados por Dóris Sommer são Facundo e Amalia (Argentina), Sab (Cuba), Martín Rivas

(Chile), El Zarco (México), O Guarani e Iracema (Brasil). 176 DERRIDA, 1980; TODOROV, 1980.

76

As ficções de fundação se apresentam como uma consequência social em que a cons-

trução de uma história, de uma sociedade e de uma identidade nacional faz-se necessária. Dessa

mesma forma deve-se considerar a ficção de desfundação, mas, em contrapartida, essa última é

vista como um efeito das expectativas criadas pelas primeiras.

Para compreender a sutileza das similaridades e distinções entre ambas, primeiramente

é necessário ter consciência de que o Brasil é um país em constante construção por consequên-

cia dos prejuízos causados pelos governos autoritários e pelas transições e consolidações de-

mocráticas fracassadas. Portanto, a ficção de desfundação não significa a desconstrução de uma

identidade nacional, muito menos prevê uma nova. Sua singularidade reside no desenraiza-

mento de concepções sobre o país e seus cidadãos sem o caráter utópico tão comum nas litera-

turas nacionais. Dito em outras palavras, o leitor deve encarar uma identidade política e social

sem idealizar um passado, um presente e um futuro.

As histórias de amor, segundo Doris Sommer, são utilizadas pelos romancistas do sé-

culo XIX como estratégia na construção da sociedade, ou seja, como forma de dar um padrão

social ao novo mundo:

a paixão romântica [...] forneceu uma retórica para os projetos hegemônicos, no sen-

tido gramsciano de conquistar o adversário através do interesse mútuo, ou do “amor”,

ao invés da coerção. [...] E mesmo quando terminam com um casamento satisfatório,

o fim do desejo para além do qual as narrativas se recusam a ir, a felicidade projeta a

realização do crescimento e da consolidação nacional, um objetivo que passa a ser

visível177.

A presença dessas histórias e, principalmente, a felicidade do casal correspondem ao

êxito no processo de consolidação da nação. Então, conforme a leitura de Dóris Sommer, pode-

se justificar o fato de os romances de fundação serem uma constante na literatura brasileira

devido às representações de relações românticas nem sempre gozarem de finais felizes:

Os exemplos clássicos na América Latina são quase inevitavelmente histórias de

amantes perseguidos pela desgraça representando determinadas regiões, raças, parti-

dos, interesses econômicos e outros. A paixão deles pela união conjugal e sexual

chega até um público sentimental na esperança de conquistar as mentes partidárias

juntamente com seus corações178.

Dóris Summer elege Iracema e O Guarani de José de Alencar para sua análise sobre

os romances de fundação, pois são os mais populares no que diz respeito à construção da iden-

tidade nacional. Além da presença dos povos indígenas como figura nacional, a autora frisa nos

romances a relação das histórias de amor e o processo de consolidação política. De igual modo,

177 SOMMER, 2004, p. 20- 21. 178 SOMMER, 2004, p. 20.

77

seguirei com os mesmos exemplos, do século XIX, e trarei outros do século XX, destacando

algumas questões pertinentes para a análise.

Em Iracema, uma indígena tabajara homônima ao título do romance apaixona-se pelo

conquistador europeu Martim, o qual a chama de “minha esposa”, como se isso legitimasse a

relação matrimonial dos dois. Ainda assim, ele a abandona grávida. Iracema dá à luz um filho,

Moacir, que significa “filho da dor”. O guarani é protagonizado por Peri, um nobre indígena

brasileiro, e por Cecília, também conhecida como Ceci, uma bela moça que descendia de euro-

peus.

Enquanto no primeiro romance tem-se uma mulher indígena que se apaixona por um

homem branco, no segundo um homem indígena se apaixona por uma mulher branca. Peri era

a exceção entre os seus porque, apesar de escravo, possuía características dignas de respeito

entre os seus senhores. Do ponto de vista do narrador, seria como uma figura nobre, um cava-

lheiro de cor que se sacrifica para satisfazer os caprichos da mulher branca, como certa vez em

que a jovem lhe pede para descer em um penhasco cheio de serpentes a fim de resgatar seu

lenço perdido.

Iracema, uma mulher livre morre ao dar à luz, mas o elemento indígena permanece em

seu filho. Metade indígena e metade branco, Moacir deixa o espaço selvagem para ser criado e

educado por seu pai português. Por outro lado, Peri, apesar de falar e agir como branco, é um

indígena e mantém-se vivo até o final da narrativa. A aparente igualdade entre os brancos do-

minantes e os indígenas subalternos em O guarani “somente é possível porque Peri escolhe se

embranquecer. Um traidor de sua própria tribo, como Iracema”179, que larga tudo para viver

com um branco.

Diferente de outros escritores que simbolicamente exterminaram os indígenas por

completo da história através de sua representação literária, José Alencar mantém vestígios da-

queles que primeiro estiveram aqui. De acordo com Doris Sommer, devido à situação política

da época pedir certa conciliação entre aqueles passíveis de formar a sociedade brasileira, “Mar-

tius180 e Alencar são forçados a concluir que o elemento indígena fora nobre, generoso, poético,

até mesmo tecnicamente avançado”. Desse modo, o projeto de nação resumiu apenas em duas

raças os responsáveis pela formação do brasileiro. E se esse posicionamento fosse diferente, o

179 SOMMER, 2004, p. 190. 180 Doris Sommer está se referindo a Karl Friedrich Philipp von Martius, o naturalista alemão que venceu o con-

curso de ensaios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1843.

78

brasileiro estaria desde sempre condicionado a um grau de inferioridade em relação ao europeu

por não o conter em seu gene identitário.

Dentro da alegoria política, esses casos de amor entre o colonizador e o indígena re-

presentam a consolidação do processo de transição política e, consequentemente, a fundação da

nação. Em síntese, o final feliz de Iracema representado pelo nascimento de seu filho e seu

retorno à natureza através de sua morte e metamorfose em árvore, bem como o laço estabelecido

com o europeu diz respeito ao futuro auspicioso do povo brasileiro. Já a união gratificante do

casal de O guarani representa, em uma primeira leitura, também a união dos povos tendo em

vista a ambientação da narrativa em um passado distante.

Porém, a obra permite outra leitura que a traz para uma realidade mais específica e

contemporânea à época de escrita de José de Alencar. Doris Sommer lê a união de Peri e Ceci

como o equilíbrio da conciliação entre liberais e conservadores que, por sua vez, garantiu ao

Brasil uma aparente política autônoma e estável. Nas palavras da autora:

Peri é a metade da equação equilibrada que ele forma com Ceci. Ela primeiramente o

acompanhou porque estava seguindo as ordens de seu pai, assim como os conserva-

dores foram reconciliados com os liberais, seguindo as ordens de Dom Pedro. Porém,

no final é o amor que a une ao índio181.

Anos após a publicação de O guarani, José de Alencar transpareceu sua insatisfação

com o governo de Dom Pedro II, provavelmente por ter perdido a nomeação de senador na

época. O fato é que o ritmo lento e indeciso do governo lhe causou incômodo, bem como a

imposição de aliança entre partidos opostos. Apesar de o governo de conciliação não ter funci-

onado tal qual o esperado, ainda assim, os “casamentos políticos e culturais” realizados por

Dom Pedro oportunizaram conquistas promissoras para o Brasil. Nas palavras de Doris Som-

mer, “talvez a conciliação nunca tivesse dado certo, ou talvez fosse apenas um caso de amor

passageiro. Contudo, o caso de amor deu frutos assim como aconteceu com Iracema e Mar-

tim”182.

A harmonia esperada pelas relações estabelecidas nos romances de fundação não está

no fato de serem satisfatórias ou não. Afinal, os casos de amor romântico representados desem-

penham um papel importante na história e possibilitam duas leituras: uma sobre a construção

da identidade nacional; e uma segunda, sobre projetos idealizados do futuro do país, como se

percebe claramente em O guarani.

181 SOMMER, 2004, p. 197. 182 SOMMER, 2004, p.200.

79

Quando consideramos os laços de afetividade entre o casal protagonista, Peri e Ceci,

como uma alegoria da real situação política brasileira, podemos observar outra questão sobre a

noção de desfundação: as transições de regime não consolidadas contribuem com a recorrência

da temática do nacional na literatura brasileira.

Ao refletir por essa perspectiva, é possível constatar que há uma mudança progressiva

nas relações amorosas dos romances de fundação bem como nos projetos de nação do século

XIX para o século XX. Do ponto de vista de Sommer, “assim como os índios deste [Alencar],

a versão modernista abria-se para os europeus, mas agora principalmente com a boca”, diz a

autora referindo-se ao canibalismo proposto no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade

e às novas formas de retratar a brasilidade.

Apesar dos escritores do século XIX como José de Alencar, Machado de Assis etc.

empenharem-se em fazer uma literatura totalmente brasileira, não é possível negar que os mo-

delos literários eram importados do hemisfério Norte. Esse mesmo empenho retornou com força

logo no início do século XX, quando se verificou um ímpeto dos artistas e escritores em olhar

para outros lugares além dos centros europeus, da efervescente Rio de Janeiro e da caótica São

Paulo, as principais referências culturais, políticas e econômicas da época.

Mais uma vez a literatura recorreu à natureza para construir uma nova (ou melhor, uma

autêntica) perspectiva sobre o Brasil e, consoante a isso, para a literatura nacional. Porém, dessa

vez, diferente do século XIX, a literatura estava aliada à crescente industrialização do país e

suas consequências sociais.

Em 1920, o mundo acabara de ter uma de suas experiências de guerra mais traumáticas,

a I Guerra Mundial. O Brasil também sofrera consequências internas e externas, pois se encon-

trava em plena crise da República Velha e às vésperas do Golpe de 30, momentos cruciais para

a nossa história. Comentei anteriormente a importância desse momento para o contexto artístico

brasileiro, vide a Semana de Arte Moderna em 1922 e sua repercussão nos anos posteriores.

Mário de Andrade foi um dos nomes que mencionei como destaque desse período com

a obra Macunaíma, publicada em 1928. A trajetória do protagonista no romance faz com que o

leitor viaje pelos contrastes do país: da floresta até o centro industrial. Além disso, o escritor

utiliza da rapsódia como mecanismo para mostrar todo seu conhecimento de cultura brasileira:

são lendas, mitos, tradições, comidas, crenças etc. que desenham um Brasil diverso, multicul-

tural e proporcionalmente desigual.

80

Nascido na floresta amazônica, o protagonista Macunaíma é herói e anti-herói como o

próprio título propõe: é um “herói sem nenhum caráter”. Ele possui características que o fazem

nem melhor nem pior que outra personagem; ou se levarmos para o nível extraliterário, que

outra pessoa.

Os heróis e heroínas dos romances de fundação precisam passar por inúmeras situações

conflituosas para ao final ascender à natureza seja através do amor, da justiça, do fracasso, da

autocrítica ou do suicídio. Esses romances pressupõem a existência de uma harmonia no texto

para que, então, a alegoria estabelecida com a história nacional seja a consolidação do projeto

político em questão. Em outras palavras, por meio da alegoria de uma sociedade ainda em for-

mação com identidades plurais183,os romances almejam alcançar o projeto nacional de tornar o

brasileiro um cidadão consciente e partícipe da construção da nação184.

Nesse sentido, Mário de Andrade atribui ao personagem múltiplas características que

não o enaltecem, mas colocam-no o mais próximo possível de um cidadão brasileiro comum:

uma mistura de malandragem, egoísmo, vingança e, ao mesmo tempo, inocência. Suas escolhas

no decorrer da narrativa surpreendem o leitor por ir na contramão do esperado de um herói

nacional, principalmente o gosto pela vida fácil e prazerosa.

No que diz respeito ao ponto-chave da questão dos romances de fundação, o amor

romântico por vezes não parece ser o forte do personagem. Macunaíma se envolve com inúme-

ras mulheres. Nesse caso, a relação amorosa do personagem, nos termos de Doris Sommer, não

é satisfatória, pois não há um relacionamento promissor. Nesse momento, poder-se-ia dizer que

Macunaíma possibilita a leitura como um romance de desfundação, pois admite o Brasil e o

brasileiro tais quais são sem impor expectativas, aceitando e lidando com suas derrotas.

Por outro lado, ao final da narrativa, Macunaíma reconcilia-se com o seu interior e

exterior, ou seja, com a natureza e suas origens — assim como Iracema; e ascende aos céus

encontrando o júbilo final. É através da desilusão amorosa que o personagem transforma-se

postumamente na constelação Ursa Maior185 para passar a eternidade ao lado de Ci, sua amada,

que outrora virara uma estrela após a morte do filho. Portanto, sua metamorfose representa a

183 Cabe ressaltar que a alegoria da formação do brasileiro faz-se por Macunaíma juntamente com seus dois irmãos:

Maanape e Jiguê. As representações, portanto, do europeu na transformação de Macunaíma, do africano na pele

de Jiguê, o irmão feiticeiro, e de Maanape, o irmão que nasce e morre índio. 184 Maria Veloso SANTOS, 1999. 185 Constelação do hemisfério celestial Norte formada por inúmeras estrelas.

81

possibilidade de melhora do personagem (ou do brasileiro), e também a harmonia que o texto

precisa para que a alegoria política proposta na obra seja satisfatória ou que anseie por isso.

Daremos agora um salto temporal de 1928 para 1956, ano de publicação do romance

Grande sertão: veredas. Outro ótimo exemplo de ficção de fundação, o romance de Guimarães

Rosa destoa de Macunaíma mas nem tanto pois, ao que tudo indica, o Brasil ainda não havia

constituído uma política emancipatória nem o sentimento de comunidade186. Por consequência,

o nacional persiste como temática recorrente nas obras literárias do período. Claro que, por

questões de contexto político e social, tanto o conceito de nação como o de formação nacional

têm significados distintos daqueles de meio e até mesmo de um século atrás.

O romance de Guimarães Rosa destaca-se por ser uma proposta diferente, mas que

segue a linha das produções anteriores do autor, principalmente Sagarana, de 1946. As obras

ambientadas no sertão brasileiro possivelmente são frutos de imersões que o escritor teve du-

rante viagens ao sertão mineiro em 1952, e do período em que atuou como médico também em

Minas Gerais, em 1945. A própria estrutura da obra denuncia a importância dessa marcação

regional. Por exemplo, o tratamento da linguagem sertaneja característica de uma narrativa oral

contrasta com o modelo tradicional de escrita literária, bem como o modelo de romance de

formação erudito. Ainda que dialogue com a proposta defendida por Mário de Andrade de uma

língua brasileira, Rosa propõe uma pluralidade linguística e semântica.

O enredo coloca em cena problemas cruciais da história do país desde o período do

desenvolvimentismo getulista até a eleição de Juscelino Kubitschek, ou seja, vai do Golpe de

30, passa pelo Estado Novo e chega até a República Nova. O desejo de integração da sociedade

brasileira em termos econômicos e sociais faz contraste com a modernização capitalista traba-

lhando intensamente na segunda metade do século XX. Nesse sentido, Grande sertão: veredas

ao ser lido como um romance de fundação contextualiza um processo de transição e consolida-

ção de um projeto mal encaminhado e pouco desenvolvido. Segundo Danielle Corpas, os estu-

dos de Heloísa Starling a respeito da obra indicam que

a formação da esfera política na república brasileira é descrita como uma sucessão de

tentativas malogradas de consolidação de um todo dotado de organicidade, tentativas

alegorizadas pelas atuações dos sucessivos chefes jagunços (Medeiros Vaz, Joca Ra-

miro, Zé Bebelo e o próprio Riobaldo)187.

186 Heloísa STARLING, 1999. 187 Danielle CORPAS, 2008, p. 266.

82

A conjuntura organizacional do sertão aliada ao sofrido drama amoroso de Riobaldo

acabam por caracterizá-lo como um herói problemático188. O conflito reside no fato do prota-

gonista apaixonar-se profundamente por um colega, o que provoca nele vários sentimentos con-

traditórios e de repressão já que a paixão homossexual era uma relação impossível de ser aceita

no meio de jagunços. Esse conflito o leva a uma intensa reflexão sobre a existência humana até

que, ao final da trama, lhe é revelada a identidade feminina do companheiro após morrer em

um duelo.

Mais uma vez temos indícios que tornaria possível a leitura da obra enquanto romance

de desfundação se não fosse pela revelação final. Grande sertão: veredas sugere uma releitura

do país ao alegorizar problemas de base no processo de formação do Brasil moderno, porém

também sinaliza possibilidades esperançosas de superá-los.

Tanto os desfechos de Iracema e Macunaíma quanto o de Grande sertão: veredas

apresentam relações amorosas (heterossexuais) correspondidas, mas sem o famoso final feliz.

No entanto, os protagonistas são compensados de outra forma para alcançar a harmonia em prol

do projeto de nação, conforme o contexto histórico-social a que remete.

A crítica estadunidense Doris Sommer encara o percurso literário da segunda metade

do século XX como um tipo de “colapso da história”. Segundo a autora, esse processo iniciado

durante o fenômeno boom não fora bem-sucedido, principalmente no que diz respeito à pro-

posta inicial de distanciar-se dos romances de fundação do século anterior189.

Além disso, propõe que a literatura latino-americana do século XX, ou de “terceiro

mundo” como destaca, possui uma leitura difícil devido à “incansável experimentação formal,

técnicas que buscavam deitar por terra o percurso linear da narrativa tradicional”190. Cita como

exemplo Cien años de soledad (1967), de Gabriel Gárcia Marquez, e questiona os reais propó-

sitos da obra tendo em vista que, segundo sua ótica, trata-se da história da Colômbia, ou seja,

de um romance de fundação:

As paródias do Boom, suas finas ironias e seu estilo jocoso são uma espécie de nega-

ção infindável que eventualmente irá produzir o efeito contrário, isto é, a admissão,

de modo que seus círculos viciosos narrativos comentam a frustração dos escritores

bem como as desilusões com o desenvolvimento: quanto mais se deve resistir ao ro-

mance nacional, mais ele parece irresistível191.

188 Davi ARRIGUCCI, 1994. 189 Doris Sommer utiliza como justificativa entrevista com escritores latino-americanos, como Vargas Llosa e

Carlos Fuentes que, na época, renegaram as produções anteriores ao Boom e enalteceram o amadurecimento da

literatura latino-americana. 190 SOMMER, 2004, p.16. 191 SOMMER, 2004, p.17.

83

A meu ver, o romance de Gabo rompe com toda uma tradição literária e, desse modo,

ressignifica a literatura nacional. De certa forma, o mesmo acontece com Macunaíma e Grande

sertão: veredas. Nos dois momentos, não há mais lugar para o que as propostas anteriores su-

geriram tendo em vista a definição de nação como um produto inacabado de um processo his-

tórico ininterrupto e em andamento. Por isso, apesar de insistirem em pautar os projetos de

nação e identidade nacional não seguem os mesmos moldes e padrões anteriores dos romances

de fundação.

O que Doris Sommer chama de “insistência” aos romances de fundação, Flora Sus-

sekind denomina de “repetição” e “eterno retorno” naturalista. Segundo as autoras, a literatura

latino-americana e a literatura brasileira do século XX, respectivamente, voltam-se sempre para

questões identitárias da nação seja através da literatura fantástica, da parábola, do testemunho,

da escrita de si etc. Conforme dito anteriormente, esse trajeto da temática do nacional como

uma constante ocorre de maneira espontânea.

O imediatismo desses retornos não nos soa muito bem, tendo em vista que são conse-

quências de crises políticas em níveis macro e micro, “sobretudo quando se encara o presente

com desalento, a possibilidade que eles venham a se repetir é desesperadora”192. Assim, é pos-

sível afirmar que esse “eterno retorno” aos romances de fundação e ao naturalismo está condi-

cionado à crença em um futuro utópico, onde as deficiências nacionais sejam solucionadas sem

encarar as mágoas e feridas do passado. E, com base nos estudos de Doris Sommer, todo esse

processo está representado alegoricamente pelas relações amorosas heterossexuais.

Flora Sussekind observou que o estudo isolado desses romances dificulta compreendê-

los enquanto um sistema específico e dotado de continuidade histórica193. Além disso, parece

haver um quê de verdade nas linhas ou nas entrelinhas dessas obras de modo que se dissolve “a

ficcionalidade própria do romanesco e obriga-se o leitor a olhar o fato ficcional sempre em

analogia a um referente extratextual”194. No entanto, ao fazer uma linha do tempo da literatura

brasileira começa-se a perceber mudanças na forma de expressão e de concepção da realidade

exposta nos romances naturalistas e, principalmente, nos que possibilitam a leitura pelo viés

das ficções de fundação. Assim, constata-se que a repetição não é em sua totalidade conserva-

dora, mas pertence a um grupo diferencial. Digamos que o objetivo seja o mesmo, porém a

192 Flora SUSSEKIND, 1984. p. 61. 193 SUSSEKIND, 1984. 194 SUSSEKIND, 1984, p. 38.

84

prática corresponde às expectativas de cada período, à evolução do gênero e ao constante de-

senvolvimento estético da literatura.

As ideias naturalistas e o conceito de ficção de fundação se repetem pela impossibili-

dade de restaurar e representar o projeto de nação. Ao mesmo tempo em que a noção de des-

fundação demanda a necessidade de encarar a realidade nacional com suas divisões, traumas e

transições não consolidadas. Nesse sentido, para dar continuidade aos exemplos de (possíveis)

romances de (des) fundação direciono meu olhar agora para o romance pós-64.

A ditadura militar das últimas décadas do século XX (1964-1985), junto a todos os

acontecimentos políticos anteriores, foi um divisor de águas no que tange aos romances de fun-

dação. Até o final da década de setenta percebia-se nos romances muito mais o tom de denúncia

e escracho contra o regime ditatorial do que uma proposta de projeto nacional. Isso ficaria a

cargo das obras posteriores, aquelas construídas à luz dos anos oitenta, final da ditadura e reto-

mada da redemocratização195.

A obsessão pelo retrato de nacionalidade volta ao centro das discussões dos intelectu-

ais e das criações artísticas. Flora Sussekind observa esse fenômeno nos níveis “tanto de lin-

guagem quanto comportamentais. Tanto nos textos quanto na vida literária brasileira”196. As

noções e percepções de nacionalidade também sofrem alterações no decorrer dos anos e das

fases políticas do país, de modo que os romances publicados na década de 1970 não apresentam

mais o molde proposto por Doris Sommer. Segundo Flora Sussekind,

Torna-se ainda mais difícil atribuir identidade a um país marcado pela dominação

colonialista e neocolonialista e por uma trajetória cultural cheia de “influxos exter-

nos”, cortes e descontinuidades, mais próxima do desenraizamento e da “gravitação

de ideias” do que de possíveis unidades nacionais197.

Nesse contexto, as histórias de amor romântico e heterossexuais não servem mais

como base para as obras. Grande Sertão: veredas, de certa maneira, serviu como precursor do

debate de uma nova proposta de relações afetivas como centro narrativo. A própria ideia de

herói vem sendo desconstruída desde o Modernismo, uma vez que em uma sociedade marcada

por traumas não há espaço ou sanidade para procurar e esperar um salvador.

A literatura pós-64, sobretudo da década de setenta, substitui as histórias de amor ro-

mântico por problemáticas sociais, políticas e literárias dentro de diversos contextos. Contudo,

195 O Brasil não tivera um processo de democratização consolidado, tendo em vista os frequentes golpes que o

Estado sofrera ao longo de sua história: conforme destacarei no último capítulo desta tese. 196 SUSSEKIND, 1985, p. 27. 197 SUSSEKIND, 1984, p. 43.

85

de forma alguma busca uma solução para esse conjunto de questões uma vez que o enredo

prioriza o escracho e a leitura não deixa espaço para a passividade por parte do leitor.

Com o decorrer do tempo, passa-se a manifestar nas criações artísticas uma renovação

nos moldes de narrar como a escrita fragmentada, o alto fluxo de consciência, a falta de linea-

ridade narrativa e a atenuação dos limites entre poesia e prosa198. Esse processo de transforma-

ção da arte articula-se a acontecimentos extraliterários, ou seja, está condicionado a fatores

externos à obra199; no caso, a uma sociedade altamente dividida e despedaçada que demanda

uma nova figuração da arte.

No âmbito da prosa, muitos escritores abandonaram o Realismo e passaram a olhar o

mundo complexo e em constante mudança tal qual o próprio gênero literário. Incidente em An-

tares, de Érico Verissimo, me parece ser uma boa ideia para ilustrar a transição da narrativa

pós-64. Publicado em 1971, o romance desenha com nitidez os primeiros anos da ditadura mi-

litar, bem como a mudança estilística que muitos escritores optaram ou fizeram por necessidade

dada a forte repressão às artes. Érico Veríssimo destacou-se na história da literatura brasileira

por ser um escritor clássico e de romances históricos, e é nesse sentido que Incidente em Anta-

res200 se diferencia de suas demais obras.

O romance, dividido em duas partes, relata a história de Antares desde sua fundação

até o dia do “incidente”, uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963201. Em um primeiro momento

a obra apresenta-se como romance histórico a partir de um narrador-historiador. Porém, ao con-

trário das outras obras do escritor, o narrador de Incidente em Antares não se mantém em ter-

ceira pessoa, mas alterna a narração com a primeira pessoa do plural. Essa estrutura narrativa

não é possível em um discurso oficial de modo que as intrusões, opiniões e interrupções do

narrador-historiador atuam como um dialogismo paródico com a tradição historiográfica.

No segundo momento, a narrativa dá um salto para o absurdo e a sátira política. Para

escrever essa parte o escritor abandona o narrador-historiador e passa a relatar os fatos a partir

198 CAMPOS, 1977. 199 Theodor ADORNO, 1982. 200 Maria da Glória BORDINI (2006) nos fornece uma informação muito interessante sobre o processo criativo de

Veríssimo, que se assemelha à intratextualidade de Victor Giudice. Segundo a pesquisadora, alguns personagens

do inacabado A hora do sétimo anjo migraram para as páginas de Incidente em Antares, como Valentina e Martim

Francisco Terra. 201 Alusão ao dia 13 de dezembro de 1968, sexta-feira, em que foi decretado o Ato Institucional nº 5.

86

da perspectiva de um narrador onisciente em terceira pessoa. Na verdade, trata-se de um narra-

dor-organizador tendo em vista que ele divide a tarefa com outras vozes, como a dos persona-

gens padre Pedro Paulo e do jornalista Lucas Faia.

O enredo dessa segunda parte do romance gira em torno do incidente em que sete

pessoas da cidade morreram e retornaram à “vida” para reivindicar seus respectivos enterros.

Essa situação aconteceu em decorrência do movimento de greve dos trabalhadores da fábrica

aliados ao sindicato e a trabalhadores de outros segmentos, como os coveiros.

Não há no romance um casal de protagonistas, como Doris Sommer sugere aos roman-

ces de fundação, de modo que as relações amorosas se dividem entre casais infelizes e relações

extraconjugais. Por outro lado, entre os mortos há um personagem que desempenha um papel

importante na narrativa por ser um preso político e, principalmente, por procurar sua compa-

nheira após a morte. O militante João Paz é o único personagem que mantinha um elo com o

mundo dos vivos por possuir uma relação afetiva e familiar saudável.

Joãozinho, como era conhecido, estava desaparecido após ser preso por “subversão

política”, e sua família e amigos estavam sendo procurados, interrogados e torturados pela po-

lícia local. Por isso, sua primeira reação ao retornar dos mortos é articular um plano para salvar

sua esposa grávida. Portanto, a morte desse personagem, a sobrevivência de Ritinha, sua esposa,

e o nascimento de seu filho revelam traços de esperança e perseverança na narrativa.

Esse episódio possibilita ler Incidente em Antares não só como uma literatura fantás-

tica de denúncia política, mas também como uma ficção de fundação. A proposta de alegoria

política representada pela relação amorosa entre Joãozinho — um militante morto pela violên-

cia policial — e Ritinha, que dá à luz a um filho do casal, permite crer que, apesar do esforço

policial em eliminar toda oposição política, um novo projeto de nação democrática é possível.

No entanto, esse breve tom de esperança não se sobrepõe à ideia de escracho e desespero que

permeia os próximos episódios da narrativa.

Assim que a greve dos trabalhadores encerrou e o tão esperado enterro dos mortos

aconteceu, restou a preocupação de que as acusações feitas pelos mortos ao povo de Antares

repercutissem para além daqueles que presenciaram a cena no coreto. Para solucionar tal im-

passe o personagem Libindo Olivares, professor da escola local, propôs a “Operação borracha”

que tinha como intuito apagar o incidente da história da cidade. As autoridades políticas e eco-

nômicas acataram a sugestão do professor e imediatamente a operação entrou em vigor. As

87

principais ordens eram proibir qualquer veiculação midiática do ocorrido e silenciar a popula-

ção através do negacionismo e de outros meios de manipulação. Segundo Maria da Glória Bor-

dini a “Operação borracha” não diz respeito apenas ao retorno dos mortos à vida, mas também

às denúncias feitas por eles:

Toda a denúncia das arbitrariedades do regime de governo de Antares se apaga, ima-

gem mais do que eloquente do período do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, em que a apa-

rência de normalidade, mantida pelo silenciamento forçado da mídia e pelo incre-

mento dos espetáculos televisivos e futebolísticos, escondia as tentativas de revolução

armada e os desmandos dos militares202.

As denúncias mencionadas por Bordini fazem referência ao episódio no coreto da

praça. No evento cada um dos sete mortos, ao contar sua história de vida/morte, representa uma

denúncia sobre a sociedade antarense: Cícero Branco, as falcatruas políticas municipais; Qui-

téria Campolargo, artifícios da classe dominante para se manter no poder; Barcelona e Erotildes,

a hipocrisia dessa mesma classe dominante em relação à moral e os bons costumes; Pudim de

Cachaça, descaso dos governantes com a periferia; Melandro Olinda, o artista malsucedido;

João Paz, oposição ao governo e preso político. Por fim, na virada do ano de 1963 para 1964, a

“Operação Borracha” é dada por encerrada e bem-sucedida, pois até mesmo os que presencia-

ram e sentiram o odor putrefato dos mortos passaram a duvidar se aquilo realmente aconteceu.

Essa estratégia adotada pelo governo de Antares pode ser associada a uma outra ope-

ração que ocorreu dias após o Golpe de 64, a “Operação limpeza”. Enquanto a proposta do

professor Libindo visava apagar da memória o escracho contra a sociedade antarense a operação

do governo brasileiro tinha como intuito perseguir apoiadores do governo deposto e os líderes

políticos que fizessem oposição à intervenção militar. Há também uma relação com o fato de

os governos autoritários desejarem controlar o passado, o presente e o futuro sendo a manipu-

lação dos fatos uma prática constante. Essa tensão entre o discurso oficial e o não-oficial foi

bem colocada na primeira parte do romance, e na sequência torna-se claro o que estava por trás

do incidente e das informações desencontradas do narrador.

202 BORDINI, 2006, p.277.

88

Maria Bordini, na citação anterior, faz uma observação sobre as tentativas do governo

militar de manter uma “aparente normalidade” na sociedade. Essa estratégia manipula o imagi-

nário social de modo que, assim como em Antares, a população esqueça, duvide e até mesmo

não tenha conhecimento dos fatos ocorridos naquele período203.

A narrativa de Érico Verissimo não surpreende ou desconstrói uma tradição literária,

inclusive, Flora Sussekind afirma que Incidente em Antares propõe uma alegoria óbvia do re-

gime ditatorial204. Porém, essa perspectiva de leitura se constrói ao longo da narrativa e somente

passa a ser o centro do enredo nas páginas finais do romance quando o escritor apresenta sua

crítica à conjuntura política, conforme pode-se observar no último trecho do romance:

Aconteceu passar por ali nessa hora um modesto funcionário público que levava para

a escola, pela mão, o seu filho de sete anos. O menino parou, olhou para o muro e

perguntou:

— Que é que está escrito ali, pai?

— Nada. Vamos andando, que já estamos atrasados…

O pequeno, entretanto, para mostrar aos circunstantes que já sabia ler, olhou para a

palavra de piche e começou a soletrá-la em voz muito alta:

— Li-ber…

— Cala a boca, bobalhão! - Exclamou o pai, quase em pânico. E, puxando

com força a mão do filho, levou-o, quase de arrasto, rua abaixo205.

Se pensarmos no período de escrita nos anos iniciais do golpe e auge da ditadura, en-

tenderemos um pouco melhor o porquê de não haver uma idealização nacional ou um senti-

mento de esperança nas narrativas publicadas durante os anos de 1964 e 1980. Havia uma ne-

cessidade entre os intelectuais de pautar e problematizar os crimes cometidos pelo governo.

Citei aqui um exemplo, mas poderia trazer tantos outros procedimentos estéticos — romances

históricos, fantásticos, realistas, memorialísticos, romances-reportagem, escritas do eu etc. —

que se configuram como uma espécie de pluralidade estética e temática apesar desse disfarce

não impossibilitar a leitura dos personagens enquanto representação de toda a história brasileira

do período, pelo contrário, é inevitável não fazer essa leitura.

As produções literárias de setenta usufruíram das contribuições de movimentos literá-

rios anteriores206, um procedimento necessário e observado no debate sobre transgressão de

gênero. Por exemplo, o romance Confissões de Ralfo (uma autobiografia imaginária) (1975),

de Sérgio Sant’Anna, apresenta uma estrutura dividida em “nove pequenos livros” de diferentes

203 O resultado disso pode ser notado atualmente no negacionismo histórico sobre o Regime Militar e no discurso

pró-ditadura de setores da sociedade e de políticos, como o do atual presidente da República. (Retornarei a esse

assunto como pauta da discussão no último capítulo desta tese). 204 SUSSEKIND, 1985. 205 Érico VERISSIMO, 2006, p. 489. 206 Janete Gaspar MACHADO, 1981.

89

gêneros (poesia, teatro, monólogo, relatos de viagem, biografia) e que “se subdividem, por sua

vez, em outras unidades ou episódios, em número trinta e dois”207. Assim como em Victor

Giudice, a estrutura proposta por Sant’Anna subverte as normas literárias vigentes além de sua

trama estar pautada em farsas do início ao fim.

No último episódio da narrativa intitulado “Literatura Ralfo”, o personagem-escritor

da obra tem seu romance submetido ao crivo da “COMISSÃO INTERNACIONAL DE LITE-

RATURA208”. Durante o “julgamento”, o personagem utiliza da sua posição de narrador para

questionar a autoridade do escritor enquanto autor; a autenticidade dos fatos narrados; a crítica

e a teoria literária. No entanto, Ralfo tem sua condição de escritor profissional negada, sua obra

desaprovada e condenada à destruição total.

A acusação da promotoria baseia-se na inaceitável ruptura com os moldes convencio-

nais de enunciação tanto no que diz respeito à linguagem quanto aos gêneros discursivos. Na

frustrada tentativa de classificar o texto como romance, o promotor condiciona-o à necessidade

de criar uma terminologia: o romance desestrutural. Tal termo alude ao processo sobre os con-

ceitos de liberdade e obediência às leis de gênero e a uma estética literária dominante, conforme

é possível observar no seguinte trecho do romance:

Tomado em seu conjunto, este livro demonstra, como os senhores devem ter perce-

bido em sua leitura, o mais completo desprezo pelas regras estruturais do romance, a

sutil combinação de partes entre si. Eis que, sem a menor cerimônia e verossimilhança,

os capítulos do livro e aventuras deste senhor vão se acumulando, quase sempre com

uma impossível e inadequada relação de causa e efeito. Não fosse o receio de criar

mais uma infame terminologia, diríamos que o autor inaugura o romance desestrutu-

ral209.

A postura admitida pelos juízes e pelo promotor de refutar a publicação da autobio-

grafia de Ralfo se configura como uma crítica à desaprovação que os textos experimentais so-

freram nos anos seguintes ao Golpe de 64. De acordo com Flora Sussekind, ao invés dos escri-

tores somente “descrever(em) de modo mágico ou naturalista210” as tensões políticas, incorpo-

raram-nas em sua própria linguagem e estrutura.

A lógica da proposta de romance desestrutural de Sérgio Sant’Anna poderia servir de

classificação para Bolero e para tantas outras obras escritas nas décadas de 1970 e 1980. Tam-

bém é possível estabelecer relação com a noção de romance de desfundação tendo em vista que

ambos são uma consequência dessas multiplicidades de procedimentos e referências, além de

207 Sérgio SANT’ANNA, 1975, s/p. 208 SANT’ANNA, 1975, p.217. 209 SANT’ANNA, 1975, p.222. 210 SUSSEKIND, 1985, p.27.

90

serem uma resposta para as fórmulas literárias tradicionais como as propostas pelas ficções de

fundação e ao contexto histórico problemático e traumatizado que o Brasil já não pode mais

negar.

Portanto, não é possível que a literatura se exima quando a democracia é ameaçada,

pois a arte não sobrevive sem democracia. De certo modo, é possível afirmar que enquanto não

houver uma democracia sólida sempre haverá espaço para discutir conceitos de nação e identi-

dade nacional.

Tal qual foi possível observar ao longo desse capítulo, as obras brasileiras do século

XX também trazem essa pauta com propostas diferentes daquilo que outrora foi considerado

como ficções de fundação. Inclusive, seria possível considerá-las como desfundação, mas ainda

restam elementos que mantêm a esperança na harmonia nacional através de projetos de nação

futuros. Por isso, não basta apenas problematizar questões referentes ao conceito de nação e da

constituição da ideia de brasilidade, faz-se necessário encarar e assumir os traumas nacionais.

E é nesse sentido que Bolero pode ser lido como uma subversão, uma maneira de ler

a literatura nacional a partir de uma trama farsesca que retira as máscaras uma vez atribuídas à

nação pelos romances de fundação nacional do século XIX.

3.2 A SUBVERSÃO DE VICTOR GIUDICE

Depois dessa breve viagem literária do século XIX e XX, enfim adentramos na con-

turbada década de 1980. Com a gradual (e lenta) abertura política do final de 1970, os anos

oitenta chegaram com a consolidação da indústria e do mercado cultural. Nos primeiros cinco

anos, o Brasil ainda estava vulnerável a uma ditadura que insistia em travestir-se de democracia.

Ao fim desse pesadelo, o país deparou-se com mais um momento crucial de sua história: a

redemocratização; uma oportunidade de recomeço.

Marcelo Ridenti afirma em seu livro Em busca do povo brasileiro (2000) que, nova-

mente, procurou-se no passado a solução para o futuro e, por isso, chama essa fase de roman-

tismo revolucionário dado que o imaginário da intelectualidade de esquerda da época via o

homem do povo como um homem novo, ou seja, admitia o conceito de povo como um grande

herói capaz de formar uma nova nação. Podemos destacar algumas obras como Ganga Zumba,

de Carlos Diegues (1963); e Quarup (1967), de Antonio Callado; além da peça de teatro Arena

conta Zumbi (1965); e do filme Deus e o Diabo na terra do sol (1963), de Glauber Rocha.

91

Aparentemente, logo no início da década de 1970 ocorreu uma suspensão e estagnação

nesse projeto de nação e de brasilidade. E ainda que uma parcela dos escritores tenha dado

continuidade a ele, o projeto somente foi retomado na década seguinte, quando da abertura

política e democrática, mas não em sua totalidade. O que pareceu ser um suspiro aliviado se

reverteu em momentos de tensão e de reavaliação dos projetos nacionais anteriores.

Não é por acaso que Victor Giudice construiu Bolero ao longo dos vinte anos em que

o Brasil esteve sob o regime antidemocrático e o finalizou às vésperas das eleições indiretas

que “deu fim” à ditadura. Não existe, no romance, a busca por um homem novo muito menos

por uma nova nação. Apesar da base do texto ser uma farsa, a essência por trás das cenas cômi-

cas, das sutis ironias e dos trágicos absurdos é legítima. Por exemplo, a Cidade é constituída

por uma população alienada, representada pelo povo que vai ao Circo semanalmente esperar

pela multiplicação dos pães; além de descrever uma burguesia que se diz contra a Monarquia,

mas anseia por um herói republicano que irá livrá-los da tirania do rei; ou seja, não há uma

representação romântica do homem brasileiro, pois o personagem dito como herói em nada

assemelha-se com esse homem novo proposto anteriormente.

O diferencial giudiciano está na maneira como a narrativa encontra-se organizada, a

começar pelas relações estabelecidas pelos personagens seja na esfera do público ou do privado.

Nessa perspectiva, a questão levantada por Doris Sommer sobre as histórias de amor serem uma

alegoria da política nacional somente será possível se se conceber o processo de transitologia

brasileiro como uma farsa tal qual as relações românticas do livro, o que é até viável, porém,

para a autora, os romances de fundação “buscavam superar a fragmentação política e histórica

através do amor211”, e no romance de Giudice isso não fica claro, pois não há a ideia de supe-

ração e sim de conformismo e indiferença. É nesse sentido que a noção de romance de fundação

proposta pela autora desencontra da proposta de Bolero e contribui com a leitura de desfundação

a qual pretendo descrever neste trabalho.

Victor Giudice é um subversivo nato. Seus próprios amigos relembram os tempos de

bancário com graça, pois o escritor costumava quebrar o clima sério e burocrático do banco

com humor, fantasias e imitações baratas212. Essa estratégia de surpreender seus colegas no

ambiente de trabalho reverbera em sua obra. Basta ver a maneira como se inicia a narração de

211 SOMMER, 2004, p. 43. 212 Informações obtidas por conversas com amigos e familiares do escritor, bem como de seu site pessoal:

http://victorgiudice.com/vida.html. (Ver anexo – Figura 04)

92

Bolero: “Meu casamento com Cynthia durou onze meses de profana convivência mais os sete

anos que passei sentado no corredor da maternidade esperando ela dar à luz”213.

Sete anos esperando na maternidade da Avenida Seis de Outubro214. Não foram dias

nem meses: foram anos de espera; ou ainda nas palavras do narrador: “Sete anos. Dois mil

quinhentos e cinquenta e sete dias. Sessenta e uma mil trezentas e setenta e oito horas215”. Um

tanto surreal e inacreditável. A credibilidade e verossimilhança dos fatos são asseguradas pela

cumplicidade da enfermeira de pernas-ponteiro chamada Auriflor, que lhe informa sobre o

tempo decorrido desde que Cynthia e seu filho entraram no “Centro cirúrgico - Não entre”.

Contudo, ela não aparece como testemunha ocular do personagem-narrador quando ele é preso

e tem sua história colocada sob suspeita. Na verdade, em momento algum o personagem é in-

vestigado ou, até mesmo, julgado, somente interrogado e torturado.

A vida amorosa e a vida política do personagem-narrador estão diretamente relaciona-

das, tanto que as primeiras informações que o leitor recebe são relativas às suas relações amo-

rosas com Cynthia e Auriflor, sua futura esposa. Antes do episódio da maternidade não havia

problemas, ele estava em uma relação matrimonial satisfatória e prestes a gerar um fruto desse

amor, mas o desaparecimento inexplicável de sua primeira esposa e do suposto filho não é

assimilado com facilidade, deixando-o desnorteado durante toda a trama. Aos poucos a ordem

é (aparentemente) restaurada e um novo romance se inicia com a enfermeira. Entretanto, evi-

denciamos ao longo da narrativa que ambos os relacionamentos são problemáticos, assim como

sua trajetória de alienado a militante republicano.

Poderíamos, aliás, tomar o romance como um diário onde o personagem-narrador es-

creve sobre sua vida pós-espera na maternidade como uma maneira de ajudá-lo a recuperar a

memória que afirma ter perdido e entender o que acontecera durante todos aqueles sete anos.

Todavia, logo nos primeiros capítulos/fragmentos, o leitor consegue perceber que não se trata

de um diário216, e que o relato foi escrito após a transição da Monarquia para República.

213 GIUDICE, 1985, p. 07. 214 O nome da maternidade pode ser uma referência ao Golpe de 30, pois no dia seis de outubro de 1930, Getúlio

Vargas, derrotado nas eleições brasileiras por Júlio Prestes, não aceita o resultado e lidera um movimento militar

que culminou no referido Golpe. 215 GIUDICE, 1985, p. 10. 216 Na página 48 do romance, o personagem-narrador abre parênteses para fazer uma reflexão nostálgica sobre sua

relação com Número Um. Nesse trecho, ele comenta sobre o episódio final da morte do rei Vezirrê Budru / palhaço

Eusébios e as atividades festivas em prol da recém proclamada República. Já na página 330, ele informa que já se

passaram quatro anos desde a implantação da República.

93

Enquanto esteve na maternidade, a enfermeira mantinha um diálogo silencioso com o

narrador através de piscadas de olho e do ir e vir de suas pernas:

O que contava era o diálogo com a tabuleta da sala de partos: Centro cirúr-

gico - Não entre. Sem falar no outro diálogo com os joelhos pontudos da enfermeira

sorridente que me piscava o olho esquerdo e que me servia café numa xícara de bran-

quíssima porcelana217.

O ir e vir das pernas e as sombras na parede de azulejo eram as únicas fontes de de-

marcação de tempo que o narrador tinha desde que viu sua esposa pela última vez até o mo-

mento que tem sua espera interrompida. Essa cena emblemática lembra a de um homem em

situação de tensão e preocupação, de modo que sua única ação é sentar e esperar, possivelmente

com a cabeça baixa apoiada em suas mãos.

Cynthia, como sempre, não desperdiçou palavras lacrimejantes. Sorriu para

mim, a porta se fechou sobre nossa gravidez e fiquei prostrado no tempo, enquanto o

tempo se mesclava em uma ou outra imagem dependente da precisão dos azulejos da

enfermaria, desencontrados em harmonia maçônica, conferindo panteísmos a uma

simples estrutura de concreto218.

Apesar da observação feita sobre a enfermeira, o personagem-narrador não tem noção

de tempo e, na verdade, isso não lhe interessa, pois a todo momento coloca em questão o con-

ceito, concluindo que o tempo nada mais é que “uma imposição dos relógios”219. Seu desinte-

resse está refletido em suas atitudes, como quando foi alertado sobre os anos decorridos no

hospital em que não questiona, apenas sai em direção à rua. A passividade extrema também

pode ser um sintoma de transtorno, este que se agrava conforme suas intervenções narrativas

sobre o desaparecimento de Cynthia ocorrem no texto — como os fluxos de consciência inten-

sos registrados entre parênteses, os quais denunciam questões-chave sobre o momento da nar-

rativa e sobre a sua vida anterior à maternidade.

Em síntese, as primeiras páginas de Bolero apresentam um personagem apaixonado e

vítima dessa paixão não correspondida, tendo em vista o desaparecimento da esposa em traba-

lho de parto. A consequência desse primeiro trauma amoroso reflete em sua memória, mais

especificamente em suas recordações sobre a Cidade: pouco, ou quase nada, ele lembra sobre

o local em que morou todos os seus (quase) 33 anos220.

217 GIUDICE, 1985, p. 08. 218 GIUDICE, 1985, p. 09. 219 GIUDICE, 1985, p. 07. 220 A informação sobre a idade do narrador está no penúltimo capítulo do romance. Ao ser convidado para fazer

parte da equipe do Circo, como pierrô, o personagem recusa alegando estar muito velho: “já cruzando a idade de

Cristo” (p. 323). Ao final da narrativa ele informa que se passara quatro anos desde o número do punhal, logo,

estima-se que sua idade seja 37 anos.

94

Desde o momento em que saiu da maternidade e foi preso por tirar um flamboyant

dourado do canteiro central o personagem aparenta ter consciência de que sua vida não voltaria

a ser a mesma, assim como Cynthia jamais retornaria. Afinal, a cidade onde nasceu, cresceu e

gerou um filho tornara-se então desconhecida. Seu desespero inicial está transcrito em suas

primeiras horas fora da prisão: “No tempo de Cynthia, eu nunca vira aquela praça, eu nunca

vira aquela gente, eu nunca vira aquelas bandeiras, eu nunca vira aquelas cores reunidas, eu

nunca vira aquela tarde, eu nunca vira aquele sol. Onde estavam as pessoas, os dias e os poentes

de minha existência anterior?”221.

Há um ditado popular que diz que “o amor é cego”. O amor do personagem-narrador

por Cynthia não o deixara somente cego sobre sua relação, mas totalmente alheio à vida. Há

ainda um trecho em que ele se declara um conhecedor e desconhecedor de sua própria terra

natal:

a Cidade que eu conhecia e desconheceria sempre que pudesse vê-la por inteiro, so-

breposto a ela, mergulhado nela, enterrado nela, vivendo ou morrendo nela.

(como é possível amar uma Cidade?)

[...] Ali estávamos os dois, minha Cidade e eu, eu e minha Cidade contem-

plando-nos envergonhados de nosso mútuo desconhecimento222.

Cynthia o abandonou e o deixou livre para recomeçar. Ela representa um passado que,

supostamente, pode desaparecer sem deixar rastros. Já a presença de Auriflor na saída da prisão,

por sua vez, representa um recomeço através de um novo interesse amoroso. A participação

dessa personagem é um pouco confusa e mal contada pelo narrador; mas é ela quem torna crível

a história dos sete anos, pois nem ele sabia o tempo que esteve esperando; ao mesmo tempo,

ela sabia exatamente o dia e a hora que ele sairia da prisão e, sem muitos questionamentos de

ambas as partes, levou-o para a casa de sua família. Um amparo, uma amizade, um amor e uma

esperança inesperada.

Ao esperá-lo na porta da prisão e abrigá-lo em sua residência junto à sua família, Au-

riflor instintivamente traçou o destino do personagem com base nas suas expectativas (e de seu

tio). Não fica claro quais foram as motivações para ajudar uma pessoa desconhecida, além do

flerte proporcionado pelas piscadas na sala de espera. De certa forma, esse comportamento re-

produz o início de uma relação extraconjugal, pois o fato de o personagem-narrador estar na

sala de espera de uma maternidade pode ser automaticamente associado ao nascimento de um

221 GIUDICE, 1985, p. 73. 222 GIUDICE, 1985, p. 173.

95

filho, todavia Auriflor não parece se importar muito com isso nem ele, pois em nenhum mo-

mento da narrativa conversam sobre Cynthia.

Os indícios de que o personagem pode ser uma construção de Auriflor e Auritio apa-

recem assim que ele inicia a sua jornada pós-prisão. No dia de sua soltura, enquanto acompa-

nhava a moça sem saber o seu destino, em um de seus longos monólogos reflexivos se autode-

nomina um “cão amestrado”. A metáfora aqui utilizada pode ser lida em seu sentido literal de

que caminhava atrás da enfermeira como um cão ensinado a seguir seu tutor.

Por outro lado, em um sentido mais amplo da história que nos conta, afinal, sabemos

que isso foi escrito depois de todos os acontecimentos: o cão amestrado faz referência ao revo-

lucionário que ele irá se tornar à custa das vontades dos dois membros da aurifamília e, princi-

palmente, pela atração sexual por Auriflor. Em outras palavras, o cão alienado e abandonado

por Cynthia tornou-se o cão revolucionário e adestrado por Auriflor:

A desgraça da história é ser amestrado. O meu ângulo visual se encontrava

restrito às nádegas de maçã da Senhorita Auriflor. [...] Auriflor é uma encenadora de

encenações maquiavélicas, e pensa que eu não sei o que ela pensa. E eu sei. Sei

mesmo? Claro que sei. [...] A Senhorita Auriflor comanda a trajetória e me arrasta ao

futuro223.

Assim que chegaram na auricasa224, o narrador divagou mentalmente sobre Auriflor e

seus “papos-de anjo em lugar de joelhos, e matraqueava bobagens, adoçando as palavras numa

calda de sensualidade ocasionada por um defeito de prolação”225. A princípio, julgou que as

intenções do amparo oferecido pelas pernas-ponteiro eram somente sexuais, assim como as

suas; no entanto, conforme conversavam o rumo dos assuntos mudou e surgiram os primeiros

indícios do interesse político da enfermeira:

– Há alguma coisa que não seja inútil?

– Quer dizer que fui preso inutilmente?

– Existe quem seja preso utilmente?

– Por que não responde você mesma?

– Não acha muito pior estar livre inutilmente?

– É o meu caso?

– Será?

– Haverá um tempo em que não seja?226

Esse interesse fica explícito quando ela o apresenta a seu pai e seu tio, e acaba por

revelar que já havia comentado aos parentes sobre a existência e situação do visitante. A própria

223 GIUDICE, 1985, p. 71. 224 A auricasa está situada na rua Quatorze de Fevereiro, data mundialmente conhecida como Valentine’s day.

Coincidentemente, ou não, Auriflor destaca-se por ser a namorada e futura “esposa” do personagem-narrador. 225 GIUDICE, 1985, p. 78. 226 GIUDICE, 1985, p. 79.

96

iniciativa em dar-lhe auxílio teria sido um conselho do tio por estranharem o seu desapareci-

mento repentino após sair do hospital.

No discurso de Auriflor nota-se um direcionamento sobre seus princípios e até pensa-

mento políticos, vide os questionamentos filosóficos sobre liberdade e prisão, ao contrário do

personagem-narrador que não demonstra nenhuma predisposição ideológica. Afinal, ele não

compreendia o motivo de sua prisão muito menos o porquê ser chamado de republicano pelo

prisioneiro Número Um:

– Roubei uma flor. Uma daquelas que estão no meio de um parque. Acho que

há uma proibição, porque...

[...]

– Você é um herói republicano com o crânio cheio de merda. É isso227.

O envolvimento com a política não era sua prioridade nem uma preocupação, e sim

uma saída favorável tendo em vista a falta de perspectiva diante de suas opções: vagar pelas

lacunas de sua memória ou se debater contra as informações que não tinha. Nesse caso, a atração

sexual foi a motivação necessária para que o personagem abandonasse sua existência passada

e assumisse uma nova identidade.

Na segunda noite com a aurifamília, o personagem conheceu os demais integrantes de

uma grande teia de relações: Condessa (namorada do simpatizante da Monarquia, Auriavô); seu

sobrinho e artista inacabadista Ladislau228; o irmão de Ladislau (funcionário e cunhado do em-

presário Holofernes); e o Ajudante Máximo (guarda real e responsável pela segurança do rei

nos espetáculos do Circo). Na ocasião, todos estavam presentes para assistir ao sarau protago-

nizado pela Condessa e por seu sobrinho Ladislau.

Ao final da noite, o segurança real fez algumas perguntas sobre as marcas no rosto do

personagem-narrador e sua ausência nas sessões anteriores do sarau ao que, para alívio do per-

sonagem, Auriflor interrompeu-o inventando “uma série de quatorze voltas ao mundo” e o Aju-

dante Máximo demonstrou ter outras prioridades. Do ponto de vista do visitante, “o interesse

vermelhoazuldourado pelas narissorridências era pecaminosamente maior”229. O personagem

se coloca diante de uma cena de ciúmes e um triangulo amoroso com os outros dois persona-

gens. Porém, essa situação não é desenvolvida no decorrer da narrativa.

227 GIUDICE, 1985, p. 34. 228 No acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa encontra-se uma ilustração do personagem Ladislau desenhada

pelo próprio escritor (Ver anexo – Figura 07). 229 GIUDICE, 1985, p. 116.

97

O interessante está no fato de que o narrador afirma não ter certeza alguma sobre aquilo

que relata deixando o leitor desconfiado sobre a veracidade da narração, conforme é possível

observar em suas palavras: “Não tenho certeza da ocorrência desse diálogo, assim como não

estou certo de nenhum dos fenômenos que presencio hoje em dia”230. O personagem coloca-se

em um contexto absurdo onde ele próprio não consegue compreender ou justificar como verí-

dico.

Entretanto, ao mesmo tempo que se coloca em posição de quem realmente sofre de

perda de memória, em outros momentos parece manipular os demais personagens (e o leitor)

com sua falsa ingenuidade. No trecho a seguir, ele se questiona sobre a intenção de Auritio

quando afirma estar “tratando do seu caso, ouviu? Mas bico fechado231”:

De minha parte, eu procurava uma explicação mental para a falta de açúcar

do meu café e para a informação do Auritio. Tava tratando do meu caso e meu caso

era múltiplo: a espera na maternidade, o desaparecimento de Cynthia e do meu duvi-

doso filho e, para completar, a descoberta da flor dourada, com direito a prisão e tor-

turas. Afinal, a qual dos casos ele se referia? Ou será que englobara todos num só, a

fim de conferir ao comunicado um tom lacônico mais condizente com a situação?232

Ou, na vez em que, ao passear pelo parque com Auriflor antes de irem finalmente ao

Circo, o personagem-narrador fixou o olhar interrogativo na manchete de jornal que noticiava

a repressão da Guarda Real aos “ajuntamentos” dos operários nas indústrias:

– Ainda não percebeu que estamos vivendo sob uma monarquia? Não lhe dis-

seram isso na prisão?

Desabei. A imagem do Número Um difundindo loucuras numa cela sem espe-

rança bailou em minha frente uma possibilidade macabra, mas Auriflor engatilhou

outra incerteza:

– Afinal de contas, quem era você, antes de passar aqueles sete anos na mater-

nidade?

– Quem eu era?

De repente, vi que não seria possível responder nem mesmo quem eu era de-

pois dos sete anos. Quando mais antes:

– Um republicano? É isso que você quer que eu responda?233

Auriflor termina esse diálogo questionando ironicamente se o personagem vivia ou se

só nasceu quando ela o acordou na maternidade. Ao que tudo indica, ele era um alienado que

vivia somente para o seu relacionamento, conforme afirma em pensamento um pouco antes da

supracitada conversa: “É claro que eu nunca teria visto aquele coreto antes, nem os flamboyants,

nem nada. Antes, eu só via Cynthia”234. Sua cegueira era tamanha que esquecera inclusive do

230 GIUDICE, 1985, p. 116. 231 GIUDICE, 1985, p. 132. 232 GIUDICE, 1985, p. 133. 233 GIUDICE, 1985, p. 135. 234 GIUDICE, 1985, p. 134.

98

Circo, instituição que, segundo a história da Cidade, existia independente de monarquias ou

repúblicas.

Durante as primeiras apresentações do Circo, a lucidez alastrou-se pelo personagem e,

aos poucos, começou a perceber que algo muito apavorante ocorria naquela Cidade. A plateia

ria desvairadamente de todos os números e até do que não era número; qualquer movimento era

motivo de riso e aplauso. Um riso nervoso que também tomou conta dele: “Havia medo ema-

grecendo as vontades e engordando os sorrisos. Inclusive o meu, pois a partir do instante em

que tomei conhecimento do terror da plateia, me associei a ela e passei a rir de todas as tramas

urdidas no picadeiro”235.

Pouco a pouco, a leitura sobre o regime monárquico da Cidade se aproxima do regime

ditatorial brasileiro e um paralelo cada vez maior vai se criando entre o romance de Giudice e

a história nacional, conforme será possível perceber no desenrolar da sua primeira experiência

no Circo. Ao mesmo tempo em que esse momento é apavorante também é atenuado por estra-

tégias lúdicas para distrair a população: o famoso pão e circo.

Depois de tantos números medíocres em que rir e aplaudir eram reações baseadas na

obrigação e no medo, ao final do espetáculo, o número especial dos irmãos Pons e a cena da

multiplicação dos pães deixaram o personagem extasiado e incrédulo. A política do pão e circo

realmente funcionava na Cidade. Em um curto espaço de tempo, cabeças rolaram, corpos deca-

pitados levantaram, cabeças voltaram aos seus corpos, de um pão surgiram milhares de pães e,

por fim, se deu a descoberta de que o rei se chamava Vezirrê Budru. Segundo o personagem-

narrador, essa foi a informação mais importante do dia, “porque quando se vive numa cidade e

esta Cidade é governada por uma Monarquia, o nome do Rei, seja ele qual for, é um conheci-

mento obrigatório”236.

Em um dado momento, as novas informações sobre a Cidade e as perguntas não res-

pondidas por Auriflor começam a ocupar espaços antes preenchidos por Cynthia. Espaços físi-

cos e mentais, pois os locais que antes o personagem-narrador visitara com sua primeira esposa

são substituídos agora pela presença da enfermeira; assim como a importância de seu desapa-

recimento com o filho convertera-se em “coisa descartável”. A narrativa segue seu compasso

cada vez mais enfática sobre a transformação do protagonista: quanto mais se envolvia com

235 GIUDICE, 1985, p. 140. 236 GIUDICE, 1985, p. 150.

99

Auriflor, mais seu destino de republicano era traçado e desenhado pelo Auritio com as bênçãos

da sobrinha.

Para o jovem que havia despertado de sua alienação, o dia depois do Circo era de

comemoração: esquecer Cynthia, conhecer o Circo e chegar ao ápice de sua aproximação com

a enfermeira até o momento — as mãos dadas para sair do metrô e o toque de joelhos durante

a apresentação dos irmãos Pons. Ao retornarem para casa, o personagem-narrador estava pres-

tes a converter sua atração por Auriflor para além de sua imaginação e finalmente roubar a

“outra flor que, por certo, não seria dourada e nem de plástico”237, no entanto, seu esquema

lascivo fora interrompido por Auritio.

Como comentei anteriormente, os planos de Auritio e Auriflor eram distintos das in-

tenções do personagem-narrador. Enquanto um parecia estar fazendo turismo em sua própria

cidade, os outros dois interpretavam como “boa política” o rapaz ter ido ao Circo mesmo sendo

um notável ex-preso político. Além disso, segundo Auritio, existia a possibilidade de uma se-

gunda prisão devido à falta de esclarecimento sobre a espera na maternidade e as relações esta-

belecidas pós-prisão.

Quando se está sob suspeita, não existem relações privadas; todas são de ordem pú-

blica. E isso serve tanto para o personagem-narrador quanto para Ladislau. Por isso, uma das

preocupações do Ajudante Máximo estava na conversa que aquele teve com o artista inacaba-

dista durante o sarau. Não fica claro qual é a questão do sobrinho da Condessa, ainda que ser

um artista subversivo da escola inacabadista não devesse soar muito bem aos olhos do grande

monarca. Para resolver o impasse, o personagem-narrador definitivamente precisava fugir no

trem da meia noite e quarenta rumo à clandestinidade. Isso significaria abandonar sua chance

de (re) recomeçar na Cidade que um dia foi seu lar.

Um passado que não quer e não se deixa ser esquecido, pois no breve espaço de tempo

em que o personagem-narrador decidira deixar para trás Cynthia e consumar seu amor com

Auriflor, o fantasma do passado retorna e tira-o do que poderia ser uma relação amorosa prós-

pera. Assim, culpa a esposa desaparecida por sua infeliz condição de perseguido político: “Viu,

Cynthia, no que deu a sua brincadeira de esconde-esconde?238”.

237 GIUDICE, 1985, p. 152. 238 GIUDICE, 1985, p

100

No caminho da estação de trem o personagem deu seu primeiro passo na tomada de

consciência sobre sua paixão e seu papel na história da revolução. Enquanto no início da narra-

tiva, sua única pretensão era “dar meia-volta no tempo, até o instante em que eu pudesse read-

quirir Cynthia”239, nesse momento, prestes a se tornar um clandestino e exilado, a caminhada

pelas treze quadras levou-o a refletir sobre o que desejava de sua nova vida:

Por uma estranha dependência do destino em relação à memória, veio-me à

cabeça a imagem do Ajudante Máximo. Ele e sua comparsaria trocando sorrisos sub-

servientes e protegendo, sob o estigma da crueldade, aquela corja putrefata que lhe

entornava baldes de gelo derretido na cabeça.

E eu fugindo.

Mas pensei no Auritio e em Auriflor. Que horas seriam? Meu trem poderia

estar saindo e todo o trabalho deles iria por terra.

Olhei o relógio da estação: meia-noite.

Olhei a existência: meia vida.

Olhei meu futuro: meia-volta.

E voltei240.

Decidir permanecer na Cidade significava para o personagem-narrador assumir seu

passado — sete anos de espera na maternidade —, encarar o seu presente como inimigo da

Monarquia e caminhar em direção a um futuro revolucionário ao lado de sua nova paixão. A

partir de então, não haveria mais a possibilidade de retorno. O pessoal do clube já teria se arris-

cado muito ao fornecer os documentos falsificados de vendedor ambulante, bem como o Barão

para recebê-lo e iniciá-lo na clandestinidade.

Desse modo, o processo de despertar estava concluído. De agora em diante, restava-

lhe iniciar (e concluir) a construção do herói municipal, como o próprio personagem havia se

autodeclarado. Ao menos contava com o auxílio do Barão, líder republicano. Contava ainda

com o pessoal do clube dos torturados; da persona grata, Condessa e; claro, “defendido por

Auritio, sob o patrocínio de sua sobrinha alucinada241”.

Ao ser interpelado por Auriflor sobre o motivo que o teria feito mudar de ideia no

caminho da estação, o personagem percebeu que não havia uma resposta para tal pergunta. Ele

considerava, inicialmente, arriscado e irracional deixar de salvar a própria pele em troca de um

relacionamento que “havia começado um pouco mais de uma semana e não passara de meia

dúzia de sorrisos, carícias de mão para mão, duas brigas de joelhos e um prelúdio interrom-

pido242”. Entretanto, “o romantismo foi infalível”, pois o personagem-narrador conduziu sua

239 GIUDICE, 1985, p. 29. 240 GIUDICE, 1985, p. 175. 241 GIUDICE, 1985, p. 167. 242 GIUDICE, 1985, p. 162.

101

despedida de Auriflor de maneira tão premeditada e romântica que não lhe restou alternativa a

não ser voltar. Em suas palavras:

– Foi por minha causa?

Seria? Que tal se eu lhe fizesse um relatório de minha odisseia nas treze

quadras? Talvez não compreendesse que ela própria fosse a essência das causas, assim

como as causas pudessem estar contidas nela, com tudo que se interliga, deteriora até

se desfazer em passado ou em nada que possa preencher a mais ínfima lembrança. As

causas das causas243.

As opções eram claras: de um lado, ser um clandestino e perseguido político fora da

jurisdição do Ajudante Máximo; de outro, viver na clandestinidade sob o mesmo céu que Ve-

zirrê Budru, a Guarda Real, o reizinho-underwood e todos os vermelhoazuldourados.

O personagem-narrador diante das escolhas de permanecer e de colocar a oportunidade

de um relacionamento próspero acima de sua própria vida antecipam a harmonia da narrativa.

Nessa mesma noite, finalmente, a relação do novo casal foi consumada: o sexo, ápice de troca

de cumplicidades em um relacionamento, somente pôde ser realizado depois do despertar do

personagem-narrador. A concretização do ato sexual entre o casal é muito simbólica no que diz

respeito à importância da ligação entre eles para a conjuntura política da Cidade e do romance.

De antemão, pode-se reconhecer essa relação como símbolo de esperança de um novo

projeto de nação que supera os desprezíveis anos ditatoriais e encarrega-se de uma redemocra-

tização bem-sucedida. Nesse caso, a alegoria de Victor Giudice teria sido satisfatória a ponto

de possibilitar a leitura de Bolero como romance de fundação, segundo a tese de Doris Sommer.

Conclui-se que o fracasso do casamento do protagonista com Cynthia e a consumação com

Auriflor significam o final feliz para o amor romântico e a possibilidade de reconstrução da

nação por outros meios. Isso, claro, em conformidade com a ideia de que a união de um alienado

e de uma pessoa com consciência social e política seria a melhor saída tanto para o caso ficci-

onal de Bolero — terminar com a tirania monárquica — bem como para o caso brasileiro — a

transição de ditadura para democracia; isso se não fosse pela continuidade dos fatos.

Durante o tempo em que estavam no restaurante comemorando o retorno do persona-

gem-narrador, Auriflor sugeriu que dançassem ao som do bolero, pois aquele poderia ser o

último. A abordagem utilizada para o convite deixou o narrador confuso. Afinal, decidir voltar

significava um recomeço, uma segunda chance, e não o fim. Porém, para haver um começo, é

necessário primeiro um final. Do ponto de vista do personagem-narrador, o final consistia em

deixar sua história com Cynthia para trás. No entanto, a proposta de Auriflor referia-se para

243 GIUDICE, 1985, p. 180.

102

além daquele exato momento. Ela provavelmente já estava a conjecturar que o retorno do per-

sonagem representava a possibilidade de mudança em um contexto macro, pois enquanto sua

situação com a monarquia não fosse resolvida ele teria que viver como clandestino e, provavel-

mente, demorariam para ter outra oportunidade de dançarem.

Enquanto Cynthia tomava cada vez mais a rota em direção ao “desvão do inconsci-

ente”, a enfermeira deixava sua posição de estado presente para simbolizar o futuro do perso-

nagem-narrador. Sempre com respostas sagazes e sarcásticas, Auriflor, desde o início da narra-

tiva, dava sinais a ele que, consciente ou inconscientemente, funcionavam como um tipo de

código ou, até mesmo, instruções. O primeiro desses sinais diz respeito às piscadelas de olho

na maternidade.

Piscar um único olho em direção a alguém é popularmente conhecido como uma ação

amistosa, um flerte com conotação sexual ou, até mesmo, uma provocação entre pessoas para

sinalizar que algo exposto naquele momento é uma mentira ou não deve ser levado a sério. As

piscadelas de Auriflor apresentam um pouco de cada um desses significados, mas o fato de ser

o olho esquerdo pode adquirir também uma conotação política, levando-se em consideração o

cenário em que a obra foi construída e publicada.

Ao analisar as ocorrências notam-se similaridades entre os momentos das piscadelas.

Durante um dos cafés da manhã em companhia da aurifamília, Auritio sugeriu estar cuidando

do caso do personagem, ao que este imediatamente lança um olhar questionador para ela a fim

de alguma resposta: “Como sempre, diante de uma abstração, olhei para Auriflor, e foi o sufi-

ciente para que ela me piscasse o olho esquerdo244”. Esse movimento acontece no texto repeti-

das vezes acompanhado de uma pergunta “sem resposta”, fato muito comum nos diálogos entre

eles.

Algumas dessas perguntas são relativas ao funcionamento da Cidade e do Circo, con-

sideradas pela enfermeira como perguntas idiotas, tal qual na primeira ida ao picadeiro: “Quem

é esse Eusebius? Auriflor me encerrou no cinismo habitual e me piscou o olho esquerdo: Você

não queria conhecer o Circo? Então por que não olha pra frente em vez de fazer perguntas

idiotas?245”. Outra vez, foi durante o ato da multiplicação dos pães: “Quase aos brados, para

sobrepor minha voz à selvageria da plateia na luta para recolher os pães atirados nela, procurei

a explicação em minha companheira: É isto a multiplicação? Auriflor sorriu, piscou o olho

244 GIUDICE. 1985, p. 133. 245 GIUDICE, 1985, p. 137.

103

esquerdo e se ensurdeceu nos aplausos246”. O único momento em que não há marcação de lado

foi quando o narrador conheceu Auriavô: “Muito bonito. Ainda bem que eu trouxe o médico

para lhe dar uma injeção. Virou o rosto para mim e piscou o olho [...] - Assustou-se com meu

avô?247”. A ausência de sugestão pode simbolizar que o avô da enfermeira é uma pessoa neutra

na disputa de poder, apesar de se autodeclarar monarquista.

Além das piscadelas, há outras referências à direita e esquerda. Novamente, no início

da narrativa, ainda na maternidade, o personagem-narrador faz um breve comentário sobre a

necessidade de ajustar os parafusos de um tipo de marionete: “Adeus, boneco de engonço. Não

se esqueça de trocar o parafuso da canela esquerda. O da direita ainda aguenta.248”. Essa men-

sagem é muito significativa quando descobrimos que ele viria a se tornar um revolucionário

republicano por intermédio ou, como o próprio afirma, um amestrado pela enfermeira de per-

nas-ponteiro e seu tio.

Durante a primeira visita ao Circo, ele surpreende-se por perceber, em uma de suas

mãos, um dos pães provenientes da multiplicação: “meu desgosto atinge um nível irrespirável

ao surpreender na mão direita um dos pães da multiplicação. Como veio para aqui?249”. Essa

aparição não é por acaso: o termo “direita” não aparece com tanta frequência quanto “esquerda”,

mas, em sua maioria, remete às ações relativas à Monarquia; como na própria cena referida, ou

quando os músicos reais surgiram “numa das vielas da direita250”, ou ainda na disposição da

mesa do reizinho-underwood: “Porém, nada disso era tão atraente quanto o espetáculo vislum-

brado à direita: uma escrivaninha diminuta, uma underwood de museu, cujo restos mortais en-

vergonhavam a velhice sob pilhas de processos251”.

Para citar uma última referência, retorno ao momento em que o personagem-narrador

caminhava rumo à estação. Auriflor acompanhou-o até o início das trezes quadras na Av. Pri-

meiro de Abril. Ali, no meio da rua, com um calor de trinta e sete graus e o ponteiro marcando

vinte e uma horas, eles tiveram uma despedida romântica e comovente com juras de um reen-

contro e promessas de amor. Ao final, a enfermeira instruiu-o a caminhar para a direita. Esco-

246 GIUDICE, 1985, p. 146. 247 GIUDICE, 1985, p. 77. 248 GIUDICE, 1985, p. 15. 249 GIUDICE, 1985, p. 146. 250 GIUDICE, 1985, p. 17. 251 GIUDICE, 1985, p. 21.

104

lher partir para clandestinidade e sucumbir à pressão da Monarquia significava seguir em dire-

ção à direita, ao passo que ficar e resistir, à esquerda. Portanto, a relação amorosa dos dois

personagens está diretamente associada aos pensamentos de esquerda.

Auriflor contribuiu como nenhum outro personagem nesse processo de transição (do

personagem e do regime). Por ora, o romance de Victor Giudice decerto seria um caso exemplar

de concretização amorosa harmônica e de superação nacional. Apesar do personagem-narrador

ser quem executa o ato que leva à deposição da Monarquia, é a enfermeira com suas perguntas

e piscadas quem desperta a atenção e o desejo do protagonista, além dos indispensáveis incen-

tivos filosóficos de Número Um e das diretrizes políticas fornecidas por Auritio. Tal ideia está

reforçada nas palavras do narrador durante a consumação da relação com a enfermeira, “o tá-

lamo comprovou a responsabilidade do marceneiro que o construiu, e nós comprovamos que o

amor é um ato histórico”252.

Por outro lado, dentro da perspectiva dos relacionamentos do personagem-narrador,

uma nova leitura é possível ao considerar a intratextualidade estabelecida entre Bolero e as

obras anteriores de Victor Giudice, Necrológio e Os banheiros. Os trechos que descrevem o

namoro do personagem-narrador com Cynthia são similares ao conto “Mahablan”, publicado

em Os banheiros.

Narrado em primeira pessoa, o conto relata um diálogo de Mahablan com seu amante.

Na verdade, a narrativa se aproxima muito mais de um monólogo do amante, tendo em vista

que não é concedido a ela o direito de resposta. Portanto, todas as informações são fornecidas

pela voz e pelo olhar do primeiro. Resumidamente, o conto traz à tona a história de um femini-

cídio motivado pela fúria de um namorado rejeitado.

A personagem Mahablan foi, durante muitos anos, explorada e chantageada pela avó.

Segundo o amante, ela deveria manter relações sexuais com ele de luzes acesas, enquanto a avó

observava pela maçaneta e, em troca, teria direito à herança:

A avozinha enlouquecera de uma paixão não correspondida, depois de um

casamento providencial com um homem que não amara, mas que lhe deixara o sufi-

ciente para bisbilhotar os quatro cantos do mundo com a mesma facilidade com que

bisbilhotamos as quatro ruas do nosso quarteirão253.

252 GIUDICE, 1985, p. 183. 253 GIUDICE, 1979, p. 100.

105

Pouco se sabe sobre a vida do personagem-narrador de Bolero antes da maternidade.

Por isso, o diálogo entre o conto e o romance é estabelecido através dos poucos relatos confes-

sionais de sua intimidade com a esposa desaparecida.

Ficávamos estirados no tapete, degustando César Frank, ao som do chá com

papos-de-anjo. Cynthia se enfurecia às vésperas de um orgasmo, quando interrompí-

amos o amor para virar o disco e recomeçar o Psyché, flutuando entre o silêncio he-

donista dos corpos e a perplexidade de um olho de lagartixa254.

Assim como o narrador de Bolero e sua esposa, Mahablan e seu amante também fazem

de Cézar Frank a trilha sonora de seus momentos íntimos:

Os orgasmos ficaram reduzidos a perfídias profiláticas, enquanto sua avó

pegava as bonecas e ia dormir, cantarolando o cravo-brigou-com-a-rosa. Só então era

nossa vez de viajar para as montanhas de Sodoma - a briga sexual nas almofadas -

lambuzados de Cézar Frank, papos-de-anjos e... o que mais?255

Além da música e dos papos-de-anjo a relação entre as narrativas fica acirrada, e eu

diria inevitável, à medida que o narrador do romance divaga sobre seu “eu anterior” e insere

uma nova personagem: a avó.

À noite, assim que a avó de Cynthia guardava as bonecas e ia para a cama,

cantarolando o-cravo-brigou-com-a-rosa, nós fugíamos para a vitrola para os discos

de Schubert e para o César Frank, no tapete, com chá, papos-de-anjo, asteroides e

brigas sexuais256.

Tal qual foi observado na citação do conto “Mahablan”, a presença da avó constitui

um elemento importante na aproximação dos dois textos. Ela é a principal motivadora da ex-

ploração sexual da protagonista e de sua consequente morte. Além disso, ao final da narrativa,

descobre-se que a personagem não se chama Mahablan, tampouco nos é revelado o seu verda-

deiro nome. Trechos como esse denunciam as afinidades dos textos e possibilitam que as per-

sonagens do conto sejam, na verdade, as mesmas do romance.

Uma vez que isso seja aceito, a história dos sete anos na maternidade passa a ser uma

falácia, ou seja, um álibi encontrado pelo personagem-narrador para reescrever sua história e se

eximir da responsabilidade de assassino. No momento em que Mahablan revela ao seu amante

que tudo não passara de uma mentira, ela oferece-lhe “parte de sua herança com a condição de

desaparecer para sempre”; ele completa que “para sempre não é um tempo tão curto quanto da

loucura257”.

254 GIUDICE, 1985, p. 16. 255 GIUDICE, 1979, p. 99. 256 GIUDICE, 1985, p. 29. 257 GIUDICE, 1979, p. 101.

106

Em contrapartida, no romance, Cynthia é quem desaparece e a loucura recai nos de-

mais personagens. Afinal, ao conversar com o Número Um, o narrador afirma ter saído da ma-

ternidade para cair em um mundo de loucos. Diante disso, por sabermos da dificuldade em se

desvincular do antigo relacionamento, colocá-la como desaparecida pode ter sido a maneira

mais fácil que encontrou para lidar com o trauma de tê-la matado.

Por outro lado, há informações que não coincidem como: em “Mahablan” o narrador

diz ser confeiteiro enquanto que o personagem-narrador de Bolero afirma ter sido funcionário

de um banco antes de ir para a maternidade. O mesmo acontece sobre a passagem de tempo:

em Bolero, o relacionamento com Cynthia “durou onze meses de profana convivência258” mais

os sete anos na maternidade, já o relacionamento de Mahablan durou “três anos imortais259”.

Essas informações não interferem diretamente na análise dos textos e, ao considerar todo o

contexto de farsa que constitui Bolero, é possível que o personagem-narrador tenha omitido e

manipulado informações sobre seu passado para não criar suspeitas sobre sua relação com o

assassinato de Mahablan/Cynthia. Aliás, o próprio nome atribuído à esposa pode ser uma cria-

ção para, assim, não levantar suspeitas em sua história.

As três relações: Mahablan260, Cynthia e Auriflor são descritas pelos narradores com

um potente fascínio sexual, o que contribui para a construção de imagens eróticas. Além disso,

há uma mudança tanto de linguagem quanto de comportamento dos personagens durante a ide-

alização e depois da concretização do relacionamento amoroso. Há uma tendência ao discurso

poético e erótico, de modo que a concretização tende a uma profanação carnal ao invés da

contemplação do amor romântico. No conto, o narrador interpela Mahablan, “repita comigo

que a felicidade do universo não ardia tanto em meus olhos quanto na noite em que profanei

seu corpo261”; no romance, “a bela condessa Auriflor deitara-se no suave leito recamado de

arminhos alvíssimos e veludosas almofadas de precioso lavor, numa fingida sesta ordenada

pelos mais irrecusáveis apetites de sua incontrolável lascívia262”, e “Cynthia gostava do meu

258 GIUDICE, 1985, p. 07. 259 GIUDICE, 1979, p. 101. 260 Por reconhecer a relevância da intratextualidade na obra de Victor Giudice torna-se imprescindível trazer para

o debate a relação do romance com o conto “Mahablan”. No entanto, tendo em vista que o leitor não é obrigado a

conhecer toda a obra do escritor, a falta dessa informação não impossibilita a leitura de Bolero e, muito menos,

sua compreensão como romance de desfundação. 261 GIUDICE, 1979, p. 99. 262 GIUDICE, 1985, p. 80.

107

pijama vermelho, e eu, da camisola preta, que libertava o corpo, numa mistura de pele e sensu-

alidade263”.

Inclusive, ambos os narradores expressam atração pelos joelhos das personagens fe-

mininas. No conto, as pernas de Mahablan “flertavam tremores, enquanto os joelhos me olha-

vam insistências de pura obscenidade264”; no romance, o desejo pela enfermeira é instantâneo

e de “belíssima grandeza metafórica e onomatopeica, mas redundante no que tange aos aspectos

da sexualidade semeada pelo vislumbre das rótulas de Auriflor265”. O mesmo ocorre ao trazer

a imagem das montanhas de Sodoma para referir-se às nádegas das amantes. De acordo com o

relato bíblico, Sodoma teria sido destruída por Deus devido aos atos imorais, segundo os pre-

ceitos cristãos, cometidos por seus habitantes o que, por sua vez, deu origem ao termo sodomia.

Ronaldo Vainfas afirma no livro História das mulheres no Brasil que o pecado de sodomia está

associado aos “desvios de genitalidade’, incluindo-se aí o coito anal, o sexo oral e outros con-

tatos contra natura266”.

Nesse sentido, as referências metafóricas à Sodoma no conto “Mahablan” apresentam

as imagens eróticas “penetrar[em] os linhos dos lençóis que embranqueciam as montanhas de

Sodoma267”. Já em Bolero a metáfora sodomita é utilizada para exaltar a pureza e a decência de

Auriflor em oposição à Cynthia, que não pertence à luxúria de Sodoma nem ao decoro de uma

dama: “As coisas que se veem na montanha pertencem unicamente à montanha e nunca a uma

enfermeira de pernas-ponteiro. Afirmar que as coisas belas da montanha podem ser encontradas

em Cynthia é dizer mal da montanha e de Cynthia268”.

Os narradores enaltecem suas relações passadas e futuras, ao ponto que a consumação

e a realidade matrimonial diminuem a potência do desejo sexual. O presente não é exaltado,

mas dá brecha ao amor corrupto adquirido nos prostíbulos, como o de Madame Dedé Bundica

e nos bordeis que o personagem-narrador de Bolero almeja ao sair da maternidade.

Nessa perspectiva, a proposta de ler os casos de amor como uma alegoria da nação

reafirma a exaltação de um passado através das memórias e de um futuro através da imaginação.

Dito em outras palavras, diviniza-se o sexo que outrora se teve esquecendo-se as mazelas e

recordando somente aquilo que trouxe êxtase; e idealiza-se o sexo não concretizado, o fetiche

263 GIUDICE, 1985, p. 29. 264 GIUDICE, 1979, p. 100. 265 GIUDICE, 1985, p. 79. 266 Ronaldo VAINFAS, 2006, p.117. 267 GIUDICE, 1979, p. 100. 268 GIUDICE, 1985, p. 88.

108

sobre o futuro inesperado. Nas palavras do narrador do conto “Mahablan”: “O prazer físico é

atemporal e imensurável. E a moral só existe no tempo e no espaço269”.

Consentir que Cynthia e Mahablan são as mesmas personagens apenas corrobora que

o personagem-narrador manipulou a história e se aproveitou da aurifamília e, consequente-

mente, de Auriflor. Afinal, não seria nenhuma dificuldade considerar a história dos sete anos

na maternidade como uma mentira. Primeiro, porque a própria narrativa não sustenta sua vera-

cidade; segundo, porque toda a trama do romance baseia-se em farsas.

Victor Giudice confronta os hábitos do amor romântico previstos pelos romances de

fundação ao traduzir as relações em puro desejo carnal e profanação. O fracasso dos casos de

amor dos romances do boom e o erotismo político desencaminhado, de acordo com Doris Som-

mer, “faz-nos confrontar os hábitos do desejo romântico que aprendemos com o romance naci-

onal270271”. Por sua vez, Bolero reavalia as histórias de amor descritas nos romances nacionais

ao trabalhar propositalmente com a decepção do leitor ao começar com um relacionamento

fracassado.

A importância alegórica atribuída às relações amorosas, em um primeiro momento

parece encontrar harmonia com a personagem Auriflor por fazer a transição de um passado

problemático a um presente conturbado e, enfim, a um futuro tranquilo. Para Doris Sommer, há

nas ficções de fundação do século XIX “a esperança da nação de realizar uniões produtivas272”.

Não há a necessidade de os finais serem felizes para o casal, mas sim que a sua união seja

frutífera à transição e consolidação dos projetos de nação. Por isso, o fato de o personagem-

narrador não conseguir casar-se oficialmente com Auriflor devido à impossibilidade do divór-

cio com Cynthia influi diretamente no resultado do processo de consolidação ao qual sua rela-

ção alude.

Seu novo casamento só poderá ser reconhecido legalmente caso utilize do poder das

relações adquiridas através de seu novo emprego. Em suas palavras: “o despachante encarre-

gado do processo afirma que mais dia menos dia a coisa se ajeita, porque nesta cidade nada se

cria, nada se perde: tudo se consegue. É só descobrir o caminho273”. Surge, então, a necessidade

de olhar para além das relações amorosas estabelecidas no romance e compreender o processo

269 GIUDICE, 1979, p. 101. 270 SOMMER, 2004, p. 46. 271 No caso, a autora refere-se ao romance A morte de Artemio Cruz (1964), de Carlos Fuentes, por traduzir casos

de amor em estupros e jogos de poder. 272 SOMMER, 2004, p. 41. 273 GIUDICE, 1985, p. 330.

109

de transição do narrador de alienado a revolucionário e presidente das Industrias S.A. (conforme

trarei no próximo capítulo), o que, de certa forma, também está diretamente relacionado ao

fracasso da consolidação de monarquia para república e às futuras transições de regime que a

Cidade ainda sofrerá.

Ao mesmo tempo em que há um personagem-narrador vítima de abandono, há um

homem dissimulado que conjectura promiscuidades com quem lhe ajuda; do mesmo modo que

se tem um alienado tem-se também um projeto de herói. Em suas palavras: “O homem é apenas

verdade, verdade, verdade e mentiras. A grande verdade coletiva é sempre demonstrada pelo

disfarce e pela hipocrisia274”. Ele tem consciência do que os outros desejam que seja e se apro-

veita dessa situação para construir sua nova identidade, bem como as narrativas pré e pós espera

na maternidade.

A própria referência à rua que caminha rumo à estação está representada pela data

popularmente conhecida como Dia da Mentira, Av. Primeiro de Abril, e também a data do

Golpe de 64. Esse foi o mesmo caminho que utilizou para voltar após decidir não ir embora no

trem e, também, será o local onde comprará um apartamento para morar com Auriflor e os

filhos depois da transição de regime.

Desde o início de seu relato, o personagem-narrador confirma que as informações dis-

postas na narrativa são passíveis de dúvida, “a memória falha em comprimentos e larguras”275,

e ainda diz que a literatura não se distancia muito disso, tendo em vista a constatação de que

nos livros da maternidade “quase sempre a verdade prometida na primeira página se desmentia

na última276”.

É nesse sentido que Victor Giudice constrói um personagem que a todo momento es-

tabelece uma rede de esperança, mas decepciona. A decepção está fundamentada principal-

mente nas mensagens enviadas à Cynthia, pois interrompem o fluxo narrativo e trazem à tona

as preocupações com o cenário em que se encontra, já que tornar-se o único republicano na

ativa nunca fora sua intenção.

Se não fosse por essas mensagens seria possível acreditar no real progresso do prota-

gonista em superar sua relação passada, bem como em seu envolvimento com Auriflor como

um reflexo de superação política. Diante disso, a espera na maternidade e a Monarquia ficariam

no passado junto com sua relação com Cynthia, e o presente significaria um regime republicano

274 GIUDICE, 1985, p. 89. 275 GIUDICE, 1985, p. 18. 276 GIUDICE, 1985, p. 08.

110

e uma família bem-sucedida com Auriflor e seus respectivos filhos. Contudo, o personagem-

narrador vive em uma constante antítese de esquecer e odiar Cynthia, ou lembrar e amá-la. Até

mesmo quando parece estar tudo bem em sua nova vida com Auriflor e com a luta republicana,

ele clama pela esposa desaparecida.

Essa composição alude ao contexto de desfundação de Bolero, de modo que a conso-

lidação política do processo de redemocratização brasileira não será efetiva devido a impossi-

bilidade de o Brasil desvincular-se de seu passado antidemocrático. Isto é, não existe um projeto

de nação que supere os traumas dos projetos anteriores sem esquecê-los, mas que preze por

direcionar-lhes um olhar crítico e com responsabilidade social.

Portanto, Victor Giudice problematiza, através dos casos de amor do personagem-nar-

rador, a efetividade do processo de transição da ditadura e consolidação democrática. Nos ro-

mances do início do século XX, dá-se início à consciência de que os projetos de nação anteriores

foram malsucedidos e de que se deve realizar uma análise de conjuntura árdua, crítica e consis-

tente. Porém, esses mesmos textos apresentam esperança em novos projetos com base nos mo-

delos antigos. Já através da literatura pós-ditatorial consegue-se ter uma visão mais ampla desse

conteúdo e de uma política boomerang, a qual o Brasil e grande parte dos países latino-ameri-

canos estão sujeitos e amarrados.

Não há esperança para novos projetos nacionais antes que se encarem os traumas dos

anteriores. Há uma necessidade clara de enfrentar as consequências do passado nacional tal qual

ele é, sem farsas e sem “histórias de amor”. Por isso, volto a atenção agora para a proposta do

personagem Número Um sobre o pensamento ser a única arma possível contra qualquer tipo de

tirania.

111

Argumenta um líder negro que nenhuma transformação pela raiz será possível sem a participação efe-

tiva das ditas minorias, que, no caso dos negros, nem mesmo podem ser considerados minoria. Ao

povo brasileiro, sobretudo o de cor, ao invés de lhe dar pão e circo, conseguiu-se habitualmente, atra-

vés do futebol e do Carnaval, que ele próprio se transformasse no circo.

(SANT’ANNA, 1986)

112

4 PICADEIRO, PLATEIA E PENSAMENTO: A ESCRITA DO LUTO

No capítulo anterior, iniciei a discussão a respeito dos romances brasileiros de

(des)fundação com a tese destacada do personagem Número Um sobre os dois erres: regula-

mento e rei. Segundo ele, não importa o regime que esteja no poder porque, de todo modo, são

impostos regulamentos que requerem obediência e também oposição, pois a criação de regras

está diretamente associada à sua própria subversão. De nada adianta somente infringir as regras

impostas, é necessário combatê-las e é, nesse sentido, que aos dois erres opõem-se aos três pês:

picadeiro, plateia e pensamento.

A tríplice dos pês agrega a noção de desfundação por diferentes ângulos. Ao mesmo

tempo em que justifica o tom de desesperança da narrativa, questiona se, de fato, não há espe-

rança ou se o romance é um chamado para a luta. Para isso, é preciso ler Bolero como uma

alegoria do Brasil pós-ditatorial onde a transição de monarquia-república remete à ditadura-

democracia, sem esquecer que o centro político do romance é um circo, ou seja, um local em

que a farsa é o cerne, inclusive, do próprio pensamento.

Por fim, será possível entender como os três pês estão diretamente relacionados à re-

cepção da obra, ao tom de desesperança e, consequentemente, à noção de desfundação. Mas,

antes de desenvolver esses pontos, faz-se indispensável conhecer um pouco mais da história do

preso político Número Um, sua tese sobre os três pês e, finalmente, sua grande obra.

Um dia, o velho prisioneiro foi uma criança que entrava escondida no Circo para acom-

panhar a grande plateia e assistir ansioso à apresentação principal do palhaço triste, o pierrô

branco. O jovem ficava abismado com a destreza do palhaço e sua capacidade de fazer aparecer

e desaparecer a esfera de prata. Nessa época, nem imaginava que um dia viria a substituí-lo no

picadeiro.

Um pouco mais adiante, quando já havia sido convidado pelo pierrô para treinar e

aprender a técnica das esferas de prata, o jovem aprendiz compreendeu que não era um simples

truque de malabarismo: “O pierrô entrava com as mãos abanando, fazia um gesto, concentrava

o pensamento e pronto. A esfera aparecia material, de verdade, fazia as evoluções, o compasso

da valsa e era uma vez”277. Eis o segredo do palhaço: utilizar a massa encefálica e domar o

pensamento.

277 GIUDICE, 1985, p. 52.

113

O jovem pierrô amadurecia a concepção sobre o pensamento também: de mero entre-

tenimento a potencial de criação e, enfim, a meio de desalienação e revolução. A primeira fun-

ção atribuída ao número é o óbvio, tendo em vista o espaço que ocupa e a sua função social. É

de conhecimento geral que os espetáculos que compõem o picadeiro são historicamente reali-

zados para entreter os espectadores, uma prática instituída como lazer social e válvula de escape

do governo, conforme apontei anteriormente ao comentar sobre a política de pão e circo desen-

volvida durante muitos anos e por diferentes governos na Cidade, cada um com sua especifici-

dade. Essa política visa retirar o foco dos principais problemas sociais, políticos e econômicos

fazendo com que a população direcione sua atenção acrítica para outro departamento, ou mesmo

nenhum.

De acordo com Creuza Berg, durante os anos do Golpe de 64 houve insistência do

governo em promover um tipo de “anti-intelectualismo”, ou seja, dificultar o acesso da popu-

lação à educação, arte e cultura. Como já discutido em outros momentos, a divisão de censura

foi uma das protagonistas no processo de repressão no campo cultural, mas não foi a única

estratégia adotada pelos governos depois de 1964, houve também incentivo para aqueles que

produzissem conteúdo às “massas”, como a televisão e a linguagem de espetáculo no cinema

que, por sua vez, “acaba por ocasionar o nivelamento, a uniformização do pensar, que eleva o

medíocre e tolhe os cérebros mais brilhantes278”.

Os governos autoritários proporcionam e incentivam educação, arte e cultura, porém

nos moldes que lhe parecem mais adequados para distração, em outras palavras, sem teor crítico

ou construtivo e sem a preocupação com a qualidade estética do produto artístico. Isso é o que

Flora Sussekind chama de “estética do espetáculo” que, segundo a pesquisadora, se define como

“uma estratégia repressiva ladeada pela determinação de uma política nacional de cultura, e um

hábil jogo de incentivos e cooptações279”. É nesse contexto que a política de pão e circo ofere-

cida pelos espetáculos da Cidade se enquadram. Até mesmo a técnica do pierrô branco procu-

rava inicialmente desenvolver um pensamento limitado e dentro dos parâmetros aceitáveis pe-

los regulamentos impostos pelo rei.

Porém, diferente de seu mestre o segundo pierrô quis ir além da simples repetição de

movimentos e pensamentos pré-estabelecidos. O jovem não se conteve em simplesmente ma-

terializar uma esfera de prata, mas quis multiplicá-la: “Se naquele momento alguém já estava

278 BERG, 2002, p. 68. 279 SUSSEKIND, 1985.

114

habituado à aparição de uma única esfera e assistia ao número mecanicamente, deixando o ra-

ciocínio se perder em outros caminhos, o aparecimento de duas esferas colocou a atenção na

estrada certa”280.

Ele percebeu que era necessário fazer do pensamento um meio de expressão e não

simplesmente de reprodução. À medida que as esferas se multiplicavam, o espetáculo se aper-

feiçoava e, consequentemente, o fluxo de pensamento e de ideias também. No total, foram du-

zentas e oitenta e sete esferas materializadas ao mesmo tempo pela ânsia de envolver a plateia

e despertar alguma emoção, interesse, motivação ou qualquer coisa que os tirassem daquela

monotonia. No entanto, “os aplausos continuaram mecânicos, mas a boca e a pupila da arqui-

bancada se apagaram”281.

Não havia interesse por parte da plateia em mudar aquele espaço de entretenimento

sem contemplação, bem como seus companheiros de picadeiro em sua plena obediência. Esta-

vam todos confinados em sua própria alienação: o pierrô, “condenado a própria arte [...] numa

obediência cega aos princípios da beleza282”, e a plateia numa prisão sem grades.

O Circo está sempre presente entre monarquias e repúblicas. Porém, naquela época,

estava sob o comando da realeza (tal qual ocorre no tempo “presente” da narrativa):

O palhaço: Quem mata a fome negra do freguês?

O público: O rei! O rei! O rei!

O palhaço: Quem paga mil salários todo mês?

O público: O rei! O rei! O rei!

O palhaço: Quem multiplica um pão por mais de seis?

O público: O rei! O rei! O rei!

O palhaço: Quem enche a pança, camponês?

O público: O rei! O rei! O rei!

O palhaço: E a casa do operário de mercês?

O público: O rei! O rei! O rei!

O palhaço: Quem corta mil cabeças de uma vez?

Antes que a plateia respondesse, surgiram em cena dois clowns vestidos carica-

turalmente à moda da tal guarda pretoriana283.

Nesse trecho, o palhaço Eusebius utilizou-se de uma performance aparentemente ino-

cente como ferramenta para demarcar o poder da Monarquia. Por meio do humor, o rei testa a

obediência, o respeito e, inevitavelmente, o medo da plateia. De acordo com a tese do segundo

pierrô, o picadeiro representa os artistas do Circo, súditos fiéis do rei; a plateia é a população

alienada que segue o fluxo dos regulamentos impostos pelo mesmo monarca; e o pensamento,

280 GIUDICE, 1985, p. 56. 281 GIUDICE, 1985, p. 59. 282 GIUDICE, 1985, p. 59. 283 GIUDICE, 1985, p. 142.

115

um elemento fora do alcance real. Desse modo, picadeiro e plateia são elementos visíveis e

estão diretamente a favor do monarca, ao passo que o pensamento pertence ao invisível e, dessa

forma, pode ser utilizado para fins contrários ao rei.

O pierrô não compreendeu a grandeza do pensamento como potencial de criação e

mudança quando aprendeu a manusear a esfera de prata pela primeira vez. Provavelmente, seu

antecessor e mestre não tinha noção do poder que tinha em mãos, ou o medo do inimigo lhe fez

acomodar-se no simples ato de reproduzir. Com o passar do tempo, o aprendiz compreendeu

que não importava quantas esferas manuseasse durante o espetáculo se não pudesse sacudir dois

mil cérebros não pensantes e transformá-los em dois milhões de ideias. Por isso, descobrir que

o pensamento é invisível aos olhos do grande monarca significava o domínio do poder. Esse

despertar foi denominado por ele de “a grande obra”, e essa para acontecer “bastava o invisível

dominar o visível, a verdade se sobrepor à realidade e à realeza284”.

Foi necessário ter um panorama de todos os envolvidos no processo de criação e re-

cepção para poder surpreendê-los, tendo em vista que a plateia tinha total conhecimento do que

esperar do picadeiro e vice-versa:

O pê de plateia era feito da mesma massa do pê de padaria, prostíbulo,

putrefação, pobreza, pavor, provisório, preguiça, pândega, proselitismo, perjúrio. Um

pê petrificado na própria podridão. Mas restavam dois: o de picadeiro e o de pensa-

mento. O pê de picadeiro eliminava-se facilmente, pois era ele que produzia o pê de

plateia. Hem? Que tal? Sobrava o pensamento285.

O pensamento era o único meio de provocar nos espectadores algum tipo de reação

como o medo, o riso, a comoção e o estranhamento. Era “um pê solitário entre tantos pês pu-

trefatos. O único ainda invisível e por isso mesmo intocável. Pensamento e purificação [...] o

pensamento é feito do mesmo pê da procura, do provável e do possível286”. Antes mesmo que

conseguisse colocar sua grande obra em prática, seu parceiro, o clown Corsário, foi preso, tor-

turado e morto como suspeito de iniciar um ato subversivo durante o espetáculo. Uma simples

luz derramada do pensamento do pierrô causou a morte de um inocente bem como a sua prisão,

após confissão. Diante disso, a grande obra, que nem chegou a ser realizada foi também o mo-

tivo pelo qual ele tornou-se o Número Um, preso político e companheiro de cela do persona-

gem-narrador.

284 GIUDICE, 1985, p. 58. 285 GIUDICE, 1985, p. 61. 286 GIUDICE, 1985, p. 61.

116

Assim como Minimus, o Grande287, ousou encarar por um segundo o rei durante uma

acrobacia e no segundo seguinte já estava morto, o Pierrô teve o mesmo destino, não a morte

eminente, mas ao tentar ser exceção tornou-se a regra. Nas várias prisões, entre monarquias e

repúblicas, o Pierrô percebeu que

quem vive na obediência restrita aos regulamentos, será conivente com a

grande massa corruptora. Fui contra uma e acabei preso pela outra. Fui contra outra e

acabei preso pela uma. Depois não me soltaram mais porque descobriram que eu lim-

paria o rabo com qualquer regulamento que me apresentassem288.

O pensamento deveria ser a exceção entre os três pês. Era no que ele acreditava. No

decorrer da narrativa, o personagem-narrador também ousou pensar, e sua revolta impulsionou

a materializar um punhal e matar o rei. Mas, por fim, descobriu que tudo fazia parte do espetá-

culo, somente mais um número do circo.

Talvez o pensamento não deva ser uma exceção, e sim parte de um conjunto que resulta

da soma da totalidade dos pês. O “pierrô perdia-se por não perceber os efes perdidos nos pês.

A fraqueza e a falha do pensamento solitário. [...] Nunca teria feito o que fez ou pelo menos

tentado, se tivesse um minuto de burrice289”, ou seja, o pensamento isolado do contexto real-

mente fere somente ideias, contudo não traz mudanças, de fato.

O pierrô branco sucumbiu ao luto por tantas tentativas malsucedidas de realizar sua

grande obra e, devido a isso, entregou-se de uma vez por todas ao cárcere. Não era mais o jovem

prodígio e sonhador espectador do circo; não era mais o fascinante pierrô das duzentas e oitenta

e sete esferas: tornou-se o prisioneiro Número Um, o baixo cantante, o amigo do maestro de

capuz negro e o companheiro de cela do personagem-narrador.

O ex-pierrô e agora eterno prisioneiro político foi o primeiro a chamar o protagonista

do romance de republicano, simplesmente pelo fato deste ter retirado uma flor de plástico dou-

rada do canteiro central da Cidade. Além disso, por ter infringido um dos principais regulamen-

tos e o negar constantemente, o pierrô acusa-o de ser o pior criminoso que já passara por ali,

seja na prisão monarquista ou republicana.

Apesar da relação dos dois não ter sido a mais amigável por causa das circunstâncias,

os diálogos que traçaram foram imprescindíveis para a construção da identidade revolucionária

do personagem-narrador. Para além das teses sobre os dois erres e os três pês, a influência do

287 Um dos maiores acrobatas do tempo do pierrô branco morreu com uma “faca engavetada em suas costelas” por

ter a “petulância de encarar a monarquia” (1985, p. 60). 288 GIUDICE, 1985, p. 45. 289 GIUDICE, 1985, p. 61.

117

prisioneiro Número Um foi tamanha que, ao chegar na casa da aurifamília, o personagem-nar-

rador não hesitou ao pegar na estante aquele livro que tantas vezes lhe foi questionada a leitura:

“Já leu os Pensées? Não? Então leia290”. O personagem-narrador teve sua vida virada ao avesso

ao ser preso e conhecer Número Um, mas, na realidade, tudo começou quando dera entrada na

maternidade da Seis de Outubro.

O tempo é um elemento essencial na narrativa: tem-se o tempo psicológico, marcado

pela perda de memória do personagem; e o tempo físico, da transição de regimes. Tudo acon-

teceu num intervalo de sete anos: ele e a esposa foram dar à luz a um filho numa república; saiu

sem filho, sem esposa e numa ditadura monarquista. Depois não se tem informação de quanto

tempo esteve preso nem quanto tempo se passou até o incidente com o punhal.

Sua evolução acontece à medida que toma consciência sobre a conversa que teve com

o personagem Número Um na prisão. As informações, que, a princípio, soaram surreais, come-

çaram a fazer sentido: “a realidade despojada de todas a mentiras291”. Se um dia o personagem

escolheu viver alheio aos acontecimentos ao seu redor, limitando-se apenas a Cynthia, isso já

não era possível. Seu relacionamento com Auriflor serviu como gatilho para a guinada rumo a

desalienação e a (nova? antiga?) república.

Ainda que seus relacionamentos amorosos digam muito sobre o processo político ao

qual a narrativa giudiciana nos remete, faz-se importante e essencial olhar também para os de-

mais personagens que compõem esse emaranhado de relações. Principalmente aqueles que, de

alguma forma, contribuíram para esclarecer as mudanças ocorridas na Cidade durante e após o

tempo em que o protagonista estivera “preso” na sala de espera da maternidade.

O despertar do pensamento, a passagem de alienado político a último republicano na

ativa, o reconhecimento do luto sobre o relacionamento falido com Cynthia e sobre a transição

política da Cidade são elementares para fundamentar a noção de desfundação. Esse sentimento

de luto provocado pelo fracasso do despertar do pensamento como a grande obra, tanto do pierrô

quanto do protagonista, ressoa na desesperança expressa ao final da narrativa.

Segundo Idelber Avelar292, as narrativas do luto pós-ditatoriais não são necessaria-

mente aquelas escritas durante ou depois do processo de redemocratização, mas sim aquelas

que conseguem incorporar a reflexão sobre a derrota em seu sistema. Em outras palavras, a

literatura pós-ditatorial propicia uma análise crítica desse momento sem tapear, dissimular ou

290 GIUDICE, 1985, p. 44. 291 GIUDICE, 1985, p. 57. 292 AVELAR, 2003.

118

embelezar um processo falho, além de carregar as sombras e consequências de uma sociedade

viciada em transições e consolidações fracassadas.

A narrativa de desfundação, assim como a pós-ditatorial, dá um “empurrão que faz do

passado não realizado a alegoria mesma de um presente em crise que faz, portanto, que o pre-

sente, se reconheça no rosto do passado falido293294”. Pressupõe-se que, ao contar uma história

que remeta a um passado não muito distante, conseguem-se perceber as falhas do presente, ou

seja, a transição de ditadura para democracia e suas futuras consequências295.

A Cidade de Bolero encontra-se claramente em ruínas no que diz respeito à política.

O personagem-narrador representa um reflexo desse contexto caótico, pois, fruto de uma histó-

ria mal contada, o alienado torna-se herói republicano. É fundamental olhar para esse encadea-

mento da formação do personagem do mesmo modo que se olha para a nação traumatizada.

Porém, isso somente será possível se voltarmos às suas memórias, como o próprio faz ao escre-

ver suas memórias (ou falta delas).

Sua memória fragmentada se espelha na narrativa, também fragmentada e polifônica.

O personagem recorre a outras vozes para conseguir restituir sua vida e escolher qual realmente

é a sua identidade: a de marido e pai abandonado por Cynthia grávida; a de alienado e preso

por engano; ou a que Auriflor, Auritio e o Número Um consciente e inconscientemente espera-

vam que ele fosse, revolucionário republicano.

Como um quebra-cabeças, o quadro não estaria completo sem as pistas deixadas nos

contos e nos paratextos de Necrológio e Os banheiros. O mesmo pode ser dito sobre as relações

estabelecidas no decorrer da narrativa, a iniciar pela primeira prisão, a fase de preso político,

os encontros com o maestro de capuz negro, a arte inacabadista do amigo Ladislau, as cicatrizes

forjadas no ateliê, a reunião do clube dos torturados, a clandestinidade, o circo etc., todos esses

elementos lhe (nos) ajudam a compreender o sistema político da Cidade e seu papel diante de

tudo isso.

293 AVELAR, 2003, p. 29. 294 Idelber Avelar nesse trecho refere-se ao romance Em liberdade, de Silviano Santiago, mas creio que a reflexão

cabe para Bolero e, consequentemente, para a noção de desfundação. 295 Conforme discutiremos melhor no capítulo seguinte.

119

4.1 DE ALIENADO A ÚNICO REPUBLICANO NA ATIVA

“Ao atravessar a porta da prisão e pisar na rua, estava eu saindo da prisão ou en-

trando nela? De que lado das grades de uma cela existe a liberdade?296”

Bolero narra a história de um sujeito perdido. Perdido no tempo e no espaço. Perdido

em sua própria existência. As lembranças dos sete anos de espera na maternidade se resumiram

em uma cadeira e nos cafés oferecidos pela enfermeira de pernas-ponteiro. Ao sair de lá, o

personagem deparou-se com a surpresa de não viver mais em uma república, e sim em uma

monarquia. O esquecimento de sua própria história naquela Cidade levou-o a tornar-se, por

acaso, um preso político.

É muito fácil identificar o romance como alegoria do Brasil nos anos oitenta. Qualquer

uma das inúmeras sinopses a seu respeito que fiz ao longo desse trabalho podem nos levar a

essa conclusão. Ao escolher utilizar a alegoria como mecanismo literário de Bolero, Victor

Giudice não se distanciou muito dos seus colegas escritores e nesse caso, provavelmente, não

foi para burlar a censura.

Apesar do livro ter sido construído entre as décadas de 1970 e 1980, a esposa de Victor

Giudice informou que a obra teve sua escrita concretizada ao longo de 1984, momento em que

a censura aos intelectuais e artistas já não estava tão ativa, devido ao declínio do regime militar.

Logo, não é possível dar os méritos da obra aos generais da ditadura.

Idelber Avelar problematiza, em seu livro Alegorias da derrota297, a relevância dada,

por vezes, à repressão da ditadura militar sobre produções de grande valor estético298. Sua po-

sição está pautada na dicotomia entre a genialidade do artista e a obrigação de inovar nas téc-

nicas em decorrência da censura contra aquelas de denúncia. Isso significaria “conceder aos

censores argentinos qualquer mérito por Respiração artificial, de Ricardo Piglia [...] ou ainda

aos generais brasileiros pelas canções de Chico Buarque de Hollanda299”.

Por outro lado, faz-se importante considerar todo o contexto social, histórico e artístico

tendo em vista que tanto o experimentalismo quanto a alegoria são artifícios que se sobressaem

durante os governos autoritários, principalmente pelo fato de a alegoria ser um “estratégico

296 GIUDICE, 1985, p. 114. 297 AVELAR, 2003. 298 AVELAR, 2003. 299 AVELAR, 2003, p. 20.

120

instrumento ideológico” e, quanto maior a repressão na sociedade, o “seu valor de uso passa a

ser basicamente seu valor de troca300”.

A Cidade de Bolero, sob o comando da monarquia, pode ser relacionada ao Brasil da

ditadura militar e a república como democracia. Em uma leitura rasa, essa seria a maneira de

considerar a alegoria nacional da obra como uma substituição metafórica de um elemento por

outro. No entanto, a relevância da proposta de Victor Giudice está na forma e no contexto em

que foi construída a alegoria, de modo que o conjunto do enredo faz alusão ao Brasil durante o

processo de transição dos regimes, seus traumas e suas consequências.

Isso ocorre, primeiramente, pelo fato de ambos os regimes — monarquista e republi-

cano — terem suas origens alicerçadas em governos autoritários, conforme o próprio Número

Um conta. E pelo fato de nunca ter ocorrido entre as transições um processo de consolidação

política efetivo, tal qual foi possível compreender através da intratextualidade do conto “Miguel

Covarrubra”, presente no livro Os banheiros.

O Brasil, que havia vivido nos últimos vinte anos um de seus piores momentos da

História, caminhava em direção à esperança: a tão sonhada democracia; mas, antes mesmo de

ser dada como certa, a sociedade continuava respirando os ares ditatoriais. Diante desse quadro,

Victor Giudice propõe pensar além dos últimos acontecimentos, ao dispor de questões do pas-

sado para problematizar o presente (e o futuro), de modo que os elementos alegóricos da narra-

tiva atuam para além da transição política de monarquia/ditadura para república/democracia.

De acordo com Flávio Kothe,

A alegoria é um índice da história que poderia ter sido mas não foi. Ela é a manifes-

tação e denúncia implícita do reprimido. Não explicitando essa denúncia em seus

agentes, mancomuna-se com a repressão, ainda que a contragosto às vezes não lhe

resta alternativa. Mas, em geral, a alegoria tem sido utilizada para que os principais

chavões da ideologia da classe dominante sejam reiterados como logotipos de amplo

espectro comunicativo301.

Todos os episódios da trama têm como alicerce a farsa e cada cena adquire um signi-

ficado complementar, ou seja, onde parece terminar a alegoria é onde realmente começa a lei-

tura alegórica302. Portanto, como já foi possível ver, ao longo desse trabalho, todos os fragmen-

tos presentes em Bolero poderiam ser lidos independentemente e terem suas interpretações des-

vinculadas do enredo “principal” do romance. Porém, quando se propõe fazer a leitura “por

300 Flávio KOTHE, 1986, p. 21. 301 KOTHE, 1988, p. 67. 302 KOTHE, 1988.

121

inteiro”, percebe-se que os elementos alegóricos presentes em cada um potencializam a pro-

posta geral.

Para ir além da problemática da transição de regimes e contemplar a leitura de Bolero

como uma subversão ao romance de fundação, deve-se passar a olhar os fragmentos como eta-

pas do processo de transformação do personagem-narrador de alienado a republicano. E, tam-

bém, tomá-lo como figura representativa dos traumas nacionais.

Assim sendo, os sete anos que passou na maternidade alienado de todos os fatores

externos é a primeira derrota apresentada na narrativa, mesmo se considerarmos o que ele conta

sobre Cynthia e o filho ou outra história que está sendo omitida na narrativa. Verdade ou não,

a história do desaparecimento de sua esposa durante o parto pode ser vista como uma forma do

personagem mudar e não precisar lidar com o passado conturbado. Ao invés de encarar o pro-

blema, torna-se mais fácil construir uma nova narrativa sobre ele. Nesse sentido, duas interpre-

tações são possíveis alegoricamente: a primeira diz respeito ao período de transição de um pro-

jeto de nação para o outro; a segunda, aos regimes antidemocráticos e autoritários.

Ao ter um projeto fracassado e, na sequência, o início de outro, comumente opta-se

por não olhar com a devida responsabilidade para os erros cometidos ao longo desse processo.

Em consequência, surgem novos traumas com grande possibilidade de potencializar os anteri-

ores. Portanto, a alienação do personagem-narrador e a perda de memória sobre a história da

cidade em que nasceu e cresceu são coniventes para que dê o próximo passo.

Já sobre o outro ponto, os governos autoritários tendem a manipular os meios de co-

municação para que a história registrada seja aquela que os favoreçam, tanto sobre o presente

quanto sobre o passado. Nesse caso, o governo se aproveita da alienação da população para

implementar a política do esquecimento e alterar a percepção dos acontecimentos históricos.

Desse modo, a alienação do personagem lhe possibilita construir uma nova identidade indepen-

dente de sua vida anterior.

Essas duas possibilidades de interpretação são complementares, tendo em vista que

estamos considerando os projetos de nação fracassados e os regimes antidemocráticos que in-

tegram a nossa história nacional, o que nos leva à segunda derrota do personagem-narrador: a

prisão e a tortura. Segundo Ivete Keil, “a tortura foi o coração do drama que constituiu a vigên-

cia da ditadura militar no Brasil. Institucionalizada pelo Estado, a tortura adquiriu, além de um

conteúdo ético, um conteúdo político303”.

303 Ivete KEIL, 2004, p. 41.

122

Nessas circunstâncias de clausura forçada, a pessoa perde a noção de tempo e de es-

paço de modo que, do ponto de vista simbólico, a espera sem fim pela chegada do filho na

maternidade pode também ser considerada sua primeira experiência de prisão e tortura. Já a

segunda, ao invés da sala de espera, tem-se uma cela na companhia dos monólogos do compa-

nheiro Número Um e dos encontros com o “maestro de capuz negro”.

Foram duas prisões, e ambas deixaram marcas que ultrapassaram os limites do corpo

e do tempo. Mas, ainda assim, a veracidade de parte da história do personagem é colocada em

dúvida: não é possível provar a espera de sete anos na maternidade, pois ele dispõe apenas do

testemunho ocular da enfermeira de pernas-ponteiro. Já a tortura na prisão sim, essa deixou

marcas em seu corpo, conforme seu relato sobre a reação dos vermelhoazuldourados ao con-

duzi-lo à “câmara de.”: “A transformação de minha cara e de algumas partes do meu corpo

proporcionava-lhes o mesmo deleite de um conhecedor de Arte numa galeria do Louvre304”.

No livro testemunhal de Roberto Salinas, Retrato calado (1988), há um trecho em que

o escritor afirma não ser possível comparar diferentes sistemas repressivos. Contudo, constata

que há um padrão universal e invariável no “imaginário repressivo” que os aproximam. Salinas

está se referindo aos métodos de tortura utilizados pela polícia da qual foi vítima durante a

ditadura miliar brasileira305.

É óbvio que um abismo separa o sistema repressivo posto em ação a partir de 68 e,

por exemplo, aquele que vigorou no auge do stalinismo, na União Soviética. Certo:

muitos dos métodos de tortura foram idênticos e, lá como cá, o desempenho do poder

de polícia parece fornecer demonstração eloquente de como são universais e invariá-

veis as estruturas do imaginário repressivo306.

O discurso trava e, por vezes, busca-se na metáfora uma forma de recuperar as expe-

riências vividas. O escritor dedica poucas linhas ao relato da tortura em si pois, uma vez que

não é possível descrevê-la, seu livro consiste em longas páginas sobre as sensações que viveu

e presenciou dentro e fora das prisões, detalhando alguns métodos físicos e psicológicos dos

quais foi vítima. Até mesmo na ficcionalização de suas memórias há hesitação e é possível

perceber o esforço, a coragem e a dificuldade em expressar em palavras o que um dia sofrera

nos porões da ditadura.

304 GIUDICE, 1985, p. 38. 305 Segundo o livro Brasil: nunca mais, o ato de tortura, defendido pelas ditaduras militares, era considerado “mé-

todo científico”, sendo o Brasil exportador de tal tecnologia. Como parte do sistema repressivo, havia aulas e

demonstrações didáticas dos métodos com a utilização de cobaias (2011, 31-3). 306 Roberto SALINAS, 2018, p. 41.

123

Já Bolero não é um registro de ocorrência, documento, diário ou depoimento memori-

alístico; é uma literatura de pura ficção e, mesmo assim, o personagem-narrador hesita, treme

e teme ao evocar suas memórias mais dolorosas: a espera na maternidade e a tortura na prisão:

“A tortura é irmã gêmea de uma sinfonia de Beethoven. Tanto na grandiosidade quanto na

intensidade da emoção transmitida. (...) Ninguém descreve Beethoven. Ninguém descreve a

tortura. Alguém sente Beethoven307”; essas são suas palavras para contar o que viveu na “câ-

mara de.”. Segundo o personagem, ao final de cada peça sinfônica os espectadores ficam lem-

brando as outras excelentes performances que presenciaram, mas é impossível revivê-las ou

descrevê-las, pois cada apresentação é um evento único. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto

o prazer quanto a tortura chegam a parecer quase irredutíveis ao plano discursivo.

Victor Giudice não escreve o horror; ele se limita a refletir sobre a possível lógica que

rege o ato da tortura, conforme as palavras do personagem-narrador:

Não há linguagem capaz de descrevê-la, desde o momento em que cesse de

ser exercida. Já li e vi extensas narrativas a respeito de pessoas torturadas até a morte,

e sempre me ficou a impressão de um amontoado de baboseiras que não conseguem

nenhuma apreensão do real308.

Como dar forma ao incompreensível? No capítulo/fragmento intitulado ‘Ludwig e o

carrasco309310’, Giudice emprega uma combinação inesperada da beleza da quarta sinfonia de

Ludwig van Beethoven com a brutalidade do ato da tortura. Tal comparação, para uns poderia

soar como absurdo, mas esse contraste representa o limite tênue, singular e inesquecível da

impecabilidade que se espera tanto da atuação do maestro quanto do carrasco.

[...] as notas de Ludwig ficarão ecoando de vitral em vitral, num eterno cânon, até o

dia em que se perceber que foi para esta catedral esférica e inescapável que um surdo

perdeu o precioso tempo, rabiscando as pautas da perpetuidade. Se tal dia existir,

ótimo. Se não, ótimo também, pois a derradeira prova da existência de uma civilização

vai retinir de espaço em espaço nos acordes de uma sinfonia, acompanhados pela per-

cussão de um carrasco311.

Contudo, as ausências de conotação emocional no discurso e dos detalhes sobre a vi-

olência não retira o aspecto de denúncia contra a repressão, pois a intensidade da tortura não

307 GIUDICE, 1985, p. 39-40. 308 GIUDICE, 1985, p. 39. 309 Os capítulos do romance não recebem titulação, mas o manuscrito encontrado no acervo indicava a informação

entre parênteses de que se tratava de um fragmento. Interessante pensar na pretensão de Victor Giudice em publicar

esse fragmento como conto, e o porquê não o fez. 310 Identifiquei no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa outros manuscritos com a indicação de fragmento de

romance e titulação, mas que também não foram publicados como contos avulsos: “Dueto, recitativo e ária”, “O

último natal de Holofernes: o gordo”, “Parábola do jogo de xadrez” e “Prezada, Cynthia” ou “Carta a Cynthia”. 311 GIUDICE, 1985, p. 40.

124

suscita somente palavras, mas também silêncio. Ao retornar à cela depois de sua visita matinal

ao “maestro de capuz negro”, o protagonista recebeu cuidados do seu companheiro cujo rosto

também apresentava marcas de sangue.

Nesse momento de cumplicidade, o prisioneiro Número Um perguntou detalhes de seu

encontro utilizando um tom trivial sobre o ocorrido, mas, apesar da indignação, a resposta li-

mita-se ao silêncio:

As palavras eram ruídos de fumaça, cuja compreensão só fazia irritar. Não fosse a

cordialidade do trapo nos ferimentos, não sei como teria reagido. Fiquei no catre, in-

sensível aos movimentos do velho. Acho que houve um cochilo meio prolongado312.

Após o ocorrido, o personagem-narrador evita falar sobre o assunto seja com seu com-

panheiro de cela, com sua nova namorada ou com qualquer pessoa, apesar de todos a todo

momento lembrarem-no de que ele é um torturado.

Segundo Márcio Seligmann-Silva, olhar para a história como trauma coloca em pauta

a possibilidade de construir uma representação, pois o trauma é, por definição, algo irrepresen-

tável e que se evita lembrar, pelo grau intolerável de dor a qual está associado313; são situações

que querem ser esquecidas, mas não podem.

Victor Giudice encontrou na metáfora sobre arte uma maneira de descrever o indescri-

tível. Já Sérgio Sant’Anna faz diferente em Confissões de Ralfo: o escritor denuncia o absurdo

da tortura não pela violência, mas através das perguntas descabidas do carrasco. De acordo com

Flora Sussekind, a estratégia utilizada por Sant’Anna “tematiza de maneira extremamente efi-

ciente a dificuldade de se tratar literariamente da tortura” e serve “tanto para obrigar o leitor a

perceber a gratuidade da violência, quanto para impedi-lo via humor, de derramar lágrimas

amargas pelo que o texto sugere314”, ou seja, o humor não tem o intuito de fazer graça ou dimi-

nuir a dor alheia, mas de causar incômodo ao outro (leitor) e deixá-lo desconfortável.

Nota-se em Bolero e em Confissões de Ralfo que o cômico aparece nas imagens cons-

truídas sobre os agressores. O personagem do torturador em Bolero não possui nome nem lhe

é dada a palavra na narrativa. A princípio, constrói-se sobre ele uma imagem grotesca, aquele

que ri “antes. Durante. Depois. Depois. Durante. Antes. No antes: perguntava e ria. No durante

e no depois, só ria315”.

312 GIUDICE, 1985, p. 41. 313 Márcio SELIGMANN-SILVA, 2008. 314 SUSSEKIND, 1985, p. 51. 315 GIUDICE, 1985, p. 38.

125

De acordo com Maria Rita Kehl, a tortura é uma ação por excelência humana, pois não

se conhece outro animal capaz de “instrumentalizar o corpo de um indivíduo da mesma espécie,

e de gozar com isso316. Segundo o relato do personagem-narrador, o “maestro de capuz negro”

ria durante as sessões de tortura, o que lhe concedeu de início um desvio de caráter. Nesse

sentido, o riso atua em conjunto com a violência como manutenção do poder, uma forma de se

impor e estabelecer seu lugar na hierarquia política e, inclusive, sobre a vítima, principalmente

nas circunstâncias do protagonista — que foi preso por cometer crimes “graves”, como retirar

uma flor dourada do canteiro da Cidade.

Na sequência, à medida que os dias na prisão vão passando e os encontros tornando-

se mais frequentes, ao torturador é dada a alcunha de “maestro de capuz negro”, “o intérprete

do terror desenterrando o mistério das manhãs, ao ritmo de uma sinfonia desafinada317”. Toda

informação sobre o torturador nos é fornecida pelos depoimentos do narrador e de Número Um

que, por sua vez, divergem de opinião já que o ex-pierrô surpreende o narrador e o leitor ao

defender aquele.

Segundo o ex-palhaço triste, o carrasco — que o protagonista tanto odeia e teme — é

neto de um grande amigo seu e, sobretudo, é um senhor respeitável, chefe de uma família. Esse

é o breve momento da narrativa em que o algoz ganha destaque. Número Um insiste em dizer

que ser torturador é uma profissão como outra qualquer, embora seja reconhecida sua indigni-

dade. Em suas palavras: “Isso faz com que o carrasco mereça mais pena do que ódio318”, uma

vez que está em posição de subordinado ao receber e obedecer às ordens de outrem; como se

isso o destituísse de qualquer responsabilidade. Segundo Kehl,

A tortura moderna não desarticula apenas, no torturado, o corpo e a linguagem: ela

desarticula um homem (torturador) da relação com seu semelhante (torturado) que o

primeiro faz sofrer, às vezes até a morte, como se não tivesse qualquer participação

subjetiva nesse ato. Desarticula também dessa forma a relação entre um homem no-

vamente o torturador e seu próprio desejo, que o fez aceitar o “trabalho sujo” e acatar

as ordens que se limita de maneira falsamente impessoal319.

Pela perspectiva da autora, apesar do prisioneiro Número Um insistir, não é possível

justificar a participação do carrasco no sistema repressivo como uma profissão qualquer ou por

sua obediência cega ao sistema.

316 Maria Rita KEHL, 2004, p.13. 317 GIUDICE, 1985, p. 42. 318 GIUDICE, 1985, p. 44. 319 KEHL, 2004, p. 18.

126

Mas é fato que ambos perderam sua dimensão humanizada e dificilmente a recupera-

rão, pois o sujeito que sofre violência tem seu corpo transformado em objeto nas mãos daquele

que destitui da vítima sua possibilidade de defesa. Para tanto, a tortura jamais poderá ser con-

siderada desumana, pois, conforme destaca Kehl, “a tortura só existe porque a sociedade, ex-

plícita ou implicitamente, a admite [...] Ela é humana”320.

Por outro lado, a familiaridade e a cumplicidade entre o carrasco e o prisioneiro Nú-

mero Um podem também ser lidas como uma consequência do trauma. Afinal, há cinquenta e

quatro anos aquele é vítima de torturas diárias, situação que lhe concedeu um rosto desfigurado

e uma pele calejada de tanta pancada. De acordo com as impressões do personagem-narrador

ao olhar claramente para o companheiro de cela:

O retângulo do sol, prenunciado na véspera, traçou um relatório visual das mazelas da

masmorra. As sucessivas metamorfoses da massa facial de meu companheiro não se

moldavam em medo envelhecimento. As rugas rompiam ao redor das órbitas e escor-

regaram pelo rosto, rasgando riscos ou rabiscos de irrigações recriadas pelo artifício

do carrasco321.

Para o narrador, não faz sentido algum continuarem torturando o velho ex-pierrô: de-

pois de tanto tempo, qual poderia ser sua contribuição para as investigações do governo? Nada.

Nota-se, nesse caso, que a tortura perde seu caráter político e a sua condição de “método cien-

tífico” de investigação para ser apenas um protocolo e, diante disso, está muito mais relacionada

ao poder que coloca os torturadores em posição de total dominação diante do torturado.

A violência desses procedimentos quebra por completo o indivíduo torturado, de tal

forma que o prisioneiro Número Um após tantos anos de torturas diárias já não possuía nenhum

pedaço para reconstruir, e talvez seguir visitando o “maestro de capuz negro” significava uma

forma de dar propósito à sua existência limitada. Tanto é que o personagem passa a dignificar

a tortura e se coloca em posição de privilegiado por recebê-la: “Tenho tanto direito à tortura

quanto qualquer canário dessa gaiola. As pessoas torturadas são as que ainda têm alguma coisa

para dizer. Só os eleitos sofrem torturas. Se não sabia, fique sabendo. Já leu os Pensées?322”.

As técnicas de crueldade são tão agressivas que prejudicam as faculdades mentais e

físicas daqueles que sofreram tais atos, impossibilitando-os de voltar a ser uma ameaça ao sis-

tema. Isso significa, no contexto da narrativa, impedi-lo de utilizar o pensamento e voltar-se

320 KEHL, 2010, p. 130. 321 GIUDICE, 1985, p. 42. 322 GIUDICE, 1985, p. 44.

127

novamente contra o poder estabelecido. Daí a importância e o perigo que representa ser um ex-

prisioneiro e torturado na sociedade da Cidade e em qualquer outro sistema repressivo.

Quando o personagem-narrador finalmente saiu da prisão e retornou à sociedade, per-

cebeu que sua vida mudara por completo. Nunca mais seria o sujeito na maternidade, conforme

constatou em certo momento: “Viu, Cynthia, em que é que deu sua brincadeira de esconde-

esconde? Vezirrê Budru e o Ajudante Máximo estarão de olho em mim até que a Monarquia se

estupore323”.

Ajudante Máximo, chefe da guarda circense, aproveita todos os encontros inusitados

com o protagonista para questioná-lo sobre suas atuais intenções, sobre seu passado e sobre as

suas relações. Uma vez preso político, sempre estará na mira da vigilância nacional e terá al-

guém para lembrá-lo disso; ainda que não seja necessário. A ação do chefe da guarda adiciona

outra forma de tortura, a psicológica, tão “eficiente” quanto a física. Muitas vezes atuam juntas,

afinal, a tortura deixa marcas, muitas vezes invisíveis, nos corpos.

O discurso do torturado conserva uma íntima relação com o corpo. Um corpo que não

se restringe às marcas, mas se expande para o seu íntimo. Nas palavras do personagem-narrador,

“a tortura só é válida ou mensurável quando praticada324”, indescritível e inimaginável para

aqueles que nunca passaram por tal situação. Por esse motivo também, ser vítima dela é tão

importante para fazer parte do “Clube dos torturados” como o próprio nome sugere, e princi-

palmente para ser considerado um republicano na ativa.

Ao sair da prisão e receber o apoio e abrigo da aurifamília, o personagem-narrador

estava inconscientemente aceitando sua posição como ex-prisioneiro político e atual revoluci-

onário republicano. Auritio e Auriflor estruturaram uma rede de relações para torná-lo a perso-

nificação da esperança. No entanto, em certa altura da narrativa descobre-se que a tortura não

havia deixado marcas em seu corpo.

Cadê as cicatrizes?

[...]

Sabia que as torturas não deixaram nem uma só marquinha pra contar a his-

tória?

[...]

Corri para o espelho do armário. Era verdade. Pouco restava do círculo arro-

xeado em meu olho esquerdo e dos dois cortes ao lado da boca e abaixo da orelha.

Mais uma semana e minha condição de ex-torturado estaria prejudicada pela recons-

tituição da pele325.

323 GIUDICE, 1985, p. 157. 324 GIUDICE, 1985, p. 39. 325 GIUDICE, 1985, p. 183-4.

128

O diálogo acima suscita-nos a reflexão sobre o embate entre a vontade do torturado de

esquecer e a necessidade de denunciar e provar o suplício. Nesse caso, o que fazer quando sua

única prova física desaparece? Um problema a ser resolvido, pois para fazer parte do “Clube

dos torturados” era necessário também apresentar as marcas que comprovassem a veracidade

dos atos sofridos na prisão. Como um símbolo que, em meio a tantas farsas, representa a única

prova a fim de obter o aval para ingressar na luta contra a tirania do rei, portanto, pode-se dizer

que as cicatrizes são como metáforas da memória, elas falam por si só.

A solução é apresentada pelo Auritio, o responsável por introduzir o personagem-nar-

rador entre os (ex) militantes republicanos; apesar deste nunca ter afirmado ser republicano,

mas o fato de ter roubado uma flor da praça, ter sido preso e ter desistido de ir embora fazem

com que aquele o reconheça como um militante comprometido com a causa, conforme sua

declaração ao vê-lo regressar da estação:

Quer dizer que resolveu permanecer na luta? Assim é que se fala. Aliás, sua

cara nunca me enganou. Desde aquela primeira noite que eu senti... que eu senti ...

(punhos cerrados sublinhando o senti)

que

eu senti que você era uma parada dura e que não tinha nada com esses merdas do

clube. Mas a gente depende deles326.

Para solucionar o problema das cicatrizes desaparecidas, Auritio e o Barão arrumaram

um esquema: submeter o personagem-narrador a procedimentos cirúrgicos que lhe garantissem

marcas tão reais quanto a tortura que um dia sofreu na prisão. O protagonista não questionou,

não problematizou, não se negou nem afirmou. Ele simplesmente fez o que lhe disseram ser

necessário, como se a espera na maternidade seguida da prisão lhe tivessem tirado tudo: filho,

esposa e o livre arbítrio, ou em suas palavras:

Na realidade, muitas vezes as pessoas não são o que pensam que são e sim o que outras

determinam que elas sejam. Minha condição de republicano fora promulgada pelo

Auritio, sob os orgulhos desatinados da sobrinha, e pelas senhas do Barão. O que

ocorria comigo era uma espécie de transmutação gradativa diante da desumanização

da Cidade e de seus habitantes327.

Seu comportamento revela uma total perda de segurança e autoridade sobre o próprio

corpo e sobre sua vida. Por isso, esse momento caracteriza-se como sua terceira derrota na

narrativa. Segundo Kehl, o corpo do torturado “é um corpo que não pertence mais a si mesmo

e transformou-se em objeto nas mãos poderosas de um outro (torturador) [...], corpo objeto do

326 GIUDICE, 1985, p. 186. 327 GIUDICE, 1985, p. 194.

129

gozo maligno de outro corpo328”. Novamente, o protagonista de Bolero teve seu corpo objetifi-

cado e condicionado à violência, porém dessa vez consciente, anestesiado e por “vontade pró-

pria” (ou não): “Confesso que senti uma ponta de arrependimento por não haver pegado o trem

da meia-noite e quarenta, vinte dias antes329”.

Não canso de afirmar que a narrativa de Giudice é baseada em farsas, desde a constru-

ção dos personagens até o cenário político da Cidade. Essas são sempre acompanhadas do ele-

mento cômico e absurdo, como essa “plástica às avessas” a qual o protagonista é submetido. O

cirurgião plástico encarregado de fazer o serviço mantinha seu consultório aos fundos de “um

apartamento elegante, onde uma modista e duas auxiliares costuravam vestidos para donas-de-

casa burguesas e, na maioria, monarquistas330”.

A ironia do espaço ocupado pelo “(centro-cirúrgico-entre)331” comparado ao edifício

cinzento a que esteve preso estava no fato de que neste não haveria perguntas: “No quarto dos

fundos, o médico esculpia rostos clandestinos, extraía balas tão monarquistas quanto as fregue-

sas da moda, curava torturas e, ocasionalmente, executava outras. Foi o meu caso332”. Durante

todo o procedimento no consultório clandestino, entre picadas e incisões, o personagem-narra-

dor pôde observar no ambiente e na sua condição uma irônica e ao mesmo tempo poética sur-

realidade, como é possível observar na seguinte passagem do texto:

O que eu queria era comentar com ela [Auriflor] as relações entre o cirurgião dos

fundos e a modista da frente: ela costurava vestidos e ele bordava cicatrizes. Podia ser

trágico, mas que havia relações, havia. Quase ri, mas se o fizesse o aspecto profissio-

nal do ambiente desmoronaria como o palacete imperial333.

Finalizada a etapa da “plástica às avessas”, Auritio e o Barão acharam conveniente que

a recuperação fosse realizada em um local mais seguro do que a auricasa devido à presença do

monarquista veterano Auriavô, e do isento Auripai. Segundo o narrador, “não se chegou a dis-

cutir porque a única opção plausível me transferiria sem armas e bagagens para a Mansão Mon-

chicque334”, o que acabou por resumir-se em uma oportunidade perfeita para estreitar os laços

entre o mais novo republicano e o artista inacabadista Ladislau bem como seu irmão econo-

mista.

328 KEHL, 2004, p. 9-10. 329 GIUDICE, 1985, p. 189. 330 GIUDICE, 1985, p. 191. 331 A expressão é uma referência à placa na porta da maternidade em que Cynthia entrou e nunca mais saiu: “centro-

cirúrgico-não-entre”. 332 GIUDICE, 1985, p. 191. 333 GIUDICE, 1985, p. 192. 334 GIUDICE, 1985, p. 192.

130

Ladislau pode ser descrito como uma figura excêntrica, um pouco perturbada, “um

gênio incompreendido335”. Sua primeira aparição no romance foi durante o sarau dos Monchi-

cques, noite em que apresentou ao lado de sua tia a tragédia “A lenda dos doze rios”. Agora, ao

conhecer seu ateliê, o personagem-narrador também conheceu um pouco do seu estilo artístico,

o inacabadismo:

O estilo inacabadista consiste em levar o observador a se julgar diante de uma obra

acabada. Através de uma percepção mais aguçada, ele pesquisa na pintura a expressão

de certos pormenores, fato que aos críticos acadêmicos pareceria abominável. A partir

desse instante, a arte monchecquiana instaura uma espécie de participação obrigatória

do espectador336.

O sobrinho da Condessa demonstrou ser um conhecedor do pensamento, tal qual o

personagem Número Um. Consequentemente, pode-se dizer que é um crítico político pouco

valorizado e desacreditado na mudança. Segundo ele, todas as pessoas são vítimas de um sis-

tema que destrói toda forma de pensamento por privá-las da arte:

Quando iniciei minha busca, eu já sabia de todas as vítimas de nosso tempo. E sei das

que ainda virão. [...] Você é a grande vítima de outra vítima. Nós todos seremos víti-

mas de outras vítimas. A mente humana está destruindo a mente humana. Dentro de

poucos minutos a Arte será nula, o pensamento será nulo, o homem será nulo337.

Até esse primeiro momento, o personagem-narrador não tinha clareza da importância

dessas palavras em sua trajetória política. Somente foi compreender o significado das telas

brancas inacabadas e da potência de uma bela peça sinfônica durante os dias de convalescência

na companhia do pintor: “A música me causava uma espécie de malefício benéfico e me trans-

mitia uma impressão quase material intimamente condicionada à memória, recriando em mim

momentos essenciais338”. Foi depois desse momento de total entrega aos efeitos da arte musical

que o personagem compreendeu que Ladislau respeitava e reconhecia a luta republicana, mas

sua consciência política estava muito além da simples escolha de lado — república ou monar-

quia. Por esse motivo, o personagem representava um perigo aos olhos dos líderes políticos

locais e foi preso pelo Ajudante Máximo na manhã de Natal.

A prisão do pintor inacabadista estimulou no personagem-narrador a semente plantada

pelo prisioneiro Número Um, de modo que o punhal do pensamento começou a penetrar em

sua mente e a torná-lo definitivamente o “único republicano na ativa”, conforme o seguinte

trecho de sua conversa com Madame Odhontyna naquela tarde de Natal:

335 GIUDICE, 1985, p. 123. 336 GIUDICE, 1985, p. 123. 337 GIUDICE, 1985, p. 123. 338 GIUDICE, 1985, p. 190.

131

[...] Quando estive preso conheci uma pessoa assim como ele [Ladislau].

Mas estava presa, não estava? Quer dizer, não podia mostrar a superioridade

aos outros.

O punhal me forçava a prosseguir:

Condessa, a superioridade não é feita para ser mostrada.

[...]

Então para que serve?

[...]

Para ser sentida, Condessa. A superioridade é uma energia que se comunica

aos outros seres. A energia do meu colega de prisão me contaminou, e mesmo que

não tenha me tornado superior, deixou uma espécie de semente no meu espírito. De-

pois daqueles poucos meses de convivência com ele, eu não me sinto mais a mesma

pessoa. É como se o pensamento pudesse mudar de roupa. A senhora está enten-

dendo339?

Ao mesmo tempo em que discutiam a importância da arte e de pessoas como Ladislau

na sociedade, nas Indústrias S.A. iniciava-se uma grande greve dos trabalhadores para deses-

pero do “irmão de Ladislau”, atual presidente devido à morte precoce de Holofernes, o Gordo.

A situação estava preocupante, de acordo com o economista:

Lá nas Indústrias, aqueles bobalhões resolveram fazer uma greve. Assim. De uma

hora para outra. Sabe quantos foram presos? Cento e vinte nove. Sentiu? Cento e vinte

e nove. O que que eu posso fazer? Regulamentos estão aí para serem obedecidos340.

A greve iniciou logo depois da notícia de que Holofernes havia aparecido morto na

praça da Cidade no Natal341, mesmo motivo que levou Ladislau a prestar depoimento na dele-

gacia, apesar de que o pintor não tinha relação alguma com a morte do empresário, mas naquele

momento todos eram suspeitos e toda Guarda Real estava em alerta até segunda ordem.

Bem, não há nada a fazer. Apenas sou eu que estou de joelhos agora, pe-

dindo, implorando a vocês, a você, Auriflor, ao seu pai, ao seu avô, ao seu tio, que

não deixem de ir ao enterro de meu sogro, amanhã. Por favor, tenham juízo. Caso

contrário, vai ser outra enrascada.

Olhares342.

A influência de Holofernes para a economia e política locais era tamanha que toda

Cidade compareceu em seu velório, incluindo os republicanos e o recém-operado. Ainda, o

personagem-narrador aproveitou a ocasião para fazer uma visita às Indústrias S.A. com o irmão

do Ladislau. Para sua surpresa, o economista mostrou-se também ser amante das artes plásticas

e musicais, porém sua preferência estava nas experiências visual-sonoras: “música é coisa para

ser vista e não para ser ouvida. Mas vamos assistir à Quinta [de Beethoven]343”.

339 GIUDICE, 1985, p. 196-7. 340 GIUDICE, 1985, p. 199. 341 O relato da morte do personagem Holofernes consta nos manuscritos como um fragmento intitulado “O último

natal de Holofernes, o Gordo”. Porém, não há informações sobre sua publicação anterior ao romance. 342 GIUDICE, 1985, p. 201. 343 GIUDICE, 1985, p. 209.

132

Possivelmente o convívio com os sobrinhos da Condessa deve tê-lo inspirado em sua

analogia sobre a tortura e a Quarta de Beethoven, além de fazê-lo entender as diferentes formas

de apreciar a arte e, claro, compreender aos poucos o funcionamento da Cidade e das forças

monárquicas e republicanas.

Nas Indústrias, o personagem esteve frente a frente com a opressão do sistema traba-

lhista. Diante dos portões de entrada “mil oitocentos e oitenta e nove homens344” brigavam e

gesticulavam para conseguir um emprego, vigiados por dois guardas com metralhadora. Se-

gundo o irmão de Ladislau, a empresa representava a principal fonte de renda da Cidade.

Enquanto em uma das seções, oitocentas e dezenove mulheres trabalhavam em perfeita

sincronia vinte quatro horas diárias: “De duas em duas horas elas têm dez minutos de des-

canso345”; na seguinte, quinhentos e trinta operários trabalhavam sem parar em meio a chapas

de aço quentes na qual “no mês passado um operário morreu aí dentro. Foi uma merda346”;

outras trezentos e quatorze mulheres e duzentos e noventa e cinco homens desempenhavam

funções similares; assim por diante, seção por seção.

A logística da companhia parecia um perfeito baile carnavalesco em que todos traba-

lhavam similarmente, sincronicamente e caracterizados, principalmente a seção experimental

da ala das lixadeiras:

Neste conjunto quase todas as operárias eram negras. [...] As componentes da ala im-

pulsionavam alavancas, movimentando lixas sobre tábuas mal aparelhadas. Os movi-

mentos repetiam o mesmo ritmo, numa divisão perfeita do compasso binário347.

Aparentemente, para os dois irmãos pouco importava quem estivesse no poder, con-

tudo, o economista preocupava-se com o trabalho, com os lucros provindos das Indústrias e de

que maneira o governo influenciaria nisso: “Na verdade eu estou cagando e andando pra essas

repúblicas de papelão e pra essas monarquias de bosta. O que eu quero mesmo é botar essa

Cidade pra frente e jantar no Sésamo348”.

O falecido Holofernes soube ensinar as prioridades capitalistas a seu genro e sucessor

com tamanho empenho que ambos tinham o mesmo sonho de jantar no Sésamo349, e trabalha-

vam para isso sem importar quantos funcionários fossem presos ou mortos ou quem estivesse

344 GIUDICE, 1985, p. 212. 345 GIUDICE, 1985, p. 210. 346 GIUDICE, 1985, p. 211. 347 GIUDICE, 1985, p. 216. 348 GIUDICE, 1985, p. 220. 349 “O Sésamo é um restaurante que há numa dessas cidades ricas. Tem quarenta garçons e só serve um jantar por

ano, para uma pessoa” (1985, p. 220).

133

no governo da Cidade durante esse processo. Infelizmente, Holofernes morreu sem alcançar a

façanha enquanto que o irmão de Ladislau conseguirá reservar uma mesa no restaurante quatro

anos depois da implantação da República, com uma breve fila de espera de três anos. Segundo

o personagem-narrador, cedo ou tarde, todos conseguem realizar os seus maiores sonhos

“mesmo que seus esforços só sejam coroados no derradeiro limite da posteridade350”. Todavia,

não creio que se incluam nessa afirmação os funcionários das Indústrias ou os moradores de

rua que encontrou no caminho da estação de trem.

Os segmentos institucionais da Cidade assumem a posição política de quem estiver no

poder, seja a polícia, os hospitais ou o comércio. Eles trabalham para aqueles que estão fazendo

o sistema funcionar. Segundo o irmão de Ladislau, no regime anterior

os monarquistas pintaram e bordaram. Quando a coisa ficou preta, o gover-

nador fugiu para outra cidade. Pediu asilo político. A turma da Guarda Republicana

se passou pro lado de Vezirrê Budru e ele foi coroado em sete dias351.

De acordo com o irmão economista, “o idiota do Ladislau costuma dizer que os mo-

narquistas nada mais fizeram que substituir as proibições da República por outras e acrescentar

algumas. Ele não deixa de ter suas razões352”. Possivelmente, na República os dois erres sejam

substituídos por um erre e um gê: regulamento e governo ou algo semelhante.

Essas declarações somadas às do prisioneiro Número Um e de seu irmão reforçam o

discurso sobre o sentimento de derrota por compartilharem a opinião de que as sucessivas tran-

sições de regime servem apenas para encobrir problemas maiores. Foi com base nessas opiniões

e teses que o personagem-narrador começou a ter senso crítico sobre o jogo de poder que en-

volvia o sistema político da Cidade.

Após longos dias e noites de recuperação na mansão dos Monchicques, enfim, acon-

teceu o jantar do “Clube dos Torturados”. Nesse momento, o personagem-narrador já aderira

ao papel de ativista, modificando completamente sua história desde a saída da maternidade

deixando de ser um preso por engano para ser mais um torturado político pela monarquia. Tal

transição pode ser observada em dois trechos descritos a seguir. O primeiro está presente em

um diálogo com o personagem Número Um:

Chega. Pare de falar. Eu não estou mentindo porcaria nenhuma. Vocês é que

são uns filhos da puta. Passei sete anos na Avenida Seis de Outubro, na maternidade,

e caí num mundo de loucos. Você inclusive, seu velho porco. Não tenho nada com rei

nem com bandeiras ou com flores artificiais. O que eu quero é sair daqui, ouviu bem?

350 GIUDICE, 1985, p. 338. 351 GIUDICE, 1985, p. 220. 352 GIUDICE, 1985, p. 221.

134

Podem me torturar quantas vezes quiserem que eu não contarei nada. E sabe por quê?

Porque não tenho nada para contar353.

E o segundo, na tragédia dos torturados:

O AURITIO: (Formando três bolinhas.) Não. Não é nada disso. Você está confun-

dindo tudo. Ele [o personagem-narrador] passou sete anos na clandestinidade.

Depois é que foi preso.

[...]

EU: (Sem conseguir eliminar a timidez) Bom, o negócio é que eu... eu funcionava

perto da ... perto da maternidade da Seis de Outubro e... e quando minha mulher

foi dar à luz, houve complicações, o parto foi um pouco demorado e eu resolvi

sair para dar uma volta. A sobrinha dele estava lá. Você deve conhecer...

[...]

EU: Essa mesma. Auriflor. Ela me aconselhou a tomar um pouco de ar. Eu saí passe-

ando e quando vi as flores... as tais flores douradas...

O ROMANCISTA: Ficou revoltado.

EU: Fiquei. Bom... quando vi as flores, tirei uma delas.

O AURITIO: Uma, não. Tirou muito mais.

EU: Primeiro tirei uma. Depois é que tirei as outras354.

Uma famosa frase diz que “uma mentira repetida entre cem a mil vezes torna-se um

dia verdade355”. Apesar de referir-se à estratégia dos governos autoritários de manipulação da

história, de certa forma, essa frase faz muito sentido, nosso herói que o diga.

Os dois trechos que destaquei mostram a incoerência de seu discurso em momentos

distintos da trama. Primeiro, quando recém tinha sido preso e não conseguia entender o porquê

de todas as desventuras que lhe ocorriam, negando veemente o roubo intencional de uma flor

dourada da praça central da Cidade. Mas, no segundo momento, de tanto afirmarem que seu ato

falho foi na verdade um ato político de coragem e bravura, ele incorpora o personagem criado

e passa, também, a reproduzir a história como verídica – ou seja, afirma que o roubo (não mais

de uma flor, mas de várias flores) tinha a intenção de ser um ato ilegal e republicano.

A dramática reunião do “Clube dos Torturados” deveria ser um momento de articula-

ção entre os republicanos da cidade, entretanto o jantar resumiu-se a comidas, bebidas, charutos,

competição de cicatrizes e egos entre intelectuais ex-torturados terminando, por fim, com a

morte “voluntária” de um dos membros, Morgana.

Conforme o Auritio comentou, não é um grupo articulado de militantes, são ex-tortu-

rados que se reúnem periodicamente para compartilhar cumplicidades sobre o trauma. Ao que

353 GIUDICE, 1985, p. 47-8. 354 GIUDICE, 1985, p. 239. 355 O filósofo Friedrich Nietzsche (1978) foi quem proferiu a frase pela primeira vez, no entanto, posteriormente,

foi atribuída a Joseph Goebbels, ministro de propaganda e sucessor de Adolf Hitler na Alemanha nazista.

135

tudo indica, os integrantes do clube tornaram-se ativistas inoperantes após suas respectivas pri-

sões e torturas e, ainda que neguem, Létera afirma que noventa e nove por cento dos torturados

“divinizam a experiência” como se a prisão fosse o auge de sua militância. O Romancista a

responde afirmando que conheceu no cárcere um sujeito chamado Aristóteles que nunca parou

de militar, fora preso e torturado seguidas vezes: “o Aristóteles não divinizou a experiência

dele. Foi metralhado há dois anos, quando distribuía panfletos contra Vezirrê Budru356”.

Para reforçar a ideia, O Professor relata sua experiência de clausura com saudosismo,

como se não houvesse outra chance de aquilo acontecer novamente, ou seja, uma oportunidade

única na vida.

O PROFESSOR: [...] Quando fui preso foi a mesma merda. Na primeira semana eles

não perguntavam nada. Pegavam a gente e caíam de porrada. A gente nem

sabia por que é que estava apanhando. Era porrada leve. Chicotada nas pernas,

nos braços. Como doía. Só uns quinze dias depois é que começava o interro-

gatório. Aí, endurecia. Aí é que a barra ficava pesada. Era alicate nas unhas,

no umbigo. Choque elétrico no saco. E depois, um calor filho da puta! [...]

Tem horas que dá uma saudade...

A JORNALISTA: Saudade?

LÉTERA: (Para o Professor.) Mas é tão fácil recuperar tudo isso. É só você não di-

vinizar o fenômeno.

(Morgana não ri.) 357

Létera enxerga a questão com mais profundidade: a personagem questiona o posicio-

namento de seus colegas ao disputarem egos e intelectualidades enquanto muitas pessoas atra-

vessam por situações reais e piores como a fome, conforme é possível observar no seguinte

depoimento:

LÉTERA: Nós, intelectuais, acabamos de devorar as costeletas de carneiro de Vitral,

temperadas com ervas aromáticas e cozidas em vinhos importados, apesar da

fome de não sei quantos milhões de famintos.

O UNIVERSITÁRIO: Mas não há filosofia política nenhuma que demonstre...

LÉTERA: Que filosofia política droga nenhuma! A única filosofia de quem é faminto

é a fome. Será que ninguém nota?

(Para o Romancista.)

Será que nem os intelectuais percebem358?

A anfitriã dos torturados consegue ver os reais problemas sociais da Cidade além da

simples disputa de poder entre republicanos e monarquistas, mas sua tentativa frustrada de mos-

trar os verdadeiros problemas aos colegas acaba por lhe render o título irônico de “panfletária-

guerrilheira”, proferido pelo O Doutor; como se aos intelectuais não coubessem tais preocupa-

ções.

356 GIUDICE, 1985, p. 244. 357 GIUDICE, 1985, p. 244-5. 358 GIUDICE, 1985, p. 248.

136

O debate entre os integrantes do Clube causa no personagem-narrador reações do pen-

samento. Ele sente seu cérebro pulsar cada vez mais intensamente e, por isso, Auritio intervém

enaltecendo suas qualidades de herói municipal para conseguir imediatamente sua aprovação

no grupo.

O JORNALISTA: Na prisão você chegou a soltar alguma coisa importante para eles?

EU: Para eles?

O JORNALISTA: É. Pro pessoal da Real.

O AURITIO: (Infinitas bolinhas) Nada. Não é por estar na presença dele, mas este

rapaz é um sujeito de fibra. Agora mesmo, quando vi que a situação dele estava

perigando, arrumei uma fuga com o Barão, mas ele resolveu ficar. Vocês sa-

bem muito bem. Estamos aqui pra isso. Pra resolver o caso dele. Se for preciso

clandestinidade, tudo bem. Mas já estava tudo preparado. Salvo-conduto, pas-

sagens, o diabo. E ele voltou da estação. É desses que a gente precisa aqui no

clube.

A JORNALISTA: (Rindo para o Auritio, entre crítica e simpática.) Aqui no clube. Eu

acho uma graça. O senhor fala dum jeito que quem ouve vai pensar que tam-

bém foi preso, torturado ...359

A reunião termina sem alarde com a morte silenciosa de Morgana. Já a primeira parte

do processo de transição do personagem-narrador finaliza, conforme suas próprias palavras,

“assim que os torturados, numa reunião posterior à dos Gabone, decretaram minha clandestini-

dade temporária360”.

4.2 O PENSAMENTO COMO ESTOPIM PARA A REVOLUÇÃO

“[...] além do nariz vermelho, nada mais se acrescentava à minha fisionomia. Depois,

vestiram-me uma camisa azul e um par de calças da cor da bola de pingue-pongue, com sus-

pensórios dourados361”. A clandestinidade nunca foi a vontade do personagem-narrador, muito

menos tornar-se um militante político. No entanto, desde que saiu da maternidade e “perdeu”

sua memória, todos os acontecimentos — desde a prisão política, a tortura, os procedimentos

cirúrgicos desnecessários e, agora, a clandestinidade — contribuíram para a anuência de sua

condição de último republicano na ativa.

Aceitar essa condição e ser aceito entre os renomados intelectuais torturados foi o pri-

meiro passo concreto rumo à revolução, e isso só foi possível graças às diferentes personalida-

des que cruzaram seu caminho. Cada um contribuiu de uma maneira distinta para ajudá-lo em

seu processo de reconhecimento e formação de sua nova identidade pós-Cynthia, bem como

359 GIUDICE, 1985, p. 241. 360 GIUDICE, 1985, p. 252. 361 GIUDICE, 1985, p. 252-3.

137

para encontrar as respostas que lhe faltavam para superar os traumas passados. Esses novos

laços estabelecidos são do âmbito do público, pois sua única relação privada era com Cynthia.

Segundo Roberto DaMatta, o espaço privado reflete uma espécie de ambiente da casa,

aquele que representa a morada, a calma e a tranquilidade. Em suas palavras: “Tudo, afinal de

contas, que está no espaço da nossa casa é bom, é belo e é, sobretudo, decente362”, por isso a

única memória que o personagem guarda do passado faz alusão aos seus dias com Cynthia. Por

mais que se sentisse abandonado pela esposa é à figura dela e à vida antes da maternidade que

recorre sempre que necessita, por exemplo, durante a clandestinidade no Circo, direciona um

breve comentário sobre sentir saudades de sua vida conjugal comparada à nova vida, por mais

torturante e entediante que fosse aquela:

Não faça julgamentos precipitados, Cynthia, mas estou começando a divini-

zar nossa experiência conjugal. Ultimamente eu tenho me sentido como aquele pro-

fessor de Matemática da reunião dos Gabone. O tal que ficava com saudade das tor-

turas.

Em certas ocasiões era tudo tão chato363.

Segundo DaMatta364, o espaço “da rua” está reservado ao perigo e ao imprevisível e,

por esse motivo, a clandestinidade parece tão desgostosa ao personagem fazendo-o resgatar

suas saudosas lembranças com a esposa. O mais próximo de um espaço privado que ele conse-

guiu chegar pós-saída da maternidade foi com a aurifamília, porém sua relação foi interrompida

pelas perseguições da Guarda Real e, consequentemente, pela clandestinidade, sendo assim,

aqueles continuaram fazendo parte do espaço público, ao menos até a transição de regime.

A segunda parte do processo de desalienação do personagem diz respeito às relações

que estabeleceu trabalhando no Circo somadas aos aprendizados anteriores, dado que já estava

começando a sentir os primeiros impulsos mentais. A casa dos Monchicque e dos Gabone foram

os espaços em que teve suas primeiras experiências com a força do pensamento, de modo que

estava agindo conforme sua mente impulsionava as ideias sobre os assuntos debatidos, isto é, o

despertar do pensamento também foi o seu despertar para os problemas sócio-políticos da Ci-

dade.

Em função desse progresso inesperado, ao assumir a função de comerciante no Circo

o personagem julgou estar regredindo e perdendo oportunidade de participar mais ativamente

362 DAMATTA, 1986, p. 18. 363 GIUDICE, 1985, p. s/n. 364 DAMATTA, 2001.

138

da luta republicana. Segundo afirma, sua função “se resumira em receber mensageiros incógni-

tos com mensagens cifradas do Barão ao Auritio e do Auritio ao Barão365”. Contudo, depois

descobriu que seu trabalho de confeiteiro lhe garantiria tempo para praticar o pensamento:

A queda do padrão social fazia parte da clandestinidade e das lutas republicanas. E,

não sei se para o bem ou para o mal, o ofício de confeiteiro passou a me lisonjear, no

dia em que associou de modo incisivo às minhas excitações mentais366.

As excitações mentais baseavam-se no simples ato de materializar o pigmento colorido

nos doces, o que lhe proporcionou uma sensação similar àquela que o jovem pierrô branco teve

na primeira vez que conseguiu materializar e manipular uma esfera. Os personagens estavam

diante da iniciação do potencial de criação do pensamento, que nada mais é que um estímulo

mental seguido de uma forte pressão, como a de um punhal, conforme pode-se observar nos

três trechos a seguir. A primeira vez foi relatada pelo jovem pierrô:

Pensou na esfera e sentiu o milagre. A ponta do punhal começou a se arredondar e a

escorregar pela massa encefálica. Estava saindo. O rapaz ergueu as mãos para retirá-

lo e sentiu que não era mais um punhal. Era uma esfera. De prata367.

A segunda, pelo personagem-narrador na casa dos Monchicques:

Eles odeiam a pintura de Ladislau. Por que será?

A observação me causou uma revolta e uma dor aguda no cérebro, como um

punhal estivesse penetrando-o

[...]

Verifiquei que a dor não era dor. [...] A dor apertou [...] O punhal me for-

çava a prosseguir368.

E a terceira vez, na casa dos Gabones:

LÉTERA: (Depois de me olhar fixamente.) [...]

Ele também sabe que daqui a poucos anos vai surgir outra sociedade. Sabe ou

não sabe?

EU: (sentindo novamente a excitação cerebral.) É bem possível.

(Atenção geral sobre mim)369.

É importante recordar que o pensamento possui fases. O protagonista passou pela fase

da curiosidade e da vontade de pertencer a algo maior; isso levou-o ao estímulo mental em

situações que lhe incitavam a necessidade de participar e tomar partido, tal qual a criança que

entrava escondida no Circo para admirar as habilidades do pierrô branco e um dia teve a opor-

tunidade de aprender a técnica a ponto de poder aperfeiçoá-la. Na clandestinidade, começou a

365 GIUDICE, 1985, p. 254. 366 GIUDICE, 1985, p. 253. 367 GIUDICE, 1985, p. 53. 368 GIUDICE, 1985, p. 196. 369 GIUDICE, 1985, p. 250.

139

adquirir consciência de que é possível criar através do pensamento. O trecho seguinte descreve

o que para muitos seria uma banalidade, mas para ele significou uma grande descoberta:

Não faz colorido?

Era terrível dar de troco uma negação e deixar a coisa por isso mesmo. Senti

pena do garoto e o sentimento ligou o mecanismo do cérebro. Em nome da verdade,

não vou dizer que um punhal se espetara em minha cabeça, mas a sensação foi pró-

xima. Peguei um dos flocos, virei-me de costas para o menino e liberei o pensamento.

Meu susto se deu cinco segundos depois, quando constatei que o algodão se tingira de

azul [...] E eu me inaugurei como pierrô dos algodões azuis370.

Tingir o algodão-doce branco de azul e materializar uma esfera de prata, conforme

comentei anteriormente, representam uma categoria do pensamento admitida pelas autoridades,

mas ainda não configurava um ato subversivo porque para descobrir a real motivação do pen-

samento fazia-se necessário muito trabalho e treino. O personagem-narrador pensou no desa-

parecimento de sua esposa Cynthia, no suposto filho, na prisão, na tortura, nas conversas com

Número Um, no seu relacionamento com Auriflor, nas atividades que exercia para a comuni-

dade republicana e em tudo aquilo que julgava importar para sua causa. Mas nada disso funci-

onou, porque o pensamento não pertence a uma causa pessoal.

Os dias estavam passando e sua única ação continuava sendo colorir algodões-doces

no Circo. Sem muito o que fazer, assistir aos espetáculos tornou-se seu passatempo. Segundo

ele, era muito mais fácil forçar (ou não) o riso nas performances dos colegas do que nas parti-

cipações de Eusebius, “o palhaço que acompanhava funerais dos poderosos, com a cara lavada

e deslavada371”. Em um dado momento, em casa, relembrando essas cenas, percebeu que o

estímulo aumentava à medida que visualizava na memória o ato da multiplicação dos pães, bem

como a reação de Eusebius e dos espectadores: “A gota do mal contagiou meu espírito com a

salubridade do ódio, e o cérebro respondeu com uma reação quase imediata. Por que motivo

estaria odiando Eusebius? Não quis saber372”. Continuou pensando naquilo, mas não teve tempo

para muito e, quando menos esperava, o punhal surgiu: “A excitação atingiu um clímax nunca

experimentado antes e o punhal mergulhou na cabeça. Realmente, Número Um. O pensamento

é um punhal espetado no cérebro373”. Aquilo que um dia imaginou ser loucura da cabeça de um

velho calejado de tanta tortura finalmente tornou-se realidade. Lembrar de seu amigo ao mesmo

tempo em que se deslumbrava por conseguir a proeza do pensamento fez com que entrasse em

colapso mental.

370 GIUDICE, 1985, p. 253. 371 GIUDICE, 1985, p. 255. 372 GIUDICE, 1985, p. 255. 373 GIUDICE, 1985, p. 255.

140

Queria conselhos de um pensador, por isso começou a conversar com um Número Um

imaginário. Em sua mente, corria o questionamento sobre o significado de tudo aquilo. Poderia

ele ser um candidato a pierrô branco? O punhal estava ali literalmente, espetado em sua nuca;

seu cérebro havia materializado uma “arma branca de má qualidade374”: não era uma esfera,

não eram cores, era um punhal que mais parecia uma faca de cozinha sem grandes utilidades.

Finalmente, encontrou uma motivação para manipular o pensamento. Só faltava des-

cobrir por que essa motivação era o palhaço Eusebius. Para ele, a multiplicação dos pães era a

grande obra da qual Número Um tanto falava, mas esse espetáculo do Circo significava o oposto

da grande obra. As atrações bem como a multiplicação atuavam como uma distração para que

os espectadores seguissem em sua alienação apática e obediência cega. Em outras palavras, o

entretenimento de massa causa cegueira diante da real relevância da arte como expressão de

pensamento e também na maneira como ela pode despertar a atenção das pessoas sobre o meio

em que vivem mas, como sabemos, isso não é conveniente para as formas autoritárias de go-

verno.

Apesar dos perigos que rodeavam o narrador, estar no Circo proporcionou-lhe experi-

ências únicas e que possivelmente jamais teriam acontecido caso não estivesse na condição de

perseguido político ou se tivesse fugido no trem da meia noite. Os espetáculos, as crianças, os

artistas e o tempo para exercitar o pensamento foram apenas algumas das oportunidades que

aproveitou, mas a principal circunstância conivente consistiu em poder encontrar respostas so-

bre o passado, o presente e, quiçá, sobre o futuro, seu e da Cidade.

Para isso, precisava conhecer mais uma pessoa e ele sabia exatamente quem. Diferente

dos demais personagens que conhecera através de eventualidades, como na prisão ou por meio

de Auriflor e Auritio, dessa vez ele foi atrás do palhaço de pernas de pau, o pirata Pons.

Número Um contou-lhe algumas histórias sobre o Circo de sua época, e nelas incluía

alguns parentes do palhaço Pons. O pirata nasceu e cresceu no Circo, e sua familiaridade com

o pierrô branco foi adquirida por meio de histórias que sua tia contava sobre o artista e amigo,

somente depois de anos quando também foi preso por uma das monarquias foi que realmente

conheceu o pierrô, “o velho teimoso”. Por conseguinte, se alguém poderia ajudá-lo a achar

respostas esse alguém deveria ser Pons.

O pensamento estava plantando sementes em sua mente, e ele plantando na mente dos

outros:

374 GIUDICE, 1985, p. 255.

141

Virou-se sobre a perna de pau e capengou para o Circo. Porém, eu tinha a mais

absoluta certeza de que voltaria. Notei que uma pequena

(ou enorme)

semente fora plantada, e o

tapa olho escondia uma luz muito tênue que poderia alastrar-se e iluminar minha pe-

numbra. Havia um mistério a mais na retaguarda de todos aqueles acontecimentos375.

As intenções do personagem-narrador estavam claras em todas as perguntas e respos-

tas que fazia e dava ao palhaço Pons, por exemplo: “Está com fome? Da sua omelete e da

verdade que está dentro dela376”. Ele não tinha dúvidas que estava diante da sua melhor fonte

sobre os enigmas da Cidade e do pensamento que ainda não havia desvendado.

Entre uma história sobre o Grão-vizir e a sopa dos pobres, Pons o surpreendeu com a

“parábola do jogo de xadrez”, a mesma história que o personagem Número Um o questionou

se conhecia, e também a que o irmão de Ladislau disse que lhe contaria em outra ocasião quando

visitou as Indústrias.

Já comentei em outro momento sobre a importância desse fragmento para a narrativa,

mas creio ser necessário retomá-lo porque consegue explicar inclusive a divinização da tortura

pelos integrantes do clube.

O rei da Sétima Monarquia mandou matar todos os enxadristas e destruir todas as peças

e tabuleiros por insinuarem durante o jogo a morte do rei; por fim, proibiu toda a população de

jogar xadrez. No entanto, ao restar uma pessoa que conhecia as regras, o jogo recomeçou e, de

uma hora para a outra, todos estavam jogando. Quando o rei descobriu, a Cidade inteira havia

se transformado em um grande tabuleiro:

Porém, o exército da Sétima Monarquia, que jogava com as pretas, perdeu

quatro peões, um cavalo, a dama e a partida. Depois do xeque-mate, o corpo do rei foi

sepultado sem as honras de praxe.

No dia seguinte, o povo inteiro jogava xadrez nos botequins, praças e bordéis,

enquanto cantava em altas vozes: O céu da República será mais azul377.

O pirata tentou explicar através da parábola que de nada adiantava o rei eliminar seus

opositores, pois a resistência não reside nas pessoas e sim nas ideias — assim como não é

possível acabar com o xadrez matando seus jogadores. O que de fato ocorreu foi que a resistên-

cia da população enxadrista derrubou o mais tirano de todos os monarcas da história da Cidade

e deu início à Sexta República. Por isso, as monarquias passaram a seguir a política das torturas

e não mais das execuções.

375 GIUDICE, 1985, p. 261. 376 GIUDICE, 1985, p. 262. 377 GIUDICE, 1985, p. 269.

142

Segundo o projeto Brasil: nunca mais378, poucos são os relatos sobre as consequências

das torturas nos processos políticos da Justiça Militar brasileira. Mas sabe-se que seus atos ma-

nifestam o medo e a impotência do sujeito torturado, de modo que o torturador detém seu do-

mínio físico, psicológico e moral.

Na monarquia da Cidade, poucos são os que retornam à ativa depois de passarem pelos

porões da prisão. Aquilo que os integrantes do Clube chamam de divinização dos atos de tortura

reflete o trauma ao qual ainda estão condicionados, bem como ao auge de suas “carreiras” no

movimento de oposição ao governo.

Segundo o pirata Pons, todos aqueles depois de serem torturados tornam-se cartas fora

do baralho da Monarquia. O personagem Barão é o último exemplo da narrativa sobre os efeitos

da tortura nos militantes republicanos. Segundo Auriflor, depois de ser preso, torturado e solto

pela Guarda Real, o guerrilheiro Barão “confessou que estava desencantado com a política mu-

nicipal, que a maré não estava pra peixe e que ia reassumir suas funções de dentista num con-

sultório do subúrbio até a poeira assentar379”.

No Brasil, o Sistema Nacional de Informação, aliado aos organismos repressivos já

existentes da Polícia Federal e polícias estaduais, agia de acordo com a ordem repressora: “in-

vestigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e ma-

tando380”.

Segundo as informações do projeto BNM, a tortura faz parte de um mecanismo de

investigação e controle, de modo que a morte arbitrária ou através da tortura é uma consequên-

cia da luta contra a subversão. Porém, após 1978, num segundo momento da ditatura militar

brasileira foram suprimidas as penas de morte e prisão perpétua das Leis de Segurança Nacio-

nal:

foram alterados alguns pontos que eram objeto de crítica sistemáticas feitas pelos fó-

runs democráticos internacionais. Foram suprimidas as penas de morte e de prisão

perpétua, abriu-se a possibilidade teórica de verificação de saúde física e mental do

detido, reduziu-se o prazo de incomunicabilidade e foram alterados outros aspectos

de importância diminuta. Mas, no essencial, o espírito da lei permaneceu intacto381.

378 BRASIL: nunca mais, 2019. 379 GIUDICE, 1985, p. 290. 380 BNM, 2019, p. 96. 381 BNM, 2019, p. 98.

143

Quando a morte acontecia devido às medidas extremas durante a tortura física, as in-

vestigações bem como as justificativas eram manipuladas através de confissões falsas, depoi-

mentos e suicídios forjados e os desaparecimentos políticos. Há também relatos dos prisioneiros

que preferiam a morte à tortura, conforme o projeto BNM:

No Rio, o estudante Luiz Arnaldo Dias Campos, de 21 anos, declarou, ao depor em

1977, que ‘pediu até que o matassem, para que parassem os suplícios e, como resposta,

disseram-lhe que permaneceria vivo, a fim de sofrer ainda mais382’.

Dentro da lógica do romance, a morte do militante sob tortura o torna um mártir, e

mártires são seguidos e usados como exemplo fortalecendo, assim, as causas da oposição. As

torturas subtraem a dignidade do sujeito por meio da violência: não lhe resta muito, além de

inúmeras sequelas. Por esse motivo, poucos são os que permanecem na luta após passarem por

situações semelhantes, como o republicano Aristóteles que morreu por sua insistência e resis-

tência. Segundo o palhaço Pons, “hoje em dia, eles quase não matam mais ninguém. Só um ou

outro”. Aristóteles foi um e, depois de cinquenta e quatro anos de cárcere, o Número Um foi o

outro.

O personagem-narrador insiste em dizer que um rei deve ser tirano e matar seus opo-

sitores; ele não entendeu a mensagem que o irmão de Ladislau tentou passar-lhe: “quem abrisse

a boca ia pra solitária, a pão e água, torturas e o diabo. Pena de morte só em último caso, porque

eles não queriam que acontecesse de novo a tal história dos enxadristas da Sétima Monar-

quia383”.

Segundo Tereza Virginia de Almeida, não é apenas na moral da parábola sobre os

enxadristas que está expressa a resistência da população da Cidade à Sétima Monarquia, mas

também no ritmo do relato sobre a transmissão do jogo como conhecimento através do parale-

lismo entre as orações:

O padre se apaixonou pelo xadrez e ensinou a um fiel. O fiel ensinou a outro. O outro

ensinou à mulher, a mulher ensinou à criada, a criada ensinou ao operário, o operário

ensinou ao colega, o colega ensinou à prostituta, a prostituta ensinou ao bêbado, o

bêbado ensinou ao policial, o policial ensinou à amante, a amante ensinou ao artista,

o artista ensinou ao médico, o médico ensinou ao doente, o doente ensinou ao morto,

o morto ensinou ao verme, o verme ensinou à semente, a semente ensinou à terra, a

terra ensinou ao vento e o vento ensinou à Cidade. Agora, havia cento e sessenta e

nove jogadores prontos a enfrentar qualquer partida384.

De acordo com a autora:

382 BNM n. 700. V. 2º, p. 504-507 apud BNM, 2019, p. 299. 383 GIUDICE, 1985, p. 221. 384 GIUDICE, 1985, p. 267.

144

É possível observar o quanto esta simetria entre os números de sílabas das orações

criam uma regularidade rítmica que alude à própria coordenação entre as mais dife-

rentes pessoas da cidade. Trata-se de uma uniformização da diferença, da unificação

de forças que se expressam em nome da resistência ao rei385.

Portanto, embora o punhal de pensamento somente seja capaz de ferir ideias e não de

matar pessoas, os tiranos matam pessoas e não as ideias. De acordo com o prisioneiro Número

Um, o pensamento é a única arma real e a ele outros três pês estão conexos: o da procura, do

provável e do possível. A resistência sempre haverá de existir, seja ela monárquica ou republi-

cana, e é necessário tomar a esperança como principal aliada.

A parábola do jogo de xadrez e o conto “Miguel Covarrubra” nos ensinam que ideias

jamais podem ser destruídas. Elas podem até ser mantidas sob controle do governo, mas sempre

haverá uma ponta de esperança daqueles que querem a mudança, seja essa para o “bem” ou

para o “mal”; não é à toa que a Cidade passou por tantas transições políticas.

Em um diálogo entre o personagem-narrador e a Condessa de Monchicque há uma

singela crítica aos movimentos de luta armada e observa-se uma clara predileção ao pensamento

como principal arma contra o autoritarismo. No trecho, a Condessa comenta sobre as circuns-

tâncias em que o Barão fora preso e, segundo a personagem, liderar guerrilhas nas fronteiras da

Cidade era um ato ingênuo e que de nada adiantaria diante da organização da monarquia:

E as guerrilhas não deram em nada?

É uma doce ilusão achar que alguém pode alguma coisa contra o poderio da

Guarda. Já se foi o tempo em que meia dúzia de românticos liquidava uma monarquia.

A coisa mudou muito. Eu mesma já assisti à queda de duas delas. Mas agora? Com

essas armas e esses tais computadores que eles recebem das cidades ricas? Agora é

diferente386.

Na história real, a esquerda brasileira comandou alguns confrontos armados, porém

não havia unanimidade entre os partidários sobre essa questão. Por exemplo, o Partido Comu-

nista Brasileiro, mantinha posição contrária ao enfrentamento direto às forças militares, dando

preferência ao crescimento político e intelectual. Outras organizações derivadas surgiram como

a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária; o Partido Comunista do Brasil; a

Ação Popular; entre outras que não tinham ligação partidária como a Ação Libertadora Nacio-

nal, liderada por Carlos Marighella; o Movimento Nacional Revolucionário; o Comando de

Libertação Nacional; a Vanguarda Armada Revolucionária etc.

385 Tereza Virginia de ALMEIDA, 2016, p. 62. 386 GIUDICE, 1985, p. 277.

145

Pelo menos em dois momentos houve enfrentamento armado da esquerda contra o sis-

tema repressor. Na primeira, em 1935, pela Intentona Comunista liderada pela Aliança Nacional

Libertadora sob o comando de Luiz Carlos Prestes, com o objetivo de derrubar o governo de

Getúlio Vargas. E a segunda, entre os anos de 1968 e 1974, pela esquerda marxista. De acordo

com o Jacob Gorender, em seu livro Combate nas trevas, um dos fatores que ocasionou o fra-

casso das tentativas, principalmente no que diz respeito ao segundo momento durante o Golpe

de 64, foi o mesmo indicado pela Condessa no romance: o governo ditatorial já estava organi-

zado e preparado para combater a oposição:

Não travada em março-abril de 1964 contra o golpe militar direitista, a luta armada

começou a ser tentada pela esquerda em 1965 e desfechada em definitivo a partir de

1968, quando o adversário dominava o poder do Estado, dispunha de pleno apoio nas

fileiras das Forças Armadas e destroçara os principais movimentos de massa organi-

zados387.

As opiniões divergem sobre a necessidade e relevância da luta armada. Outros pesqui-

sadores indicam que a falha estava no abismo entre o projeto revolucionário e a sociedade388.

Existe até hoje um misto de frustração pela falta de preparo militar, pelas cisões internas da

esquerda brasileira e pela falta de adesão popular. Há também aqueles teóricos e militantes que

demonstram total contrariedade a toda forma de violência decorrente dos processos autoritários

pelo mundo.

Stéphane Hessel389, em seu manifesto intitulado Indignai-vos faz um chamado à resis-

tência, porém de forma não violenta. Embora compreenda a ação violenta, o autor discorda das

estratégias tomadas pelos grupos de luta armada e justifica que de nada adiantaram para a causa

em jogo. Ainda que seu texto faça referência às respostas palestinas nos ataques de Israel, pode-

se dizer, de uma forma generalizada, que sua justificativa converge com a da Condessa.

Nas palavras do personagem-narrador de Bolero, “o vínculo entre o passado, o pre-

sente e o futuro é a indignação. Todo ser que não se indignar é indigno de ser390”, ou seja, o

pensamento está para a indignação assim como a indignação está para a resistência. O pesqui-

sador norte-americano Malcolm Silverman caminha nessa mesma linha de raciocínio em aná-

lise do romance em seu livro Protesto e o novo romance brasileiro: “Aclamado como primeiro

romance da Nova República, Bolero compreende uma transferência de poder, bem como uma

387 Jacob GORENDER, 1987, p. 249. 388 Daniel Aarão REIS, 1990; Denise ROLLEMBERG, 2003. 389 Stéphane HESSEL, 2011. 390 GIUDICE, 1985, p. 318.

146

repressão orwelliana391”. Ao que parece, além da literatura distópica de George Orwell, o ro-

mance foco desta tese também se assemelha à descrição fantástica que o escritor faz dos méto-

dos utilizados pela repressão, “a desmitificação da ditadura militar [...] onde o faz-de-conta é

realidade392”.

Silverman se refere ao romance 1984, publicado em 1949, onde há uma crítica a toda

forma de totalitarismo. Em um universo distópico, o centro da narrativa está em uma sociedade

sob o comando de um líder capaz de controlar não somente o futuro, como também o presente

e o passado. O cenário da narrativa é Oceania, um dos três fictícios superestados do mundo, e

o enredo tem como base um regime de governo totalitário comandado pelo Partido Ingsoc, cujo

lema é “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA393”.

O sistema de Ingsoc estabelece um complexo controle psicológico de todos seus mem-

bros através de diferentes departamentos, os quais são responsáveis por detectar os crimes e

enviá-los para suas respectivas punições. Esses departamentos são chamados de Polícias e con-

tam com o suporte das “teletelas” que, por sua vez, são dispositivos de segurança do sistema.

Segundo o personagem-narrador Winston, tais dispositivos são capazes de reconhecer

através do olhar, das expressões corporais e das palavras quando um membro do Partido dis-

corda da política do governo. Um dos principais crimes do ponto de vista do Grande Irmão,

como chamam o líder do Partido, consiste no “crimepensamento”, o qual restringe todo tipo de

liberdade de expressão e de imaginação.

Os crimes imaginários são detectados por meio das teletelas que estão distribuídas por

toda Oceania, inclusive na casa dos membros do Partido. Quando um “crimepensamento” é

reconhecido imediatamente os seguranças são enviados para apreensão e, em seguida, se dá a

tortura e morte do indivíduo. Nas palavras do narrador: “O crimepensamento não acarreta a

morte, o crimepensamento é a própria morte394”.

Mais uma vez, o pensamento aparece como principal inimigo do sistema repressor.

Contudo, diferente de Bolero, em que não existe mais pena de morte àqueles que discordam da

Monarquia, em 1984 a morte é a consequência final da insubordinação de qualquer membro do

Partido. Para além disso, todos que são presos em Oceania desaparecem da história como se

nunca tivessem existido: sem passado, sem presente e, muito menos, futuro.

391 Malcom SILVERMAN, 1995, p, 242. 392 SILVERMAN, 1995, p. 242. 393 George ORWELL, 2005, p. 7. 394 ORWELL, 2005, p. 39.

147

Os governos totalitários e autoritários acreditam que é possível controlar o tempo e a

História bem como a própria linguagem. No romance de Orwell também existe a política de

alteração do idioma. A Novilíngua é um tipo de subversão do significado das palavras e supres-

são de vocábulos. O objetivo era eliminar ao máximo a possibilidade de raciocínio até dizimar

certos tipos de pensamentos ou torná-los impensáveis. Segundo o narrador: “Até a literatura do

Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer ‘liberdade é escravi-

dão’, se for abolido o conceito de liberdade?395”

Em Bolero, Auritio conta ao personagem-narrador sobre a época em que participou da

seleção para o cargo de Oficial da Guarda Republicana. A seleção consistia em realizar uma

prova de múltipla escolha sobre desconhecimentos gerais. Conforme o Auriavô assinalou, todos

os membros da Guarda, independente se republicana ou monarquista, eram analfabetos, por

isso era necessário que Auritio passasse por um rigoroso despreparo: “ [...] Eu era primeiro

aluno. Já se esqueceu? [...] Quem souber alguma coisa está reprovado. [...] Que foi que eu fiz?

Me despreparei sozinho. Comecei pela tabuada. Decorei respostas erradas para qualquer mul-

tiplicação396”.

Mas, apesar do personagem ter conseguido errar todas as questões da prova, não pas-

sou na seleção porque, aparentemente, assinar o nome já confirmava a existência de vestígios

de inteligência no sujeito, e isso não é de interesse de nenhum tipo de regime governamental

nos moldes apresentados pela Cidade e pela Oceania. O “crimepensamento” unido à Novilingua

impossibilitaria de uma vez por todas que algum membro pudesse agir ou pensar contra o Par-

tido ou os regimes republicanos ou monárquicos.

Contudo, Winston — protagonista do livro de Orwell — utilizava os minutos antes de

dormir para pensar e usufruir de um pouco de liberdade, pois

só depois das onze da noite, quando já estava em casa deitado na cama – no escuro,

onde a pessoa fica protegida até da teletela, desde que guarde silêncio –, teve condi-

ções de pensar de forma continuada397.

E, mesmo assim, foi preso e submetido a fortes sessões de tortura que lhe fizeram

confessar crimes que cometeu e outros que sequer havia cometido, bem como denunciar sua

amante.

395 ORWELL, 2005, p. 54. 396 GIUDICE, 1985, p. 161. 397 ORWELL, 2005, p. 133.

148

Um dos seus crimes era o fato de ter em seu poder um diário, item proibido pelo Par-

tido, bem como por ter lido diversos livros de história e de ficção. Crimes semelhantes a esses

corroboraram com a coerção de Auritio pois, segundo o personagem Ajudante Máximo menci-

ona, a Guarda Real havia recebido denúncias sobre as preferências políticas do tio de Auriflor

e, por isso, precisava do depoimento do Auripai para assegurar que todos na auricasa eram

monarquistas. Devido à preocupação da Condessa sobre a situação, Ajudante Máximo confes-

sou que apenas os intelectuais eram detidos, e a isso se resumia qualquer pessoa que tivesse

interesse em arte ou literatura, como Ladislau e Auritio:

Não sei, mas alguém nos informou que seu irmão costuma ler livros estra-

nhos, e o senhor sabe como é. Eu, particularmente, não acho que estas coisas sejam

perigosas. Afinal, cada um tem o direito de ler o que bem entender. O diabo é depois.

Odhontyna fez um esforço para engolir o riso:

Depois?

[...]

A senhora sabe muito bem o que pode acontecer depois de certas leituras ...

depois de certas conversas... certas influências398.

As pessoas ficam atordoadas e desesperadas por efeito da tortura ou de interrogatórios.

Winston entregou sua amante pensando que isso lhe livraria das longas sessões de tortura; Au-

ripai em um interrogatório “não violento” entregou as intenções de Auritio e, talvez, do perso-

nagem-narrador acreditando que isso poderia ajudá-los a se afastarem da militância republicana

e de um fim trágico:

Mas, papai. O Máximo deve ter compreendido. Indiretamente o senhor fez

uma denúncia.

O Auripai se levantou:

Não fiz denuncia alguma! Mas antes tivesse denunciado! Não quero ver filha

minha e meu irmão metidos numa cadeia suja, sofrendo torturas medievais, só por

causa de um cabeça oca399.

Auripai é a típica figura do cidadão comum da Cidade. A diferença entre ele e o per-

sonagem-narrador, outrora alienado, está no fato daquele ter conhecimento dos problemas po-

líticos, ainda que sem se envolver, pois, em suas próprias palavras, “Há quase sessenta anos

que eu ouço a mesma conversa. Cai república, vem monarquia, cai monarquia, vem república,

não sai disso. Luta aqui, grita dali, morre acolá e nada se resolve400”. Quanto ao protagonista,

398 GIUDICE, 1985, p. 281-2. 399 GIUDICE, 1985, p. 289. 400 GIUDICE, 1985, p. 287.

149

já sabemos que nunca se interessou por política até o momento em que se apaixonou por Auri-

flor: “Logo eu, que nunca me dei ao trabalho de passar os olhos numa simples manchete de

jornal. [...] Nunca soube se havia repúblicas ou monarquias indigestas regendo meu destino”401.

Nem todo mundo utiliza o pensamento a favor de uma causa maior como Auritio, aliás,

muitos preferem seguir uma rotina de obediência ao invés de se incomodarem. A Condessa,

apesar de ser uma representante oficial da casta da Cidade, mantém opiniões enérgicas sobre as

transições de regimes apesar de namorar anos um velho monarquista. Para ela, mais vale um

monarquista convicto que um alienado político:

O Auripai subiu as escadas e, só então, percebemos a Condessa de pé, no

andar de cima, apoiada ao corrimão. Ouvira tudo. Quando o pai de Auriflor passou

por ela, sua voz foi clara:

É bem melhor ser um monarquista de pedra como o avô, do que um saco

vazio como você.

A réplica se perdeu no corredor:

Ora, Condessa...

Senti pena dele402.

A empatia do personagem-narrador com o Auripai se justifica exatamente pelo fato de

ver no sogro um reflexo do seu eu anterior: “Realmente, eu não passava de um cabeça oca.

Afinal de contas, antes da maternidade, eu nada mais era do que um auripai com emprego

fixo403”.

Reconhecer a própria alienação é um progresso na trajetória do personagem ainda mais

que, depois da deserção do Barão e da prisão de Auritio tornara-se, finalmente, o único repu-

blicano na ativa da Cidade e, de acordo com o pirata Pons, “Se é republicano, tem que temer o

temor dos monarquistas”, ou seja, o pensamento, “mas se não é nem uma coisa nem outra, você

corre perigo de vida404”. Todavia, é somente na execução de Número Um que o protagonista

compreendera a última lição ensinada pelo companheiro, pois sua morte estava premeditada

desde que aquele decidiu não ser uma coisa nem outra, nem monarquista nem republicano.

Os gatilhos para que o pensamento reagisse com maior afinco e efetividade para a

materialização do punhal foram a prisão de Auriflor, cumplice do último republicano da Cidade,

e a oferta de Pons para comer omelete no intervalo do espetáculo. O cérebro começou a palpitar

e o intervalo soou como um “prelúdio de uma solução405”. A sensação descrita pelo personagem

401 GIUDICE, 1985, p. 284. 402 GIUDICE, 1985, p. 289. 403 GIUDICE, 1985, p. 289. 404 GIUDICE, 1985, p. 294. 405 GIUDICE, 1985, p. 311.

150

diz que parecia haver uma janela aberta sobre sua cabeça, que se fechou logo que chegou ao

camarote real e encontrou o palhaço Eusebius adormecido no trono.

Descobrir que este era, na verdade, Vezirrê Budru foi desolador, mas menos que des-

cobrir o que lhe esperava a partir daquele momento. Segundo o rei-palhaço, a Monarquia já

havia terminado, só que precisavam de uma cena cabível para entrar para a história.

Não tenho mais forças para nada. Esta Monarquia quase acabou comigo. Estamos

todos tão podres, tão inúteis, tão cobertos de poeira, que você nem imagina. Carregar

este Circo nas costas não é brincadeira. Cada número que eu apresento me custa anos

de vida. E pra quê? Esta Cidade não tem jeito [...] Outra coisa. Não aguento mais ver

estas cores na minha frente. Essas bandeiras. [...] Se as estatísticas tiverem certas, você

é a minha única esperança406.

O personagem-narrador ficou entre um misto de indignação e aceitação. Novamente

seu cérebro voltou a raciocinar e retomar o impulso anterior e, dessa vez, seria obediente à

indignação que lhe movia pernas e cérebro.

Ergui os braços e levei às mãos à nuca. Pons me soltou e deu um passo capenga para

trás. O maestro, desesperado, ajustou um dos laços no próprio pescoço. Senti o cabo

do punhal na mão direita. Pons arregalou o olho. Um dos palhaços foi até o fundo do

picadeiro e tornou a girar a manivela do realejo. Vezirrê Budru foi erguido do solo,

pendurado na ponta da corda. Meus dedos retiraram o punhal do cérebro e da dor

cessou. O olho de Pons se dividia entre meu rosto e a arma em minhas mãos. Não era

mais a faca de cozinha imprestável que eu produzira na pensão. Dessa vez, o pensa-

mento foi sublime. Tratava-se de um punhal de lâmina retilínea, feita de um aço mais

reluzente do que o machado de Eusebius.

O pensamento unido ao espetáculo encerrou mais uma Monarquia e deu início a outra

República. Tudo muito bem ensaiado por todos, menos pelo personagem-narrador que não per-

cebeu de imediato que seu ato heroico significava só mais um número do Circo. Ao final do

espetáculo, Eusebius o chamou ao camarim para elogiá-lo pela grandiosa atuação naquela noite:

“Eu não lhe disse que a noite era nossa? Você brilhou, rapaz. Máximo, me dá a toalha [...] Viu

só? Até as toalhas estão como novas407”. Enfim, entendera o que Pons havia dito: “os punhais

de pensamento ferem ideias, mas não matam ninguém408”.

A transição de regimes havia sido realizada com sucesso, bem como a transição do

personagem-narrador de alienado a republicano. Pode-se dizer que o dilema entre suas vidas e

identidades antes e depois de Cynthia está ligado ao contexto pós-monarquia, ou pós-ditatorial,

no caso do Brasil.

406 GIUDICE, 1985, p. 315. 407 GIUDICE, 1985, p. 322. 408 GIUDICE, 1985, p. 322.

151

Conforme destaca Idelber Avelar, a sociedade pós-ditatorial não consegue recompor

suas perdas, pois não há tempo para isso. O prefixo pós nada tem a ver com o conceito de

superação: estar no tempo pós-trauma significa continuar habitando esses traumas, as perdas e

suas consequências. Portanto, a fragmentação da narrativa está relacionada à incapacidade do

personagem-narrador em lidar com todos os traumas sofridos antes e durante o tempo narrado:

perder Cynthia, ser preso e torturado, viver na clandestinidade, forjar as cicatrizes da tortura

etc. Nesse sentido, a incapacidade do personagem-narrador de lidar com o trauma é a mesma

incapacidade da Cidade de lidar com as transições políticas de maneira coerente.

Portanto, a noção de desfundação está incluída em todo o processo de transição e for-

mação do pensamento, pois demanda uma análise de conjuntura profunda do contexto histórico

nacional.

Auripai talvez não seja um alienado como o personagem-narrador foi um dia, talvez

ele seja somente um cidadão desesperançado em razão de tantas transições e consolidações sem

mudanças efetivas, tendo em vista que os “períodos de mudança de regime são momentos fun-

dadores-chave para entender o desenvolvimento político ulterior409”. O pai da enfermeira de

pernas-ponteiro é um cidadão fruto de processos de transição realizados para serem ineficientes

e, consequentemente, consolidações malsucedidas pois “a maneira em que se dá a transição [...]

teria direta relação com os problemas e desafios que devam ser enfrentados durante a fase de

consolidação das instituições democráticas restauradas410”.

A transição política no romance ocorreu de maneira pacífica sem o envolvimento do

restante da população, que permaneceu como espectadora passiva; nem do picadeiro, que atuou

como se fosse um número corriqueiro do Circo. Havia apenas um elemento entre eles que acre-

ditava de fato em um ato revolucionário: o personagem-narrador, os demais republicanos foram

torturados e desistiram da luta ou estavam presos no momento do golpe.

No Brasil, o processo de transição pós-ditatorial ou de consciência democrática iniciou

com a abertura política proposta pelo governo Geisel. Para muitos brasileiros, esse momento

significou a derrota da ditadura militar, porém outros tantos tinham a consciência de que aqueles

nunca perderiam o controle da situação política, ou seja, eles implantaram, endureceram e abri-

ram o regime de acordo com seus projetos411. É nesse clima tenso e com forte sentimento de

409 Gabriel VITULLO, 2001, p. 55. 410 VITULLO, 2001, p. 55. 411 Anita Leocádia PRESTES, 2014.

152

derrota que Victor Giudice constrói a farsa sobre a transição de monarquia para república da

Cidade.

O personagem Número Um tem um discurso muito esclarecedor ao sugerir que aos

dois erres, regulamento e rei, se opõem os três pês: picadeiro, plateia e pensamento. Se estamos

levando em consideração o pensamento como estopim da revolução, também precisamos com-

preender que ele é apenas um elemento de uma tríade.

Por exemplo, na musicologia, a tríade se refere às três notas musicais necessárias para

a formação de um acorde, ou seja, um conjunto harmônico de notas. Nessa mesma lógica fun-

ciona a grande obra proposta por Número Um: para que haja harmonia de ideias é necessário a

conjunção dos três pês, de modo que somente o pensamento agindo solitário não é capaz de

mudanças reais.

O palhaço Pons é quem consegue resumir a questão da desfundação de que tanto fala-

mos nessas páginas: “E o grande mal de toda essa gente, inclusive o meu, é que desprezamos o

passado, odiamos o presente e falsificamos o futuro. O futuro só vale a pena quando o presente

pratica as lições do passado412”. O pensamento aparece no romance como sinônimo de indig-

nação e resistência e, unido ao picadeiro e a plateia, torna-se capaz de materializar a grande

obra. No entanto, não é possível que essa transformação ocorra de uma hora para outra, princi-

palmente na transição de um sistema repressor para outro semelhante.

Conforme destacado ao longo deste capítulo, 1984 e Bolero têm o cenário de um sis-

tema repressor em comum: situações que, porventura, são definidas como distopias e fantásticas

estão muito próximas da sociedade de Stéphane Hessel, George Orwell e de Victor Giudice e,

por sua vez, nem um pouco distante da nossa contemporaneidade, conforme veremos no pró-

ximo capítulo.

412 GIUDICE, 1985, p. 265.

153

pelos malsãos

contra a mudança de sexo nas escolas

pela minha tia eurides que cuidou de mim quando meu bilau era pequeno

pela grande bunda em campo da puta morena mais linda do brasil

pela família nelsonrodrigueana

pela inocência das crianças abençoadas pelos padres nas sacristias

contra o cumunismo

em memória do coronel diamante ustra e do terror

pelas redes sociáveis

pelo meu pai pelo patriarcalismo

pelo polvo brasileiro

pela minha famiglia

pelos evangélidos

contra o instatuto do desmamamento

pelos militares de 64

contra o 69

pelas polícias e milícias

em nome de lúcifer

por meus filhos ilegítimos e bastardos

por minha esposa e por minha amante

pelos meus ais e meu estado de quero mais

pela família circular evangélida

pela br-666

pela minha mãe lucifemar

pela paz de matusalém

pela misericórdia aos meus por esta nação

porque o brasil tem enjeito sim

pelo prefeito de montes claros e rabo obscuro

por thyagho deyvidy gahbryel matheuss

pela minha mãezinha que morreu no parto

pelo desnorte de minas

pelos agricultores escravizantes

que se não plantam ninguém almoça nem jantam

pelo aniversário da minha netinha

que se senta em meu colinho

por todos os corretores de seguro

por deus e o diabo na terra do sol

sim sim sim sim sim sim sim

(DEMARCHI, 2017)

154

5 A CONTEMPORANEIDADE DE BOLERO E O GOLPE DE 2016: A TRAGICO-

MÉDIA BRASILEIRA

Não quero, de modo algum, dizer nesse trabalho que Bolero é um livro à frente de seu

tempo e que previu acontecimentos no Brasil. O que faz do romance contemporâneo ao Golpe

de 2016 não são episódios análogos, mas as circunstâncias do enredo e os contextos de publi-

cação e de recepção. A atualidade da obra está exatamente no efeito catártico proporcionado

por sua leitura junto aos acontecimentos históricos do Brasil, sejam eles anteriores ou posteri-

ores à escrita e publicação do romance.

Esse encontro do efeito catártico com os acontecimentos tanto da ficção quanto da

realidade torna possível pensarmos na ideia de tragicomédia. O povo brasileiro possui um

“dom” de tornar risível sua própria tragédia, de modo que elementos e situações trágicas e ab-

surdas podem parecer cômicas. No romance, o personagem-narrador não reage dessa maneira

às situações as quais é submetido e às consequências de seus atos. No entanto, o leitor reage.

Nos capítulos anteriores, comentei sobre a narrativa giudiciana manter uma relação

íntima com seu leitor. Nelly Novaes Coelho chama a atenção para a necessidade de um “leitor

atento” tanto no que diz respeito aos aspectos literários quanto extraliterários, pois tudo inter-

fere diretamente na interpretação de quem lê, ou seja, na recepção da obra. De acordo com a

autora, “para o leitor distraído talvez essa leitura não diga nada413”, pois o texto narrativo nada

vale por si só. Ouso dizer que uma certa suficiência sócio-histórica, política e até mesmo ética

possibilita um maior alcance de significação da obra literária.

Ainda nessa perspectiva, Coelho destaca a sátira tragicômica que permeia toda a obra

e seu efeito catártico como mecanismo transgressor. A autora sugere essa tônica para Necroló-

gio, mas, devido ao elo estabelecido entre as três primeiras obras de Victor Giudice podemos

incluir Bolero nessa leitura.

Uma das características atribuídas aos contos, pela autora, é a denúncia da “mesmice

do cotidiano que aprisiona o homem” o que, por sua vez, Giudice o faz de maneira direta e

através de “um contato de choque414”. Dos personagens giudicianos tem-se alienação e do nar-

rador passividade diante dos fatos absurdos relatados. No romance, há um processo de evolução

do personagem-narrador que inicia a história nessa posição de alienado e passivo, saindo da sua

413 COELHO, 2013, p. 932. 414 COELHO, 2013, p. 927.

155

zona de conforto ao ser abandonado pela esposa na maternidade para culminar num sujeito

consciente política e socialmente.

O episódio das cicatrizes parece-me adequado para exemplificar a naturalidade e indi-

ferença dos personagens tanto do Auritio, quando sugere os procedimentos cirúrgicos, como do

protagonista, ao receber a informação e submeter-se à cirurgia às avessas. Esse seria o momento

ideal para aflorar sua consciência do absurdo-trágico a que estava sendo exposto, entretanto,

isso não ocorre. Há alguns personagens que têm esse despertar, mas são explorados dentro do

contexto tragicômico e absurdo, como o prisioneiro Número Um e o artista plástico Ladislau.

Nelly Novaes Coelho retoma Metamorfose, de Kafka, para ilustrar a semelhança com

a naturalidade com que os personagens e o narrador de Giudice assistem às tragédias absurdas

às quais são submetidos. Os personagens kafkianos “estavam mergulhados em um viver alie-

nante [...] essa mesma naturalidade [...] é um dos elementos-chave utilizados pelo autor [Giu-

dice] para intensificar a impiedade e contundência da denúncia415”. Os personagens de Bolero,

em determinadas situações, demonstram posicionamentos críticos sobre a realidade, mas aca-

bam por sucumbir ao que a autora chama de “vida maquinal”.

Ao longo do romance, o leitor acompanha a história desse homem que passou sete

anos na sala de espera de uma maternidade. Com a mesma naturalidade com que recebeu a

notícia do tempo decorrido, o protagonista encarou uma sociedade completamente diferente da

que um dia “conheceu”.

O protagonista foi preso, liderou um golpe político e, por fim, em meio aos inúmeros

acasos que lhe ocorreram, é possível crer em sua transformação de alienado à revolucionário,

bem como em uma grande obra capaz de provocar mudanças através do pensamento. No en-

tanto, o sentimento de derrota diante da farsa que derrubou a monarquia não surpreende ou

causa alguma revolta nesse personagem, isso também fica a cargo do leitor.

O capítulo/fragmento final, intitulado no manuscrito como “Carta a Cynthia”, reúne

todas essas sequências mencionadas. Tal qual um resumo de tudo que aconteceu nos últimos

anos da Cidade. De início, o texto parece ser um tipo de desfecho de sua história pessoal em

forma de despedida, porém, ao longo da leitura, verificamos que, na verdade, configura-se como

um relato sobre os acontecimentos que sucederam o golpe e suas consequências.

A análise de conjuntura que faz sobre sua vida e sobre a Cidade denuncia que a farsa

tragicômica ultrapassou o esquema da transição de regimes. Ela atinge uma dimensão ampla

415 COELHO, 2013, 929.

156

onde não há mais distinção entre o público e o privado, entre o limite da vida individual e a

esfera política. É nesse sentido que a farsa tragicômica giudiciana desenha uma caricatura crí-

tica da sociedade ficcional e da sociedade brasileira.

Ao longo da carta, o personagem-narrador desmascara a transição de regime e a ma-

nipulação política na qual ele próprio estava inserido. Ele pode ter deixado de ser um alienado,

mas seu despertar político foi apenas ocasional, considerando que assumiu a presidência das

Indústrias S.A. por meio de um golpe que envolveu falsificação de assinatura e documentos. A

questão consiste no fato de que, para ser merecedor de uma “posição” na sociedade, faz-se

necessário saber manipular situações a seu favor, caso contrário, não é possível sobreviver à

turbulência do sistema. Usando o termo de Coelho, a desalienação do personagem-narrador está

em saber operar a “vida maquinal” e seus absurdos-trágicos.

“O que posso fazer? Não posso perder meu emprego416”; declarações como essa apro-

ximam o leitor da voz narrativa de Bolero, tendo em vista que o brasileiro vive um eterno dilema

entre identificar-se como indivíduo (espaço público) ou como pessoa (espaço privado). Tais

circunstâncias definem uma linha tênue entre a ordem e a desordem, àquilo que pode e o que

não pode.

Segundo Roberto DaMatta417, o brasileiro adota um comportamento nesse entremeio

em que é permitido tomar atitudes que lhe favoreçam mesmo que infrinja regulamentos, normas

e leis. Importante destacar que essa ideia se opõe à tese do prisioneiro Número Um sobre deso-

bediência aos regulamentos, já que uma questão é subverter o sistema como oposição e resis-

tência a uma causa, outra é fazê-lo arbitrariamente para benefício próprio ou de próximos.

O personagem adapta-se aquilo que o sistema lhe oferece: sai da clandestinidade,

torna-se um empresário, amasia-se com Auriflor, tem (outros) filhos, compra um apartamento

na Avenida Primeiro de Abril etc.. No entanto, preso a um passado em aberto continua à espera

de notícias de sua esposa. Afinal, o sumiço de uma das partes envolvidas no divórcio faz da

legalização de seu atual casamento um caso impossível, a não ser que espere por um “jeitinho”.

Ao assumir a presidência das Indústrias S.A., o personagem-narrador torna-se uma

espécie de autoridade na Cidade com referências, ou seja, pode utilizar meios não convencio-

nais para conseguir o que almeja. Há uma proximidade frágil entre resolver os casos burocráti-

416 GIUDICE, 1985, p. 202, 221, 330. 417 DAMATTA, 1997a.

157

cos com criatividade e a corrupção propriamente dita. E, nas circunstâncias em que o persona-

gem-narrador se encontra, corromper o sistema parece ser a opção mais viável. Nesse sentido,

o “jeitinho” dado pelo despachante responsável pelo caso está aliado ao rito “Você sabe com

quem está falando?” sugerido por Roberto DaMatta418. Um tipo de recurso de poder utilizado

para burlar ou facilitar burocracias.

A Condessa de Monchicque, por exemplo, comenta em diferentes momentos do texto

sobre a sua “importância” na Cidade, principalmente quando questiona o tratamento dado a ela

e ao nome de sua família quando prenderam seu sobrinho Lasdislau: “Nem a mim eles respei-

tam mais”419. Inclusive, em outro momento, diz para Auriflor que pessoas como ela não preci-

sam se preocupar com retaliações políticas:

Ai, minha filha. Conosco não há perigo. Politicamente, não somos consi-

derados republicanos ou monarquistas, porque antes de qualquer ideologia, somos Al-

pharraz, Bethançon, Gammedal e Monchicque. Eles respeitam muito mais esses no-

mes420.

Todas as pessoas que o personagem-narrador conheceu pós-Cynthia fazem parte de

um grupo social privilegiado dentro de uma sociedade onde as relações pessoais são predomi-

nantes, porém sua situação é bem distinta dos demais: ele não tem passado, não era ninguém

até conhecer Auriflor, sua família e amigos. Dentro da perspectiva de DaMatta421, estar no en-

tremeio de indivíduo e pessoa faz dele um malandro.

Para o malandro, a palavra de ordem é sobrevivência. Assim como tudo em Bolero

acontece ao acaso, a categoria de herói não é uma conquista do personagem-narrador por mé-

rito, mas por conveniência das circunstâncias. Por exemplo, na obra de Mário de Andrade, Ma-

cunaíma, em sua constante busca pela pedra (Muiraquitã), tem sua figura de herói construída

com base em sucessivos atos fortuitos e visando, muitas vezes, dois alvos opostos422. O perso-

nagem-narrador do romance de Giudice também não planeja objetivamente as suas decisões

nem prevê os consequentes acontecimentos.

O golpe orquestrado sub-repticiamente por Eusebius, e executado e protagonizado

pelo personagem-narrador foi uma manobra digna de aplausos. O ato fez tanto sucesso entre os

espectadores que o personagem foi convidado a integrar oficialmente o time circense. Mediante

a recusa da oferta de emprego e o retorno à auricasa, ele percebeu que poderia associar-se às

418 DAMATTA, 1997a. 419 GIUDICE, 1985, p. 196. 420 GIUDICE, 1985, p. 300. 421 DAMATTA, 1997a. 422 Gilda de Mello SOUZA, 1979.

158

contradições apontadas por Ladislau na fábula sobre a fundação da Cidade: “pelo menos num

de seus versos: eu também conhecia histórias mil que a História esconde423”. Ele fizera parte

de uma grande manobra política para derrubar a monarquia falida e abrir as portas para uma

república promissora (ou algo do tipo).

A única certeza sobre os acontecimentos políticos da Cidade está nas trivialidades as

quais se tornaram as trocas de regime, já que provavelmente essa não foi a última monarquia

nem será a última república. Apesar do palhaço Eusebius simular a morte do rei Vezirrê Budru

e afastar-se do cenário político, não descartou a possibilidade de retornar:

Não estou querendo dizer que eu vá me aposentar. Mas, pelo menos por

uns tempos, vou sumir de cena. É bom não cansar a turma com os mesmos espetáculos

todas as noites. Esse pessoal gosta de variedade. Depois, um dia, quem sabe? O futuro

a Deus pertence424.

Mas por ora, o comando do Circo fica nas mãos de seu filho, Florestan. Enquanto isso,

depois de tanta espera finalmente o personagem-narrador entrou na maternidade da Seis de

Outubro com um propósito e saiu com um filho: Auripedro. E talvez esteja à espera de outro;

se for menina se chamará Aurinata. Essa prole pode um dia representar a continuidade da li-

nhagem política da aurifamília: Aurideia, Auriavô, Auritio, Auriflor e, por último, o persona-

gem-narrador. Caberá ao futuro dizer se serão monarquistas, republicanos ou os dois, como

Pedrobarão Covarrubra; quem sabe seja nem um nem outro, como Número Um; há também a

hipótese de ser um alienado, visto que tal pai, tal filho. Observa-se, portanto, que as relações

sociais, familiares e políticas da Cidade estão todas interligadas, de modo que esse pode ser

considerado um dado estrutural na sociedade do romance.

No Brasil, não há uma separação absoluta entre público e privado, tornando-se assim

um sistema conduzido por normas pessoais e irracionais. De acordo com DaMatta425, o perso-

nalismo e o patriotismo são impasses constituídos desde a formação cultural do país, possibili-

tando que posições e cargos administrativos sejam utilizados para benefícios pessoais. Salvo o

personagem-narrador ingressar na prestigiosa aurifamília, também ascende à presidente do mo-

nopólio econômico da Cidade, ou seja, pode não ter conseguido (ainda) casar-se oficialmente

com Auriflor mas, como exposto, sua relação e posição social já lhe renderam frutos que na

outra relação lhe foram negados.

423 GIUDICE, 1985, p. 328. 424 GIUDICE, 1985, p. 324. 425 DAMATTA, 1997b.

159

Assim como na Cidade de Bolero, para entender o Brasil e suas relações políticas tam-

bém se faz necessário compreender o papel das grandes famílias. Segundo o cientista político

e sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, existe no país uma tradição nepotista que dificulta o

funcionamento do sistema político nacional426. Inclusive, algumas dinastias estão enraizadas no

poder desde o período Colonial427.

De igual modo, tanto o romance Bolero quanto o conto “Miguel Covarrubra” denun-

ciam os elos de parentesco entre os governantes da Cidade, o que pode justificar a falta de

mudança efetiva nos processos de transição e consolidação. Para Oliveira, não há perspectiva

de mudança política enquanto o país continuar sendo uma república de famílias, pois configura-

se um fenômeno social e político do atraso que está intimamente ligado ao conservadorismo428.

“A esquerda que espere”, frase com que o personagem-narrador finaliza a narrativa e

conclui sua carta para Cynthia, simboliza o seu conformismo e a direção que a política local

tomará a partir do golpe em diante.

Ao analisar por um viés estrito do contexto literário, tem-se a transição de um regime

autoritário monárquico para uma república. Ao que tudo indica, o novo regime será nos mesmos

moldes do anterior, tendo em vista que o golpe contra a monarquia foi orquestrado pelo próprio

rei. Tal situação nos remete a outro momento da literatura, dessa vez escrito por Machado de

Assis.

Em Esaú e Jacó, de 1904, o personagem Custódio entra em conflito sobre o nome de

seu estabelecimento comercial assim que a República é proclamada. A situação ocorre devido

ao local chamar-se “Confeitaria do império” há pelo menos trinta anos. E agora deveria mudar

a tabuleta recém pintada com tinta viva e bonita para “Confeitaria da República”? Essa opção

parecia coerente, se não fosse lembrar-se em conversa com Conselheiro Aires que, “se daqui a

um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez

o dinheiro429”. Por fim, a proposta de mudar para “Confeitaria do Custódio” pareceu-lhe mais

adequada.

426 Ricardo Costa de OLIVEIRA, 2012. 427 Por exemplo, conforme o estudo publicado por Oliveira, a família do governador do estado de São Paulo está

envolvida na política brasileira desde o século XVI. 428 Nos partidos de esquerda começam a surgir famílias políticas. Por exemplo, o perfil parlamentar do Partido dos

Trabalhadores era formado principalmente por lideranças oriundas diretamente dos sindicatos, no entanto, com as

sucessivas eleições surgem hoje carreiras políticas familiares. 429 Machado de ASSIS, 2008, p. 1158.

160

Portanto, pode-se dizer que essa frase final de Bolero e a situação e Custódio implicam

e reiteram a farsa das transições e, consequentemente, as poucas mudanças políticas, sociais e

culturais decorrentes da consolidação desses regimes. Por sua vez, também confirma um dos

motivos pelos quais Auritio não acreditou na efetividade e na fidedignidade do golpe e do novo

governo.

Por um viés do contexto político nacional, a palavra “espere” faz um forte paralelo

com o clima de esperança que pairava em 1984, ano de construção do romance e marco histó-

rico do movimento pelas eleições diretas pós-ditadura. Nesse sentido, a frase “A esquerda que

espere” arremata o contexto satírico em que o romance está inserido, podendo manifestar tanto

esperança no futuro da nova nação democrática quanto desesperança diante da maneira como

que esse processo estava sendo arranjado.

5.1 O ESPETÁCULO SATÍRICO DE BOLERO

Na época em que foi realizada a leitura do romance na disciplina de Estudos Literários

II, lembro-me de relatos dos alunos sobre um certo incômodo com o desfecho da trama em

contraponto aos momentos de humor e perplexidade causados pelas cenas improváveis às quais

os personagens estão condicionados. Ao entender que parte dessa mescla de sensações resultava

de questões externas à obra literária e vivenciadas por nós naquele momento, comecei a pensar

na interseção entre a recepção dos leitores e o contexto da obra.

Muitos são os fatores que influenciam no efeito que uma produção escrita tem sobre o

leitor e vice-versa. É possível iniciar esse debate a partir do próprio texto literário e dos indícios

que implicam em tais sensações e reações, como o humor proporcionado por intermédio da

maneira disparatada com que ocorrem os acontecimentos no romance. No entanto, o cômico de

Giudice está diretamente relacionado ao sentimento de indignação, ambos resultados da iden-

tificação do leitor diante das situações absurdas narradas e da relação que estabelece com fatores

externos à criação literária.

As palavras do personagem Número Um, em resposta à incredulidade do personagem-

narrador sobre o número das esferas de prata, são perfeitas para tentar entender essas relações:

“Sabe o que é ficção? É quase a mesma coisa que realidade. É uma realidade sem visões fal-

sas430”. Digo isso por perceber que os disparates não são de todo modo ilógicos, pois surgem

de uma ideia que paira no real e, quanto mais próximo, maior o incômodo.

430 GIUDICE, 1985, p. 57.

161

O riso provocado pelas cenas absurdas, de acordo com Henri Bergson431, funciona

como um trote social que também é humilhante para aquele que serve como seu objeto. Nesse

sentido, as desventuras do personagem-narrador instigam um tipo de riso por serem vistas, em

um primeiro momento, como literatura de pura ficção. Em outras palavras, o relato não é teste-

munhal e não é memorialístico, ele faz referência a um espetáculo onde tudo é farsa. Esse ce-

nário circense da narrativa potencializa a distância entre a ficção e a realidade. Por outro lado,

a relação do cômico e do incômodo apresenta uma oposição entre aquilo que o leitor assimila

como “pura ficção” e o momento em que aproxima a cena da sua realidade.

O tempo de escrita e a publicação do romance condizem, também, com o entremeio

da abertura política e da construção e aprovação da Constituição de 1988. Como em outras

obras do período, Bolero traz em seu enredo pontos referentes ao regime militar e especula

sobre o futuro democrático que se acercava. No entanto, Giudice também problematiza outras

questões que estão patentes na sociedade brasileira do período como a crítica à burguesia, à

falta de direitos sociais, ao sistema trabalhista etc., esses que são assuntos enraizados na forma-

ção nacional. Por isso, o texto configura-se tão contemporâneo e incômodo ao leitor de diferen-

tes momentos históricos.

Para os leitores da segunda metade da década de 1980, as sensações de vitória e derrota

dividiam o mesmo espaço diante do momento decisivo da história brasileira, de modo que o

discurso do romance não faz um apelo positivo sobre os próximos passos políticos do Brasil.

Pelo contrário, o escritor opta por utilizar mecanismos linguísticos e literários que estimulem a

criticidade do leitor sobre as reais circunstâncias as quais dispõem o processo de transição po-

lítica.

Nesse sentido, as ligações entre o real e o fictício no romance encontram sua forma de

expressão através da alegoria; e os efeitos da recepção dependem da relação do sujeito leitor

com a leitura e as marcas que relacionam o texto com os acontecimentos históricos e literários.

Esse riso passa a ser praticamente impossível de controlar assim que ocorre a identificação.

Diante disso, pode-se dizer que se ri do seu próprio infortúnio, um riso que através dos

olhos do escritor é cáustico, para o leitor torna-se estranho e incômodo. Nas palavras de Albeiro

431 BERGSON, 2018.

162

Trujillo, “quem ri enquanto tem uma dor, não a está superando: só está tendo um ataque histé-

rico432”. Isso ocorre devido ao elemento risível não ser aquele engraçado, prazeroso, de puro

humor; na verdade, pode-se dizer que se aproxima muito mais de um riso nervoso.

A crítica feita sobre a tragicomédia tem o riso como instrumento que utiliza as peripé-

cias dos personagens para fazer crítica social, desestabilizar os grupos que estão no poder e,

então, combater o sistema vigente. Apesar de Trujillo fazer uma análise da tragicomédia nas

narrativas picarescas, sua interpretação a respeito dos pícaros serve também para uma análise

sobre Bolero. Em ambos os casos, não há necessidade do protagonista ser um personagem épico

ou um herói, pelo contrário, este apresenta características ordinárias, e por vezes de anti-herói.

Em um dado momento, as atitudes do personagem-narrador levam-nos a crer em sua

aliança com a luta revolucionária, mas logo percebemos que seu maior desejo é viver, tal qual

Trujillo descreve sobre o pícaro: “comodamente, usufruindo dos benefícios das classes privile-

giadas e, nesta tentativa por se acomodar, termina fazendo grandes críticas sem querer, que

desmascaram o sistema dominante sem o saber433”. Mas, é importante ponderar que diferente

da análise de Trujillo sobre o pícaro, não creio que a crítica presente no discurso do persona-

gem-narrador de Bolero seja ingênua, pois nele há marcas de sátira e ironia que acabam por

revelar suas intenções e perspicácia ao associar-se, por exemplo, como funcionário das Indus-

trias S.A..

Friso que a sátira giudiciana manifesta-se no ato da recepção, ou seja, na identificação

do leitor com o tempo histórico em questão ou com a própria crítica existente na trama. Con-

forme nos propõe Matthew Hodgart, a sátira é uma forma de arte datada, ou seja, o que provoca

riso ou incômodo em um determinado período histórico pode não causar em outras circunstân-

cias. Nas palavras do autor, “sátira es una palabra que se usa en diversos sentidos [...] Los

medios de expresión de la sátira, así como sus temas, son efímeros a menudo434”. Sua potenci-

alização ocorre pelo fato de o leitor poder identificar-se por diferentes vieses de leitura. Caso

isso não ocorra, provavelmente não surtirá efeito e o texto provocará outra resposta.

O satirista atrela à sua crítica ideias que estão em constante movimento e são histori-

camente marcadas, podendo mudar a qualquer momento. E a ironia aparece no romance como

o recurso elegido pelo escritor para construir a sátira presente na alegoria sobre o contexto social

e a mudança de regime político.

432 Albeiro TRUJILLO, 2007, p. 19. 433 TRUJILLO, 2007, p. 14. 434 Matthew HODGART, 1969, p. 7.

163

Aparentemente, existe uma necessidade de se desvincular do que se entende por sátira

dentro da literatura tradicional e olhar a maneira como o escritor busca, através da troça e da

crítica direta, alcançar seu objetivo. De acordo com Hodgart:

Sin embargo, lo que comúnmente se denomina sátira constituye una parte bien defi-

nida de la literatura: los lectores expertos coincidirían en su aplicación de este término

a alguna de sus lecturas. Pero, al tratar de definirlo lo más acertado será abandonar los

métodos tradicionales de clasificación literaria y observar, en su lugar, la actitud del

satírico ante la vida y los diferentes medios de que se vale para dar a conocer esta

actitud en forma literaria435.

Apesar dos elementos risíveis em sua obra, Giudice não é um escritor cômico. Esse

não é o elemento central de seus textos, tendo em vista que se insinua através de frestas. Por

isso, pode-se dizer que o romance está inserido dentro de uma leitura satírica em que o riso está

em um lugar de passagem.

A tonalidade do satírico é um aspecto capaz de ocupar qualquer espaço da comunica-

ção. Nesse caso, o discurso satírico pode ser descrito como empenhado, no sentido de engajado,

de tal modo que o texto apresenta em seu contexto um interesse extraliterário. Conforme obser-

vei na obra de Victor Giudice ao longo desse trabalho.

Essa perspectiva leva-me a somar à discussão a classificação de Dustin Griffin sobre

sátira: para o autor, esse recurso valoriza o exagero e a ficcionalidade,

contudo não abandona o ‘mundo real’ completamente. As suas vítimas vêm desse

mesmo mundo, e é graças a este fato, juntamente com um tom mais escuro ou mais

nítido, que ela consegue separar-se da pura comédia436.

A moralização do discurso satírico ocorre através de marcas do ridículo e do exagero,

como é possível observar em diversas situações a que o personagem-narrador de Bolero foi

disposto, como na cena com o reizinho underwood datilógrafo na delegacia ou nas descrições

sobre o espetáculo do Circo.

Dustin Griffin reforça o argumento de que existe uma força subversiva da sátira que

também é controlada pela recepção. Nesse sentido, a subversão atua conforme a sátira age de

forma oculta fazendo provocações, tirando o leitor do lugar comum de conforto, desafiando

ideias e convicções. Nas palavras de Griffin, “questionando e levando dúvidas, mas não dando

respostas, desta forma a sátira tem finalmente consequências políticas437”. Direta ou indireta-

mente, a maioria das cenas de Bolero fazem crítica política, institucional e social.

435 HODGART, 1969, p. 12. 436 Dustin GRIFFIN, 1994, p. 1, tradução nossa. 437 GRIFFIN, 1994, p. 160, tradução nossa.

164

A provocação satírica pode ser sutil, como nas cenas descritas pelo personagem-nar-

rador durante sua caminhada pelas treze quadras em direção à estação de trem. Logo nas pri-

meiras quadras da Avenida Primeiro de Abril, o personagem relata a existência de um “valha-

couto de milionários” muito bem protegidos “pela ferocidade dos cães [que] parecia a única

prova de existência de vida438” no local. Mais adiante, no número sessenta e quatro, seus pen-

samentos foram interrompidos por uma “alegria tropical” vinda de um restaurante de luxo,

sixty-four’s. O estabelecimento, que faz referência ao ano do Golpe militar, era frequentado

pela elite da Cidade. Naquele momento, o irmão de Ladislau, sua noiva, o sogro e os amigos

jantavam e divertiam-se assaltando com armas de fogo os funcionários e outros clientes do

restaurante. Além disso, faziam troça dos demais fregueses incluindo o chefe da Guarda Real.

Essa cena configura-se como uma espécie de retrato da impunidade que a elite adquire por meio

de seu poder monetário e status social privilegiado.

A partir da segunda quadra, o cenário sofreu algumas mudanças, não havia mais man-

sões, mas as casas e prédios mantinham um padrão de classe média. Até esse momento o per-

sonagem estava começando a desenvolver um sentimento ufanista para o qual antes era indife-

rente: “(como é possível amar uma Cidade?) [...] Ali estávamos nós dois, minha Cidade e eu,

eu e minha Cidade contemplamo-nos envergonhados de nosso mútuo desconhecimento439”. Ao

caminhar mais um pouco, as fachadas das casas começaram a apresentar deterioração até não

existir mais moradia e, concomitante a isso, ocorria a decomposição de seu sentimento nacio-

nalista.

Até chegar na estação de trem, o personagem cruzou com todas as formas de desigual-

dade. A partir do abismo entre as classes sociais da Avenida Primeiro de Abril, ele descreve

uma espécie de pirâmide social. Conforme o trecho seguinte:

Numa janela iluminada por um lampião de querosene, vi a doença e o des-

conforto, vi uma concha de feijão ser dividida por onze pessoas. Registrei a desgraça

no corpo de uma menina nua. Surpreendi um casal de negros que se amavam numa

cama feita de caixotes. [...] Fingi que não tinha visto duas mocinhas que esmagavam

formigas numa travessa de barro para comê-las com farinha.

Embaixo, a cidade fluorescente, odiosa como um polvo eletrônico.

(como é possível odiar uma cidade?)440

Só nesse episódio do romance, o personagem oscila entre amar, odiar e aceitar sua

cidade natal. Até que, um pouco antes de chegar na estação de trem, ele percebe que sua melhor

438 GIUDICE, 1985, p. 168. 439 GIUDICE, 1985, p. 173. 440 GIUDICE, 1985, p. 174.

165

alternativa é desistir da clandestinidade para participar da luta republicana e poder ter um rela-

cionamento com Auriflor. Ironicamente, após a mudança de regime político, o personagem co-

meçou a frequentar o restaurante sixty-four’s e comprou um apartamento na mesma Avenida,

um reflexo de ascensão social como presidente das Indústrias S.A. e aliado do irmão de Ladis-

lau, bem como da hipocrisia de quem oscila entre os discursos e posicionamentos políticos

aderindo-os quando convém.

Essa mesma ironia percorre a narrativa ao explorar a caricatura do rei, líder máximo

da monarquia, como um palhaço no comando de um circo e, posteriormente, a eleição do eco-

nomista apolítico irmão de Ladislau para vice-governador da República. Conforme destaca An-

dré Scoville sobre a crítica presente no romance,

Um dos alvos preferidos por Giudice ao qual dirige sua crítica irônica e muitas vezes

abertamente satírica é exatamente a postura autoritária de quem detém certo poder.

Essa postura é apontada em diversas esferas da sociedade, como na doméstica e fami-

liar, do trabalho e da política. Dos diferentes “reis” dessas diferentes esferas, Giudice

expõe a pequenez. São apenas reizinhos que uma vez que perdem o poder revelam sua

“real mediocridade”441.

Para serem compreendidas, a ironia e a sátira exigem um conhecimento específico ou

prévio de algo, ou seja, um leitor inserido numa determinada comunidade discursiva. Por isso,

o discurso está sempre à mercê de interpretações errôneas, de tal modo que a estratégia literária

pode não alcançar o objetivo desejado de um lado, mas ainda assim funcionar para outro. A fim

de entender melhor essa ideia, Linda Hutcheon nos diz:

Desnecessário dizer, a ironia pode ser provocativa quando sua política é conservadora

e autoritária tão facilmente quanto quando sua política é de oposição e subversiva:

depende de quem a está usando/atribuindo e às custas de quem se acredita que ela está

funcionando. Tal é a natureza transideológica da ironia442.

Nessa lógica, Bolero pode ser lido como um chamado para a indignação e luta ou como

uma ideia indiferente com relação às transitologias e aos contextos políticos. De acordo com

Hodgart, “[...] la sátira no solo es la forma más corriente de la literatura política, sino que, em

cuanto pretende influir en la conducta pública, es la parte más política de la literatura443”. Em

outras palavras, a sátira é a prática literária diretamente associada à política em termos amplos,

seus debates e a todos os conflitos que a ela implica.

O processo de transição descrito no último capítulo do romance acaba por ser a chave

de leitura do fenômeno satírico da obra. Enquanto no decorrer da narrativa leem-se as sátiras e

441 André SCOVILLE, 2004, p.107. 442 Linda HUTCHEON, 2000, p. 34. 443 HODGART, 1969, p. 32.

166

ironias independentemente, nesse episódio, elas passam a fazer sentido como um todo, propor-

cionando-nos a leitura da alegoria ao processo de redemocratização e, consequentemente, sua

contemporaneidade ao Golpe de 2016.

5.1.1 A transição

O personagem-narrador não conta uma história sobre o presente e sim sobre o passado.

O tempo narrativo está datado em quatro anos após a implantação da República; apenas o último

capítulo/fragmento transcorre no tempo presente. Mas, ainda assim, o fato desse último episó-

dio ser uma correspondência destinada à Cynthia faz dele um relato memorialístico da sua vida

e de testemunho sobre a Cidade. Essas informações, por sua vez, possibilitam a leitura do ro-

mance como uma escrita do luto, conforme pontuo a seguir.

Inicialmente, o único desgosto do personagem está em não conseguir solucionar o caso

de sua esposa desaparecida. Contudo, à medida que tece comentários a respeito de sua nova

vida com Auriflor, ele também fornece informações sobre a farsa do processo de transição e o

atual mecanismo político da Cidade.

Para Idelber Avelar, não é possível abordar o luto de uma derrota como um caso iso-

lado, faz-se necessário considerar, “sobretudo, a capacidade de contar uma história sobre o pas-

sado444”. Em outras palavras, o luto como derivado do sentimento de derrota não é uma reação

momentânea, e sim decorre de uma sequência de erros e traumas aos quais não foi dada a devida

atenção e, por isso mesmo, suas consequências ocupam o presente. No caso do romance, a

relação com Cynthia e com o contexto político local são os focos narrativos que corroboram

esse viés de leitura, tanto no que diz respeito ao luto como à contemporaneidade da obra.

O personagem-narrador descreve com naturalidade os trâmites administrativos e soci-

ais que se encaminharam após o golpe que matou simbolicamente o rei Vezirrê Budru, reafir-

mando a ideia de que a transição consistiu em meros protocolos burocráticos. Por exemplo,

imediatamente as bandeiras vermelhoazuldouradas foram substituídas por “um verde-garrafa e

a outra, numa cor desenxabida que não foi possível identificar445”; o cigarro deixou de se cha-

mar Soberanos para ser Republicanos; a Guarda Real passou a ser Guarda Republicana, com o

mesmo encarregado no comando; no outro dia já teve a posse de uma junta governamental

provisória etc. Não houve nenhum tipo de complicação na transição e sequer há relato sobre

444 AVELAR, 2003, p. 31. 445 GIUDICE, 1985, p. 322.

167

uma análise de conjuntura ou julgamento sobre a postura do regime anterior. Portanto, a tran-

sição constitui-se como uma mera passagem institucional de um governo monárquico para um

republicano.

Considerando-se que o personagem Ajudante Máximo permaneceu como chefe da

Guarda, pressupõe-se que as estratégias de segurança também permaneceram as mesmas. Aliás,

em seguida à “morte” do rei, o militar Máximo informou que Auriflor e Auritio seriam soltos

pela Guarda Republicana em questão de minutos. Bastava assinar os papéis de anistia. Assim,

o prisioneiro Número Um, mais uma vez, tinha razão ao dizer que todos os regimes exigem

cega obediência aos seus regulamentos, de modo que, ao invés de prenderem os republicanos,

a partir de agora prenderão e torturarão os simpatizantes da monarquia.

Por conseguinte, o mais antigo monarquista da Cidade, o avô de Auriflor, foi uma das

vítimas da ação da nova Guarda. Segundo o protagonista, a medida de mandar fuzilar Auriavô

foi um ato fictício realizado apenas para abrandar a situação e acalmar os ânimos do monar-

quista derrotado:

Um dia, o velho confessou a Madame que sua recuperação física se deveu a um pro-

blema de orgulho pessoal. Disse que um monarquista de fibra não podia morrer na

cama, como um covarde. [...] Máximo conseguiu um julgamento fictício e o Auriavô,

último dos monarquistas ativos da Cidade, foi condenado à morte por fuzilamento446.

Dentro do contexto em que o romance Bolero foi construído e publicado, em agosto

de 1979, o presidente general Figueiredo — também para abrandar o momento de crise —

declarou anistia aos presos e perseguidos políticos, bem como a abertura política. É sabido que

os afazeres e interesses acontecem muito rapidamente no período de transição em uma socie-

dade autoritária, de tal maneira que tanto a implementação de leis de perseguição e censura são

instituídas de uma hora para outra também são anuladas de igual modo.

Ao sancionar a lei de anistia política, Figueiredo possibilitou o retorno ao país de mui-

tos perseguidos que estavam em exílio no exterior. No entanto, se por um lado essa abertura

significou a esperança para retomar a consolidação da democracia, por outro, significou uma

alternativa para o governo militar apaziguar as emoções e dar brecha para o esquecimento das

atrocidades ocorridas durante todo o período da ditadura.

Luís Carlos Prestes foi um dos principais problematizadores sobre o período. Durante

toda a década de 1980, o político destacou-se por criticar a maneira como ocorreu a abertura

política e denunciar o que afirmava ser a falsa democracia que se formava no Brasil pelo nome

446 GIUDICE, 1985, p. 335.

168

de Nova República. Para Prestes, estavam todos se deixando enganar pelo pouco que lhes era

oferecido pelos militares:

Ao emprenhar-se na luta pela efetiva democratização do Brasil, ao denunciar a per-

manência do regime ditatorial durante o governo Figueiredo repelindo as teses dos

liberais e da direção do PCB de que estaria atravessando um período de “transição”

para a democracia Prestes insistia na continuidade do “poder militar”, ao qual voltaria

a referir-se repetidas vezes aqueles anos447.

Em 1982, Figueiredo abriu espaço para eleições de governadores estaduais através de

eleições diretas, e para presidência da República por eleição indireta, em 1984. Tancredo Ne-

ves448 estava entre os favoritos para ocupar o cargo de presidente da Nova República, princi-

palmente por parte dos militares. Segundo Prestes, Tancredo estava

a serviço do poder militar, e o Brasil vai continuar sendo governado por um general,

à paisana. [...] Como os militares estavam desgastados, o alto comando achou que

deveria se manter no poder através de um candidato civil e de preferência oposicio-

nista449.

No romance, diante de uma sociedade viciada em golpes políticos, fez-se importante

manter como liderança política local alguém que não vislumbrasse mudanças e mantivesse a

estratégia anterior com salvas diferenças, como a descentralização do Circo e a permanência da

política de multiplicação dos pães. Novamente, o prisioneiro Número Um já havia informado

que as trocas de regime na Cidade nunca significaram o fim da opressão, tendo em vista que

ele havia sido preso por todas monarquias e repúblicas dos últimos sessenta anos.

Nessa última transição, as eleições da Cidade aconteceram um ano depois do término

da monarquia. Não nos é fornecida a informação de quem ocupou o cargo máximo da Repú-

blica, mas sabe-se que o irmão de Ladislau era o candidato favorito e foi eleito vice-governador

com ampla maioria dos votos. O sobrinho da “Madame Odhontyna Alberycca Euphrozina Al-

pharraz Bethançon do Gammedal450”, genro do monarquista (e homem mais rico da Cidade)

Holofernes o Gordo, sem dúvida era o personagem perfeito para ocupar esse cargo político, até

mesmo o de Governador. Sua figura representava um ciclo de relações de parentesco na política

e de uma classe social rica e poderosa. Por identificar-se como apolítico, o irmão de Ladislau

interessava-se estritamente pela manutenção do poder sem importar-se com os meios utilizados

para alcançar tais objetivos.

447 PRESTES, 2014, p. 119-120. 448 Tancredo Neves não chegou a assumir o cargo presidencial devido ao seu óbito precoce meses após as eleições

indiretas. 449 Luís Carlos PRESTES, 1985 apud PRESTES, 2014, p. 134. 450 GIUDICE, 1985, p. 93.

169

Esse caráter do personagem reverbera nos critérios utilizados na escolha de seu suces-

sor na presidência das Indústrias. Como é possível observar no trecho a seguir:

O escritório central mandou fazer um levantamento cadastral de nós cinco e nada foi

constatado que desabonasse nossas condutas. Éramos cidadãos absolutamente hones-

tos. Nossa probidade se colocava fora de qualquer suspeição. Foi quando tive a ideia

luminosa [...] Numa das reuniões da Diretoria, num desses momentos de descontra-

ção, roubei a caneta de ouro do irmão de Ladislau [...] E, na semana seguinte, com a

mesma caneta sob as vistas de dona Marilinda, falsifiquei a assinatura dele em seis ou

sete documentos. Inclusive num cheque451.

Consciente de que o ato de desonestidade seria revelado pela fiel e zelosa secretária

após descoberto, em três dias, o personagem-narrador foi nomeado presidente das Indústrias.

Os dois personagens reconheceram inúmeras vezes desinteresse e desdém pelos assuntos rela-

cionados à política da Cidade: o irmão de Ladislau, em conversa com o personagem-narrador,

afirmou estar “cagando e andando para essas repúblicas de papelão e para essas monarquias de

bosta452”; além disso, considerava uma doença ser republicano, pois “quem nasce republicano,

morre republicano. Não adianta discutir453”. Portanto, esse homem que dizia não se importar

com monarquias e repúblicas, ainda que demonstrasse certa simpatia com o monarca Vezirrê

Budru, tornou-se um dos líderes do governo na nova República. Ou seja, mais um exemplo de

pessoa que não toma partido, mas se mantém ao lado do poder tal qual fez Pedrobarão, do conto

“Miguel Covarrubra”.

O romance de Giudice anuncia temerosamente sobre os próximos passos da democra-

cia brasileira. Infelizmente, pode-se dizer que o escritor conseguiu fazer uma boa leitura desse

momento, pois o processo de redemocratização não ocorreu de forma bem-sucedida, tanto a

transição quanto a consolidação.

Após a publicação do romance, os anos que se seguiram ratificaram a manipulação da

passagem da ditadura para democracia. Ainda naquele período, entre os anos de 1985 e 86, Luís

Carlos Prestes destacava que a Nova República não teria demonstrado a que viera nem promo-

vera “qualquer modificação substancial nas velhas estruturas política, social e econômica” e

continuava em vigor “a mesma legislação fascista, criada nos 21 anos de governos generais454”.

De acordo com a historiadora Janaina Teles, o debate sobre as ações dos militares bem

como as perdas sofridas durante esses anos era de todo modo evitado. Essa estratégia foi am-

plamente aderida a fim de impedir maiores conflitos que pudessem prejudicar e inviabilizar o

451 GIUDICE, 1985, p. 332. 452 GIUDICE, 1985, p. 220. 453 GIUDICE, 1985, p. 221. 454 PRESTES, 1985 apud PRESTES, 2014, p. 137.

170

processo de consciência democrática455 e impulsionar um retorno do regime ditatorial. Essa

falta de debate sobre os crimes cometidos pelos militares456 deu brecha para a interpretação de

que a anistia foi recíproca para os dois lados, beneficiando torturadores e vítimas em nome da

conciliação nacional.

Embora haja narrativas de memória e crítica à ditadura, as quais são muito importantes,

esse pensamento equivocado se mantém devido à leitura errônea da expressão “crimes cone-

xos457” constante na lei de conciliação. Além disso, é inaceitável que o crime de tortura seja

entendido como crime político e concedido anistia ou prescrição. Segundo Flávia Piovesan, a

Corte Interamericana nos casos Barrios Altos versus Peru (2001)

realçou a inviabilidade do decreto de “autoanistia”, por implicar a denegação de jus-

tiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar,

punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa-

humanidade458.

Aliada a essa falsa ideia de “autoanistia” ou dupla anistia está também a memória do

esquecimento. O impedimento ao direito à verdade sobre os turvos tempos de ditatura e os

crimes cometidos contra a humanidade provocou danos à identidade nacional, à História e à

memória coletiva. De acordo com Vladimir Safatle, a falsa tese de que “o esquecimento dos

excessos do passado é um preço doloroso pago para garantir a estabilidade democrática” revela-

se como “a verdadeira causa do caráter deformado e bloqueado de nossa democracia”459.

Os discursos que afirmam não ter ocorrido tortura no Brasil ou que a justificam por se

tratar de uma “situação de guerra” fortalecem a naturalização da violência; ou seja, a ideia de

que toda violência se equivale e que pode ser justificável. Podemos observar tal questão na cena

da morte arranjada e naturalizada do personagem Auriavô pela Guarda Republicana, bem como

o espetáculo que foi a execução do prisioneiro Número Um pela Guarda Real. As mortes desses

personagens nada têm a ver com a luta por justiça contra a impunidade dos crimes do Estado.

Afinal, ambos os personagens são, de certa forma, vítimas do sistema, ao passo que foram as-

sassinados por seus opositores. No entanto, corroboram com a mediocrização da violência à

medida que incentivam a memória da tortura e da manipulação do corpo em ambos os cenários

políticos.

455 Janaina TELES, 2010. 456 TELES, 2010. 457 Crimes conexos são os praticados por uma pessoa ou grupo de pessoas, que se encadeiam em suas causas. Não

se pode falar em conexidade entre os fatos praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. (Flávia PIO-

VESAN, 2010, p. 100). 458 PIOVESAN, 2010, p. 102. 459 Vladimir SAFATLE, 2010, p. 240.

171

Desse modo, a naturalização da violência é uma consequência da memória do esque-

cimento. Assim como o personagem-narrador de Bolero questiona se seria “melhor passar uma

borracha implacável nos acontecimentos antigos460”, em Incidente em Antares isso é efetivado

através da “Operação borracha”. São catorze anos de diferença entre os romances, mas eles se

identificam e se aproximam do que de fato aconteceu no desenredo dos acontecimentos pós-

ditadura brasileira e de tantos outros momentos da história nacional. Nas palavras de Maria Rita

Kehl, “não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do

esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da histó-

ria de uma sociedade”461.

Portanto, a falsa anistia, a impunidade daqueles que cometeram crimes contra a huma-

nidade, a destruição de documentos e o impedimento do direito à justiça às vítimas da ditadura

somam-se ao sentimento de luto pós-ditatorial. Conforme destaca Saúl Sosnowski,

Trata-se além do mais, da imperiosa necessidade de elaborar as perdas desses anos

como dolo, como um luto nacional que exibe cicatrizes que não podem nem devem

ser ocultadas, e muito menos apagadas. Enquanto uma nação não enfrenta radical-

mente sua perda, toda reparação será provisória. E ao dizer “perda” não me refiro

somente ao número de vítimas nem a tantas outras tragédias que em si já teriam pre-

enchido toda a acepção de perda, mas sim a essa carência que atravessa a própria fibra

das transformações estruturais da nação, essa pulsão que se dirige ao que fomos e ao

como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante462.

Essa ausência de olhar para os traumas e reparar dívidas do passado é o que nos conduz

ao eterno retorno em busca de uma identidade nacional, bem como é o eixo de fundamentação

para a continuidade do autoritarismo. Maria Rita Kehl chama a atenção da “tradicional cordia-

lidade brasileira463” como condicionadora dessa continuidade que “desvirtua a gravidade dos

conflitos desde o período colonial464”. Como se o presente nada aprendesse com o passado e,

por isso, “o eterno retorno como lugar absolutamente sem memória465”. Nesse sentido, então,

podemos dizer que o Brasil nunca teve uma democracia efetiva, pois ideologias autoritárias

servem como referência até hoje, conforme verificaremos mais adiante.

Normalmente, a transição é um processo realizado em um período curto. No entanto,

no Brasil, ela sofreu um retardo proposital através de uma abertura lenta, gradual e segura (para

460 GIUDICE, 1985, p. 330. 461 KEHL, 2010, 126. 462 Saúl SOSNOWSKI, 1994, p. 15. 463 No sentido que Sérgio Buarque de Hollanda tomou emprestado de Ribeiro Couto. (KEHL, 2010, p. 123). 464 KEHL, 2010, p. 123. 465 AVELAR, 2003, 209.

172

o grupo dominante) logo no início da presidência do general Ernesto Geisel (1974 – 1978)466.

Além disso, a falsa dupla anistia serviu para coroar a transição democrática que, por sua vez,

foi/é um processo controlado pelos grupos de elite e sem participação popular, o que dá margem

ao continuísmo autoritário.

Werneck Vianna ao analisar esse contexto de transição retoma o processo de indepen-

dência em 1822, que também não constituiu um movimento revolucionário de libertação naci-

onal frente ao colonialismo. Segundo o autor, o processo foi dirigido pela classe dominante,

sem participação popular e conservando uma estrutura política e social que privilegiava o mo-

nopólio de terra e a elite agrária do país:

Revoluções passivas são processos de revolução sem revolução em que as elites polí-

ticas das classes dominantes se apropriam total ou parcialmente da agenda dos setores

subalternos, cooptando suas lideranças, afastando outras, em uma estratégia de con-

servar-mudando, tal como nas palavras de um personagem do romance O leopardo, a

obra-prima do italiano Giuseppe Lampedusa, que sentenciava ser necessário mudar

para que as coisas permanecessem como estavam467.

Nessa mesma lógica, o processo de conscientização democrática ou de “transição” do

regime autoritário para o regime democrático preservou o caráter de continuidade com o pas-

sado, qual seja, sem rupturas e pela manutenção do conservadorismo. A sociedade dividia-se

entre vibrar e ter esperança na democracia que se acercava e lidar com as marcas de um doloroso

trabalho de superação das perdas e de esquecimento. Segundo Ana Maria Machado:

[...] com todo esse desalento e a indignação de uma geração que sente que deu a me-

tade mais importante de sua vida para combater a ditadura, pagando um preço em

vidas, sangue, dor, liberdade, sonhos, para dar nisso que está aí. Continuamos às voltas

com os mesmos problemas do início dos anos 60, campanhas por reformas de base,

inflação incontrolável, ameaças de golpe militar, tutela econômica internacional468.

Diante desse contexto, percebia-se a movimentação das grandes massas ocupando lu-

gares públicos na luta pela reforma política e por melhores condições de vida, tendo em vista o

aumento da desigualdade e violência social e racial. Muitos dos integrantes desses movimentos

estavam mobilizados pelo vislumbre de uma Constituinte que significasse a refundação nacio-

nal, mas, contraditoriamente, também pela descrença na posição do governo de manter uma

política horizontal sem grandes mudanças.

466 Edson TELES, 2010, p. 309. 467 Luiz WERNECK VIANNA, 2011, p. 172. 468 Ana Maria MACHADO, 1994, p.87.

173

A promulgação da Constituição de 1988 foi um marco no processo de transição. Ainda

que, dias após sua aprovação, o então presidente da República José Sarney (1985-1990) infrin-

gisse as leis recém-instituídas ao ordenar o ataque do exército a uma atividade da greve dos

metalúrgicos da Usina de Volta Redonda. Todavia, a Carta Magna deixou muitas brechas, prin-

cipalmente a manutenção da tutela militar nos artigos 142 e 144, em que cabe à polícia militar

a responsabilidade pela segurança pública.

Na palestra “O que resta da ditadura?469”, Renan Quinalha inicia sua fala trazendo

pontos que “ajudam a entender como a ditatura permanece atualizada na democracia na demo-

cracia brasileira” e levanta uma questão muito pertinente ao debate “Quem é o inimigo em uma

democracia?”. A sua pergunta faz referência aos militares que, em nota e dossiês, negaram

participar da Comissão da verdade, alegando, inclusive, não colaborar com o inimigo.

O questionamento de Quinalha também faz referência à relação civis e militares, pre-

sente nos artigos 142 e 144 da Constituição. Nesse sentido, qual a necessidade de ter uma força

armada para manter a ordem civil? Afinal, o policiamento urbano, que deveria ter como princí-

pio defender a população de ataques externos, sugere o combate à violência proporcionada pela

própria população (contínua guerra civil às periferias).

O processo de transição teoricamente deveria ter finalizado com a aprovação da Cons-

tituição de 1988, mas, de certa forma, estendeu-se pela década de 1990. Nesse sentido, a era da

conciliação e consolidação democrática iniciou em 2002 com o governo Lula e encerrou entre

2015 e 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Desde então, estaríamos vi-

vendo os anos de destruição e devastação de uma democracia supostamente “natimorta”.

No entanto, antes de adentrar aos anos de conciliação e consolidação democrática, faz-

se importante entender que o sentimento de derrota e impotência fomentado pelo processo dis-

paratado de redemocratização não somente se assemelha ao sentimento provocado pelo Golpe

de 2016 como também é uma de suas consequências. Quando a leitura do romance é realizada

entre os anos de 2016 e 2020, a frase final dita pelo protagonista, “A esquerda que espere”, soa

como uma provocação e realça o sentimento de desesperança com a atual conjuntura política

nacional.

469 Palestra proferida no Seminário Internacional "Democracia em colapso?" (2018). Disponível no canal TVBoi-

tempo (25m20s) https://www.youtube.com/watch?v=BWB_9dLi8V4. Acesso em 31 de março de 2020.

174

O Brasil é um país acostumado a equilibrar-se entre a tragédia e a esperança, conforme

afirma o sociólogo e filósofo Michael Löwy ao retomar Hegel e Marx para dizer “que aconte-

cimentos históricos se repetem duas vezes: primeiro como tragédia, segundo como farsa470”.

Por isso, o incômodo experimentado pelo leitor contemporâneo é desencadeado pelo fato de se

encontrar exatamente na situação de Auritio, atônito e impotente diante de um golpe conduzido

pela “república das famílias”.

Löwy, inclusive, afirma que o Golpe de 1964 foi uma tragédia enquanto o de 2016 “é

uma farsa, um caso tragicômico, em que se vê uma cambada de parlamentares reacionários e

notoriamente corruptos derrubar uma presidente democraticamente eleita471”. A indignação

urge do absurdo tragicômico que ressoa entre a ficção e a realidade. Conforme os pensamentos

de Stéphane Hessel472, a indignação instiga a esperança e, talvez, a esquerda tenha realmente

que [continuar a] esperar. Mas, até quando?

5.2 COMO VIEMOS PARAR AQUI?

Conforme venho comentando ao longo deste capítulo, o romance pode dizer muito

sobre o contexto que culminou no Golpe de 2016. E é sobre esse ponto que gostaria de fixar a

atenção nesse momento e lançar um brevíssimo olhar sobre a conjuntura política contemporâ-

nea.

Até aqui, foi possível compreender a relação do romance com a ditadura militar e o

processo de transição de regimes; fatos históricos necessários para entender a obra de Giudice

e seu diálogo com o recente Golpe contra a democracia brasileira. Os caminhos indicam que os

últimos acontecimentos decorrentes da atual crise política nacional são (também) consequên-

cias do luto pós-ditatorial. Além disso, correlacionar o Golpe de 2016 com as transições de

regime e os projetos de nação torna-se chave para justificar a leitura de Bolero como um ro-

mance de desfundação. Afinal, as ficções de fundação são recorrentes em períodos de transição

de regimes (monarquia/ditadura para república/democracia), bem como em momentos de crises

política, como o caso do recente impeachment e o retorno dos discursos antidemocráticos e

autoritários.

Vale ressaltar que os processos de transição e os projetos de nação considerados malsu-

cedidos são, na realidade, leituras possíveis, pois eles podem ser funcionais para aqueles que

470 LÖWY, 2017, p. 64-65. 471 LÖWY, 2017, p. 65. 472 HESSEL, 2011.

175

implementaram o projeto e conduziram a transição. A fim de esclarecer esse ponto, retomo a

lógica da república das famílias que citei anteriormente pois, de acordo com Ricardo Costa de

Oliveira, o nepotismo está diretamente ligado às instituições políticas frágeis e se faz presente

no sistema brasileiro desde a colonização473. Então, não é de se surpreender que os projetos de

nação e os processos de transitologia revelem relações marcadas pelo poder, principalmente

familiar e econômico.

Os fenômenos do familismo e do nepotismo na política aparecem na regra da heredi-

tariedade monárquica, passando para as grandes oligarquias fundiárias e comerciais na repú-

blica para, então, enraizar-se na política brasileira a ponto desse cenário permanecer e até

mesmo aumentar com a redemocratização474.

O conto “Miguel Covarrubra” traz uma boa representação dessa hereditariedade na

política, bem como as relações entre as esferas públicas e privadas. Tal qual descrevi e analisei

nos capítulos anteriores, Gastão de Holanda reforça em sua crítica sobre o livro Os banheiros

(1979), ao dizer que a crítica social do conto “reconstitui toda uma heráldica brasileira armorial,

arraigada à nossa história familiar saudosista”475.

Em estudo realizado na Universidade Federal do Paraná, Oliveira aponta que “há cerca

de 60 famílias políticas controlando o poder político contemporâneo no Paraná476”, e que nas

eleições de 2012 “ao menos 19 filhos ou netos de políticos foram candidatos a prefeito de 14

das 26 capitais brasileiras477”. Isso significa que, apesar das aparentes intenções de mudança,

através dos processos de transitologia e consolidologia desde a monarquia brasileira, os projetos

de nação não vislumbravam mudanças efetivas na configuração política e social, e o que enten-

demos por malsucedidos foram na realidade um grande sucesso.

Ao longo do tempo, o nepotismo esteve diretamente relacionado à concentração de

poder e renda, responsável pela formação de desigualdades e carências sociais478: a começar

pela exterminação e aculturação de milhões de indígenas e pelo tráfico e escravização de afri-

canos por quase 350 anos.

A configuração dessa estrutura social e genealógica corrobora com a justificativa do

eterno retorno aos governos autoritários. Desse modo, sempre que o contexto não obedecer à

473 OLIVEIRA, 2012. 474 OLIVEIRA, 2012. 475 Gastão de HOLANDA, “Giudice, canonizando a penumbra do subúrbio”, Jornal do Brasil, s/p, s/d, 1979. 476 OLIVEIRA, 2012, p. 15. 477 OLIVEIRA, 2012, p. 267. 478 OLIVEIRA, 2012.

176

configuração almejada ou não corresponder aos interesses das elites familiares e econômicas,

faz-se necessário intervir no seio político nacional. Tal qual ocorreu, por exemplo, em 1954,

com Getúlio Vargas; em 1964, com João Goulart; e em 2016, com Dilma Rousseff.

Segundo o jornalista Mauro Lopes479, quatro famílias foram decisivas e responsáveis

por derrubar o governo democrático em 2016: os Marinho (Organizações Globo), os Civita

(Grupo Abril/Veja), os Frias (Grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado); com o apoio de

outras mídias de segunda linha: os Alzugaray (Editora Três/Istoé), os Saad (Rede Bandeirantes)

e os Sirotsky (RBS). Algumas dessas já haviam feito o mesmo para derrubar João Goulart e,

anos antes disso, Getúlio Vargas. Soa espantoso pensar que essas três articulações de Golpe

foram realizadas sob o discurso de preservar as instituições, a democracia e os direitos indivi-

duais. Nesse sentido, devo concordar com o filósofo Vladimir Safatle ao afirmar recentemente

que “não é possível perder algo que nunca tivemos: a democracia480”, pois, no Brasil, a regra é

o golpe, a democracia resume-se a breves flertes ao longo da história.

Dois discursos repercutiram nas camadas sociais brasileiras durante as movimentações

do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, e em 2018 na campanha

eleitoral seguida pela vitória de Jair Bolsonaro: por um lado, o discurso sobre a ruína e morte

da democracia brasileira e, por outro, o pedido de retorno da ditadura. Esses dois discursos

sinonímicos reiteraram a falha do processo de finalização do último período ditatorial, suas

causas e consequências, bem como questionam a efetividade da consolidação democrática no

país. Tal como Francisco Lopes Dias sugere o termo “natimorta481” para referir-se à democracia

durante o processo de impeachment em 2016.

Segundo Dias, “nas poucas vezes em que foi concebida, a democracia não concluiu

seu ciclo gestacional. Por isso, os raros e frágeis experimentos da soberania do povo no Brasil

podem ser qualificados de natimortos482”. Seguindo essa mesma linha de pensamento, pode-se

dizer que o Golpe de 2016 marca uma ruptura na experiência democrática iniciada em 1985.

O sistema democrático não pode ser confundido com uma forma de governo ou com

um modo de vida social. Jacques Rancière483, em seu livro Ódio à democracia (2014), defende

479 LOPES, 2016. 480 Em palestra intitulada “Limites da democracia no Brasil” para o evento “Democracia em colapso”, disponível

no canal TVBoitempo (1h00m07s) https://www.youtube.com/watch?v=D8HaJXn6Zbs. Acesso em 6 de novembro

de 2019. 481 Um feto é considerado natimorto quando a gravidez é interrompida num período igual ou superior a 20 semanas,

por analogia, a última democracia teve uma gestação de 31 semanas, 19852016. 482 DIAS, 2016, p. 64. 483 RANCIÈRE, 2014.

177

que não há governo democrático propriamente dito. Tanto no presente quanto no passado as

sociedades são organizadas através do jogo das oligarquias, da minoria para a maioria e, desse

modo, a democracia moderna parece resumir-se ao voto popular que, através da eleição, apenas

legitima um representante membro dessa oligarquia.

A definição de democracia como poder do povo ou governo do povo acaba por ser

considerada uma utopia484, tendo em vista que quanto mais a sociedade se aproxima desse ce-

nário mais próximo está também de uma crise democrática. Para Rancière, “o que provoca a

crise do governo democrático nada mais é que a intensidade da vida democrática”, por sua vez,

“a ‘vida democrática’ identificava-se com o princípio anárquico, que afirmava o poder do

povo485”. Nesse sentido, a democracia só é possível quando concebida com inúmeras exceções

e obedecendo às regras de determinado jogo, caso contrário emergem os movimentos antide-

mocráticos. Essa é a premissa que respalda o fato de os projetos nacionais não serem conside-

rados malsucedidos, mas sim planejados desde o princípio para o fracasso.

De acordo com Francisco Dias, a fecundação da democracia não aniquila os valores,

as ideias e os interesses antidemocráticos, de modo que, à medida que a falsa anistia dos mili-

tares foi efetivada no país, criou-se precedente para que os mesmos políticos antidemocráticos

permanecessem atuando e travestindo-se de democratas486. Diante disso, nos primeiros anos

democráticos, o país somou um impeachment e uma suposta compra de reeleição487, posterior-

mente, nos anos 2000 vivenciou o mais próximo de um governo popular e democrático até

então.

O primeiro presidente eleito pelo voto popular (voto direto) depois da ditadura militar,

em 1989, Fernando Collor (PRN) (1990-1992) foi também o primeiro presidente do Brasil e da

América Latina a ser deposto através de impeachment. Já Fernando Henrique Cardoso foi pre-

sidente durante dois mandatos (PSDB, 1995-2003), sendo que sua reeleição foi permitida atra-

vés de emenda constitucional apresentada ao Congresso Nacional em 1997. A proposta teve

repercussão polêmica e, meses após sua aprovação, parlamentares governistas admitiram ter

vendido seus votos e alguns renunciaram a seus mandatos. Em 2002, Luís Inácio Lula da Silva

foi eleito pelo Partido dos Trabalhadores, permanecendo na presidência por dois mandatos,

484 RANCIÈRE, 2014. 485 RANCIÈRE, 2014, p. 16. 486 DIAS, 2016. 487 Laurez CERQUEIRA, “A compra de votos para reeleição de FHC”. Carta Maior. Disponível em: http://demo-

craciapolitica.blogspot.com/2012/08/a-compra-de-votos-para-reeleicao-de-fhc.html. Acesso em 7 de novembro de

2019.

178

2003 – 2011. Posteriormente, Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil, foi eleita em 2010

e reeleita em 2014, até ser deposta do cargo em decorrência do Golpe de 2016.

A partir de 2013 intensificam-se as perseguições aos movimentos sociais, os discursos

antidemocráticos, o extermínio dos povos indígenas, bem como da população negra e pobre

pela polícia militar para, por fim, resultar no afastamento de uma presidenta democraticamente

eleita. Por sua vez, essa última ação foi difundida erroneamente como um ato em defesa da

democracia por estar levemente fundamentada e prevista na Constituição brasileira de 1988.

Luis Felipe Miguel salienta que a derrubada da presidenta Dilma Rousseff não foi

constitucional e sim ilegal, pois não houve crime de responsabilidade identificado488. Na mesma

linha de pensamento, Ciro Gomes, em artigo intitulado “Por que o Golpe acontece?”, afirma

que “as pedaladas fiscais não passam de manobras fiscais que por mais que sejam uma anomalia

não estão previstas na Constituição como passíveis de crime de responsabilidade489”. Tais ques-

tões sinalizam a ineficiência das instituições e a ruptura de que o voto é o único meio legítimo

de se alcançar o poder no país.

As regras constitucionais estão sempre sujeitas a interpretações conflitantes, e isso não

é uma característica exclusiva brasileira. Conforme destacam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt

no livro Como as democracias morrem490: governos “autoritários em busca de consolidar seu

poder com frequência reformam a Constituição, o sistema eleitoral e outras instituições de ma-

neira que prejudiquem ou enfraqueçam a oposição, invertendo o mando de campo e virando a

situação de jogo contra os rivais”491. Vários presidentes ao redor do mundo assumiram seus

mandatos por meio do voto democrático, mas tornaram-se governos autoritários e utilizaram-

se de meios “legais” para conduzir a nação de acordo com suas ideias, como é o caso do presi-

dente peruano Alberto Fujimoro (1990-2000)492.

488 MIGUEL, 2016. 489 Ciro GOMES, 2016. 490 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018. 491 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 90. 492 Fujimoro não planejou ser ditador. Professor e reitor universitário, tinha como ideia inicial concorrer a uma

cadeira no Senado em 1990, mas as circunstâncias levaram-no a concorrer com Mário Vargas Llosa nas eleições

presidenciais. Segundo Levitsky e Ziblatt, “os peruanos admiravam Vargas Llosa, que ganharia um Prêmio Nobel

de Literatura. Praticamente todo o establishment político, mídias, líderes empresariais apoiava Vargas Llosa, mas

os peruanos comuns o viam como demasiado íntimo das elites, que se mostravam surdas às suas preocupações.

Fujimoro, cujo discurso populista capitalizava esse ódio, sensibilizou muitas pessoas como a única opção real de

mudança. Ele ganhou”. (2018, p.76)

179

No Brasil, podemos considerar a manipulação das regras constitucionais uma questão

histórica que voltou a ser muito presente recentemente. Para falar apenas no período pós-Cons-

tituição de 88, na década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), conforme

comentei, foi acusado de ter manipulado o sistema para garantir sua reeleição através de uma

emenda constitucional; em 2016, o Congresso Nacional, junto a outros setores, moveu diferen-

tes ações para retirar a presidenta do governo e frear as investigações contra grande parte dos

parlamentares e aliados.

O ano de 2016 entrou para a história nacional e mundial, pois ocorreram diversos

acontecimentos marcantes que abalaram as democracias do Ocidente. Nas palavras de Luciana

Ballestrini:

No ano de 2016 em diferentes partes do mundo pelo menos quatro eventos foram

capazes de questionar os limites da democracia representativa, liberal e ocidental. Na

Inglaterra, um plebiscito demonstrou a preferência majoritária dos ingleses pela saída

da União Europeia; Na Colômbia, o referendo pelo acordo de paz com as FARC foi

rejeitado pela maioria; nos Estados Unidos, uma vitória inesperada elegeu o empresá-

rio Donald Trump para a presidência da maior potência mundial; por fim, no Brasil,

um tumultuado processo de impeachment foi aprovado para a destituição da ex-presi-

denta reeleita Dilma Rousseff, fundamentado em um controverso crime de responsa-

bilidade fiscal493.

De acordo com a autora, esses movimentos são indícios do avanço de uma nova onda

política que ela denomina de pós-democracia:

Dois diagnósticos básicos da pós-democracia: 1) a destruição da democracia está

sendo possibilitada por dentro das instituições democráticas e 2) as forças que têm

impulsionado esse fenômeno conversam e/ou provêm de um campo supostamente

externo, historicamente apartado, diminuído ou desconsiderado pela disciplina494.

A pós-democracia ajuda-nos a compreender esse “retorno” dos discursos antidemo-

cráticos e até mesmo o “ódio à democracia” assinalado por Rancière. Os cientistas políticos

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt fazem uma profunda análise sobre essa onda conserva-

dora/pós-democrática, mais especificamente sobre a eleição de Donald Trump para presidência

dos Estados Unidos em 2016 e suas consequências no país e no mundo. Eles utilizam a dinâmica

de uma partida de futebol para entender como autocratas eleitos minam as instituições. Em suas

palavras, “capturar os árbitros dá ao governo mais que um escudo. Também oferece uma arma

poderosa, permitindo que ele imponha a lei de maneira seletiva, punindo oponentes e favore-

cendo aliados”495.

493 BALLESTRIN, 2017, p.2. 494 BALLESTRIN, 2017, p.5. 495 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 82.

180

Para fundamentar essa analogia, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt citam também go-

vernantes que almejavam blindagem contra questionamentos constitucionais e a cooptação dos

“árbitros” como uma arma “legal” para atacar seus oponentes. No entanto, essa mesma estraté-

gia pode ser utilizada para derrubar um governo democrático, ou seja, como meio de orquestrar

um soft coup 496, como ocorreu em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012. Em ambos os

países, governos direitistas e autoritários substituíram os progressistas, com o apoio do imperi-

alismo americano497.

Assim podemos começar a entender como ocorre a ruína de democracias (aparente-

mente) consolidadas. Segundo Levitsky e Ziblatt:

Nem mesmo as constituições bem-projetadas são capazes, por si mesmas, de garantir

a democracia. Primeiro, porque constituições são sempre incompletas. Como qualquer

conjunto de regras, elas têm inúmeras lacunas e ambiguidades. Nenhum manual de

operação, não importa quão detalhado é capaz de antecipar todas as contingências

possíveis ou prescrever como se comportar sob todas as circunstâncias498.

A ruptura democrática não precisa de um plano, de modo que a captura dos árbitros

ocorre de forma discreta, conforme observamos nos trâmites que precederam e sucederam o

Golpe de 2016. Para tentar entender um pouco do que aconteceu, precisamos retornar para um

tempo em que um Golpe não era uma possibilidade visível no horizonte.

O governo de Luís Inácio Lula da Silva, antecessor de Dilma Rousseff, enfrentou ame-

aças de seus opositores desde o início de seu mandato em 2002. Para não precisar enfrentá-los

diretamente, o presidente optou por mudanças sociais através de programas governamentais ao

invés de leis e reformas eficazes e de longo prazo. Promoveu, com isso, um tipo de “persona-

lismo político” que, segundo Danilo Marstucelli, acontece quando o governo prioriza progra-

mas governamentais em vez de direitos constitucionais. Esse tipo de estratégia “torna vulnerá-

vel a implementação de determinado programa à mudança de governo, ou mesmo à alteração

da linha de política do governo que executa tal programa”. Além disso, a “lógica do persona-

lismo político secretado na figura do presidente da República que passa a ser visto como o

criador e o responsável exclusivo pela execução do programa”499.

496 O termo soft coup (silent coup) ou golpe brando (golpe branco) ou foi utilizado por Chomsky e outros estudiosos

para descrever os recentes acontecimentos no Brasil (e no Paraguai, em 2012). Resumidamente, o termo é um

neologismo utilizado para referir-se a uma suposta conspiração que tem como objetivo a tomada do poder do

Estado e a troca de liderança política, promovido por frações do legislativo sem violência. 497 LÖWY, 2016. 498 LEVITSKY, ZIBLATT, 2018, p. 100 1. 499 Danilo MARTUSCELLI, 2014, p. 206.

181

Apesar disso, os programas sociais fomentados pelos governos do Partido dos Traba-

lhadores fizeram enorme diferença diante do cenário de reconstrução em que a política e a so-

ciedade brasileira se encontravam. De acordo com Paulo Vannuchi,

em 2003, a democracia já havia avançado bastante em seus aspectos institucionais

desde o final da ditadura. Mas ninguém tinha cuidado de introduzir nesse processo

acumulativo um conjunto elementar de requisitos materiais da igualdade, palavra que

vale como fio condutor de toda a ideia democrática500.

Muitas dessas carências latejavam nos poros da sociedade e, por serem frutos das in-

contáveis violações de direitos humanos, ansiavam (e ainda anseiam) pelo fim de seu esqueci-

mento. Afinal, após os últimos anos de regime ditatorial, só aumentou o número de traumas que

vinha sendo colecionado há pelo menos cinco séculos.

Para começar a reparação histórica, a primeira ação do Governo Lula foi de criar três

importantes secretarias ministeriais – Direitos Humanos, Igualdade Racial e Políticas para as

Mulheres. Segundo Paulo Vannuchi, a escolha estava

entre prosseguir na trilha do recalque e da interdição de qualquer debate, que condena

ao eterno retorno e à repetição, ou encarar de modo corajoso um processamento que

pode ser incômodo e até doloroso, mas que valerá como única chance para propiciar

um desejável anseio de reconciliação501.

As palavras de Vannuchi aliam-se à ideia de eterno retorno aos romances de fundação

em detrimento da ausência de se olhar para os traumas passados. Não debater ou deixar de

fomentar políticas públicas de restituição às vítimas dos principais acontecimentos brutais da

história como as populações afrodescendente e indígena, as mulheres, os nordestinos, os tortu-

rados, os desaparecidos políticos e seus familiares etc. não fortalece o país, pelo contrário, as

feridas abertas o deixam vulnerável.

Nesse sentido, por mais que as ações do governo PT não tenham sido “as mil maravi-

lhas”, não é possível negar a importância das ações e dos programas desenvolvidos durante seus

governos para a reparação histórica. Conforme as palavras de Paulo Vannuchi a seguir,

Todos os conhecedores do assunto sabem que, em sua acepção ampla, esses direitos

foram alargados de múltiplas formas pelo êxito incontestável de programas como o

Bolsa Família, Fome Zero, Programa Universidade para Todos (Prouni), Territórios

da Cidadania, Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, e vários outros. As políticas

públicas de combate à pobreza e à desigualdade na distribuição de renda [...] valeram

como uma espécie de redescoberta do Brasil perante os olhos céticos de todos os ana-

listas adictos à droga do pensamento elitista que fez da exclusão seu leitmotiv durante

cinco séculos502.

500 Paulo VANNUCHI, 2013, p. 340. 501 VANNUCHI, 2013, p. 337. 502 VANNUCHI, 2013, p. 338.

182

Com o governo Lula iniciou-se um longo e lento processo de rememoração coletiva e

inserção social de uma parcela da sociedade até então excluída. As políticas públicas promovem

um avanço aos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, contribuindo com a constru-

ção nacional e a participação ativa de milhões de pessoas que integram o subsolo da sociedade

meritocrática. A sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2010, deu continui-

dade ao seu plano de governo e exatamente por isso também causou incômodo em uma velha

elite e em uma nova classe média que viria a se formar com o passar desses anos.

Segundo André Singer, Dilma Rousseff “tentou encontrar uma saída para continuar

avançando dentro da conjuntura econômica negativa que se abriu em 2011. Como se sabe, o

lulismo foi fruto de uma situação particularmente favorável [...] tendo começado a mudar em

2008”503. As tentavas de, a partir de uma aliança com a burguesia industrial, dar continuidade

à diminuição da desigualdade fracassaram, pois não havia interesse por parte da burguesia de

um possível confronto mais sério com outras frações do capital, inclusive internacional.

Em meio às dificuldades internas e externas, a popularidade de Dilma começou a de-

cair à medida que as manifestações de 2013 mudaram de direção. Os protestos convocados pelo

Movimento do Passe Livre que, em um primeiro momento foram motivados pelo aumento da

tarifa do transporte coletivo, passaram a apresentar outras pautas, e principalmente outras ban-

deiras. André Singer relata que na quarta chamada do Movimento:

Surge quase um cartaz por manifestante, o que leva a uma profusão de dizeres e pau-

tas: “Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”, “Queremos

hospitais padrão Fifa”, “O gigante acordou”, “Ia ixcrever augu legal, maix fautô

edukssão”, “Não é mole, não. Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”, “Era um

país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Todos contra a corrupção”,

“Fora Dilma! Fora Cabral! pt = Pilantragem e traição”, “Fora Alckmin”, “Zé Dirceu,

pode esperar, tua hora vai chegar”, foram algumas das inúmeras frases vistas nas car-

tolinas504.

No Rio de Janeiro, o principal foco das manifestações foi a Copa das Confederações,

repetindo-se as cenas de repressão policial, mas com maior intensidade, sendo comparadas in-

clusive com “‘cenas de guerra’ ao céu aberto”505. Ainda que algumas pautas importantes tenham

permanecido por um tempo, os protestos foram tomando uma nova face e surgiram novos inte-

grantes. Segundo Marina Amaral, muitos manifestantes passaram a repudiar as bandeiras ver-

melhas e partidárias, aderindo ao “verde e amarelo” com a justificativa dessas serem as cores

de todos os brasileiros:

503 André SINGER, 2016, p. 155. 504 SINGER, 2013, p. 25. 505 SINGER, 2013, p. 25.

183

Condenavam os black blocs e exaltavam a política militar, que reprimira com violên-

cia os protestos convocados pelo Movimento Passe Livre. Suas principais bandeiras

eram contra a “roubalheira” e contra “tudo isso que está aí”, paulatinamente substitu-

ídos por um simples “Fora PT”506.

O grupo denominado Movimento Brasil Livre passou a liderar os protestos dizendo-

se a nova juventude sem partido e defendendo velhas propostas como: “liberdade absoluta para

o mercado, privatizações, Estado mínimo e o fim de políticas públicas distributivas. Ou seja, o

velho neoliberalismo, acrescido de toques ‘libertaristas’ (libertarians, em inglês)”507. No en-

tanto, houve denúncias de que “os partidos PMDB, PSDB, DEM e Solidariedade financiavam

panfletos, caravanas e lanches em manifestações”508, Dava-se início às etapas que, de acordo

com Giovani Alves, precederam o Golpe através da “inquietação das camadas médias que tor-

naram-se alvo de manipulação dos agentes ideológicos da direita organizada”509.

Essas manifestações contra o governo Dilma tinham como estrategista o “grande ca-

pital” com o objetivo de pressionar o governo e conseguir aprovar as reformas e políticas neo-

liberais510. Conforme destaca Mauro Iasi511, em um primeiro momento não havia intenção do

“grande capital” em destituir a presidenta, tanto que Dilma Rousseff foi reeleita nas eleições de

2014 e parte das reformas começaram a ter alguns encaminhamentos. Por exemplo, a nomeação

da peemedebista Katia Abreu como ministra da Agricultura, emblemática empresária pecuarista

ligada ao agronegócio; ou seja, a presidenta seguiu o oposto exigido pelos trabalhadores rurais.

Por outro lado, o país já estava declaradamente polarizado, a crise econômica aguçada

e o jogo de poder envolvendo os três dos principais partidos nacionais (PT, PMDB e PSDB)

havia sido declarado. Giovanni Alves em sua coluna no Blog da Boitempo, faz questão de no-

mear os personagens visíveis e os invisíveis envolvidos direta e indiretamente no Golpe, o qual

chega a denominar de “matilha de cães da direita oligárquica - neoliberal e reacionária”512.

A oposição inconformada por ter fracassado na estratégia de derrubar o governo PT

por meio do voto popular, nas eleições de 2014, deu início ao mecanismo complexo de um soft

506 SINGER, 2013, p. 25. 507 SINGER, 2013, p. 25. 508 SINGER, 2013, p. 25. 509 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p.

Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/08/o-golpe-de-2016-no-contexto-da-crise-do-capita-

lismo-neoliberal/. Acesso em 7 janeiro de 2017. 510 Ballestrin destaca que “falar sobre democracia hoje requer falar em capitalismo” (2017, p. 11) e para entender

o Golpe de 2016 é preciso entender os avanços das políticas neoliberais no Brasil e no mundo. 511 Mauro Iasi em entrevista para o Correio da Cidadania em 14 de setembro de 2014, disponível em:

https://www.esquerda.net/dossier/mauro-iasi-pcb-verdadeira-tarefa-da-esquerda-vem-depois-das-eleicoes-cons-

truir-alternativa. Acesso em 7 de novembro de 2020. 512 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p.

184

coup. O movimento teve o apoio do vice-presidente Michel Temer e as articulações entre Con-

gresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Procuradoria Geral da República, Ministério Pú-

blico Federal e a Polícia Federal juntamente com a Operação Lava Jato, liderada pelo juiz Sér-

gio Moro, a imprensa e uma avalanche de notícias falsas513.

Nesse intervalo de tempo, a Constituição brasileira esteve em parte inoperante. Em

outras palavras, manipulável de acordo com o interesse do grupo envolvido. Conforme escreveu

Celso Rocha de Barros em um artigo para revista Piauí em 2018:

Na verdade, o Brasil teve outra Constituição em 2016, e ela foi revogada após o im-

peachment. Em 2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e en-

cerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido nomear ministros

para lhes dar foro privilegiado; em 2017, deixou de ser. Em 2016, os juízes eram vistos

como salvadores da pátria, em 2017 viraram “os caras que ganham auxílio-moradia

picareta”. Em 2015, o sujeito que sugerisse interromper a guerra do impeachment em

nome da estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017 tor-

nou-se o adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo. Em 2015, presi-

dentes caíam por pedaladas fiscais; em 2017 não caíam nem se fossem gravados na

madrugada conspirando com criminosos para comprar silêncio de Eduardo Cunha e

do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a acusação de que Dilma teria tentado influenciar

uma decisão do ministro Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em

2017, Temer jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal

Federal que julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das acusações da Pro-

curadoria-Geral da República contra ele, Temer, ao Congresso. Em 2015, Gilmar teria

cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017, não cassou514.

Eis aqui um resumo de como foram conduzidas as cenas da peça teatral que resultou

na atual conjuntura política nacional. Se o governo de Temer tivesse recuperado a economia

nacional e se o país tivesse crescido, os envolvidos no golpe teriam conseguido vender a narra-

tiva de que a culpa da crise era a corrupção petista dos governos Lula e Dilma. Desse modo, a

saída de um governo “manchado pela corrupção” e a entrada de outro em condições ainda mais

comprometedoras, conforme é possível observar no relato de Rocha de Barros, fortalece perso-

nagens de direita mais reacionários, tal qual o caso da recente eleição do ex-deputado Jair Bol-

sonaro515.

A manipulação midiática516 que ignorou as denúncias contra o Golpe e protegeu polí-

ticos como Eduardo Cunha, notório corrupto, presidente da Câmara de Deputados e principal

513 Giovanni ALVES. “O golpe de 2016 no contexto da crise do capitalismo neoliberal”. Blog da boitempo. s/p. 514 Celso Rocha de BARROS. “O Brasil e a recessão democrática”. Piauí, n. 139, abr.2018. Disponível em:

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-brasil-e-recessao-democratica/. Acesso em 8 de novembro de 2019. 515 “Jair Bolsonaro, atualmente o maior representante da antipolítica nacional, tinha 8% das intenções de voto em

dois dos cenários simulados pelo instituto [Datafolha]. Entre os mais ricos, o deputado fascista é o primeiro colo-

cado em todas as projeções” (Murilo CLETO, 2016, p. 48). 516 Segundo o jornalista Mauro Lopes, a mídia nacional se “meteu em uma queda de braço com a imprensa inter-

nacional na narrativa do Golpe. Enquanto no Brasil alardeavam um processo constitucional de impeachment, o

ataque à democracia foi denunciado em todos os principais meios de comunicação do planeta” (2016, p. 122).

185

articulador do Golpe no Congresso, soma-se à descrença na política por parte da população.

Constata-se um conjunto de fatores que dá margem à ascensão de discursos de ódio disfarçados

de salvadores da pátria. Conforme destaca Murilo Cleto,

É no interior desse vácuo [descrença do povo na política] que surgem os salvadores

da pátria, impostores moralistas e exterminadores de rostos, multiplicidades, diferen-

ças e intervalos de uma democracia ainda em formação e mais uma vez atacada em

nome de um projeto oligarca de poder517.

A proposta desses indivíduos apoiadores do Golpe é acabar com o modelo conciliató-

rio (chamado também de neodesenvolvimentismo) e resgatar por inteira a agenda neoliberal.

Assim, o que o “grande capital” não conseguiu por completo com a presidenta Dilma Rousseff,

o presidente interino Michel Temer abriu e cedeu aos seus temas centrais, apoiando políticas e

aprovando reformas em tempo recorde. Nas palavras de Löwy,

a oligarquia de direito divino do Brasil a elite capitalista financeira, industrial e agrí-

cola não se contenta mais com concessões: ela quer o poder todo. Não quer mais

negociar, mas sim governar diretamente, com seus homens de confiança, e anular as

poucas conquistas sociais dos últimos anos518.

A retirada de direitos conquistados em décadas de luta é o maior perigo dessa agenda

neoliberal que, por sua vez, poderia ser evitada se os governos PT tivessem, no ponto de vista

de André Singer, “apresentado, quando havia maioria para tanto, a chamada Consolidação das

Lei Sociais (CLS). Se a CLS tivesse passado, hoje a situação seria mais difícil para as forças

conservadoras progressistas”519.

Aliás, esse não é um movimento exclusivo do Brasil, já que outros países passam pela

mesma demanda de ter que defender suas democracias de fascistas e da extrema direita. Se-

gundo Michel Löwy, “a democracia atrapalha, ela não facilita o trabalho da política capita-

lista”520. E como Rancière desenvolve em sua tese sobre ódio à democracia, o excesso de de-

mocracia possibilita o crescimento de discursos antidemocráticos.

Muito do que comentei até aqui é fruto da política do esquecimento planejada e atuante

desde a invasão de Pedro Álvares Cabral às terras indígenas que hoje conhecemos como Brasil.

Um longo processo marcado por crise econômica e moral, fraudes e manipulações, bem como

a loucura coletiva. Não há termo melhor para definir esse momento do que a tragicomédia.

Dentre os absurdos que sequer sabemos como serão narrados nos livros didáticos de história,

destaca-se a farsa que deu base para que tudo isso fosse possível.

517 CLETO, 2016, p. 48. 518 LÖWY, 2016, p. 64. 519 SINGER, 2016, p. 154. 520 LÖWY, 2016, p. 61.

186

Desse modo, a ficção deixa de parecer absurda quando se para para pensar um pouco

na história nacional. Esses dias escutei Mauro Iasi comentar, em um episódio de seu programa

Café bolchevique na TVBoitempo, que “Marx teria dito diante da atual situação que a história

só surpreende quem de história não entende”. Tal frase levou-me de volta à época em que li

Bolero e decidi escrever essa tese, uma tarde no Labflor, dividida entre os estudos e acompanhar

o julgamento de Dilma Rousseff. Naquele instante, entre diferentes sentimentos que me aco-

metiam, percebi que não passávamos de espectadores, tal qual os habitantes da Cidade. Vive-

mos em um país viciado em manipulações políticas: a Cidade, entre monarquias e repúblicas,

e nós, entre governos antidemocráticos e democráticos.

Os olhares voltam-se para procurar o que restou da democracia e da nação brasileira:

a identidade de um povo claramente dividido; não mais fundação, desfundação. O que antes

chamei a atenção ser a desfundação do luto pós-ditatorial, agora desfundação do luto pós-de-

mocrático.

Ballestrin e Boaventura de Sousa Santos521 associam o prefixo “pós” ao “anti”, pois a

pós-democracia, segundo eles, vai dando lugar ao anti-intelectualismo, característica tão co-

mum e marcada nos discursos de governos autoritários. Nas palavras de Ballestrin: “Desespe-

rança política e preguiça intelectual por um lado, intolerância e violência de outro”522. Afinal,

a primeira ação de governos antidemocráticos, na maioria das vezes, é a perseguição à educa-

ção, à universidade e à pesquisa.

O mesmo autor que denominou a democracia brasileira de “natimorta” também faz

uma leitura do Golpe de Estado de 2016 como uma encenação tragicômica em cinco atos. Se-

gundo Francisco Dias,

O enredo do gênero literário tragédia é feito com base na adversidade, na calamidade,

no flagelo. A tragédia é um drama cuja cena final é uma desgraça, catástrofe. Nas

comédias são abordados temas sociais, políticos, morais etc., e os atores buscam os

risos da plateia. Já os conteúdos de uma tragicomédia são ora trágicos, ora cômicos523.

No entanto, diferente das demais tragicomédias, que têm um “final feliz”, nem Bolero

e, muito menos, o Brasil tiveram. Apesar de o personagem-narrador do romance ter constituído

família com Auriflor e conseguido uma boa colocação nas Indústrias S.A, segue preso ao pas-

sado e a esquerda que espere a próxima oportunidade. Já o Brasil teve sua democracia grave-

mente ferida e segue na amargura de ter um presidente autodeclarado pró-ditadura.

521 Boaventura SOUSA SANTOS, 2016, apud BALLESTRIN, 2017. 522 BALLESTRIN, 2017, p.13. 523 DIAS, 2018, p. 66.

187

A frustração sobre a ficção alia-se à sensação de impotência e de meros espectadores

diante da ruína de nossa jovem democracia, ou, como diz Francisco Dias, natimorta democracia.

O país de inúmeras narrativas, muitas verdades e muitas farsas, está em recessão democrática.

Como a Cidade, vivemos um eterno retorno, uma eterna transição de regimes, de jogos políticos

e golpes contaminados pela teatralidade.

Enquanto Giudice, em 1984, afirma que a esquerda deve esperar, Vladimir Safatle, em

2020, sugere a necessidade de matá-la. Alvo de muitas críticas, o filósofo justifica seu posicio-

namento alegando que matando-a talvez se consiga salvá-la: “a sobrevivência da esquerda na-

cional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente ‘nós morremos’ é a primeira

condição para nos livrarmos do que nos matou”524. Nesse sentido, retomo a pergunta-título

dessa seção, “Como viemos parar aqui?”, cuja resposta está longe de ser definitiva e concisa,

mas que se escreve ao longo de cinco séculos e que podemos ler através dos romances de fun-

dação e desfundação, como o aqui proposto Bolero.

524 Vladimir SAFATLE. “Para a esquerda: morrer é só o começo”. El país. 27 de fevereiro de 2020. Disponível

em https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-27/para-a-esquerda-morrer-e-so-o-comeco.html. Acesso em 8 feve-

reiro de 2020.

188

6 DESCONHEÇO HISTÓRIAS MIL

O romance Bolero foi um divisor de águas em meu processo formativo. Sua leitura

excepcional provocou a mudança do meu projeto de tese e levou-me à dedicação de estudos,

quase que exclusivo, da obra de Victor Giudice e suas implicações nos estudos literários e na

sociedade brasileira.

Logo no início da pesquisa sobre o autor, em 2017, eu já havia terminado de ler toda

a sua obra. O que não é nenhum grande feito haja vista que são somente quatro livros de contos,

a saber, Necrológio (1972); Os banheiros (1979); Salvador janta no Lamas (1989); e Museu

Darbot e outros mistérios (1994) –; dois romances, Bolero (1985) e O sétimo punhal (1995); e

um texto inacabado, Catálogo das flores, publicado anexo à reedição do premiado Museu Dar-

bot e outros mistérios em 1999. Essas leituras foram essenciais para entender a escrita giudici-

ana e, consequentemente, pensar a estrutura e apresentação da tese, conforme destaquei na in-

trodução.

A própria escolha do título “‘Conheço histórias mil que a História esconde’ Uma lei-

tura de Bolero, de Victor Giudice”, não foi por acaso e sim fruto das leituras e especulações

sobre o processo criativo do escritor. Conhecer e desvendar as histórias existentes nas entreli-

nhas de suas obras, mais especificamente nas publicadas entre as décadas de 1970 e 1980, foi

fundamental para imaginar uma linha do tempo de Victor Giudice.

Seu marco inicial está datado em 1972, quando da publicação do livro experimental

Necrológio, passando pelos contos d’Os banheiros, de 1979, para finalmente adentrar e encer-

rar, em 1985, no romance Bolero. Ainda que para a política e para a história essa cronologia

não se confirme e não seja estanque, faz-se, no mínimo, interessante pensar os textos concomi-

tantemente aos acontecimentos políticos brasileiros.

Provavelmente Giudice não pensou de antemão na intratextualidade de seus textos,

mas assim que Bolero se tornou público não seria mais possível a leitura de Necrológio e Os

banheiros sem correlacioná-las e visualizá-las como obras complementares, tanto no que diz

respeito ao conteúdo quanto à forma. Digo isso porque, se um dia consideraram Os banheiros

como um abandono ao experimentalismo proposto na sua obra anterior, com a publicação de

Bolero essa teoria torna-se infundada. No romance, Giudice retomou diversos, se não todos os

mecanismos experimentais presentes na estrutura de Necrológio. Enquanto isso, Os banheiros

189

passou a ser uma importante chave de leitura através dos contos “Miguel Covarrubra” e “Nar-

rativa do Número Um”, bem como das referências ao romance em seus paratextos e entrelinhas,

como no conto “Mahablan”.

Em 2018, durante pesquisa no acervo do escritor na Fundação Casa de Rui Barbosa

observei a presença de alguns originais com a indicação de “fragmento de romance” que não

constavam em Bolero, apesar de a temática e os personagens serem os mesmos. Percebi, ainda,

outros manuscritos e rascunhos que não tinham a indicação de fragmento, mas eram fáceis de

identificar como pertencentes ao seu material artístico (ou seja, faziam parte do processo de

criação do escritor).

Após um tempo de dedicação, foi possível identificar que os fragmentos foram incor-

porados ao romance com alterações, com a exceção do conto “A farsa” que, por sua vez, não

consta no romance e, a princípio, não se tem conhecimento de sua publicação em outros livros

ou em outros meios de comunicação. Um indicativo interessante está no fato de esses fragmen-

tos possuírem títulos, ao contrário dos capítulos de Bolero que não apresentam identificação

alguma. Pode ser que, em algum momento, o autor tenha cogitado publicá-los individualmente

tal como fez com os contos “Narrativa do Número Um” e “Pôquer”.

A intenção ao trazer essas informações está na possibilidade de especular sobre Giu-

dice ter ou não previsto a intratextualidade como um elemento experimental de Os banheiros.

No entanto, em 1984, durante o processo criativo de escrita de Bolero, a meu ver, as conexões

entre as duas obras foram inevitáveis. Se a única referência ao romance fosse o conto “Narrativa

do Número Um” seria possível descartar o experimentalismo como característica, entretanto,

muitas são as indicações ao romance.

No prefácio de O fictício e o imaginário, de Wolfgang Iser, Dau Bastos nos lembra

que: ao escritor não confere “consciência plena de suas decisões e medidas, tampouco lhe fa-

culta controle absoluto sobre o resultado alcançado; no entanto, a própria adoção de certas al-

ternativas e não de outras já lhe diz da intencionalidade do texto”525. Em outras palavras, é

possível conjecturar outras possibilidades de processo criativo além do proposto no projeto li-

terário do escritor. Portanto, também é possível considerar as três obras como um ciclo narrativo

que se inicia em 1972, auge da ditadura militar no Brasil, e se encerra em 1985, na expectativa

de redemocratização do país.

525 Dau BASTOS, 2013, p.10.

190

Pensar essa relação entre suas composições literárias contribui para uma análise ampla

do romance bem como para entendê-lo como subversivo ao gênero e às ficções fundacionais.

Tanto a leitura separadamente como a intratextualidade entre elas são respostas ao momento

crítico do país, levando-nos a pensar no panorama da época em questão. É possível considerar

o que se sentia e o que se pensava através do olhar do escritor, de modo que o texto literário

nos coloque de frente com uma determinada realidade temporal e sua leitura auxilie na nossa

percepção sobre a história, a sociedade e o mundo. Por isso, os momentos de crise política e os

governos autoritários são indicativos de transgressão nos mais diversos meios artísticos, con-

forme salientam as palavras de Octavio Paz: “Uma literatura nasce sempre frente a uma reali-

dade histórica e, frequentemente, contra uma realidade”526.

Por conseguinte, a literatura nacional também se torna recorrente, porém, nunca como

um conceito homogêneo. Nas palavras de Coutinho, a noção de nacional variará “de acordo

com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada momento”527. Em contrapartida,

Doris Sommer afirma que quanto mais os escritores latino-americanos de meados do século

XX negavam a temática do nacional, mais ela parecia irresistível. Isso é uma questão de pers-

pectiva, pois, se a literatura nacional e, consequentemente, os romances de fundação são resul-

tados de um período histórico em crise, o nacional permanecerá como protagonista das obras

enquanto os países latino-americanos não consolidarem de fato uma democracia. O que signi-

fica, talvez, que a negação ao conceito de literatura nacional tenha sido confundida com a ne-

gação aos moldes canônicos da época.

Portanto, deve-se encarar a ficção de desfundação como uma nova abordagem sobre o

olhar nacional na literatura e como resultado de uma série de desventuras históricas, de trans-

gressão do gênero romance e de subversão à própria história da literatura brasileira. É possível

resumir sua definição em uma frase emblemática de Victor Giudice: “a ficção [de desfundação]

é a realidade despojada de todas as mentiras”. A ideia a ser mantida é a de pertencimento ao

processo histórico em construção. Além da literatura estar inserida em um país sobre o qual não

é possível definir uma identidade nacional, mas sim múltiplas identidades. A própria estrutura

do Bolero mimetiza um caos que pode ser lido como o próprio sistema operacional brasileiro:

desestrutural, tal qual o personagem Ralfo, de Sério Sant’Anna, utiliza como nova terminologia

para o seu romance.

526 Octávio PAZ, 2015, p. 126. 527 COUTINHO, 2002, s/p.

191

Alguns romances brasileiros do século XX como Macunaíma, Grande sertão: Vere-

das, Incidente em Antares, Confissões de Ralfo, entre outros, são promissores dentro dessa lei-

tura sobre os romances de desfundação. Esses romances, de certa forma, problematizam ques-

tões sobre gênero literário, crises políticas, identidades nacionais e projetos de nação. O citado

romance desestrutural de Sérgio Sant’Anna, Confissões de Ralfo, nos ajuda a entender que o

prefixo “des” não necessariamente pressupõe uma leitura antagônica da palavra a qual está as-

sociado, ou seja, não nega o outro sentido, conforme sugere o prefixo em sua análise morfoló-

gica e até mesmo semântica. Desse modo, as noções de desestrutural e, principalmente, des-

fundacional surgem para expandir e complementar às ideias anteriores, estrutural e fundacional,

possibilitando-se novas linhas de leitura e perspectivas sobre a arte literária.

A leitura dos textos como desfundação pretende, a princípio, apresentar um resultado

do processo de consciência sobre as problemáticas fundacionais. Por isso, a importância de

revisitar esses romances nacionais construídos ou publicados em épocas cruciais para a nossa

história, como Iracema e O Guarani, de José de Alencar. Tanto os romances de fundação

quanto os de desfundação voltam-se para a identidade nacional, um para justificá-la e outro

para questioná-la. É nesse sentido que outras questões além do contexto histórico de publicação,

como os contextos literário e o narrativo, devem ser consideradas para identificar essas mani-

festações na literatura nacional.

Os traumas sofridos pela sociedade brasileira em sua formação são fundamentais para

compreender essa expressão nos romances. Os projetos de nação mencionados ao longo desse

trabalho, através de obras canonizadas no sistema literários brasileiro, são resultados de proces-

sos intensamente violentos cujas consequências reverberam até hoje. Poucos foram os momen-

tos que a sociedade teve para avaliar e recuperar os inúmeros subsequentes projetos de nação

malsucedidos. Nas palavras do historiador Daniel Aarão Reis, “a memória do silêncio e seus

conselhos: olhar para frente, ignorar o espelho retrovisor”528. Desse modo, os romances de des-

fundação tentam superar as armadilhas da memória e sugerem uma autocrítica sem pretensão

de um novo projeto nacional.

Sobre esse aspecto, retomo o suposto riso oferecido por Bolero, e em especial pela

cena das cicatrizes forjadas, que não deve ser lido como um apagamento nem pacificação do

trauma. Seu efeito implica o contrário; procura não deixar que as cicatrizes e os inventários

desapareçam, que não se caia no esquecimento nem na impunidade de quem as cometeu, tendo

528 Daniel Aarão REIS, 2019, p. 275.

192

em vista o silêncio e a cumplicidade de parte da população da Cidade e mesmo a adesão dos

grupos republicanos e monarquistas às práticas de tortura.

Logo em uma primeira leitura do romance, percebi um retorno à memória das perse-

guições políticas do período ditatorial e também a importância desse material para a memória

coletiva e para a democracia brasileira, que clama por atenção e socorro. Agora, mais íntima

dessa obra tão surpreendente e inesgotável, penso que as cicatrizes deixadas pela tortura não se

restringem apenas àquelas da ditadura militar. As marcas suprimidas da superfície do corpo do

personagem-narrador precisam ser expostas novamente. Exigem serem vistas para, então, se-

rem lembradas. Creio que sejam marcas de todos os traumas coletivos causados por tantas vio-

lações aos direitos humanos que nosso país carrega em sua história. Foram muitos os períodos

históricos de perseguição a grupos étnicos, raciais e políticos que jamais poderão se perder nos

cruzamentos de nossa memória individual e coletiva, nacional e mundialmente. Afinal, todos

eles são frutos dos projetos de nação desenvolvidos ao longo dos últimos cinco séculos de Bra-

sil.

Essas memórias do trauma ecoam como grito pelas ruas, becos, vielas e servidões de

todas as cidades brasileiras. Mas a obra de Giudice tem cor local. Por meio da metanarrativa, o

escritor apresenta a “Lenda dos doze rios” — História de fundação da Cidade, narrada por Ma-

dame Odhontyna e seu sobrinho Ladislau. Embora a Cidade do texto possa ser qualquer cidade,

não podemos esquecer de onde o escritor fala, como é possível observar no seguinte trecho:

Última noite. Os homens não dormiram.

O peito murcho, o estômago vazio.

Mas, de repente, os raios que surgiram

da rósea madrugada e doce estio

mostraram-lhes visões que nunca viram.

Quanta beleza junta num só rio.

O Gammedal foi quem gritou primeiro:

“Como é formoso o rio de janeiro.”529

Niteroiense, radicado carioca, ele deixa nas entrelinhas de Bolero a vista de sua janela

para a Quinta da Boa Vista, no bairro São Cristóvão do Rio de Janeiro. Palco de tantos espetá-

culos históricos, aos que por ali passeiam, chama a atenção os jardins de flamboyants. Uma das

espécies botânicas exóticas presentes no parque, a flor é a mesma que o personagem-narrador

retirou do canteiro da Cidade e custou-lhe a liberdade, e talvez a mesma a que se faz menção

na lenda fundacional.

“Cada centímetro é uma paisagem

tão diferente da que está vizinha,

529 GIUDICE, 1985, p. 107.

193

que vista ao longe parece a miragem

de uma flor que se louva em ladainha.

Vegetação em forma de mensagem,

cujo segredo nunca se adivinha.”

E ouviu-se a voz ducal, na imensidade:

“Aqui eu fundarei nossa cidade.”530

Mas não esqueçamos que essa lenda é apenas uma parte das “histórias mil que a His-

tória esconde”. Nas palavras de Odhontyna:

Não roubes de meu verso esta mentira

e as outras que decerto hão de surgir.

Porque só delas é que o Homem tira

as forças do passado e as do porvir.

Se o ser não mente, a mente não se inspira,

pois a verdade só nos leva a rir.

Mentindo empresto aos homens tanta glória,

quão mentirosa é toda a Humana História531.

Em tempos tão estranhos como o nosso, o sétimo verso soa como um dos meus favo-

ritos, “pois a verdade só nos leva a rir”. Ouso dizer que o romance de fundação torna épica a

nossa história não tão épica enquanto o romance de desfundação a torna absurda, no sentido

giudiciano do termo. Desse modo, a ficção tanto pode enobrecer uma história medíocre como

pode torná-la mais palatável por meio da ironia e da sátira. No caso, se consideramos a arte

literária como um meio de documentar a estrutura de sentimentos das pessoas que viveram

determinado tempo, ela também aparece como estudo das diferentes narrativas que percorrem

a história. Por isso, a análise que faço sobre Bolero e os romances de fundação e desfundação

está longe de se esgotar, pois estamos no início de uma história cheia de cruzamentos e possi-

blidades. Precisamos acompanhar os próximos capítulos da novela sociopolítica brasileira para

fazer conexões com as produções literárias que surgem e ressurgem em nossos horizontes de

expectativas.

Diante dos recentes acontecimentos da política brasileira, percebemos um país à beira

do abismo. O retorno de discursos autoritários e o descaso com o meio ambiente e a população

não podem ser reduzidos a um “produto mecânico de um passado que não passa”532, mas uma

das consequências de ações tomadas em um passado longínquo e próximo também.

O risco que nossa democracia corre está diretamente relacionado a um processo de

transição tendencioso, mas, ao mesmo tempo, é resultado do início da reparação histórica do

país com as incontáveis violações dos direitos humanos. A própria perseverança do familismo

530 GIUDICE, 1985, p. 107. 531 GIUDICE, 1985, p. 111. 532 REIS, 2019, p. 275.

194

e do nepotismo na política nacional tem relação direta com os projetos de nação e, consequen-

temente, com a memória do esquecimento, as desigualdades sociais e o recente Golpe contra a

democracia.

Nesse sentido, a noção de desfundação seria aplicável a um movimento bem grande

para pensar sobre formação de brasilidade dentro da ótica de cada momento histórico e, princi-

palmente, sem prever uma utopia sobre o tempo futuro, mas questionar a história do tempo

presente.

Há muito o que se pesquisar sobre o tema, pois desfundação está longe de ser uma

noção fechada, tendo em vista que, nas palavras de Safatle, “nenhum país conseguiu consolidar

sua substância normativa sem acertar as contas com os crimes de seu passado”533. E estamos

diante desse processo que só será efetivo se de fato continuarmos focando nossos olhares para

os direitos humanos, visto que escancarar os traumas e suas cicatrizes é o pontapé inicial para

debater noções de brasilidades de uma forma plural, aberta e em constante movimento.

Assim sendo, finalizo este trabalho convidando-nos a voltar nosso olhar às produções

literárias contemporâneas, inclusive seus meios de produção, publicação e divulgação. Afinal,

se consideramos os romances de fundação e desfundação frutos de crises políticas e sociais, o

recente ataque à jovem democracia brasileira, bem como a eleição de um presidente da repú-

blica autodeclarado autoritário, pode vir como poderosa fonte para rediscutir questões de iden-

tidade nacional e de gênero literário.

533 SAFATLE, 2010, p. 252.

195

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203

ANEXO: Sobre Victor Giudice

Figura 2 O jovem Victor Giudice

204

Figura 3 Victor Giudice no restaurante Café Lamas/Rio de Janeiro

205

Figura 4 Victor Giudice com adorno de carnaval durante expediente no Banco do Brasil

206

Figura 5 Victor Giudice trabalhando em sua casa/Rio de Janeiro

207

Figura 6 Ilustração para capa de Bolero

208

Figura 7 Ilustração do personagem Ladislau

209

Figura 8 Ilustração sem título

210

Figura 9 Partitura da canção Caixinha de música, composição de Victor Giudice