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POR UMA ESTÉTICA ARTÍSTICA-FEMINISTA DO DIREITO ORGANIZADORA: EZILDA MELO

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POR UMA ESTÉTICA ARTÍSTICA-FEMINISTA DO

DIREITOORGANIZADORA: EZILDA MELO

2020

OrganizadoraEzilda Melo

POR UMA ESTÉTICA ARTÍSTICA-FEMINISTA DO DIREITO

AUTORES

Adriana da Rocha LeiteAlana OliveiraAlessandra Almeida BarrosAmanda Mateus RobbiAnna FaedrichCarla Estela RodriguesCecília de Amorim Barros RamalhoCristi ne Koehler ZanellaDaniel Fauth Washington Marti nsDaniela BaumgartenDinah LimaEdileuza Bati sta de AraujoEdiliane Lopes Leite de FigueiredoEdna Raquel Hogemann Elaine PimentelEliane Cristi na TestaEzilda MeloFernanda Caroline Alves de Matt osHilda Helena Soares BentesIranilson Buriti de OliveiraJanayna Nunes PereiraJoana Mutti Juliana Borges Kopp

Kati e Silene Cáceres ArgüelloLarissa Zucco IarrocheskiLarisse Leite AlbuquerqueLeda de Oliveira PinhoLigia Ziggiotti de OliveiraLize Borges Manuela Aguiar Damião de AraújoMárcia Letí cia GomesMaria Aparecida Figueirêdo PereiraMaria Clara Arraes Peixoto Rocha Míriam Couti nho de Faria AlvesPaulo Silas Taporosky FilhoPriscilla LealRebeca de Souza Vieira Renato BernardiSusilene FeoliTaís Vella CruzTatyana Scheila FriedrichThaize de Carvalho CorreiaSérgio Assunção Rodrigues JúniorUda Roberta Doederlein Schwartz Vanessa Guimarães dos SantosVeyzon Campos MunizVictor Sugamosto Romfeld

Copyright© Tirant lo Blanch BrasilEditor Responsável: Aline GostinskiCapa e Diagramação: Renata Milanilustração da capa: Lia Testa

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.Av. Brigadeiro Luís Antônio, 2909 - sala 44Jardim Paulista, São Paulo - SPCEP: 01401-002www.tirant.com/br - [email protected]

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Copyright©

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráfi cas e/ou editoriais.A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO:EDUARDO FERRER MAC-GREGOR POISOT

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - MéxicoJUAREZ TAVARES

Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - BrasilLUIS LÓPEZ GUERRA

Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - EspanhaOWEN M. FISS

Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUATOMÁS S. VIVES ANTÓN

Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

2020

AUTORES

Adriana da Rocha LeiteAlana OliveiraAlessandra Almeida BarrosAmanda Mateus RobbiAnna FaedrichCarla Estela RodriguesCecília de Amorim Barros RamalhoCristi ne Koehler ZanellaDaniel Fauth Washington Marti nsDaniela BaumgartenDinah LimaEdileuza Bati sta de AraujoEdiliane Lopes Leite de FigueiredoEdna Raquel Hogemann Elaine PimentelEliane Cristi na TestaEzilda MeloFernanda Caroline Alves de Matt osHilda Helena Soares BentesIranilson Buriti de OliveiraJanayna Nunes PereiraJoana Mutti Juliana Borges Kopp

Kati e Silene Cáceres ArgüelloLarissa Zucco IarrocheskiLarisse Leite AlbuquerqueLeda de Oliveira PinhoLigia Ziggiotti de OliveiraLize Borges Manuela Aguiar Damião de AraújoMárcia Letí cia GomesMaria Aparecida Figueirêdo PereiraMaria Clara Arraes Peixoto Rocha Míriam Couti nho de Faria AlvesPaulo Silas Taporosky FilhoPriscilla LealRebeca de Souza Vieira Renato BernardiSusilene FeoliTaís Vella CruzTatyana Scheila FriedrichThaize de Carvalho CorreiaSérgio Assunção Rodrigues JúniorUda Roberta Doederlein Schwartz Vanessa Guimarães dos SantosVeyzon Campos MunizVictor Sugamosto Romfeld

OrganizadoraEzilda Melo

POR UMA ESTÉTICA ARTÍSTICA-FEMINISTA DO DIREITO

SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Carina Barbosa GouveaINTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17LUTA DO FEMINISMO NOS DIAS ATUAIS: DA DISCRIMINAÇÃO DE

GÊNERO E AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Alessandra Almeida BarrosLarisse Leite Albuquerque

CAPÍTULO 01 - ÁUDIOVISUAL E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . 31

AS SUFRAGISTAS: UMA PERSPECTIVA DO VOTO FEMININO NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Daniela BaumgartenJoana MuttiLize Borges

“A INFORMANTE”: TRÁFICO DE PESSOAS, DISCRIMINAÇÃO E O SISTEMA VALIDADOR DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . 49

Fernanda Caroline Alves de MattosRenato Bernardi

QUEM MATOU ELOÁ? A ESPETACULARIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Elaine PimentelDIREITO E CINEMA: A ÚLTIMA TENTAÇÃO AO DIREITO À LIBERDADE

DE EXPRESSÃO NO CASO OLMEDO BUSTOS VS CHILE E A SUA RELEVÂNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . .67

Edna Raquel HogemannSérgio Assunção Rodrigues Júnior

HIPERENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL: REFLEXÕES A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “O CÁRCERE E A RUA” . . . . . . . . . . . . . . 77

Daniel Fauth Washington MartinsKatie Silene Cáceres ArgüelloVictor Sugamosto Romfeld

(DES)CONSTRUINDO A PAISAGEM DA (DES)IGUALDADE: UM OLHAR SOBRE A (DES)IGUALDADE DE TODAS PERANTE A LEI, CONVERTIDA NA (DES)IGUALDADE DAS MULHERES PERANTE OS TRIBUNAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Dinah LimaPRÁTICAS DISCURSIVAS DE INFERIORIZAÇÃO DOS SUJEITOS

A PARTIR TELEVISÃO E A CONTINUAÇÃO DO PROJETO COLONIAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TELENOVELA AVENIDA BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Cristine Koehler ZanellaAmanda Mateus Robbi

8 Sumário

CRIMINOLOGIA E FEMINISMO: CONTRIBUIÇÕES DO CINEMA PARA O DIREITO EM “O AUTO DA COMPADECIDA” . . . . . . . . . . . . . . 119

Míriam Coutinho de Faria AlvesEzilda Melo

PODE A MULHER ESCREVER? AS HISTÓRIAS DE MARY SHELLEY E COLETTE VÃO AO CINEMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

Márcia Letícia GomesREPRESENTAÇÕES DO COMPORTAMENTO FEMININO EM SEX

AND THE CITY: AMOR E SEXUALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139Juliana Borges Kopp

“A VIDA DE UMA MULHER” E “UM AMOR IMPOSSÍVEL”: A MATERNIDADE POR TRÁS DO ENREDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

Ezilda Melo

CAPÍTULO 02 - LITERATURA E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . . 165

MULHERES E POLÍTICA NO BRASIL: A “MULHER-MARAVILHA” E A METÁFORA DA AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

Carla Estela RodriguesA PRESENÇA DE TEXTOS DE AUTORAS NEGRAS NO

LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179Eliane Cristina TestaEdileuza Batista de Araujo

BRUXAS, ADÚLTERAS E PROSTITUTAS: A MULHER NA LITERATURA CLÁSSICA E A MARCA DOS ESTEREÓTIPOS . . . . . . . . . 199

Ediliane Lopes Leite de FigueiredoO OLHAR E O OBSERVAR EM CAPITU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

Paulo Silas Taporosky FilhoLarissa Zucco Iarrocheski

O FEMININO NO QUARTO DE DESPEJO: AS RELAÇÕES DE GÊNERO VISTAS NA ESCRITA TESTEMUNHAL DE CAROLINA MARIA DE JESUS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

Maria Aparecida Figueirêdo PereiraAFINAL, PARA QUE SERVE UM PUNHO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

Eliane Cristina TestaLEIS CIVIS E PENAIS MACHISTAS DO SÉCULO XX E A OBRA

HOMENS TRAÍDOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239Carla Estela dos Santos Rodrigues

JORNADA NORTE-NORDESTE DE DIREITO E LITERATURA DA RDL EM CAMPINA GRANDE NO ANO DE 2017: UM MARCO E UM LEGADO . . . . . 257

Alana OliveiraEzilda MeloPaulo Silas Taporosky Filho

Sumário 9

ESCRITORAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XIX: DA EXCLUSÃO À REINSERÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263

Anna FaedrichA VIA CRUCIS DO CORPO DA MULHER: TRAJETOS DE VIOLÊNCIA

NA LITERATURA BRASILEIRA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269

Hilda Helena Soares Bentes“AS VELHAS”, DE LOURDES RAMALHO: DIREITO COSTUMEIRO,

SUJEIÇÃO FEMININA E POLITICAGEM NO SERTÃO NORDESTINO 285Cecília de Amorim Barros RamalhoEdiliane Lopes Leite de Figueiredo

A MULHER NA E DA LITERATURA: POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS JUSLITERÁRIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295

Paulo Silas FilhoTEREZA BATISTA, DE JORGE AMADO: UMA ANÁLISE JUSLITERÁRIA

DO ABANDONO JURÍDICO-ESTATAL DAS MENINAS-MULHERES DESVALIDAS E MARGINALIZADAS NO NORDESTE BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301

Ediliane Lopes Leite de FigueiredoCLARISSA PINKOLA ESTÉS E VIRGINIA WOOLF: A CRIATIVIDADE

DA MULHER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315Priscilla Leal

CAPÍTULO 03 - MUSICA E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319

MULHER E MIGRANTE: REFLEXÕES SOBRE RESPEITO PARA A IGUALDADE A PARTIR DA IDEIA DA CANÇÃO ‘RESPEITA’ DE ANA CAÑAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

Tatyana Scheila FriedrichTaís Vella Cruz

MULHERES NO REGGAE: UM ENSAIO COM A BANDA NAZIRÊ E A FORÇA DA VOZ DE TRÊS MULHERES NEGRAS NO CARIRI-CEARENSE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333

Maria Clara Arraes Peixoto RochaDE BOLADONA A 100% FEMINISTA: MULHERES QUE FAZEM

ECOAR SUAS VOZES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347Vanessa Guimarães dos Santos

GENI E O ZEPELIM: UMA ANÁLISE SOBRE A HUMANIZAÇÃO DA MULHER DIANTE DO ETIQUETAMENTO SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . 353

Rebeca de Souza VieiraDIREITO DA MULHER À NÃO VIOLÊNCIA E FEMINEJO: O

ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA OBRA DE SIMONE & SIMARIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363

Veyzon Campos Muniz

10 Sumário

AGORA É QUE SÃO ELAS: O FEMINEJO E O PROTAGONISMO DAS MULHERES NO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373

Manuela Aguiar Damião de AraújoVOCÊ NÃO VALE NADA, MAS EU GOSTO DE VOCÊ”: VIOLÊNCIA DE

GÊNERO E MUSICALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 389Iranilson Buriti de Oliveira

CAPÍTULO 04 - TEATRO E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . 397

NO PALCO FEMINISTA, DINA LISBOA! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399Adriana da Rocha Leite

PROJETO CHÁ DAS PRETAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409Susilene Feoli

CAPÍTULO 05 - ARTES PLÁSTICAS E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . 419

BERTHE MORISOT, A IMPRESSIONISTA: UM ENSAIO SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 421

Leda de Oliveira PinhoUMA ANÁLISE FEMINISTA SOBRE A EXPOSIÇÃO “TO BREATH

THROUGH – SOBRE A FRAGILIDADE DA VIDA”, DE MARIA HEED . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435

Ligia Ziggiotti de OliveiraBARBIE X FRIDA KAHLO: UMA ANÁLISE FEMINISTA ALÉM DA

PERFEIÇÃO DAS FORMAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445Janayna Nunes Pereira

AS SIGNIFICAÇÕES DA JUSTIÇA EM THEMIS E DIKÉ: FEMININO, ARTE E ABERTURA DE SENTIDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 469

Uda Roberta Doederlein Schwartz

CAPÍTULO 06 - DANÇA E DIREITOS DAS MULHERES . . . . . . . . . . . . . . . . . . 475

TEM MULHER NA RODA DE CAPOEIRA, SIM SENHOR! . . . . . . . . . . . . . . . 477Thaize de Carvalho Correia

PARA REFLETIR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 489POSFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 499

João Paulo Allain TeixeiraSOBRE OS PARTICIPANTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 501

APRESENTAÇÃO

“- Morte, fuga, encantamento, eu nada posso contar, mas as bruxas, em segredo, estão, nisto, a trabalhar. Venha comigo, sem medo, unidos, vamos lutar! – Lutar como? Aonde vamos? – Ao Beco dos Enforcados! A esta hora ninguém anda por aqueles lados!” Maria de Lourdes Nunes Ramalho

Trata-se da obra “Por uma estética artística-feminista do Direito” que dá continuidade ao Projeto “Feminismos, artes e direitos das humanas”. Ladeia as obras “Maternidade e Direito” e “Advocacia Criminal Feminista” compondo uma trilogia do selo “Feminismos e Direito”.

O objetivo desta coletânea é trazer o feminismo como filtro discursivo que une o Direito à Arte, tomando como pressuposto de análise obras artísticas de cunho literário, audiovisual, musical, teatral, artes plásticas e dança. São 40 en-saios que permitem ver a face artística do direito a partir dos direitos das mulheres.

A arte é inspiradora, transdisciplinar e permite exercício hermenêutico dife-renciado, reflexivo, problematizador e cheio de possibilidades. A beleza de estudar a ciência jurídica ocorre pela perspectiva de abordagens telúricas. Permanecer numa discussão legislativa e enfadonha mata o Direito dentro de uma prisão sem saídas, sem oxigenação, sufocado, asfixiado sem enxergar uma luz na escuridão. Estudar o direito pela arte, tomando como filtro a abordagem do feminismo, apesar de não ser uma novidade, é um exercício novidadeiro, cheio de graça e de prazer.

Um brinde às autoras e aos autores que se reuniram neste trabalho coletivo e aos entusiastas leitores de uma obra que nasce cheia de esperança de que a arte e o feminismo possibilitem uma nova estética no Direito, dando uma rajada de novo ar que impregna um tempo de empatia, humanização, cuidado com o ou-tro, alteridade e belezas no caos do existir.

Vamos ao Beco das Enforcadas. Nesta hora, algumas andam por lá.

Ezilda Melo

João Pessoa-PB, maio de 2020.

PREFÁCIO

...em todas as lágrimas há uma esperança.

Simone de Beavoir

Os esforços constitutivos para desmontar um sistema arraigado de discri-minação contra as mulheres passou a compor com mais intensidade o cenário mundial a partir do século XX. Envolveram inúmeros países em movimentos re-volucionários ou emancipacionistas que se desenvolveram num cenário de triunfo para um processo que pretende excluir a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimen-to, gozo ou exercício dos direitos da mulher. Destaca-se a inspiração concebida pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra Mulheres, de 1979, com base na igualdade dos direitos humanos e liberdades fun-damentais nos campos político, econômico, social, cultural, civil ou em qualquer outro campo.

Reestruturar uma normatividade institucional e social, ainda sob o calor intermitente da violência contra às mulheres, muitas vezes a partir de um tecido social esgarçado, é um desafio que se propõe e que está em constante evolução.

Estamos a viver uma das maiores crises mundiais deflagradas pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19), que está espalhando sofrimento humano ao nível global. Segundo a Organização das Nações Unidas, com noventa países em confinamento, pelo menos 4 milhões de pessoas estão adotando medidas como o distanciamento e o isolamento sociais. Estas medidas protetoras, no entanto, tra-zem um perigo mortal, uma outra pandemia que está crescendo em intensidade nas sombras, a da violência contra as mulheres. Para Phumzile Mlambo-Ngcuka é uma tempestade perfeita para a manifestação do comportamento violento a portas fechadas. Mesmo antes da existência da COVID-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações no campo dos direitos humanos.

Em que pese o intuito meritório de disponibilização de todo o arcabouço protetivo e constitutivo de direitos para consagrar o princípio da igualdade e os meios apropriados à realização prática desse princípio, intensa é a controvérsia em relação à aptidão desses mesmos mecanismos para promover a materialização de um arranjo institucional que se consolide e conduza, à longo prazo, o processo e normalização democrática desejados. São comuns ainda as imputações de um

14 PrEFáCio

intuito de dominação cultural ou de uma mentalidade colonialista disfarçada de apoio institucional.

A persistência e a deficiência na concretude e proteção dos direitos da mu-lher de maneira eficaz podem ser sempre explicadas – mas não justificadas. Ainda persiste o medo de que tais diretos possam representar uma “ameaça aos valores e interesses sociais aceitos”.

Dedica-se a obra “Por uma estética artística-feminista do Direito” justa-mente ao enfrentamento deste tema. A coletânea associa reflexão teórica e crítica sobre temáticas que envolvem violência, luta, discriminação, liberdades, desigual-dade, estereótipos, ausência de representação política, dentre outras em seis atos: audiovisual, literatura, música, teatro, artes plásticas e dança, a partir de um viés descritivo e crítico do sistema social, político e jurídico.

Alinha-se a presente obra com a concepção mais moderna de que os direitos das mulheres são expostos, reivindicados, protegidos, promovidos, denunciados por meio da arte. O triunfo do modelo de Estado Democrático de Direito só será efetivo se o processo de construção de direitos proporcionar uma institucionalida-de afinada com os direitos das mulheres e dos valores democráticos – e, ainda que não seja essa a vivência recente do Estado em curso de (re)democratização, buscar essa sintonia é o objeto principal da obra.

“Por uma estética artística-feminista do Direito” é um meio poderoso de promoção dos direitos. É possível, através da beleza produzida pela arte, ver como as diferentes formas de sua exposição estão abordando questões como violência, empoderamento e liderança. Dramatizar a violência. Capacitar através da música. Preservação do conhecimento e das identidades. Uma das ferramentas mais signi-ficativas para transmitir a mensagem é a arte manifestada em todas as suas formas.

A obra apresenta uma linda forma de abordar os direitos, identidades e corpos das mulheres sob uma luz diferente. Mantém significados semânticos vivos e conectados com o simbolismo da luta pela igualdade e contra a violência e discriminação, decantados em sons e tons.

Não pretende ser um gesto simbólico, mas sim a representação de atos constitutivos tendo como meio a arte comunicada pela literatura, audiovisual, música, teatro, artes plásticas e dança. Em seu próprio caráter performativo, reside a possibilidade de reificar seu status com uma força poderosa e resiliente.

A coletânea é arte em evolução - investindo nos direitos das mulheres, surge como uma força em meio ao movimento oscilatório que conta a história da cons-

Carina BarBoSa Gouvêa 15

trução destes mesmos direitos – ora avançando, ora retrocedendo. E, em assim sendo, aponta um rumo a ser seguido num momento tão sensível quanto o atual, anunciando mudanças na narrativa hodierna relativa aos direitos das mulheres na sociedade. Pela beleza da arte, propõe a superação do discurso que os nega, resis-tindo e lutando por sua efetivação.

Sigam na descoberta e que a pesquisa alcance cada vez mais!

Maio de 2020

Carina Barbosa Gouvêa

Professora de Direito Constitucional da Universidade Federal de Pernambuco

Professora Permanente do PPGD/UFPE

Pós-doutorado pela UFPE, Doutorado em Direito pela UNESA

INTRODUÇÃO

LUTA DO FEMINISMO NOS DIAS ATUAIS: DA DISCRIMINA-ÇÃO DE GÊNERO E AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA

Alessandra Almeida Barros1

Larisse Leite Albuquerque2

Conceito tão vasto e complexo como o feminismo precisa, antes de tudo, ser compreendido para uma análise mais completa de sua contribuição para a sociedade como um todo. Hoje se fala em diversos tipos de feminismos, sendo vá-rias as suas classificações como: o feminismo conservadorista, liberal, dogmático--marxista, radical e o socialista (ZIRBEL, 2007), além de outras definições como o feminismo anarquista, ecofeminismo, feminismo existencialista, feminismo da diferença e o cyberfeminismo.

O feminismo conservadorista seria aquele mais preocupado com as relações entre as categorias de sexo, que sofre a dominação do homem sobre a mulher; o feminismo liberal é aquele que se dá pela luta da positivação dos direitos na lei, uma garantia formal de maneira a introduzir aos poucos a igualdade de direitos; o dog-mático-marxista, em que a desigualdade da mulher seria parte dos problemas sociais gerais; o radical, em que se infere a dominação do homem sobre a mulher em todos os âmbitos da sociedade, aqui as desigualdades são fundamentadas na diferença bio-lógica; o socialista, também amparada na teoria dogmático-marxista, onde se amplia o papel do capitalismo que auxilia na proteção das mulheres; feminismo anarquista, contrário a todas as formas de hierarquia e delegação de poderes; ecofeminismo, termo mais abrangente para indicar a superação da opressão feminina/ambiental, fazendo uma ligação entre o domínio por gênero e natureza; o existencialista, que defende a distinção entre sexo e gênero, vez que este último é conceito criado basi-camente pela sociedade, em que se defende querer igualar homens e mulheres não é a solução, inclusive referenciando o caráter positivo da diferença.

1 Alessandra Almeida Barros é Mestranda em Ciências Criminológico Forense pela Universidad de La Empresa (UDE), Montevidéu- Uruguai; pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras FESC- FAFIC (2017); pós-graduanda em Docência do Ensino Superior pela FESC-FAFIC; professo-ra de Pós-Graduação Lato Senso em Perícia Forense na UniAteneu Centro Universitário; ministrante de cursos, minicursos e palestras; tem experiência na área de Direito Penal, Psicologia Jurídica, Criminologia, Antropologia Forense e Mediação/Conciliação; com concentração na linha de pesquisa em Serial Keller e Psicopatas. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/Fortaleza - CE. E-mail: [email protected].

2 Larisse Leite Albuquerque é advogada licenciada, pós-graduada em Gestão Tributária pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras FESC- FAFIC (2018), pós-graduanda em Direito Processual Civil pela FESC-FAFIC. E-mail: [email protected].

20 LuTa Do FEminiSmo noS DiaS aTuaiS: Da DiSCriminaÇÃo DE GênEro E aS DivErSaS FormaS DE vioLênCia

Não obstante, todos esses conceitos são importantes para entender que os feminismos se baseiam e têm como raiz comum a luta pela superação da discri-minação entre homens e mulheres. Os contextos históricos são os mais diversos em todo o mundo. Para entender a luta do feminismo nos dias atuais, sobreleva compreender seus ideais e ações ao logo do tempo, que tanto modificaram a rea-lidade das sociedades, como contribuíram e influenciaram em todos os campos: político, econômico e social.

A partir dessas ações e reflexões resultou-se em uma postura social mais coadunada com estes princípios. Houveram denúncias, reivindicações de direitos, reflexões teóricas a partir das experiências das próprias mulheres3.

O primeiro esboço de feminismo se pode dizer que surgiu no século XIX, influenciado pela revolução francesa. Esta foi um ciclo revolucionário para todo mundo, marcado por efervescência política e social, tendo impacto duradouro também em outros países. Seus ideais influenciaram a universalização dos direitos sociais, vez que a grande desigualdade social na França foi o que enraizou os com-bates aos privilégios do clero.

Com as mudanças de pensamentos trazidas pela revolução, as mulheres aos poucos começaram a tomar consciência das desigualdades, muitas disfarçadas, outras bem explícitas. Foi aí que se passou a questionar os modelos sociais im-postos pelas diferentes sociedades. Este período ficou conhecido como a primeira onda do feminismo. Neste momento se começou a defender os movimentos su-fragistas, muitas manifestações ocorreram reivindicando o direito ao voto.

As principais reivindicações dessa primeira onda se estabeleceram pela luta dos direitos políticos, exigindo-se o direito da mulher de participar da vida políti-ca e pública como um todo, como também o direito de estudar. A segunda onda feminista ocorreu entre as décadas de 60 e 90, aqui também se pleiteia a igualdade social, porém muito mais intensificada. Se passa a questionar todas as formas de subjugação das mulheres, debatendo também sobre a liberdade sexual, maternida-de e direitos de reprodução. A ideia de coletividade foi aflorada, pois se percebeu que só assim poderiam ocorrer mudanças na sociedade, pela união das mulheres e todas tinham algo em comum: de alguma forma já haviam sido oprimidas.

3 Reflexão teórica e militância política tornaram-se marcas do feminismo. São marcas antigas, constantes e necessárias, impressas pela ação de mulheres de todas as idades, etnias e camadas sociais. Com o ingresso de feministas no mundo acadêmico, criaram-se grupos de pesquisadoras dedicadas à organização e à elaboração das teorias e práticas acumuladas pelo feminismo. A procura por novas maneiras de pensar a cultura e o co-nhecimento marca estes grupos. Os estudos feministas questionam os paradigmas das ciências e as definições tradicionais de sociedade, política, público, privado, autonomia, liberdade, etc. De igual forma, as experiên-cias de vida (e sujeição) das mulheres servem de base para a reflexão, impondo novos temas e metodologias de trabalho. (ZIRBEL, 2007, p. 18-19).

aLESSanDra aLmEiDa BarroS E LariSSE LEiTE aLBuQuErQuE 21

A terceira onda feminista se inicia na década de 90 e é dado de forma mais abrangente, pois se propõe a total liberdade de escolha das mulheres em relação a sua vida. Se começou a analisar as diversas formas de violência e dominação que uma mesma mulher pode sofrer. A importância de juntar ao máximo os debates e informações foi se aprimorando e trazendo, por consequência mais visibilidade à luta das mulheres.

Desse modo, imperioso destacar alguns momentos históricos primordiais: a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que defendia a igualdade jurí-dica entre homens e mulheres de 1791; criação do Dia Internacional de Luta das Mulheres em 1910, lembrado no dia 8 de março de cada ano; em 1918 a lei que permitiu o direito ao voto às mulheres inglesas, a Representation of the people act; a publicação da Convenção Interamericana Sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher em 1948; a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que publi-cou a Convenção nº 100 que determinou a obrigatoriedade de igualdade salarial entre homens e mulheres de 1951; a publicação da Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher de 1953; a Organização das Nações Unidas (ONU), que reconheceu o dia 8 de março como o Dia Internacional das Mulheres em 1975 e em 1993; a Declaração e Programa de Ação de Viena definiu que os direitos da mulher são inseparáveis dos demais direitos humanos.

Na segunda metade do século XX houve um crescimento cultural e educa-cional do ensino superior em todo o mundo, a grande massa de estudante havia constituído uma força política importante; neste contexto as mulheres também reaparecem buscando suas próprias reivindicações, as questões foram rediscutidas de acordo com os novos tempos, ainda assim, elas continuavam adstritas a domes-ticidade e subordinadas sexualmente.

No Brasil, na década de 1960, se observa os primeiros traços do feminismo, a sociedade estava passando por muitas transformações e a participação femini-na nos diferentes âmbitos aumentou consideravelmente tanto na participação do trabalho, como o fluxo de mulheres nas universidades cresceram. Houve também o surgimento da pílula anticoncepcional. Até mesmo as revistas dedicadas ao pú-blico feminino mudaram seu o conteúdo, não mais voltadas para culinária, corte e costura.

Inclusive o acervo bibliográfico nesse período foi acentuado, várias temáti-cas foram debatidas em livros de diferentes autoras, destacando-se Heleieth Saf-fioti, que se tornou referência no campo social, vez que prega a inserção da mulher no trabalho pelo sistema capitalista, debatendo então dois problemas importan-

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tes, as desigualdades sociais como um todo, as péssimas condições de trabalho e ao mesmo tempo a defesa de que a mulher tem direito a entrar no mercado de trabalho. Discutia ainda a situação salarial da mulher e a sua inferioridade.

No ano em que houve o golpe militar de 1964, a presença feminista em grupos e partidos políticos foram importantes. Apesar de não ter sido o foco das lutas naquele momento, era também uma forma de refletir o reconhecimento da mulher nos campos públicos e privados ao mesmo tempo em que se lutava pelo fim da desigualdade social e outras tantas questões importantes naquele contexto político. Com o ato institucional nº 5 iniciou-se o ápice da repressão ditatorial, muitos grupos saíram nas ruas para protestar contra o regime, causando o cance-lamento de inúmeras garantias4.

As pessoas contrárias ao feminismo sempre o deram uma conotação nega-tiva, acabando por denegrir o feminismo e por afastar outras mulheres do mo-vimento. Expressões que até hoje são utilizadas como: “mal-amadas”, “sapatão”, deturpando a ideia e o objetivo de tal movimento, evidenciando-o como se fosse uma guerra entre os sexos. Essas próprias significações dadas ao feminismo, os deboches e críticas feitas já é um tipo de violência contra as mulheres que denigre um movimento tão importante para a luta pela igualdade. Entretanto, aos pou-cos, os artigos começaram a mostrar exemplos de feministas como mulheres inte-ligentes e bem-sucedidas, desmistificando a imagem que a imprensa havia criado.

Criou-se assim, em setembro de 1975, na cidade do Rio de Janeiro, a pri-meira organização feminista do país: o Centro da Mulher Brasileira (CMB) e ti-nha como objetivo refletir e criticar a situação da mulher no Brasil. A partir deste, houveram mais encontros, mais publicações e grupos, o que acabou expandindo ainda mais as questões feministas.

Em 1990, inicia-se o feminismo contemporâneo, baseado nas questões da propriedade do corpo e das questões de gênero, com o discurso do “meu corpo, minhas regras” e “meu corpo biológico não dita minha escolha de gênero”. O foco principal passou a ser o corpo e a escolha de cada um, individualmente, do que fazer com ele. Ainda na mesma década, iniciava-se a luta contra o homicídio de mulheres, seja o motivo utilizado em nome da honra, seja pelo simples entendi-mento que a mulher deveria ser submissa ao homem.

4 Ainda no ano de 1968, no intuito de coibir as manifestações populares, o governo criou o Conselho Superior de Censura (a 22 de novembro) e instituiu o Ato Institucional nº 5 (no dia 13 de dezembro), aumentando os poderes do presidente e fechando o Congresso Nacional, as assembleias [sic] legislativas e as câmaras de vereadores. O AI-5 decretava, igualmente, a intervenção nos territórios, estados e municípios, o cancelamento dos mandatos eletivos, a suspensão (por dez anos) dos direitos políticos de opositores do regime, o cancela-mento das liberdades individuais e a proibição de reuniões e manifestações públicas. (ZIRBEL, 2007, p. 44).

Inclusive houveram manifestações nas ruas contra absolvições de homens que matavam suas próprias companheiras. Tal repercussão ganhou espaço até mesmo na rede televisiva, que começou a veicular séries sobre o tema. A partir de então as denúncias se expandiram. Instituições de apoio começaram a ser criadas com o objetivo de instigar as mulheres a delatarem seus companheiros, como também para criar propostas de como enfrentar tais problemas.

A discussão feminista no direito, o “feminismo jurídico” possui caráter fun-damental ao ser tratado no âmbito da criminologia e do direito penal, onde jun-tos, elaboram a necessidade de uma maior proteção penal para as mulheres. Dessa forma, a criminologia faz todo um estudo teórico-criminológico do fato e o di-reito penal, corroborando, vem para tipificar tal conduta como criminosa ou não.

No que diz respeito ao feminicídio, esse temo é utilizado para tratar de cri-mes de ódio, baseado no gênero. Algumas feministas defendem a temática dirigin-do-se somente as mulheres, por serem mulheres. O Projeto de Lei 8305/2014 que deu origem à Lei 13.104/2015 sofreu uma alteração, a substituição do vocábulo “gênero” para a expressão “condição do sexo feminino”. Entretanto, tal expressão vincula-se de igual forma as razões de gênero. Percebe-se que, a qualificadora não se refere especificamente a uma questão de sexo (biológico), mas a um conceito muito mais abrangente envolvendo uma questão de gênero.

A violência de gênero, como uma categoria mais geral, manifesta-se nas tradições culturais, o que envolve uma determinação social de papéis entre ho-mens e mulheres, com atribuições de importância diferenciadas, supervalorizando os papéis dos homens em relação aos papéis das mulheres. Resultado disso são reações violentas de domínio e de poder, cometidas por um homem contra uma mulher, dominados por esse sentimento de superioridade por ele e sentimen-tos de subordinação e submissão por elas, decorrentes de condições concretas, como condições físicas, psicológicas, sociais e econômicas. Condições estas que lhe são atribuídas socialmente: a mulher foi criada para cuidar dos filhos, da casa e do marido; a mulher foi criada para cozinhar, lavar, limpar; a mulher foi criada como objeto para satisfazer sexualmente o marido, quando ele tiver vontade de ter relação sexual, pouco importando à sua própria vontade; a mulher foi criada e educada dentro de casa, para somente sair com o seu pai ou com o seu marido, jamais sozinha, por ser propriedade destes; a mulher foi criada para casar jovem, unicamente com a finalidade de prover a prole para o seu marido e não porque estava e apaixonada ou amando, até porque se passasse da idade jovem, jamais casaria e seria um desgosto para a sua família. O homem foi criado para prover dentro da sua casa o sustento familiar, dar condições econômicas positivas. Os

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homens possuíam até o direito à vida em relação à mulher, podendo matá-la sem sofrem punição alguma, se fosse para salvar a sua honra, ou seja, o direito à honra do homem estava acima do direito à vida da mulher5.

As mulheres eram mortas por razões diversas, comuns, não vinculadas à violência doméstica (sentido estrito6 e sentido lato7) ou a questão de gênero. Hoje, temos o feminicídio como uma manifestação mais extrema da violência machis-ta, patriarcado8, fruto dessa desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres. Com o advento da Lei 13.104/2015, já mencionada anteriormente, o feminicídio, crime praticado contra a mulher, por razão da condição do sexo feminino, seja em virtude do menosprezo ou discriminação à condição de mulher, ou em virtude da violência doméstica e familiar contra à mulher que passou a ser uma circunstância qualificadora do crime de homicídio, punido com pena de reclusão de 12 a 30 anos, inclusive, etiquetado também como crime hediondo, Lei 8.072/90.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo no crime de feminicídio. Nor-malmente é homem, mas nada impede que seja uma mulher, exemplo, mulher que mata sua companheira homoafetiva. Entretanto, obrigatoriamente no polo passivo, deve ser uma pessoa do sexo feminino, independentemente da sua ida-de. Quanto à aplicação do feminicídio aos transexuais, tal assunto encontra-se ainda controverso. Para alguns doutrinadores ou intérpretes da lei mais conser-vadores, mesmo que o transexual, tenha realizado a cirurgia de transgenitação (neovagina), passando a ser considerado mulher para todos os efeitos de direito, não incidirá o feminicídio, pois, do ponto genético, continuará sendo do sexo masculino, mesmo após a realização cirúrgica da mudança de sexo, justificando

5 Nesse mundo dos homens, as mulheres foram postas para servir a casa dos homens, parir para os homens, cuidar dos filhos dos homens. Os homens repartiam entre si o controle sobre as mulheres, vigiando-as, repri-mindo-as, matando-as. As leis dos homens absolviam os homens de tudo. As mulheres eram dos homens. Su-miam-se, inclusive, na adoção do nome dos homens. Os homens institucionalizaram essa relação de poder. Na constituição, no direito civil, no código penal. Onde houvesse lei, tudo era regra vantajosa aos homens. Os legisladores, os juízes, todos eram homens cuidando dos homens. A instituição máxima de controle que os homens inventaram foi o casamento monogâmico. E ainda o temperaram com um tipo de submissão a que chamaram de amor. Os homens amavam com um cuidado controlador. As mulheres amavam com uma dedicação sacrificante. Um bom negócio para os homens. Esse negócio vem minguando. (ANDRADE, 2015, JusBrasil).

6 Violência doméstica em sentido estrito (os atos criminais enquadráveis no art. 152º: maus tratos físicos; maus tratos psíquicos; ameaça; coação; injúrias; difamação e crimes sexuais); (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - APAV).

7 Violência doméstica em sentido lato que inclui outros crimes em contato doméstico [violação de domicílio ou perturbação da vida privada; devassa da vida privada (imagens; conversas telefónicas; e-mails; revelar segredos e factos privados; etc. violação de correspondência ou de telecomunicações; violência sexual; sub-tração de menor; violação da obrigação de alimentos; homicídio: tentado/consumado; dano; furto e roubo)]; (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - APAV).

8 Patriarcado é a disposição das coisas todas, e dentre as coisas todas a mulher, de forma a servir os homens, como os homens quisessem ser servidos. Essa é a violência extremada: a criação pelos homens de um mundo dos homens para os homens. (ANDRADE, 2015, JusBrasil).

que no Direito Penal a equiparação só poderia ser feita se contida expressamente em lei, em respeito ao princípio da estrita legalidade. Para alguns doutrinadores como Alice Bianchini, utilizando-se da analogia, defende fortemente a ideia de que o transexual que realizou a cirurgia de mudança de sexo pode sim ser vítima do crime de feminicídio. Aos homossexuais e aos travestis, não há tal discursão, não incidindo o feminicídio, haja vista que, o sexo físico continua sendo o sexo masculino.

O feminicídio pode se dar na modalidade tentada ou consumada e ser pra-ticado com dolo direito ou eventual. Sua qualificadora é subjetiva, relacionada a esfera do agente “razões do sexo feminino”, portanto, não comunica se even-tualmente o crime tiver ocorrido com coautoria ou participação, salvo quando elementares do crime. Não é admitido no feminicídio o homicídio privilegiado--qualificado, pois, para que haja a incidência de tal qualificadora se faz necessá-rio a objetividade como ocorre no homicídio, entretanto, como já mencionada anteriormente a qualificadora no feminicídio é subjetiva, o que impossibilita a existência de um feminicídio privilegiado.

A Lei 13.104/2015, previu três causas de aumento de pena: I – durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de quatorze anos e maior de sessenta anos ou com deficiência9; III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

O motivo da primeira causa de aumento da pena está no maior estado de fragilidade e sensibilidade, tanto física como psíquica que a mulher se encontra, o que causa mais repúdio ainda na conduta do agente. Quanto ao termo inicial da contagem do prazo a doutrina é divergente. Alfredo Molinario defende que com o desprendimento do feto das entranhas maternas é que há o nascimento com-pleto e total. Magalhães Noronha defende que, mesmo que tenha ocorrido ainda o desprendimento do feto das entranhas maternas, mas, havendo a dilatação do colo do útero, já se pode contar o início do nascimento. Soler, defende que, o termo inicial da contagem do prazo se dá com o começo das dores do parto. Luiz Regis Prado, defende que o nascimento se dá pelo começo da operação, com a

9 O conceito de deficiência está previsto no Decreto n.º 3.298/99, que regulamentou a Lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, in verbis: Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se: I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; II – deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não per-mitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e III – incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmi-tir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida. No art. 4º são conceituadas as diversas categorias de deficiência (física, auditiva, visual, mental e múltipla). (PLANALTO, 1999).

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execução efetiva da técnica (incisão abdominal) ou pela intervenção cirúrgica, que é denominada de cesárea.

O motivo da segunda causa de aumento de pena é por também se encon-trar em estado de fragilidade, tanto a menor de quatorze anos, como a maior de sessenta anos e a portadora de deficiência, seja ela físico, auditivo, visual, mental ou múltipla, são pessoas consideradas frágeis, o que causa mais repúdio ainda na conduta do agente, agindo com tamanha covardia. No terceiro caso de aumento de pena trazido pela lei, o seu motivo está no sofrimento que o agente causa nos ascendentes ou descendentes, ao tê-los que forçar a ver os atos executórios do crime de feminicídio, gerando para estes, transtornos psicológicos imensuráveis. Vale ressaltar neste último caso que, a presença do ascendente ou descendente não precisa necessariamente ser física no local do ocorrido, configurando assim a incidência desta terceira causa de aumento de pena com a utilização de mecanis-mos do meio digital, por exemplo, chamadas de vídeo via WhatsApp, Facebook, Skype, ou mesmo que o esteja apenas escutando/ouvindo por uma ligação telefô-nica, dentre outros meios digitas.

Ao fazer uma análise hermenêutica10 do artigo 121, parágrafo segundo, alínea “a”, do Código Penal Brasileiro, percebe-se que a violência doméstica se manifesta em diferentes tipos de abusos, são eles: violência emocional, social, física, sexual, financeira e perseguição, como descreve a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - APAV11, tornando o contexto da vitimização muito mais abrangente. Ao delinear,

10 Hermenêutica é uma palavra que provem do grego que deriva de Hermes que tinha capacidade de falar com os deuses ou os mortais, deus da mitologia grega, filho de Zeus e de Maia, significa a arte ou técnica de inter-pretar e explicar um texto ou discurso. É a ciência da interpretação, que se volta para o estudo da interpretação dos textos do direito positivo, uma ciência que tenta elucidar como se da tal interpretação. A tradição de her-menêutica com a possibilidade de traduzir a linguagem de um para o outro, ela dá a dimensão de interpretar o direito, tentar compreender mecanismos normativos, mecanismos sistemáticos, institucionais, que revelariam em casos concretos qual seria a diretriz do direito para estas mesmas circunstancias. A hermenêutica jurídica, tem uma história variável e o jeito pelo qual tomamos o direito. Por fim, para Carlos Maximiliano, a herme-nêutica tem por objeto “o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito”. Dito de forma mais simples: “Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar” (MAXIMILIANO, 2003, p. 1).

11 violência emocional: qualquer comportamento do(a) companheiro(a) que visa fazer o outro sentir medo ou inútil. Usualmente inclui comportamentos como: ameaçar os filhos; magoar os animais de estimação; humi-lhar o outro na presença de amigos, familiares ou em público, entre outros.

violência social: qualquer comportamento que intenta controlar a vida social do(a) companheiro(a), através de, por exemplo, impedir que este(a) visite familiares ou amigos, cortar o telefone ou controlar as chamadas e as contas telefónicas, trancar o outro em casa.

violência física: qualquer forma de violência física que um agressor(a) inflige ao companheiro(a). Pode traduzir-se em comportamentos como: esmurrar, pontapear, estrangular, queimar, induzir ou impedir que o(a) companheiro(a) obtenha medicação ou tratamentos.

violência sexual: qualquer comportamento em que o(a) companheiro(a) força o outro a protagonizar atos se-xuais que não deseja. Alguns exemplos: pressionar ou forçar o companheiro para ter relações sexuais quando este não quer; pressionar, forçar ou tentar que o(a) companheiro(a) mantenha relações sexuais desprotegidas; forçar o outro a ter relações com outras pessoas.

violênciafinanceira: qualquer comportamento que intente controlar o dinheiro do(a) companheiro(a) sem que este o deseje. Alguns destes comportamentos podem ser: controlar o ordenado do outro; recusar dar dinheiro ao outro ou forçá-lo a justificar qualquer gasto; ameaçar retirar o apoio financeiro como forma de controlo.

“razões da condição do sexo feminino” podemos perceber que está diretamente liga-do ao fato de o crime envolver violência doméstica e familiar, fazendo-se necessário para que haja a aplicação da qualificadora ao verificar a razão da agressão se está ou não baseada na questão do gênero, chegando assim na Lei Maria da Penha.

A Lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha, tornou mais rigorosa a punição para agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto. A referida lei trás no seu artigo 5º o contexto de que a violência doméstica e familiar é fruto de qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano, seja ele moral, material ou patrimonial. O feminicídio por sua vez, não abrange tal conceito de uma forma tão ampla, não se confundindo com a violência dentro do âmbito doméstico e familiar por qualquer ação ou omissão. Pode haver, no fe-minicídio, uma violência no âmbito doméstico, familiar ou relação íntima de afe-to, mas, desde que, a razão seja pela condição do sexo feminino, limitando assim, a uma violência baseada no gênero, em contexto caracterizado por uma relação de poder e submissão onde a mulher se encontre em situação de vulnerabilidade em relação ao homem. Assim, matar uma mulher no âmbito doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto sem menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, incidirá a Lei Maria da Penha, já, se a conduta do agente ao matar uma mulher no âmbito doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto for motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, incidirá a Lei do Feminicídio. As medidas protetivas da Lei Maria da Penha pode-rão ser aplicadas às vítimas do crime de feminicídio, na sua modalidade tentada.

A Convenção Sobre Eliminação De Todas As Formas De Discriminação Contra A Mulher, de 1979, ratificada no ano de 1984, também denominada de Convenção da Mulher é o primeiro tratado a nível internacional a dispor vasta-mente sobre os direitos humanos da mulher, estipulando medidas para alcançar a igualdade entre homens e mulheres, em todos os aspectos da vida política, social, econômico e cultural.

É no artigo 1º da Convenção da Mulher que se encontra a conceituação de discriminação contra a mulher12. O Brasil assumiu um compromisso interna-

perseguição: qualquer comportamento que visa intimidar ou atemorizar o outro. Por exemplo: seguir o(a) companheiro(a) para o seu local de trabalho ou quando este(a) sai sozinho(a); controlar constantemente os movimentos do outro, quer esteja ou não em casa. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – APAV).

12 Artigo 1º: Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualda-de do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (PLANALTO, 2002).

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cional quando ratificou tal convenção, desta forma a proibição de discriminação contra a mulher, bem como as sanções impostas nos casos de discriminação de-vem seguir todos os meios possíveis e aceitos pelo direito brasileiro, sem dilações.

A morte em relação ao menosprezo à condição de mulher, ocorre quando o agente pratica o crime por nutrir pouca ou nenhuma estima ou apreço pela mulher, configurando assim o desprezo, a depreciação e a desvalorização. A forma como a mulher era vista, se exigia submissão, sofrendo repressão e violência por ser mulher, por razões da condição do sexo feminino.

É sob a influência dos movimentos feministas que as mulheres artistas e os seus trabalhos na arte contemporânea continuam a se desenvolver, expressando em suas artes aspectos da personalidade individual e certas dimensões particulares do gênero como as funções biológicas do sexo feminino ou a maternidade. Essa relação entre arte e feminismo venceu na arte contemporânea, com as suas mais variadas in-terpretações no que diz respeito as questões de corpo, gênero, sexualidade, identida-de, autobiografia e memória. Venceu, porque enfrentou inúmeras lutas preconcei-tuosas e críticas conservadoras, teóricas e do público, bem como questionamentos da própria arte, e, a arte feminista ainda enfrenta obstáculos por encontrar resis-tência na atualidade, no que se refere ao mercado das artes visuais, sendo notório também a relutância de algumas artistas em se assumirem feministas.

Mesmo na arte feminista contemporânea não se ouve falar muito em artistas negras . Não são discutidos com tamanho enfoque questões de políti-cas públicas, educacionais, inclusão artística e representatividade. Os padrões de beleza impostos pela mídia ainda continuam sendo os clássicos, com corpos es-culturais, peles sedosas e cabelos brilhantes, padrões preponderantemente apre-sentados como pré-vanguardarista e naturalista, desde as relações mais simples as mais complexas, aspirando a perfeição diária com lutas contra a balança e o espelho com dietas absurdas e cirurgias plásticas. Tais padrões são frutos de uma mídia capitalista, para um real e considerável aumento da indústria e no mercado da beleza, esquecendo a beleza natural. É nesse último ponto que a arte feminista vem tentando desmistificar com maior fervor.

A arte feita por mulheres sobre as mulheres abordam temáticas como estupro, racismo, desigualdade no trabalho e nas condições de trabalho . A arte feita por mulheres sobre as mulheres saiu da mesmice dos panos e bor-dados, ganhou as telas dos cinemas, novelas, minisséries, seriados e peças teatrais. Ganhou lugar nas grandes galerias com pinturas seja a óleo, à lápis, grafite e exposições fotográficas. Ganhou voz nas músicas, nas danças, nos palcos

das artes visuais. A arte feita por mulheres sobre as mulheres vem se tornan-do protagonista nas diferenças culturais, éticas, espécies e de gênero . A arte como uma forma de lutar pelos direitos, para reivindicar visibilidade, para desconstruir padrões impostos pela sociedade machistas e tornar o mundo mais igualitário .

Discussões sobre o feminismo são relevantes e importantes para a socieda-de, ao passo em que resulta em discussões positivas e compreensivas das diferenças sociais, políticas e econômicas sofridas pelas mulheres ao longo dos anos. Uma das formas de manifestação do feminismo se dá através das artes. A arte feminina, categoria de arte associada ao movimento feminista dos anos de 1970 e 1980, se diversificam em várias atividades como a pintura, arte performática, arte concei-tual e corporal, arte em fibra, vídeos e cinemas por exemplo. Tudo fruto do deno-minado “empoderamento feminino” que vem popularizando o mundo das artes, usando o seu poder de influência para disseminá-lo, incorporando-se as novas mídias e novas perspectivas.

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CAPÍTULO 01

ÁUDIOVISUAL E DIREITOS DAS MULHERES

AS SUFRAGISTAS: UMA PERSPECTIVA DO VOTO FEMI-NINO NO BRASIL

Daniela Baumgarten1

Joana Mutti2

Lize Borges3

A política se construiu, historicamente, sob a ótica masculina. Em diversos países do mundo, inclusive no Brasil, a participação feminina nos parlamentos e instâncias públicas é minoritária, ainda que as mulheres representem mais de 50% do eleitorado. Segundo Lopes4, essa luta pela participação no âmbito político no Ocidente não é recente e remonta há, pelo menos, três séculos, desde a Revolução Francesa e Industrial.

A absorção do trabalho feminino pelas indústrias, a partir do segunda me-tade do século XVIII, junto com as profundas transformações fomentadas pela Revolução Industrial, trouxeram em seu bojo uma série de reivindicações por parte dos trabalhadores. Submetidas a longas jornadas de trabalho, assédio moral e sexual, condições insalubres e salários significativamente menores que o dos homens, as mulheres começaram a se unir para lutar contra as injustiças sociais. Neste contexto, diz Lopes5, ganha forma um importante movimento que vai se tornar um marco no processo de emancipação feminina em todo o mundo: o movimento sufragista.

A manifestação coletiva em prol do direito de as mulheres participarem da vida pública através do voto, interferindo nas decisões políticas de seu país, sofreu resistência de inúmeros setores da sociedade. A imprensa tratou de estig-

1 Psicóloga atuante da área clínica, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Clínica da Pessoa e da Família, aluna especial do mestrado em psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

2 Economista marxista, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra em economia pela Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA).

3 Advogada atuante na área de família e sucessões, especializada em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica de Salvador, doutoranda em direito pela Universidade Federal de Bahia, integrante da Comissão Nacional de Direito e Arte do IBD-FAM, presidente da comissão de Direito Internacional do IBDFAM/BA, integrante do International Society of Family Law (ISFL), pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direito e Sexualidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora de Direito Civil da Faculdade Batista Brasileira. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7911895641077940. E-mail: [email protected]

4 Lopes, Beliza Stasinski. (2018) A participação política das mulheres: do movimento sufragista as cotas eleitorais de gênero no Brasil. Rebeh - Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S.l.], v. 1, n. 03, p. 58-72, oct.

5 Lopes, Beliza Stasinski. (2018) A participação política das mulheres: do movimento sufragista as cotas eleitorais de gênero no Brasil. Rebeh - Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S.l.], v. 1, n. 03, p. 58-72, oct.

34 aS SuFraGiSTaS: uma PErSPECTiva Do voTo FEminino no BraSiL

matizá-las, classificando-as como arruaceiras, baderneiras, rancorosas e vingativas. Muitas mulheres foram presas nessa época por não se submeterem à dominação patriarcal (Karawejczyk, 2014; Lopes, 2018)6.

No Brasil essa rejeição não foi diferente. Desde o final do século XIX, já se debatia no país a possibilidade de estender o direito ao voto às mulheres, e em 1981, essa discussão já havia chegado ao Congresso Nacional. Contudo, os primeiros votos só foram concedidos às mulheres em 1927, apenas pelo estado do Rio Grande do Norte. O sufrágio universal foi alcançado somente em 1932, através do Decreto nº. 21.076 do governo Getúlio Vargas. Ainda assim, mesmo diante das resistências encontradas, o Brasil é considerado um dos países pioneiros no debate em torno do sufrágio feminino na América Latina (Karawejczyk, 2014).

O movimento sufragista é considerado um grande marco na luta política das mulheres. Contudo, quase 90 anos após o sufrágio ter sido alcançado no Brasil, as desigualdades de gênero estão longe de serem superadas. São poucas as parlamentares femininas em exercício e, desde a Proclamação da República, o Brasil teve apenas uma mulher exercendo a chefia do Estado. Essa mulher, a ex-presidente Dilma Roussef, não conseguiu chegar ao final do seu segundo man-dato, sofrendo um impeachment em 2016. Desde então, cresce uma onda con-servadora no país que fortalece esse cenário de sub-representatividade feminina na política nacional (Sanchez, 2016)7.

A atual conjuntura de reduzida participação feminina na esfera política é contrastante com o fortalecimento dos movimentos feministas, que ganham força nas ruas, na internet e em alguns setores midiáticos (Felgueiras, 2017)8. Diante do exposto, este artigo tem como objetivo traçar um panorama a respei-to da participação política da mulher no atual cenário brasileiro. Para tanto, foi escolhido o filme “As Sufragistas”, lançado em 2015, que aborda o movimento sufragista na Grã-Bretanha, e tenso sido realizada uma breve descrição de como este movimento se iniciou no Brasil. Também foram analisadas as leis posteriores ao sufrágio e suas repercussões sobre a vida pública das mulheres, com seus im-pactos na atualidade.

6 Ibidem. Karawejczyk, M. (2014) Os primórdios do movimento sufragista no Brasil: o feminismo “pátreo” de Leolin-

da Figueiredo Daltro. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 40, n. 1, p. 64-84, jan.-jun.7 Sanchez, Beatriz Rodrigues. Gênero e política: uma análise da atual conjuntura brasileira. Em Debate: Perió-

dico de Opinião Pública e Conjuntura Política, Belo Horizonte, ano 8, n. 5, p. 42-46, jul. 2016.8 Felgueiras, Ana Cláudia M. Leal. (2017) Breve Panorama Histórico do Movimento Feminista Brasileiro. Das

Sufragistas ao Ciberfeminismo. In: Revista Digital Simonsen, Nº 6, Maio.

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1. O SUFRÁGIO GANHA AS TELAS As Sufragistas é um filme de produção franco-britânica lançado em 2015,

dirigido por Sarah Gravon e escrito por Abi Morgan, que já haviam trabalhado juntas em Brick Lane (2007). Além da equipe técnica, a obra conta com uma expressiva presença de mulheres em seu elenco, entre elas as premiadas atrizes Helena Bonham Carter e Meryl Streep, que vivem duas inspiradoras ativistas do movimento sufragista britânico.

Baseada em fatos reais, a película se passa na Grã-Bretanha, no início do século XX e retrata a luta de um grupo de mulheres contra a opressão machista e política da época, em especial pela conquista do direito ao voto. A obra mistura realidade e ficção ao contar a história pela perspectiva da protagonista, Maud Watts (Carey Mulligan), uma esposa obediente e trabalhadora passiva, submetida a precárias condições de trabalho em uma lavanderia fabril desde os sete anos de idade. Apesar do trabalho insalubre, Maud nunca se permitiu questionar sua posi-ção ou a de outras mulheres na sociedade. O filme acompanha o seu despertar po-lítico e tomada de consciência das desigualdades e injustiças sociais. À medida que sua indignação cresce, o público pode acompanhar a transição da personagem, de esposa e trabalhadora submissa para militante comprometida e determinada.

Embora Maud seja uma personagem fictícia, o filme retrata algumas figuras históricas, como Emmeline Pankhurst (personagem de Meryl Streep), uma das fundadoras do movimento sufragista britânico, e Emily Davidson (vivida pela atriz Natalie Press), que se tornou um dos ícones da causa após a sua morte em 1913. Destaca-se a excelente reconstrução de época realizada pela equipe técnica, que realizou um amplo trabalho de pesquisa, acessando diários das sufragistas, relatos não publicados e arquivos policiais, a fim de retratar com fidelidade o contexto da época.

É interessante notar que o filme retrata um período de radicalização do movimento sufragista, quando as mulheres, após anos de militância pacífica sem resultados satisfatórios, resolvem tornar suas reivindicações mais agressivas, incen-tivadas pela liderança intelectual de Parkhurst. Nesse contexto de protestos fre-quentes, violência e prisões constantes, o olhar da maior parte da sociedade para as militantes é de desaprovação. Em determinado momento do filme, o marido de Maud se dirige a ela, dizendo: “você é uma sufragista agora, uma arruaceira”, denotando todo o sentido pejorativo que o termo recebia na época.

Apesar da depreciação social que sofre a partir do momento em que passa a se tornar mais consciente politicamente – culminando na sua expulsão de casa e

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na perda do direito de ver o filho – Maud se alia às outras mulheres na luta pelo direito ao voto. Essa união feminina é um dos pontos mais interessantes do filme e retrata um sentimento bastante conhecido no movimento feminista – a sororida-de e o acolhimento entre mulheres, que se apoiam mutuamente, tanto no aspecto político como no privado.

O desfecho dessa luta é conhecido do grande público – as mulheres britâ-nicas alcançaram, parcialmente, o direito ao voto em 1918 – mas o sentimento de revolta diante de todos os sacrifícios que tiveram que ser feitos até essa conquista ser concretizada se estende para além deste recorte histórico. Ao final da película, fica claro que determinados direitos são inegociáveis e que a luta feminina pela garantia de seus direitos políticos permanece viva, fazendo-se necessária, ainda, em diversos lugares do mundo.

2. A VIDA IMITA A ARTE: A HISTÓRIA DAS SUFRAGISTAS BRASILEIRAS

“O mal da ficção é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz senti-do.”, já dizia o escritor George Orwell9. Será que a arte, figurada em filmes, livros, obras, música é somente uma extensão que nos leva a outra dimensão da vida, de forma atemporal e sem nenhuma correlação? Como não se assustar quando pensa-mos que hoje vivemos em um mundo com constante aprisionamento de ideias, re-pressão política e manipulação de dados, tal como descrito na obra 1984 do escritor britânico George Orwell? Até mesmo o filme “As sufragistas” que retrata uma luta real do século passado nos faz pensar o quanto, ainda hoje, as mulheres precisam lutar para garantir direitos. É certo, a vida parece mesmo se inspirar na arte. Talvez sem a arte seria impossível ter dimensão do que foi e é a nossa vida – do real sentido da nossa luta.

Segundo Nascimento, Oliveira e Frías,10 assim como aconteceu na Inglater-ra, o movimento das mulheres em busca de direitos começou com a reivindicação ao direito pelo voto. No século XIX, as mulheres brasileiras ainda eram restritas à esfera privada, sendo-lhes negado o acesso a certos locais públicos, além de terem direitos civis e sociais negados. A busca por direitos políticos significava ingres-sar em um espaço essencialmente masculino, o que acarretou muita resistência por parte destes. No final do século XIX, as mudanças estruturais que marcaram

9 Orwell, George (2018). O gênio e a deusa. São Paulo: Editora Globo, selo Biblioteca Azul.10 Nascimento, M. I. G, Oliveira, E. B., Frías, J.A (20--). Informações arquivísticas relacionadas à luta pelo

sufrágio feminino nos arquivos do legislativo brasileiro. Disponível em< http://seminariohispano-brasileiro.org.es/ocs/index.php/viishb/viishbucm/paper/view/418/17> . Acesso em 28 jul 2019.

o país sinalizavam transformações pequenas, porém significativas, uma vez que muitas mulheres já frequentavam a escola e recebiam a educação formal. Foram essas mulheres de classe média, inspiradas pelos movimentos internacionais, que iniciaram a luta pelo sufrágio no Brasil.

Com o fim da Monarquia e instauração da República, criou-se a expecta-tiva de que o direito ao voto seria garantido para as mulheres. No alvoroço desse movimento, o jornal “O sexo feminino”, dirigido por mulheres, mudou de nome para “O Quinze de Novembro do Sexo Feminino”. Infelizmente, com a nova constituinte pós promulgação da República, o sufrágio considerado “universal” foi garantido apenas para maiores de 21 anos, excluindo-se mendigos, analfabe-tos, religiosos e mulheres. Da mesma forma, o voto feminino foi discutido no Parlamento Nacional e negado.

A derrota da luta das mulheres agregou novos militantes à causa, incluindo homens que tomavam conhecimento das conquistas femininas no campo inter-nacional. Em 1910, Leolinda Figueiredo Daltro e Gilka Machado criaram o Par-tido Republicano Feminino – PRF, que tinha como principal objetivo a luta pelo sufrágio. A ousadia desse partido estava no fato de ser um partido constituído por mulheres que não possuíam direitos políticos, pois colocava em evidência aquelas que sempre viveram à margem da sociedade. Movidas por essa organização, outras surgiram, como por exemplo a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino filia-da à Aliança Internacional do Voto Feminino, e a Aliança Nacional de Mulheres, afirma Nascimento.11

O movimento sufragista ganhou uma forma mais estruturada em várias frentes, incluindo reivindicações com o Poder Executivo. Foi nesse momento que o movimento ganhou o apoio do então presidente Getúlio Vargas. As feministas brasileiras foram recebidas pelo presidente, indicando Bertha Lutz12 para partici-par da comissão de redação do Novo Código Eleitoral. O novo código foi insti-tuído pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 prevendo o voto não obrigatório para mulheres maiores de 21 anos.

Na discussão da nova Constituição de 1934, Bertha Lutz foi mais uma vez convidada para participar da comissão do novo texto, dessa vez já com a possibi-lidade legal de participação de mulheres como elegíveis e eleitoras. Nas eleições

11 Nascimento, M. I. G, Oliveira, E. B., Frías, J.A (20--). Informações arquivísticas relacionadas à luta pelo sufrágio feminino nos arquivos do legislativo brasileiro. Disponível em< http://seminariohispano-brasileiro.org.es/ocs/index.php/viishb/viishbucm/paper/view/418/17> . Acesso em 28 jul 2019.

12 Bertha Lutz foi uma ativista feminista, bióloga e política brasileira que fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Tendo estudado na Europa durante alguns anos da sua vida, no seu retorno ao Brasil trouxe consigo ideias revolucionárias do movimento sufragista inglês (Nascimento et al, 20--)

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de 1933, elegeram-se mais de duzentos e cinquenta e quatro constituintes, mas só uma mulher foi eleita, Carlota Pereira Queirós. Apesar de pouco representada, a Constituição de 1934 garantiu o voto para eleitores brasileiros maiores de 18 anos de ambos os sexos. Na Constituição de 1946, manteve-se o voto para ambos os sexos, mas dessa vez de forma obrigatória.

2.1 QUEM FOI LEOLINDA FIGUEIREDO DALTROLeolinda Figueiredo Daltro Mamãe – nosso ourinho 14/07/1859 04/05/1935 Precursora do verdadeiro feminismo pátrio Propugnadora da nobilitação dos humildes e humanização dos selvícolas.

Epitáfio de Leolinda Figueiro Daltro. 13

Quando se busca o nome de Leolinda Figueiredo Daltro, logo se encontra a associação deste com o nascimento do Partido Republicano Feminino (PRF), a primeira organização brasileira na luta pelos direitos femininos. Quais anseios se escondiam por trás na história de vida dessa mulher tão marcante na história do nosso país que a tornou a “verdadeira precursora do feminismo pátrio?”

Segundo Karawejczyk14, Leolinda Daltro nasceu na Bahia em 1859, ca-sou-se cedo e teve dois filhos. Logo se separou do marido e buscou em si uma motivação para estudar e se tornar professora. Aos 24 anos, casou-se novamente e se mudou para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Nessa cidade, começou a ministrar aulas, já demonstrando interesse na busca por uma educação laica. Daí, percebe-se a notoriedade que Leolinda ganhou ao defender a incorporação dos índios brasileiros à sociedade através da educação. Tendo tido contato com representantes do governo, Leolinda conseguiu arre-cadar fundos e colocar em prática por quatro anos seu projeto de alfabetização indígena.

Apesar de não ter conseguido um espaço representativo dentro do governo para levar o seu projeto de alfabetização indígena adiante, essa rejeição lhe deu consciência de que ela era mantida fora dessa esfera por ser mulher. Daltro sofreu inúmeras sujeições para apresentar projetos, participar de debates por conta de

13 Karawejczyk, M. (2014) Os primórdios do movimento sufragista no Brasil: o feminismo “pátreo” de Leolin-da Figueiredo Daltro. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 40, n. 1, p. 64-84, jan.-jun.

14 Ibidem.

sua condição sexual, surgindo assim a necessidade de realizar ações que dessem visibilidade às mulheres, afirma Karawejczyk.15

As dificuldades encontradas deram-lhe a certeza de que não conseguiria realizar seus intentos sem engajar-se na luta pelos direitos políticos das mulheres, já que era a sua condição sexual o maior empecilho à realização de seus anseios (Karawejczyk, 2014)16.

Já voltando a sua atenção para a emancipação das mulheres, em 1910 Leo-linda Daltro fundou o Partido Republicano Feminino (PRF) com a ousadia de ser composto por mulheres, ou seja, aquelas sem voz no meio político. Dentre as disposições do PRF, constava que o partido pretendia: 1) congregar a mulher brasileira na capital federal e em todos os Estados do Brasil, promovendo a coo-peração entre as mulheres na defesa das causas relativas ao progresso pátrio e, 2) pugnar para que sejam consideradas extensivas às mulheres as disposições consti-tucionais da República dos Estados Unidos do Brasil, desse modo incorporando-a na sociedade brasileira, diz Karawejczyk.17 A inquietação de Daltro e o desejo de dar voz às mulheres foi além, e nesse mesmo ano, foi criado o jornal intitulado “A política”, que debatia questões sobre a mulher, a catequese laica, educação indíge-na, além de fazer propaganda do Partido Republicano Feminino (PRF).

Segundo Karawejczyk,18 a luta de Leolinda Daltro pela emancipação fe-minina através do sufrágio fez com que a sua imagem fosse por vezes associada à da sufragista inglesa Emmeline Pankhurst, sendo Daltro conhecida por “Mrs. Pankhurst brasileira”. Tal comparação, entretanto, foi usada de forma pejorativa para abafar o movimento latente das mulheres ao serem tidas como baderneiras. Isso, porém, não foi suficiente para que Leolinda e outras mulheres dessem mais voz a sua causa. Em 1917, o voto feminino voltou a ser pauta no Parlamento e a própria militante chegou a ser homenageada pelo carnaval de rua carioca.

É impossível dissociar as homenagens a Leolinda com a força, incômodo e necessidade de mudança que o movimento causava. Segundo Karawejczyk,19 esse movimento foi fundamental para registrar o primeiro passo da conquista das mu-lheres pelo voto. Nesse momento foi apresentada uma emenda à nova lei eleitoral solicitando a inclusão das mulheres no rol de eleitores no Brasil.

Aqui se contou uma parte da história da luta das mulheres por reconheci-mento e garantia de direitos no Brasil, dando corpo, imagem e reconhecimento

15 Karawejczyk, M. (2014) Os primórdios do movimento sufragista no Brasil: o feminismo “pátreo” de Leolin-da Figueiredo Daltro. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 40, n. 1, p. 64-84, jan.-jun.

16 Ibidem.17 Ibidem.18 Ibidem.19 Ibidem.

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a essa mulher importante para o surgimento desse movimento no país. A nossa história precisa ser revisitada se quisermos mudar os resquícios de desigualdade que perduram até hoje e para não esquecermos o nosso papel nessa luta – tão fadado a ser desmerecido. “Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas”, diz a escritora Lygia Fagundes Telles20. Fica a mensagem da nossa resistência.

3. O VOTO FEMININO: A PERSPECTIVA LEGISLATIVA Como relatado nos tópicos anteriores, o movimento feminista no Brasil foi

decisivo na conquista de diversos direitos que não eram concedidos às mulheres, sendo certo que o sufrágio foi um marco na busca da emancipação das feminina, sobretudo em relação aos seus direitos civis e sociais discutidos até os dias atuais. 

Dito isso, os debates calorosos durante a Constituinte de 1890 colocaram o voto feminino em pauta, sendo certo que todas as propostas no sentido de contemplar a mulher como eleitora no texto constitucional não lograram êxito. Sobreveio, portanto, a Constituição Federal de 1891, que em seu texto definia o eleitor como “os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei”21, tendo excluído dentre outros os mendigos, analfabetos e religiosos. 

A exclusão da mulher não foi expressa, mas o fato de nenhuma das propos-tas de emenda de inclusão do voto feminino ter sido aprovada, implicou em sua exclusão. Afinal, a sociedade do final do século XIX sequer considerava a mulher como cidadã apta a se alistar ao voto. Não obstante, a Constituição Federal de 1891 proibia que fossem eleitos os cidadãos que não poderiam se alistar. Em ou-tras palavras, não era possível que a mulher votasse, tampouco fosse votada.

Para ilustrar como a mulher era vista pela sociedade do final do século XIX e início do século XX, vale citar o Código Civil de 1916, que foi elaborado nesse cenário machista e patriarcal. Tem-se, pois, que o Código Civil à época acabou por submeter grande parte dos direitos civis da mulher à vontade do homem - do

20 Telles, Lygia Fagundes (2010). A disciplina do amor: Memória e ficção. São Paulo: Companhia das letras.21 Art 70 da Constituição Federal de 1932: São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na

forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos; 2º) os analfabetos; 3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denomina-

ção, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual. § 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis. Brasil (1981). Constituição da República dos Estados Unidos

do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em 01 ago 2019.

marido, se casada ou do pai e irmãos, se solteira. Basta dizer que a mulher casada foi incluída no rol das incapacidades, sendo relativamente inapta à prática de determinados atos da vida civil, como trabalhar, herdar, cuidar dos filhos sem a concordância do marido.22

Mesmo com o advento da Constituição Federal de 1891, foi realizada a tentativa de regulamentar o voto feminino por lei própria. Assim, em 1919 o Se-nador Justo Chermont (PA) apresentou um projeto de lei (PL nº. 102) com esse propósito, mas apesar de retomar as discussões do sufrágio feminino, o projeto não avançou, não tendo sido convertido em lei. 

Vale dizer que à época o Brasil era bastante federalizado, sendo certo que al-guns estados tinham competência para legislar em matéria eleitoral. Desta forma, o estado do Rio Grande do Norte editou a Lei nº660/1927, tornando-se pioneiro ao incluir a possibilidade de que todos os cidadãos pudessem votar e ser votados sem distinção de sexo.

Desta forma, a professora Celina Guimarães Viana, invocando o referido dispositivo legal, tornou-se a primeira eleitora não apenas do Brasil, mas da Amé-rica Latina, contudo teve seu voto anulado posteriormente. Do mesmo modo que Alzira Soriano foi eleita em 1929 como prefeita na cidade de Lage/RN, tendo exercido o mandato por apenas um ano.

Somente em 1932 é que o voto feminino veio a ser tutelado com o advento do Código Eleitoral (Decreto nº 21.076/32), entretanto o seu trajeto até a aprova-ção foi bastante tortuoso. Isto porque, em seu anteprojeto foram impostas diversas restrições ao voto feminino, que buscava a concessão desse direito apenas para: a) mulheres solteiras com economia própria; b) viúvas em iguais condições; c) mulhe-res casadas com a autorização do marido; d) mulheres desquitadas enquanto durar a separação; e) mulheres que por decisão judicial declare a ausência do marido; f ) mulheres que tenham sido deixadas pelos maridos por mais de dois anos.

As restrições impostas ao voto feminino foram alvo de grandes discussões, tendo a redação final do Código Eleitoral (Decreto nº 21.076/32), abarcado as mulheres em seu artigo 2º, posto entender que o eleitor é “o cidadão maior de

22 Art. 6 do Código Civil de 1916: São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:

I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156). II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal. III. Os pródigos. IV. Os silvícolas. Brasil (1916). Lei nº 3.071 de 1º de janeiro. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Re-

vogada pela Lei nº 10.406 de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm> . Acesso em: 01 ago de 2019.

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21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”.23 Tem-se, pois, que o Código Eleitoral de 1932 foi um marco na luta pela ampliação dos direitos civis e sociais das mulheres, sendo assim a primeira legislação a incluir o sufrágio feminino expressamente em seus dispositivos.

A Constituição Federal de 1934, confirmou o voto feminino, alterando a idade dos eleitores para 18 anos (antes era 21 anos),24 porém somente após sua vigência é que se tornou o voto para todos os homens e para as mulheres, mas apenas se exercessem função pública remunerada,25 sendo claramente uma forma de discriminação em razão do gênero. 

Por sua vez, a Constituição Federal de 1937 confirmou o voto feminino,26 ten-do sido omisso em relação a obrigatoriedade do alistamento ou mesmo do próprio voto. O assunto veio a ser regulamentado por Getúlio Vargas com o advento do De-creto-Lei nº 7.586/1945, em que restou estabelecida a obrigatoriedade do voto para homens e mulheres, exceto para as que não exerciam atividade lucrativa.27Anos após, a Constituição Federal de 1964 retirou do conceito de eleitor a dualidade do gênero,28e estipulou pela primeira vez a obrigatoriedade do voto para ambos os sexos.29

23 Art. 2º É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na fórma deste Codigo.24 Art 108 da Constituição Federal de 1934: São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos,

que se alistarem na forma da lei. Brasil (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponí-vel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm> Acesso em 01 ago de 2019.

25 Art 109 da Constituição Federal de 1934: O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar. Brasil (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm> Acesso em 01 ago de 2019.

26 Art 117 da Constituição Federal de 1937: São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de de-zoito anos, que se alistarem na forma da lei.

Parágrafo único - Não podem alistar-se eleitores: a) os analfabetos; b) os militares em serviço ativo; c) os mendigos; d) os que estiverem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos. Brasil (1937). Consti-

tuição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. Acesso em: 01 ago de 2019.

27 Art. 4º do Decreto-Lei nº 7.586/1945: O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros, de um e outro sexo, salvo:

a) os inválidos; b) os maiores de 65 anos; c) os brasileiros a serviço do País no estrangeiro; d) os oficiais das fôrças armadas em serviço ativo; e) os funcionários públicos em gôzo de licença ou férias fora de seu domicílio; f) os magistrados; g) as mulheres que não exerçam profissão lucrativa. Brasil (1945). Decreto-lei nº 7.586 de 28 de maio de

1945. Regula, em todo o país, o alistamento eleitoral e as eleições a que se refere o art. 4º da Lei Constitu-cional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945. Revogada pela Lei nº 5 de 14.12.1946. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del7586.htm>. Acesso em 01 ago de 2019.

28 Art 131 da Constituição Federal de 1946: São eleitores os brasileiros maiores de dezoito anos que se alista-rem na forma da lei. Brasil (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em 01 ago de 2019.

29 Art 133 da Constituição Federal de 1946: O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei. Brasil (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponí-vel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em 01 ago de 2019.

O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962), também foi um mar-co importante na ampliação dos direito civis das mulheres, tendo em vista que alterou diversos artigos do Código Civil de 1916. A mulher casada foi retirada do rol das incapacidades, alargando a sua autonomia no exercício de seus direitos civis, inclusive em relação ao trabalho, tendo em vista que restou autorizado que a mulher pudesse exercer a profissão que quisesse.

Seguindo essa linha do tempo em relação aos direitos civis, políticos e so-ciais da mulher, a Constituição Federal de 196730 e a Constituição Federal de 198831 – essa última atualmente em vigor - confirmam o voto feminino, sua obri-gatoriedade e relevância como uma realidade. Tem-se, pois, que com toda a luta e comoção social, o voto feminino é possível desde 1932 no Brasil, o que não quer dizer que as mulheres gozem de vasta representação política.

4. POLÍTICA E MULHERES NA ATUALIDADE Embora a conquista do sufrágio tenha representado um avanço significati-

vo na participação política das mulheres no Brasil, a presença feminina na esfera pública permanece como um desafio a ser enfrentado. A política continua a ser vista como um território masculino e a parcela de mulheres ocupando cargos nos ministérios, parlamentos e direções partidárias ainda é mínima. O direito ao voto, embora crie uma aparência de pretensa igualdade entre os sexos na esfera pública, não é acompanhado da representatividade necessária para romper com as desigualdades de gênero no país, diz Sanchez.32

Embora representem quase 52% do eleitorado, a representatividade das mulheres, no Poder Legislativo, é de apenas 15%. Dos 81 senadores em exercício, 69 (85%) são homens e apenas 12 (15%) são mulheres. Na Câmara dos Depu-tados, de um total de 513 deputados, apenas 77 são do sexo feminino, segundo dados do Congresso Nacional.33

30 Art 142 - São eleitores os brasileiros maiores de dezoito anos, alistados na forma da lei. § 1º - o alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções pre-

vistas em lei. Brasil (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 01 ago de 2019.

31 Art. 14 da Constituição Federal de 1988: A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º O alistamento eleitoral e o voto são: I - Obrigatórios para os maiores de dezoito anos. Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponí-

vel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 01 ago de 2019.32 SANCHEZ, Beatriz Rodrigues (2016). Gênero e política: uma análise da atual conjuntura brasileira. Em

Debate: Periódico de Opinião Pública e Conjuntura Política, Belo Horizonte, ano 8, n. 5, p. 42-46, jul. 2016.33 Congresso Nacional (2019). Parlamentares em exercício. Disponível em: < https://www.congressonacional.

leg.br/parlamentares/em-exercicio>. Acesso em 31 jul 2019.

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No Poder Executivo o cenário é ainda pior. Das 27 unidades federativas brasileiras, há apenas uma mulher no governo do estado (Fátima Bezerra, eleita pelo Rio Grande do Norte). Dentre os Ministérios, apenas 02 pastas são ocupadas por mulheres, de um total de 22. Isso significa que o índice de Ministras no Brasil é de apenas 09%, número bastante inferior ao observado no resto do mundo, em que a participação feminina no Executivo ocupa em torno de 20% dos ministé-rios, segundo dados da ONU34.

Desde 2013 e, principalmente, após as eleições de 2014, observa-se no Bra-sil uma ascensão conservadora que culminou, em 2018, com a eleição do atual presidente Jair Bolsonaro. Oriundo de carreira militar e eleito deputado por sete mandatos (1991-2018), Jair Messias Bolsonaro ganhou popularidade no país por suas críticas aos partidos de esquerda e por seu discurso anticorrupção. Elegeu-se em 2018 após uma série de declarações polêmicas, principalmente a respeito de questões de gênero e direitos dos LGBT, conforme afirmam Cioccari e Persichetti35.

Algumas declarações misóginas do atual presidente ganharam grande reper-cussão da imprensa. Em abril de 2017, durante uma palestra no clube Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro afirmou ter cinco filhos, dentre os quais “quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”. Em 2014, o então parlamentar foi denunciado por incitação ao estupro após dirigir-se à Deputada Federal Maria do Rosário afirmando que não a estupraria “porque ela é muito feia (...) não iria estuprar, porque não merece”, conforme relatado em reportagem para Revista Veja36.

As declarações de Bolsonaro extrapolam completamente o âmbito privado e refletem também o seu pensamento a respeito da participação feminina na polí-tica. Para defender-se das acusações de machismo, o governante cita como exem-plo de seu respeito às mulheres o fato de a Primeira Dama ter discursado antes dele no dia da sua posse, conforme veiculado pela Revista Forum.37 Após eleito, chegou a declarar que pela primeira vez os Ministérios estavam equilibrados com relação ao gênero, afirmando que as duas únicas mulheres ministras equivaleriam

34 ONU. Woman in politics: 2019 (2019). Disponível em: <http://www.unwomen.org/en/digital-library/publica-tions/2019/03/women-in-politics-2019-map> Acesso em 31 jul 2019.

35 Cioccari, D., & Persichetti, S. (2018). Armas, ódio, medo e espetáculo em Jair Bolsonaro. Revista Alter-jor, 18(2), 201-214. Recuperado de http://www.periodicos.usp.br/alterjor/article/view/144688.

36 Denise, Chrispim Marin (2019). Bolsonaro vai a reunião sobre empoderamento da mulher no G20. Dispo-nível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/bolsonaro-vai-a-reuniao-sobre-empoderamento-da-mulher-no--g20/>. Acesso em 30 jul 2019.

37 Revista Forum (2019). Por determinação judicial, Bolsonaro se retrata e pede desculpas públicas à deputada Maria do Rosário. Junho, 2019. Disponível em: < https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/58982/por-determinacao-judicial-bolsonaro-se-retrata-e-pede-desculpas-publicas-a-deputada-maria-do-rosario> Acesso em: 30 julho 2019.

a dez homens, como relata a Revista Universa.38 Com esta fala, o presidente busca amenizar a enorme disparidade quantitativa entre os sexos que assumem cargos importantes durante o seu mandato. Insinuando que, apesar dos números, o po-der das mulheres seria equivalente ao dos homens, Bolsonaro consegue, ou espera conseguir, abrandar as críticas à sub-representatividade feminina do seu governo.

Ora, um presidente que acredita que ter apenas 09% de sua pasta de minis-térios ocupada por mulheres é suficiente, e cita como exemplo de protagonismo feminino o fato de a Primeira Dama discursar antes de si, não é um governante realmente interessado em uma representação política igualitária. Todas essas ma-nifestações refletem sua forma de pensar a política como um lugar de homens e para homens, e são um espelho do atual momento de recrudescimento conserva-dor que vive o Brasil.

A reduzida participação feminina no sistema político expressa não apenas um desequilíbrio numérico, mas uma invisibilidade das questões relativas à mu-lher como um todo. A injustiça estatística se entende para os temas que recebem atenção durante os processos de tomada de decisão no poder público. Com pou-cas mulheres participando das arenas decisórias, quem delibera sobre os assuntos de interesse das próprias mulheres acabam sendo os homens - daí a insatisfação relacionada a temas como aborto, violência doméstica, feminicídio, estupro, den-tre outros. Isso, claro, quando estes temas não são marginalizados ou esquecidos em prol de questões consideradas mais urgentes e, geralmente, mais relevantes para os homens.

“A sub-representação das mulheres na política legislativa está diretamente rela-cionada às diversas formas de dominação masculina. Uma vez que elas não são formuladoras das políticas públicas e das leis que terão impacto direto em suas realidades concretas, acabam se tornando apenas objetos. Isso quer dizer que por estarem ausentes dos espaços tradicionais de deliberação política elas não podem falar por si próprias. Quando apenas homens se reúnem para conversar sobre solu-ções para a cultura do estupro, por exemplo, percebemos o abismo existente entre as mulheres e a política institucional”. (Sanchez, 2016)39

Ressalta-se que a ampliação da participação política não é um desafio que envolve apenas as mulheres, mas se estende a diversos grupos minoritários e re-laciona-se, diretamente, com o processo de redemocratização do Brasil. Uma vez

38 Revista Universa (2019). Brasil tem menos mulheres em ministérios do que Síria e Venezuela, diz ONU. Março, 2019. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/03/12/brasil-esta-en-tre-50-paises-com-menor-numero-de-mulheres-em-ministerios.htm> Acesso em: 30 julho 2019.

39 Sanchez, Beatriz Rodrigues (2016). Gênero e política: uma análise da atual conjuntura brasileira. Em Debate: Periódico de Opinião Pública e Conjuntura Política, Belo Horizonte, ano 8, n. 5, p. 42-46, jul.

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46 aS SuFraGiSTaS: uma PErSPECTiva Do voTo FEminino no BraSiL

que as desigualdades de oportunidades revelam a existência de uma estrutura de dominação contrária à democracia, o país que queira consolidar-se como demo-crático precisa garantir a equidade política entre seus grupos, conforme discute Simone Bohn40

Assim, o enfrentamento desta questão perpassa toda a sociedade e exige mudanças culturais. Após décadas do sufrágio feminino, a participação das mu-lheres ainda é mínima. As mulheres ainda são percebidas como “penetras” em um espaço majoritariamente masculino, como dizem Miguel e Feitosa41. Seu peso na composição do eleitorado não condiz com sua presença no sistema político institucional. Embora o direito ao voto tenha representado inúmeros avanços, ele não equacionou o desafio do estabelecimento de uma sociedade plenamente democrática no país.

CONCLUSÃO Quando se fala na luta por direitos e igualdade das mulheres, alguns podem

pensar se tratar de um exagero, uma vez que certas garantias já foram outorgadas para as mulheres. Mas será que, em pleno século XXI, vivemos em uma situação considerada ideal?

De fato, a luta e a conquista feminina pelo direito ao voto abriram cami-nhos para que a mulher saísse da esfera privada, local que foi inserida involunta-riamente, para a esfera pública. Votar, metáfora tão bonita para dar voz, deu às mulheres a oportunidade de escolher seus representantes, serem visíveis e até mes-mo serem representadas por outras mulheres. Infelizmente, adentrar um espaço público tão masculino traz consigo muitos percalços.

Em 1979, Eunice Michiles, a primeira mulher a assumir uma vaga no Se-nado afirmou: “não tem nem banheiro feminino”. Parece assustador, mas apenas em 2015 foi realizada uma reforma no Plenário do Senado para a construção do banheiro para mulheres42. Talvez assim seja dito, de forma sutil, que mulheres não pertencem a esse lugar. Mas essas não são situações isoladas: desde a constituição do Supremo Tribunal Federal em 1980, somente três mulheres ocuparam o cargo

40 Bohn, Simone R. (2008). Mulher para presidente do Brasil? Gênero e política na perspectiva do eleitor brasi-leiro. Opin. Publica, Campinas , v. 14, n. 2, p. 352-379, Nov.

41 Miguel, Luis Felipe; Feitosa, Fernanda. (2009) O gênero do discurso parlamentar: mulheres e homens na tribuna da câmara dos deputados Dados - Revista de Ciências Sociais, vol. 52, núm. 1, mar, , pp. 201-221 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil.

42 Alegretti, Laís (2016). Plenário do Senado terá banheiro feminino 55 anos após inauguração. Portal G1: Política. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/01/plenario-do-senado-tera-banheiro-fe-minino-55-anos-apos-inauguracao.html > Acesso em 01 de ago. de 2019.>

de Ministra – Ministra Ellen Grace, Ministra Carmen Lúcia, Ministra Rosa We-ber). Sem esquecer da única mulher que ocupou o cargo de chefe de Estado no Brasil, Dilma Rousseff.

Em 2016, o mundo se chocava com a imagem da deputada Manuela D’Ávila (PCdoB/RS) amamentando sua filha em uma sessão na Assembleia da Comissão de Direitos Humanos. Um gesto tão natural e espontâneo é tido como obsceno e imoral porque nossa sociedade não está acostumada a ver mães e mu-lheres ocupando esferas públicas, principalmente de poder. É mais fácil afirmar que tais ambientes não são para crianças e assim, de forma quase imperceptível, se designa às mães e mulheres por trás da maternidade os espaços privados – as quatro paredes de um lar.

A história está sendo contada para que não seja esquecida. A luta das mulhe-res que vieram antes permite que hoje exista uma condição mais favorável na busca para o que ainda se faz necessário conquistar. Que as Leolindas, Berthas, Eunices, Carmens, Rosas, Ellens, Dilmas, Manuelas, Carolinas, Conceições, Lygias, Clarices, Hildas, Anas, Petras, Maras, Sandras, Marielles... estejam sempre presentes.

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“A INFORMANTE”: TRÁFICO DE PESSOAS, DISCRIMI-NAÇÃO E O SISTEMA VALIDADOR DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Fernanda Caroline Alves de Mattos1

Renato Bernardi2

O presente trabalho tem por objetivo discutir os aspectos relacionados ao tráfico de pessoas e sua correlação com as discriminações e opressões de gênero dentro e fora do sistema penal, na medida em que ele valida violências e reproduz desigualdades contra as mulheres.

Para isso, foi utilizado como parâmetro de análise, o longa metragem “A informante” que retrata a história de uma policial americana que foi convocada para uma missão na Bósnia e lá descobre diversas inconsistências e violações, pro-venientes da própria organização em que trabalhava, contra meninas que eram traficadas para alimentar o comércio sexual pós-guerra da localidade. Consta res-saltar que tal filme foi baseado em fatos reais, tendo a policial Kathryn Bolkovac descoberto e denunciado todas as situações e sendo demitida e afastada por isso.

Nesse sentido, analisar-se-á o filme num primeiro momento sobre as di-versas discriminações e opressões de gênero sofridas nas relações da protagonista com o seu meio de atuação e vida pessoal, bem como das vítimas traficadas e seus algozes, na medida em que reproduzem estereótipos dicotômicos e patriarcais. Em especial, nas condições relacionadas à sexualidade feminina e a abertura para a realização de novas violências.

A partir disso, enxergar por meio do contexto socio-histórico abordado no filme, como as violências estruturadas pelo patriarcado alimentam o sistema de vulnerabilidade e vitimização da mulher no tráfico de pessoas. Indicando para isso, para além do que foi exposto nas cenas do longa, dados da Organização das Nações Unidas que confirmam a contínua violação de direitos humanos das mu-lheres por meio do controle de seus corpos.

1 Mestranda em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Graduada em Direito pela Uni-versidade Tiradentes, pesquisa nas áreas de direitos humanos, direito penal e criminologia com ênfase relação entre Gênero e Direito. E-mail: [email protected].

2 Doutor em Direito do Estado PUC-SP. Professor do Bacharelado, Mestrado e Doutorado – UENP, Coorde-nador Pedagógico do PROJURIS Estudos Jurídicos Ltda, Procurador do Estado de São Paulo, pesquisa nas áreas de Intervenção do Estado na vida da pessoa, Direito do Estado, Estado e Responsabilidade, Direito e Arte. E-mail: [email protected].

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Em seguida, perceber por meio do filme e dos estudos feministas crimi-nológicos que este controle está para além do controle exercido pelos traficantes; está presente dentro das instituições estatais, que revalidam as opressões e abrem espaço para o cometimento de outras, baseando-se na força garantidora de um sistema sexista e classista.

Para tanto, foi realizada a pesquisa por meio do método dedutivo de abor-dagem, partindo do ponto geral que é a desigualdade de gênero e opressão patriar-cal sofridas pelas mulheres no contexto social, até a especificidade delas inseridas no sistema penal, seja como vítimas ou mesmo peças do sistema. Tendo, além disso, como suporte, a pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema.

2 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO E OPRESSÃO DAS PERSO-NAGENS NOS ESPAÇOS COMO VIOLAÇÃO A SEUS DIREITOS HUMANOS:

No que se refere aos espaços ocupados, há que se considerar que as mulhe-res têm parcela de exclusão em diferentes aspectos nos diferentes meios, justifica-dos por conceitos e padrões patriarcais que as excluem e afastam de uma efetiva vivência cidadã.

Em relação as vivências sociais e relacionando-as ao filme, Kathryn Bol-kovac, protagonista, é um exemplo de mulher que passa por algumas espécies de exclusão e opressão de gênero. Ela é uma policial americana que durante o filme sofre como mãe, como profissional e como mulher.

Como mãe, ela é julgada de formas diretas e indiretas, durante o filme, em virtude de as escolhas profissionais realizadas interferiram na sua relação com sua filha, inclusive tendo perdido a guarda por ter conseguido um emprego que lhe exigia um pouco mais de tempo. O patriarcado aqui aponta a ela, como mãe, uma responsabilidade que não foi cumprida3, como se fosse obrigação que “todas as mulheres [estejam] a serviço dos homens e da ideia conservadora de família que serve aos homens e aos espíritos aprisionados em ideologias”4 que aprisionam essa mulher ao âmbito doméstico e familiar como um suposto hábitat natural.

Esse sentido de espaço natural se desenvolve na medida de criar mecanis-mos sociais e culturais onde o gênero5 definirá os espaços onde cada ser humano,

3 Tal responsabilidade representa na verdade uma máscara para a dominação cogente gerada na divisão sexual do trabalho que naturaliza a representação das mulheres como mães. (TIBURI, Márcia. Feminismo em co-mum: para todas, todes e todos. – 7ª ed. – Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2018, p.115).

4 Ibid., p. 365 O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das

FErnanDa CaroLinE aLvES DE maTToS E rEnaTo BErnarDi 51

a depender se é homem ou mulher, pode estar. De forma que o espaço privado – doméstico e familiar – estaria vinculado às mulheres e o espaço público – todos os outros espaços de exercício da cidadania plena – estaria aberto apenas ao homem.

Essas divisões ressaltam-se na divisão sexual do trabalho, estrutura econô-mica que

[...]tem sido fundamental para essa dicotomia desde seus princípios teóricos. [Nela] os homens são vistos como, sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e reprodução. As mulheres têm sido vistas como “naturalmente” inadequadas à esfera pública, dependentes dos homens e subordinadas à família.6

Essa construção corrobora para que a domesticidade da mulher seja enca-rada como traço natural e valor de determinação do que é ou não aceito como comportamento padrão, e o que estiver fora seria rechaçado como desviante7.

Tal desvio é trabalhado no filme por meio da protagonista, tanto por ocu-par a posição de policial – num local como ela mesma confirma que há maio-ria masculina atuando8 – tanto por valorizar seu espaço de desenvolvimento de carreira sofrendo consequências no formato de responsabilização – pelo próprio Estado – ao não poder ficar com a filha.

A própria personagem representa assim uma quebra desses padrões e um alcance das possibilidades de igualdade feminina, mesmo sofrendo diversas in-tempéries na sua vida profissional, indo contra todo um sistema que duvida de suas capacidades e lhe sufoca a voz. Explicitando assim que ainda existe uma contradição entre a igualdade formal jurídica diante de uma desigualdade ma-terial baseada em privilégios de fato e de direito garantidos aos representantes do sexo masculino.9

Essas contradições abrem espaços para a existência de não só exclusões e opressões em forma de violência doméstica, e demais tipo de violências de

ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusi-vamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press. 1989, (tradução de Chris-tine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila), p. 07).

6 OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Trad. Flávia Biroli. In: Estudos Feministas, Florianó-polis, 16(2): 440, maio-agosto, pp. 305-332, 2008, p. 307

7 MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. 1ª ed. – São Paulo: Boitem-po, 2014, p.33.

8 Tal fator é confirmado durante todo o filme, em especial, na cena de chegada a Bósnia em que Kathryn sen-te-se desconfortável pelos olhares masculinos no ônibus e encontra cumplicidade no olhar de apenas uma mulher além dela naquela missão.

9 SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes. 3ª ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 108

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gênero, como também violências sexuais baseadas no conceito de exploração dos corpos femininos regulados a partir do sistema de valoração deles10. Isto é, a formatação construída de que a mulher é um objeto de satisfação sexual mascu-lina voltada a reprodução de herdeiros e portadoras da função de prestar favores sexuais a seus dominadores11.

No filme, a exploração sexual sofrida pelas vítimas do tráfico de pessoas cometido no decorrer do longa, em especial Raya Kochan, uma das personagens ucranianas traficada para a Bósnia, exemplifica a capacidade de uma sociedade ca-pitalista, que é “por definição, a origem da opressão de gênero”12 de transformar os corpos femininos em meros objetos comerciáveis de forma que “ao fazer intervir o dinheiro, certo erotismo masculino associa a busca do gozo ao exercício brutal do poder sobre os corpos reduzidos ao estado de objetos”13.

Esse exercício de poder por meio da violência remete assim a uma corrente de diversos direitos femininos violados. Ao serem veiculadas as cenas de estupros, ameaças, agressões físicas e psicológicas, sofridas pelas mulheres traficadas em re-presentação à realidade, resta evidente as violações a seus direitos humanos que são mormente defendidos por meio da Declaração e Programa de Ação de Viena que versa em seu ponto 18 que:

Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. A [...] erradicação de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência e todas as formas de abuso e exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de pessoas, são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eliminadas14 (grifo nosso)

Dessa forma, a subsistência de sistema de opressão e discriminação remon-tam ao processo de violação desses direitos e dos corpos femininos em estado de vulnerabilidade, em especial, os objetificações por meio do tráfico de pessoas, o que constitui também um dos objetivos de enfrentamento da Declaração e na Plataforma de Ação de Pequim que almeja, entre tantos outros pontos:

10 Explicitando assim que “a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino por parte do masculino”. (ALAMBERT, Zuleika. Feminismo: o ponto de vista marxista. – São Paulo: Nobel, 1986, p. 34).

11 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero patriarcado violência. 2ª ed. – São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 112.

12 ARUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. 1ª ed. – São Paulo: Boitempo, 2019, p. 51.

13 Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner - 11° ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 26.

14 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e programa de ação de Viena. Itália-Viena: Con-ferência Mundial sobre Direitos Humanos, 1993

Assegurar que as mulheres e meninas gozem plenamente de todos os direitos hu-manos e liberdades fundamentais e tomar medidas eficazes contra as violações desses direitos e liberdades; Tomar todas as medidas necessárias para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e meninas, e remover todos os obstáculos à igualdade de gênero e ao empoderamento e avanço da mulher;15

Dessa forma, a continuidade de discriminações sociais e violações sofridas pelas mulheres nos diversos espaços, como representado no longa, é ponto ainda a ser observado continuamente, para se evitar o controle de um sistema social patriarcal sobre suas vidas e seus corpos reproduzindo exclusão, desigualdades e legitimando violências.

3 A VIOLÊNCIA DO TRÁFICO DE PESSOAS E A SUBJUGAÇÃO DAS VÍTIMAS:

No que concerne ao contexto do filme, é importante desvelar, brevemente, o panorama histórico ocorrido no local dos acontecimentos retratados e relacio-ná-los ao tráfico de pessoas, em especial das mulheres, e a forma de visão existente na localidade em relação a liberdade sexual feminina e ao cometimento de crimes no pós-guerra.

O filme explica, de forma superficial, sobre a guerra ocorrida na Bósnia--Herzegovina a qual foi uma disputa entre sérvios cristãos ortodoxos, croatas cató-licos romanos e bósnios muçulmanos16, que teve início em abril de 1992 e seguiu até dezembro de 1995.

O filme se passa em um momento posterior onde a nação está tentando se reorganizar, mas os conflitos entre as etnias permanecem, motivo pelo qual havia uma atuação da Organização das Nações Unidas e outros parceiros de outros países como a Democra (que no caso real tem como nome DynCorp Technical Services) e a IPTF (International Police Task Force).

É notável, tanto pela história como pela representação cinematográfica do caso real aqui analisada que, a partir do momento em que, ainda que cessada a guerra, os conflitos de etnias permaneciam, os primeiros direitos a serem ignora-dos e violados eram os das mulheres em vários aspectos. No filme, Kathryn de-

15 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e plataforma de ação de Pequim. China-Pequim: IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, 1995.

16 “No caso da Bósnia, a definição nacional de “sérvios”, “croatas” e “muçulmanos” é posterior à existência dos grupos em si. Tal definição tem raiz religiosa, mesmo quando a pessoa é ateia, ou não é religiosa; os sérvios representariam os cristãos ortodoxos; os croatas, os católicos; e os muçulmanos, aqueles adeptos do islamismo”. (PERES, Andréa Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra na Bósnia. In: Cadernos Pagu (37), pp. 117-162, julho-dezembro, 2011, p. 122).

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fronta tal situação logo no começo, com o caso de violência doméstica perpetrado contra uma mulçumana de nome Zlata Sehik que foi naturalmente aceito pelos demais bósnios e croatas, bem como pela naturalização da exploração sexual no país, seja das mulheres locais, seja das que foram traficadas até lá.

Quando se fala das mulheres traficadas, representadas mais diretamente pe-las personagens Raya, Irka e Luba, é importante esclarecer que a vulnerabilidade destas é anterior a situação de pós-guerra em que foram lançadas após seu trans-lado até lá. Já que, uma vez consideradas as estruturas de poder alimentadas pelo patriarcado, diante de um contexto globalizado e a procura por lucro, o corpo feminino se torna assim mercadoria17. Momento em que, diante da sua busca de mudança de vida, se tornaram apenas objetos sexuais.

O tráfico de pessoas introduz-se no contexto Bósnio abordado no filme como um exemplo de como contextos sociais opressores são ponto de partida de vítimas que buscam melhoria de vida e entram num caminho de violência e ex-ploração, onde terão a destruição se sua liberdade e projetos. Nesse sentido:

No ponto mais baixo da escala social estão as mulheres pertencentes às camadas populares pobres, de sociedades patriarcais, marcadas por um histórico de domi-nação masculina intocável. É dessas camadas populares que surge o drama das mulheres levadas para o mercado clandestino da prostituição feminina e do tráfico de seres humanos com fins de exploração sexual.18

Esse drama é representado por Raya e Luba, amigas e ucranianas agen-ciadas pelo tio de Raya, e se justifica logo no início do filme, onde ambas escolhem “trabalhar em outro país” para não ter o mesmo fim da mãe de Raya que vivia “trabalhando apenas numa copiadora”19. De forma que, com-preender as histórias é um passo para entender como a vitimização se dá. No entanto, não há interesse em falar de histórias de pessoas desenraizadas e cujo gênero é historicamente silenciado, já que dar voz às histórias das mulheres e aos seus direitos é considerá-las protagonistas e coordenadoras de seu próprio

17 FRINHANI, Fernanda Magalhães Dias. Tráfico de pessoas e estruturas de poder econômico e social. In: Espaço Jurídico. v. 12, n. 1, p. 95-110, jan./jun., Joaçaba/SC, 2011, p.106.

18 PASCUAL, Alejandra. Mulheres vítimas de tráfico para fins de exploração sexual: entre o discurso da lei e a realidade de violência contra as mulheres. In: LEAL, Maria Lúcia Pinto; LEAL, Maria de Fátima Pinto; LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra (orgs.). TráficodePessoaseViolênciaSexual - Universidade de Brasília. Brasília, 2007, p. 43.

19 Essa parte do filme retrata bem o que Marchetti defende ao assinalar que “A realidade vivenciada pelas víti-mas, muitas vezes desfavorecidas e com pouca expectativa de melhoria, faz com que as propostas dos alicia-dores seja a esperança de uma vida melhor. Os altos ganhos prometidos aludem ao sonho de uma estabilidade econômica e poder ajudar os familiares se torna tentador, sendo assim mais facilmente aliciadas”. (MAR-CHETTI, Michelle Maiara. Tráficointernacionaldemulheres: as condições socias das vítimas brasileiras como fatores de risco para o tráfico (2004-2014). Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Relações Internacionais): Universidade Federal do Pampa, 2016, p. 19).

caminho20, de forma que excluindo-as, pode-se excluir também as suas neces-sidades de direitos específicos.

Essa exclusão, em relação às vítimas de tráfico retratadas, também se relaciona na medida em que, como demonstrado no longa, são taxadas de “apenas prostitu-tas” e assim, julgadas e subjugadas sobre sua sexualidade, ainda que em estado de evidente exploração sexual. Essa situação advém de uma construção social onde:

A competição, a força e o egoísmo vigoram, substituindo a cooperação e a solidarie-dade. Os valores femininos passam a ser considerados menores e consequentemente próprios de pessoas inferiores; como menores devem ficar restritos ao âmbito domés-tico. É preciso um poder forte e centralizado, estabelecendo disciplina férrea e auto-ridade para que servos e escravos trabalhem sob condições deletérias21. (grifo nosso)

Essa inferioridade se mostra, diante das violações de direito sofridas, desde o momento do aprisionamento até o tratamento desumano direcionado, como as agressões e estupros sofridos, não obstante todas a exploração sexual causada pelos algozes, como ocorreu no filme no local chamado Bar Flórida22. Elas indicam um claro desrespeito à integridade física, psíquica e emocional dessas mulheres, bem como ao seu direito de liberdade e de igualdade como ser humano23. Sendo assim, uma violação aos direitos humanos. Nessa medida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma a previsão que:

Artigo II 1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou so-cial, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania24.

20 PERROT. Michelle. Las mujeres y los silêncios de la historia. In: ACADEMIA UNIVERSAL DE LAS CULTURAS. ¿Por qué recordar? 1 ed. – Buenos Aires: Granica, 2006, p. 58.

21 SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. O poder patriarcal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, n. 39, mar 2007. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revis-ta_artigos_leitura&artigo_id= 3887, p. 01.

22 Consta ressaltar que a situação de privação vivida ia além da exploração sexual, passando a falta de um lugar de mínima dignidade para estar. Como mostrado no filme, as meninas ficavam num sótão mal ilumi-nado, dormindo em colchões velhos, sem acesso a banheiros. O local possuía diversas marcas da ocorrên-cia de estupros e uso de substâncias entorpecentes, como camisinhas usadas e seringas pelo chão. Além de uma área, ao lado com grades, correntes e algemas, todas manchadas de sangue, indicando a realização de torturas com seus corpos – a qual é comprovada pelas fotos tiradas desses momentos e guardadas no cofre junto com seus passaportes.

23 “A igualdade e a liberdade em dignidade e direitos são imanentes ao ser humano e o acompanham de modo incondicional no transcurso da vida. Independentemente de qualquer outro título ou condição, não só no território de seu país, mas na comunidade internacional como um todo”. (ALMEIDA, Guilherme Assis de. A proteção humana no direito internacional: conflitos armados, refugiados e discriminação racial. São Paulo: Editora CLA Cultural, 2018, p. 84-85).

24 ONU. Assembleia Geral das Nações unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponí-vel em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 27 jun. 2019.

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No entanto, apesar de existir previsão internacional, por meio do protocolo de Palermo para coibir as ações direcionadas para o tráfico de pessoas, conforme o Relatório Global da ONU sobre Tráfico de pessoas de 2018, o número de casos vem aumentando25, ainda que os países tenham formulado legislações específicas sobre o assunto conforme o protocolo assinado previa26. Além disso, a maior parte dos casos continua sendo de vítimas mulheres (com taxa de 49%)27. e voltados a exploração sexual (83% dos casos de mulheres traficadas)28, dos casos que pude-ram ser analisados até 2016.

O relatório informa que, não obstante o número massivo de casos para exploração sexual, as consequências desses atos vão para além do transporte e ex-ploração do corpo para fins lucrativos. Fazendo com que as vítimas possam sentir medo de falar sobre o acontecido29, e dessa forma, as instituições que venham a lhes acolher devem saber identificar os diferentes e complexos contextos em que a exploração sofrida se deu, para melhor responder às necessidades dessa mulher30.

Essa preocupação é importante uma vez que após o tráfico muitas vezes se dá a “morte social”31 da pessoa, em especial, se sua exploração se deu por meio sexual, pois:

A coisificação da mulher e submissão desta à posição de mero objeto sexual do homem, existente para satisfazer os desejos deste, representa clara misoginia, tendo em vista a desconsideração do gênero feminino como gênero humano. Soma-se a essa objetificação, a exclusão social oriunda da violência sexual. Afinal, [...] após o ato, a mulher é excluída do seio da sociedade, como se não mais fosse digna de res-peito, como se tivesse perdido sua moral, a qual permanece, ainda nos dias atuais, relacionada à sua sexualidade32

Assim, além dessa exclusão em razão da sua sexualidade – ainda que nesse contexto explorada – a mulher traficada também será punida por meio de seu

25 “A more detailed trend analysis shows that in 2016, about 40 per cent more victims were detected compared to 2011”. (UNODC. United Nations Office on Drugs and Crime. Globalreportontraffickinginpersons2018. New York: United Nations publication, Sales no. E.19.IV.2, 2018, p. 21).

26 Ibid., p. 8.27 Ibid., p. 10.28 Ibid., p. 28.29 Esse momento pode ser observado no filme tanto quando Irka e Raya estão com Kathryn e pedem veemente-

mente que ela lhes prometa proteção, como quando a policial vai ao lar Zenica, que acolhe algumas meninas traficadas que conseguiram ser resgatadas em Sarajevo, pedindo para que identifiquem alguns homens e estas demoram certo tempo para ficarem à vontade com a situação.

30 Ibid., p. 13.31 “’Morte social’ era o nome dado à situação de ‘completa privação de direitos’ vivenciada pelos judeus durante

o regime nazista” a qual poderia ser analagonamente relacionada ao estado das vítimas mostrado no filme. (ALMEIDA, Guilherme Assis de. A proteção humana no direito internacional: conflitos armados, refugia-dos e discriminação racial. São Paulo: Editora CLA Cultural, 2018, p. 96).

32 SALIBA, Maurício Gonçalves. KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. SANTIAGO, Brunna Rabelo. Feridas da alma: análise da tipificação do estupro como genocídio à luz de uma criminologia feminista. In: Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 479-504, jul./dez. 2018, p. 487.

corpo quando tenta sair do meio que lhe violenta, seja pedindo ajuda ou fugindo. A exemplo de Raya, que sofreu estupro com uma barra de ferro ao ser recapturada depois de ter sido acolhida por Kathryn.

Essa quebra ao controle exercido é sentida como um reforço a novas vio-lências dentro do sistema criminoso. Um sistema que reflete as normais culturais vivenciadas nos espaços que existem para justificar uma suposta superioridade masculina, e neste caso, do traficante sobre a vítima33. O que remonta a ideia de que, ao sair do que lhe é determinado, ela é a desviante e merece ser punida, por um controle patriarcal criminoso e violentador.

4 O SISTEMA INSTITUCIONAL COMO VALIDADOR DAS OPRESSÕES E VIOLÊNCIAS DE GÊNERO:

Ainda que subsistindo o controle social vivenciado pela protagonista e o controle do algoz sobre a vítima, outro ponto lançado pelo filme é o próprio controle institucional sobre a mulher. Seja ele ocorrido pela omissão ao lidar com os casos específicos femininos ou mesmo exercido de forma direta para afastar e subjugar o gênero dentro um espaço – o público e institucional – que não lhe compete.

Assim, se mostra importante tratar a formulação e funcionamento de uma parte do sistema de justiça por meio da arte, como forma de olhar criticamente para aquele que parece o ponto de resolução dos problemas, mas que ao fim re-produz as desigualdades enraizadas. Dessa maneira, a arte lança uma luz em meios aos horrores históricos e transfigura a realidade caminhando ao lado do direito, expondo os valores que exaltam a dignidade em relação aos poderes capilarizados por meio do controle de Estado sobre a sociedade34. Assim, o objetivo desse capí-tulo será jogar a luz, por meio do filme analisado, sobre o sistema de justiça e seu lado direcionador de novas violências e revitimizador das já sofridas.

Essa análise se dá numa perspectiva criminológica e ao mesmo tempo femi-nista, uma vez que se estuda as raízes do sistema e sua influencia nas questões de gênero a ele relacionadas. A criminologia entra aqui como um estudo de multipli-cidade de ideias para definir crime, criminoso, vítima, bem como a própria estru-

33 MOREIRA, Adilson José. Cidadania sexual: estratégia para ações inclusivas. Belo Horizonte: Arraes Edito-res, 2017, p. 96.

34 JOSÉ, Caio Jesus Granduque. Arte e direito em tempos de catástrofe: lições de Alberto Camus. In: RUBIO, David Sánchez; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; DORNELLES, Carla Jeane Helfemsteller Coelho (orgs.). Teorias críticas e direitos humanos: contra o sofrimento e a injustiça social. – 1ª ed. – Curitiba: CRV, 2016, p. 360-361.

FErnanDa CaroLinE aLvES DE maTToS E rEnaTo BErnarDi 57

58 “a inFormanTE”: TráFiCo DE PESSoaS, DiSCriminaÇÃo E o SiSTEma vaLiDaDor Da vioLênCia DE GênEro

turação do sistema criminal e suas formas de controle35. Mas, para além disso, é preciso encará-la também por meio do feminismo como teoria crítica, que em seu paradigma “subverte, no campo da criminologia, a forma de pensar os processos de criminalização e vitimização das mulheres”36.

E ao relacionar essas teorias com o retratado no filme a vinculação entre atuação do sistema contra as mulheres é mais evidente. Servindo de exemplos todas as situações de dificuldades impostas à protagonista para a realização de um trabalho voltado à proteção das mulheres no contexto pós-guerra vivenciado. O caso de Zlata Sehik – de violência doméstica – foi o primeiro a demonstrar tanto a dificuldade em uma mulher inserida no sistema criminal em fazer valer a justiça – no caso Kathryn –, como em uma vítima ter reconhecido seu direito de forma efetiva, uma vez que a própria polícia Bósnia considerava justa a agressão simplesmente por ela ser uma mulher mulçumana. Dessa forma, fica evidenciado que “o sistema de justiça é em grande parte responsável pelas catástrofes cotidia-nas imperceptíveis por muitos que não sofrem na carne e nem estão dispostos a imaginar as humilhações que degradam os homens”37

Considerando tais humilhações, a situação feminina não é sequer me-lhor. Uma vez que é preciso para o sistema penal, o suporte de outras estruturas profundas que o condicionem, como o capitalismo e o patriarcado, que lhe dão poder para reproduzir e legitimar controles sexistas e classistas já abarcados nes-sas duas estruturas38. Consubstanciando em uma violação da dignidade humana das mulheres, que como a de qualquer outro ser humano, “deve ser respeitada e protegida por parte do Estado e de todos os cidadãos e todas as cidadãs de uma comunidade política”39.

Esses controles podem ser observados contra Kathryn, ao lhe boicotarem as tentativas de investigação e proteção das vítimas, para o tráfico ocorrido; ao não ser informada de nada sobre o que acontece pela polícia Bósnia, apesar de todos os homens saberem o que está acontecendo; por não conseguir ter suporte dentro da própria Organização das Nações Unidas em razão de burocracia na sistemática de proteção de pessoas já vulnerabilizadas pelo crime sofrido; e, por fim, por ter

35 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: invisibilidade(s) e crítica ao pensamento criminológico desde uma nova ética. In: GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos feministas por um direito menos machista. 1ª ed. – Florianópolis: Empório do direito, 2016, p. 152.

36 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 15.37 JOSÉ, op. cit., p. 360.38 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão

– Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p. 140.39 ALMEIDA, Guilherme Assis de. A proteção humana no direito internacional: conflitos armados, refugia-

dos e discriminação racial. São Paulo: Editora CLA Cultural, 2018, p. 96.

ido contra a construção do sistema corrupto e sofrendo afastamento e demissão inadequada em razão disso.

O auge da representação de um sistema penal misógino foi representado pelo filme na medida de que os responsáveis pelo tráfico de mulheres até a Bósnia eram homens de dentro das próprias organizações que estavam na localidade para trabalhar em busca da paz40. Há, no todo, um não reconhecimento da atividade como algo degradante, na medida em que, o próprio superior de Kathryn afirma que elas “são apenas prostitutas” e que é muito mais importante “proteger a or-ganização”. O que evidencia que a violência sofrida pelas mulheres traficadas não só não é abraçada pelo sistema, como ele funciona tal qual direcionador de novas violências e reprodução das demais já existentes. Dessa forma:

[...] o sistema penal replica a lógica e a função real de todo o mecanismo de contro-le social, que, se em nível micro implica num exercício de poder e de produção de subjetividades (a seleção binária entre bem e o mal, o masculino e o feminino), em nível macro implica um exercício de poder (de homens e mulheres), reprodutor de estruturas, instituições e simbolismos. [...] ocupa, assim, um importantíssimo lugar na manutenção do status quo social.41

Essa manutenção é observada pela falta de seriedade dada, por exemplo, ao trabalho realizado por Kathryn, bem como pela agressividade do sistema di-recionada a ela quando resolve ir de encontro ao pré-estabelecido e denuncia as inadequações e violações ocorridas internamente, seja por meio das constantes observações de seus passos, as ameaças recebidas em seu telefone ou mesmo o fato de ter sido grampeada em seu telefone pessoal.

Além disso, os envolvidos eram sumariamente protegidos e os que foram denunciados de terem realizado acordos para traficar as mulheres – que serviam de mercadoria de lucro e objeto sexual para os servidores internacionais – foram apenas afastados, não sofrendo nenhuma reprimenda.

Dessa forma se faz importante parar e observar que o problema é social e estrutural, inclusive dentro das instituições de poder públicas, nacionais e inter-nacionais. Em especial quando se trata do tráfico de pessoas, um crime complexo e multifacetado o qual “exige também uma análise das relações políticas, orga-nizações criminosas e a forma como estes crimes globais estão transformando o sistema internacional”42 para assim facilitar não só a reprimenda dos traficantes,

40 A própria Kathryn informa que iam desde os mediadores de paz, policiais bósnios até mesmo os diplomatas de alto escalão em serviço na Bósnia.

41 ANDRADE, op. cit., p. 140.42 FRINHANI, Fernanda Magalhães Dias. Tráfico de pessoas e estruturas de poder econômico e social. In:

Espaço Jurídico. v. 12, n. 1, p. 95-110, jan./jun., Joaçaba/SC, 2011, p.105.

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mas garantir proteção às vítimas e a prevenção de novas ocorrências veladas por um sistema penal patriarcal e excludente.

CONCLUSÃO:Diante do exposto, por meio do filme analisado, foi possível observar pon-

tos onde tanto o sistema social, o meio criminoso e o sistema de justiça atuam na manutenção de uma exclusão e violação de direitos femininos.

Seja dentro das reproduções de construções sociais dicotômicas que ditam qual é ou não o lugar da mulher, abrindo espaços para julgar suas escolhas e atuações, como ocorreu com Kathryn, ou seja por meio da subjugação através da violência de gênero em seus variados meios de ocorrência para reforçar que com-portamentos “desviantes” podem ser punidos, ainda que isso represente violação aos direitos humanos da mulher.

Encarando a formulação dessas violações, percebe-se que há aqui uma das origens para a existência de uma vitimização contumaz da mulher, a qual vem com grande porcentagem nos casos avaliados de tráfico de pessoas. Esse reco-nhecimento serve não só para o contexto do filme, eivado de questões étnicas e territoriais, mas para o contexto internacional como um todo. Um contexto que aponta descumprimento de convenções internacionais e também da própria De-claração Universal dos Direitos Humanos em relação aos direitos das mulheres.

Importando, por fim, ressaltar que, é preciso ter preocupação também como, ademais de um controle misógino exercido pela sociedade e pelos trafican-tes, o sistema de justiça atua como facilitador, reprodutor e até mesmo criador de novas opressões de gênero, na medida em que, amparado pelo patriarcado e pelo capitalismo, não abre mão do controle dos corpos femininos, colaborando na sua transformação em mercadoria de uso masculino.

QUEM MATOU ELOÁ? A ESPETACULARIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

Elaine Pimentel1

O curta-metragem “Quem matou Eloá?”, documentário dirigido por Lívia Perez, problematiza, a partir do olhar feminista de mulheres que ocupam lugares distintos na defesa dos direitos humanos das mulheres, o tratamento dado pela mídia brasileira ao sequestro praticado por Lindemberg Fernandes Alves contra Eloá Cristina Pimentel e sua amiga Nayara Rodrigues, em outubro de 2008, na cidade de Santo André, grande São Paulo.

Levado a público em 2015, o documentário resgata trechos de programas televisivos de várias emissoras de TV, que alteraram suas programações durante as mais de 100 horas de duração daquele grave crime, para acompanhar os fatos, comentar e intervir, por meio de entrevistas ao vivo com policiais, familiares das vítimas e até com o próprio sequestrador e a vítima Eloá, por telefone. As cenas são assistidas e comentadas por Ana Paula Lewin, Defensora Pública do Estado de São Paulo; Analba Teixeira, militante feminista, integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras e da ONG SOS Corpo; Elisa Gargiulo, militante feminista; e Esther Hamburguer, professora associada da ECAUSP, além do Promotor de Justiça de São Paulo, Augusto Rossini, que também aparece nas imagens da época do crime.

O documentário foi premiado como o melhor Curta Paulista no Semana Paulistana do Curta Metragem em 2015, melhor Curta-Metragem no Atlantidoc – Festival Internacional de Cinema Documentário do Uruguai, em 2015, melhor Documentário em Curta-metragem no Genni Awards – Alliance for Women in Media Southern California em 2015.

1 É doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2011), mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (2005), graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (1999), Professora Adjunta do Curso de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Univer-sidade Federal de Alagoas. Tem experiência em atividades de pesquisa e extensão nas áreas Direito e Sociologia, com ênfase em Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: feminismo, gêne-ro, segurança pública, sistema punitivo, violência, criminalidade. É líder dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos e Políticas Penitenciárias (NEPP) e CARMIM Feminismo Jurídico, Vice-líder dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos sobre a Violência em Alagoas (NEVIAL) e Grupo de Pesquisa Educações em Prisões (GPEP), todos registrados no CNPq.

62 QuEm maTou ELoá? a ESPETaCuLarizaÇÃo Da vioLênCia ConTra aS muLHErES

2. A COBERTURA DO “CASO ELOÁ” SOB AS LENTES FEMINSTAS

Ao longo dos 24 minutos do curta, Lívia Perez provoca espectadoras e espectadores a refletir sobre o papel da mídia na interpretação dos fatos e na construção da imagem do rapaz apaixonado que faz sua ex-namorada refém “por amor”, o que influenciou sobremaneira em procedimentos inadequados adotados pela Polícia Militar de São Paulo durante os 4 dias de duração do crime, bem como na conduta do próprio sequestrador, contribuindo para o trágico desfecho que culminou com a morte de Eloá, aos 15 anos de idade.

O resgate dos fatos, nas narrativas e nas reportagens da época, revela que, no dia 13 de outubro daquele ano, um grupo de estudantes se reunia na casa Eloá, para desenvolver trabalhos escolares. Seu ex-namorado, Lindemberg Fernandes Alves, de 22 anos, inconformado com o término do relacionamento, invade o apartamento e, de posse de uma arma de fogo, faz todos de refém. Pouco tempo depois, liberta dois dos reféns, permanecendo sob a ameaça de sua arma as ado-lescentes Eloá e Nayara.

A partir do dia seguinte, o advogado do sequestrador começa a acompanhar as negociações do Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) da Polícia Militar do Estado de São Paulo com Lindemberg, que agride as meninas física e moralmen-te, ameaçando matá-las a todo instante. Já à noite, o sequestrador liberta Nayara Rodrigues, também de 15 anos de idade, e permanece com Eloá. As negociações continuam, seguidas de perto pela mídia, em “furos de reportagem” e “flashes exclusivos”, envolvendo os telespectadores num enredo que parece ficção, embora se trate de uma trama real, na qual está em jogo a vida de uma adolescente.

A mídia, de forma generalizada, toma se volta para a figura de Lindemberg e o apresenta como um “jovem calmo e trabalhador”, “um rapaz tranquilo, que jogava bem o futebol” 2, “um rapaz apaixonado que sofre por amor e acabou se desesperando”, mas que “espera-se que tudo termine em pizza e um casamento futuro entre ele e a ‘apaixonada dele’”3. Pouco se fala sobre Eloá, que sequer é cha-mada pelo nome. Ela é secundária nesse grande espetáculo midiático. Eloá não é tratada como vítima, mas como objeto do desejo desse “jovem que está passando por uma fase momentânea”.

A imagem de Lindemberg, construída midiaticamente, influenciou até mesmo os policiais que estavam à frente das negociações para a libertação de

2 Expressões utilizadas pela mídia na cobertura jornalística do crime.3 Fala de um dos “especialistas” entrevistados num dos programas de TV que aparecem no documentário.

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Eloá. As ações policiais passaram a tomar como parâmetro não mais a segurança da refém, mas a integridade do sequestrador, que sabia estar em rede nacional e exigia a permanência da mídia na cobertura do crime, como forma de garantir sua segurança.

No terceiro dia do sequestro, depois de muitas horas de negociação com Lindemberg, a polícia, num procedimento absolutamente inadequado, decide le-var Nayara de volta ao apartamento, para conversar com o sequestrador e tentar libertar Eloá. Mais uma vez, Lindemberg passa a ter as duas adolescentes sob seu poder, na mira de uma arma de fogo. E as negociações continuam. A polícia escuta e negocia com o sequestrador o tempo todo, deixando que ele conduza os próximos passos, mesmo sabendo, por meio do depoimento de Nayara, que Lindemberg batia em Eloá durante todos esses dias. Não se levava em conta que as duas adolescentes estavam sendo vítimas de violência, mas sim, como afirmou o Coronel da PM que comandou a operação, que “era um rapaz de 22 anos de idade, sem antecedentes criminais, numa crise amorosa”.

Os esforços da mídia para evidenciar a dimensão passional da ação de Lin-demberg afastavam a percepção, tanto para os policiais como para os telespec-tadores, de que aquilo consistia em um crime resultado de um relacionamento abusivo, marcado pela violência de gênero. Como analisa Elisa Gargiulo, uma das mulheres que comentam as imagens da TV no documentário: “apontar a câmera para uma cena real de sequestro e editar como se fosse um filme de ação: a ideia é subtrair a realidade do fato. Você transforma aquela narrativa em filme para dar uma ideia de que aquilo não é real”.

É com essa perspectiva que a mídia, então, acompanha de perto cada passo dado pela polícia e anuncia um desfecho próximo, quando os policiais decidem invadir o apartamento, explodindo a porta, sob a alegação de que tinham ouvido um disparo de arma de fogo no interior da residência de Eloá. Após a explosão, os policiais entram em luta corporal com Lindemberg, que atira nas adolescentes. Nayara recebe um tiro no rosto, em região não vital, e sai andando do aparta-mento. Eloá é baleada na cabeça e na virilha e é carregada nos braços por um policial, inconsciente, em estado gravíssimo. Lindemberg deixa o apartamento sem ferimentos e é levado para a delegacia, em seguida para a cadeia pública da cidade e, posteriormente, para o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na cidade de São Paulo.

No dia 18 de outubro, após passar por uma delicada cirurgia, a morte cere-bral de Eloá é anunciada pelos médicos. Acompanharam o velório e o enterro cer-

64 QuEm maTou ELoá? a ESPETaCuLarizaÇÃo Da vioLênCia ConTra aS muLHErES

ca de 40 mil pessoas, entre familiares, amigos e curiosos, pessoas que assistiram à “novela” pela televisão e que foram participar pessoalmente desse “capítulo final”, para ver de perto o corpo de uma menina assassinada “por amor”.

E a mídia não para por aí. Com a morte de Eloá, começa todo um processo de justificação do crime por um “lado bonito”, que aponta para a santificação de Eloá: seus órgãos foram doados para várias pessoas, salvando vidas. Eloá, ainda com vida no hospital, se torna uma espécie de mártir e, cada vez mais, as marcas da violência praticada contra ela são apagadas no espetáculo midiático. Para a militante Analba Teixeira, uma das comentadoras das imagens, no documentário, “eu tenho certeza absoluta que ela não queria isso: ser santa. Ela queria estar viva!”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: REFLETINDO SOBRE MÍDIA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO A PARTIR DO “CASO ELOÁ”

As análises feitas pelas mulheres que comentam as cenas dos telejornais da época, ao final do documentário, tomam o caso da violência praticada contra Eloá para refletir sobre as várias formas de violência contra as mulheres: o ciclo da violência, a tendência a se questionar a conduta feminina como causadora dessa violência, os questionamentos sobre uso de roupas, e demora em denunciar as agressões, entre outros, de modo a reconhecer que há um verdadeiro julgamento da vítima, como alguém que deu causa à própria morte.

Por isso, como afirma a defensora pública Ana Paula Lewin no documentá-rio, é importante a existência da qualificadora do feminicídio, já que as mulheres estão morrendo somente por serem mulheres. Por trás do “ser mulher” está a ideia de um corpo socialmente controlado, vigiado, e que tem sempre um suposto “proprietário”, de modo que o fim do relacionamento, por vontade e iniciativa da mulher, pode representar o começo de um ciclo perigoso de perseguição e violên-cia, que em muitos casos leva até a morte. Esse foi o caso de Eloá, que viveu um relacionamento tumultuado e abusivo com Lindemberg, com rupturas e reconci-liações, num contexto de violências simbólicas e reais, até mesmo no espaço pú-blico, quando foi agredida por ele num ponto de ônibus, dias antes do sequestro, fato esse não levado ao conhecimento das autoridades policiais.

Esse poderia ter sido mais um dos milhares de casos de violência contra as mulheres no Brasil, tão corriqueiros numa sociedade marcada por valores ainda patriarcais, que inspiram relacionamentos vivenciados de forma abusiva, com di-versas violências praticadas contra as mulheres. A intervenção sensacionalista da mídia nacional, porém, fez daquele ato de violência de gênero um grande espetá-

ELainE PimEnTEL 65

culo novelesco, cuja trama conta com um rapaz que sequestra a ex-namorada por estar apaixonado e inconformado com o término do relacionamento. A mídia não reconhece uma atuação sensacionalista, o que restou bastante evidente nas pala-vras do jornalista Britto Jr. que, respondendo sobre o papel da mídia no desfecho daquele crime, afirmou, em cenas exibidas no próprio documentário, que “a TV Record só quis ouvir os ‘dois lados’, sem sensacionalismo”. 

No entanto, como o próprio título do documentário provoca, é preciso pensar que forças contribuíram para a morte de Eloá. Foi somente o tiro defla-grado por Lindemberg? Ou outros fatores também contribuíram para sua morte violenta e precoce?

Sem apresentar uma resposta a esses questionamentos, o documentário pro-porciona reflexões importantes sobre a forma fantasiosa como a violência contra as mulheres aparece na mídia nacional, o que em nada favorece à superação dessa realidade de múltiplas violências, reais e simbólicas, vivenciadas pelas mulheres nos espaços privados e públicos.

Toda vez que um caso de violência contra mulher é noticiado pela mídia de forma espetacularizada, a autoria ultrapassa a pessoa do algoz. Mata-se um pouco mais a mulher já morta “por amor”. Eloá não morreu somente dos tiros que re-cebeu de Lindemberg. Ela morreu também ao ser invisibilizada como vítima de uma grave violência de gênero e, assim como ela, morrem, todos os dias, muitas outras mulheres, somente por serem mulheres.

DIREITO E CINEMA: A ÚLTIMA TENTAÇÃO AO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO CASO OLMEDO BUS-TOS VS CHILE E A SUA RELEVÂNCIA NO ORDENAMEN-TO JURÍDICO BRASILEIRO.

Edna Raquel Hogemann1

Sérgio Assunção Rodrigues Júnior2

Um estudo que relacione Direito e Cinema evidentemente situa-se no âm-bito da interdisciplinaridade. Uma pesquisa interdisciplinar acontece na medida em que a colaboração entre múltiplos saberes conduzem a interações, ou seja, a uma adequada harmonia de permutas, de sorte que, como resultado desse proces-so inter-relativo, cada disciplina finde robustecida, podendo, inclusive promovera geração de um novo ramo do saber demarcado por essa multiplicidade de olhares. Seria o caso do Direito e o Cinema a partir da integração e da convergência de lin-guagens díspares. Nesse sentido, utilizar-se da “sétima arte” como um referencial, vai muito além de um estudo um estudo multidisciplinar, e, também, sobrepuja uma mera pesquisa pluridisciplinar, que alia disciplinas sem realizar as pertinentes relações ou sem promover uma nova integração.

Por outro lado, as relações interpessoais, sociais e profissionais são uma cons-tante na vida de toda a população, pois hoje a comunicação é a tônica, está lite-ralmente em qualquer lugar, hora e momento. Tal comunicação vem junto com a forma de se expressar. Por diversas vezes, essas relações têm por consequência um conflito de interesses, tendo em vista que por vivermos em uma democracia, temos o livre arbítrio de pensar e nos manifestarmos conforme pensamos e isso origina a diversidade de pensamento. Essa diversidade de pensamento origina o questiona-mento de até onde este direito pode ser efetivado sem ocorrer violação de outros direitos também constatados no ordenamento jurídico. Devido a essas indagações, surge a problemática de qual seria o limite para a aplicação do direito de liberdade de expressão e como ele deve ser aplicado de modo a não invadir o direito de outrem.

1 Pós-Doutora em Direito (UNESA). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Coordenadora do Curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS – Cnpq). E-mail:

2 Mestrando em Ciência Jurídica Forense pela Universidade Portucalense (2018 – 2020), Pós Graduando em Direito Civil e Processual Civil pela UNESA (2018 – 2020), Pós Graduando em Direito Desportivo pela UCAM (2018 – 2020), Pós Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (2017). Membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS – Cnpq). E-mail:

68 DirEiTo E CinEma

Para ter a efetiva compreensão do tema, faz-se necessário abordar as espécies de liberdade previstas no ordenamento jurídico brasileiro e que por consequência são aplicáveis ao Caso Olmedo Bustos vs. Chile, junto com a exposição do moti-vo de tal direito ter grande problematização em sua aplicabilidade no mundo de hoje. É importante também demonstrar os efeitos e consequências da aplicação do referido direito, trazendo a responsabilidade daquele que não o faz cumprir de forma igualitária e respeitosa.

Para a construção deste entendimento, é necessário explorar tanto as pes-quisas aplicadas, suscitando qual a relevância do tema na sua praticidade e em situações reais, as pesquisas explicativas, com intuito de se trazer o motivo da divergência sobre a aplicação desse direito fundamental na seara internacional e nacional e as pesquisas bibliográficas, através dos autores mais renomados da seara dos direitos humanos.

Há relevante interesse jurídico para a sociedade a discussão desse tema, pois tal direito é um dos pilares na relação do homem com o mundo, sendo esta origem de filmes, novelas, obras de arte e feitos artísticos. Sendo assim, é impres-cindível a discussão desse tema, com o intuito de abordar a relevância prática de tal direito perante a ótica do ordenamento jurídico brasileiro e internacional.

CASO OLMEDO BUSTOS E SUA RELEVÂNCIA PARA O DI-REITO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

HISTÓRICO DO CASOEm novembro de 1988, após uma petição proposta por uma junta de sete

advogados que alegavam agir como representantes da Igreja Católica e de Jesus Cristo, o Conselho de Qualificação Cinematográfica do Estado do Chile proibiu, com fundamento no Artigo 19 §12 da sua Constituição, a exibição do filme ‘’A Última Tentação de Cristo”, dirigido por Martin Scorsese, corroborando a tese destes advogados que alegavam que o filme atentava contra os princípios cristãos e contra a honra de Jesus Cristo.

Tal como no romance, o filme de Scorsese descortina a vida de Jesus Cristo e a sua batalha em relação a um sem-número de tentações que vão desde a inse-gurança, passando pelo medo, a depressão, inclusive a luxúria. Cristo se imagina vivenciando situações sensuais. Essa perspectiva, na época, escandalizou parte da comunidade cristã mais conservadora. No entanto, o próprio filme contém uma

EDna raQuEL HoGEmann E SérGio aSSunÇÃo roDriGuES Júnior 69

advertência explicitando que a estória não se baseia nos Evangelhos e que não segue a interpretação bíblica clássica a respeito da vida de Cristo como homem.

Realizada a censura pelo Estado chileno e confirmada pela sua Cor-te Suprema que teve como vítimas os Senhores Juan Pablo Olmedo Bustos, Ciro Colombara López, Claudio Márquez Vidal, Alex Muñoz Wilson, Matías Insunza Tagle e Hernán Aguirre Fuentes, que ao se sentirem lesados com tal decisão, demonstraram interesse em desfazê-la, onde, por meio da Associação de Advogados pelas Liberdades Públicas A.G., os representaram, levando o caso até à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), que sem obter uma solução consensual entre as partes, submeteu o mesmo à Corte Interamericana.

Após o processamento do caso, a Corte IDH, no dia 05 de fevereiro de 2001, por unanimidade, responsabilizou o Estado do Chile por ter violado o direito à liberdade de pensamento e expressão, consagrado no Artigo 13 da Con-venção Americana de Direitos Humanos.

Por outro lado, a Corte IDH concluiu que o Estado Chileno não violou o direito à liberdade de consciência e religião, previstos no Artigo 12 da citada Convenção, pois o conteúdo desse direito estaria direcionado a permissão para que as pessoas professem, conversem e divulguem suas crenças religiosas, e nesse aspecto, a censura da exibição do filme ‘A Última Tentação de Cristo’’ em nada afetou a referida liberdade fundamental.

Por fim, no ponto quatro da sentença, a Corte Interamericana enfatizou a importância de o Estado Chileno reformar a sua constituição para eliminar a cen-sura cinematográfica, com fito de permitir a exibição do filme abordado neste caso, dentro de um prazo de seis meses a partir da notificação da respectiva sentença.

PROCEDIMENTO DO CASOPara a devida compreensão do caso, é necessário reportar-se sobre como

ocorre o procedimento das demandas até a sua chegada na CIDH, onde para isto é necessário abordar a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), diploma que trata de forma minuciosa tal momento.

A CADH, assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Di-reitos Humanos em San José, na Costa Rica, no dia 22 de novembro de 1969, razão pela qual é conhecida por Pacto de São José da Costa Rica, foi recepcionada no ordenamento jurídico brasileiro com status supralega.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), segundo An-dré de Carvalho Ramos (2017, pgs. 388-389), é órgão principal da Organização dos Estados Americanos (OEA), sendo composta por sete membros, denomina-dos Comissários ou ‘’Comissionados’’, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos, sendo eleitos para quatro anos, podendo ser reeleitos uma vez.

A CADH, determina que a Comissão, pode receber petições individuais e interestatais contendo alegações de violações de direitos humanos, sendo o Proce-dimento individual considerado de adesão obrigatória e o interestatal, facultativo. A Convenção, afirma que qualquer pessoa, pode peticionar à Comissão, alegando violação de direitos humanos, não só a vítima.

Após receber a petição, emerge a fase conciliatória, onde caso seja obtida a solução amigável entre a vítima e o Estado Infrator, a Comissão elabora seu relatório contendo os fatos e o acordo alcançado, sendo o mesmo remetido ao pe-ticionário, aos Estados e também ao Secretário-Geral da OEA. Em contrapartida não obtendo solução consensual, a CIDH, deve submeter o Caso à Corte IDH, que é uma instituição judicial autônoma, que possui jurisdição contenciosa e con-sultiva, não sendo órgão da OEA, mas sim da CADH.

A Corte IDH é composta por sete juízes, cuja escolha é feita pelos Estados Partes da Convenção, em sessão da Assembleia Geral da OEA, de uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados. Estes juízes da Corte serão eleitos para um mandato de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez.

É importante ressaltar que somente os Estados que tenham reconhecido a jurisdição da Corte e a Comissão podem processar Estados perante a Corte. Sen-do assim, os indivíduos dependem da Comissão ou de outro Estado para que seus casos cheguem à Corte IDH. Em razão disso, o Chile desde 21 de agosto de 1990 é Estado Parte da Convenção Americana e reconhece a competência contenciosa da Corte.

O Caso fora recebido pela Corte IDH, no dia 15 de janeiro de 1999, e no dia 05 de fevereiro de 2001, esta, responsabilizou o Estado Chileno, por ter violado o direito à liberdade de pensamento e expressão, previsto no Artigo 13 da CADH, concluindo também que este não teria violado o direito à liberdade religiosa, pois o conteúdo de tal direito estaria ligado com a per-missão para que as pessoas professem, conversem e divulguem suas crenças religiosas, e nisto, a proibição da exibição do filme em nada afetou a referida liberdade fundamental.

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No final de sua decisão, a Corte enfatizou a importância de o Estado Chi-leno reformar a sua constituição para eliminar a censura cinematográfica, pois a mesma estaria cerceando o direito de liberdade de expressão das pessoas, assim como ocorreu no filme.

RELEVÂNCIA PRÁTICA DO CASOAtualmente, é possível dizer que o Caso Olmedo Bustos tornou-se o marco

do direito à liberdade de expressão na jurisprudência internacional dos direitos humanos, gerando uma influência no ordenamento jurídico brasileiro.

O que levou a ocorrência desse fato inequivocamente foi a censura à exibi-ção do filme ‘’ A Última Tentação de Cristo’’ no Chile, com fulcro no Artigo 19, inciso 12 da Constituição Chilena, fato que fora confirmado pelo Poder Judiciá-rio Chileno, por meio de sua Corte Suprema.

A Corte IDH, determinou que o Estado Chinelo, deveria alterar a sua pró-pria Constituição, pois a censura prévia estaria violando os direitos à liberdade de expressão, que está consagrado no Artigo 12 e 13 da CADH.

A Corte entende que a liberdade de expressão tem duas dimensões: a di-mensão individual, que consiste no direito de expressar o próprio pensamento, e a dimensão coletiva ou social, que consiste no direito de receber as manifestações de pensamento e expressão de outros.

Outro aspecto relevante fora a discussão acerca sobre se a vedação à exibi-ção do filme ‘’ A Última Tentação de Cristo’’, não seria uma violação a liberdade religiosa. A Corte IDH entendeu que não houve violação, contudo, é necessário afirmar, que a partir do momento em que o Estado Chileno de forma prévia, cen-surou a exibição do filme, levando em consideração sua conveniência e aplicando a literalidade de sua constituição, que a própria Corte IDH, sentenciou a alterar, vislumbra-se que houve sim uma violação indireta ao direito de liberdade de reli-gião, pois ao impedir a exibição do filme, automaticamente, estaria se impedindo a reprodução do conteúdo do mesmo, onde se encontrava preceitos religiosos, fato o qual fora de forma prévia censurado.

DUPLA DIMENSÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO A Corte IDH, declarou que o direito à liberdade de expressão detém dois

formatos, que são, o individual e social. O individual se refere a ideia de poder expressar o seu pensamento, já o aspecto social, tem a ver com o direito de a so-

EDna raQuEL HoGEmann E SérGio aSSunÇÃo roDriGuES Júnior 71

ciedade receber, sob qualquer forma de veiculação, a manifestação de pensamento de uma pessoa. Com isso percebe, a origem do ‘’Right to Communicate’’ que trás essas duas visões, tanto a liberdade de expressar suas opiniões, quanto os direitos de quem sente o impacto deste direito.

Nas palavras de Caio Paiva (2017, pg. 145), esses direitos possuem um caráter bivetorial, situação que emana um papel humanista a esses direitos, pois, além de concretizarem a democracia no governo, eles contribuem para uma maior difusão e debate de ideias nos espaços sociais.

Vale dizer, que no âmbito da OEA, a Declaração de Princípios sobre Li-berdade de Expressão, no seu Artigo 1, menciona que, a liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas, sendo requisito indispensável para a existência de uma sociedade democrática.

POSSIBILIDADE DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE SOBRE UMA NORMA CONSTITUCIONAL ORIGINÁRIA.

A importância deste caso, é analisada, em razão do Estado chileno ter sido responsabilizado pela Corte, mesmo tendo agido sob prisma de uma norma cons-titucional oriunda do poder constituinte originário. Assim, nota-se que inde-pendentemente da hierarquia da norma, haverá a possibilidade do controle de convencionalidade.

Vale dizer que a prática de censura do filme pelo Chile, é inconvencional, em relação ao ordenamento jurídico internacional, onde a Corte, utilizando-se do Controle de Convencionalidade, determinou que este Estado, alterasse o artigo 19 §12 da Constituição Chilena, que trazia a possibilidade de censura prévia.

FREE MARKETPLACE OF IDEAS (LIVRE MERCADO DE IDÉIAS)Criada por John Milton, esta teoria afirma que o direito de liberdade de

expressão detém uma posição especial no sistema constitucional brasileiro, o que lhe dá um peso abstrato em hipótese de colisão com outros direitos fundamentais ou interesses sociais. Este autor, afirma que a ocorrência de ideias contrárias, é de bom grado, por servir ao debate público, retirando a população da estagnação de crença perpétua de uma ideia.

Tal expressão ‘’free marketplace of ideas’’, nos remete a uma possibilidade de existência de diversas opiniões, expressões, ideias em um mesmo âmbito, onde a

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própria sociedade existente neste local, possa discutir, debater sobre o assunto, ob-servando várias visões, acerca do mesmo tema, não existindo uma verdade absoluta.

O LIMITE DO DIREITO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO AO DIREITO DE OUTREM.

No tocante a possibilidade de haver limitação ao direito de liberdade de ex-pressão, quando em conflito com o direito de outra pessoa, é importante mencionar que a nossa Carta Magna assegura a liberdade de manifestação de pensamento, da criação, da expressão e informação, em qualquer veículo, dando liberdade a qualquer espécie de manifestação ou expressão, sendo esta artística, política, ou ideológica, sendo vedada qualquer censura, conforme estabelece o Artigo 220 §1 da CRFB/88.

Devemos nos atentar, de que os direitos fundamentais não são absolutos, ou seja, todos podem ser relativizados. Com isso, surge o questionamento de como se surgiria a limitação ao direito de liberdade de expressão ou manifestação.

A maioria da doutrina entende que o direito de liberdade de expressão, será limitado, quando o mesmo violar direito fundamental pertencente à outrem, como por exemplo nos casos dos ‘’paparazzi’’, que por diversas vezes invadem a vida privada de alguns atores ou atrizes, em busca de fotografias ou fatos para co-locarem em suas reportagens em busca de mais visibilidade. Esta conduta, é uma amostra do conflito entre direitos fundamentais, dentre os quais o da liberdade de expressão e informação em razão do direito à privacidade.

Realizando um raciocínio razoável e proporcional, deve-se analisar que nem sempre o direito de liberdade de expressão deve prevalecer, pois, a partir do mo-mento em que esse direito fere outro que de acordo com a Constituição Federal, tem a mesma hierarquia, deve se perceber que haverá uma necessidade de ponde-ração, onde se deve buscar, uma harmonia desejável.

É notório que nos dias de hoje, o ser humano tem mais facilidade de se expressar, seja por redes sociais ou até mesmo pelos vínculos de amizade, fato o qual deve ser leva-do com extremo cuidado, tendo em vista que hoje uma informação mal expressada, se torna de alcance à todos em questão de minutos. Tal fato é o fenômeno da populariza-ção da internet, o qual está crescendo a cada dia mais, onde a pessoa em sua rede social utiliza sua liberdade de expressão de forma irrestrita, sem pensar nas consequências, tendo como exemplos, casos de racismos, intolerância religiosa e homofobia.

Conforme as palavras do Ministro Barroso na ADI 5136, a liberdade de ex-pressão é uma manifestação da dignidade da pessoa humana e, do ponto de vista

EDna raQuEL HoGEmann E SérGio aSSunÇÃo roDriGuES Júnior 73

do seu valor instrumental, ela é também uma forma de expressão para realizar este fim último da democracia.

No entanto, Alexandre de Moraes (2012, pg. 52), afirma que a liberdade de expressão não pode sofrer nenhum tipo de limitação prévia, no tocante a censura de natureza política, ideológica e artística.

Vale dizer que tal posicionamento não pode ser encarado frente à nossa socieda-de atual, pois se adotarmos o entendimento de que a liberdade de expressão não pode ter nenhum tipo de limitação, estaremos diante de um momento onde qualquer um sentirá direito de falar o que bem entender, sem temer qualquer consequência.

IMPORTANTES PRECEDENTES NA JURISDIÇÃO NACIONAL ADI DO HUMOR

Na ADI 4451, de relatoria do Ministro Ayres Britto, conhecida como ‘’ADI do Humor’’, discutiu-se a constitucionalidade do Artigo 45, I e II da Lei 9504/1997, que abordava sobre a temática dos conteúdos humorísticos em tempos de eleições, classificando como conduta vedada às emissoras de televisão e rádio, a partir do dia 1 de julho do ano eleitoral, a utilização de qualquer recurso de áudio ou vídeo que degradasse, determinado candidato, partido político ou coligação.

O STF, em sede de medida cautelar naquela ADI, refutou tal proibição à luz do direito à liberdade de expressão, bem como de proibição à censura que vigora no país, sendo este precedente importante pois naquela época, tentava-se impor à cen-sura aos meios de comunicação que utilizavam-se do humor como crítica à política.

MARCHA DA MACONHATal precedente teve como relator o Ministro Ayres Britto que juntamente

aos outros Ministros do STF, assentiram a prática da manifestação popularmente conhecida como ‘’Marcha da Maconha’’ com o argumento de que a mesma estaria salvaguardada pela liberdade de expressão e pela liberdade de reunião, não resul-tando, assim, na apologia ao crime.

Pedro Lenza (2015, pg. 1173-1174), afirma que a decisão do STF é im-portante, pois fora legitimado o movimento, prevalecendo o direito de reunião. Informa ainda que no julgado, o Ministro Luiz Fux, estabeleceu parâmetros, tais como: a reunião deve ser pacífica, não se pode admitir a incitação ao consumo de entorpecentes, não poderá haver consumo destes e a proibição da participação de crianças e adolescentes.

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CASO GERALD THOMASTrata-se do fato ocorrido com o diretor de peças teatrais Gerald Thomas,

que fora vaiado e ofendido ao final de um dos espetáculos que dirigiu e em reação subsequente àquela manifestação, o diretor exibiu suas nádegas ao público, moti-vo o qual gerou uma ação penal com base no crime de ato obsceno, tipo exposto no Artigo 233 do Código Penal.

Tal caso chegou até o Supremo Tribunal Federal pela via do Habeas Cor-pus 83.996, tendo como relator o Ministro Carlos Velloso, que junto aos outros Ministros concederam a ordem, pois, em razão das circunstâncias que os fatos ocorreram, por ter sido uma apresentação teatral que continha no próprio roteiro uma simulação de ato sexual e que após a manifestação negativa do público às duas horas da manhã, o ato realizado pelo Senhor Gerald Thomas estaria abarcado pelo direito à liberdade de expressão.

Logo, percebe-se que o ato de Gerald Thomas, mesmo sendo configurado ato obsceno, no caso, estaria enquadrado na liberdade de expressão, demonstran-do assim que o STF neste caso, deu preferência ao direito fundamental da liber-dade de expressão, analisando o caso concreto.

ADI DAS BIOGRAFIASEsta ADI número 4815, de relatoria da Ministra Carmen Lúcia, fora julgada

procedente no dia 9 de junho de 2015, onde por meio desta declarou a inexigibili-dade da autorização prévia para a publicação de biografias, conferindo interpretação constitucional junto aos artigos 20 e 21 do Código Civil brasileiro, concomitante-mente aos direitos fundamentais comunicativos previstos na CRFB/88.

Neste caso, o STF privilegiou mais uma vez o direito à liberdade de expres-são e o livre mercado de ideias em detrimento de outros direitos.

CASO JONAS ABIBTem-se aqui um caso, onde o sacerdote da igreja católica Jonas Abib, autor

do livro ‘’Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação’’, que é voltado para os católicos, realizou no mesmo, inúmeras críticas ao espiritismo e as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, motivo que levou o MPE/BA, a oferecer denúncia contra este, pela prática de racismo.

O caso chegou ao STF no ano de 2016 no RHC 134.682, que decidiu que o conteúdo normativo e o suporte fático do direito à liberdade religiosa abran-

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gem não apenas a possibilidade de escolher qual religião irá seguir, ou se não irá seguir nenhuma, mas também a prática do proselitismo. Com isso, mesmo que o proselitismo seja praticado de modo comparativo entre as religiões, tal conduta não configurará, por si só, crime de racismo, exceto nos casos em que o autor do discurso utilizar palavras de ódio, as denominadas ‘’fighting words’’ ou propor um discurso de dominação visando diminuir outras religiões.

CONCLUSÃOAtravés do que fora estudado neste trabalho, é de fácil constatação o quão im-

portante é a análise da liberdade de expressão como instituto marcante dos direitos e garantias fundamentais, mormente tendo em conta o verdadeiro êmbolo propulsor desse estudo que se revelou o conflito decorrente da produção do filme “ A última tentação de Cristo”, verdadeira obra-prima do diretor Scorsese, que soube, como poucos demonstrar que tal direito é oriundo da própria relação humana em com-preender que o próximo pode se expressar de tal modo que não ofenda à outrem.

O estudo do direito de liberdade de expressão que no nosso ordenamento jurídico, está previsto no Artigo 5, inciso IX, é um dos pilares deste trabalho, onde tal direito se refere aos aspectos intelectuais, artísticos e científicos e suas relações diretas com a limitação de tal direito perante a população com um todo, tendo em vista que também se há o dever de respeitar a opinião e pensamento alheio.

O Caso Olmedo Bustos x Chile é o marco na jurisprudência internacional dos direitos humanos que por consequência expandiu a discussão sobre o direito de liberdade de expressão e qual seria seu limite. No caso ocorreu o dilema entre liberdade de expressão e a censura religiosa impregnada pela igreja católica, onde de forma nítida, prevaleceu o bom senso, onde a Corte Interamericana de Di-reitos Humanos, concluiu que o Estado Chileno violou o direito à liberdade de pensamento e expressão que estão previstos no Artigo 13 da CADH.

É notável que tal caso tenha tal relevância para a sistemática dos direitos hu-manos internacionais tendo em vista que o mesmo se tenha originado entre uma produção cinematográfica e uma igreja católica, que costumava ser um grande e poderoso aliado do Estado em épocas não tão longínquas.

Sendo assim, é evidente e clara a importância deste Caso, como marco da expansão do direito de liberdade de expressão na jurisprudência internacional dos direitos humanos, fato que gerou a grande discussão sobre a necessidade de relati-vizar tal direito perante o pensamento dos outros, o qual nos torna uma sociedade democrática por si só.

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HIPERENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL: RE-FLEXÕES A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “O CÁRCERE E A RUA”

Daniel Fauth Washington Martins1

Katie Silene Cáceres Argüello2

Victor Sugamosto Romfeld3

Apesar de parecer um tema relativamente “novo” nas ciências criminais, o encarceramento feminino no Brasil é um fenômeno que vem sendo estudado pelo menos desde a década de oitenta.4 A partir de então, criminólogas brasileiras têm se debruçado não somente acerca do surgimento dos presídios femininos em nosso país5, como também sobre as vulnerabilidades da mulher quando está sob a custódia do poder punitivo estatal.6 Destaca-se, ainda, o papel perverso que a política criminal de drogas tem desempenhado nos últimos anos, proporcionan-do um crescimento exponencial da população carcerária feminina.7 É justamente neste contexto que as reflexões deste trabalho se inserem, procurando articular os fundamentos teóricos aqui expostos com a realidade das mulheres encarceradas, que é apresentada no documentário escolhido pelos autores.

Portanto, este artigo trata de uma análise atualizada do documentário acla-mado pela crítica em 2004, de Lilliana Suzbach, “O Cárcere e a Rua”, o qual retrata a trajetória de três detentas da penitenciária Madre Pelletier de Porto Ale-gre-RS. Cláudia é a presa mais velha e está prestes a sair para o regime semi-aber-

1 Graduando do 10º período de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bacharel e Mestrando em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Penal e Crimino-logia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financia-mento 001.

2 Doutora pela Université Paris-8. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Criminologia nos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora do Núcleo de Criminologia e Política Criminal do Programa de Pós-Graduação da UFPR (NCPC).

3 Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Di-reito Homoafetivo e Gênero pela Universidade de Santa Cecília (UNISANTA). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela UFPR.

4 Conferir a pesquisa de Julita Lemgruber, uma das pioneiras ao examinar a temática em questão: LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

5 ANGOTTI, Bruna. Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2012.

6 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCrim, 2004.7 HELPES, Sintia Soares. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. São

Paulo: IBCCrim, 2014.

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to. Daniela, de 19 anos, acabou de chegar. E Betânia, 28, sai do presídio para o regime semi-aberto. A narrativa alterna as três histórias, mostrando momentos específicos da vida de cada uma delas na prisão e na transição para a liberdade. O foco do documentário é a dificuldade que passa a mulher nesse período de transi-ção do cárcere para a rua e da rua para o cárcere.

Pretendemos, a partir do documentário, analisar as condições de vida da mulher encarcerada e estabelecer uma relação com o atual cenário de hiperencar-ceramento feminino em razão da feminização da pobreza e do enrijecimento da política criminal de drogas no contexto brasileiro. Ao final, procuramos explorar as funções desempenhadas pela custódia estatal das mulheres, para além da priva-ção de liberdade, com o apoio de argumentos oriundos da Psicanálise lacaniana. Sustentemos que as mulheres, ao subverterem a ordem fálica, são convertidas em inimigas do “Estado-centauro” patriarcal, estando submetidas a um ciclo de rejei-ções e violências que culmina em um “novo” aprisionamento da vivência dessas mulheres, ou seja, na dicotomia entre cárcere e rua.

2. O CÁRCERE COMO INSTITUIÇÃO TOTAL A prisão é uma instituição total e as instituições totais são “estufas para mu-

dar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”.8 Se a estada do internado é muito longa, caso ele volte ao mundo exterior, pode ocorrer o “destreinamento”, ou “desculturamento” que o incapacita a enfrentar a sua rotina diária, a sua própria vida.9

Isso fica bem evidente nas palavras da Cláudia, presa por latrocínio, que passou 28 de seus 54 anos na prisão:

“Tu vive um mundo totalmente isolado de tudo. É um lugar que tu vive isolado do mundo e de todos. Pra tu ver alguma coisa que se passa na rua tem sempre que ser através duma televisão ou alguém que vem e que converse contigo. Isso é muito raro e é muito duro tu amanhecer numa cadeia, anoitecer, ver o inverno chegando. Eu tenho 54, 28 eu passei na cadeia. Passa dia, semana, mês , ano, e tu não tem nem noção de quando vai sair. É uma rotina, vira uma rotina, é uma rotina que tu não acaba te acostumando, tu acaba se adaptando a ela. Aí é tão estranho que na hora de tu te livrar dela, tu tá amarrado nela, entendeu? Não sei como vou te explicar. Você fica tanto tempo na cadeia que você fica louca para se livrar, quer liberdade. Chega na hora de se livrar, tu tá tão envolvida nesse mundo fechado que tu te sente mal em pensar em sair fora .” (sic)

8 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Pers-pectiva, 2007, p. 22.

9 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 23.

DaniEL FauTH WaSHinGTon marTinS, KaTiE SiLEnE CáCErES arGÜELLo E viCTor SuGamoSTo romFELD 79

Claudia viveu presa nessa instituição total na maior parte da sua vida e por pior que seja a vida na prisão, mesmo tendo vivenciado o inferno de Dante naquele lugar, esse é um sofrimento que ela já conhece, ao qual ela se adaptou, en-quanto o lado de fora da prisão representa a incerteza e o medo, depois de tantos anos institucionalizada. Há, ao mesmo tempo, a ânsia pela liberdade e o medo de tudo que a espera do lado de fora, sobretudo a rejeição das pessoas, o estigma de ser uma ex-detenta, a incerteza sobre como sobreviverá fora da prisão.

Uma instituição total é um lugar de residência e trabalho onde vários indi-víduos em situação semelhante permanecem separados da sociedade por um con-siderável período de tempo, levando uma vida fechada e formalmente administra-da.10 O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que normalmente separam as três esferas da vida: onde se dorme, onde se tem lazer e onde se trabalha. Primeiramente, todos os aspectos da vida passam a se realizar sob uma única autoridade e num mesmo local; em segundo lugar, cada atividade diária do internado é realizada em grupo, na companhia de outras pessoas, todas elas obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, toda a sequência de atividades é imposta de cima para baixo, sendo rigoro-samente estabelecidas em horários predeterminados por um sistema de regras dos funcionários. Finalmente, para atender os objetivos da instituição, são reunidas num plano racional único as várias atividades obrigatórias.11

Não bastasse o fato de perder completamente a autonomia e de passar a ter uma vida toda administrada, subordinada e sem individualidade, o internado enfrenta uma série de humilhações, rebaixamentos e degradações do seu “eu”. O “eu” passa a ser mortificado, a começar pela barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo. Algumas de suas perdas são irre-cuperáveis em uma fase posterior do seu ciclo vital, como por exemplo, o progres-so educacional, profissional, os relacionamentos, a criação dos filhos, a relação familiar. O que ocorre com a pessoa presa é uma morte civil: “Os presos podem enfrentar, não apenas uma perda temporária dos direitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-se a processos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem ter alguns desses direitos permanentemente negados”.12

Há nas instituições totais uma mutilação do “eu”, inclusive a perda de um sentido de segurança pessoal porque as suas demandas podem ser respondidas com pancadas, castigos, maus-tratos, terapia de choque, enfim, podem lhe dar a

10 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 11.11 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 17-18.12 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 25.

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sensação de que estão em um ambiente que não garante sua integridade física. O indivíduo pode ser obrigado a dar respostas verbais humilhantes, a manter o cor-po em posições humilhantes, obedecendo a um padrão de deferência obrigatória nas instituições totais. Na prisão, os territórios do eu são violados constantemen-te, desde o próprio corpo, as ações imediatas, os pensamentos, os seus bens, tudo pode sofrer uma “exposição contaminadora”.13

3. A PRODUÇÃO DOS ESTIGMAS: O “SER MULHER” NA PRISÃOSituações como essas podem ser ainda mais intoleráveis para as mulheres

prisionalizadas, que enfrentam uma maior culpabilização e disciplinamento pelo fato de terem violado o papel que socialmente foi destinado à mulher no patriar-cado.14 As mulheres prisionalizadas suportam um plus de sofrimento pelo fato de serem mulheres, com suas peculiaridades relativas ao relacionamento familiar, à maternidade, à construção social do papel feminino no patriarcado.

Existe um lombrosianismo no tratamento da mulher prisionalizada, pois se para Lombroso, as pessoas que delinquem sofrem sintomas de anormalidade e periculosidade, as mulheres delinquentes são consideradas especialmente “de-generadas”, uma vez que violaram as normas sociais de sua condição feminina, para além de terem violado as regras legais. Assim, acabam sendo comparadas a “monstros” criminais.15

Nas prisões femininas, normalmente existe estrutura espacial inadequada, falta de recursos para programas reabilitadores e um corpo de funcionários des-preparado para lidar com as peculiaridades relativas ao feminino. Como observa Nana Queiroz, a prisão foi feita por homens e para homens.16

O tratamento penitenciário destinado às mulheres reforça o estereótipo de que as mulheres precisam ser mais disciplinadas e controladas: há um uso abusivo de medicação,17 falta assistência à saúde e falta o amparo às mulheres com encar-gos familiares. A medicalização para “tirar a cadeia” é muito comum nos presídios

13 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 31.14 Entende-se patriarcado no sentido elaborado por Heleieth Saffioti, como o regime de dominação e exploração

das mulheres pelos homens. Compreende-se o patriarcado em permanente transformação e de um modo que não abrange somente a família, mas atravessa toda a sociedade. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão popular: Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 47-48.

15 SARAMANCH, E.A. Ejecución penal y mujer en España. In: SARAMANCH, E. A.; GONZÁLEZ, E. B. (org.) Mujeres y castigo. Madri: Dykinson, 2007. Ver também: LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. São Paulo: Ícone, 2007. LOMBROSO, Cesare. La Donna Delinquente. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1903.

16 QUEIROZ, Nana. Presos que Menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015.17 “No fechado tem bastante gente no controlado. À noite, as guardas passam com vidrinho, de porta em porta,

colocando. A caixinha de remédio de cada andar é enorme. E a maioria é vício. A maioria é pra tirar a cadeia”. In: QUEIROZ, Nana. Obra citada, p. 147.

femininos, conforme se depreende inclusive da análise da fala da Cláudia, no documentário “O cárcere e a rua”:

Tomo antidepressivo, tomo calmante, não dá para segurar de cara limpa, que nem dizem as gurias, né? Preciso, ninguém tira cadeia sem tomar remédio. (sic)

As desigualdades de gênero são amplificadas na prisão. O relatório do INFOPEN mulheres de 2016 mostra dados alarmantes sobre a taxa de suicídio entre mulheres no sistema prisional, que chega a ser maior que 20 (vinte) vezes a média nacional. Situação essa que demonstra que as condições do cárcere para mulheres vêm se degradando ano a ano, além do fato de que as unidades femininas são meras adaptações de unidades masculinas, que na maior parte não atende às necessidades específicas das mulheres, pois a maioria das unidades prisionais destinadas a mulheres são mistas. Essas condições estruturais soma-das ao rompimento dos vínculos familiares e comunitários, à separação dos filhos18, ao abandono, às dificuldades sociais, econômicas e psicológicas levam ao adoecimento psíquico das mulheres encarceradas, resultando muitas vezes na tentativa de suicídio.19

O peso da estigmatização recai sobre as mulheres aprisionadas de uma for-ma ainda mais cruel porque a sociedade não perdoa a mulher que não segue as regras do patriarcado, como é o caso da mulher prisionalizada, que é duplamente punida, primeiro, porque violou a regra da disciplina do patriarcado e, depois, porque violou a lei penal.

O estigma é uma marca, a pessoa que carrega um estigma é ritualmente poluída. Os “normais” acreditam que alguém com um estigma não seja comple-tamente humano e com base nisso discriminam de tal maneira que, muitas vezes, levam à redução das chances de vida do estigmatizado.20

Os gregos utilizaram o termo estigma para se referirem a “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinária ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”.21 O estigma indica uma pessoa marcada (escravo, criminoso ou traidor), alguém que merece ser evitado, especialmente em lugares públicos.

18 No documentário, fica evidente que uma das detentas mais novas (Daniela), após a gravidez, sequer tinha informações claras e precisas sobre o estado do seu filho, que fora encaminhado ao Conselho Tutelar.

19 INFOPEN mulheres 2016. 2. ed. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acessado em: 07/07/2019.

20 GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1988, p. 15.

21 GOFFMAN, Erving. Obra citada, p. 11.

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Esse estigma persegue o imaginário da mulher prisionalizada, como é o caso da Cláudia que fugiu de casa aos 14 anos de idade e foi parar em Porto Ale-gre, embora não revele as razões da fuga. Mas afirma que passou fome, dormiu na rua e começou a roubar, ou seja, que teve uma vida muito dura desde muito cedo e que jamais imaginava que iria passar pelo que passou, que iria receber o estigma de condenação por um crime que ela própria abominava. Nas suas pró-prias palavras:

As coisas não é como a gente pensa, puxa, latrocínio, eu pensava, tem que ter pena de morte no Brasil... matar. Eu não sabia, eu pensava que latrocínio... matava por prazer, por maldade, porque gostava, porque gostava... isso que eu pensava. Mas não é... Como diz o ditado, não cospe para cima que no seu rosto não cai, né? Eu pensei e hoje eu estou tirando cadeia por latrocínio. (sic)

Claudia mostra dignidade nas suas falas. Em momento algum ela se justifi-ca ou se lamenta pela vida de infortúnios, ao contrário, se mostra forte, aguerrida, solidária e cheia de compaixão pelas outras mulheres que passam pelo mesmo infortúnio da prisão. Ela é a presa mais velha e a mais respeitada, razão pela qual Daniela, uma garota de 19 anos, grávida, acusada de ter matado o próprio filho, fica sob sua proteção na galeria, para evitar de ser linchada pelas outras presas que não toleram homicídio de criança.

Interessante notar que o sofrimento pelo qual passou Cláudia, que antes achava que a pena para o latrocínio deveria ser a de morte, a modificou, a tor-nou mais tolerante e compassiva com uma pessoa cujo crime sequer é tolerado pelas próprias detentas, como o homicídio de uma criança. Claudia aprendeu a enxergar a pessoa, o ser humano, por trás do estigma de criminoso, e isto é o que todos deveríamos aprender, sem ter que passar pelo mesmo sofrimento que ela passou.

Claudia afirma, logo no início do documentário, o seguinte: O que as pessoas pensam lá fora era o que eu pensava também. Tem que tirar da sociedade. São pessoas que não podem conviver na sociedade. Tira. Não somos nada para eles lá fora. Eu sei, tenho certeza disso. Nós semos insignificantes para eles, se nós não saíssemos nunca para eles seria melhor.” (sic)

Nessas palavras é que nos parece estar ancorado o temor de seu retorno à sociedade. Cláudia sabia como a sociedade a veria e como seria difícil conviver com esse estigma, como seria difícil retornar ao filho, à família, aos amigos (se é que eles ainda existiam), ao trabalho (se é que este lhe seria propiciado).22 O que

22 Betânia se manifesta no mesmo sentido, relatando as dificuldades de conseguir um emprego com carteira assinada depois de ser transferida para o regime semi-aberto.

lhe aguardava do lado de fora? O cumprimento de pena de 28 anos de prisão provavelmente ainda não seria suficiente para aplacar o ânimo retribucionista da sociedade. Será que ela suportaria tanta pressão? O que sabemos (não pelo do-cumentário) é que Cláudia não suportou, meses depois de sair para o regime de semi-liberdade, suicidou-se.

Essa é mais uma história trágica sobre um sistema prisional que tem se ampliado em proporções geométricas nos últimos anos e, assim, causado muito mais sofrimento e dor.

4. A (ATUAL) POLÍTICA DE DROGAS E SEU PAPEL DECISIVO NO (HIPER)ENCARCERAMENTO FEMININO

Quando o documentário “O Cárcere e a Rua” foi exibido pela primeira vez, em 2004, ainda não havia sido aprovada a Lei nº 11.343/06, a lei de drogas que seria responsável, ao lado da feminização da pobreza, pelo hiperencarceramento feminino dos últimos anos. Entre 2000 e 2014, no Brasil, o número de mulheres presas aumentou 567%, enquanto o de homens aumentou 220%. A segunda edição do INFOPEN mulheres constata o aumento do encarceramento feminino que entre 2000 e 2016 foi de 656%.23 A entrada dessas mulheres na prisão está relacionada ao tráfico de drogas ou associação para o tráfico de drogas e, consi-derando que 70% das mulheres condenadas cumprem pena de até 8 (oito) anos, infere-se que na maioria dos casos foram presas por crimes que não envolvem vio-lência ou grave ameaça, podendo estar relacionadas com atividades de transporte, guarda ou uso de droga.24

Embora as mulheres desempenhem o papel de arrimo de família, conti-nuam a receber salários mais baixos que os dos homens, sendo que prevalecem ní-veis maiores de pobreza entre as mulheres e os lares por elas chefiados. As mulheres ingressam no mercado de ilicitudes para complementar a renda ou mesmo para obtê-la, na falta de trabalho. Não é só no mercado de trabalho que as mulheres estão em posição subalterna, mas também no mundo do crime. Normalmente, as mulheres ocupam postos no mercado de ilicitudes que as deixam em situação de maior vulnerabilidade ao processo de criminalização, como é o caso da venda varejista de drogas, que muitas vezes é realizada na própria casa para conseguir dar

23 INFOPEN mulheres 2016. 2. ed. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acessado em: 07/07/2019.

24 INFOPEN mulheres 2016. 2. ed.. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acessado em: 07/07/2019.

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conta das tarefas domésticas, de cuidar dos filhos e de realizar a atividade ilícita que lhes possibilitem um mínimo para a subsistência. Em regra, essas mulheres são muito pobres, têm baixíssima escolaridade, são jovens em sua maioria e duas em cada três são negras. Ou seja, é o setor mais vulnerável da escala social. Este é o perfil da mulher encarcerada no Brasil.

Esta afirmação não é meramente abstrata, retórica ou panfletária, pois pode ser verificada nas mais diversas pesquisas acadêmicas realizadas no Brasil nos últi-mos vinte anos. As Penitenciárias Femininas que existem no país apresentam uma “clientela” com um perfil muito bem delimitado: em sua maioria, jovens (20-30 anos), de baixa escolaridade e negras.25 Este retrato é ainda mais gritante quando levamos em conta as mulheres encarceradas por tráfico de drogas26, evidenciando a complexa intersecção entre gênero, classe e raça.

Ao contrário do que mostra o documentário “O Cárcere e a Rua”, a maior parte das mulheres está presa por praticar comércio varejista de drogas, sem vio-lência ou grave ameaça a terceiros, portanto, não são criminalizadas por latrocí-nio, assalto à mão armada ou homicídio de criança, como foram as três mulheres retratadas pelo documentário. Na realidade, o tráfico de drogas – no linguajar jurídico – é um crime de presunção de perigo, sequer é um crime em que há lesão efetiva a algum bem jurídico, e muito menos existência de vítima.

Se as drogas fossem legalizadas e sua produção, comércio e consumo fos-sem regulamentados, esse crime deixaria de existir, assim como deixou de existir a proibição do álcool nos Estados Unidos, que foi responsável nos anos 20 do século passado pelo aumento da corrupção policial e política, pela violência, pelo poderio da máfia, por mais de 500 mil presos à época, por inúmeras mortes por overdose, por inúmeros casos de cegueira e paralisia causados pelo uso de álcool metílico. Quem hoje, em sã consciência, pensaria em proibir o álcool, que tam-bém é uma droga e possui efeitos deletérios sobre a saúde?

25 Neste sentido, pertinente citar dois estudos distintos, efetuados nas penitenciárias do Distrito Federal (DF) e na cidade de Juiz de Fora (MG), respectivamente: PEIXOTO, Paula Carvalho. Vítimas encarceradas: histó-rias de vida marcadas pela violência doméstica e pela criminalidade feminina. São Paulo: IBCCrim, 2017, p. 79 e ss. Também checar: HELPES, Sintia Soares. Obra citada, p. 125 e ss.

26 Três pesquisas apontam nesta direção específica, todas efetivadas na Penitenciária Feminina de Piraquara, no Paraná (PR). A propósito, conferir: ARGÜELLO, Katie; MURARO, Mariel. Las mujeres encarceladas por tráfico de drogas en Brasil: las muchas caras de la violencia contra las mujeres. Oñati Socio-Legal Series, v. 5, p. 389-471-471, 2015. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2611052. Acessado em: 10/07/2019. TELES, Gabriela Caramuru; ROMFELD, Victor Sugamosto. Penitenciária Femi-nina de Piraquara: um ensaio sobre vida e tráfico. AnaisdaXIVJornadadeIniciaçãoCientíficadaFacul-dade de Direito da UFPR. Curitiba: Grupo PET Direito e Centro Acadêmico Hugo Simas, 2012, p. 83-105. Por fim: SÁ, Priscilla Placha (Coord. e Org.). Diário de uma intervenção: sobre o cotidiano de mulheres no cárcere. Florianópolis: EMais, 2018.

4. PARA ALÉM DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: OS SIMBO-LISMOS DO CÁRCERE E SUAS MÚLTIPLAS FORMAS DE VIOLÊNCIA

Qual seria a função de tamanho ritual de degradação? Se por um lado é patente a falência das penas de prisão enquanto instância ressocializadora (ainda que não reincidente, nada garante que o sujeito prisionalizado sairá do encarce-ramento mais “apto” ao convívio em sociedade), por outro, não menos gritante é sua função teratogênica, voltada à geração de sofrimento e destruição da sub-jetividade. O que se almeja, ao cabo da pena, é a destruição do processo criativo autônomo do sujeito, de quem se espera obediência às regras e metarregras do cárcere, e de quem se cobra sua própria sobrevivência dentro de injunções muitas vezes paradoxais de autoproteção/subserviência.

Apesar de ser um lugar bastante real, a prisão é também um espaço simbóli-co cuja função é demarcar um dentro e um fora relativo a formas de subjetividade abjetas, uma forma de estabilizar essas identidades dissonantes em formas cognos-cíveis e previsíveis. Em suma, de transformar pessoas que cometeram crimes em criminosos identificáveis, já que adequar-se a essa identidade acaba sendo uma das únicas formas de sobrevivência no regime prisional.

No caso do documentário vemos como, cada uma a seu modo, as presas precisam “apagar” uma parte de si mesmas para sobreviver ao cárcere. Cláudia é enfática ao falar sobre o uso de medicamentos, Daniele aos poucos torna-se me-nos emotiva, assume um olhar firme e mais distante ao mesmo tempo, enquanto Betânia sequer deseja voltar ao semiaberto. De qualquer forma, há uma vague-za, algo que se perdeu, um preço subjetivo pago para que não haja destruição completa da subjetividade. No confronto com o Estado-Centauro27, expressão cunhada pelo sociólogo Loïc Wacquant para aludir a essa dupla configuração de um poder público que é meio humano racional e meio besta violenta, as presas se encontram com a parte brutal do ordenamento social.

Haveria alguma função em tal ação? Tal processo não é tão voltado a quem está dentro, mas antes exerce uma função mitológica racista para aqueles que estão fora. Adotando uma concepção ampla de racismo28, o filósofo camaronês Achille Mbembe indica como, na contemporaneidade, a divisão da humanidade em “nós” e “eles” cumpre uma função narcísica de reafirmação de si. Focando no contexto

27 WACQUANT, Löic. Punir os pobres: a nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: REVAN, 2003.

28 MBEMBE, Achille. Politiques de l'inimitié. Paris, La découverte, 2018.

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colonial e pós-colonial, o autor indica que a democracia atual está umbilicalmente ligada tanto a suas formas atuais de violência (extermínios étnicos, guerras em nome de Direitos Humanos, práticas de tortura) quanto a seu passado escravista29. Este corpo noturno da democracia, como nomeia o autor, é condição fundamental para que se mantenha uma cisão dentro da própria ideia de humanidade, para que se possa continuar a, por um lado, proclamar um regime de liberdades democráticas e garantias sociais sem, contudo, subverter o sistema econômico ou abrir fronteiras a pessoas “indesejáveis”, sem estender a democracia a “eles”.

Para tanto, é necessária a figura de um inimigo30, um Outro que, me com-plementando naquilo que considero abjeto em mim, recebe os atributos indese-jáveis e é ritualisticamente punido. Então, se o que a sociedade considera como desejável é a pele clara, a glorificação do trabalho, o respeito irrestrito à proprieda-de, o lugar da mulher enquanto mãe, a mulher que comete crimes será colocada nesse lugar de a Outra da “boa” mulher: uma mulher que odeia a maternidade, que não se coloca como objeto de desejo e de trabalho, que não ocupa seu lugar na economia do desejo da nação,31 ou seja, que não zela pela continuidade do projeto de vida, de boa família, de celula mater da sociedade.

Note-se que, conquanto as biografias das apenadas do documentário se-jam diversas (a não ser, talvez, por sua origem social), o estigma que pesa sobre elas é semelhante, e a pena imposta é igualmente massificada. Equivalente a uma lobotomização do desejo, o cárcere contribui para a manutenção ritual de uma concepção bélica da realidade, o chamado Estado de Segurança, que permite com que se afaste a alteridade em nome de uma proteção de si. Este estado:

… pressupõe a impossibilidade de uma “cessação de hostilidades” entre aqueles que ameaçam nosso modo de existência e nós – e portanto a existência de um inimigo irredutível que não deixa de se metarmorfosear –, essa guerra é, destar-te, permanente. (…) animado por uma mitologia da liberdade que desponta, no fundo, de uma metafísica da força, o estado de segurança está menos preocupado com a distribuição de lugares e de honrarias do que com o projeto de dispor da vida dos seres humanos, tanto em relação aos sujeitos ou àqueles designados como seus inimigos.32

29 MBEMBE, Achille. Obra citada, p. 26 e ss.30 MBEMBE, Achille. Obra citada, p. 69 e ss.31 MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX (Coleção

Queer). Annablume editora. Edição do Kindle.32 MBEMBE, Achille. Obra citada p. 77. Tradução livre de “(…) présuppose l’impossibilité d’une “cessation

des hostilités” entre ceux qui menacent notre mode d’existence et nous – et donc l’existence d’un ennemi irréductible qui ne cesse de se métamorphoser -, cette guerre est désormais permanente. (…) animé ouverte-ment par une mythologie de la liberté qui relève, au fond, d’une metapsysique de la force, l’État de sécurité est moins préoccupé par la distribution des places et des prébendes que par le projet de disposer de la vie des êtres humains, qu’il s’agisse de ses sujets ou de ceux qu’il aura désignés comme ses ennemis”.

Dito de outra maneira, qual será o inimigo não importa tanto quanto a existência de um inimigo que possa justificar a manutenção da excepcionalidade. As inimigas, no caso das mulheres do documentário, simbolizam um amálgama precário de qualidades imaginárias que consegue se ancorar em um ponto bio-gráfico, ou seja, o cometimento de um delito é a ocasião para a reencenação do combate ao mal, para a reafirmação de uma forma de vida através da aniquilação de outra vida, no sentido daquilo que Michel Foucault denomina, ao final de seu curso Em defesa da sociedade33, de Racismo de Estado. Para o filósofo francês, a partir do momento em que o conceito de vida é criado, cria-se também uma distinção entre o amigo ou inimigo da vida, e essa dimensão de corte é própria da atividade (bio)política, que define aquilo que é vida e aquilo que deve morrer para que a vida prospere.

Percebe-se que a finalidade do cárcere não é, no fundo, que as pessoas mor-ram, mas que elas deixem de viver, seja através da narcotização, seja pelo enlou-quecimento, ou mesmo pela morte física causada por si mesmo ou por outrem, por negligência estatal, ação direta ou mera exposição à violência. O incremento da presença de mulheres no cárcere a partir do advento da Lei de drogas amplifica ainda mais esse universo de inutilização do sujeito para si, como uma vingança perversa do capital-patriarcado colonialista e supremacista branco34 que, incapaz de gozar de um corpo à sua maneira, subtrai dele a utilidade para o sujeito igual-mente, já que a privação de liberdades (pois o cárcere subtrai um sem-número de mobilidades fáticas e simbólicas do indivíduo) nada mais é do que a impossi-bilidade de performar e constituir a si mesmo. Tentando “sobre-viver”, o sujeito torna-se praticamente incapaz de viver.

Por outro lado, é necessário também escancarar o caráter francamente masculino do Direito enquanto discurso, tanto em sua configuração de fato (mulheres representam pouco menos que dois quintos da magistratura apenas)35 quanto em sua linguagem, seus modos de expressão. Toma-se aqui a teorização lacaniana segundo a qual masculino e feminino são duas posições discursivas,

33 FOUCAULT. Michel. Il faut défendre la société (Cours au Collège de France, 1975-1976, Édition numéri-que, Le Foucault Életronique, 2001). Disponível em: <https://monoskop.org/images/9/99/Foucault_Michel_Il_faut_defendre_la_societe.pdf>. Acessado em: 08/07/2019.

34 HOOKS, Bell. The will to change: Men, masculinity, and love. New York: Atria Books, 2004. Ao falar sobre as formas de socialização masculina a autora, seguindo um posicionamento já antigo, condensa diversas for-mas de dominação em uma denominação. Para ela, compreender de que forma se cria algo como um homem branco heterossexual proprietário e dominador envolve perceber este sujeito hegemônico como entrecruza-mento de diversas formas de dominação e, por isso, nomeá-las é essencial para entender a complexidade desta situação de poder.

35 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Mulheres representam 37,3% dos magistrados em atividade em todo o país. Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84432-percentual-de-mulheres-em-ativida-de-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3. Acessado em: 08/07/2019.

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dois lugares que o sujeito pode ocupar dentro de um único discurso que seria o discurso da sexualidade.36

O que seria o masculino, de maneira sucinta, nesta perspectiva? Masculino é aquele que é todo, ou seja, que assimila o mundo e o converte em linguagem, em sentido, que não possui espaços para o que não é cognoscível, ou melhor, que existe a partir do movimento de simbolização do mundo. É por isso que Lacan afirmará na aula do dia 13 de março 1973 de seu seminário XX, denominado En-core, através das chamadas fórmulas da sexuação que a mulher não existe. Não que mulheres não existam enquanto pessoas do gênero feminino, mas uma imagem unívoca de mulher, uma Grande Mãe ancestral, uma referência única de mulher não existe porque, no regime da sexuação, a mulher existe parcialmente em relação ao homem e parcialmente como fora da linguagem, como não-toda.

Isso significa que a mulher é, nessa leitura, para Lacan, sempre apenas em parte assimilada à cultura, sendo que em partes ela escapa, seu gozo (sua forma de existência) é sempre, parcialmente misterioso. Ou seja, a posição masculina de totalidade toma a mulher como objeto, no lugar de mãe-amante, para reforçar esse Um do lugar homem, que pode ser ocupado, em tese, tanto por homens quanto por mulheres. O que seria um lugar masculino? É o lugar da potência, da nomeação do mundo, do trabalho, das decisões: a ordem fálica.

O Direito, a Lei (que psicanaliticamente é aproximada à função do Pai), é o local por excelência do masculino, daquilo que a psicanalista Valeska Zanello denomina dispositivo da eficácia,37 ou seja, uma forma de existência organizada em torno da capacidade de produção socialmente reconhecida, valorizada cultural-mente, economicamente. Afastada da produção pessoal, artística, idiossincrática, a eficiência do masculino é suportada por dois dispositivos femininos: o amoroso e o materno,38 ambos existentes em relação ao homem, como formas suplemen-tares de garantia da continuidade da vida e subsunção ao desejo masculino de produção através da tomada para si da responsabilidade pela reprodução.

Mulheres criminosas rompem com tais dispositivos e confrontam um Es-tado centauro macho, posicionando-se fora do lugar de amante-mãe, ainda que para prover sustento à sua família, como no caso de muitas condenadas por trá-fico. O capital-patriarcado colonialista e supremacista branco precisa, para a rea-

36 LACAN, Jacques. Séminaire 20: encore. 1972-1973. Édition Staferla. Disponível em: http://staferla.free.fr/S20/S20.htm. Acessado em: 17/06/2019.

37 ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.

38 ZANELLO, Valeska. Idem.

firmar a si mesmo, de inimigos declarados sobre os quais se exerçam rituais de negação daquilo que é necessário reafirmar. No caso das mulheres, não está em jogo apenas a ilusão de que a lei é eficazmente mantida através do recurso à vio-lência estatal, mas também o lugar da mulher enquanto naturalmente aproxima-do à submissão, ao cuidado, à maternidade e assim por diante. O cárcere e a rua se complementam numa dança perversa, sendo ambos elementos de foraclusão dessas mulheres, presas do lado de fora de uma sociedade que encontra sentido e unidade em sua rejeição.

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(DES)CONSTRUINDO A PAISAGEM DA (DES)IGUALDA-DE: UM OLHAR SOBRE A (DES)IGUALDADE DE TODAS PERANTE A LEI, CONVERTIDA NA (DES)IGUALDADE DAS MULHERES PERANTE OS TRIBUNAIS1.

Dinah Lima2

A “NOTÓRIA RUTH BADER GUINSBURG” COMO METÁFORACom Drucilla Cornell, podemos dizer que “enquanto feministas, precisa-

mos investigar a complexa interação entre fantasias da Mulher e a opressão ma-terial das mulheres” e que, por tal motivo, não obstante haja um reconhecido sofrimento das mulheres como objeto de estupros, como vítimas de abuso sexual e de discriminação econômica, também há um fértil campo investigativo para a tentativa de compreensão da realidade social moldada por fantasias inconscientes acerca da realidade dessa opressão3.

Verdadeira “condição de possibilidade”, compreender a motivação incons-ciente e a construção da “fantasia social” [das desigualdades] devem representar a base de todo e qualquer programa de pesquisa social, demandando incluir a investigação histórica sobre o significado de “mulher” e de “mulheres”, e de como (ou de que maneira) as mulheres têm lutado para alterar o seu próprio destino4.

Assim, no mundo (de um modo geral), e no Brasil (em particular), as mu-lheres têm sido tratadas há muitos anos como cidadãs de terceira classe. Se forem ainda negras, ou possuírem orientação sexual fora de um pretenso padrão ociden-tal contemporâneo, a escala desce ainda mais alguns degraus na escada da desi-gualdade, e, portanto, espelham um campo de análise sobre as lutas simbólicas, culturais e sociais, além de fantasias sociais sobre as representações.

1 Dedicado a todas as mulheres violadas física ou psicologicamente, que sofrem discriminação econômica e são tratadas com desigualdade real ou simbólica. Agradecemos ao professor e advogado Thiago Santos Aguiar de Pádua pelo diálogo e leitura crítica.

2 Bacharela em Direito pelo UniCEUB. Bacharela em Fisioterapia. Advogada feminista integrante da Comis-são Nacional da Mulher da ABA – Associação Brasileira de Advogados e da SOS Mulher.

3 CORNELL, Drucilla. O que é feminismo ético. In: BUTTLER, Judith et all. Debates Feministas: um inter-câmbiofilosófico. Trad. Fernanda Veríssimo. São Paulo: UNESP, 2018, p. 119

4 Conforme ainda registrado por Drucilla Cornell, “essa avaliação requer que entendamos completamente a motivação inconsciente e a fantasia social diferenciadas por contextos culturais”. CORNELL, Drucilla. Re-pensando o tempo do feminismo. In: BUTTLER, Judith et all. DebatesFeministas:umintercâmbiofilosó-fico. Trad. Fernanda Veríssimo. São Paulo: UNESP, 2018, p. 217

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É por isso que mulheres que fazem a diferença, considerado o espectro e o âmbito das batalhas “para alterar o seu próprio destino”, com posicionamentos de radical aversão sócio-política contra padrões e imposições de desigualdade, como a Juíza Ruth Bader Guinsburg da Suprema Corte Americana, merecem muito mais que respeito e deferência, como os que foram prestados em dois filmes re-centes (“Suprema”5 e “A Juíza”6).

Nascida em um ambiente político no qual as mulheres valiam muito menos do que os homens, com salários, direitos e garantias incompatíveis, estudou na mais tradicional faculdade de direito dos Estados Unidos (Harvard Law School), sendo uma das 9 mulheres entre 500 homens, tendo ouvido do diretor da faculda-de a pergunta inescrupulosa, muito embora honesta para o período: “o que você tem de especial para ocupar uma vaga que deveria ser destinada a um homem”?

Mesmo sendo a aluna mais qualificada, não conseguiu a vaga de estagiá-ria-assessora (law clerk) de um dos juízes da Suprema Corte, que ao entrevistá-la, disse-lhe que eles não estavam preparados para contratar uma mulher. Cursou a faculdade cuidando de uma filha pequena, e do marido doente, que ainda de-mandava a feitura de seus trabalhos de classe, como colega do marido no curso de Direito. Depois de formada, não conseguiu ser contratada pelos escritórios de advocacia, que possuíam política de não contratação de mulheres.

Mas mesmo com todas essas criminosas desigualdades, verdadeira corrida de obstáculos, erigida ao padrão de “política pública nacional” de discriminação contra as mulheres, Ruth Bader Guinsburg assumiu como advogada a defesa de causas im-portantes na defesa dos direitos das mulheres na década de 1970, ganhando impor-tantes vitórias que pavimentaram o caminho para que seu nome fosse equivalente à luta contra a discriminação, até ser nomeada em 1993 para a Suprema Corte como a segunda juíza na história da Corte, noticiada pelo The New York Times com a chamada: “Recusada como estagiária-assessora (law clerk), escolhida como Juíza”7.

A resposta para uma das trilhas do sucesso de RBG, como também é co-nhecida, foi atribuída por um de seus amigos que, ao ser entrevistado no docu-mentário “A juíza”, disse que a caminhada de Ruth, na escalada pela busca em

5 Com o título aqui traduzido por “Suprema”, originalmente “On The Basis of Sex” é uma cinebiografia da Juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg, Data de lançamento 14 de março de 2019 (2h 01min), com Direção de Mimi Leder.

6 Lançado com o título original de “RBG: Hero. Icon. Dissenter”, aqui traduzido como “A Juíza”, é um docu-mentário sobre a vida da Juíza Ruth Bader Ginsburg, da Suprema Corte Americana. Data de lançamento 23 de maio de 2019 (1h 38min) Direção: Betsy West, Julie Cohen.

7 Conforme a matéria, Ruth teve sérias dificuldades como Clerk, sendo discriminada com base no gênero. Disponível em: <https://www.nytimes.com/1993/06/15/us/rejected-as-a-clerk-chosen-as-a-justice-ruth-ba-der-ginsburg.html>, acesso em 05.07.2019.

DinaH Lima 93

direção à extinção da desigualdade feminina, empreendida de maneira incessante por ela, pode ser descrita como a “construção da paisagem da desigualdade”, uma metáfora forte, descrita em linguagem poderosa.

Tal metáfora é utilizada neste texto como representativa de um olhar que necessita de muita atenção, pois em relação às mulheres, o Brasil atual pode ser descrito como um jardim regado com gotas de sangue, dando prevalência e sobre-vida a plantas carnívoras que desertificam o solo para lírios, jasmins, cravos, rosas, tulipas e violetas.

Retrato de um machismo sanguinolento que floresce as flores do mal nas instituições brasileiras, impedindo o avanço progressista de políticas públicas de acesso, quando menos. Quando mais, representando o retrocesso a pequenos avanços tão dificilmente conseguidos, as custas de sangue, suor, lágrimas, explo-ração, violência e violação, o “abecedário” que ceifou Dandara, que esquartejou Maria Bonita, que vitimou Zuzu, que aleijou Maria da Penha e que estupra diu-turnamente Marias, Joanas, Anas, Paulas e Beatrizes Brasil à dentro.

As mulheres querem e devem fazer história, mais do que serem narradas como Babetes, Domingas, Xicas, Floras, Anas, Yokos, Tigresas, Kátias Flávias, Anas Júlias cantadas por Lenine como objetos do desejo em “Todas Elas juntas Num Só Ser”, querem(os) pavimentar a via da paisagem da redução da desigual-dade, no exemplo de Ruth, que fornece preciosas lições.

Para que as mulheres e meninas não tenham romantizadas histórias de prínci-pes encantados, elas precisam se conscientizar de que no Sítio do Pica Pau Amarelo, todos os dias, uma Emília é estuprada8, uma Dona Benta é violada e humilhada pelo chefe que busca favores sexuais em troca de sua promoção9, que uma Narizinho é vítima de pedofilia10, que uma Alice é espancada e “corrigida” pelo marido no “País das Maravilhas”11, que a Cuca trabalha mais e melhor que o Visconde, mas recebe metade do salário12, que Tia Nastácia luta e estuda, mas sua cor e gênero fazem com que no Parlamento e nos Tribunais prevaleçam clones de Pedrinhos13.

8 Casos reais de violência sexual são narrados todos os dias nas páginas de jornais, e muitos deixam de ser lembrados e mesmo denunciados, conforme menciona a “cifra negra da criminalidade”.

9 São muitos os casos de assédio sexuais travestidos de assédio moral de que são vítimas inúmeras mulheres sem voz e sem vez.

10 Infelizmente a infância de muitas meninas têm terminado de maneiras trágicas, com a precoce sexualização infantil, com a profanação de seus corpos orientado por uma cultura sexista de objetificação.

11 Num mundo de “sentido invertido”, com o apelo à “ausência de sentido” (non sense), como no País das Maravilhas, as mulheres deveriam possuir papel de destaque e superior.

12 A desigualdade de tratamento e dos salários é também notória. 13 Nos Parlamentos e nos Tribunais jamais houve qualquer ameaça à desigualdade de representação numérica,

ou seja, nada jamais ameaçou o domínio e a prevalência masculina na criação, execução e interpretação dos discursos narrativos mormativos.

Um mundo com construções de papeis sociais em que o Cebolinha alimenta seu cachorro Bidu com os ossos da Magali, porque ela ousou ir pedir pensão alimen-tícia14. Em que a Mônica vai parar numa cadeira de rodas porque o Cascão chegou bêbado e armado em casa, e não aguentou ouvir a reclamação daquela que ele tem por “sexo frágil”15. Ou em que a Dona Florinda tem a obrigação de sustentar o professor Girafales, sem poder denunciar a violência doméstica16, e que a Chiquinha têm o rosto queimado com ácido por ter pedido ajuda aos vizinhos contra as agressões do Kiko17.

Num universo dominado pelo imaginário masculino, que modela e regula a desigualdade e os supostos papéis femininos, que surge uma Ruth, como ícone da cultura pop, disposta a ser alguém que trilha um passo de cada vez, denuncian-do o tratamento desigual, conseguindo levantar importantes questões de discri-minação com base no sexo.

Em suma, este é o caminho a ser trilhado neste artigo, pois entre a submis-são e a imposição, estão paisagens que guarnecem extremada desigualdade, que precisa ser desconstruída com base em discussões sobre carcomidas e boloradas tradições jurídicas, em que pese garantirem a igualdade de todos perante a Lei, acaba convertendo-se na desigualdade das mulheres perante os Tribunais e no preconceito diante das instituições.

1. IGUALDADE E DESIGUALDADEA tônica de ambos os filmes sobre Ruth é demostrar duas facetas: uma da

igualdade e outra da desigualdade. Em “Suprema”, explora-se o imaginário de que a discriminação com base no gênero é uma linha traçada que divide homens e mulheres, servindo para colocar as mulheres em uma jaula, não em um pedestal. Já em “A Juíza”, fica claro, como a luz do dia, que o caminho escolhido por Ruth foi trilhar o front de batalha dos Tribunais para demonstrar que no zoológico hu-mano, aquela jaula serve para ambientar a paisagem que precisa ser denunciada primeiro, para que seja sublimada.

Em ambas as películas, começa-se denunciando que há uma previsão legal da garantia jurídico-constitucional da “igualdade”, e que diante de leis e medidas

14 Aqui a referência é a óbvia circunstância do jogador do famoso clube de futebol das massas que foi condena-do por matar a mãe do seu filho que foi pedir pensão alimentícia.

15 Impossível não recordar de Maria da Penha, que foi parar numa cadeira de rodas, depois de inúmeras violên-cias e tentativas de assassinato.

16 Casos reais em que a mulher trabalha para sustentar o marido, e ainda é silenciada porque se naturaliza um suposto direito de preferência mandamental do homem sobre a mulher.

17 São inúmeros os casos, inclusive recentes, de mulheres que têm o rosto desfigurado por ácido por seus com-panheiros pelos alegados motivos mais banais, nenhum deles aptos a justificar qualquer crime.

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jurídicas com ela incompatíveis, deve prevalecer o tratamento igualitário que não traga prejuízo e a discriminação contra as mulheres. No Brasil, a previsão encon-tra-se no artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, com a formulação normativa básica de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Mas por que então as mulheres precisam pedir autorização do marido para realizar procedimentos de esterilização18, conforme estabelecido pelo art. 10, in-ciso I, e o parágrafo 5º, da Lei Federal n. 9.263/96? Se alguém sustentar que a Lei estabelece o mesmo procedimento para a esterilização masculina, não poderá perder de vista que a divisão dos papéis iguala homens e mulheres de maneira desigual, no tocante aos direitos de planejamento familiar, reprodutivo e à pró-pria sexualidade19. O caso está sob análise do Supremo Tribunal Federal, e é de se perguntar: qual resposta será dada?

A distorção da discussão sob as premissas da igualdade/desigualdade fica clara com o julgamento no ano de 2000 pelo Supremo Tribunal Federal, no pou-co recordado caso do Recurso Extraordinário n. 225.721/PE, em que se discutia a constitucionalidade de uma Lei do Estado de Pernambuco que permitia a promo-ção de oficiais do sexo masculino em postos do quadro feminino, sem permitir a possibilidade inversa, tendo recebido do STF a resposta de que não havia proble-ma algum com relação ao ato normativo discriminatório, pois “não viola o princí-pio da isonomia, uma vez que se louva em distinção legitimada pela natureza das atribuições de cada um dos quadros de oficiais da corporação”.

Por outro lado, mais de uma década depois (2014), o mesmo STF, julgando o Recurso Extraordinário n. 658.312/SC, analisou a inconstitucionalidade ou não recepção do artigo 384 da CLT, que impunha o descanso de 15 minutos para as mulheres antes da jornada extraordinária de trabalho, tendo negado provimento ao RE para reconhecer que os 15 minutos de descanso somente para as mulheres trabalhadoras era constitucional, mas um dos fundamentos lançados no acórdão impôs o argumento de que as mulheres possuem um papel primário visível (ser

18 Literalmente: “§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”.

19 O tema está em discussão perante o STF, composto majoritariamente por homens (nove) e uma minoria se mulheres (duas). As discussões através da ADI n. 5097 e da ADI n. 5911, propostas respectivamente pela ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos, e pelo PSB – Partido Socialista Brasileiro. Como dito no corpo da primeira ADI, “tendo sido examinados os principais princípios relacionados ao direito ao planejamento familiar, resta-nos concluir que a mulher é, indubitavelmente, aquela que mais sofre as consequências da decisão de ter um filho, pois é aquela que, em regra, carrega a criança em seu ventre durante os nova meses de gestação, que passa pelas dores do parto, que se submete a um procedimento cirúrgico, que tem o dever de alimentar o seu filho recém-nascido por meio da amamentação, ou que, principalmente, busca a realização da maternidade superando todos os obstáculos físicos, sociais e jurídicos, além de continuar desempenhando todos os papeis que, até então, exercia, como o de esposa e de profissional”.

dona de casa, educadora dos filhos e coração da família) e também um papel se-cundário (qualquer profissão que não prejudique seu papel primário), algo que é extremamente problemático do ponto de vista de futuras diferenciações com base no gênero20.

Nos três casos acima citados, temos visível no primeiro deles que homens e mulheres são igualados de maneira equivocada para efeitos de esterilização, embora o peso e as consequências sejam mais dramáticos para as mulheres. No segundo, a desigualdade é usada em desfavor das mulheres, quando os homens são beneficiados com possibilidade de promoção em vagas das mulheres, e, no terceiro caso, as mulheres são tratadas de forma desigual com fundamento em sua fragilidade; são “donas de casa” como papel primário.

Todos os três casos decorrentes de uma mentalidade masculina sobre a visão e construção do imaginário feminino, legitimadores da desigualdade. Ruth Bader Ginsburg não chancelaria nenhum dos três casos.

A propósito, RBG defenderia que as mulheres não precisariam pedir per-missão ou autorização para quem quer que seja para decidir sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como defenderia como inadmissível uma mulher não poder fazer uso de um direito assegurado aos homens para promoção em deter-minados cargos, além de lutar pela igualdade dos homens ao acesso a 15 minu-tos intervalo de jornada, como forma de igualdade indireta entre as mulheres, e jamais admitiria a fundamentação de que a mulher seria “sexo frágil” com papel primário “do lar”.

2. MACHISMO(S), FEMINISMO(S) E A TRADIÇÃO JURÍDICA DA DESIGUALDADE

O singular não faz machismo e nem feminismo, senão pluralizadas formas de manifestação para denotar várias formas de manifestação e de enraizamento, para vários machismos, da mesma maneira que as diversas reações e afirmações de direitos e de igualdade fazem feminismos.

20 Consta do acórdão do STF citação a pensamento do ministro do TST Ives Gandra da Silva Martins Filho, citado pelo acórdão do Supremo: com base no pensamento de Edith Stein (1891-1942), afirmou-se que “três características se destacam na relação homem-mulher: igual dignidade, complementariedade e diferenciação (não só biológica, mas também anímica). Cada um dos sexos teria sua vocação primária e secundária, em que, nesta segunda, seria colaborador do outro: a vocação primária do homem seria o domínio sobre a terra e a da mulher a geração e educação dos filhos (“A primeira vocação profissional da mulher é a construção da família”). Por isso, a mulher deve encontrar, na sociedade, a profissão adequada que não a impeça de cumprir a sua vocação primária, de ser “o coração da família e a alma da casa”. O papel da mulher é próprio e insubstituível, não podendo limitar-se à imitação do modo de ser masculino (cfr. Kawa, E. Edith Stein. 1ª ed. São Paulo: Quadrante, 1999. P. 58-63)”.

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Conscientes de que existem muitos e variados tipos de machismo(s), e múltiplas e variadas formas de feminismo(s), fiquemos aqui com a referência de que definir tais tópicos é menos importante do que saber reconhecer traços da tradição jurídica da desigualdade, ambas, bem entendido, extremamente im-portantes.

É preciso reconhecer que vivenciamos uma longa tradição jurídica que adorna a paisagem jurídica da desigualdade, com raízes mais visíveis e outras nem tanto.

Tomando de empréstimo as categorias foucaultianas21 da arqueologia do saber22 e da genealogia23, podemos dizer que as mulheres somente possuem tra-tamento desigual e, na maioria das vezes inferior, por causa da contingência das normas jurídicas emanarem de mentes masculinas e de que sua interpretação tam-bém foi por muitos anos (e ainda é, em certa medida) um privilégio masculino.

Se buscarmos os antecedentes do Código Civil de 2002 e do Código Penal de 1941, encontraremos em seus predecessores tanto a incapacidade feminina das mulheres casadas24 (enquanto subsistisse a sociedade conjugal, num período em que o casamento era indissolúvel por ato entre vivos), quanto a proteção contra estupro apenas das mulheres “honestas”25; se fossem “desonestas”, o estupro con-tra elas hoje seria considerado crime de menor potencial ofensivo26.

Igualmente como se fosse de menor potencial ofensivo, era também o tra-tamento de autoridades públicas que solicitassem favor sexual de mulheres em

21 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008; FOUCAULT, Michel. ArqueologiadasciênciaseHistóriadossistemasdepensamento. Rio de Janeiro: Forense univer-sitária, 2008.

22 Para Foucault, o método arqueológico tem muitas funcionalidades, conforme observado, pois “a ideia central do método arqueológico é que sistemas de pensamento e conhecimento (epistemes ou formações discursivas, na terminologia de Foucault) são governados por regras, além das da gramática e da lógica, que operam sob a consciência de sujeitos individuais e definem um sistema de possibilidades conceituais que determinam os limites do pensamento em um determinado domínio e período.” Cfr. GUTTING, Gary; OKSALA, Johanna. From Archaeology to Genealogy, Em: Michel Foucault, Stanford Encyclopedia of Philosophy, First pub-lished Wed Apr 2, 2003; substantive revision Tue May 22, 2018.

23 Para Foucault, o termo “genealogia” deveria evocar “a genealogia da moral de Nietzsche, particularmente com sua sugestão de origens complexas, mundanas e inglórias - de modo algum parte de qualquer grande esquema da história progressiva. O objetivo de uma análise genealógica é mostrar que um dado sistema de pensamento (ele mesmo descoberto em suas estruturas essenciais pela arqueologia, que permanece, por-tanto, parte da historiografia de Foucault) foi o resultado de voltas contingentes da história, não o resultado de tendências racionalmente inevitáveis.” Cfr. GUTTING, Gary; OKSALA, Johanna. From Archaeology to Genealogy, Em: Michel Foucault, Stanford Encyclopedia of Philosophy, First published Wed Apr 2, 2003; substantive revision Tue May 22, 2018.

24 Código Civil de 1916: “Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: (...) II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal”.

25 Código Penal de 1890: “Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão cellular por um a seis annos. §1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.”.

26 Como se sabe, considera-se contemporaneamente “crime de menor potencial ofensivo” aqueles que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, conforme dispõe o art. 61, da Lei n. 9.099/95

razão do cargo ou emprego público27, mesmo contra as mulheres presas28, exceto se quem cometesse o crime contra as mulheres fosse o aplicador da Lei (o próprio Juiz), pois aí a pena seria ainda mais suave29, servindo tais referenciais para enrai-zar nas relações de poder o elemento sexo, com violência e sujeição da mulher.

As exceções de violência quando praticadas por (ou contra) autoridades, tendo a mulher por objeto de vida e de morte, aliás, tem uma de suas mais notá-veis representações nas Ordenações do Reino, a fundação de nossa tradição jurídi-ca por excelência e precursora jurídica da imagem de um suposto direito de matar em nome da “legítima defesa da honra”, quando o marido tinha autorização para matar a mulher e o amante, exceto se o amante fosse mais nobre que o marido, mas a mulher sempre passível de morte30.

Todas eram narrativas jurídicas que emanavam comandos normativos que diziam para a sociedade e para as mulheres (colocando-as no lugar que queriam): “fêmeas são incapazes, e dependem dos machos com quem são casadas” (noção de capacidade jurídica); “fêmeas são objetos sexuais que podem ser estupradas, se não se enquadrarem num padrão moral de honestidade imposto pela sociedade dos machos, ou serem solicitadas a prestar favores sexuais sem maiores consequências” (noção jurídica da proteção contra estupros e favores sexuais); e “o macho tem direito a ter a sua fêmea como propriedade, e também possui o direito legítimo de matá-la e ao amante, exceto se o outro macho for ‘mais macho’ que ele” (noção do direito de matar).

Um contexto similar era visualizado no caso dos Estados Unidos da Améri-ca, mas que viu em Ruth Bader Ginsburg alguém que não aceitou a naturalização do tratamento desigual entre homem e mulher, e que preferiu ir até os Tribunais denunciar a paisagem desigual, passo a passo, para buscar a transformação daque-le espaço.

27 Código Penal de 1890: “Art. 235. Solicitar alguma mulher, que tenha litigio ou pretenção dependente de deci-são, ou informação, em que deva intervir em razão do cargo: Pena - de suspensão do emprego por seis mezes a dous annos, além das mais em que incorrer. (...) ”.

28 Código Penal de 1890: “Art. 236. Si o crime, declarado no artigo antecedente, for commettido por carcereiro, guarda ou empregado de cadeia, casa de reclusão, ou estabelecimento semelhante, contra mulher que esteja presa, ou depositada, debaixo de sua custodia ou vigilancia, ou contra mulher, filha ou irmã, curada ou tute-lada de pessoa que se achar nessas circumstancias: Penas - de prisão cellular por um mez a um anno”.

29 Código Penal de 1890: “Art. 235. (...) Si o que commetter este crime for juiz: Pena - de prisão cellular por um mez a um anno, além das mais em que incorrer”.

30 Título XXV, do Livro V, das Ordenações Filipinas (de 1595): “Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada tiver, morra por isso. Porém, se o adúltero for de maior condição que o marido dela, assim como, se o tal adúltero fosse fidalgo, e o marido Cavaleiro, ou Escudeiro, ou o adúltero Cavaleiro ou Escudeiro e marido peão, não farão as justiças nele execução, até nos fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado. E toda mulher, que fizer adultério a seu marido, morra por isso (...).” A linguagem foi propositalmente atualizada. Cfr. ORDENAÇÕES Filipinas. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>, acesso em 1º.07.2019.

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3. A POLÍTICA E AS INSTITUIÇÕES: O PARLAMENTO E OS TRIBUNAIS

A mudança das instituições rumo à igualdade paritária é o que permitirá libertar a cláusula constitucional do princípio da igualdade, apropriado e seques-trado por mentes masculinas dotadas de pensamento machista. Melhor dizendo, a formal igualdade de todas perante a lei, será sempre convertido na desigualdade das mulheres perante os tribunais, com superioridade masculina, se a composição das instituições não mudar.

É uma questão, portanto, de democracia, que remonta ao pensamento do cientista político Robert Dahl, que, ao expor sua categoria da “poliarquia”, um governo dos muitos em oposição ao governo de um só (monarquia) ou de poucos (aristocracia e oligarquia), menciona que as instituições são praticamente as mes-mas, com parlamentos e tribunais, mas passaram a mudar muito recentemente apenas quando sua composição passou a ser diferente, uma vez que na estrutura central da poliarquia está a igualdade31.

Na política brasileira existem algumas tentativas pífias de prestigiar as mu-lheres, mas nenhuma delas tem servido para prestigiar a igualdade perante a lei de maneira real e efetiva. Mencione-se o art. 10, § 3º, da Lei das Eleições (com a redação dada em 2009 pela Lei 12.034), que estabeleceu cota de 30% para as mulheres nos cargos proporcionais nas eleições para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais.

Mas como se sabe, trata-se da matemática da desigualdade, que preferimos chamar de “equação política do machismo eleitoral”, uma vez que os partidos ou coligações podem registrar entre 150% e 200% candidatos das vagas, e deste total estabelece-se a regra de que se preencherá o mínimo de “30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. Já que 30% (trinta por cento) de 200% corresponde a 15% (quinze por cento) de 100% (cem por cento), não é difícil adivinhar qual sexo predomina com 85% das cadeiras.

Mais que isso, por certo, não se desconhece que os Partidos Políticos tem sido acusados de engendrar candidaturas femininas “fake”, também chamadas de fantasmas, para beneficiar candidaturas masculinas, tornando a conta não apenas repulsiva, mas principalmente intolerável, de modo a tornar premente o uso da “borracha” da Constitucionalidade para que esse número será igualitário e paritá-rio em 50% (cinquenta por cento).

31 DAHL, Robert. LaPoliarquía:Participaciónyoposición. Madrid: Técnos. 2009.

Caso contrário não podemos falar de instituições funcionantes, em que a democracia seria vista como o governo dos muitos e diferentes tipos representati-vos no modelo social, mas antes, teremos assim (como temos tido) uma espécie de governo dos poucos, uma oligarquia política masculina também visível na forma de um machismo aristocrático que preenche os cargos de poder, especialmente porque é o parlamento que confirma a indicação de nomes de pessoas indicadas para compor STF e os Tribunais Superiores. A conta está errada! Ela não fecha com a igualdade esperada.

4. PROPOSTAS PARA UMA RADICALIZAÇÃO DA SENSATEZ NO COMBATE À DESIGUALDADE

Com efeito, a proposta mais sensata de interpretação do artigo 5º, da Cons-tituição Federal de 1988, e que seja o fio condutor da redução das desigualdades, é de que o princípio da igualdade determina que todo acesso ao parlamento deve ter como patamar mínimo a destinação das cadeiras para a Câmara e para o Senado de maneira igualitária e paritária, ou seja, meio à meio: 50% para os homens e 50% para as mulheres.

Chamamos a isso de “divisão primária da igualdade”, e dentro dela, após seu uso como primeiro critério, que sejam usados outros critérios de cotas raciais, étnicas e de dificuldade de acesso e necessidades especiais.

Igualmente, tal critério deve ser usado para preencher os cargos de juízes e juízas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores (STJ, STM, TSE, e TST), especialmente porque já há inclusive um critério que se usa como cota pari-tária entre instituições (1/5 e 1/3 constitucionais) para o Ministério Público e para a Advocacia, cujos fundamentos e raízes históricas estão atrelados ao sentimento de desigualdade que remonta ao “Tribunado da Plebe” em Roma, nascido da ascensão do conflito entre os Patrícios e os plebeus, sendo forjado para evitar a mudança da plebe, que ameaçou ruptura se não possuísse maneiras de influir no poder romano32.

Por tais motivos, com base em razoável observação decorrente da desigual-dade feminina, e da representação de papeis sociais impostos por mentes mascu-linas, que criam a normatividade e a interpretam, mas sobretudo para fazer jus ao artigo 5º, da Constituição, todos os concursos públicos (Ministério Público, Advocacia Pública, Defensoria Pública, Magistratura, Autoridades Policiais, Car-tórios, bem como os cargos de Técnicos e Analistas) devem ser preenchidos na mesma proporção de 50% para os homens e 50% para as mulheres.

32 FERRAZ, Manuel Martins de Figueiredo. Do Tribunado da plebe. São Paulo: USP, 1989.

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CONSIDERAÇÕES FINAISSe o ideário da igualdade de todas perante a Lei tem sido convertido na

desigualdade das mulheres perante os Tribunais, isso se deve provavelmente a dois fatores essenciais: a paisagem da desigualdade que foi construída de maneira sis-temática por mentalidades masculinas que se ocuparem de impor papeis sobre a visão do feminino.

Isso fez com que normativamente houvesse uma brutal desigualdade entre homens e mulheres, e que no caso de Ruth Bader Ginburg, nos Estados Unidos, pode-se observar que tal paisagem somente começa a mudar quando é descorti-nada a referida paisagem, e essa mudança só ocorre de fato quando as instituições responsáveis pela elaboração, execução, aplicação e interpretação das normas pas-sam a ser compostas de mulheres.

Num mundo cuja paisagem desigual é desconstruído para se transformar num habitat de serena igualdade, a Mônica se transformou em delegada de Po-lícia, a Magali virou Promotora, Chiquinha fez a prova e virou Defensora, mas, sobretudo, porque Dona Florinda, Alice, Dona Benta e Narizinho disputaram paritariamente, e passaram a ocupar cargos no parlamento, e Emílias e Tias Nas-tácias passaram a integrar o STF e os Tribunais Superiores, também em patamar paritário de igualdade numérica.

As raízes da desigualdade de tratamento precisam ser permanentemente denunciadas. As estruturas de poder de Parlamentos e Tribunais também devem ser reviradas, para que o princípio da igualdade de todas perante a Lei seja de fato convertido na igualdade das mulheres perante os Tribunais, mas esse é apenas um dentre muitos passos necessários.

Mulheres têm sido estupradas, violadas, calcinadas, queimadas, chacinadas, assassinadas e eliminadas, por questões de poder que usam a discriminação sexual como fato de aprofundamento e enraizamento das desigualdades. Elas precisam agora é de reparação e tratamento igualitário, com o desfazimento de falsas ilu-sões, o apagamento de contas matemáticas e equações inverídicas, começando em “meio a meio”. E esse é só o começo, por melhores condições de salário e punição efetiva contra atos de violência.

PRÁTICAS DISCURSIVAS DE INFERIORIZAÇÃO DOS SU-JEITOS A PARTIR TELEVISÃO E A CONTINUAÇÃO DO PROJETO COLONIAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE A PARTIR DA TELENOVELA AVENIDA BRASIL

Cristine Koehler Zanella1

Amanda Mateus Robbi2

Inferiorizar os sujeitos é o primeiro passo para negar-lhes direitos. Por isso, investigar e revelar as diferentes dimensões da inferiorização das pessoas, seja por gênero, sexo, raça, classe, nacionalidade, entre outras, é o marco fundacional do caminho em direção a uma ordem jurídica mais justa.

A inferiorização pode ser operacionalizada por meio de práticas materiais e práticas discursivas. Entre as primeiras estão as instituições e as dinâmicas das regras que essas estabelecem. Trata-se de mecanismos de poder que refletem a nor-matividade que atravessa a vida, constitui os sujeitos e dita os termos pelos quais esses devem ser reconhecidos3.

Ao longo da história, milhares de seres humanos foram desprovidos de pro-teção e de direitos, numa estruturação social, jurídico, política e econômica que criou privilégios para alguns – historicamente, no topo desta hierarquização, está localizado o homem, branco, proprietário, europeu. O Brasil coleciona vários registros nessa linha, mas talvez o mais eloquente no direito brasileiro seja a defi-nição do negro como objeto (e não sujeito) de direito. No texto O negro na ordem jurídica brasileira (1988), Eunice Prudente lembra que, desde 1530, quando os primeiros escravizados africanos foram trazidos ao Brasil, até 1888, ano em que a Lei Áurea foi sancionada, “o negro era sinônimo de escravo e branco era sinônimo de livre/cidadão”4. Raça e direitos eram palavras articuladas conjuntamente.

1 Professora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenadora do Grupo de Estudos do Sul Global (GESG). Membro do Comitê Executivo do Caucus do Sul Global (GS-CIS), da International Studies Association, representando a América Latina e o Caribe. Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Ciência Política pela Universidade de Gent (UGent), Bélgica. Mestre em Integração Latino-Americana e bacharel em Direito e bacharel em Economia, esses três pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

2 Graduanda de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), membro do Grupo de Estudos do Sul Global e bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq, Edital 01/2018 - PIC/PIBIC/PIBIC-AF/PIBITI.

3 BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Bra-sileira, 2015. p.15.

4 PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 83, p. 135-149, 1 jan. 1988. p. 138.

104 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

Até a abolição formal da escravidão negra, leis e ordenamentos categorizavam escravizados como bens móveis, ao lado dos semoventes. Considerados bens, eram, portanto, passíveis de compra, venda e hipoteca. Faziam parte do acervo hereditário quando seus proprietários morriam e eram partilhados com seus herdeiros junta-mente com os outros bens. Enfim, não eram sujeitos, mas objetos de direito5.

As práticas discursivas são outro instrumento de inferiorização dos sujeitos. Elas têm uma influência legitimadora da negação dos direitos que, em tempos correntes, embora abstratamente garantidos, são distintamente aplicados. His-toricamente, o discurso racista moldou as instituições e estas foram cruciais na determinação do lugar que esses sujeitos ocupariam na sociedade. Por exemplo, de acordo com o Infopen Mulheres 2018, 62% da população prisional feminina é composta por mulheres negras6. Como demonstra Enedina do Amparo Alves, o lugar que essas mulheres ocupam no sistema penal foi determinado por uma preconcepção de crime e castigo racializada7.

As práticas discursivas que estereotipam ao criar rótulos a respeito das pes-soas, incluem discursos, músicas, cinema e outros meios que envolvem a comu-nicação. A telenovela é um desses meios. No Brasil, ela tem especial importância dada a propagação da televisão aberta nos lares nacionais. Alcançando 99,9% dos municípios, o sinal da televisão aberta continua sendo o maior meio de acesso aos conteúdos culturais no Brasil8. De acordo com a Secretaria de Comunicação Social, a televisão continua sendo o meio de comunicação mais utilizado pelos brasileiros (95% assistem TV regularmente e 74% assistem diariamente) e o período de maior exposição à TV ocorre durante o chamado horário nobre, das 18h às 23h9.

A televisão tem um importante papel para o entendimento da reprodução de estereótipos já instituídos na estrutura da sociedade, justificando e afirmando determinados papéis aos sujeitos e concretando-os nessas posições, sobretudo quando se trata de grupos inferiorizados, dentre eles, as mulheres10. Assim, este

5 Ibid., p. 136.6 Ministério da Justiça e da Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional

de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres, 2ª edição. Brasília – DF, 2018. p. 40.7 Alves, Enedina do Amparo. Rés negras, judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero,

raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. 2015. 173 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. passim.

8 IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfildosestadosedosmunicípiosbrasileiros:cultura 2014. Rio de Janeiro - RJ, 2015. p. 17.

9 Brasil. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. – Brasília : Secom, 2014. p.7.

10 O termo “concretar”, proposto pela professora Cristine Koehler Zanella, tem sido desenvolvido com a con-tribuição dos trabalhos de alunas e alunos pesquisadores do Grupo de Estudos do Sul Global, tais como a coautora deste trabalho. Esse termo refere-se à superposição de entraves sociais, econômicos, jurídicos, políticos, culturais, entre outros que fixam os sujeitos em certos papéis sociais. Diversas exclusões, normas e preconcepções naturalizam determinada posição aos sujeitos e limitam suas potencialidades enquanto sujei-

CriSTinE KoEHLEr zanELLa E amanDa maTEuS roBBi 105

estudo, preocupado com a construção discursiva do lugar da mulher negra no Brasil, se propõe a investigar a inferiorização dessas a partir das personagens Tes-sália e Zezé, da telenovela Avenida Brasil. O desenvolvimento deste trabalho é acompanhado da reflexão sobre como essa construção de seres inferiorizados (ou subalternos) continua o projeto colonial na contemporaneidade11.

O trabalho utiliza como pano de fundo para suas análises personagens do enredo da telenovela Avenida Brasil. Composta por 179 episódios, exibida no Brasil pela Rede Globo de Televisão entre os meses de março e outubro de 2012, ela obteve índices recorde de sucesso nacional e foi exportada para diversos países. A trama se passa em um contexto de um país em desenvolvimento e os núcleos da novela são a mansão de um ex-jogador de futebol, um bairro fictício do subúrbio do Rio de Janeiro onde vive uma comunidade de baixa renda e um lixão.

Para fins das análises a que se propõem, este texto se organiza em três seções, além desta introdução e da conclusão. Iniciamos o trabalho apresentando o lugar do feminino no contexto colonial (seção 1). Em seguida, refletimos sobre como os meios de comunicação contribuem para construir a inferiorização das mulheres, especialmente das mulheres negras (seção 2). Seguimos analisando a construção de estereótipos por meio dos casos concretos das personagens negras Tessália e Zezé na telenovela Avenida Brasil (seção 3). Finalmente, concluímos com reflexões sobre como as práticas discursivas, especialmente no nosso caso, as telenovelas, contri-buem para a inferiorização dos sujeitos e como essas práticas contribuem para a continuidade do projeto colonial contemporaneamente (conclusão).

1. O LUGAR DO FEMININO NO CONTEXTO COLONIALDe acordo com o pensamento fanoniano, a subjetividade do homem negro se

constrói por meio de imperativos exteriores, sendo os principais deles a relação com o homem branco e a norma branca. A subjetividade é resultado da violência colonial e não há a possibilidade de uma ontologia per se do homem negro, à medida que ele é sempre visto em relação ao homem branco. A norma branca determina sua existência e não possibilita que ele seja sujeito essencial da construção da sua própria identidade12.

Analisando a dinâmica mundial a partir de uma perspectiva dos estudos coloniais, Spivak identifica que, através de uma lógica dicotômica, constroem-se

tos plenos, passíveis de realizar em suas vidas múltiplas possíveis histórias.11 Ao refletir sobre a continuação do projeto colonial na contemporaneidade, utilizaremos também o termo

sujeito subalternos para nos referirmos aos sujeitos inferiorizados.12 LEWIS, Liana. Raça e uma nova forma de analisar o imaginário da nossa comunidade nação: da misci-

genação freyreana ao dualismo fanoniano. Civitas [Dossiê Diálogos do Sul], 14 (1), pp. 1-10 , 2004. p. 7.

narrativas brancas-ocidentais-hegemônicas sobre o sujeito subalterno e sobre suas identidades. Esses sujeitos são tidos como outros e deslocados do protagonismo de suas próprias histórias. Neste contexto, o sujeito subalterno feminino colonizado “está ainda mais profundamente na obscuridade”13.

Desde 1949, com a obra O segundo sexo, compreendemos que na modernida-de os homens são os sujeitos por excelência, enquanto as mulheres foram construí-das como o negativo do masculino. Enquanto os homens não precisam definição, a mulher é o outro, aquilo que não é o homem. Construídas assim, é impossível vê-las como sujeitos plenos de capacidades e direitos14. Mais do que as mulheres brancas, as mulheres negras tiveram seus corpos marginalizados e invisibilizados ao longo da história da humanidade. Sojourner Truth, nascida escrava nos Estados Unidos, em 1851 já bradava eloquentemente ao ver a inexistência de preocupação com as mu-lheres negras na Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio: “E eu não sou uma mulher?”. Sob o viés de uma sociedade definida por valores brancos e eurocêntricos, a mulher negra é desvalorizada, sexualizada, e marginalizada – o que reforça ainda mais as dificuldades já existentes na construção do gênero feminino15.

Narrativas hegemônicas fazem com que determinadas mulheres tenham suas vidas tornadas infames, são feitas desaparecer e são colocadas às sombras das suas próprias histórias16. O desaparecimento ultrapassa o silenciamento, à medida que silenciar é não permitir que falem e fazer desaparecer significa dizer que apesar de terem estado presentes, a presença delas não foi de fato considerada. O sujeito subalterno feminino aparece na narrativa, entretanto, não pode falar e, ao tentar, não encontra meios para se fazer ouvir17.

É impossível compreender o lugar do feminino no contexto colonial sem considerarmos a transversalidade de gênero, raça e classe. Os rótulos que se im-põem sobre esses sujeitos criam intersecções complexas, compostas a partir de várias camadas de subjugação que se sobrepõem, como o patriarcado, o racismo, a colonialidade, a interpretação do conhecimento, o código econômico, o código jurídico, entre outras.

Uma das maneiras de concretar18 as mulheres, naturalizando e fixando seus papéis na sociedade, é através de estereótipos e a televisão brasileira contribui na

13 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 67.14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.15 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento, 2017. passim.16 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.203-222. passim.17 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. passim.18 Ver nota anterior, neste mesmo capítulo, sobre o termo ‘concretar’.

106 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

produção e reprodução desses padrões diariamente. Observamos que o lugar que as mulheres negras ocupam no Brasil foi desenhado pelo discurso colonial e a tentativa de sair desse lugar é transformada em ameaça, perigo e risco. O que aconteceu com a vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, é um reflexo da violência que se alça contra aquelas que ousam sair do papel social que lhes foi designado ocupar. Marielle, mulher negra, que mantinha um relacionamento homoafetivo, era soció-loga, política, feminista e defensora dos direitos humanos. Foi também Presidente da Comissão da Mulher na Câmara. Junto com seu motorista, ela foi brutalmente silenciada com três tiros na cabeça e um no pescoço, em cenário de crime cujas ca-racterísticas apontam que a finalidade era eliminar a pessoa e, com ela, silenciar suas causas. Quando essas mulheres se recusam a continuar docilizadas, afastando os pa-péis que lhes foram designados e lhes são impostos pelas tantas camadas de pressão que as concretam, os mecanismos de opressão trabalham para fazê-las recuar. Retirar a vida das que ousam resistir não é uma novidade na história, como vemos em tantas situações das quais o caso de Marielle é apenas um exemplo.

Chama a atenção o desamparo estrutural com algumas formas de vida den-tro dos Estados modernos. Nesses, a despeito da ideia abstrata de solidariedade entre os cidadãos que compartilham uma nacionalidade, encontramos grupos to-talmente relegados ao desamparo econômico, institucional, social, cultural, entre outros. Uma forma de entender esses mecanismos é analisando sob nova ótica o atributo da soberania, como propõe Achile Mbembe. Sua proposta parte da noção última de soberania do Estado, de fazer viver e deixar morrer, expandindo uma dinâmica que é, na prática, uma política de morte: a necropolítica. A necro-política articula o Estado por meio de um processo de categorização pelo qual pes-soas com vidas desprovidas de valor são descartáveis sob a ótica deste e dos grupos hegemônicos. Essa política de morte relega colonizados seres inferiorizados a uma zona híbrida entre o status de sujeito e objeto19.

Difícil não pensar no desamparo da mulher negra quando analisados os dados do Mapa da Violência, os quais evidenciam sua posição vulnerável no Bra-sil, visto que a população negra é a principal vítima de homicídios de mulheres no país e, nos últimos anos, a taxa de homicídio de mulheres negras cresceu em relação a taxa de homicídio de mulheres brancas20. A mulher negra é o principal alvo da violência do país por estar na intersecção de várias vias de opressão21. A ausência de políticas públicas voltadas especificamente para os que mais sofrem

19 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, dez 2016: pp 123-151. 20 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015. Homicídio de Mulheres no Brasil.1ª Edição, Brasí-

lia – DF, 2015.21 CRENSHAW, Kimberlé. A Urgência da Interseccionalidade. TED talks, 2016. (18m50s).

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(creches para mães trabalhadoras, descaso com o feminicídio, ausência de redes de proteção à mulher que é mãe, etc.) e, ao contrário, a existência de mecanismos de estereotipização em torno de quem são os criminosos no país contribui para a maior vulnerabilidade de negros e pobres e, dentre esses, das mulheres negras do Brasil. Fácil neste contexto associar a dinâmica em curso ao funcionamento da política de morte denunciada por Achile Mbembe.

O lugar da mulher negra e pobre é, então, um lugar inferiorizado, de subor-dinação, vulnerabilidade e descartabilidade. Para Boaventura de Souza Santos, exis-tem linhas abissais invisíveis que separam os países desenvolvidos dos países do Sul Global. Trazendo essa lógica para pensar internamente o mundo colonial, podemos dizer que existe também uma linha abissal entre o sujeito hegemônico e o sujeito subalterno, evidenciada por dominações econômicas, políticas e culturais. Torna-se evidente que o lugar da mulher negra no contexto colonial é o do lado fragilizado dessa linha, no qual o direito não chega: um lugar de marginalização, inferiorização e vulnerabilidade. Esse lugar da mulher negra no contexto de continuidade colonial no Brasil, a despeito das conquistas jurídicas abstratas, ainda é mantido por uma série de práticas e instrumentos. Os meios de comunicação são alguns destes.

2. COMO OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO PODEM CONTRI-BUIR PARA A INFERIORIZAÇÃO DAS MULHERES, ESPECIAL-MENTE DAS MULHERES NEGRAS

Discurso é toda maneira de falar e pensar sobre um assunto22. Como vimos anteriormente, nem todos os indivíduos tem o mesmo espaço para falar na socie-dade e alguns, mesmo quando falam, não são ouvidos. Por outro lado, os meios de comunicação são potenciais veículos para discursos. A novela é um desses: à medida que a novela é um texto e que não é apenas uma descrição, ela é uma for-ma de se apresentar algo, de falar sobre algo, e, portanto, um discurso.

Os discursos são formados pela sociedade e também a conformam. Mu-niz Sodré aponta que a mídia é um instrumento formador de subjetividades no homem. Para Ana Alakija, “a mídia pode ser considerada um agente/fator funda-mental na alteração do comportamento, interferindo inclusive no próprio proces-so de emergência da identidade”. Ainda de acordo com a autora, a comunicação social é historicamente um dos fatores substanciais na composição da identidade étnica dos povos afro-latino-americanos23.

22 DITTMER, J; (2010) Critical Geopolitics. In: Warf, B, (ed.) The Encyclopedia of Geography. SAGE Publi-cations: London.

23 SODRÉ, Muniz apud LAKIJA, Ana. Mídia e identidade negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BOR-

108 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

A construção da identidade dos indivíduos não passou incólume às mais recentes ondas da globalização. Ela foi impactada pelas novas dinâmicas socioes-paciais que “comprimem” o tempo e o espaço, reduzindo distâncias e permitindo uma maior interação e diálogo, que são principalmente mediados pelos meios de comunicação. Nesta não tão nova realidade, os indivíduos vivem passando por embates culturais e suas identidades são constantemente deslocadas devido à fluidez da modernidade24.

A identidade é em parte construída pelo indivíduo e em parte lhe é imposta, com ou sem percepção da dinâmica desse processo. Há um amplo leque de identi-dades que os indivíduos privilegiados podem escolher e podem articular e desarti-cular quando desejarem. Em contrapartida, os indivíduos estigmatizados tem maior restrição quanto a esta flexibilidade identitária, faltando-lhes acesso à escolha em função da força com que determinadas identidades lhes são impostas25.

O consumo da comunicação é relevante na constante reconstrução das identidades múltiplas e abertas, mas também é relevante na aplicação de identi-dades que estereotipam, padronizam e desumanizam – que atribuem um e fre-quentemente apenas aquele local para o indivíduo ocupar na sociedade. É crucial pensar quais são estes estereótipos e as representações do outro, porque o discurso imagético fornece padrões que influenciam os indivíduos na construção de seus “horizontes identitários e ideais culturais de ser e bem-estar no mundo”26.

Imagens, sons e textos escritos padronizam e fixam sujeitos em categorias e figuras restritas a fim de posicioná-los onde o discurso hegemônico deseja. O ou-tro é emoldurado e “a gramática de produção desses sistemas homogeneíza signos dispersos no tecido social, adequando-os às máquinas tecnológicas de produção de sentido da contemporaneidade”27.

Alakija defende que os aparelhos sociais são elementos fundacionais da construção da identidade de um povo. A educação e a comunicação, por exemplo, “transmitem valores étnicos, estéticos e outros elementos que contribuem para a composição de uma identidade étnica”, ou seja, permitem que o indivíduo se reconheça e estabeleça referências para identificar os outros a sua volta28.

GES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 108-120.24 BAUMAN, Zygmunt. Identidade – entrevista a Benedettto Vecchi. Zahar, 2004. Pp. 15-61. passim.25 BAUMAN, Zygmunt. Identidade – entrevista a Benedettto Vecchi. Zahar, 2004. Pp. 15-61. passim.26 BORGES, Rosane. Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da

mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 178.

27 Ibid., p. 180.28 ALAKIJA, Ana. Mídia e identidade negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia

e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 122.

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A televisão brasileira, como um meio midiático, fornece essas padroni-zações e, principalmente no que diz respeito a representação do homem negro e da mulher negra, podemos perceber uma repetição aparente de estereótipos. Essas representações exibidas estão relacionadas com dinâmicas antigas, cujas no-vas roupagens nos enredos contemporâneos mal mascaram a permanência das hierarquizações entre indivíduos. A mídia fornece “discriminações acerca do certo ou do errado, melhor ou pior, belo e feio, normal e desviante, adequado e ina-dequado, próprio e impróprio”. Ao fazê-lo, as imagens da mídia ainda expressam elementos de uma concepção racista, colonialista e eurocêntrica ao representarem os grupos historicamente discriminados29.

Os estereótipos exibidos pela mídia, de acordo com Borges, funcionam como discursos fundadores, a medida que tornam-se referências para as mulheres negras na constituição de seus imaginários, tanto sobre si mesmas, quanto sobre o de pessoas a sua volta30. Os estereótipos raciais fabricam seus sujeitos e forjam a alteridade entre brancos e negros31. A superioridade branca está naturalizada pelo discurso de matriz colonial que atravessa as telenovelas, as quais acolhem o mito da democracia racial e representam as mulheres negras de modo a concretá-las no lugar conveniente para o grupo hegemônico.

No Brasil, o mito da democracia racial, de acordo com Sueli Carneiro, desr-racializa a sociedade por meio da apologética da miscigenação. Essa construção ideológica historicamente oculta as desigualdades raciais e coopera com a repeti-ção do passado no presente. A raça social e culturalmente construída, de acordo com a autora, determina a estrutura de classes do Brasil, ou seja, a raça determina as desigualdades presentes na nossa sociedade e a discriminação racial assegura vantagens aos membros do grupo dominante32.

Para Bhabha (1989), os estereótipos racistas são instrumentos do discurso colonial. Esse discurso, por sua vez, é um aparato de poder constituído por códi-gos, normas, instituições e práticas institucionais, que visa tornar a discriminação racial legítima. A forma utilizada para fazê-lo é incutir um consenso nos subordi-nados, para que eles aceitem e participem da reprodução do lugar que o estereóti-po racista estipulou para eles33.

29 BORGES, op. cit., p. 178 e 188.30 BORGES, Rosane. Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da

mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 197.

31 BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1998. passim.32 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil/Sueli Carneiro - São Paulo: Selo Negro,

2011. - (Consciência em debate/coordenadora Vera Lúcia Benedito). p. 17-18.33 BHABHA, op. cit., passim.

110 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

A próxima seção estuda o papel de duas mulheres negras representadas na novela Avenida Brasil. A partir das refl exões a respeito dos estereótipos represen-tados pelas personagens Tessália e Zezé, revela-se a persistência de um discurso racista estrutural e persistente no contexto nacional.

3. A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS ANALISADA POR MEIO DAS PERSONAGENS NEGRAS TESSÁLIA E ZEZÉ

Avenida Brasil, novela escrita por João Emanuel Carneiro, que foi exibida de 26 de março a 19 de outubro de 2012, contou, de acordo com o site ofi cial da Rede Globo, gshow, com um elenco principal composto por 45 atores. Den-tre estes, apenas quatro são negros, sendo duas mulheres. Porém, ao longo da trama outras três mulheres negras fazem algumas participações. As duas perso-nagens que analisaremos nesta seção são interpretadas por Débora Nascimento e Cacau Protásio, “Tessália das Graças Mendonça” (Figura 1) e “Zezé” (Figura 2), respectivamente.

(Figura 1)

(Figura 2)

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Os estereótipos criados pela mídia e a quantidade de mulheres negras no elenco das telenovelas brasileiras evidenciam a posição do sujeito subalterno femi-nino no contexto colonial e refletem o que diz Spivak sobre estarem esses sujeitos ainda mais profundamente colocados na obscuridade34.

A condição de exclusão das mulheres negras vai se revelando por intersec-cionalidades que sobrepõem cor e renda, já que a trama se passa num subúrbio do Rio de Janeiro, onde vive uma população de baixa renda. No Brasil, a população de baixa renda é majoritariamente negra e mestiça ou, como na melhor expressão de Sueli Carneiro: a pobreza tem cor no Brasil. Isso fica evidente nos dados trazi-dos por Flávia Oliveira:

“A desigualdade racial no Brasil é tão intensa que, se o índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país levasse em conta apenas os dados da população branca, o país ocuparia a 48ª posição, a mesma da Costa Rica, no ranking de 174 países ela-borado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isso significa que, se brancos e negros tivessem as mesmas condições de vida, o país subiria 26 degraus na lista da ONU - hoje está em 74º lugar. Em contrapartida, analisando-se apenas infor-mações sobre renda, educação e esperança de vida ao nascer dos negros e mestiços, o IDH nacional despencaria para a 108ª posição, igualando o Brasil à Argélia no relatório anual da ONU.”35

De acordo com Acevedo e Nohara os negros “[...] são constantemente asso-ciados nos meios de comunicação a imagens negativas, como pobreza, violência, criminalidade, favela, sujeira, ignorância, analfabetismo, feiura e infelicidade”36. Santos diz que “esta afirmativa enaltece a incidência da representatividade social do negro no escopo das dificuldades sociais de educação e baixa renda, que acar-retam a moradia em comunidades carentes e a ocupação de funções de trabalho socialmente desvalorizadas”37.

Borges mostra que, ao olharmos para a paisagem midiática brasileira, ob-serva-se “um trajeto, pontilhado por estigmas e estereótipos, que parece se repetir indefinidamente”. Agregando a análise sobre o feminino, conclui que há uma tipificação do que é ser uma mulher negra38. Elas são inseridas no que a autora

34 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. p. 67.35 Flávia Oliveira apud CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil/Sueli Carneiro - São

Paulo: Selo Negro, 2011. - (Consciência em debate/coordenadora Vera Lúcia Benedito). p. 57-58.36 Acevedo e Nohara apud SANTOS, Thais Helen do Nascimento. Mídia, representação e raça: o negro na

telenovela Avenida Brasil. Mediação, Belo Horizonte, v. 17, n. 20, jan./jun. de 2015. p. 21.37 SANTOS, Thais Helen do Nascimento. Mídia, representação e raça: o negro na telenovela Avenida Bra-

sil. Mediação, Belo Horizonte, v. 17, n. 20, jan./jun. de 2015. p. 21.38 BORGES, Rosane. Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da

mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 188.

112 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

chamou de “viés redutor”. Esses estereótipos, emergem de um “imaginário racista e sexista sobre a mulher negra”39.

Os estereótipos criados sobre a mulher negra desde a escravidão a aprisio-nam em uma visão restrita ao seu corpo e sobre elas recaem papéis que as limitam ao uso de seu corpo como objeto sexual ou como instrumento para realizar traba-lhos menos valorizados, como o de doméstica. Essas duas formas de representação remetem ao período colonial, no qual, as mulheres escravizadas estavam não só presentes em trabalhos braçais na lavoura, mas também estavam dentro das casas grandes fazendo o trabalho doméstico para as mulheres brancas e ao mesmo tem-po, eram forçadas a satisfazer sexualmente seus senhores. De acordo com Hooks:

Essas representações incutiram na cabeça de todos que as negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distan-te da vida mental. Dentro das hierarquias de sexo/raça/classe dos Estados Unidos, as negras sempre estiveram no nível mais baixo. O status inferior nessa cultura é reservado aos julgados incapazes de mobilidade social, por serem vistos, em termos sexistas, racistas e classistas, como deficientes, incompetentes e inferiores.40

Essas construções concretam as mulheres negras da periferia debaixo de muitas camadas de opressão (racistas, patriarcais, sexistas, classistas etc.) que se entrecruzam e aprofundam ainda mais ‘o que é ser uma mulher negra’ e ‘o que é uma mulher negra’ no imaginário popular, que assimila o que a telenovela impõe como sendo verdade. Nas palavras de Borges:

O quadro comum de referências sobre a mulher negra oscila, então, da figura sexualmente atrativa ou do sujeito talhado para o trabalho (um infame ditado evo-cado em conversas informais na cena brasileira dá a dimensão disso: “branca para casar, mulata para fornicar e preta para trabalhar”). As duas categorias, do trabalho subalternizado e do prazer corporal, acompanham irrevogavelmente as imagens midiáticas da mulher negra. Funcionam, como dissemos, como discursos funda-dores, ou seja, são discursos que laboram como referência básica no imaginário constitutivo da mulher negra.41

Carneiro sustenta que a identidade étnica e racial é um fenômeno que foi ao longo do tempo sendo construído ou destruído. A identidade do negro de

39 Bell Hooks apud BORGES, Rosane Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 196

40 Ibid., p. 19741 BORGES, Rosane. Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da

mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 196-198.

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pele clara foi manipulada desde os tempos da escravidão como “um estágio mais avançado de ideal estético humano; acreditava-se que todo negro de pele escura deveria perseguir diferentes mecanismos de embranquecimento”42.

A autora destaca a tentativa de se incutir que a miscigenação ou a mestiça-gem deve ser utilizada como forma de se libertar do estigma da negritude e que o tom de pele um pouco mais claro, por exemplo, ascende essa pessoa socialmente. Nas palavras de Carneiro, “é comum as negras bonitas serem “promovidas” a mu-latas ou morenas por um galanteador” 43.

A personagem Tessália das Graças Mendonça é descrita na página oficial da telenovela como a “mulher mais desejada do bairro Divino”, como uma mulher “gente boa, doce, ingênua, tranquila, sincera e romântica”. Resumidamente, Tes-sália chega do interior e passa a ser o centro das atenções dos homens do bairro. Logo se torna amante de Leleco (Marcos Caruso), homem branco mais velho do que ela e de classe alta. Ela sofre uma desilusão amorosa com ele, mas depois se envolve com outro homem, também branco, porém, de baixa renda.

Nesta personagem se evidenciam estereótipos racistas e sexistas. Ela é a ar-ticulação da inocência de uma menina com o corpo de mulher. Ela é meiga e ao mesmo tempo muito sensual -dificilmente não está usando roupas coladas e curtas. Seu corpo é objetificado, o que evidencia a lição de Hooks, sobre as mu-lheres negras serem vistas somente como um corpo sem mente e colocadas em uma categoria de símbolo sexual. Ela é desejada pelos homens do lugar onde vive, porém, submissa àqueles com quem se relaciona. Durante a trama, a maior parte das cenas da personagem estão focadas nos seus relacionamentos amorosos.

Esta personagem ocupa um cargo de cabeleireira e ganha o concurso de “Garota Chapinha”, uma valorização do atributo de lisura do cabelo que afasta a personagem do característico cabelo crespo da mulher negra. Tessália é a negra de pele clara, a mestiça que, nas palavras de Sueli Carneiro, foi “promovida” a mulata ou morena por um galanteador, ou, como retomou Rosane Borges, é aquela que serve à satisfação dos prazeres sexuais.

Zezé não tem sobrenome. Essa ausência não pode passar despercebida da análise. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Aplicada realizada em setembro de 2016, analisou 46 milhões de nomes de trabalhadores do cadastro da Relação Anual de Informações Sociais e descobriu que 87% dos cadastrados no Brasil ti-

42 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil/Sueli Carneiro - São Paulo: Selo Negro, 2011. - (Consciência em debate/coordenadora Vera Lúcia Benedito). p. 64-65.

43 Idem; Ibidem.

114 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

nham sobrenomes de origem ibérica (ex.: Silva, Souza, Gonçalves, etc.) seguidos de 7% com sobrenomes italianos. Complementam o grupo sobrenomes de outras origens. O que chama a atenção é a ausência de sobrenomes ameríndios e africa-nos. Em que pese dimensões diferentes dadas ao que signifi cam os sobrenomes por populações ameríndias e africanas, a marcante ausência desses entre a popula-ção brasileira está ligada a um processo de violência histórica: são grupos inteiros de indivíduos que foram forçados a adotar sobrenomes ibéricos, processo no qual, com o nome que desaparece são também apagados parte do passado coletivo e individual do sujeito, isto é, é apagada parte de sua identidade44

Zezé é uma empregada doméstica que vive em função da patroa, a adula e a idolatra. De acordo com o site ofi cial da telenovela, ela “era a empregada invejosa e fofoqueira da mansão da família Tufão”. Ela falava alto, bisbilhotava, era fofoqueira e era “repreendida” por Janaína, sua colega de trabalho, também empregada, porém, branca. Janaína, por sua vez, é descrita no site da telenovela como “honesta e batalhadora”.

A relação senhorial é visível pela relação entre Carminha (patroa) e Zezé (empregada). Carminha responsabiliza Zezé por todos os problemas que surgem, por tratá-la mal e com superioridade – relação de subordinação humilhante que fi ca gritante na cena em que Zezé serve de escada para a patroa, que pisa em suas costas (Figura 4).

(Figura 3)

Além disso, percebe-se que a tipifi cação da empregada doméstica incorpora elementos do passado colonial escravista. Analisando-a pode-se dizer que o espaço

44 CAMILO, Rocha. Por que não temos sobrenomes africanos ou indígenas? Entrevista com os professores Rodrigo Bonciani e Lucybeth Arruda. Nexo Jornal, 17.mar.2017. Podcast. 13 min. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/podcast/2017/03/17/Por-que-n%C3%A3o-temos-sobrenomes-africanos-ou-ind%-C3%ADgenas>. Acesso em: 22.mai.2019.

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que esse tipo de trabalho ocupa na vida das mulheres negras reproduz um padrão muito antigo, um padrão que ganha uma nova roupagem, mas que se repete45.

O fato de a personagem não ter história fora da casa da patroa, revela a criação da identidade do outro a partir da oposição ao sujeito soberano e do seu desaparecimento. Zezé não têm vida além do ambiente de trabalho, não possui sua própria história fora desse âmbito, evidenciando que a história do subalterno é criada sempre em ampla ligação com o sujeito soberano46. O dominante é o sujeito que existe por si, enquanto o outro não tem história própria, somente se defi nindo em contraposição com aquele.

Além dessas duas personagens, existem outras duas mulheres negras na tele-novela, que raramente aparecem: Zulmira (Rose Lima), Conceição (Vilma Melo) e Jéssica (Patrícia Dejesus). Zulmira é a empregada doméstica negra da empregada doméstica branca Janaína (Claudia Missura) (Figura 4) que trabalha com Zezé. É possível notar entre elas, a mesma relação senhorial que a empregada branca se submete na mansão em que trabalha, revelando posição subalterna da mulher ne-gra. Conceição também é doméstica e Jéssica foi vendedora em uma participação especial na telenovela.

(Figura 4)

Portanto, os estereótipos presentes no cenário da telenovela Avenida Brasil evidenciam a permanência do discurso colonial como fundador das representa-ções das mulheres negras na mídia. Essa permanência denuncia a colonialidade estruturada a partir da raça. Para Quijano, o conjunto de relações de poder pre-sentes no período colonial não se esgotou com as independências das metrópoles e continua arraigado nas relações sociais e de poder dos países ora independentes. Para o autor essa continuidade das formas coloniais de dominação centradas no

45 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Editora Boitempo, 2016. passim.46 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. passim.

116 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

conceito de raça pode ser expressa pelo termo colonialidade47. Nas conclusões que seguem trazemos alguns comentários finais sobre isso.

CONCLUSÃOO Brasil está entre os últimos países do mundo a abolir a escravidão e a ló-

gica de inferiorização dos sujeitos carregada nessa instituição atroz e brutal ainda se reflete no cotidiano de milhares de pessoas, em especial, entre as mulheres ne-gras. O racismo estrutural que chega até nossos dias atravessa as relações de poder e instituições, evidenciando a colonialidade, isto é, a permanência do discurso e das dinâmicas coloniais de dominação na sociedade brasileira. Na situação de colonialidade a desigualdade é naturalizada, tal como observamos, por exemplo, pela insistente permanência das mulheres negras nas situações de maior vulnera-bilidade econômica; pela desproporção de negros encarcerados em relação à sua participação na composição social brasileira; pela difícil alteração da expressiva taxa de mulheres negras ocupando majoritariamente empregos voltados ao tra-balho doméstico, entre outros. São todos exemplos do legado contemporâneo da escravidão e de um Estado cujas políticas públicas não alteraram a relação hierar-quizada criada entre indivíduos desde os tempos coloniais.

O passado colonial brasileiro arraigou nas relações sociais um ethos racista que rege todas as relações. Uma das formas de dar continuidade ao racismo que permeia a sociedade brasileira é por meio dos estereótipos. De acordo com Homi Bhabha, os estereótipos compõem o pilar da estratégia discursiva colonial e racis-ta. Para produzir sujeitos sob a ótica do discurso hegemônico, as diferenças, sejam elas culturais, raciais ou históricas são usadas como fundamento das subordina-ções construídas48.

Diante das análises das personagens Tessália e Zezé vemos a reprodução de estereótipos racistas, vitais para a manutenção de um consenso entre dominadores e dominados. Eles “funcionam, como dissemos, como discursos fundadores, ou seja, são discursos que laboram como referência básica no imaginário constitutivo da mulher negra.”49 Dessa forma, o surgimento de uma nova percepção sustenta-da por valores ressignificados pelas próprias mulheres negras é dificultado.

47 QUIJANO, Aníbal Obregón. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, Aní-bal Obregón. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

48 BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1998. p. 105 e 115.49 BORGES, Rosane. Mídia, racismos e representações do outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da

mulher negra. In: BORGES, Roberto Carlos da Silva; BORGES Rosane. Mídia e Racismo. Edição bilíngue. Petrópolis: DP Et Alii Editora Ltda, 2012. p. 197.

CriSTinE KoEHLEr zanELLa E amanDa maTEuS roBBi 117

Historicamente, a construção da figura da mulher negra foi baseada na marginalização, na objetificação de seus corpos - tanto para o trabalho quanto para a satisfação dos desejos dos senhores das casas grandes - e, a medida que os estereótipos resgatados pela telenovela nos remete a esse passado colonial, a ima-gem da mulher negra que continua a se fixar no imaginário social é uma imagem racista e sexista.

Além disso, esses estereótipos se configuram como instrumentos de violên-cia contra essas mulheres. Ao tipificar as mulheres negras e representá-las através de estereótipos, os eixos de opressão que as atingem se revelam e as mantém sob essas camadas que as concretam no local subordinado que lhes foi designado.

Em síntese, essas narrativas construídas em cima do sujeito feminino co-lonizado estabelecem formas hierarquizadas de relações e aprofundam a posição de inferioridade das mulheres negras. E, como lembra Spivak, ocultado pelo si-lenciamento, o sujeito subalterno colonizado não consegue falar e construir a sua própria história.

Portanto, um produto como a telenovela, exibido no meio de comunicação que a população brasileira tem largo acesso, a medida que é permeado por tipi-ficações do que é a mulher negra e do que é ser uma mulher negra, construídos predominantemente pela elite branca, contribuem para a tipificação e a concre-tagem da mulher negra brasileira, sob o jugo de opressões cruzadas, em posições inferiorizadas.

118 PRÁTICASDISCURSIVASDEINFERIORIZAÇÃODOSSUJEITOSAPARTIRTELEVISÃOEACONTINUAÇÃODOPROJETO[...]

CRIMINOLOGIA E FEMINISMO: CONTRIBUIÇÕES DO CINEMA PARA O DIREITO EM “O AUTO DA COMPADECIDA”1.

Míriam Coutinho de Faria Alves2

Ezilda Melo3

“Como somos culpadas de termos elevado o homem acima da craveira comum, en-quanto, de baixo, lhe segurávamos o pedestal! – Como supervalorizamos o sexo opos-to, enquanto nós mulheres, engrossávamos o imenso exército de seres submissos, de cabeças baixas e vontades quebradas – sob séculos de costumes impostos... e toneladas de códigos e normas a traçarem nossa linha de conduta...” Lourdes Ramalho.

1. DO PLANO TEXTUAL AO IMAGINÁRIO DA TELAO julgamento é a peça chave para análise do filme “O Auto da Compadeci-

da”, quanto também da peça teatral “Auto da Compadecida”. A instituição do Tri-bunal do Júri4, existente no Código de Processo Penal Brasileiro, possui na obra de Ariano Suassuna uma forte metáfora com o imaginário popular, pois a tradição religiosa cristã acredita no julgamento no plano celestial, a partir das cenas ocor-ridas no plano terrestre, dos pecados e dos erros humanos, e muito se assemelha à cena do Júri processual a que se está acostumado na lida jurídica penal.

Antes do julgamento, muitos episódios ocorrem. E quem nos conta é Aria-no Suassuna5 em “Auto da Compadecida”6. Tudo acontece no sertão, que é o centro, palco, vida em que faz aparecer o encourado, a mulher do padeiro, o

1 A peça teatral “Auto da compadecida” foi escrita em 1955 por Ariano Suassuna (1927-2014). O Auto da Compadecida, filme de Guel Arraes, foi lançado no ano de 2000. Texto originariamente publicado na coletâ-nea “Direito e Cinema Brasileiro” (2020), Organizadora Ezilda Melo.

2 Professora Dra. Míriam Coutinho de Faria Alves. Professora Adjunta do Departamento de Direito da Univer-sidade Federal de Sergipe (UFS). Pesquisadora-Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Arte e Literatura CNPq/UFS. Membro honorária da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL)

3 Advogada, Historiadora. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Di-reito desde o ano de 2003. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Fractais Transdisciplinares do Direito”. Idealizadora do Projeto “Feminismos, Artes e Direitos das Humanas”. E-mail: [email protected]

4 MELO, Ezilda. Tribunal do Júri: arte, emoção e caos. 1ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. 5 Cf. Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro

de Ciências da Comunicação Santos 29 de agosto a 2 de setembro de 200Literatura e Almanaques: Ariano Suassuna e os modos alternativos de inserção do popular e do nacional na mídia. Amílcar Almeida Bezerra. Professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade Boa Viagem (PE). http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1349-1.pdf Movimento armorial .

6 A terminologia Auto utilizada para indicar peças breves, de origem Ibérica, nos liga a nomes como os de Gil Vicente na cultura luso-brasileira, em especial Juan del Encina, Padre José de Anchieta, entre outros

CriSTinE KoEHLEr zanELLa E míriam CouTinHo DE Faria aLvES 119

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padeiro, o padre, o bispo, o sacristão, o coronel e o cangaceiro e na visão cine-matográfica Guel Arraes acresce o Cabo Setenta, Vicentão e Rosinha, além de nomear os personagens. O elenco do filme tem Matheus Nachtergaele  como João Grilo; Selton Mello como Chicó; Rogério Cardoso como Padre João; Lima Duarte  como o Bispo; Denise Fraga  como Dora; Diogo Vilela  como Eurico; Paulo Goulart como Major Antônio Morais; Virgínia Cavendish como Rosinha; Aramis Trindade como o cabo Setenta; Marco Nanini como “Capitão” Severi-no de Aracaju; Maurício Gonçalves  como  Jesus Cristo  (“Emanuel”); Fernanda Montenegro como Nossa Senhora, como “A Compadecida”; Luís Melo como o Diabo; Bruno Garcia como Vicentão; Enrique Diaz como Cangaceiro “Cabra. A personagem central é uma mulher, “Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!7”, demonstrando numa fala uma forte construção social do que é mulher no sertão nordestino.

De natureza medieval, integrando características teatrais e circenses, a peça de Ariano Suassuna ao transitar do texto literário para o sistema audiovisual de minis-série8 (em 1999) e linguagem cinematográfica9 (2000) requer novo processo elabo-rativo. A incorporação de elementos visuais marcados pela cenografia, a divulgação e recepção dentro do sistema audiovisual modifica por certo o texto literário assim esta comédia dramática encontra-se numa releitura com o direito ressignificando essas interconexões como práticas da cultura. A estética10 artística e jusliterária co-necta-se com a hermenêutica jurídica assumindo uma identidade derivada, aque-la que torna-se fruto de entendimentos normativos e doutrinários mas que não abandona os artefatos culturais na relação entre racionalidade jurídica e realidade.

2. “MULHER EM TUDO SE METE!”: JUSLITERATURA HUMA-NISTA EM “O AUTO DA COMPADECIDA” E O TESTEMUNHO DE CHICÓ: RELATO DA JUSTIÇA ATRAVÉS DO CRITÉRIO DA FANTASIA.

É o palhaço quem afirma “Auto da compadecida! Uma história altamen-te moral e um apelo à misericórdia”11. João Grillo intervém à Nossa Senhora, a compadecida, e recorre ao argumento da misericórdia, à empatia, à alteridade, ao compadecimento. Compadecer. Verbo que remete à condição primária de quem

7 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 11ª edição. Rio de Janeiro Livraria AGIR, 1975, p. 170.8 ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. Minissérie da TV Globo. Brasil, 1999. 157 min. 9 ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. São Paulo: Globo Filmes, 2000. 104 min.10 Trata-se da estética jurídica como modo de percepção e apreensão do imaginário jusfilosófico.11 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 11ª edição. Rio de Janeiro Livraria AGIR, 1975, p. 24.

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sofre com o outro e torna-se compatível na dor. Essa compatibilidade com a dor do outro seria necessária para consciência judicativa? A obra cinematográfica “O Auto da Compadecida” nos faz repensar a partir da representação feminina, o argumento da misericórdia como via jusliterária humanizadora.

A crítica literária e teatral aproxima os modos de vida do sertão brasileiro da mentalidade medieval ibérica, sobretudo, tenta construir esse complexo paralelo ao assinalar aventuras sertanejas como quixotescas, sebastianas representadas na rica lite-ratura de cordel de onde se extrai denso imaginário popular. “O Auto da Compadeci-da” delineia traços identitários do imaginário sertanejo, mistura bravura e passividade, saudade com caatinga. E assim como a saudade é coisa variada, vai mudando daqui e ali, fazendo com que a memória seja referência no plano discursivo. Suassuna sertaneja o sertanejar, presta uma prece ao suprareal, percorre os sertões da alma. As fantasias do personagem João Grilo pretendem explicar o acontecido. E o palhaço-narrador, ao lado da figura de Chicó, traz além do caráter dramático, possibilidades de revisitar o épico inscrevendo nele também o cômico, retomando o tema da narração como estratégia de sobreviver e contar “casos”, estórias imaginadas.

Chicó é testemunha e (re)leitor dos acontecimentos que tornam ordena-mentos dos fatos extra-ordinários. A partir dos relatos de Chicó pode-se supor critérios da fantasiosa narrativa. No entanto, pode-se vê-lo diante de uma realida-de opressora, o fantasiar como ato de resistência e a lógica da fantasia não como falseamento dos fatos, mas ao inverso: como justiça, já que a explicitação dos fatos é parte da “ vida criativa” e segue determinada coerência, faz parte da lógica de sobrevivência de quem passou fome e comeu macambira na seca. No espaço imaginário nordestino, as peças e o humor são instrumentos de crítica social, con-testam hierarquias religiosas e políticas, afirmam a desigualdade social e apontam as fragilidades humanas diante dos sistemas de poder.

Chicó diz o que diz como se verdade fosse utilizando-se da arte da “menti-ra” (aqui a explicação para o termo “mentira” significa criação da realidade) para produzir convencimento. E ele só sabe “que foi assim” que aconteceu o aconte-cido. E se há crença no que Chicó enuncia, há também partilha da imaginação. Busca-se analisar o relato fantasioso dele como critério de justiça observando na elaboração da fantasia, o elemento da coerência narrativa utilizado na hermenêu-tica jurídica no viés teoria narrativista do direito. Sendo assim, o testemunho de Chicó é relato da justiça através do critério da fantasia.

A partir desses elementos pode-se fazer intervenções sobre as ficções ju-rídicas e seus critérios narrativos que em busca da partilha da imaginação do

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senso comum teórico dos juristas (Warat) reproduzem um constructo discursivo socialmente compreendido no contexto cultural dominante ao que se referem. Como explica Calvo González (2013, p.49), “ a coerência narrativa se dá como forma de instalação na sententia factum de um constructo discursivo que aponta para a plausibilidade e harmonia entre enunciados fáticos12”. Aplicações narrativas são frequentes na teoria jurídica contemporânea, dentro do discurso processual constitucional, para exercer adequação do elemento fático ao discurso jurídico--legal estabelecendo assimetrias processuais. Assim, no espaço imaginário nor-destino contemporâneo o humor é instrumento de crítica social, contestando as hierarquias religiosas e políticas, revisitando hábitos e seus visíveis contrastes. A antropologia simétrica de Latour (2013, p.19) para quem “ o próprio hábito é moderno, uma vez que continua sendo assimétrico13”

Quando os pecados humanos, numa visão cristã, ou os crimes, numa lin-guagem jurídica, são postas em julgamento, o diabo está vestido de vaqueiro e as figuras religiosas como Emanuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) e a Compadecida (Nossa Senhora) incorporam elementos forenses. Considerando o contexto do inferno, a partir da leitura de Flusser, filósofo e antiacadêmico, que em a His-tória do Diabo14 transforma o próprio Diabo em personagem, “o fundamento do Diabo é a língua15” (Flusser,2008, p.191) assim como suas distintas formas de exploração. Substanciando o argumento de que o julgamento é um processo dialógico que traz em si a teatralização como modo de representação dos discur-sos. A perspectiva dialógica entre teatro popular e elementos medievais, resgata no imaginário popular a misericórdia como elemento humanizador no sentido de que restitui um discurso mediador de valores culturais. Dentro deste con-texto, a linguagem jurídica tornar-se, sem a percepção da cultura popular, o meio mais eficaz de perversão da dignidade.

Narrativa épica e contextual, Ariano anuncia um discurso épico dos di-reitos humanos. Dentre as categorias épicas, a da invocação e o heroísmo épi-co consagrado na postura de seus personagens se revestem de diversas formas. Como diz Ramalho16,“ sempre em sintonia com as questões sociais, históricas,

12 CALVO GONZÁLEZ, José. Direito Curvo. Trad. André Karam Trindade, Luis Rosenfield, Dino del Pino. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p.49.

13 LATOUR, Bruno. 1994 [1991]. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, p.19.

14 História do diabo (Die Geschichte des Teufls) fora escrita em alemão em 1965.15 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. São Paulo: Annablume, 2008, p.91.16 RAMALHO,Christina. Poemas épicos. Estratégias de leitura. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Uapê,2013, p.15:

“Considerado por parte da crítica um gênero esgotado no século XVIII, o épico, contudo, como forma de arte literária que é, sobreviveu e sobrevive em muitas culturas, ainda que revestido de novas formas, como ocorre com qualquer gênero literário quando corretamente observado por lentes teóricas e críticas que levem em

políticas, estéticas etc.., as artes, incluindo a literária, renovam-se constante-mente em um diálogo permanente entre o antigo, o novo e a realidade huma-no-existencial.”

No campo jurídico, sobre a ideia de coerência narrativa, observa-se a narra-tiva como integrada por elos de correntes. Assim, a discursividade jurídica é um fazer jusliterário, sendo preciso acolher a verdade da narrativa em que assim como Chicó “ só sei que foi assim”.

3. GÊNERO E CRIMINOLOGIA FEMINISTA NA LEITURA DE “O AUTO DA COMPADECIDA”

Os estudos de gênero, os estudos literários e a crítica literária feminista, como também a criminologia feminista, ajudam como filtros de leitura da obra cinematográfica “O Auto da Compadecida”. São três mulheres no filme: A Com-padecida, que é figura maternal e sacra no imaginário católico nordestino; Rosi-nha, a virgem imaculada, pura e casta, vestida de branco, romântica à espera de um casamento, e Dora, a mulher do padeiro, sexualmente ativa, mandona, que na visão patriarcal não faz papel de santa e será a única mulher julgada pelos seus atos mundanos. É importante ressaltar que na peça eram apenas duas mulheres: a Compadecida e a Mulher do Padeiro, que sequer tinha nome.

A virgem Maria assexuada e a Eva pecadora, a dualidade feminina em imagem paradoxal, acompanha a história das mulheres17 e fica muito evidente na leitura que se faz aqui nesta análise. Se de um lado, na construção cinemato-gráfica, tem-se a virgem Rosinha, “a filha do Major Antônio de Morais”, forma de identificá-la sócio- culturalmente dentro de um referencial masculino, uma representação arquetípica de uma identidade feminina tradicional, presa aos padrões patriarcais, moça que estudou fora, que teve acesso a outras referências culturais, herdeira única, devota cristã, que frequenta a Igreja usando véu e que, ao usar, suas vestes claríssimas, deixa explícito o símbolo da castidade e de pureza, representação do feminismo cristão, espera sair do jugo do pai para o do futuro marido, mesmo que precise abandonar sua riqueza e posição social em busca de um ideal de amor romântico.

conta as transformações por que passam as manifestações literárias e artísticas em geral”.17 TEDESCHI, Losandro Antonio As mulheres e a história: uma introdução teórico-metodológica. Dourados, MS:

Ed. UFGD, 2012, p. 16: “ Esses discursos integraram-se às práticas sociais que passaram a determinar a vida das mulheres. A história do corpo feminino é contada pelo olhar masculino, estabelecendo, através dos discursos, uma “natureza feminina ”, voltada unicamente para a maternidade e a reprodução. Abordar a construção dessas representações é revelar o imaginário masculino presente, impregnado, refletido na cultura. Tradicionalmente se empregam argumentos extraídos da natureza, da religião, do político para legitimar a subordinação feminina”.

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De um outro lado, contrapondo-se ao modelo de mulher externado por Rosinha, aparece a figura de Dora, “a Mulher do Padeiro”, que usa vestes provo-cantes e exuberantes em cores fortes, batom vermelho nos lábios, roupas íntimas que aparecem em seus longos decotes, controladora do marido e das finanças da padaria, com artimanhas para viver sua sexualidade fora do casamento, cheia de amantes, pela lei penal uma adúltera e pela boca do povo de uma cidade peque-na do sertão nordestino, uma “mulher safada”, na década de 30 do século pas-sado, período em que vigorava um código civil onde a mulher era propriedade marital. Dora, a dona da ‘cachorra’ que morre por envenenamento e tem direito a um sepultamento cristão, tem um corpo que não se conformou ao que lhe foi imposto social e culturalmente. Dora representa um feminismo revolucionário, rebelde, de revide à sociedade opressora, uma mulher corajosa em externar um comportamento18 que só era aceito como normal quando praticado por quem pertencesse ao sexo masculino.

Tanto para Beauvoir quanto para Butler, o gênero não é algo inerente, não tendo, portanto, nem começo, nem fim. Gênero é muito mais algo que se cons-troi continuamente no contexto sócio-histórico-cultural em que se está inserido. A definição de gênero19 de Butler ratifica esse raciocínio, ao considerá-lo como “uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plena-mente exibida em qualquer conjuntura considerada”. Nesse sentido, gênero não é sinônimo de mulher. Dialoga-se com o conceito de gênero de Butler20 (2003, p. 58-59) ao comentar a célebre frase que Beauvoir21 (1967) inaugurou o volu-me dois de sua obra mais coonhecida “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Nessa linha de abordagem, portanto, as mulheres são consideradas o negativo dos homens, e teriam uma falta que as diferencia do masculino. Aplicando esse

18 ARAÚJO, Eronides Câmara de. Homens Traídos e práticas da masculinidade para suportar a dor. 1ª edição. Curitiba: Appris, 2016, p.100: “Quando ocorria a infidelidade feminina, não só o processo normativo como o jurídico eram acionados para punir a mulher, por desonrar a instituição familiar, diferente da infidelidade masculina, que embora constituísse no texto jurídico como a desonra da família, havia tratamento diferencia-do, pelo efeito de uma sociedade regida por vários saberes e normatizada por valores centrados no homem”.

19 BUTLER, Judith P.: Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith Butler; tradução, Renato Aguiar – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 28. “Uma coalizão aberta, portanto, afirmaria iden-tidades alternativamente instituídas e abandonadas, segundo as propostas em curso; tratar-se-á de uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor”.

20 BUTLER, Judith P.: Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith Butler; tradução, Renato Aguiar – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 28. “Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se uma mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha origem ou fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais reificadas, a própria ‘cristalização’ é uma prática insistente e insidiosa, sustentada e regulada por vários meios sociais. Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção (grifos da autora).

21 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. A experiência vivida. 2ª edição. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, Vol. II, 1967.

referencial teórico ao personagem do padeiro Eurico, o homem corno, e ao da sua mulher Dora, a esposa infiel, o que se percebe é a subversão22 de lugares esperados para homem e mulher no imaginário patriarcal de uma sociedade

Na construção da identidade do nordestino, o discurso literário e cinemato-gráfico, desenhou este como alguém que partilha da superioridade dos fortes. Ao remeter ao coronelismo23, a mulher não passaria daquele objeto diferente da iden-tidade masculina que estava ali para lhe satisfazer. O cabra macho nordestino nas palavras de Albuquerque Jr24 (2010, p. 23 -24), seria aquele sem fragilidades e sem feminices. Assim, no senso comum, as representações dos homens nordestinos estão ligadas à ideia de coragem, destemor, valentia, virilidade, portanto em um olhar contrário sobre o que é a construção do ser mulher. Vicentão, o valentão, e Chicó, o medroso, são os polos antagônicos para desconstruir essa ideia de coagem.

O mito do homem sertanejo como “cabra-macho” alimenta um modelo de masculinidade baseada numa relação entre homens e mulheres que vigora desde o Brasil colônia, e por isso, é naturalizada, tida como eterna. Esse modelo de homem colabora com a violência contra as mulheres até hoje e está descrita em diversas obras literárias25, que retroalimentam modelos estruturais de comporta-mento e violência no Nordeste. Lourdes Ramalho26 (2011, p.74), em seu monó-logo “Fiel espelho meu”, ao dar voz à viúva Verônica, esta anuncia sua percepção de mundo e sua revolta com lugares tão díspares e sem igualdade jurídica, dentro do próprio espaço doméstico.

22 Diálogo do filme “O Auto da Compadecida”: Dora: Abre essa porta, Eurico! Eurico: Isso é hora de chegar em uma casa de respeito , aqui você não entra nem com a mulestia de cachorro-doido, vai dormir é na rua , que é pra todo mundo conhecer a qualidade de mulher traidora que você é. Dora: Oxii, eu só fui dar uma voltinha pra me refrescar. Eurico: Refrescar só se for esse fogo que você tem! Dora: Kikinho, vamo resolver esse assunto entre nós. Dora arranha a porta como um gato. Dora: Abra, por favor ! Por favor... Eurico: Abrir? Só se for sua cabeça infeliz! Eu fui muito besta em me casar com você. Mulher bonita só serve pra por chifre na gente! Dora: Se você não abrir, eu me atiro na cacimba. Eurico: E eu tenho lá essa sorte? Dora: Você vai se arrepender de suas acusações falsas , e vai todo mundo pensar que você que me matou por ciúmes , você vai morrer de remorsos . Adeus, Eurico, meu único amor. Aaaaah ! Dorinha simulou que tinha pulado na cacimba e se escondeu atras da porta dos fundos perto da cacimba. Eurico: Dorinha, minha filha, não faça isso , não faça uma coisa dessas que eu sou doido por ti !

23 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e senzala. 49ª edição. São Paulo: Global, 2003.24 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª edição. São Paulo: Cortez,

2011, p. 23-24: “Um macho que se preze é agressivo na vida e com pessoas, se caracteriza pela vontade de poder, de domínio, exige subordinados e subordinações, notadamente das mulheres. Um macho não deixa transparecer publicamente suas emoções e, acima de tudo, não chora, não demonstra fraquezas, vacilações, incertezas. (…) Um macho não adoece, não tem fragilidades nem físicas, nem emocionais, frescuras”.

25 A exemplo de LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. Editora Scipione. 1964. Neste breve trecho escolhido, há uma construção que reforça esse imaginário: “no Nordeste o homem quando é traído tem que matar. Se fosse no Rio de Janeiro, tudo bem. Eu enchia os cornos, te dava uns catiripapo e tava tudo certo. Mas aqui no Nordeste eu vou ter que dar uma de macho”. Dar uma de macho, neste contexto, é matar a mulher por causa da traição, ou seja, cometer feminicídio.

26 RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro (quase completo) de Lourdes Ramalho. Mulheres. Vol. II. Ma-ceió: EDUFAL, 2011, p.74 : “Honestidade’ é uma palavra que, para o homem e para a mulher, tem conotações diferentes. - O homem pode matar, bater na mulher, fornicar à vontade – se não roubar escandalosamente, é honesto. - A mulher, além de possuir todas as virtudes imagináveis, deverá trancar as pernas até encontrar um marido – e assim agir, mesmo por abandono ou morte do safado”.

míriam CouTinHo DE Faria aLvES E EziLDa mELo 125

126 CRIMINOLOGIAEFEMINISMO:CONTRIbUIÇõESDOCINEMAPARAODIREITOEM“OAUTODACOMPADECIDA”.

Na personagem Dora há a construção do estereótipo de mulher que é mui-to presente dentro da ideologia católica: a de mulher pecadora. Assim, percebe-se, a priori, que na literatura brasileira regionalista nordestina, e na visão cinemato-gráfica do que se convencionou como Nordeste, há a construção de lugares con-trapostos de mulher27 e, dentro dessa perspectiva, cada qual tem um modo de ser tratada em sociedade, sendo a pecadora a mulher que merece as punições violen-tas. O referencial teórico para esta análise parte da utilização das teorias feminis-tas, que são bases teóricas norteadoras porque através destas, coloca-se a opressão feminina numa dimensão visível e ampla. Esta fundamentação, portanto, utiliza dois conceitos difundidos na perspectiva feminista: o conceito de patriarcado e o de gênero. O casal Dora e Eurico, portamto, subvertem a lógica patriarcal.

Ao se perceber o julgamento como a peça chave para análise do filme “O Auto da Compadecida”, como para a peça teatral “Auto da Compadecida”, evoca-se a instituição do Tribunal do Júri28, existente no Código de Processo Penal Brasileiro, que possui na obra de Ariano Suassuna uma forte metáfora do imaginário popular que aguarda esse julgamento no plano celestial, o júri no céu, a partir das cenas ocorridas no plano terrestre, e na disposição espacial-teatral que aqui se conhece.

A terceira personagem feminina é “A Compadecida”, invocada por João Gri-lo, a defensora dos demais personagens, e traz argumentos pautados na ideia de uma justificativa no passado, nos antecedentes de cada pessoa julgada, na análise psicológica, na construção lógica entre os fatos narrados e na crença de que todos podem errar e se arrepender. O plano do Encourado, o Diabo, o acusador, é levar todos para o inferno, no entanto João Grilo alega que tem direito à defesa e clama misericórdia à mãe da justiça, que logo de início reconhece que seus assistidos pra-ticaram atos vergonhosos, mas que não merecem condenação por suas mentiras, artimanhas, necessidades e até crimes contra a vida, como no caso do cangaceiro.

A mulher como defensora, criticada pela acusação que diz que ela está des-moralizando tudo na tentativa de salvar a todos, mostra a construção de uma cri-minologia nova, feita por mulher, uma criminologia feminista29, que surge como

27 BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 18: Para Butler não há unidade na categoria mulher. “Em outras palavras, a insistência sobre a coerência e a unidade da categoria das mulheres, rejeitou efetivamente a multipli-cidade das interseções culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto das ‘mulheres’”.

28 MELO, Ezilda. Tribunal do Júri: arte, emoção e caos. 1ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 135: “O julgamento é a verdadeira chave para compreensão desta obra e é o ponto de intersecção, nesta pesquisa, com o Direito, pois se pretende relacionar a instituição do Tribunal do Júri a partir das construções de Ariano Suassuna.

29 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 88: “a criminologia feminista entendeu o patriarcado como uma das estruturas que sustentam o próprio controle social formal e legitimam a alegada inferioridade feminina”.

resposta ao esquecimento sobre o sujeito feminino no sistema de justiça criminal, seja como profissional do Direito, seja como parte num processo criminal onde reina o masculinizado debate acadêmico. Ao dar visibilidade à condição feminina de Dora30, a Compadecida reinterpreta o alcance das categorias criadas pelo pa-triarcado que retroalimentam a inferioridade e a submissão da mulher e encontra justificativa para o comportamento sexual daquela, tido como “pecado”, ao reco-nhecer que o controle sobre o corpo e os modos de conviviabilidade e sociabilida-de feminina estão dentro da vigilância penal que oprime as mulheres e representa a continuidade do patriarcalismo como mantenedor de uma organização social que se baseia na divisão de sexo para discriminar e violentar a mulher. Fica evi-dente que o conhecimento crítico da Compadecida, utilizado na seara crimino-lógica, não nega a existência da elaboração teórica produzida pelo feminismo ao considerar conceitos como gênero e patriarcado em sua análise.

O protagonismo da defesa feita por uma mulher, auxiliada por um homem iletrado, sem formação acadêmico-jurídica, sabedor pela oralidade que existe o contraditório e que não poderia ser mandado para o inferno sem que sua versão fosse ouvida, a “advogada nossa31”, a misericordiosa com suas teses antipunitivis-tas acatadas, ao final dos autos, recebeu uma espécie de honorários, pela promessa de Chicó. Portanto, Guel Arraes, seguindo a linha do texto de Ariano Suassuna, valorizou o imaginário nordestino, a criminologia feminista e fortaleceu a face matriarcal da justiça no filme “O Auto da Compadecida”.

30 SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 11ª edição. Rio de Janeiro Livraria AGIR, 1975. pgs.177-179: percebe-se a utilização do discurso de proteção feito por uma mulher em razão de sua condição feminina, nessa passagem da obra literária:

“Manuel: Devia ter esquecido lá João. Pode alegar alguma coisa em favor deles? A compadecida: O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem

juntos. (...). Encourado: Enganava o marido com todo mundo. Mulher: Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento, começou a me enganar. A

senhora não sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor se paga.

A Compadecida: Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo, se bem que não tenha do que me queixar, porque meu marido era o que pode chamar um santo. (...) Encourado: A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente sua proteção com esses nojentos, mas nada pôde dizer ainda em favor da mulher do padeiro.

A Compadecida: Já aleguei sua condição de mulher, escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso alegar ainda em seu favor?”

31 Termo usado em referência à oração “Salve Rainha”.

míriam CouTinHo DE Faria aLvES E EziLDa mELo 127

PODE A MULHER ESCREVER? AS HISTÓRIAS DE MARY SHELLEY E COLETTE VÃO AO CINEMA

Márcia Letícia Gomes1

“[...]havia um grupo enorme de opiniões masculinas que atestavam que nada deveria ser esperado das mulheres

do ponto de vista intelectual.”

(Virginia Woolf )

PODE A MULHER ESCREVER?Virgínia Woolf já dizia que o indispensável para que a mulher escrevesse era

possuir “um teto todo seu”, uma maneira figurada de se referir à independência financeira. Ainda hoje, a dependência financeira é responsável pela manutenção de situações de violência contra a mulher.

Entendemos que ter um teto e condições econômicas suficientes para rea-lizar seus sonhos, seguir seus interesses e não ser tragada pela sobrevivência sejam condições fundamentais, no entanto, a despeito delas, durante muito tempo mui-tas atividades não eram facultadas à mulher: ter um trabalho, ter voz, ter voto, dentre muitas outras formas de silenciamento que, por meio de muitas lutas e sofrimento, resultaram em conquista de espaço para as mulheres.

A interdição dos Direitos das Mulheres tem sido sustentada por um con-junto de fatores mantido pelo patriarcado, dentre eles o que Teresa de Lauretis denominou “tecnologias de gênero”. Em sua obra “Alice doesn’t: feminism, se-miotics, cinema”, a estudiosa problematiza a representação da mulher no cinema e na linguagem. Para ela:

[...] o cinema dominante delimita para a mulher uma ordem social e natural es-pecífica, define-lhe certas proposições de significado, fixa-a numa determinada identificação. Representada como o termo negativo da diferenciação sexual, feti-che e espetáculo ou imagem especular, de qualquer maneira obscenas, a mulher é constituída como o substrato da representação, o espelho suspenso para o homem. Mas, como indivíduo histórico, a mulher espectadora também é posicionada nos clássicos do cinema como espectadora-sujeito; ela é, então, duplamente confinada

1 Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondô-nia – IFRO.

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à mesma representação que a invoca diretamente, atrai seu desejo, evoca seu prazer, modela sua identificação e torna-a cúmplice da produção de seu próprio “estado de mulher”.2 (LAURETIS, p. 99).

Assim é que a relação da mulher com o cinema pode ser problematizada tanto se pensarmos o papel da mulher nas telas quanto se pensarmos a mulher que consome cinema. Nas produções, em muitos casos, a imagem da mulher é de fato ‘o espelho suspenso para o homem’, na expressão de de Lauretis. Sem voz e confinada a um espaço desprestigiado, a mulher figura ali como construção do homem, é a mulher contada pelo homem assim como na história.

Ao discutir tal problemática nos vem à mente a obra das Guerrilla Girls (2017)3 doada por elas ao Museu de Arte de São Paulo – MASP e ali exposta. A impressão digital sobre papel traz a seguinte indagação: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?” e refere-se ao fato de poucas artistas mulheres terem espaço pra expor ali ao passo que a maioria das telas tem mulheres por modelos. A obra traz ainda as seguintes informações: menos de 4% de tudo que é exposto no museu é de autoria feminina e 74% dos nus são imagens de mulheres.

Por que tão poucas obras de mulheres nas paredes e espaços dos museus? Por que não há mulheres artistas? Todos sabemos que, apesar das dificuldades, sempre houve mulheres artistas, talentosas, mas o espaço e as oportunidades sem-pre lhes foram negados. É uma história de lutas e ainda há muito a ser feito.

Nesse cenário e em relação ao tema deste escrito, que é as vidas de Mary Shelley e Colette, temos de pensar no número significativo de mulheres que cons-truiu obras de arte, pensamento científico, mas não assinou, deixando que um homem o fizesse, geralmente o marido. Eis o caso das duas escritoras retratadas no cinema, mas também o caso de tantas outras mulheres, a cada dia lemos notícias e descobertas de obras atribuídas a homens e que, na verdade, foram produzidas por suas mulheres, como é o caso de Susan Sontag4 ou, ainda, aprimoradas por elas, como é o caso de Zélia Gattai5.

Mary Shelley, na narrativa fílmica, nas diversas negativas das editoras a seu romance “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” (1818), recebe justificativas fundadas no que pode e no que não pode ser escrito por mulheres. O fantástico, o terror, o horror não eram terreno para mulheres as quais poderiam escrever apenas

2 LAURETIS, Teresa. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema. Bloomington: Indiana University Press, 1984.3 GUERRILLA GIRLS. As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?. Im-

pressão digital sobre papel. 2017.4 Uma nova biografia de Susan Sontag – Sontag: Her Life – a ser lançada em setembro deste ano dá conta de que

o livro de seu primeiro marido – Philip Rieff, “Freud: pensamento e humanismo” na verdade, foi escrito por ela.5 Zélia Gattai revisava e adaptava os textos de Jorge Amado.

márCia LETíCia GomES 131

cartas e histórias de amor. Nesse cenário, pensamos ainda junto com Teresa de Lauretis no que é chamado pela autora de “espaços gendrados” – o território, o espaço que pode ser ocupado por homens e por mulheres.

Haveria reflexos desses espaços gendrados também no cinema? Em “Tecno-logias de gênero”, Teresa de Lauretis nos convida a pensar como a representação de gênero é construída pela tecnologia (na nossa discussão, o cinema) e, além disso, como tal representação é absorvida por cada um que a recebe.

Assim, as tecnologias de gênero têm se posto a serviço de uma história con-tada por homens e sobre homens e têm mantido tais versões. No entanto, vemos algumas iniciativas na contracorrente deste movimento e, dentre elas, destacamos as duas narrativas fílmicas lançadas em 2018 - “Mary Shelley” e “Colette” que colocam esta tecnologia – o cinema – para contar as histórias das mulheres, his-tórias nem sempre conhecidas do grande público e que podem vir a sê-lo quando retratadas nas telas.

Na percepção de de Lauretis:A construção do gênero ocorre hoje através de várias tecnologias do gênero (p. ex. o cinema) e discursos institucionais (p. ex. a teoria) com poder de controlar o cam-po do significado social e assim produzir, promover e “implantar” representações de gênero. Mas os termos para uma construção diferente do gênero também exis-tem, nas margens dos discursos hegemônicos. Propostos de fora do contrato social heterossexual, e inscritos em práticas micropolíticas, tais termos podem também contribuir para a construção do gênero e seus efeitos ocorrem ao “nível” local de resistências, na subjetividade e na auto-representação.6

Nesse sentido, entendemos que os filmes aqui discutidos representam estes discursos que estão nas margens do discurso hegemônico desnudando verdades nem sempre desejadas. Apesar de compreendê-los assim, marginais, deve-se des-tacar que vem crescendo o número de obras que contam histórias de mulheres, a exemplo da série “Z: the beginning of everything” (2015) que se dedica a contar a história de Zelda Fitzgerald tirando-a do lugar de simples esposa de F. Scott Fitzgerald para abordar a pessoa/personagem como uma mulher interessante, ta-lentosa e que realizou uma série de coisas, dentre elas: atuar, dançar, modelar.

Amélia, filme de 2009, conta a história da primeira aviadora a sobrevoar o Oceano Atlântico, lutou pelos direitos das mulheres e incentivou outras mulheres a pilotar. O fascínio de sua história envolve, ainda, seu desaparecimento em 1937 enquanto sobrevoava o Oceano Pacífico.

6 LAURETIS, Teresa. Techonologies of gender. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

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Um outro filme a ser destacado é “Estrelas além do tempo” (2016) que se dedica a contar a história de três mulheres: Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson que enfrentaram não apenas as barreiras de gênero como também as de raça trabalhando na NASA numa operação importante que levou o astro-nauta John Glenn ao espaço.

Figuras mais conhecidas, a exemplo de Margaret Thatcher, que também foi recentemente retratada como protagonista no filme “A dama de ferro” (2011), uma biografia adaptada. Vale dizer que, apesar de ser uma mulher conhecida, o cinema é uma tecnologia capaz de atingir um número maior de pessoas.

O cinema brasileiro também tem alguns exemplos, dentre eles “Nise – no coração da loucura”, uma produção de 2015 que conta a história da médica psi-quiatra Nise da Silveira que, no hospital Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, questionou os métodos tradicionalmente utilizados no tratamento psiquiátrico como os eletrochoques e a lobotomia, substituindo-os pelas artes e vivência hu-mana. A história de Irmã Dulce também foi levada às telas em 2014, contando a história de abnegação e serviço em favor dos desfavorecidos no estado da Bahia.

De acordo com de Lauretis: “[...] tanto as teorias quanto as ficções nela inspira-das contêm e promovem certas representações de gênero, assim como faz o cinema”7 e, nesse sentido, pensamos com a teórica que à medida que novas maneiras de contar vão surgindo, isso pode modificar o que temos por representações de gênero. É necessário tirar as histórias de mulheres do silenciamento que lhes foi imposto até então.

As narrativas fílmicas fazem parte de um movimento maior, a saber:O que é a razão pela qual a crítica de todos os discursos a respeito do gênero, inclusive aqueles produzidos ou promovidos como feministas, continua a ser uma parte tão vital do feminismo quanto o atual esforço para criar novos espaços de discurso, reescrever narrativas culturais e definir os termos de outra perspectiva – uma visão de “outro lugar’’.8

Importante destacar que não queremos dizer que os exemplos citados re-presentem a melhor maneira de contar as histórias das mulheres, haja vista que a indústria cinematográfica ainda conta com uma série de interdições ditadas pelos espaços gendrados, pelo que é do homem e o que é da mulher e que segue inter-ferindo nas produções. Há um processo em curso para desconstrução de algumas categorias e maneiras de pensar e retratar.

Assim é que, um olhar bastante crítico para as obras audiovisuais que se dedicam a contar histórias de mulheres trará alguns pontos negativos para a dis-

7 LAURETIS, Teresa. Techonologies of gender. Bloomington: Indiana University Press, 1987. 8 LAURETIS, Teresa. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema. Bloomington: Indiana University Press, 1984.

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cussão, no entanto, a tendência é pensá-las como parte de um movimento um pouco maior que dá visibilidade a histórias que nunca foram contadas.

MARY SHELLEYMary Shelley é um filme de 2018, dirigido por Haifaa al Mansour e a atriz

que vive a personagem principal é Elle Fanning. Mary Shelley, filha da escritora Mary Wollstonecraft9 e do romancista e filósofo William Godwin, foi casada com o poeta Percy Bysshe Shelley e teve amizade com Lord Byron (o qual desafiou os amigos a criarem uma história a partir do que nasceu Frankenstein), todos os nomes citados aparecem como personagens do filme. A escritora ficou conhecida pela obra Frankenstein ou o Prometeu Moderno, o que pouca gente sabe é que a autoria levou anos para ser conferida a ela. O fato de ser mulher afastava a adesão dos editores a sua ideia, ainda que ela tivesse criado uma história impressionante baseada em pesquisa séria, uma mulher não poderia escrever sobre aquilo, motivo pelo qual o livro é publicado anonimamente e com um prefácio de seu mari-do que, imediatamente, é apontado como o autor da obra ficcional. Apenas em 1823, na segunda edição, Mary Shelley figura como autora.

Toda a história é contada no filme: a morte da mãe logo após o parto de Mary Shelley e as visitas constantes ao cemitério; o convício com os mais dife-rentes cientistas e pensadores que despertaram na menina o interesse e a oportu-nidade de conhecer teorias que vieram a aparecer em sua obra romanesca; a con-vivência com Lord Byron e o desafio que resulta em Frankenstein; a história de amor com Percy Shelley que já era casado; e, principalmente, todo o desconforto que gera a publicação da primeira edição de Frankenstein sem o nome da autora.

A atenção insuficiente dada a ela pelo pai é sinalizada em sua biografia e, no filme, aparece logo no início quando ele a envia para a Escócia, no entanto, a fala do pai nesta cena é bastante significativa: “Encontre sua própria voz”, o que indica que o pai reconhece seu potencial e vê em sua escrita ainda muitas influências dos textos lidos – ao sugerir a viagem, acredita que está oferecendo uma oportunidade para que ela desenvolva suas habilidades. A fala do pai volta em outras cenas en-quanto ela está escrevendo.

Vale dizer que é nesta ida para a Escócia que Mary Shelley conhece Percy Shelley, o qual é apresentado como um poeta radical que acreditava que a poesia

9 Mary Wollstonecraft é a autora de “Reivindicação dos direitos da mulher” (1792), é considerada uma das fundadoras do movimento feminista, ainda que seja anterior a ele. Inspirada pelos ideais iluministas, Mary Wollstonecraft chama a atenção em relação ao não-lugar da mulher após a promulgação da constituição fran-cesa de 1791 que não concebia a mulher como cidadã.

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deveria mudar a sociedade. Quando Mary volta para Londres, Percy vai até lá e convive com o círculo de William Godwin. Neste período, Mary descobre que Percy era casado e tinha uma filha, a primeira mulher comete suicídio (não é re-tratado no filme este episódio da vida do casal).

Retomando as dificuldades da mulher escritora naquele momento, vale des-tacar a cena em que ela conversa com o editor que duvida que ela teria escrito a his-tória, afirmando que uma mulher não poderia ter desenvolvido aquele trabalho, não teria conhecimento daqueles temas e nem saberia colocá-los em uma história como ela fez. Neste ponto, impossível não pensar nos escritos de Mary Wollstonecraft10 que dedicou muitas páginas a tratar dos temas superioridade e inferioridade entre os sexos. Lembramos, ainda, a expressão de Teresa de Lauretis11 “espaços gendrados” que diz respeito aos espaços demarcados para homens e para mulheres socialmente. Pode a mulher escrever? Se sim, sobre que temas pode escrever?

Ainda na cena do editor, Mary o confronta e o acusa de falar esse tipo de coisa apenas pelo fato de ela ser uma mulher, como se uma mulher (opinião cor-rente à época, talvez ainda hoje...) fosse incapaz de sentir vazio, morte, escuridão e abordar essas percepções em uma obra ficcional.

Ali, Mary se depara com a impossibilidade de, sendo mulher, publicar sua história. Recebe dezenas de negativas que trazem, algumas delas, a justificativa de que aquela história não poderia ter sido escrita por uma mulher. A solução encontrada, então, foi publicar anonimamente com um prefácio do marido que, imediatamente, é reconhecido como o autor do livro.

Os trinta minutos finais do filme tratam especificamente do tema: Pode a mu-lher escrever? Pode uma mulher jovem escrever? Há temas específicos para as mulheres?

E, nesse sentido, entendemos o filme como uma tecnologia de gênero que foge ao padrão instituído, que, de certa forma, dá visibilidade para histórias de mulheres durante tanto tempo silenciadas e que convida a pensar outras histórias e, também, o momento atual.

As reflexões propostas pelos minutos finais do filme não trazem conside-rações muito otimistas. A perspectiva das mulheres ainda é silenciada, há temas considerados da ordem do feminino e outros não, o número de mulheres escri-toras, editoras, cineastas ainda é pequeno se comparado ao número de homens nestas indústrias e, como dito no início, devemos pensar o cinema que conta essas

10 WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher: edição comentada do clássico feminis-ta. Rio de Janeiro: Boitempo, 1991.

11 LAURETIS, Teresa. Techonologies of gender. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

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histórias como parte de um processo de quebra de padrões e, porque não dizer, como um instrumento de luta pela voz das mulheres.

COLETTEColette é um filme de 2018 dirigido por Wash Westmoreland e a atriz se-

lecionada para viver a protagonista que dá nome ao filme é Keira Knightley, atriz queridinha do público em personagens de época e que desempenha muito bem o papel de Sidonie-Gabrielle Colette.

O início do filme se passa em uma vila no interior da França onde a escri-tora morava com sua família que, naquele momento, buscava um casamento para ela. É em Saunt-Sauveur-en-Puisaye que ela conhece Willy com quem se casa e vai morar na capital francesa onde lida com o desajustamento, os olhares de desprezo por suas roupas e seus hábitos. Colette é vista pela sociedade parisiense frequenta-da por Willy como a moça do campo, sem a educação adequada para frequentar seus salões, jantares e bailes.

Nesse sentido, destaco particularmente a caracterização da personagem no filme, as roupas vão sutilmente mostrando ao espectador como Gabrielle passa a ser Colette e vai se apropriando da cidade, dominando os ambientes, construin-do identidade independente, se emancipando. Ainda quando morava na vila, já mostrava seu espírito independente, mas em Paris ela rapidamente compreende os códigos e a maneira como a narrativa fílmica mostra este processo é digna de nota com destaque para o figurino nesse contar.

Em relação ao enredo, a complicação acontece quando o dinheiro se torna escasso, o casal não consegue pagar as contas, perdem objetos da casa e Willy en-tende que é o momento de publicar um livro, no entanto, não tem talento para tal, motivo pelo qual solicita de Colette que o faça, colocando no papel suas his-tórias de escola que eventualmente eram contadas a ele em conversas informais.

Willy chega ao exagero de trancá-la para que escreva. No entanto, quando o livro está pronto, ele faz severas críticas ao manuscrito e diz que é feminino demais e, portanto, não poderia ser um romance escrito por ele. É com o caderno nas mãos que Gabrielle passa a se reconhecer como Colette numa cena emblemá-tica da obra audiovisual que mostra a personagem se apropriando de sua obra. No entanto, o desenrolar não foi assim tão simples.

Em um outro momento de acentuada crise financeira, Willy retoma o anti-go manuscrito e, sem outras opções de obtenção de renda, decide revisá-lo junto

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a ela com o argumento de que: “Sei o que os homens e editores querem”. A fala enfatiza a indústria do livro como uma indústria de homens, em que todas as decisões são tomadas por eles e o consumidor final pensado também são eles, afas-tando a possibilidade de participação feminina, por menor que seja, em qualquer das pontas deste mercado.

O livro “Claudine na escola” é publicado e torna-se um grande sucesso. É lido por todos os públicos, mas ganha significativo destaque entre o público fe-minino. O segundo livro escrito por ela e assinado por ele é “Claudine em Paris” e, mais uma vez, traz as percepções pessoais de Colette e suas vivências na capital francesa. O terceiro livro retrata um triângulo amoroso vivenciado por eles e, por conta do tema e de envolver uma terceira pessoa conhecida na sociedade, solicita--se que seja destruído, trata-se de “Claudine em ménage”.

Claudine, a personagem, ganha muito destaque, fica conhecida, influencia a moda e comportamento, assina linhas de produtos e vai, inclusive, ganhar vida no teatro, todo este sucesso é creditado a Willy. A amante de Colette é que, no filme, quebra a narrativa construída pelo casal e em diálogo com a escritora, faz a seguinte fala: “Todas essas mulheres entre a adolescência e a fase adulta, você deu a elas uma voz” e a partir disso Colette resolve se apropriar de suas obras e sugere a Willy que o próximo livro seja assinado pelos dois, o que ele não aceita.

Vendo que não conseguiria ser autora dos próprios livros e sequer dos pró-ximos que porventura escrevesse dada a situação de dominação que vivia em seu casamento, decide dedicar-se a outras artes como a pantomima, a dança, tudo isso junto de sua amante, a marquesa Mathilde de Morny, no filme chamada apenas de Missy. Diante disso, Willy, formado em letras, tenta escrever e continuar a série, mas não consegue. Sua incapacidade de escrever o leva a vender todos os direitos das Claudines, de modo que Colette nunca mais poderá explorar a perso-nagem criada por ela e, considerando que se tratava de autoficção, perde o direito da personagem criada com base nela mesma e em suas sensações.

A resposta de Willy à revolta de Colette é: “Eu sou um homem e é isso que os homens fazem”, o que nos dá uma dimensão do que era a condição da mulher naquela sociedade. Após isso, ele tenta destruir todos os manuscritos, mas Paul Heón os devolve a Colette que, a partir deles, consegue comprovar e ser reconhe-cida como autora da série Claudine, ainda que após muito tempo.

Le Vagabonde (1910) é o primeiro livro publicado por ela com seu próprio nome e depois deste muitos outros foram escritos. A narrativa fílmica se destaca na discussão acerca dos direitos das mulheres por abordar todo o ciclo vivido por

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Colette, desde o momento em que não via problema em que o marido assinasse até que passa a compreender que merecia crédito por seu trabalho, que era total-mente inadequado o que estava acontecendo.

Neste ponto, inevitável não citar “A esposa”, um filme de 2018 que traz, no campo da ficção e em um momento atual, a história da esposa que escreve para que o marido assine. Em, “A esposa”, o elemento motivador para que ela aceite tal con-dição é uma noite de autógrafos em que uma escritora se dirige a ela ainda muito jovem e diz que uma mulher escritora nunca será respeitada, por melhor que seja, seus livros nunca serão levados a sério, apenas o que for escrito por um homem.

Para ver sua obra reconhecida, ela deixa que um homem a assine e só se res-sente profundamente disso quando o marido recebe o prêmio Nobel pelo conjun-to da obra escrita por ela. Podemos dizer que a fala da escritora que lança o livro na cena de “A esposa” é de todo errada? Será que os livros escritos por mulheres gozam do mesmo prestígio e respeito que os livros escritos por homens?

O silenciamento das mulheres durante séculos constitui o quadro que se desenha hoje e é necessário lutar contra isso dando visibilidade às narrativas de autoria feminina, dentre elas as de mulheres que assinaram com pseudônimos masculinos apenas para ter seus escritos respeitados, dentre elas as célebres Aman-tine Dupin que assinava como George Sand na França e Mary Ann Evans que assinava como George Eliot na Inglaterra. Ainda hoje, suas obras são lidas como tendo sido escritas por homens e há projetos para republicar as obras corrigindo a autoria, a exemplo do OriginalWriters que tem recriado capas e disponibilizado as obras em seu site.12

No Brasil, o movimento Mulherio das Letras, idealizado pela escritora Maria Valéria Rezende, luta por igualdade no mercado editorial e, por meio de seus encontros, busca fortalecer o grupo de escritoras e dar condições para que as mulheres escrevam. Um dos chamados de Maria Valéria Rezende é para que as mulheres levem a público seus cadernos, seus escritos e também o de suas mães, tias e avós, afinal, muitas mulheres escreviam num momento em que isso não lhes era permitido e escondiam.

É importante o que o cinema tem feito no sentido de tornar visível esta realidade tirando muitas histórias de um silêncio cômodo e promovendo reflexão a respeito dos temas relacionados.

12 Vide <allmusic.com>

REPRESENTAÇÕES DO COMPORTAMENTO FEMININO EM SEX AND THE CITY: AMOR E SEXUALIDADE1

Juliana Borges Kopp2

A segunda metade do século XX foi palco da revolução social e cultural da mulher. A luta pela emancipação feminina vem se concretizando com a gradual mudança do lugar do feminino na sociedade. A representação social do femini-no acompanhou esta dinâmica social, apresentando na mídia a mulher que saía do domínio privado (referente à reprodução, vida familiar e domesticidade) para mergulhar no domínio público (relativo ao mundo produtivo e político). Na te-ledramaturgia, pudemos acompanhar a evolução dos personagens femininos, que ganharam gradativamente mais destaque e passaram reproduzir um perfil de uma mulher mais segura, independente e profissionalmente bem-sucedida.

A série Sex and the City representou a nova identidade feminina, se des-tacando como um dos maiores sucessos da TV americana dos últimos tempos. Estima-se que o a repercussão do seriado está relacionada com o enfoque central do programa, ou seja, como as mulheres contemporâneas se relacionam com anti-gos e novos papéis sociais, como convivem com a autonomia conquistada e como estas transformações de conduta interferem nos relacionamentos afetivos.

Este artigo examina a representação feminina no seriado Sex and the City, em especial o modo como a série apresentou os lugares e papéis desempenhados pela mulher na sociedade contemporânea.

1. A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO FEMININO: SEXUALIDADE E AMOR

As representações sociais são imagens construídas sobre o real, elaboradas e compartilhadas socialmente. Tratam-se de “modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e ideativo em que vivemos”.3 Como conhecimentos práticos, as representações

1 Artigo elaborado com base no trabalho monográfico “Análise da representação feminina em Sex and the City”, apresentado no ano de 2006 na Faculdade de Comunicação da UFBA, sob orientação da Prof.ª Dra. Maria Carmen Jacob de Souza Romano.

2 Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia e em Direito pela UNIFACS. Pós-Graduada em Direito Público pelo JUSPODIUM. Advogada militante na área de Direito de Família e Direito Feminino, e membra da Comissão de Direito das Mulheres da OAB-BA. E-mail: [email protected]

3 SPINK, Mary Jane P. “O conceito de representação social na abordagem psicossocial”. In: Cad. Saúde Pú-

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sociais não se resumem aos saberes formais e científicos, estas constituem e são constituídas também pelo senso comum.

As representações sociais são elaboradas discursivamente, tendo como base uma rede de significados dados pela cultura. São operações simbólicas dinâmicas, construí-das coletivamente, que configuram as relações dos indivíduos com a realidade através da construção e atribuição de significados a pessoas, entidades, fatos e instituições.

A cultura patriarcal conformou a representação social da mulher integrada exclusivamente à esfera privada e dependente do papel masculino. As mulheres não eram representadas como seres racionais, capazes de desempenhar atividades do do-mínio público, como a participação nas esferas política, profissional ou científica. A imagem da identidade feminina era expressa pela passividade, emotividade e dedica-ção à família. Não se tratava de indivíduo autônomo, dependia de um personagem masculino (pai, esposo ou filho) a quem deveria devotar-se e obedecer.

O moralismo patriarcalista, em particular, foi um dos mais importantes instrumentos de sustentação da desigualdade entre os sexos. Um rígido regime moral, que é imposto às mulheres através do uso da violência e do medo, e rela-tivizado para o gênero masculino. Diversos são os tabus que foram criados com o escopo de minar a sexualidade feminina. São muitas as gerações que cresceram com uma péssima relação com o próprio corpo, com a nudez e com prazer sexual. O orgasmo era privilégio masculino e a satisfação sexual feminina era negada através da culpa e objetificação do corpo da mulher.

A moralidade seria o controle a partir do próprio oprimido. A honestidade para os escravos e para os senhores a capacidade de infringir as regras sem culpa. Então se desenvolve uma moral dupla, controladora para as mulheres e sem controle párea os homens. Regras criadas pelos próprios dominantes e que serviam como braço privilegiado desta classe para manter os dominados internamente reprimidos, en-quanto os dominadores poderiam romper sem qualquer culpa as regras criadas por eles próprios.4

Anthony Giddens, em sua obra A transformação da intimidade (1992), des-taca este rígido duplo padrão quando a questão é a experiência sexual dos gêneros. Enquanto a inocência feminina era uma exigência, posto que a “virtude” de uma mulher estava em sua capacidade de resistir à tentação sexual; para os homens a experiência sexual com variadas mulheres antes e inclusive durante o matrimônio não era recriminada, sendo aceita com naturalidade na sociedade patriarcal.

blica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 300-308,1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-ci_arttext&pid=S0102-311X1993000300017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 29 jul. de 2019.

4 MURARO, Rosie Marie. A mulher no 3° milênio. Rio de Janeiro: Record, P. 64, 2001.

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A representação social feminina associada à domesticidade e a dedicação exclusiva à família e ao marido esteve diretamente associada ao culto do amor-romântico, a partir do século XVIII. Na vertente romântica, o amor é uma virtu-de privada fundamental para o alcance da felicidade plena.

O modelo de amor romântico configura-se pela atração sentimental apaixonada entre um homem e uma mulher, que almejam como final feliz para o enlace amoroso o casamento e a constituição de uma família. Existe uma forte interio-rização e subjetivação dos sentimentos, idealizando o sujeito amado e desejando ardorosamente ser correspondido. O sucesso e difusão do amor romântico está numa associação nunca antes feita pelas outras gramáticas amorosas: a associação do amor com o casamento, sendo a família como o lugar do apogeu do amor, onde a sexualidade pode ser vivida e desejada como consequência do sentimento amoroso.5

Giddens também destaca como o amor romântico associou-se à lógica pa-triarcalista, difundindo a representação da domesticidade feminina e o casamento como únicos meios de alcançar a felicidade da mulher.

O ethos do amor romântico teve um impacto duplo sobre a situação da mulher. Por um lado, ajudou a colocar a mulher em seu “lugar” – o lar. Por outro, entretanto pode ser encarado como um compromisso ativo e radical com o “machismo” da sociedade moderna.6

No final do século de XIX e a primeira metade do século XX, no mesmo período histórico em que as sufragistas reivindicavam o direito ao voto (1ª Onda do Feminismo), um fenômeno da cultura de massa marcou a forma de repre-sentar a mulher: o grande sucesso editorial dos folhetins e romances açucarados consumidos pelo público feminino. A chamada literatura feminina era composta por revistas, jornais e livros que veiculavam histórias de amor consumidas avida-mente pelas mulheres. O mundo mágico dos romances consolidou a evasão do imaginário feminino, conformando o ideal de vida das jovens e possibilitando a possibilidade fuga imaginária na rotina das donas-de-casa.

Todas estas publicações difundiram em grande escala o ideal romântico feminino, as virtudes da fidelidade e de virgindade, a imagem da “mulher Cinderela” esperan-do a realização de si com a chegada de um homem extraordinário. Os estereótipos do romantismo sentimental, os clichês do amor à primeira vista, as cenas de castos abraços, de suspiros e olhares inflamados, os sonhos do homem carinhoso e rico se ornaram no século XX uma evasão e um consumo feminino de massa. Com isso,

5 COSTA, Jurandir Freire. Sem Fraude Nem Favor: Estudos Sobre o Amor Romântico. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

6 GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Mo-dernas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992.

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generalizou-se uma sentimen-talidade açucarada, assim como uma ideologia que identifica felicidade feminina e realização amorosa.7

Durante todo século XX, o discurso do amor romântico contribuiu de for-ma decisiva para construção da representação feminina. Contudo, as mudanças sociais vivenciadas pelo gênero feminino nesse século, bem como os questiona-mentos e críticas formulados pelo movimento feminista em relação a tal discurso, foram gradualmente minimizando sua influência na construção da representação feminina, tanto nos produtos culturais, como no imaginário social.

Com a perspectiva de entender as formas de dominação desenvolvidas con-tra a mulher, em 1949, a escritora Simone de Beauvoir lança seu livro Segundo Sexo. Considerado até hoje uma das principais obras sobre a condição da mulher na sociedade, este ensaio crítico aponta como a cultura patriarcal criou o mito das diferenças naturais entre os sexos e como este argumento e outros mecanismos de dominação, como o casamento e a moral, subjugaram o feminino durante séculos. Nesta obra seminal, Beauvoir aborda como a idealização do matrimônio coloca a mulher numa posição de dependência em relação ao gênero masculino, pois posiciona o homem como o centro da vida feminina. Neste contexto, a razão da existência feminina bem como sua realização pessoal dependem da figura mas-culina, o que coloca a mulher numa posição de vulnerabilidade e dependência.

Apesar da grande importância do livro “O Segundo Sexo”, as profundas críticas ao sexismo ficaram restritas ao meio acadêmico, até Betty Friedam lançar, em 1963, o “Mística Feminina”. Esta obra causou grande impacto na sociedade ao apresentar a insatisfação de mulheres de classes A e B com a domesticidade. Restritas ao âmbito privado, as mulheres se sentiam profundamente frustradas por não desenvolverem suas habilidades. Mais uma vez é colocado em xeque o ideal romântico.

O movimento feminista da 2ª onda tem como um dos principais alvos de críticas o amor romântico. O ideal do amor romântico é visto como uma ilusão, difundida pela indústria cultural para dominar o imaginário feminino, tornando as mulheres dóceis à submissão masculina.

Multiplicam se as denúncias das mitologias do amor veiculadas pela cultura de massa, as críticas dos papeis estereotipados que vampirizam o imaginário, que tor-nam a mulher estranha a si própria, que prorrogam as posições tradicionais da mulher dependente do homem.8

7 LIPOVETSKY, Gilles. A Terceira Mulher. São Paulo: Companhia das Letras, P.26, 2000.8 Ibid, P.27.

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Estes questionamentos levaram o movimento feminista a deslocar o foco da questão sentimental para a sexual. A retórica libidinal adotada tinha como lema o “gozo sem entraves”, em detrimento de valores românticos como a fidelidade e a virgindade feminina. Estes eram tratados pelas feministas como valores burgueses ultrapassados.

Aliando estes posicionamentos, com a possibilidade de controlar a repro-dução, através da pílula anticoncepcional e a vontade de quebrar as amarras do patriarcado, as jovens da década de 70 revolucionam a forma de viver a própria sexualidade. Pregam o sexo livre e passam a explorar a sexualidade sem culpa. Ain-da permaneciam as pressões sociais pela virgindade e para que a prática do sexo continuasse restrita ao matrimonio, mas aos poucos os tabus vão sendo quebra-dos, com a ajuda da música, cinema e televisão, que apresentam os novos valores e costumes. Neste contexto, o orgasmo passa a ser também um direito defendido pelo movimento feminista.

Na década de 80, as mulheres já migravam para o domínio público. O culto a domesticidade estava ruindo. Cada vez mais as mulheres decidiam por ter uma profissão, ao invés de cuidar do lar. Apesar das distorções salariais, em que o salário masculino ainda é superior ao feminino, à independência financeira conquistada pelo trabalho, fez com que as mulheres questionassem a qualidade de suas relações com os homens. A superioridade masculina no seio familiar perde sua força e a mulher passa a não questionar cada vez mais as situações que causem sofrimento e opressão. O fenômeno da crise da família patriarcal, que é baseada na autoridade/dominação contínua exercida pelo homem, como cabeça do casal, sobre toda a família, pode ser revelado pelos crescentes índices de divór-cio e separação registrados nas décadas de 80 e 90.

Depois de tantas transformações ocorridas nestas últimas décadas, a atual condição feminina é distinta daquela presente quando o 2° Movimento Feminista emergiu. As relações entre os gêneros sofreram grandes transformações. Ainda assim sobrevivem fortes resquícios do patriarcado na cultura, principalmente no que consiste as condições sociais das mulheres pertencentes às camadas mais po-bres da sociedade. O acesso aos avanços da situação feminina está diretamente relacionado com contexto socioeconômico. As mulheres com baixo poder aqui-sitivo, baixa escolaridade ou moradoras de áreas rurais encontram-se privadas de muitas das prerrogativas conquistadas pelo movimento feminista. Neste contexto, o sexismo persiste determinando diversas normas e costumes, como o culto a domesticidade, a moral sexista e a discriminação no tratamento das mulheres no mercado de trabalho.

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A mulher contemporânea cada vem mais se configura como a “mulher-sujeito”, ou seja, diferentemente do que ocorria no passado, um indivíduo do gênero feminino dispõe de autonomia individual para sua autodeterminação. De forma inédita na história ocidental, o papel do feminino já não é preordenado so-cialmente como outrora, vigendo agora também para as mulheres a lógica de livre disposição individual, ainda que as pressões do patriarcado se façam fortemente presentes como uma opressão estrutural.

Alcançado um novo patamar de liberdade, muito se cogitou sobre a possi-bilidade da identidade feminina se igualar a identidade masculina, extinguindo assim as disjunções entre os gêneros. Entretanto, o que se observou é que a equi-paração formal de prerrogativas e direitos entre homens e mulheres não acabou com a diferenciação social dos gêneros. Na verdade, o que vem ocorrendo na atualidade é a recomposição dos papeis sexuais, não extinguindo os tradicionais papeis femininos, e sim, reconfigurando-os de acordo com a nova dinâmica.

Entre as diversas distinções entre os homens e mulheres que permanece-ram, destaca se a assimetria no tratamento do amor romântico. A exaltação femini-na ao ideal romântico sobreviveu às críticas feministas e a todas as transformações na condição da mulher. Esta situação indica como o imaginário e a identidade feminina ainda estão sob influência dos discursos construídos dentro da gramá-tica do patriarcado. No entanto, este ideal ainda idolatrado pelas mulheres não é mais o mesmo. Trata-se de um amor renovado, recontextualizado de acordo a nova realidade feminina.

2. O SEXO (E O AMOR) NA CIDADEAdaptada do romance homônimo de Candice Bushnell pelo seu criador

Darren Star, a série Sex and The City foi exibida originalmente entre os anos 1998 e 2004, pelo canal americano de TV por assinatura HBO. Composta por 94 epi-sódios, organizados em 6 temporadas, este seriado retrata o cotidiano de quatro amigas na cidade de Nova York, com o foco nas suas vivencias afetivas. A proposta deste seriado é abordar de forma bem-humorada as diversas alegrias e percalços dessas mulheres.

O seriado Sex and The City se consolidou como um dos maiores sucessos da televisão americana na última década, conquistando uma legião de fãs, com 13 milhões de telespectadores só nos Estados Unidos, índice que representa uma alta audiência para os padrões da televisão por assinatura americana. Com este sucesso com público e com a crítica especializada, a série tornou-se referência para

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indústria de entretenimento criando diversos ícones e suscitando calorosos deba-tes sobre o perfil e o papel da mulher contemporânea. Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte alcançaram o status de heroínas no imaginário do público feminino, tornando-se modelo de comportamento e estilo da mulher urbana.

A grande repercussão da série suscitou o questionamento de como o atual momento do gênero vem sendo representado pela mídia, mais especificadamente pela teledramaturgia. Analisar como um seriado, que alcançou tanto sucesso com o público feminino, retrata a mulher contemporânea contribui na compreensão das novas dinâmicas dos gêneros e como a nova figura do feminino se comporta diante de seus antigos e novos papeis sociais.

Uma peculiaridade deste programa está, portanto, no modo de representar como personagens centrais quatro mulheres com mais de 30 anos, bem-sucedidas profissionalmente e solteiras, usufruindo da independência conquistada. O fato de não serem casadas não significa que a vida amorosa é preterida por estas mu-lheres. A elas não se aplica o estereotipo antiquado de “encalhadas” que ficaram para “titias”, rótulos utilizados para desqualificar mulheres solteiras com mais de 30 anos. Estereótipos que denotam as seculares pressões sociais que impõe o casa-mento como melhor possibilidade de existência para o feminino.

O destino que a sociedade propõe tradicionalmente para a mulher é o casamento. Em sua maioria ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê lo, ou sofrem por serem celibatárias, sinta se ela frustrada, revoltada ou mes-mo indiferente ante esta instituição (...) Uma mulher só, na América do Norte mais do que na França, é um ser socialmente incompleto, ainda que ganhe sua vida: cumpre que traga aliança no dedo para que conquiste sua dignidade integral de uma pessoa e a plenitude de seus direitos (...) Por todas estas razões, muitas adolescentes do Velho e do Novo Mundo, interrogadas acerca de seus projetos para o futuro, respondem como teriam feito outrora: “quero casar me”. Nenhum jovem, entretanto considera o casamento seu projeto fundamental. O êxito econômico é o que dará sua dignidade de adulto.9

No trecho supracitado, do livro Segundo Sexo, publicado em 1949, Simo-ne de Beauvoir descreve como a imposição do casamento às mulheres é determi-nante nas primeiras décadas do século XX. Naquele momento histórico, em todo mundo ocidental, as mulheres conquistavam direitos políticos e civis, mas não haviam conquistado a autonomia e independência nas suas vidas particulares, continuando presas ao domínio privado, ou seja, o destino da mulher ainda era o matrimônio e a maternidade. Desta forma, o estado civil de solteira era um

9 BEAUVOIR, Simone de. Segundo Sexo. Ed. Nova Fronteira. São Paulo. P. 33, 1949.

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grande fardo, pois a mulher não tinha alcançado o que culturalmente foi con-vencionado como sentido maior de sua existência: a constituição da família. Ser solteira representava inadequação ao modelo proposto socialmente, o que tornava a mulher desmerecedora de gozar da sua sexualidade e do direito de ser mãe.

Na última metade do século vinte, no entanto, uma verdadeira revolução de costumes mudou este quadro. Embora ainda hoje exista a pressão social pelo casamento, há uma liberdade muito maior de escolha. Ser solteira já não tem o mesmo significado que tinha outrora. O acesso das mulheres ao domínio público permitiu outras formas de afirmação do feminino na sociedade. Atualmente, o casamento e a maternidade não são mais os únicos objetivos femininos, pois as mulheres encontraram novas formas de satisfação pessoal, que podem ser viven-ciadas independente do matrimônio, como o sucesso profissional e financeiro, o sexo, a moda, o consumo, a maternidade e a política.

As mulheres tomaram certa distância da linguagem romântica, aceitaram cada vez menos sacrificar estudos e carreira no altar do amor, mas seu apego pri-vilegiado ao ideal amoroso perdurou, elas continuam maciçamente a sonhar com o grande amor, ainda que fosse fora do casamento.10

É esta busca que norteia a trajetória das personagens de série Sex and The City. Elas empreenderam grandes conquistas como profissionais, alcançaram au-tonomia financeira, têm amigas com quem compartilham a suas experiências e uma rotina agitada, gozando dos prazeres da cidade de Nova York. Mesmo assim continuam buscando o parceiro romântico ideal, representando o paradoxo da mulher contemporânea, que apesar de ter empreendido tantas conquistas nas es-feras profissional e social, continua ainda confiando no amor como forma de selar o ideal de felicidade feminina.

As temáticas românticas e sexuais são predominantes na trama de Sex and the City. As situações dramáticas apresentadas são compostas de conflitos que envolvem questões pertinentes a estes temas. Esta incidência constitui uma das marcas identitárias da série. O amor foi representado de forma plural, trazendo tanto aspectos mais tradicionais quanto mais inovadores, a depender do persona-gem abordado. A diversidade de representações do amor e do sexo corresponde, pois, às experiências de vida das quatro personagens.

Os aspectos inovadores da representação da relação feminina com o amor-romântico está relacionada mais notadamente às personagens Miranda e Saman-tha. Ambas, apresentam-se céticas em relação ao amor romântico e seus valores,

10 LIPOVETSKY, Op Cit. P. 28.

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como a fidelidade, o sexo vinculado apenas ao relacionamento amoroso ou o sa-crifício romântico. Estas personagens não possuem o ideal romântico como meta principal de realização pessoal. Enquanto para Miranda, a realização amorosa se-ria apenas um objetivo incidental de vida, pois sua ênfase está na sua realização profissional, para Samantha, o ideal romântico não a atrai, pois limitaria as suas experiências sexuais, sua maior fonte de afirmação e realização pessoal.

A representação do ideal romântico que é compartilhada por estas persona-gens não é a tradicionalmente atribuída às mulheres. Se historicamente as mulhe-res são representadas como crédulas no amor e defensoras dos valores românticos, Miranda e Samantha apresentam uma opinião completamente distinta sobre o amor romântico. Para Samantha os valores românticos obstaculizam a vivência plena da sexualidade feminina, enquanto os homens que seriam indiferentes a estes valores, vivem o sexo de forma livre, se utilizando do romantismo para en-ganar as mulheres.

Já para Miranda, a crença no amor romântico torna as mulheres dependen-tes do afeto masculino, impedindo que elas percebam que a realização pessoal não está associada ao vinculo romântico e sim a soberania e as conquistas individuais. Como Samantha, ela também considera a busca pelo amor perda de tempo, de-vendo as mulheres batalhar pela sua satisfação individual e não depositar as suas esperanças de felicidade no encontro de uma cara metade.

Como podemos observar, as duas referidas personagens rompem com a tra-dicional representação do feminino que apresenta a mulher que idolatra o amor-romântico, tendo este como ideal de vida e único meio de alcançar a felicidade plena. Para estas personagens, o estado civil “solteira” não é um estado transitório, em que elas se mantêm até encontrar o “príncipe encantado”. Miranda e Saman-tha demonstram durante as quatro primeiras temporadas que apreciam a vida de solteiras, mostrando-se resistentes diante das possibilidades de estabelecerem um relacionamento amoroso sério. Nestas ocasiões há uma inversão das tradicionais representações do feminino e do masculino. Enquanto a mulher foge da possibili-dade de investir em um relacionamento comprometido, os homens insistem para se aproximar das parceiras e consolidarem com elas vínculos mais estáveis e íntimos.

O contraponto das representações femininas de Miranda e Samantha está nas personagens Charlotte e Carrie. Estas duas personagens representam a clássica relação feminina de supervalorização do amor romântico. Ambas anseiam viver uma “história de amor”, buscando sempre um envolvimento emocional com o parceiro. Para estas personagens, o amor desempenha um importante papel em

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suas vidas, sendo elemento essencial para alcance da realização pessoal. Por esta razão, para Carrie e Charlotte o estado de solteira ou “descomprometida” é tido como desconfortável e transitório, demonstrando insatisfação quando não tem um parceiro romântico.

Charlotte é quem melhor reflete no seriado o tradicional vinculo feminino com o amor. Ela representa a crença feminina nos valores românticos. Se Carrie ainda apresenta alguma desconfiança quanto ao ideal amoroso, Charlotte não só crê indubitavelmente neste ideal como também o defende como a única forma de se alcançar a felicidade, de dar sentido à vida.

Charlotte idealiza as experiências e os relacionamentos amorosos, sempre com a expectativa de alcançar o seu “final feliz”, que para ela corresponderia a encontrar sua “alma gêmea” e casar-se com ela, no melhor estilo “foram felizes para sempre”. Ou seja, a personagem Charlotte compartilha as representações do amor romântico e de felicidade semelhantes à de demais personagens femininos da tradicional literatura feminina do início do século XX que apresentavam heroínas que aguardavam a chegada de um herói romântico que iria satisfazer seus sonhos de felicidade e realização intima.

Enquanto Miranda e Samantha representam solteiras que afirmam a autos-suficiência para alcance da realização pessoal, Charlotte, conformando-se com os preceitos românticos, prega a necessidade de estabelecer vínculos amorosos para vivenciar o que seria a “verdadeira felicidade”. Com esta compreensão, Charlotte também reproduz uma série de representações tradicionalmente atribuídas ao gê-nero feminino, como o superinvestimento no amor e no matrimonio; a mulher que não se basta em si mesma, dependendo de uma figura masculina para sentir--se realizada; a dedicação ao ser amado e a defesa feminina dos valores românticos como a fidelidade e sexualidade afetiva.

Carrie representa a dualidade da mulher contemporânea em relação ao amor romântico. Diferentemente de Charlotte, Carrie racionalmente questiona os valores românticos, indagando a veracidade do ideal amoroso, a existência de “almas gêmeas” e a necessidade de vivenciar o amor para alcançar a realização pessoal. Entretanto, apesar de demonstrar um discurso racional de desconfiança em relação ao amor, ela alimenta no seu íntimo o desejo de experimentar o ideal romântico, de conhecer um parceiro amoroso que lhe traga a realização intima e a felicidade plena tão condicionada pela cultura romântica a experiência amorosa.

É este paradoxo que marca a personagem. Se por um lado ela se apresenta como uma mulher independente, descolada e avessa a moralismos, que aparenta

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adorar a vida dinâmica e agitada de solteira, na sua intimidade, Carrie revela que conserva ideais e valores tradicionais femininos, como a exaltação do amor e de-manda individual de realização amorosa.

Este paradoxo da personagem reflete a atual condição feminina diante da gramática romântica. A inserção feminina no domínio público e as críticas do movimento feminista a distribuição assimétrica dos papeis nos relacionamentos amorosos suscitaram a necessidade não só de renovação dos modelos amorosos, como da própria relação feminina diante ao amor romântico. Carrie retrata uma geração que encontra este desafio de reformular as relações afetivas entre os gêne-ros e refletir até que ponto o ideal romântico é relevante para a mulher contem-porânea. Trata-se aqui de avaliar se o hiperinvestimento feminino no amor resiste após que a mulher encontra novas formas de realização pessoal.

Carrie questiona se é realmente necessário para alcançar a satisfação indivi-dual se submeter à complexa e difícil dinâmica de relacionamentos amorosos. Da mesma forma, ela também reflete sobre os mitos e valores românticos, concluindo que muitos destes são idealizações que não se efetivam na realidade. Entretanto, apesar de racionalizar o ideal romântico e apresentar um discurso cético, Carrie emocionalmente continua a reproduzir os valores românticos, permanecendo a ter grandes expectativas quanto à realização amorosa.

Carrie representa esta adesão da mulher contemporânea a este ideal ro-mântico reformulado de acordo com os novos paradigmas da atualidade. Nesta nova realidade, a mulher deseja conjugar as conquistas no domínio público com a realização amorosa na esfera privada. Nesta gramática romântica reformulada, o casamento já não representa um desejo feminino irrefutável.

A representação da sexualidade feminina apresentada por Sex and the City é, sem dúvida, um dos aspectos que mais merece destaque. É na abordagem desta temática que esta série apresenta seu caráter inovador. A inovação se constitui em representar a mulher como sujeito sexualizado, que deseja, pratica e fala aberta-mente sobre o sexo. O interesse feminino pelo sexo é destacado de forma inédita em relação às séries cômicas americanas anteriores a Sex and the City, que de-monstra o papel relevante que o sexo possui na rotina feminina.

Todas as personagens centrais mantêm uma vida sexual ativa, acumulando experiências sexuais durante as seis temporadas do seriado com diversos parceiros. As práticas sexuais das personagens são amplamente exploradas na trama da série, que as discute de forma clara, explícita e livre de julgamentos morais. Entre as quatro personagens centrais, o que varia é a intensidade que o sexo interfere nas

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suas vidas, a forma de lidar com a sexualidade e as restrições pessoais a algumas práticas sexuais. Apesar das distinções, Carrie, Charlotte, Samantha e Miranda não escondem que o sexo é um importante elemento de suas vidas e que é funda-mental também para qualquer relacionamento amoroso.

O perfil das personagens reproduz diferentes formas da mulher de se rela-cionar com a própria sexualidade. Esta pluralidade está inserida num contexto so-ciocultural que se demonstra tolerante e aberto às diversas formas de manifestação da sexualidade feminina. A sociedade de Manhattan, centro das ações da série, re-tratada como liberal, não demonstra preconceito e nem impõe rígidas restrições à experiência sexual. Nesta realidade, o interesse e o investimento feminino no sexo são vistos como natural, saudável, diferente de culturas conservadoras que impõe um duplo padrão sexual para os gêneros, com um regime permissivo e liberal para os homens e um regime de controle rígido da sexualidade feminina.

Nesta realidade mais permissiva para experimentação sexual feminina, as mulheres encontram-se mais livres para afirmarem as preferências sexuais. Sa-mantha representa a personagem mais sexualizada do quarteto das personagens centrais. O sexo desempenha um papel central em sua vida, sendo explorado sem restrições morais ou românticas. Samantha coaduna com o lema do movimento feminista da década de 70, que reivindicava que as mulheres deveriam “gozar sem entraves”.11 Esta personagem se aproxima de um modelo de sexualidade ob-jetivista que é própria do comportamento tradicionalmente masculino. Ou seja, diferente da sexualidade subjetivista feminina, que associa o sexo ao envolvimento emocional, Samantha separa a experiência sexual da experiência afetiva, dando prioridade à experiência sexual. Com esta atitude, frequentemente ela também objetifica o homem, ao tratá-lo apenas como uma fonte de prazer sexual, sem levar em considerações os aspectos subjetivos do seu parceiro sexual.

A análise da personagem Samantha é fundamental para o estudo da repre-sentação da sexualidade feminina no seriado, pois é esta personagem que repre-senta a sexualidade da mulher de forma menos convencional. Ela retrata como uma mulher que tem orgulho da sua alta libido e de sua extensa experiência se-xual, não tem vergonha de tomar iniciativa no sexo e estar aberta as mais diversas experiências sexuais. O mais relevante é que ao abordar uma personagem mulher que tem tanta liberdade e interesse sexual quanto um personagem masculino, a série o fez de forma a não caracterizar Samantha como uma personagem vulgar ou promíscua. O julgamento negativo da sua sexualidade não é aparente em ne-

11 LIPOVETSKY, op cit., 2000.

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nhum momento da trama, pelo contrário, Samantha é retratada como uma mu-lher sensual e glamurosa, sendo um modelo de mulher sexualmente bem resolvida. Trata-se, então, de heroína sexualizada, muito distinta das heroínas românticas clássicas que sublimam os seus desejos sexuais em nome da tradicional “virtude” e inocência feminina, que preconiza que a mocinha romântica só pode vivenciar sua sexualidade com o seu par romântico.

As demais personagens também apresentam aspectos que merecem desta-que quanto a representação da sexualidade. Miranda transporta o seu comporta-mento pragmático para sua rotina sexual, de forma que esta não atrapalhe a sua rotina laborativa. Como Samantha, Miranda também visa a sua satisfação sexual de forma objetiva, não tendo muita preocupação em estabelecer vínculos emo-cionais com o parceiro sexual. Já Carrie e Charlotte apresentam uma sexualidade afetiva, ou seja, elas representam um comportamento sexual feminino mais con-vencional que vincula a experiência sexual ao envolvimento amoroso.

Ao abordar a sexualidade feminina de forma tão explicita, a série Sex and the City toca em diversos tabus que tende a ser evitados pela teledramaturgia. Um destes temas, bastante recorrente nos episódios da série é a apreciação e prática feminina do sexo casual. Mesmo as personagens que tem predileção pela sexuali-dade afetiva, como Carrie e Charlotte, são retratadas em diversos episódios com envolvimento sexual com parceiros com quem não tem relacionamento afetivo.

A alteridade entre as personagens se verifica pelo fato se para Charlotte o sexo casual é uma ocorrência incidental, para Samantha esta é uma prática habi-tual. Ao apresentar personagens com perfis distintos vivenciando aventuras se-xuais sem perspectiva de futuro, sem culpa ou arrependimento, a trama do seriado representa um novo momento da sexualidade feminina, em que há uma “desdra-matização” da libido feminina, ao apresentar que mulheres desejam e vivenciam o sexo independente de demandas românticas. Outros tabus sobre a sexualidade feminina são abordados, como a prática da masturbação, o interesse pela porno-grafia e o orgasmo. As preferências sexuais femininas são explicitamente discuti-das em Sex and the City, como qual a carícia mais apreciada pelas personagens, quais são as práticas sexuais repelidas ou quais são os seus fetiches e fantasias. Esta apresentação franca e clara das manifestações sexuais femininas é um dos aspectos inovadores da representação feminina da série.

Se numa representação conservadora do feminino, as séries cômicas ocul-tam as experiências sexuais das mulheres ou estes são abordadas de forma bastante incipiente, em Sex and the City esta temática é apresentada com destaque.

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3. CONCLUSÃOEm primeiro lugar, podemos destacar a forma plural de representar a mu-

lher neste seriado, apresentando personagens femininos com perfis distintos, o que possibilita o acesso ao imaginário feminino, fomentando a identificação do público com as personagens e com as situações dramáticas vividas por elas. A apresentação da diversidade de perfis femininos, permite também a série explorar diferentes formas de representar as mulheres, trazendo desde representações mais clássicas do feminino até as mais inovadoras.

Em Sex and the City, as personagens femininas ao invés de serem retratadas inseridas no contexto familiar, desempenhando funções domésticas, são represen-tadas inseridas no domínio público, atuando de forma bem-sucedida nos meios profissionais e ambientes públicos. Nesta nova condição apresentada pela série, as mulheres executam atividades no campo produtivo, conquistando assim indepen-dência financeira e um alto poder aquisitivo.

Outro ponto importante de distinção entre a representação feminina da série e a posta tradicionalmente nos produtos culturais é a abordagem da se-xualidade feminina. Esta temática é convencionalmente representada de forma incipiente e obscura. As personagens femininas tradicionais, principalmente as heroínas românticas, não são apresentadas de forma sexualizada, sendo aprecia-dos os atributos da pureza e da sexualidade afetiva, onde o sexo tem seu lugar no relacionamento amoroso. Já em Sex and the City, a sexualidade feminina deixa de ser retratada de forma reservada, para ser tratada em primeiro plano, de forma destacada e explicita, como um dos temas centrais da série. Ao discutir aberta-mente as práticas sexuais femininas, a série representa a mulher como um sujeito sexualizado, que aprecia e pratica o sexo não só no contexto romântico, como também casualmente, de forma desvinculada a envolvimentos emocionais e afe-tivos. A libido e experiência sexual feminina são desmistificadas e representadas sem apreciações morais.

O ponto de convergência nos modos de representar o feminino está na ênfase na temática romântica num material dedicado ao público feminino e que tem como proposta retratar o universo feminino. Apesar de representar as mulhe-res com novos papeis sociais e com novas demandas individuais, as expectativas e histórias românticas que são as maiores responsáveis pela movimentação da trama de Sex and the City.

O ideal romântico e seus valores continuam tendo um importante lugar na vida dos personagens femininos, sendo causa da maioria das situações dramáticas

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apresentadas em Sex and the City, mesmo quando se trata das personagens que admitem não ter como prioridade a demanda amorosa. Apesar de abordar a te-mática amorosa através de elementos não convencionais, assim como o fez com as demais temáticas analisadas (sexo, família, maternidade e vida profissional), o que aproxima a representação da relação feminina com amor realizada nesta série com apresentada convencionalmente na teledramaturgia americana é o privilegiado dado a temática romântica na vida das personagens femininas.

A série Sex and the City, ao ter como proposta representar o modo de vida de um grupo de mulheres contemporâneas, acaba também por representar as mudanças vividas pelo gênero feminino e novo lugar da mulher na sociedade. Entretanto, a série não só apresenta as mudanças como também as permanên-cias, como a constância da importância do amor romântico no universo e ima-ginário feminino.

“A VIDA DE UMA MULHER” E “UM AMOR IMPOSSÍVEL”: A MATERNIDADE POR TRÁS DO ENREDO1

Ezilda Melo2

“A vida, que você vê, nunca é tão boa ou tão ruim quanto a que acreditamos!” - Guy de Maupassant 

“Do estado de alma que, nesse ano longínquo, não fora senão uma longa tortu-ra, nada restava. Pois, há no mundo, onde tudo se gasta e tudo perece, algo que

tomba em ruínas, que se destrói ainda mais completamente, deixando menos vestígios até do que a beleza: é a mágoa”. Christine Angot

1. ADAPTAÇÃO DE LIVRO PARA O CINEMAA linguagem literária é uma, a cinematográfica é outra bem distinta. Mui-

tos livros inspiram a construção de filmes que são feitos de acordo com a inter-pretação dos cineastas. Foi isso que ocorreu com o extenso romance “Uma vida” de Guy de Maupassant3 adaptado por Stéphane Brizé4 que em outros filmes, a exemplo “Mademoiselle Chambon” e “O Valor de um Homem” já trouxe ques-tões morais muito bem concatenadas.

O livro retrata a sociedade francesa na primeira metade do século XIX, destacando a nobreza rural normanda, no seio da qual a história se passa. A tra-ma começa em 1819. O texto que serviu de inspiração ao filme traz a história da bela, rica, bem-educada, recatada e romântica baronesa Jeanne Le Perthuis des Vauds que aos 12 anos foi enviada ao tradicional convento francês “Sacré-Coeur”. Cinco anos após passar por uma educação dura e severa, temente a Deus, certa de que suas orações lhe reservariam um bom destino, retorna ao lar dos seus pais que tudo fazem pela alegria da filha, a baronesa Adélaïde e o seu marido o Barão Simon Jacques Le Perthuis des Vauds.

1 Artigo publicado no livro “Direito e Cinema Francês” organizado por Juliette Robichez.2 Professora Universitária. Advogada. Mestra em Direito Público pela UFBA. Ex-coordenadora de cursos de

graduação jurídica. Idealizadora do projeto “feminismos, artes e direitos das humanas”. Autora de “Tribunal do Júri: arte, emoção e caos” e de “Águas de mim”. Organizadora e uma das coordenadoras da coletânea “Direito e Cinema Brasileiro”. E-mail: [email protected]

3 Nasceu na França em 1850. Na década de 1870, conviveu em Paris com Gustave Flaubert, Émile Zola e com os grandes escritores realistas e naturalistas da época. Notabilizou-se como autor de romances e de mais de 300 narrativas curtas, sendo considerado um mestre desse gênero. Morreu em um manicômio, aos 42 anos, vitimado pela sífilis.

4 É um cineasta, produtor cinematográfico, roteirista e ator francês, nascido em 1966.

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Pouco tempo após seu regresso, Jeanne conhece e se apaixona pelo seu vizinho, o conde arruinado Julien de Lamare, que se revela, aos poucos, um homem infiel, avarento que planejara o casamento por interesse pelo dote da jovem Jeanne que co-meça uma jornada de suplício e provações, presa aos códigos de moralidade vigentes.

A crueldade e o sarcasmo de Julien, que existem no romance, desaparecem da narrativa cinematográfica que foca em mostrar a figura de Jeanne como melan-cólica e conformista, ingênua e inerte diante de uma ruína que cresce à cada cena da narrativa que cobre 30 anos da vida de uma protagonista que tinha, até se casar, uma visão abstrata da vida. É na vida de casada que Jeanne poderá confrontar suas teorias ao mundo real repetitivo e cruel. Nas desgraças que saturam a vida da pro-tagonista, adultério, morte, desonra, abandono, exclusão, ruína, encontrará tipos humanos que mostram o lado das aparências e conveniências sociais em aspectos que demonstram graves falhas morais como hipocrisia, oportunismo, complacên-cia, omissão, intolerância, ganância, inveja, falsidade e bondade, também.

Até a vivência de sua maternidade, em que canaliza toda a sua atenção a fim de dar um sentido à própria vida, mostra-se cruel porque o filho torna-se esbanja-dor, pródigo e leva a família à ruína. É uma saga feminina que ao mesmo tempo traça um panorama da decadência moral da região da Normandia na primeira metade do século XIX. Mostra a vida de Jeanne relacionada com a de sua mãe, de uma empregada, de uma mulher casada que trai seu marido e conclui na vida de uma bebê, sua neta.

O filme “Um amor impossível” (2019), adaptado por Catherine Corsini5, baseia-se na obra “Un amour impossible” (2015), sem tradução no Brasil, de Ch-ristine Angot6. Diferente do primeiro livro e filme, escrito e dirigido por homens, este filme tem uma cineasta que se baseia na obra de uma mulher, ambas nascidas no mesmo período que nasce a filha da protagonista do enredo.

O romance, ambientado em Châteauroux-França do final da década de 1950, trata da história da secretária Rachel, uma moça judia de 25 anos, de classe média, filha de costureira, criada sem a presença do pai, que se apaixona por Philippe, um jovem que guarda um segredo do passado, experiente amante e que seduz pelo gran-de conhecimento cultural que demonstra ao falar sobre literatura e filosofia.

A diferença social entre ambos existe, sendo Philippe um tradutor advindo de uma família burguesa que morava em Paris. A jovem Rachel, apesar de ter man-tido um relacionamento afetivo e duradouro com seu primeiro namorado, o gentil

5 Nascida em 1956, é uma roteirista, cineasta e atriz francesa.6 Nascida em 1959, é uma escritora e romancista francesa.

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Charles, ainda não se casara. Na última noite juntos, antes de regressar à Paris, Rachel engravida e manda a notícia por carta ao homem por quem é apaixonada.

Porém, Philippe se recusa a casar-se fora de sua classe social e deixa isso bem claro para a jovem moça que se resigna. Quando sua filha nasce no ano de 1959, registrada apenas com o seu nome, Rachel começa uma longa luta pelo reconhe-cimento paterno no registro de sua filha. Para Rachel, Chantal é sua grande felici-dade, e sua única exigência é que Philippe dê seu nome à filha. Essa batalha dura doze anos, sendo intercalada por cenas de verdadeira submissão ao amor ilusório de Rachel em relação a Philippe.

No filme, vemos o amor de mãe e filha, a responsabilidade feminina sobre uma situação aparentemente comum: mulheres que criam seus filhos sozinhas. Acompanhamos a descoberta e vivência da gravidez, o parto, os primeiros meses sem nenhum apoio do pai da criança.

Vemos uma mulher que é responsabilizada pela gravidez, mesmo sabendo que Philippe tão responsável quanto ela, mas este naturaliza o abandono afetivo em relação à filha. Uma explicação para isso é o fato de ter sido criada somente por sua mãe, pois seu pai também a abandonara quando criança.

Philippe aparece quando quer, até comunicar que se casou com uma moça alemã, que sabe cuidar do marido, de uma abastada família. Ele segue sua vida sem nenhuma responsabilidade com Chantal. Rachel enfrenta preconceitos e o descaso do pai da sua filha, segue na luta de ter o direito da filha reconhecido, nem que seja numa certidão de nascimento, e em alguns momentos revive cenas de paixão com esse homem.

A resignação de Rachel quanto à questão afetiva entre eles é explícita, mas é firme em mudar o nome no registro da adolescente, que à essa altura já tem mui-tas semelhanças físicas e intelectuais com o pai, e começa a se rebelar contra a mãe, tratando-a como inferior, vez que tem uma admiração pelo homem culto que é o genitor, porém o que se esconde é algo que nem Rachel desconfia.

Trata-se de uma outra saga feminina: a vida de Rachel, narrada no filme pela sua filha Chantal, e do núcleo feminino da vida delas, a avó, a tia e o pequeno círculo de amizade.

1.1 JEANNE E RACHEL – MULHERES DE SEUS TEMPOS Jeanne é uma mulher da aristocracia francesa do século XIX. Percebe-se

uma mentalidade que romantiza o casamento, uma decisão feita em família, na

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situação dela, ao aceitar um casamento com um homem arruinado que recebe, em detrimento do casamento, um grande dote. Após casar-se, Jeanne percebe que seu marido é controlador do dinheiro e não permite que tenha determinados gastos que era acostumada, a exemplo de aquecer a casa. Ao descobrir a primeira traição do seu marido com Rosalie, sua dama de companhia e irmã de leite, fica doente, encontra refúgio na Igreja para confessar a traição do marido.

Apesar dos pais se colocarem à disposição para receberem de volta ao lar, o conselho que recebe, proveniente de seu confessor, é que perdoe o marido, pois o perdão é valor cristão. Dentro deste plano, o marido se mostra arrependido, os pais dela voltam a confiar no genro, somem com a empregada e o filho, considera-do ilegítimo para os padrões da época. O alto grau da hipocrisia e moralismo que massacra as mulheres por terem filhos sem serem casadas e não pune os homens que chegam a estuprar suas empregadas porque as considera sem valor algum, até para rejeitar o sexo forçado, demonstra o grande abismo que separava as ações sexuais de homens e mulheres na França do século XIX.

Passada a primeira traição, conforme a narrativa fílmica, Jeanne volta a sorrir e a confiar. Seu marido parece um homem mudado, arrependido, temente a Deus e quer recomeçar. O casal passa a frequentar a casa de amigos num verão bastante animado. A utilização do colorido e da sombra mostra a mudança grande do estado de espírito da protagonista que no luto de sua mãe, descobre a segunda traição, desta feita com uma grande amiga, uma mulher casada. Decide calar-se e não contar nada a ninguém ou fazer qualquer escândalo, mas fica muito abalada e novamente doente, até que na confissão revela o que descobriu e o reverendo se mostra contrário ao fato dela não contar nada ao marido traído de sua amiga.

Sem respeitar a decisão de Jeanne, que falara em confiança confessional, o reverendo vai até a casa do homem traído e este, após o grande abalo emocional sofrido, planeja a morte do casal de amantes e o seu próprio fim, com um suicídio. Uma tragédia para qualquer época.

Neste momento, o pai de Jeanne a lhe acolhe com Paul, seu filho, que pou-co depois vai para o convento receber uma educação típica da burguesia do perío-do. Intercalando as cenas de Jeanne plantando com seu pai, no jardim da fazenda que residem, o garoto Paul cresce e aos 20 anos já começa a se endividar. O que parece uma família muito em sintonia, avô, filha e neto, aos poucos se revela um problema bastante grave: a prodigalidade do rapaz que ao ir para Londres começa a gastar e mandar pedidos continuados de cifras altas, sendo necessário começar a vender fazendas para arcar com as dívidas.

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O pai de Jeanne morre e todos os pedidos de seu filho são atendidos, até ficar na total penúria, sendo acudida pela sua fiel ajudante Rosalie que volta para trazer-lhe apoio quando não tinha mais dinheiro ou proteção de ninguém.

O filme encerra com Jeanne recebendo em seus braços a sua neta, filha de Paul. Uma narrativa lenta, mas que consegue trazer questões importantes para reflexão. Sendo a primeira delas a questão do casamento e a não possibilidade de divórcio pelas mulheres. Pelo contrário, eram incentivadas a perdoarem as trai-ções. Já a traição feminina, considerada tão grave e imperdoável, levava a Igreja denunciá-las, o que quase sempre as condenava à morte diante dos maridos que lavavam sua “honra” com sangue.

Percebe-se claramente que o estatuto feminino é delimitado por muitas regras morais, sociais, familiares e morais.

No filme “Um amor impossível” percebemos um filme feminino, escrito por mulher, dirigido por mulher, protagonizado por mulheres, que tem como pano de fundo o romance entre Rachel e Philippe, sendo a relação da protago-nista com sua mãe, sua irmã, suas amigas e mais tarde com sua filha, o principal do filme. Os homens têm papel secundário na obra. É um drama sobre relações familiares.

O filme trata do amor de mãe e filha, desde as dificuldades e exaustão en-contradas na maternidade solo, terminologia moderna para uma situação antiga, quanto de problemas advindos da aproximação danosa ocorrida após Philippe ter assumido Chantal como filha em cartório.

Philippe é cruel com mãe e filha, recebe apoio de família na figura de seu genitor, mas o amor que Rachel sente parece encobrir essa realidade, mistura-se às questões de mentalidade e somos levados a crer que tudo que faz é diante de um contexto cultural onde os homens podiam relativizar sua paternidade.

O lado cruel dele não é o abandono, a rejeição, a humilhação, não é se casar com outra, preterir Rachel por causa de dinheiro, relegá-la à condição de amante, mesmo já tendo filha muito antes de ter conhecido sua futura esposa. É pior.

Depois da morte de Philippe, vemos duas mulheres machucadas pelo tempo que não conseguem dialogar, que não conseguem se entender. A filha com mágoa da mãe por ter amado demais um pai que fez um estrago emocional em ambas.

A obra se converte em estudo sobre comportamento humano e entra numa visão psicanalítica das personagens. Não é um processo de reconhecimento de filha que está diante dos nossos filhos. É a complexidade de violências cruéis que

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deixam marcas profundas em mães e filhas quando se está diante de homem-pai abusivo, violador de normas legais e morais. Esses homens sempre existiram.

Que códigos de convivência humana os embrutece a esse ponto de negar o amor, rejeitar a paternidade? Nem a liberdade, proclamada por Philippe, ao citar Nietzsche, dá conta de explicar.

2. DA MATERNIDADE COM HOMENS DESTRUTIVOSO filme “A vida de uma mulher”, ao contrário do que podemos imaginar,

não é sobre violência física, psicológica, sexual ou financeira, vez que já se revelou tantas características negativas de Julien no início deste ensaio. A obra cinema-tográfica não dá elementos suficientes para fazer essa análise, apesar de reconhe-cermos comportamentos abusivos dele, ao fazer grosserias que a faziam chorar, traí-la, ou se apossar do dinheiro do dote. No entanto, não vemos cena de sexo forçado, nem com ela, com a empregada ou a segunda amante, nem tampouco agressões físicas.

O dote era dele por direito, o que já mostra que vem de longas datas, o homem aumentar seu patrimônio com o casamento. No geral, eles só casavam com quem tivesse mais condições financeiras. Não é sobre divórcio ou mudança de leis, não é sobre uma mulher combativa que faz mudanças significativas no entorno que vivia. Jeanne é resignada e frágil, muitas vezes infantil. É sobre a maternidade de Jeanne que se concentra essa análise.

Apesar da dureza da traição, é no amor materno que Jeanne sofre as maiores dores no filme. Uma mãe resignada a aceitar todas as vontades de um filho até chegar à ruína, mostra que não há limites, que não tem amor próprio, vontade, ao aceitar todas as chantagens do descendente.

Jeanne recebeu apoio do avô da criança e não o criou sozinha. Paul tam-bém contou com uma rigorosa educação, mesmo assim trazia uma revolta e uma falsidade com sua mãe, escrevendo e jurando amor somente quando precisava de dinheiro. Dois homens, pai e filho, que a quiseram por causa da questão finan-ceira repercutindo do pai até o filho o comportamento abusivo para com a mãe, que ao invés de rechaçar, não percebia maldade no que o filho fazia. A constelação familiar é uma possibilidade de reconhecer a fidelidade a padrões que se repetem em família, conforme já anunciou Bert Hellinger7.

7 HELLINGER, Bert; TEN HOVEL, Gabriele. Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do amor. Tradução: Eloisa Giancoli Tironi, Tsuyuko Jinno-Spelter. São Paulo: Cultrix, 2007.

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Ao comparar com o outro enredo cinematográfico, uma passagem muito interessante da obra “Um amor impossível” é a conversa de Rachel com o seu psicanalista ao questionar se ela tem medo de sua filha. Ao que responde que sim.

O espaço para diálogos fortes sobre a maternidade, seguido de uma expli-cação sobre o abuso físico, psicológico e sexual sofrido pela filha ao questionar o porquê de a mãe ter escolhido um tipo cruel para se relacionar ao invés de ter casado com um outro homem, Charles, mais bonito e gentil. É importante esse diálogo para que reflitamos sobre relacionamentos afetivos e sintomas dos envol-vidos na relação.

As experiências de abuso, abandono, rejeição, a sensação de não ser amada podem levar uma criança a desenvolver modos de se comportar e pensar que se repetem ao longo da vida. Essa perspectiva se aproxima de uma leitura psicológica do que Rachel havia passado na infância ao ser abandonada pelo pai e pela forma de se sentir inferior ao se apaixonar por um rapaz abusivo, cruel, pervertido, que lhe diminua a autoestima e lhe inferiorizava sempre.

Como essa situação do abandono filial se dá na década de 70 do século passado, somos levados a acreditar, como espectadores, que seja em razão da socie-dade do período aceitar determinados comportamentos machistas. No entanto, aparece uma situação inconcebível em sociedade: o incesto.

A violência sexual incestuosa não ocorre de repente, ao acaso, como pre-ceitua Penso, Costa, Almeida, Ribeiro8. A personagem Rachel após a descoberta do incesto contra sua filha, silencia, não enfrenta a questão, teme olhar de frente, sendo preciso Chantal crescer e virar uma intelectual para explicar o que foi a relação das duas com Philippe.

3. CONSIDERAÇÕES FINAISAs protagonistas de ambos os filmes são mães que enfrentam dilemas com

suas respectivas maternidades. Enquanto, a redenção de Jeanne vem com a che-gada de sua neta, uma incógnita de como será aquele destino, Chantal também

8 Maria Aparecida Penso; Liana Fortunato Costa; Tânia Mara Campos de Almeida; Maria Alexina Ribeiro. Abu-so sexual intrafamiliar na perspectiva das relações conjugais e familiares. Aletheia, Canoas, n° 30, dez. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200012. Acesso em: 07 mai. 2020: A violência sexual incestuosa não ocorre de repente, ao acaso. Não é espontânea ou imprevisível. Ao contrário, utiliza-se de enredos e cenários gerados nos próprios processos de construção das subjetividades, nas frestas familiares presentes e passadas. As condições e a lógica que a produzem vão sendo tramadas e produzidas ardilosamente no interior dos sujeitos inseridos nas famílias, muitas vezes de gerações em gerações. Assim, a prática da violência sexual não é improvisada, não é um acidente. Ela se anuncia, vai sendo tecida de diferentes maneiras, utilizando-se de códigos socioculturais, sinais de ameaças, mensagens de insegurança, segredos, afetos e jogos psíquicos que, instalados no seio familiar, começam a atuar orques-tradamente ao menor descuido.

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passa a ser mãe e começa a vestir azul, a cor que mais sua mãe usava, ao invés de vermelho que era a sua cor desde a infância.

Não há menção à esposa de Philippe, não a vemos, não sabemos quantos filhos teve com ela. Mas, é Chantal que propicia o diálogo mais revelador sobre o lugar da maternidade e da cegueira do romantismo exagerado quando faz uma série de proposições à sua mãe:

– Por que você não viu nada?

– Eu estava cega. Me arrependo. Mas, entendi depois.

– Você entendeu o que?

– Parei de acreditar no nosso amor. Pensei que estava cansada de mim, que não me amava mais.

– Há uma lógica nisso tudo. Uma grande jornada de rejeição social, psico-lógica, desejada, organizada, inclusive o que ele fez comigo.

– Não entendi direito.

– Vocês dois pertenciam a dois mundos diferentes, completamente estra-nhos. Você era sozinha, pobre, judia, bonita, diferente das outras. Isso é impor-tante. É relevante. O intuito era fazer você perder. É a história da rejeição social. Era preciso que continuassem separados socialmente. Tudo piorou com o “pai desconhecido”. Você não aguentou isso.

– Eu não podia... eu achava injusto, falso.

– Mas, se eu tivesse o nome dele não haveria mais separação entre seus mundos. E você meteu na cabeça... queria o nome dele na minha certidão.

– Porque é a verdade.

– Então, passo a ser reconhecida como filha dele.

– Você é filha dele.

– Pois é. Mas, não era a regra do campo deles. O que ele poderia fazer? Bom, ele encontrou algo a fazer. E ignorou a proibição fundamental de pais terem relações sexuais com os filhos. Não era da conta dele. Para ele, não. Como se não fosse meu pai e eu não fosse filha dele. Ele estava acima disso, de você, de nós, das regras sociais

– Você acha?

– Sim, acredito nisso.

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– Ele foi o responsável por algo muito grave.

– O que ele fez a mim foi o que ele fez a você, antes de mais nada. Para hu-milhar, o melhor é fazer passar vergonha. O que é mais vergonhoso do que isso? Se tornar, mesmo quando achava que estava melhor, mãe de uma filha cujo pai faz isso?

E Chantal finaliza:

– Demos a vota por cima. Nossa vida não acabou.

Chantal, portanto, resume que ambas, mãe e filha, foram vítimas de re-jeição social. Vincular o incesto à luta das classes é muito interessante, além da leitura marxista, possibilita considerações sobre o poder nas relações humanas e nas questões afetivas no trinômio pai-mãe-filha.

Nos dois enredos, as personagens, são vistas como heroínas. Os homens são tratados como culpados e têm uma morte dura: Julien é assassinado e Philippe morre vítima de Alzheimer.

Em ambas podemos questionar: deram mesmo a volta por cima? A mensa-gem é otimista para as protagonistas: têm vida diante de si. “Enquanto há vida há esperança”, clichê ou não, temos essa perspectiva de futuro nos filmes analisados.

CAPÍTULO 02

LITERATURA E DIREITOS DAS MULHERES

MULHERES E POLÍTICA NO BRASIL: A “MULHER-MARAVI-LHA” E A METÁFORA DA AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA

Carla Estela Rodrigues1

A ORIGEM FEMINISTA: “JÁ CANSEI DE SER AMARRADA!”Bela como Afrodite; sagaz como Atena; dotada da velocidade de Mercúrio e da

força de Hércules – nós a conhecemos como Mulher-Maravilha. Mas quem pode nos dizer quem ela é ou de onde veio?2

No passado, em um mundo dominado pelas ideias patriarcais, havia a con-cepção sistemática de que o destino tradicional de todas as mulheres era o casa-mento, a maternidade e os afazeres domésticos. Em contrapartida a isto, a partir do final do século XIX, um grupo de mulheres ocidentais desenvolveram um pen-samento distinto da maioria: o de que a mulher não deveria ser vista pelos olhos da sociedade como um objeto, mas sim como uma sujeita de direito igual ao ho-mem. Posteriormente, essa percepção ficou conhecida como a base do movimento feminista e teve, inclusive, impacto direto na criação da primeira super-heroína pela DC Comics3.

Conhecida pelo bracelete de ouro usado para repelir balas e por seu laço mágico que obriga as pessoas a contar a verdade, a Mulher-Maravilha se tornou a super-heroína mais famosa de todos os tempos. A personagem, uma amazona, foi concebida no gibi pelo professor, advogado e psicólogo William Moulton Marston, em 1941, com o objetivo de estabelecer entre crianças e adolescentes um modelo de feminino forte, livre, corajoso e determinado, “para combater a ideia de que as mulheres são inferiores aos homens, e para inspirar meninas à autoconfiança e às realizações no atletismo, nas funções e profissões monopolizadas pelos homens.”4.

1 Autora. Advogada. Pós-Graduada em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito (2018-2019). Gradu-ada em Direito pelo Centro Universitário UniRuy | Wyden (2012-2016). Ex-bolsista do Programa de Inicia-ção Científica e Tecnológica (2013-2015). Autora de livros e artigos científicos em revistas especializadas.

2 Em “Apresentando a Mulher-Maravilha”, All Star Comics n° 8, de 1941. LEPORE, JILL. AHistóriaSecretada Mulher-Maravilha. 1ª ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017, p. 245.

3 Éumaeditoranorte-americanaqueficouconhecidacomoumadasmaiorescompanhiasdeHistóriasem Quadrinhos do mundo. Ela criou, por exemplo: Super-homem, Batman, Flash, Lanterna Verde, Espectro,Liga da Justiça etc. SEARS,Alec.Marvel vs.DC:WhichComicBookUniverse IsYourState’s Favorite? Disponível em: <https://www.usdish.com/blog/marvel-vs-dc-your-states-favorite-co-mics-2019>. Acesso em: 19 Jul 2019.

4 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 226.

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Na construção da super-heroína, desde o início, Marston se baseou numa profunda pesquisa científica, influenciado pela ciência, literatura, política e pelo direito, sobretudo, com a tão batalhada luta pelos direitos à educação feminina e ao voto, que ficou conhecida como a primeira onda do feminismo, entre o final do século XIX e início do século XX, nos Estados Unidos da América. Ele era, definitivamente, um homem incomum da sua época – adepto do poliamor, defensor do matriarcado e inventor do detector de mentiras –, se inspirou nas mulheres que amou, as quais eram sufragistas, feministas e defensoras do controle de natalidade:

Em 1911, Marston era calouro em Havard quando a universidade proibiu a sufra-gista britânica Emmeline Pankhurst de palestrar no campus. Elizabeth Holloway, com quem Marston casou-se em 1915, fora sufragista na Mount Holyoke College, e Marjorie Wilkes Huntley, bibliotecária que começou a namorar esporadicamente com os Marston por volta de 1918, havia acompanhado mulheres às urnas. Olive Byrne, que conheceu Marston em 1925, era filha de Ethel Byrne, que em 1917 foi a primeira feminista nos Estados Unidos a fazer greve de fome, depois que ela e a irmã, Margaret Sanger, foram presas por abrir a primeira clínica de controle de natalidade do país.5

Diferente dos argumentos de igualdade sustentado pelas feministas do sécu-lo XX, Marston defendia a superioridade feminina baseada em séculos de escritos femininos propendendo vigorosamente para a filosofia do movimento feminista do século XIX, cuja ênfase estava na superioridade moral da mulher, isto é, sua natureza “angelical”. O escritor, inclusive, realizava constantes declarações defen-dendo o matriarcado e a eleição de uma mulher para o cargo de chefe de estado: “Nos próximos cem anos, teremos o princípio de um matriarcado americano”. Ele ainda previu: “Em quinhentos anos, haverá uma grande batalha dos sexos. E em mil anos as mulheres com certeza vão dominar este país.”6.

Neste sentido, a Mulher-Maravilha foi pensada como uma grande metáfo-ra. Marston construiu nos quadrinhos uma feminista da era progressista, encarre-gada de enfrentar o mal, a intolerância, a destruição, a ilegalidade e o sofrimento em nome da democracia, da liberdade, da justiça e, acima de tudo, dos direitos humanos para as mulheres7. Ele explicava que a sua personagem, assim como o seu protótipo masculino, Super-homem, possuía uma enorme força física, con-tudo, a diferença residia na ideia de que ela perderia o seu poder, caso deixasse

5 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 225.6 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 213.7 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 261.

CarLa ESTELa roDriGuES 169

algum homem soldar as correntes dos seus braceletes8. Dessa forma, o autor ale-goricamente reproduzia nas revistas o que acontece com todas as mulheres que se submetem à dominação masculina.

Além da força da mulher, o bondage9 feminino era um dos temas principais da Mulher-Maravilha. Não havia uma revista da personagem, às vezes nem mes-mo uma página, que não tinha um episódio com uma mulher amarrada. Por trás desta iconografi a estava os cartuns do início do século XX, como o da cartunista feminista Lou Rogers10, que representava a luta pelos direitos das humanas com mulheres acorrentadas, presas com cordas ou amordaçadas, exprimindo meta-foricamente a falta de direitos e liberdade feminina11. Desse modo, seus cartuns tiveram grande infl uência na super-heroína, a qual pretendia fazer com que as mulheres rompessem as correntes e se emancipassem.

(Wonder Woman n° 4, 1943)

Para o público que lia gibis, a história da Mulher-Maravilha parecia ser to-talmente inédita. No entanto, a origem da personagem foi inspirada num conto

8 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 2719 O bondage nos quadrinhos provocou discussão entre o Comitê Consultivo Editorial de Maxwell Charles

Gaines – considerado precurssor dos gibis e fundador da editora All-American Comics –, mas Marston insis-tia que a personagem tinha que fi car acorrentada para depois se soltar, e, simbolicamente, emancipar-se. Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 225.

10 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 113.11 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 287-288.

de ficção utopista e feminista dos anos de 1910. A primeira publicação original da Mulher Maravilha, justamente, procurou contar essa gênese da heroína, que tem suas origens na ilha de Temyscira, na Grécia, pertencente à família das amazonas e com características dos deuses mitológicos: “Bela como Afrodite; sagaz como Atena; dotada da velocidade de Mercúrio e da força de Hércules”12. Hipólita, rainha das amazonas, desejava ter uma filha e, de acordo com a lenda, como na ilha não habita-vam homens, utilizando-se de barro, esculpiu Diana e pediu aos deuses do Olimpo que a dessem vida. Ainda, nessa primeira história da super-heroína, o autor explica:

“Em Amazonia, as mulheres eram governantes e tudo ia bem.” Todavia, isso não durou. Depois que Hipólita derrotou Hércules, o homem mais forte do mundo, ele roubou dela o cinturão mágico que havia ganho de Afrodite, a deusa do amor. Sem o cinturão, Hipólita perdeu todo o seu poder e as amazonas tornaram-se escravas dos homens, presas a correntes. Fugiram apenas depois de jurar que vi-veriam longe dos homens para sempre. Singraram o oceano até encontrar um local que não tinha sido mapeado, ao qual deram o nome de Ilha do Paraíso. Lá viveram, abençoadas pela vida eterna... até que, um dia, o avião do capitão Steve Trevor, oficial do Exército dos Estados Unidos da América, cai na ilha.13

Foi assim que, em 1941, quando os americanos entraram na II Guerra Mundial, Marston contou a pioneira história da Mulher-Maravilha nos quadri-nhos, na tentativa explícita de combater a guerra, o fascismo e a opressão femini-na através dos seus gibis. Naquele período, as revistas em quadrinhos eram uma forma de expressão artística já consagrada14, contudo, absolutamente dominadas por super-heróis. Segundo ele, a criação da Mulher-Maravilha nas HQs tinha o objetivo de equilibrar o mundo dos gibis e trazer a representação e força para as mulheres como forma de libertação. O próprio Marston afirmava que depositou na personagem todas as características observadas por ele nas mulheres: generosi-dade, bondade e poder.

Destarte, o autor pretendia despertar e difundir ao máximo as ideias femi-nistas e antifascistas que contribuíram para a sua formação de mundo ideal. Sobre isto, inclusive, Lynn Hunt explica que a estratégia de estimular emoções através dos livros, revistas, músicas, teatros, obras de arte, fotografias e arquiteturas domésticas são aptas a estimular o desenvolvimento da empatia no indivíduo e a sensibilidade por aqueles que vivem em circunstâncias diferentes: “Uma mulher contou a sua reação à ópera Alceste, de Gluck, que estreou em Paris em 1776: ‘Desde os primei-

12 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 245.13 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 33.14 As HQs foram inventadas aproximadamente em 1933, por Maxwell Charles Gaines, que se tornou o fundador

da editora All-American Comics e formou seu próprio Conselho Consultivo Editorial. Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 230.

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ros compassos fui invadida por um forte sentimento de admiração reverente e senti dentro de mim esse impulso religioso com tal intensidade.’”15.

GRANDE HERA (?): MULHER-MARAVILHA PARA PRESIDENTA“Talvez a esfera mágica conceda seu desejo! Enfim, vejamos o que acontece quando

um homem concorrer à presidência com uma mulher em 3004!”

“Oh, mãe! Que empolgante!”16

O período histórico era anômalo. A guerra havia levado os homens para a área de combate e as mulheres de todas as classes sociais foram convidadas a contribuir com a mão de obra na linha de produção das fábricas e no comércio do país. As feministas americanas não lutavam mais pelo sufrágio ou para ingressar no mercado de trabalho, elas buscavam ter representantes femininas na política, ganhar o mesmo que os homens e por políticas públicas de maior efeito – período consagrado como a segunda onda do feminismo. Desse modo, o benefício mais nobre da guerra foi o grande impulso à força feminina física, econômica e mental.

Em Sensation Comics n° 8, de 1942, por exemplo, a super-heroína descobre que mulheres na rede de loja Bullfinch recebem um mísero salário: “‘Nós, as garo-tas da Bullfinch, ganhamos só onze dólares por semana”, reclama a amiga de Dia-na, Molly.’”. Ao tomar conhecimento, a Mulher-Maravilha convoca greve com os seguintes cartazes: “‘NOSSO TRABALHO PESADO É O QUE FAZ GLORIA SER GLAMOROSA’, ‘LOJA BULLFINCH É INJUSTA COM AS MENINAS E PASSAMOS FOME ENQUANTO GLORIA BULLFINCH JANTA COM OS BILIONÁRIOS!’”17.

A personagem, assim, foi criada como símbolo de resistência para incen-tivar a luta pelos direitos iguais para as mulheres no trabalho, no esporte, na educação etc. E, para concretizar essa paridade, a super-heroína consagra a ideia de que é preciso, acima de tudo, alcançar a igualdade nos cargos políticos. Isto porque são os poderes legislativo e executivo que definem as normas jurídicas e políticas públicas de combate à desigualdade de gênero. Logo, a ausência de repre-sentação isonômica das mulheres na política faz com que temas como violência, assédio, aborto, maternidade e carreira sejam discutidos, em geral, por homens brancos, héteros e misóginos, que passam a dar continuidade a uma sociedade androcêntrica através de um machismo velado.

15 HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pg. 83.16 Em “As Mulheres-Maravilha dos Estados Unidos do amanhã”, Wonder Woman n° 76, de 1943. Cf. LEPORE,

JILL. Ob, cit., p. 226.17 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 263.

A respeito disto, William Marston defendia incansavelmente não só a can-didatura de uma mulher à presidência dos Estados Unidos, mas sim, que uma mulher fosse de fato eleita, pois, para ele as mulheres eram a força do futuro, elas entendiam muito mais de humanidade, diplomacia, educação, saúde e cultura que os homens. A super-heroína, portanto, desde o princípio, parecia estar em uma grande corrida eleitoral: “Ela odeia armas: ‘Balas nunca resolveram os pro-blemas humanos!’ Ela é implacável, mas sempre poupa suas vítimas. ‘A Mulher--Maravilha nunca mata!’ Acima de tudo, ela acredita nos Estados Unidos: ‘Amé-rica, a última cidadela da democracia e dos direitos iguais para as mulheres!’”18.

Marston conseguiu reproduzir essa mensagem em 1943, na Wonder Woman n° 7, em que a Mulher-Maravilha se torna presidenta dos Estados Unidos da América. Ele tinha realmente a esperança de suas histórias infl uenciarem a levar a primeira mulher à Casa Branca. Para o autor, as mulheres claramente iriam domi-nar os negócios, a nação e o mundo. Ele ainda defendia que o universo monopo-lizado por mulheres anunciaria uma era de paz, argumento este que as sufragistas americanas usaram na tentativa de garantir o pleno direito ao voto às mulheres em 1920, com a aprovação da Emenda Constitucional n° 19.

(Wonder Woman n° 7, 1943)

18 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 246.

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No entanto, desde que se tornou independente, em 1776, os Estados Uni-dos foram governados por 45 presidentes, permanecendo à margem do clube de nações já comandadas por mulheres. Na obra “Women for Presidente”, a pesqui-sadora Erika Falk fez um interessante estudo sobre o tema apontando a imprensa norte-americana como um dos fatores que sustenta o estereotipo de que as mu-lheres não pertencem ao meio político. Ademais, muitos americanos encaram a presidência exclusivamente em termos militares, como chefe das Forças Armadas, e não como protetores da educação, da economia e da saúde dos cidadãos.19

No Brasil, por sua vez, foram precisos 111 anos de sistema republicano para eleger a primeira presidenta do país, Dilma Rousseff. Entretanto, desde os primeiros meses de sua campanha ela passou a sofrer constantes ataques não só políticos, mas, sobretudo, misóginos e falocráticos, tanto da mídia quanto dos parlamentares e cidadãos de oposição. Esses ataques começaram a aumentar após a candidatura ao seu segundo mandato, em que a mídia de oposição passou insis-tir que a mesma deveria ser chamada pelo masculino/neutro presidente20, assim como as capas de revistas que a colocava como uma mulher surtada, histérica e descontrolada.21

Em 2014, na disputa pelo segundo mandato, Dilma Rousseff, em en-trevista ao Jornal Nacional22, chegou a ser interrompida mais de quinze vezes pelo jornalista William Bonner, mesmo a presidenta pedindo para terminar o raciocínio, acompanhada de uma alteração no tom da voz, a fim de se impor. Essa interrupção23, todavia, não foi cometida com os demais candidatos. Além disso, durante a entrevista, as perguntas destinadas a Dilma Rousseff estavam associadas ao seu partido, isto é, como se a candidata fosse incapaz de governar

19 FALK, Erika. Women for President. University of Illinois Press: Second Edition, 2010.20 O uso do termo presidenta com a no final dá força ao simbolismo e representatividade das mulheres no mais

alto cargo do poder executivo. No entanto, cumpre lembrar que, o vocábulo presidenta não foi sugerido por Dilma, mas já constava em dicionários, como afirma o linguista Marcelo Módolo. Para este: “embora pareça recente, ‘presidenta’ é termo antigo. Ao menos desde o dicionário de Cândido de Figueiredo (1899): ‘Presidenta, f. (neol.) mulher que preside; mulher de um presidente. (Fem. de presidente.)’ – ‘Presidenta’ já está consignado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), no Houaiss; por isso, para mim, é indiferente o uso - diz Módolo”. PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. Presidente ou presidenta? Língua Portuguesa. Disponível em <http://revistalingua.com.br/textos/62/presidente-ou-presidenta-248988-1.asp>. Acesso em: 20 Jul 2019.

21 ISTOÉ, REVISTA. As explosões nervosas da Presidente. In: Revista ISTOÉ. São Paulo: Editora Três. Edi-ção 2417, abril de 2016.

22 O produto jornalístico foi lançado com a missão de ser o primeiro telejornal veiculado em rede nacional da te-levisão brasileira, que ocorreu em 1969, pelo Grupo Globo de Televisão. O Telejornal atualmente é conhecido no Brasil pela imparcialidade e corporativismo em defesa da ideologia política de direita. PECCOLI, Victor. Jornalista americano renomado detona o “Jornal Nacional”. Disponível em <https://www.otvfoco.com.br/jornalista-americano-renomado-detona-o-jornal-nacional/>. Acesso em: 23 Jul 2019.

23 Essa interrupção é denominada de manterrupting, isto é, termo em inglês utilizado para designar a interrupção do discurso feminino por um homem. CARPENTER, Julia. Howtofight'subtlesexism'intheoffice. Dispo-nível em <https://money.cnn.com/2017/10/09/pf/everyday-sexism/index.html>. Acesso em: 27 Jul 2019.

sozinha, estando ela refém das autoridades masculinas que comandam a agre-miação partidária que ela faz parte.24

Por último, oportuno lembrar que, em 2016, houve o processo de impeach-ment da presidenta, que a afastou de modo brusco do governo. Essa ação carregou consigo, não apenas a carga de uma norma política-jurídica pelo qual se julga go-vernantes por seus crimes no exercício da função, mas sim, se mostrou um processo de total ataque à figura feminina de Dilma, articulado por um Congresso Nacional absurdamente dominado por homens brancos, héteros, machistas, elitistas e que, em geral, respondiam por crimes de corrupção. Esse episódio marcou o maior feito an-tidemocrático no Brasil, desde a promulgação da Constituição em 1988, bem como afrontou às mulheres e suas conquistas, representadas na figura da chefe de estado.

O DOUTOR PSYCHO: CABEÇA DE MUSSOLINI, HITLER E HIROHITO

Quem é o maligno Doutor Psycho? Conhecido como o homem de mil faces onde quer que seu gênio maligno ataque, este monstro detesta as mulheres!25

Na década de 1940, como exposto acima, os Estados Unidos – nação que propiciou os ideais das histórias da Mulher Maravilha – encontravam-se em um momento de tensão e patriotismo exacerbado, isto porque o governo apresentava ao seu povo os nazistas como seus grandes inimigos e tentava de todas as formas fortalecer o nacionalismo presente em cada americano. Neste cenário, William Marston queria que a Mulher-Maravilha se opusesse a guerra, mas, para isto ela teria que lutar pela democracia, ser uma superpatriota e assim como o Capitão América, ele procurou vesti-la de vermelho, branco e azul.26

A Mulher-Maravilha, sem dúvidas, nasceu também para repudiar as ideias fascistas e antidemocráticas que circulavam o mundo. Neste sentido, em “A bata-lha pelo Feminino”, Wonder Woman n° 5, de 1943, William Marston apresentava nos gibis um dos maiores arqui-inimigos da Mulher-Maravilha, o famoso Doutor Psycho, um fascista, na figura de um monstro com as cabeças de Mussolini, Hitler e Hirohito e contrário aos direitos humanos das mulheres. Esse personagem foi inspirado no mentor de Marston em Harvard, o psicólogo alemão Hugo Müns-terberg, que foi seu professor de 1912 a 1916:

24 KAMEL, Ali. Dilma Rousseff é entrevistada no Jornal Nacional. 2014. (17m27s). Disponível em: <http://g1.glo-bo.com/politica/eleicoes/2014/videos/t/todos-os-videos/v/dilma-rousseff-e-entrevistada-no-jornal-na-cional/3572518/>. Acesso em: 23 de Jul 2019.

25 Em “A batalha pelo feminino”, Wonder Woman n° 5, de 1943. Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 245.26 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p 242.

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Münsterberg, que dirigiu o Laboratório Psicológico de Harvard, era contra o su-frágio feminino e acreditava que as mulheres íntegras e moralistas tinham muito a fazer em casa antes de votar, e que toda mulher que comparecesse às eleições seria facilmente corruptível, de forma que “o maquinário político adquiriria força renovada e revoltante a partir da debilidade destas mulheres em resistir à pressão política”. Sem falar que “a política poderia ressaltar desavenças entre marido e mulher”.27

A batalha da super-heroína contra o Doutor Psycho, em verdade, era a batalha de Marston contra as ideias fascistas de Hitler, Mussolini e Hirohito, assim como o machismo, sexismo e falocentrismo defendidos por Münsterberg. O alemão não acreditava na igualdade intelectual e política da mulher. Ele era co-nhecido entre os americanos por ser contrário tanto à instrução feminina quanto ao voto feminino. Münsterberg costumava dizer que a única razão para educar as mulheres, era para elas se tornarem esposas mais interessantes. “As mulheres vão sofrer enquanto eu gargalho Há! Ho! Ha!”28.

(Wonder Woman n° 5, 1943)

Para o psicólogo, as moças decentes e morais não deveriam preencher uma cédula, pois, além delas terem muito o que fazer em casa e serem facilmente cor-

27 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 245.28 Em “A batalha pelo feminino”, Wonder Woman n° 5, de 1943. Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 47.

rompíveis, existia o colossal perigo de que a política poderia ressaltar conflitos entre marido e mulher29. Desse modo, Münsterberg acreditava em hierarquias, em ordem e na sua nação alemã. O germânico dizia que não havia representação melhor da decadência estado-unidense que o excesso de igualdade através das ri-dículas aspirações das mulheres americanas, como a luta pelo voto, pelo trabalho e pelo controle de natalidade.

Neste toar, durante a guerra, a maior parte dos vilões da Mulher-Maravilha costumavam ser alemães e japoneses, geralmente, homens gananciosos e de nariz adunco como o Doutor Psycho. Mas, o que ele e todos os vilões da heroína ti-nham em comum era a forte oposição à igualdade feminina. Contra cada um, a Mulher-Maravilha lutava pelos direitos das mulheres de trabalhar, de concorrer a cargos políticos e de ser líder. Assim, a super-heroína constantemente procurava despertar em seu público feminino o interesse pelas questões políticas e, acima de tudo, fazer com que as mulheres participassem das funções de comando. “É hora destes incas perdidos serem governados por uma mulher!”30.

No entanto, passados mais de setenta e cinco anos do surgimento da perso-nagem, a participação da mulher na política é uma batalha longe de ser vencida. De acordo com dados do Inter-Parliamentary Union, por exemplo, em 2019, os EUA ocupam a 76ª posição em participação feminina no parlamento, em uma lista de 193 países, ficando atrás da maioria das nações europeias e muitos países latinos e mulçumanos. Mesmo batendo recorde de congressistas eleitas para o parlamento, as 127 mulheres que ocupam o congresso – 102 na Câmara e 25 no Senado –, representam somente 23,8% das 533 cadeiras das casas e vêm enfren-tando a ausência de prioridade em políticas públicas do atual Presidente Donald Trump, que possui uma gestão marcada por ataques a movimentos feministas. 31

No Brasil, esses dados são ainda mais preocupantes. O país amarga a 132ª colocação, com apenas 14,8% de mulheres no Congresso – 77 na Câmara e 12 no Senado –, ficando apenas na frente do Paraguai entre todos os países da Amé-rica Latina32. Em 2018, na tentativa de alterar esse quadro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a determinar que 30% dos recursos do fundo eleitoral precisavam ser destinados as mulheres. Contudo, a pesquisa “Democracia e Re-

29 Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 4930 Quando a super-heroína desvenda o mundo perdido dos incas, ela fala que a filha do chefe deveria ficar com

o trono. Cf. LEPORE, JILL. Ob, cit., p. 267.31 UNION, Inter-Parliamentary. Women in national parliaments. Disponível em: <http://archive.ipu.org/wmn-

-e/classif.htm>. Acesso em: 05 Ago 2019.32 UNION, Inter-Parliamentary. Women in national parliaments. Disponível em: <http://archive.ipu.org/wmn-

-e/classif.htm>. Acesso em: 05 Ago 2019.

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presentação nas Eleições de 2018: Campanhas Eleitorais, Financiamento e Diver-sidade de Gênero”, revelou que a maioria dos partidos políticos não cumpriram essa regra33. Não obstante, em completo retrocesso, a Câmara dos Deputados, em 2019, aprovou o Projeto de Lei n° 1321/201934, que anistia a multa por falta de incentivo a mulheres aos partidos políticos.

Por fim, cumpre lembrar que, em 2018, no Brasil, Jair Bolsonaro foi eleito Presidente da República. E, com apenas  duas  ministras entre 22 pastas, o  seu governo tem um dos piores índices de participação feminina no Executivo. Além disso, suas ideias o colocam como um político extremamente populista e chauvi-nista – de extrema-direita com pouco apreço pela democracia e que seduz o elei-torado com promessas fáceis para problemas complexos e utilizando expressões de rejeição radical a oposição, bem como o desprezo às minorias. Os governos populistas35 vêm ganhando força pelo mundo, e, frequentemente insinuam que o empoderamento feminino é um desafio ao poder. Desse modo, questões como o aborto, oportunidades iguais de emprego e a participação política da mulher, estão sendo corroídas por uma ascensão desse populismo global. “Não empregaria [homens e mulheres] com o mesmo salário”36.

Observa-se, pois, que todas essas informações são reflexos de um sistema patriarcal ainda presente, que normatiza as ações dos homens em todos os âmbi-tos – político, econômico e jurídico. Neste sentido, este texto buscou demonstrar que a personagem Mulher-Maravilha é um símbolo da resistência da igualdade de gênero na política, construída não apenas para ser uma super-mulher, mas para ser todas as mulheres. Ademais, este escrito também procurou alertar a respeito do atual momento histórico que estamos passando, em que os homens estão ten-tando distanciar as mulheres da pretensão de paridade, não só com discursos de retrocessos, mas, acima de tudo, com decisões concretas quando o assunto são direitos humanos das mulheres.

33 VARGAS, Fundação Getúlio. Democracia e Representação nas Eleições de 2018. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/27646/RELAT%c3%93RIO%20FINAL%202018-2019.pdf?sequence=5&isAllowed=y>. Acesso em: 10 Ago 2019.

34 DEPUTADOS, Câmara dos. Projeto de Lei n° 1321/2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/pro-posicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=68EDFFA4F79A94F8347860E552CB0C24.proposicoesWe-bExterno2?codteor=1717746&filename=PL+1321/2019>. Acesso em: 10 Ago de 2019.

35 SÃO PAULO, Folha de. EUA e Europa veem crescer onda populista de extrema direita. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/paywall/signup.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/11/1835973-eua-e-europa-veem-crescer-onda-populista-de-extrema-direita.shtml>. Acesso em: 08 Ago 2019.

36 Fala do atual Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, no programa Superpop, da Re-deTV, em 2016. CAPITAL, CARTA. Bolsonaro em 20 frases polêmicas. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/>. Acesso em: 10 Ago 2019.

A PRESENÇA DE TEXTOS DE AUTORAS NEGRAS NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Eliane Cristina Testa1

Edileuza Batista de Araujo2

“Isso é inegável: a gente vive numa misoginia e numa pigmentocracia”. Tamar Guimarães

Por meio deste ensaio, propomo-nos a verificar se há textos de autoras afro--brasileiras ou afrodescendentes, nos livros didáticos de língua portuguesa do 9º ano, do ensino fundamental, da rede estadual de ensino do Tocantins. Para tanto, analisaremos o conjunto das produções literárias apresentadas nos manuais didá-ticos de português (LDP).

Para compor o corpus do trabalho, selecionamos três livros didáticos do 9º ano, ainda em vigência (PNLD 2017 a 2019), adotados em três escolas diferentes, da rede estadual de ensino do Tocantins, da cidade de Araguaína, para problematizar a presença da literatura afro-brasileira, em particular, as produções literárias de autoras negras. O trabalho não tem como foco ob-servar, apenas, se há textos de autoras negras, mas, também, o lugar de fala3 dessas autoras.

A partir de um levantamento bibliográfico, e de pesquisas realizadas em revistas eletrônicas e sites especializados no assunto, constatamos que no Brasil existe uma grande quantidade de autoras negras que produzem textos riquíssimos. Portanto, a questão não é a falta de obras produzidas no país, mas buscar com-preender que espaços essas obras estão ocupando na sociedade.

Para discutirmos tais questões, trataremos de alguns pontos importantes so-bre a produção literária de mulheres negras, mas, sem pretensões de remontarmos a um panorama das produções literárias de mulheres negras de todos os tempos

1 Doutora em Comunicação e Semiótica da Universidade Pontifícia Católica de São Paulo e Mestre em Letras, professora da graduação do Curso de Letras, onde leciona Literatura Portuguesa, e do Programa de Pós-gra-duação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL/UFT), Campus de Araguaína.

2 Mestranda do Programa de pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL/UFT), Campus de Araguaína, professora de Língua Portuguesa e Literatura na Rede Estadual de Ensino do Tocantins.

3 Ressalta-se que partiremos do conceito proposto por Djamila Ribeiro, em seu livro O que é lugar de fala? (Belo Horizonte, 2017). Nessa obra, a autora destaca que “[...] o falar não se restringe ao ato de emitir pala-vras, mas de poder existir. [...] Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência.” (RIBEIRO, 2017, p. 63-64). Nesse sentido, lugar de fala é o lugar social que as mulheres negras ocupam.

180 a PrESEnÇa DE TEXToS DE auToraS nEGraS no Livro DiDáTiCo DE LínGua PorTuGuESa

(dada a natureza do texto e de seu principal foco). Por isso, essa abordagem discu-tirá, mais especificamente, marcas sociais e questões de gênero.

Acreditamos, ainda, que esse trabalho possa contribuir para a reflexão sobre as opressões de raça, de classe e de gênero. Bem como verificar se a invisibilidade da mulher negra pode deslegitimá-la em seu lugar de fala.

Nesse contexto, o trabalho foi organizado em quatro seções, sendo elas: (i) A mulher negra e a literatura: a luta por ocupar espaços sociais; (ii) Literatura afro-brasileira no contexto atual; (iii) A participação do professor na escolha do livro didático no Brasil; (iv) O livro didático de língua portuguesa e a presença de autoras negras: uma análise.

1. A MULHER NEGRA E A LITERATURA: A LUTA POR OCUPAR ESPAÇOS SOCIAIS

Historicamente, a mulher negra, desde o período escravocrata, tem nos apresentado suas histórias de resistências; muitas delas, nos tocam e nos revelam a sua força, ao longo da história. Porém, sabemos que a sua luta ainda é grande e voltada a conquistas por ocupar mais espaços dentro da sociedade brasileira. De um modo geral, aquilo que as mulheres (e, aqui, podemos falar da mulher não-negra também) já conquistaram, ainda está longe de configurar uma situação igualitária e menos sexista, nas esferas sociais e nas práticas cotidianas.

Percebemos que falta uma mudança significativa da mentalidade, tanto de homens, quanto de mulheres. Porém, acreditamos que isso possa demandar, pos-sivelmente, um longo período de tempo, pois, as transformações sociais, como sabemos, não acontecem de um dia para o outro. Apesar de muitas mudanças já terem ocorrido, ao longo do tempo, podemos dizer que é a partir do século XX, que elas se dão de um modo mais intenso e efetivo, principalmente, em relação à situação de grupos considerados “minorias raciais e sexuais” (SANTOS, 2004, p. 90), dentro de um cenário de luta e de resistência, conforme também afirma Djamila Ribeiro (2018, p. 55-56), “Porque grupos historicamente discriminados – como mulheres, negros e mulheres negras carregam estigmas e estereótipos cria-dos pelo machismo e pelo racismo.”

Para Algemira de Macêdo Mendes (2016, p. 28), a luta que envolve a ace-leração do desenvolvimento cultural no país, não é recente. Esse processo de ace-leração só veio se instalar no Brasil com a chegada da família real. Porém, nem tudo desencadeou somente aspectos positivos, pois, as escritoras mulheres, tanto as que produziam ficção, como poesia, foram deixando de ser mencionadas à me-

ELianE CriSTina TESTa E EDiLEuza BaTiSTa DE arauJo 181

dida que o sistema literário ia se modificando. Criando-se, assim, uma lacuna na história da literatura ou no cânone nacional.

Ainda hoje, há na literatura uma situação muito problemática, que precisa ser superada, as produções feitas por mulheres são pouco valorizadas e/ou disse-minadas em alguns espaços sociais, em especial, no ambiente escolar, e quando afunilamos para a mulher negra, seja ela, autora de ficção, ou de poesia, parece--nos que a situação fica mais grave ainda. Uma das autoras desse trabalho (que atua na educação básica da rede pública, na cidade de Araguaína, no Estado do Tocantins), observa que esta é uma realidade presente em algumas escolas que já trabalhou, pois, muitos professores desconhecem autoras mulheres afrodescen-dentes e suas produções literárias.

Cabe ressaltar que, ao ignorar-se a presença de autoras negras, no âmbito escolar, seja nos manuais didáticos de língua portuguesa (LDP), seja no desenvol-vimento das aulas, cria-se um ato em desfavor da própria literatura, pois, inde-pendente de gênero ou de cor, a produção literária é um fenômeno social e um discurso narrativo potente de construção de mentalidades e de “verdades”, como destaca a autora moçambicana Teresa Manjate (2014), quando afirma:

A produção literária é um fenómeno social, na medida em que resulta de leituras e de convicções. Estas convicções, associadas à capacidade de pensar transcenden-talmente, instauraram ideais progressivas e progressistas ao longo da história, que passaram a ser incorporadas a movimentos, explicita ou implicitamente, de trans-formação social. (MANJATE, 2014, p. 18-19)

Por isso, a literatura deve ser encarada com muita seriedade, pois ela leva a um pensamento crítico, que pode estar potencialmente comprometido com a transformação social. Como adverte a estudiosa Regina Dalcastagnè (2012, p. 17), “[...] cada vez mais estudos literários (e o próprio fazer literário) se preocu-pam com os problemas ligados ao acesso à voz e à representação dos múltiplos grupos sociais.” Nesse sentido, percebemos o papel importante da literatura e seu poder de atuação na sociedade. Como diz Antônio Candido ([1988] 2012), em seu ensaio “O direito à literatura”, a literatura é uma instância capaz de organizar o mundo, e seu papel social exprime uma posição política e humanizadora.

Candido ([1988] 2012) defende que a organização da sociedade seja feita de modo equitativa em relação aos bens culturais, e, pegando esse gancho do au-tor, acreditamos que a própria produção literária deva ser “equitativa” em relação de gênero. Além disso, que a presença da mulher negra (seja no livro didático, ou no ambiente escolar, ou na sociedade) deva se apresentar também em condições

182 a PrESEnÇa DE TEXToS DE auToraS nEGraS no Livro DiDáTiCo DE LínGua PorTuGuESa

de igualdade, para que ela não fique à margem do espaço educacional/social, pos-sibilitando que ela tenha a sua voz assegurada e, como diz Djamila Ribeiro (2017, p. 64) a sua “transcendência” social.

Como nos lembra Alice Walker em uma entrevista intitulada: “Literatura e ideologia”, feita por Raquel Cozer (2011, s/p), para o Cultura Estadão, quando questionada se faria literatura sem mensagem política ou social, a escritora, poeta e ativista feminista responde:

Não, não, isso é impossível. A ideia de que você possa fazer arte sem mensagem política ou social é absurda, mas querem nos dizer isso porque sabem que os povos do terceiro mundo, especialmente mulheres, sempre terão algo crítico a dizer [grifos nossos].

Analisando a resposta de Walker, poderíamos fazer as seguintes perguntas: Quem quer nos dizer? O que está por trás do silenciamento das vozes de mulheres (negras ou não negras)? Lembrando que o discurso, como conceituado por Fou-cault (1987) encerra regimes de poder/saber.

Assunção de Maria, em seu ensaio “Sobre ‘lâminas finas’” e hastes firmes” (2018), afirma o seguinte:

Como autores e autoras [negros e negras] conscientes das mazelas sociais de seu país ou do seu lugar de pertencimento, poemas, contos, novelas e romances inten-cionam revelar, questionar, denunciar e contestar as formas viciantes e coloniza-doras que ainda persistem, à medida que a neocolonização [grifo nosso] provoca e realimenta a exclusão e a desigualdade, alicerçadas por um racismo imperioso e massacrante. (MARIA, 2018, p. 09)

São outras questões importante a se pensar e, que, de certo modo, estão implicadas no silenciamento e no apagamento (na invisibilidade) de escritoras, em particular, as afro-brasileiras. Maria (2018) ressalta que a crítica (dentro de uma visão canônica, elitista e branca) não vai considerar a produção literária de escritores negros e de escritoras negras, de alto nível para os padrões correntes e impostos por esse mesmo cânone. Assim, durante muito tempo, no Brasil, essa produção vai ficar invisibilizada, ou, então, vai ser evidenciada de forma negativa, pois eram consideradas literaturas de valor menor. Como menciona a autora:

Por conseguinte, seus livros [os livros de autoria de escritores e escritoras negras], não reconhecidos, eram pouco consumidos pela grande parcela de leitores(as). Fe-nômeno que se agrava quando lembramos que vivemos num país onde ainda há um escasso número de leitores ou consumidores de livros. Tudo isso acimentado por concepções racistas. Decerto que ainda é incomum encontrarmos, em livrarias ou em bibliotecas, livros de autoras e autores como Maria Firmina dos Reis, Luiz

Gama, Auta de Sousa, Lino Guedes, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, por exemplo. (MARIA, 2018, p. 08)

Diante do que explicita, a professora Maria (2018), o que nos causa gran-de preocupação, é que a ausência de autores negros e autoras negras, dentro das instituições de ensino público (ou, pelo menos, em grande parte delas), no nosso país, ainda é pouco questionada. Sem dizer, que nos parece ser quase inexistente a discussão voltada para a presença de escritores negros e de escritoras negras, no livro didático de língua portuguesa (LDP), pois não se encontra quase nenhuma publicação com essa discussão.

Contudo, o que torna esta situação aceitável? Ou não questionada? Talvez, podemos dizer que, ainda, encontramos na sociedade resquícios de uma cultura patriarcalista e escravocrata, como aponta Mendes (2016, p. 28) “Vários entra-ves existiram no Brasil colonial, para acelerar o desenvolvimento cultural no país [...]”. Mais quais seriam eles? E, em que circunstâncias os negros estão envolvidos?

Dentre os problemas, por exemplo, podemos citar: a égide dos padrões mantidos por uma sociedade interiorana e de pensamento colonial, no século XIX, na qual “[...] a promoção de uma nação brasileira educada, saudável, branca e moderna.” (MENDES, 2016, p. 29). Esse é o pensamento vigente e o ideal de “civilidade”. Assim, as ideologias da ideia de nação “moderna” ou os discursos em prol do desenvolvimento do Brasil vão recair diretamente na condição de vida do negro. Tudo isso vai refletir e reverberar por séculos posteriores. Apesar, de estarmos vendo mudanças sociais significativas, em relação a esses grupos raciais, percebemos que a produção literária afro-brasileira, ainda luta por se firmar no sistema literário brasileiro.

Rosália Diogo (2014), em seu ensaio “O direito que tem a literatura de ler o mundo”, vai discutir acerca da presença da mulher negra na literatura e seus compromissos sociais. E, na mesma linha de pensamento de Candido ([1988] 2012), Diogo (2014), defende também o acesso de todos à literatura, sendo ela um compromisso social e um direito humano.

Diogo (2014, p. 48), vai referir-se às mulheres negras escritoras como “[...] um grupo social que tem cada vez mais produzido literatura justificando sua in-tenção e gana, por vezes, de fazê-lo”. Como aponta a estudiosa, essa produção da literatura afro-brasileira firma-se pela luta ativista; o que não exclui o toque de lirismo e de literariedade dessas produções.

Segundo Maria (2018, p. 08), é “[...] inegável, o número crescente de publicações de escritores e escritoras negros(as) brasileiro [...]”. Todavia, por

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que esta produção, que segue tão profusa e rica, ainda, não se faz conhecer de modo mais generalizado?

Vejamos o que diz Maria (2018):[as] preocupações partem das questões que afligem o feminismo, interseccionadas à raça e ao gênero, procurando, ao mesmo tempo, representar ou reencenar as memórias de fundo matrilinear, ancestrais, e da diáspora. (MARIA, 2018, p. 10).

Diante do exposto, a quais “grupos” ou “cenários” não interessariam trazer à luz a cosmovisão desses(as) autores(as) negros(as)? São questões urgentes a se pensar no cenário das relações étnico-raciais brasileiras.

Mesmo diante da problemática da inserção das escritoras negras brasileiras, no espaço escolar ou nos livros didáticos de língua portuguesa (LDP), a consta-tação da crescente produção se abre como um horizonte de expectativas renova-doras. Entretanto, existem ainda muitos entraves a serem superados até que essa produção afro-brasileira se faça presente (de modo mais equânime possível), seja nos LDP, nas prateleiras das bibliotecas escolares, e, até mesmo, nas das universi-dades, pois, como aponta Diogo (2014, p. 52-53) “[...] a comunidade negra ainda se encontra em situação de desvantagem em todas as áreas do campo social, além de aludir à necessidade de uma revisão histórico-social”.

Neste contexto, as práticas discursivas da produção literária podem ajudar nessa revisão histórico-social. Assim, autoras, como, Maria Firmina dos Reis, Auta de Souza, Carolina Maria de Jesus, Mãe Beata de Yemanjá, Esmeralda Ribeiro, Gení Guimarães, Lia Vieira, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Alzira Rufino, Mel Duarte, Elizandra Sousa, Jenyffer Nascimento, Jarid Arraes, Eli-sa Lucinda, Mel Adún, entre tantas outras, devem estar presentes (com suas vozes), para serem visibilizadas no âmbito da literatura nacional, pois não podemos mais admitir a opressão à mulher negra e nem negar a essas escritoras seu lugar de fala.

Acreditamos que quando os alunos e os professores não têm acesso a essa literatura, estão sujeitos ao risco de “ouvir” uma única história, de desconhecerem as muitas vozes dissonantes, de não ler/ver o mundo construído por diferentes lutas sociais, e constituído de diferentes identidades de gênero e de pertencença étnicas.

Sabemos que muitos alunos, principalmente, os que vivem ou estão em situação de vulnerabilidade, só terão oportunidade de conhecer a produção lite-rária, de modo geral, apenas, pelo livro didático. Uma estratégia seria despertar os avaliadores do LDP, na avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), para essa questão da ausência de textos da literatura afro-brasileira de autoras negras. Isso contribuiria para reverter essa situação.

A partir do momento que as obras literárias, de autoras afro-brasileiras fo-rem publicizadas, nos manuais didáticos, as editoras estarão contribuindo para legitimar e para valorizar essa produção. Contudo, destacamos que essa produção tem que aparecer de modo mais equânime possível, para que a mesma seja tão lida quanto os clássicos, que, aliás, já têm seus privilégios assegurados há décadas e décadas, nas instituições de ensino e/ou nos livros didáticos. De acordo com a professora e pesquisadora Dalcastagnè (2012):

Ler Carolina Maria de Jesus como literatura, colocá-la ao lado de nomes consagra-dos, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, em vez de relegá-la ao limbo do “testemunho” e do “documento”, significa aceitar como legítima sua dicção, que é capaz de criar envolvimento e beleza, por mais que se afaste do padrão estabelecido pelos escritores da elite. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 21).

Essa postura marca uma maior democratização na literatura, ajudando a romper com as desigualdades de gênero, e também as sociais. A inclusão de mais autores negros(as) serve para contrapor a exclusão e a marginalização, além, é cla-ro, de conferir a essa produção afro-brasileira sua legitimação, seu lugar de fala e de representação na sociedade.

Um fato que nós não podemos nos esquecer, é que as escolas, geralmente, só se lembram de autores negros (a maior parte de homens) quando precisam comemorar o dia 20 de novembro, considerado “o dia da consciência negra”; data obrigatória como orienta o artigo 79-B, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), ou seja, legalmente essa data tem que fazer parte do calendário escolar. Todavia, mesmo sendo esse o dia oficial “dedicado” a autores afro-brasileiros, ou à cultura brasileira, observamos a ausência deles no cotidiano escolar, e mais pro-blemático ainda quando nós nos voltamos para a produção literária de mulheres negras. Vejamos o que afirma Parente Moema Augel (2007):

Quem são essas mulheres negras que decidiram quebrar o secular silêncio em que estavam envolvidas e usar do papel e da palavra para a sua autorevelação? Se a literatura afro-brasileira ainda continua a ser pouco ou quase nada conhecida ou reconhecida, sobretudo dentro do Brasil mesmo, a literatura das mulheres negras até hoje, com pouquíssimas exceções, tem sido relegada à completa desconsidera-ção. E não são tão raras as afro-brasileiras que escrevem, que procuram explicitar pela palavra o seu “estar-no-mundo” o seu “ser-negra-no mundo” [...]” (AUGEL, 2007, p. 2)

O autorevelar-se como “ser-negra-no mundo” é uma questão urgente, pois ajuda a enfrentar conflitos de várias ordens, e usar o “poder” do papel e da palavra, que é um modo de romper com séculos de silenciamento, de invisibilidade, de subalternização das produções culturais e intelectuais, é uma questão de ordem

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política. Essa produção cultural é bastante eclética, mas não tem sido democrati-zada, pois esbarram no controle do capital simbólico.

Por isso, como afirma Ribeiro (2017): divulgar a produção intelectual [e literária] de mulheres negras, colocando-as na condição de sujeitos e seres ativos que, historicamente, vêm pensando em resistên-cias e reexistências. (RIBEIRO, 2017, p. 14)

Essas questões colocadas pela autora, podem configura-se como um modo de efetivar empoderamento, definido por Ribeiro (2018, p. 135), como ato de “[...] empoderar a si e aos outros e colocar as mulheres como sujeitos ativos da mudança.”, de produzir insurgências contra o modelo social dominante branco e excludente, de não incorrer no perigo de uma única história, de não negar o direito da existência digna de todas as mulheres negras, de não privilegiar certos grupos em detrimentos de outros, e de autorizar vozes historicamente silenciadas, e fazer com que mulheres negras ocupem “lugares de cidadania” (RIBEIRO, 2017, p. 61)

Ainda, de acordo com Maria (2018), nós temos um conjunto riquíssimo de autoras negras com “[...] visões de mundo cujas preocupações partem das ques-tões que afligem o feminino, interseccionadas à raça e ao gênero, procurando, ao mesmo tempo, representar ou reencenar as memórias de fundo matrilinear, ances-trais, e da diáspora”. (MARIA, 2018, p.10). Essas preocupações estão presentes, por exemplo, nos poemas “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo e “Aviso da lua que menstrua”, de Elisa Lucinda.

Esses poemas são fortes e abordam questões de raça, de classe, de geração e de gênero. O poema de Evaristo trata das ancestralidades, da memória, e fala de processos diaspóricos; o de Lucinda, problematiza as relações de gênero. Essas temáticas, aliás, atualíssimas, podem ser levados para as salas de aulas, uma vez que, a partir das práticas discursivas literárias esses e outros assuntos, tidos como “complexos”, podem ser discutidos/analisados com maior sensibilidade (por ser poesia) e criticidade.

Fernanda Felisberto (2007), nos apresenta um breve percurso sobre os pri-meiros registros de autoras negras na literatura Brasileira. Vejamos, a seguir, o que explicita a autora:

Os primeiros registros da autoria negra datam do século XVIII, com Rosa Egipcíaca, que ainda possui poucos estudos, sobre sua biografia e obra. No século XIX temos publicado nosso primeiro romance, Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos reis, em 1859, porém esta publicação não se revelou numa tradição romanesca consoli-dada. E no século XX, ainda é reduzido o número de romancistas negras brasileiras,

fenômeno que não ocorre com o gênero conto, pois nesta modalidade literária en-contramos um número significativo de escritoras. (FELISBERTO, 2007)

Felisberto ao expor esse percurso da literatura de autoria negra abre espaço para uma reflexão sobre o motivo da ausência de autoras afrodescendentes, no câ-none brasileiro. Sobre essa questão, destacamos um estudo (fruto de uma pesquisa de doutorado, publicado em 2016, pela Chiado Editora) intitulado “A escrita de Maria Firmina dos Reis na literatura afrodescendente brasileira: revisitando o cânone”, de Algemira de Macêdo Mendes, em que autora vai problematizar o lugar de Maria Firmina na historiografia literária brasileira, e apresentar uma aná-lise consistente do romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis. Por meio dessa obra, conseguimos compreender o porquê do processo de inclusão e de exclusão de autoras mulheres negras, na historiografia literária nacional. Por isso, destaca-mos a importância dessa obra.

Mas, voltando ao que afirma Felisberto (2007):ainda é reduzido o número de romancistas negras brasileiras, fenômeno que não ocorre com o gênero conto, pois nesta modalidade literária encontramos um nú-mero significativo de escritoras. (FELISBERTO, 2007, s/p)

Se esse número é “significativo”, como afirma Felisberto, a presença das autoras negras, nos manuais didáticos teriam que aparecer de modo mais amplo. Entretanto, será isso um dado real?

Em nossas pesquisas, verificamos que no conjunto de autoras negras, há um vasto e eclético leque de produções literárias; são escritoras oriundas de diferentes regiões do Brasil, com histórias de vida variadas. E, parece-nos que há um elo em comum entre elas, sendo ele: a luta contra o preconceito e a busca de um lugar no cenário literário. Contudo, mesmo diante de alguns avanços, o cenário literário padece de uma pigmentocracia4 e de uma preponderância de autores homens.

Desse modo, cabe ressaltar, que em busca de uma legitimação maior da literatura afro-brasileira, em especial, das produções de escritoras negras, a que se lutar e resistir para assegurar efetivamente a presença dessa literatura, seja na escola, seja no livro LDP. Mas, essa é uma luta que muitas escritoras negras ou afrodescendentes já têm demostrado pela força e pela qualidade de suas obras.

4 Aline Djokic (2018, s/p) explica que “O colorismo ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito comum em países que sofreram a colonização europeia e em países pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer”. O termo colorismo, segundo essa autora, foi usada pela primeira vez por Alice Walker, no ensaio “If the presente looks like the past, what does the future look like?, publicado no livro “In search o four mothers’garden”, em 1982. (Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2015/01/27/colorismo-o-que--e-como-funciona/>. Acesso em 29 de outubro de 2018)

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2. LITERATURA AFRO-BRASILEIRA NO CONTEXTO ATUALExiste uma literatura negro-brasileira? É oportuno apresentarmos essa li-

teratura que vem crescendo no cenário literário brasileiro, pois ainda há muitas vozes que precisam ser ouvidas, e para isso, é preciso conhecê-las, divulgá-las, apreciá-las. Recorremos novamente a Felisberto (2007), que afirma o seguinte:

A literatura negro-brasileira hoje é um campo, que vem fortalecendo cada dia mais a cadeia autoria, editora e público leitor, e ganhando cada dia mais espaço dentro da academia e das escolas brasileiras, fruto de uma identidade dupla, quase indissociável, que é o lugar da autoria e do ativismo [grifo nosso], caminhando de forma coordenada, seja para pautar temas comuns à experiência negra no Brasil, assim como recuperar autoras e autores, que foram sistematicamente rasurados ou embranquecidos, e este compromisso de (re)elaborar outras representações se intensifica, quando pensamos no lugar ocupado pelas mulheres negras na prosa brasileira. (FELISBERTO, 2007).

Compreendermos que a tríade: autor/editor/leitor move a produção cul-tural, e sustenta o mercado/consumo de livros, por isso, ela é muito importante na formação leitora. Esse tripé, além de fazer reparações, ao longo da história, formaliza espaços para uma nova sistematização de representações da literatura negro-brasileira na atualidade. Contudo, apesar das conquistas apresentadas por Felisberto (2017), e das lutas contínuas contra todos os tipos de racismo e de desvalorização da mulher escritora negra, ainda é comum a ausência de textos dessas mulheres em muitos espaços “ditos” democráticos, a exemplo do LDP (ou na maioria deles); sendo esse, um instrumento de muita importância nas escolas, uma vez que, todos os estudantes têm acesso a ele. Muitas vezes, o manual di-dático será o único livro que o aluno irá ler de modo mais sistematizado, pois é comum os alunos declararem que nunca leram (ou leem) outros livros.

O autor Cuti (pseudônimo de Luiz Silva), em sua obra “Literatura Negro--brasileira”, publicada em 2010, defende que:

[C]erta mordaça em torno da questão racial brasileira vem sendo rasgada, por se-guidas gerações, mas sua fibra é forte, tecida nas instâncias do poder, e a literatura é um dos seus fios que mais oferece resistência, pois, quando vibra, ainda entoa loas às ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando, com seu veneno, o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou indiretamente. (CUTI, 2010, p. 13).

A questão racial está extremamente arraigada nas nossas tramas culturais, apregoada nas mentalidades, principalmente, respaldadas nas instâncias de po-der e de controle, e mesmo com o passar das gerações, ainda há discursos he-

gemonicamente normatizados e opressores, respaldados por posturas coletivas preconceituosamente insistentes. Contudo, a literatura tem ajudado nessa luta, temos visto que ela pode ser um modo eficaz de resistência às ideologias arcaicas de dominação.

Precisamos desnudar as formas de controle e de poder, para sabermos como atuar com mais eficácia. Mas, vemos que essa não é uma tarefa fácil, muito me-nos um processo curto, pois envolve uma conscientização/politização em todas as esferas sociais, o fato é que se deve “[...] criar estratégias de enfrentamento às desigualdades”. (RIBEIRO, 2017, p. 69). Tudo isso pode levar muito tempo, mas promover resistências e contra discursos, em vistas, às normatizações postuladas que são de extrema importância.

Assim, não podemos eximir a escola das suas responsabilidades e posturas éticas. É na escola onde se espera que o aluno seja levado a refletir sobre determi-nados temas e se posicionar criticamente na sociedade. Muito daquilo que o aluno terá a oportunidade de ler e de ouvir, na escola, o afetará em seu movimento de um cidadão atuante, nos espaços que já ocupa (ou poderá vir a ocupar no futuro).

Segundo Cuti (2010):A literatura, pois, precisa de forte antídoto contra o racismo nela entranhado. Os autores nacionais, principalmente os negros-brasileiros, lançaram-se a esse empe-nho, não por ouvir dizer, mas por sentir, por terem experimentado a discriminação em seu aprendizado. (CUTI, 2010, p. 13).

Nesse sentido, as experiências de autoras negras (ou autores negros) devem servir de estratégias à luta contra o racismo. Portanto, o investimento deve cen-trar-se no acesso à literatura de autoras negras-brasileiras, já que é delas que es-tamos tratando, nesse texto. Essas experiências /vivências produz saberes, e esses, como defende Ribeiro (2017, p. 75), “[...] são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”.

Nesse contexto, as plataformas de leitura, que adentram as escolas, sendo essas: livros impressos, revistas, outros meios digitais etc., precisam concretizar-se como um espaço mais democratizado e de acesso fácil. Sabemos que é direto de todo cidadão brasileiro ter acesso ao conhecimento, ao maior número de obras e de textos disponíveis no mundo cultural.

Por isso, todos os autores precisam ser respeitados e reconhecidos pelo seu trabalho, principalmente, as autoras negras que tanto vêm buscando conquistar espaços nas esferas da sociedade, sendo a escola uma delas.

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Ainda de acordo com Cuti (2010): Sob o manto de um silêncio midiático, livros individuais, antologias de poemas, contos e ensaios e obras de referência vêm se somando para revelar um Brasil que se quer negro também no campo da produção literária, pois o país plural se ma-nifesta no entrechoque das ideias e nos intercâmbios de pontos de vista. (CUTI, 2010, p. 13).

É nesse campo da produção literária que o entrecruzamento de pontos de vista, dá a ouvir a multiplicidade de vozes, surgindo outras histórias, outros dis-cursos, outras “identidades” e outros saberes. E, muitas vezes, essas vozes são su-focadas e ignoradas pelo “poder” midiático. Outro ponto a se destacar, é que a mulher está sob o jugo de dois “fardos”; o primeiro, de ser mulher; o segundo, de ser mulher-negra, num país de comportamentos sexistas (como o nosso), mas que também apresenta formas de interseccionalidades5.

Porém, como anda a visibilidade das outras vozes presentes na literatura afro-brasileira? Com relação à essa literatura, a autora Jacqueline Laranja Leal Marcelino (2013), em um artigo intitulado “A voz e a vez do “outro”: as literaturas afro-americana e afro-brasileira, publicado em “Literatura e voz subalterna: anais” (2013), destaca que:

[Q]uanto à literatura afro-brasileira, podemos dizer que esta vem ganhando grada-tivamente visibilidade à custa de muitos esforços, persistência dos autores e autoras negros e, mais recentemente também, devido a incentivos do governo, como a aprovação da Lei 10.639/03 (alterada pela Lei 11.645/08), através da qual o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana passou a ser obrigatório em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. (MAR-CELINO, 2013, p. 123).

Observamos que esse avanço só acontece a custo de muito esforço e per-sistências de autores e autoras negras, como explicita Marcelino (2013). Por mais que haja uma “Lei”, não temos mecanismos para saber se ela está sendo assegura-da e efetivada nas escolas, como garantia dos direitos dos alunos.

Como o livro didático pode ser escolhido pelos professores que vão utilizá--los, é importante analisar e verificar se há textos de autoras negras e se realmente houver esses textos, observar se estão falando com suas vozes, ou se estão apenas nos livros para serem usados como pretexto para outros fins.

5 Léa Mougeolle (2015, s/p) explica que o conceito de “interseccionalidade” foi batizado por Kimberlé Williams Crenshaw, em 1991, sendo definido como: “formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo.”

3. A PARTICIPAÇÃO DO PROFESSOR NA ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO NO BRASIL

A participação do professor é muito relevante na escolha do livro didático. Por isso, apresentaremos, a seguir, de modo sintético o que contribuiu para que o professor fizesse parte desse processo de seleção.

A partir de 1983, quando foi criado a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que incorpora o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF) substituindo a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME), um fato muito significativo desse momento é que, na ocasião, o grupo de trabalho encarregado do exame dos problemas relativos aos livros didáticos propõe a par-ticipação dos professores na escolha dos livros e a ampliação do programa, com a inclusão das demais séries do ensino fundamental.

Em 1985, é editado o decreto 91.542, de 19/08/85, surgindo o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), trazendo mudanças significativas, dentre elas, destacamos: a indicação do livro didático pelo professor, sendo essa uma medida mais democrática. O professor precisa participar desse processo, pois ele também torna-se responsável pela escolha do material didático. Ainda, nesse de-creto, é garantida a abolição do livro descartável.

A distribuição dos livros didáticos é restrita até a quarta série do ensino fundamental, por problemas orçamentários. Em 1995, volta de forma gradativa a universalização da distribuição do livro didático no ensino fundamental, contem-plando as disciplinas de Matemática e Língua portuguesa, em 1996, a disciplina de ciências foi contemplada, e, em 1997, a geografia e a história.

Ainda em 1996, foi publicado o primeiro “Guia de Livros Didáticos”, pro-cedimento que foi aperfeiçoado e vem sendo aplicado até os dia atuais. “Os livros que apresentam erros conceituais, indução a erros, desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo são excluídos do Guia do Livro Didático.” (BRASIL, 2018, s/p)

Até aqui, percebemos que o livro didático é o cerne de uma gama de preo-cupação, que vem de longa data, por isso, a publicação, a edição, a importação e a distribuição são intrínsecas desse rede que regulamentam sua existência. A questão da escolha e da circulação, apontam também o lugar dele na instituição escolar. Lembremos que, muitas vezes, o livro didático se apresenta como único recurso utilizado, na sala de aula, pelo professor.

De 1996 até a atualidade, os documentos relacionados ao livro didático

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sofreram mudanças importantíssimas. Precisamos ter em mente o quanto essa “escolha” participativa de professores é importante.

De acordo com artigo 3º da lei 9394/1996, o ensino deve ser ministrado levando também em consideração a diversidade étnico-racial. Essa é uma grande conquista para nossas autoras negras, sendo assim, não há nada que impeça a publicação de seus textos em livros didáticos, pelo contrário, há uma abertura e uma busca pela valorização desses textos na orientação da legislação brasileira. Por isso, percebemos que não está em jogo, apenas, as orientações dos documentos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ainda entram nessa rede, as editoras e participação dos professores.

Se é possível escolher, por que não questionar? Vejamos, no caso das edi-toras, porque elas têm que obedecer requisitos para a confecção do material di-dático. No caso dos professores, eles têm autonomia para escolher os livros que irão utilizar a cada triênio. Por isso, cabe aos professores questionar os conteúdos, fazer críticas e/ou sugestões às editoras. Assim, os docentes precisam estar atentos às orientações político-pedagógicas.

Todavia, não é só a conscientização do docente que contará na inclusão de autoras negras no manual didático, acreditamos que essas vozes não podem ser silenciadas. Assim, é necessário que haja um enfretamento das “[...] barreiras institucionais que impedem o acesso de vozes dissonantes. Como expressar-se não é um direito garantido a todos e todas, ainda há a necessidade de democratização das mídias e rompimento de um monopólio [...]” (RIBEIRO, 2017, p. 87). Nesse sentido, é necessário que haja um investimento no sentido de fazer uma inserção das “vozes dissonantes”, em diferentes mídias e espaços sociais, ainda, conforme Ribeiro (2017, p. 42) “Crianças negras crescem sem autoestima porque não se veem na TV ou nos livros didáticos”.

5. O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA E A PRE-SENÇA DE AUTORAS NEGRAS: UMA ANÁLISE

Selecionamos como corpus três livros didáticos de Língua portuguesa do 9º ano do ensino fundamental, utilizados em três escolas públicas, da rede estadual do Tocantins. A partir deles propomos uma análise interpretativista, para verificarmos a presença de autoras da literatura afro-brasileira ou afrodescente brasileira.

5.1. LIVRO 1: UNIVERSOS: LÍNGUA PORTUGUESA, 9º ANO: ANOS FINAIS: ENSINO FUNDAMENTAL.

O livro “Universos: língua portuguesa, 9º ano: anos finais do ensino fun-damental, organizado por Camila Sequetto Pereira; Fernanda Pinheiro Barros e Luciana Mariz (2015), é composto por quatro unidades. A UNIDADE 1 é composta por 3 capítulos e traz o seguinte tema: EU (NÃO) SAIO DOS PA-DRÕES (p.12), e apresenta uma sequência de textos, cujo tema principal gira em torno de discursos relacionados a movimentos estudantis. O capítulo 1: “Todo mundo odeia falsas promessas”, é composto por textos de alunos da mesma idade dos estudantes que utilizam o livro didático. Notamos, que não há textos de alunas, apenas, de alunos.

O capítulo 2, intitulado: “A poesia na boca do povo”, aparecem letras de canções (referendadas como “Canções de protesto”, (p.39), de músicos e com-positores relevantes na nossa cultura: sendo eles: Antônio Carlos Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque e Renato Russo. O capítulo 3: “Um exercício de cidada-nia”, destaca os manifestos brasileiros: a saber: a antropofagia modernista, o rock dos anos 1980, o movimento punk, o Tribalismo (p .42). Esse capítulo apresenta, ainda, dois encartes, escritos por Marina Lima e Antônio Cícero. Observamos que, nessa primeira unidade, não aparece nenhum texto de autoras negras, e a única mulher em destaque, é a cantora Marina Lima.

A UNIDADE 2 traz o tema: O MOVIMENTO DO OLHAR, (p.58), e apresenta os gêneros crônicas e poesia. Nessa unidade, encontramos uma crônica de Clarice Lispector, intitulada “Medo da eternidade” (p.62), e outra de Maitê Proença, “Gente boa” (p.66). Observamos que no espaço destinado às crônicas, encontramos duas autoras, mas, nenhuma é negra ou afrodescendente. No espaço destinado ao gênero poesia, encontramos poemas de Carlos Drummond de An-drade, de Augusto dos Anjos e de Vinicius de Moraes.

A UNIDADE 3, esse capítulo tem como tema: “VAI ROLAR A FESTA, (p.104), e a proposta é trabalhar com os gêneros: reportagem, discurso de forma-tura e texto enciclopédico. Essa unidade trata de assuntos, tais como: a vaquejada e o frevo, ou seja, determinadas manifestações que fazem parte da nossa cultura. Nessa unidade, também não há a presença de textos de autoras negras, ou afro--brasileiras, ou afrodescentes. Ainda, no capítulo nove, que tem como título “Tem raça de toda fé” (p.144), aborda temas como, festas populares, religiosas e instru-mentos musicais de origem africana. Todavia, ressaltamos ser lamentável a ausên-cia de escritoras negras, pois como voltar-se à cultura brasileira sem mencionar nossas autoras? Tudo isso, deixa nossa história capenga e cheia de ideologias de exclusão e de sexismo. O negro mais uma vez, aparece como atração turística?

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A UNIDADE 4, intitula-se “FAZENDO ESCOLA” (p.166), e os capítu-los desta unidade apresenta contos, reportagens e artigo de opinião. Nessa uni-dade, o aluno tem a oportunidade de estudar e discutir a convivência na escola, as relações entre indivíduo e a sociedade, e os tipos de laços familiares. Os textos que compõem esta unidade são predominantemente de autores consagrados pelo cânone, a exemplo de Machado de Assis e de Rubem Fonseca.

Contudo, se faz necessário constar que no capítulo 12, intitulado “A opi-nião que vem da aldeia” (p.202), encontramos um texto de Daniel Munduruku, intitulado “A milenar arte de educar dos povos” (p.204). Lembremos que Mun-duruku é um escritor indígena, e como tal, também faz parte das “ditas” minorias, que segue lutando pelo reconhecimento de seus trabalhos, assim como o fazem as autoras negras ou afro-brasileiras.

Finalizando a análise-crítica desse manual didático de português, verifica-mos que não há textos de autoras negras. Então, como fica a literatura afro-bra-sileira no que toca as orientações dos documentos oficiais? Por que essas autoras negras não estão ocupando espaço na produção de livros didáticos, no Brasil? Por que as nossas escritoras negras ainda estão sendo invisibilizada na educação? O que fica destacado, nesse manual didático, é a predominância de textos clássicos de autoria masculina.

5.2. LIVRO 3: PORTUGUÊS LINGUAGENS, 9º ANOO livro didático Português linguagens, 9º ano, de Willian Roberto Cereja e

Thereza Cochar Magalhães (2015), é composto por quatro unidades, cada unidade contém três textos. A UNIDADE 1 traz o título “CAIA NA REDE! (p. 10). Essa unidade aborda a questão da tecnologia relacionada ao registro de si, por meio de fo-tografias: “selfies”, e o gênero textual estudado é da reportagem. Também aparecem poetas como, Vinícius de Moraes, Elias José, Mário Quintana e Roseana Murray, mas o foco é estudar questões gramaticais. Ao término dessa unidade, verificamos que aparece, apenas, um texto da escritora brasileira Roseana Murray, na página 27.

A UNIDADE 2 aborda o tema “AMOR” (p. 68), e o gênero estudado é o conto. Aparecem os contos: “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector (p. 70) e “Menino”, de Lygia Fagundes Telles (p. 77). Além desses dois contos, que apa-recem no Capítulo 1, verificamos que há dois poemas; um, de Sérgio Capparelli; outro, de Carlos Drummond de Andrade.

O capítulo 2, inicia-se com um poema de Vinícius de Morais, depois temos um conto de Moacyr Scliar. O capítulo 3, inicia-se com uma crônica de Walcyr

Carrasco. Em seguida, encontramos um conto de Ignácio Loyola Brandão, e ain-da um poema de Carlos Drummond de Andrade.

A UNIDADE 3, trata do tema “SER JOVEM”, (p. 128). O texto de aber-tura do Capítulo 1, é um poema de Carlos Queiroz Telles. Em seguida, nos de-paramos com outro texto de Walcyr Carrasco, depois, mais a frente, aparece um texto de Artur de Távola. Esse capítulo ainda traz algumas notícias relacionadas ao uso do celular, por estudantes. Ainda vemos, nesse capítulo, poemas de Luís de Camões, de Vinícius de Morais e de Paulo Paes.

O capítulo 2, é composto por direcionamentos para o gênero “Debate”, esse traz notícias e estatísticas sobre várias polêmicas envolvendo a adolescência. E, com intuito de trabalhar questões gramaticais encontramos poemas de Roseana Murray e de Chacal.

O capítulo 3, inicia-se com um texto de Paulo Mendes Campos. Logo em seguida, na página 183, é apresentado um “artigo de opinião” extraído de uma página da internet.

Na UNIDADE 4, aborda o tem “NOSSO TEMPO” (p. 202). Encontra-mos logo no início, do primeiro capítulo, uma poesia de Ulisses Tavares. Depois, uma crônica de Fernando Sabino, e, outra, de Marina Colasanti.

O capítulo 1 propõe a produção de um texto dissertativo argumentativo, e para exemplificar o gênero, tem-se um texto de Aldebaran L. do Prado Junior p. 210). Destacamos que, da página 212 a 214, aparecem textos que abordam ques-tões de racismo, sendo todos extraídos da rede (internet) e com o intuito de levar a aluno à produção de textos dissertativos. O capítulo finaliza com um poema de Carlos Rennó (p. 224), voltado às questões gramaticais.

O capítulo 2, é composto por textos informativos, com temas de precon-ceito e de intolerância, e retirados de sites da internet. No início do capítulo 3, encontramos uma crônica de Ignácio de Loyola Brandão. O capítulo encerra com o poema “pronominais”, de Oswald de Andrade, que é utilizado para se trabalhar a colocação pronominal na construção do texto. Portanto, assim como os demais livros didáticos, não temos nenhuma autora negra, ou seja, não é oferecido ao aluno nenhum texto da literatura afro-brasileira ou afrodescendente.

5.3. LIVRO 2: PARA VIVER JUNTOS: PORTUGUÊS, 9º ANO: ANOS FINAIS: ENSINO FUNDAMENTAL

O livro didático “Para viver juntos: português, 9º ano: anos finais: ensi-no fundamental”, organizado Greta Marchetti, Heidi Strecker e Mirella L. Cleto

ELianE CriSTina TESTa E EDiLEuza BaTiSTa DE arauJo 195

196 a PrESEnÇa DE TEXToS DE auToraS nEGraS no Livro DiDáTiCo DE LínGua PorTuGuESa

(2015), destaca que se deve considerar os conhecimentos prévios dos alunos. Os textos literários são apresentados com a biografia dos autores, para dar condições de alunos e de professores ampliar suas bagagens culturais.

Esse livro não é dividido em unidades como os livros anteriores analisado, nessa seção. Ele é dividido em capítulos e contempla os seguintes gêneros textuais, sendo eles: contos, crônicas, artigo de divulgação científica, texto dramático, arti-go de opinião, resenha crítica e anúncio publicitário.

Analisando o sumário (p. 8-9), percebemos um fato interessante: cada ca-pítulo apresenta dois textos, e como são nove capítulos, ao todo temos dezoito textos. Dos dezoito textos, apenas dois, são de autoras, a saber: “Restos do carnaval, “de Clarice Lispector (p. 12) e “Com certeza tenho amor”, de Marina Colasanti (p. 62); ambos do gênero conto. Não estamos questionando a seleção dos textos ou das autoras, mas antes, estamos problematizando a ausência de escritoras negras ou afro-brasileiras, no LDP, pois é isso que nos inquieta e nos faz refletir sobre a falta de democratização dos saberes.

Nesse livro didático, a predominância também é de autores consagrados no cânone nacional, como nos outros dois livros analisados.

CONSIDERAÇÕES FINAISPor meio deste trabalho, constatamos uma total ausência de textos de au-

toras negras brasileiras, nos livros de didáticos de língua portuguesa do 9º ano, do ensino fundamental, adotados por três escolas diferentes da rede estadual de ensino do Tocantins. O que também reflete contundentemente que esses livros em questão não estão considerando a pluralidade e a diversidade da produção li-terária nacional. Como muito bem alerta Ribeiro (2018, p. 78) “Nada é isento de ideologia”. Além disso, como fica a inserção da lei 10 639, que obriga a inclusão do ensino da história africana e afro-brasileira na escola, se o próprio material di-dático não traz essa representação respeitando, desse modo, as garantias de direito.

As autoras negras não tiveram espaço nesses LDP, o que gera uma negação às possibilidade de transcendência social. Como queremos criar um encontro de vozes se não descolonizarmos as ideologias dominantes e excludentes?

Para nós, todas e todos, avançarmos no processo de humanização o papel ativo e ético da escola é fundamental. Por isso, a importância do material didático não pode ser desconsiderado, ele não é um material qualquer e está impregnado de ideologia. Temos que nos atender que o LDP pode sim ajudar a desconstruir a

invisibilidade e a ausência de vozes de autoras negras (que não são, apenas, vozes literárias são políticas também). Por isso, descolonizar o conhecimento com es-tratégias de uma maior democratização da produção cultural, é valorizar o lugar de fala das autoras negras e fazer com suas vozes ressoem cada vez mais para criar uma não-hierarquização de saberes.

ELianE CriSTina TESTa E EDiLEuza BaTiSTa DE arauJo 197

BRUXAS, ADÚLTERAS E PROSTITUTAS: A MULHER NA LITERATURA CLÁSSICA E A MARCA DOS ESTEREÓTIPOS

Ediliane Lopes Leite de Figueiredo1

A literatura apresenta uma indissociável relação com a sociedade, na média em que absorve e expressa as condições do contexto em que é produzida, evi-denciando, nesse sentido, as variações ou mudanças que se revelam ao longo do tempo. Desse modo, a literatura pode ser utilizada como meio para se discutir a complexidade da nossa experiência, histórica social e político-jurídica.

A literatura mais que retratar, descrever ou documentar uma determinada época, não só questiona valores e ideologias, mas também pode salvaguardá-los, permitindo uma análise mais profunda da vertente social e político-jurídica de um lugar, de um continente, em uma determinada época. A arte literária pode então, ser uma expressão da sociedade, uma fonte de interpretação de fatos sociais gerados pelas relações humanas. Como parte da cultura, revela padrões sociais, mudanças, progresso. O escritor pode transformar o que por ele passa, combina-do a realidade que absorve com a própria percepção, devolvendo assim ao mundo uma interpretação própria e subjetiva.

Nas palavras de Bernardo (2010, p. 224) a literatura não reproduz o real, mas, “antes, levanta graves suspeitas sobre tudo aquilo que chamamos de reali-dade”, que fluem em forma de ponto de interrogação antes de acontecer como pergunta. No dizer de Queiroz (1996, p. 13), “a literatura não copia a realidade. Como copiá-la se nem realidade é? Se tudo o que se vê resulta de um complicado processo de reelaboração em constante devenir.”

Por essa singra, pode-se dizer que a literatura contribui para instigar o ho-mem, enquanto sujeito social, a uma maior compreensão do mundo e de sua própria história. A literatura ao nos inquietar tira-nos da alienação imposta pela sociedade e, ao mesmo tempo, ocupa seu espaço como prática cultural, colocan-do-se não apenas como objeto de conhecimento, mas de questionamentos.

1 Graduada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre e Doutora em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI - UEPB), na área de concentração Literatura e Estudos Culturais. Pesquisadora dos estudos jusliterários - Coordenadora da linha de pesquisa Estudos Culturais Direito e Literatura do GESPI – Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual. Professora de Hermenêutica Jurídica e de Linguagem e Argumentação Jurídica no Centro Universitário UNIFACISA. E-mail: [email protected]

200 BruXaS, aDúLTEraS E ProSTiTuTaS: a muLHEr na LiTEraTura CLáSSiCa E a marCa DoS ESTErEÓTiPoS

Isso nos conduz a olhar a literatura como um meio transmissor de infor-mações, cuja função social é facilitar a compreensão de conflitos, em sua plurali-dade e diversidade e, assim, emancipar-se dos dogmas que a sociedade lhe impõe. Nesse sentido, Facini assinala: “a literatura não é espelho do mundo social, mas parte constitutiva desse mundo. Analisar visões de mundo e ideias transformados em textos literários supõe investigar as condições de sua produção, situando seus autores histórica e socialmente”. (FACINI 2004, p.25).

Há muito, a literatura, além de exercer fascínio, desempenha papel políti-co-pedagógico. Já na Grécia antiga, a tragédia figurava entre os “instrumentos” dos quais os legisladores e administradores da pólis se utilizavam para amenizar as contradições na sociedade e para comandar a nova estrutura que se organizava baseada na “Democracia”. Ilustrando a importância desse gênero literário como instrumento político, Hauser ( 1990, p. 24 ) define-o como “a criação de arte mais característica da democracia ateniense e, em nenhuma outra forma de arte se discernem, tão direto e tão claramente como nela, os conflitos internos de sua estrutura social.”

A literatura se apresenta como ideologia política, quando se percebe a inclusão de algumas vozes - ou de representantes delas -, silenciadas através da História, como, por exemplo, a mulher, os pobres, os negros, as crianças, os homossexuais, entre outros grupos, que há centenas de anos lutam para serem ou-vidos e, consequentemente, por direitos no mundo branco, adulto e masculino.

2. A LITERATURA CLÁSSICA E OS ESTEREÓTIPOS FEMININOS Dentre as múltiplas vozes silenciadas, ao longo dos séculos, evidencia-se o

silêncio feminino, isso se deve, em parte, pela ideia preconcebida de naturaliza-ção da condição feminina como inferior ao homem. Essa política foi advogada, segundo Nye (1995), por pensadores influentes, a exemplo de John Locke, ao de-fender que o lugar da mulher era no lar e que elas estavam constritas, pela nature-za, à sujeição. David Hume, defensor das virtudes da solidariedade e ligação com o sofrimento alheio, dizia que os homens eram os chefes naturais do lar. Ainda Madame de Staël e Rousseau ensinavam que a natureza das mulheres determinava seus destinos e elas não deveriam ir contra ele.

Nesse contexto de expressão, a literatura pode ser vista como um veículo, através do qual se pode visualizar os pressupostos históricos, socioculturais e legais em relação às mulheres - o seu estatuto, seus papéis, as suas expectativas - em um dado período, em determinadas sociedades. Nesse sentido, observa-se que, cultu-

EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 201

ralmente, as mulheres são vistas de forma contraditória. Quer seja na literatura lírica, épica e dramática, a mulher atravessou milênios no papel de musa. Muitas vezes, representada no papel de submissa ou traidora, como a bíblica Dalila; de transgressora, como Joana D´Arc, cujo maior delito teria sido travestir-se de ho-mem numa época em que se proibia as mulheres, inclusive, de morrer pela pátria.

Contata-se que o ser mulher é representado pelo mais diversos estereóti-pos, por vezes, de cunho supostamente positivo - como mãe, esposa, solteirona, submissa, rainha do lar, anjo do lar; por vezes, de aspectos claramente negativos, tais como: prostituta, feiticeira, demônio - Eva, Lilith, dentre outras imagens.

Na literatura inglesa, as bruxas Shakespearianas - mulher feiticeira, “sím-bolo pedagógico” para amedrontar homens e mulheres, com a finalidade de con-vencionar padrões sociais - protagonizam os textos ficcionais. Segundo Bonnici (2003), dentre algumas feiticeiras famosas do legado Shakespeariano, destacam--se: Cleópatra, Sycorax, Tamora e Macbeth.

Em Antonio e Cleópatra (1623), Cleópatra é uma mulher encantadora, ser-pente, bruxa e cigana errante que vai além dos confins da sociedade civilizada, em oposição à Sycorax, a velha e poderosa bruxa mãe de Caliban, em The Tempest (1611). Sycorax fora anulada discursivamente da peça The Tempest, mas acusada por Próspero de gerar Caliban com o demônio, isto é, sua abordagem sexual vil é enfatizada na sua caracterização. Contudo, é Sycorax que ensina seu filho Cali-ban, as artes mágicas, em especial, a amaldiçoar, e este o faz mais tarde praguejan-do contra Próspero, seu mestre colonizador.

Em Titus Andronicus (1590), Tamora, a rainha do godos, é uma bruxa sen-sual e sádica, a principal vilã, assume uma nova posição como rainha dos romanos para se vingar do protagonista Titus. Para isso, não usa dotes de feiticeira, mas estratégias políticas, mesmo esbanjando sensualidade e beleza.

No entanto, será em Macbeth (1603) que Shakespeare mostrará as bruxas desempenhando papéis semelhantes aos dos oráculos gregos – criando um destino para os protagonistas. Amargadas ao silêncio, por serem feias, velhas e feiticeiras perversas, as três bruxas desta tragédia inglesa são símbolos metonímicos das mu-lheres anuladas, que quando feridas assumem discursos patriarcais – no caso – o controle. (BONNICI (2003, p.p 89-106)

Cleo patra, Tamora, Sycorax, as três bruxas - Lady Macbeth, Alice Arden - e outras, são figuras literárias rechaçadas ao silêncio, mas que, ao subverterem tal lei, tornam-se a imagem mais temida na sociedade inglesa daquela época – a bruxa.

202 BruXaS, aDúLTEraS E ProSTiTuTaS: a muLHEr na LiTEraTura CLáSSiCa E a marCa DoS ESTErEÓTiPoS

Ainda na literatura ocidental, os capítulos de muitos clássicos são ocupa-dos pela figuras de mulheres adúlteras e, consequentemente, da não absolvição para esse pecado, quase sempre punido com a “pena capital”. Como não se lembrar das personagens emblemáticas, Emma Bovary (a Madame Bovary, de Flaubert), que desprezada pela família e amigos se envenena e tem uma morte lenta e horrível; Luísa (do Primo Basílio, de Eça de Queiroz), chantageada pela criada e desmascarada, adoece e não resiste à morte; Anna Karenina (do romance homônimo de Tolstoi) , uma mulher que por causa de seu caráter apaixonado e de seu medo de não ser mais amada, toma atitudes desesperadas que culminam em suicídio; e ainda de Hester Prynne (da The Scarlet Letter, de Nathaniel Ha-wthorne), presa, submetida à execração pública, condenada a usar letra “A”, de cor escarlate, bordada em suas vestes, na altura do peito, funcionando como uma espécie de crachá vergonhoso, bem à vista de todos.

Aqui, entre nós, destacamos Capitu (da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis), aquela de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, descrição da pertur-bada mente do ciumento e possessivo marido Bentinho, o Casmurro. Bentinho enxerga no filho a figura do amigo falecido e fica convencido de que fora traído pela mulher. Capitu lamenta pelo ciúme do marido, que, segundo ela, fora despertado pela casualidade da semelhança. Capitu não escapa da condenação de Bentinho, tão pouco do final trágico, morre no exterior.

O princípio de “in dubio pro reo” - em dúvida pró réu - sequer foi usado como atenuante para Capitu e ela foi posta no “banco dos réus”, primeiro por Bentinho, depois, por alguns docentes e críticos da elite barbada de algumas academias, que custam a enxergá-la além da imagem da adúltera refletida pelo olhar de Bentinho.

A figura da mulher prostituta também é amplamente difundida na literatu-ra do ocidente. Trazemos à lembrança a marcante Naná, da obra homônima de Zola. Nela a figura da prostituta é tratada como uma caricatura, que, de um ponto a outro, pode ser a mais sublimes das sedutoras ou se tornar a mais desagradável e obesa das marafonas. Uma mulher temperamental, com súbitos ataques de fúria e frustração seguidos de breves enternecimentos sinceros, que vai da prostituta de luxo à meretriz pobre acometida e morta pela varíola.

A prostituta Lucíola, da também obra homônima de José de Alencar, é marcada pela inscrição dupla de ser prostituta e santa. Na protagonista, existem simultaneamente duas pessoas: Maria da Glória, uma menina simples, doce, in-gênua; e Lúcia, uma prostituta extravagante e sedutora. Essa ambiguidade mostra

EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 203

uma dualidade de caráter, apresentando desse modo a capacidade de colocá-la ora como anjo, ora como demônio. Lúcia sofreu um aborto e faleceu de infecção, acreditando que a doença era devido ao fato de seu corpo não ser puro.

Cada um desses autores clássicos tratou de confrontar aquilo que lhe inte-ressava, dentro dos seus planos estéticos ou ideológicos. No entanto, fica patente uma certa dose de sombrio realismo. A morte se torna sempre uma solução dolo-rosa, mas inevitável. A mulher, nesse sentido, naquele momento, carrega o peso de ser um dos tesouros mais facilmente decomponível ao olhar analítico de uma ficção que quer, ávida, debruçar-se sobre o único objeto que ela acredita conhecer por meio de uma ilusória força de uma maior descrição psicológica.

Percebe-se que, na considerada alta literatura, as mulheres que teimam em desafiar os padrões sexuais, políticos, religiosos e morais, de uma eli te de barbas, acabam sendo queimadas, mortas e anuladas, ou seja, transformadas em arquéti-pos a não serem seguidos. No entanto, essas mulheres sempre tiveram público ou-vinte, mesmo vilipendiadas e anuladas discursivamente. Julgadas pelos tribunais eclesiásticos e pelos tribunais morais, tornaram-se experiências grandiosas no que tange à ‘fala’ e ganharam o merecido destaque de protagonistas, graças a outro público ouvinte, a leitora/a escritora.

Esse fenômeno acontece quando a (re)orientação da história das mulheres passa por uma perspectiva crítica transversal, o feminismo como teoria crítica. Se-gundo Zolin (2009), o feminismo, como movimento político e sociocultural, que abarca reformas culturais, econômicas e acadêmicas no sentido de reformar prati-cas legais e sociais, abraça também o modo de ler e fazer o texto literário feminino.

Ainda conforme as ideias de Zolim (2009), considerando as circunstâncias sócio-históricas como fatores determinantes na produção da literatura, uma série de crítico(as) feministas tem promovido, desde a década de 1970, debates acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem como das consequências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito literário. Uma vez analisados de forma ampla, esses debates têm como objetivo a transformação da condição da mulher subjugada. Eles se constituem em uma maneira de romper com discursos sacrali-zados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela sub-missão e pela resignação.

Entre outros aspectos importantes, a crítica feminista trouxe a possibili-dade de novas leituras de obras literárias, independentemente da autoria, con-siderando o ponto de vista feminino. Essas novas leituras vêm contribuindo, de

204 BruXaS, aDúLTEraS E ProSTiTuTaS: a muLHEr na LiTEraTura CLáSSiCa E a marCa DoS ESTErEÓTiPoS

maneira significativa, para a escrita de uma nova história da literatura, utilizan-do como signo maior os estudos de gênero.

Nessa esteira, seria possível dizer que a literatura é utilizada como “chave de leitura” de gênero, como recurso “político-pedagógico”, para (re) interpretar a realidade. A partir das manifestações do feminismo e das estratégias oriundas das teorias feministas se inicia o processo de reversão e de desconstrução desses diferentes “papéis sociais” destinados à mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAISÀ guisa da discussão ventilada nesse ensaio, constata-se que a literatura ma-

nifesta-se, muitas vezes, como instrumento crítico da realidade, proporcionando a reflexão sobre questões que são silenciadas pela história dita oficial. Nesse trabalho, observa-se a importância de conhecer a literatura, pelo seu viés social e político-jurí-dico, observando-se essa produção numa visão diacrônica e sincrônica.

A lacônica apresentação dos estereótipos femininos em obras da literatura clássica, evidencia que, na atualidade, a leitura desses textos literários tomando como requisitos os conceitos operativos postos pela crítica feminista, entre outros - feminino, patriarcalismo, desconstrução alteridade, mulher-sujeito e mulher objeto – implica na investigação do modo pelo qual tal texto está marcado pela diferença de gênero, num processo de desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover mudanças de mentalidades e, ainda, divulgar posturas críticas por parte do(as) escritores(as) em relação às convenções sociais que, historicamen-te, têm aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos.

Dessa forma, a bruxa, a adúltera, a prostituta, a rainha do lar, saem das páginas literárias são re-vistas e suas imagens, aos poucos, vão sendo (re) pen-sadas, novos olhares são lançados para o universo feminino e a mulher paulati-namente vai absorven do outro papel: o da mulher atuante, resistente e agente do próprio discurso.

O OLHAR E O OBSERVAR EM CAPITU

Paulo Silas Taporosky Filho1

Larissa Zucco Iarrocheski2

“Não me olha assim que te jogo o coração na cara.” Eveline Sin

DA CONSTITUIÇÃO DO OLHAR EM SUAS VERTENTESCélebre personagem literária, quiçá tão conhecida quanto o seu próprio

autor, Capitu desperta paixões, emoções e sentimentos em geral que dão ensejo à diversas reflexões que não se situam apenas no campo da literatura. As possibi-lidades de abordagem sobre a notória personagem vão além do campo da crítica literária. Os efeitos da constituição do seu ser superam os limites gramaticais, rompendo com os grilhões da tinta sobre o papel dos livros que mantém grande parte dos personagens literários cativos.

É um feito notório, digno de caricatos da literatura (autores e personagens), superar o ambiente no qual se situa o leitor e a história lida. Alguns tantos vão além desse local em que leitor e livro estão situados, num liame que acaba por também abarcar o autor, tendo-se assim um círculo literário de prestígio. Mas o filtro é ainda mais estreito para se alcançar um patamar maior – o dos eternos. É como Stephen King diz ao organizar os escritores e escritoras numa pirâmide em que se pode ver as áreas do talento humano e da criatividade:

Na base ficam os ruins. Acima deles está um grupo um pouco menor, mas ainda grande e acolhedor: os escritores competentes. [...] O próximo nível é bem menor. São escritores bons de verdade. Acima deles – acima de quase todos nós – pairam os Shakespeares, Faulkners, Yeatses, Shaws e Eudora Weltys. São gênios, acidentes divinos, com um talento que está além de nossa capacidade de compreensão, ab-solutamente fora de alcance.3

Estar no topo dessa pirâmide é o caso de Machado de Assis, escritor cuja apresentação é dispensável diante de toda a sua notoriedade, que eternizou de

1 Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Professor de Processo Penal e Crimino-logia na Universidade do Contestado (UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; E-mail: [email protected]

2 Acadêmica de psicologia na Universidade do Contestado (UnC); E-mail: [email protected] 3 KING, Stephen. Sobre a Escrita. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 123-124

206 o oLHar E o oBSErvar Em CaPiTu

igual forma a sua Capitu, personagem digna de toda a admiração e louvor que recebe destaque na obra Dom Casmurro, não só pelos seus apontados olhos de “cigana oblíqua e dissimulada”, mas pelo seu esplendor de feminilidade.

Ao se falar em feminilidade, dialogando-se sobre o feminino, abrem-se as portas para se aventurar a falar brevemente sobre alguns traços da obra de Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicanalista, fundador da Psicologia Ana-lítica e grande estudioso das mais diversas áreas, como alquimia, filosofia, an-tropologia, mitologia, simbologia, religião, teologia, física quântica, etc, as quais complementam valiosamente seus conceitos analíticos. Um dos pontos de mais destaque na teoria do autor é justamente as definições de inconsciente as quais complementam outros fatores tendo como base as duas camadas no inconsciente, descritas pelo próprio da seguinte forma:

Afora as recordações pessoais, existem, em cada indivíduo, as grandes imagens “primordiais”, como foram designadas acertadamente por Jakob Burckhart, ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios. Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo surpreendente, de alguns te-mas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas, além de explicar por que os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações que conhecemos dos textos antigos. [...] Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias; hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente. [...] trata-se da cama-da mais profunda do inconsciente, onde jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias. Essas imagens ou motivos, denominei-os arquétipos [...] a caracterização de duas camadas no inconsciente. Temos que distinguir o inconscien-te pessoal do inconsciente impessoal ou suprapessoal. Chamamos este último de inconsciente coletivo. 4

Dessa forma, é possível entender, através do pensamento junguiano, o que se denomina como inconsciente coletivo, a saber, a representatividade da parte objeti-va do psiquismo, ou seja, ele não possui vinculo ativo com o lado pessoal do indiví-duo, tornando-se de cunho universal. Já o inconsciente pessoal volta-se para a parte subjetiva, ou seja, lembranças perdidas, reprimidas, evocações dolorosas e memórias propositalmente esquecidas, as quais não ultrapassam o limiar da consciência, seja por motivos de falta de intensidade ou por falta de amadurecimento, e que em al-gum momento aparecerão em sonhos através da sombra (parte negativa da persona-lidade, ocultas e desfavoráveis, mal resolvidas relacionadas ao inconsciente pessoal).

Jung pontua que todos os seres humanos possuem características femininas/masculinas em sua personalidade - as quais serão de grande valia para descrição

4 JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 76-77

PauLo SiLaS TaPoroSKY FiLHo E LariSSa zuCCo iarroCHESKi 207

das personagens Capitu e Bentinho. Dessa forma, Jung traz que os traços femi-ninos na estrutura da personalidade masculina são denominados como anima e os traços masculinos na personalidade feminina são denominados como animus.

A mulher, com sua psicologia tão diversa da psicologia masculina, é e sempre foi uma fonte de informação sobre as coisas que o homem nem mesmo vê. É capaz de inspirá-lo em sua capacidade intuitiva [...] adverti-lo convenientemente [...] além da influência da mulher, o caráter feminino inerente ao homem esclarece a feminilidade do complexo anímico. [...] Há uma imagem coletiva da mulher no inconsciente do homem, com o auxílio da qual ele pode compreender a natureza da mulher. [...] A anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. [...] O mais importante e interessante para a mulher é o âmbito das relações pessoais, passando para o segundo plano os fatos objetivos e suas inter-relações. O vasto campo do comércio, da política, da tecno-logia, da ciência, enfim todo o reino do espírito utilitário aplicado do homem é relegado a penumbra da consciência feminina; Por seu lado, ela desenvolve uma consciência ampla das relações pessoais, cujas nuanças infinitas em geral escapam à perspicácia masculina.5

Procura-se através deste identificar de maneira simples o confronto presente dentro da estrutura psíquica. Assim sendo, a anima irá produzir caprichos advin-dos de um fundo obscuro, enquanto o animus irá produzir opiniões, provindas de pressupostos apriorísticos inconscientes.

Jung também estudou a fundo a mitologia, de modo que grande parte de seus conceitos utilizam como base os mitos, os quais podem ser considerados imortais, frente à ideia de que ao longo dos anos eles vem sendo reproduzidos de diferentes formas, com diferentes histórias, encantando e assombrando a existên-cia humana.

Os mitos podem ser traduzidos como grandes fontes de insights, tendo sido muito utilizados por Jung para despertar de fato os insights em seus pacientes, fazendo parte do inconsciente coletivo no qual se fez a construção dos arquétipos. Dessa forma, entende-se que:

Os mitos são ricas fontes de insight psicológicos [...] são produtos de uma imagi-nação coletiva, são experiências de toda uma era, de toda uma cultura. [...] Mitos, portanto, retrataram imagens coletivas, mostram coisas que são verdadeiras para todos os homens. [...] Um mito pode ser uma fantasia, pode ser produto de ima-ginação, todavia é verdadeiro e real. Ele descreve níveis de realidade que incluem o mundo racional exterior, assim como o incompreensível mundo interior da psique

5 JUNG, Carl Gustav. O eu e o Inconsciente. 27ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 78-102

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de cada indivíduo. [...] Um mito é produto de imaginação coletiva e não produto de desenvolvimento científico ou racional, e é profundamente real. Por causa de sua forma de se desenvolver através de anos e anos e de ser recontado e aperfeiçoa-do por um número incalculável de pessoas, ele carrega um poderoso significado coletivo. Os mitos foram alvo de estudos de muitos psicólogos como C. G. Jung, por exemplo, que ao estudar as bases estruturais da personalidade humana, soube dar atenção particular a eles. [...] Jung, num de seus mais profundos insights, mos-trou que, como geneticamente todo homem tem cromossomos e hormônios reces-sivos femininos, todo homem tem, por isso mesmo, um conjunto de características psicológicas femininas, que se constituem num elemento minoritário dentro dele. Da mesma forma, a mulher tem um componente masculino minoritário dentro dela. O lado feminino no homem Jung chamou-o de anima, e o lado masculino na mulher, animus.6

Assim, pela forma que se observa a presença dos mitos, Capitu pode ser vis-ta tendo como referência Afrodite – uma divindade arcaica da feminilidade, que nasceu do mar e esse é o seu lar. Traduzindo para termos psicanalíticos, Afrodite é banhada de águas oceânicas, essas que retratam as profundidades do inconsciente. Suas principais representações são a vaidade, a luxuria, a sensualidade e a tirania. A história retrata que a deusa carrega sempre consigo um espelho para admirar-se, dispondo sua imagem e beleza prontos para serem cortejados.

Quando, finalmente, a mulher alcança seu desenvolvimento pleno e descobre que é uma deusa, dá à luz um elemento de prazer, alegria ou êxtase. Creio que o co-roamento da realização feminina é ser capaz de levar essas qualidades para a sua vida. O homem valoriza tanto a mulher justamente por causa dessa capacidade ou poder. Ele não consegue encontrar o êxtase sozinho, sem a ajuda do elemento feminino, que pode ser encontrado tanto na mulher interior, quanto na exterior. A alegria é uma dádiva que brota o coração da mulher. 7

Dessa forma, vê-se Capitu desde pequena como vaidosa, encantadora, bela, destemida, envolvente e que chamava atenção de todos (“como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois;”8) e que durante a história torna-se repleta de paixão e sensualidade, prin-cipalmente ao olhos de Bentinho e que pelos mesmos olhos à condenam: “cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser

6 JOHNSON, Robert A. SHE: a chave do entendimento da psicologia feminina: uma interpretação base-adanomitodeErosePsiquê,usandoconceitospsicológicosJunguianos. São Paulo: Editora Mercuryo, 1987. p. 7-8

7 JOHNSON, Robert A. SHE: a chave do entendimento da psicologia feminina: uma interpretação base-adanomitodeErosePsiquê,usandoconceitospsicológicosJunguianos. São Paulo: Editora Mercuryo, 1987. p. 92

8 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 34

vista, e o meio mais próprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê”9

Um importante aspecto observável em Capitu é a questão do olhar. Ah, os olhos oblíquos de Capitu – que cativam, que prendem, que encantam, que arran-cam suspiros. É o seu olhar dissimulado, segundo o narrador que a constitui, que se firma como mote para o presente ensaio.

O olhar é gênero e ao mesmo tempo espécie. Enquanto base, é premissa para diferentes formas de olhar. Enquanto topo, é uma dessas diferentes formas possíveis de se olhar. Elencam-se aqui duas dessas divisões possíveis: o olhar e o observar.

O olhar está para a visão despretensiosa. O olhar surge quando se foca num determinado ponto, mas a mente viaja em local distante. O olhar está presente quando a visão é direcionada para um certo lugar, mas não se busca captar algo para além do aparente. A casca para a qual se olha basta para a ocasião do olhar. Não se intenciona ver o interior ou se atentar para questões além daquelas que o foco que é ajustado pela córnea estabelece. O aparente basta para o olhar. Se olha para algo que some da mente pouco tempo depois. Os olhos olham quando o objeto visto é passageiro, quando a coisa se esvai no ar, quando o registro é mera-mente aparente, quando a atenção concreta não é digna, quando questão não se faz, quando o pensar é volátil.

Já o observar é um olhar muito mais profundo. É quando a máxima ‘os olhos constituem a janela da alma’ passa a fazer sentido. A visão do observar busca sempre um algo além. A mente trabalha em conjunto com o ponto central da retina, buscando superar as percepções aparentes. O visível é um meramente para o observar, pois há uma pretensão latente que se almeja conquistar com grande êxito. Os detalhes vistos recebem ares de importância, as pequenices são percebidas, os pormenores recebem destaque no campo visual e o próprio som é captado pelos olhos. Os olhos observam quando o objeto é digno de atenção e de nota, quando o etéreo se faz no pensar, cravando a imagem observada na mente de quem possui os olhos, quando o registro é algo sublime, ensejando na concretude de uma lembrança profunda que atinge o cerne já quando do momento da observação.

Os olhos: são eles, através deles, por eles que o olhar e o observar são possí-veis de assim serem. Constituem elemento e condição da visão. Assim, tem-se que “o olho não é apenas um milagre. É um órgão dos sentidos”10.

9 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 15610 INGS, Simon. OOlho:umahistórianaturaldavisão. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 28

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São os olhos os responsáveis pela visão que determina, a depender do estado de espírito do observador, o olhar ou o observar. Tendo como firmada a distinção entre ‘olhar’ e ‘observar’, pergunta-se: é possível, analisando os olhos de alguém, descobrir se o fenômeno da visão ali presente está a realizar um ato de olhar ou observar? Descobre-se se os olhos de uma pessoa estão olhando ou observando através do exercício de analisar esses olhos? Os olhos, portanto, constituem o ca-nal através do qual se busca compreender a forma com a qual se olha ou observa. Destacando a mágica que os olhos propiciam, Simon Ings pontua que

Nossos olhos nos dão a visão do mundo. É uma imagem ímpar e mágica, melhor do que qualquer filme ou vídeo. Na imagem em movimento, tudo fica flutuando na moldura do quadro, e a câmera fotográfica deve exercer uma disciplina férrea para que as coisas mantenham conexões adequadas. [...] O olho, no entanto, é livre para explorar o espaço onde vive. Pisca, olha de relance, garimpa, enviesa – tudo, literalmente, em um piscar de olhos.11

Assim, diante da possibilidade tamanha de exploração do vasto campo que os olhos contemplam, podendo abranger não apenas o cenário aparente, mas tam-bém, em se tratando do ‘observar’, particularidades invisíveis a olho nu, indaga-se, com base naquilo que se tem narrado em “Dom Casmurro” e com o auxílio da psicologia junguiana, se é possível captar a for de olhar de Capitu: a personagem olha ou observa? É o que se busca descobrir.

É POSSÍVEL CAPTAR A FORMA DE OLHAR DE CAPITU?Na tentativa de captar a forma de olhar de Capitu, é preciso inicialmente

pontuar o modo com o qual se tem acesso aos olhos da personagem em “Dom Casmurro”. Quando e como o leitor é apresentado aos seus olhos? A obra ma-chadiana fornece elementos suficientes para que uma análise dos olhos de Capitu seja possível?

Dentre algumas tantas passagens que merecem destaque na obra literária em análise, tem-se aquela famosa que é sempre digna de citação. Em certo mo-mento da história, Bentinho pede a Capitu para que esta o deixe ver seus olhos. O êxtase, o estado sublime, a contemplação é certa:

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá a ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se

11 INGS, Simon. OOlho:umahistórianaturaldavisão. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 56

retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras par-tes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.12

Os famosos olhos de ressaca da literatura brasileira que fazem inclusive questionar se seria Capitu a verdadeira protagonista de “Dom Casmurro”.

Foi Capitu que “deixou-se fitar e examinar”, conforme diz Bentinho, que passa a acreditar que mulher de olhos oblíquos teria imaginado que aquele ins-tante “era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus [de Bentinho] olhos longos, constantes, enfiados neles”13. O olhar de Capitu é capturado por Bentinho, cuja contemplação, cujo êxtase, cujo momento singular vivido é sentido por al-guns instantes. Entretanto, problematizando-se a questão ora exposta, pode-se dizer que, na realidade, o leitor tem contato apenas com os olhos de Capitu, pois quem os capta é Bentinho – que transmite, pela sua perspectiva, o significado segundo o seu próprio entendimento. Fica pendente, assim, o olhar de Capitu. O que se tem é a observação realizada e descrita de e por Bentinho, uma vez que o narrador é o próprio protagonista. Os olhares das personagens são apresentados, portanto, um pelo outro ou um a partir do outro: de Bentinho se tem o relato do seu próprio olhar – que está mais muito mais para um observar, pois a obra toda se trata da exposição de sua visão de mundo em “Dom Casmurro”; já de Capitu se tem a descrição de seus olhos, sendo que o relato sobre o olhar/observar da personagem se trata de um ato de interpretação do sujeito-narrador Bentinho. A indagação sobre a possibilidade de se captar, agora ‘diretamente’, a forma de olhar de Capitu ainda permanece, porém, já com um pequeno avanço.

Mesmo se estando ciente da dificuldade (ou quem sabe até mesmo impos-sibilidade) da empreitada sobre a qual aqui se lança, é preciso levar em conta que nessa tentativa de captar o olhar de Capitu há a interferência da narrativa de Ben-tinho, a qual acaba por influenciar na pretendida análise. O desafio é penoso. É preciso desvencilhar-se da perspectiva de Bentinho, pois, considerando aquilo que se trata de um dos assuntos mais polêmicos da literatura brasileira, é pela interpre-tação de Bentinho sobre os fatores que envolvem Capitu que se estabelece a base para condená-la pela suposta traição, mesmo não se oportunizando à personagem o contraditório que lhe seria devido. À Capitu não é conferida qualquer defesa. A forma com a qual Bentinho narra os fatos acaba por convencer a muitos de que a sua desconfiança possui amparo concreto. O modo com o qual o protagonista

12 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 53-5413 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 53

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conta a história é suficiente para convencer leitores, fornecendo na sua própria fala elementos aptos a dar credibilidade ao ponto de vista defendido pelo sujeito--narrador. A cautela inerente de tal apontamento, portanto, deve estar presente também quando da tentativa de captar efetivamente o olhar de Capitu.

No julgamento de Capitu, tendo Bentinho como acusador e juiz, a conde-nação já é previamente anunciada, pois, a partir do seu próprio relato, a traição de Capitu é tida como certa. A decisão de Bentinho, que acata a tese da traição – jamais comprovada por qualquer outro meio que não pelo mero pensar do sujeito-narra-dor – leva em conta a sua própria percepção, a qual é influenciada por fatores intrín-secos que lhe solapam aquela razão e imparcialidade que se espera de um julgador. É dizer que não se pode atribuir à Bentinho um juízo perfeito, um escorreito uso de sua razão, pois influenciado pela hipótese que lhe surge pelo ciúme exacerbado. Como os fatos são contados através de sua narrativa, a já impossível tarefa de se ter um acesso direto aos fatos (a forma de olhar de Capitu) resta ainda mais distante, pois os demônios que atormentam a alma de Bentinho repercutem na constituição do seu relato sobre os fatos. As próprias falas do protagonista reverberam nesse sentido, como quando ao falar com sua mãe, dizendo que só gostava dela, intenta desviar as suspeitas de cima de Capitu diante da sua pouco confessada ausência de vontade em colaborar com o pagamento da promessa que havia sido feita à Deus: “Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la, por fazer crer que ela era a minha única afei-ção; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcaram, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é muita vez tão involuntária como a transpiração”14

Nesse espécie de julgamento, ao considerar tudo aquilo que circunda a análise de Bentinho acerca daquilo que constitui sua desconfiança, a condição ‘mulher’ de Capitu é significativa. Não se está sob o julgo crivo de Bentinho ape-nas os fatos que constituem aquela acusação que surgiu em sua peculiar mente. A condição ‘mulher/feminino’ é algo que está presente no cerne das elucubra-ções fantasiosas do narrador-acusador-juiz. Nesse sentido, válido e aqui cabível o apontamento de Marion Bach quando aduz que “no Tribunal do Júri [...] as mu-lheres não continuam sendo condenadas por homicídio. Continuam sendo condenadas a viver tão somente no papel social a elas destinado”15. O homicídio, em “Dom Casmurro”, é a suposta traição de Capitu, assim como o Tribunal do Júri na obra está para o problemático julgo de Bentinho.

14 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 6715 BACH, Marion. Marie Lafarge: o passado e o presente da mulher no banco dos réus. Curitiba: Juruá,

2017. p. 138

Capitu é assim então acusada (e condenada) também em função do papel que lhe é atribuído, estando aqui incluída a própria forma com a qual é retratada na obra. Não apenas a suposta traição, mas as suas qualidades todas também podem ser observados com reserva. A dissimulação do seu olhar seria um atributo característico da personagem ou mais um dos devaneios de Benti-nho? A partir de que ou com base em que a dissimulação narrada constituiria a pessoa de Capitu? Talvez no ato de se buscar ganhar confiança, como quan-do Bentinho assim descreve: “O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendíamos um ao outro, ela ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé dela, com os olhos nela. Minha mãe era de natural simpática, e igualmente sensível; tanto se doía como se aprazia de qualquer coisa. Entrou a achar em Capitu uma porção de graças novas, de dotes finos e raro; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias”16. Onde estaria a tal da dissimulação pre-sente? Talvez entendida como quem possui uma tendência para dissimular, para ocultar seus reais sentimentos ou intenções, numa espécie sui generis de personalidade antissocial? O aspecto do fingido, do falso, do hipócrita, daqui-lo que se situa escondido, do não aparente, do encoberto, do oculto – residiria aqui a base da alegada dissimulação? Ainda: seria Capitu realmente terna, com seus “instintos” de mulher-mãe, protetora e afins?

É em razão dessa necessária cautela que “deve-se reivindicar os espaços, assu-mir os compromissos, buscar alternativas e impor-se pela vontade persistente de inclu-são e igualdade” 17 – razão pela qual busca se dar voz à Capitu. Os seus olhos devem dizer por si próprios. A personagem merece o seu destaque não apenas enquanto objeto de desejo de Bentinho, devendo assim ocupar o espaço que lhe é devido. Como bem destaca Taysa Matos, além da possibilidade de exercício de poder no âmbito privado (doméstico – formando e mantendo os vínculos afetivos com a devida valorização inerente dessa forma de poder), a mulher deve também “tomar posse dos espaços públicos, assumindo uma postura autônoma e livre das amarras so-ciais”18. Que se efetive a libertação de Capitu do olhar observador de Bentinho, pois os vícios presentes nesse fenômeno visual, existentes em decorrência de algo que deveria ser trabalhado no protagonista, impedem que se tenha uma descrição fiel acerca dos olhos e da forma de olhar de Capitu.

16 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 7817 GOSTINSKI, Aline. Sou mulher, e daí? Desafios e perspectivas para além do direito. In: GOSTINSKI, Aline;

MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos Feministas por um Direito menos Machista. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 18

18 SEIXAS, Taysa Matos. Até que as grades me libertem: a mulher e o empoderamento ao avesso. In: GOS-TINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos Feministas por um Direito menos Machista. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 207-208

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Uma aproximação possível que aqui se faz com relação à situação de Capitu pode ser encontrada em Shakespeare. Desdêmona é vítima de uma acusação em decorrência daquele tormento que está entre os que mais afligem a alma: o ciúme. Na peça shakespeariana “Otelo, o Mouro de Veneza”, Iago, desafeto de Otelo, ar-quiteta um plano mesquinho que acaba por resultar num final muito mais trágico que o de “Dom Casmurro”. Acometido por um ciúme doentio, estando convicto de que havia sido traído, Otelo asfixia Desdêmona – mulher inocente que mor-reu sem ter direito a qualquer defesa. Desdêmona é assim mais uma vítima em razão de sua condição ‘mulher/feminina’. Assim, “o protagonista de Desdêmona só aparece – de forma paradoxal – ao (re)afirmar seu papel natural para o matrimônio e sua vicissitude igual natural para a traição”19. Uma vida ceifada em razão de uma condição, de um papel atribuído e imposto. Desdêmona e Capitu: vítimas do ciúme. À personagem feminina, portanto, o direito e ter a voz devida.

CONCLUSÕES POSSÍVEISDiante do que foi exposto no presente ensaio, com base nas articulações e

fundamentos apresentados, resta o enfrentar da hercúlea questão sobre a possibi-lidade de se captar a forma de olhar de Capitu. É possível capturar os seus olhos?

Como bem destaca Ezilda Melo, “se a arte reflete a realidade, é fato que a reflete com muita antecipação, em favor de uma maior plasticidade intelectual e de comportamento”20. Diz-se assim em razão do fato de que o exercício ora proposto constitui um aporte que permite e torna possível um (re)pensar acerca de diversas questões envoltas à personagem de Capitu – assim como também em Bentinho. Noções de perspectiva, de local ocupado por quem narra uma história, de vicissi-tudes mentais, de interpretações possíveis, de papeis que se impõem na sociedade e outras tantas surgem enquanto reflexões críticas que podem moldar o corpo social – individualmente ou coletivamente – a partir de propostas como essa. É por isso que se insiste: os olhos de Capitu são realmente lidos pelo leitor?

Há todo um significado possível na forma de olhar de Capitu. Um simbo-lismo que se faz presente. Ora, “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato”21 – busca-se, portanto, atribuir um caráter simbólico ao olhar de Capitu, questionando se é

19 SÁ, Priscilla Placha. #somostodasdesdêmona. In: AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de (coord.); PRAZERES, Angela dos; LEÃO, Liana de Camargo (orgs.). O Julgamento de Otelo, o Mouro de Veneza: direito e litera-tura:ediçãocomemorativaShakespeare400anos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 110

20 MELO, Ezilda. Tribunal do Júri: arte, emoção e caos. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 5021 JUNG, Carl. J. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl G (org.). O Homem e seus Símbolos. 2ª Ed. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p.19

possível capturar a forma desse olhar a partir dos elementos que “Dom Casmurro” proporciona ao leitor.

A imagem que se produz pelos olhos é, de diferentes formas, mágica. Os olhos capturam com realce aquilo que recebe a ênfase do interesse pelo detentor da visão. Daí que a visão proporcionada pelo olhar (ou pelo observar) se situa num outro nível daquilo que se pode ter por imagem, uma vez que a imagem que é recebida através dos olhos “é ímpar. É mágica. O que significa: não é uma imagem”22. É um algo além. Próprio. Característico.

Uma resposta em definitivo é sempre um risco. Talvez soe mais sincero cata-logar como palpite a resposta que aqui é dada. Isso porque é um tanto quanto difícil se desvencilhar das amarras influenciáveis da perspectiva do narrador. O mundo contado em “Dom Casmurro” pertence à Bentinho, pois é ele que o narra. Daí que para estabelecer um algo que satisfaça minimamente a inquietação que percorre as linhas do presente texto, ampara-se no saber da psicologia analítica junguiana, ten-do assim uma base mínima para além da observação dos próprios articulistas – estes que também estão sujeitos às mesmas vicissitudes de Bentinho.

Assim, a partir do conceito de anima e animus de Jung, procurou-se identi-ficar dentro dos personagens, Bento e Capitolina, suas características opostas com-plementares, ou seja, a anima “dentro” de Bentinho e o animus “dentro” de Capitu.

No que diz respeito ao animus de Capitu, pouco identifica-se, afinal, o que se tem como objeto de análise é uma narrativa em primeira pessoa de um terceiro. Contudo, destaca-se pontos importantes no discurso referido à Capitolina: seu animus mostra-se através de frases prontas e convictas, deixando a fragilidade se sua persona feminina de lado e buscando uma exatidão e segurança ao expres-sar-se. Suas falas, que desde a infância mostravam sua “dissimulação”, retratam bem a imagem de seu animus, com praticidade e objetividade evitava situações conflituosas.

Outro ponto importante fora identificado através no período em que Bento conta-a que irá para o Seminário. Ela argumenta de forma cujo discurso estivesse na ponta da língua. Animus dispõe de pressupostos inconscientes que deveriam ser provados, de início; em outras palavras, essas opiniões foram concebidas como se tais pressupostos existissem. Na realidade, essas opiniões são totalmente irrefletidas; existem prontinhas e são mantidas com tal firmeza e convicção pela mulher que as formula, como se esta jamais tivesse tido a menor sombra de dúvidas a respeito.

22 INGS, Simon. OOlho:umahistórianaturaldavisão. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 56

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Acrescenta-se ainda, que o animus quando personificado, representa-se através de iniciativa, coragem, honestidade. Analisando a seguinte descrição, “Su-cedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta co-meçou a fazer-se lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. (...) Minha mãe palpava-lhe o coração, devolvia-lhe os olhos e o meu nome era entre ambas como a senha da vida futura”23, encontra-se aqui a iniciativa e coragem de Capitu por aproximar-se de quem prometera (mãe de Bento) seu filho à carreira de padre, mas que o conhecia tão bem e poderia lhe ensinar mais sobre aquele cujo qual ela tanto desejava, Bentinho, recebendo não apenas o afeto e confiança dela, mas também a admiração de seu amado no que diz respeito as mulheres, por assim dizer, mais importantes de sua vida.

Quanto a Bentinho, em muitas de suas falas sua anima mostra-se presente como uma força feminina ou como a representação de uma mulher (inconscien-temente) obsessiva, desejosa, inquieta, desconfiada que desde a infância criava e delirava quanto aos seus sentimentos.

Na fase adulta, após casar-se com Capitu, Bento expõe toda alegria de estar ao lado da tão sonhada mulher, bela, sedutora e atraente, e novamente sua anima mostra-se através de um ciúmes intenso, afinal, quando sua mulher ganhava aten-ção de terceiros o seu lado feminino sentia-se rejeitado e fragilizado.

Prosseguindo com o tão desejado filho, finalmente se teria uma família completa, feliz!? Anima apropria-se da cena outra vez quando sente-se rejeitada pela mulher amada. A felicidade exposta pela família perfeita quebra-se quando a atenção de Capitu é dividida. Anima busca incisivamente a ruptura dessa família, afinal, como ela há de sobreviver como sendo uma segunda opção? Tenta de várias maneiras buscar com que esse filho, cujo qual agora supostamente rouba a aten-ção de sua mulher, afaste-se dela. A mulher inconsciente dá vida ao seu delírio: aos poucos tornou-se rude, grosseiro, odioso à si e aos próximos. A inquietação, o orgulho, a dissimulação referida à Capitu, dessa forma, não seria sobre si mesmo? Afinal, nas palavras de Jung “no que diz respeito à anima ela é igualmente uma per-sonalidade e por isso pode ser facilmente projetada numa mulher”24.

A proposta, portanto, de se buscar captar a forma de olhar de Capitu, ensejou numa abordagem um pouco mais ampla – talvez como forma de compensação pela frustrada empreitada. Anima e Animus presentes, aqui desvelados, em Bentinho e Capitu. É uma leitura possível, que serve também como um convite para o debate.

23 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. p. 11724 JUNG, Carl Gustav. O eu e o Inconsciente. 27ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 87

Diante do que se observou e se expôs, crível pelo menos a tese encampada de que a narrativa de Bentinho merece ser vista com cautela. Os olhos de Capitu podem até ser oblíquos, por se tratar de uma característica objetiva. Porém, estar de acordo com a adjetivação de que são dissimulados é um passo muito maior a ser dado. A cautela, nesse caso, é bastante convidativa, pois não há certeza sobre a possibilidade de se captar a forma de olhar em Capitu.

Se Capitu olha ou observa? Esse é o desafio que aqui se lança!

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O FEMININO NO QUARTO DE DESPEJO: AS RELAÇÕES DE GÊNERO VISTAS NA ESCRITA TESTEMUNHAL DE CAROLINA MARIA DE JESUS.

Maria Aparecida Figueirêdo Pereira1

Carolina Maria de Jesus, mulher, nascida em Minas Gerais, na cidade in-teriorana de Sacramento, estima-se que em 1914 e falecida em 1977, descenden-te de escravos africanos, semialfabetizada, mãe de três filhos, solteira, migrante, errante. Na década de 50 do século passado, foi moradora da favela do Canindé que se situava às margens do rio Tietê em São Paulo, e para sobreviver catava papéis2 - Encontra-se nela a razão desse texto. Entrementes, até esse momento nenhuma informação acerca da biografia de Carolina causa surpresa, afinal como ela, pelo Brasil afora, são milhares de mulheres, homens e mesmo crianças que descendem de escravos, migram para as grandes cidades, vivem na favela e tiram da reciclagem de materiais o sustento para si e sua família, e de tão comuns, tor-nam-se invisíveis para a sociedade e para o poder público. Invisíveis tantas vezes até para si mesmos. Decerto Carolina seria tão somente mais uma dessas tantas pessoas que vivem camufladas à margem social, não fosse um robusto detalhe: o amor pelas letras.

Por isso, em suas andanças, não era apenas o sustento que recolhia em meio aos resíduos que encontrava, deles a catadora também retirava a matéria prima para sedimentar seus sonhos e registrar suas dores diárias mais dilacerantes, isto é, do lixo ela reunia papéis avulsos, cadernos velhos os quais transformava em diá-rios e em páginas de romances e poesias. De suas catações ela também encontrava livros que não lançava à reciclagem, mas a partir deles, ela própria se lançava, se reciclava e ressignificava o seu viver. Neste sentido, a então catadora de papeis expressava um grande diferencial além de ler, escrevia. E o escrever para Carolina constituía o seu dizer, o seu sentir, e o seu resistir. Em seus diários documentava as práticas cotidianas na favela, a desesperança em face da miséria, as sensibilidades e sociabilidades praticadas naquele espaço, nos termos descritos por Certeau (1994) ao compreender o espaço como um lugar que se pratica cotidianamente. Instigada pela escrita, praticava o lugar atribulado da favela do Canindé. Lugar onde a falta

1 Bacharela em Direito e Especialista em Direito Penal pela UEPB, Graduada e Mestra em História pela UFCG.2 Informações prestadas pelo jornalista Audálio Dantas, no prefácio da edição popular do livro Quarto de des-

pejo, de autoria de Carolina Maria de Jesus.

220 o FEminino no QuarTo DE DESPEJo

se fazia presente, faltava comida, a filha Vera Eunice3 reclamava por sapatos, por não gostar de andar descalça, mas Carolina apesar do trabalho árduo nem sempre conseguia suprir as mais elementares necessidades, tudo isso a angustiava.

Nesta sorte, procurava preencher as faltas nos espaços vazios dos papéis que catava, promovendo um transbordamento de sinais gráficos, em que narrava as pelejas contra a fome - companhia torturante - que dia após dia atormentava a si e aos seus três filhos, os quais cuidava sozinha, sem qualquer auxílio sentimental ou material paterno. Sem o encontro com o jornalista Audálio Dantas4, em 1958 é possível que ela jamais tivesse seu talento reconhecido. Na ocasião ele realizava reportagens a respeito da vida na favela do Canindé. Foi lá que conheceu uma mulher de presença firme, alta, que vociferava contra alguns vizinhos, os amea-çando de incluir seus nomes no livro que estava escrevendo. Ao pedir para ver seus manuscritos Audálio Dantas foi também apresentado a sua produção literária, logo notou que as palavras daquela mulher que tinha passado apenas dois anos pelos bancos escolares, desenhadas em seus diários pessoais, ressoavam repletas de riqueza poética e descritiva.

Das folhas amareladas extraídas das ruas no exercício de seu trabalho diá-rio, Carolina escrevia desde crônicas nas quais fixava o dia a dia na favela, à expe-riência com a fome, o racismo e as relações de gênero, até críticas de cunho social, acompanhadas de lirismo profundo. Sem demora, Audálio Dantas percebeu que bem melhor que ele, a moradora tinha competência para narrar com minúcias e propriedade a vida na favela. Daí selecionou e encaminhou os textos que mais lhe impactaram para a publicação em revistas famosas no período, a exemplo da Cruzeiro. Em 1960 houve o lançamento do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada.5 Tal título se daria por Carolina subjetivar a favela como um quarto de despejo para onde eram mandados os pobres como se fossem trastes velhos. Toda-via, com essa publicação, o seu universo não estaria mais circunscrito à favela, sua arte foi descoberta pelo mundo. Ademais, ela seria elevada ao panteão de uma das mais sensíveis escritoras brasileiras.

3 Em uma das passagens do livro Quarto de despejo, Carolina lamenta não ter condições financeiras para adquirir o que necessita, como os sapatos da filha, apesar de se desdobrar em trabalhos, ela revela sempre conviver com a falta. (JESUS, 1995, p.14)

4 No documentário Vidas de Carolina é construída uma ponte entre a Carolina Maria de Jesus, catadora de resíduos recicláveis dos anos 50 do século que passou e suas subjetividades, e as Carolinas de hoje em dia, em suas lutas diárias à cata de resíduos e à cata de seus sonhos. Nesse filme as falas das mulheres, inclusive de uma atriz que interpreta a escritora, se alternam com a fala do jornalista Audálio Dantas, rememorando seu primeiro encontro com Carolina Maria de Jesus na favela do Canindé.

5 Segundo Tom Farias, autor de Carolina, uma biografia, livro biográfico lançado em 2017, o livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, primeiro publicado por Carolina Maria de Jesus, foi traduzido para 16 línguas e vendido para 46 países. Tendo vendido no exterior milhões de exemplares. Disponível em: https://mdemulher.abril.com.br/cultura/carolina-de-jesus-por-que-se-fala-tao-pouco-dessa-mulher-iconica/

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OS MÚLTIPLOS PAPÉIS RECOLHIDOS E ACOLHIDOS POR CAROLINA MARIA DE JESUS

Não sem razão, o livro Quarto de despejo ao configurar-se em um relato testemunhal de vivências na favela, tornou-se mais palatável enquanto dissemi-nador de imagens da precariedade material e sofrimento motivado pela fome no referido espaço. Ante as obras mais proeminentes de Carolina Maria de Jesus, so-bressaem-se esses elementos. Nesse diapasão seu texto agruparia características de uma literatura marginal, de pessoas expostas à vulnerabilidade social. Contudo, é preciso tornar evidente que os testemunhos de Carolina, vão além da carência de recursos financeiros, conclusão a que também chegou a historiadora Elena Pajero Peres (2013) em seu estudo a respeito da escritora mineira. Em sua pesquisa Peres situa o lado multifacetado de Carolina, desconhecido da maior parte do público: a mulher que além de catadora de papeis, exerceu diversos papéis. O que seria de-lineado por marcas da cultura de seus ancestrais, representados pela influência do avô ex-escravo africano, com quem ela conviveu durante a infância na cidade de Sacramento, assim como pelas leituras que realizou e pelos lugares que transitou. Seus múltiplos itinerários.

Diante disso, urge desmitificar a imagem tão difundida de que a ex cata-dora de resíduos, foi apenas isso, e que sua vida limitou-se ao espaço da favela do Canindé, pois do contrário, ela migrou para diferentes lugares, buscou praticar todos eles, e residiu na favela somente de 1947 a 1960, tendo habitado outros endereços, assumindo variados trabalhos, sempre em busca de reconhecimento. Em sentido amplo Carolina Maria de Jesus, foi realmente uma catadora de pa-péis, sendo desde “Escritora, lavradora, catadora de papel, compositora, sambista, poetisa, dramaturga, cantora, atriz circense” (PERES, 2013, p. 60). Tais papéis vividos por Carolina ao longo da vida, somados àqueles sobre os quais escrevia, tiveram grande importância, posto que a tornaram rica em experiências.

Por isso, nesse texto procuro demonstrar que se a fome e a pobreza, são elementos constitutivos da escrita Caroliniana, eles não são, em absoluto, seus únicos formadores, uma vez que em suas narrativas, descortinam-se variadas te-máticas, impulsionadas também pela riqueza cultural da qual ela era autêntica representante, e que demarcava, o modo como subjetivava seu lugar no mundo, inclusive no que se pauta às questões de gênero.

Nesse ínterim para alguns estudiosos de sua obra, principalmente no que tange ao livro Quarto de despejo, constata-se uma escritora, invariavelmente con-traditória ao tratar sobre as relações entre homens e mulheres na favela. Isto por-

que seus registros aparecem num duplo movimento: de um lado ela se mostra um tanto feminista, sobrevivendo à ausência da figura masculina, orgulhando-se em razão disso, e de outro revela-se norteada pelas masculinidades que habitam o seu dia a dia, e que constituem as sensibilidades das próprias mulheres, alvos preferen-ciais dos arranjos masculinos.

Cumpre notar que a narrativa caroliniana não elege “marcos textuais que caracterizem um texto escrito por uma mulher, bem como a representação da ex-periência”(BELLIN, 2012, p. 44). Isto em razão de que a escritora parece proferir os enunciados das masculinidades que inevitavelmente subjetivava nos itinerários percorridos, sobretudo na favela, e ao empenhar-se por descrever as discriminações que lhe eram impingidas por ser negra, pobre e mãe solteira, o faz responsabilizan-do o gênero feminino, compreendendo indistintamente todas as mulheres como as vilãs de seu enredo cotidiano, mesmo que as ofensas e perseguições partissem tão somente de algumas moradoras da favela. Carolina chega a dedicar-se a esse tema em vários momentos do livro, constando em seu relato a seguinte explicação “Elas alude que eu não sou casada. Mas, eu sou mais feliz do que elas. Elas têm marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade ” (JESUS, 1995, p. 10). Para ela, as hostilidades eram-lhe direcionadas pelo fato dela jamais ter contraído matrimônio, embora tivesse gerado três filhos, frutos de diferentes relacionamentos.

Entretanto, nas limitações da miséria em que estava imersa, ela destacava-se em seu orgulho. O orgulho de pertencer-se. É certo que nem sempre havia o que pôr na panela, a fome figurava como personagem de destaque nos capítulos que escrevia. Mas, apesar disso, cultivava sua altivez e de alguma maneira sua independência. Nessa outra passagem afirma: “Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vidas de escravas indianas. Não casei e não estou descontente” (JESUS, 1995, p. 14). Mas, o fato de não haver em seu barraco a figura de um homem como protetor e provedor, de fato encorajavam ofensas e ataques contra ela e suas crianças, e de modo tocante, declara: “Trabalhei apreensiva e agitada. A minha cabeça começou a doer. Elas costumam esperar eu sair para vir no meu barracão, espancar os meus filhos” (JESUS, 1995, p. 16).

No entanto, a então catadora, bravamente resistia aos tratamentos hostis, e ao cotidiano desprovido de escoras e amarras masculinas. O que para a sociedade da época constituía um verdadeiro acinte. Mas, com as adversidades vividas, chega a confessar uma necessidade do apoio masculino, assim mais adiante escreve em tom bastante lamentoso “Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (JESUS, 1995, p. 19). Nesse momento, ela ostenta a noção de

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que uma mulher, necessita do auxílio de um homem, sem o qual a vida seria difícil, pesarosa. No decorrer do livro é notória, no entanto, sua condenação à submissão das outras mulheres da favela às masculinidades. Isto porque segue exaltando sua auto-suficiência, o que lhe permitia liberdade e dignidade. A dignidade que suas vizinhas, submissas ao julgo dos maridos, não conseguiam preservar.

Assim, em suas narrativas acerca das relações conjugais na favela, Carolina depõe que “A noite quando elas pedem socorro eu tranquilamente no meu bar-racão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebram as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos sossegados” (JESUS, 1995, p. 14). A então catadora deixa transparecer que os espancamentos de mulheres era um acontecimento ba-nalizado nas relações entre homens e mulheres, no cotidiano da favela. Havendo uma naturalização da violência dos homens em relação às suas companheiras, já que “A violência dos homens contra as mulheres é apenas uma das faces das várias formas de violência que constituem uma subjetividade masculina. Violen-tado para se tornar homem” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010, p.30 ). De tão recorrentes essas práticas masculinistas, sequer eram questionadas.

Diante disso, aos olhos de Carolina, não ser casada acompanhava a boni-ficação de libertar-se do domínio masculino; ouvir músicas, dormir ao lado dos filhos tranquilamente, revelando-se livre das amarras da masculinidade. Sua vida de solteira era bem preciosa que a vida das mulheres que a perseguiam a ela e seus filhos e à noite eram espancadas e humilhadas pelos maridos. O seu estado civil a abstinha da condição de dependência ao masculino. Situação que era uma realida-de para as mulheres casadas da favela. E daí põe-se mais uma vez as contradições de Carolina, ao mesmo tempo em que demonstra uma consciência de seu direito à liberdade, não cobra em seus escritos que essa mesma liberdade também vigore para suas vizinhas, em grande parte acometidas pela violência doméstica desfe-rida por seus companheiros. Carolina não traduz nenhuma crítica, não mobiliza nenhum nítido protesto às agressões físicas e simbólicas reservadas cotidianamen-te às mulheres da favela.

Isto impede que a pensemos como uma escritora feminista, ao menos na produção de Quarto de despejo. A despeito disso, ela relata a má sorte das mulheres naquele espaço de degradação: “Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a hora que elas querem. Mesclam-se com as meretrizes, contam suas aventuras” (JESUS, 2005, p.16). Podemos pensar que, a escritora tinha consciência do avil-tamento feminino, notadamente no que tange às contendas entre homens e mu-lheres e na prostituição, destino certo de muitas meninas, por isso, demonstrasse uma acentuada preocupação com as crianças.

É possível que a preocupação de Carolina consistisse numa forma de pou-par e educar os pequenos, os quais presenciavam corriqueiramente os espanca-mentos impostos às próprias mães. Educar para uma nova sensibilidade, onde a violência e o desamor não constituíssem imperativos estabelecidos pelas mascu-linidades, sob os quais as mulheres devessem se curvar. Nesse contexto, mostran-do-se transgressora das normas sociais, vivendo sozinha com os filhos, garantindo o sustento familiar, procurando impedir que crianças testemunhassem cenas de violência contra mulheres, buscava dissipar a obscuridade da favela.

Carolina, poderia ser definida como uma mulher indisciplinada, que não se rendia aos ditames masculinos, e não se sujeitava a um companheiro, mas tão somente ao seu trabalho. Dito isso, torna-se fulcral acrescentar que a liberdade de que gozava era também sexual, recebendo seus namorados em sua casa, como relata na seguinte passagem do livro Quarto de despejo: “Esperei até 11 horas um alguém. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando des-pertei o astro rei deslizava no espaço” ( JESUS, 1995, p. 15). Isso certamente, também incomodava, tanto que é pertinente notar que a autonomia de que dis-punha para viver sua sexualidade com plenitude, atiçasse ainda mais o ranço por parte de sua vizinhança. Ou seja, nos escritos de Carolina emergem o peso da condição feminina nos idos dos anos 50 do século passado.

DE CATADORA À ESCRITORA: LETRAS DE CAROLINAAtesta Mary Del Priore (2012) que a presença de mulheres em diários, fotos,

cartas, testamentos, relatórios médicos, policiais, pinturas, jornais, tornou-se mais perceptível no século XIX, e já no século subsequente as mulheres destacaram-se por meio da escrita e manifestos dos quais eram autoras, além da participação em sindicatos. Porém até que esse momento viesse à tona, muita água rolou por baixo da ponte, ou melhor, dizendo muitos escritos femininos receberam pseudônimo masculino ao invés dos nomes verdadeiros das autoras6, foi o que aconteceu com as escritoras inglesas Brontë: Charlotte, Emily e Anne Brontë, irmãs que viveram e escreveram na primeira metade do século XIX. A prática de esconder a identida-de feminina se dava por medo do preconceito e da não aceitação da presença de mulheres dentro dos cânones literários. “E a publicação de uma obra costumava ser recebida com desconfiança, descaso ou, na melhor das hipóteses, com condes-cendência. Afinal, era só uma mulher escrevendo (DUARTE, 2007, p. 63).

6 Ver matéria publicada na revista Cult, intitulada de: 10 autoras que publicavam sob pseudônimos masculinos, disponível in: https://revistacult.uol.com.br/home/10-autoras-que-precisaram-de-pseudonimos-masculinos--para-publicar-suas-obras/?fbclid=IwAR0H2EjWAKodF2NsebK-YgC1

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Escritoras brasileiras também amargaram preconceitos em suas atividades escriturais, pois na concepção da sociedade com fulcro no gênero masculino, à mulher caberia os papéis do casamento e da maternidade e não o da intelectua-lidade. Portanto, ao assumir-se como escritora perante os demais moradores da favela do Canindé, Carolina Maria de Jesus, assume igualmente uma prerrogati-va que naquele tempo, ainda caberia aos homens, e no máximo à certas mulhe-res brancas e bem nascidas. Deste modo, é preciso não ignorar que a reprovação por parte da vizinhança à personalidade da catadora de papeis, estava inserida num contexto maior: o de ser pobre, negra e mulher e além de tudo isso, ser uma escritora, uma outra questão considerada inaceitável para a sociedade mas-culinista da época, sobretudo na favela, onde era vista com receio perante os demais moradores “chamada de feiticeira não pelas ervas que colhia, as rezas que pronunciava ou os espíritos que ouvia, mas pela incessante atividade exercida nas sombras do barracão, pela madrugada a fora, a luz de querosene” ( PERES, 2007, p.201).

De modo geral, a escrita feminina era vista com demasiadas reservas, e no caso de Carolina Maria de Jesus, assustava, causava inveja e rancor em suas vizinhas na favela do Canindé, imbuídas por sensibilidades masculinistas, que não concebem a mulher em outro espaço que não fosse o doméstico. A própria Carolina corrobora com essa afirmação ao afirmar que “um homem não pode gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro” (JESUS, 1995, p.44). Caroli-na reproduz o que argumenta os ideários masculinos, no tocante à aproximação de mulheres com à leitura e a escrita, atitude digna de uma conduta reprovável. Noutros termos, numa sociedade que tem como um de seus traços marcantes o de ser pensada no masculino e para o masculino” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010, p.24). Reverberavam nas próprias mulheres o sentimento de inferioridade e submissão ao mando masculino.

No que se refere ao mundo literário, disparidades baseadas no sexo da-queles que publicam suas obras ainda persistem, tanto é que em 2016 a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicizou que na população brasileira, as mulheres costumam ler bem que os homens, sendo 59% leitoras. No entanto, a pesquisa ostenta um paradoxo lamentável de que embora praticantes da leitura em maior percentual, as mulheres ainda figuram como minoria ao assumirem o papel de escritoras. Ou seja, os índices de mulheres com acesso ao mercado editorial é desvantajoso quando comparadas aos homens, ao passo que as discriminações repetem-se e repartem-se a depender também da cor da pele da escritora e de

sua condição social, assim mulheres negras e pobres que não podem financiar a publicação de suas obras, são ainda mais seqüestradas da cena literária.

A escritora negra Conceição Evaristo, em recente entrevista7 questiona as re-gras que lhe fizeram ter a competência reconhecida somente aos 71 anos, enquanto despontam outros expoentes literários ainda meninas, mas que por serem brancas e de outro grupo social, logo são reveladas. Feitas essas observações, é fácil dedu-zir que Carolina Maria de Jesus, sendo mulher, negra, favelada e semialfabetizada, dificilmente teria suas produções acatadas no universo editorial da época em que viveu, não fosse a interferência de Adáulio Dantas. Em seus testemunhos ela afirma as peripécias e humilhações que sofreu para tornar visível o seu talento. Decerto os relatos memorialísticos de Carolina seriam letras que talvez, de maneira indelével restassem apagadas, não fosse o seu encontro com o referido jornalista.

Quiçá toda a gama de preconceitos contra as mulheres, e mais enfaticamen-te contra as mulheres negras e pobres expliquem o esquecimento de Carolina nos anos que se seguiram ao lançamento de seu primeiro livro, que após o estrondoso sucesso inicial foi posto em esquecimento. Muitas explicações já foram dadas a esse respeito, algumas dizem que a personalidade combativa e contestatória da escritora a afastaram dos holofotes do sucesso. Hoje, no entanto, vislumbra-se um retorno às suas obras, sobretudo Quarto de despejo, discute-se como as relações de gênero nela são apresentadas e não somente a temática da fome. Porém, a questão que se impõe é a mesma colocada por Conceição Evaristo: quais as regras para que isso aconteça? O que provoca esse reconhecimento tardio? Será que Carolina está mesmo sendo “lida” pelo público leitor? Ou será que in continuum ela e todo o seu inventário artístico para a literatura, serão ainda lembrados? Eis a questão!

7 Entrevista concedida pela escritora, para o site BBC NEWS disponível in: https://www.bbc.com/portuguese/brasil 43324948?fbclid=IwAR3pozXcMvHQcH72zbgccGBQjrIvYvUGQ9nTCWZYdKQea7i-oP02JY4hYQk

226 o FEminino no QuarTo DE DESPEJo

AFINAL, PARA QUE SERVE UM PUNHO?

Eliane Cristina Testa1

A meu ver, feminista é o homem ou a mulher que diz: “Sim, existe um problema de gênero ainda

hoje e temos que resolvê-lo, temos que melhorar”. Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar.

Chimamanda Ngozi Adichie (2015, p. 49-50)

A partir da seguinte pergunta-título: “Afinal, para que serve um punho?” é que se inicia este texto ensaístico. Esta pergunta-reflexão é um caminho norteador para a sua proposta de uma leitura crítico-literária acerca do poema intitulado “Um útero é do tamanho de um punho” (2012), de Angélica Freitas, presente no livro homônimo dessa autora. Poetisa e tradutora gaúcha, Angélica Freitas (1973, Pelotas/ RS) tem formação em jornalismo (UFRGS), participa de antologias poé-ticas no Brasil e no exterior, destacando-se, dentre as suas principais publicações, os livros Rilke shake (2007), o romance Guadalupe, em coautoria (2012), e Um útero é do tamanho de um punho (2012), premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte como o melhor livro de poesia de 2012. Ademais, Freitas é coe-ditora da revista Modo de Usar & Co.

Grosso modo, poder-se-ia dizer que a poesia que tem sido produzida na atualidade é um vasto campo experimental. E o que se tem hoje como produ-ção poética segue na esteira da estética do modernismo em que há predomi-nância de uma linguagem coloquial, do experimentalismo linguístico (ausência de pontuação, uso de letras minúsculas no início dos versos, palavras-valises, prosódia, etc.) e do verso livre. Ao se deparar com as obras de Freitas, verifi-ca-se que, quanto à forma, suas construções poéticas tendem a uma condição da poesia experimental, seja no sentido metalinguístico seja no criativo. Além disso, a escritora faz uso da paródia e muitos dos seus poemas tendem a um humor provocativo e de subversão, recurso este que o aproxima de diferentes processos intertextuais. Outrossim, Freitas convida o leitor a uma reflexão sobre as relações de gênero e o feminismo. Um exemplo é Um útero é do tamanho de um punho (2012), livro cujo lançamento se deu São Paulo (na Casa das Rosas)

1 Pós-doutoranda no programa de Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL) e docente do Curso de Letras e do Programa de Mestrado Profissional em Letras – PROFLetras (UFT/Campus de Ara-guaína) e da Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL). E-mail: [email protected]

228 aFinaL, Para QuE SErvE um PunHo?

em 2012, ao qual a autora deste ensaio esteve presente, ocorrendo na ocasião o seu primeiro contato com a autora e sua obra, quando, ao adquiri-lo, dela recebeu a seguinte dedicatória: “Para Lia, estas mulheres de olhos na contra-mão” (13/10/2012). Sempre chamou a sua atenção os “olhos na contramão” por suscitaram aos seus “ouvidos” os diferentes atravessamentos do que, desde sempre, seriam para mulheres os “olhos-(re)construções, os “olhos-(re)visitações e os “olhos-devires-contramãos”.

1. O CORPO DA MULHER: ÚTERO-PUNHO“um útero é do tamanho de um punho” (FREITAS, 2012, p. 59-66), é um

poema que tem o mesmo título do livro que o contém. Este é composto por qua-renta e duas estrofes e cento e setenta e três versos, construídos em versos livres e brancos. Eis, a seguir, um trecho (que compõe as suas estrofes iniciais) do poema de Freitas (2012):

um útero é do tamanho de um punho num útero cabem cadeiras todos os médicos couberam num útero o que não é pouco uma pessoa já coube num útero não cabe num punho quero dizer, cabe se a mão estiver aberta o que não implica gênero degeneração ou generosidade ter alguém na palma da mão conhecer os dois, um sobre a outra quem pode dizer que conhece alguém quem pode dizer que conhece a degeneração quem pode dizer que conhece a generosidade só alguém que sentiu tudo isso no osso, o que é uma maneira de dizer a não ser que seja reumático ou o osso esteja exposto

im itiri i di timinhi di im pinhi que pode dizer tenho um útero (o médido) quem pode dizer que funciona (o médico) i midici o medo de que não funcione para que serve um útero quando não se fazem filhos

ELianE CriSTina TESTa 229

para quê piri qui

se tenho peitos tenho dois o mesmo vale pros rins tenho duas orelhas minis i vincint vin gigh

piri qui úteros famosos: o útero de frida kahlo o útero de golda meir ó útero de maria Quitéria o útero de alejandra pizarnik o útero de hilary Clinton [o útero de diadorim]

Kahlo na sala de espera Meir dos óvulos de ouro Quitéria de modess na guerra Pizarnik decerto tampax Clinton não tem medo de espetáculo na maca fria [mas diadorim nunca foi ao ginecologista]

um útero expulsa os óvulos óbvios vermelho = tudo bem! isti tidi bim vici ni isti grividi

um útero é do tamanho de um punho num útero cabem capelas cabem hóstias crucifixos cabem padres de pau murcho cabem freiras de seios quietos cabem as senhoras católicas que não usam contraceptivos cabem as senhoras católicas militando diante das clínicas às 6h na cidade do México e cabem seus maridos em casa dormindo cabem cabem

230 aFinaL, Para QuE SErvE um PunHo?

sim cabem e depois vão comprar pão repita comigo: eu tenho um útero fica aqui é do tamanho de um punho nunca apanhou sol

um útero é do tamanho de um punho não pode dar soco

(FREITAS, 2012, p. 59-61)

A partir da análise crítica deste poema (na íntegra), acredita-se aqui que a poeta gaúcha trata no seu livro Um útero é do tamanho de um punho (2012) do feminismo (ou dos “feminismos” [no plural] visto que esse termo abarca diferen-tes correntes teóricas ou vertentes/linhas que, aliás, podem dialogar e se retroali-mentarem, tal a diversidade do movimento conhecido como “feminismo”) e das relações de gênero, por meio de uma escrita poética potente e jocosa, tecida por jogos linguísticos criativos constituídos também por ironias e diferentes referên-cias culturais (a cultura parece ser um campo profícuo para a autora, um modo de engendrar diferentes relações intertextuais). Com isso, Freitas consegue, graças às suas abordagens temáticas, trazer à tona (e problematizar) as “representações” da mulher, comumente estabelecidas (ou originadas) pelos múltiplos discursos presentes nas esferas privadas e públicas da sociedade.

O corpo da mulher é esse “útero-punho”, uma espécie de sinédoque para os vários desdobramentos da simultaneidade do “ser mulher”, já que o útero é “todo” o corpo desta. Sendo assim, o útero metaforicamente alude a diferentes constru-ções sociais. Esse útero poderia representar, por exemplo, o espaço dos interditos ou configurar um símbolo-mulher, expressando as pressões, as coerções sociais, como diz Helena Bertho (2016, p. 125): “[...] a maternidade compulsória tem sido, até hoje, uma forma de controle sobre as mulheres. Neste contexto, o útero vai sofrer, no poema (e fora dele), expansões significativas, em especial, quando se desdobra em muitas instâncias sociais, simbólicas e metafóricas”.

Além de sua condição biológica, o útero (que é um órgão reprodutor liga-do à sexualidade e à vida) é implicado por situações sociais (como apontado no parágrafo anterior). Assim, outro exemplo que é possível evidenciar é o da inter-rupção de uma gravidez (indesejada ou não), quando o útero “é” (ou passa a ser) também instituído como uma questão legal, conforme menciona Nana Queiroz (2016, p. 27): “Muitos países conquistaram [grifo da autora] a descriminalização

ELianE CriSTina TESTa 231

do aborto”. Essa garantia (ou “conquista”, como afirma Queiroz, 2016), legal não é válida para muitos países e o aborto ainda é criminalizado (como é o caso da lei brasileira, salvo raras exceções), o que implica também em questões de saúde (e políticas) públicas. Recorre-se aqui, novamente, a Bertho (2016, p. 126) que afirma que o foco da discussão do aborto hoje se volta com muita força para a questão dos aspectos públicos, uma vez que “[...] a mulher deve ter o poder de decidir o que é feito com o próprio corpo. Para além da liberdade individual, que deve ser apoiada e garantida pelo Estado através de políticas públicas, deve haver justiça”. Então, quando se fala em aborto é preciso ter consciência que se está discutindo amplamente questões que ultrapassam as esferas privadas (pessoais) e impreterivelmente falando de mecanismos de controle social.

Sendo assim, o poema indicia enunciados subentendidos (ou não) con-figurados nas outras “vozes” que se estruturam no mundo das mulheres com as marcas das instâncias de poder, conforme aponta Queiroz (2016, p. 23): “[...] no Brasil de hoje, em que nós não temos direitos sobre o governo absoluto dos nossos corpos e somos vítimas de violências físicas, psicológicas e sexuais por parte de homens que acham que são nossos donos”. Por isso, muitas mulheres querem o direito ao próprio corpo e são favoráveis ao combate às opressões e ao “[...] ma-chismo tradicionalista latino-americano, sob o ponto de vista do multiculturalis-mo [...]” (QUEIROZ, 2016, p. 29). Neste contexto, poder-se-ia dizer que ainda são muitas as questões a serem discutidas/problematizadas e, pela complexidade da temática (ou do próprio processo multicultural dos países latino-americanos), parece que se está longe de esgotar (ou resolver?) os resquícios das estruturas pa-triarcais e das posturas (crenças) machistas.

Ainda com o foco no “útero”, poder-se-ia propor a seguinte pergunta: por que Freitas compara o útero a um punho? No poema, o útero e o punho não fazem parte do mesmo campo semântico, mas acredita-se aqui que os termos indiciam elementos-chave para a compreensão do poema. Ao se procurar uma definição de punho, encontram-se as seguintes ideias: 1) a da força da mão bem fechada (punho refere-se à mão fechada); 2) a da parte de uma arma branca (ou uma empunhadura). Contudo, urge levar em conta os seguintes versos: “um útero é do tamanho de um punho / não pode dar soco / questões importantes [...]” (Frei-tas, 2012, p. 61 [grifo da autora]). O que pode estar implícito neles?

Um útero (sinédoque de mulher) institucionaliza-se de acordo com as dife-rentes relações sociais (“não pode dar soco”): o que pode estar implícito nesse verso é uma indicação (ou uma problematização) dos estereótipos relacionados (ou asso-ciados) à feminilidade que identifica comumente uma natureza dócil da mulher e

232 aFinaL, Para QuE SErvE um PunHo?

“[...] favorável à maternidade e aos cuidados do outro [...]” (QUEIROZ, 2016, p. 44), sendo isso, forçosamente, uma construção voltada para a tentativa de adequar padrões à mulher, à sua vida doméstica, à maternidade e ao casamento. Por isso, a poeta chama a atenção dos leitores − no verso: “questões importantes” – para a exis-tência de uma gama de estereótipos/normas/padrões que se pretende reguladora da condição de “ser-mulher”. Então, percebe-se que Freitas (2012) propõe aos leitores que “reflitam” sobre os valores que implicam as relações de gênero.

Simone de Beauvoir (1908-1986), um marco nas teorizações do feminis-mo, elucida que “não nascemos mulheres, mas tornamo-nos mulheres”, frase--conceito essa que ficou célebre e se encontra na sua importante e consagrada obra Segundo sexo (publicada em dois volumes na França, em 1949, e depois traduzida para vários idiomas). É ainda Beauvoir (2008 [1949], p. 110) que afirma que: “[...] a mulher é um produto elaborado pela civilização [...] a mu-lher não se define nem por seus hormônios nem por misteriosos instintos e sim pela maneira por que reassume, através de consciências estranhas, o seu corpo e sua relação com o mundo [...]”. Por isso, se faz necessário compreender que esferas (ou instâncias) atuariam sobre o corpo da mulher sempre em vias de construções e convívios sociais.

Também, nesta mesma perspectiva, Jaqueline de Jesus (2016) defende que: “[...] a construção da nossa identificação como homens ou mulheres não é um fato biológico e sim social” (JESUS, 2016, p. 61). Portanto, compreender as di-mensões das construções sociais faz-se necessário e urgente, uma vez que as mu-lheres são “ensinadas” a serem “mulheres”. Neste sentido, a obra de Beauvoir é um marco e continua atualíssima até os dias de hoje. Ademais, há uma série de impli-cações que ligam o “útero” aos espaços íntimos e aos espaços públicos (a exemplo, do legislativo, da igreja, da escola, da mídia, dos religiosos, dos cientistas, dos médicos, etc.). São esses diferentes aparelhos sociais que “tentam” determinar, de algum modo, o “controle” sobre o corpo da mulher.

Ademais, se o conjunto de características biológicas ou “naturais” não é aquilo que torna a mulher uma “categoria”, poder-se-ia dizer que, grosso modo, ela está “aparelhada” por discursos que refletem um conjunto de comportamentos construídos socialmente. Então, essa falta de “controle” sobre os corpos “femini-nos” implica uma série de violências cometidas contra a mulher, como explicita Lívia Magalhães (2016, p. 144) “[...] o machismo é reforçado, o tempo todo, na cultura brasileira pela própria sociedade [...] a violência de gênero é um reflexo di-reto do machismo”. Nesse sentido, muitas crenças pautam-se nessas “autoridades” de fala que acabam, por assim dizer, levando a uma gama de ações, comportamen-

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tos, crenças e decisões que favorecem (ou alimentam) o machismo, a violência e o sexismo, privando as mulheres, consequentemente, de seus direitos.

Também Freitas (2012), com o poema “um útero é do tamanho de um punho” vai construir subversões por força das imagens poéticas e dos intertextos (feitos pelas referências culturais) relativos à mulher, além de revelar todo um investimento das modalidades melopeicas e fanopeicas (para falar em termos de Ezra Pound, 2007) estruturadas numa linguagem poética de atmosferas nonsenses. Dessa maneira, ela vai desconstruindo o significado “literal” do útero e mexendo/jogando/subvertendo com/as estruturas das representações ou dos papéis sociais da mulher. Porém, como se acredita aqui numa noção dinâmica de poesia, que seria mais aberta e estaria em permanente estado de revisitação, a poesia de Freitas é “[...] capaz de fornecer ‘nutrimento de impulso’ a novas descobertas e expan-sões” (POUND, 2007, p. 12). Assim, a cada leitura uma nova descoberta pode frutificar outros olhares e interpretações.

Ademais, o humor (ácido ou agridoce) em Freitas é, sem dúvida, muito relevante. Muitos versos constituem jogos linguísticos que dão um tom inusitado ao poema, a exemplo da brincadeira da língua do “i”. Nele o investimento lúdico é um recurso que chama a atenção dos leitores, tanto sonora quanto visualmente: em seus versos: “im itiri i di timinhi di im pinhi / i midici / piri qui” (FREITAS, 2012, p. 60), é possível perceber que estabelecem um jogo literário num “estra-nhamento” prazeroso e metalinguístico.

2. OS ÚTEROS “FAMOSOS”Freitas vai apresentar também em seu poema uma série de “úteros” famo-

sos: “úteros famosos: / o útero de frida kahlo / útero de goldar meir/ o útero de maria Quitéria / o útero de alejandra pizarnik / o útero de hilary Clinton / [o útero de diadorim]” (FREITAS, 2012, p. 60). São diferentes mulheres oriundas de países e de realidades díspares. Há, até mesmo, uma “mulher-jagunço” trazida da ficção que é Diadorim (personagem encontrada na obra Grande sertão veredas (1956), de Guimarães Rosa). Apesar de serem mulheres diferentes, a construção paralelística da terceira estrofe enfatiza aquilo que as une: o útero. Este órgão (útero), se acionado de um modo amplo, pode ser pensado como um “corpo-me-mória”, uma simbolização da vida de cada uma dessas mulheres, muitas, aliás, sob o signo da dor e/ou do poder.

Em outros versos como: “[...] um útero expulsa os óvulos / óbvios / verme-lho = / tudo bem! / isti tidi bim / vici ni isti grividi” (FREITAS, 2012, p. 60), tem-

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-se “útero” e “óvulos”, que implicam fenômenos de reprodução e de menstruação. Camille Piglia (1992) no livro intitulado Personas sexuais: arte e decadência de Nerfertite a Emily Dicknson afirma que a menstruação é uma força ctônica, que o corrimento vermelho inestancável não é ele exatamente aquilo que perturba, mas “[...] antes a albumina no sangue, os fiapos uterinos, a medusa placental desse mar feminino [...]”. Todo mês, é destino da mulher enfrentar o abismo do tempo e do ser, o abismo que é ela mesma” (PIGLIA, 1992, p. 22). Assim, a mulher é uma força ctônica uma conjunção de fenômenos singulares para o enfrentamento dos “abismos” existenciais.

Ainda se recorre aqui a Piglia (1992) para falar da gravidez2. Para esta au-tora, a natureza é um sistema paradoxal na gravidez, pois há forças que não são controláveis diante de processos fisiológicos/psíquicos porque são complexos e ambivalentes. Os versos: tudo bem! / isti tidi bim / vici ni isti grividi” [...] (FREI-TAS, 2012, p. 60) parecem ser a expressão de um alíviante “tudo bem!”. A mulher pode até passar a vida “repelindo” a gravidez, mas não pode jamais se furtar à na-tureza da espécie, pela questão da menstruação e tudo o que esta representa para ela. Além disso, diante da gravidez, como já apontado neste texto, há uma série de implicações sociais, incluindo o direito (ou o não direito) ao aborto.

Outros versos de Freitas dizem o seguinte: “[...] um útero é do tamanho de um punho / num útero cabem capelas / cabem bancos hóstias crucifixos / ca-bem padres de pau murcho / cabem freiras de seios quietos / cabem as senhoras católicas / que não usam contraceptivos / militando diante das clínicas / às 6h na cidade do México/ e cabem seus maridos / em casa dormindo / cabem cabem / e depois vão / comprar pão” (FREITAS, 2012, p. 61). E também nos versos: “repi-ta comigo: eu tenho um útero / fica aqui / é do tamanho de um punho / nunca apanhou sol / um útero é do tamanho de um punho/ não pode dar soco / questões importantes: movimentação da bolsa / sacas de soja / reservas de água (FREITAS, 2012, p. 61 [grifo da autora]). Verifica-se que há todo um jogo entre o “útero” biológico e o “útero” da construção social, ou seja, o que é a mulher na sociedade? O útero, mesmo sendo do tamanho de um punho, “não pode dar soco”, mas nele cabem tantas outras “coisas” que vão significando o mundo social e o da mulher.

Nos versos que se seguem até o fim do poema a poetisa vai ressignificando o corpo da mulher, (re)combinando o seu mundo diante daquilo que já foi pro-duzido especialmente pela cultura popular. Freitas também vai falar da autonomia

2 “Toda mulher grávida tem o corpo e o ego tomados por uma força ctônica além do controle. Na gravidez desejada é um sacrifício feliz. Mas, na indesejada, iniciada por estupro ou azar é um horror, pois o feto é um tumor benigno, um vampiro que rouba para viver” (PIGLIA, 1992, p. 22).

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econômica das mulheres: “a menina que não estuda / vai puxar carroça” (FREI-TAS, 2012, p. 63). Entretanto, essa condição de “estudo” (que “supostamente” levaria a uma maior autonomia financeira) não garante à mulher, como defende Beauvoir (2008 [1949]), condições mais vantajosas sobre o homem, pois: “Eco-nomicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igual-dade de salários mais altos, maiores possibilidades de êxito [...]” (BEAUVOIR, 2008 [1949], p. 32). Ainda hoje se está longe de ver mulheres em que a liberdade econômica alcance “[...] uma situação moral, social e psicológica idêntica à do homem [...] (BEAUVOIR, 2008 [1949], p. 50). Portanto, elas ainda dependem de contextos variáveis de estruturas sociais que privilegiam o mundo dos homens. Mediante isso, Freitas (2012) vai colocar em xeque traços de uma cultura machis-ta e capitalista. Porém, a poetisa trata destes assuntos com um humor picaresco e com uma dose alta de inventividade poética e, ao abordar o corpo da mulher, Freitas (2012) vai além das questões biológicas, expressando (por meio da perfor-mance poética) um locus de ocupação social à vida da mulher.

Observa-se ainda que vários úteros-mulheres são tensionados ao longo do poema. O verso final diz o seguinte: “i piri qui” (FREITAS, 2012, p. 66). Este último verso do poema “um útero é do tamanho de um punho” (2012) abre es-paço para que os leitores continuem a discussão, pois são eles que tentarão trazer/formular respostas possíveis: a desta autora, por exemplo, seria para que “sejamos todos feministas”, seguindo em consonância com aquilo que preconiza a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (ADICHIE, 2015, p. 33), uma vez que: “Somos seres, afinal de contas, e internalizamos as ideias através da socialização”. Dessa maneira, pensa-se aqui que, somente quando mulheres e homens forem realmente “feministas” (lembrando os feminismos plurais), será possível ver uma mudança nas mentalidades dos seres humanos.

Assim, “um útero é do tamanho de um punho” traz à cena o corpo da mu-lher (seus rumores, intensidades, perdas, excessos (erotizações), etc.), expressando e reverberando a dor e o prazer ainda sob o ponto de vista do erotismo, conforme conceitua Georges Bataille (2014). Todavia, que barreiras e/ou restrições sociais as mulheres ainda buscam superar em pleno século XXI? Poder-se-ia dizer que são muitas, a exemplo do prazer feminino, pois, às vezes, pensar nesse prazer erótico (perda, excesso, gasto improdutivo, não acumulação, escape à razão, etc.) é lidar com muitas intolerâncias e/ou contrapoderes. Para Bataille (2014, p. 293), “[...] o interdito é um preconceito de que já é tempo de se desfazer. A vergonha e o pudor que acompanham o sentimento de prazer não seriam mais do que provas de ininteligência”.

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Nesse processo de prazer/erotismo/gozo vê-se uma necessidade de dissolu-ção de “formas” constituídas, mas, esta pode levar a uma perturbação dos sentidos mais óbvios de estados interditos: “[...] um útero expulsa os óvulos / óbvios / ver-melho= / tudo bem!” para uma plena exuberância sexual, para uma intensidade do eros pulsante em relação a afirmação da vida, é o erógeno em sua potência de força, mesmo diante da dor ou da morte, é sempre o erótico em última instância de desejo.

É PRECISO PARAR (À GUISA DE CONCLUSÃO) O TEXTO, NESSE PONTO, MAS NÃO A LUTA!

Ao ler o poema “um útero é do tamanho de um punho” (2012), perce-be-se que Freitas retoma (e vai revitalizando, a seu modo) o conceito de que a mulher é uma construção (assunto já teorizado por Beauvoir lá nos finais dos anos 40). Ela até intitula um dos seus poemas de: “a mulher é uma construção” (FREITAS, 2012, p. 45) e seus primeiros versos são: “a mulher é uma cons-trução / deve ser”. Entretanto, se a mulher é uma construção, quem é que a constrói? Essa questão envolve discursos políticos e sociais, pois o homem só se afirma como “essencial” se fizer da mulher um ser “inessencial” – um objeto de controle, conferido, desde o início dos tempos, e ligado a uma questão de “poder”, em faces de processos históricos.

Nesta perspectiva, a poeta vai jogando com a ideia de “construção”, a partir de uma escrita poética jocosa e lúdica. Consequentemente, Freitas (2012) vai trazer à tona questões de “identidade/s”. Além disso, a instância da construção implicaria vários caminhos, mas, nos versos finais desse poema, ela diz: “nada vai mudar – / nada nunca vai mudar – / a mulher é uma construção” (FREI-TAS, 2012, p. 46). O que se entende aqui deste trecho? Parece que há nele uma crítica contundente. Será mesmo que “nada nunca vai mudar” [grifo da autora]? Que se convoque, então, novamente, Beauvoir (2008 [1949], p. 50), quando diz: “[...] existe hoje um número assaz grande de privilegiadas que encontram em sua profissão uma autonomia econômica e social. São elas que se coloca em questão, quando se indaga das possibilidades da mulher e de seu futuro”. Nesse sentido, a autora parece vislumbrar uma estratégia, uma saída para a mulher: sua independência financeira, porém apenas essa perspectiva não garante mudanças significativas, uma vez que, essa “realidade” não engloba todas as mulheres e por-que a sociedade ainda não considera homens e mulheres do mesmo modo. E para que ela alcance liberdades (ou autonomias) de várias ordens, terá que enfrentar muitos conflitos.

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Mesmo hoje, o fato de se ser uma mulher ainda é uma questão para a so-ciedade. Para finalizar o texto (mas, não a luta e essa temática), mais uma vez se recorre a Beauvoir (2008 [1949], p. 50) que defende que “[...] os que tanto falam de “igualdade na diferença” mostrar-se-iam de má fé em não admitir que possam existir diferenças na igualdade”. Portanto, é necessário ter consciência das dife-renciações na igualdade (de mulheres e homens), para se afirmar, sem medo ou equívoco, a fraternidade humana.

LEIS CIVIS E PENAIS MACHISTAS DO SÉCULO XX E A OBRA HOMENS TRAÍDOS

Carla Estela dos Santos Rodrigues1

Agarre este livro pelos chifres, tenha força e iniciativa, atire-se ao perigo e ao desconhecido. 2

O tema desse ensaio surgiu através da leitura da obra “Homens Traídos”. No livro, a autora Erônides Câmara de Araújo3 questiona códigos, valores e linguagens que prescrevem um modelo de educação de gênero, assim como analisa as formas que alguns homens lidam com a infidelidade feminina na contemporaneidade.

A obra foi construída a partir de experiências da própria escritora, quais sejam: a forma que seu corpo foi educado para carregar a honra do marido e o processo de separação judicial, no qual foi acusada de adultério e judicialmente culpada pela dissolução do seu casamento.

Neste sentido, é que ao narrar o seu processo de divórcio, a autora chama atenção do leitor para a existência de normas que possuem consequências jurídicas distintas para o homem e para a mulher. Elucidando, assim, o crime de adultério previsto no Código Penal Brasileiro de 1940, como a representação de um instituto marcado pelo machis-mo. “No Brasil, a infidelidade da mulher representada como crime, é histórica e tem suas diferenças nas relações entre o masculino e o feminino.” (ARAÚJO, 2016, p. 105).

Com isso, a presente pesquisa propõe a análise de dispositivos civis e pe-nais invocados tanto no código civil de 1916 quanto no código penal de 1940, que tratam sobre a figura da mulher, para que se compreenda como algumas leis ratificam o machismo, e como isso é percebido na prática jurídica do processo de divórcio da historiadora Eronides Câmara de Araújo.

No entanto, antes de abordar especificamente esses temas, vamos ter a oportunidade de conhecer, em síntese, quem é Eronides Câmara de Araújo e qual a sua importância para este trabalho.

1 Advogada. Pós-Graduada em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito (2018. Ex-bolsista do Pro-grama de Iniciação Científica e Tecnológica (2013-2015). Coautora dos livros Feminismos, Artes e Direitos das Humanas, Direito e Cinema Brasileiro, Direito e Música Brasileira, e Autora de artigos em revistas especializadas. E-mail: [email protected].

2 A primeira epígrafe desse texto foi retirada do prefácio da obra “Homens Traídos”, escrito pelo Professor Doutor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. As demais epígrafes são relatos da própria autora na obra “Homens Traídos”.

3 Agradecemos a Eronides Câmara de Araújo e, ressaltamos a nossa admiração pelo seu cárater revolucionário.

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2 A MULHER QUE ROMPEU COM OS CÓDIGOS SOCIAIS E JURÍDICOS DE SUA ÉPOCA E TEVE A CORAGEM DE SE DESNUDAR

Dezoito anos se passaram desde a minha separação judicial. Escapei com vida, me tornei diferente e sentindo-me outra mulher.

Eronides Câmara de Araújo, filha de dona Antonia e seu Gerônimo, nasceu na pequena cidade de Juazerinho, interior da Paraíba, nos anos 50 do século XX. Aos 16 anos de idade casou-se e, com o marido foi morar na cidade de Campina Grande. Posteriormente, mudou-se para a cidade de Esperança4, lugar em que nasceram as suas três filhas.

A vida de “rainha do lar” afastou-a dos estudos por doze anos. Quando resol-veu retomá-los, mesmo sem o apoio do marido, conseguiu se formar em História pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente, além de ser mestre em Sociologia Rural é, também, doutora em Ciências Sociais, com a tese defendida no ano de 2011, intitulada: “Fazer de algumas passagens, quadros, e quem sabe um dia, você possa assinar: homens traídos e práticas da masculinidade para suportar a dor”.

A sua tese de doutorado resultou na obra “Homens Traídos”, em que reu-niu a sua experiência de vida e construiu um verdadeiro documento histórico. A própria escritora afirma que os seus escritos são fragmentos da sua infância, juven-tude e de suas experiências como mulher casada. “Estão as lembranças de como as palavras, os gestos, as visibilidades, as dizibilidades me tornaram feminina, mãe, ‘rainha do lar’, militante e mulher honrada.” (ARAÚJO, 2016, p. 93).

Eronides Câmara de Araújo, tanto cumpriu com as normas reguladoras que alojaram a honra masculina no seu corpo, como as transgrediu. “Uma separação litigiosa é um ritual que coloca no sujeito o sentimento de medo. Eu me senti como indo para a forca, para pagar um crime por eu ter me apaixonado e por não mais desejar o marido.” (ARAÚJO, 2016, p. 133).

A pedagogia enfrentada pelo seu corpo para conduzir simbolicamente a hon-ra masculina, bem como a sua separação judicial serão abordadas nesta pesquisa5. “É um exercício para pensar a política de gênero prescrita e inscrita sobre nossos corpos. Uma política educadora desigual e classificatória que produziu muitas vezes o desamor, a frustração e o desencanto com o mundo.” (ARAÚJO, 2016, p. 22).

No Brasil, a política educadora desigual de gênero que Eronides Câmara

4 Cidade que fica no interior da Paraíba.5 As duas propostas estão abordadas respectivamente nos subtítulos 4.1.1 e 5.1.1.

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de Araújo viveu nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX, teve suas raízes no cha-mado modelo de família patriarcal. Portanto, é imprescindível realizar algumas considerações sobre a construção da mulher e do machismo em uma sociedade norteada pelo patriarcalismo, uma vez que, as ponderações acerca deste assunto perpassam todo conteúdo a ser apresentado.

3 A CONSTRUÇÃO DA MULHER E DO MACHISMO NA SO-CIEDADE PATRIARCAL

Para chegar a ser a “rainha do lar” a moça tinha que passar por vários estágios, entre eles, talvez, mais importante, era saber cozinhar para servir aos fi lhos e ao marido.

No livro Casa-grande e Senzala, Gilberto Freyre descreve a família patriar-cal brasileira6 como aquela chefi ada por um patriarca que detém plenos poderes sobre sua esposa, fi lhos, agregados e escravos. “A força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres.” (FREYRE, 2003, p. 19).

Deste patriarcalismo de que fala Freyre, sem dúvidas, a fi gura central era o ho-mem, o mundo girava ao seu redor. “O chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até El Rei a compromissos, dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios.” (FREYRE, 1957, p. 17-18). A imagem 1 apresenta o homem da época em completa evidência.

Imagem 1 – J. B Debret em Voyage Pittoresque et Historique ou Brésil.

Fonte: FREYRE (2003, p. 119)

6 Tanto Gilberto Freyre quanto Sérgio Buarque de Holanda sustentam que, a soma da familia patriarcal portu-guesa com a colonização agrária e escravista resultou no chamdo patriarcado brasileiro.

242 LEiS CiviS E PEnaiS maCHiSTaS Do SéCuLo XX E a oBra HomEnS TraíDoS

Para justificar a superioridade da figura masculina no patriarcado brasileiro, o homem apresentava-se como detentor da força e da intelectualidade, devendo “ter a coragem de um touro e a valentia de um leão.” (ARAÚJO, 2016, p. 99) A mulher, no que lhe concerne, “foi historicamente representada como sexo frágil e sensível” (ARAÚJO, 2016, p. 99). “Mulher amante, filha, irmã, esposa, mãe, avó. Nestas seis palavras existe o que o coração humano encerra de mais doce, de mais puro, de mais estático, de mais sagrado, de mais inefável.” (JORNAL COMÉR-CIO, Desterro, 27 jul, 1891). (PRIORE, 2006, p. 281).

Existia, contudo, uma dicotomia no papel desempenhado pela mulher branca e pela mulher negra. As mulheres brancas eram aquelas que com a sua fragilidade e sensibilidade exerciam um papel de administração do lar, cabia a ela; à obediência ao marido; à procriação; a responsabilidade de cuidar dos afazeres domésticos, da educação dos filhos e do poder de mando com os escravos, deven-do ser o exemplo da moral e dos bons costumes. “A mulher branca da casa-grande desempenhava, via de regra, importante papel no comando e supervisão das ativi-dades que se desenvolviam no lar.” (SAFFIOTI, 1979, p. 170).

As mulheres negras, por sua vez, eram aquelas dissociadas do matrimônio e genitoras da irregularidade moral, as quais praticavam aventuras sexuais com os seus senhores, endossando o estereótipo da prostituição. Prado (1942), apud Prio-re (1994), com o olhar semelhante dos viajantes do século XIX, as vê libidinosas e pervertidas. “Fora do espaço doméstico ou do eito, seriam ‘mulheres com facili-dades de costumes’, associadas às ‘mulheres submissas de raças dominadas’, surdas ao matrimônio e genitoras da irregularidade moral.” (PRIORE, 1994, p. 15).

É importante destacar também, que as instituições religiosas da época, principalmente a igreja católica, deram o tom ao modelo de corpo feminino reca-tado norteado pelos elementos de virgindade; casamento; monogamia e submis-são ao marido. Tem-se o cristianismo divulgando um modelo feminino de corpo obediente e, condenando o seu avesso, um modelo de corpo que estaria sujeito aos castigos celestiais. Esse discurso expressava “uma apologia que lisonjeia a mulher para melhor submetê-la.” (PRIORE, 1994, p. 16):

“Que mulher nenhuma vá às igrejas de saia tão alta que lhe apareçam os artelhos dos pés e com as saias à maneira de degraus de sepultura aparecendo a mais infe-rior, nova moda que com escândalo de toda a modéstia e honestidade tem introdu-zido o demônio”, reza a carta pastoral de D. Antônio de Toledo em 1773.

Deseja-se fechar a mulher na armadura da aparência para que ela não seja a ima-gem falaciosa de si mesma. A este modelo e desordem sensual contrapõe-se a ne-cessidade e recato que deve ser obedecida mesmo à força.

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[...]

A mulher que deseja escapar aos castigos celestiais ou temporais deve estar en-quadrada no casamento, e nele “... deve estar sujeita ao seu marido... deve reve-renciar-lhe, querer-lhe e obserquia-lhe. Deve inclinar ao séquito da virtude e com seu exemplo e paciência ganha-lo para Deus. Não deve fazer coisa alguma sem seu conselho. Deve abster-se de pompas e gastos supérfluos e usar de vestido honesto conforme seu estado e condição de cristã”. (Manual de Arceniaga). (PRIORE, 1994, p. 17).

Dentro deste sistema patriarcal, os pais educavam as filhas diferente dos filhos. Enquanto as meninas, na maioria das vezes, eram levadas aos conventos para aguardar o futuro marido escolhido pelo próprio patriarca, onde aprendiam a ler; cantar; escrever e bordar; para os meninos, desenvolveu-se a prática da pri-mogenitura, em que o filho mais velho herdava todas as terras do pai. “Se a família fosse composta de mais de um filho, os outros seriam encaminhados aos estudos para se formarem médicos, advogados ou mesmo padres, caso sua formação fosse religiosa.” (COTRIM, 2005, p.54).

Neste sentido, Samara estima que: “a família patriarcal era o mundo dos homens por excelência.” (SAMARA, 1986, p. 201). Podemos afirmar, portanto, que o patriarcado foi um modelo de dominação masculina delineado pela ideolo-gia machista, onde a figura feminina é equiparada a uma propriedade do homem. Primeiro, uma propriedade do pai; depois, do marido, reforçando a errônea ideia de hierarquia entre os sexos. “O homem está para a mulher como a mulher para a criança; ou o poder para o ministro como o ministro para o súdito, escreve Bo-nald”. (BEAUVOIR, 2009, p. 167).

Essa visão hierarquizada; fechada da família patriarcal, que no Brasil teve origem no século XVI, foi aprimorada e se estendeu por vários séculos. Mas, é importante esclarecer que, o núcleo do sistema pater-familias7 começou a de-monstrar sinais de fraqueza quando as mulheres passaram a se conscientizar das desigualdades e submissões pelas quais viviam. Logo, a sociedade patriarcal brasi-leira começou a ser desvirtuada com mais intensidade, principalmente após a Se-gunda Guerra Mundial, quando aconteceram diversas transformações legislativas8 e a inserção da mulher no mercado de trabalho. Perrot (1993), apud Dias (2013)

7 Significa que o poder estava nas mãos do pai; que era o chefe da família e tinha, portanto, total direito de regu-lar a vida da esposa e dos filhos. Com as modificações sociais e legislativas, o termo foi alterado para “poder familiar”. Dos ensinamentos de Orlando Gomes, podemos concluir que o “poder familiar” corresponde às disposições legais dos deveres atribuídos aos pais, para que cuidem dos interesses de seus filhos menores. Assim, tanto o pai quanto a mãe possuem igualdades de direitos e deveres sobre os filhos e o lar.

8 A legislação brasleira que mais se destacou foi o Estatuto da Mulher Casada (L. 4.121/62), que devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclu-siva dos bens adquiridos com o fruto de seu labor.

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afirma que, começaram a surgir “novos modelos de família, mais igualitárias nas relações de sexo, idade, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus compo-nentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo.” (DIAS, 2013, p. 39).

4 O CÓDIGO CIVIL DE 1916O discurso jurídico deveria funcionar para operacionalizar e proteger a higiene da moral familiar, quando fosse burlada a normatização social.

A mulher e o homem nunca partilharam o mundo de igualdade de condi-ções. No Brasil, ainda hoje, embora os direitos das mulheres sejam abstratamente reconhecidos, o machismo fortalecido por estatutos legais internos, tornaram-se grandes entraves para as concretizações desses direitos. “Desde os primeiros tem-pos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concre-tamente como Outro.” (BEAUVOIR, 2009, p. 207).

Em 1889, no final do século XIX, quando a sociedade brasileira ainda vivia nos moldes do patriarcalismo, Clóvis Beviláqua; jurista da época; recebeu o encar-go de elaborar o projeto de um Código Civil Brasileiro, o qual só foi aprovado em 1916, devido a forte oposição do jurista Ruy Barbosa, que elaborou um detalhado parecer criticando a linguagem e sugeriu emenda a quase todos os seus 1.807 ar-tigos (SALGADO, 2012).

O Código Civil de 1916 começou a vigorar no ano de 1917, sendo revo-gado apenas em 2002 e, foi uma codificação da sociedade do século XIX, literal-mente conservadora e iminentemente influenciada pelos códigos canônicos9, os quais supervalorizavam a família transpessoal, hierarquizada e patriarcal. Para Ma-ria Berenice Dias, o Código Civil de 1916, consolidou a superioridade masculina, transformou a força física do homem em poder pessoal, dando-lhe o comando exclusivo da família (DIAS, 2008).

Nesse sentido, com a finalidade de despertar ideias em defesa da vida, da liberdade e da igualdade de gênero, faz-se necessário analisar alguns artigos pre-sentes no Código Civil de 1916, que ratificaram a ideologia machista e as suas repercussões na vida das mulheres. “É, pois, necessário estudar com cuidado o destino tradicional da mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se acha encerrada, que evasões lhe são permitidas, eis o que procurei descrever.” (BEAUVOIR, 2009, p. 357).

9 O direito canônico só admite como regime matrimonial o regime dotal que torna a mulher incapaz e impotente.

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4.1 ANÁLISE DE ARTIGOS DO CÓDIGO CIVIL QUE TRATAM SOBRE A FIGURA DA MULHER

A virgindade e a fidelidade feminina significavam, respectivamente, a valorização da honra do pai e do meu marido e por extensão, a minha honra e da minha família.

“‘A mulher casada é uma escrava que é preciso saber colocar num trono’, diz Balzac.” (BEAUVOUIR, 2009, p. 169). A Lei n. 3.071/1916 copilou o discurso machista em diversos institutos. O artigo 6°, por exemplo, estabelecia que a mu-lher, quando contraia o matrimônio perdia sua plena capacidade, passando a ser relativamente incapaz a certos atos, ou à maneira de exercê-los, sendo equiparada aos maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, os pródigos e índios. Logo, a mulher casada deveria ser assistida pelo marido, tendo, inclusive, por domicilio civil o do esposo (CC/16, art. 36, § único). Além disso, era obrigada a adotar o nome do seu cônjuge (CC/16, art. 240).

A codificação do papel da mulher como administradora do lar, podia ser encontrada em vários dispositivos: cabia à mulher, com o casamento, assumir a condição de companheira, consorte e auxiliar nos encargos de família (CC/16, art. 240). A mulher casada, não podia sem autorização do marido exercer profis-são; alienar ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular, qualquer que fosse o regime de bens e litigar em juízo civil e comercial (CC/16, art. 242, II, VI e VII). Mas, quando as questões se referiam ao lar, a mulher possuía uma autorização presumida. Assim, era autorizada pelo esposo a compra, ainda a crédi-to, das coisas necessárias à economia doméstica ou obter empréstimos, as quantias que a aquisição dessas coisas poderiam exigir (CC/16, art. 247, I e II).

Um dos artigos mais misóginos envolvia o culto a preservação do corpo feminino – a virgindade –, fortemente sustentado pelo cristianismo durante o patriarcado brasileiro. O defloramento da mulher configurava erro essencial sobre a pessoa. O homem, não conhecendo o fato ou “defeito” poderia pedir a anulação do casamento (CC/16, art. 219, IV). O prazo para pedir a anulação do matrimô-nio com uma mulher já deflorada prescrevia em dez dias, contados da sua realiza-ção (CC/16, art. 178, §1°). Importante ressaltar que, a preservação da virgindade feminina significava a honra do pai e do marido e, ainda hoje, persiste como regra em diversas instituições religiosas.

Outra norma machista com ditames morais e religiosos era o dever con-jugal de fidelidade, insculpida no artigo 231, inciso I, do Código Civil de 1916. Embora a fidelidade conjugal devesse ser recíproca; na prática; quando do adul-tério, a educação de gênero baseada no masculino como sujeito da sexualidade e

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poder, tornou as sanções “mortas” para o homem. Dessa forma, “Embora hou-vesse prescrição da “obrigatoriedade” da fidelidade conjugal ao casal, o controle e a normatização eram sempre dirigidas à mulher.” (ARAÚJO, 2016, p. 35). A esposa infiel perdia todos os direitos para o marido (CC/16, art. 232, I); não podia ficar com a guarda dos filhos menores (CC/16, art. 326); não podia casar com o cúmplice do adultério; (CC/16, art. 183, VII); era obrigada a retirar o nome do esposo (CC/16, art. 324) e, ainda, não podia requerer pensão alimen-tícia (CC/16, art. 320).

O concubinato10 foi outro instituto marcado pela misoginia. A mulher amante era condenada à clandestinidade e à exclusão social e jurídica, não pos-suindo qualquer direito; inclusive os filhos bastardos, rotulados de incestuosos, sem garantia de buscar a identidade e o reconhecimento paterno. Ao homem infiel, contudo, não era imputado qualquer responsabilidade; o prejuízo era ape-nas da mulher concubina, devendo sustentar sozinha o filho adulterino, o que era uma forma de punição simbólica por ter desrespeito a família. Nesse sentido, Dias (2013) afirma que:

O antigo Código Civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia a sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa da preservação do casamento. (DIAS, 2013, p. 30).

Manteve, assim, o Código Civil de 1916 a marca da superioridade masculi-na; do pater-familias. O marido era o “varão”, o chefe da sociedade conjugal, com-petindo-lhe a representação legal do família; assim como a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher; o direito de fixar o domicílio da família; de autorizar a profissão da mulher e prover a manutenção da lar (CC/16, art. 233, I, II, III. IV e V). Escreveu Auguste Comte: “O melhor resumo prático de todo o programa moderno breve consistirá neste princípio incontestável: o homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social.” (COMTE, 1996, p.111).

10 Mesmo com a vigência de um Novo Código Civil em 2003, o concubinato continua com marcas machistas. Apesar do novo Código Civil não distinguir os filhos concebidos “dentro” ou “fora” do matrimônio, a mulher amante não tem qualquer amparo legal.

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4.1.1 A SOCIEDADE PATRIARCAL: A PEDAGOGIA DO CORPO FEMININO PARA “CONDUZIR” SIMBOLICAMENTE A HONRA MASCULINA

O tamanho da saia do uniforme escolar deveria ficar abaixo do joelho [...]. O sen-tar-se, por exemplo, deveria ser com cuidado, principalmente não sentar de pernas abertas, isso era “coisa de homem”.

No estudo do patriarcado verificamos que o cristianismo em muito contri-buiu para a educação de um corpo feminino virgem e fiel. Nas imagens sacras, por exemplo, a própria “Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos –, desaparecem de oratórios e igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo, quando não era vestida pelas próprias devotas.” (PRIORI, 2011, p. 12). Os dis-cursos religiosos presentes nos períodos de predominância da sociedade patriarcal, portanto, purificavam e higienizavam o corpo feminino.

A preservação ao corpo começava desde a infância, quando as meninas eram vestidas com roupas longas; sem muitas cores ou brilhos e a forma cuidadosa de sentar nos lugares indicavam uma estrutura física obediente e disciplinada. O corpo feminino não deveria ser visto como sensual ou erótico, mas “como instru-mentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como ‘torre de marfim’ cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se.” (PRIORI, 2011, p. 12).

Neste sentido, depreende-se da leitura da obra “Homens Traídos” que, Ero-nides Câmara de Araújo viveu a arte da pedagogia em seu corpo no final da déca-da de 50 e 60 do século XX, período em que o Brasil possuía marcas profundas do sistema patriarcal. O cuidado que a sua mãe tinha para preservar a virgindade das filhas, envolvia desde o lúdico nas brincadeiras de infância11 até as roupas, o modo de sentar, saber ouvir os conselhos e os lugares sob vigilância. Tudo isso era uma pedagogia ao corpo; era uma educação que preparava as meninas para a mater-nidade; o lar; ser uma esposa fiel e submissa, requisitos que quando preenchidos honravam o pai, a família, mas, principalmente o marido.

O meu retrato, no que diz respeito ao gênero, pode contribuir para pensar o que era exigido das mulheres da minha cidade em termos de comportamento, da for-ma de sentar e de cruzar as pernas, mas também para discutir como o vestuário era utilizado e quem deveriam ser as companhias femininas, entre tantos outros temas. (ARAÚJO, 2011, p. 50).

11 A arte da pedagogia, através do lazer, fumcionava pelas repetições das cantigas de roda; pelas brincadeiras para aprender a cozinhar e cuidar das bonecas.

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Imagem 2 – Foto dos quinze anos

Fonte: ARAÚJO (2011, p. 50)

Existiam, ainda, em meados do século XX, outras formas que fortifi cavam a pedagogização do corpo feminino; formas que vinham de fora para dentro da família, exemplo disso, eram as fotonovelas e programações do rádio. “As nove-las radiofônicas tinham os exemplos dos efeitos da perda da virgindade, situação na qual, não só trazia problemas familiares, como produzia preconceitos sobre a mulher.” (ARAÚJO, 2016, p. 264). Mais adiante, Eronides Câmara de Araújo afi rma que, esses “exemplos, funcionavam como uma repetição no processo de subjetivação e fortaleciam a pedagogia do corpo feminino para ser virgem, puro, casto e assim poder zelar a honra masculina.” (ARAÚJO, 2016, pg. 265).

Além disso, durante o período que as meninas viviam com os pais, a educa-ção ao corpo deveria garantir a identidade de mulher honrada e fi el no casamen-to. De modo que, quando transgredidas estas asserções – virgindade e fi delidade conjugal –, a mulher, “responsável pela proteção da honra masculina fi cava de-sonrada, porque teria denegrido os valores que dão signifi cados à masculinidade, o que era uma desmoralização do homem.” (ARAÚJO, 2016, p. 40). “Por isso o cuidado de dona Toinha12 com o comportamento das fi lhas mulheres para não ‘caírem na buraqueira’.” 13 (ARAÚJO, 2016, p. 39).

12 Dona Toinha era o apelido de Antonia, mãe de Eronides Câmara de Araújo.13 “Cair na buraqueira é uma expressão popular que signifi ca cair na gandaia, sem controle.

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5 O CÓDIGO PENAL DE 1940 Diferente das moças donzelas que se aconchegavam debaixo dos lençóis e que sua honra estava sob vigilância da família, as “mulheres da linha do trem”, eram aque-las consideradas desonradas, sem família, sem pureza.

O Código Penal de 1940 é, ainda, a nossa legislação penal principal. Em-bora tenha sido promulgado em 1940, somente passou a vigorar em janeiro de 1942, isso, além de ser uma forma para que as pessoas passassem a conhecer o seu conteúdo, foi também uma estratégia para coincidir com a vigência do Código de Processo Penal. (DUARTE, 1999).

O código penal de 1940 teve a sua origem na era Vargas14, quando o Brasil pas-sava por diversas transformações comportamentais. Surgia, por exemplo, a chamada “mulher moderna”, aquela desligada do modelo patriarcal de família, em que menos-preza a moral e os bons costumes. Essa mulher tornou-se acima de tudo uma ameaça ao sistema de dominação masculino. “Desde que ela deixou de ser uma parasita, o sistema baseado em sua dependência desmorona.” (BEAUVOIR, 2009, p. 879).

Dessa forma, frear o movimento comportamental que desvirtuava as mu-lheres do seu destino tradicional – o casamento, os afazeres domésticos e a ma-ternidade –, foi uma preocupação dos discursos jurídicos da época. O legislador penal, Alcântara Machado, submetido à revisão de Nelson Hungria, Vieira Braga, Macélio de Queiroz e Roberto Lira, utilizaram a criativa terminológica, invocan-do em vários artigos o termo honra e virgindade, por exemplo, para conter um novo mundo; o mundo das “mulheres da linha do trem”, mulheres desonradas e impuras. (DUARTE, 2015).

5.1 ANÁLISE DE ARTIGOS DO CÓDIGO PENAL QUE TRATAM SOBRE A FIGURA DA MULHER

“Pare de tomar a pílula..., porque ela não deixa o filho nascer”15 era um indicativo de que a mulher estava tendo outra relação com o seu corpo e como efeito produ-zia angústias e dor para o exercício da masculinidade hegemônica.

“Uma casa de ‘mulheres perdidas’ permite tratar as ‘mulheres honestas’ com o mais cavalheiresco respeito.” (BEAUVOIR, 2009, p. 733). Ao tratar “dos

14 A Era Vargas teve início com a Revolução de 1930, onde expulsou do poder a oligarquia cafeeira. Assim, Vargas passou a governar o Brasil por 15 anos, de forma contínua (de 1930 a 1945). Esse período foi um marco na história do Brasil, em razão das inúmeras alterações que Getúlio Vargas realizou no país, tanto no plano social quanto no plano econômico.

15 Era o refrão da melodia do cantor Odair José, que fez sucesso nos anos 70 aos 90 do século XX. A música foi censurada pela ditadura militar brasileira, porque a canção fazia propaganda contrária à distribuição das pílulas anticoncepcionais para o controle de natalidade feito pelo Estado.

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crimes contra os costumes”, o Código Penal de 1940 não só reproduziu e reforçou o discurso machista, mas também dividiu as mulheres em “honestas” e “desones-tas” 16, estigmatizando a ideia de que as mulheres desonestas contribuíam para o delito e, portanto, seriam merecedoras do crime. (NUCCI, 2002).

O teor do dispositivo dizia: ter conjunção carnal com uma mulher “honesta”, mediante fraude; pena de reclusão; de um a três anos (CP/40, art. 215, I). O termo “honesta” no texto legal representava uma mulher do lar, obediente e fiel ao marido, baseado no modelo de família patriarcal. Dessa forma, os artigos da lei penal que se referiam as mulheres “honestas” excluíam da proteção jurisdicional as adúlteras; bem como as que possuíam um comportamento sexual “liberal” e as prostitutas.

Ainda, “dos crimes contra os costumes”, o artigo 217 protegia a virginda-de. Nelson Hungria, um dos membros que redigiu o projeto do Código Penal, afirmava que: “a mulher desvirginada fora do casamento perde o seu valor social. Se alguém a desposa, insciente de sua defloração, o casamento pode ser anulado.” (HUNGRIA, 1980, p. 43). Hungria chegou a citar um antigo provérbio alemão relembrado por D’Aguiar: “noch besse wär eines Igels Im Bett, als eine leide Braut”; em vernáculo “antes uma pele de ouriço na cama do que uma noiva deflorada”. (HUNGRIA, 1980).

Não obstante, Hungria (1980) apud Nucci (2002), defendia a impossibi-lidade do marido cometer crime de estupro contra a própria esposa, pois, para o jurista, o homem casado tinha o direito de exigir que a mulher tivesse conjunção carnal com ele, tendo em vista que era uma das obrigações do casamento. Dessa forma, para os doutrinadores mais antigos17, “o marido que constrangesse a espo-sa, mediante violência ou grave ameaça, a ter com ele relação sexual, estaria aco-bertado pela excludente de ilicitude do exercício regular de seu direito.” (NUCCI, 2002, pg. 165).

Nesse sentido, é passível compreender que os “crimes contra os costumes”, em verdade asseguravam os costumes sociais de uma sociedade dominada pelos “machos”, em que a mulher pura, ingênua, virgem e honesta era símbolo de honra e prestígio masculino. A proteção jurídica da virgindade e da “honra” da mulher, é acima de tudo, tutelar a honra e a masculinidade do homem.

Outrossim, é preciso lembrar que o crime de aborto previsto no artigo 128 do Código Penal, também reproduz uma ideologia machista. A mulher, ao negar

16 O termo “honesta” só foi retirado do código penal em 2005, com a Lei 11.106/2005. É importante esclarecer que, os artigos 216 e 219, também citavam o termo “honesta”.

17 Nelson Hungria e Magalhães de Noronha.

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o seu destino tradicional - o da maternidade - pela prática do aborto, é enquadra-da como criminosa. No Brasil, foram raros os casos em que a mulher ficou reclusa por conta desse delito, portanto, a tipificação penal do aborto passou a ter status meramente simbólico, em que sustenta uma sociedade androcêntrica sexista, ela-borada a partir das ideias difundidas pelo patriarcado.

O aborto como crime reforça, ainda, a ausência de autonomia da mulher sobre o próprio corpo, esse, pedagogizado para ser higiênico e puro; discurso defendido no sistema patriarcal, principalmente pelas instituições religiosas. É de se observa que: “a Igreja autoriza ocasionalmente a morte de homens feitos: nas guerras ou quando se trata de condenados à morte; reserva porém para o feto um humanitarismo intransigente.” (BEAUVOIR, 2009, p. 647). Será que fora de um sistema androcêntrico haveria a criminalização das mulheres pela prática do aborto? Ezilda Melo complementa com outras indagações pertinentes: “O valor do feto está no valor que a gestante dá a ele ou na concepção que o Estado quer impor? O Estado pode intervir numa escolha inerentemente privada em nome de uma moralidade comum? (MELO, 2016, p. 69).

De modo semelhante, o adultério18 foi considerado crime até o ano de 2005, sustentando as marcas de uma sociedade machista. Praticar a infidelidade conjugal era considerado um delito contra a instituição familiar e quem o come-tesse deveria ser punido. Embora a fidelidade conjugal devesse ser recíproca, a re-percussão desse dispositivo na sociedade brasileira, sempre se apresentou de modo diferente para o homem e para a mulher. “A poligamia sempre foi mais ou menos abertamente tolerada: o homem pode trazer para o seu leito escravas, concubinas, amantes, prostitutas; mas é determinado a ele que respeite certos privilégios da mulher legítima.” (BEAUVOIR, 2009, p. 549).

Diferente da traição masculina, “que se não era judicialmente aceitável, era normatizada para que a mulher tolerasse com resignação.” (ARAÚJO, 2016, p. 95), a traição feminina, por sua vez, rompia com os códigos sociais e jurídicos da época e, a mulher adúltera quase sempre era levada ao tribunal. “Levá-la ao tribu-nal, tanto foi uma decisão para manter sua masculinidade, pelos procedimentos jurídicos que circulavam socialmente, através da normatização e pela lei, como pelo uso do sentimento de vingança.” (ARAÚJO, 2016, p.108).

18 No Código Penal de 1940, o adultério continuava a vigorar como um crime contra o casamento. A manu-tenção do adultério como delito até o ano de 2005 ocorria pela questão da indissolubilidade do casamento previsto no código civil de 1916.

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5.1.1 A LUTA MASCULINA PARA “LAVAR A HONRA” NO TRIBUNAL: O CASO ERONIDES E A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA MASCULINA

Eu passei a me olhar e me ver diferente. Porque teria que ficar em casa cuidando dos filhos, da casa, ser traída e ainda ser fiel? [...] E assim, eu saí dos trilhos ou os trilhos pesados foram expulsos do meu corpo.

“Você caça a honra manchada e eu vivo a paixão” foi o título que Eronides Câmara de Araújo escreveu na segunda parte19 da obra “Homens Traídos”, em que passa a narrar os episódios que ocorreram quando o seu marido descobre a infidelidade conjugal. Ao tomar conhecimento da traição, o homem traído se tornou um caçador da honra manchada. “Provar a infidelidade judicialmente era reparar o dano causado no contrato de casamento, mas também aglutinar adeptos à manutenção dos códigos masculinistas.” (ARAÚJO, 2016, p. 108).

Antes de transcrever os lances20, ou seja, as astúcias que o homem traído utilizou para buscar a prova do crime; é preciso lembrar que, nos anos 90 do século XX, o adultério era considerado um delito contra o casamento e só foi re-vogado em 2005, posteriormente a tramitação do processo de separação iniciado por Eronides Câmara de Araújo. Dessa forma, paralelo ao processo que ocorria no juízo cível também tramitava um processo criminal.

O primeiro lance. “Enquanto eu assistia às aulas do mestrado, o promovido entrou no nosso quarto, trancou a porta por dentro e vasculhou o guarda roupa. Revirou as roupas, os sapatos, as pastas e em um caixa, encontrou cartas.” (ARAÚ-JO, 2016, p. 109). O juiz que julgou o processo de Eronides Câmara de Araújo entendeu que as cartas davam indícios da confissão “dissimulada do romance”, em outras palavras, uma situação que aparentava uma possível traição; desvio de uma conduta de mulher que deveria dar satisfação ao marido.

Segundo lance. “‘Um rapaz acabou de tirar a foto de vocês’! Era o segundo lance do promovido, jogado pela prática do paparazzo. Foi um golpe para lavar a honra e anexá-la ao processo.” (ARAÚJO, 2016, p. 124). Eronides Câmara de Araújo narra que, o filme no qual estava a fotografia havia sido queimado, mas mesmo assim foi anexado ao processo e o juiz aceitou como prova (ARAÚJO, 2016, p. 124).

Terceiro lance. “Eu estava vivendo um jogo que parecia interminável. Eu passei a assumir publicamente o novo relacionamento, o que afetava ainda mais as práticas

19 A obra Homens Traídos é dividida em quatro partes. A primeira: “A Honra em meu corpo, o inquilino inde-sejável. A segunda: “Você caça a honra manchada e eu vivo a paixão”. A terceira: “Um masculino subjetivo e transtornado”. A quarta: “Que busco eu com toda essa assassina fúria de macho?”.

20 Eronides Câmara de Araújo chama de lances as táticas que o seu ex-marido utilizou para defender a honra e a masculinidade. No livro, a autora narra cinco lances, que correspondem às páginas 109 a 153.

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de sua masculinidade dominante.” (ARAÚJO, 2016, p. 127). No terceiro lance, Ero-nides Câmara de Aaújo relata que mesmo separados de corpos, o juiz não aceitou a sua solicitação para que o homem traído saísse da casa em que habitavam e, por diversas vezes ele havia a trancado para não deixa-la ir a faculdade (ARAÚJO, 2016, p. 128).

Quarto lance. “Dessa vez, foi um lance de agressão física. Uma ação de quem não tem mais ‘carta’ para jogar, então ataca pela força.” (ARAÚJO, 2016, p. 128). O homem traído utilizou da violência doméstica e psicológica para praticar a defesa da sua masculinidade; um ato que para muitos pode ser interpretado como heroísmo. Tanto é, que, seu ex-marido foi amparado por um magistrado que considerou a violência doméstica e psicológica contra a mulher infiel “uma conduta comum na cabeça do homem latino.” (ARAÚJO, 2016, p. 129).

Na instrução a Autora se louva de uma agressão que alude ter o Réu contra ela praticado durante uma discussão sobre o assunto, fato, entretanto, não vinculado na inicial como causa da separação, mesmo porque, pela certidão de fl. 46, se deu depois de ajuizada a ação. A prova testemunhal que fez produzir, fl 52/53v, nada desabona a conduta do réu, surgindo apenas a fatídica agressão, conduta comum das cenas domésticas, mormente quando fluem na cabeça do homem latino o pensamento da traição conjugal. 21

Na visão do magistrado que conduziu o processo de separação judicial de Ero-nides Câmara de Araújo, a mulher adúltera era a afamada tentadora que leva o ho-mem a delinquir, e acaba sendo agente da sua própria vitimização. Pensamento esse, que legitima a agressão física e psicológica praticada contra as mulheres e reproduz o machismo ratificado pelos códigos civis e penais brasileiros instituídos no século XX.

Quinto lance. Na sentença, Eronides Câmara de Araújo foi considerada culpada:

Todos esses lances e o funcionamento da separação judicial, se não serviam para recuperar a honra do promovido, pois ele já estava considerado pelos códigos mas-culinos como desonrado, deveriam servir para que o meu comportamento não virasse uma epidemia e corroesse os códigos da honra masculina, criando um caos para o controle social.

Nessa história, enquanto o homem traído caçou a honra, Eronides Câmara de Araújo viveu a paixão, por isso, o título da segunda parte da sua obra: “Você caça a honra manchada e eu vivo a paixão”. “Só havia muita felicidade. ‘Fazer de algumas passagens, quadros, e quem sabe um dia, você possa assinar’ é um trecho retirado de uma das cartas que eu havia recebido do homem pelo qual eu estava apaixonada.” (ARAÚJO, 2016, p. 139).

21 Fragmento da sentença do juiz no processo crime número 357/90, f. 70.

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6 REPERCUSSÕES DOS DISPOSITIVOS CIVIS E PENAIS MACHISTAS NA VIDA DAS MULHERES

Os códigos, civil e penal brasileiro, eram considerados constituintes e parceiros para proteger a família como uma estratégia para edificar a nação pela moralização da família.

O Código Civil de 1916 vigorou até o ano de 2002 e, serviu como um instrumento para reforçar a subversão da mulher ao homem, o caráter reprodu-tivo do sexo feminino, bem como os papéis predeterminados que orientavam o comportamento da mulher, razão pela qual, quatorze anos após a revogação do Código, precisamos ainda discutir as desigualdades de gêneros que permeiam a sociedade brasileira do século XXI.

Devemos compreender que, a legislação civil machista repercutia muito na esfera penal, por exemplo, era comum na década de 90 a aceitação dos juízes cri-minais em quaisquer formas de abuso do marido. Os magistrados amparados pelo conteúdo das normas civis, literalmente conservadoras, entendiam que o marido não cometia crime de estupro, pois ele agia no exercício regular do seu direito. “Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção sexual normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. (...)” (RT 461/44 apud MIRABETE, 1999, p. 1246).

Outrossim, durante décadas, o homem que agredisse ou assassinasse a es-posa, ex-esposa, namorada ou ex-namorada infiel ou não, tinha uma saída fácil para livrar-se da prisão: alegar a tese da “legítima defesa da honra”. Nesse sentido, o agressor afirmava que cometeu o delito, pois a sua honra tinha sido violada.

É importante destacar um estudo realizado pelas advogadas Silvia Pimen-tel, Juliana Belloque e Vanessa Pandjiarjian, que investigaram 42 casos em que os agressores ou assassinos utilizaram a tese jurídica da “legítima defesa da hon-ra” nos tribunais, dos quais 23 foram absolvidos em primeira instância. Como a maioria dos processos teve recurso, não se sabe se as decisões serão ou foram re-vertidas pelas cortes superiores. O estudo surpreendeu ao descobrir que os crimes cometidos contra a mulher, atrelados a tese de “legítima defesa da honra” e a de-cisão favorável à aplicação da tese vai do ano de 1999 até 2003 (COTES, 2004).

Mais que isso, a inferioridade jurídica do sexo feminino instituída pelas leis civis machistas do século XX, influenciam até hoje discursos misóginos e falo-cêntricos. O caso recente – ocorreu no ano de 2016 –, foi o do professor Samuel Milet, que chamou de “vagabunda” a advogada e pesquisadora Sinara Gumieri, a qual havia dado uma palestra para estudantes sobre a importância de se falar sobre

gênero no campo do Direito (STREIT, 2016). O professor Samuel Milet se diz defensor da vida e da família e afirmou que vai se defender na medida do que for necessário, porque acredita não ter cometido crime algum (STREIT, 2016).

As leis civis e penais também disseminaram um direito machista. A De-fensoria Pública do Pará, por exemplo, após constatar que os magistrados não se sensibilizam com as histórias de mulheres encarceradas, passou a pleitear a liber-dade das mulheres não em nome das próprias mulheres, mas em nome dos filhos pequenos. (SANTOS; ZACKSESKI, 2016, pg. 42).

Da mesma forma, os tipos penais de gênero, a exemplo do crime de aborto, vem sendo pauta constante de discussões na sociedade devido as inúmeras mortes de mulheres que o praticam de forma clandestina, um fenômeno que é preciso compreendê-lo como uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração, praticados contra a moral e por mulheres levianas. “O Código obstina-se, entretanto, a fazer dele um delito: exige que essa operação delicada seja executada clandestinamente.” (BEAUVOIR, 2009, p. 646).

7 CONSIDERAÇÕES FINAISSaio desta página e esta parte desse livro, como sujeito diferente para analisar as práticas da masculinidade.

Da leitura desta pesquisa, vislumbra-se que, para falar em direitos igualitá-rios entre o homem e a mulher é necessário se propor a estudar as questões que envolvem uma metodologia de análise de gênero.

Oportuno esclarecer, ainda, que este trabalho não se trata de uma aversão à figura masculina, pelo contrário, procura-se deslocar no outro – o homem –, entender as nuances disseminadas pelos códigos que definem como se deve ser mulher e até mesmo, como se deve ser o homem.

Outrossim, analisar as leis civis e penais brasileiras que reproduziram, re-produzem, disseminaram e disseminam a ideologia machista é, sobretudo, com-preender a subjugação à mulher imposta pela sociedade, na qual não permite o sexo feminino decidir sobre escolhas que pertencem a sua própria vida.

Não se pode olvidar que, passamos por diversas mudanças discursivas e so-ciais, ocorridas principalmente na segunda metade do século XX, e ligadas à busca por uma igualdade entre os gêneros. Contudo, o destino tradicional da mulher – o casamento, os afazeres domésticos e a maternidade –, construído e ratificado ao longo dos séculos, se mantém até hoje. O fenômeno das leis, por sua vez, esti-

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mulou e estimula a ideologia androcêntrica fazendo parte de todo o processo de formação ou “deformação” de consciência política na sociedade.

Seja em discursos misóginos, seja pela linguagem falocêntrica ou por meio da violência doméstica, a mulher do século XXI, continua ainda sendo estigmati-zada pela ideologia da superioridade masculina, que “herdeiras de um passado, se esforçam por forjar um futuro novo.” (BEAUVOIR, 2009, p. 357).

Sou ondas fortes, sou a areia frágil Livre para poder navegar.

Aceito o finito, o que fazer? Mas quero a profundidade. As águas rasas não me bastam. Adeus às superfícies, eu, vou ao cerne!

Sou águas claras. Colorida de verdades. As minhas verdades Dentro das minhas cores.

O resto é a sombra de mim. Fim. 22

22 Poesia “Liberdade” de Kátia Storch dedicada à todas as mulheres que direta e indiretamente são vítimas do autoritarismo implantado por uma ideologia de gênero.

JORNADA NORTE-NORDESTE DE DIREITO E LITERATURA DA RDL EM CAMPINA GRANDE NO ANO DE 2017: UM MARCO E UM LEGADO

Alana Oliveira1

Ezilda Melo2

Paulo Silas Taporosky Filho3

Nos dias 08 e 09 de junho de 2017, ocorreu em Campina Grande/PB, durante a festa do Maior São João do Mundo, um importante evento de Direito e Literatura: a Jornada Norte-Nordeste de Direito e Literatura da RDL. Reunidos no Centro de Convenções Raymundo Asfora do Garden Hotel, pesquisadores de várias áreas do sa-ber (Direito, Letras, História, Filosofia, Sociologia, Artes e demais campos das ciências humanas) promoveram ricos debates interseccionando o Direito e a Literatura.

Com uma programação diversificada, cuja temática foi “As letras da lei: contribuições da literatura para o estudo do direito”, o evento forneceu aos presentes, abordagens sobre temas como ensino jurídico, filosofia, criminologia, feminismo, cidadania, crise do Direito, narrativas literárias e diversas relações entre os campos analisados. O evento foi promovido pelo Centro Multidisciplinar de Estudos e Pesquisa (CEMEP) com o apoio institucional da Universidade Estadual da Paraí-ba (UEPB), além da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL), da Universi-dade Estácio de Sá e da OAB – Subseção Campina Grande.

Na primeira noite do evento foi lançado o livro “Encontro entre Direito e Narrativa Literária”, organizado por Edna Raquel Hogemann e Érica Maia Arru-da – uma obra coletiva que contou com a participação de diversos autores, dentre os quais alguns estavam presentes ao evento. Às 19h deu-se início a Jornada, cuja abertura solene foi procedida pela professora Alana Lima de Oliveira, seguido de um momento cultural com a apresentação da Orquestra do Projeto Prima – Polo Campina Grande.

1 Advogada. Mestre em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ/UFPB. Licencianda do Curso de Licenciatura Plena em Letras da UEPB – Campus I. Professora do Curso de Direito da UEPB – Campus III. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito e Literatura da UEPB – Campus III. E-mail: [email protected]

2 Advogada. Professora de Graduação e Pós-Graduações de Direito. Mestra em Direito Público pela Univer-sidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pelo Curso JusPodivm – Salvador-BA. E-mail: [email protected]

3 Professor de Processo Penal e Criminologia – Universidade do Contestado - UnC) - Mestre em Direito (UNINTER) - Especialista em Ciências Penais, em Direito Processual Penal e em Filosofia – Advogado - E-mail: [email protected]

258 JORNADANORTE-NORDESTEDEDIREITOELITERATURADARDLEMCAMPINAGRANDENOANODE2017

A primeira conferência “Cegueira e Visão na Iconografia da Justiça: Quando Thêmis encontra Indaiá, Maroca e Poroca” teve o professor Marcílio Franca como expositor, cuja fala foi intermediada pela professora Alana Lima de Oliveira na qualidade de debatedora.

Dentro da programação da primeira noite do evento, no centro da cidade, na região conhecida como Boninas, houve um momento gastronômico no tradi-cional restaurante “Manoel da Carne do Sol”, para que os congressistas de outras localidades do país pudessem apreciar as famosas especialidades nordestinas em um ambiente familiar, rústico e elegante que contou com a presença e recepção acalorada do advogado Lindberg Martins (de saudosa memória) o qual era filho de Seu Manoel da Carne de Sol, e que relatou naquela ocasião várias histórias so-bre Campina Grande e seus personagens, deixando a noite ainda mais agradável.

No dia seguinte, o evento proporcionou outras palestras as quais foram proferidas por profissionais da área do Direito e da Literatura como: Alexandre da Maia, Eduardo Rabenhorst, Hugo César, Morton Medeiros, Eduardo Valones, Paulo Silas Filho, Ediliane Lopes, Lucira Freire, Edna Raquel Hogemann, Érica Maia, André Karam, Alessandra Franca e Ezilda Melo que articularam junto aos congressistas perspectivas não legalistas do Direito, contribuindo assim com as discussões temáticas abordadas no evento.

Para além do nível de excelência dos painéis que ocorreram durante a jorna-da, houve também uma quantidade significativa de trabalhos acadêmicos apresen-tados nas modalidades pôster e comunicação oral nos diversos Grupos de Trabalho que compuseram a tarde do segundo dia do evento. Os trabalhos enviados e apro-vados para serem apresentados contaram com o julgo dos avaliadores – tanto na fase de seleção quanto na arguição durante os debates que se instauraram após as apresentações - primando-se assim pela qualidade dos textos produzidos no âmbito da temática Direito e Literatura, os quais estão disponíveis nos anais do evento4.

No final da tarde do dia 09 de junho, o evento contou com o lançamento de outros livros, com a presença dos autores, a saber: “A Corte Infiltrada”, da Pro-motora de Justiça de Pernambuco e premiada autora Andrea Nunes, “Tribunal do Júri: arte, emoção e caos”, da Professora Ezilda Melo e “O Direito pela Literatura: algumas abordagens”, do Professor e Advogado Paulo Silas Filho.

O encerramento do evento contou com uma homenagem à dama da arte campinense, a Professora Eneida Agra Maracajá, cuja solenidade contou com um

4 Anais Jornada Norte Nordeste de Direito e Literatura da RDL, V. 1, 2017, ISSN 2594-6854. Link de acesso: http://www.editorarealize.com.br/revistas/jornadadl/anais.php

aLana oLivEira, EziLDa mELo E PauLo SiLaS TaPoroSKY FiLHo 259

resgate da história da homenageada, além da exposição em pinturas e vídeos de alguns de seus projetos, a saber: “Cultura no Presídio – a arte no exercício da li-berdade”5 e “Tamanquinhos das Artes”.

Após a conferência de encerramento, “A crise do Direito e o poder das nar-rativas literárias”, cuja mesa contou com o professor André Karam Trindade e as professoras debatedoras Alessandra Franca e Ezilda Melo, os agradecimentos e considerações finais ficaram por conta desta última que encerrou a programação do congresso.

A Jornada foi um evento importante para os pesquisadores de Direito e Literatura, principalmente porque foi o primeiro evento regionalizado do Norte--Nordeste da Rede Brasileira de Direito e Literatura, organização responsável pelo maior congresso da América Latina na temática, o CIDIL (Colóquio Internacio-nal de Direito e Literatura), e também porque reuniu pesquisadores de diversas áreas, marcando seu espaço e destaque no cenário acadêmico.

Por fim, afirma-se que a Jornada Norte-Nordeste de Direito e Literatura da RDL teve seu objetivo alcançado, posto que debateu com a comunidade acadê-mica e a sociedade em geral, temas ligados ao Direito, Cultura e Arte por meio de um viés transdisciplinar, gerando assim novos enfoques e pesquisas acerca do tema proposto.

Sem dúvida, esse foi um evento comprometido com aquilo que propôs, em que todos os membros, professores, pesquisadores e entusiastas do movimento Direito & Literatura que tiveram a oportunidade de participar, confirmaram: en-cantou, apaixonou e ficou eternizado em nossas memórias, estando todos ansiosos no aguardo pela sua próxima edição.

Que venha!

Abaixo a ementa de cada um dos Grupos de Trabalhos, os resumos dos arti-gos publicados (https://www.editorarealize.com.br/revistas/jornadadl/anais.php) e a programação completa do evento. Vejamos:

GT 1 – Direito, Discurso e Narrativa Literária - que acolheu trabalhos que partiram de narrativas literárias – contos, crônicas, romances – e que apresenta-ram aproximação com temas jurídicos, permitindo discuti-los, bem como, am-pliar os seus horizontes de compreensão ao evidenciar outras dimensões do texto, dos fatos e/ou institutos jurídicos através do universo artístico.

5 TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. “Cultura no Presídio” – um projeto de Eneida Agra Maracajá. Dis-ponível em: <http://www.salacriminal.com/home/cultura-no-presidio-um-projeto-de-eneida-agra-maracaja>. ISSN: 2526-0456. Acesso em: 18/05/2019

GT 2 - Direito, Literatura e Feminismo - neste GT abordou-se o tema “Direito, Literatura e Feminismo”, a partir de estudos sobre as juristas e a escri-ta feminina. Reuniram-se pesquisadores(as) interessados(as) em refletir sobre as relações entre feminismo e direito. O interesse central foi o compartilhamento de pesquisas, projetos e demais produções de ordem teórico-metodológica volta-das para o enfrentamento da desigualdade de gênero no âmbito jurídico, seja na docência, na produção científica ou na práxis profissional. Foram apresentados trabalhos focados em três eixos fundamentais: 1. Pesquisas sobre as relações entre gênero, direito e literatura com ênfase na produção feminina. 2. Pesquisas sobre instituições, agentes e práticas judiciais, abrangendo o Judiciário, o Ministério Público, a OAB, a Defensoria Pública, e outras profissões jurídicas, assim como a formação das juristas e seus lugares de fala. 3. Pesquisa sobre percepção dos direi-tos a partir da autoria jurídica feminina, identificando quais os papéis e figurações desempenhadas pelas mulheres nessas produções.

GT3 - Direito, Arte e Cultura Popular Nordestina -Esse grupo de trabalho re-cebeu estudos que contemplaram a relação direito e cultura popular a partir das artes em geral, tais como: teatro, dança, música (repente, coco, forró, embolada, maracatu etc), folclore, literatura de cordel e outras obras de autores que abordem temas relacio-nados a elementos da cultura e tradição nordestina e a relação com o Direito.

GT4 – Direito, Arte e Pluralidade: Intercâmbios e diálogos não binários entre a arte, sexualidades divergentes e os afetos – GT proposto para pesquisa-dores que se debruçam, numa perspectiva multidisciplinar, sobre as diversas e possíveis compreensões das transformações que afetam a família, os indivíduos e segmentos sociais na contemporaneidade. Abriu-se para pesquisas de cunho histórico, jurídico, filosófico e/ou epistemológico sobre a família contemporânea, o indivíduo que a compõe e suas peculiaridades. Privilegiou, fortemente, pesqui-sas sobre: Extraconjugalidade; Famílias Paralelas; Famílias Simultâneas; Poliamor; Teorias de Gênero; Teoria Queer, Direito Homoafetivo e Sexualidades Divergen-tes. Convocou, assim, pesquisadores para o exame de contextos sociais em livros não jurídicos, filmes e artes plásticas. Ideologias e representações de contextos sociais em narrativas fictícias e documentais a exemplo das obras de autores como Oscar Wilde, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Zygmunt Bauman. O grupo de trabalho possuiu interesse particular em criar uma discussão sobre estudos interdisciplinares acerca das diversidades instaladas nos processos culturais existentes nos contextos de convivência e aceitação.

GT5 – Direito e Cinema - Esse GT recebeu trabalhos de estudos e pesqui-sas que abordaram relações possíveis entre o Direito e o Cinema, envolvendo re-

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flexões temáticas com base em filmes que dizem respeito ao Direito em quaisquer de suas vertentes - tanto os temas envoltos (filosóficos do Direito, sociológicos do Direito...), como os específicos (Direito Penal, Direito Constitucional e demais disciplinas jurídicas).

GT6 - Direito, Literatura e Transformação Social - Em um contexto uni-versal cada vez mais disperso e fragmentado por preocupações que se limitam aos meros egoísmos pessoais e do capital, o presente GT fincou suas as bases numa relação entre Direito e da Ética na solidariedade, no pensamento comunitário e nos interesses dos demais seres que habitam a Terra, através do encontro com a Literatura. Razão pela qual o GT se destinou a receber pesquisas relacionadas a vulnerabilidades, racismo, discriminação, instabilidade política e desigualdade social, com enfoque na abordagem relação entre direito e literatura. A transforma-ção social se refere ao aumento de direitos e, até mesmo, o regresso em matéria de direitos humanos que causem impacto nos diferentes setores sociais. Estes temas frequentemente são televisionados ou são temas centrais de livros que buscam retratar a realidade pelo viés literário, constatada a sua importância no contexto político e social de qualquer grupamento social do mundo. Buscou-se discutir e instar os pesquisadores a integrar, compatibilizar e evoluir quanto aos direitos havidos por fundamentais e em relação às novas perspectivas. Novos diálogos literários pautados na interculturalidade, novos olhares para a vulnerabilidade, novos arranjos entre a ciência e a técnica relacionados à saúde humana, desde a geração até o fim da vida, fazem emergir inovadoras teses e desafios à vasta gama de direitos fundamentais expostos no imaginário que se materializam no ordena-mento jurídico. A interpretação do Direito e dos fenômenos sociais revela-se um imperativo elementar ao pensamento do jurista e novas categorias da Filosofia e da Ética, como a bioética, a ecoética e a concepção metafísica do ser, desvelam-se como caminhos que não mais podem ser ignorados na pesquisa contemporânea.

PROGRAMAÇÃO DO EVENTO:1º DIA (08 DE JUNHO DE 2017) –

17h às 20h - Credenciamento

18h às 19h - Lançamento de livro - Título: Encontro entre Direito e Narrativa Literária - Organizadoras: Edna Raquel Hogemann e Érica Maia Arruda - Editora: Lumen Juris

19h às 19h30 - Abertura solene a considerações iniciais - Alana Lima de Oliveira

19h30 às 20h - 1º Momento Cultural - Apresentação de artistas locais

aLana oLivEira, EziLDa mELo E PauLo SiLaS TaPoroSKY FiLHo 261

20h às 21h - Conferência de Abertura: Cegueira e Visão na Iconografia da Justiça: Quando Thêmis encontra Indaiá, Maroca e Poroca - Conferencista: Marcílio Franca - Debatedor: Alana Lima de Oliveira

2º DIA (09 DE JUNHO DE 2017) –

09h às 10h - Painel I (Eixo: Direito, Literatura e Ensino Jurídico) - Tema: As ima-gens da educação jurídica: a compreensão como espaço do sentir - Painelista: Ale-xandre Ronaldo da Maia de Farias

10h às 11h - Painel II (Eixo: Direito e Sensibilidade). Tema: A dimensão sensível do direito. Painelista: Eduardo Ramalho Rabernhorst - Debatedor: Hugo César

11h às 12h - Painel III (Eixo: Direito, Literatura e Filosofia) -Tema: As lições de Direito na trilogia tebana de Sófocles: de Laio a Antígona. Painelista: Morton Me-deiros. Debatedor: Eduardo Valones

14h às 16h - Apresentação de trabalhos na modalidade pôster

14h às 17h - Apresentação de trabalhos comunicação oral

Mostras audiovisuais e de fotografia

14h às 15h - Painel IV (Eixo: Direito, Literatura e Criminologia). Tema: “Os Mi-seráveis” e a Estigmatização do Condenado. Painelista: Paulo Silas Taporosky Filho

15h às 16h - Painel V (Eixo: Direito, Literatura e Feminismo) - Tema: Direito e Literatura: diálogo interdisciplinar sobre o desamparo jurídico às mulheres margina-lizadas em Jorge Amado e Isabel Allende. Painelista: Ediliane Lopes Leite de Figuei-redo. Debatedor: Lucira Freire

16h às 17h - Painel VI (Eixo: Direito, Literatura e Cidadania). Tema: Direito, Li-teratura e Transformação Social. Painelista: Edna Raquel Hogemann. Debatedor: Érica Maia Campelo Arruda

17h às 18h - Lançamento de livro - Título: A Corte Infiltrada -Autora: Andrea Nunes -Editora: Buzz

Título: Tribunal do Júri: arte, emoção e caos -Autora: Ezilda Melo - Editora: Em-pório do Direito

Título: O Direito pela Literatura: algumas abordagens - Autora: Paulo Silas Filho - Editora: Empório do Direito

19h às 19h30 - Homenagem à Professora e ativista cultural Eneida Agra Maracajá

19h30 às 20h - 2º Momento Cultural - Apresentação de artistas locais

20h às 21h - Conferência de Encerramento: A crise do Direito e o poder das narra-tivas literárias - Conferencista: Anré Karam Trindade. Debatedor: Alessandra Fran-ca e Ezilda Melo

20h às 21h - Agradecimentos e considerações finais - Ezilda Melo

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ESCRITORAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XIX: DA EXCLU-SÃO À REINSERÇÃO

Anna Faedrich1

Você já ouviu falar em Emília Moncorvo Bandeira de Melo ou Carmen Dolores? E em Cecília Moncorvo Bandeira de Melo ou Chrysanthème? Adalgisa Nery, Rosalina Coelho Lisboa, Adelina Amélia Lopes Vieira, Elisa Lispector e Henriqueta Lisboa? Maria Firmina dos Reis, Prisciliana Duarte de Almeida e Auta de Sousa? Você sabe quem são Albertina Bertha e Narcisa Amália? O que esses nomes desconhecidos têm em comum? Alguma pista?

Você já se deu conta do conteúdo que estudou na aula de literatura sobre o Romantismo? Quem são os autores canônicos? Relembremos. Na prosa, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Teixeira e Souza, Joaquim Manuel Macedo e Visconde Taunay; na poesia, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Aze-vedo e Castro Alves. Lembra de mais algum? Gonçalves de Magalhães, Fagundes Varela, Sousândrade... O que está faltando nesta aula? Será que as mulheres não escreviam nesta época? Ou será que elas escreviam, mas não publicavam? E se dissermos que elas escreviam e publicavam, só que não aparecem nesta lista e, por conseguinte, não são ensinadas na escola nem constam nos manuais de literatura?

Todos os nomes mencionados acima são de escritoras que atuaram nos sécu-los XIX e XX, só para citar algumas de uma ampla lista. O que há em comum entre esses nomes é que eles não aparecem nas nossas histórias literárias. Essas escritoras, que participaram ativamente da vida intelectual e literária nos séculos precedentes, não tiveram suas obras compiladas em antologias nem em manuais de literatura. Foram excluídas do cânone literário. São livros e mais livros se deteriorando em bibliotecas particulares ou públicas, sobretudo em acervos de obras raras, que não foram reeditados nem lembrados pela historiografia e crítica literárias. Trata-se de uma literatura esquecida e, por consequência, de desconhecimento geral.

Graças a pesquisas acadêmicas, a eventos e à criação de uma editora volta-dos para o resgate dessas escritoras deixadas à sombra do discurso historiográfico,

1 Doutora em Letras (PUCRS). Professora Adjunta do CAp-UERJ e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação Latu Sensu em Literatura Brasileira (UERJ). Foi Pesquisadora Residente da Fundação Bi-blioteca Nacional (2014-2015), onde realizou pesquisa sobre escritoras brasileiras do entresséculos (1870-1930). Organizou as reedições do romance Exaltação (1916), de Albertina Bertha, e do livro de poemas Nebulosas (1872), de Narcisa Amália, pela Gradiva Editorial em coedição com a Biblioteca Nacional. E-mail: [email protected]

264 ESCriToraS BraSiLEiraS Do SéCuLo XiX: Da EXCLuSÃo à rEinSErÇÃo

aliados à crítica feminista, hoje podemos notar um avanço no que diz respeito à expressão de mulheres na literatura brasileira e no meio cultural. Antologias e dicionários críticos que resgatam a produção literária de mulheres até então silenciadas pelo tempo e pela sociedade patriarcal demonstram anos de dedica-ção à investigação desses nomes e ao levantamento de dados. Alguns nomes de referência dessas antologias e dicionários são: Adalzira Bittencourt, Nelly Novaes Coelho e Zahidé Muzart. A lista de escritoras descobertas é extensa. E as questões que pairam no ar são: por que as biografias dessas escritoras não foram documen-tadas e por que suas obras não integram o cânone literário, se, ao analisarmos seu conteúdo e valor literário, não ficam aquém das obras produzidas por escritores homens? É curioso, pois se analisarmos também participação das escritoras na imprensa periódica e no cenário literário (publicando livros, contos ou poemas, realizando conferências, participando de saraus literários etc), veremos que elas têm atuação expressiva. Por isso, é importante a verificação da condição de apa-recimento dessas escritoras e as razões de seu gradual esquecimento. Os exemplos das escritoras Narcisa Amália e Albertina Bertha ajudam-nos a indicar aspectos que estão associados a essas duas questões e são pontos férteis para explorar o es-paço e as condições de atuação das mulheres escritoras no século XIX.

Considerada a primeira jornalista profissional no Brasil, a republicana e abo-licionista Narcisa Amália (São João da Barra, 1852 – Rio de Janeiro, 1924) publi-cou 44 poemas em uma antologia intitulada Nebulosas, em 1872. Nebulosas contou com prefácio entusiasmado de Pessanha Póvoa, que afirmava ser Narcisa a nossa primeira poeta: “Narcisa Amália não é um tipo, é uma heroína. [...] Este livro há de produzir tristezas e alegrias. É a primeira brasileira dos nossos dias; a mais ilus-trada que nós conhecemos; é a primeira poetisa desta nação”. Em sua produção poética, destacam-se a diversidade temática e o domínio da forma, bem como os diálogos com os poetas e escritores do Romantismo. Entre os 44 poemas publicados em Nebulosas e poemas esparsos publicados em jornais, é possível encontrar poemas nacionalistas, políticos, de exaltação da pátria e da natureza, tristes e melancólicos, de saudade da terra e da infância, abolicionistas e antiescravistas. A lírica de Narcisa dialoga com a de Gonçalves Dias, no que diz respeito à exaltação da natureza, com o tema da saudade da infância de Casimiro de Abreu, e com Castro Alves, uma vez que seus poemas de cunho social e político são igualmente intensos e críticos.

Narcisa Amália não passou despercebida em sua época. Além de o Impera-dor Dom Pedro II ser seu admirador e fazer questão de conhecê-la em Resende, Machado de Assis foi seu leitor e escreveu sobre a sua obra poética na Semana Illustrada (29/12/1872):

anna FaEDriCH 265

Com este título acaba de publicar a Sra. D. Narcisa Amália, poetisa fluminense, um volume de versos, cuja introdução é devida à pena do distinto escritor de Pes-sanha Póvoa.

Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora. É certo que uma senhora pode poetar e filosofar, e muitas há que neste particular valem homens e dos me-lhores. Mas não são vulgares as que trazem legítimos talentos, como não são raras as que apenas pagam de uma duvidosa ou aparente disposição, sem nenhum outro dote literário que verdadeiramente as distinga.

A leitura das Nebulosas causou-me a este respeito excelente impressão. Achei uma poetisa, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de muito vigor, reinando em todo o livro um ar de sinceridade e modéstia que encanta, e todos estes predicados juntos, e os mais que lhe notar a crítica, é certo que não são comuns a todas as cultoras de poesia. [...]

São tristes geralmente os seus versos, quando não são políticos (que também os há bons e de energia não vulgar): a musa da Sra. Narcisa Amália não é alegria; ela mesma o diz na poesia que intitulou “Sadness”, e que transcrevo por inteiro e será essa a última citação: [...]

Termino as transcrições e a notícia, recomendando aos leitores as Nebulosas.

É importante ressaltar que ao mesmo tempo em que Machado de Assis elo-gia os poemas de Narcisa, ele confessa seu receio inicial devido à autoria feminina do livro, deixando pistas de que era incomum uma mulher publicar sua literatura em livro, ainda mais em uma editora de prestígio como a Garnier. As intempéries da vida literária das mulheres não foram poucas. Nossas escritoras enfrentaram um ambiente hostil e uma crítica desencorajadora. Em 1889, em “Uma carta”, escrita ao jornalista Alfredo Sodré, Narcisa Amália lamenta a dificuldade de uma mulher ser artista e talentosa naquela época: “como há de a mulher revelar-se ar-tista se os preconceitos sociais exigem que o seu coração cedo perca a probidade, habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencionais?”. Diante disso, cabe-nos pensar se não haveria conexões entre as posições e opiniões dos críticos dessas escritoras do século XIX e os mecanismos seletivos que operaram no câno-ne constituído pelos críticos do século XX.

Com a escritora carioca Albertina Bertha de Lafayette Stockler (1880-1953) não foi diferente. Nascida em uma importante família da época, filha do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira e de D. Francisca de Freitas Coutinho Lafayette, neta dos Barões de Pouso Alegre, teve acesso à educação, aprendeu lín-guas, estudou Estética e Filosofia, entretanto, sem se distanciar de casa, como era o costume nas famílias abastadas brasileiras. Albertina Bertha publicou romances, contos, ensaios filosóficos; participou do meio jornalístico, colaborando ativa-

266 ESCriToraS BraSiLEiraS Do SéCuLo XiX: Da EXCLuSÃo à rEinSErÇÃo

mente na imprensa carioca, em jornais como O Jornal (para os Diários Associados), Jornal do Commercio, O Paiz, O Malho, A Noite, e em revistas como a Panóplia e Para Todos. Seu primeiro romance de 1916, Exaltação, teve seis reedições e grande repercussão na época. No plano de conteúdo, ousadia e teor erótico; no plano formal, inovações técnicas de narrativa. Albertina Bertha era uma escritora de vanguarda. Uma mulher à frente de seu tempo. Entretanto, nada disso impediu que Albertina Bertha e sua rica produção fossem esquecidas.

A obra da romancista e ensaísta Albertina Bertha é composta por cinco vo-lumes: Exaltação (romance, 1916), Estudos 1ª série (ensaio, 1920), Voleta (roman-ce, 1926), E Ela Brincou com a Vida (romance, 1938) e Estudos 2ª série (ensaio, 1948). Na imprensa periódica da época, a participação da escritora foi expressiva. Albertina publicou contos literários, trechos de romances e ensaios; concedeu en-trevistas aos mais variados jornais e revistas brasileiras e estrangeiras. Destacou-se, sobretudo, pelas conferências sobre filosofia, que acabou publicando na impren-sa; emitiu opinião sobre os assuntos mais variados, tais como o voto feminino, a criação de uma Academia Feminina de Letras e o divórcio. Albertina escreveu sobre religião, política, filosofia, psicologia e história, sendo uma voz dissonante na belle époque brasileira, por demonstrar visão crítica à condição feminina à época e inconformidade com a sociedade patriarcal; levantar bandeira à favor da educação das mulheres; escrever romances com ousadia temática, tratando de temas-tabu como o adultério e o desejo feminino; por ser uma erudita que escreve ensaios e ministra conferências sobre filosofia, em especial sobre Nietzsche; ter a leitura de seus romances proibida dentro de sua própria família; ser considerada uma corrompedora pelas vozes conservadoras à época; ter sucesso de vendas de seu primeiro romance, Exaltação, e por tê-lo reeditado seis vezes em vida etc. Após a sua morte, em 1953, Albertina Bertha foi gradualmente esquecida.

Outras tantas mulheres foram vítimas da ideologia patriarcal que excluiu a produção feminina do cânone literário. A pesquisa histórica mostra que escrito-ras talentosas como Narcisa Amália e Albertina Bertha escreveram, publicaram, tiveram leitores, atuaram de forma expressiva na imprensa periódica, dialogaram com grandes vozes da literatura brasileira e tiveram significativa repercussão de suas obras na época em que viviam. Hoje, integram a lista extensa de escritoras desconhecidas. Já é possível afirmar que a exclusão das escritoras tem relação com o valor literário do que escreviam. Muitas vezes a produção literária delas nem recebia espaço de consideração e de análise.

Este texto apresentou parte dos resultados iniciais de um estudo mais am-plo, que venho realizando desde 2014. Existe, ainda, uma agenda de pesquisa por

anna FaEDriCH 267

ser feita, que mapeie e analise os mecanismos sociais de exclusão das escritoras, novos exemplos, em toda sua complexidade, sutileza e implicações. Em 2015, organizei a reedição do romance Exaltação, de Albertina Bertha, pela Gradiva Editorial em coedição com a Fundação Biblioteca Nacional (RJ), onde realizei uma pesquisa de pós-doutorado com apoio do Projeto de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R, 2014). Agora, em 2017, é a vez de Nebulosas, de Narci-sa Amália, voltar ao acesso do público leitor. Em parceria com Marcus Venicio Ribeiro e Angela di Stasio, organizamos um número dos Cadernos da Biblioteca Nacional, que está no prelo, sobre as crônicas da escritora carioca Júlia Lopes de Almeida. Júlia publicava semanalmente no jornal O Paiz, em uma coluna inti-tulada “Dois dedos de prosa”. Este livro mostra o cotidiano carioca por meio do olhar de Júlia Lopes.

O investimento em pesquisas e reedições é fundamental para que a mudan-ça ocorra. Nas universidades e nas escolas também é necessário que se insira as escritoras brasileiras nas ementas de literatura. Tal inserção tem sido discutida no Colégio de Aplicação da UERJ, onde eu trabalho atualmente. O projeto de inser-ção das escritoras no ensino de literatura brasileira, da escola à graduação, é um passo importante para reinterpretações da História Literária que reconheçam a re-levância das escritoras mulheres e as incorporem ao cânone literário. Este passo só é possível por meio dos professores, pesquisadores e autores dos livros didáticos. Se, por um lado, a história da literatura reproduziu até hoje seleções arbitrárias; por outro lado, a reconstrução – literária e política – dessas narrativas é possível e vem sendo feita por críticos literários, sociólogos e pesquisadores.

A VIA CRUCIS DO CORPO DA MULHER: TRAJETOS DE VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES1

Hilda Helena Soares Bentes2

Estabelece-se neste ensaio uma intersecção entre filosofia, literatura e di-reito como possibilidade de captar os trajetos de violência contra a mulher na literatura brasileira sob a perspectiva dos direitos humanos da mulher. A conexão entre a filosofia e literatura, com extensão ao direito, revela a importância da in-terdisciplinaridade como apreensão do humano e como desenvolvimento de uma consciência crítica dos fenômenos sociais. A primeira parte do desenvolvimento será dedicada a explicitar a relação entre filosofia, direito e literatura de forma a configurar a perspectiva que se pretende desenvolver neste trabalho, qual seja a literatura como expressão artística das problemáticas existenciais, reveladora da exploração do ser humano e da possibilidade de humanização.

Indaga-se se o discurso sobre os Direitos Humanos, seja teórico ou prático, constitui a expressão exata das graves violações perpetradas contra a pessoa huma-na. Ele é revelador da extrema vulnerabilidade em que o homem ou a mulher en-contra-se quando despojado(a) de sua humana condição? É indubitável que o dis-curso sobre Direitos Humanos, desde as célebres Declarações históricas, pauta-se sobre uma agenda de direitos inalienáveis do ser humano, e desperta, sobretudo, sentimentos de exaltação aos direitos proclamados. No entanto, vertentes da his-tória do pensamento ocidental interpretam as declarações dos direitos do homem como abstratas, ou com conteúdo marcadamente liberal, o que não preencheria os verdadeiros anseios de homens e mulheres à margem de direitos reconhecidos.

Propõe-se examinar a constituição de um sujeito do direito capaz de respeito e estima, através do conceito de capacidade, elaborado por Paul Ricoeur. Avalia-se a formação do homem capaz, conforme explicitado no texto “Quem é o sujeito do direito?”, em O justo 1, bem como em O si-mesmo como um outro. A noção de capacidade constitui o marco teórico central para a compreensão da formação do homem, o que será examinado na segunda parte do desenvolvimento deste artigo.

1 O artigo já foi publicado na Revista ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 2, n. 1 (2016).

2 Doutora em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). E-mail: [email protected]. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7621671933218419.

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A leitura de textos literários, além da análise dos elementos constitutivos inerentes à composição literária, tem o fito de evidenciar as injustiças sociais e desumanidades a que estão subjugados aqueles que não detêm o poder de falar e de narrar a sua história, consoante os padrões culturais reputados válidos para a inserção na comunidade social e política. Nesse aspecto, afigura-se pertinente a leitura das crônicas de Lima Barreto, que se manifesta, de forma contundente, contra o massacre de mulheres em várias crônicas no início do século vinte, o que será visto na terceira parte do desenvolvimento.

Parte-se da indagação de como as conquistas legais dos direitos das mulhe-res ainda não conseguiram extirpar toda uma prática cultural de depreciação da mulher. As denúncias feitas por Lima Barreto são sinais eloquentes, porém insu-ficientes para conter a fúria destrutiva contra o corpo da mulher. Persistem ainda os vestígios de uma cultura de violência contra a mulher, o que desafia a lei e os costumes atuais.

A quarta parte irá analisar a parte relativa à literatura de autoria feminina, tendo sido denominada “A via crucis do corpo da mulher: trajetos de violência na literatura de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Marina Colasan-ti”. São fragmentos de violência praticada contra a mulher em decorrência de uma cultura de violação aos direitos fundamentais da mulher, centrada na dominação masculina, e que impõe papéis definidos de comportamento.

Cuida-se da promoção dos direitos humanos no tocante à violência con-tra a mulher, debate ainda necessário apesar dos progressos sociais e jurídicos alcançados. O referencial metodológico busca subsídios teóricos e literários para a construção de um canal de discussão importante para a formação de uma efetiva cultura calcada nos Direitos Humanos, modulando a linguagem e, principalmen-te, os sentimentos dos futuros aplicadores do direito.

LIMITES E ALCANCE DO ENLACE TEÓRICO, LITERÁRIO E JURÍDICO

Delimitar as fronteiras entre a filosofia, a literatura e o direito constitui uma difícil tarefa a ser empreendida. São campos de saber distintos e apresentam particularidades que os distinguem e qualificam por parâmetros por vezes consi-derados antagônicos. Ressalte-se que sempre existiu uma querela entre a filosofia e a literatura, revelada de forma contundente por Platão em A república, ao expulsar os poetas e os trágicos da comunidade política, elaborada a partir de um modelo educacional baseado num método racional, descritivo, que tornariam o homem

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capaz de desenvolver plenamente as suas capacidades cognitivas (Platão, 1996, livro X, 605d, p. 472-3; Havelock, 1996, p. 19-35).

A literatura pode servir como um instrumento poderoso para a decifração da condição humana, o que constitui um recurso valioso para a compreensão dos direitos humanos na sua dimensão libertadora (Fachin, 2007, p. 19). Nesse aspec-to que nos interessa, o discurso jurídico coloca-se na rota3 de revelar as instâncias de poder instituído e os clamores de justiça, fundamentalmente obra de um siste-ma social ainda predominantemente injusto. No entanto, deve-se advertir que o texto literário tem especificidades artísticas próprias, intransponíveis, não poden-do ser confundido com uma literatura dirigida, de viés ideológico, e que serve de meio de dominação e inculcação de ideias preconcebidas.

A literatura é por essência emancipadora e ultrapassa uma visão meramente instrumental. Busca-se ir além das concepções comumente estabelecidas entre a literatura e a filosofia, ou entre a literatura e o direito, concentrando-se no direi-to à literatura, tal qual proposto por Antonio Candido (2011, 171-193), como direito incontornável da formação educacional e caminho de descobrimento das obscuras razões que levam o ser humano a praticar tantas iniquidades. Daí a sua imbricação com a questão dos direitos humanos. Vale dizer, na apreciação de Antonio Candido, vivemos numa época ainda marcada pela barbárie (2011, p. 172-173) e pela “irracionalidade do comportamento” (1989, p. 107), sendo in-dispensável que os direitos humanos sejam pensados com relação ao próximo; sem o outro como referência, qualquer tentativa de falar sobre os direitos do ho-mem torna-se infrutífera (Candido, 1989, p. 110).

Como crítico literário, Antonio Candido concebe a literatura desempe-nhando três funções primordiais e simultâneas: como construção da estrutura e significado literários; como forma de expressão; e, como forma de conhecimento (2011, p. 178-179). Donde a literatura constituir-se em aprendizado, afirmando Candido que “toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção.” (2011, 179, grifos do autor). Depreende-se desta passagem que o tex-to literário é uma criação do artista, mas que propicia desvelamentos sobre a natu-reza humana e a vida social na medida em que desperta reflexões transformadoras. É, de fato, um aprendizado, que conduz o leitor atento na rota de um processo

3 Melina Girardi Fachin denomina a Parte I de seu estudo Direito e literatura: em busca das rotas das narrati-vas emancipatória” (2007, p. 21), tendo em vista a possibilidade do diálogo interdisciplinar entre os discursos literário e o jurídico como meio de alcançar narrativas fecundas entre os dois campos de saber, e não somente utilizando a literatura como mero adorno para ampliar os recursos retóricos do aplicador do direito.

de humanização. Nesse aspecto, Antonio Candido fala no perigo de “mutilar a personalidade” (2011, p. 188) caso o acesso à literatura fosse restringido do pro-cesso educacional do ser humano. Expõe a relação entre a literatura e os direitos humanos como via necessária para o aperfeiçoamento da nossa humanidade:

Acabei de focalizar a relação da literatura com os direitos humanos de dois ângu-los diferentes. Primeiro, verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrições dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (2011, p. 188, grifos nossos).

Demonstrada a importância de pensar a literatura na interface da filosofia e do direito, defronta-se, por outro lado, segundo Jaime Ginzburg (2012, p. 190-191), com a dificuldade de formular as enunciações que expressem os sentimen-tos, as vivências, e, consequentemente, os direitos. Ou seja, a linguagem ─ nosso veículo de comunicação linguística, literária ─ caracteriza-se pela imprecisão e pela equivocidade, o que pode gerar uma série de incompreensões e dubiedades. Ginzburg refere-se a Ludwig Wittgenstein como o filósofo que refletiu de manei-ra profunda acerca da linguagem e dos sentimentos, especialmente sobre a dor, tal qual exposto nas Investigações filosóficas (2005, § 244 et seq.). Dito de outra forma, só poderá haver trocas de experiências e, portanto, comunicação e reco-nhecimento, na proporção da existência de real compartilhamento da dor alheia.

A segunda filosofia de Wittgenstein constitui uma reviravolta na concepção esboçada na primeira fase , seguindo a antiga tradição de atribuir uma função me-ramente designativa da linguagem, logo redutora das múltiplas possibilidades da linguagem humana. Não se cuida mais de buscar uma essência última, capaz de designar a verdadeira natureza das coisas; ao revés, objetiva-se espelhar o mundo através de um olhar perscrutador, hábil em decifrar as conexões existentes nos vá-rios contextos em que as ações e os atos de fala se entrecruzam. Mergulha-se agora na indeterminação da linguagem, na concretude das situações em que as palavras expressam multifários sentidos.

Segue-se que a enunciação dos direitos ─ dos direitos humanos, em espe-cial ─ passa a ser problemática se desvinculada de uma partilha de experiências assentada numa relação sincera de reconhecimento (Ginzburg, 2012, p. 190).

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Segundo Ginzburg, “o problema das relações entre literatura e direitos humanos tem ligação com omissões, lacunas e silenciamentos em discursos institucionais, jurídicos e científicos” (2012, p. 201). A literatura auxilia-nos na compreensão de linguagens assimétricas, ocultas, vozes silenciosas que a obra literária deixa trans-parecer. O aporte filosófico de Paul Ricoeur, na constituição do sujeito capaz, não deixa dúvida sobre a privação de direitos que sofrem as mulheres aviltadas dos seus direitos elementares, longe de serem sujeitos do direito e, portanto, autoras de sua história.

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CAPAZDevemos considerar a constituição do juízo que implica o reconhecimento

de um sujeito capaz, digno de estima e respeito. Para Paul Ricoeur, o sujeito capaz deriva da dimensão ética e moral do si-mesmo (1991, passim; Ricoeur, 1996, p. 163-180), tornando o homem passível de imputação ético-jurídica, conforme se depreende igualmente do texto “Quem é o sujeito do direito?” da obra O justo 1 (2008, p. 21-31). Para atingir o fim último da formação de um sujeito de pleno direito, Ricoeur chama a atenção para a pergunta Quem?, que irá desencadear questionamentos na direção da identificação do sujeito.

Partindo dessa primeira interrogação, passa-se para a noção de sujeito ca-paz. O conceito de capacidade pressupõe a condição de o indivíduo ser o autor de suas ações, a quem serão atribuídos direitos e deveres decorrentes desse “poder-fa-zer” (2008, p. 23), ou seja, do agir livre e consciente segundo seu juízo. A ênfase de Ricoeur na pergunta Quem? demarca a possibilidade de o homem poder desig-nar-se como autor de seus atos e, consequentemente, de sua história. Essa marca identificadora é importante para a estruturação do núcleo do si (self, ipse) e para a formação das atribuições morais e jurídicas que condicionam o agir humano, exigindo que o homem capaz assuma os deveres correspondentes, ou seja, venha a constituir-se em homem responsável.

Percebe-se que o entendimento de sujeito capaz suscitado pela pergunta Quem? desloca-se para o verbo “eu posso”, nos seguintes desdobramentos: “poder dizer”, “poder fazer”, “poder narrar e narrar-se”. Destaque-se que existe uma rela-ção de complementariedade entre a pergunta Quem? e a locução verbal “Eu pos-so” na medida em que o ponto nuclear da indagação é a identificação do sujeito da fala, da ação e da narrativa. Vale dizer, busca-se a autoria desses predicados, o homem capaz de construir as suas próprias enunciações e, portanto, a sua identi-dade pessoal.

No que se refere à trajetória percorrida pelo indivíduo no desenvolvimento da identidade pessoal e da capacidade, Ricoeur denomina esse processo de “her-menêutica da pessoa” (1996, p. 164), especificando quatro estratos, que compõem uma estrutura ternária: linguagem, ação, narrativa, vida ética, correspondentes às proposições “o homem falante, o homem que age (e acrescentarei [Paul Ricoeur] o homem que sofre), o homem narrador e personagem de sua narrativa de vida, final-mente o homem responsável” (1996, p. 164).

O exame especialmente do homem falante e do homem narrador instituem uma “gramática do ‘eu posso’” (2006, p. 109), assim denominado na configura-ção dos níveis hermenêuticos da pessoa. A primeira camada – do homem falante - é crucial para a inteligibilidade da presente temática, pois coloca o homem como ser privilegiado, detentor da fala e criador de seu mundo e da sua história. Ricoeur aproxima-se da linguagem para extrair elementos esclarecedores para a sua tese, principalmente do estudo semântico e pragmático da linguagem. É nesse contex-to que o ser falante adquire capacidade ao tornar-se “locutor de se designar como enunciador único de suas enunciações múltiplas” (2008, p. 26).

Importa assinalar que o plano da pragmática do discurso tem um papel fun-damental na formação do homem capaz em virtude da relevância do ato ilocutório, que pressupõe a noção de engajamento do ser falante4. A capacidade de colocar-se na linguagem, envolvendo-se e comprometendo-se no discurso, representa a afirma-ção de um sujeito capaz de dizer algo e de ser, ao mesmo tempo, reconhecido pelo ouvinte. A fala implica a relação com o outro, a interlocução, e, por conseguinte, o ato de reconhecer e de ser reconhecido (Ricoeur, 2008, p. 26; 1996, p. 170-171). Pressupõe a consideração da alteridade, segundo descreve Ricoeur:

A autodesignação do sujeito falante se produz em situações de interlocução nas quais a reflexividade se associa à alteridade: a palavra pronunciada por uma pessoa é uma palavra dirigida a outra; além disso, pode ocorrer de ela responder a uma interpelação vinda de outrem. Desse modo, a estrutura pergunta-resposta constitui a estrutura básica do discurso enquanto implicando locutor e interlocutor (2006, p. 111).

A noção de justiça localiza-se na direção do outro, na assunção da alteri-dade. Logo, Ricoeur, ao investigar quem é o sujeito do direito, está conduzindo a discussão para o nível de reconhecimento ético, meio de identificar o outro – a despeito das particularidades e das características étnicas e culturais – como uma

4 Cite-se o entendimento de Ricoeur a respeito do nível pragmático da linguagem: “Entendo por pragmática o estudo da linguagem em situações de discurso em que o significado de uma proposição depende do contexto de interlocução” (1996, p. 164).

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pessoa digna de ser considerada. Analisando as implicações linguísticas próprias a essa abordagem, Ricoeur sublinha o papel de protagonista que o sujeito capaz desempenha na narrativa de sua história. Em Quem é o sujeito do direito?, Ri-coeur amplia o horizonte das relações interpessoais para um plano cada vez mais abrangente:

A mesma relação triádica eu/tu/terceiro é encontrada no plano que distinguimos pela pergunta quem age?, quem é o autor da ação? A capacidade de alguém se desig-nar como autor de suas próprias ações está de fato inserida num contexto de intera-ção no qual o outro figura como meu antagonista ou meu coadjuvante, em relações que oscilam entre o conflito e a interação. Mas inúmeros outros estão implicados em toda empresa. Cada agente está interligado a esses outros pela intermediação de sistemas sociais de diversas ordens (2008, p. 27).

Põe-se em evidência a dimensão ética na constituição do homem capaz na medida em que a estima de si realiza-se no intercâmbio com os outros. Ricoeur nomeia solicitude o movimento do si ao encontro do outro, busca de reciprocida-de e reconhecimento. A abordagem do outro como meu semelhante rompe com o ciclo da desigualdade, que cava um abismo entre os homens, os quais, guiados pela vontade de poder absoluto, estabelecem critérios de diferenciação baseados em falsas crenças e no desejo de dominação. Ricoeur diz que

a petição ética mais profunda é a da reciprocidade que institui o outro como meu semelhante e eu mesmo como semelhante do outro [...] Um outro semelhante a mim, este é o voto da ética no que diz respeito à relação entre a estima de si e a solicitude (1996, p. 165).

Pretende-se extrair do pensamento ricoeuriano os elementos hermenêuti-cos significativos que possam secundar uma intersecção entre filosofia, literatura e direito de forma convincente para a problemática da condição da mulher, ainda alvo de uma violência irracional e incompreensível em face das conquistas jurídi-cas alcançadas.

RASTROS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS CRÔNI-CAS DE LIMA BARRETO

Lima Barreto é um autor singular. Ele reflete de forma lúcida e firme contra os assassinatos das mulheres infiéis, ocorridos no âmbito familiar (Vasconcellos, 2014, p. 4). Na crônica “Não as matem” (Barbosa, 1961b, p. 83-85), publica-da em 27 de janeiro de 1915, Lima Barreto denuncia os crimes de uxoricídio, praticados pelos homens com o consentimento da sociedade. Nessa crônica, o escritor salienta que as atitudes violentas contra a mulher derivam de uma visão

distorcida, pois os homens sentem-se donos das mulheres, podendo exercer sobre elas um poder ilimitado, um poder de vida ou morte (Barbosa, 1961b, p. 83-84; Vasconcellos, 2014, p. 4).

Ressalta que as mulheres são também suscetíveis de alterações ao longo do tempo, podendo ser influenciadas por outras inclinações e paixões (Barbosa, 1961b, p. 84). A postura de Lima Barreto choca a sociedade da época, porquanto se espera que a mulher seja totalmente submissa ao marido, ao pai, ao irmão. Afo-ra a completa subordinação à vontade do homem, à mulher cumpre ter um com-portamento recatado e pacífico, sem qualquer sinal de impetuosidade que pudesse pôr em risco a serenidade da família. Consoante Eliane Vasconcellos, “o homem, até pouco tempo, era o senhor todo-poderoso; a mulher, a fêmea submissa que administrava e/ou executava as atividades domésticas” (1999, p. 28). Ou seja, a mulher era despojada de capacidade jurídica. Tampouco era reconhecida como sujeito do direito, na concepção que lhe empresta Paul Ricoeur.

Em outras crônicas, Lima Barreto expõe com agudeza as críticas contra as injustiças e barbaridades cometidas contra as mulheres, resquícios da antiga legis-lação oriunda das Ordenações Filipinas, em que ao homem era permitido matar a adúltera (Vasconcellos, 1999, p. 279; 2014, p. 2). Em Bagatelas, Lima Barreto analisa a prática antiga, desumana, e a condescendência para com os assassinos das mulheres:

Uma das sobrevivências nefastas dessa ideia medieval, aplicada nas relações sexuais entre o marido e a mulher, é a tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, então é fatal a sua absolvição, no júri (Barbosa, 1961a, p. 168).

Percebe-se como o sentimento de impunidade até pouco tempo era to-lerado pela sociedade brasileira. Os crimes contra a honra eram aceitos como argumentos incontestes nos julgamentos contra os crimes de uxoricídio. A vítima passava a ser considerada a causadora do infortúnio, em virtude de ter maculado a honra do esposo e de toda a família. Lima Barreto interroga-se qual o crime de maior gravidade - se o adultério ou o assassinato -, considerado esse ato um crime premeditado, segundo o escritor, e não um ato impulsivo como é visto pela defesa da honra do homem injuriado (Barbosa, 1961a, p. 175). Eliane Vasconcellos ana-lisa com clareza a atuação lúcida de Lima Barreto:

Com justeza, Lima Barreto compreendeu que os julgamentos objetivavam sim-plesmente reafirmar as normas dominantes. O autor percebeu, de forma clara, que aquilo que era julgado num tribunal, onde comparecia um uxoricida, não era a conduta do homem e sim a conduta sexual da mulher, ela, de vítima, para a ré.

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Isto ocorria porque o modelo ideal de mulher é o de esposa doce e submissa, cujas principais virtudes são o recato, a dedicação e a fidelidade. Já no homem, tais qua-lidades não eram primordiais. Para salvar o uxoricida, o advogado atacava a honra feminina, normalmente acusadas de desavergonhadas (2014, p. 6).

Destaque-se que a dominação masculina (Miguel; Biroli, 2013, p. 7) era im-perante e alastrava-se por toda a sociedade. Era uma sociedade fechada, de papéis bem definidos, com poucas possibilidades de mudanças no quadro social. Trata-se de relações de poder que implicam uma desigualdade enorme entre os sexos. A mu-lher era completamente ofuscada numa sociedade que não a reconhecia como sujei-to do direito. Era invisível e não considerada pessoa digna de estima e consideração.

É importante registrar a atuação de promotores públicos da época, como Carlos Sussekind de Mendonça, Roberto Lyra, Caetano Pinto de Miranda Mon-tenegro e Lourenço de Mattos Borges, associados ao Conselho Brasileiro de Hy-giene Social, na defesa das mulheres. A finalidade precípua desse Conselho seria coibir o alto índice de assassinatos de mulheres, vítimas de crimes passionais to-lerados pela sociedade do início do século passado. (Blay, 2003), como foi vista pelas crônicas de Lima Barreto. Entretanto, o Conselho não tinha por objetivo a criação de condições para a emancipação da mulher como sujeito do direito, mas da instituição familiar primordialmente. Entretanto, a existência do Conselho funcionou como um locus de mediação e de transformação para a emergência de novas ideias libertárias e para o reconhecimento da condição da mulher.

Deve-se ressaltar que o movimento liderado pelos promotores públicos ti-nha por escopo extinguir “a tolerância social e legal em relação aos crimes pas-sionais”, consoante afirma Susan Bessa (1999, p. 90). Ou seja, tratava-se de um crime masculino, praticado pelo marido, noivo, pais ou irmãos na hipótese de conflitos relacionados a amor e a relações sexuais. Com efeito, esse crime era praticado numa escalada sem freios, constituindo um verdadeiro “massacre de mulheres” (Bessa, 1999, p. 90), em que elas eram assassinadas com o beneplácito da sociedade e com o amparo da legislação em vigor.

É interessante apontar os objetivos do Conselho Brasileiro de Hygiene Social, conforme discorre Susan Bessa, para verificar a intenção dos promotores de justiça envolvidos na caminhada em defesa da extinção dos assassinatos das mulheres:

expor as verdadeiras motivações (antissociais) existentes por trás dos crimes passio-nais; reeducar a sociedade, destruindo com isso as convenções e as crenças popu-lares que protegiam tais criminosos; repudiar as doutrinas legais que justificavam tais criminosos; e impor rigorosamente sentenças duras como recurso necessário de intimidação coletiva (1999, p. 90).

De fato, o Conselho logrou alcançar no início da década de trinta do século passado os objetivos almejados: penalidades aos assassinos e revisão do Código Penal de 1940, com a eliminação do fator da emoção e da paixão como excluden-tes da criminalização penal. Em contrapartida, deve-se assinalar que o Conselho Brasileiro de Hygiene Social – como o nome bem retrata – tinha por escopo “uma grande obra de higiene social” (Bessa, 1999, p. 90), com vistas a regenerar a so-ciedade tendo a família como alicerce principal. Às mulheres também era direcio-nada a campanha de higienização social no sentido de incutir-lhes valores sociais e morais para que a estrutura familiar não fosse abalada por questões passionais, que poderiam desencadear os instintos bárbaros dos homens.

Verifica-se, assim, que a mulher ainda não se constituía em um sujeito ple-namente habilitado a assumir o seu papel na sociedade, vale dizer, a exercer a cidadania, como condição imprescindível para o desabrochar completo de seu intelecto e para o exercício do jogo político. Vale dizer, ainda não era reconhecida de forma plena, não alcançando o nível de humanidade que a tornaria digna de estima e de respeito.

A VIA CRUCIS DO CORPO DA MULHER: TRAJETOS DE VIO-LÊNCIA NA LITERATURA DE CLARICE LISPECTOR, LYGIA FAGUNDES TELLES, LYA LUFT E MARINA COLASANTI

Busca-se, nesta seção, fazer uma breve referência a alguns textos literários que constituem uma literatura marcante nos anos setenta do século passado. São escritos por mulheres, o que não significa que são estudos feministas sobre a mu-lher. Ao contrário, as escritoras que serão mencionadas – Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Marina Colasanti – certamente rejeitariam a qualifica-ção de “feministas” na medida em que os textos revelam visões e estilos literários que ultrapassam uma literatura meramente voltada para a representação da vio-lência contra a mulher. Na verdade, os estudos literários acerca dessa literatura de autoria feminina procuram retratar a “violência física e simbólica” (Gomes, 2013, p. 3) contra a mulher devido à perpetuação de um modelo perverso de dominação masculina, sem abrir mão dos ricos e sutis recursos literários que transformam essas autoras em escritoras de primeira linha no cenário da literatura brasileira contemporânea.

Parte-se, nesta pesquisa, do título da obra de Clarice Lispector: A via crucis do corpo (1998). De acordo com a explicação dada pela própria autora, são his-tórias “contundentes” (1998, p. 11), reveladoras de um mundo cruel e lúgubre.

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Indevassável e enigmático como os olhos da bilheteira de cinema, como revela Clarice. Donde a utilização do título Via crucis do outro por Daniela Kahn (2005) como tentativa de decifrar o outro, marcado por uma relação de alteridade que implica sempre um componente de violência. Procura-se, enfim, uma amostra da violência recorrente contra a mulher, que a despoja de sua humanidade e a expõe a um ciclo ininterrupto de ameaças contra sua integridade física e moral. Chegamos ao título do presente estudo: “A via crucis do corpo da mulher: trajetos de vio-lência na literatura brasileira sob a ótica dos direitos humanos das mulheres”, em que várias encenações sobre a brutalidade contra a mulher são vistas como uma deformidade cultural, que se arrasta por séculos, e que continua a negar a mulher o status de sujeito capaz.

Não se trata de discutir as teorias feministas que traçam a trajetória das lutas das mulheres por reconhecimento. Cuida-se, ao revés, de capturar os mo-mentos em que a mulher ainda é exposta a um alto grau de vulnerabilida-de, que a ameaça constantemente, dentro e fora do ambiente doméstico. Com efeito, Susan Moller Okin é enfática quando discute a vulnerabilidade pelo casamento, afirmando que “em aspectos cruciais o casamento estruturado pelo gênero “insere as mulheres num ciclo de vulnerabilidade socialmente causada e distintamente assimétrica” (1989, p. 138)5. Mas do que posições assimétricas, um grande contingente de mulheres ainda sofre violência doméstica, estupros, espancamentos, como melancolicamente retratado por Lya Luft em As parceiras (2015). A narradora percorre um caminho de inescapável amargura proveniente de uma história familiar atravessada pela brutalidade sofrida pela matriarca Ca-tarina, refugiada em sua própria dor e desalento. Representa a visão do cotidia-no de violência e silêncio imposto a muitas mulheres que vivem em ambientes opressores (Gomes, 2013, p. 7). Destaca-se o seguinte trecho do romance, que expressa a dor pungente da mulher ferida e humilhada:

Conseguiu sobreviver até quarenta e seis anos. O marido desistiu de lhe ensinar as artes dos bordéis, preferindo teúdas e manteúdas àquela adolescente que já lhe pro-vocava mais medo do que desejo. Mudou-se para uma de suas fazendas, no casarão aparecia apenas como visitante temido. Minha avó ficou meio esquecida com as empregadas e uma governanta. Quando o marido irrompia naquela falsa tranquili-dade, não deixava de procurar a mulher. Dava um jeito de abrirem o sótão, e entre gritos e escândalo emprenhava Catarina outra vez (2015, p. 14)

5 Texto no original: “in crucial respects gender-structured marriage involves women in a cycle of socially and distinctly asymmetric vulnerability”. Parte da tradução foi tomada da Introdução de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli (2013, p. 35).

Registre-se que a edição da Lei Maria da Penha, Lei 11.340, de 2006, pro-cura coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher6. A lei protege a mu-lher contra as diversas formas de exclusão, dando-lhe amparo para que ela possa integrar-se à sociedade e exercer plenamente a cidadania. Deve-se, sem dúvida, ressaltar a importância da Lei Maria da Penha como um avanço importante no sentido da criminalização da violência doméstica e sexual. Todavia, verifica-se que o instrumento legal é insuficiente para conter o aviltamento contra a mulher, conforme advertem Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli:

Ainda assim, permanece a tolerância a muitas das formas de subordinação diretamen-te conectadas a relações de poder nas quais as diferenças de gênero são fundamentais. A subordinação das mulheres aos homens na esfera doméstica está longe de ser uma realida-de superada, mas se redefine em relações nas quais a objetificação e mesmo a exaltação da beleza feminina são formas de controle (2013, p. 34, grifos nossos).

Por conseguinte, torna-se indispensável uma revisão profunda nos parâ-metros em que se baseiam as relações de gênero. O corpo da mulher é ainda extremamente vulnerável à cupidez e à dominação masculina. Ao homem coube um comportamento agressivo no que tange à vida pública e ao domínio exercido sobre a mulher, pensamento ainda resistente aos princípios norteadores da mo-dernidade. Lima Barreto assim criticava a mentalidade dos homens no início do século XX. Não se justifica que ainda existam mentes deformadas com relação ao trato com as mulheres. O preconceito contra a mulher rebaixa-a e torna-a um objeto de troca intercambiável. A condição física da mulher e a ideia de possessão do homem sobre o corpo da mulher aprofunda a questão da vulnerabilidade, colocando a mulher num nível crítico de desamparo. Clarice Lispector captura a situação de violência sexual sofrida por Cidinha, personagem central do conto “A língua do ‘P’”, que entra em desespero quando percebe, num vagão de trem, que estaria na iminência de ser estuprada e assassinada. Finge-se de prostituta para fugir aos agressores. Lê, posteriormente, já salva da sanha assassina, a manchete fatídica: “Moça currada e assassinada no trem” (1998, p. 70). Ou seja, Cidinha é retirada do trem por ter sido considerada prostituta, e entra outra mulher, vítima fatal da ação implacável dos criminosos.

O conto de Clarice Lispector, narrativa que mescla ficção e jornalismo, revive a angústia de uma mulher que sofre a violência de um assédio sexual, e tem a consciência de sua vulnerabilidade em face da ameaça de estupro. Violência encenada no espaço público, o que demonstra que a mulher é perseguida dentro

6 Segundo informa Carlos Magno Gomes a lei “nasce da luta da farmacêutica Maria da Penha Maia, ao tentar processar seu agressor, o ex-marido Marcos Antônio Herredia, que, apesar de atentar contra sua vida duas vezes, deixando-a paraplégica, teve direito de viver em liberdade” (2013, p. 5).

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e fora de casa. Via crucis de um corpo rebaixado à condição de mero objeto sexual a ser apropriado vorazmente pelos homens. Carlos Magno Gomes resume com propriedade a violência descrita no conto:

Assim, “A língua do P” narra um femicídio cometido por estranhos. A violência física e a banalização do crime são expostas como parte do mesmo problema. Tal crime nasce de um desejo masculino de possuir uma passageira de um trem. Na narrativa ficcional, há tanto a violência verbal quanto a física. A autora descreve como o desejo de violência se confunde com o desejo sexual, mostrando as tênues fronteiras desses anseios masculinos. No primeiro momento, há apenas o assédio sexual com palavrões. No segundo, o estupro seguido de assassinato, expondo a suscetibilidade do corpo feminino aos perigos da violência urbana e aos desejos masculinos incontrolados (2013, p. 7-8).

O femicídio (ou feminicídio) resulta de uma visão distorcida sobre a mulher, assentada no desrespeito total aos seus direitos fundamentais e na supremacia da dominação masculina. O crime violatório de direito das mulheres, típico da violên-cia urbana, é igualmente abordado por Lygia Fagundes Telles no conto “Venha ver o pôr do sol” (2008). A autora contrapõe os dois ex-namorados, Raquel e Ricardo, numa atmosfera mórbida e cria um enredo asfixiante para transmitir a sensação de controle absoluto do homem sobre a mulher. Ricardo é incapaz de aceitar a separa-ção e a perda da amada. O seu plano macabro atesta o domínio e a manipulação do homem como possuidor do corpo da mulher (Gomes, 2013, p. 6-7).

Convém registrar que a Lei 13.104/2015, de 2015, altera o art. 121 do Có-digo Penal, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluí-lo no rol dos crimes hediondos. Louva-se a iniciativa legislativa para salvaguardar a inte-gridade física das mulheres. Recorde-se que essa questão foi objeto de deliberação e julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: o Caso do Campo de Algodão (Caso González e outras (“Campo Algodoeiro”) vs. México). Trata-se, consoante Lucas Lixinski, do homicídio de várias mulheres em Ciudad Juárez, no México. O caso teve repercussão, pois, pela primeira vez, um tribu-nal internacional reconheceu o termo “feminicídio”, responsabilizando o México pelo desaparecimento de três mulheres: Claudia Ivette Gonzalez, Esmeralda Her-rera Monreal e Laura Berenice Ramos Monárrez. A sentença foi proferida em 16 de novembro de 2009.

A literatura registra vários episódios de violência contra a mulher, retrata-dos como comportamentos culturais dominantes. De fato, pode-se entender que as leis que criminalizam as violações contra a mulher não têm plena efetividade

devido aos persistentes padrões culturais que inferiorizam a mulher, impedindo que elas possam desenvolver a capacidade de serem protagonistas de suas histórias, conforme nos ensina Paul Ricoeur. O mundo é hostil ao florescimento da mulher, prisioneira de uma cultura de dominação masculina. Catharine MacKinnon des-creve com realismo o mundo ameaçador em que a maioria das mulheres habita:

As mulheres sabem que o mundo está lá fora porque ele nos atinge na cara. Lite-ralmente. Somos estupradas, espancadas, pornografadas, definidas pela força, por um mundo que começa, pelo menos, inteiramente fora de nós. Não importa o que pensemos dele, o quanto tentemos pensar que ele não existe ou pensá-lo em uma forma diferente para que habitemos, o mundo permanece real. Experimentem, uma hora dessas. Ele existe independentemente da nossa vontade. Sabemos que ele está lá porque, não importa o que façamos, não podemos sair dele. O poder masculino é, para nós – e portanto é –, esse tipo de fato (2013, p. 243).

Talvez uma saída para a superação de um mundo tão opressor para as mu-lheres seja tecer narrativas que possam indicar um caminho de não submissão ao universo masculino. Maria Colasanti apresenta-se sutilmente uma fábula – A moça tecelã – em que o homem é produto do desejo da mulher, mas é desfeito de-vido à cobiça e ao controle sobre a tecelã (2004). Artífice de seu destino, a mulher pode vislumbrar um trajeto de autonomia, reconhecimento e justiça.

CONCLUSÃOA conexão filosofia, literatura e direito mostra-se profícua na medida em

que instaura um diálogo intenso e desmascarador. Torna-se, com efeito, a possibi-lidade de vislumbre de um sentido mais humano para o reconhecimento de seg-mentos sociais subtraídos do convívio em sociedade e do intercâmbio das ideias políticas. Na investigação feita o enfoque centrou-se na violência cometida contra as mulheres.

O percurso conceitual de Paul Ricoeur leva-nos a atravessar os estratos con-figuradores do homem capaz, mormente os estágios denominados de homem fa-lante, do homem que age, do homem narrador, e do homem responsável. Instaura-se a fenomenologia hermenêutica da pessoa, proposta por Ricoeur, que irá conduzir à alteridade e à afirmação dos componentes intrínsecos da identidade.

Os marcos teóricos trazidos para uma investigação sobre o sujeito capaz de-monstraram a sua perfeita adequação à leitura feita a partir da obra de Lima Bar-reto e das literatura de autoria feminina, especialmente representada por Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Marina Colasanti. Ao indagar quem é o sujeito do direito, Ricoeur está elevando a discussão para o nível do reconhe-

282 a via CruCiS Do CorPo Da muLHEr

HiLDa HELEna SoarES BEnTES 283

cimento ético, hábil em identificar o outro como pessoa digna de ser considerada. Busca-se formar um sujeito habilitado a inscrever o seu papel na sociedade, ou seja, a exercer plenamente a cidadania, como condição existencial indispensável para o aperfeiçoamento de seu intelecto e de sua vocação para a política.

Sobretudo, o aporte ricoeuriano permite dar visibilidade ao sujeito de di-reito, apto a ser estimado e respeitado, e, portanto, a constituir-se em agente ético na reflexão e construção da política, e particularmente na formação de sociedades mais justas. Em decorrência dessas reflexões, destaca-se a necessidade de mode-lagem de um sujeito de direito plenamente capaz, para a plena concretização dos Direitos Humanos. Este trabalho tem por objetivo precípuo reabilitar o sujeito capaz de pleno direito, a palavra tantas vezes silenciada pela imposição da força, e de banir todas as estratégias de exclusão da mulher.

Vimos, com Lima Barreto, como suas crônicas estavam afinadas com a realidade e com o sofrimento de centenas de mulheres sacrificadas por uma men-talidade opressiva e discriminatória. Encontra-se em Lima Barreto o clamor por justiça em diversas crônicas denunciando as atrocidades cometidas contra as mulheres adúlteras.

A análise das obras que compõem o painel da parte intitulada “A via crucis do corpo da mulher: trajetos de violência na literatura de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Marina Colasanti” reforça a continuidade da violência praticada contra a mulher. Apesar de constituir uma visão panorâmica, os exem-plos trazidos comprovam a persistência de uma cultura perversa e desumana no trato com as mulheres.

Sobretudo, o diálogo instaurado permite dar visibilidade ao sujeito do di-reito, in casu a mulher, apto a ser estimado e respeitado, e, portanto, a constituir--se em agente ético na reflexão e, sobretudo, na formação de sociedades mais jus-tas. E o corpo da mulher aparece como sinal de que a violência e a discriminação devem ser eliminadas para a construção de comunidades mais decentes.

“AS VELHAS”, DE LOURDES RAMALHO: DIREITO COS-TUMEIRO, SUJEIÇÃO FEMININA E POLITICAGEM NO SERTÃO NORDESTINO

Cecília de Amorim Barros Ramalho1

Ediliane Lopes Leite de Figueiredo2

Maria de Lourdes Nunes Ramalho é autora de diversos livros, folhetos em cordel, peças e outras obras artísticas. Dentre essas, As Velhas (1980) é um escrito premiado e apresentado nacional e internacionalmente. Conta a história de uma família sobrevivendo no interior do Nordeste brasileiro em tempos de seca, abran-gendo, de modo universalizante, as dificuldades do sertanejo, sua religiosidade, o comportamento da mulher, a questão da indústria da seca e a corrupção dela decorrente. Nesse sentido, conforme elucidado desde seu sumário:

Peça regional nordestina, enfocando as frentes de trabalho de emergência, forma-das pelo governo, por ocasião das secas. Denúncia de roubos efetuados pelos polí-ticos, quando vendem, nos barracões, as magras rações de mantimentos destinadas gratuitamente aos flagelados. (RAMALHO, 1980, p. 51)

Os diálogos das personagens lembram a narrativa de Graciliano Ramos em Vidas Secas (2014), diante da escassez de adjetivos, e até mesmo as organizações dos enredos são semelhantes, centradas nas histórias de duas famílias. No entanto, diferen-temente de Fabiano, protagonista do livro de Ramos, a figura de Tonho, antagonista da peça ramalhiana, é negligente ao deixar a família para viver com outra mulher.

Em outras palavras, a personagem de As Velhas (1980) comete bigamia, conduta considerada típica e que, de acordo com Diniz (2017, p. 92), é, sob o ponto de vista não só penal, como também civil, “infração do impedimento ma-trimonial de vínculo”. A autora acrescenta, ainda, que “o separado extrajudicial ou judicialmente, antes de obter o divórcio, não poderá convolar novas núpcias”, o que, de forma implícita na história, Tonho faz com Ludovina, sua amante.

1 Graduanda em Direito. Ex-aluna UNIFACISA; atualmente, estudante da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Pesquisadora dos estudos jusliterários – membro da linha de pesquisa Estudos Culturais, Direito e Literatura do GESPI – Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual. E-mail: [email protected]

2 Professora orientadora: Graduada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre e Doutora em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e In-terculturalidade (PPGLI - UEPB), na área de concentração Literatura e Estudos Culturais. Pesquisadora dos estudos jusliterários - Coordenadora da linha de pesquisa Estudos Culturais, Direito e Literatura do GESPI – Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual. Professora no Centro Universitário UNIFACI-SA. E-mail: [email protected]

286 “aS vELHaS”, DE LourDES ramaLHo

Percebe-se a incidência, ainda, de outro ramo do Direito, o do menor, “con-junto de normas alusivas ao menor (criança e adolescente) e à condição jurídica do menor abandonado ou não amparado” (DINIZ, 2017, p. 220), uma vez que Tonho deixa seus dois filhos desamparados para viver com a nova companheira.

Toda essa situação é observável nos primeiros momentos da peça, em que o leitor se depara com a situação de desolamento dos protagonistas. À medida que o con-tato com a história se expande, no entanto, percebe-se que o Direito incide não só na problemática da família, mas sobre outros tópicos de interesse jurídico, particularmen-te, três que se destacam: costume; posição institucionalizada da mulher e politicalha.

Nesse prisma, surgiu o questionamento: como elementos do ordenamento jurídico incidem sobre o costume, o papel da mulher e aspectos político-sociais na obra As Velhas (1980), de Lourdes Ramalho?

Para responder tal pergunta, elenca-se, como objetivo geral, analisar, à luz do ordenamento jurídico, o costume, o papel da mulher e os aspectos político-so-ciais na obra em estudo. Com essa finalidade, originaram-se como objetivos espe-cíficos reconhecer a presença dos costumes social e jurídico no contexto sertanejo; e entender convenções social e juridicamente institucionalizadas, tanto em relação à figura feminina, quanto às condutas políticas.

Dessa forma, a pesquisa se justifica pelo fato de apresentar uma grande obra da dramaturgia sob o ponto de vista jurídico, num contexto de valorização da cultura nordestina. É relevante, ainda, pelo fato de a escritora ser radicada na Paraíba, o que confere verossimilhança ao drama.

2. METODOLOGIAA pesquisa foi executada na cidade de Campina Grande – PB, conduzida

em bibliotecas públicas e na pessoal da autora Lourdes Ramalho. Para a devida realização do trabalho, foi utilizada a metodologia de pesquisa documental, englo-bando a peça As Velhas (1980), da contemplada dramaturga, além de legislações várias, sendo elas: Código Penal; Código Civil; Código Eleitoral e Constituição vigentes à época do escrito. Ademais, fez-se uso do Dicionário Jurídico Universi-tário de Maria Helena Diniz (2017) e de doutrina basilar, esta, compreendendo autores como Paulo Nader (2016).

Houve, além disso, pesquisa bibliográfica, uma vez que foram estudados materiais secundários, ou seja, aqueles que realizam discussão sobre o tema, como no caso de artigos científicos publicados em anais de congressos.

CECíLia DE amorim BarroS ramaLHo E EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 287

Neste artigo, verifica-se a presença do método de abordagem da indução científica, que, segundo Marconi e Lakatos (2003, p. 89), firma-se na observação de um ou mais casos específicos, dos quais se torna possível fazer conclusões gene-ralizadas acerca do tópico em estudo, numa “conexão ascendente” (p. 106). Isso porque, na peça, é possível capturar a essência de uma única história que se vale da complexidade das situações de seu número limitado de personagens, mas espelha a realidade de tantos outros nordestinos.

Como método de procedimento, figurou na pesquisa o histórico, que, ainda nos dizeres de Marconi e Lakatos (2003, p. 107), configura-se do se-guinte modo:

[...] colocando-se os fenômenos, como, por exemplo, as instituições, no ambiente social em que nasceram, entre as suas condições “concomitantes”, torna-se mais fácil a sua análise e compreensão, no que diz respeito à gênese e ao desenvolvi-mento, assim como às sucessivas alterações, permitindo a comparação de socieda-des diferentes: o método histórico preenche os vazios dos fatos e acontecimentos, apoiando-se em um tempo, mesmo que artificialmente reconstruído, que assegura a percepção da continuidade e do entrelaçamento dos fenômenos.

Além desse, utilizou-se o método monográfico, que “consiste no estudo de determinados indivíduos, profissões, condições, instituições, grupos ou co-munidades, com a finalidade de obter generalizações” (p. 108); e, por fim, o es-truturalista, fundamentado em observar um dado caso; a partir dele, construir abstrações; e, posteriormente, das abstrações, retornar a ele.

A pesquisa é de caráter qualitativo, partindo de uma leitura de As Velhas (1980) voltada à identificação de elementos potencialmente relacionados ao uni-verso jurídico. Como consequência, houve uma seleção de trechos – transcritos ao longo do trabalho – para análise comparativa, com vistas a esmiuçar o Direito enquanto personagem implícito da obra. Assim, houve busca sistemática de deter-minados elementos constantes na realidade avaliada, visando ao reconhecimento da incidência jurídica na peça, a partir de um estudo minucioso de aspectos dessa amostra da literatura ramalhiana.

Por fim, após a etapa da busca pelo elemento sociojurídico, trabalhou-se, de forma mais direta, com a finalidade de aplicar o ordenamento jurídico em situações retratadas ao longo das cenas. Daí, a legislação vigente à época foi posta em paralelo com o texto de As Velhas, na busca de situações abarcadas pela Cons-tituição e pelos Códigos Civil, Eleitoral e Penal.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO A partir da leitura da peça, é possível se deparar com três principais elemen-

tos relacionados ao ordenamento jurídico. São eles: o costume; a mulher e seu papel desempenhado nas relações civis, sob a luz do Código Civil; e as condutas dos políticos, passíveis de sanções penais, na perspectiva da Constituição Federal e dos Códigos Penal e Eleitoral vigentes.

3.1. O COSTUME COMO FONTE JURÍDICA NA OBRA: TRADIÇÕES DE VALORES SERTANEJOS

De acordo com Paulo Nader, o “Direito costumeiro pode ser definido como conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reiterado, uniforme e que gera a certeza da obrigatoriedade, reco-nhecidas e impostas pelo Estado” (2016, p. 156).

Na obra, é possível perceber a força desse elemento como fonte do Direito. A partir de valores perpetuados por várias gerações de sertanejos, cristalizaram-se atitudes oriundas das relações de trabalho informal estabelecidas no seio familiar, como é possível observar na maneira automática como as personagens Branca e Mariana vão varrer o local e cozinhar, respectivamente, assim que se situam na peça, e Chicó se responsabiliza pelo “serviço pesado” (RAMALHO, 1980, p. 53).

Nota-se, ainda, a incidência do costume de compra e venda informal. Em As Velhas, esse sistema de obrigações mútuas se dá mediante um vendedor, To-más, que visita as casas dos seus clientes e lhes leva o que encomendam, algumas vezes em troca não de moeda, mas de outro produto ou serviço, caracterizando o escambo. Não há contrato firmado além de um pedido e não existem títulos de crédito, por exemplo; o direito das obrigações, nesse cenário, é marcado pelo costume da informalidade e da oralidade.

Há, ainda, de se ressaltar o conceito de costume social, que não deve ser con-fundido com o de costume jurídico. O primeiro, apesar de ser também corriqueiro, amplamente aceito e possuir caráter regular por um longo período, não é dotado da coercitividade, de imposição legal, como ocorre com o segundo. De fato, o costume social pode acarretar sanções, mas, como o próprio nome sugere, estas são de caráter social e não jurídico. Portanto, não se enquadra como fonte do ordenamento jurídi-co, sendo, outrossim, objeto de estudo da sociologia (DIMOULIS, 2016).

O costume social, também, é amplamente observável em momentos de As Velhas. Um deles é resultado da situação do nordestino pobre em busca de melho-

288 “aS vELHaS”, DE LourDES ramaLHo

res condições de vida: a condição de retirante. Mariana, Chicó e Branca – repre-sentando tantos outros sertanejos – percorrem estados como Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, na condição involuntária de nômades, devido à seca e à fome, como se lê na letra da música que abre e encerra a peça:

Bate o sol e assola a estrada Caminheiro a palmilhar Como é longa a caminhada Como é tristonha a jornada - Segue a leva, sem parar... Bate o sol e assola a estrada Bate o sol e assola a estrada... Da quentura a labareda Vem do chão – desce do ar Cadê os atalho ou vereda Que nos leve a um bom lugar - Bate o pé comendo estrada Na esperança de chegar... Bate sola – pé cansado Que teu destino é correr. Come terra – boca triste Antes dela te comer. Do céu limpo – faca afiada Bate o sol e assola a estrada Bate o sol e assola a estrada.

(RAMALHO, 1980, p. 50).

O status de retirante, clássica temática da literatura nordestina, foi retratado em diversas outras obras, como a supracitada Vidas Secas, de Graciliano Ramos, bem como em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Nesse ínterim,

A coragem da poesia-denúncia de João Cabral de Melo Neto ecoou, e ainda ecoa, nas vozes dos Severinos iguais a tudo na vida (alusão ao texto do poema), ou quiçá na ausência material desta, que não têm pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados. Não tinham sexo, nem idade, nem condição humana. Eram os retirantes. Nada mais. (Alusão à Bagaceira). (FACHIN, FACHIN; GONÇALVES, 2008, p. 230. Grifos dos autores.)

Ademais, a mulher sertaneja é sujeita a inúmeros costumes, que variam desde a proibição de se aproximar de pessoas que não as do núcleo familiar até a educação voltada para os afazeres domésticos, sempre num contexto altamente

CECíLia DE amorim BarroS ramaLHo E EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 289

repressivo, sob pena de ter sua imagem arruinada socialmente – fatores que se ligam ao próximo tópico.

3.2. A POSIÇÃO PASSIVA DA MULHER NORDESTINA Ao longo da leitura da obra, o leitor depara-se constantemente com a mu-

lher num contexto de sujeição. A conformidade das figuras femininas na peça decorre da introjeção de valores sociais altamente machistas, num retrato crítico. O próprio Código Civil vigente à época, que datava de 1916, continha elementos como “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a co-laboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos” (BRASIL, 1916, art. 233) e “Discordando eles (os cônjuges) entre si, prevalecerá a vontade pater-na”, expressão que se reitera ao longo do texto de 1916 e ligada ao conceito de histeria, que acreditava-se ser um mal exclusivo das mulheres e as impossibilitava de serem racionais.

Mesmo destacadas como personagens principais, ou, quiçá, exatamente por isso, Mariana e Ludovina são duas mães com um histórico de vida marcado por sofrimento, pela simples condição de serem mulheres. Mariana, por exemplo, após o fim de seu casamento - ainda que a causa tenha sido a infidelidade do marido -, não se relacionou mais amorosamente com ninguém, por obrigação do dever de permanecer esposa (já que não se divorciou). Marcada pelas cicatrizes deixadas por Tonho, o pai de seus filhos, em solilóquio, ela revela a realidade de muitas mulheres nordestinas:

Sou como as planta da terra – o cardeiro, o xique-xique... Elas é assim pra resistir à secura do sertão. Como podiam ser macia, delicada, se tem de viver num chão esturricado, sem água que amoleça o barro donde tiram seu sustento? – Mesmo assim sou eu – enfrento a secura de meus dias, sem refrigério de palavra amiga, sem ajuda de um ombro ou mão que me sustente nas fraqueza, que me acarinhe a cabeça cansada de pensar, de padecer as agonia de ta só, de viver só o resto de meus dias... (RAMALHO, 1980, p. 76)

Na verdade, Mariana teria alguns direitos assegurados pelo Código Civil se houvesse buscado a separação de Tonho. No entanto, deve-se levar em conta o baixo grau de instrução da personagem e a própria educação voltada para a submissão da mulher, ainda que injustiçada. De qualquer forma, de acordo com o art. 248, VIII, ela poderia propor a separação judicial e o divórcio, e ainda po-deria se valer do instituto do desquite, com fundamentação nos incisos I e IV, que tratavam das hipóteses, respectivamente, de adultério e abandono voluntário do lar por mais de dois anos (BRASIL, art. 248).

290 “aS vELHaS”, DE LourDES ramaLHo

Ludovina, por sua vez, passou a ter um cotidiano diferente do de cigana que era, quando, passando a viver com Tonho, se fixou numa propriedade com-prada pelo companheiro, na qual trabalhou avidamente com vistas a sustentar a família; com o passar dos meses, a personagem masculina se tornou um “fardo”, adoecendo gravemente e de maneira crônica, assumindo ela todas as responsabili-dades. Posteriormente, Ludovina adoece de reumatismo, não recebendo assistên-cia moral dele (já que, quanto à física, encontrava-se impossibilitado de prestar), definhando até mal poder andar, e acabou por, miserável, não querer sequer vê-lo, ainda que ambos morassem sob o mesmo teto.

Ademais, algumas falas das personagens, como “...mulher nasceu pra ser sujeita mesmo” (RAMALHO, 1980, p. 73) e “lugar de mulher é em casa” (p. 88) perpassam a ideologia repressiva ora comentada. Apesar disso, a Constitui-ção vigente assegurava a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de sexo. (BRASIL, 1967, art. 150, §1°).

A mulher como ser desigual, na sociedade nordestina, é algo tão imbricado que acaba por fazer parte do inconsciente coletivo, conceito formulado pelo psi-quiatra Carl Gustav Jung, que significa uma série de valores compartilhados por toda a humanidade. Nesse sentido, “o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma de-finida aos conteúdos da consciência” (JUNG, 2002, p. 53).

Essas predisposições, portanto, são o reflexo de paradigmas solidifica-dos ao longo de gerações, o que se retrata na obra em análise, perseverando, até os dias atuais, tratamento diferenciado à mulher com base em arquétipos do inconsciente coletivo. Tal contexto lembra o conceito de violência sim-bólica formulado por Pierre Bourdieu em seu livro A Dominação Masculina (2014), qual seja, aquela que se faz presente nas entrelinhas das relações so-ciais cotidianas.

Vale salientar que a arte ramalhiana não possui caráter feminista, senão feminino, pois, mesmo trazendo a dificuldade da mulher em encontrar-se indi-vidual e socialmente, não toma partido ou defende ideologias. A autora sempre prezou, em entrevistas, por se explicitar neutra (e um tanto cética) politicamente. No entanto, isso nunca constituiu impedimento para que sua voz fosse um ins-trumento de crítica feroz dos desvios que percebia na sociedade. Entre tantos equívocos, um dos que denunciou, com particular maestria, foram as imposições vividas pelas mulheres ora em análise, como no trecho:

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Diz que o homem é que constrói o mundo – constrói e destrói também, nessa sede de botar pra baixo, de descontar, de ser o salvador, o herói... E lá se vão eles, e muitos nem volta; vai-se o marido, vai-se o pai, vai-se o filho... Fica as mulher, na espera... heróis... heróis que nem se importam com as mãe que chora, com as noiva que suspira, com os filho que pode ficar na orfandade... Agora, dona Branca, é mostrar que é filha de Mariana, é levantar a cabeça e receber nos peito toda a desgraça que possa acontecer... É criar coragem e enfrentar tudo: a compaixão ou o abandono; a bênção ou a maldição – mas lutar, lutar como sua mãe, deixada pelo marido... (RAMALHO, 1980, p. 85).

Portanto, a autora, apesar de atestar a violência simbólica como uma constan-te no universo social sertanejo, destaca o potencial feminino, discorrendo sobre sua força, em solilóquio da personagem Branca, deixando sua opinião acerca do tema.

3.3. POLITICAGEM: CONDUTAS PENALMENTE RELEVANTES EM “AS VELHAS”

O conceito de crime político, de acordo com Diniz (p. 182), é “ato punível caracterizado pela ofensa ou ameaça à ordem política vigente numa nação, pondo em risco a segurança externa ou interna das instituições políticas.”

A peça foi escrita durante a vigência do Código Eleitoral de 1965, que dispunha, a partir do art. 289, dos crimes eleitorais. Um deles, constante no art. 299, “dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinhei-ro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita” (BRASIL, 1965), se faz presente na história. O Dr. Procope, político que representa sua classe na história, concedeu a determinadas personagens cargos públicos para garantir-se no poder – “por muito favor deram o emprego de feitor” (RAMALHO, 1980, p. 66). Pela conduta, a pena cominada era de reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.

Além desse crime, o político também falsificou documento público para fins eleitorais (BRASIL, 1965, art. 348), fazendo listas fraudulentas. “É as tal lista-fantasma, donde o Dr. Procope enraba rios de dinheiro. Tem casa que, além das alma penada, até os gato e cachorro ta alistado, pra essa canalha de gravata em-bolsar os cobres.” (RAMALHO, 1980, p. 68). A pena cominada para este crime era de dois a seis anos de reclusão e pagamento de 15 a 30 dias-multa. Ressalta-se, ainda, que de acordo com a redação do §1°, se o agente fosse funcionário público e se cometesse o crime prevalecendo-se do cargo, a pena seria agravada; possibili-dade essa que alcançava a figura do Dr. Procope, agente público transgressor.

292 “aS vELHaS”, DE LourDES ramaLHo

Há, para mais, na obra, outros delitos não previstos no Código Eleitoral de 1965, como a conduta do Dr. Procope de vender à população os bens enviados para serem distribuídos: “os mantimento que o governo manda pros flagelados e os políticos desvia pro barracão” (RAMALHO, 1980, p. 70), assim como não pagar aos trabalhadores seus devidos salários, como constatado no diálogo:

JOSÉ – Tomás, quer ir comigo ali? – Ontem, no trecho de cima, o pagamento dos tra-balhador foi feito com gás. Como num tinha mais mantimento, o Dr. Procope man-dou que dessem uma lata de gás, a cada cossaco, como paga da semana de trabalho.

VINA – Com gás? Gente será lamparina pra comer gás?

JOSÉ – Pois é isso – como ninguém é candeeiro pra comer gás, o povo vendia as lata pela metade do preço pra poder comprar comer. E sabem quem recomprava – o mesmo Dr. Procope.

TOMÁS – Comprava pela metade?

JOSÉ – Sim. Vendia por trinta e cinco mil réis e comprava de novo por quinze. Rou-bava duas vez. É mais uma safadeza pra botar na lista (RAMALHO, 1980, p. 79).

Não se limitando a tipos penais de caráter político, até mesmo de homicí-dio a personagem José tem provas:

Chicó, guarde lá suas provas que eu aqui já tenho também as minhas – listra com nome de defunto, gato, cachorro, jumento, bebé e velho aposentado... Dessa feita o Dr. Procope vai responder por tudo, até pelas ossada dos pobre que ele mandava matar e enterrar na fazenda (RAMALHO, 1980, p. 70).

Nesse caso, Dr. Procope seria apenado por homicídio qualificado “median-te paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe” (BRASIL, 1940, art. 121, I), com pena prevista entre 12 e 30 anos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAISAs Velhas (1980) é repleta de aspectos da cultura nordestina, perceptíveis

nas falas e ações das personagens, e aborda, no contexto da obra, de maneira irô-nica, a posição da mulher numa sociedade extremamente patriarcalista, além de problematizar a atuação política mediante um cenário de pobreza.

O ordenamento jurídico entra em contato com a peça em vários pontos, tendo sido destacados, nesse trabalho, três específicos. O primeiro deles é a incidên-cia do costume jurídico nas relações de trabalho e na informalidade das obrigações acordadas, além da forte presença do costume social, por exemplo, de educar a mulher para as tarefas domésticas e formar o homem para as relações e trabalhos exteriores ao lar. Há também o costume involuntário de ser nômade, num “itinerá-

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rio traçado pelo Severino, do Sertão ao Litoral, entre seu sonho e vontade de buscar uma vida (melhor)” (FACHIN, FACHIN; GONÇALVES, 2008, p. 235).

Ainda em termos de educação da mulher, é possível averiguar a existência de violência simbólica, perpetrada em institutos como a proibição e quase temor de quaisquer “vulgaridades”; e o casamento, regido por regras bastante sexistas, no qual o homem é o centro e a mulher, uma assistente, um ente que deve ser submisso.

Se a ética da mulher deveria ser extremamente rigorosa, a do político era desleixada, senão inexistente. A figura do Dr. Procope realizou diversos crimes: a doação de cargo com o propósito de assegurar interesses próprios; o desvio de mantimentos para venda; o não-pagamento adequado a trabalhadores e até mes-mo homicídios torpes.

As Velhas (1980) é uma peça-crônica, porque traz ao leitor, com humor, uma história altamente verossímil e o faz refletir, num processo hermenêutico extensivo, sobre seu título. Velhas não são apenas as protagonistas; são práticas como machismo e corrupção, que tornam deletério o desenvolvimento não só nordestino, mas de todo o Brasil, seja do ponto de vista social, seja do político, seja do jurídico. É essa a razão que confere à dramatização o caráter de clássica: estimular a reflexão acerca dos valores acolhidos pela sociedade.

294 “aS vELHaS”, DE LourDES ramaLHo

A MULHER NA E DA LITERATURA: POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS JUSLITERÁRIAS1

Paulo Silas Filho2

Ao se falar em mulher na (e da) literatura, não se está a dizer de uma even-tual ou (im)possível literatura feminina. Não se pauta o presente diálogo numa abordagem com a proposta de se analisar um recorte da literatura como de um ambiente propriamente feminino, do tipo que se diga “literatura para mulher”. Longe disso. Quando opto por falar sobre ‘a mulher na literatura’, quero com isso dizer algo sobre o enfoque que uma narrativa literária que se estabelece para com personagens femininas, livros que falem sobre mulheres e suas histórias. Já quan-do menciono ‘a mulher da literatura’, a abordagem pretendida se dá com relação à literatura que é produzida por mulheres, ou seja, obras literárias que contem com mulheres como autoras.

Feito esse introito necessário, o que aqui proponho é o tracejar de alguns caminhos possíveis para se estabelecer um diálogo interdisciplinar do Direito com a Literatura, sem qualquer pretensão de esgotamento ou aprofundamento das temáticas para as quais se aponta. Assim, a proposta é bastante singela, servin-do como um convite para que as ideias aqui lançadas de modo geral e genérico despertem a atenção para que entusiastas prossigam com mais rigor nas possibi-lidades anunciadas. São estudos possíveis, portanto, de uma interdisciplinaridade entre essas duas áreas do saber, Direito e Literatura, a partir da qual se dialogue a mulher na e da literatura com os direitos da mulher.

De que modo é possível trabalhar com a intersecção do Direito com a Li-teratura tendo como foco os direitos da mulher? Há um método mais adequado para se realizar esse tipo de abordagem? Por mais que pese se tenha no movimento “Direito e Literatura” alguns critérios metodológicos próprios, pois para se falar em efetiva interdisciplinaridade há de se estabelecer e levar em conta uma base

1 Ensaio escrito por ocasião da participação como convidado para fala na reunião de 24/03/2020 no grupo de estudos “Direitos da Mulher” da UNINTER (Centro Universitário Internacional) – coordenado pela profes-sora Bruna Simioni à Texto originalmente publicado no portal “Empório do Direito”: https://emporiododi-reito.com.br/leitura/a-mulher-na-e-da-literatura-possibilidades-de-abordagens-jusliterarias

2 Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Es-pecialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Professor de Processo Penal na Universidade do Contestado (UnC); Professor de Direito Penal no Centro Universitário Internacional (UNINTER); Professor na pós-graduação em ciências criminais da FESP; Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; Direito de Relações Sociais e Acadêmico da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI); E-mail: [email protected]

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epistemológica que erige essa relação entre duas áreas diversas, pode-se dizer, pelo menos para o presente fim, que amplas são as formas de abordagem desse estu-do, abarcando tanto aqueles métodos clássicos (‘direito na literatura’, ‘direito da literatura’ e ‘direito como literatura’), como outros possíveis que se estabeleça com robustez e a partir de critérios norteadores de um estudo acadêmico salutar.

As abordagens jusliterárias dos direitos da mulher comportam então diver-sas possibilidades de leituras. Estabelece-se aqui duas categorias possíveis dessas abordagens – conforme já mencionado acima: uma análise jusliterária da mulher na literatura e uma análise jusliterária da mulher da literatura.

Se por mulheres que escrevem defino aqui como sendo a literatura que é produzida por mulheres, as obras literárias que devem ser buscadas para os estu-dos jusliterários são justamente aquelas cujas histórias foram escritas por autores. E aqui se tem um amplo mundo que fornece ao leitor os mais variados gêneros literários que permitem diversas leituras. Por mais que o mercado editorial seja composto por homens figurando como escritores – pelas mais diversas razões (apontando-se para esse fato já como uma proposta de abordagem) -, tem-se que há muito material produzido por mulheres que possibilita as tantas e tantas leituras. Aponta-se para alguns exemplos nesse sentido:

“A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector: Com uma narrativa marcante, na qual transita uma escrita objetiva mas que não deixa ausente a característica subjetivida-de das linhas criadas pela autora, “A Hora da Estrela” diz o âmago, expõe o interior, escancara a sombra que reside e constitui um alguém que se diz ninguém - alguém esse, essa, personificado na figura da protagonista, cujo enredo é contado por um outro alguém que não a autora, mas que ainda assim essa, a escritora, ali está. “A Hora da Estrela” é uma história sobre o desamparo, sobre o desalento, sobre a (in)finitude. Ao se colocar o leitor em contato com a vida de Macabéa, nordestina miserável que, após a morte de sua tia, viaja para o Rio de Janeiro, trabalhando como datilógrafa e residindo com outras companheiras de residência num quar-to alugado, conduzindo inexpressivamente sua vida ouvindo a Rádio Relógio e se apaixonando e se decepcionando com Olímpio de Jesus, até quando de uma tragédia inesperada (?) após a consulta com uma cartomante, “A Hora da Estrela” surpreende com todo o potencial que a linguagem carrega com os seus meios de dizer as coisas.

“O Peso do Pássaro Morto”, de Aline Bei: Um livro maravilhoso. Fantástico ao seu próprio modo. Há algo presente nas linhas de “O Peso do Pássaro Morto” que toca, que seduz, que cativa, que mexe, que sensibiliza, que chacoalha. As linhas, postas no livro de forma peculiar, traduzem sentimentos, expõem aflições, relatam angústias. O livro conta a história de uma mulher e as principais passagens de sua vida - todas aquelas que foram marcantes num sentido próprio. Dos seus 8 aos

PauLo SiLaS FiLHo 297

52 anos, o livro retrata acontecimentos trágicos, significativos e marcados pela angústia gerada por situações sôfregas. A cura não existe. Não há como apagar o mal sofrido, as vivências ruins, as desgraças. Aquilo marca, deixa o seu registro e apenas isso. Nada mais. De resto, vive-se. Apenas. É o que sobra. É o que se tem - a única coisa que se pode ter. E é assim que a protagonista da história conduz o seu trilhar pela estrada da vida. O livro de Aline Bei é marcante. Marca o leitor - e pelas mais variadas razões. O enredo pode enganar num primeiro momento pela sua aparente simplicidade - até porque a história é simples e curta. Mas há todo um peso presente em cada uma das pequenas linhas que compõem. Há uma profundidade que se alcança com êxito. O âmago dos sentimentos sufocados pela protagonista é transmitido pelas palavras de forma brilhante. Viver sabendo que não há cura, portanto, só resta viver - é disso que se trata o livro, arriscando aqui uma opinião sobre.

“Vozes de Tchernóbil”, de Svetlana Aleksiévitch: Dar voz a quem fez parte da história omitida do evento que dá ensejo ao livro - é disso que trata “Vozes de Tchernóbil”. Com uma escrita tocante, singular, Svetlana Aleksiévitch erige um monumento constituído pelas lembranças daqueles que acompanharam de perto o desastre nuclear de Tchernóbil. O durante e o muito após que não aparecem nos diversos livros, reportagens e documentários sobre o episódio, é resgatado e trazido pela autora de modo próprio. A dor, a aflição, a angústia, o medo, o desespero, a tristeza, enfim, as sensações e emoções tormentosas vivenciadas por aqueles esque-cidos que também (e principalmente) constituem a história do desastre, por meio de seus relatos, é o que livro oferece ao leitor. O livro é fantástico. Toca e comove o leitor. A forma de escrita da autora alcança êxito em transmitir ao leitor toda uma aura presente no ambiente em que as entrevistas se deram. Autoquestionada sobre qual o objetivo do livro, a autora menciona que o livro “não é sobre Tchernóbil, mas sobre o mundo de Tchernóbil”. Svetlana, como diz a própria, se dedica a “história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo”. Assim, é sobre o cotidiano que o livro trata. “Tento captar a vida cotidiana da alma”, diz a autora. E essa tentativa resulta num notório alcance. Daí a beleza e magnitude da obra. Não foi por menos que Svetlana recebeu o Nobel de Literatura em 2015.

“Fim”, de Fernanda Torres: Fim. Ou fins - também poderia ser. Ou ainda o que foi (ou como foi) até o fim. Afinal, vários fins nos são contados nessa primorosa obra de Fernanda Torres. Histórias de vidas que possuem um liame. Não apenas as principais delas, mas como também aquelas que circundam o grupo de amigos que funcionam como uma espécie de protagonista(s) da(s) história(s). É uma his-tória de histórias, ou histórias que compõem uma história. A escrita de Fernanda Torres é divertida e cativante. Impossível não se encantar com o tom jocoso pelo qual conta as várias histórias que se unem em uma só. É um estilo agradável - frases curtas e muito bem pontuadas. Há um pouco de Nelson Rodrigues na história - talvez no relato nu e cru sobre a vida (como ela é) dos personagens.

298 a muLHEr na E Da LiTEraTura: PoSSiBiLiDaDES DE aBorDaGEnS JuSLiTEráriaS

“Agora Sapiens”, de Camila Mossi: As crônicas. As palavras, as mensagens, as ácidas críticas que apenas conseguem ser transmitidas pelas crônicas. Há várias formas de se dizer as coisas, mas algumas só conseguem ser ditas com as crônicas. E é através delas, as crônicas, que ela, a Camila, diz essas coisas – essas coisas que incomodam, que causam um reboliço no estômago, que divertem, que arrancam risos, que ensejam em sorrisinhos sarcásticos (aqueles que se expressam por uma tremida no canto da boca, dando a entender que o leitor entendeu o sarcasmo presente numa linha, numa frase ou em um parágrafo). As palavras recebem um sentido próprio quando postas nas crônicas, e essas palavras ganham uma aura ainda mais forte de singularidade nas crônicas presentes em “Agora Sapiens”. São crônicas que, reunidas, constituem todo um peso que somente a união de algo pode proporcionar. Esse peso é sentido de modo próprio por cada tipo de leitor. As crônicas pesam – para uns mais, para outros menos. Esse peso sentido depende do estado de espírito do leitor, talvez? Ou dependeria da forma com a qual o leitor recebe cada crônica durante uma atenciosa leitura? Seja como for, o livro, com todo o seu peso, atinge em cheio aquele que o lê. Cabe ao leitor testar por conta própria para poder sentir e aproveitar a experiência.

“A Corte Infiltrada”, de Andrea Nunes: “A Corte Infiltrada” pode passar a ideia de que livro se trata de uma coisa, dado o seu título, mas o conteúdo é outro - tendo, de certa maneira, um liame com aquilo que inicialmente pode ser levado a pensar. De todo modo, o romance (um verdadeiro thriller) é muito bem construído, cativando o leitor com toda a tensão e suspense presente na história. A obra conta a história de um conceituado jornalista que está hospedado num hotel em Brasília, local em que ocorre um crime: um monge budista é envenenado em seu quarto. Paralelamente, uma nova tecnologia está sendo adquirida pelo Supremo Tribunal Federal: um tipo de dispositivo que permite a comunicação interna entre os ministros sem que haja qualquer possibilidade de interceptação, vazamento ou algo do tipo. O conteúdo sigiloso do necessário contato entre os ministros acaba sendo garantido por um ce-lular que faz uso dessa nova tecnologia. Também ao mesmo tempo, num laboratório situado numa região onde está situado um templo budista, cientistas estão empol-gados com a desenvoltura de um projeto de estimulação magnética transcraniana. Andrea Nunes escreve com maestria. Demonstra que é possível criar um enredo bem elaborado tomando o cenário nacional como pano de fundo. Mesmo possuindo um estilo próprio, a história pode ser comparada às tramas de Dan Brown e Agatha Christie em certas medidas, sendo possível notar elementos clássicos dos thrillers e literatura policial presentes em “A Corte Infiltrada”.

“Cronicando”, de Marion Bach: É possível, pela escrita, arrebatar o espírito do leitor, fazendo com que a atenção desse fique totalmente voltada para aquilo que está sendo lido - ou para o que já foi lido, mas que permanece latente em sua mente. É possível, pela escrita, transmitir emoções e sentimentos do autor para o leitor, de modo que através de uma peculiar experiência de compartilhamento de vivências, aquele que está lendo pode sentir um pouco daquilo que já sentiu aquele

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que escreve. É possível, pela escrita, ocasionar choros, risos e todo o tipo de aperto no coração possível. É possível, pela escrita, dar uma nova roupagem à diversas si-tuações do cotidiano que passam muitas vezes despercebidas, adquirindo-se novas significações a partir daquela leitura proposta por quem escreve. Tudo isso é possí-vel de acontecer e de se fazer pela escrita - e o livro da Marion Bach é uma efetiva prova disso. Uma leitura que encanta, portanto. Além de divertir e cativar, o livro também acaba por ensinar ao leitor uma forma leve e descontraída de se olhar para tudo aquilo que o circunda.

Para além desses exemplos, há muito mais no universo literário com escri-toras responsáveis pela escrita. Lembremos também das notórias Agatha Christie, Suzanne Collins, J. K. Rowling e tantas outras. São histórias narradas por mu-lheres que contém diversos elementos que podem ser pensados pelo viés jurídico.

Já no que diz respeito a categoria ‘mulher na literatura’, os elementos de personagens femininas é o que se leva em conta para as abordagens jusliterárias possíveis. Aqui, independentemente de a autoria da obra ter como responsável um homem ou uma mulher, o enfoque nas personagens mulheres é o que importa para se (re)pensar questões jurídicas tantas – incluindo aí os direitos das mulheres.

Pensemos no final trágico de Desdêmona ante a injustiça sofrida pelas mãos de Otelo, narrado no clássico shakespeariano. Apontemos para a forma com a qual Balzac construiu a protagonista Julie em seu famoso “A Mulher de Trinta Anos”. Notemos os males sofridos por Carrie antes que colocasse fogo em quase toda a cidade no primeiro romance de Stephen King – “Carrie, a Estranha”. Ana-lisemos todo o íntimo de Madame Bovary, traçado por Gustave Flaubert, para que se possa compreender o todo dos infortúnios de sua vida. Atentemo-nos para a acusação lançado por Bentinho contra Capitu, analisando as justificativas, cabí-veis ou não, para a sua desconfiança, no clássico “Dom Casmurro” de Machado de Assis. Lancemos nossos olhares para a força destemida de Malorie em sua luta pela própria sobrevivência e de seus dois filhos em “Caixa de Pássaros”, de Josh Malerman. Enfim, diversas são as personagens femininas na literatura dignas de menção e que ensejam em estudos jurídicos e literários proveitosos.

Conforme se pontuou logo no início desse breve texto, os direitos das mu-lheres podem ser estudados também via “Direito e Literatura”, uma vez que as abordagens jusliterárias permitem enfoques distintos daqueles que o âmbito jurí-dico está acostumado, possibilitando assim que novos olhares, reflexões outras e compreensões distintas sobre os problemas tantos discutidos nessa seara possam surgir como consequências proveitosas dessa salutar proposta interdisciplinar.

Fica aqui o convite para que assim ou de tantas outras formas seja feito!

TEREZA BATISTA, DE JORGE AMADO: UMA ANÁLISE JUSLITERÁRIA DO ABANDONO JURÍDICO-ESTATAL DAS MENINAS-MULHERES DESVALIDAS E MARGINALIZA-DAS NO NORDESTE BRASILEIRO

Ediliane Lopes Leite de Figueiredo1

Sob a leitura de um olhar exegético, a interação entre Direito e literatura parece incongruente, paradoxal. De um lado, a literatura, esta sedutora, subver-siva, provocativa e instigante forma artística de expressão, é avessa a normas, a códigos e a convenções; adversa a padrões e a paradigmas cerceadores. De outro, o Direito, a “toga bem-comportada”, convencional, normativo, codificado, siste-mático, compromissado com a manutenção da ordem social.

A discussão sobre esse elo heterodoxo ganha mais fôlego e fica mais insti-gante quando nos deparamos com provocativas divagações, como as de Garapon e Salas (2008, p. 7), quando afirmam: “Droit et littérature, étrange association. Tout semble en effet séparer ces deux univers : le droit fige le réel, la littérature ouvre les portes de la fiction. D’un coté, le formalisme de la loi et de l’autre la fantaisie de l’imagination2”.

Considerando esse viés argumentativo, a tessitura do texto literário resis-tiria, aparentemente, a um legítimo diálogo com o Direito. O enlace entre esses dois sistemas parece incompatível, muitos os obstáculos a separar esses dois mun-dos: a lei fixa a verdade ou o que é justo, a literatura abre escancaradamente as portas das conotações e do imaginário. Trata-se, no Direito, do chão do cotidiano, e, na Literatura, da pura Ficcão. No primeiro, triunfa o formalismo da lei; na segunda, a fantasia da imaginação. A literatura surpreende e incomoda; o Direito tranquiliza e normaliza.

Nessa mesma esteira, Ost (2004) afirma que a literatura, entregando-se a variações imaginativas, cria um efeito de deslocamento que tem a virtude de des-

1 Graduada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre e Doutora em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI - UEPB), na área de concentração Literatura e Estudos Culturais. Pesquisadora dos estudos jusliterários - Coordenadora da linha de pesquisa Estudos Culturais Direito e Literatura do GESPI – Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual. Professora de Hermenêutica Jurídica e de Linguagem e Argumentação Jurídica no Centro Universitário UNIFACISA. E-mail: [email protected]

2 Direito e literatura, estranha combinação. Tudo parece separar esses dois mundos: a lei fixa a verdade, a literatura abre as portas da ficção. Por um lado, o formalismo da lei, e de outro a fantasia da imaginação (Tradução nossa).

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cerrar o olhar. Com ela, uma forma é carregada de significação e cria eventos semânticos inéditos. A narrativa literária não se contenta em evocar mundos pos-síveis, ela lhes confere consistência mediante os recursos da linguagem.

Por seu turno o Direito, segundo Castro (2003), é considerado como a mais bela conquista e manifestação da racionalidade humana. Os homens aceitam o controle de suas interações, concordam com a imposição de normas de conduta individuais e grupais, aptas a lhes garantir igualdade de tratamento, respeito recí-proco; o equilíbrio social que propicia a paz e a estabilidade necessária ao desen-volvimento individual e comunitário.

Se para esses dois saberes não é pertinente a máxima “os opostos se atraem”, certamente, podemos afirmar que, nas diferenças, se completam. Nesse desidera-to, Ost (2004, p. 23) completa: entre “tudo é possível” da ficção literária e o “não deves” do imperativo jurídico, há, pelo menos tanto interação quanto confronto.

Embora estudos e pesquisas mais diversificados sobre as interações entre Direito e literatura só tenham eclodido na década de 1970, o primeiro “flerte” en-tre eles vêm de longa data. As interações jusliterárias foram iniciadas nos Estados Unidos, em 1908, com a obra “A List of Legal Novels”, de John Henry Wigmore3.

Por volta de 1925, também, nos Estados Unidos, Benjamin Nathan Cardozo

publica o ensaio Law and Literature. Segundo Godoy (2008), estilo, retórica, her-menêutica e imaginação criadora identificavam as sentenças judiciais deste jurista.

Nas palavras de Trindade e Gubert (2008), uma fase intermediária dos es-tudos se inicia na Europa, entre os anos de 1940 e 1950, quando acontece a continuidade na produção das pesquisas e prossegue até a década de 1970, com o renascimento norte-americano do movimento Law and Literature.

Na década de 1980, acontece a afirmação do Law and Literature Movement, que se consolidou graças ao progressivo e renovado sucesso dos estudos e pesqui-sas desenvolvidas com base na exigência de uma reaproximação, através das obras literárias, dos valores humanísticos, eternos e absolutos.

Segundo Trindade e Bernsts (2017), no universo acadêmico brasileiro pes-quisas jusliterárias, ainda que de forma tímida, vêm ganhando fôlego. Integram o repertório de responsáveis pela incursão da perspectiva literária no estudo do Direito em terras brasilis grandes nomes, entre eles, Aloysio de Carvalho Filho,

3 Entre outros romances, figuravam na List of legal novels de Wigmore: Oliver Twist de Charles Dickens; Os Miseráveis, de Victor Hugo; O Longo Exílio, de Tolstoi; A Letra Escarlate, de Nathanniel Hawtorne; Sherlo-ck Holmest, de Arthur Conan Doyle; Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas; Dois Irmãos, de Balzac; Olho por Olho, de Anthony Trollope.

EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 303

José Gabriel Lemes Britto, Luis Alberto Warat e Eitel Santiago de Brito Pereira, Eliane Botelho Junqueira, Arnaldo Sampaio de Morais, Godoy.

Atualmente, estudos e pesquisas entre essas duas searas revigoram-se, multi-plicam-se e transformam-se. Esse enlace, que a cada dia instiga mais curiosidade, tornou-se um campo em que a natureza interdisciplinar tem encontrado terreno fértil para estudos e investigações.

Partindo dessas disposições iniciais, este trabalho tem por objetivo apre-sentar uma análise jusliterária da obra, Tereza Batista Cansada de Guerra (1972), de Jorge Amado, para mostrar como o discurso literário opera na representação sociolegal de mulheres, pobres, órfãs, subalternas e excluídas na sociedade bra-sileira, bem como para desvelar a importância do texto literário como meio de resistência à exclusão de direitos das mulheres.

2 METODOLOGIA Trata-se de um estudo interdisciplinar. Quanto à abordagem dos dados

tem natureza qualitativa, pauta-se na pesquisa bibliográfica para apresentar aspec-tos sociolegais e históricos que foram fundamentais para a construção do estudo jusliterário, bem como para compreender as possíveis contribuições que a obra literária de Jorge Amado pode trazer no tocante à negação de direitos e a omissão do Estado como afronta à direitos fundamentais.

O método de abordagem utilizado na pesquisa é o dedutivo, visto que o estudo parte de uma ideia geral – a presença de elementos na obra Tereza Batista Cabnsada de Guerra que podem levar a uma análise da negligência do poder estatal e da negação dos direitos individuais – para construir o conhecimento es-pecífico – quais as contribuições que este trabalho pode trazer para os intérpretes do Direito na contemporaneidade.

3 DESENVOLVIMENTONo sertão de Sergipe, perto da fronteira com a Bahia, império dos coro-

néis-políticos, lugar distante do alcance da lei, Tereza Batita, órfã desde os oito anos, aos 13 incompletos é negociada pela tia, Felipa. Assim, Amado (1977, p. 68) apresenta sua protagonista, como duplamente vítima: da miséria e do sistema sociojurídico.

Tereza vive num ambiente quase sempre áspero e hostil. Um mundo de sofrimento, penúria e violência que, embora conheça desde muito cedo, acen-

tua-se quando é vendida ao capitão Justiniano Duarte da Rosa – ironicamente denominado pelo autor de capitão Justo - um fazendeiro pedófilo e brutal que, ignorando as leis, depois de estuprá-la, mantém-na cativa em sua propriedade por mais de dois anos.

Sob o açoite violento da taca de couro e os violentos socos e pontapés do seu dono-feitor, ela vai sentir na pele o sentido da palavra “servidão”. Contudo, ela não desiste de lutar contra a dominação e a tirania do capitão Justo. Depois de dois anos de “escravidão”, a adolescente cede à sedução do estudante de Direito, Daniel Gomes, com quem é surpreendida por Justiniano. Acuada, na iminência de ser morta, age em legítima defesa, e mata o capitão.

Tereza, apesar de menor, é presa em cela comum, é humilhada e espancada. Consegue ser libertada por ordem do rico usineiro coronel-doutor Emiliano Gue-des, um antigo admirador. A adolescente é internada em um convento, de onde foge, com a ajuda de uma cafetina.

Do baixo meretrício é resgatada por Emiliano Guedes, que a transforma em amásia. Vive com o coronel-protetor um breve período de “paz”, até que ele morre nos braços dela, deixando-a sem guarida. A partir de então, ela “escolhe” a prostituição como opção, prefere se prostituir a ser amásia novamente.

Numa cidade do interior de Sergipe, diante de uma epidemia de varíola e da omissão do médico e da enfermeira do posto de saúde, Tereza assume o coman-do e convoca as prostitutas da cidade e, juntas, assumem o cuidado dos doentes, numa fabulosa troca de papéis. Vencida a peste, Tereza parte à procura do mari-nheiro por quem se apaixonou. Trabalha como prostituta pelo sertão, até chegar a Salvador, onde continua a exercer o “ofício”. A exploração e o desrespeito às prostitutas provocam revolta em Tereza que, une-se às irmãs do meretrício, desafia as autoridades e lidera a “Greve do Balaio Fechado”. Dessa vez, a luta é contra a ordem de despejo do “local de trabalho”.

Tereza e as companheiras são conduzidas à prisão. As colegas são libertadas; Tereza continua presa, é espancada e torturada. Mas, não se deixa abater e enfren-ta, de cabeça erguida, a brutalidade da polícia e o abuso do poder.

3.1 CONTEXTO HISTÓRICO-JURÍDICO DA OBRAA história de Tereza Batista se passa no interior do Nordeste do Brasil, região

de acentuada influência política do coronelismo, espaço explicitamente demarcado territorial e geograficamente na obra. “Essas andanças de Tereza Batista se passaram

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EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 305

naquele país situado nas margens do rio Real, nos limites da Bahia e de Sergipe adentro um bom pedaço; ali e também na Capital”. (AMADO, 1977, p. 17).

Na conjuntura sociocultural em que se passa a história, os coronéis exercem grande influência sobre a vida das pessoas, especificamente das camadas menos favorecidas da sociedade que, no contexto em destaque, formam a maioria. No império dos coronéis, a grande massa é submissa e manipulada por um impiedo-so, desumano e paralelo regime político, avalizado pelo regime oficial.

Mestieri (2010) afirma que o coronelismo é definido como um compro-misso, uma troca de proveitos entre o Poder Público, progressivamente fortaleci-do, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Isso mostra que Amado, ao ficcionalizar, estava desenhando o cenário de uma fração da sociedade brasileira.

A força dos coronéis resulta dos serviços prestados ao chefe do Executivo, para preparar seu sucessor nas eleições, e aos membros do Legislativo, fornecen-do-lhes votos e assim ensejando sua permanência em novos pleitos, o que tornava fictícia a representação popular, em virtude do voto “manipulado”.

Segundo Dantas (1987), a partir da capacidade de mobilizar suas milícias particulares, ao coronel é franqueado o controle da máquina administrativa mu-nicipal, atos legitimados pela oligarquia estadual. O juiz, o delegado, o professor, o exator, o médico (quando havia) e o vigário, todos são personagens a atuar subordinadamente aos seus interesses, todos trabalhando de alguma forma pela expressão reproduzida da sua dominação. Em muitas passagens da obra, presen-tifica-se a força de mando dos “donos da terra”, para os quais as leis são insignifi-cantes, o Direito não existe:

Mandei-lhe dizer para arquivar o processo. Já arquivou, juiz? – Arquivar? Impos-sível. Trata-se de um crime de morte cometido na pessoa de importante cidadão desta comarca [...] Disseram-me que ainda deseja ser juiz em Cajazeiras. Está em suas mãos, pois eu continuo a achar que Lulu não lhe deu todo o recado. Lavre agora a sentença de arquivamento, duas linhas bastam. [...] Não me faça perder mais tempo, já sei que o crime é grave e é por isso mesmo que lhe ofereço o posto de juiz de direito em Cajazeiras. Decida logo, não me faça perder nem tempo nem a cabeça. (AMADO, 1977, p. 237-238).

O período de gestação da obra coincide com o período de opressão política nacional. O Brasil estava sob a égide da ditadura imposta pelo golpe militar de 1964. No Nordeste, por sua vez, vigorava a dupla ditadura: a estatal e a coronelista regional. A obra retrata de forma bastante verossímil a condição de uma fração de mulheres “escravizadas” por ausência de plataformas políticas, sociais e jurídicas.

A literatura como um produto social, ao mesmo tempo em que imortaliza um tempo e um contexto social específico, pode ser vista como um veículo usa-do para fazer ecoar voz(es), desestabilizar códigos, costumes, convenções e ainda antecipar questões que devem ser (re)vistas dentro do contexto social, político e jurídico. Nas palavras de Amado (2003):

Es en las humanidades, y mui en particular en la Literatura, donde podemos re-cuperar una perspectiva integral del ser humano, de su naturaleza, sus necesidades, sus apetencias, sus miedos, etc., y desde esa perspectiva podemos valorar y criticar las insuficiencias y defectos del derecho y de su punto de vista miope y cómplice de las opresiones sociales más diversas4. (AMADO, 2003, p. 361).

Em Tereza Batista Cansada de Guerra, Jorge Amado traça contornos políti-co-jurídicos e sociais de um tempo, de um povo, em uma determinada sociedade. Os ecos dessa criação passam a ganhar peso e importância dentro e fora do con-texto em que se insere, possibilitando muitas visões críticas e reflexões acerca de como a lei se apresenta diante dos fatos apresentados.

Tereza Batista nos remete diretamente ao cotidiano periférico latino-ameri-cano, continente em que muitas mulheres ainda vivem em condições sociais des-favoráveis e são submetidas à negociação, à exploração e à prostituição como meio de sobrevivência. Isso, muitas vezes, é consequência da falta de proteção estatal e legal para grupos sociais tão vulneráveis.

Lopes (apud TRABUCO; BUESCU; RIBEIRO, 2010, p. 265), declara que a leitura do texto literário que narra a perplexidade em relação à lei pode interferir positivamente na compreensão do problema que é a adesão aos centros de tutela que nela se estabelecem. Isso significa que a narrativa literária “[...] pode mudar o leitor, confrontar suas crenças, fazê-lo pensar”.

Tereza Batista representa a mulher nordestina brasileira desvalida que, em muitas situações, é obrigada pelas circunstâncias a lutar contra o preconceito e a falta de dinheiro, buscando a liberdade, enfrentando dores, angústias e sofrimen-tos, como bem afirma Falci (2010):

As mulheres pobres não tinham outra escolha a não ser procurar garantir seu susten-to. Eram, pois, costureiras e rendeiras, lavadeiras, fiadeiras ou roceiras – estas últimas, na enxada, ao lado de irmãos, pais ou companheiros, faziam todo o trabalho con-siderado masculino: torar paus, carregar feixes de lenha, cavoucar, semear, limpar a roça do mato e colher. (FALCI, 2010 apud DEL PRIORE; PINSKY, 2010, p. 250).

4 É na área das humanidades, especialmente na literatura, onde podemos recuperar uma visão holística do ser humano, da sua natureza, das suas necessidades, seus anseios, seus medos etc., e, a partir dessa perspectiva, podemos avaliar e criticar as deficiências e os defeitos da lei e a sua visão míope e cúmplice das mais diversas opressões sociais (Tradução nossa).

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Tereza, além de violentada sexual, física e psicologicamente pelo capitão Justiniano, trabalhava na casa e no armazém de “seu dono”, como escrava. Viveu em um contexto semelhante ao das mulheres pobres do sertão nordestino, como bem descreve Amado (1977):

Tereza Batista foi escrava submissa, no trabalho e na cama, atenta e diligente. Para o trabalho, não guardava ordens; ativa, rápida, cuidadosa, incansável; encarregada dos serviços mais sujos e pesados, a limpeza da casa, a roupa a lavar, a engomar, na labuta o dia inteiro. No duro trabalho, fizera-se forte e resistente; admirando-lhe o corpo esguio, ninguém a julgaria capaz de carregar sacos de feijão de quatro arro-bas, fardos de jabá. (AMADO, 1977, p. 122).

Acentua-se, no universo do coronelismo, de forma latente, a “coisificação” e a “domesticação” da mulher, seguindo preceitos sexistas, por vezes codificados juridicamente; por vezes consolidados pela aceitação de uma parcela corrompida da sociedade.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃOOs acontecimentos da vida de Tereza Batista situam-na no contexto das

meninas pobres em constante luta. “Tereza vinha de uma família muito pobre e no Nordeste é hábito as famílias pobres venderem suas filhas, como amante aos poderosos da região” diz Lima (1994, p. 130).

Condicionada à perda violenta da infância-adolescência, Tereza, assim como muitas outras meninas, não tinha escolhas. Desde pequenas, elas são vio-lentadas, não apenas fisicamente, mas, sobretudo, psicologicamente. A persona-gem amadiana é símbolo de uma problemática social - a venda de meninas para a satisfação sexual dos poderosos e a mão de obra grátis como solução imediata para a miséria de suas famílias - percebe-se aí o caráter cru e realístico do enredo, assim descrito na obra: “Pelos arredores, nos cantos de rua, em povoados, vilas, cidades vizinhas, nas roças, sobretudo, naquele interior indigente, sobravam meninas e quem as oferecesse, parentes e aderentes”. (AMADO, 1977, p. 80).

Na avaliação de Lucira Freire Monteiro (2014), por via indireta, o escri-tor permite-nos ver uma realidade corriqueira e nos leva a uma reflexão sobre a importância da intervenção estatal como elemento regulador dos interes ses da menina Tereza frente aos interesses de seus familiares e da sociedade que a “aco-lhia”. A omissão, familiar e estatal, resulta na completa falta de alternativa e numa condição humana promovida pela perda da infância, da inocência e de caminhos civilizados, e comenta:

[Amado] mostra com isto que a família é o primordial espaço de desenvolvimento do adulto que produz a sociedade. [...] traz à tona a problemática da desestrutura-ção familiar, das consequências do baixo poder aquisitivo das famílias, da proximi-dade com agentes da violência na comunidade e das estratégias de manipulação de que se utilizam (MONTEIRO, 2014, p. 102-103).

A obra retrata uma época em que vigorava no Brasil o Código de Menores de 19275. Este diploma dispunha, no artigo 143, parágrafo único, que o respon-sável por menor de 18 anos que contribuísse deliberadamente ou por negligência grave e continuada para que este viesse a sofrer algum atentado sexual ou se pros-tituir estaria sujeito a pena de prisão que variava de 45 dias a seis meses, ou multa, ou ambas (BRASIL, 1927, p. 1).

Em inobservância às leis postas e uma afronta a toda carga valorativa tão defendida pela “moral e pelos bons costumes,” Tereza foi negociada pela própria tia para ser molestada sexualmente pelo capitão Justo, homem que cultuava a fama de “desbravador de cabaços”. A obra expõe o coronelismo como mais uma instituição masculina que subverte o próprio direito e deixa explícito que a divisão de classes se sobrepõe a qualquer norma.

A lei coíbe, mas não tem força para alcançar essas “costumeiras” ações, co-muns em várias partes do país. A sociedade é conivente, pois, nesse contexto, quem manda é o homem branco com nome, sobrenome e patente. A lei - onde impera a dupla ditadura - a estatal e a coronelista regional-cultural - é palavra de ordem apenas para os subalternos:

Certa vez houve uma queixa, apresentada pelo pai de moçoila de busto empinado, ela de nome Diva, ele Venceslau: Justiniano parara o caminhão na porta daquela gente, fizera um aceno à menina e sem palavra qualquer de explicação, consigo a levara. Venceslau foi ao juiz e ao delegado, falando em fazer e acontecer, em aleijar e matar. O juiz prometeu averiguar, averiguou não ser verdade nem o rapto nem o defloramento ante o que o delegado, tendo prometido ação rápida, prontamente agiu: meteu o queixoso na cadeia para não perturbar o sossego público com ca-lúnias contra honrados cidadãos e, para cortar-lhe o gosto das ameaças e impor respeito, mandou-lhe aplicar exemplar surra de facão. (AMADO, 1977, p. 71, grifos nosso).

Rapto violento ou mediante fraude, à época, era crime, tipificado no artigo 219 do CPB/1940, sujeito à pena de reclusão de dois a quatro anos. Consideran-do o fato de que as vítimas do coronel são apresentadas na obra como, normal-mente, menores de 15 anos, ainda pode se atestar, entre as formas qualificadoras,

5 Legislação conhecida como Código Mello Mattos, em homenagem ao idealizador do projeto, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, primeiro código de Menores da América Latina. Ficou em vigor até 1979.

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EDiLianE LoPES LEiTE DE FiGuEirEDo 309

a presunção de violência, prevista no artigo 224a, o que acarretaria pena de quatro a 12 anos (BRASIL, 1940, p. 49)6.

Esse ambiente, onde a lei é letra manca e incerta, torna-se propício para aprisionar e escravizar os mais indefesos, entre eles, a mulher pobre, que é du-plamente marginalizada – é mulher e é pobre. Essa fração desamparada acaba se tornando “presa mais fácil”, para os “donos do poder”.

Os crimes brutais, como o estupro (inserto, à época, no art. 213 do CPB/1940, conforme vimos no contexto jurídico da obra), culminado com lesão corporal gra-ve, acabam se tornando invisíveis para a justiça e banais para a sociedade. Destaca-se na obra uma passagem que descreve cruamente estes bárbaros delitos:

A taca atinge Tereza nas pernas, no ventre, no peito, nos ombros, nas costas, na bunda, nas coxas, na cara, a cada chicotada de sete chicotes, a cada dentada dos nós um lanho, um rasgão, uma posta de sangue [...] Tereza rola semimorta, o vestido empapado de sangue o capitão continua a bater um bom pedaço de tempo. [...] O capitão só deixa de bater quando Tereza para de gritar, posta inerte de carne. Descansa um instante, larga a taca no chão, descruza-lhe as pernas, toca o recôndi-to segredo. Ainda tenta a menina um movimento, dois tapas na cara e acabam de acomodá-la. O capitão ama descabaçá-las ainda verdinhas com cheiro e gosto de leite. Tereza, com gosto de sangue. (AMADO, 1977, p. 110-111).

O agressor criminoso colecionava crimes e ainda os exibia simbolicamente no pescoço, através de argolas de ouro: “Um colar de argolas de ouro, sob a camisa do capitão, por entre a gordura dos peitos, vai tilintando nas estradas que nem chocalho de cascavel: cada argola uma menina”. (AMADO, 1977, p. 68).

Depois de mais de dois anos de violência física, sexual e psicológica, a me-nina-mulher, vítima passiva do capitão, da sociedade e de um contexto político jurídico desumano, resolve desafiar tudo isso. Daniel, um rapaz da alta sociedade se sente atraído por ela que corresponde, com entusiasmo, esse desejo. Em um dos encontros fortuitos, eles são flagrados pelo capitão Justo. Tereza, para não morrer, acaba assassinando seu algoz: “Tereza Batista sangrou o capitão com a faca de cortar carne-seca”. (AMADO, 1977, p. 184).

Tereza matou em legítima defesa, assassinou o capitão para salvar a própria vida e a de Daniel. Nesta passagem, Amado chama atenção para os abusos pra-ticados pelos ‘guardiões’ da lei, “sua prisão em cárcere comum constituía ilegali-dade monstruosa, sem falar nas surras” (AMADO, 1977, p. 234). No entanto, o cúmplice, o rapaz rico, filho de juiz, de família imponente, foi apenas “interro-

6 O artigo 219 do CPB/1940 foi revogado pela Lei n. 11.106/2005, e o 224 e alíneas pela Lei n. 12.015/2009.

gado”. “[...] Dan fizera-se passar por bom e corajoso, por honesto e correto [...]” (AMADO, 1977, p. 196). Fica evidente a crítica ao tratamento legal destinado às meninas-mulheres pobres e desvalidas e, ao mesmo tempo, a forma diferenciada dispensada àqueles de classe abastada que gozam de prestígio social.

Tereza era maior de 14 e menor de 18 anos, segundo os artigos 69 e 86 do Código de Menores, vigente à época, teria direito a um “processo especial, conduzido por autoridade competente, e ainda não poderia ficar presa em prisão comum”. (BRASIL, 1927, p. 24).

Essa alusão ao desrespeito à lei de menores aparece no discurso do coronel Emiliano Guedes, quando pressiona o juiz para libertar Tereza:

Em verdade, o processo está pleno de ilegalidades, a começar pela prisão e os sucessivos espancamentos da menor, interrogada sem audiência do juizado com-petente, sem advogado designado para lhe proteger os interesses [...] E, ainda por cima, a falta de provas, e de testemunhas, dignas de fé, processo realmente repleto de falhas, os prazos estourados, assistem razões de sobra a favor do arquivamento. (AMADO, 1977, p. 238. grifos nosso).

Todavia, o coronel-advogado Emiliano Guedes – homem casado, usineiro, banqueiro e diretor de empresa - empenhou-se pessoalmente para que a menina fosse libertada, não porque fosse um homem ético avesso a injustiças, mas por um particular interesse no caso: adotar Tereza como “amásia de luxo”, transformá-la em “puta séria”, isto é, mulher fiel ao seu amásio.

É cediço que em terra, onde “manda quem pode, obedece quem tem juízo” -, “o senhor deve saber quem manda nesta terra, já tirou a prova antes” (AMADO, 1977, p. 238) – os preceitos legais só, de fato, são considerados quando existe in-teresse particular. Os argumentos usados pelo coronel-doutor, na negociação feita com o juiz para a defesa de Tereza, foram irretocáveis. E assim Tereza é libertada, não pelos pressupostos legais, que a favoreciam, mas pelo poder político-social, que, muitas vezes, se sobrepõe às leis, ao Direito.

Através da “troca de favores” selada entre o juiz (a libertação da prisio-neira em troca da transferência para outra comarca) e Emiliano Guedes – pai de família que “menosprezava o direito alheio, pisoteava a justiça e desconhe-cia qualquer razão que não fosse o do clã dos Guedes” (AMADO, 1977, p. 300) - para libertar Tereza, com o único propósito de torná-la amante, evi-dencia-se na obra, por um lado, a impotência de direto penal e, por outro, o falso moralismo dos chefes de família e o comportamento imoral e antiético do poder judiciário.

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A libertação de Tereza da cadeia custou-lhe a liberdade para comandar a própria vida. Ela permaneceu na companhia do coronel-doutor por mais seis anos de concubinato. “– Quanto tempo durou essa ligação, o senhor sabe? Dou-tor Amaurílio reflete, fazendo cálculos: - Vai para mais de seis anos [...]” (AMA-DO, 1977, p. 308). Obediente ao seu benfeitor, não o contrariava nunca. Na ocasião em que engravidou, foi “convencida” a fazer um aborto, ato ilegal, sob o pretexto conveniente e machista do coronel-doutor de que amante é para os prazeres da vida:

Não quero e não terei filho na rua, já te expliquei por que, te lembras? [...] Eu lhe quero tanto bem que me disponho a lhe deixar a ter a criança, se você faz questão e a sustentá-la enquanto eu viver – mas não reconheço como filho, não lhe dou meu nome e com isso acaba com a nossa vida em comum. Quero a você, Tereza, sozinha, sem filho, sem ninguém. (AMADO, 1977, p. 267-268).

As leis civis relacionadas à mulher na sociedade brasileira por séculos forta-leceram e positivaram as normas do patriarcado. Pelo “código do pai”, as mulheres eram vistas como um bem de utilidade e eram divididas não só pelos homens, mas também pela sociedade, em categorias: as de esposas e as de amásias, concu-binas. Fica explícita na obra a ilustração desses distintos papéis da mulher: “[...] filho apenas esposa pode ter, cama de amásia é para folgar, amásia é passatempo”. (AMADO, 1977, p. 267).

Amado também define, sem reservas, o papel conferido à amásia:A condição de amásia – ou concubina, rapariga de casa posta, moça, amiga manceba - implica a existência de subentendido acordo entre a escolhida e o protetor; um corpo de obrigações mútuas, direitos, regalias, vantagens. Para re-sultar perfeita a mancebia exige gastos de dinheiro e esforços de compreensão. (AMADO, 1977, p. 116).

A esposa, a dona de casa - cujo domínio não passava das lides domésticas - submissa ao regime patriarcal, era a considerada pela ótica sociolegal “mulher honesta”; a amásia era rotulada de “desonesta” e definida pelo aspecto jurídico--formal, segundo a lição de Hungria (1981, p. 139), como “a mulher francamente desregrada [...], ainda que não tenha descido à condição de autêntica prostituta”. A mulher nesta circunstância estava condenada à clandestinidade e à exclusão sociojurídica.

Tereza coabitou com o doutor Emiliano por mais de seis anos, exercendo o papel de “amásia”, de “concubina”. Os sentimentos e as insatisfações dela não eram considerados. Rendeu-se à chantagem dele e consentiu o aborto. Ela era a outra, pertencia a uma subclasse, que veio ao mundo para obedecer.

Tereza descalça-lhe os sapatos, tira-lhe as meias. [...] No prazer de descalçar e des-nudar o amásio belo, limpo, sábio. O ato é o mesmo, melhor dito, parece o mesmo ato e vassalagem, de sujeição. [...] – Ouça, Tereza, e decida você mesma. Decida, Tereza, entre mim e o menino. Nada lhe faltará, garanto, só não terá a mim. Tereza não vacilou. Pondo os braços no pescoço do doutor deu-lhe os lábios a beijar: a ele devia mais do que a vida, devia o gosto de viver. – Para mim o senhor passa antes de tudo. (AMADO, 1977, p. 268-293).

Considerando o artigo 229 da lei civil, à época vigente, a qual atestava que só o casamento legitimava a família e os filhos comuns, a relação dela com o co-ronel era ilegítima, e isso a colocava numa posição marginal perante a sociedade; o consentimento do aborto também se configura prática criminosa, com reclusão de um a três anos de prisão. Conclui-se que Tereza, perante o juspositivismo e o jusmoralismo, era criminosa.

O coronel-doutor, por sua vez, é uma daquelas “personalidades” para as quais as leis não valem. Por isso, fechava os olhos para preceitos legais, traía a esposa (mãe dos seus filhos “legítimos”) e “obrigava” a amante a abortar o “ilegí-timo”, o “bastardo”.

Nesse sentido, Barsted e Hermann (1995) afirmam que o Estado, ao tomar a si o monopólio da punição criminal, legislou para proteger a segurança do es-tado civil e doméstico do casamento, garantindo para o homem a certeza de sua prole e exercendo um controle mais severo sobre os corpos femininos.

À luz dos preceitos legais em vigor à época, Emiliano Guedes é apresentado como o símbolo contundente do pátrio poder, como o legítimo representante da “lei do pai”:

Não quero filho na rua. [...] Sempre fui contra, é uma questão de princípios. Ninguém tem o direito de pôr no mundo um ser que já nasce com estigma, em condição inferior. Ademais quem assume compromisso de família não deve ter filho fora de casa. (AMADO, 1977, p. 264).

Manter a honra imaculada, a vida pessoal e familiar distante de qualquer escândalo ou ameaça, era o mais importante para os coronéis. Um dia antes de morrer, num lampejo de lucidez, o coronel-doutor constata qual o verdadeiro papel dela na vida dele e fala para Tereza:

[...] Tu me deste paz, alegria, amor, e eu, em troca, te mantive presa aqui, na depen-dência da minha comodidade, uma coisa, um objeto, uma cativa. Eu o dono, tu a serva, até hoje me tratas de senhor. Fui tão ruim para ti quanto o capitão. Um outro capitão, Tereza, envernizado, passado a limpo, mas, no fundo, a mesma coisa. Emi-liano Guedes e Justiniano Duarte da Rosa, iguais, Tereza. (AMADO, 1977, p. 313).

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Com a morte do “benfeitor”, Tereza despede-se definitivamente da vida de “amásia”, de “teúda e manteúda”: “nem Tereza Batista tentou repetir amiga-ção perfeita, bastando-lhe a recordação daqueles anos e a memória do doutor”. (AMADO, 1977, p. 186). Dessa forma, entrega-se novamente à própria sorte: “a outra será viúva, eu estou viúva e órfã”. (AMADO, 1977, p. 233).

Mais uma vez, Tereza desamparada, social e juridicamente; amásia não ti-nha direitos. Para sobreviver, tenta se sustentar como dançarina nos cabarés de Aracaju. O dinheiro que ganha não é suficiente para perfazer suas despesas míni-mas e, mais uma vez, rende-se à prostituição. “Quando se deitou com o doutor-zinho, aquela capa de gelo a cobri-la em cama de prostituta, vendendo apenas a beleza e a competência, nada mais”. (AMADO, 1977, p. 199).

É através da figura de Tereza Batista Cansada de Guerra que Amado revela o flagelo da prostituição, o universo de corrupção e de crimes que acontecem à re-velia dos olhos da lei e literalmente da “cegueira” da justiça. Essa menina-mulher, vendida, explorada, prostituída e desamparada - à margem da vida social - sem voz e sem direitos, representa muitas outras na mesma condição - de pobreza, de escravidão, de exploração sexual -, marginalizadas e oprimidas, órfãs de pais e de Estado, em busca de espaço, de sobrevivência, de oportunidades e de direitos, em contextos sociolegais de regimes políticos totalitários outorgados às classes domi-nantes e à supremacia masculina.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISPercebemos que, analisado sob o ponto de vista jurídico, o texto literário

pode ser visto como uma das possibilidades de que pode dispor o intérprete do Direito para buscar entender e responder aos problemas que cotidianamente lhe são colocados, uma contribuição que integra a literatura como instrumento e fator para reforma e interpretação do Direito.

Evidencia-se que o romance revela mais que uma mera apresentação ficcio-nal: integra-se a (re) interpretação de uma realidade que precisa aparecer para que se demonstrem as aspirações mais profundas do seu criador. Embora tenha sido escrita há mais de 40 anos, a obra amadiana focaliza temas de grande relevância social na contemporaneidade, tais como a pedofilia, a prostituição, a escravidão sexual, a violência contra a mulher e a discriminação sociolegal contra essa parcela secularmente rejeitada e sem visibilidade.

As marcas da incúria do poder judiciário e do desamparo legal encontram--se presentes em todo o cotejo narrativo. Contornando o enredo, percebe-se que

Amado não poupou críticas à corrupção e à negligência do poder judiciário e à total indiferença às leis. Por todo o percurso narrativo, aparecem policiais cor-ruptos chantageando as marginalizadas prostitutas, os inescrupulosos cafetões e as impiedosas cafetinas, arrancando deles parte do lucro “do negócio”, fonte de subsistência. Sem dúvida, o submundo da prostituição é o pano de fundo usado por Amado para trazer à tona discussões tão importantes.

Desprovido de qualquer julgamento preconceituoso em relação à condição social representada por essas personagens, o escritor baiano apresenta as prostitu-tas como mulheres donas de si mesmas que usam o próprio corpo para a sobrevi-vência, sem culpa alguma, já que não lhes resta alternativa. Excluídas socialmente por serem mulheres, prostitutas, pobres e mestiças, fazem do meretrício um sen-tido para as próprias vidas.

Constata-se que, embora nas últimas décadas, as mulheres tenham conse-guido importantes conquistas legais, entre outras, a igualdade em direitos e obri-gações, no âmbito do Direito Constitucional, leis civis que tentam corrigir os preceitos sexistas e leis penais que tentam coibir e refrear a violência doméstica, ainda há um hiato entre o que estabelece grande parte dessas conquistas e a apli-cação prática.

De maneira que o grito das mulheres por direitos, respeito e liberdade, romanceado por Amado há mais de quarenta anos, ainda ecoa e persiste na atua-lidade. A obra, ao mesmo tempo em que evidencia uma menina-mulher forte que sobrevive em meio a tiranias físicas e psicológicas em uma sociedade machista, patriarcal, violenta desigual e injusta, também, expõem um libelo da realidade concreta de muitas outras mulheres, impulsionando o desafio para o Estado de Direito efetivar a segurança jurídica e a promessa de justiça.

Por isso, Tereza parece ser o grito denunciador e, ao mesmo tempo, defen-sor que Jorge Amado ecoa para trazer à realidade social que mascara a figura de meninas/mulheres, vítimas de um sistema sociolegal negligente e opressor, que as conduz a uma vida de privação e de subalternidade, sem qualquer proteção legal.

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CLARISSA PINKOLA ESTÉS E VIRGINIA WOOLF: A CRIA-TIVIDADE DA MULHER

Priscilla Leal1

Era uma vez um rico fidalgo que corteja uma moça pobre, mas muito bo-nita e conquista seu afeto. Com ela tem dois filhos, mas ele não se dispõe a casar com ela. Um dia comunica que está indo para a Espanha casar-se com uma moça rica, escolhida por sua família, e que levará seus dois filhos com ele. A jovem mãe fica fora de si. Enfurecida arranha o rosto do homem e o seu próprio rosto. Apa-nha os dois filhos pequenos e se joga com eles na correnteza. A alma da mulher sobe aos céus. Lá o porteiro-mor avisa que ela só poderá entrar depois de resgatar os filhos. Por isso dizem que, quando anoitece, as crianças não podem ficar nas margens dos rios. A La Llorona pode confundi-los e leva-los para o céu.

Essa é a lenda de La Llorona, descrita por Clarissa Pinkola no livro “Mulhe-res que Correm com Lobos” e trata da vida criativa da mulher.

La Llorona representa a mulher que tem sua vida criativa contaminada, que se perde da sua criação, que interrompe sua vida criativa. A busca pelos filhos, nada mais é que o resgate desesperado dessa força vital que para de correr no cor-po da mulher, deixando-a cansada, sem energia, acomodada.

Essa contaminação pode ser interna ou externa. A mulher pode se autosa-botar deixando os inimigos internos atacarem sua criatividade “eu não sei fazer nada mesmo”, “preciso estudar mais”, “primeiro vou arrumar a casa, depois escre-vo” e etc. Nesse caso é necessário um mergulho interior para fazer a limpeza do rio, resgatar os filhos atirados a correnteza que se perderam da mãe.

Mas também essa contaminação pode ser externa, e aqui trago um livro da escritora inglesa Virginia Woolf “Um teto todo seu”. Esse livro nasceu de dois artigos que Virginia escreveu para a Arts Society e cujo tema era “mulher e ficção”.

Nessa obra Virginia ressalta a dificuldade sociais das mulheres para escrever. Em síntese a autora destaca o fato das mulheres terem que ajudar nos trabalhos

1 Formada em Direito, com pós em gestão cultural pelo Centro Universitário Senac. Também é atriz formada pelo Teatro Escola Macunaíma. Desde 2012 se dedico a discutir a produção artística das mulheres. Idealizou e produziu o projeto "Mulheres Artistas na Ditadura", que foi patrocinado pela Caixa Cultural e seguiu em par-ceria com a Coordenação de Direitos à Memória e à Verdade, com apresentações no Cine Direito Humanos e no CEU Perus, e o projeto "Las Abuelitas", um site para reunir e divulgar o trabalho das mulheres artistas. E-mail: [email protected]

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domésticos, não irem à escola, não terem dinheiro e, principalmente, não terem um lugar para escrever, um teto todo seu.

Destaca ainda o desencorajamento social. Quer dizer, a mulher escritora tinha que ouvir “você não pode fazer isso, você é incapaz de fazer aquilo”, e tinha que despender tempo e energia para provar que poderia sim escrever.

Esses são os inimigos externos que Clarissa também destaca em seu texto. Sempre por trás do ato de escrever, pintar, pensar, curar, falar, cozinhar, fazer, tem um rio que corre livre. Porém, esse rio pode ser poluído por forças externas, da cultura em que essa mulher está inserida.

Ele é poluído porque a sociedade na qual a mulher está inserida diz que suas ideias são inúteis, que não adianta ela se esforçar, ninguém vai se interessar, que continuar é bobagem. Essa mulher então vai sendo minada e vai acreditando em cada palavra. Ou, como diz Virginia, o esforço para provar que ela é capaz, contamina sua produção criativa, que não consegue fluir por si mesma.

Essa poluição acontece nas pequenas coisas. Quando desprezamos o traba-lho de uma artesã porque não tem retorno financeiro, quando impedimos uma filha de praticar uma atividade artística, porque julgamos ser “coisa de homem”, quando não elogiamos aquele prato delicioso, por pensar que simplesmente é obrigação daquela mulher.

A mulher pode optar em viver do seu trabalho criativo, como pode praticá-lo sozinha em seu quarto como forma de expressão. Não vou entrar no mérito se é ou não artista, a discussão é o impulso que faz essa mulher criar. Se vivemos em uma sociedade patriarcal que não inseriu as mulheres na historiografia da arte, como criar referências de respeito ao trabalho criativo das mulheres?

Virginia Woolf começa seu ensaio narrando seu processo criativo para es-crever aquele ensaio. E ela é interrompida diversas vezes. Primeiro porque está andando no gramado da Universidade e mulheres não poderiam andar por ali, depois porque para entrar na biblioteca, por ser mulher, era necessária uma au-torização, e por aí vai. Virginia escreve no século passado, mas hoje também não impedimos o fluxo criativo das mulheres?

Ouso afirmar que sim. Que ainda vivemos em uma sociedade na qual a mulher tem que provar sua arte ou até mesmo seu hobby é digno de respeito. É só pensarmos na mãe que tricota e é interrompida o tempo todo pelos filhos, afinal ela não está fazendo nada, é trivial, não é importante.

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O problema é que a mulher vai introjetando isso. Ela realmente acredita que o assado que ela faz de domingo, cujo prato ela enfeita e a receita inventa, é sua obrigação, nada mais. Ela se perde dos elogios, não valoriza seu poder criati-vo. Se for elogiada, certamente vai responder “isso não é nada, é só um assado”. O artesanato dela fica escondido, o tricot parado na gaveta para quando ela tiver tempo, e por aí vai.

E a mulher que quer viver da sua arte, muitas vezes se esconde: “Não estou pronta”, “Preciso estudar mais”, “quando eu estiver pronta mostro minha arte”. Muitas se escondem em lugares relacionados à atividade criativa, mas que não é a atividade criativa.

Para criar é necessário inspiração, concentração, organização, implementa-ção e manutenção. Virginia Woolf já defende isso na década de 30 quando diz “ a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu para escrever”.

Mas como criar essas possibilidades se nos falta referências de mulheres que percorreram esse caminho, infelizmente são poucas as que chegam até nós, e somos bombardeadas com afirmação de que mulher pode fazer isso e não aquilo? Se ainda temos que provar que podemos criar em determinadas áreas?

A arte acaba sendo deixada para momentos roubados, curtos e que sobram.

Clarissa Pinkolas afirma que se a mulher vive em uma cultura que agride sua função criadora, é isso que ela vai incorporando em sua psique: uma força esfacelada e doente e não como uma força sã, cheia de vitalidade e potencial.

No entanto, esse texto não tem como pretensão vitimizar a mulher ou apontar eventuais desculpas. A história é como é e o movimento de mudança deve vir de todos os lados e, felizmente, está vindo: das pesquisadoras, artistas, grupos feministas. Mulheres que estão repensando seu lugar na história e questionando-a.

Hoje podemos burlar essas regras. Podemos nos unir.

Virginia Woolf escreveu esse belíssimo ensaio que hoje podemos ler, sub-linhar e discutir. Clarissa Pinkola em seu texto afirma que podemos reassumir o rio: seja sensível e selvagem, comece, proteja o tempo, fique com a criatividade, proteja a vida criativa, ofereça alimentos para a vida criativa, forje seu verdadeiro trabalho e aceite elogios.

Aceitar elogios não é perder o bom senso. Se a mulher sabe que seu trabalho está no começo, que ainda não tem forma, se ela tem consciência do seu papel de criadora, ela tem noção do que é um elogio bajulador, mentiroso e do que é um elogio honesto e construtivo.

318 CLariSSa PinKoLa ESTéS E virGinia WooLF: a CriaTiviDaDE Da muLHEr

Ir para os extremos pode ser, inclusive, outra forma de boicote interno, pois se eu acredito que meu trabalho é o máximo, também paro ali. A fantasia completamente divorciada da realidade é paralisante tanto quanto o pensamento destrutivo.

Quando ela diz “aceitar elogios” é para a mulher, principalmente, se cercar de pessoas que darão esse olhar positivo a ela. Mais uma vez não estou falando de um coro de pessoas falsas que vão falar o que você quer ouvir. Mas pessoas que entendem sua criatividade e compartilham dela, que admiram seu rio.

Isso porque, muitas vezes nos cercamos de pessoas opostas. Pessoas que desprezam nosso trabalho, nosso bordado, que acham que nosso alimento é pura obrigação e que nosso artesanato não tem serventia. Que estar no palco é vaidade de menina, que nossa voz é bonitinha no chuveiro, que nosso livro tem que ficar na gaveta e nossas poesias na agenda.

Não! Essas pessoas só servem para aumentar as vozes de uma cultura que definiu onde uma mulher pode expressar sua criatividade e onde ela não pode.

Já pensou a energia que se gasta tentando provar o contrário? Virginia Woolf já trouxe isso no século passado, porque continuamos repetindo?

Temos mais sorte que a Virginia. Pois com a internet e as redes sociais, podemos encontrar nossa turma. Experimenta jogar “mulher literatura”, “arte-sanato”, “graffiti e minas” e você encontrará muitas parceiras. Pegue um tempo para discutir seu ponto no bordado com aquela colega que também borda para relaxar. Esse relaxamento é o rio correndo limpo e livre, é a La Llorona com seus dois filhos.

E quando alguém elogiar o seu assado, aceite! Certamente está delicioso.

Cerque-se de quem vai somar.

E se alimente também. Leia Virginia, Clarissa, Simone, Michelle...gran-des mulheres! Leia grandes homens também. Entender o início e o caminho das coisas é ganhar argumento contra o boicote e impedir que sua La Llorona jogue seus filhos no rio...os filhos são sua cria, sua criação, a capacidade de produzir algo onde antes não havia nada!

Crie!

CAPÍTULO 03

MUSICA E DIREITOS DAS MULHERES

MULHER E MIGRANTE: REFLEXÕES SOBRE RESPEITO PARA A IGUALDADE A PARTIR DA IDEIA DA CANÇÃO ‘RESPEITA’ DE ANA CAÑAS

Tatyana Scheila Friedrich

Taís Vella Cruz

1. UM GRITO DE FORTES E PODEROSAS VESTIDO EM ME-LODIA: A CANÇÃO ‘RESPEITO’ DE ANA CAÑAS

-A construção social de gênero, que limita o “ser mulher” a padrões e no-ções compostos e formados socialmente, destina à mulher um lugar secundário, alimenta o patriarcado e conforma a dominação de homens sobre as mulheres.1 O tornar-se mulher, ao longo dos anos, tem sido então condicionado a dominação imposta por essa estrutura, compondo a sociedade uma disforme realidade em que: “homens dominam e mulheres são submetidas, homens controlam e mulhe-res são controladas”.2

Assim, mulheres não nascem livres e iguais, pairando entre os sexos, sobre-tudo, uma diferença política, que impede a emancipação, a titularidade e o exer-cício de direitos e liberdades, inclusive sobre o próprio corpo. A mulher não tem os mesmos direitos, privilégios e liberdades que homens, sendo que não tem nem mesmo o livre direito sobre o seu corpo.3 Essa disparidade faz com que o corpo feminino seja objeto de violência, em seus mais variados aspectos e formas. Uma das inspirações das questões e reivindicações do movimento feminista, a correla-ção da violência com a condição de gênero, denominando-se violência contra a mulher, engloba variados sentidos, que adquirem implicações teóricas e práticas em razão das condições específicas em que ocorrem. Prefere-se então utilizar o ter-mo violência de gênero, vez que imprime que as relações violentas são produzidas em contextos e espaços interpessoais, com cenários societais e históricos não uni-

1 Kreuz explica que o termo “patriarcado” passa a ser utilizado por feministas, com alterações em seus signifi-cados, sendo que, atualmente, alcança a noção de dominação do masculino, focado na figura do pai que se ob-serva a partir da década de 1970. A dominação deriva da posição do pai, mas transcende essa relação. A partir da análise às contribuições de Saffiotti e Riot-Sarcey, expõe que o patriarcado pode ser compreendido como o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens, baseado no controle e no medo. (KREUZ, Letícia Regina Camargo. Domínio do Corpo: O aborto entre leis e juízes. Curitiba: Íthala, 2018. p. 30-31)

2 KREUZ, Letícia Regina Camargo. Domínio do Corpo: O aborto entre leis e juízes. Curitiba: Íthala, 2018. p. 31.3 KREUZ, Letícia Regina Camargo. Domínio do Corpo: O aborto entre leis e juízes. Curitiba: Íthala, 2018. p. 33.

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formes, sendo que a centralidade das ações violentas volta-se para a mulher, sejam elas decorrentes de violências físicas, sexuais, psicológicas, morais, patrimoniais, em espaços públicos ou privados. Como descreve Bandeira:

Não se trata de adotar uma perspectiva ou um olhar vitimizador em relação à mulher, o que já recebeu críticas importantes, mas destacar que a expressiva con-centração deste tipo de violência ocorre historicamente sobre os corpos femininos e que as relações violentas existem porque as relações assimétricas de poder per-meiam a vida rotineira das pessoas.4

-A opressão e violência histórica sobre os corpos femininos nem sempre são notadas, vistas ou escutadas. O silêncio ainda insiste em fazer o solo e normalizar a violência que é institucionalizada. Por tal razão é que gritos, como o de Ana Cañas, devem ser destacados e reconhecidos como de fundamental importância para en-frentar tais cenários e buscar transformar histórias. Em 13 de maio de 2017 foi lançado o videoclipe da música “Respeita”, de autoria da cantora e compositora Ana Cañas.5 Nos 3 minutos e 34 segundos do vídeo dirigido por Isadora Brant e João Wainer, muito além da bela, grandiosa e sensível voz de sempre, Ana dá voz a milhares de outras, ali representadas por 86 mulheres de São Paulo e Rio de Janeiro, envolvidas na luta pelos direitos femininos em diversos movimentos no Brasil.

Nomes conhecidos como Mel Lisboa, Elza Soares, Andréia Horta e Zélia Duncan aparecem ao lado de outras como Carmem Ferreira, da Frente de Mu-lheres por Moradia, Tekoa Pyau, a Cacique da Aldeia do Jaraguá e Jobana Moya, migrante boliviana integrante da Base Warmis Convergência das Culturas. Essas e outras com uma mesma missão: fechar os olhos, pensar em qualquer situação de violência vivida, abri-los e responder para a câmera com seu olhar.6 Aliado à força e significado da letra, o clipe em preto e branco tem como resultado um impactante instrumento de luta para reafirmar a importância de quebrar o silên-cio, compartilhar experiências de violência e assédio e fazer identificar que todas partilham das mesmas feridas e luta.

A luta da música é a violência contra a mulher, fruto de uma desigualdade institucionalizada e que ainda insiste em ser naturalizada no meio social, mas que vale sempre dizer, é objeto de proteção da Convenção Interamericana para preve-

4 BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Sociedade e Estado. vol. 29, n. 2, Brasília, Maio/Ago. 2014. p. 449-469.5 EIROA, Camila. Ana Cañas pede respeito. 15/05/2017. UOL TPM. Disponível em: https://revistatrip.uol.

com.br/tpm/clipe-de-ana-canas-respeito-pede-o-fim-da-violencia-de-genero-e-reune-mulheres-como-maria--da-penha-elza-soares-e-julia-lemmertz. Acesso em: 20 jul. 2019.

6 CATRACA LIVRE. Clipe respeito de Ana Cañas reúne 86 mulheres pedir por respeito. 15/05/2017. 19:28. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/clipe-de-ana-canas-reune-86-mulheres-para-pe-dir-por-respeito/. Acesso em: 20 jul. 2019.

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nir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará). O documento adotado em 9 de junho de 1994 afirma que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como limita o gozo e exercício desses direitos. Além disso, reconhece que esse tipo de violência constitui ofensa contra a dignidade humana e é fruto das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres.7

Ao reconhecer e expor sua experiência como mulher que também foi asse-diada, Ana reclama a proteção desses direitos. Ao apresentar e dar visibilidade aos rostos das 86 mulheres de diversos lugares e espaços, “por todas nós, por essa voz” a cantora serve de amparo para reclamar por respeito, pelo reconhecimento da mu-lher em si mesma, pela escuta da sua voz e da compreensão do seu corpo. Todos esses direitos pertencem à mulher em sua infinidade de vozes, rostos e corpos e que, por isso mesmo, transcendem barreiras como a nacionalidade. A participação de mulheres migrantes no clipe evidencia isso e permite compreender que a vio-lência e a opressão ao gênero também mostra sua faceta às mulheres em condição migratória. “violência, por todo mundo, a todo minuto, por todas nós” Assim, tendo como ponto de partida o grito por respeito e igualdade defendido na canção, pre-tende-se pensar a condição de mulheres migrantes – com recorte para a realidade brasileira - e a sua luta pelo reconhecimento da igualdade e respeito.

2. ELA VAI, ELA VEM: UMA INTRODUÇÃO SOBRE A FEMINI-ZAÇÃO DAS MIGRAÇÕES

Ao contrário do que se possa imaginar, a presença em grande número de mulheres nos fluxos migratórios não é fato exclusivo do século XXI. Documen-tos do início do século XX demonstram que mulheres migrantes se deslocavam sozinhas dentro da Europa para trabalhos no setor de serviços doméstico, como foi o caso das Irlandesas que migraram para a Inglaterra e das húngaras que eram levadas para a Bélgica, já com contratos de trabalho assinados.8 Inúmeros outros exemplos de fluxos migratórios de mulheres podem ser mencionados, de modo que compreender a feminização das migrações somente como um aumento con-siderável no número de mulheres migrantes nos dias atuais pode soar equivocado, já que desde muito tempo ocupam esse espaço.

7 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Interamericana para preve-nir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Convenção de Belém do Pará. Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário e Sessões da Assembléia Geral. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em: 20 jul. 2019.

8 DUTRA, Delia. Feminização das migrações. In: CAVALCANTI, Leonardo; BOTEGA, Tuíla; TONHATI,Tâ-nia; ARAÚJO, Dina (Org). Dicionário Crítico de migrações internacionais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017. p. 326.

Contudo, o que não ocorria com a migração feminina era a sua compreen-são como um fato social naturalizado, assim como sempre ocorreu com homens. Por muito tempo, a questão de gênero foi desconsiderada nas análises sociais das migrações, sendo o “neutro” masculino considerado suficientemente legítimo para representar todos os migrantes.9 Assim, se analisadas as estatísticas de migra-ção de décadas atrás em comparação com as atuais, será possível identificar que as mulheres sempre integraram e em grande número os fluxos migratórios ao redor do mundo, mas tiveram suas experiências, vivências e trabalhos invisibilizados em razão do gênero.10

De fato, nos últimos anos, tem-se observado aumento considerável na mi-gração feminina. Estima-se que o número de mulheres migrantes tenha duplicado entre 1960 e 2015. No ano de 2017 as mulheres compreendiam pouco menos da metade, 48% da população migrante internacional, superando em número os homens em todos os continentes, exceto África e Ásia. No entanto, considerar que se trata de um fenômeno exclusivo desse tempo reforça a invisibilidade da mulher no contexto de migração, sendo que, ainda hoje, apesar do aumento nas estatísticas, existe uma significativa ausência de informações e dados precisos por parte dos Estados sobre a migração de mulheres e meninas.11

Uma das causas da invisibilidade está atrelada à compreensão do fenômeno migratório como uma realidade exclusivamente ligada a questões econômicas e de trabalho, supondo que a movimentação nos mercados de trabalho fosse a única e exclusiva causa da migração. Essa suposição levava a outra de que a participação da mulher no mercado de trabalho era pequena, fazendo da migração fenômeno essencialmente masculino.12 A primeira questão que deve ser reconsiderada nesse contexto é que os espaços de trabalho também são ocupados por mulheres e que esse fator ainda é um componente importante para a tomada da decisão de mi-grar. Os empregos ligados ao trabalho doméstico ainda revelam-se mais propensos à mulher, sendo que, dentre os migrantes internacionais que realizam trabalho re-munerado, 73,4% são mulheres. Uma mulher migrante tem 6 vezes mais chances de realizar trabalho doméstico do que um homem migrante.13

9 DUTRA, Delia. Feminização das migrações. In: CAVALCANTI, Leonardo; BOTEGA, Tuíla; TONHATI,Tâ-nia; ARAÚJO, Dina (Org). Dicionário Crítico de migrações internacionais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017. p. 326.

10 ASSIS, Gláucia de Oliveira; KOMINSKY, Ethel V. Gênero e migrações contemporâneas. Estudos Feminis-tas, Florianópolis, 15, v. 3, set-dez, 2007. p. 695-697.

11 UNITED NATIONS. General Assembly. The impact of migration on migrant women and girls: a gender perspective. New York: Human Rights Council, 24 jun-12 jul. 2019. p. 04.

12 MARINUCCI, Roberto. Feminization of migration? REMHU – Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Ano XV, n. 29, 2007.

13 MARTINS, Ester Gouvêa; VEDOVATO, Luís Renato. Migração internacional de mulheres e o trabalho do-

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O segundo fator que deve ser considerado em relação ao trabalho é que, para além das questões econômicas e de emprego, a migração também pode ocor-rer por outros motivos. Para diversas mulheres, a migração representa também oportunidade de acesso à educação e qualificação profissional, conquista da auto-nomia financeira e social em relação a suas famílias e ainda outras questões, como a valorização de seu status em relação à sociedade de origem, acesso a serviços básicos, como saúde ou ainda em busca da reunião familiar.14 Fato é que a migra-ção pode ser também a alternativa de mulheres para romper vínculos de discrimi-nação e abusos que as circundam em seus países, fazendo-as migrar sozinhas ou como as primeiras de suas famílias, desconstruindo a ideia de que a migração de uma mulher estará sempre atrelada aos passos de um homem.15

A feminização das migrações, portanto, não deve ser compreendida apenas como o aumento no número de mulheres migrantes, que se intensifica na socieda-de moderna principalmente a partir da década de 1970, mas como um fenômeno que engloba três principais tendências, as quais prescindem ser analisadas sempre de maneira complementar: a primeira envolve o aumento em si do número de mulheres migrantes; a segunda, a mudança dos critérios analíticos dos fenômenos migratórios, com a inclusão do enfoque de gênero e, a terceira, a transformação do perfil da mulher migrante, que busca a autonomia e o lugar de protagonista de sua própria história.16

Contudo, em que pese inexistirem dúvidas quanto à feminização dos flu-xos migratórios, a posição da mulher e a questão de gênero ainda demandam ser analisados em sua totalidade e complexidade, a fim de que direitos humanos fundamentais, como a igualdade e respeito possam ser resguardados e exercidos pelas mulheres nos países de origem, trânsito e destino. Se hoje elas vão e vêm, a afirmação e realização de seus direitos deve ser uma constante. E suas peculiarida-des devem ser compreendidas, respeitadas e levadas em consideração.

Ao se tratar do tema da migração feminina, há que ter em conta as situações intrínsecas da mulher, suas características biológico-corporais, pois se trata de um ser humano que menstrua, às vezes com cólicas muito doloridas, tem alterações

méstico remunerado: opressão e cidadania na era da globalização. Revista Direito & Praxis, Rio de Janeiro, vol. 08, n. 3, 2017, p. 1975-2009.

14 MARTINS, Ester Gouvêa; VEDOVATO, Luís Renato. Migração internacional de mulheres e o trabalho do-méstico remunerado: opressão e cidadania na era da globalização. Revista Direito & Praxis, Rio de Janeiro, vol. 08, n. 3, 2017, p. 1975-2009.

15 DORNELAS, Paula Dias; RIBEIRO, Roberta Gabriela Nunes. Mulheres Migrantes: invisibilidade, direito à nacionalidade e interseccionalidade nas políticas públicas. O social em questão. Ano XXI, n. 41, Mai-A-go/2018. p. 247-264.

16 MARINUCCI, Roberto. Feminization of migration? REMHU – Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Ano XV, n. 29, 2007.

hormonais mensais, engravida, dá a luz, amamenta – todos fatores naturais mas que tornam ainda mais difícil sua migração. Como menina, criança e adolescente, ou mesmo mulher adulta, a violência se faz presente com muita frequência pois muitas vezes ela migra justamente para fugir da violência dentro e fora da famí-lia, no local de origem; é mais vulnerável a sofrer agressões durante a trajetória migratória; e ainda pode ser vítima de violência no país de destino, sendo mais facilmente submetida a tráfico de pessoas, rapto, cárcere privado, etc.

Muitas vezes as violências que marcam o processo migratório são sutis, re-forçando a invisibilidade citada acima. No país de origem, está a mulher submeti-da a condições de trabalho degradantes, além repressão do estado, sociedade e do marido ou companheiro; no próprio deslocamento, sofre assédio moral e sexual; e no destino final, fica relegada ao trabalho doméstico ou manual (sobretudo com costura, que geralmente também é doméstico), percebendo remuneração menor que os homens, sofrendo por se separar da família e, muitas vezes, por deixar os filhos no país de origem (fenômenos denominados de parental migration e chil-dren left behind).

Por fim, há que se ressaltar o agravante que é a sobreposição de vulnerabi-lidades, pois além das discriminações ligadas à nacionalidade, deve se acrescen-tar as questões de classe, raça e heterossexualidade normativa, que exigem uma abordagem feminista descolonial baseada em práxis e epistemologias que superem as ideologias etnocêntricas neocoloniais. 17 A interseccionalidade dos fatores é imprescindível quando se fala em migração das mulheres e violência, sobretudo quando se pensa políticas públicas emancipadoras, voltas para elas, a fim de afas-tar sua subalternidade e, consequentemente, sua vulnerabilidade.

3. A TODO MINUTO, POR TODAS NÓS: DESAFIOS NA PROTEÇÃO NORMATIVA DE MULHERES EM CONDIÇÃO MIGRATÓRIA E RELATOS NO BRASIL

Mulheres, assim como crianças e migrantes com deficiência foram até re-centemente negligenciados nas políticas e normativas globais que se referem à migração, pois eram concebidas como migrantes derivados e não migrantes por si mesmas, merecedoras de estatutos próprios. Todos esses grupos figuravam como

17 MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Etnocentrismo y colonialidad en los feminismos latinoamericanos: compli-cidades y consolidación de las hegemonías feministas en el espacio transnacional. Revista venezolana de estudios de la mujer, 2009. 12. Volume 14. Issue 33. p. 37-54. Na mesma linha de pensamento, ainda sem incluir as migrantes mas abordando a perspectiva da mulher latino-americana, ver CURIEL, Ochy. Gênero, raça, sexualidade – Debates contemporâneos. Documentos da Cátedra, Estudios Afrocolombianos. Disponí-vel em: https://www.urosario.edu.co/Subsitio/Catedra-de-Estudios-Afrocolombianos/Documentos/13-Ochy--Curiel---Genero-raza-y-sexualidad-Debates-.pdf

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apêndices do migrante principal, o homem, adulto, saudável, que provou seu status regular para justificar sua entrada em um novo país. A discriminação his-tórica, sobretudo de gênero, produz efeitos nas normativas internacionais para a migração até os dias atuais.18

A proteção e reconhecimento de direitos de mulheres em situação de re-fúgio podem ser utilizados como exemplos, tendo em vista que a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo adicional de 1967, principais instrumentos normativos internacionais do Direito Internacional dos Refugiados, não fazem nenhuma menção à questão de gênero, sendo que a defi-nição de pessoa refugiada tem sido historicamente interpretada a partir do per-sonagem masculino, o que, por diversas vezes, culminou no indeferimento das solicitações de refúgio feitas por mulheres.19

Assim, é possível dizer que a proteção e o reconhecimento de direito às mu-lheres migrantes têm ocorrido de forma paulatina e desconcentrada, não estando reunida em um único instrumento normativo internacional, havendo que recorrer a diversos instrumentos que fazem menção à condição da mulher, na medida que as questões de gênero garantem seu espaço. Nesse contexto, é possível destacar como normativas importantes, por estabelecerem uma base de princípios e diretrizes para a realização dos direitos da mulher e que podem ser contextualizados às questões migratórias: a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (1979); a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direi-tos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias (1990); no contexto americano, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi-car a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) e também a Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, estabele-cidos após a Cúpula do Milênio das Nações Unidas no ano 2000, que estabelece a igualdade de gênero como um dos objetivos a ser alcançado.20

Ainda, em 10 de dezembro de 2018, representantes de 164 países integrantes da Organização das Nações Unidas aprovaram o Pacto Global para a Migração Se-gura, Ordenada e Regular, instrumento não vinculativo, mas que se fundamenta no compartilhamento de responsabilidades entre os Estados e não-discriminação de di-

18 BHABHA, Jacqueline. Women, children and other marginalised migrant groups. In: OPENSKI, Brian; PER-RUCHOULD, Richard; REDPATH-CROSS, Jillyanne (org). Foundations of International Migration Law. Cambrigde: Cambridge University Press, 2012. p. 205.

19 FURQUIM, Angélica; FRIEDRICH, Tatyana Scheila. Reflexões sobre a sensibilidade de gênero no procedi-mento de reconhecimento do status de pessoa refugiada: o caso das mulheres salvadorenhas. In: BERTOTTI, Bárbara Mendonça et al. (Org). Gênero e Resistência. v.2, Porto Alegre: Fi, 2019. p. 212.

20 É possível conferir a íntegra dos tratados mencionados no site oficial da Organização das Nações Unidas. Disponível em: https://www.un.org/en/sections/general/documents/. Acesso em: 20 jul. 2019.

reitos humanos.21 Em que pese as discussões ainda recentes sobre sua natureza jurí-dica, o Pacto constitui o primeiro documento normativo internacional abrangente, que se propõe a gerenciar a migração internacional. Atrelado aos princípios da Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece uma série de princípios orientadores para o gerenciamento das políticas migratórias e, dentre eles, o princípio da responsabilidade de gênero (gender-responsive).

O item 15, alínea ‘g’ do Preâmbulo do documento dispõe que o Pacto Global garantirá o respeito aos direitos humanos de mulheres e meninas em to-das as etapas da migração, bem como que suas necessidades serão devidamente compreendidas e consideradas. Além disso, reforça a perspectiva da igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas, reconhecendo sua indepen-dência e fomentando a liderança, a fim de que não se promova a ideia da mulher migrante como vítima.22 Desse modo, ainda que não direcionado exclusivamente à situação de mulheres, o Pacto representa passo importante no que tange à visi-bilidade e compreensão feminina nos fluxos migratórios, vez que estabelece a res-ponsabilidade de gênero como um princípio, o qual irá tutelar e orientar diversas situações relacionadas à mulher migrante.

Aproximando-se da realidade brasileira, tem-se que entre os anos de 2010 e 2017, 46% dos migrantes no país era composto por mulheres. Vale destacar que, embora o Brasil tenha deixado o Pacto Global para a Migração em janeiro de 201923, em sinal de grande retrocesso no âmbito das relações internacionais e pro-teção de direitos humanos no país, é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e da Convenção Intera-mericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Conven-ção de Belém do Pará), sendo que a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famí-lias já foi submetida à análise do Congresso Nacional.24 Portanto, o país obriga-se a garantir a proteção e a realização de direitos de mulheres migrantes no Brasil.

21 ONU BRASIL. Mais de 160 países adotam Pacto para a Migração. 10/12/2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/mais-de-160-paises-adotam-pacto-global-para-a-migracao/. Acesso em: 20 jul. 2019.

22 UNITED NATIONS. Global Compact for Safe, Ordenely and Regular Migration. A.Res. 73.195. Dispo-nível em: https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/73/195. Acesso em: 20 jul. 2019.

23 FOLHA DE SÃO PAULO. Brasil deixa Pacto Global de Migração da ONU. 08/01/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/01/brasil-deixa-pacto-global-de-migracao-da-onu.shtm. Acesso em: 20 jul. 2019.

24 Vide a promulgação dos tratados mencionados anteriormente através da publicação dos Decretos n. 4.377 de 13 de Setembro de 2002 (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979); Decreto n. 1.973 de 1 de agosto de 1996 (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994). A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990 foi submetida à análise do Congresso Nacional através da MSC 696/2010, sendo que ainda não foi concluída a análise.

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Além disso, a Constituição da República estabelece no artigo 3º, inciso IV que constitui um dos objetivos da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos ligados à origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação.25 Desse modo, é resguardada a proteção plena de direitos fundamentais, independentemente de qualquer fator de diferenciação, como por exemplo, a nacionalidade, sendo, portanto, devida a proteção à mulher migrante que se encontre no Brasil. A Lei de Migração 13.445/2017, embora bastante atual e inovadora, deixou de lado a abordagem específica da temática de gênero, mas estabelece como princípio o repúdio a qualquer forma de discrimi-nação e a igualdade de acesso a direitos no Brasil. Assim, deve-se compreender que a mulher migrante no território nacional conta com a proteção normativa conferida pelas normas internacionais e nacionais, também podendo reivindicar seus direitos com base em tais instrumentos.

Contudo, apesar da questão da invisibilidade aparentar estar superada, ao menos no plano formal, a realidade de mulheres migrantes parece contrariar tais dispositivos. Relatos de mulheres migrantes ajudam a compreender que as polí-ticas de atendimento e mecanismos de garantia de direitos ainda são precários.

Prudence, migrante e refugiada congolesa, chegou ao Brasil em 2006 acom-panhada do marido e grávida de outra criança. Por sofrer violência doméstica, separou-se do esposo e relata orgulhosa poder ter utilizado a legislação brasileira para tomar a decisão de separar-se do marido agressor, o que não poderia fazer no seu país de origem. No entanto, também relata o preconceito enfrentado no Brasil cotidianamente em razão da condição de refugiada.26

Bibicha Zola é uma migrante angolana que também veio ao Brasil com um filho de 3 anos e ainda grávida de seu filho menor. Moradora de uma ocupação popular em São Paulo, busca compreender as regras pouco claras sobre documen-tação, bem como bancar os altos custos de procedimentos administrativos para conseguir reunir sua família no Brasil, nos termos que lhe garante a legislação.27

Mireille Muluila é fluente em 6 línguas e formada em Relações Interna-cionais. Veio do Congo para o Brasil e antes de conseguir um emprego na sua área na Cáritas, como a maioria dos migrantes, trabalhou em diversos empregos

25 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 20 jul. 2019.

26 Relato extraído da reportagem: VICENTIN, Carolina. As mulheres que correm o mundo. Revista AZMina. 12/03/2019. Disponível em: https://azmina.com.br/especiais/mulheres-imigrantes/. Acesso em: 20 jul. 2019.

27 Relato extraído da reportagem: VICENTIN, Carolina. As mulheres que correm o mundo. Revista AZMina. 12/03/2019. Disponível em: https://azmina.com.br/especiais/mulheres-imigrantes/. Acesso em: 20 jul. 2019.

informais, em condições exaustivas em razão da dificuldade de encontrar oportu-nidades para migrantes no país.28

Jobana Moya é migrante boliviana e vive no Brasil desde 2007. É a mulher migrante que participou do clipe da música ‘Respeita’ e que buscou demonstrar com seu olhar um pouco das violações que já sofreu em razão da condição de mu-lher migrante. Jobana considera que a mulheres, de modo geral, já estão em uma situação de vulnerabilidade, mas se ela também é migrante, então as dificuldades são ainda maiores:

Por exemplo, caso uma brasileira sofra qualquer tipo de violência doméstica, ela pode denunciar na delegacia da mulher. Mas se você é imigrante e não está regula-rizada, você não vai denunciar, pois é provável que a polícia se atenha mais com a sua situação imigratória do que com o que de fato ocorreu.29

Ainda, mulheres migrantes enfrentam dificuldades específicas relacionadas a situações de violência, de modo que os casos de violência contra a mulher mi-grante no Brasil são recorrentes, mas subnotificados. O silêncio preponderante aparece relacionado a alguns fatores, como a vulnerabilidade e dependência eco-nômica do parceiro, a ausência de domínio do idioma, a documentação irregular, por não encontrarem abrigos adequados ou ainda não reconhecerem a violência sofrida. Desse modo, a subnotificação dos casos de violência contra a mulher migrante é uma realidade que desafia movimentos de mulheres e as instituições e órgãos do Sistema de Justiça do país, tendo em vista que o Brasil conta com uma das legislações mais avançadas relacionadas à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha.30

Integrante de movimento de representação de migrantes, Jobana Moya re-força a importância da mobilização de mulheres migrantes para a conquista de um espaço, vez que muitos grupos de mulheres reivindicam reconhecimento, mas mesmo dentre esses grupos é como se as mulheres migrantes não existissem.31 Jo-bana considera que se trata de uma realidade invisível e vulnerável. Especialmente invisível, pois não existem números oficiais e precisos no Brasil sobre mulheres em

28 Relato extraído da reportagem: VICENTIN, Carolina. As mulheres que correm o mundo. Revista AZMina. 12/03/2019. Disponível em: https://azmina.com.br/especiais/mulheres-imigrantes/. Acesso em: 20 jul. 2019.

29 Relato extraído da reportagem: EQUIPE DE BASE WARMIS. Luta por direito dos imigrantes é tema de exposição em São Paulo. Disponível em: http://www.warmis.org/materiais/imprensa/107-luta-por-direitos--dos-imigrantes-e-tema-de-exposicao-em-sao-paulo.html. Acesso em: 20 jul. 2019.

30 AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. ViolênciacontramulheresimigrantesérecorrenteesubnotificadanoBrasil. 21/12/2015. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-contra-mulhe-res-imigrantes-e-recorrente-e-subnotificada-no-brasil/. Acesso em: 20 jul. 2019.

31 Relato extraído da reportagem: EQUIPE DE BASE WARMIS. Luta por direito dos imigrantes é tema de exposição em São Paulo. Disponível em: http://www.warmis.org/materiais/imprensa/107-luta-por-direitos--dos-imigrantes-e-tema-de-exposicao-em-sao-paulo.html. Acesso em: 20 jul. 2019.

330 muLHEr E miGranTE

TaíS vELLa Cruz 331

condição migratória, o que dificulta a formulação de políticas públicas para esse público. Conta ainda que as principais pautas do movimento de mulheres mi-grantes que integra são: políticas públicas para migrantes, direito ao voto, acesso real à saúde e educação, parto humanizado no SUS e casa de parto para mulheres migrantes, reconhecimento e respeito da diversidade cultural, não à discrimina-ção e visibilização da mulher migrante e suas problemáticas.32

A descrição normativa apresentada somada aos relatos fáticos de mulheres migrantes que buscam a implementação dessas normativas diariamente em suas vidas demonstram que o plano normativo não se sustenta sozinho. Há uma gran-de demanda pela realização de políticas públicas interseccionais, isto é, capazes de incluir os já citados recortes de gênero, classe, raças e etnias em suas estruturas. Nesse sentido, observam Dornelas e Ribeiro:

Enquanto a mulher e a questão de gênero não forem analisadas nos processos mi-gratórios, em sua totalidade e complexidade, as políticas continuarão falhando em compreender a migração e fornecer o acesso – garantido a elas – de seus direitos nos países que as acolherem.33

-Nesse contexto, as estruturas de opressão contra a mulher podem ter efei-tos ainda mais severos quando relacionados à mulher migrante, haja vista que esse grupo específico ainda enfrenta dificuldade de articulação e formação de redes no território nacional, que lhes permita reivindicar avanços na proteção e nos meios de participação na sociedade de destino e acolhimento. A todo minuto e por todas nós, a luta das mulheres migrantes também deve ser vista e compreendida dentre as pautas feministas. As vozes já existem, mas seu volume precisa ser aumentado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: MAS A LUZ NÃO SE APAGA“Desrespeitada, ignorada, assediada, explorada, mutilada, destratada, reprimi-

da, explorada. Mas a luz não se apaga.”34 A experiência de mulheres migrantes pas-sa constantemente por todos os adjetivos que Ana apresenta na sua composição. Mas também podem terminar com a reflexão de que a luz não deve ser apagada.

De um contexto de invisibilidade e ausência de proteção normativa, mu-lheres migrantes passam a ser percebidas nos fluxos migratórios mundiais e passa-

32 ESQUERDA DIÁRIO. Ser migrante boliviana no Brasil é viver uma realidade de invisibilidade e vulne-rabilidade. Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=2138. Acesso em: 20 jul. 2019.

33 DORNELAS, Paula Dias; RIBEIRO, Roberta Gabriela Nunes. Mulheres Migrantes: invisibilidade, direito à nacionalidade e interseccionalidade nas políticas públicas. O social em questão. Ano XXI, n. 41, Mai-A-go/2018. p. 247-264.

34 CAÑAS, Ana. Respeita. Álbum “Mulheres do Poder”, 2017. Disponível em: https://www.letras.mus.br/ana--caas/respeita/. Acesso em: 20 jul. 2019.

-se a compreender que são agentes próprios, protagonistas de suas próprias histó-rias, de modo que as políticas migratórias devem estar atentas à necessidade de se adotar uma perspectiva de gênero.

Os instrumentos normativos têm avançado no sentido de conferir espaço específico para a realidade da mulher que migra. Princípios gerais de respeito e promoção da igualdade de gênero ganham especial relevância nesse contexto, vez que se aplicam a todas as mulheres, independente de seu status migratório.

Na realidade brasileira, as estatísticas sobre a migração passam a ser melho-res delineadas e as mulheres também começam a ser descritas com alguma atenção nas estatísticas. No entanto, as políticas de gênero, ao lado das pautas sociais e de direitos humanos enfrentam consideráveis retrocessos, que podem dificultar ainda mais o fortalecimento e reconhecimento das pautas das mulheres migrantes.

Nesse contexto, essencial reafirmar como uma constante o direito das mu-lheres e destacar a presença das mulheres migrantes. Fortalecer e reivindicar a posição das instituições sobre a garantia e realização de seus direitos e a igualdade, sobretudo permitir e fomentar a participação em espaços de decisão, a fim de que tenham suas pautas conhecidas e integradas nos movimentos feministas. Como diz a canção, as mulheres vão e vem, donas de seus corpos, legisladoras de suas próprias histórias. Nenhuma está por ai à toa. Então respeita. Respeita as mina, respeita as mina migrante, porra.

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332 muLHEr E miGranTE

MULHERES NO REGGAE: UM ENSAIO COM A BANDA NAZIRÊ E A FORÇA DA VOZ DE TRÊS MULHERES NEGRAS NO CARIRI-CEARENSE

Maria Clara Arraes Peixoto Rocha1

Não há problema que não seja resolvido E não há medo que supere a coragem

Tudo é questão de consciência e equilíbrio

Amar o próximo e ter a mente em paz! (NAZIRÊ, 2018).

Este ensaio busca pensar o reggae com uma descrição que não tem apenas uma definição certa, mas como um ritmo musical que se movimenta de acordo com o contexto histórico, localidade e sujeitos envolvidos para expressão de suas notas. Mas que também não se pode deixar de levar em consideração que o re-ggae tem suas próprias estigmatizações e raízes que merecem serem destacadas.

De acordo com Oliveira (2008)2, na década de 1950 foi na Jamaica, com a junção do sound-systems3* que nas ruas da cidade em que uma parte da população se utilizava como meio de protesto em relação a situação política do país no geral, como forma de renúncia ao governo. O autor ressalta que foi no século XX que tomam lugar de ascensão na mídia mundial, nomes do reggae como Jacob Miller, Bob Marley, Peter Tosh e outros artístas.

Chamado de Roots Reggae (Reggae Raiz) o período entre 1968 e 1985, jus-tamente o ponto de massificação do ritmo jamaicano, conhecido também como o “Ritmo de Jah”, se trilhando no mapa mundial com grandes clássicos, como Toots Hibberts e os Maytals que lançam a música “Do the Reggay” em 1968.

Já em referente a origem do termo “reggae”, segundo o Instituto Geledés4,

1 Estudante do curso de Direito do último semestre na Universidade Regional do Cariri. Atualmente é bolsista da linha “Políticas Públicas” do “Grupo do Estudo e Pesquisa em Estudos Regionais, História da Educação e Políticas Educacionais” com o projeto “Educação, Gênero e Política: a presença das mulheres cearenses no cenário político”, membra do “Grupo de Estudo em Direitos Humanos e Direitos Fundamentais (GE-DHUF) ”. E-mail: [email protected].

2 OLIVEIRA, Paulo. Da repressão a movimento de massa: Reggae, mídia e estetização política. Revista inter-nacionaldefolkcomunicação, v. 6, n. 11, 2008.

3 Sound-Systems são pequenas montagens de aparelhos de som que eram colocadas nas ruas de Kingston para tocar músicas e denunciar o sistema político do governo conservador da Jamaica. Foi a partir desse processo que a música reggae se difundiu na Jamaica e esse modelo de difusão musical é repetido no Maranhão, em-bora com proporções infinitamente maiores, sob o nome de radiolas de reggae. (OLIVEIRA, 2008, p. 2).

4 GELEDÉS. Instituto. HistóriadoReggae–Parte3–ReggaeRoots. 2009. Disponível me: https://www.geledes.org.br/historia-reggae-parte-3-reggae-roots/. Acesso em 05 ago. de 2019.

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seria uma ajustação da palavra “ragged”, que estava comparado a o significado de roupa degradada e suja, logo, as pessoas que as vestiam. Fazendo referência a um dos pontos interessantes sobre tal estilo musical, a sua marginalização e precon-ceito que muitas pessoas tem com tal tipo de música, segundo o Geledés o reggae surge nos barracões de zinco das periferias jamaicanas. O contexto musical da época e da localidade era de transição de sons com novas experimentações musi-cais, exploração de instrumentos como os de percussão, sendo os bangôs, cuíca, sinos e outros se fortificando no processo de construção musical.

Um dos clássicos é o músico Lee Perry, que utilizou por exemplo choros de bebês e garrafas se quebrando como efeito sonoro, tendo como música mais conhecidas a “People Funny Boy”5.

Sendo assim, dando também mais relevância a bateria também, mudanado assim, a interpretação dos ritmos, de acordo com o autor supramencionado, a proposta na época era trazer linhas de baixo maus vibrantes e menos melódicas seguindo com um vocal mais irregular. Acontece que para além dessas caracterís-ticas de equipagem, o que marca o ritmo reggae é a presença de questões sociais em formato de crítica ao Estado nas letras.

É imprescindível colocar também a relação do reggae com as ideologias do movimento Rastafarismo, que era uma onda religiosa que tinha como símbolo mais forte de repercussão de seus dogmas, o pastor Marcos Garvey, que uma das sua alegações era que o povo negro retornasse para a África, já que era considerada a terra prometida do Evangelho. “[…] a situação política jamaicana, a emergência de um movimento religioso radicalizado, embora pacífico e a ânsia de tempos melhores para o povo da Jamaica, o reggae não obteve outro rumo que não os palcos do mundo.”6

Sendo a arte uma forma de expressão em suas mensagens através da música chegam oas ouvintes, os artistas do reggae fizeram jus ao seu contexto social, no sentido de denúnia a situação política, jurídica e econômica e outros que repercu-tiam na Jamaica. O desejo por uma melhoria em qualidade de vida, oportunida-des de emprego que envolvia as políticas públicas que eram necessárias sobre saú-de, educação e moradia, e tudo isso alinhado justamente ao desejo da população pela independência da Jamaica.

Como já citado neste trabalho, um dos grandes nomes do ritmo musical é o músico Bob Marley, que internacionaliza seu timbre circulando o mapa com

5 GELEDÉS. Instituto. Ob, cit.6 OLIVEIRA, Paulo. Ob, cit., p. 2

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seus dreads7*8. Já que até a década de 1970 o reggae se limitava à seu local de origem. O Instituto Geledés, em matéria já ciatada nesta pesquisa: “História do Reggae – Parte 3 – Reggae Roots”, afirma que muitos jamaicanos se juntaram em comunidades na Inglaterra, já que tinham chegado como exilados, por bus-ca também de uma melhor condição de vida, onde uma intensa cena de artistas de reggae é desenhada com nome como Winston Groovy, Dandy Livingstone, Laurel Aitken e outros desde o final da década de 1960.

De acordo com o levantamento bibliográfico para realização deste trabalho, é válido destacar aqui, a dificuldade de encontrar fontes que retratam a história do surgimento do reggae que citem mulheres artistas e suas contribuições para o estilo musical. O século XX foi um momento histórico de grandes mudanças sociais em todo mundo:

A história das revoluções e mudanças deflagradas por guerras e consequentes trans-formações sociais e culturais passadas de geração para geração pela tradição oral e pela crônica escrita, podem ser compreendidas por meio da história política e social, ou seja, pela visão oficial e hegemônica fundamentada por órgãos agen-ciadores de opinião, como a imprensa noticiosa ou pela academia que pesquisa e sistematiza as informações que devem chegar ao grande público. No entanto, esses mesmos acontecimentos são também metabolizados na esfera intrasubjetiva e transmitidos pela história próxima, familiar, local, em forma de crônicas que compõem a história e configuram cenários sociais e culturais. Conhecê-las auxilia a compreensão do momento histórico de uma sociedade, a partir da forma como os participantes desses acontecimentos as vivenciaram.9

É justamente no século XX em que o Estado tem interesse de que as mu-lheres se afastem de forma contida do âmbito doméstico, para a realidade pública em formato de trabalho. Depois da Revolução industrial, as vagas precisavam ser completadas por pessoas que não somente pertencessem ao gênero masculino, e em condições inda precárias de trabalho, as mulheres iniciam no ocidente a vida no trabalho formal.

Segundo Beauvoir,10 era na classe trabalhadora em que se podia aproximar as mulheres de uma certa liberdade, principalmente uma pelo viés da autono-mia econômica, já que estavam diretamente ligadas a produção e circulação de

7 Os dreads se originaram com o movimento dos rastafáris. Sabe-se que provavelmente foram os habitantes da região da África que começaram a utilizar os dreads, por questão de praticidade, pois era difícil cortar os ca-belos e com isso acabavam tornando muito longos. É um tipo de penteado no modelo de mechas entrelaçadas em forma cilindrica.

8 GELEDÉS. Instituto. Dread nos cabelos. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/dread-nos-cabe-los/. Acesso em: 06 ago. de 2019.

9 STELMACHUK, Ob, cit., p, 15. 10 DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2014.

bens e produtos, logo, de giro de capital estatal e privado, que as mulheres como trabalhadoras, mesmo assim, ainda estavam sujeitas ao ordenamento regido por homens no que diz respeito as leis trabalhistas: “[..] em ambos os casos, a ação era--lhes quase impossível. Os direitos e os costumes nem sempre coincidiam: e, entre eles, o equilíbrio se estabelecia de maneira que a mulher nunca fosse concretamente livre.”. ( DE BEAUVOIR, 2014, p. 168).

Acontece que não existe uma perspectiva de ser “mulher” universalizada, existem mulheres que se diferenciam entre si em suas particularidades que são individuais e em suas coletividades que representam uma classe. O contexto sobre história e lutas das mulheres por igualdade se especifica melhor quando colocada outros pontos extremamente relevantes para compreensão da vida das mulheres, como a classe e raça. Justamente sobre isso, relacionando o discurso sobre memó-ria do Stelmachuk (2012), que Carneiro11 coloca que:

O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colo-nial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.

Justamente por isso que assim como no mercado de trabalho, como em outros ramos, as mulheres negras, principalmente, foram atingidas mais violentamente com as “leis masculinas”, como coloca Beauvoir (2014, p. 168). Não era muito diferente no meio de produção musical, e é justamente onde este trabalho pretende se apro-fundar, tentando ter uma interpretação acerca da presença das mulheres no reggae, de forma específica analisar um pouco o contexto histórico de algumas mulheres impor-tantes na história do reggae, pra de forma específica afunilar o estudo com a análise da banda Nazirê que se origina no interior do estado do Ceará em 2013.

Com abordagem de método qualitativo e quantitativo12, o trabalho se utili-zou de autores acadêmicos para melhor embasar as afirmações alegadas no estudo, bem como o auxílio de matérias de sites e jornais. Para melhor, ajustar as hipóteses da pesquisa, foi feito um levantamento também de dados estatísticos, com o ob-jetivo de enriquecer a experiência documental aqui relatada.

11 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero.Racismoscontemporâneos.RiodeJaneiro:TakanoEditora, v. 49, p. 49-58, 2003

12 GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa: esta é a questão. Psicologia: teoria e pesquisa, v. 22, n. 2, p. 201-210, 2006.

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1. A HISTÓRIA E A REPERCUSSÃO DAS MULHERES NO REGGAEApesar das barreiras colocadas para que mulheres se constituíssem no cená-

rio musical do reggae fosse forte, devido a concepção de que o ser feminino tem que está associado ao lar, a maternidade compulsória, a subordinação masculina. A aproximação das mesmas no reggae é antiga e de grande importância em várias manifestações no meio da música.

A crítica às desigualdades de gênero está geneticamente ligada à crítica Às frontei-ras convencionais entre o público e o provado nas abordagens teóricas, na prática política, nas normas e nas instituições. A garantia de liberdade e autonomia para as mulheres depende da politizzação de aséctos relevantes da esfera privada. 13

De acordo com Canal do Reggae14, entre os anos de 1960 e 1980, a produtora musical negra jamaicana Sonia Pottinger colocou em ascensão diversos artístas no Tip Top Records15* Shop. Em seu próprio estúdio na década 1970, a mesma produziu albúlbs de Big Youth, Culture, U Roy e Big Youth, Marcia Griffiths e Bob Andy. Seu lançamento mais famoso é do Culture, que em 1978 lança “Harder Than The Rest”.

O grupo vocal I-Threes formado em 1974 por Rita Marley, Judy Mowatt e Marcia Griffiths que também chega para trazer outros timbres para a cena do reggae.

Rita Marley: a viúva de Bob Marley manteve a música e a mensagem da lenda do Reggae viva mesmo após sua morte prematura. Ela também é uma artista solo e lançou vários LPs. Atualmente, ela é presidente da Fundação Robert Marley, Bob Marley Trust, e criou a Fundação Rita Marley, com foco na redução da pobreza. Rita também colaborou com o Gilberto Gil durante as gravações de seu disco de reggae “Kaya n’gan daya”, uma homenagem a Bob Marley, concedendo entrevistas especiais ao cantor brasileiro.16

Apesar de muitos enxergarem a artistas como “viúva do Bob Marley”, em contrapartida, muitas pessoas apreciam seu trabalho em grupo, como também

13 BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. Boitempo Editorial, 2015. 14 REGGAE. Canal do. Mulheres no Reggae. 2015. Disponível em: http://canalreggae.com.br/mulheres-no-re-

ggae/. Acesso em: 06 ago. de 2019.15 Tip Top Recordings foi fundada em 2010 em Cambridge pelos moradores Ben Rimmer e David Warn. A Tip

Top lançou bandas de Cambridge, incluindo Forest, The British Public e MFU. A gravadora se expandiu para Londres e trabalhou com artistas em desenvolvimento como Cassels, Blue On Blue e SEVERIN, antes de entrar no mercado americano com lançamentos do GHXST de Nova York e apoiar a crescente comunidade musical de Chicago liderada pelos artistas Morimoto, Growing Concerns e Policial do sol. Em 2018, a Tip Top focou no EP de estreia na televisão japonesa, escolhido como o EP EP da EPC 6 Music do ano pela Amy Lamé & Gideon Coe. Tendo iniciado sua carreira na Far Out Recordings, Ben Rimmer mudou-se para o Proper Music Group antes de se estabelecer na Believe, onde é Chefe de Distribuição e Artista de Serviços e fundou a gravadora ambiente e neoclássica Phases. Ben trabalhou com artistas como The Streets, Orbital, Devlin, Max Cooper, Bjork, Fluff, Goldfrapp, Public Service Broadcasting, Gavin James, Petit Biscuit, James Vincent McMorrow, The Blaze, Filha, Michael Kiwanuka e Parcels. Ben foi eleito para o conselho de admi-nistração da Associação de Música Independente (AIM) em 2015. (RECORDINGS. Tip top. About. 2019. Disponível em: https://www.tiptoprecs.com/about. Acesso em 06 ago. De 2019.(.

16 REGGAE. Canal do. Ob, cit. 2015.

individual. Além de suas ações sociais.

A Judy Mowatt além de seu trabalho solo, segundo também o “Canal do Reggae” já citado neste trabalho, alega que a artista cantou em diversos albúlbs de grandes artísticas, como Jimmy Cliff, Peter Tosh, Big Youth, Pablo Moses, U Roy, Freddie McGregor, e o Wailing Souls.

Um dos seus trabalhos individuais de grande destaque se intitula como “Bla-ck Woman” e “Only a Woman”, o primeiro lançado em 1980 e o segundo em 1982.

Que consagra a artista como uma das protagonistas do movimento rastafári e de causas feministas. Não foi surpreso quando ela foi indicada ao Grammy em 1985 com seu LP “Working Wonders” em 1985, além de cantar no programa “Late Night with David Letterman.”, se confirmando como a primeira mulher do reggae a performar no programa.

Já a Marcia Griffiths, por muitos é conhecida como a “Rainha do Reggae”, começando sua carreira na década de 1960 e ainda mantém uma carreira de su-cesso: “Ela é a voz por trás do single de Reggae cantado por uma artista feminina mais vendido de todos os tempos.”17. No ano de 2012, esteve presente no Brasil para cantar no Maranhão Roots Reggae Festival.

Outras artistas como Dawn Penn, conhecida pela música “You Don’t Love Me (No, No, No)”, e a Sister Nancy que é conhecida como a primeira mulher deejay de Dancehall do mundo. “Sister Nancy é responsável pelo sucesso ‘Bam Bam’. Ela quebrou barreiras e tabus para se tornar a primeira deejay do sexo feminino a se apresentar no Reggae Sunsplash Festival, na Jamaica, e também a primeira a se apresentar internacionalmente.”18. Lançou três álbuns “One, Two,” “The Yellow, The Purple, & The Nancy” (com Yellowman, Fathead, and Purpleman), e o mais atual “Sister Nancy Meets Fireproof”, em 2007.”.

Essas mulheres são apenas alguns exemplos que tiveram mais repercussão midiática, mas é importante dizer que várias outras artistas circulavam nesse uni-verso do reggae, e que a existência delas mesmo não tão noticiado na grande mídia, ou em companhia de grandes estúdios ou artistas, não invisibiliza seus trabalhos. Por uma questão de sintetização do trabalho essas foram as escolhidas para serem citadas e de como mesmo com a massificação popular mundial do ritmo do reggae, as mesmas passam despercebidas por historiadores, na academia e pelos ouvintes do estilo musical.

17 REGGAE. Canal do. Ob, cit. 2015.18 REGGAE. Canal do. Ob, cit. 2015.

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No Brasil, a artista Célia Sampaio, foi denominada como a “Dama do Reggae”, iniciando sua carreira em 1984 e no grupo “Guethos”, que foi a primeira banda a to-car no palco do Teatro Arthur Azevedo, que fi ca no Maranhão, foi a primeira muulher a integrar a banda. Outra importante referência para o cenário de reggae nacional, foi a Izabella Rocha, que na década de 1990 fundou a banda In Natura, depois de sair da banda Natiruts, contribuindo para aumentar e inspirar a presença das mulheres no reggae. Na lista bandas com mulheres e formadas por mulheres mais conhecidas do país estão Filosofi a Reggae, Chimarruts, In natura, Namastê, Nazirê, entre tantas outras, também ganham cada vez mais destaque em todo o Brasil.

Atualmente no Brasil existem muitas mulheres produzindo na cena do reggae e apoiado por movimento de mulheres como um simbolo de força, re-sistência e arte. Um dele é o “Feminine Hi-Fi”, que é a primeira festa de sound system19* pensada e realizada apenas por mulheres no brasil:

O coletivo surgiu em 2016 com o objetivo de fortalecer e proporcionar espaço para as mulheres, tanto na seleção de músicas quanto na mensagem da cultura de sistema de som brasileira. Elas chegaram pra mostrar que as minas da cena estão presentes e pretendem cada vez mais ganhar o seu espaço no meio. Desde então, já reuniram mais de 50 mulheres nos line-ups das festas.20

Figura 1: “Feminine Hi-Fi “

FONTE: Miguel de Castro. . 2017.

19 De Sir Coxsone a DJ Kool Herc, a cultura dos sistemas de sons tem desempenhado um papel fundamental na evo-lução da música. PARKIN. Chris. Como a cultura Sound System conquistou a música. 2018. Disponível em: https://www.redbull.com/br-pt/como-a-cultura-sound-system-conquistou-a-musica. Acesso em 06 ago. de 2019.

20 DORNELAS. Luana, Feminine HI-FI. Feminine Hi-Fi recomenda 10 mulheres do reggae que você precisa ouvir. 2017. Disponível em: https://www.redbull.com/br-pt/feminine-hi-fi -recomenda-10-mulheres-do-reg-gae. Acesso em 06 ago. de 2019.

Na lista feita pelo coletivo, são indicadas as artistas: Jah9, Hempress Sativa, Denise de Paula, Laylah Arruda, Mis Ivy, Sista Beloved, Carol Afreekana, Sista Awa, Regiane Cordeiro e Marina Peralta.

2. VEJA SÓ, VOU TE DIZER A POSITIVIDADE VAI ACONTE-CER: NAZIRÊ E O CENÁRIO FEMININO DO REGGAE NO CA-RIRI CEARENSE

Foi em janeiro de 2013 que surge a banda Nazirê, o grupo que inicialmen-te era formado por seis pessoas ganha assessão midiática, após as três vocalistas Jordania Martins, Ranny Ramos e Géssica Alencar decidiram gravar uma música escrita por elas e melodia também feita por elas no Facebook, chamada “Acorda pea vida”, do dia da postagem, sete de janeiro até contar dois meses depois foram por volta de nove milhões de visualizações no vídeo, além do perfi l no Facebook aumental em mil pessoas em dois de banda para o número de 85 mil pessoas. 21

Em entrevista realizada pela redação do Diário do Nordeste, afi rma que:As referências femininas no mundo do reggae são poucas ainda. No geral, a maio-ria é homem. As mulheres estão mais presentes no back vocal, conforme explica Jordânia, talvez até para dar uma suavizada nas vozes masculinas. O vídeo obteve uma repercussão internacional. E os contatos passaram a vir de países latino-ame-ricanos e também da Europa. Não apenas do Ceará começaram a surgir propostas para o grupo. Houve, na verdade, uma divulgação em outros países do Nazirê.22

Figura 2: Banda Nazirê

FONTE: Arquivo pessoal.

21 NORDESTE. Diário do. Banda de reggae feminina do Cariri conquista internautas. 2015. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/regiao/banda-de-reggae-feminina-do-cariri-conquis-ta-internautas-1.1227760. Acesso em: 06 ago. de 2019.

22 NORDESTE. Diário do. Ob, cit.

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Foi realizada uma entrevista de modelo estruturado, no ano de 2019, via online com a banda para questionar e entender pela visão das próprias meninas pontos sobre o reggae no interior do estado e sua visibilidade, questões sobre fe-minismos, de classa e raça, além de tentar saber um pouco do ponto de partida de inspirações do processo criativo da banda.

Foi perguntado a Jordania Martins como ela enxerga as questões relaciona-das à resistência do ritmo musical na região do Cariri, e qual seria a contribuição, além de artística, mas também social na região já que é o espaço de surgimento da banda. Como enquanto a banda se sente nesse espaço tido também como políti-co, tanto no Ceará como em outras localidades. Afirma a artista que:

O Reggae no Cariri, a meu ver, desenvolve um papel importante não só relacionado à cultura, promovendo lazer e formação de plateia, mas também como um mecanis-mo que propõe relações sociais e integra jovens e adultos no mesmo espaço que estes se identificam seja pela música ou pela acessibilidade. Muitas vezes as pessoas que vão aos nossos shows se sentem sedentos por informação, protesto, amor, respeito e a música acaba tendo essa função. Nós também temos a nossa Kingston quando lembramos que nosso atual governo não incentiva a uma vida mais saudável e segura. E a nossa função enquanto musicistas da Nazirê é estar nos espaços que a gente pode fazer a nossa crítica às coisas que precisam ser melhoradas, mas também levar alívio às tensões que vivemos diariamente, na rua, no trabalho e em casa. 23

A cantora ainda completa dizendo que para além de também fazer parte de um movimento que circula críticas sociais, pelo contexto político nacional ao qual a banda está inserida, as mulheres da Nazirê fortalecem muito as questões do respeito ao próximo, partindo pelo princípio de fazer o bem e incentivar seus ouvintes a ver o lado positivo da vida. Ressalta que no caminho pela busca de se sentir bem, sabe que cada pessoa tem sua trajetória e dificuldades, mas que vale a pena tentar aliviar a alma.

Questionada sobre como é fazer parte de uma banda formada apenas por mulheres e o gerenciamento e organização de shows, escolha de outros músicas para tocas com elas, escolha de figurinos, assessoria das redes sociais da banda ser feito também pela própria banda Jordania diz que:

O tempo todo precisamos provar que não se trata de três rostinhos bonitos que conseguem as coisas pela beleza. Ao longo desses seis anos a gente foi aprenden-do que assumir uma postura profissional é extremamente essencial para sermos ouvidas e vistas. Muitas vezes fomos questionadas sobre nossos saberes, pois tudo o que aprendemos foi no dia a dia, então não temos uma formação acadêmica

23 NAZIRÊ. Banda. Entrevista com a banda Nazirê para capítulo de livro “Feminismos, artes e Direitos Humanos vol. 2” . Entrevista concedida a Maria Clara Arraes Peixoto Rocha. 2019.

dentro da área musical, inclusive algumas pessoas já nos colocaram em situações constrangedoras para nos intimidarem ou nos diminuir. Somente depois passamos a entender que o saber popular, intuitivo e alternativo de se comunicar na lingua-gem da música também é real e que essas pessoas quando trabalhavam para outros homens não questionavam absolutamente nada. Estar à frente de uma banda na condição de mulher, é abrir mão de uma amizade ou um envolvimento afetivo por saber que muitas vezes os músicos (não todos, graças a Deus) não saberão lidar com uma figura feminina que eles querem proteger dando ordens que são contrárias ao que eles acreditam. É cortar piadas e hábitos que nos desrespeitam, mas também ferem o nosso público, muitas vezes LGBT e que merece respeito. É construir um figurino abrindo mão, muitas vezes da nossa sensualidade para que não nos sexualizem. O mais interessante é saber que quanto maiores as cidades que passamos e mais profissionais são as pessoas que trabalhamos, o machismo diminui e as pessoas, sobretudo homens, nos tratam com mais respeito pelo nosso trabalho. A gente acaba vendo que situações ruins que passamos se trata também do local de onde viemos e do forte patriarcado que ainda temos como herança.24

Ainda nesse, em outra pergunta, se a banda tem um sentimento de empo-deramento em relação as discussões de gênero, classe e raça, sendo que:

Quando a gente se viu como mulheres negras, artistas e com uma musica viralizan-do, percebemos que tínhamos um poder nas mãos que era a música, mas também uma grande responsabilidade. Acredito que tudo foi entrando numa sincronia es-pantosa porque a medida que fomos conquistando mais publico, foi acontecendo mais movimentos feministas no Cariri e no mundo e mais mulheres negras se aproximavam da gente pra dizer que além de mulheres, eramos também represen-tatividade em relação a cor. E isso é emocionante! E quanto mais lugares a gente vai carregando no corpo e na alma toda essa carga, a gente se sente mais merecedora dos espaços que por direito é nosso, entende. 25

A banda conta que quando faz shows em fora do Cariri o público tem uma boa receptividade e muito respeito. Afirmam que o sotaque caririense é o ouro das músicas, o segredo na receita da performace em palco e em estúdio.

Outro ponto interessante na relação da banda entre as próprias integrantes é o fato de uma das artistas, a Géssica Alencar ser mãe de dois filhos, foi questio-nado se em algum momento da sua carreira, bem como da sua maternidade, a mesma já tenha sido duvidada no sentido negativo por fazer parte da banda, como alegações de críticas dos seus cuidados com seus filhos por se fazer presente em ensaios, viagens, shows, ou internamente no ramo da música, se alguém proble-matiza sua capacidade por ser mãe. E a cantora diz que:

24 NAZIRÊ. Banda. Ob, cit.. 25 NAZIRÊ. Banda. Ob, cit..

342 muLHErES no rEGGaE

maria CLara arraES PEiXoTo roCHa 343

Sabemos que na música é luta diária, chamada resistência, mas se temos alguém que acredita na gente fica mais fácil. Tipo eu, que tenho minha mãe que além de me dar a maior força é que super fã da gente e faz questão de ficar com meus filhos pra que viaje e até mesmo vá ensaiar. Temos a mãe de Jordânia também que é super fã da gente!26

Na verdade, Géssica coloca que sempre busca superar todas as dificuldades que possa vir aparecer em relação a isso. Sendo artista e mãe acaba sendo uma inspiração de força para outra mulheres. E que infelizmente esse tipo de pergunta acaba fazendo parte do roteiro da pesquisa porque sabe-se que a carga de cuidado com os filhos recai de forma pesada para as mulheres, e muitas não conseguem por conta disso lidar com trabalho, estudos e outras atividades por conta des-sa situação. Ao contrário disso, Géssica luta diariamente com apoio de pessoas queridas para continuar sua carreira e lutar contra a associação exclusiva do ser feminino com os cuidados com os filhos, por exemplo.

A artista Ranny Ramos já tinha uma trajetória forte no cenário musical antes da Narizê, e a mesma diz que:

Eu acho que a Nazirê me fez querer aprender mais sobre a música. Participei de outros projetos como voz principal, mais eu sentia que ainda não era aquilo que eu queria de verdade. Depois que a Nazirê ficou nesse formato com 3 vozes femini-nas, eu percebi que muita coisa foi melhorando e se encaixando no seu lugar. Era uma sintonia boa, que nos fez evoluir cada vez mais. Fazer música é uma forma de expressar nossas emoções. E quando vejo as pessoas cantando as nossas canções, me sinto privilegiada. Eu acho que o que a Nazirê tem de importante é transmitir sempre uma mensagem positiva ao nosso público. E o nosso diferencial ta no vocal por ser 3 mulheres negras e todas com o mesmo objetivo em relação a música. São 3 personalidades diferentes, quando o assunto é discutir sobre como vamos querer gravar aquela música nova, qual o arranjo fica mais a nossa cara, fica até um pouco difícil de resolver. Hoje a gente pode ver que tem muita voz feminina na cena mu-sical, e ultimamente a gente ta procurando conhecer mais essas vozes femininas no reggae, não só no reggae mais em outros gêneros também. Tipo hollie cook que é uma das vozes que a gente mais se identifica.27

Por fim, a banda alega que:As maiores dificuldades estão relacionadas a parte burocráticas. Somos uma ban-da, amamos cantar, mas também somos uma empresa. Temos horários, funções, missões, agendas, despesas e investimentos. Tudo isso administramos sozinhas e isso gera um desgaste principalmente quando precisamos alimentar as redes sociais e aparecermos “bem aparentadas” quando falamos com o publico. No entanto nossas maiores satisfações estão relacionadas a ir cada vez mais distante do Cariri

26 NAZIRÊ. Banda. Ob, cit.. 27 NAZIRÊ. Banda. Ob, cit..

e ter pessoas de outros países nos reconhecendo ou ler depoimentos de pessoas em situações debilitadas que de alguma forma tiveram o dia melhor. Isso defi nitiva-mente não tem preço. 28

Foi em 2018 que a banda lançou seu primeiro CD intitulado “A vitória vai chegar”, mais de 150 mil seguidores aguardavam por esse momento. A banda criou uma conta no Kickante29* para pedir ajuda na arrecadação de fundos fi nan-ceiros para custeio do projeto e receberam o valor de R$ 5.120,00 de contribuição.

Figura3: Nazirê: CD “A Vitória Vai Chegar”

FONTE: Arquivo da banda. 2018.

Tudo começou pela admiração pelo cantor Bob Marley, e atualmente a banda segue fi rme lutando pelo espaço no cenário musical do reggae, e da resis-tência feminina negra nos espaços artísticos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAISEle vai te dominar, ele vai te dominar,

O sistema não perdoa ele vai te dominar. (NAZIRÊ, 2018).

Percebe-se então que são muitas as questões que se traduzem como barrei-ras em ser mulher, inclusive na música, que é uma das formas de expressar arte. Falando tanto como de modo social de maneira generalizada, como em particula-ridades de cada sociedade, muita luta tem se notado por parte das mulheres para conquistar e permanecer nos espaços tanto artísticos, como de trabalho, já que gerenciar uma banda também inclui fonte de renda.

28 NAZIRÊ. Banda. Ob, cit..29 Kickante é um site seguro e é um dos maiores sites de crowdfunding do mundo arrecadando fundos para

causas nobres no Brasil afora e tirando muito projeto sensacional do papel.

344 muLHErES no rEGGaE

maria CLara arraES PEiXoTo roCHa 345

As músicas mais conhecidas da banda Nazirê são “Acorda pra vida”, “A vitória vai chegar”, “Veja só”, “Clamor a Jah”, “Ele vai te dominar” e “Colar de Jóias raras”. E estão disponíveis nas plataformas como o Letras.com, Youtube, Facebook, Instagram (@bandanazire), Spotify e outros.

A marca de três mulheres negras como artistas geram a força e identidade do grupo Nazirê, suas composições sobre amor, liberdade, resistência e positivi-dade inspiram pessoas de todo Brasil, segundo a repercussão midiática da banda a buscarem fazer o bem ao próximo, espalhando a mensagem reflexiva sobre o processo de auto-construção de bem-estar consigo e com as outras pessoas, no sentido político, bem como social.

DE BOLADONA A 100% FEMINISTA: MULHERES QUE FAZEM ECOAR SUAS VOZES

Vanessa Guimarães dos Santos1

Carioca de gema. Nascido e criado nos subúrbios e na favela. Uma sonori-dade no ar. Movimento. Corpo liberto. Funk. O ritmo que provoca amor e ódio. Marginalizado, assim como o samba foi em seu surgimento, mas potente, a ponto de invadir as escolas, os meios de comunicação, as festas, gostos da classe média/ alta e de amplificar vozes da periferia. Linhas de atravessamento. Mistura. Que som é esse? Que corporeidade é essa?

Longe dos clichês sexuais e estereótipos violentos, o funk tão rejeitado, também serve como canal de expressão de uma parcela da população muitas vezes calada. Cultura. Pluralização de significados, diversidade dos modos de ver, sentir e fazer o mundo. O funk fala de nós e para nós. Era só mais um Silva que a estrela não brilha. Sociedade desigual. Eu só quero é ser feliz. Andar tranquilamente na favela onde eu nasci2.

Entre tantos assuntos que espelham a realidade social em que vivemos, pas-sou a ecoar a voz das mulheres. Recorte da breve análise do presente artigo. Ques-tões de gênero. Anseios. Necessidades. Desejo sexual. Saúde reprodutiva. Afetos. Violência doméstica. Mulher objeto. Mulher trabalhadora e chefe de família. Ma-triarca. Portal de (re) criação da cultura. Boladona3. Tati Quebra Barraco abriria as portas para uma geração que veio cantar o poder de ser mulher e reivindicar direitos fundamentais, uma geração 100% feminista4.

1 Bacharel em Direito. Especializada em Ordem Jurídica e Ministério Público - Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - FEMPERJ. Atualmente, cursando Especialização em Direito Público e Privado na EMERJ - Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

2 Frase da composição “Rap da Felicidade” dos Mc´s Cidinho e Doca. Letra atemporal. Um pedido de socor-ro. Uma denúncia. Pois são cotidianos os casos de violência policial e de mortes de inocentes nas favelas do Estado do Rio de Janeiro. Por exemplo, o caso do adolescente Marcos Vinícius da Silva, baleado pelas costas e morto, enquanto se deslocava para sua escola, na Comunidade da Maré, em 2018. O Rio de Janeiro é uma cidade com número recorde de mortes em confrontos policiais, principalmente, dentro de comunidades pobres e bairros periféricos. O atual governador foi denunciado à ONU (Organização das Nações Unidas) e à OEA (Organização dos Estados Americanos) pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Le-gislativa do Rio de Janeiro) por sua permissividade quanto ao que chama de “abate” de criminosos e “agenda genocida”.

3 Gíria surgida no funk significa que a pessoa está inquieta, pertubada ou zangada com algo. E nome de uma das músicas de maior sucesso da Mc Tati Quebra Barraco.

4 Alusão a música “100% Feminista” de Mc Carol e Karol Conka.

348 DE BoLaDona a 100% FEminiSTa: muLHErES QuE FazEm ECoar SuaS vozES

A MULHER E O FUNK CARIOCAA perspectiva de gênero é uma metodologia, um eixo transversal que deveria

perpassar todas as áreas. Interessa analisar a potência, que o funk instrumento artís-tico, associado a voz, pensamento e realidade das mulheres funkeiras cariocas, criou.

Inicialmente, a ideia é mapear alguns nomes e letras de músicas de mulheres funkeiras que marcaram o movimento de reivindicação dos direitos de controle e decisão, de forma livre e responsável, sobre questões relacionadas à sexualidade, aos direitos reprodutivos, a livre escolha, a discriminação e a violência doméstica.

O documentário “Sou feia mas tô na moda”, 2005, dirigido por Denise Garcia é a base da coleta de falas das mulheres: produtoras (as Mc´s) e moradoras de comunidades pobres/ consumidoras de funk. É importante destacar que exis-tem recortes raciais e sociais bem delineados. As falas analisadas a seguir são de mulheres pobres, moradoras de comunidades cariocas. E, em sua maioria, negras.

MULHER SOLTA TUA VOZO título do documentário foi inspirado na música “Sou feia mas tô na

moda”, escrita e interpretada pela Mc Tati Quebra Barraco, ícone das respostas das mulheres a letras machistas que dominavam os hits do mundo funk. Em sua letra a Mc afirmava: “tô podendo pagar hotel pros homens, isso que é mais impor-tante”. Ruptura. O que a Mc propunha em suas letras era o deslocamento, nas relações, do papel de protagonista do homem e mostrar que uma mulher podia querer, gozar, escolher e ser independente financeiramente.

O título do documentário assim como a música trazem uma questão implí-cita. Porque se autointitular feia? Não foi gratuito. “Sou feia” ganha um sentido de ironia e provocação. Quem são e qual preço pagam as mulheres “belas, recatadas e do lar5”? Ser feia se transforma em qualidade positiva porque significa a experiên-cia de sair do padrão físico e social imposto para a mulher6.

Logo no início do documentário “Sou feia mas tô na moda”, Andrea, mo-radora da Cidade de Deus7, consumidora de funk, diz: “Muitas mulheres eram

5 Alusão a matéria de cunho machista, sobre o ideal de mulher burguesa, publicada em 2016, pela revista VEJA.6 Segundo BEAUVOIR (2016): “A grande diferença (entre a educação de meninos e meninas, desde muito cedo)

está em que, de um lado, a boneca representa um corpo na sua totalidade e, de outro, é uma coisa passiva. Por isso, a menina será encorajada a alienar-se em sua pessoa por inteiro e a considerá-la um dado inerte. Ao passo que o menino procura a si próprio no pênis enquanto sujeito autônomo, a menina embala sua boneca e enfeita-a como aspira a ser enfeitada e embalada; inversamente, ela pensa em si mesma como uma maravilhosa boneca. Por meio de cumprimentos e censuras, de imagens e palavras, ela descobre o sentido das palavras “bonita” e “feia”; sabe desde logo, que para agradar é preciso ser “bonita como uma imagem”. (p.23).

7 Cidade de Deus é um bairro da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. É considerado uma das regiões mais perigosas da cidade, devido a constantes confrontos entre traficantes e polícia militar nas comunidades da área.

vanESSa GuimarÃES DoS SanToS 349

muito acanhadas. A música incentivou as mulheres a “botar” para fora. Hoje é mais aberto.” “Botar” para fora aqui significa sair do lugar de silêncio. Escolher. Falar sobre desejos sexuais8. Compartilhar conhecimentos.

Quando uma mulher diz que pode pagar o hotel ou não depila as axilas ou raspa a cabeça ou explicita seus desejos sexuais ou decide não ser mãe, por exem-plo, está se propondo a se experimentar socialmente fora dos padrões estéticos e comportamentais impostos a ela. Sofre um ciclo social de rejeição. Um brinde as “feias”. Àquelas mulheres que ousam não ser uma imagem bonita e silenciada. Àquelas mulheres que ousam descobrir e construir o que podem ser. É um exercí-cio pessoal doloroso. E, é uma escolha política, à medida que abre caminho para que outras mulheres escolham e sejam o que desejam.

MEU CORPO, MINHAS REGRAS Um elemento importante quanto à liberdade feminina é a capacidade de

gerir sua fertilidade. Direitos sexuais e reprodutivos. Conhecimento de si e acesso a métodos contraceptivos para gozar da capacidade de escolha sobre seu próprio corpo. Um dos pontos importantes do documentário “Sou feia mas tô na moda” é a fala da Mc Juliana, do grupo Juliana e as fogosas9.

A música criada pelo grupo assume papel educativo considerando que até hoje, 2019, 5,6 milhões de brasileiras não vão ao ginecologista10. A primeira consulta deveria ser no início do período menstrual, na puberdade, para receber orientações físicas e psicológicas sobre iniciação sexual, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis, consentimento, entre outros assuntos.

Ao invés de ser notada como instrumento educativo a música foi alvo de críticas negativas. Existe a quebra de um ciclo de ignorância e silêncios. A música traz ao debate de modo claro temas tabu que são negados ao pleno conhecimento da maioria das mulheres. Família e escola dão informações lacunosas ou não dão informações sobre o corpo feminino. As Igrejas trazem o pecado e a culpa.

A vagina, por exemplo, é sempre rodeada de segredos, de não olhares, de preconceitos. Nos espaços virtuais sequestrada pelas fantasias depiladas e rosadas

8 Direito ao prazer. Trecho de música de Deise da injeção: “(...) mete tudo eu vou gemer. O tempo já é moder-no. O sexo tem que variar. Ele quer que você mande. Manda ele te chupar”.

9 “A história é: as meninas um dia tem que procurar a ginecologista para se tratar. Essa música quando começou a tocar deu uma polêmica do caramba. O começo da música é: veterinária para cachorro, eletricista para dar choque, ginecologista pode crer é para dar toque. As fogosas é chapa quente e vai ao ginecologista, está ligado que é de lei dar um trato na pepita”.

10 Matéria publicada em 13/02/2019: https://noticias.r7.com/saude/pesquisa-56-milhoes-de-brasileiras-nao--vao-ao-ginecologista-13022019

350 DE BoLaDona a 100% FEminiSTa: muLHErES QuE FazEm ECoar SuaS vozES

do mundo pornô. O paradoxo de uma super exposição em que não se vê o real, em que não há contato com a humanidade da mulher. A prisão na imagem. O desejo do outro, do homem.

Qual menina nunca ouviu: sente como uma mocinha ou feche as pernas? Desde cedo à mulher aprende que a vagina é motivo de vergonha. A mulher aprende que deve ser escondido dos outros e de si, o conhecimento sobre seu pró-prio corpo. Histórica e culturalmente, as mulheres foram relegadas a ignorância para não desejarem e não terem o poder de escolha. Afinal, o conhecimento é instrumento de liberdade11.

Percebemos que o funk movimento artístico-cultural cumpre um papel de disseminador quando observamos a fala bastante simbólica de Denise, uma con-sumidora de funk, moradora da Cidade de Deus e mãe de duas meninas12. A Denise e outras mulheres com base em suas próprias histórias entendem que o co-nhecimento e o diálogo oferecem maior possibilidade de escolha. Essas mulheres tentam praticar uma educação diversa da que receberam com suas filhas. As letras funk chegam como um estímulo externo que reforça a marca de suas histórias.

ABAIXA SUA VOZ, ABAIXA SUA MÃOExistem questões sociais e econômicas, como a divisão do trabalho, que

empurram grupos de mulheres pobres, para a luta contra o machismo estrutu-ral em que vivemos. Mesmo sem conhecer definições e conceitos acadêmicos de feminismo, tais mulheres na prática, dentro de seus contextos e limites, criam e exercem estratégias de sobrevivência e de burla do sistema patriarcal. Por exemplo, no caso das mulheres pobres que trabalham13 e comandam famílias14. A despeito

11 Segundo BEAUVOIR (2016): “(...) nenhuma educação pode impedir a menina de tomar consciência de seu corpo e de sonhar com seu destino; quando muito poderão impor-lhe estritos recalques que pesarão mais tarde sobre toda sua vida sexual. Seria desejável, isso sim, que lhe ensinassem o contrário: a se aceitar sem complacência nem vergonha”. (p.74)

12 “Eu tenho minha filha. A mais novinha está com quatro anos. Eu aprendi na rua o que minha mãe não tinha liberdade de conversar comigo sobre sexo. Então, o que vou fazer com minha filha? Conversar. Tentar ser liberal com ela, para ela ter confiança em mim, para não acontecer o que aconteceu comigo. Me perdi com 11 anos, com 16 já era mãe”.

13 Segundo SOIHET (2018), se referindo à época de 1890-1920: “Como era grande sua participação no “mun-do do trabalho”, embora mantidas numa posição subalterna, as mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragi-lidade. Eram mulheres que trabalhavam e muito, em sua maioria não eram formalmente casadas, brigavam na rua, pronunciavam palavrões, fugindo, em grande escala aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil. As atividades das mulheres populares desdobravam-se em sua própria maneira de pensar e de viver, contribuindo para que procedessem de forma menos inibida que as de outra classe social, o que configurava através de um linguajar “mais solto”, maior liberdade de locomoção e iniciativa nas decisões.” (p. 367).

14 Segundo dados da Coordenação de Igualdade de Gênero do Instituto de Pesquisa Econômi-ca Aplicada (Ipea), mais da metade das famílias com filhos chefiadas por mulheres (53%) são po-bres; ao passo apenas 23,7% das famílias com filhos chefiadas por homens estão nessa condição. A razão da pobreza feminina está na divisão do trabalho. As mulheres são historicamente incumbidas das tarefas domésticas, como cuidar dos filhos e, no mercado de trabalho, ocupam os postos de mais baixa remu-

vanESSa GuimarÃES DoS SanToS 351

da influência da cultura dominante (ideais burgueses) sobre as camadas populares, as condições concretas de existência dessas mulheres as coloca no fronte de bata-lha de reivindicação de relações mais simétricas.

Feminismo. Direitos equânimes. Território de conflito15. À medida que a mulher pobre reivindica relações mais simétricas, se encontra com seu poder e ao mesmo tempo com a vulnerabilidade. Preconceitos. Marginalização. Violência doméstica. Valeska Popozuda, mais uma Mc reconhecida por cantar músicas res-postas das mulheres a letras machistas do mundo funk, em início de carreira na época do documentário “Sou feia mas tô na moda”, falou sobre mulheres, que se-gundo ela, já não abaixavam mais a cabeça16. A fala demonstra a proximidade com situações de abuso físico e psicológico, de violência doméstica contra mulheres e aponta um processo de mudança. Assim como Mc Carol na música 100% femi-nista17 diz que com 5 anos já entendia que mulher apanha se não fizer comida. E completa: quando eu crescer, eu vou ser diferente.

O feminismo não é e nunca será homogêneo, dentro desse movimento exis-tem inúmeras vertentes, estratégias de luta e momentos históricos. O que importa é valorizar o exercício diário de cada mulher, dentro de seus espaços de possibi-lidade, para construção de condições melhores para todas. O pessoal é político. Não é fácil. Aprendizado e exercício. Uma mulher nem precisa conhecer a palavra feminismo para ser uma feminista, basta que ela observe a sociedade e as restrições que lhe são impostas, e mais, que aja para modificar o possível. Assim agiram to-das as mulheres citadas nesse artigo.

CONCLUSÃOO funk também é um instrumento cultural e artístico de amplificação das

vozes de mulheres pobres e negras do Rio de Janeiro. A perspectiva de gênero é um eixo transversal que deveria perpassar todas as áreas. O que as Mc´s propõem em suas letras é o deslocamento, nas relações, do papel de protagonista do ho-

neração, dando preferência às atividades que permitam continuar cuidando de casa e dos filhos. 15 Segundo SOIHET (2018): “O homem pobre, por suas condições de vida, estava longe de poder assumir

o papel de mantenedor da família previsto pela ideologia dominante, tampouco o papel dominador, típico desses padrões. Ele sofria a influência dos referidos padrões culturais e, na medida em que sua prática de vida revelava uma situação bem diversa em termos de resistência de sua companheira a seus laivos de tirania, era acometido de insegurança. A violência surgia, assim, de sua incapacidade de exercer poder irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência do que de força e poder.” (p. 370).

16 “Antigamente as mulheres apanhavam, eram xingadas e abaixavam a cabeça. Hoje não. Elas trabalham, se mantém sozinhas e cuidam de seus filhos. Se mantém guerreiras.”

17 Trecho da música 100% feminista: “Represento Dandara e Xica da Silva. Sou mulher, sou negra, meu cabelo é duro. Forte, autoritária e às vezes frágil, eu assumo. Minha fragilidade não diminui minha força. Eu que mando nessa porra, eu não vou lavar a louça. Sou mulher independente não aceito opressão. Abaixa sua voz, abaixa sua mão.”

352 DE BoLaDona a 100% FEminiSTa: muLHErES QuE FazEm ECoar SuaS vozES

mem e mostrar que uma mulher pode querer, gozar, escolher e ser independente financeiramente. As Mc´s assumiram o papel de reivindicar direitos de controle e decisão, de forma livre e responsável, sobre questões relacionadas à sexualidade, aos direitos reprodutivos, a livre escolha, a discriminação e a violência doméstica. Existem questões sociais e econômicas, como a divisão do trabalho, que empur-ram grupos de mulheres pobres, para a luta contra o machismo estrutural em que vivemos. Mesmo sem conhecer definições e conceitos acadêmicos de feminismo, tais mulheres na prática, dentro de seus contextos e limites, criam e exercem estra-tégias de sobrevivência e de burla do sistema patriarcal. Sejamos todos feministas nas práticas cotidianas.

GENI E O ZEPELIM: UMA ANÁLISE SOBRE A HUMANIZA-ÇÃO DA MULHER DIANTE DO ETIQUETAMENTO SOCIAL

Rebeca de Souza Vieira1

Nos últimos anos o estudo sobre direito e artes vem se expandindo, seguin-do essa linha o presente capítulo será mais um colaborador para tal expansão, correlacionando a música popular brasileira, que teve grande força no período de regime militar, como forma de liberdade de expressão, período esse que foi de grande repressão para os direitos humanos no país, porém além de abordar os direitos humanos o objetivo principal é fazer uma análise sobre as influências do etiquetamento social para a humanização da mulher.

A música Geni e o Zepelim, foi lançada em 1979 no álbum a Ópera de Malandro, onde a protagonista da música de Chico Buarque2, é uma mulher marginalizada pela sociedade, por se afeiçoar pelos desprezados e por todos os rejeitados, e ter aversão de entrega-se as pessoas de classes mais elevadas.

Assim o presente trabalho aborda inicialmente à obra, depois faz uma breve análise sobre Geni, passando assim a abordar a teoria do etiquetamento social sob a ótica da mulher e da protagonista da obra. Então, é feita uma exposição sobre os direitos humanos, e o destrinchamento dos seus três princípios básicos, que também são constituídos como direitos, sendo eles a liberdade, igualdade e fraternidade, depois uma correlação dos direitos humanos e a aplicação social deles para as mulheres e em seguida como eles foram aplicados na vida de Geni.

1. A OBRA Aqui serão apresentados os detalhes de cada estrofe. No começo da música

o compositor vai dizendo os tipos de namorados que a protagonista se relaciona,

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Jorge Amado, assessora do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia (PPEBA), membra do Grupo de Estudos Avançados - Sistema Penal e Necropolítica -IBCCRIM/BA- Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, membra do grupo de iniciação científica Núcleo de Estudo sobre Justiça Restaurativa – NEJUR no Centro Universitário Jorge Amado, membra do Grupo de Estudos Sobre Sanção Penal da Criminologia Crítica e Política Criminal- Núcleo de Estudos Sobre Sanção Penal-NESP/UFBA, membra do grupo de pesquisa Culpabilidade e Responsabilidade-UFBA), membra do grupo de pesquisa em Direito Arte e Literatura na Universidade Federal da Bahia/UFBA, membra do Grupo de Estudo “Estudos sobre Pierre Bourdieu e Antônio Bispo - Rompendo Fronteiras da Universidade Federal da Bahia/UFBA, membra do CCRIM - Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves-2019, membra do laboratório de ciências criminais 2018 do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: [email protected]

2 Nome artístico de Francisco Buarque de Hollanda.

354 GEni E o zEPELim: uma anáLiSE SoBrE a HumanizaÇÃo Da muLHEr DianTE Do ETiQuETamEnTo SoCiaL

ao passo que de forma sutil diz que ela se entrega aos que não possuem mais nada. Logo após são descritos os locais que ela mantinha relações sexuais com as pessoas, locais públicos, privados e em sua maioria desapropriados, segundo a dinâmica social; além de locais improváveis, se relaciona com pessoas que estão à margem da sociedade, como os presos, as loucas, os leprosos, os meninos confinados no in-ternato, as viúvas e idosos sem saúde; por conta desse jeito marginal e bondoso na sua perspectiva ela é constantemente ameaçada, hostilizada, feita indigna e maldi-ta, sendo retirada dela toda e qualquer vertigem de dignidade, virtude e respeito, uma vez que, a sociedade diz que ela é feita para receber a mazelas e agressões.

Até que surge um zepelin nas nuvens da cidade com o intuito de destruí-la utilizando os seus dois mil canhões, fazendo com que todos ficassem apavorados na cidade, até que o comandante se interessa pela manutenção da cidade, mesmo horrível e sem a moral diante de suas perspectivas, ele se encanta por Geni, e re-voga sua decisão de destruição se a moça passar a noite com ele.

Todos ficam espantados, quando descobrem que Geni era agora a paixão repentina do comandante, logo ela que era maldita e marginal entre eles, como poderia ser sendo tão coitada e simples e ter capturado o forasteiro com sua beleza e encanto. A donzela, que mantinha isso em segredo, tinha seus caprichos e pre-feria deitar com os bichos e os simples, do que com o homem tão rico, cheiroso e nobre, ao ouvir isso a cidade começou a mudar a forma de tratá-la, para que mudasse de ideia.

Começaram a se mobilizar, tantos as pessoas, como o prefeito, o banquei-ro e o bispo fizeram súplicas a ela, a cidade inteira suplicava, para que ela fosse com ele, expiar os pecados da cidade,e que seria apenas uma noite, o que era uma noite para ela diante das tantas outras noites com os outros, passando a ser chamada de bendita.

Diante de tantos pedidos e de tanta sinceridade, ela ignora seus próprios ca-prichos e se entrega ao comandante, como se estivesse indo para a própria tortura, ele se aproveitou dela de todas as formas possíveis, até que fica satisfeito e antes do amanhecer partiu em seu zepelim.

Geni respira aliviada com a partida do homem, por saber que salvou a cida-de, ficou contente, acreditando que seu sacrifício mudou o destino do povo, mas logo que o dia começou a cidade não permitiu que ela dormisse e voltou repenti-namente a ataca-lá, dizendo que o único destino dela seria as agressões e se deitar com qualquer um, até que a chamam de maldita.

rEBECa DE Souza viEira 355

1.2 UMA BREVE ANÁLISE DA OBRA Geni era julgada por ter um comportamento marginal e entregar o seu

corpo para os mais simples, pobres e marginalizados, além dos julgamentos, ela era ameaçada de diversas formas, por ir de encontro a falsa moral da cidade, pois o comandante do céu conseguiu ver o quão depravados eles eram, e só usaram a sinceridade para manipular Geni.

A ação deles, permitiu vários pensamentos subjetivos, pois passaram a re-conhecer nela uma tentativa de mudança do comandante e a deles; quando ela aceita se deitar com um nobre, indiretamente eles reconhecem sua bondade e ao mesmo tempo de forma subliminar e marcante tanto eles quanto o comandante achavam justo usar a mulher e seu corpo como forma de moeda de troca, além de depositar deste corpo o futuro de um lugar.

Ser feita de bode expiatório, não a fez se sentir tão mal, por não ter se prendido ao que tinha feito para a expiação, mas a consequência do seu ato, porque agora ela sabia que a cidade estava salva e por ter acreditado ser bendita entre eles, porém a falsa moral fez com que se voltassem contra ela, não sendo permitida de descansar após o ato, logo as ameaças voltaram como forma de desmoralização, por ser uma mulher com comportamentos marginais, perpassando assim ao interesse na manipulação do corpo feminino, por conta de seus benéficos e a desumanização do mesmo corpo, quando ele se torna marginal e não pode render frutos de interesses sociais.

2. O ETIQUETAMENTO SOCIALA teoria do etiquetamento3, começa a ser conhecida em 1960, no Estados

Unidos, se sustenta pelo estudo de fatores de relevância na construção social, que constroem quais os tipos de conduta devem ser aceitos ou não, essa catalo-gação dos comportamentos, cria um padrão aceito e cria a marginalização do ser, tornando-se fundamento do rótulo, rompendo com a análise criminológica de Lombroso que buscava de forma biológica as respostas, agora o que irá rotular é a própria dinâmica social e os comportamento humano.

Um dos fatores indiretos que contribui e alimenta a teoria é a construção social, iniciada pela família, logo após o colégio ou contato educacional, até que chega às próprias relações sociais incluídas nas mais diversas dinâmicas e cada ser se define devido a sua construção. Segundo Artur Ramos4, essa construção do eu

3 Também conhecida como labelling approach, na língua inglesa, geralmente utilizada em análises criminológicas.4 indivíduo dentro dos seus padrões sociais, vive em sociedade, como membro do grupo[...] A própria cons-

ciência da sua individualidade, ele a adquire como membro do grupo social, visto que é determinada pelas

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e a interação com os outros é que faz com que o eu se torne sujeito nas relações, sendo assim sua interação diz se ele será um sujeito central ou marginal no com-portamento social em que vivi.

Sobre as interações sociais e obstáculos Mariângela Gentil Savoia5, discorre que, quando o indivíduo não corresponde com o outro social da forma que a dinâmica pressupõe, a interação torna-se comprometida, assim começa uma se-paração dos seres dentro de uma mesma sociedade, que acarreta diretamente na rotulação do outro, que se torna estranho aos padrões.

Para Alessandro Baratta6 a sociedade se configura pela construção social, a forma como se organiza, se relaciona e cria suas normas vai delineando o que seria a conduta padrão e a marginal, é a dinâmica social que cria os limites e diz o que é considerado com certo e errado, essa construção cria inicialmente abismos e violências simbólicas até a ordem fática.

A criação de rótulos não fica entranhada só no indivíduo, mas na sociedade e no sistema, que torna-se fatores mantenedores desses rótulos, criando abismos ainda maiores entre o indivíduo e o social.

2.1 O ETIQUETAMENTO DA MULHER Em primeiro lugar o etiquetamento de Geni não pode ser desvinculado a

mulher que ela representa, o que cria um preconceito e um rótulo maior, tendo em vista que ela não se comportava segundo o padrão esperado, que se restringia ao privado e oculto.

A maioria das principais civilizações ocidentais que tem como berço ca-racterísticas filosóficas da Grécia, carregavam alguns conceitos sobre o que é ser mulher, para os gregos a mulher não entrava no rol do cidadão, ela era um ser sem voz, essa repercussão foi se desdobrando e perpetuando ao longo da história das civilizações, distinguindo o espaço para homens e mulheres na sociedade, com o passar dos anos a ideia de que a mulher não era cidadã mudou, ela passou a ser reconhecida, porém para elas restou os ofícios da casa, cuidados com o marido e a criação dos filhos, a vida privada e de submissão.

relações entre o “eu” e os “outros”, entre o grupo interno e o grupo externo.( RAMOS, 2003, p. 238)5 objetivo aquilo que os outros esperam de nós, ou subjetivo, como cada indivíduo assume os papéis de modo

mais ou menos fiel aos modelos vigentes na sociedade. Quando esses dois aspectos não coincidem, podem transformar-se em obstáculo na interação social (SAVOIA, 1989, p.57)

6 segundo o interacionismo e a etnometodologia, estudar a realidade social (por exemplo, o desvio) significa, essencialmente, estudar estes processos, partindo dos que são aplicados a simples comportamentos e chegan-do até as construções mais complexas, como a própria concepção de ordem social (BARATTA, 1999, p.87)

rEBECa DE Souza viEira 357

Simone Beauvoir7 discorre sobre a violência que é recusar a mulher a vida pública, querendo ensiná-la que é inútil para as relações além dos cuidados e gera-ção de filhos, embora não seja uma atividade menosprezada, oficiar que a criação dos filhos é obrigação da mulher e que deve ser sob os moldes do patriarcado, além de atribuir a função, é o respaldo para uma suposta culpabilização dela nos casos de filhos com condutas desviantes ou não padronizadas, não dividindo com ela a responsabilidade com os filhos.

A maioria das construções sociais se desdobram em reafirmar essa cultura, desde a socialização primária com as diversas violências simbólicas, como as cores que deve usar, os tipos de roupa e a forma de se comportar, sendo podada desde sua infância, criando condicionamentos e barreiras para a mulher, que acaba por ser uma forma de manipulação de suas ações e instrumentalização, ensinando a mulher a se submeter a condições degradantes para que se sinta parte, desejada e aceita.

Com o passar dos anos a mulher ganhou voz, principalmente as que ti-nham recursos financeiros, em algumas sociedades indígenas ditas como primitiva as mulheres tinham visibilidade e papéis sociais para além da criação dos filhos.

Após o período pós segunda guerra mundial, as mulheres tomaram o mer-cado de trabalho, por conta das condições econômicas e sociais, mesmo ganhando menos e trabalhando mais que os homens, elas continuaram a resistir e ganharam mais visibilidade, maior espaço de interação na dinâmica social e mesmo assim ainda sofreram e sofrem diversos preconceitos.

Pierre Bourdieu8 na palestra sobre o discurso oficial, que foi transformado em livro, ele aborda a manipulação do homem sob a mulher no discurso, ao passo que a mulher tem uma voz privada, ela é instrumentalizada para dizer o que é público para que o homem que irá ser beneficiado.

2.2 O ETIQUETAMENTO DE GENI Geni por ser mulher, segundo o pensamento social deveria se restringir ao

privado, aos bastidores que são reservado às mulheres, ela era etiquetada como a mulher que não respeitava seu próprio corpo, por isso, a sociedade se achava no

7 É um paradoxo criminoso recusar à mulher toda atividade pública, vedar-lhe as carreiras masculinas, procla-mar sua incapacidade em todos os terrenos e confiar-lhe a empresa mais delicada, mais grave que existe: a formação de um ser humano. Há muitas mulheres a quem os costumes, a tradição recusam ainda a educação, a cultura, as responsabilidades, as atividades que são privilégio dos homens e a quem, no entanto, entregam sem escrúpulos os filhos, como outrora as consolavam com bonecas de sua inferioridade em relação aos meninos; impedem-nas de viver; em compensação, autorizam-nas a brincar com brinquedos de carne e osso.( BEAUVOIR, 1980, p.291)

8 Nas situações embaraçosas, o homem faz sua mulher dizer o que ele não pode dizer dizer; lembra aos amigos, discretamente, os prazos: “Minha mulher está impaciente...”. (BOURDIEU, 2014, p.115)

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direito de ameaçá-la, pois para eles se ela não usa-se seu corpo segundo o padrão social, ele era um corpo alheio a toda e qualquer forma de respeito.

O segundo rótulo que Geni carrega é relacionado a escolha das pessoas que ela se relaciona, como eram os marginais e inferiores diante do centro da socieda-de, a vinham como uma mistura de os seus amantes e por isso o espanto quando o Comandante achou beleza e desejo em Geni.

Um rótulo temporário era o título de bendita, que foi criado quando surgiu o interesse do homem nobre que comandava o zepelim, em passar uma noite com ela para que a cidade tivesse uma forma de se redimir pelas transgressões, nesse momento todos os rótulos negativos são esquecidos para que a manipulação do corpo de Geni fosse em pró de um dito bem maior.

3. OS DIREITOS HUMANOSOs direitos humanos ganham força no fim da segunda guerra mundial,

por conta das diversas atrocidades que foram feitas nesse período, para Norber-to Bobbio9 os direitos humanos são uma classe variável, que se modifica com a estrutura social, contexto e outros aspectos de influência, para a ONU10 eles são inerentes a qualquer pessoa independente se sua condição, gênero, classe, dentre outras características.

Uma das características é a universalidade, que atinge a todos; outros as-pecto é a aplicabilidade plena, não sendo mitigado, perpassando por todas as relações; são indivisível, eles formam um conjunto, não podendo ter aplicação isolada; em regra não decaem com o tempo, são inalienáveis, irrenunciáveis e em regra não se pode retroceder para limitá-los.

Eles não são contemporâneos, pois já haviam vários tratados, declarações e outros instrumentos que asseguravam os direitos humanos, porém com algumas limitações, quando eles são pensados no período pós guerra, é para que atinjam a todos de forma universal com isso o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948. Para Flávia Piovesan11, a declaração tem o objetivo de dignificar as relações humanas, trazer a igualdade para as relações

9 Os direitos do homem” constituem em uma classe variável, que se modifica de acordo com a transmutação dos contextos históricos, sendo fruto das necessidades e interesses das classes no poder, das evoluções tecno-lógicas etc. (BOBBIO. 1909, p. 12)

10 Direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outro status.(ONU, 2018)

11 Objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito a dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. [...] Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos (PIOVESAN, 2013, p. 206)

rEBECa DE Souza viEira 359

humanas e outro direitos fundamentais, além de garantir que o simples fato de ser uma pessoa, independente de suas condições, gênero, raça e etnia, já assegura o direito de ser tratado conforme os parâmetro da DUDH.

3.1 PRINCÍPIO DA LIBERDADE Na Declaração Universal Dos Direitos Humanos(DUDH) a liberdade fica

discriminada no artigo 1°, porém na análise dos demais artigos, elas está destrin-chada em cada um deles, podendo assim, ser expressa de diversas formas, como por exemplo: a liberdade de ir e vir, que garante o trânsito livre; ou a liberdade de se expressão, que toca no cerne da forma de comunicação que pode ser oral, es-crita, dentre outras; ou pode ser a de pensar, cada pessoa pensa o mundo segundo suas construções sociais e ideológicas, por mais que a sociedade tente controlá-la, a pessoa tem autonomia para dirigir seus pensamentos; dentre outras formas de manifestação da liberdade.

Para Thiago Ruiz12 existe a liberdade interna, que é subjetiva e a externa que é objetiva. A autonomia se caracteriza como a palavra central para todos os sen-tidos de liberdade, o que modifica a liberdade é onde ela será aplicada. O Estado tem o poder de limitar essa autonomia, no sentido do bem comum, para garantia da harmonia e uma maior pacificação social, essa iniciativa do Estado se justifica do ponto em que as pessoas concordam em ceder partes das suas autonomias para o bem comum, mesmo assim este ato de ceder conscientemente consiste em um tipo de liberdade e não deve permitir que o Estado limite ela de forma arbitral e preconceituosa.

3.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE O princípio da igualdade vem elencado em conjunto com o da liberdade,

no artigo 1º da DUDH, e da mesma forma é destrinchada nos outros artigos. Se for feita uma analogia a liberdade e a igualdade são como as lentes para promover os demais direitos.

A igualdade se dá de diversas formas como: de gênero, não devendo haver a distinção entre homens e mulheres; de cor, etnia e raça, devendo assim ser banida a prática de racismo e supremacia de cor; a judicial, vista como a paridade entre

12 A liberdade pode ser distinta pela seguinte dicotomia: liberdade interna e liberdade externa. A primeira é subjetiva, a liberdade moral, “é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no mundo interior do homem”, a outra liberdade é objetiva, e consiste na reprodução externa do querer pessoal, é a liberdade de poder fazer, mas esta liberdade “implica o afastamento de obstáculo ou coações, de modo que o homem possa agir livremente”. (RUIZ. 2006, p.144)

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armas, uma vez que o poder judiciário precisa tratar os desiguais na medida de suas desigualdade.

Para tanto, Paulo Singer13 arguiu sobre os direitos humanos como ponte para a igualdade diante da sociedade e do Estado democrático, oportuniza a cada um o uso da sua cota parte diante das relações, uma vez que todos são tratados de forma igualitária, o ideal é que por mais que diferentes cada pessoa seja oportu-nizada e tratada de maneira isonômica, independente de suas escolhas pessoais, sendo elas padronizadas ou marginais.

3.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADEO direito a dignidade é inerente a todo o ser humano, mesmo que ele não

tenha noção de tal direito, segundo Oscar Vieira14 é um princípio que age na pro-teção da pessoa como um fim em si mesmo, diz respeito à forma como ela quer ser tratada, independentemente do seu contexto social, ela pode se expressar de diversos modos, se a liberdade e igualdade são as lentes, a dignidade é a armação do óculo dos direitos humanos, sem ela o ser não consegue se identificar como detentor de direitos.

Ela está estritamente ligada ao respeito, quando uma pessoa percebe sua dignidade ela busca que as outras ao seu redor correspondam a sua noção do que é digno, seja concedendo cargos superiores, seja permitindo que a pessoa seja livre nas suas escolhas, criando uma forma de dizer, que independente do ponto de vista do outro, eles desejam ser tratados de forma respeitosa nos ambientes sociais.

Para Flávia Piovesan15 quando não se está garantindo o direito a dignidade, é necessário que reconstrua-se a dinâmica social, pois ignorar a dignidade é tornar o ser insignificante e lutar contra a própria natureza humana.

3.4 OS DIREITOS HUMANOS E O ETIQUETAMENTO FEMININOO etiquetamento é uma forma de violação aos direitos humanos, pois tira

da mulher suas características como ser possuidor de direitos e atribui a ela ações,

13 A conquista dos Direitos Humanos é parte essencial de uma conquista maior, [...] A base da democracia, nesta acepção, é o reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos que formam uma dada sociedade. Paul Singer (SINGER. 2009, p. 15)

14 O princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no imperativo categórico de Kant, refere-se substanti-vamente à esfera de proteção da pessoa enquanto fim em si, e não como meio para a realização de objetivos de terceiros.(VIEIRA, 2006, p 67-68)

15 No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessário a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético de restaurar a lógica do razoável.” (PIOVESAN, 2006, p.13)

rEBECa DE Souza viEira 361

comportamentos não padrões e desumanos, que gera diversas consequências, como a violência simbólica e fática. Ao modo que os direitos humanos, são a for-ma universal de se combater o etiquetamento e a instrumentalização das mulheres e de seus corpos, pois uma vez reconhecido seus direitos, toda conduta que vá de encontro torna-se desviante.

3.4 OS DIREITOS HUMANOS E GENI A Geni foi cumulado todos os tipos de mazelas do ser, sendo desumaniza-

da, por trazer para o público tudo que deveria ser, segundo à sociedade, feito no âmbito privado, vista apenas como um instrumento, seu corpo era hostilizado quando de forma resistente tentou expressar sua vontade.

Ela não podia gozar da liberdade de ser aceita por torna-se amante de quem não interagia segundo os padrões da dinâmica social, sua forma de conduzir seus caprichos era a única maneira de resistência, mas mesmo assim teve que abrir mão quando o comandante quis se deitar com ela.

No momento em que ela abre mão da sua liberdade para salvar a cidade, é aceita temporariamente pela sociedade. Ficando evidente que a subordinação da liberdade de Geni não passou de uma instrumentalização da falsa moral, pois para o benefício de todos a mulher poderia ser pública.

Geni é julgada por ser uma mulher pública, porém em nenhum momento as pessoas que ela se relacionava, inclusive o nobre comandante foi hostilizado por sua vida sexual, somente ela era alvo dos ataques, mostrando assim que quando há uma sociedade contornada por preconceitos o princípio da igualdade não permeia as relações e discussões.

Levando em consideração a analogia feita anteriormente de que a digni-dade é a armação da tríade de princípios, quando eles são distorcido e violados a dignidade deixa de se manifestar, Geni nem mesmo quando foi bendita entre o povo foi realmente dignificada, pois além de abrir mão de sua vontade, ela sabia que o povo só a clamava, porque estava em suas mão o destino da cidade e não por quem ela era.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Sendo a arte uma forma de manifestação da sociedade, dela consegue-se ex-

trair diversos fatores e aspectos sociais, mesmo que este não seja o seu foco inicial. Nesta análise ao estudar Geni, que não se comporta diante do esperado para uma

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moça, que se entregava aos mais marginalizados e é hostilizada quando dispõem do seu próprio corpo, sendo possível vislumbrar como a sociedade ver e tratar a mulher que não se submete aos seus domínios.

Tendo assim, uma sociedade que manipula não só o corpo feminino, como a aplicação dos direitos inerentes a pessoa humana, para que funcionem em seu próprio benefício, não permitindo a liberdade de escolha, a igualdade no trato social, sendo também rotulada como desviante, quando não está submetida aos padrões e sendo transformada em indigna, sendo reduzida de forma simbólica e fática a um ser sem humanidade, que pode sofrer as mais diversas formas de manipulação.

DIREITO DA MULHER À NÃO VIOLÊNCIA E FEMINEJO: O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA OBRA DE SIMONE & SIMARIA

Veyzon Campos Muniz 1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS“Na música você pode fazer o que que quiser”, afirmou Simaria em entrevista.

É inequívoco que a música é uma forma de expressão artística que, em plano in-dividual, enseja sentimentos e extravasa emoções. Mas também, em plano social, é um poderoso instrumento de manifestação de pensamento que pode acarretar críticas sociais, denúncias políticas e reflexões jurídicas.

Destarte, debruça-se sobre a música sertaneja contemporânea brasileira que, com suas produções femininas recentes, vem contribuindo para o empoderamento de mulheres e alertando para realidades latentes na sociedade, tal como a necessida-de de erradicação da violência doméstica e familiar. Assim, a partir da obra musical da dupla Simone & Simaria, em especial as canções “Ele Bate Nela” e “Amor Que Dói”, evidencia-se a importância do arcabouço normativo protetivo à mulher em situação de violência doméstica e familiar e de seus instrumentos (com destaque às medidas de proteção) para concluir, por conseguinte, a relevância da música como agente de transformação social, especialmente na promoção dos direitos humanos.

2. FEMINEJO COMO EXPRESSÃO CULTURAL DE IGUALDADE DE GÊNERO

A música sertaneja, como bem leciona Edvan Antunes, é um gênero musi-cal produzido no Brasil, a partir das décadas de 1910 e 1920, inicialmente em zo-nas rurais e pouco urbanizadas, que, atualmente, tornou-se o estilo musical mais popular do país.2 Nos 1980, verificou-se uma expansão comercial do sertanejo, o que se sucedeu, a partir de 2000, em um movimento popular massivo.

1 Doutorando em Direito Público pelo Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Mestre e Bacharel em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Público (UCS/ESMAFE-RS) e em Direito Tributário (UNIP). Ad-vogado, jornalista e servidor público. Técnico na Defensoria Pública Especializada em Atendimento à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected].

2 ANTUNES, Edvan. Decaipiraauniversitário:ahistóriadosucessodamúsicasertaneja. São Paulo: Matrix, 2012.

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Com o avanço do referido subgênero “sertanejo universitário”, caracterizado pela mistura do sertanejo com a música brega e o arrocha, diversas artistas femini-nas conquistaram espaço no mercado musical mainstream. “As mulheres passaram a poder dizer e fazer as mesmas coisas que antes eram cantadas pelos homens do sertanejo”3, afirmando que o fato de que o olhar feminino passou a partilhar de pro-tagonismo em suas canções que, essencialmente, auxiliam na superação das “origens agrárias e, às vezes, machistas de todos os gêneros [musicais] nascidos no campo”.

Nessa linha, filia-se a ideia de que:A música atua humanizando demandas e decepções afetivas, carnavalizando tabus e atuando como espaço de luta por igualdade, ainda que não declarada. Nesse sentido, esse gênero musical, que surgiu recentemente no Brasil e conquistou a simpatia dos diferentes estratos sociais, incluindo os populares, parece caminhar em direção a uma práxis libertadora, uma vez que a arte influencia as re-presentações sociais das pessoas.4

Tanto o paradigma normativo de igualdade de gênero (v. Constituição Fe-deral, artigos 3º, IV, e 5º, I) quanto o objetivo de desenvolvimento sustentável proposto pelas Nações Unidas (v. ODS-5)5, com o fenômeno musical do sertane-jo universitário feminino (feminejo) ganhou especial e justo destaque na cultura popular. A representatividade das artistas femininas, nesse sentir, tanto induz acei-tação do protagonismo e da condição humana das mulheres pelo público mascu-lino, quanto promove na audiência feminina o empoderamento:

[...] enquanto categoria, [que] perpassa noções de democracia, direitos humanos e participação, mas não se limita a estas. É mais do que trabalhar em nível concei-tual, envolve o agir, implicando processos de reflexão sobre a ação, visando a uma tomada de consciência a respeito de fatores de diferentes ordens – econômica, política e cultural – que conformam a realidade, incidindo sobre o sujeito. Neste sentido, um processo de empoderamento eficaz necessita envolver tanto dimensões individuais quanto coletivas.6

Fato é que a verificação concreta da aludida indução, sobremaneira em di-mensão coletiva, se opera inequivocamente com a audição do feminejo. Canções

3 LIMA, Juliana Domingos de. Oqueéo‘feminejo’?Equalolugardasmulheresnahistóriadamúsicasertaneja. (Entrevista com FERREIRA, Gustavo Alonso). Disponível: http://www.nexojornal.com.br/ex-presso/2017/01/14/O-que-%C3%A9-o-%E2%80%98feminejo%E2%80%99.-E-qual-o-lugar-das-mulheres--na-hist%C3%B3ria-da-m%C3%Basica-sertaneja. Acesso: 10 mar. 2018.

4 SCHWARTZ, Germano André Doederlein; GONÇALVES, Vanessa Chiari; COSTA, Renata Almeida da. A arte popular como movimento social: uma interlocução entre o gênero musical feminejo e os feminismos. Revista de Direito Brasileira, v. 22, n. 9. Florianópolis, 2019.

5 ONU. Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (2015). Disponível em: http://nacoesunidas.org/pos2015/cupula/. Acesso em 17/03/2020.

6 BAQUERO, Rute Vivian Angelo. Empoderamento: instrumento de emancipação social? – uma discussão conceitual. Revista Debates, v. 6, n. 1. Porto Alegre, 2012.

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como “Loka”, “Chora Boy”, “Meu Violão e Nosso Cachorro” e, especialmente “Ele Bate Nela” e “Amor Que Dói”, fazem da obra da dupla Simone & Simaria exemplo significativo de um sertanejo feminino empoderado e comprometido com o direito humano à não violência.

3. REFLEXÕES DE GÊNERO NA PRODUÇÃO MUSICAL DE SIMONE & SIMARIA

As irmãs baianas Simone Mendes Rocha Diniz e Simaria Mendes Rocha Escrig formaram em 2012 a dupla também conhecida como As Coleguinhas, após deixarem a banda Forró do Muído. Em 2017, com 773.242 mil execuções, a parceria entre elas e a cantora Anitta, “Loka”, foi uma das músicas mais executa-das nas rádios de todo Brasil. No ano seguinte, as cantoras passaram a integrar a bancada de jurados da competição musical The Voice Kids da Rede Globo de Te-levisão ganhando ainda mais notoriedade. Na referida canção podem ser ouvidos os seguintes versos:

Cadê você? Onde se escondeu? Por que sofre se ele não te mereceu? Insiste em ficar em cima desse muro Espera a mudança em quem não tem futuro Deixa esse cara de lado Você apenas escolheu o cara errado Sofre no presente por causa do seu passado Do que adianta chorar pelo leite derramado Põe aquela roupa e o batom Entra no carro, amiga, aumenta o som

A narrativa da música composta por Kayky Ventura, Rafinha, Simone e Sima-ria, na qual uma mulher ajuda outra mulher a superar um relacionamento abusivo indubitavelmente conquistou o país. A ideia de sororidade, como bem qualificam Márcia Regina Becker e Carla Melissa Barbosa como “a solidariedade entre irmãs e harmonia entre as mulheres [...que] ocupa um lugar central como ferramenta para a construção dessa nova identidade e, por conseguinte, da desconstrução da identida-de feminina tradicional”7, passa a estar presente nos lares brasileiros.

Na mesma linha, na canção “Chora Boy”, composta por Tierry Coringa, gravada pela dupla em 2016, apresenta-se narrativa de emancipação feminina frente a uma ação masculina potencialmente opressora, nos seguintes termos:

7 BECKER, Márcia Regina; BARBOSA, Carla Melissa. Sororidade em Marcela Lagarde y de los Ríos e ex-periências de vida e formação em Marie-Christine Josso e algumas reflexões sobre o saber-fazer-pensar nas ciências humanas. Coisas do Gênero, v. 2, n. 2. São Leopoldo, 2016.

Tá pra nascer Alguém que manda em mim Que possa me impedir de ser feliz Tá pra nascer E não vai ser você Sou vacinada e mando em meu nariz

A temática de gênero na perspectiva das assimetrias e iniquidades existentes entre homens e mulheres nas relações afetivas, igualmente, vem à tona na música composta por Nivardo Paz e Simaria “Meu Violão e o Nosso Cachorro”, lançada com grande sucesso em 2015. Narrando o término de um relacionamento amoro-so, mostre-se a mulher com autonomia e independência, senão vejamos:

Pode ficar aqui, sou eu quem vou partir O que a gente construiu não é preciso dividir Fizemos tantos planos, compramos tantas coisas Mas o amor é longe disso Precisamos de um tempo em relação a nós dois Depois decidimos o final, espero que seja um final feliz Se o nosso amor se acabar eu de você não quero nada Pode ficar com a casa inteira e o nosso carro Por você eu vivo e morro Mas dessa casa eu só vou levar Meu violão e o nosso cachorro

Nota-se na produção musical de Simone & Simaria uma trilha de reflexões atinentes ao gênero sob uma precisa lente feminina. Como bem salienta Eva Blay, em oposição ao machismo e a misoginia (muito presente na sociedade e música sertaneja brasileiras), “[…] mulheres resistem a esses paradigmas e, ao questioná--los, buscam valores e comportamentos igualitários, e não hierárquicos”8.

4. “ELE BATE NELA” E “AMOR QUE DÓI”: CANTANDO O DI-REITO DA MULHER À NÃO VIOLÊNCIA

“Ele Bate Nela”, lançada em 2014 e composta por Dilauri, Simone e Sima-ria, ganhou um vídeo que conta com aproximadamente 66.300.385 visualizações e 700.000 likes na plataforma YouTube. No contexto da carreira da dupla, ela emerge como uma verdadeira canção-denúncia acerca de uma das problemáticas de gênero mais sensíveis em nível interno e internacional, qual seja: a violência doméstica e familiar contra a mulher. Cantam As Coleguinhas:

8 BLAY, Eva Alterman. Violência conta a mulher: um grave problema não solucionado. In: Feminismos e mascu-linidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

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Era uma moça Uma moça muito especial Que namorava um cara Que também parecia ser especial Ele demonstrava Ser um homem diferente Mesmo com sua gentileza Não conquistou a família da gente E ele demonstrava amor E jurava que nunca te enganou Que seria sempre um anjo na vida dela Que nunca maltrataria ela E ela confiou E entregou todo o seu amor E esse cara com um tempo A sua mascara quebrou E agora ele bate, bate nela E ela chora Querendo voltar pros braços de sua mãe E agora Eu tô sem saída E se eu for embora Ele vai acabar com a minha vida Quanta dor eu sinto no meu peito Devia ter feito as coisas direito Oh, Deus me tire desse sofrimento Porque viver assim eu não aguento Só quero ser feliz

Seguindo a narrativa de uma mulher que sofre agressões praticadas por seu companheiro, a música desnuda o fenômeno da violência contra a mulher, especificamente no âmbito das relações domésticas e familiares, que, como iden-tifica Lenore Walker9, possui um caráter cíclico. Em casos reais como o descrito, observa-se um período inicial de crise, no qual os conflitos surgem e se intensifi-cam, seguido de uma fase em que a tensão se torna aguda, chegando a agressões mais graves, passando para uma fase de lua de mel, onde o arrependimento e a culpabilização da vítima e manifestações de masculinidade tóxica podem apare-cer. Empiricamente, após o período de eventual tranquilidade, sem a intervenção adequada, a fase inicial é retomada.

9 WALKER, Lenore E. The Battered Woman Syndrome. Nova Iorque: Harper and Row, 1979.

Esse ciclo de violência fica ainda mais nítido no vídeo oficial da música10, que, oportunamente, se encerra com a mensagem explícita de incentivo a denún-cias dos atos de violência doméstica através do Ligue18011. Trata-se de uma peça audiovisual explícita dessa revoltante e lamentável violação de direitos humanos.

“Amor Que Dói”, composta por Pablo Bispo, Sérgio Santos, Ruxell e Winnie, por sua vez, foi lançada em 2019, como ação da campanha #vctemvoz da Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência Repúbli-ca. Com um vídeo que conta com cerca de 3.278.880 visualizações e 204.000 likes na plataforma YouTube12,, apresentam-se importantes dados públicos: “A cada hora, 536 mulheres são vitimas de agressão física. No último ano [2018], 66% das mulhe-res sofreram algum tipo de assédio.”. O que se segue ao som da canção:

Por muito tempo eu fiquei calada Mesmo vivendo tanta coisa errada Um pesadelo que não tinha fim Sempre era assim E essa rosa agora não adianta nada Mais uma vez, sua desculpa não apaga As marcas dessa dor Que você deixou E a gente não se olha mais do jeito que se olhava Você não toca em mim do jeito que você tocava Amor que dói Não é amor, não, não, não, não E a gente não se ama mais do jeito que se amava Você não toca em mim do jeito que você tocava Amor que dói Que cala a voz, não é amor Eu não calo a minha voz Vou gritar por todas nós Eu não calo a minha voz Não Eu não calo a minha voz Se for preciso, vou gritar por todas nós Eu vou deixar meu coração falar Saber que eu me amo e não vou me calar Se atinge uma, atinge todo mundo Machuca uma, machuca todo mundo…

10 Disponível em: http://youtu.be/OPri7ITkh-8.11 Ligue 180 é um canal telefônico direto e gratuito de orientações sobre direitos e serviços públicos para a população

feminina em todo o país, desenvolvido originalmente pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em 2005, e atualmente gerido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

12 Disponível em: http://youtu.be/6JDaygqls3k.

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Outrossim, sob os paradigmas da universalidade do fenômeno e da ne-cessidade global de seu enfrentamento e erradicação, elidiu-se um sistema espe-cial de proteção aos direitos da mulher composto por documentos internacionais destinados à proteção de direitos humanos das mulher em condição de vulnera-bilidade13, com destaque à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e à Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim, que constituem relevantes instrumentos à consolidação do di-reito humano da mulher a não violência na ordem jurídica internacional – como implicitamente propugnado em “Amor Que Dói”.

Em plano interno, a Lei 11.340/2006, na esteira da normatização suprana-cional, estabelece mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O artigo 5º da Lei Maria da Penha14 é claro ao afirmar que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico ou dano moral ou patrimonial no âmbito doméstico, no seio familiar ou em qual-quer relação íntima de afeto – como explicitamente descrito em “Ele Bate Nela”.

Oportunamente, Aluísio Ré aduz que o espírito da aludida norma:[...] não privilegia a função repressiva do Estado relativamente ao agressor, mas a proteção física e psíquica da mulher em situação de violência. Não há que se falar em uma relação direta entre o ius puniendi estatal e a aplicação das medidas prote-tivas, pois estas são o meio necessário a evitar um mal maior à vida e à integridade física e psicológica da mulher. A intenção da lei é proteger a mulher, coibindo a violência doméstica, o que, por si só, é suficiente para libertar as referidas medidas do falido sistema processual penal.15

A legislação brasileira entendendo que a erradicação da violência contra a mulher é uma tarefa estatal estabelece a construção de um sistema protetivo inter-no, a semelhança da normatização alienígena. Instrumento principal dessa siste-mática é justamente a aplicação de medidas de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Assim, pontua-se que “é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime; o propósito da Lei Maria da Penha é dar um basta à violência”16.

13 Cf. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.14 Para conhecer a história de Maria da Penha Maia Fernandes (1945-), mulher que inspirou o nome popular da

Lei 11.340/2016 recomenda-se a leitura de: PENHA, Maria de. Sobrevivi... Posso contar. Fortaleza: Arma-zém da Cultura, 2010.

15 RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Manual do Defensor Público: teoria e prática. Salvador: JusPodivm, 2016.16 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Nas situações concretas, tais determinações mandamentais de proteção que asseguram a mitigação do sofrimento e a garantia fundamental de segurança à ví-tima, verificada a realidade fática ou jurídica das condições da mulher que pugna pela intervenção da rede de proteção estatal. Fato é que “toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos sobre os direitos humanos” (v. Con-venção de Belém do Pará, artigo 4º), sendo fundamental asseverar que “enquanto perdurar a necessidade vivenciada pela vítima, necessária é a manutenção das me-didas protetivas”17.

Logo, deve-se compreender e respeitar que a proteção especial interna e ex-terna com vista a assegurar a integridade física, moral, patrimonial, psíquica e mo-ral das mulheres constituem um direito humano a não violência, bem como um direito fundamental à dignidade humana feminina especificamente qualificada. A igualdade de gênero que, na dicção da ONU18, compreende a erradicação da violência doméstica, é um componente indispensável para que em um ambiente se possa afirmar desenvolvimento sustentável.

Sucedendo e atualizando os objetivos de desenvolvimento do Milênio (ODM), nos quais já se inseria alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas, quando da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvol-vimento Sustentável, em setembro de 2015, adotaram-se os Objetivos do De-senvolvimento Sustentável – ODS19 como forma de planejamento estratégico na orientação das políticas estatais e das atividades de cooperação internacional na agenda 2015-2030, de modo a, essencialmente, possibilitar às mulheres recursos que a amparassem contra a violação de seus direitos fundamentais em plano inter-no – garantindo, por conseguinte, a felicidade pugnada na canção.

17 CORRÊA, Lindinalva Rodrigues; CAMPOS, Amini Haddad. Direitos humanos das mulheres. Curitiba: Juruá, 2009.

18 ONU. Discriminação contras as mulheres. Ficha informativa sobre direitos humanos, n. 22, rev. I. Gene-bra: ONU, 2004.

19 O ODS nº 5 informa: 5.1. Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte; 5.2. Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3. Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas; 5.4. Reco-nhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais; 5.5. Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; 5.6. Assegurar o acesso universal à saúde sexual e repro-dutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS“Não se cale. Denuncie.” é a recomendação dada por Sinome & Simaria

ao término de ambos os vídeos oficiais de suas músicas antes referidas, o que demonstra claramente a intenção da dupla de atentar à triste realidade de tantas mulheres que sofrem violência dentro de suas próprias casas, com sororidade e responsabilidade social. Segundo dados do Instituto Maria da Penha, a cada dois segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil e, justamen-te, buscando sensibilizar a sociedade para a necessidade de mudança desse estado de coisas que a referida canção é constituída.

Portanto, em consonância com o sistema especial de proteção aos direitos da mulher, alicerçado em diplomas jurídicos internos e externos, a música serta-neja feminina rende, como se observa no acervo musical de Simone & Simaria, contributos inegáveis às ideais de empoderamento e representatividade femini-nos. Tal produção demonstra a relevância do debate de gênero na sociedade, assim como, em relação ao enfrentamento à violência doméstica e familiar, revela-se como bem-sucedido instrumento de denúncia, induzindo assim um avanço na promoção dos direitos humanos das mulheres.

AGORA É QUE SÃO ELAS: O FEMINEJO E O PROTAGO-NISMO DAS MULHERES NO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO

Manuela Aguiar Damião de Araújo1

Neste breve ensaio apresento a análise de uma canção sertaneja universi-tária intitulada de folgado2, interpretada e compostas por Marília Mendonça a fim de estudarmos o protagonismo feminino (Feminejo) que em 2016 dividiu as paradas de sucesso com as duplas masculinas nas rádios brasileiras. A esco-lha dessa canção tem relação com a história da compositora e intérprete ter inaugurado, juntamente com outras duplas femininas como Maiara & Maraisa e Simone & Simaria, a participação em um gênero musical dominado pelas duplas masculinas. Ao cantar suas próprias composições, questionou o modelo de mulher, apenas como mãe/ esposa, colocou o feminino em bares, em baladas e elaborou composições que reclamava do namorado folgado assim como da traição masculina.

A escolha dessa composição de Marília Mendonça, veio a partir da no-toriedade que o Feminejo teve depois do lançamento do seu DVD intitulado Marília Mendonça Ao vivo, produzido em 2015, e disponibilizado para o pú-blico brasileiro em Março de 2016. Com 17 faixas, suas canções apresenta-vam desde sua reclamação ao cupido, por só lhe enviar desilusões amorosas como, também, um companheiro Infiel que foi mandado embora para a casa da amante. Essa última canção, especificamente, alcançou o terceiro lugar3 nas paradas de sucesso juntamente com Wesley Safadão e Maiara & Maraisa. Nascida em Goiana de Cristianópolis em 1995, começou a cantar na Igreja. Aos 12 anos, já compunha e, a partir de 2009, suas composições alcançaram duplas como Henrique & Juliano, Jorge & Mateus, João Neto & Frederico e Fred & Gustavo.

Como intérprete, ganhou o título de Rainha da sofrência por misturar so-frimento e carência nas suas composições. Em 2017, apresentou Marília Mendon-ça Realidade - Ao vivo em Manaus e, a partir daí, passou a fazer 15 shows por mês,

1 Professora de História da Universidade Estadual da Paraíba, Campus III. Doutora em Literatura e Intercultu-ralidade.

2 Canção: Folgado. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Juliano Tchula/ Marília Mendonça/ Vinícius Poe. Álbum: Marília Mendonça Ao vivo em Goiânia. Ano: 2016.

3 Diponível em:. https://www.connectmix.com/ranking/#/. Acessado em 19 de Junho de 2019

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ganhou o troféu imprensa4 e o troféu da internet5 como artista revelação do ano e melhor cantora. Em 2018 lançou o seu projeto intitulado Agora é que são elas6 em parceria com Maiara & Maraisa e ao longo do ano apresentou nove músicas inéditas. A primeira a ser divulgada foi a canção A culpa é dele7, lançada no dia das Mulheres, em 8 de Março de 2018, e figurativizou (TATIT, 2014) a amizade entre elas e o masculino como um qualquer que não respeitava as mulheres ao dar em cima da sua melhor amiga. O vídeo alcançou, em de 14 de março de 20188, mais de 7 milhões de visualizações e ganhou notoriedade por tematizar a presença fe-minina na balada, que some com um cara e se culpa diante da amiga sobre tal ato.

Daí em diante, o que assistimos foi a curiosidade em torno do feminino que cantava e se expressava em canções que desafiavam a cultura do masculino nesse gê-nero musical. E uma dessas repercussões foram as inúmeras reportagens que passa-ram a fazer parte do campo musical tanto em blogs quanto em sites que abordavam a temática. Elas cantavam sobre o universo feminino e estavam enviando respostas diretas ou indiretas para os homens e questionando sobre relacionamentos afetivos. O furor em torno delas em 2016 repercutiu quando as figurativizações, nas suas canções, alcançaram públicos que passaram a interagir pelas redes sociais e shows, validando a proposta do Feminejo, ou seja, o protagonismo feminino.

Por isso, em entrevistas, perguntas e curiosidades, vimos, nesse ano, man-chetes como: mulheres quebram barreiras e ganham voz no sertanejo9; Nova onda de mulheres invadem o sertanejo e alcança as paradas 10; Mulheres conquistam espaço na música sertaneja 11; A história dos gêneros e estilos musicais 12; mulheres dominam o universo da música sertaneja no Brasil em 2016 13; feminejo e o lugar das mulheres

4 O troféu imprensa de 2017 foi a 56ª edição do evento que é promovido pela emissora de televisão SBT. Neste ano de 2017, foram premiados os melhores artistas do ano de 2016. Com votação realizada por aqueles que fazem parte da imprensa brasileira, o prêmio foi transmitido no dia 9 de Abril de 2017.

5 O troféu internet faz parte de uma das categorias do troféu imprensa e conta com a votação pelo meio virtual e popular.

6 O projeto Agora é que são elas é composto pelo volume 1 e 2. Foi lançado na plataforma do Youtube em formato acústico. Diante deste projeto, foi lançado o CD e, logo após, o projeto Festa das Patroas

7 Canção: A culpa é dele. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Marília Mendonça. Álbum: Agora é que são elas, Vol. 2. Ano: 2018. Atualmente (junho 2019) tem mais de 240 milhões de visualizações.

8 Disponível em: https://medium.com/@turbinotorres/feminejo-e-empoderamento-femino-como-as-mulheres--estão-mudando-a-música-sertaneja-no-país-1a5157841375 . Acessado em 18 de Junho de 2019.

9 Disponível em: https://guia.folha.uol.com.br/shows/2017/05/mulheres-quebram-barreiras-e-ganham-voz-no--sertanejo-universitario.shtml Acessado em 30 de Junho de 2018

10 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/musica/nova-onda-de-mulheres-invade-sertanejo-alcanca--as-paradas-18548180 Acessado em 30 de Junho de 2018

11 Disponível em: https://www.gazetaonline.com.br/entretenimento/cultura/2016/07/mulheres-conquistam-es-paco-na-musica-sertaneja-1013958308.html Acessado em 30 de Junho de 2018

12 Disponível em: https://musicanovaemvideo.com.br/a-historia-dos-generos-e-estilos-musicais/ Acessado em 30 de Junho de 2018

13 Disponível em:https://www.metropoles.com/entretenimento/musica/mulheres-dominam-o-universo-da-mu-sica-sertaneja-no-brasil-em-2016 Acessado em 30 de Junho de 2018

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na história da música sertaneja14; 2016 foi o ano das mulheres no sertanejo universi-tário15; As mulheres sertanejas estão dominando as playlists 16 ou, por fim, Infiel foi a música que mais tocou no dia dos namorados de 201617.

Diante dessas ressalvas, o conceito de empoderamento (BERTH, 2018, p. 14) se delineia como um desdobramento dos principais projetos elaborados por Marília Mendonça para a consolidação do Feminejo. Frente à centralidade mas-culina desse gênero musical, suas composições despontaram no cenário brasileiro como respostas às construções historicamente elaboradas para o feminino diante da cultura patriarcal no nosso país que divulgou, desde o século XIX, a educação feminina apenas para o espaço da casa, do marido e dos filhos.

Estudar o Feminejo enquanto uma proposta de empoderamento feminino, recai para o que Joice Berth (2018, p. 14) destacou sobre estar “devidamente mu-nida de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca”. Por isso, ao compor suas canções Marília Mendonça apresentou informações sobre o masculino que foi de fundamental importância para o em-poderamento feminino. Ou seja, diante das práticas sociais construídas para esse público masculino, ela figurativizou nas suas canções “uma postura de enfrenta-mento da opressão para eliminação da situação injusta e equalização de existência em sociedade” (BERTH, 2018, p. 16). Como exemplo disso, a canção Infiel. Essa composição narrou a história da tia de Marília Mendonça que foi traída pelo seu marido. Segundo ela, a maioria das composições foram inspirações, também, de histórias da família e de amigos:

a música infiel, por exemplo, eu compus a partir de uma história de uma tia, que não larga daquele marido sem vergonha. E fiz a música para extravasar a raiva que eu tinha dela ficar com aquele mala18.

Uma das questões ressaltadas por Berth (2018), foi que esse protesto se apresentou como uma atitude criativa para a transformação. Não foi a procura de inversão de papeis, mas um posicionamento político frente às instituições que reforçaram ou perpetuaram a desigualdade de gênero. Assim, as duas composições selecionadas figurativizam esse posicionamento desafiador numa tentativa de des-

14 Disponível em:https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/14/O-que-é-o-‘feminejo’.-E-qual-o-lugar--das-mulheres-na-história-da-música-sertaneja Acessado em 30 de Junho de 2018

15 Disponível em: https://mdemulher.abril.com.br/cultura/2016-foi-o-ano-das-mulheres-no-sertanejo-universi-tario/ Acessado em 30 de Junho de 2018.

16 Disponível em: https://blog.saraiva.com.br/as-mulheres-sertanejas-que-estao-dominando-as-playlists/ Aces-sado em 30 de Junho de 2018

17 https://www.connectmix.com/infiel-hits-mais-tocado-em-2016/ . Acessado em 30 de Junho de 2018.18 NASCIMENTO, Angra & IMPERATRIZ, Imirante. Marília Mendonça conta de onde vem suas inspirações

para compor. Disponível em: < https://imirante.com/namira/imperatriz/noticias/2015/12/16/marilia-mendon-ca-explica-de-onde-vem-suas-inspiracoes-para-compor.shtml> Acessado em 25 de Dezembro de 2018

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montar práticas sociais que foram e, ainda, são reforçadas pelas duplas masculinas do sertanejo universitário. Nesse sentido, o Feminejo se apresenta como um pen-samento crítico da realidade assim como um caminho de construção de capaci-dades femininas em lidarem com situações antes construídas para o masculino, a fim de que observemos o protagonismo dessas mulheres como uma possibilidade de transformação de relações sociais e estruturais de poder.

Assim, em suas canções, o sujeito textual é aquele que figurativiza a mulher como governada pelos seus próprios desejos e expectativas dentro de um relacio-namento afetivo. Seguindo o estudo de Scott (2012) no qual afirmou que, diante das transformações na estrutura familiar brasileira, maior liberdade feminina foram experimentadas, problematizamos essas transformações juntamente com o conceito de relacionamento puro de Giddens (1993). Ou seja, o empoderamento do sujeito textual do Feminejo propõe novas condutas para a vida a dois e divulga o femini-no enquanto construtoras de suas regras num relacionamento caracterizado pela confiança, compromisso, intimidade, integridade e, principalmente, direitos iguais perante seus companheiros. Um desses exemplos se apresenta intitulada Folgado19.

Não venha não Eu vivo do jeito que eu quero, não pedi opinião Você chegou agora e tá querendo mandar em mim Da minha vida cuido eu Deitou na minha cama e quer dormir com o travesseiro

Folgado!

Não venha não Tá querendo pegar no pé, você nunca me deu a mão Eu não sou obrigada a viver dando satisfação Da minha vida cuido eu Tô vendo se continuar assim cê vai morrer solteiro

Eu nunca tive lei E nem horário pra sair nem pra voltar Se lembra que eu mandei você acostumar Tô te mandando embora, melhor sair agora Não vem me controlar

Folgado! Maldita hora que eu chamei você de namorado Imagina se a gente tivesse casado Deus me livre da latada que eu iria entrar Dá um arrepio...

19 Canção: Folgado. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Juliano Tchula/ Marília Mendonça/Vinícius Poe. Álbum: Marília Mendonça ao Vivo em Goiânia, 2016.

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Folgado! Maldita hora que eu chamei você de namorado Imagina se a gente tivesse casado Deus me livre da latada que eu iria entrar Dá um arrepio só de imaginar20

Com mais de 138 milhões de visualizações na plataforma do Youtube, o ví-deo da canção Folgado divulgou de que forma o feminino se ressignificou quanto à construção de sua autonomia em relação ao masculino. Quando apresentou um sujeito textual que delimitou de que forma quer viver com seu parceiro, Marília Mendonça divulgou como os relacionamentos afetivos se transformaram e deu des-taque aos desejos da mulher a partir do que Giddens (1993, p.69) chamou de “rees-truturação genérica da intimidade”. Uma reestruturação que aconteceu na contem-poraneidade no que se referiu às mulheres não aceitarem as dominações masculinas.

Por isso, ela já deixa claro: “não venha não/eu vivo do jeito que eu quero, não pedi opinião/ você chegou agora e tá querendo mandar em mim/ da minha vida cuido eu” . Nesse trecho, a mulher cuidou da sua vida, não quis opinião e, muito menos, alguém mandando nela. Ou seja, “as mulheres não admitem mais a dominação masculina” (GIDDENS, 1993, p. 18). E encontramos a expressão disso quando o sujeito textual disse que tinha seu modo de viver e não admitiu mudar por causa da presença do masculino. Numa experiência de empoderamento, ou seja, de autovalorização e autoafirmação, ela ditou suas regras para seu parceiro que acabara de chegar. Foi, então, o embate com a cultura masculinista. Com essas duas expres-sões na canção (não venha não e da minha vida cuido eu), o sujeito textual indicou uma mudança no seu relacionamento afetivo ao dizer “não” e, principalmente, ex-cluiu da sua vida aquele homem que ficava pegando no seu pé.

Quando nomeou o masculino de folgado e o apresentou como alguém in-conveniente, pois não tinha mais lugar na sua cama e no seu travesseiro, ela ques-tionou sua autoridade construída historicamente. Por isso, a canção expôs como as “experiências sociais do cotidiano” (GIDDENS, 1993, p. 18) transformou esse momento de intimidade do feminino com o masculino ao rebater práticas ma-chistas ao dividir sua cama. O que ficou em destaque foi a “reviravolta do poder” (BUTLER, 2003, p. 08). Uma reviravolta no sentido de mostrar que as mulheres têm escolhas, podem realizá-las e, principalmente, podem expô-las enquanto uma prática de ruptura dos papeis historicamente estipulados.

Assim, enquanto metonímias das expressões femininas, as canções defini-das como Feminejo problematizaram o papel das mulheres quando trouxeram

20 Número de visualizações na plataforma do Youtube: 139.453.833 milhões. Disponível em: https://www.you-tube.com/watch?v=2HwD3wliSgw. Acessado em 25 de Maio de 2019.

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novas relações sociais com o masculino, isto é, admitiram traições, frequentaram baladas na hora e dia que quiseram e beberam a quantidade que quiseram em uma noite com as amigas21. Isto é, o feminino em espaços de sociabilidades antes admitido apenas para os homens, pela sociedade burguesa conservadora. Nessa reviravolta do poder, destacado por Buttler (2003), as canções interpretadas pelas mulheres expressaram as transformações pelas quais esse gênero musical divulgou em relação com a nova demanda social brasileira (ALONSO, 2015).

Assim, o empoderamento feminino, no Feminejo, esteve atrelado a uma proposta de amor sólido quando o relacionamento puro (GIDDENS, 1993) foi convocado pelo sujeito textual. Ou seja, a ressignificação do conceito de femini-lidade do século XIX se apresentou quando o casal foi dormir na mesma cama e dividiram o mesmo travesseiro. Com esse cotidiano, Marília Mendonça divulgou o desejo do casamento e da vida a dois como sinônimo de companheirismo, di-visão de tarefas e respeito à individualidade. Por isso, “em um tempo que tanto se fala de protagonismo feminino, de empoderamento, de feminismo e de amor próprio, por que não usar a música para incentivar tudo isso?”22.

O Folgado foi a figurativização do que as mulheres estão excluindo de suas vidas e estão lutando “contra as condições objetivas de opressão social e refletindo em torno das relações interpessoais” (SARTI, 2004, p. 38). Essa canção demarcou a proposta da convivência a dois num processo reflexivo para desnaturalizar o coti-diano construído diante da desigualdade de gênero. Por isso, “a riqueza do processo de empoderamento está justamente em desvendar as relações de poder, buscando transformá-las em relações mais equânimes” (KLEBA & WENDAUSEN, 2009, p. 737). Isto é, questionamento do instituído e, principalmente, a apresentação de uma nova subjetividade feminina que apresentou seu parceiro como aquele que não servia para casar já que se aproveitava do título de namorado e assumia um posicio-namento de autoridade perante a tão valorizada liberdade conquistada.

Na canção, a mulher quer ser independente, quer continuar lutando por essa liberdade e, por isso, não aceitou delimitações diante da hora de sair e de chegar: “Eu nunca tive lei/e nem horário pra sair nem pra voltar/se lembra que eu mandei você se acostumar/tô te mandando embora, melhor sair agora/não vem me controlar”. Nessa terceira estrofe ela se identificou como aquela que alcançou

21 Cf. LIOTO, Mariana. Felicidade engarrafada: bebidas alcóolicas em músicas sertanejas. Cascavel, PR: UNIOESTE, 2012.

22 TORRES, Luísa Turbino. Feminejo e empoderamento feminino: como as mulheres estão mudando a música sertaneja no país. Jan. 2017. Disponível em: https://medium.com/@turbinotorres/feminejo-e-empoderamen-to-femino-como-as-mulheres-estão-mudando-a-música-sertaneja-no-país-1a5157841375 . Acessado em 29 de Junho de 2019.

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sua liberdade, explicou ao masculino que ele tinha que se acostumar e, quando ele não seguiu a sua proposta, foi colocado para fora da sua cama e da sua vida como uma reviravolta (BUTTLER, 2003). Ou seja, ela foi clara ao mencionar que ele deveria ter lembrado das regras apresentadas e, quando ele não a escutou e conti-nuou com suas práticas abusivas, ela descartou o que lhe fazia mal.

Por isso, quando o sujeito textual chamou o seu parceiro de Folgado rea-lizou-se o que Butler (2003, p. 33) chamou de “explorar as afirmações totali-zantes da economia significante masculina”, ou seja, ela não o definiu como fundamental para sua vida social ou o como provedor da sua vida e família. Ao contrário, ela solicitou um relacionamento puro diante de uma intimidade que não se delimitava mais pela “ética da conquista masculina” (GIDDENS, 1993, p. 19) ou pelo cortejo, mas pela parceria e compreensão da individualidade e autonomia feminina.

Assim, essa canção foi uma metonímia em oposição àquela proposta de so-ciedade que delimitou com “bastante precisão os campos em que poderiam operar a mulher, da mesma forma como os terrenos em que poderiam atuar o homem” (SAFIOTTI, 1987, p. 08). O sujeito textual caracterizou seu namorado como Folgado ressaltando que ele deveria atender aos novos comportamentos afetivos e sexuais que o feminino divulgou e lutou para ser concretizado. Em decorrência disso, o feminino foi a metonímia de uma pessoa livre para escolher seus parceiros e, consequentemente, compartilhar seu dia-a-dia, suas histórias de vida e seus projetos de um futuro feliz com aquele que seria o oposto do homem folgado.

Por isso que naquela quarta estrofe ela se arrependeu ao chamá-lo de na-morado porque esse nome trouxe consigo afirmações totalizantes da economia masculinista (BUTLER, 2003). Nesse arrependimento, encontramos o femini-no com uma “reserva substancial da experiência e conhecimento sexual” (GI-DDENS,1993, p. 21) quando partilhou sua cama e travesseiro, conheceu um homem que lhe impôs regras, opiniões contrárias às suas e, mesmo com os mo-mentos de prazer, teve autonomia de manda-lo embora. Assim, ela foi protago-nista do seu presente e do seu futuro quando disse que ele não era o homem para ela casar: “imagina se a gente tivesse casado/ Deus me livre da latada que eu iria entrar/ dá um arrepio”. Quando projetou um modelo de homem, o Feminejo, a partir dessa canção, apresentou o feminino para escolher seus parceiros “sem entrar numa latada”, ou seja, num problema que futuramente poderia ser tornar um grande dilema. Assim, ao imaginar o casamento com um folgado, ela se arrepiou e o mandou embora, expondo de que forma as mulheres podem construir suas próprias histórias.

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Nesse sentido, o sujeito textual enunciou o masculino folgado como uma latada desde a primeira estrofe com a expressão não venha não e, essa mesma expressão, se repetiu sucessivamente a fim de que uma fronteira fosse construída para que o masculino não tivesse mais a oportunidade de comandar sua vida. Des-sa forma, ao expressar sua insatisfação, as práticas masculinas, com ressignificação da sociedade burguesa do século XIX, não foram bem-vindas já que as escolhas dela estavam associadas às “novas experiências cotidianas que entraram em con-flito com o padrão tradicional de valores nas relações familiares, sobretudo por seu caráter autoritário e patriarcal” (SARTI, 2004, p. 39). Dito isso, o feminino foi identificado, nessa canção, como aquela que namorava, noivava, projetava seu casamento, mas de acordo com suas próprias leis. Ela quis aquela famosa “bolha sufocante” (BAUMAN, 2004, p. 26) da vida a dois, mas com regras a serem se-guidas. Por isso, a canção, folgado, se apresentou como uma metonímia da mulher contemporânea que colocou em questionamento o papel social construído para elas como receptivas, cordiais, heroínas e desejosas do casamento para procriarem, confirmando o que Maldonado (1989) destacou sobre a escolha das mulheres em não terem filhos, atualmente. Essas escolhas transformaram não apenas a intimi-dade do casal, mas o conceito de família instituída décadas atrás.

Segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), no Brasil, a taxa de fecundidade em 2015 foi de 1,71. Com a redução, o país ficou abaixo do chamado nível de reposição, de 2,1 filho por mulher. 23

Diante desse número, identificamos a reformulação do conceito de família e assistimos a uma grande quantidade de “divórcios, separações e recomposições conjugais” (ROUDINESCO, 2003, p. 12). Por isso, quando o sujeito textual afir-mou que “você nunca me deu a mão”, ela o expulsou e apresentou uma resposta aos padrões consolidados pela economia masculinista. Ela sofreu, mas não sofreu em silêncio, pois mostrou autonomia sobre escolher o melhor para si e seu dia-a--dia diante daquele folgado que não a ajudava e não era companheiro.

Dessa forma, o feminejo deu destaque aos “processos re-identitários da mu-lher” (SILVA & PUHL, apud LIMA, 2017)24 que passou a se arrepiar ao pensar em casar com aquele que não lhe dava a mão ou não elevava sua autoestima. Por causa disso, não observamos, nessa canção, o feminino desejando o casamento como uma forma de inserção social e de um único projeto de vida. Marília Men-

23 VILLELA, Daniela. A vida das mulheres que optam por não terem filhos. Jan. 2018. Disponível em: https://www.opopular.com.br/noticias/magazine/a-vida-das-mulheres-que-optam-por-não-terem-filhos-1.1442960 . Acessado em 30 de Junho de 2019.

24 LIMA, Juliana Domingos. O que é o ‘feminejo’ e qual o lugar das mulheres na história da música sertaneja. Nexo. Jan. 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/14/O-que-é-o-‘femine-jo’.-E-qual-o-lugar-das-mulheres-na-história-da-música-sertaneja . Acessado em 20 de Junho de 2019

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donça cantou o feminino que experimentou a vida a dois para, então, decidir se queria casar ou não. O sujeito textual quebrou com a principal invenção do romantismo quando este instituiu o casamento como essencialmente feminino (GIDDENS, 1993). Nessa composição, foi reconstruída uma identidade femini-na que desejou ter voz sobre esse lugar instituído socialmente por discursos que a silenciou por tanto tempo. Ou seja, com a segregação social das mulheres diante da sua invisibilidade (LOURO, 1997, p.17) o feminejo possibilitou espaço para essas vozes e atitudes.

Dessa maneira, o sujeito textual desejou a família nuclear, mas também delimitou que precisava de espaço para expor seus desejos, angústias e expectativas diante de um projeto a dois. Ou seja, ela podia escolher entre ter filhos ou não. Ela podia escolher entre cuidar do marido ou não e, também, apontaria o futuro marido como folgado, argumentaria o porquê e chamaria outro para sua cama e para seu travesseiro. “A família (...) deixou, portanto, de ser conceitualizada como o paradigma de um vigor divino” (ROUDINESCO, 2003, p. 13) e, assim, o fe-minino foi cantado como consciente de suas ações e desejos quando decidiu pelo fim de um namoro. Nesse sentido, não foi apresentada aquelas identidades do apaziguamento. Pelo contrário, ela pediu constantemente que aquele folgado não se aproximasse mais dela e desmanchou qualquer fantasia construída diante da consolidação do casamento como símbolo de um grande final feliz a dois.

A mulher foi empoderada e ela não ficou feliz apenas com o cortejo do seu namorado. E, assim, num movimento contra hegemônico (ARÁN; CORRÊA, 2004), a canção foi uma metonímia de como as mulheres podiam lidar com um homem atrevido e metido que tomou um espaço importante na sua luta pelo direi-to social, sexual e reprodutivo. Ao se sentir dono da sua cama e do seu travesseiro, ela saiu em defesa daqueles dois, se mostrou governada por seus próprios valores e ainda mandou um alerta sobre o comportamento masculino: “tô vendo se con-tinuar assim cê vai morrer solteiro”.

Cada vez mais, as canções do Feminejo têm apresentado mulheres empo-deradas e em casamentos enquanto prática do “amor confluente” (GIDDENS, 1993). Na busca desse amor, os sujeitos textuais das canções falam sobre serem livres para viver suas escolhas, seus parceiros e sexualidade contanto que possam viver ao mesmo tempo como namorada, mãe, mas, também, como praticantes de seus desejos sexuais já que o projeto político quanto à invenção da maternidade foi institucionalizado para que elas não vivessem sua sexualidade. Ou seja, foi um projeto associado à imagem religiosa da Virgem Maria a fim de colocá-la como rainha do lar e torná-la pura/santa. Aquela que não seguisse esse projeto era con-

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ceituada como vagabunda (DELEMEAU, 2009). Dessa forma, a metonímia do empoderamento apresentada nas canções, estava na proposta de identidades em construção, como ressaltado anteriormente. Uma identidade que “angariou re-cursos que lhes permitissem ter voz, visibilidade, influência e capacidade de ação” (HOROCHOVSKI & MEIRELLES, 2007, p. 486).

O feminejo nas interpretações de Marília Mendonça foi um desses recursos enquanto uma proposta de participação feminina no subgênero da música serta-neja. Eleita como a rainha da sofrência, por causa de suas composições com te-máticas que envolviam o sofrimento e carência feminina, ela se destacou quando mandou o infiel para fora de casa e disse que ele mesmo pagaria o seu taxi. Com mais de 3 bilhões de visualizações em suas redes sociais e mais de 12 milhões de inscritos no seu canal do Youtube25, ela tem alcançado um público que consome suas postagens e vídeos comentando e mandando mensagens sobre suas publica-ções. No seu Twitter26, a cantora desabafou a história por trás da composição de folgado: “o pior namorado que tive, quis mandar no que eu vestia, na minha rela-ção com a minha família, no que eu comia, mesmo sendo eu que pagava a conta. Mandei vazar e fiz essa homenagem pra ele”27.

Diante da sua experiência, ela qualificou o namoro como pior que teve e, quando afirmou que aquele casamento seria uma latada, nos apresentou um sujeito textual que sonhava com um projeto de vida a dois e partiu à procura de outro amor. Dessa forma, quando Bauman (2004, p. 30) divulgou as dores de cabeça trazidas pelo casamento, identificamos na produção do feminejo a procura de um par ideal para compartilharem a cama e o travesseiro mesmo que tal atitude viesse a ser uma dor de cabeça. Então, afirmamos que a proposta de empoderamento feminino cantado por Marília Mendonça esteve distante da proposta líquida dos relacionamentos afetivos na contemporaneidade, defen-dido por Zygmunt Bauman (2004). E, cada vez mais houve investimentos em relacionamentos que apresentaram regras a serem seguidas por ambos a fim de que tivessem uma vida duradoura juntos. Nesta canção Folgado, por exemplo, não observamos o que Bauman (2004, p. 12) enunciou sobre a encenação da instantaneidade ou relação de bolso. E não figurativizou a superficialidade dos sentimentos (BAUMAN, 2004, 36).

25 Disponível em: https://www.diarioonline.com.br/entretenimento/musica/noticia-494120-marilia-mendonca-e--maiara-e-maraisa-fazem-a-festa-das-patroas-este-sabado-em-belem.html . Acessado em 20 de Outubro de 2018

26 Rede social que nasceu em 2006 nos EUA e é mundialmente conhecida como microblog. Chegou em 2009 chegou ao Brasil e sua principal característica está nas postagens curtas, de 140 caracteres e, por isso, faz referência à palavra twich que significa vibração.

27 Disponível em: www.twitter.com/@MariliaMReal. Acessado em 04 de Março de 2019.

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Pelo contrário, o feminejo, nessas canções, figurativizou intensidades, brigas entre casais para poderem conviver assim como o desejo de compartilhamento de laços familiares apresentando seus projetos individuais. Nesse viés, percebemos que “é quase impossível não observar que as mulheres também buscam papeis rejeitados no passado” (AMORIM, 2011, p. 05) e, por causa disso, lidaram com preconceitos em todas as áreas da sua vida quando escolheram viver uma relação afetiva com suas regras e saíram do modelo de comportamento que renovou a ação do patriarcado. Ou seja, se distanciou das “vivências domésticas num sólido ambiente familiar, lar acolhedor, filhos educados e a esposa dedicada ao marido” (PERROT, 2003, p. 225).

Del Priore (1994) chamou essa atitude de decomposição de estereótipos ao feminino, isto é, à medida que o feminejo apresentou sujeitos textuais que não seguiram o modelo historicamente construído para o feminino, identificamos comportamentos em redefinições de atuações. O feminino “de forma desinibida que quer tomar a dianteira no início do namoro” (SAFFIOTI, 1987, p. 27) e praticar sua sexualidade a partir do que foi institucionalizado para o masculino de “ir à caça, tomar sempre a iniciativa” (SAFFIOTI, 1987, p. 27). Assim, elas foram figurativizadas como poderosas no sentido de recriação de outras normas de com-portamento. Nesse processo (re)identitário (SILVA;PUHL, 2017), encontramos no feminejo um reflexo do que Mirian Goldenberg destacou na sua pesquisa sobre a mulher brasileira: “o fato de viajarem, conversarem com as amigas, saírem sozi-nhas ou descobrirem uma nova atividade (...) apareceu com muito mais destaque do que os filhos e o trabalho” (GOLDENBERG, 2010, p. 198). Ou seja, a antro-póloga especificou que elas se identificaram cada vez mais com o espaço fora da casa e novos espaços de sociabilidades com amigas foram conquistados realizando rituais que antes eram realizados pelo masculino como, por exemplo, o happy hour28 com as amigas.

Segundo um estudo global que analisou o consumo do álcool por homens e mulheres, as mulheres têm bebido tanto quanto os homens: “as mulheres fa-zem a ‘hora do vinho’ quase todas as noites”29 e, assim, o feminejo é a metonímia dessa demanda da socialização da bebida com as amigas como uma consequência de suas conquistas, sinalizando de que forma sua participação no mercado de trabalho tem sido significativo. “Dados do Ministério do trabalho revelam que

28 O Happy Hour é um termo em inglês que ficou conhecido mundialmente por significar “hora feliz”, ou seja, aquele período do dia que, depois do trabalho, os colegas se encontram em bares ou restaurantes para beber, comer ou se confraternizarem.

29 Cf. Sim, as mulheres estão bebendo tanto quanto os homens, diz estudo. 30 de Out. 2016. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/sim-as-mulheres-estao-bebendo-tanto-quanto-os-homens-diz-estudo/ . Aces-sado em 30 de Junho de 2019

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a participação de mulheres no mercado formal aumentou de 40,85% em 2007 para 44% em 2016” 30 e, diante da autonomia financeira, a liberdade feminina foi composta e divulgada por canções como bebo litro31, por exemplo, interpretada pela dupla Maiara & Maraísa: “queria sair, me divertir/ e esquecer você em cima de outra cama/ainda não superei/eu bebo um litro e choro três mas eu esqueço você/nem que eu beba num dia/o que era pra beber num mês”.

A saudade e a dor do rompimento da vida a dois, identificou o bar como um espaço de lamentações no feminejo. Ao mesmo tempo que se apresentou como o lugar de divertimento, foi, também, de choros e de desabafos entre amigas sina-lizando o desejo de amor sólido em oposição à liquidez das relações (BAUMAN, 2004). Ou seja, quando ela soube que seu companheiro estava em outra cama que não foi a dela, ela saiu para se divertir com as amigas. A sororidade aconteceu no momento da socialização da bebida com as amigas, identificando o combate à rivalidade e à competição estimuladas pelo machismo. Ou seja, elas se reuniram e se aproximaram realizando o que Lagarde de Los Ríos (2012, p. 543) especificou:

A sororidade é a consciência crítica da misoginia, seus fundamentos, preconceitos e estigmas, e é o esforço pessoal e coletivo para desmantelá-la na subjetividade, nas mentalidades e na cultura, paralelamente à transformação solidária das relações com as mulheres, práticas sociais e normas políticas legais32

Dessa forma, quando a reunião com as amigas aconteceu a fim de denun-ciar as práticas da cultura masculinista, o feminino se apresentou como o sujeito textual que teve o intuito de desmantelar o que foi instituído para si. Tanto na canção bebo litro, apresentada anteriormente, ou em Bebaça33, interpretada por Marília Mendonça, elas se encontraram ou para chorarem juntas ou, então, para evitar que sua amiga se submetesse às práticas do masculino: “amiga, ´cê tava bebaça/ subindo na mesa, virando garrafa/ tentou até ligar pro ex/ pra sua sorte, eu não deixei/ já tava tudo rodando, rodando/ pediu outra rodada”. O sujeito tex-tual, aqui, se apresentou quebrando a regra do que foi instituído para o feminino do lar, exemplo de mãe e esposa recatada dentro de casa cuidando dos filhos e do marido quando subiu na mesa e virou garrafa. Como exemplo de esforço pessoal

30 Cf. Mulheres ocupam 44% dos empregos do país, mas ainda ganham 15% menos do que os homens. 19 de Fev. de 2018. Disponível: https://extra.globo.com/noticias/economia/mulheres-ocupam-44-dos-empregos-do-pais--mas-ainda-ganham-15-menos-do-que-os-homens-22410846.html. Acessado em 01 de Julho de 2019.

31 Canção: Bebo Litro. Intérpretes: Maiara & Maraísa. Composição: Albino Gomes Alves/ Anibal Vieira Junior Angelim/ Carlos Roberto Junior da Silva. Álbum: Reflexo – Ao Vivo. Ano: 2018.

32 La sororidad es la conciencia crítica sobre la misoginia, sus fundamentos, prejuicios y estigmas, y es el esfuerzo personal y colectivo de desmontarla en la subjetividad, las mentalidades y la cultura, de manera paralela a la transformación solidaria de las relaciones con las mujeres, las prácticas sociales y las normas jurídico políticas.

33 Canção: Bebaça. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Ronael / Gustavo Martins Felisbino / Murilo Huff / Rafael Augusto / Ricardo Vismark. Álbum: Todos Os Cantos. Ano: 2019.

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e coletivo, para desmantelar a predominância do masculino nesses ambientes, a sororidade se fez presente quando outra mulher a ajudou a subir na mesa, a virar a garrafa assim como não permitiu a ligação para o ex.

Entretanto, encontramos uma ambivalência na proposta do empodera-mento do Feminejo quando Amanda Audi e Nayara Felizardo34 problematizaram esse protagonismo na música sertaneja universitária, elas afirmaram que

as mulheres do feminejo não costumam se considerar abertamente feministas. Pelo contrário, rejeitam esse título que tão bem lhes cabe, mas que, para elas e para muitas brasileiras, soa mal. Algumas maiores representantes do gênero – Maiara & Maraísa, Naiara Azevedo e Simone & Simaria – só admitem ter ‘dez centavos de feminismo’.

Isto é, a luta feminista ainda assusta a indústria cultural e tem colocado em questão até que ponto a metonímia apresentada nessas canções é produto das relações de poderes (FOUCAULT, 1977) diante da supremacia das duplas mascu-linas neste subgênero da música sertaneja, “Marília e suas amigas do feminejo são feministas sem dizer que são” 35. Dessa forma, conceitos como empoderamento, machismo, feminismo tem repelido boa parte do público (AUDI; FELIZARDO, 2018) 36. Dito isto, “criou-se o entendimento de que as mulheres já vivem em igualdade perante os homens” (GOUVEIA, 2019)37 quando o feminejo deseja, por exemplo, o mal dos homens: “na minha vida, o seu coração serviu de degrau/ te ver sofrendo não é bom, é sensacional/ agora passa mal,”38 Ou, então, quando o feminino é figurativizado apenas realizando práticas socias do masculino como pegar o amigo emprestado39 e fazer sexo por uma noite: “se ele, que é amigo, tomou uma, esquecei, imagina eu/é uma sofrendo, um querendo, os dois alcoolizado/eu tô pegando seu amigo emprestado”.

Assim, o feminejo pode ser um reflexo do movimento feminista no Brasil que se esvaziou do debate em torno da opressão feminina desde a década de 8040:

34 AUDI, Amanda; FELIZARDO, Nayara. Você tem um minuto para ouvir a palavra Feminejo? Dez. 2018. Dis-ponível em: https://theintercept.com/2018/12/27/feminismo-e-feminejo/ . Acessado em 01 de Julho de 2019.

35 AUDI, Amanda; FELIZARDO, Nayara. Você tem um minuto para ouvir a palavra Feminejo? Dez. 2018. Dis-ponível em: https://theintercept.com/2018/12/27/feminismo-e-feminejo/ . Acessado em 01 de Julho de 2019.

36 AUDI, Amanda; FELIZARDO, Nayara. Você tem um minuto para ouvir a palavra Feminejo? Dez. 2018. Dis-ponível em: https://theintercept.com/2018/12/27/feminismo-e-feminejo/ . Acessado em 01 de Julho de 2019.

37 GOUVEIA, Jaqueline. Do Feminejo a mulher comum: como a desinformação sobre o feminismo afasta mulheres do movimento. Setembro 2018. Disponível: https://medium.com/pirata-cultural/do-feminejo-a-mu-lher-comum-como-a-desinformação-sobre-o-feminismo-afasta-mulheres-do-movimento-38144b35802e. Acessado em 01 de Julho de 2019.

38 Canção: Passa Mal. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Ray Antonio / Paulo Pires / Alex Rodrigues Da Silva / Diego Ferrari / Everton Mattos / Sando Neto. Álbum: Todos Os Cantos. Ano: 2019.

39 Canção: Amigo emprestado. Intérprete: Marília Mendonça. Composição: Douglas Mello / Flavinho Tinto / Baltazar Fernando Candido Da Silva / Gustavo Martins. Álbum: Todos os cantos. Ano: 2019.

40 SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 70: revisitando uma trajetória. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio-agosto/2004.

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“esvaziaram-se os grupos formados em torno da bandeira da opressão feminina e ganhou força uma atuação mais especializada, com uma perspectiva mais técnica e profissional” (SARTI, 2004, p. 42).

Desde a década de 90 até o nosso momento, Sarti (2004, p. 43) ressaltou que “com o tempo, a ideologia feminista, como proposta de construção de uma nova subjetividade feminina e masculina, defrontava-se com conflitos e tensões” e como eles não foram resolvidos, ainda percebemos figurativizações no femine-jo sinalizando a violência simbólica (BOURDIEU, 1999) que são submetidas quando subjetivam “o discurso do dominador pelo dominado” (SARTI, 2004, p. 43). Isto é, esse debate ainda é restrito a uma classe social e que, no momento de efervescência do movimento feminista no Brasil, “pesquisas etnográficas sobre os pobres urbanos (...) demonstraram que, para as mulheres pobres, a questão onto-lógica do ser mulher se fundava no valor da família e da localidade e a sexualidade inexistia como uma realidade autônoma” (SARTI, 2004, p. 44). Seguindo essa amostragem, houve um descompasso entre as experiências do cotidiano e com o feminismo que se legitimava no Brasil.

É por isso que Goldenberg (2010) ainda ressalta a predominância do mas-culino nas falas de suas entrevistadas. Isto é, “ter um marido é um verdadeiro capital para a mulher brasileira” (GOLDENBERG, 2010, p. 199). É nesse des-compasso que estudamos o feminejo consolidando o desentendimento de mu-lheres contra mulheres, afastando-se do significado do movimento feminista. O que estamos assistindo e ouvindo é o que Cornwall (2018, p. 03)41 chama de empoderamento light:

Uma panóplia de mitos de gênero (...) são aproveitados para representar as mulhe-res como um bem precioso de desenvolvimento, a boa mãe conscienciosa, diligen-te e voltada para a comunidade cujo empoderamento pode “elevar” sua família, comunidade e país para sair da pobreza

Segundo a autora, a divulgação do poder feminino tem colocado essas mu-lheres a trabalharem pelo desenvolvimento recheado ainda de mitos de gênero que se refletem nas expressões da música sertaneja universitária e do feminejo a favor da indústria cultural que percebe como é lucrativo investir no tema do fe-minino. E, assim, as composições, seguindo o raciocínio de Cornwall (2018, p. 4-5), se apresentaram como um investimento lucrativo e um mercado em visível expansão. Segundo ela “investir em mulheres (...) é o melhor investimento que as agências podem fazer”. Por isso, o conceito de empoderamento light, como uma

41 CORNWALL, Andrea. Além do empoderamento light: empoderamento feminino, desenvolvimento neolibe-ral e justiça global. Cadernos Pagu (52): 2018.

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divulgação assertiva da indústria cultural e, principalmente, com a abstenção de suas intérpretes sobre o debate feminista, produziu um debate sobre o feminismo de uma forma tímida.

Assim, o empoderamento libertador não aconteceu no feminejo a fim de que se colocasse em debate as relações de poder para que as mulheres alcanças-sem “autonomia e autodeterminação, bem como a erradicação do patriarcado para questionar, desestabilizar e, eventualmente, transformar a ordem de gênero” (SARDEMBERG, 2010, p. 235) que ainda coloca o Brasil com a “5ª maior taxa de feminicídios do mundo”42.

Enfim, ora passiva ao desejo masculino ora dona da sua própria história, esse paradoxo é um reflexo da nossa sociedade contemporânea e percebemos, em algu-mas composições de Marília Mendonça, reafirmações de estereótipos construídos pelo modelo patriarcal levando-nos a concordar com Torres (2017)43 quando afir-mou que o feminejo foi saudado como uma pretensa forma de empoderamento feminino. A rainha da sofrência inaugurou, em suas canções, um sujeito textual que foi seguido por muitas outras intérpretes para alcançar o sucesso que ela tem alcançado desde 2016 representando uma demanda social (ALONSO, 2015) fe-minina branca. E quando elas protagonizaram as angústias, tristezas e denúncias aos padrões que lhe foram impostos, expressaram suas solidões e saudades diante daquele grande amor ausente se utilizando ainda de instituições que reforçam a desigualdade dos gêneros e raça.

Dito isto, trago duas inquietações sobre o feminejo no nosso território: “que explosão feminista é essa, sequer capaz de explodir nossas bolhas”?44. Como pen-sar sobre o que angustia bell hooks (2019, p. 113): “pela própria experiência, as mulheres negras e pobres perceberam que têm mais em comum com homens de seu grupo racial e/ou classe do que com mulheres brancas burguesas”. Assim, a metonímia da sociabilidade da família nuclear é recorrente nessas composições numa ressignificação da proposta burguesa de seguindo que que Foucault (1988, p. 46) especificou: “a sociedade burguesa é sem dúvida a nossa, ainda”.

42 FERRIRA, Afonso. Femícidio cresce nos primeiros meses de 2019 no DF. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/04/femicidio-cresce-16percent-nos-cinco-primeiros-meses-de-2019-no--df.html. Acessado em 01 de Julho de 2019.

43 TORRER, L. Feminejo e empoderamento feminino: como as mulheres estão mudando a música sertane-ja no país. Medium, Jan. 2017. Disponível em https://medium.com/@turbinotorres/feminejo-e-empodera-mento-femino-como-as-mulheres-est%C3%A3o-mudando-a-m%C3%BAsica-sertaneja-no-pa%C3%ADs--1a5157841375. Acessado em 20 de junho de 2019.

44 LARA, Bruna. Como o feminismo de mercado engana você. Janeiro de 2019. Disponível em: http://www.justicadesaia.com.br/como-o-feminismo-de-mercado-engana-voce/. Acessado em 01 de Julho de 2019.

VOCÊ NÃO VALE NADA, MAS EU GOSTO DE VOCÊ”: VIOLÊNCIA DE GÊNERO E MUSICALIDADE

Iranilson Buriti de Oliveira1

O tema deste ensaio é um convite à reflexão, uma pausa para pensarmos sobre o que estamos fazendo de nós mesmos, humanos, o que estamos fazendo com o corpo do outro, principalmente, do corpo feminino. O que temos divul-gado em termos de musicalidade agride o gênero feminino? As canções que can-tamos e curtimos produzem sonoridade e naturalizam um lugar de inferioridade ao sexo feminino? Se sim, por que tantas mulheres e tantos homens subjetivam esse discurso e somam-se aos milhões de cantantes desse tipo de musicalidade que, muito mais que reproduzir os estereótipos historicamente consagrados à mulher, promovem a violência de gênero? Portanto, para a elaboração deste texto, vou recortar para a sua escrita a temática sexualidade e violências contra a mulher, inspirando-me em autores como Cleide Nogueira de Faria, Marlécio Maknamara Cunha e Michel Foucault, com os quais irei dialogar ao longo desta narrativa.

Este recorte é fruto, também, das últimas discussões que ganharam visibili-dade na mídia, principalmente após a divulgação de pesquisas pelo IPEA – Insti-tuto de Pesquisa Econômica Aplicada, órgão do governo federal, que mostra da-dos acerca da violência contra o gênero feminino no Brasil, explicitando que cerca de 58,8% dos entrevistados acham que o estupro é resultado, também, do tipo de roupa ousada que as mulheres vestem e do comportamento feminino2. Diante disso, problematizamos: como foi possível o aumento do número de violência contra mulheres nos últimos anos, considerando os estupros, surras, encoxadas e abuso sexual nos ônibus e metrôs, abusos e cantadas em carros de aplicativos, pan-cadas e outros tipos de violência física e/ou simbólica contra o feminino? Como tudo isso foi gestado e sustentado historicamente? Apesar de não responder a todas essas questões, o texto objetiva lançar uma reflexão sobre a relação entre musicalidade e violência contra a mulher.

Neste texto, abordarei a temática da violência contra a mulher partindo de outro lugar, de outra discursividade muito presente socialmente: as músicas das

1 Doutor em História. Professor titular da Universidade Federal de Campina Grande.2 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_alphacontent&ordering=3&limits-

tart=12080&limit=10> Acesso em 20 de março 2020.

390 voCê nÃo vaLE naDa, maS Eu GoSTo DE voCê”: vioLênCia DE GênEro E muSiCaLiDaDE

bandas de forró, principalmente do forró eletrônico que desenham, estereotipam e cristalizam determinadas imagens e modelos femininos pautados ainda em ran-ços do patriarcalismo, do mandonismo masculino e de relações de gênero tecidas pela marca de violência do homem contra a mulher.

Tomar-se-á, para a constituição desta narrativa, as composições musicais e os nomes de algumas bandas de forró enquanto uma produção discursiva que envolve relações de poder/saber, instituindo imagens, valores, formando subjeti-vidades e representações sociais em cada momento histórico. Todo discurso (texto musical) é analisado enquanto uma prática possuidora de um sentido histórico e de intencionalidades. O forró eletrônico não estaria fora desse circuito produtor de posições de sujeito engendrado pela cultura da mídia, qual seja: o homem que domina, que bate ou que leva pancada. Ouvindo ou cantando, ensinamos a uma nova geração de jovens, adolescentes e crianças como devemos tratar uma mulher.

Conforme Cunha, há um dispositivo pedagógico da violência simbólica contra a mulher, que tem no forró eletrônico um campo privilegiado de sua atua-lização. Nas músicas de forró eletrônico, grosso modo, são engendradas continui-dades e descontinuidades sobre o patriarcalismo nordestino, sobre o mandonismo masculino e acerca da subordinação e do silenciamento femininos (CUNHA, 2011, p.96). Os aspectos de violência como elemento formador das identidades masculinas estão intrinsecamente ligados ao processo de construção/invenção do Nordeste. A “violência é neste discurso um componente da sociabilidade no Nor-deste, uma característica da própria forma de ser do nordestino e, mais acentua-damente, um dos elementos que comporiam os atributos da masculinidade nesta região”, afirma Durval Muniz de A. Junior (1998, p.3). Nesta sociedade não há lugar para homens fracos e covardes. Portanto, observa-se, ainda, que nas várias músicas e nomes de bandas analisados, além de expor a violência contra o gênero feminino, representa também o que seria a astúcia feminina.

Enquanto estereótipo, o feminino é visto e dito em muitas músicas do forró eletrônico como um ser perigoso, venenoso, bicho peçonhento, traiçoei-ro, diabólico. Todos os tipos femininos podem ser encontrados na “Locadora de Mulher”, fazendo alusão a uma das músicas do forró eletrônico que coloca um “pacote feminino” à disposição dos homens, ou seja, “lá tem mulher do tipo que o homem quiser”, informa a música. São enunciados que constroem e instituem comportamentos negativos para a mulher. Essa, em muitas canções, passa a ser vista como aquela que divide, separa, desestrutura, provoca o caos, desordena, enquanto o homem, o masculino, seria a força ordenadora, estável, construtiva. (ALBUQUERQUE JR. 1998, p. 12).

iraniLSon BuriTi DE oLivEira 391

Ao adentrar no universo de elaboração poética das bandas, há que se depa-rar com a construção das imagens do feminino de forma explícita, no constante conflito entre homem e mulher, como campo de batalha, de disputa. As imagens da violência como elemento constitutivo da masculinidade nordestina perpassa toda produção discursiva do forró eletrônico. São discursos interessados, endere-çados a homens e mulheres, crianças e jovens, adolescentes e anciãos. Ocorre uma pedagogia dos comportamentos por meio do discurso musical. Na música, “Boi na faixa, mulher na cama”, constata-se essa afirmação:

O boiadeiro chama o gado aboiando Vaqueiro forte puxa no rabo do boi Bom forrozeiro respeitado não cochila ... chamego de menina toda hora todo dia Cavalo é bom pelos dentes Vaqueiro é bom pela fama O boi derruba na faixa Mulher derruba na cama3.

Esse imaginário discursivo musicalizado que une masculinidade e violên-cia não se tece apenas de imagens do passado, pelo contrário, esse conjunto de imagens e enunciados ocorre ainda no presente, faz parte dele, “produzindo sub-jetividades, servindo de modelos para práticas, produzindo um saber a respeito do ser homem e do ser mulher que participa das relações entre os gêneros, neste momento” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1998, p.15). Serve de modelos para as novas gerações.

Com relação às temáticas das letras, o forró eletrônico prioriza aquelas que falam de amor e sexo, com letras com duplo sentido. A banalização da violência e os estereótipos sexuais aparecem, muitas vezes, na estética da banda: roupas bem curtas para as cantoras e bailarinas; roupas super-apertadas para os homens, dan-ças extremamente erotizadas e nomes que denotam sexualidades e/ou violências simbólicas, tais como Calcinha Preta, Garota Safada, Ferro na Boneca, Saia Roda-da, Gatinha Manhosa, Kaça Kabaço, Cheiro de Menina, Brinquedo de Menina, Desejo de Menina, Collo de Menina, Moleka 100 Vergonha, Taradões do Forró, Pau de Balançar, Forró do Mela-Pinto, Fogo na Saia, Mulher Fogosa, Mulher Chorona, Mulheres Perdidas.

Alguns nomes de bandas de forró eletrônico parecem não deixar dúvidas: nesse estilo musical, tudo é uma questão de ser e de se posicionar como homem ou mulher. Além disso, fazendo uma leitura da história da infância no Brasil,

3 Compositor França, CD: I Circuito de Vaquejada

392 voCê nÃo vaLE naDa, maS Eu GoSTo DE voCê”: vioLênCia DE GênEro E muSiCaLiDaDE

onde o termo “menina” é empregado para crianças desde o Brasil Colonial, os no-mes de algumas bandas incitam, simbólica e indiretamente, a pedofilia, tais como Cheiro de Menina, Brinquedo de Menina, Desejo de Menina, Collo de Menina e Ferro na Boneca, uma apologia a um dos principais brinquedos das meninas na cultura ocidental.

As letras do forró eletrônico trazem declarações que representam uma des-valorização das mulheres, tecem identidades femininas com conotação pejorativa e de cunho depreciativo, gerando violências simbólicas, divulgando a figura femi-nina como produto, mercadoria e objeto. Assim, podemos destacar alguns títulos de músicas de uma das bandas de forró eletrônico, tais como: “Eu vou botando pra dentro; Cachaça com rapariga e Tá assim de quenga; Dança da minhoca; Coe-lhinho; Lapada na rachada”; Dinheiro na mão, calcinha no chão” que elaboram o corpo feminino a partir do negativo, do desvalor, do estigma. Como argumentou Michel Foucault, “sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos pas-sados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros” (1993, p.22).

No discurso de muitas músicas veiculadas por bandas de forró eletrônico, emerge, também, a figura do homem valente: o bom-de-copo, tipo masculino que agride uma mulher quando ela não corresponde a suas expectativas.

Eu sou assim, passo a noite largado na rua Doido virado de quina pra lua Tentando esquecer uma louca paixão Eu sou assim, apaixonado pelos bares da vida Bebendo e chorando por essa bandida Que fez tanto estrago em meu coração.4

Ao chamar uma companheira de “bandida”, o bom-de-copo reitera uma postura masculina de reação difamatória e violenta sobre a mulher quando esta foge de suas idealizações, de seus desejos. O bom-de-copo, no forró eletrônico, é elaborado como mais um arauto da violência de gênero quando é disposto a celebrar, na bebedeira, aquela “violência que quase todas as mulheres e outras pes-soas excluídas sofrem em algum momento de sua vida pelo simples fato de serem mulheres ou por se acharem numa situação de exclusão” (AZERÊDO, 2003, p. 205; CUNHA & PARAÍSO, 2015, p.199). O comportamento do bom-de-copo é mais um elemento do que Michel Foucault denominou de biopolítica, no nosso caso, uma biopolítica do forró eletrônico: faz lembrar que “violência é o nome de

4 Disponível em: < Link: http://www.vagalume.com.br/edu-e-maraial/arreia-cerveja.html#ixzz2y6x40wNV>. Acesso em 20 de mar 2020.

iraniLSon BuriTi DE oLivEira 393

uma política, a do patriarcado, que não conhece outro método senão a atuação biopolítica – aquela que se dá sobre corpos – com armas mais ou menos sutis que vão da linguagem à ação propriamente física” (TIBURI, 2010, p. 112).

Segundo Marlécio Maknamara Cunha, a mulher safada, conforme ensina-do no forró eletrônico, é o próprio sinônimo de mulher. É-se levado a esse tipo de conclusão quando um homem, dirigindo-se a seu compadre, diz só conhecer dois tipos de mulher: a que voa e a que é safada. Se alguém pergunta qual é a que voa, tal como faz o compadre, a resposta masculina vem de imediato: eu nunca vi. Essa resposta é tão categórica que não parece haver dificuldade alguma para que uma mulher possa assumir-se como uma safada em uma das músicas aqui analisadas: “sou a mulher que você procurava/ eu gosto de dar carinho, gosto de ser cobiçada/ gosto de beijar na boca, gosto de ser paquerada/ vou tirar minha calcinha, hoje estou liberada” (CUNHA, 2011, p.71).

Ainda conforme Cunha, anunciar-se liberada, gostar de ser cobiçada e pa-querada ou, até mesmo, gostar de dar carinho e de beijar na boca, coisas aparente-mente tão simples quanto tirar uma calcinha, aqui figuram como muita danação para uma mulher. A atribuição de “safadeza” àquela que declara abertamente seus desejos mais parece uma retomada das misóginas leituras médicas que entre os séculos XIX e XX dessexualizaram e patologizaram cientificamente o corpo da mulher, estudadas por Margareth Rago em “Os prazeres da Noite” (CUNHA, 2011, p.72; RAGO, 2001). Assim, afirma Cunha, é sob essa mesma lógica binária que se conclui que “a mulher de casa é uma mala pesada pra carregar, enquanto que “mulher da rua é boa, faz tudo pra agradar”.5 Essa leitura binária coloca mu-

5 Tem mulher de todo jeito Tem mulher que não convém Tem mulher que é bola cheia E não dá bola pra ninguém Uma até ouve direito Outra o primeiro que vem Uma gosta de apanhar E outra não bate em ninguém Já mulher de casa é uma mala Pesada pra carregar Mulher da rua é boa Faz tudo pra agradar Mulher totalmente certa Difícil de encontrar Mais achei uma errada Que me fez apaixonar Essa mulher é do babado Essa mulher é do babado Ela faz tudo que eu quero Sem dizer que eu to errado

394 voCê nÃo vaLE naDa, maS Eu GoSTo DE voCê”: vioLênCia DE GênEro E muSiCaLiDaDE

lheres em posições diferentes: a mãe, a esposa, a mulher de casa torna-se a leviana, a mala-sem-alça, enquanto a mulher da rua é a perfeita para agradar (CUNHA, 2011, p.78).

Esse tipo de divisão binária remete às palavras de Judith Butler (1987), para quem “discriminação é sempre discriminação”. Discriminar a mulher, estereotipá--la, classificá-la como isto ou aquilo, como Eva ou pecador, seja a da casa ou a da rua constitui uma ofensa moral. Em outras palavras, quando homens e mulheres são nomeados, tipificados e caracterizados no forró eletrônico, não são apenas ob-jeto de descrições e diferenciações (entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens) pretensamente naturais, mas discriminados no sentido de que são alvo de investimentos discursivos que pressupõem, valorizam e exigem experiências particulares de masculinidade e de feminilidade.

Considerações Finais

Analisar o corpo feminino como um objeto da história, por meio das cons-truções elaboradas pela sonoridade musical, é procurar entendê-lo como foi cons-truído, perfurado e mutilado pelos diversos saberes. A música é mais um canal de divulgação dessa ideia de corpo feminino, resultado da circulação desse mesmo discurso em outras fontes, como conversas de bar, reunião de amigos, grupos de WhatsApp, redes sociais como Instagram, comunidades de Facebook, dentre ou-tros. O corpo feminino é um espaço de circunscrições várias, de definições e de redefinições ao longo do tempo histórico, resultado de diversas pedagogias que o conformam em diferentes épocas; é um lugar “de convergência de um poder con-trolador que individualiza o seu desempenho, ao mesmo tempo em que o regula em favor da espécie humana” (FRAGA, 2000, p.18).

É no espaço-corpo onde tropeçam as palavras, as adjetivações, as classifi-cações que ajudam o outro construir uma imagem estereotipada da mulher. O corpo emite sons, palavras às vezes indizíveis, às vezes agressivas demais. Escute-mos o corpo e, provavelmente, seja impossível nos apoderar de todos os seus sons, porque a linguagem, nascida dos desejos com os quais inflam o corpo, existe para criar uma distância que possa conter e tornar pensáveis os pedidos do corpo, as solicitações da carne.

São tantas perguntas que foram lançadas neste curto texto, muitas sem res-postas. Mas, talvez, se perguntarmos a um amante do forró eletrônico, partici-

Ela diz que eu sou bonito, gostoso e o mais tarado Que eu devo é entrar na dela e ficar apaixonado Link: http://www.vagalume.com.br/cavaleiros-do-forro/mulher-do-babado.html#ixzz2y88CrLtn

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pante de uma geração de homens sem identidade de cavalheiro, que não consegue valorizar o sexo feminino, o que fazer para curar as feridas geradas pela violência contra a mulher? Ele, talvez, responda: diga-lhe que tome mastruz-com-leite, li-mão com mel, capim-com-mel, catuaba-com-amendoim, lagosta com toddy. Se tiver fome coma calango-aceso, vaca-atolada, sovaco de cobra e miojo com fari-nha. Enfim, são representações de violências simbólicas contra o sexo feminino, contra uma geração de mulheres feridas, desvalorizadas, em grande medida elabo-radas por um batalhão de homens de calcinha preta e de saia rodada.

CAPÍTULO 04

TEATRO E DIREITOS DAS MULHERES

NO PALCO FEMINISTA, DINA LISBOA!

Adriana da Rocha Leite1

Uma das principais frases do movimento feminista é de autoria de Si-mone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Seguindo o mesmo raciocínio e conceito pode-se afirmar que também não se nasce feminista, tor-na-se feminista. Não é um processo linear, tampouco impositivo. A descoberta das disparidades e desigualdades entre os gêneros é lenta, repleta de episódios e de situações que marcam a vida e que, em algum momento, exigirá uma postura efetiva de ruptura.

Ao longo da história humana muitas mulheres tiveram ações feministas, mesmo sem o saber, mesmo sem conhecimento teórico ou prático do significado de sua ação/reação. E mudaram o contexto em que viviam ou pelo menos deixa-ram um legado que inspirou outras mulheres a fazê-lo. No mínimo, conseguiram mudar-se e até mesmo libertar-se das amarras do machismo e do patriarcado ins-titucional. Missão difícil!

É exatamente neste contexto de rupturas e ajustamentos sociais que apre-sentaremos Henedina Lisboa, que adotou o nome artístico Dina Lisboa. Nascida no interior de São Paulo, na cidade de Angatuba, em 12 de setembro de 1912, teve uma vida dedicada ao teatro. Nomeada professora para atuar na Capital, sua primeira atitude foi matricular-se no Conservatório Dramático e Musical do Es-tado para estudar canto e piano.

Nossa proposta é oferecer uma visão global da atuação de Dina Lisboa, em seu contexto histórico, na busca por elementos delineadores de sua conduta e ação feministas, ainda que não explicitamente.

Abordaremos suas formas de agir e de pensar no campo artístico e as estra-tégias de recriar-se para além do universo cênico, objetivando alcançar as diversas dimensões em que estava inserida, uma compreensão da mulher e da atriz tão ligada ao seu tempo histórico e ao mesmo tempo, tão além dele!

1 Advogada especializada em conflitos familiares (FADI Sorocaba/SP). Escritora e pedagoga. Mediadora judicial, escolar e privada. Instrutora em mediação de conflitos pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Supervisora em mediação da Escola Paulista de Magistratura. Facilitadora em Justiça Restaurativa. Presidenta da Comissão de Mediação de Itapetininga/SP (2019/2022). Sócia-proprietária da Primeira Câmara de Mediação e Arbitragem de Itapetininga e Região – LEXMEDIARE Ltda. Pós-graduada em Educação à Distância pelo Lante/UFF. Desen-volve e organiza práticas colaborativas em advocacia e mediação. Feminista, busca o resgate de mulheres que, à sua época, romperam com padrões e não se silenciaram. E-mail: [email protected]

400 no PaLCo FEminiSTa, Dina LiSBoa!

A partir de suas escolhas, analisaremos sua conduta visionária e feminista, ainda que tal palavra sequer fizesse parte do vocabulário da atriz e é exatamente o aspecto que nos interessa: mais do que definições ou conceitos, é na ação que o feminismo se concretiza.

Somos o resultado das ações, omissões e reações das mulheres que nos ante-cederam. Com elas, por elas e para que a geração que nos suceder não se contente com o retrocesso, é preciso resgatar a luta individual e até mesmo solitária das mulheres que não sucumbiram ao status quo e que mesmo pagando preço alto de discriminação ou exclusão, permitiram-se livres!

HISTÓRICO ARTÍSTICOA memória cultural é imperativa! O resgate de pessoas que se destacaram

em nossa história artística é o resgate de nossa própria identidade enquanto seres criativos e pensantes. Quando se fala em mulheres que romperam com o “desti-no” que lhes era traçado em sua época e fizeram valer a liberdade de escolha, tal resgate se torna ainda mais urgente e premente!

A busca por caminhos diferentes é metafórico e também real. Dina Lisboa teve uma carreira notável no teatro, no cinema e na televisão. Rompeu com pa-drões que lhes eram impostos. Não aceitou cumprir o seu papel feminino pré-es-tabelecido. Ousou ser muitas, múltiplas. Entendeu, muito cedo, que o estudo era sua melhor forma de rompimento, mesmo tendo uma educação tradicional. Que através do conhecimento conseguiria atingir patamares elevados. E assim o fez.

Nasci em Angatuba (SP), no dia 12 de setembro de 1912, meu pai, Antônio Lisboa, era funcionário público municipal, professor de música e grande maestro; e, minha mãe, Maria Domênica Benedetti, muito inteligente, também como boa italiana, era cozi-nheira de “mão cheia” diziam. Perdi minha mãe ainda criança, mas minha carreira artística deve ter começado no ventre dela, pois desde menina já atuava nos espetáculos levados em Angatuba. Fiz meus estudos primários no Grupo Escolar “Dr. Fortunato de Camargo” de Angatuba e terminei o primeiro grau no Colégio Imaculada Conceição, das Irmãs Beneditinas, de Itapetininga. Entrei para a Escola Normal “Pexoto Gomi-de”, dessa cidade, onde estudei por três anos, completando o curso na Escola Normal de Botucatu para onde me transferi permanecendo no Colégio “Dos Anjos”, das Irmãs Marcelinas, isso em 1930.(*)

O destaque nos estudos possibilitou-lhe o acesso a outros espaços. Fascina-da pela intelectualidade, música e dança, assistia conferências literárias e artísticas. A inscrição e a aprovação nos testes para o ingresso na Escola de Arte Dramática de São Paulo – EAD – foi início de sua carreira.

aDriana Da roCHa LEiTE 401

A primeira peça como profissional foi em 1952, no Teatro Municipal de Campinas/SP. Ao longo da carreira foram “mais ou menos” quarenta peças, con-forme ela mesma mencionava.

Foi aluna de mímica de Marcel Marceau. Dirigida pelos melhores diretores da época: Alberto D’Aversa, Alfredo Mesquita, Adolfo Celi, Antunes Filho, Anto-nio Abujamra, Egídio Eccio, Flávio Rangel, Geraldo Vietri, Haydée Bittencourt, José Renato, Maurice Vanneau, Rugerro Jacobbi e Ziembinsky.

Dina afirmava que o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) foi a sua casa, porém, atuou em quase todas as companhias teatrais da época, entre elas, o Te-tro de Arena, Teatro Maria Della Costa, Cia. Nídia Lícia-Cardoso e Teatro Ruth Escobar.

Mas não foi somente no teatro que sua atuação como atriz foi reconhecida: seu sucesso alcançou o cinema, atuando em filmes como “Presença de Anita”, “Suzana e o Presidente”, “Appassionata”, “Esquina de Ilusão”, “Rebelião em Vila Rica”, “Meus amores no Rio”,“A arte de bem amar”, “Yayá Garcia”, “Betão Ronca Ferro” e “Portugal... Minha saudade”, estes dois últimos de Mazzaropi.

A verve artística sempre a acompanhou. Suas palavras são reveladoras de um talento nato:

Perdi minha mãe ainda criança, mas minha carreira artística deve ter começado no ventre dela, pois desde menina já atuava nos espetáculos levados em Angatuba. (...) Antes de ingressar no curso primário, estreei no palco, fazendo o papel de bebê. Fiquei dormindo numa caminha. Na hora que deveria dizer a minha fala, fui acordada por um bom beliscão. Mas me saí bem, muito bem, apesar dos pesares (LISBOA, 2010, p. 28).

A atriz e grande amiga, Florami Pinheiro, complementa: (...) Deu vários recitais de declamação em clubes e teatros desta Capital e do interior. Com o pseudônimo de Tayá Piranga, atuou com muito sucesso no microfone da Rádio Excelsior, fazendo um programa semanal, ainda de declamação. A maior emoção de sua vida: arrancar lágrimas de um preto que se encontrava no auditório, quando ela declamou A Morte do Zumbi. Fez o curso pré-jurídico. É poetisa e declamadora bri-lhante. As poesias são inéditas em sua maioria. Algumas foram publicadas em jornais e revistas desta capital (...) (LISBOA, 2010, p. 4l).

Presenças marcantes em sua vida e suas mestras na arte da declamação, Helena de Magalhães Castro e Margarida Lopes de Almeida, seus contatos ex-trapolava o profissional, abarcando questões sentimentais e amorosas, típicas de uma amizade focada na reciprocidade. Trocavam cartas repletas de significados e sentimentos.

402 no PaLCo FEminiSTa, Dina LiSBoa!

Buscando sempre a excelência em seu trabalho, Dina estudava e se apri-morava:

Meu pai tinha um grande sonho: que eu fosse pianista. Na família são todos músicos natos, mas acabei saindo do Conservatório. Foi quando fiquei trabalhando como secretária de Helena de Magalhães Castro, na IAB (Instrução Artística do Brasil). Nessa ocasião gravei dois discos com poesias. Também tocava violão e substituía de vez em quando Helena nas suas aulas (LISBOA, 2010, p. 53).

Buscou em Cecília Meirelles lapidar seu saber cultural, enviando-lhe cartas e demonstrando sua admiração. Num dos esboços confessa:

Disse ao seu marido, que, várias vezes, em momento de angústia e de desespero pro-fundo, tive ímpetos de ir ao Rio, e, mesmo sem nunca a ter visto, oferecer-me a V. como discípula de melhor boa vontade, na forma de um diamante bruto para que V. o lapidasse. Não se assuste se isso acontecer um dia. Tomo a liberdade de enviar-lhe uma cópia dos dois primeiros poemas que fiz. Depois disso tudo é inferior. E a pergunta: pra que isso? E afirmação: tudo é tolice, me fez matar a Musa. Pobre Musa! (LISBOA, 2010, p. 66).

Numa das cartas, a poetisa responde: Li também os seus versos, e perguntei-me por onde teem eles andado que eu mesma só agora os vinha a encontrar. Suas palavras, faladas e escritas, me deixaram atordoada com a sua gentileza. Ao mesmo tempo, notei em V. uma inquietação que não consegui explicar bem. Não é, como me diz em sua carta, que se possa pensar em nervosismo: creio que V. está com uma carga de lirismo contido. (...) Também não sou especialista, mas a experiência que a vida me oferece leva-me a crer que V. precisava escrever mais, publicar mais, trabalhar bastante no que escreve, pois não lhe faltam nem sensibilidade nem emoção nem inteligência. Mas para que lhe estou dizendo coisas que V. sabe me-lhor do que eu? (LISBOA, 2010, pp. 68-9).

Além das cartas, a poetisa enviava-lhe bilhetes, numa reciprocidade que somente uma amizade de mútua admiração permitia.

Dina avaliava sua trajetória de maneira muito consciente: Depois de anos na vida artística, sem dúvida tirei uma grande lição de amor, de hu-manidade. Pela vivência que o teatro nos dá por meio de convívios, experiências, e, sobretudo, pela circunstância de vivermos tantas personagens psicologicamente tão di-ferentes, nós nos purgamos de nossos pesadelos e, sem fanatismo, sem demagogia, chega-mos à conclusão honesta e consciente, de que a grandeza do Homem está realmente na simplicidade do seu viver, na prática de sua fé, na caridade e no seu amor ao próximo. Acho que nós por sermos artistas, temos o privilégio de estarmos mais próximos de Deus - o Artista Supremo - e, por conseguinte, temos maiores obrigações para com Ele. Aposentei-me. Saber parar é sabedoria! (LISBOA, 2010, p. 307).

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Dina voltou a Angatuba, sua querida terra natal, por volta de 1975. Sua sobrinha, a historiadora Professora Dra. Maria Aparecida de Morais Lisboa, assim descreve tal período:

Distante de tudo: Teatro, Cinema, Televisão... a atriz, no seu refúgio, sobreviveu ao tempo imbuída de saudade, de frustrações, de mágoas, de melancolia, nem propria-mente tristeza, também de resignação, apesar do convívio gratificante dos seus familia-res e dos poucos amigos que restaram. Ao colega Ziembinsky, Dina registrou seus senti-mentos num rascunho de correspondência: E chegou o momento da morte, a agonia da perda. A separação, a ausência, a lágrima, a dor, a saudade... Não pudemos afastar de nós a fragilidade e a finitude. (LISBOA, 2010, p. 308).

Era 04 de agosto de 1987, quando Dina Lisboa despediu-se do palco da Vida...

A ARTE E A ATRIZ COMO EXPRESSÃO DO FEMININO E DO FEMINISMO

A análise da trajetória profissional da atriz Dina Lisboa nos permite uma contextualização importante, verdadeiro panorama do cenário artístico das déca-das de 40 a 70. Mas, e sua vida pessoal? E seus amores? E suas lutas?

Propositalmente, não mencionamos tais aspectos na narrativa artística. Op-tamos por traçar, ainda que resumidamente, fatos e situações relevantes no campo das artes, para que, assim o fazendo, ficasse mais compreensível entender as op-ções pessoais da artista.

Teve o apoio familiar, o que certamente foi um diferencial. É preciso re-lembrar que a carreira de atriz sempre foi estigmatizada, principalmente para as mulheres. Era sinônimo, não poucas vezes, de vida devassa, para não usar outro termo mais direto. Porém, ao receber o apoio da família, tais características foram amenizadas para Dina, afinal, se aprovavam sua carreira, tal deveria ser conse-quência de algo de respeito, posto que a Família Lisboa tinha influência na cidade e era também, respeitada. Certamente o fato de vários membros serem artistas ligados à música facilitou a aceitação da carreira de atriz.

Maria Aparecida de Morais Lisboa explica: Dina construiu sua trajetória artística, ocupou espaços sociais e culturais pouco comuns a membros do sexo feminino em Angatuba e São Paulo. Representava na década de 1940, uma mulher com perspectiva profissional, dona de si, de sua vida, de sua sexua-lidade. Como atriz, mais exposta à modernização e sujeita a pressões, enfrentou críticas e incompreensões. (LISBOA, 2010, p. 313).

404 no PaLCo FEminiSTa, Dina LiSBoa!

Dina não se casou, o que já é algo totalmente inesperado, considerando-se o período em que viveu. Sua ruptura com a tradição não ocorreu somente no campo das artes.Foi pessoal. Certamente pagou um preço pelas suas escolhas. Outra ousadia: uma mulher, do interior, fazendo suas próprias opções.

O depoimento de Ilíada Floriza Maciel Manfredini feito para Maria Apareci-da confirma a versão de que Dina era uma mulher singular, à frente do seu tempo:

(...) Ela era muito inteligente, culta e glamourosa. Tinha muita amizade com o poe-ta Cassiano Ricardo, que foi a grande paixão dela. Guilherme de Almeida também gostava dela (...) Quando vinha de férias pra Angatuba era um “chamarisco”, os rapazes ficavam “babando” por causa dela, até os rapazes de fora e sabe, também os de São Paulo, às vezes, vinham aqui por causa dela. Eu acredito que era também a inteligência, cantava músicas lindas, tocava violão muito bem mas era uma grande mulher! E como se vestia bem, ela era tão chique!

(...) Pra época ela era uma mulher diferente, diferente das moças, das colegas que ficaram aqui em Angatuba, ela sobressaía. E todas morriam de inveja dela Tinham inveja por ser uma mulher inteligente, dela ser uma pessoa famosa, certo/ Era assim um ciúme louco que tinham (...) Havia muito comentário por el ir a São Paulo, ser atriz. Tinham certeza que ela “pintava e bordava”, falavam sim e muito, sabe, cidade pequena... Mas ela era uma mulher que nunca...toda vida andou de cabeça erguida, levantada...nunca deu confiança pros comentários (...) Agora, em São Paulo, no teatro, o meio dela, as amizades que ela tinha, só com gente importantíssima! (...) E como ela cantava bem e encantava também! Bom, uma coisa ela teve, os namoros fora de série, pra época, bastante avançado, ela despertou muitas paixões. (*)

Interessante observar que havia uma competição explícita, típica do ma-chismo: mulheres invejando mulheres bem-sucedidas. Talvez a palavra compe-tição não seja adequada, afinal, certamente as angatubenses não se sentiam em condições para competir com a atriz famosa, mas não podendo fazê-lo, usavam do expediente mais conhecido: desmerecê-la, usando adjetivos comprometedores da honra, apesar da admiração que nutriam por ela.

O paradoxo se explica: as mulheres, desde a tenra infância, são incentivadas a competir com outras mulheres e a vê-las como concorrentes e, mesmo que se te-nha admiração, tal não pode ser revelado. Aprende-se que uma mulher NUNCA pode ser amiga de outra mulher, que ao se produzir para sair, o “foco ou objeto” não é atrair o homem, mas causar inveja nas demais mulheres. Ambas são ideias machistas, reproduzidas à exaustão para meninos e meninas. Crescemos acredi-tando na veracidade de tais conceitos.

Se a ideia e a compreensão de sororidade ainda nos são incipientes, na dé-cada de 1940/50 era algo inconcebível.

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Dina blindou-se, aliando-se aos seus iguais, certamente não sem sequelas. Talvez seja a explicação do porquê voltar a Angatuba para viver seus últimos 12 anos, quando esteve cercada de poucos amigos. Inveja!

A liberdade sexual nunca foi aceita para a mulher. “Pintar e bordar” era afo-rismo para putaria, significando relações fora do matrimônio ou com múltiplos parceiros, ambas inaceitáveis para uma sociedade patriarcal.

No prefácio do livro da coleção Aplausos, Antônio Abujamra esclarece: Levou nas costas muitos anos, tudo o que se fazia na Televisão Tupi e engrandeceu as personagens mais fantásticas da literatura mundial. (...) De amor, falava do seu pelo poeta Cassiano Ricardo, e as palavras sobre esse amor se recusavam a serem dominadas e eram fortemente invejáveis. (LISBOA, 2010, p. 14).

Viveu o amor pelo poeta intensamente. Nas entrelinhas dos seus escritos e também de sua biografia é possível perceber o quanto o envolvimento lhe foi importante e verdadeiro e ao mesmo tempo, causou-lhe dissabores.

Dina externa seus sentimentos em poemas, crônicas e rascunhos. Sutilmen-te revela a dor da saudade, do desencontro e até da ruptura.

Travou batalhas particulares, rompendo padrões conservadores, sem dúvi-da, mas sempre esteve comprometida com a luta por melhores condições profis-sionais. Maria Aparecida de Morais Lisboa traça o perfil combativo da atriz:

Críticas, prêmios... Dina marcou o protagonismo feminino no campo das artes cênicas com seus traços fortes e modernos. Tornou-se uma figura de vanguarda na Comissão Estadual de Teatro, na defesa da sua classe artística e, importante personalidade na construção e desenvolvimento do Teatro Infantil, culminando com a realização do I Festival Paulista de Teatro Infantil. (LISBOA, 2010, p. 19).

A presença marcante e a postura de luta em defesa dos seus foi uma das marcas da atriz, que através de um estilo próprio rompeu com as normas vigentes, celebrizando e firmando o expressionismo artístico como um verdadeiro processo evolutivo, na busca incessante, ainda que paulatina, da eliminação das desigual-dades de gênero.

Não há registro de que Dina tenha se declarado feminista, tampouco os que se debruçaram sobre sua biografia o fazem, porém, sua postura profissional de atriz compromissada socialmente e culturalmente abarca e envolve questões essencialmente feministas: a liberdade de escolha e de manifestação do pensamen-to, a ação inclusiva e a defesa da cidadania são situações que permearam toda sua atuação, inclusive na esfera pessoal. Fez das artes seu maior estandarte de supera-ção das diferenças, tão arraigadas em sua época. 

406 no PaLCo FEminiSTa, Dina LiSBoa!

Apesar de sua beleza e do seu sucesso, a vaidade não lhe acompanhava e conseguiu superar egoísmos e intrigas com altivez e obstinação, características que lhe valeram admiração, mas também, desafios e até perseguições, pois não sucumbia às imposições passivamente. Questionava e se posicionava.

Na complexidade do universo socioeconômico, político e cultural foi possível fazer das artes cênicas a atuação construtiva do ser humano, isso possibilitou a Dina interferir nela, construindo e desconstruindo, enfim, refazendo o sentido da vida, de pujança e de produção. (LISBOA, 2010, p. 20).

A própria Dina afirmou: Havia uma lenda a meu respeito na Escola. Dizem que eu brigava muito e me cha-mavam de complicada. Na verdade, eu apenas queria saber. Era muito curiosa. Por isso fazia muitas perguntas, queria saber tudo a respeito do assunto. O meu sistema de trabalho era: estudar tudo o que se relacionava com o objeto em foco. Confundiam o meu desejo de aprender com complicação. (LISBOA, 2010, p. 115).

Questionadora, não se dobrava às exigências, tomava posições, se defendia e fazia a defesa do seu grupo de teatro. Seu posicionamento rendeu-lhes algumas inimizades. Os compromissos assumidos eram questões de honra!

Para citar apenas algumas situações, em 1957, motivada por um acerto de contas sobre uma rescisão de contrato de trabalho, apresentou um pedido de demissão aos dirigentes do TBC, porém, as profundas queixas geraram descon-sideração de seu pedido por Francisco Zampari, que reconheceu que tal decisão aconteceu num momento de nervosismo, sem a devida reflexão. Outra situação que confirma seu caráter assertivo ocorreu em relação ao incidente envolvendo a peça O Bezerro de Ouro (1961), quando questionada pelo repórter sobre se leva-riam a peça adiante, respondeu:

(...) Digamos que com essa desistência os interessados em que a peça não fosse levada, te-nham alcançado um certo triunfo. Mas o que eles não sabem é que nós, atores e intelec-tuais, somos uma cabeça de medusa: quanto mais se corta, mais aumenta. (...) Eu que sempre fugi às entrevistas, não pude deixar de comparecer a esta, não só por pertencer ao elenco e como solidariedade ao colega atingido, como para deixar bem patente o protesto contra o boicote à mão armada da liberdade de expressão.” (LISBOA, 2010, p. 203).

Como uma mulher aguerrida, enfrentou os preconceitos e reconstruiu-se. Não sucumbiu e ousou frente às rupturas. Não se fragmentou, antes, conseguiu compactar-se, transformando-se em ser único, indivisível que sempre foi!

aDriana Da roCHa LEiTE 407

408 no PaLCo FEminiSTa, Dina LiSBoa!

CONCLUSÃORelembrar e valorizar a trajetória pessoal e profissional de Dina Lisboa é

resgatar a força do feminino. É transmitir às novas gerações a compreensão de que rupturas são necessárias e urgentes. Não se pode, como pessoa e, principalmente, como mulher, aceitar imposições de padrões machistas, que cerceiam a liberdade de escolha e de decisão.

O feminismo busca a igualdade de oportunidades e de direitos, não de tornar homens e mulheres iguais. São diferentes e a diferença deve ser valorizada, porém, não se pode aceitar, que tal situação gere uma hierarquia de forças e de domínio.

Dina, mulher interiorana, que alçou voos e marcou presença num espaço que por si, gerava preconceito, não sucumbiu às imposições. Exigiu ser ouvida. Falou e se manifestou de forma incisiva para defender seus direitos, seus espaços e seus companheiros de arte. Sim, artistas devem-lhe muito! Toda a classe artística.

Conhecer sua história é entender os primórdios da organização dos direitos dos artistas, porque, entre outras razões, o afastamento de Dina do cenário artísti-co ocorreu por sua recusa a valores baixos de cachês. Sabia de seu valor e do valor do trabalho dos colegas e não podia aceitar o aviltamento.

Fez escolhas pessoais e profissionais que tiveram impacto em sua vida e na vida dos que com ela conviviam. Permitiu-se sentir e ressentir-se, afinal, num am-biente com inúmeras possibilidades de convívio e também de hostilidades, con-frontou-se com situações que não concordava e que exigiram-lhe posicionamento enérgico e incisivo. Não teve medo!

Feminista sem dúvida! Entendia a luta por igualdade de direitos como uma bandeira permanente. Não sucumbiu à mesmice e à zona de conforto, nem mesmo quando retirou-se, precocemente, do cenário artístico. Sacudiu Angatuba com seu andar e olhar altivos. Provocou, foi provocada.

Comprovou às mulheres de sua época que a origem não é fator determi-nante ou mesmo um “carma” para a reprodução de padrões. Fez-se urgente no compromisso de avançar na busca pelo espaço feminino como forma de liberda-de. E impele, a nós, mulheres, a continuar neste movimento cíclico de rupturas e ressignificações dos nossos papeis. Sejamos todas DINAS!! Gran Finale!!

Se não fosse o que sou, gostaria de ser o que sou.

Dina Lisboa

PROJETO CHÁ DAS PRETAS

Susilene Feoli1

A ideia de criar o Projeto Chá das Pretas, surgiu a partir de conversas e pesquisas com mulheres negras, para construção de narrativas de outras três mu-lheres negras (Maria Dolores, Maria abadia e Maria das Graças) extremamente representativas na cidade de Uberlândia, para produção de uma peça teatral “As Três Marias”. As conversas sempre às 18h, regadas a comidinhas mineiras (pão de queijo, broa de milho, pãozinho, refrigerantes e suco), nos mineiros somos conhecidos por comermos bem, bom então, foquei na ação, no horário e no bate papo, nas suas histórias de ações positivas, assim surgiu Projeto “Chá das Pre-tas”. O Projeto “Chá das Pretas” foi criado para dignificar a mulher negra e não tive dúvidas, propus uma solenidade de Moção de Aplauso a estas mulheres do Projeto “Chá das Pretas” em homenagem ao dia Internacional da mulher negra Latinoamericana e Caribenha, em reverencia ao dia 25 de julho dia internacional e municipal da mulher negra.

Logo no início da minha pesquisa de mestrado, “Ruth de Souza: mulher negra atriz”, encontrei um texto que chamou a minha atenção. Tratava-se de uma entrevista com a atriz, na qual ela fazia a seguinte arguição:

Site Mulheres do Cinema Brasileiro, em maio de 2005“É impressionante, o tempo passa e as coisas não mudam. Você vê pessoas negras no cinema, na televisão, nos shoppings, nas butiques, nos restaurantes? Não. Na minha época da Vera Cruz era assim, era só eu, e hoje eu vou às festas, aos lança-mentos, e as coisas não mudaram muito. Continua sendo só eu e algumas poucas. A mulher negra fica em segundo plano, somos invisíveis”. (OLIVEIRA, 2013. p.132-3)

A entrevista foi concedida pela atriz em um evento organizado pela Petrobrás, cujo mote era comemorar o dia Internacional da Mulher. Junto a ela estavam Júlia Lemmertz (atriz), Ludmila Dayer Schuller (atriz e empresária), Dira Paes (atriz), Lúcia Maria Murat de Vasconcelos (diretora/cineasta). Quando chegou a vez da atriz Ruth de Souza falar, ela perguntou: onde está a mulher negra, no mercado, es-tão nos escritórios, nas butiques, onde estavam elas naquela plateia, e para surpresa

1 Mestre em Literatura Dramática - Universidade Federal de Uberlândia. Ano de 2011 a 2013.E-mail: [email protected]

410 ProJETo CHá DaS PrETaS

de todos ela e os demais constataram que lá no espaço, haviam umas quatro mulhe-res, no canto, e todas elas eram faxineiras, e ali estavam para trabalhar.

Ruth de Souza, mulher negra e atriz, rompeu barreiras e foi a primeira atriz negra em uma peça de Shakespeare. No correr do do nosso trabalho dissertati-vo, Ruth de Souza apresentou-se como uma mulher atriz fortemente adversa aos estereótipos da mulher do passado. Sua altivez, respeito as personagens as quais representava, são produtos de muita negociação.

O Abílio Pereira de Almeida me viu e disse que eu era muito magra para fazer uma colona! “Eu pensei que você fosse uma mulher gorda”. Respondi de imediato: ‘Mas você já viu colona gorda? Você esta me confundindo com a mammy de “(...) E o vento levou” (JESUS, 2004, p.32)

Situação recorrente no filme Candinho:Perguntei pro Abílio: ‘por que o nome da personagem é Bastiana?

Não tem outro nome? Já era Bastiana em Terra é sempre terra.

E Ele contestou: ‘Toda negra se chama Bastiana!’

Retruquei com calma, mas firme: ‘Toda negra não, eu me chamo Ruth!” (IDEM).

Sinalizar as contribuições de mulheres negras como Ruth de Souza, que contribuem, e deixam legado cultural, politico, étnico e social, para empoderar este povo, dando–lhe voz para ser o protagonista de sua história. Recriando sua identidade, resinificando sua tradição com base nas reminiscências impregnadas.

Outro episódio de importante destaque sobre a mulher negra em espaços de visibilidade, e que também me impulsionou a propor o Projeto Chá das Pretas, foi a fala proferida por Maria do Nascimento em discurso, quando da fundação do Conselho Mulher Negra, em 18 de maio de 1950:

“A mulher negra sofre várias desvantagens sociais, por causa do seu despreparo cultural, por causa da pobreza da nossa gente de cor, pela ausência de adequada educação profissional. Não vamos desconsiderar ainda como fator da inferioridade racial desfrutada pela mulher negra o preconceito de cor existente entre nós”. (In: NASCIMENTO, 2003. p. 307-8)

As mulheres da cena no passado carregavam em si uma identidade revelada por um atavismo (corpo de memória ancestral) impregnado de histórias que nos revelam, povo forte, de luta, de um passado enriquecedor de tradição e tecnolo-gias . No entanto, histórias de mulheres negras sempre foram contadas pelo outro, com o olhar do outro, com o sentimento do outro, que nos adjetivava. A mulher negra não era sujeito ou protagonista de sua história, era posto em segundo plano

SuSiLEnE FEoLi 411

quando não visibilizada sem poder de fala. O outro que contava nossa estória, acentuava apenas a condição de submissão e exploração do momento, levando para a cena personagens estereotipados que reforçavam a imagem criada por este outro no período da escravidão no Brasil. O conflito com nossa herança identi-tária, é devido ao fato de que o racismo no Brasil não é aberto como em outros países, o que impede que muitos dos nossos não se identifiquem com sua própria negritude e não lutem por seus direitos.

Quando um povo conhece a sua história, quando tem informação, quando sabe de suas origens, ele se assume, não tem perda de identidade. E isso, além de au-mentar o seu conhecimento, faz com que aprenda a conviver com as diferenças e não se torne vítima, porque eu considero também vítima as pessoas que praticam o racismo. E não teremos de achar que a intelectualidade faz parte apenas da cul-tura europeia, pois temos, na nossa identidade, uma formação a partir de todo um conhecimento de origem africana. (SILVA, 2005)

De acordo com os registros, em 25 de Julho de 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana (Caribe/América Central), mulheres negras reunidas no Iº Encontro de Mulheres Afro-Latino-americanas e Afro-Caribenhas, numa decisão histórica, criaram a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-ca-ribenhas e instituiu o DIA 25 DE JULHO – DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES NEGRAS LATINO AMERICANAS E CARIBENHAS.

“Eu, como mulher negra brasileira, sei o quanto essa data é importante para continuarmos na luta contra o racismo, preconceito, machismo e feminicídios. Es-tamos enfrentando um retrocesso enorme por parte do governo em políticas públi-cas, desemprego e com a reforma da Previdência, que afeta muito mais as mulheres negras, pois sabemos que muitas se encontram no trabalho informal. Mulher Negra é sinônimo de resistência, força e de muita luta. Não podemos esquecer de exaltar as mulheres negras que fizeram história e deixaram um legado lindo como Dandara, Carolina de Jesus, Marielle Franco e tantas outras guerreiras. Não descansaremos enquanto não tivermos a visibilidade que merecemos” enfatiza a dirigente e coor-denadora do Coletivo de Igualdade Racial do Sindicato, Ana Marta. (Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região)

A árdua luta empreendida por mulheres há gerações, com ênfase na cons-cientização da negritude brasileira está se concretizando através das conquistas de seus espaços, de maior poder aquisitivo e de direitos. Com isto surge um novo grupo de mulheres consumidoras para o sistema capitalista, e ao mesmo tempo estas mulheres também estão disputando espaços sociais anteriormente perten-centes exclusivamente aos não negros. O aumento da sua participação nas uni-

412 ProJETo CHá DaS PrETaS

versidades, nas profissões liberais, em cargos de direção em grandes empresas, nos partidos políticos, no comércio e na indústria. A conquista do nível superior de escolaridade, de bens de consumo antes acessíveis apenas aos não negros, como carro importado e casa própria em condomínio fechado, são alguns exemplos materiais dessas conquistas recentes. Portanto, gradativamente, está se formando o grupo de uma nova mulher negra, trazendo consigo diversas questões que ainda queremos falar, das cicatrizes que carregamos a partir dos nossos pontos de vista e perspectivas. “De que forma a gente se torna narradora das nossas histórias, é pos-sível nos ver para além desses lugares de fala?”. “Será que um dia a gente não vai precisar ser identificadas como mulheres negras?”; “Será que a gente vai... será? ”

Diante de tantas perguntas, acabei por propor ações positivas voltadas a minha área de domínio, o teatro, e que consistem em problematizar questões surgidas das inquietações da vida prática, da minha pesquisa de mestrado, outros-sim, da minha experiência enquanto mulher negra, atriz, (aqui cabem mais qua-lificações) . Questionamentos relevantes para todas nós, mulheres negras, como também, para a pessoa negra que precisa seguir lutando. Portanto, esta inquietude artística tornou-se latente para mim, por ser negra, mulher, atriz e trabalhar com a temática do feminino, sendo o que a motivou a realizar um estudo sobre a mu-lher negra na cena. Nesse sentido, protagonizei a criação de dois projetos: Teatro Congada e Chá das Pretas, com ações pontuais de visibilidade e empoderamento a mulher negra.

O Projeto Teatro Congada destinou-se a realizar ações culturais e artísticas na cidade de Uberlândia MG que aproximasse Ternos de congados e Teatro, assim realizamos: Oficina de Organização documental e capacitação das pessoas parti-cipantes de ternos de congado e comunidade; Processo de criação, montagem e 2 apresentações de um espetáculo teatral baseado nas narrativas dos dois mitos que estruturam o folguedo do Congado - o mito de São Benedito e o mito de Nossa Senhora do Rosário conhecidos pela tradição da oralidade; Doação, como forma de agradecimento aos Ternos de congados participantes, de couro para caixas.

O elenco do espetáculo será formado por integrantes dos seguintes ternos do congado local: a) Gongo Sainha de Nossa Senha do Rosário; b) Congo Mo-çambique Quilombo dos Palmares; c) Catupé Azul e Rosa.

Mas para contar nossas histórias, precisamos conhecer a nossa história de origem, aquela que nos foi arrancada, queimada e destruída. Proceder assim, é apropriar-se de si, reconhecer as violências diárias e saber quem você é de fato e de direito, para falar o que quiser e ser quem você quiser ser.

SuSiLEnE FEoLi 413

O Projeto Chá das Pretas foi criado com intuito de avançar um pouco mais, e ser direto a mulher negra com Homenagem ao dia Internacional da Mulher Negra LATINOAMERICANA e Caribenha. Aspiramos com essa ação vi-sibilizar as mulheres negras cujas trajetórias de vida são marcadas por histórias transformadoras. O Projeto Chá das Pretas, pretende promover ações (criar exposições artísticas, roteiros para fi lmes/vídeo, produção de livros), concomitantemente, para que as mulheres negras construam e potencializem o seu lugar de fala sobre si mesmas e sobre o movimento das mulheres negras.

Para homenagear as mulheres negras de diversos seguimentos, adotei como critério, considerar as histórias de vida com relevância para a comunidade, atra-vés de memorial descritivo de ações positivas de suas estórias de risos, de dor, de conquistas.

Me surpreendeu ouvir alguns relatos tais como, a médica que por ser negra não pode atender a paciente, a bailarina que por ser negra não acreditavam em sua leveza para fi car na ponta dos pés devia ser atleta forte, e mais tantas estórias, dis-ponibilizo a síntese destas:

Ana Júlia da Silva - Menina nascida em 2006, fi lha de Isaac Daniel e Maria Jose, irmã de Isabela Nicoly, com apenas 13 anos é profi s-sional na área de música, toca violino desde os 6 anos de idade no grupo Ângels musical e faz o trabalho de marketing no grupo.

Andrea Cristina Raimundo Silva - Nascida em 1971casada, negra, espirita, e tenho minha tenda espirita Pai Januário no bairro acli-mação, mãe de dois fi lhos que são minhas vitorias, gostaria de ter feito medicina mas está formada em analise clinica pela faculdade do trabalho

Cacique Kawana/Lourdes - Uma das poucas índias em atuação, luta para reconstruir sua oca, é uma mulher forte, guerreira, mãe de cinco fi lhos, avó e mestre na arte das plantas do cuidar da terra, no cuidar de gente. Mesmo após tanta adversidade de sair da sua região, morar na rua, passar fome conquistou seu espaço e se mantem linda.

Claudia Romão - mulher guerreira batalhadora e mãe de Henrique Marcelo e Júlia Maria. Minha missão é orientar e aconselhar todo menina da bandeira que está ao meu lado..meu lema é...se a feli-cidades não está comigo todo dia, faço que o dia seja mais feliz de todos, Foi a madrinha mais nova do terno de congado sainha um dos mais velho da cidade de Uberlândia

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Clélia Dias Ferreira - Mulher de congado presidente, cozinheira, mãe, amiga, costureira e outras coisas mais do Terno Quilombo dos Palmares, realiza atividades sociais com crianças. Não é fácil reme-diar todas as questões de racismo, mais eu tento

Cristina Mary Ribeiro Peron - possui graduação em Pedagogia, cur-so de Especialização em Saúde Coletiva com enfoque Anemia Fal-ciforme e ativistas do movimento negro, colabora junto ao Congo de Sainha de Uberlândia.

Dagmar Maria - Juntamente com dona Abadia do Terno de conga-do sainha, introduzem a mulher nos estandarte segurando as fi tas nos ternos. Em 1984 funda com seu marido o Moçambique do Oriente e a partir de 95, com o falecimento de seu marido João Mendes assumiu sozinha o comando total do Grupo até 2018

Gláucia Matos Adeniké - feminista, antirracista, antipatriarcal, edu-cadora popular, professora, pedagoga. Especialista nas questões re-lacionadas aos direitos humanos, democracia, relações de gênero, raça e classe.

Jussara Rosa de Oliveira - Guerreira, enfermeira, cantora, líder nada trabalhou na colheita de café, quando foi molestar. Firme segue superando obstáculos agora por morar com seu namorado branco.

Juvercina Lazara Ribeiro - Mãe de quatro fi lhos, casou-se com 15 anos sempre realizou às tarefas do lar, e estava fi cando deprimida, resolveu fazer algo que levantasse sua alta estima, mesmo contra vontade do marido que hoje a acompanha.

Luciana de Oliveira Machado - Dançarina na modalidade jazz e dança de Rua, executa outras atividades, pedreira, serviços gerais, Diarista garçom, dentre outras, Casada com uma mulher sofre di-versas violências por sua opção, Sou quem sou, quem eu quero ser, como quero ser.

Marcia Helena Aparecida de Oliveira Assunção - Fundou com seu esposo em 1982 o termo de congado Marujo Azul de Maio, onde é responsável pelas madrinhas do Terno. Também assumiu a vice-presi-dência da Irmandade do Rosário e são Benedito, desenvolve projetos de Assistência aos jovens, assumindo a coordenação das ofi cinas projeto

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Maria José da Silva - Nascida em Itumbiara-GO dia 21 de julho de 1980. Em 1997 casou-se com Isac Daniel da Silva, e teve duas fi lhas. Aos 8 anos de idade ocorre a separação de seus pais, moti-vo pai alcoólatra, e maltratava a mãe, mudou-se para a cidade de Uberlândia, o que oportunizou os estudo de Violino em 1997 no conservatório Cora Pavan Caparelli

Marta Helena Rosa da Silva - trabalhou de doméstica para ajudar em casa, na Escola foi vitima de preconceito e vindo de sua profes-sora que a expôs para toda turma. No ano seguinte veio a redenção foi a primeira a passar em primeiro lugar para 5a série e ver à pro-fessora que dizia que gente daquela cor não dava para escola agora ser elogiada, não parou mais de estudar.

Pollyana Fabrini - é fi lha de mãe solo, como doméstica batalhou a vida toda para dar o melhor aos seus. Foi a primeira da sua família a concluir graduação e mestrado. No espaço acadêmico teve con-tato direto com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, formou e fomentou sua militância na luta antirracista nacional é Diretoria de Igualdade Racial na Secretaria Municipal de Cultura.

Priscila Prates - nascida em Ribeirão Preto SP , passei infância em Uberlândia, entrou no ballet clássico, aos 5 anos formou aos 19 anos no ballet. enfrentei vários desafi os, dentro do meu íntimo SER, achava que não era direito meu estar ali, porque pensamos em nós mulheres negras como atléticas e fortes, jamais faria pliés ou subiria na ponta.

Rubia Bernardes Nascimento - Poder expressar por meio dos meus projetos artísticos a resistência, resiliência e empoderamento negro é uma vitória. Visto que, forças externas paternalistas, misóginas e racistas exercem forças contrárias para invisibilizar todo um proces-so de excelência de feitura negra.

Sueli Ferreira de Oliveira - Vitoriosa , alegre, viúva aos 26 anos criou sozinha três fi lhas, está é minha mãe, hoje aposentada e con-tinua com uma vida ativa, faz cursos de informática, de atividade física e ainda dança. É participante da Legião de Maria faz visitas semanais aos enfermos, registra atas, canta no Coral da igreja e está sempre procurando ajudar usa família e seu próximo.

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Tatiane Ferreira - mulher negra, paulista que veio da periferia de Presidente Prudente. Jornalista que tem orgulho de representar tan-tas pessoas e luta para que outros negros e negras, também possam ocupar um lugar de destaque na sociedade. A mãe faleceu quando tinha 9 anos, deixou um belo exemplo de mulher negra e batalha-dora que não desiste dos seus objetivos

Vera Aparecida de Souza - Nascida na cidade de patrocínio MG, de 1982, fi lha única, criada pelos avôs por ter sua mãe falecida. Comecei a trabalhar cedo, como babá de doméstica em casa de fa-mília. Com 17anos engravidei, e fui obrigada a parar de estudar, fui morar com namorado Wesley e há 19 anos estamos juntos casados, criando nossos três fi lhos.

Raquel Cristine Souza Leão – Médica natural de Brasilia, 30 anos de idade. Filha de mãe solteira, médica clinica geral. Através da medicina encontrei meu caminho, minha forma de ajudar as pes-soas. Recentemente fui vítima de racismo na Uai Tibery em UDI quando uma paciente se recusou a ser atendida por mim por eu ser Negra. O fato repercutiu nas redes sociais e me fez novamente lem-brar que nossa luta por representatividade deve ser diária.

Valéria Soares Miguel - Mulher negra, curiosa, explosiva é mãe de luta, muito nova  aprendeu a fazer todas as atividades de casa e ar-tesanais, saiu de uma situação de conforto com o marido para viver o sonho de ser feliz com um grande amor, foi traída, abandonada,  lava dez banheiros  para se superar e todos os dias ergue sua cabeça, sacode a poeira e da volta por cima. 

Mais que sermos “Mulheres negras empoderadas, devemos ser visibiliza-das, pois o empoderamento vem com nosso esforço, no estudo e carreira. O que não é visibilizado não é lembrado, não é empoderado, e para isto precisamos ter nossas estórias contadas por nós, falar sobre avanços, sobre este novo lugar que a mulher negra vem ocupando, ou não. Quem são estas novas mulheres negras em ascensão, estas mulheres estão em um outro lugar, qual é este lugar desta mulher, como esta mulher se sente hoje neste lugar de conquistas, é ou não confortável, quais enfrentamentos elas estão passando, quais ações elas estão propondo para aglutinar novas mulheres, para estas novas mulheres empoderadas que precisão ser visibilizadas e qual é a relação delas com os homens negros, ou como seus homens, ou como estes homens veem estas mulheres negras. Muitos são os questionamen-

SuSiLEnE FEoLi 417

tos e para tentar responder a todas, iniciaremos por partes, aqui na cidade de Uberlândia - Minas Gerais iniciamos com Chá das Pretas. Sendo assim, acredito que essa pesquisa venha clarear a outras mulheres, negras a importância da his-tória de suas reminiscências corporais inscritas como dramaturgia em suas peles. Uma dramaturgia da cor, da mulher, negra.

CAPÍTULO 05

ARTES PLÁSTICAS E DIREITOS DAS MULHERES

BERTHE MORISOT, A IMPRESSIONISTA: UM ENSAIO SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO

Leda de Oliveira Pinho1

Berthe Morisot foi uma pintora francesa que na metade do século XIX ou-sou aspirar a uma carreira profissional. Ignorando os preconceitos então vigentes na alta burguesia da qual fazia parte, foi uma pessoa corajosa em todos os aspec-tos, até na atitude de não abrir mão de sua condição de mulher ao expressar sua arte. O reconhecimento de seu valor na história, contudo, ainda é incompatível com a centralidade de seu papel no movimento impressionista.

O objeto deste artigo é analisar a trajetória artística de Berthe Morisot sob a perspectiva de gênero. A investigação tomará como direção e será contida dentro do limite das seguintes questões: – Na França da segunda metade do século XIX fazia diferença ser mulher para realizar um projeto pessoal de carreira na pintura? – Quais foram os obstáculos que ela, por ser mulher, enfrentou para exercer sua opção de unir o espaço privado ao espaço público, a realização na vida pessoal e no âmbito profissional? – O fato de ser mulher reduziu a importância do papel de Berthe na história do impressionismo e da arte?

A tese é que a questão de gênero fundamenta a razão pela qual o papel de Berthe Morisot, na contemporaneidade do impressionismo e na história da arte, foi valorizado desigualmente em relação a seus colegas do sexo masculino, não se lhe atribuindo a devida importância e nem reconhecendo seu protagonismo na revolução artística desencadeada pelo movimento.

As análises que aqui serão feitas sobre as obras e as correntes pictóricas, ainda que lastreadas em pesquisa bibliográfica específica, não são de uma especia-lista na arte, longe disso, são de alguém que apenas admira a arte, e em especial a arte de Berthe Morisot. São, portanto, usando uma expressão adequada ao tema, “impressões” sobre o que as telas expressam e desde uma perspectiva de gênero, aí sim, de quem tem alguma bagagem na área.

O desenvolvimento do tema será feito na forma de ensaio e apresentado como um percurso evolutivo, nos três capítulos seguintes à introdução, empre-gando uma dinâmica que alternará a forma verbal entre o passado, para descrever

1 Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá e Juíza Federal aposentada.

422 BErTHE moriSoT, a imPrESSioniSTa: um EnSaio SoB a PErSPECTiva DE GênEro

o cenário dos acontecimentos, e o presente, como se estivéssemos na cena em que eles se passam. O primeiro capítulo, além do contato inaugural com a obra de Berthe Morisot, descreverá o cenário de seu nascimento e da primeira infân-cia, assim como o ambiente familiar e a herança artística feminina que recebeu, capital simbólico fundamental para que pudesse vislumbrar a possibilidade de fazer arte e de viver para ela. O segundo mostrará o que ela fez com aquele capi-tal inicial, como o investiu, quais obstáculos enfrentou e como se dedicou com afinco ao estudo da pintura, às experiências em novas paisagens, com suas luzes e cores, e ao empreendimento em sua carreira e na liberdade de expressar sua arte de forma inovadora. O terceiro analisará como a questão de gênero interferiu na valorização do seu papel no movimento e na importância de sua arte, seu trânsito entre o espaço privado do casamento e da maternidade e o espaço público da arte e da carreira até a chegada em sua maturidade profissional e no reconhecimento parcial e tardio.

Assim, na sequência de uma das mais importantes exposições monográfi-cas2 dedicadas a Berthe Morisot, espero que este artigo desperte o interesse das leitoras e dos leitores sobre a influência da questão de gênero nas artes e sobre os prejuízos coletivos que a exclusão da perspectiva feminina pode causar a toda a sociedade.

2 O CAPITAL INICIAL

2.1 O ENCONTRO NO MARMOTTANEra para ser um passeio sem pretensões. O local distante e ainda inexplo-

rado, 2 rue Louis Boilly, 16º arrondissement, na elegante periferia oeste de Paris. Duas ou três baldeações de metrô, desço na estação La Muette, cruzo a alameda central do Jardins du Ranelagh e eis que surge, à direita, um charmoso palacete. Foi lá que a conheci. Talvez já a tivesse visto em outros locais, mas não a percebi na multidão. Aquela leveza e firmeza no toque, aquele olhar que franqueia certa intimidade ao espaço privado, mas que preserva alguma reserva. Ela me arrastou para seu mundo impressionista e me cativou com a potência e a clareza do olhar feminino na sua forma de representar pessoas e lugares, vivências e sentimentos.

Devo esse encontro a um estudioso da história da arte: Paul Marmottan. Ele transformou em residência o antigo pavilhão de caça, comprado em 1882, e

2 Para saber mais sobre a exposição e sobre a questão feminina na obra de Berthe, vide a magnífica conferência de abertura: PATRY, Sylvie. Conférence inaugurale de l’exposition “Berthe Morisot (1841-1895). Musée d’Orsay, 26 jun. 2019. Disponível em: <https://youtu.be/Kw9v2Lps0FA>. Acesso em 08 de março de 2020.

LEDa DE oLivEira PinHo 423

lá instalou sua coleção de arte e um rico mobiliário. Em 1932, com sua morte, o acervo e o imóvel, foram doados à Académie des Beaux-Arts, ao Estado Francês. Nascia o Musée Marmottan.

Aberto ao público em 1934, o Museu Marmottan passou a receber im-portantes doações e a abrigar a mais encantadora seleção de arte impressionista, dentre elas a tela Impression: Soleil Levant (Impressão: Amanhecer, 1872), a qual inspirou o nome do movimento.

Em 1966 Michel Monet legou o acervo de obras de seu pai ao museu. O, agora, Musée Marmottan Monet, ganhou uma ala própria para receber essa “im-pressionante” coleção e passou a ser o maior depositário de seus quadros.

Encontrei-a mais acima, no primeiro andar. Graças às famílias de seus ne-tos Denis e Julien Rouart, Berthe inundara aquele espaço com a luminosidade e expressividade de sua arte. Em 1993, Annie, viúva de Denis, havia doado um conjunto de telas, aquarelas, desenhos e esculturas, aos quais se somaram algumas telas e móveis doados por Julien e Thérèse em 1996.

O Museu Marmottan Monet passou a ser, assim, o detentor do maior acer-vo público da mais importante representante feminina da pintura impressionista. Com isso, reuniu num só espaço cultural uma percepção mais integral da escola impressionista, ao unir as visões feminina e masculina de seus expoentes.

2.2 O NASCIMENTO EM BOURGESBerthe-Marie Pauline Morisot nasceu em 14 de janeiro de 1841, em Bour-

ges, departamento do Cher, região central da França. Seu pai, Edmé-Tiburce Mo-risot (11/03/1806 - 24/01/1874), arquiteto formado pela École de Beaux-Arts, era à altura prefeito do departamento.

A Bourges de hoje é uma cidade com uma coleção de elementos encantado-res. Deles se destaca, no ponto mais alto do centro histórico, a magnífica Cathé-drale Saint-Étienne, com sua fachada de 40 metros, sua Cripta bem conservada, suas belíssimas esculturas e vitrais e seu órgão centenário. É uma obra-prima de arquitetura gótica iniciada em 1195 e declarada Patrimônio Mundial da Unesco em 1992, na qual foi batizado o rei Luís XI, o Prudente, e, possivelmente, tam-bém Berthe o tenha sido.

A Bourges do tempo antigo era a capital histórica do Berry. Faz parte do tre-cho norte do Caminho de Vézelay, rota tradicional do Caminho de Santiago, que na sequência passa por Limoges, capital do departamento de Haute-Vienne e cidade

424 BErTHE moriSoT, a imPrESSioniSTa: um EnSaio SoB a PErSPECTiva DE GênEro

em que Berthe passou sua primeira infância. Seu pai foi prefeito desse departamento até 1848, quando toda a família de transfere para Caen, na Normandia.

Berthe era a terceira de quatro irmãos: Marie-Elizabeth Yves (1838 - 1893) e Marie Edma Caroline (1839 - 1921), os mais velhos, e Tiburce (1845 - 1930), o caçula.

2.3 A HERANÇA ARTÍSTICA FEMININAA família Morisot era a típica família burguesa: financeiramente estabili-

zada, culta e com tradição na arte da pintura. Sua condição econômica, social e cultural, o capital simbólico de que trataria anos mais tarde Pierre Bourdieu3, fez toda a diferença na formação e no desenvolvimento da carreira de Berthe.

Para algumas fontes, Berthe, para outras, sua mãe Marie-Joséphine-Corné-lie Thomas (1819 - 15/12/1876), seria sobrinha-neta de Jean-Honoré Fragonard (1732 - 1806), pintor do estilo rococó, casado com a pintora, miniaturista, Ma-rie-Anne Fragonard (1745-1823).

Marie-Anne, então Gérard, nasceu em Grasse, cidade nos Alpes Franceses que à época era famosa por sua produção de perfumes e de couro. Seu casamento com Jean-Honoré uniu as duas especialidades locais: ela filha de um perfumista, ele filho de um luveiro. Uniu também o professor de pintura, 13 anos mais velho, à aluna. Após as núpcias Marie-Anne passou a assinar suas telas com o sobrenome Fragonard.

Sua condição de mulher, assim como aconteceu com outras artistas e es-critoras, fez com que parte da obra de Marie-Anne fosse atribuída a seu marido por dois diferentes caminhos. Alguns dos quadros de Jean-Honoré ou um pedaço deles teriam sido executados por ela, mas assinados por ele. Outros, miniaturas, teriam sido expostos e colocados à venda em nome de Marie-Anne, mas, poste-riormente, sido atribuídos a ele. Estas foram resgatadas ao patrimônio autoral da miniaturista pelo historiador de arte e membro da Académie Française Pierre Rosenberg (1936 -).

Marie-Anne chegou a participar do Salão de 1779, mas sua carreira, como ditavam as regras culturais da época, cedeu passo à maternidade e aos cuidados do lar. Essa mesma renúncia motivada pelos papéis sociais de gênero, que marcou uma artista do passado familiar de Berthe, ocorreu no seu contexto presente, quando sua irmã Edma, também talentosa e tecnicamente bem preparada, abriu

3 Sobre capital econômico, social e cultural, aqui sintetizados na expressão capital simbólico, vide: BOUR-DIEU, Pierre. A dominação masculina. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

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mão da carreira em razão do casamento, com o oficial naval Adolphe Pontillon, e da maternidade.

Jean-Honoré também foi mestre e pai adotivo de sua cunhada, a bem-su-cedida pintora Marguerite Gérard (1761 - 1837). Ela veio morar com a irmã, no Louvre, em 1775, após o falecimento de sua mãe e lá ficou até aproximadamente 1791. Principiou seus estudos com o cunhado e inspirou-se nas cenas de gênero da Idade de Ouro Holandesa. Conseguiu expor seus trabalhos no Salão de Paris em 1799 e trabalhar sob encomenda. A restrição das mulheres ao espaço privado – artistas e modelos – fez com que muitas de suas obras as retratassem no ambien-te doméstico, em especial nas aulas de música. Dedicou-se à pintura integralmen-te, optando por permanecer solteira.

Coincidência ou não, Jean-Honoré e Marguerite deixaram um legado de evolução da pintura, da dinâmica do traço e do uso das cores, que sedimentou o caminho para as técnicas impressionistas e cuja herança acadêmica veio a ser reconhecida nos trabalhos de Berthe.

Berthe, portanto, recebeu um bom aporte de recursos – econômicos, so-ciais e culturais – que ela soube diligentemente aproveitar para alavancar sua car-reira no mundo da arte.

3 O INVESTIMENTO

3.1 A MUDANÇA PARA PARISEm 1852 o pai de Berthe é nomeado para a Cour des Comptes. Toda a família

muda-se para Passy, na época um subúrbio de Paris e hoje parte do 16º arrondissement, mesmo bairro no qual está o Musée Marmottan Monet. Três anos depois ele se demite: suas posições políticas conflitavam com as do Segundo Império. A família continua instalada em Paris. Talvez essa atitude de independência de seu pai, de respeito aos seus próprios princípios, de algum modo, tenha incutido em Berthe a coragem para defender sua posição e sua perspectiva naquele mundo masculino da arte.

Berthe é apresentada à arte – dança, música e pintura – nos moldes da épo-ca, de acordo com sua classe social e no ambiente fechado do espaço doméstico. O interesse especial pela pintura começa por acaso. Cornélie, sua mãe, incentiva as meninas a oferecer um desenho ao pai, no seu aniversário de 51 anos. O ano é 1857 e o professor Geoffroy-Alphonse Chocarne (1797 – 18??), entediante aos olhos das pequenas.

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A irmã Yves não se interessa pelos estudos de desenho e pintura, mas Ber-the e Edma sim. Com o apoio dos pais e a constante assistência da mãe, passam a ter aulas particulares, uma vez que às mulheres era vedado participar dos cursos regulares na Escola de Belas Artes. Essa exclusão teve um inesperado lado positivo, libertou as mulheres pintoras das amarras acadêmicas e habilitou-as à inovação, bem como fez delas um canal para a reflexão e o trânsito de novas abordagens na representação pictórica de seus mestres e colegas.

3.2 O NASCIMENTO DE UMA PINTORA Joseph Guichard (1806 - 1880), que fora aluno de Delacroix e de Ingres,

é agora o novo professor das irmãs. Percebendo o talento incomum de suas alu-nas, adverte Cornélie sobre os incômodos sociais que vislumbrava poderiam vir acaso suas filhas quisessem se tornar pintoras. Elas evoluem e ainda em 1857 são apresentadas ao Museu do Louvre para observação e cópia das obras dos grandes mestres. Em 1862, quando Guichard volta a Lyon, sua cidade natal, para lecionar na Escola de Belas Artes, Berthe e Edma já haviam girado seu foco de interesse para Corot e para a pintura em ambiente externo.

Jean-Baptiste Camille Corot (1796 - 1875) as orienta e prepara para a pintura ao ar livre, uma forma de apreensão, expressão e execução modernas. A habilidade técnica da apreensão da claridade em Berthe Morisot, a serenidade aliada ao vigor das pinceladas rápidas, o balanço entre as cores suaves e ardentes, o equilíbrio entre a realidade da forma e a fugacidade do momento, talvez tenham sido cultivadas desde aí, da oportunidade de agregar à sua formação a qualidade artística de um grande mestre.

Achille Oudinot (1820 - 1891), que fora discípulo de Corot, é designado para o substituir. O resultado veio logo, em 1864 duas obras de Berthe foram aceitas no Salão de Paris.

Na sequência, outro grande pintor influencia a arte e a formação de Berthe: Édouard Manet (1832 – 1883). Além de sua admiradora, amiga e futura cunha-da, ela foi sua modelo em mais de uma dezena de quadros, alguns deles tendo alcançado grande valor comercial, como Le Repos (A Sesta, 1870). Nesta obra há sinais de que a influência artística é recíproca: os traços apenas esboçados, a maior incidência de claros e de luz e a expressividade e vivacidade marcantes da modelo, como se houvesse intencionalidade de passar para a tela a impressão de sua perso-nalidade forte, elementos já característicos do estilo Morisot.

A sucessão de novidades, o movimento, na arte e na vida, foi desde cedo

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uma constante na vida de Berthe. Por conta da função pública exercida por seu pai, a família se viu diante de seguidas mudanças: Valenciennes, Bourges, Limo-ges, Caen e Paris. As viagens, fossem para visitar amigos ou familiares, para vera-near ou simplesmente conhecer outros lugares, trouxeram a Berthe a possibilidade de novas experiências, paisagens, luzes e cores.

A distância e as dificuldades de locomoção da época não a impediram. Em 1862 e com Edma, atravessa os Pirineus no dorso de mulas, em 1872 vai a Madri com Yves, em 1875 vai à Inglaterra, na Ilha de Wight e a Londres, com seu marido Eugène Manet, o qual passaria a ser, juntamente com sua filha Julie, a companhia constante de outras tantas viagens. Em 1881 Berthe vai a Bougival, Nice e Itália, em 1885 à Bélgica e Holanda, em 1886 à Ilha de Jersey4. Tudo isso sem contar as mudanças dentro de Paris. Como ela mesma, ao se referir à arte, sin-tetizou em uma frase: “Eu só amo as novidades extremas ou as coisas do passado”5.

Talvez tenha sido esse espírito curioso e ávido por desafios, nutrido por to-das aquelas experiências, que a tenha preparado para empreender e inovar, como o fez no final de 1873 quando integrou a Sociedade Anônima dos Artistas, Pin-tores, Escultores, Gravadores etc., formada por um grupo de trinta artistas que expressava sua arte com uma nova proposta, distinta das fórmulas até ali impostas: de representações históricas, sacras, mitológicas, heroicas ou narrativas, em geral distantes dos sujeitos e da vida como ela é. Seus membros enfrentavam, além da insatisfação com os critérios de seleção para expor no Salão tradicional, os efeitos da crise econômica que se seguiu à guerra entre o Império Francês e o Reino da Prússia (guerra franco-germânica) e viram na amostra paralela uma boa alternati-va de liberdade de expressão, de visibilidade e rentabilidade comercial e de aber-tura política para outros temas que não os históricos e patrióticos6.

3.3 A IMPRESSIONISTA EMPREENDEDORAA primeira exposição impressionista aconteceu em 15 de abril de 1874.

Durante um mês foram expostos mais de 160 trabalhos de 30 artistas. Degas apresentou onze obras, Renoir oito e Monet cinco, dentre elas a famosa Impres-sion: Soleil Levant que emprestou o nome ao movimento7. Berthe, que havia par-

4 REY, Jean-Dominique [Prefácio de Sylvie Patry, p. 11-47]. Berthe Morisot. Paris: Flammarion. 2010, p. 195-204.5 No original: “Je n’aime que la nouveauté extreme ou des choses du passé” (PATRY apud REY, 2010, p. 7).6 WEIDEMANN, Christiane; KLIER, Melanie; LARASS, Petra Larass. 50 Women Artists: You Should Know.

Munich, London, New York: Prestel. 2017, p. 9, 24, 40, 178, 201, 331.7 Diz-se que o nome do movimento teve origem em uma provocação do produtor do catálogo da exposição Edmond

Renoir, irmão de Auguste. Ele teria achado entediante os títulos dos quadros de Monet e este, ao observar a paisa-gem do Porto de Havre sugeriu que se a nominasse simplesmente de Impressão. Prato cheio para que os críticos assim rotulassem o movimento (PADBERG, Martina. Impressionismo. Alemanha: H. F. Ullmann. 2009, p. 9).

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ticipado desde os preparativos da exposição, apresentou nove telas, mas teve que enfrentar a resistência de sua mãe, que assustada e incomodada com o rumo que o novo movimento tomava, aconselhou-se com Guichard, um dos primeiros mes-tres de Berthe, o qual considerou “que a influência dos impressionistas nas obras da jovem era perniciosa”8.

Dentre aquelas telas estava uma de suas obras mais conhecidas, Le Berceau (O Berço, 1872). Ela retrata Edma contemplando a segunda filha, Blanche, que dorme em um berço, protegida por um véu. A habilidade técnica e a sensibilidade artística de Berthe conseguiram produzir um efeito de transparência, intimidade e introspecção raros. Sob o enfoque da questão feminina, avalio eu, foi capturada e transmitida com precisão a realidade da maternidade recente: os sentimentos ambivalentes de fascinação (o olhar dirigido ao rosto da criança), de cuidado (a mão direita sobre o berço e segurando o véu) e de um certo esgotamento (a palma mão esquerda sustenta o peso do rosto). Esse quadro ficou na família até 1930, quando foi comprado pelo Louvre. Hoje faz parte do acervo do Musée d’Orsay.

Entre as nove telas também estavam os óleos Cache-Cache (Jogo de escon-de-esconde, 1873), Les Lilas à Maurencourt (Os Lilases em Maurencourt, 1874) e a pequena e belíssima aquarela realçada por guache e crayon, Sur la falaise (Sobre a falésia, 1873), na qual estão Edma e sua primeira filha, Jeanne. Outra tela que fez parte do lote foi Portrait de la mére et de la soeur de l’artiste (Retrato da mãe e da irmã da artista, 1869 - 1870). Como se verá no próximo capítulo, esse quadro tem uma história e tanto a ilustrar quando o gênero importa no mundo profissio-nal e o quanto Berthe defendeu e foi fiel à sua criação e obra.

4 O BALANÇO FINAL

4.1 A DESIGUAL VALORIZAÇÃOBerthe tinha um grande respeito e admiração por Édouard Manet, contu-

do, mantinha o limite da interferência na sua criação: a opinião dele era bem-vin-da, mas não a invasão. Como mandava a etiqueta da época, Berthe estava sempre acompanhada por sua mãe nas sessões de pintura e quando Manet ou outros pintores frequentavam sua casa. As cartas que ela e sua mãe, Cornélie, enviam a Edma narram um dos embates entre os artistas e retratam a personalidade im-pulsiva e extrovertida de Manet e a personalidade forte e determinada de Berthe.

8 PARAÍSO, Ángela M. [coord.] O Impressionismo. Lisboa: Editorial Estampa. 2002. p. 207.

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Sabendo que ela estava indecisa quanto à conveniência de submeter o quadro Portrait de la mére et de la soeur de l’artiste à seleção do Salão, Manet se propôs a ajudar. Sua intervenção, que deveria se limitar a uma simples avaliação, estendeu-se a uns retoques na saia de um vestido e deles a outros que, aos olhos de Berthe, des-naturaram sua obra. A tela, que retrata Edma em sua primeira gravidez, ao lado da mãe, terminou não sendo submetida ao júri e só quatro anos mais tarde integrou a primeira exposição impressionista, sem nenhum traço das alterações feitas por Ma-net e com todo o esplendor da luminosidade e expressividade da pintora9.

O episódio coloca em evidência a seguinte questão: Teria ele agido assim com um colega do sexo masculino? A resposta pode ser extraída de um dos cader-nos de Berthe (1890), no qual registra a plena consciência do tratamento desigual que a ela era dispensado enquanto artista: “Não creio que tenha jamais havido um homem que tenha tratado uma mulher de igual para igual e isso é tudo que eu teria pedido porque sei que tenho o mesmo valor que eles”10.

Antes daquele acontecimento, Manet escrevera a Henri Fantin-Latour (1836 - 1904), que lhe havia apresentado as irmãs em 1868. Diz que elas eram en-cantadoras, mas pontua sua irritação por não serem homens e completa o quadro do preconceito com cores ainda mais fortes: “No entanto, como mulheres, elas poderiam servir à causa da pintura ao se casarem com um membro da Academia Francesa e semear discórdia no meio daqueles caquéticos”11.

Há outros sinais dessa misoginia quanto à presença das mulheres no espaço público da arte. Um de seus mais expressivos retratos saiu do pincel e do afeto de Edma: Berthe Morisot peignant (Berthe Morisot pintando,1865). Nele, Berthe está completamente absorta em sua atividade. Olhar fixo no topo da tela, paleta apoiada no braço esquerdo, pincel na mão direita, sugerindo um gesto de quem acabara de fazer a mistura de cores, na mão esquerda outros pincéis e um pequeno pano. O quadro revela como Edma a via: uma pintora, uma profissional da arte. Em contras-te, em mais de uma dezena das telas pintadas por Édouard Manet não há nenhuma representação dela como uma artista, mas sim como uma musa, uma modelo.

Não é só. Para além das críticas cáusticas vinculadas à sua condição femi-nina, a literatura especializada traz passagens de críticas elogiosas que termina-

9 PARAÍSO, 2002, p.155-158.10 No original: “Je ne crois pas qu’il y ait jamais um homme traitand une femme d’egale à egal et c’est tout que

j’aurais demande car je sais que les vaux” (PATRY apud REY, 2010, p. 14). 11 No original: “The young Morisot girls are charming. It’s annoying that they are not men. However, as women,

they could serve the cause of painting by each marrying a member of the French Academy and sowing discord in the camp of those dotards.” PHILLIPS, Ian. Berthe Morisot: capturing something of what goes by. The Lancet, vol. 359, London, UK, 18 maio 2002, p. 1783. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(02)08640-3/fulltext>. Acesso em 29 jul. 2019.

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vam por escorregar pelo preconceito. Ora se concentravam na elegância de seus traços ou nos trajes de suas modelos, ora faziam um paralelo entre as cores em suas telas e o romantismo das cores florais, terminando por fazer um contrapon-to de natureza sexista12.

A forma como retratou suas mulheres, diferentemente das representações eróticas ou fúteis, sarcásticas ou críticas, presentes em obras dos pintores do sexo masculino do seu entorno histórico, reflete um ambiente mais próximo do seu co-tidiano, com expressões mais íntimas, mas mais reveladoras dos sentimentos das personagens. O mesmo se diga quanto às mulheres em sua atividade de trabalho, como em La Fable (A fábula, 1883) e em La Nurse (A babá, 1879) em que ela retrata como protagonistas as mulheres a serviço de sua família13.

A reforçar, ainda, esse histórico de discriminação o fato de apenas em 1894 ter sido adquirida uma de suas obras para integrar o acervo de um museu. Jeune femme em toilette de bal (Jovem mulher em traje de baile, 1879) entrou no Musée du Luxembourg em Paris e, fazendo-se então justiça, a guindou ao universo dos pintores profissionais.

Aquela constatação de Berthe sobre a desigualdade de tratamento, portan-to, tinha procedência. De fato, nada obstante o privilégio social de pertencer à alta burguesia, de deter um capital econômico, social e cultural que ampliaram suas perspectivas no mundo da arte, de ter o apoio da família e de seus pares artistas ou de estar vivendo em um país com maiores vantagens comparativas em face de outros nas possibilidades de educação artística14, a “valência diferencial dos sexos”, teoria que seria defendida mais tarde por Françoise Héritier15, confirmou-se e re-confirmou-se em sua carreira e na das demais impressionistas16.

12 PATRY apud REY, 2010, p. 11-16.13 PATRY apud REY, 2010, p. 30 e 34.14 Hoje se estima que “nos finais do século XIX iam anualmente cerca de trezentas americanas para Paris com

o objetivo de aí iniciarem os seus estudos artísticos”. Nada obstante o empenho e o investimentos envol-vidos, elas ainda eram tidas como amadoras a entreter seu tempo enquanto não se casavam. (PADBERG, 2009, p. 167).

15 Para saber mais sobre a “teoria da valência diferencial dos sexos” e sobre o “privilégio exorbitante de dar à luz”, vide HÉRITIER, Françoise; PERROT, Michelle; AGACINSKI, Sylviane; BACHARAN, Nicole. La plus belle histoire des femmes. Paris: Éditions du Seuil, 2011, p. 19-75.

16 O mesmo preconceito incidirá sobre outra impressionista: Marie Bracquemond (1840 - 1916). Ela chegou ao Salão de Paris antes de Morisot, em 1859, mas se casou dez anos depois e nem mesmo o estímulo de suas participações nos salões impressionistas de 1879, 1880 e 1886, conseguiram contornar a intransigência de seu marido. A norte-americana Mary Cassatt (1844 - 1926) chegou a Paris, em 1865, com um curso acadêmico de artes na bagagem, participou do Salão de Paris de 1868 a 1876 e dedicou-se integralmente à sua carreira até que a invalidez visual a afastasse das telas (PADBERG, p. 168 e 176). Eva Gonzalès (1849 - 1883) foi aluna de Charles Joshua Chaplin e de Édouard Manet e optou por não participar das exposições impressionistas, como o fez Manet. Elas retrataram a condição das mulheres do seu tempo e do seu meio e representaram, mesmo diante de obstáculos que não eram opostos a seus colegas homens, os avanços das mulheres naquele espaço cultural.

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4.2 O NASCIMENTO DE UMA MÃE O casamento de Edma e seu afastamento, com a mudança para Lorient,

trouxeram uma dose de melancolia a ambas, como retrata o quadro Jeaune femme à sa fenêtre (Jovem mulher à janela, 1869). A correspondência entre elas reflete a inquietação de Berthe com os caminhos a seguir: casamento e maternidade ou independência e carreira. A certa altura ela indaga a sua irmã sobre o desabrochar do amor maternal e manifesta o desejo de ser mãe17.

A escolha por Eugène Manet (21/11/1833 – 13/04/1892), com quem se casa no final de 1874, parece ter sido a melhor possível para a realização de seu duplo projeto: carreira e maternidade. Ele será um companheiro e um pai presen-te, apoiará sua jornada profissional, cuidando de sua participação nas exposições, e assumirá um papel ativo na criação da filha, Eugénie Julie Manet (14/11/1878 – 14/07/1966), como revelam muitos de seus quadros.

Berthe, por sua vez, será uma mãe dedicada. A única das exposições impres-sionistas de que não participou, de 1874 a 1886, foi a subsequente ao nascimento de Julie, a qual cresceu “literalmente sob o pincel de sua mãe” e guardou com carinho esta intensidade e proximidade18.

Para além dos quadros que retratam Julie nos dezesseis anos em que estiveram juntas, sua derradeira carta à filha é emocionante, tanto pelo tex-to amoroso, cuidadoso e pungente quanto pelo esgotamento expressado no estremecimento da letra. Tomo a imagem daquele texto como sua derradeira obra de arte, como um signo de sua maturidade profissional e pessoal, como o testemunho de que é possível ter e se dedicar a uma profissão e não abrir mão de seus projetos enquanto mulher. Na carta, Berthe concede a Julie o mesmo respeito e apoio que recebeu de seus pais e do marido para se realizar profissio-nalmente e escolher seus caminhos. À altura ela era uma sobrevivente, muitos dos seus haviam morrido. Julie, que perdera o pai há menos de três anos, agora perderia a mãe e companhia constante. Berthe declara a ela seu amor, pede que compreenda a inevitabilidade da separação, enaltece suas qualidades e comportamento e recomenda que vá morar com seus primos, mas ressalta não se tratar de uma imposição19.

17 No original: “Bichette m’aide à comprendre l’amour maternel; ele vient tous les matins sur mon lit et y joue si gentiment [...]. La vie se complique tous les jours, me voici maintenant prise du désir d’avoir des enfants, il ne manquerait plus cela” (PATRY apud REY, 2010, p. 29).

18 No original: Julie, qui va littéralement grandir sous le pinceau de as mère” (PATRY apud REY, 2010, p. 30).19 REY, 2010, p. 216-217.

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4.3 A MATURIDADE PROFISSIONALBerthe, ignorando os preconceitos de sua época e meio, foi uma pessoa

corajosa em todos os aspectos, até na atitude de não abrir mão de sua condição de mulher ao expressar sua arte. Ousou ser independente do modelo paradigmático masculino e fazer escolhas que permitiram sua realização no espaço público e no privado, seja quando foi fiel à sua arte sem se ocupar de produzir o que cairia no gosto do público ou quando tomou em conta a continuidade de sua carreira ao eleger um companheiro que permitiria tal conciliação. Seu auto-retrato, de 1885, revela uma mulher segura de si, de olhar calmo e fixo, com suas roupas e instrumentos de trabalho. O traço rápido, mas firme e determinado, com uma certa dureza em alguns contornos, parece dizer que os obstáculos serviram para aperfeiçoar sua pintura e que os limites que lhe foram impostos não a detiveram e nem apagaram sua história de amor pela arte e pela inovação.

Cumprindo a profecia de Guichard, Berthe não só surpreendeu sua classe social – uma mulher que adota a pintura como uma profissão de fé, que se man-tém solteira até uma idade madura –, mas, especialmente, revolucionou o mundo da arte com seu estilo e inovação. Posteriormente, ele próprio, ao visitar uma das exposições impressionistas, no intuito de recriminá-la por fazer com tinta a óleo o que se fazia com tinta à base d’água, acabou sem o querer reconhecendo a qua-lidade, a técnica e os efeitos presentes em seu trabalho: “Ser a primeira aquarelista de seu tempo é um prêmio um bocado invejável”20.

Admirada e respeitada por seus pares, mesmo já sem ilusões de reconhe-cimento póstumo, pode usufruir ainda em vida da homenagem que lhe fizeram com a exposição de 1892, pouco depois da morte de Eugène, na Galerie Boussod et Valadon, com prefácio de Gustave Geffroy.

Faleceu em Paris, de pneumonia, no dia 2 de março de 1895. Seu atestado de óbito registra “sem ocupação” e seu jazigo simplesmente Berthe Manet, esposa de Eugène Manet: uma certificação de que ser mulher interferiu no valor que se atribuiu à sua vasta produção, seu talento e seu papel central no movimento impressionista. Em contraponto ao silêncio da morte da artista que marcou seu tempo, o registro estampado em suas telas segue testemunhando: Berthe Morisot. Manteve nelas o nome de solteira e foi fiel ao seu compromisso com a arte do início de suas primeiras aspirações, de viver para a pintura e pintar a vida real, até o final de sua carreira como pintora profissional, mantendo a mesma postura independente e corajosa.

20 No original: “Être le premier aquarelliste de son temps est um lot assez enviable” (REY, 2010, p. 82).

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Em 1896, depois da sua morte, foi realizada em sua memória uma grande exposição com quase 400 obras e prefácio do catálogo escrito por seu amigo e tutor designado para Julie, Stéphane Mallarmé. A obstinação de Berthe Morisot foi de alguma forma premiada: no ano seguinte já não se recusavam mulheres na École de Beaux-Arts.

5 CONCLUSÃOA arte de Berthe Morisot é cativante. Uma vez que a viagem por seu trabalho

se inicia, não há como não se encantar e prosseguir estudando e querendo saber mais.

Berthe entrou no mundo da pintura por um desses acasos da vida, mas cresceu em um ambiente e com uma família que lhe proporcionou vivências e aprendizados e que a apoiou, dentro dos limites que a cultura da época permitia. Ela tomou esse capital inicial e o investiu com tenacidade e inteligência, não só na sua carreira, mas interferiu com sua visão inovadora no rumo que a própria expressão da arte da pintura tomaria. Foi, certamente uma figura central do mo-vimento impressionista, ainda que a história não lhe tenha feito justiça.

Suas obras refletem impressões, esboços que equilibram a espontaneidade e a inconstância do movimento capturado em um dado momento e a permanência daquela realidade na determinação dos traços firmes e ligeiros. Pintou as pessoas em seu ambiente doméstico, espaço privado ao qual tinha franco acesso e no qual soube apreender seus sentimentos: mais do que as olhar, parecia ouvir seus pen-samentos. Ousou entrar e pintar no espaço público: o colorido das estações do ano, do campo, dos jardins e das árvores. Buscou diferentes pontos de observação, como um barco, para capturar o movimento e o reflexo das águas que se ondulam ao vento e refletem o sol, ou alternou o protagonismo das personagens, como das crianças para suas cuidadoras. Pintou a natureza e as pessoas como se estivesse fazendo uma poesia virtual, mimetizando o movimento das folhas com suas pin-celadas rápidas, construindo uma luminosidade ímpar e nos lembrando com seus traços fluídos, quase esboços, que estamos, todos nós, humanos e natureza, em constante movimento e ao mesmo tempo integrados.

Com tudo isso, Berthe não escapou dos clichês que remeteram a persona-lidade de sua arte às qualidades tidas como da “natureza feminina”. Sua trajetória na pintura e suas obras refletem, de alguma maneira, as barreiras socioculturais à classe social e ao gênero: pode se formar e produzir sua arte porque fazia parte da alta burguesia, foi invisibilizada na história da arte e teve reduzida sua importân-cia no movimento impressionista por ser mulher.

434 BErTHE moriSoT, a imPrESSioniSTa: um EnSaio SoB a PErSPECTiva DE GênEro

O ano de 1895 foi marcante para a arte impressionista. Com a morte de Berthe parece que toda a luz que marcou o impressionismo também viu sua mis-são cumprida e decidiu retirar-se com ela. O sucesso da libertação das amarras acadêmicas trazido pela onda inaugural do impressionismo, esgotara o modelo e abrira espaço para novas formas e estruturas de expressão.

UMA ANÁLISE FEMINISTA SOBRE A EXPOSIÇÃO “TO BREATH THROUGH – SOBRE A FRAGILIDADE DA VIDA”, DE MARIA HEED

Ligia Ziggiotti de Oliveira1

O presente ensaio tem por objetivo lançar luzes provenientes de uma aná-lise feminista da arte partindo de dois marcos: (i) a exposição “To breath through – sobre a fragilidade da vida”, de autoria de Maria Heed, ocorrida em Curitiba, no Museu Alfredo Andersen, em novembro de 2016; (ii) algumas ferramentas teóricas oferecidas por Griselda Pollock.

À oportunidade deste trabalho, parece relevante demarcar a minha subje-tividade. Como pesquisadora em Doutorado engajada com a literatura feminista à ocasião da visita à exposição, e advogada atuante em Direito das Famílias, apre-sentaram-se notáveis a temática da exposição da artista selecionada e as imbrica-ções de gênero que permitia.

Com efeito, Maria Heed explora o contexto pós-divórcio como inspiração principal para a produção da coletânea “To breath through – sobre a fragilidade da vida”, expressando, em arte, verdadeiro colapso pessoal quando anunciado, pelo então marido, o desejo de rompimento. À exposição compareci com toda a turma da disciplina de Gênero e Cultura, ofertada junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Fazíamos um módulo relacio-nado à crítica feminista à historia da arte, e uma das aulas consistiu, precisamente, nesta atividade de análise de parte de sua obra ali disponível.

A reprise, pelas peças e pelos desenhos expostos, de sentimentos comumente narrados na prática da advocacia de famílias, combinada às representações majori-tárias do masculino e do feminino em nossa sociedade, impulsionou a necessidade de relacionar a exposição à análise feminista de arte proposta por Griselda Pollock.

De fundo, resta latente a questão: a arte exposta por Maria Heed pode ser considerada feminina? Para enfrentá-la, busca-se, por primeiro, descrever mini-mamente a artista e a coletânea escolhidas. Neste sentido, pinçam-se elementos considerados relevantes para o deslinde da pergunta acima.

1 Doutora em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição (2015). Professora de Direito cIVIL da Universidade Positivo. Advogada. E-mail: [email protected].

436 UMAANÁLISEFEMINISTASObREAEXPOSIÇÃO“TObREATHTHROUGH–SObREAFRAGILIDADEDAVIDA”,DEMARIAHEED

Após, segue-se com a explanação de chaves de análise oferecidas por Grisel-da Pollock em inovadores influxos para uma abordagem feminista acerca da arte.

Paralelamente, resgatam-se os elementos considerados centrais da exposi-ção em comento para se concluírem acerca das condições de produção de arte, da compreensão da mulher artista e dos critérios de valoração a partir de uma perspectiva crítica e comprometida com as questões de gênero.

1. MARIA HEED E A EXPOSIÇÃO “TO BREATH THROUGH – SOBRE A FRAGILIDADE DA VIDA”

A artista sueca Maria Heed, nascida em 1954, em Gotemburgo, atua em diversas frentes. Por exemplo, expressa-se através da pintura ou da mistura de técnicas e de materiais, como quando compõe vitrais. O amplo leque de repre-sentações dispostas em sua arte revela, igualmente, diversas temáticas. No sítio eletrônico de Maria Heed é possível acessar parte deste material, bem como seu extenso currículo, o qual expõe considerável produção artística desde o final da década de 70. A despeito destes elementos, é possível constatar escassez de infor-mações acerca da artista e pouca circulação de sua obra.

Neste sentido, debruça-se apenas sobre o conteúdo de exposição de Maria Heed realizada em Curitiba (PR), em novembro de 2016, junto ao Museu Alfre-do Andersen. Denominada “To breath through – sobre a fragilidade da vida”, a co-letânea de gravuras, de fotos e de instalações pode ser contextualizada em relação ao momento de vida da artista.

O impacto do divórcio após extenso período de relacionamento conjugal lhe serviu de inspiração para a produção do material em análise. As cartas que a artista escreveu ao ex-marido, igualmente presentes na exposição, apontam para uma trajetória de sofrimento e de superação.

Em uma coluna do espaço, uma frase da artista está traduzida:Cedo ou tarde, todos sofremos algum tipo de perda. Algo inesperado acontece e a vida sacode. Nosso mundo cai

Ao adentrar o primeiro espaço no qual se apresenta a obra de Maria Heed, já se constata a instalação, junto à parede, de pedras luminosas amarradas em dois fios paralelos, os quais desembocam em duas pilhas de sal rosa. A fonte são duas cir-cunferências possivelmente relacionadas a olhos que muito choraram, em analogia

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com o sabor salgado que se atribui às lágrimas – embora houvesse, dentre a turma de alunas(os) da disciplina de Gênero e Cultura, quem as relacionasse a seios.

Circulando pela primeira sala, ainda é possível observar um impressio-nantemente extenso rolo de papiro suspenso no teto, carimbado com as palavras “STEP BY STEP”2.

Conforme explicado àquela oportunidade, a cada dia se pôs a artista a ca-rimbar letra por letra, fazendo de tal calvário uma espécie de terapia:

Dentre o material exposto, destaca-se, ainda, uma sequência de gravuras de-senhadas por Maria Heed e fi xadas junto à parede. Nestas, é possível observar o enfrentamento de fases pendulares durante o processamento pessoal do divórcio. A imensa maioria parece trazer apenas a artista representada. Em outras poucas, pode--se pensar que o fi lho do ex-casal, autista, também se vê representado, como abaixo:

2 Passo por passo, em tradução livre.

438 UMAANÁLISEFEMINISTASObREAEXPOSIÇÃO“TObREATHTHROUGH–SObREAFRAGILIDADEDAVIDA”,DEMARIAHEED

O encontro das demandas do fi lho à inteligibilidade da autora – certamen-te limitado pelas ferramentas de comunicação padronizadas, pretensamente racio-nais, que não se disponibilizam para a melhor escuta de um menino autista – em um momento de desligamento de Maria Heed, inclusive, das próprias necessida-des, parece produzir a impaciência da criança, com as mãos na cintura, como que à espera de uma determinada reação da mãe. A particularidade do universo dele parece exposta no fl uxo das fl echas circulando em torno de sua cabeça.

Possivelmente, a partida do pai pode ter signifi cado uma oneração excessiva da artista no atendimento do fi lho comum, mesmo em um momento no qual a sua capacidade para tanto se via reduzida em função do sofrimento que funda-menta a obra. São sabidos os efeitos diferenciados que a parentalidade signifi ca às vivências de homens e de mulheres.

Com efeito, as centenas de pequenas ilustrações, recheadas de metáforas, sugerem uma avalanche de experiências inclusive contraditórias, como ódio, res-sentimento, vingança, perdão, leveza, solidão.

Na seguinte, pode-se constatar que Maria Heed se apresenta envolta pelo coração, de modo que se revelam as chaves com as quais interpretava a sua condi-ção quando terminado o relacionamento conjugal:

Desde um determinado ponto de vista, pode-se sugerir que a artista se viu tomada pelo que se costuma denominar lado emocional, o qual seria regido, sim-bolicamente, pelo coração. Ao mesmo tempo que este se colore em vermelho, com referência a sangue, e o peso que se extrai do tamanho deste fardo, a imagem trans-mite uma impressão do conforto de Maria Heed dentro de sua própria dor; como se vivenciá-la, em toda a sua dimensão, tivesse sido central para o processo de cura.

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Já em um dos quadros expostos, em dimensão e em material diferentes dos utilizados nas gravuras, a artista demonstra o processamento da aceitação da cir-cunstância em que se encontrou colocada, oferecendo as próprias mãos, de modo resignado, para serem queimadas:

Com efeito, o título da exposição – “To breath through – sobre a fragilidade da vida” – expõe que o contexto pós-divórcio, para Maria Heed, signifi cou uma tentativa, através da arte, de se manter viva – manter-se respirando, caso preten-dida a literalidade.

Demarcado o lugar de onde observo a exposição – como então aluna da disciplina de Gênero e cultura, pesquisadora em feminismo jurídico e advogada atuante em Direito das Famílias – considero especialmente relevante a temática condutora de “To breath through – sobre a fragilidade da vida”: o rompimento conjugal e o divórcio.

O calvário enfrentado pela sueca está rasurado por traços reprisados com frequência no senso comum, como a infi delidade do marido que assume relacio-namento com uma mulher jovem e o fl uxo de sensações que aproximam Maria Heed dos mais arriscados limites entre a vida e a morte – revelando a fragilidade que intitula a coletânea.

Tais elementos, desde o meu ponto de vista, permitem relação com as re-presentações majoritárias acerca do masculino e do feminino. A decisão do ex--marido de Maria Heed, e mesmo a atração dele por uma mulher mais jovem; o signifi cado do relacionamento conjugal, e talvez do contexto familiar, à artista, que demonstra o amplo desgaste pelo qual passou; os sentimentos expostos na carta quanto à autoestima, ao ressentimento, à dor; a cor-de-rosa que inunda a primeira sala com as lágrimas de sal – logo interpretadas por uma das alunas como saídas de um par de seios.

440 UMAANÁLISEFEMINISTASObREAEXPOSIÇÃO“TObREATHTHROUGH–SObREAFRAGILIDADEDAVIDA”,DEMARIAHEED

Parece-me que todos estes elementos, dentre outros, dialogam, de alguma maneira, com a expectativa majoritária que se organiza de modo generificado em contextos como o sueco ou como o brasileiro. Sobre tal reflexão cabe acionar chaves propostas por Griselda Pollock, em sua proposta feminista de análise da produção artística e das(os) artistas, o que se passa a desenvolver na sequência.

2. UMA ANÁLISE FEMINISTA DA EXPOSIÇÃO A PARTIR DE GRISELDA POLLOCK

Ao refletirmos sobre as mulheres e a produção da arte, pode-se emplacar uma série de questionamentos. O que é arte? E o que é a arte produzida por mulheres? Uma expressão individual? Uma essencialização pertinente às propostas binárias de análise? E por que há poucas mulheres referenciadas como grandes artistas?

Tais problemáticas se conduziram através de diversas análises envolvidas com gênero e arte. Linda Nochlin, ilustrativamente, debruçou-se sobre alguns destes temas e marcou o campo teórico sobre feminismo e arte produzida por mulheres. Ao focar no aspecto institucional, a autora discorre sobre as múltiplas instâncias de privação feminina, as quais afetam o cerne das carreiras das pro-dutoras de arte, e localiza na ausência de oportunidades a causa de ausência de mulheres artistas3.

Embora Nochlin denuncie a precariedade de condições contextuais para a formação de grandes artistas mulheres, é certo que os critérios para o reconheci-mento de suas obras não parecem suficientemente explorados e questionados pela autora.

Por outro lado, Griselda Pollock, a partir de estudos culturais, apresenta a mulher como um signo, o qual pode oferecer significados distintos dentro de um sistema de relações, o qual pode ser alterado. A categoria “mulher” é produzida sem cessar a partir de várias práticas sociais e instituições. Os significados são constante-mente renegociados nos sistemas de significados da cultura, como filmes e pinturas.

Neste sentido, afirma a autora que “existindo [a presença real e simbólica das pessoas do sexo feminino] sob o signo Mulher numa cultura falocêntrica, sofrem as ofensas reais e materiais de classe e raça através das configurações de gênero”4.

3 NOCHIN, Linda. Why have there been no greatest women artists? Disponível em:http://davidrifkind.org/fiu/library_files/Linda%20Nochlin%20%20Why%20have%20there%20been%20no%20

Great%20Women%20Artists.pdf. Acesso em 27 de junho de 2019. 4 POLLOCK, Griselda. A política da teoria: gerações e geografias na teoria feminista e na história das histórias

de arte”. In: Género, identidade e desejo, antologia crítica do feminismo contemporâneo. Org.: Ana Ga-briela Macedo, Edições Cotovia, Ltd., 2002, p. 211.

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Com tal ferramenta teórica, pode-se questionar acerca da essencialização subjacente à categoria em análise. Apenas para se tangenciar o debate, conforme observa Silvana Aparecida Mariano:

É comum encontrarmos nos textos feministas contemporâneos a caracterização de uma fase inicial do feminismo que se empenhava em identificar uma unidade em torno da categoria “Mulher”, tornando-a universal. A história comum de opressão feminina e o conceito de patriarcado colaboravam nesse sentido5. 

Não obstante, sobre a implicação deste signo ao se conceber a arte, e, ainda, a fim de afastar o teor essencializador que se poderia depreender, afirma Pollock:

Will the representation be different if the producer is a woman or a man? One of the primary responsibilites of a feminist intervention must be the study of women as producers. But we have problematised the category “women” to make its historical construction the very object of our analysis. Thus we proceed not from the assumption of a given essence of woman outside of or partially immune to social conditions. Instead we have to analyse the dialec-tical relation between being a person positioned as in the feminine within historically varying social orders and the historically specific ways in which we always exceed our placements6 7.

É certo que não se apresenta como legítima a universalização simplificada das experiências, considerando-as, de modo reducionista, como femininas. De acordo com Rita Felski, é equivocado assumir que exista uma linha comum em todas as produções protagonizadas por mulheres e, ainda, que esta se apresentaria como legível a qualquer apreciador(a)8. Pelo mesmo motivo, não se pode afirmar que a motivação de Maria Heed seria a de produzir de acordo com uma estética feminista – tampouco que é possível defini-la.

Contudo, é certo que o diálogo com as noções de gênero circundantes na sociedade permitem outra sorte de inflexão. Assim, Pollock pensa a produção ar-tística como de sujeitos sociais e políticos, e não apenas como uma representação unívoca das mulheres que ocupam esta posição.

5 MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. In: cadernos pagu 13(3), 2005, p. 488.

6 POLLOCK, Griselda. Feminist interventions in art's histories. Disponível em: https://journals.ub.uni-hei-delberg.de/index.php/kb/article/viewFile/10930/4793. Acesso em 25 de setembro de 2016.

7 Em tradução livre: “A representação será diferente se o produtor for uma mulher ou um homem? Uma das primeiras responsabilidades de uma intervenção feminista deve ser o estudo da mulher como produtora. Mas nós temos que problematizar a categoria ‘mulher’ para fazer da construção histórica o objeto da nossa análise. Portanto nós procedemos não pela assunção de uma essência dada da mulher externa ou parcialmente imune das condições sociais. Ao invés, nós analisamos a relação dialética entre ser uma pessoa posicionada dentro do feminino em ordens variantes na história e as formas historicamente específicas pelas quais sempre exce-demos as nossas colocações”.

8 FELSKI, Rita. Why feminism doesn’t need an aesthetic (and why it can’t ignore aesthetics). In: Doing time: feminist theory and postmodern culture. New York University Press, 2000, p. 178-179.

442 UMAANÁLISEFEMINISTASObREAEXPOSIÇÃO“TObREATHTHROUGH–SObREAFRAGILIDADEDAVIDA”,DEMARIAHEED

Em outras palavras, ser uma artista mulher não constitui um fator condi-cionante para o conteúdo produzido, mas, sem dúvida, constitui um elemento central de análise e de problematização, dado que é em específico contexto de produção e de reprodução de normas atinentes ao gênero que se apresenta; que se concebe; que se lê uma manifestação artística.

Assim, torna-se possível resgatar a exposição de Maria Heed, os elemen-tos concatenados pelo imaginário prevalente quanto ao feminino e, enfim, como poderiam refletir nas suas práticas artísticas em questão e nas vivências de quem aprecia a sua exposição.

Com efeito, a experiência do divórcio, o significado do vínculo familiar, a motivação para a ruptura conjugal e o processamento da separação parecem imbricados por questões de gênero. Os extensos bordados procedidos pela artista, à espera de que cessasse a dor da separação, conduzem a uma analogia quase imediata à costura de Penélope, em sua espera por Ulisses, conforme a mitologia grega.

Os sentimentos refletidos nas gravuras e mesmo as cartas que acompanham a exposição, direcionadas ao ex-marido, narrando a superação mirabolante de um golpe na autoestima da artista e na reestruturação de uma vida alheia à conju-galidade, evocam representações majoritárias do feminino. Circula, socialmente, uma relação forte entre o feminino e a família, e sobre isso tem sido exaustivos os apontamentos feministas.

Não por menos, a propósito, pertinente a reflexão:So long as we discuss women, the family, crafts or whatever else we have done as femi-nists we endorse the social giveness of woman, the family, the separate sphere. Once we insist that sexual difference is produced through an inconnecting series of social practices and institutions of which families, education, art studios, galleries and magazines are part, then the hierarchies which sustain masculine dominance come under scrutiny and stress9 10.

Para além dos elementos contextuais que entrelaçam a artista – mulher, sueca, branca, sexagenária – ainda é possível se questionar sobre o impacto desta produção de significados em um terreno generificado:

9 POLLOCK, Griselda. Feminist interventions in art's histories. Disponível em: https://journals.ub.uni-hei-delberg.de/index.php/kb/article/viewFile/10930/4793. Acesso em 25 de setembro de 2016.

10 Em tradução livre: “Enquanto discutimos as mulheres, a família, os ofícios ou qualquer outra coisa que fize-mos como feministas, endossamos a divindade social da mulher, da família, da esfera separada. Uma vez que insistimos em que a diferença sexual é produzida por meio de uma série inconclusiva de práticas e instituições sociais das quais fazem parte famílias, educação, estúdios de arte, galerias e revistas, as hierarquias que sus-tentam a dominação masculina passam a se apresentar sob escrutínio e estresse”.

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Understanding of what specific artistic practices are doing, their meanings and social effects demands therefore a dual approach. Firstly the practice must be located as part of the social struggles between classes, races, genders articulating with other sites of representation. But secondly we must analyse what any specific practice is doing, what meanings is being produced and how and for whom11 12.

Neste sentido, interessa rememorar a envergadura do significado da obra de Maria Heed.

Durante a visita ao Museu Alfredo Andersen, nota-se a ausência de uma das gravuras de uma sequência bastante sincronizada e simétrica. Explicou-se que, durante a estreia da exposição, uma das visitantes, aos prantos, protagonizou cena de verdadeira epifania – talvez porque houve identificação com a trajetória narra-da por Maria Heed, a qual a presenteou com um dos desenhos.

Se é certo, portanto, que o relato não permite concluir pela universalização da experiência feminina, por outro lado, a conexão entre os elementos contextuais de representação do feminino, mesmo que com as assimetrias flagrantes entre os espaços das personagens, podem permitir a problematização dos efeitos da con-cepção e da ruptura familiares associados ao feminino.

CONSIDERAÇÕES FINAISO presente ensaio buscou ilustrar possíveis reflexões sobre uma exposição

que não consta entre os cânones comumente referenciados, utilizando, para tanto, algumas ferramentas de análises feministas sobre a produção artística. Demarcou--se, minimamente, a subjetividade da observadora, afastando-se, desde logo, de uma concepção neutra de apreciação da arte, a qual dialoga, como não poderia deixar de ser, com os marcadores de gênero.

Ao discorrermos sobre a coletânea “To breath through – sobre a fragilidade da vida”, de Maria Heed, buscamos problematizar a identificação da temática com as representações prevalentes do feminino. Com efeito, conforme se apresen-tou durante as aulas do módulo “Gênero, arte e sociedade”, dentre as iniciativas comprometidas com as narrativas feministas acerca da arte, participa a compreen-são de compartilhamento dos sistemas sociais que produzem as diferenças sexuais;

11 POLLOCK, Griselda. Feminist interventions in art's histories. Disponível em: https://journals.ub.uni-hei-delberg.de/index.php/kb/article/viewFile/10930/4793. Acesso em 25 de setembro de 2016.

12 Em tradução livre: “Compreender o que as práticas artísticas específicas estão fazendo, seus significados e efeitos sociais exige, portanto, uma abordagem dual. Em primeiro lugar, a prática deve ser localizada como parte das lutas sociais entre classes, raças, gêneros articulando com outros locais de representação. Mas em segundo lugar, devemos analisar o que qualquer prática específica está fazendo, quais significados estão sen-do produzidos e como e para quem”.

444 UMAANÁLISEFEMINISTASObREAEXPOSIÇÃO“TObREATHTHROUGH–SObREAFRAGILIDADEDAVIDA”,DEMARIAHEED

e da apresentação, pelo projeto feminista, da diferença não como essência, mas como estrutura social onde homens e mulheres ocupam posição distinta em rela-ção à linguagem, ao poder social e econômico e aos significados.

Dentre tais elementos, destaca-se a compreensão da família e do casamento, os quais se identificam, na representação majoritária, como relacionados à expe-riência do feminino. Contudo, a afirmação de que a exposição de Maria Heed re-velaria uma arte feminina soa excessivamente reducionista, dado que essencializa e universaliza vivências em um alcance indesejável, em especial se considerados os propósitos feministas.

Por outro lado, as chaves oferecidas por Pollock permitem pensar as mu-lheres como produtoras culturais dentro de formações históricas específicas e lidar com a centralidade da questão da feminilidade na estruturação dos seus trabalhos e das suas vidas, sem recair em biologismos.

Por fim, destaca-se a relevância de um crescente comprometimento com olhares de gênero em relação à produção e à apreciação artísticas diante de uma tradição que ainda insiste em neutralizá-las.

BARBIE X FRIDA KAHLO: UMA ANÁLISE FEMINISTA ALÉM DA PERFEIÇÃO DAS FORMAS1

Janayna Nunes Pereira2

Em celebração ao Dia Internacional das Mulheres de 2018, a Mattel lançou a venda mundial da série limitada “Mulheres que Inspiram” da boneca Barbie, de-senvolvida em homenagem a algumas personalidades femininas, dentre elas, Frida Kahlo. Para a comercialização dos exemplares, a Mattel celebrou um acordo de licença de uso da imagem da pintora com a Frida Kahlo Corporation – corporação fundada pela família da pintora com a empresa Casablanca Distributors – mediante aprovação prévia do layout final da boneca3. Todavia, após o lançamento da campa-nha, os familiares da artista interpuseram embargos à venda da Barbie Frida Kahlo no México para a suspensão mundial da distribuição da boneca4, sob ameaça de propositura de novas demandas judiciais com esta finalidade em outros países.

A família informou que há anos tentava dissolver a Frida Kahlo Corporation junto aos tribunais panamenhos e que havia rompido definitivamente relações com a corporação posteriormente ao contrato celebrado com a Mattel5, afirman-do, portanto, que somente os familiares poderiam agregar valor e legitimidade a um produto de Frida6.

Nas primeiras declarações, a sobrinha-neta de Frida — Mara de Anda Ro-meo Pinedo7 — uma das autoras da ação, argumentou que a Mattel não teria

1 Artigo apresentado no Colóquio Internacional de Direito e Literatura, 7. Narrativas e desafios de uma cons-tituição balzaquiana. Belo Horizonte: UFMG, 2018 e apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

2 Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Advogada. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Membro do Instituto Brasi-leiro de Direito de Família - IBDFAM. Mediadora Familiar (CNJ/TJPB). Vice- Presidente da Comissão de Combate à Violência e Impunidade contra as Mulheres e Coordenadora da Rede de Sororidade da OAB-PB. E-mail: [email protected]

3 PRESSE, France. Juiz mexicano impede venda da Barbie de Frida Kahlo no México. Portal G1 [Brasil]. 20 de abril de 2018.

4 Em março de 2018, Mara Cristina Teresa Romeo Pinedo e Mara De Anda Romeo, familiares de Frida Kahlo, interpuseram ação cível junto Tribunal Superior de Justicia de la Ciudad de México contra a Mattel Inc., alegando que a empresa não poderia usar a imagem de Kahlo em sua série especial porque a família não havia cedido o uso da imagem da artista e que apenas essa poderia gerenciar sua imagem. (THE GUARDIAN. Mexican court blocks sales of Frida Kahlo Barbie doll. 20 Apr. 2018.)

5 PRESSE, France. Juiz mexicano impede venda da Barbie de Frida Kahlo no México. Portal G1 [Brasil]. 20 de abril de 2018.

6 ARISTEGUI. No buscamos lucrar, si van a hacer una muñeca de Frida Khalo que lo hagan correctamente: Familiares a Mattel. 9 mar. 2018.

7 TUCKMAN, Jo. Frida Kahlo's family complain after artist is made into Barbie doll. Telegraph [United Kin-dom]. 9 mar. 2018.

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o direito de usar a imagem de Kahlo como parte de sua série8 sem a expressa anuência da sua família. As embargantes declararam acreditar que, se a empresa Mattel fosse realmente vítima de um engano ou de uma contratação derivada da ignorância sobre a posse dos direitos transacionados, deveria regularizar a situação o quanto antes9.

Em resposta, Beatriz Alvarado, representante da Frida Kahlo Corporation, afirmou publicamente ter adquirido os direitos de propriedade industrial e pes-soal de Frida Kahlo mediante negociação com a sobrinha da pintora, Isolda Pine-do Kahlo, há mais de uma década10, sendo a única detentora de direitos perante o Instituto Mexicano de Propriedade Industrial (IMPI) para fazer uso da imagem da artista. Nesse mesmo sentido, a Mattel se manifestou, defendendo a legitimi-dade da sua negociação no Panamá com a Frida Kahlo Corporation, ressaltando que a corporação teria participado ativamente da confecção da boneca, inclusive sob conhecimento de Anda Romeo, detentora de ações da corporação contratada e membro do seu conselho administrativo.11

Em decisão liminar proferida em 19 de abril de 2018, a Justiça mexicana determinou que a fabricante de brinquedos e as lojas de departamento no México parassem de comercializar a boneca até que o conflito fosse resolvido, se abstendo de “realizar qualquer ato tendente a utilizar a marca, imagem ou obra de Frida Kah-lo"12. Com a determinação, a venda da Barbie Frida Kahlo não prosseguiu no país de origem da artista, apesar de as vendas terem continuado nos outros países, inclu-sive no Brasil. A medida rapidamente tomou os meios de comunicação do México e, com a grande repercussão mundial do episódio, os envolvidos foram convidados a dar entrevistas e declarações sobre o conflito de interesses em torno da boneca.

As constantes manifestações públicas da família da artista no México torna-ram evidente que, embora a batalha judicial se revestisse de demanda por gerência de direitos patrimoniais, a grande questão que ensejou os embargos da comercia-lização da boneca foi o desagrado com a aparência dos exemplares. Pablo Sangri, advogado de Anda Romeo, admitiu que suas clientes não buscavam dinheiro com a demanda judicial, mas que a boneca fosse redesenhada pela Mattel13. O exem-

8 THE GUARDIAN. Mexican court blocks sales of Frida Kahlo Barbie doll. 20 Apr. 2018.9 ALCÂNTARA, Ángel. El pleito por la Barbie Frida Kahlo ya no es un juego. El Financero [Mexico]. 8 mar. 2018.10 LÓPEZ, Cynthia. Familiares de Frida Kahlo se equivocan: Mattel sí tiene los derechos para lanzar la Barbie

de la pintora. Univison Entreteniemiento[Mexico]. 7 mar. 2018.11 ALCÂNTARA, Ángel. El pleito por la Barbie Frida Kahlo ya no es un juego. El Financero [Mexico]. 8 mar. 2018.12 PRESSE, France. Juiz mexicano impede venda da Barbie de Frida Kahlo no México. Portal G1 [Brasil]. 20

de abril de 2018.13 THE GUARDIAN. Frida Kahlo’s great-niece calls for Barbie doll to be redesigned. Agencies in Mexico

City. Fri 9 Mar 2018.

JanaYna nunES PErEira 447

plar da Barbie Frida Kahlo teria mantido as caraterísticas estéticas predominante-mente da Barbie, com feições delicadas no rosto e dimensões físicas milimetrica-mente proporcionais, ignorando as sobrancelhas grossas e quase unidas de Kahlo, o seu biotipo físico e as tipicidades do traje Tehuana.

Foto 1 – Barbie (2016) Foto 2 - Frida Kahlo (1939)

Foto 3 - Barbie Frida Kahlo (2018)

Fonte: Divulgação Mattel1. Fonte: Harn Museum of Art2. Fonte: Divulgação Mattel3.

Romeo Pinedo reivindicou uma boneca com outro nome que não Barbie, com a pele mais escura, sobrancelhas juntas, olhos mais escuros, trajes feitos por arte-sãos e evidenciando a cultura do México: “se eles vão fazer uma boneca, têm que fazer isso corretamente”14. Os amantes de Kahlo também se queixaram da ausência de pelos faciais da boneca, sua fi gura magricela ou de qualquer indício de pólio na infância ou dos ferimentos que mantiveram Kahlo incapacitada por longos períodos15.

Anda Romeo queixou-se da boneca por não refl etir as características físicas da tia, tampouco o nacionalismo da cultura mexicana, sustentando que “uma boneca não se transformaria em Frida Kahlo colocando-se apenas fl ores no cabelo e dando um vestido colorido”16. Afi rmou, ainda, que “ela nunca iria querer se ver em

14 ARISTEGUI. No buscamos lucrar, si van a hacer una muñeca de Frida Khalo que lo hagan correctamente: Familiares a Mattel. 9 mar. 2018.

15 TUCKMAN, Jo. Frida Kahlo's family complain after artist is made into Barbie doll. Telegraph [United Kin-dom]. 9 mar. 2018.

16 Idem.

448 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

uma Barbie” e que isso não seria um tributo, evidenciando não aceitar a imagem e traços da boneca, que “estaria muito perfeita para representá-la”17.

Portanto, como se depreende, o discurso de resistência à edição da boneca Barbie Frida Kahlo cingiu-se unicamente ao impasse paradoxal da perfeição plástica de Barbie e das imperfeições características do corpo de Frida, ignorando o conflito ideológico do discurso comunicativo ou representativo da boneca e da artista.

Mas, afinal, as formas de ambas seria o objeto relevante para comparação da viabilidade da representação? Que discurso de feminilidade a associação das duas imagens reproduziria? A boneca Barbie Frida Kahlo geraria dano à imagem e memória de Frida?

Nessa direção, o presente texto pretende, sob a perspectiva histórica, iden-tificar os discursos femininos de Barbie e Frida Kahlo, analisando a possibilidade da sobreposição de suas representações comunicativas para a construção de uma personalidade feminista.

2 A IMPERFEIÇÃO DE FRIDA KAHLO – DOR, SURREALISMO E REPRESENTATIVIDADE

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, filha de um judeu húngaro nasci-do na Alemanha e uma mexicana católica com ascendência indígena, nasceu no dia 6 de julho de 190718, no México. Aos seis anos de idade (1913), contraiu poliomielite, ficando com uma deformidade em sua perna direita, o que lhe rendeu na infância o apelido de “Frida da perna-de-pau” entre as crianças19, o qual retrucava ferozmente com sua já forte personalidade20. Aos 14 anos de idade (1922), ingressou na prestigia-da Escuela Nacional Preparatoria, sendo uma das 35 mulheres entre os 2.000 homens matriculados na instituição21. Com uma personalidade rebelde e irreverente, na ju-ventude se diferenciava pelo modo de vestir e pelo linguajar, o que a levou a se unir ao grupo intelectual e político Los Cachuchas22, que consagrava a literatura e usava bonés de pano em subversão ao rígido código de vestimentas da época23.

17 ARISTEGUI. No buscamos lucrar, si van a hacer una muñeca de Frida Khalo que lo hagan correctamente: Familiares a Mattel. 9 mar. 2018.

18 Revolucionária, Frida Kahlo por diversas ocasiões dizia-se nascida em 1910, berço da Revolução mexicana (RAU-DA, Jamis. Frida Kahlo. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p.32).

19 BASTOS, Marli. Frida Kahlo: Para além da pintora. Rio de Janeiro – RJ: Mauad X, 2010, p.29.20 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.18.21 OLES, 2007, p.468-469.22 Grupo formado pelos amigos Alejandro Gómez Arias (1906-1990), José Gómez Robleda (1904-1987), Ma-

nuel González Ramírez (1904-1979), Carmen Jaime, Frida Kahlo (1907-1954), Miguel N. Lira (1905-1961), Agustín Lira, Jesús Ríos Ibañez y Valle e Alfonso Villa.

23 BASTOS, Marli. Frida Kahlo: Para além da pintora. Rio de Janeiro – RJ: Mauad X, 2010, p.34.

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Em 17 de setembro de 1925, aos 18 anos, sofreu um terrível acidente de ônibus, no qual fraturou perna direita, ombro, coluna, costelas e bacia, tendo seu pé direito esmagado, além de seu quadril esquerdo e vagina perfurados por uma barra de ferro24, ocasionando peritonite aguda e cistite. Após um mês interna em um hospital, venceu a morte.

Já em casa, em tratamento para as terríveis dores na coluna e perna, ficou imobilizada por semanas em coletes ortopédicos, sendo obrigada a interromper seus estudos para a desejada carreira na medicina. Tomada pelo sentimento de solidão e tormenta pelas dores que a acompanharam ao longo de toda sua vida, dedicou-se a estudar arte, iniciando sua carreira retratando familiares e amigos em telas de fibras com tinta a óleo.25

Em 1927, mais recuperada, procurou o já consagrado pintor Diego Rivera, de quem era apreciadora há anos, para apresentar seus quadros26. Diego Rivera era um engajado comunista famoso por suas pinturas políticas em murais, com fama de conquistador. Frida também filiada ao partido comunista, se declarava filha da revo-lução mexicana, imbuída do mexicanismo; vestia-se com trajes típicos de mulheres tehuanas, sempre ornada com joias, flores e fitas em referência às tradições culturais de seu povo, em conexão com a feminilidade indígena e a natureza27. Desse encon-tro nasceu um relacionamento amoroso. Apaixonados, em 21 de agosto de 1929, os artistas se casaram, contra a vontade da mãe da pintora, que se incomodava com o fato de Diego ser comunista, ateu, obeso e 20 anos mais velho do que a filha28.

Ainda no mesmo ano, Frida teve o seu primeiro aborto, seguido da primei-ra crise conjugal ao descobrir a traição de Diego com uma de suas assistentes29. A artista, então, derrogou a segundo plano sua própria arte para acompanhar o esposo em sua intensa vida política e cultural. Assumiu o papel da mulher mexica-na submissa, dedicou-se a artes domésticas30 e mudou-se para os Estados Unidos.

24 RAUDA, Jamis. Frida Kahlo. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p.78.25 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT,

Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À flor da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.21.

26 Em diferente versão sobre como o casal teria se conhecido, conta-se que foram apresentados por intermédio da fotógrafa norte-americana Tina Modotti, a pedido de Frida Kahlo, que seria se apaixonado por Diego Rivera desde a primeira vez que o avistou na Escola Nacional Preparatória. (MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.20)

27 Assim como os autorretratos confirmavam sua existência, as roupas faziam com que a mulher frágil, quase sempre presa à cama, se sentisse mais magnética, mais visível e mais enfaticamente presente como objeto físico no espaço. Paradoxalmente, eram uma máscara e uma moldura. Uma vez que definiam a identidade de quem as usava em termos de aparência, as roupas distraiam Frida — e o observador — da dor interior (HERRERA, p.209-217).

28 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.2029 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT,

Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À flor da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.21

30 Para maior compreensão veja a obra Frida e Diego (1931), na qual Frida se retrata com submissão e devoção

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No dia 04 de julho de 1932, já na cidade de Detroit, sofreu seu segundo aborto, o que a levou a uma profunda depressão, agravada pela morte de sua mãe em 15 de setembro do mesmo ano.

Em 1934, de volta ao México, ao descobrir o caso de Diego com sua irmã Cristina, sofreu seu terceiro aborto, seguido de uma apendicectomia e a ampu-tação de cinco dedos do seu pé direito devido à complicação de sua doença crô-nica31. Um ano de intensa dor que fez com que a pintora rompesse com várias convenções sociais para se reconstruir como mulher.

Frida retomou com maior intensidade sua pintura e o seu casamento pas-sou a subsistir baseado em uma parceria artística com Diego para ajudá-la na divulgação, venda e exposição de suas obras. Nesse momento, à margem do sen-timento pelo esposo, Frida se permitiu vivenciar relacionamentos extraconjugais com homens e mulheres32, dentre eles, renomadas personalidades do universo político e cultural que a estimularam a se projetar no cenário europeu33.

Entre os anos de 1934 a 1939, o casal — de comportamento bastante di-ferenciado para a época — morava em casas separadas em San Angel, próximo a Coyoacán (atualmente Cidade do México)34, unidas por uma ponte. Em 1939, por insistência de Diego Rivera, os pintores se divorciaram, porém, já no ano seguinte o casal renovou o enlace, sob a condição exigida por Frida de que ela se mantivesse independente financeiramente por meio da venda de seus quadros, pagasse metade das contas domésticas e eles não se obrigassem a ter relações sexuais35.

Proporcionalmente à sua consagração artística, esta nova fase do relaciona-mento foi marcada pela conquista de autoconfiança, independência financeira e sexual de Frida. O casal passou a morar na conhecida Casa Azul36, construída pelo pai da artista, onde Frida retomou com mais força seu processo de criação.

ao marido, ao passo que Diego Rivera aparece com pincéis e paleta em sua mão.31 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT,

Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À flor da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.20-22

32 SANGUINO, Julieta. Los amores y amantes de Frida Kahlo. 6 de ago. 2015. 33 André Breton, um expoente do Surrealismo, encantado os quadros de Frida Kahlo, organizou sua primeira

e única exposição em vida em Paris, na Galeria Renon et DCollea, no ano de1939. Com sua ascensão na europa, consagrou-se como a primeira artista mexicana do século 20 a ter uma obra adquirida pelo Museu do Louvre, o Auto-Retrato – El Marco (1938). (MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.26)

34 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.2135 RAUDA, Jamis. Frida Kahlo. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 21336 La Casa Azul (A Casa Azul), localizada no bairro Colonia del Carmen de Coyoacán, na Cidade do México,

marca o local de nascimento, crescimento e falecimento de Frida. Atualmente abriga o Museo Frida Kahlo, com uma coleção de obras de arte de Frida Kahlo, Diego Rivera e outros artistas, além de objetos de arte popular mexicana, artefatos pré-hispânicos, fotografias, objetos e itens pessoais.

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Com o agravamento de seus problemas de saúde, entre os anos de 1944 e 1954, chegou a usar 28 coletes ortopédicos diferentes na tentativa de aplacar suas progressivas dores. Em 1950, passou por sete cirurgias, a maioria na sua coluna. Em 1953, teve a perna direita amputada devido à gangrena, tornando-se cada vez mais dependente de fortes medicamentos. Aos 47 anos, no dia 2 de julho de 1954, foi encontrada morta em sua casa, supostamente por trombose pulmonar37. Um recado em seu diário dizia: “Espero alegre a minha partida e espero não retornar nunca mais”, o que levantou rumores sobre a possibilidade de ela ter cometido suicídio por meio de uma overdose de remédios38.

Como se vislumbra, a vida de Frida Kahlo foi marcada por intenso sofri-mento físico e emocional diante dos muitos confl itos que nutria em seu universo feminino, retratado em sua obra na busca de autoconhecimento, sanidade e inte-gridade. As dores crônicas que sofria a limitavam, fazendo-a se sentir aprisionada e vítima do seu próprio corpo, objeto de cerca de 32 cirurgias39, constantemente autorretratado em sua obra como imperfeito, incompleto ou despedaçado.

Figura 4 - As duas Fridas

(Frida Kahlo, 1939)

Figura 5 - A coluna Partida

(Frida Kahlo, 1944)(Frida Kahlo, 1939) (Frida Kahlo, 1944)

Fonte: Site Cultura Genial1. Fonte: Google Arts & Culture2.

37 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À fl or da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.22-23

38 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.2939 Idem, p.28

452 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

Figura 6 - Sem esperança

(Frida Kahlo, 1945)

Figura 7 - O veado ferido

(Frida Kahlo, 1946)(Frida Kahlo, 1945) (Frida Kahlo, 1946)

Fonte: Google Arts & Culture3. Fonte: Site Educação e Arte4.

Frida Kahlo não usou de metáforas para esconder suas fragilidades. Empo-derou-se da arte para revelar suas próprias dores, sem restrições, de forma visceral, como forma de se libertar das frustrações pelos recorrentes abortos e do contur-bado relacionamento conjugal. Sua obra explorou intensamente o universo femi-nino – maternidade, infância e sexualidade — com a utilização de fl ores e frutas como símbolo de fertilidade ao lhes dar formas (sutis ou explícitas) de genitálias40.

A artista declarava que sua arte era realista41, uma espécie de “diário” da biogra-fi a mais completa que jamais poderia ser feita a seu respeito42, a expressão mais franca de si mesma. Suas pinturas misturavam autorretratos a paisagens mortas e cenas ima-ginárias, cheias de signos e simbolismos que revelavam a infl uência da arte folclórica mexicana, cultura asteca e tradição artística surrealista, em intenção de abolir a ideia de uma realidade única imposta pela sociedade e de revelar os ocultos femininos.

Diego Rivera, ao analisar o legado de Frida Kahlo, declarou que foi “a primeira vez na história da arte que uma mulher expressou com uma sinceridade total, descarnada e, poder-se-ia dizer, tranquilamente feroz, esses fatos gerais e particulares que dizem respeito exclusivamente às mulheres”43, por pintar seu próprio nascimento, sua alimentação ao seio, seu crescimento na família e seus sofrimentos terríveis de toda ordem.

Frida abdicou da autopreservação para revelar a essência feminina além de paradigmas físicos, sensoriais, sociais, culturais, religiosos e econômicos, transfor-

40 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.2341 Idem, p.3742 RAUDA, Jamis. Frida Kahlo. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1987,

p. 186-18743 Apud idem, p. 238

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mando a si própria em expressão artística e política. Com a exposição carnal, veemente e desnuda do seu corpo enfermo, tornou-se vanguardista por ressignifi -car o espaço das questões femininas.

Vítima da dor, signifi cou-a em tudo. Transformou-a em cores. Deu-lhe nome e lugar. Dor do corpo, dor de Diego. Dor que parecia impedir que se revelasse, mas era, em si mesma, o próprio motivo da sua revelação como mulher e como artista. A dor na arte guarda esse paradoxo, tira de nós para devolver, mata para permitir que nasça. Fragiliza para, em seguida, fortalecer, numa permanente desconstrução, urgente e necessária à construção. Parece-me que ela se manifesta na concepção criativa por meio da vivência de múltiplas mortes internas, sejam elas súbitas ou gradativas. Essas mortes e os consequentes nascimentos que delas derivam são vi-venciados pelo artista no seu processo criativo, em sensações que se intercalam entre a angústia e a euforia.44

Destinada a conviver com a representação da dor em sua própria imagem, recriou-se em cores vivas, resistiu e permaneceu45: apropriou-se de temas referen-tes à condição imposta a ela como mulher no desenvolvimento de sua própria identidade, e não apenas como fruto de um instinto natural feminino; trouxe notoriedade ao universo particular feminino por sua notoriedade no mundo das artes e da cultura; expôs a inexistência de limites entre o público e o privado que, à época, pareciam searas autônomas e intransponíveis às mulheres.

Figura 8 - O que a água me deu

(Frida Kahlo, 1930)

Figura 9 - Hospital Henry Ford

(Frida Kahlo, 1932)(Frida Kahlo, 1930)

Fonte: Portal Hacer1. Fonte: Google Arts & Culture2.

44 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.0245 Idem, p.15

454 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

Figura 10 - Me and my doll

(Frida Kahlo, 1937)

Figura 11 - Umas Facadinhas de Nada

(Frida Kahlo, 1939)

Fonte: Site Frida Kahlo3. Fonte: Google Arts & Culture4.

Ainda que inconscientemente46, Frida viveu e propagou a fi losofi a de que o “pessoal é político”47, veementemente sustentado pelas teóricas feministas radicais no início da década de 1960, tornando-se um ícone feminista por ignorar abertamente as relações do patriarcado e desafi ar os padrões estéticos, sociais e sexuais impostos às mulheres do início do século XX. Foi, para aquela geração, a personifi cação de uma mulher revolucionária, libertária e bem-sucedida profi ssionalmente.

Emancipada da fragilidade do seu corpo, fez-se intérprete e autora de sua própria vida, construindo saberes a partir do autoconhecimento e da valorização das experiências femininas, impondo-se como sujeito histórico, tornando-se, as-sim, uma imagem representativa da força das mulheres.

3 A PERFEIÇÃO DE BARBIE - DO VANGUARDISMO AO ES-TEREÓTIPO DE BELEZA

No ano de 1945, na Califórnia (EUA), Ruth Handler, seu marido Elliot Han-dler e Harold Matson fundaram a fábrica de brinquedos Mattel Co. Em uma época na qual as mulheres eram renegadas aos cuidados domésticos com a família, a empre-sária, mãe de uma menina chamada Bárbara, participava ativamente do funcionamen-

46 Frida nunca se declarou feminista. 47 Expressão da jornalista e ativista do feminismo radical norte-americano Carol Hanisch, publicada em 1969

no ensaio The Personal is Political, que deu visibilidade aos questionamentos da Segunda Onda Feminista.

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to da companhia formada, em sua grande maioria, por homens. Muitos funcionários resistiam ao fato de serem comandados por uma mulher e não valorizavam as ideias da empresária, que por diversas ocasiões se via obrigada a entrar pela porta dos fundos da própria fábrica e era impedida de frequentar alguns locais de reunião com clientes.

Observando o comportamento de sua filha com suas amigas, percebeu que as meninas trocavam constantemente a brincadeira de mãe e filha com bonecas bebês pela brincadeira com recortes de revistas com imagens de modelos simulando episódios da vida adulta alheias à maternidade. Assim, entendeu que ali existia um mercado ainda não explorado pela indústria de brinquedos: o desejo das garotas de projetarem seus futuros48 além da vida doméstica e cuidados com os filhos.

Anos depois, ao viajar com sua família para Europa, conheceu a boneca Bild Lilli, um souvenir criado em 1955 para o público adulto alemão, com pro-porções perfeitas para o corpo de uma mulher adulta. Fascinada por sua aparên-cia, comprou alguns exemplares e a apresentou ao designer da Mattel, Jack Ryan, para que a ajudasse no desenvolvimento de um novo projeto sob seu comando. A empresária desejava produzir uma boneca perfeita para revolucionar o mercado de brinquedos femininos, com corpo tridimensional de uma mulher adulta e jovem, com feições suaves realçadas por maquiagem, adornada com roupas e acessórios removíveis, uma típica modelo da moda adolescente.49

Após três anos de adaptações, chegou-se à miniatura de plástico de uma bela mulher, com pele clara, seios volumosos, cintura fina, proporções simétricas e impecavelmente bem vestida com roupas da alta costura, batizada por Ruth como Barbie (abreviação do nome de sua filha Bárbara). Os sócios e diretores da Mattel não acreditavam que a boneca pudesse ser um sucesso comercial por julgarem vulgar uma boneca com corpo de mulher. Porém, diante da insistência de Ruth, a reproduziram em larga escala para comercialização.

Em 1959, na Feira Anual de Brinquedos de Nova York, a Barbie foi lançada oficialmente como a primeira boneca norte-americana com feições adultas, ao preço de $3 (três dólares), nas versões loira e morena. Entretanto, foi um fracasso de vendas. Para os empresários e donos de lojas de brinquedos era inconcebível uma boneca adulta destinada às adolescentes, para os pais e mães, um escândalo ter em suas casas uma Barbie que pudesse denudar-se e revelar as formas femininas para suas filhas. 50

48 GERBER, Robin. Barbie e Ruth: A história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009, p.118

49 Idem, p.12, 2750 GERBER, Robin. Barbie e Ruth: A história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a

maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009, p.12

456 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

Diante dos exemplares encalhados, Ruth decidiu investir em campanhas de marketing para atingir diretamente o público-alvo do seu brinquedo51. Com propa-gandas comerciais nos intervalos dos programas infanto-juvenis de maior audiên-cia, anunciava às garotas um novo brinquedo dos sonhos, uma boneca com a qual poderiam fantasiar as mulheres que gostariam de ser no futuro, utilizando o slogan “Barbie: tudo que você quer ser”. A estratégia foi um sucesso e a Mattel inaugurou uma grandiosa campanha de vendas da Barbie, que se tornou o principal produto da empresa e a boneca mais famosa do mundo na versão definitiva loira52.

Após a plena aceitação do brinquedo, abriu-se um novo mercado para comercialização de novos modelos, personagens, roupas e acessórios da boneca, cuidadosamente estudado e acompanhado de perto por sua criadora. Ruth Han-dler, reconhecida por seu empreendedorismo, ganhou forças para personificar o ideal que criou para a sua boneca, impondo-se enquanto mulher e defensora das minorias, contratando mulheres, imigrantes e homossexuais (até então despre-zados pelo sistema produtivo americano) 53 para trabalharem diretamente na li-nha Barbie. Significativamente, a boneca Barbie foi inventada por uma mulher e reinventada pela gerência de outras mulheres que continuaram a ser as principais tomadoras de decisões na linha de produção da boneca 54 que, ao longo do tempo, tornaram-na cada vez mais contemporânea.

Se a primeira Barbie surgiu como uma top model em oposição ao es-tereótipo da dona de casa americana do pós-guerra incentivada a colocar o casamento e a maternidade como suas aspirações mais elevadas55, a Bar-bie Moça Ocupada (1960) prenunciou a emancipação feminina pelo traba-lho, precedendo a linha “We girls can do anything” 56 que convocava as meninas

51 Idem, p.15152 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company,

2004, p. 5953 GERBER, Robin. Barbie e Ruth: A história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a

maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009, p.15454 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company,

2004, p.2955 FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Trad. Áurea B. Weissenberg. Petrópolis: Vozes Limitada, 1971, p.47-7056 A Mattel já lançou mais de 150 modelos de profissionais, dentre eles: Barbie Bailarina (1961), Barbie Enfermeira

(1961), Barbie Piloto (1961), Barbie Tenista (1962), Barbie Patinadora (1962), Barbie Executiva (1963), Barbie Formanda (1963), c, Barbie Professora (1965), Barbie Aeromoça (1966), Barbie Designer (1967), Barbie Instrutora (1970), Barbie Cantora (1971), Barbie Cirurgiã (1973), Barbie Miss América (1974), Barbie Esquiadora (1975), Barbie Patinadora (1975), Barbie Ginasta (1975), Barbie Bailarina (1976), Barbie Atleta Olímpica (1976), Barbie Atriz (1977), Barbie Fashion Model (1977), Barbie Pianista (1982), Barbie CEO (1984), Barbie Repórter de TV (1985), Barbie Veterinária (1985), Barbie Professora (1985), Barbie Estrela do Rock (1986), Barbie Doutora (1988), Barbie Embaixatriz da UNICEF (1989), Barbie Médica das Forças Armadas (1989), Barbie Piloto da Aeronáutica (1990), Barbie Diplomata (1990), Barbie Estrela da música (1991), Barbie Suboficial da Marinha norte-america-na (1991), Barbie Sargento na Marinha (1992), Barbie Cantora de Rap (1992), Barbie candidata à Presidência (1992), Barbie Policial (1993), Barbie Médica nas Forças Armadas (1993), Barbie jogadora de basquete (1993), Barbie mergulhadora (1993), Barbie Líder de Esquadrão policial (1993), Barbie Salva-vidas (1995), Barbie Bombei-ra (1995), 1996 Barbie Veterinária (1996), Barbie engenheira (1996), Barbie Dentista (1997), Barbie paleontóloga

JanaYna nunES PErEira 457

a sonharem com carreiras profissionais ainda incomuns para mulheres de seu tempo57.

A Mattel, com seus designers, profissionais de marketing e pesquisadores de mercado, vislumbraram na Barbie um fenômeno de merchandising que neces-sitava ser continuamente reinventado para acompanhar os anseios das mulheres moldando-se às transformações culturais e exigências sócio-políticas, sem, contu-do, perder a permanente preocupação com o perfeccionismo estético da boneca58. Essa fórmula trouxe um consequente sucesso da Barbie, que se transformou em ícone feminino da cultura popular americana do século XX59, progressivamente forjado como estereótipo de beleza desejável às mulheres a partir de uma cultura de narcisismo propagada ostensivamente pelas mídias comunicativas para inten-sificação dos lucros da Mattel60. A estrela da empresa passou a ser pensada como estímulo à compra de itens para bonecas, bem como de cosméticos, acessórios, roupas, brinquedos, filmes e tantos outros produtos para crianças, responsáveis por movimentar bilhões de dólares por ano.

Assim, a Barbie criada para dizer às meninas que uma mulher poderia ser livre, inclusive, para não ter namorados, casar-se ou ter filhos como ato de escolha consciente feminina61, começou a propagar uma feminilidade idealizada no bioti-po de mulheres altas, magras, loiras e bem-vestidas62. Mostrando-se sempre feliz, esbelta e atraente, criou um pedestal de perfeição para a representação feminina duramente combatido como discurso de objetificação63 que, inconscientemente, incitaria mulheres a replicarem um padrão de beleza irreal e a romantizarem uma

(1997), Barbie vendedora (1997), Barbie Piloto de Fórmula 1 (2000), Barbie Treinadora de futebol (2008) e Barbie Presidente (2012). (ARRUDA, Renata. Estaria a Barbie evoluindo com as mulheres? 2011.)

57 GERBER, Robin. Barbie e Ruth: A história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009, p.254-255

58 Ernest Dichter, com sua metodologia futurista cheia de símbolos freudianos, jargões clínicos e verniz científico, foi o grande responsável por projetar o sucesso de Barbie por discursos manipuladores na mídia televisiva. Os brinquedos da Barbie foram desenvolvidos, segundo ele, a partir de pesquisas motivacionais para expor toda uma filosofia do jogo, cujo objetivo era “aliviar a tensão, manter o ‘equilíbrio psicoeconômico’ das crianças diante do conhecimento crescente, dos corpos em crescimento e da crescente pressão do mundo adulto” (LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p. 27-30).

59 Idem, p.1260 CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava Barbie: uma boneca para todos e para

ninguém. Fractal: Revista de Psicologia. v. 24, n. 3, set./dez. 2012, p.627-62961 Segundo a narrativa oficial pela Mattel, a Barbie namorou o personagem Ken nos anos de 1961 a 2004, rea-

tando o relacionamento em 2010. Porém, apesar das várias versões da Barbie vestida de noiva, a personagem nunca se casou ou teve filhos (SILVA, 2014, p.40). Há registros de que depois que a Mattel distribuiu roupas de casamento para Barbie e Ken, crianças clamavam por filhos do casal. O que foi terminantemente resistido por Ruth, declarando que “a gravidez não prejudicaria o físico de Barbie, nem uma progênie comprometeria sua liberdade”, “assim como ela não depende dos pais, ela não teria descendentes dependentes dela”. Para aplacar os anseios de seus consumidores, em 1969 a Mattel lançou a coleção "Barbie Baby-Sits" como meio de vender bebês sem vinculá-los à maternidade da boneca (LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p.33)

62 CÉ, Otavia; GOMES, Fernanda. Boneca sim, perfeita não. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2016. Anais... São Paulo: InterCom-Sociedade brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2016, p.8

63 Idem, p.3

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vida sem oscilações físicas, emocionais e fi nanceiras como forma de serem felizes em uma sociedade machista. O termo barbie passou a ser difundido pejorativamente como referência a uma mulher fútil, excessivamente vaidosa e/ou pouco inteligente.

Ruth Handler, entretanto, sempre defendeu a corporeidade de Barbie como espelho dos ideais pré-existentes das mulheres de cada época, não como declara-ção de arquétipo de beleza a ser seguido64, justifi cando que os modelos da boneca foram redesenhados constantemente ao longo do tempo para se adaptar aos novos contextos sociais e culturais femininos, e não ao contrário.

Foto 12 – Mudanças da boneca Barbie ao longo do tempo

Fonte: Compilação da Autora65

64 SIMILI, Ivana Guilherme; SOUZA, Michely Calciolari de. História das meninas e das bonecas: as práticas de embelezamento nas “dicas de beleza da Barbie”. In: VI Congresso Internacional de História, 2013, Maringá. Anais... Maringá: Programa de Pós-graduação em História e pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, 2013, p. 7-11.

65 Coletânea montada a partir da imagens disponíveis em http://www.mybarbiedoll.com.br e https://exame.abril.com.br/marketing/veja-a-evolucao-ano-a-ano-do-rosto-da-barbie-de-1959-a-2015/. Acesso em 04 abr. 2020.

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De fato, existiram muitas mudanças na fisionomia, penteados e propor-ções de Barbie ao longo dos seus mais de 50 anos, bem como na retratação de alguns padrões estéticos étnico-raciais de outros personagens, a exemplo de suas amigas negras Tammy (1965), Misty, Julia (1969), Tressy, Colored Fran-cie (1967) e Christie (1968); sua amiga latino-americana Tereza (1988), suas amigas asiáticas Miko (1988), Kira (1989) e Nolee (2003); sua amiga tetra-plégica Becky (1996); dentre muitas outras personalidades reais homenageadas em séries especiais. Porém, inegável a preponderância das feições eurocêntricas na maioria dos modelos originalmente lançados. A primeira Barbie negra com cabelo crespo foi lançada em 1980, mas adaptações no modelo considerando-se verdadeiramente o biotipo afrodescendente, apenas ocorreram em 2009, na co-leção “Barbie So In Style”.

As adequações visuais de Barbie e os demais personagens da Mattel sempre foram recepcionadas com divergentes julgamentos pela sociedade. Por um lado, os fãs e colecionadores de Barbie compreendiam as mudanças como busca pela re-presentação de diferentes etnias em um discurso multiculturalista e inclusivo que constituiria uma memória da cultura ocidental66. Por outro, seus críticos com-preendiam os novos lançamentos como abjeto fomento à cultura do consumo67.

Em 2016, a Mattel rompeu efetivamente a estética corporal hegemônica da Barbie, passando produzi-la em diferentes biotipos (Petite, Curvy e Tall) na cole-ção Barbie Fashionista, com variação de corpos, alturas, cabelos, tons de pele e cor de olhos, em declarada campanha pela identificação com seu consumidor68. As críticas à Barbie passaram a convergir positivamente como processo de descons-trução da perfeição de suas formas para construção de uma imagem real feminina em toda sua diversidade.

66 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p.13- 16, 37-38, 121-126

67 CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava Barbie: uma boneca para todos e para ninguém. Fractal: Revista de Psicologia. v. 24, n. 3, set./dez. 2012, p.624

68 CÉ, Otavia; GOMES, Fernanda. Boneca sim, perfeita não. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2016. Anais... São Paulo: InterCom-Sociedade brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2016, p.8

460 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

Foto 13 – Coleção Barbie Fashionista

Fonte: Divulgação Mattel1.

Fato é que, embora a existência e o sucesso de Barbie gerem inúmeras po-lêmicas entre teóricas feministas, os marcos históricos de suas coleções estão ir-remediavelmente vinculados às lutas emancipatórias femininas e suas recorrentes pautas. Decisões coorporativas foram moderadas por atos políticos pró-feministas de Ruth Handler e Charlotte Johnson na Mattel Co. 69

Gerações de crianças moldaram suas identidades de gêneros a partir das vivências experimentadas com a boneca70. Barbie transcendeu o corpo de uma bo-neca e se tornou uma personalidade autêntica e universalmente conhecida, com forte identidade com a história das mulheres ocidentais e capaz de infl uenciar vidas e famílias.71

4 O PARADOXO BARBIE FRIDA KAHLONas sociedades pré-modernas a corporeidade representava a racionalidade

do ser humano, entendendo-se que as pessoas eram em si a signifi cação dos seus próprios corpos como indivíduos detentores de vida. As pessoas não tinham corpos, elas eram seus corpos. O corpo era apontado como espaço e lugar onde

69 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p. 48-54

70 Apoiados à tese de Judith Butler (Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, 1990) de que gênero é algo realizado, artifi cial, “uma espécie de representação e aproximação”, existem pesquisas da teoria que apontam a forte incluência de Barbie na formação da sexualidade de meninos e meninas (Idem, p.101, 132, 140).

71 Betty Friedan, importante ativista feminista estadunidense do século XX, declarou que a biografi a de Barbie diz muito sobre a vida das mulheres ao longo de décadas, possibilitando uma análise dos vestígios da mística feminina que ainda infecta jovens mulheres (apud LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biogra-phy of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p.02)

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se efetivam as prescrições em torno de suas realidades, determinando seus tem-pos e seus ciclos72 .

Dentro dessa realidade, os arquétipos de feminilidade foram construídos a partir da sub-rogação do corpo feminino aos padrões sociais de um sistema pa-triarcal. A mulher era analisada, julgada e valorada sob a dimensão da perfeição ou imperfeição de suas formas físicas tendo em vista seus pré-concebidos destinos ao casamento, maternidade, recato e submissão.

Já na sociedade moderna, com o desaparecimento da narrativa comum de mitos que orientem a jornada da existência, surge uma pluralidade de valores a se-rem experimentados, percebidos e anunciados em relação ao corpo. A corporeidade fez-se sinônimo de corpo humano com sua rede de relações consigo mesmo, com outros corpos, com o corpo social e com o cosmo73, sendo ponto de partida para a significação de identidades e experiências, e não um determinismo biológico.

O corpo é passível de decisões políticas que interferem diretamente em sua cons-tituição, mas não é passivo diante de tais decisões, visto que reage a elas, questio-nando-as e/ou rejeitando-as. Para cada ação existe uma reação, uma resistência, e assim a dinâmica das relações de poder toma lugar. [...] Foucault afirma que os me-canismos de poder não reprimem apenas mas também seduzem, ou seja, oferecem alguma vantagem. Assim, os corpos dóceis, por exemplo, podem representar o po-der do Estado, mas também se tornam individualmente belos, fortes, respeitados e desejosos. A sexualidade, por sua vez, apesar das restrições, passa a conhecer a si mesma e a encontrar outros espaços de realização e vivência. Em ambos os exem-plos é desenvolvido um saber sobre o corpo que lhe atribui poder e que reproduz o poder de um corpo individual para o corpo social.74

O estudo de gênero, neste sentido, reivindica a corporeidade como me-diação hermenêutica do saber, do poder e dos corpos das mulheres75 para in-terpretar a história das pessoas e da humanidade76 por meio das subjetividades que os marcam, pois o corpo da mulher é síntese de conhecimento e saberes por registrar as marcas de uma cultura e sociedade dualista, hierárquica, assi-métrica e cerceadora do potencial humano77. Sendo qualquer exame do cor-

72 DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga J.. S. À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.8

73 Idem, p.674 CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava Barbie: uma boneca para todos e para

ninguém. Fractal: Revista de Psicologia. v. 24, n. 3, set./dez. 2012, p.62875 DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga J.. S. À flor da pele: ensaios sobre gênero e

corporeidade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.876 Idem, p.4077 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT,

Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À flor da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p. 14-15

462 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

po feminino inevitavelmente uma análise do espaço da mulher como sujeito social com reflexões na perspectiva foucaultiana78, nas teorias feministas e de identidade de gênero.

A identidade feminina, sob o prisma da corporeidade, não é uma simpli-ficação do sujeito histórico79 que ela escolhe ser por suas formas físicas, como posto na polêmica em torno da comercialização da Barbie Frida Kahlo pela famí-lia da artista ao reduzir sua essência feminina a um corpo imperfeito. É preciso compreender que, para além dos contornos anatômicos, existem representações, linguagens e discursos que tecem a individualidade feminina.

A representação expressa a ação ou o efeito de expor, exibir, figurar, produ-zir ou simular a imagem de algo no que se refere aos seus aspectos mentais, lin-guísticos e artísticos, pressupondo, simultaneamente, movimentos de “presentifi-cação” e de repetição.80 O discurso não se limita à representação do mundo, é uma prática que constrói o mundo em significado81, moldando ações e pensamentos. A linguagem, por sua vez, é o meio pelo qual essas práticas estabelecem a construção das relações sociais.82

Michelle Chidoni, vice-presidente da Mattel Co., defendeu que Barbie Fri-da Kahlo foi lançada como representação de uma mulher que fez coisas incríveis em seu tempo como exemplo de história da vida real para as garotas se inspira-rem83. A Frida Kahlo Corporation, por sua vez, declarou que a boneca seria uma “representação para celebrar as contribuições ideológicas de Frida Kahlo que transcen-deram as fronteiras da arte para influenciar novas gerações, conservando a essência da Barbie e o legado de Frida Kahlo”84. Ou seja, como se compreende, mais do que uma simples sobreposição de corpos, o ponto a ser debatido refere-se à sobrepo-sição das duas corporeidades, que devem ser analisadas quanto à possibilidade de associação de Frida à Barbie como representação feminista pelas identidades construídas ao longo de suas histórias.

78 Na perspectiva foucaultiana, os estudos sobre governo analisam procedimentos, táticas e estratégias usadas para exercer o controle da conduta, como no autogoverno, os modos de os indivíduos conduzirem a si mes-mos, envolvendo alguma forma de controle e direcionamento ou modelo apresentado por diversos mecanis-mos políticos. (FOUCAULT, 1993, 1996)

79 VIANNA. Lucia Helena de Oliveira. Obra íntima e obra pública: marginalidades em Frida Kahlo e Clarice Lispector. Revista ANPOLL, n.11, jul./dez., 2001, p.178

80 CAMARGO, Raquel Peixoto do Amaral; RABENHORST, Eduardo Ramalho. (Re)presentar: contribuições das teorias feministas à noção da representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 3, set./dez., 2013, p.982

81 FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p.2182 Idem, p.2983 TUCKMAN, Jo. Frida Kahlo's family complain after artist is made into Barbie doll. Telegraph [United Kin-

dom]. 9 mar. 2018.84 THE GUARDIAN. Mexican court blocks sales of Frida Kahlo Barbie doll. 20 Apr. 2018.

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Nesse sentido, como edificado pelas teorias feministas, é necessário com-preender que a representação, para contemplar toda a complexidade que define a integridade de cada mulher, deve ocorrer, pelo menos, nas esferas política, social e estética.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.85

A mulher é representada socialmente pela significação que atribui ao femi-nismo enquanto movimento crítico; politicamente, pela compreensão das dis-cussões acerca da identidade entre o sujeito que a representa e seus próprios inte-resses; e esteticamente, pela imagem que se projeta de sua feminilidade.86 Logo, os discursos subjetivos projetados pelas histórias de Barbie e de Frida são deter-minantes para a identificação de coerência representativa na Barbie Frida Kahlo como um manifesto de integralidade feminina.

Feminismo é a tomada de consciência das mulheres, como coletivo hu-mano, da opressão, dominação e exploração das quais foram (e são) vítimas em razão de um sistema patriarcal resistente a diferentes fases históricas, que as move em busca de liberdade de seu sexo e de toda transformação que seja necessária na sociedade para esse fim87. Neste contexto, a família, a sexualidade, o cuidado com as crianças, os papéis cabíveis a homens e mulheres, a exclusão das etnias periféri-cas e as opções religiosas são questões que ultrapassam a ordem de subjetividades domésticas e ganham relevância política88.

Frida tornou-se referência feminista por subverter as convenções sociais no tocante à sexualidade, instituição familiar e domínio masculino em face das mulheres. Vestiu-se de homem em contestação aos padrões culturais da época, estabeleceu regras dentro de sua relação conjugal, viveu e declarou sua bissexuali-dade, construiu sua feminilidade à margem da maternidade frustrada, buscou sua independência financeira em carreira própria, e se utilizou da arte para denunciar ao mundo uma perspectiva realista das angústias sofridas pelas mulheres em seus universos reprimidos.

85 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida. 2ª ed., Trad. Sérgio Millet. São Paulo: Difu-são Europeia do Livro, 1967, p.09

86 CAMARGO, Raquel Peixoto do Amaral; RABENHORST, Eduardo Ramalho. (Re)presentar: contribuições das teorias feministas à noção da representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 3, set./dez., 2013, p.986

87 GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2011, p. 19-2588 VIANNA. Lucia Helena de Oliveira. Obra íntima e obra pública: marginalidades em Frida Kahlo e Clarice

Lispector. Revista ANPOLL, n.11, jul./dez., 2001, p.178

464 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

O que, em certa medida, também fez Barbie ao estimular a ocupação dos espaços públicos pelas mulheres, projetar a participação feminina no mercado de trabalho, desmistificar incapacidades atribuídas ao sexo feminino, anunciar o em-poderamento pela autonomia financeira, romper com a idealização do casamento e da maternidade como significação da feminilidade, e conceber um protagonis-mo feminino. A filosofia de vida da personagem se assemelhava com a da mulher feliz, solteira, financeiramente independente, não subserviente e sexualmente li-berta, defendida pela revolucionária Helen Gurley Brown em seu livro Sex and the Single Girl89, lançado no ano de 1932.

Barbie e Frida viveram diferentes processos de subjetivação em diferentes épocas e dimensões, nunca se declararam ativistas pela igualdade de gênero, mas ambas podem ser representadas socialmente como feministas por preconizar a ruptura de papeis pré-estabelecidos para mulheres na sociedade. Contudo, se re-presentavam politicamente de formas diametralmente opostas. Frida exercia sua feminilidade pautada na valorização das raízes culturais mexicanas com o desejo fervoroso de uma organização socioeconômica comunista para o estabelecimento de uma sociedade igualitária, sem classes sociais e meios de opressão. Barbie ex-põe sua feminilidade como reflexo da cultura norte-americana, é produto de um meio de produção privado, nascida em sistema capitalista pautado em um modo de vida com estímulo ao consumo e que concede o capital como meio pelo qual a mulher poderia emancipar-se em condições de igualdade.

Apesar de ter morado por três anos nos Estados Unidos da América e ini-ciado seu sucesso ali, Kahlo tinha aversão ao capitalismo e ao povo norte-ameri-cano, chegando a retratar as diferenças entre o país e o México em alguns de seus quadros90. Tão oposta quanto a representação política dessas duas personalidades apenas suas percepções estéticas sobre a feminilidade.

Frida, ainda que se utilizasse de elementos simbólicos e inconscientes, re-tratava em suas pinturas a realidade feminina em todas as suas imperfeições, ex-punha corpo e rosto fora dos “padrões” de moda e aparência91 sem romantismos, a ponto da sua arte tornar-se um ensaio para uma hermenêutica feminista que usa a corporeidade como um de seus eixos92. Barbie foi projetada como ideal

89 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company, 2004, p.33

90 MACEDO. Vanessa Freitas de Paiva. Frida Kahlo – Entre chagas e borboletas. Campinas: [S.n.], 2008, p.20-2191 MELO, Ezilda. Quando Frida sorriu. Empório do Direito: jul. 2015.92 DEIFELT, Wanda. O corpo em dor – uma análise feminista da arte pictórica de Frida Kahlo. In: DEIFELT,

Wanda; MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga Janete. À flor da pele: Ensaios sobre gênero e corporei-dade. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2017, p.13

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estético feminino de perfeição e se tornou um fenômeno por aposição do desejo sobre o tangível. Contrariamente à representação estética de Frida que enalteceu a força feminina, o narcisismo de Barbie ensejou o empobrecimento do feminino ao estabelecer um estereótipo imaginário construído com clichês93 que dialogam contrariamente à filosofia feminista de contracultura hegemônica e opressora.

Portanto, como se depreende, Barbie não representa Frida diante do pa-radoxo político e estético subjetivado por ambas. A boneca Barbie Frida Kahlo, consequentemente, não é uma representação ou tributo à Frida, mas um artefato provocativo e invocativo das individualidades feministas construídas por cami-nhos divergentes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISDois pontos são relevantes à análise do conflito em questão: a titularidade

dos direitos patrimoniais e morais da pintora e o possível dano à sua honra ou reputação. A quem pertencem os direitos autorais de Frida? Quem poderia au-torizar a reprodução das bonecas? Quem poderia questionar o possível dano à reputação da artista pela “representação”?

Nos termos da Convenção da Organização Mundial da Propriedade In-telectual – OMPI (ONU,1967)94, Barbie Frida Kahlo é um modelo industrial tutelado quanto à propriedade intelectual de seu desenho, enquanto Frida Kahlo é autora titular dos direitos sob os domínios de sua atividade humana, especial-mente no que concerne à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico. A Convenção de Berna (ONU, 1886) prevê a proteção dos direitos patrimoniais e dos direitos morais do autor, considerando: os primeiros como o direitos por autorização de tradução (art. 8) e/ou permissão de reprodu-ção (art.9-1)/adaptação (art. 12)/representação (art.11 e 11bis); e os segundos como direitos por nominação/paternidade/integridade da obra em face de even-tuais alterações.

Em 19 de julho de 2018, o Juez del Juzgado Tercero del Circuito de lo Civil Primer Circuito Judicial de Panamá julgou improcedente a Ação promovida por

93 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida. 2ª ed., Trad. Sérgio Millet. São Paulo: Difu-são Europeia do Livro, 1967, p.474

94 Panamá, Estados Unidos da América e o México são membros signatários da Organização Mundial da Pro-priedade Intelectual – OMPI/WIPO, que define como Propriedade Intelectual a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções de radio-difusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e deno-minações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico (BARBOSA, 2010, p.10)

466 BarBiE X FriDa KaHLo: uma anáLiSE FEminiSTa aLém Da PErFEiÇÃo DaS FormaS

Mara Cristina Teresa Romeo Pinedo para a anulação de cessão de direitos e dis-solução da Frida Kahlo Corporation, reconhecendo a validade da transferência dos questionados direitos exclusivos adquiridos da Sra. Isolda Pinedo Kahlo, única sucessora em linha colateral da Sra. Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón – Frida Kahlo 95. A referida decisão torna legítimo o contrato firmado entre Mattel e Frida Kahlo Corporation para comercialização e distribuição da boneca.

Ocorre que, nos moldes do art. 6bis, 1, da Convenção de Berna, inde-pendentemente dos direitos patrimoniais e sua cessão, os sucessores de Frida conservam o direito de se oporem a toda deformação, mutilação ou a qualquer dano prejudicial à sua honra ou à sua reputação. O que nos induz ao seguinte questionamento: a boneca realmente ultraja o legado de Frida pela associação à imagem de Barbie?

Até o presente momento, nenhum Tribunal respondeu especificamente ao ponto, permanecendo a contestação da reprodução da boneca sub judice no Méxi-co. Não se sabe, ao menos, se haverá uma pronúncia definitiva para o caso, diante da iminente possibilidade de acordo entre os envolvidos. Entretanto, existe uma verdade inegável: ainda que não se possa reconhecer Barbie Frida Kahlo como uma representação ao legado artístico-ideológico de Frida, e se observe o flagrante interesse capitalista no uso de sua popularidade, é um retrocesso atribuir-lhe cará-ter ofensivo em repulsa à imagem de Barbie.

O grande desafio atual da estética feminista é criar estratégias de represen-tação que alterem a própria estrutura de referência daquilo que pode ser visto, estabelecendo-se uma política de visibilidade que leve em conta a pluralidade dos sujeitos envolvidos. A radicalização de pretensões pode implicar a associação ampla e desproporcional de propostas atribuídas ao Feminismo (que sequer são universais ou absolutas), ensejando a resistência de muitas mulheres em se identi-ficarem como feministas.96

As mulheres não precisam ser universais, com padrões de representação pré--estabelecidos como requisito à tomada de consciência das circunstâncias de domi-nação a que são submetidas. Tampouco deve existir qualquer espécie de sobreposi-ção ou nivelamento de subjetividades entre si. Mulheres concretas, heterogêneas e múltiplas que busquem a construção consciente de suas identidades devem estabele-

95 VOCERA, Beatriz Alvarado. Frida Kahlo Corporation gana demanda promovida por Mara Cristina Teresa Romeo Pinedo en Panamá. Imagem de Verta Cruz [Mexico]. 19 jul.2018.

96 CAMARGO, Raquel Peixoto do Amaral; RABENHORST, Eduardo Ramalho. (Re)presentar: contribuições das teorias feministas à noção da representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 3, set./dez., 2013, p. 987-994

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cer, cada uma a seu modo, o seu padrão representativo de feminilidade e feminismo, compartilhando a meta igualitária como estratégia de ação política97.

Neste sentido, a materialização da Barbie Frida Kahlo evidencia a possibili-dade desta ponderação ao colocar, no centro do conflito, a representação de duas personagens femininas opostas. O despertar para análise da linguagem publici-tária e do discurso visual e textual como meio para contraposição da perfeição/imperfeição das formas no contexto da corporeidade revela o potencial revolucio-nário de se abordar o feminismo sob diferentes parâmetros de feminilidade.

Mesmo que a mercantilização das imagens de Barbie e de Frida seja um processo mais profundo do que uma simples intencionalidade progressista de educar meninas, sob o comando do grupo que detém o poder de representação98, é inquestionável que o lançamento de Barbie Frida Kahlo, sobretudo em referên-cia ao Dia Internacional da Mulheres, propaga um discurso de admiração a uma personalidade feminista como ato político.

De muitas maneiras, a Barbie foi um brinquedo projetado por mulheres para ensinar às mulheres o que, de melhor ou pior, é esperado delas pela socie-dade99. Quando rompe o signo da perfeição perpetuado em suas formas durante décadas e faz apologia à ideologia feminista, comunica uma mudança no posicio-namento da indústria para atender às necessidades de uma geração. Barbie Frida Kahlo, portanto, não deve ser recepcionada como veneração ou agravo ao legado de Frida, mas festejada como atestado de necessidade da Mattel ressignificar a sua narrativa no século XXI diante do desenvolvimento da visão crítica do seu público-alvo, que se promoveu à condição de receptor ativo (não mais passivo) das subjetividades femininas.

97 Idem, p.99098 Apud RIBEIRO, 2013, p.308-30999 LORD, M. G. Forever Barbie: The unauthorized biography of a real doll. New York: Walker & Company,

2004, p.13

AS SIGNIFICAÇÕES DA JUSTIÇA EM THEMIS E DIKÉ: FE-MININO, ARTE E ABERTURA DE SENTIDO

Uda Roberta Doederlein Schwartz 1

Dadas as suas limitações, a lógica formalista que rege o pensamento ociden-tal é incapaz de alcançar o fundamento de profundidade ínsito à justiça e ao femi-nino. No que toca à justiça, “independentemente de qualquer tomada de posição, traduz uma complexidade de expectativas que tornam difícil sua conceituação”2. O positivismo jurídico, que preconiza uma visão científica do Direito (nesta qua-lidade, tratando-se de reprodução do positivismo filosófico e do pensamento ra-cionalista), “vê na justiça um absurdum a ser combatido, pois sua realidade seria metafísica e impossível de ser conceituada”3.

Assim, para se atingir uma profusa compreensão do significado da justiça, são necessários outros parâmetros que não aqueles de cunho simplesmente lógico, revelando-se uma profícua opção a sua busca na história ancestral ocidental, nas representações artísticas e nas suas ligações com o feminino.

Localizando a poesia de Homero como a mais longínqua manifestação li-terária com referência à justiça, havia nela conteúdo vigorosamente trágico, face à presença da ideia de “Ananke”4:

A poesia homérica está impregnada pela noção de destino (Ananke), como res-ponsável pela distribuição social dos homens, assim como de seus valores, riquezas e condições, o que, de fato, somente ajudou a justificar durante vários séculos a irregularidade tanto das condições de vida, quanto da distribuição da justiça, e fez do homem objeto passivo do mundo dos deuses, joguete das vontades, das iras ou das discórdias entre os deuses.

Não só Ananke (deusa grega sem rosto, cuja força é confirmada pela inevi-tabilidade do destino e supremacia da necessidade sobre a liberdade, equivalendo à noção de “necessidade”), mas as suas três filhas, as Moiras, desempenhavam papel fundamental naquilo que a Grécia antiga entendia por “destino”: segundo a

1 Juíza de Direito da Comarca de Barra do Ribeiro/RS. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Penal e Processo Penal. Bacharel em Filosofia. Mestranda em Direito – UFRGS – Ênfase “Direito Europeu e Alemão”. É mãe da Marina e da Vitória. Gosta de ler, de estudar e de escrever. Sonha com um mundo com menos desigualdades sociais e de gênero.

2 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; DE ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de Filosofia do Direito. São Pau-lo: Atlas, 2005, p. 594.

3 Ibidem, p. 595.4 Ibidem, p. 77.

470 aS SiGniFiCaÇÕES Da JuSTiÇa Em THEmiS E DiKé: FEminino, arTE E aBErTura DE SEnTiDo

mitologia grega, as Moiras fabricavam, teciam e cortavam o fio do destino da vida dos indivíduos, usando a “Roda da Fortuna” (“fortuna”, aqui, possui significado mais aproximado ao de “sorte” que ao contemporâneo de riqueza).

Mas é na épica de Homero que passam a ser utilizados os vocábulos “thé-mis” e “diké”, a significarem, ambos, “justiça”, porém em diferentes sentidos. A primeira expressão – “thémis” – designava, em tal autor, conservação, perma-nência, tradição, costumes. Vinha “thémis” carregada, portanto, de uma forte pressão dos antepassados, significando a ligação “entre o que era e o que será, não somente num sentido temporal, mas especialmente num sentido moral, ou seja, no sentido de que o que era deve continuar sendo, como medida de dever-ser do comportamento das novas gerações”5. Quanto a “diké”, era possível inicialmente entendê-la, na épica homérica, por dois sentidos6:

Dentro dos textos homéricos, o termo diké ora designa algo diverso de thémis, na Ilíada, ora se aproxima do sentido de thémis, como algo sagrado, na Odisseia. Esse desnível entre a Ilíada e a Odisseia, no que tange à significação de diké, é bastante significativo para a compreensão do processo de construção da própria ideia de jus-tiça na consciência da civilização grega. Isto porque tal referência a uma diké como força oposta à bia (violência), na Ilíada, já revela que a diké tinha incorporado nela um certo sabor de transgressão, especialmente por ser algo que se associa à ideia de uma resistência à estrutura de classes.

Fluindo a História, a significação de “thémis” para a Filosofia foi desapare-cendo. Nos pré-socráticos, o vocábulo de maior emprego não é “thémis”, mas sim “diké”7: sob o pano de fundo que caracterizou os filósofos pré-socráticos, justiça exibe sentido cosmológico. Dito de outra forma, assim como todas as demais concepções (inclusive as jurídicas e morais), a justiça era vista pelos pré-socráticos de modo imbricado ao mundo físico e ao universo8:

(...) palavras fundamentais pensadas a partir da experiência e transpostas para o campo teórico de explicação do universo (como a palavra justiça) tinham uma significação ampla, de longo alcance para além do campo restrito das disciplinas particulares (no caso o direito e o costume), e podiam ser usadas para explicar os acontecimentos do mundo físico. Note-se que não se trata de uma mistura en-tre as considerações jurídicas e físicas, simplesmente porque distinções entre esses campos do conhecimento ainda não haviam sido feitas, isto porque não se pode misturar aquilo que ainda não foi separado.

5 BITTAR e DE ALMEIDA, 2005, p. 78.6 Ibidem, p. 79.7 Ibidem, p. 79.8 ROSSETI, Regina. Justiça como Metáfora do Surgimento do Universo. In: Revista Páginas de Filosofia, v.

2, n. 2, p. 3-12, jul/dez. 2010, p. 09.

uDa roBErTa DoEDErLEin SCHWarTz 471

O sentido de “diké”, assim, era de justiça como reguladora das transfor-mações daquilo que existe, justiça influenciando o vir-a-ser. A “diké” assentava a ordem e a unidade no cosmos9:

Por isso, diké, termo já em voga e de maior uso vulgar que outro qualquer para significar justiça, e não thémis, ocupa o lugar terminológico necessário para de-signar a ordem do cosmos, a esfera das leis que cumprem a função de dar con-junção ao todo universal. Por isso, apesar de ser algo comum a todos os pré-so-cráticos a reverência cosmológica e o problema da phýsis (existe uma ordem justa natural cosmológica), herança do período mitológico (apesar do pensamento racional), é no termo diké que haverão de encontrar a palavra adequada para se referir à justiça (...)

Além disso, o uso cosmológico de “diké” pelos pré-socráticos representou um passo à frente da concepção homérica de “thémis”, na medida em que “diké” não possui “os traços mitológicos e sagrados que marcavam as concepções do período anterior ao século VIII a.C., apesar de guardar um hermetismo típico da transição do mitológico ao filosófico”10.

Mas o caminhar dos gregos, atingindo uma nova forma de ordem pública e política – que passou a se lastrear nos ditames da democracia –, exigiu uma nova justiça, adequada às emergentes exigências sociais. O movimento gradual do pensamento grego em direção ao racionalismo correspondeu a um movimento de passagem, contínua e lenta, do vocábulo “thémis” ao de “diké”11, com considerá-veis reflexos no sentido atribuído a “diké”12:

Paulatinamente, a partir do séc. VI a. C., é que a diké começou a ser considerada como algo mais universal, válido para toda a sociedade, contando com a garantia do próprio Zeus, especialmente porque a agora recém-surgida ideia de que são as leis (nómoi) que governam as cidades-Estado, e não os oligarcas, passa a corporifi-car o ideal da diké como garantia da justiça.

Por tal razão, Themis passou a ser considerada por muitos como a represen-tação da justiça divina, em um sentido de imposição e de arbitrariedade, ao passo que Diké, a justiça humana. Assim, segundo tais intérpretes, Themis exibiria ven-da nos olhos, não ostentando espada ou estando com ela empunhada para baixo, com a balança em exato equilíbrio13:

9 BITTAR e DE ALMEIDA, op. cit., p. 85.10 Ibidem, p. 99.11 BITTAR e DE ALMEIDA, op. cit., p. 83.12 Ibidem, p. 79.13 Representação artística de Themis, constante do site https://karaat.deviantart.com/art/Themis-49151175.

472 aS SiGniFiCaÇÕES Da JuSTiÇa Em THEmiS E DiKé: FEminino, arTE E aBErTura DE SEnTiDo

Já Diké, que substituíra Th emis com o desenrolar da democracia, é repre-sentada sem venda nos olhos, com a espada em riste (mostrando a necessidade de luta) e a balança desequilibrada (em um reconhecimento das desigualdades das relações sociais). A seguir, uma representação de Diké14:

Porém, em vista das diferenças culturais e do considerável tempo decorrido desde a Antiguidade grega, resta prejudicada uma exata percepção das similitudes e das diferenças entre as deusas Th émis e Diké, tudo levando a crer que a relação de tais deusas com a ideia de justiça é mais complexa. Sobre o tema, transcreve-se15:

Essas fi guras míticas fundamentais, Th émis e Diké, guardam sempre um signifi ca-do original e próprio. Parece mesmo que a última indica a sentença do juiz, cor-respondendo, aproximadamente, o termo diké ao jus latino. A expressão themdiké parece ser análoga ao latim jus fasque, no qual talvez correspondesse a Th em. Elabo-rou-se, também, com base na distinção entre as duas deusas, uma igual diferença entre uma justiça divina e outra humana, o que não parece ser originariamente exato, sendo isto produto de época posterior (Del Vecchio, 1960, p. 7). Entretan-to, se é fato que jus traduz comumente o diké grego, deve-se levar em conta que a raiz dik ou deik, existente no latim e no sânscrito, deu o latim dicere e o grego dikaiosyne. A conotação primitiva de jus e diké, porém, pouco tem a ver com as de-rivações que, à custa de sufi xos e prefi xos, foram feitas posteriormente, ligando-as a coisas, como leis, tribunais, sentença etc. O sentido primeiro das palavras tinha antes uma referência religiosa que guarda ainda hoje a palavra jurar.

No máximo poder-se-ia reputar a visão de que Th emis era a justiça divina e Diké, a justiça dos homens, como uma síntese abreviativa dos seus contornos, tanto é que ainda hoje é possível fazer interpretações arrojadas sobre essas clássicas fi guras da justiça. A propósito, atente-se à representação artística a seguir, de autoria incer-ta16, que permite à mente não só exercer a imaginação, mas também a vasculhar no inconsciente humano os elementos que constroem a concepção de justiça:

14 Representação artística de Diké, constante do site https://dezmilnomes.wordpress.com/2011/03/19/dike/.15 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofi a do Direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 148-149.16 Trata-se de uma vidraça no interior da casa do amigo da autora Thiago Coev, na cidade do Rio de Janeiro

(Barra da Tijuca), sem especifi cação de autoria.

uDa roBErTa DoEDErLEin SCHWarTz 473

A espada está apontada para baixo: o manto que envolve a deusa, por trás, praticamente a obriga a declinar a espada. O cabo da balança da igualdade con-funde-se com uma trança que a deusa talvez utilize em seus (então impecáveis) cabelos. Os seus olhos estão vendados pela roupa de alguém que, desnudo, está atrás dela: um homem ou uma mulher? Um amante, um amigo, um irmão?

Assim, conforme se verifi ca não só pelos mitos de Th emis e de Diké, mas também pelo fato de diversas outras fi guras míticas femininas simbolizarem a justiça – as já mencionadas Ananke, Moira e Fortuna, assim como Iustitia (que, na cultura romana, ocupava papel semelhante ao de Th emis) e Antígona (a qual ocupa até os dias de hoje o importante papel de mito instaurador da justiça ra-cional)17 –, tem-se, em ligação com a arte, uma via de acesso ao signifi cado de justiça que, indubitavelmente, denota amplitude de sentido. Portanto, diante de tais abordagens mítico-artísticas, permanece aberta a possibilidade de exploração do feminino como componente da justiça e de suas inter-relações.

17 SILVA, Juscelino. Têmis e Diké a Interpretação do Mito Articulado aos Direitos da Mulher Ocidental. In Re-vista Jurídica, v. 3, n. 1, 2016.

CAPÍTULO 06

DANÇA E DIREITOS DAS MULHERES

TEM MULHER NA RODA DE CAPOEIRA, SIM SENHOR!

Thaize de Carvalho Correia1

“É ou não é? Capoeira é pra homem, menino e mulher”

O desafio de falar da mulher em qualquer ambiente é sempre grande e, por isso, necessário quando se pensa em igualdade material programada pela Consti-tuição Federal brasileira e também pelos documentos internacionais.

A espaço destinado à capoeira é, como qualquer recorte social, um ambien-te originalmente masculino e impregnado pela cultura androcêntrica que estamos habituadas a perceber por todos os sentidos.

Para registrar as dificuldades de permear também esse ambiente que é as rodas de capoeira, necessário delimitar a modalidade que se pretende pontuar as incongruências, já que a autora filia-se a capoeira regional, tendo chegado a gra-duação de professora, pelo grupo Porto da Barra, fundado em 1994 e com sede na capital baiana.

A beleza dessa arte genuína não se apequena com as considerações aqui ali-nhavadas. Pelo contrário, o objetivo é ampliar a pratica dessa cultura tão mágica e completa para todos: homem, menino e mulher.

Por isso, o primeiro capítulo de desenvolvimento é destinado a tratar da capoeira regional, seu breve histórico e algumas considerações sobre o fundador da arte, Mestre Bimba, bem como seus principais fundamentos e método.

A seguir, serão abordados brevemente o papel atribuído aos gêneros, a edi-ficação social e as tentativas de justificações, com o objetivo de demonstrar o pre-conceito estrutural que permeia o ambiente social e resvala na capoeira.

Por fim, no último tópico deste breve artigo são abordadas as agruras pró-prias que atingem as mulheres que decidem jogar a capoeira, afirmando que são diversos os preconceitos destinados à mulher capoeirista.

A importância de estudar e registrar os sofrimentos femininos em todos os

1 Doutoranda em Direito Público pela universidade federal da Bahia – UFBA, Mestre em Direito Público pela universidade federal da Bahia – UFBA, especialista em Ciências Criminais pelo instituto Juspodivm, Profes-sora de Processo Penal da Universidade Federal da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Coordenadora da Especialização em Ciências Criminais da Universidade Católica de Salvador – UCSAL. Advogada Criminal Professora de Capoeira graduada pelo Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra, Mes-tre Cabeludo. E-mail: [email protected]

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espaços sociais é urgente e necessária para dar continuidade ao processo árduo e longo de inclusão e igualdade de gênero, projeto tão caro à sociedade mundial que perpassa pelos esportes e, no caso específico pela capoeira regional.

1. A CAPOEIRA REGIONAL: BREVE PANORAMA DA ARTE Arte genuinamente brasileira, a capoeira regional foi criada por Mestre

Bimba, Manoel dos Reis Machado, em 1928, da mistura da capoeira Primitiva (posteriormente chamada de Angola) com uma luta baiana chamada Batuque.

Filho de Luiz Cândido Machado e Maria Martinha do Bomfim, Mestre Bimba nasceu em Salvador em 23 de novembro de 1900, no bairro de Engenho Velho de Brotas, e faleceu em 1974, em Goiânia.

Recebeu esse apelido devido a uma aposta feita entre a parteira e a sua mãe, já que a aposta da sua genitora era que seria uma menina e a parteira dizia ser menino. Na hora do nascimento, anunciou: “Olha a Bimba dele aí!”. Apelido que o seguiu até os últimos dia de vida e, principalmente, o designou na capoeira.

Ao iniciar a capoeira angola, nomenclatura só atribuída após a criação da capoeira Regional, pois até então só havia uma modalidade de capoeira, por isso inexistente a necessidade de diferenciação, o Mestre Bimba percebeu que faltava algo na capoeira para que fosse encarada como arte completa e luta eficiente. E assim, em 1928, adicionou aos movimentos já existentes na capoeira técnicas do batuque, que, segundo Mestre Itapoan, era uma luta existente na Bahia que o Mestre era campeão.

Dessa mistura, nasce a capoeira regional e seus fundamentos, pois o obje-tivo do Mestre Bimba não apenas criar uma luta nova2, mas estruturar a capoeira regional dando-lhe método e essência, e assim além de criar uma sequência de golpes e contragolpes, definiu quais as espécies de músicas seriam cantadas, os ins-trumentos que comporiam a charanga e, ainda, os toques de berimbau e os jogos que corresponderia a cada um desses toques, sem esquecer do próprio símbolo da capoeira regional influenciado pelo símbolo de são Salomão.

Mestre Decanio, graduado pelo Mestre Bimba em 1969, quando recebeu o lenço branco, símbolo que consagrava o título de Mestre, conta que ajudou, em 1940, a elaborar o escudo. Esclarece que compõe o brasão o símbolo de São Salomão, alterando a estrela de 5 para 6 pontas, colocando a letra “R” no meio da estrela e, ainda, foi acrescentado uma cruz no topo da estrela para simbolizar o

2 Campos, Hellio, Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. Salvador: EDUFBA, 2009, p. 56.

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sincretismo brasileiro e a aceitação do cristianismo3. A esposa do Mestre Bimba, D. Alice, era quem bordava o brasão em azul, na altura do peito direito, das cami-sas brancas que os capoeiristas usavam.

As músicas são as quadras e os corridos. As quadras são composições de 4 a 16 versos, destinadas a iniciar as rodas de capoeira e, normalmente, contam uma história, com início, meio e fim. Cantada sem palmas é acompanhada apenas pela charanga composta de um berimbau e dois pandeiros, apenas. Registre-se que é apenas um berimbau e dois pandeiros de couro que são usados na capoeira regio-nal, não havendo, portanto, atabaque nem outros instrumentos como o triangulo visto nas rodas de capoeira Angola.

O corrido é outra modalidade de música cantada na capoeira regional e é utilizado para dar continuidade a roda, sendo acompanhada pelas palmas, além da orquestra que ganha o nome de charanga. Assim, quando a roda se inicia ou se reinicia, canta-se uma quadra, após são cantados sempre os corridos. São 7 (sete) os toques de berimbau: Banguela, São Bento Grande, Idalina, Iúna, Cavalaria, Amazonas e Santa Maria, além do seu hino da capoeira regional4.

A parte musicial da capoeira é uma particularidade que merece atenção não só pela beleza das composições, mas pela singularidade que os cantigos e ritmo cadenciado que os instrumentos dão a essa arte, sendo um dos poucos esportes que traz essa marca evidente de grandeza e até mesmo de didática complementar.

Sobre a sequência do Mestre Bimba pode-se afirmar que ela é composta de 8 mini sequências de golpes e contra golpes que habilita o aluno a desenvolver, minimamente, o jogo de capoeira no seu momento mais importante: a roda, fa-zendo, portanto, parte dos treinos diários das academias.

Todo golpe de capoeira é iniciado com um movimento fundamental na constituição da capoeira que é a GINGA. Podendo ser definida como a movimen-tação básica da capoeira, a da ginga de onde partem todos os outros movimentos e golpes. Ela tem aproximação com o andar dançado constante realizado pela opo-sição entre braços e pernas, buscando sempre o equilíbrio, sempre no compasso e ritmo do berimbau.

O momento de ápice da capoeira é a roda. Ali é onde acontece o embate entre os capoeiristas, mas hoje em dia não propriamente pode-se considerar a capoeira como uma luta, já que na roda a alegria de jogar, a ludicidade dos mo-

3 Decanio Filho, Angelo A. A Herança de Mestre Bimba. Editoração electrônica do texto. Salvador, 2ª ed. 1997, p. 45.

4 Campos, Hellio, Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. Salvador: EDUFBA, 2009, p. 62.

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vimentos e a energia que emana da mistura da música com o toque dos instru-mentos e do canto compartilhado por todos ultrapassa a tecnicidade de eventual arte marcial.

Nota-se, ainda, o desenvolvimento corporal de modo global, pois além de movimentar os músculos do corpo, já que é intensa a atividade física, pode-se afirmar também que a capoeira desenvolve habilidades rítmicas ajustando o corpo a cadência dos instrumentos, sem falar que tocar e cantar são também técnicas desenvolvidas pela capoeira. É também por esta completude que a capoeira hoje em dia faz parte do currículo de muitas escolas até mesmo infantis, auxiliando os alunos a trabalharem com sentimentos (medo, desafio, frustação), desenvolver habilidades como equilíbrio e coordenação, bem como exercer a sociabilidade e ter contato com sua história.

Não se pode deixar de registrar a importância da participação negra na formação do povo brasileiro, portanto. Sendo a capoeira também um meio de reafirmar a nossa ancestralidade, beleza, resistência e contribuição grandiosa para a educação das crianças e adolescentes.

Nota-se, portanto, que o fundador da Regional estabeleceu um método completo da nova modalidade de capoeira, dando-lhe, ainda, fundamento e es-tilo, oportunizando sua manutenção e perpetuação por todo o mundo, além de muita história e singularidade. Não foi por outra razão que recebeu, em 1996, título póstumo de doutor honoris causa pela universidade federal da Bahia.

Apesar de desde 2008 a capoeira ter sido tombada pelo Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial do Brasil, e em 2014 a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) ter declarado a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Ima-terial da Humanidade, a capoeira já foi considerada crime em 1930, na chamada era Vargas, mesma autoridade que, em 1937, depois de assistir a uma apresentação do próprio Mestre Bimba reconheceu e declarou a capoeira como esporte nacional.

Indo, assim, da marginalização ao reconhecimento internacional, registra--se a prática de capoeira em diversos países do mundo, tendo sido, inclusive, em 1949, o escritor Monteiro Lobato o conheceu e lhe dedicou o conto Vinte e dois de Marajó, que conta a história de um marinheiro capoeirista. Em 1953, Mestre Bimba se apresentou para o presidente Getúlio Vargas, este declarou ser a Capoei-ra o único esporte verdadeiramente nacional.

O objetivo do Mestre Bimba quando da fundação da capoeira regional era demonstrar que era possível vencer as artes marciais estrangeiras com uma luta

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brasileira. E foi o que aconteceu. Quando da sua ampliação e divulgação, nas décadas de 30 e 40, o Mestre Bimba desafiou todas as lutas e consagrou-se como primeiro capoeirista a vencer uma competição no ringue, quando o público in-centivava ao grito de “Bimba é bamba!”.

Importante registrar, ainda, que sem incentivo do estado da Bahia, Mestre Bimba faleceu em 05 de fevereiro de 1974 em Goiânia, menos de um ano após sua chegada na capital de Goiás, vítima de um derrame cerebral. Conta-se, ainda, que a razão da morte aos 73 anos de idade, teria sido de banzo (tristeza), por não ver a capoeira respeitada e estar fora da sua terra natal, como revela o filho do Mestre, Demerval Machado, o Mestre Formiga.

E assim, a capoeira que originariamente nasce com o objetivo dos escravos se divertirem e se reconectarem com suas origens, recebe incrementos decisivos para remodelar essa arte, que também pode ser definida como luta, dança e por alguns até como filosofia de vida, criando a capoeira regional e alterando, em definitivo, a história da cultura brasileira, e especialmente, a baiana.

Vale o registro que os golpes e as musicas são ensinadas em todo mundo em língua portuguesa, fator de preservação da capoeira e divulgação do idioma.

Por fim, ressalte-se que o termo capoeira é interpretado na definição dessa luta como “mato baixo”, por ser inicialmente jogada próximo ao solo, de maneira rasteira, trocando golpes e junto com eles energia e muita ancestralidade, que pode ser sentida até hoje nas rodas de capoeiragem.

Merece, ainda, atenção o momento do batizado na capoeira. Na época do Mestre Bimba esse era o momento em que o aluno receberia o apelido e entraria pela primeira vez na roda, entendendo-se, assim, que ele estava pronto para in-gressar agora em um nível mais elevado da capoeira.

A importância do Mestre Bimba na reconfiguração e aceitação da capoei-ra, com a fundação da regional é importante não só pela inserção da arte nas classes sociais mais abastadas, já que deu aula na Universidade Federal da Bahia, tendo como alunos estudantes de medicina, por exemplo, mas também pela revolução em ter transformado a capoeira em coisa séria, afastando-a da visão preconceituosa que recaia sobre essa arte, que era considerada como coisa de vagabundo, de malandro.

A participação feminina na capoeira é problemática, apesar da atual evo-lução dessa ocupação nesse espaço social reprodutor de comportamentos sociais baseados em marcadores como gênero.

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2. A CONSTRUÇÃO DO FEMININO E A IMPOSTA ADEQUAÇÃO SOCIAL

Como mais um espaço social, inserido, portanto, na cultura geral que é androcêntrica e machista, a capoeira é um ambiente de exclusão e predominância masculina, passando-se a ponderar as especificidades do preconceito nesse espaço predominantemente masculino.

Talvez pela associação do esporte à força física, pensar a mulher na capoeira tenha sido algo estranho ou novo, pois efetivamente alguns esportes nasceram no meio masculino e por esta razão a ocupação feminina tenha causado certo estra-nhamento. E foi o que aconteceu com a capoeira. A aproximação da mulher se deu de forma lenta e gradual, sendo hoje uma realidade imposta pelas mulheres, porém algumas situações seguem sendo experimentadas amargamente pelas alu-nas, professoras e mestres.

Sabe-se que as violências de gênero são ancoradas em preconceitos cons-truídos sob as diferenças existentes entre mulheres e homens, pessoas obviamente são diversas. O problema é que sob um critério biológico, a cultura vai edifican-do diferenças, impondo características que confluem em estáticas consequências. Aprisionando meninas e meninos em estereótipos que devem ser seguidos rigo-rosamente, a cultura segue engessando e modulando o comportamento humano. As crianças devem fazer exatamente o esperado: bonecas cor-de-rosa para elas, e carrinhos para eles, “coisa” de menino e “coisa” de menina. E assim capoeira era esporte de menino, não sendo adequado que as meninas fizessem um esporte tão violento e exigente fisicamente.

Nascem, assim, as ideias de pertencer à determinada categoria, devendo, as pessoas, seguirem seus destinos, nos moldes impostos pela naturalidade construí-da dos gêneros: masculino e feminino.

As regras determinam que o comportamento deva ser adequado ao gênero que cada pessoa pertence, não devendo se afastar deste padrão, sob pena de desvir-tuamento e exclusão. Nesse contexto, importante frisar que tais diferenças foram construídas por alguém, através do exercício de poder que determina classe possuía.

As relações entre feminino e masculino foram criadas e não questionadas por muito tempo. A resistência a esses padrões sempre foram questionadas, mas é no século XIX, através dos movimentos feministas, que o incômodo no trato com a mulher começa a ganhar visibilidade social, alcançando uma dimensão pública, especialmente na Alemanha, França e Portugal, no sentido de retirá-las da invisi-

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bilidade do mundo privado, doméstico, dito mundo feminino, que era mantido mesmo com a participação das mulheres nas fábricas e nas lojas, mas sempre em funções subalternas e submissas aos homens5.

No contexto de um mundo androcêntrico, a mulher é vista como o “Ou-tro”, como alguém secundário, a ser incluído (ou não), como uma pessoa não pertencente à vida social, ao centro da coletividade, pois vista como alguém que está na periferia, devendo seguir o que se espera das pessoas que estão à margem, obediente às regras estabelecidas pelos que estão no comando (o homem). E essa definição é realizada pelo Um (homem), e não pelo Outro (mulher), porém, nas palavras de Simone de Beauvoir: “para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio”6.

A visão construída socialmente do gênero feminino como grupamento inferior, nos ensinamentos de Guacira Lopes Louro, baseava-se em um critério biológico:

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a re-lação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem “científica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender — e justificar — a desigualdade social7.

Esse critério sexual não é absolutamente definidor de uma categoria, mas traduzido em gênero através das representações ou valorações, ou seja, é aquilo que se diz sobre essas características em determinado espaço e tempo.

E esse sentimento de pertencimento a determinado grupo ou categoria, é construído socialmente, e vai sendo edificado através de um punhado de elemen-tos, ainda nos moldes de Guacira Lopes Louro que afirma ser possível pensar as identidades de gênero de modo semelhante: elas também estão continuamente se construindo e se transformando8.

É ainda Simone de Beauvoir quem demonstrou que diversas foram as bases filosóficas que tentaram pontuar a hierarquia existente entre homens e mulheres. Uma delas foi a Biologia, ao definir a supremacia masculina, baseando-se no es-permatozoide, que por possuir atividade de lançar-se em busca do óvulo teria a

5 Cf. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 17.

6 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difu-são Europeia do Livro, 1970. v. 1, p. 12.

7 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janei-ro: Vozes, 1997. p. 20-21.

8 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de Janei-ro: Vozes, 1997. p. 28.

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capacidade ativa, logo superior, enquanto que o ovócito apenas aguardava, passi-vamente, a entrada triunfal e dominadora do gameta masculino9.

Contrapondo-se à essa ideia, esclarece Simone de Beauvoir que: “estatica-mente, macho e fêmea, aparecem, portanto, como dois tipos complementares”10, não sendo possível descrever as construções acerca de diferenças de gêneros sob a fundamentação biológica, uma vez que: “é muito difícil dar uma descrição geral-mente válida da noção de fêmea; defini-la como condutora de óvulos e o macho como condutor de espermatozoides é muito insuficiente”11.

Nas palavras da autora:Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação. Em todas as nossas descrições ulteriores, teremos que nos referir a eles. Pois, sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis por que os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher12.

Tentar impor a mulher uma visão secundária com bases em questões bioló-gicas carece de fundamento, pois:

uma sociedade não é uma espécie: nela, a espécie realiza-se como existência; trans-cende-se para o mundo e para o futuro; seus costumes não se deduzem da biologia; os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza; obedecem a essa segunda natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos e os temores que tradu-zem sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo, é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os dados biológicos revestem os que o existente lhes confere13.

Afastada, portanto, a diferenciação entre gêneros baseada em critérios fi-siológicos, a autora enfrenta outra hipótese que poderia sustentar essa preponde-rância masculina. E o faz recorrendo à história para lembrar que a descoberta de metais haveria determinado a submissão feminina, já que os registros relatam que, na Idade da Pedra, as tarefas eram bem dividas entre homens e mulheres, mas a descoberta de metais levou os homens a explorarem outros homens para atender

9 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difu-são Europeia do Livro, 1970. v. 1, p. 35.

10 Ibid., loc. cit.11 Ibid., loc. cit.12 Ibid., p. 52-53.13 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difu-

são Europeia do Livro, 1970. v. 1, p. 56-57

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aos trabalhos pesados que eram exigidos para o desbravamento dessas novas rique-zas. Tal situação deu origem à escravidão, passando a aparecer, neste momento, a propriedade privada, incluindo-se nela, os escravos e as mulheres, sustenta-se.

E essa condição do feminino, existente desde muito, revela-se, nas palavras de Beauvoir, um dado imutável, um verdadeiro seccionamento da humanidade em duas categorias estáticas e projetadas “em um céu platônico uma realidade apreendida na experiência ou conceitualizada a partir da experiência. Ao fato, ao valor, à significação, à noção, à lei empírica, ele substitui uma ideia transcendente, não temporal, imutável, necessária”14.

E essa construção do feminino, engessa o pensamento em relação à mulher, cristalizando a definição e tudo que vem com ela, uma vez que não permite que as mulheres de carne e osso contrariem as expectativas, não se admitindo deter-minados comportamentos por parte das mulheres, que continuam reproduzindo essa estratificação de gênero, esse comportamento “feminino de ser”, incluindo aí a pratica de esportes impostos a elas.

Os arquétipos são mantidos e reforçados nas diversas instituições, sancio-nando-se as mulheres que se portam de modo divergente do feminino, do espe-rado. Por esta razão muitas mulheres que fazem capoeira já foram taxadas como homossexuais pela aproximação do esporte ao masculino.

Nesse sentido, imputa-se à mulher determinadas características, identifi-cando-a como pertencente ao gênero feminino, tratando-a como altruísta, im-pondo, por via de consequência, um dever-ser categórico. E isso prevalece, mes-mo com a ascensão da mulher no mercado de trabalho, na direção de empresas.

Essa nuance que envolve as diferenças entre feminino e masculino revela que a dominação varoa ainda muito é forte e presente nas questões sociais. E nesse senti-do, pode-se afirmar que a violência doméstica se insere em um contexto de agressões veladas e estereótipos construídos, de forma rígida, em relação à mulher. Situações que precisam ser, urgentemente, discutidas, para que possam, enfim, ser superadas.

3. CAPOEIRA É PRA HOMEM, MENINO E MULHERComo ficou registrado, a capoeira não era um esporte bem visto pela socie-

dade, já que nasceu dos escravizados no Brasil, momento em que eles se divertiam e tentavam esquecer das agruras da sua condição. É também por isso, pela origem

14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difu-são Europeia do Livro, 1970. v. 1, p. 299

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negra, que a capoeira, assim como muitas outras manifestações, é renegada, pelo marcador raça que o define e implica em discriminações.

Exemplo concreto do racismo estrutural pode ser verificado na brilhante sustentação oral realizada, no Supremo Tribunal Federal, pelo Dr. Hédio Silva Junior, no julgamento do RE nº 494.601/RS, tendo como tema central o abate de animais pelas religiões de matriz africana, ocorrido em 2018.

Neste recurso, impugnou-se a declaração de constitucionalidade da Lei nº 12.131/04-RS, segundo a qual os sacrifícios de animais em cultos de matriz afri-cana não infringem o Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul, desde que realizados sem excessos e crueldade.

Em pouco mais de 08 (oito) minutos o Dr. Hédio Silva Jr. questionou o que estava em discussão em plenário, iniciando sua fala pelo material de que era feito os sapatos dos que pediam a declaração de inconstitucionalidade do sacrifí-cio de animais, colocando em pauta o racismo estrutural que permeia o ambiente jurídico e, acrescente-se, social, já que eram de couro os sapatos dos julgadores e também de quem pugnava pela proibição do sacrifício de animais.

A reclamação que chega ao Supremo, para o advogado, é sobre a “galinha da macumba”, não havendo comoção social sobre outros abates como o cristão, que mata o peru todo ano no Natal.

Assim como muitas religiões, a capoeira é de matriz africana, já que foram os negros escravizados trazidos da África que a criaram no Brasil. Também por isso a aproximação com o candomblé, por exemplo, é uma realidade, já que derivam da mesma origem, absorvendo algumas tradições, podendo-se citar a música que normalmente encerra as rodas de capoeira que na sua letra consta “adeus adeus, boa viagem”, fazendo-se um pedido aos espíritos que deixem o espaço e voltem para Aruanda (nome do mundo dos espíritos no candomblé).

Então esse é um primeiro marcador da capoeira: o racismo, que vai de-sencadear outros preconceitos, já que a capoeira se inicia na rua, nos guetos, nas vielas, logo era tratada como coisa ruim. Mas além de ser coisa de vadio, de ma-landro, a capoeira sempre foi vista como esporte de homem.

É realmente a criação da capoeira regional se deu no final da década de 20, início dos anos 30, data que o masculino reinava, também na capoeira. E isso tornava estranha a presença feminina nas academias de capoeira.

Essa visão masculina não era específica da capoeira, podendo-se citar, como exemplo, as meninas e mulheres que vão aos estádios ou treinos de fu-

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tebol e são denominadas como “maria chuteira”, sendo que muitas desejam participar da atividade.

Hoje muito menos do que outrora, mas muitas vezes o que ainda se vê nas academias são olhares preconceituosos em relação à mulher capoeirista, seja em relação ao objetivo da mulher ali seja pela dúvida em relação a sua capacidade de acompanhar a aula ou a roda.

Dando um salto para os anos 90, década que a pesquisadora iniciou a prá-tica da capoeira regional, o espaço ainda era predominantemente masculino e a presença da mulher era, quando muito, tolerada por alguns colegas.

Fundamental registrar que os preconceitos não eram do no grupo de ca-poeira15 onde a autora desenvolveu seus treinos, mas do ambiente em geral.

Os preconceitos mais intensos eram de duas espécies: acredita-se que a mulher era “macho”, por isso treinava capoeira, ou estava ali para arranjar um namorado.

Era comum ouvir que fulana “joga igual a homem”, enaltecendo a atividade por meio de uma qualificação machista.

Por outro lado, acreditavam que muitas meninas se matriculavam na acade-mia para treinar capoeira por estarem interessada em algum dos capoeiristas que, registre-se, adoram a fama de garanhão.

Além desses preconceitos bem marcados, havia os mais “sutis”, que ocor-riam nos treinos propriamente.

Quando uma mulher estava na aula fazia os exercícios juntos muitos ca-poeiristas toleravam a presença feminina sem muita paciência, deixando claro o incômodo de treinar junto com uma mulher.

Para além desses preconceitos cotidianos, hoje se nota uma grande inserção feminina no mundo da capoeira, mas é preciso mais do que praticar a capoeira, é preciso que as mulheres ocupem lugares de liderança, como tem acontecido, mas ainda de forma tímida.

A igualdade de gênero é uma pauta de todos e todas. A afirmação de que a roda de capoeira, assim, como qualquer lugar, é espaço para mulher ainda é necessária. As meninas tem jogado, cantado, tocado e também ensinado capoeira na Bahia e no mundo, sendo essencial registrar o avanço, mas ainda há o que

15 A autora treinou capoeira de modo efetivo entre 1994 e 2001 no Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra, criado pelo Mestre Cabeludo, graduando-se professora.

488 TEm muLHEr na roDa DE CaPoEira, Sim SEnHor!

conquistar e precisamos marcar nossa presença também nesse ambiente magico e transcendental que é a roda de capoeira.

4. CONCLUSÃOA luta pela igualdade de gênero é inevitável, devendo-se manter altiva e

incansável, pois as violações estruturais são constantes e integram o dia a dia de toda sociedade de modo denso e capilarizado.

Na capoeira não é diferente.

O esporte genuinamente brasileiro, que nasceu nas décadas de 20 e 30 pelas mãos do gênio Mestre Bimba, também é espaço de preconceito e violações. Como qualquer metro quadrado social, nas academias de capoeira também se sofre dis-criminações em razão do pertencimento ao gênero feminino.

A capoeira regional, que traz na sua genética a mistura da capoeira primi-tiva e o batuque, foi criada para desafiar as lutas marciais até então existentes, tendo, portanto a sua destinação original foi para o público masculino, já que a marca de inadequação da capoeira para mulheres não é exclusividade da capoeira.

Assim, considerando a ambiência machista que permeia a sociedade bra-sileira, ser tratada como máscula ou se duvidar das razões da presença dela na academia, já que se acredita, muitas vezes, que ela estaria ali para encontrar um namorado ou simplesmente namorar com alguém.

Essa última situação, da atração feminina pela capoeira para flerte com os capoeiristas tinha uma situação especial. Essa impressão trazia para os capoeiristas um status dentro do grupo. Era uma circunstância enaltecedora do capoeirista e também cultural, já que o capoeirista era visto como malandro e namorador por “natureza”.

Assim, apesar do aumento da participação feminina, não só na capoeira, mas na sociedade em geral, é preciso debater as questões de gênero, denuncian-do suas especificidades, para concretizar, enfim, a igualdade material programada pelo ordenamento jurídico.

PARA REFLETIR

QUESTÃO INTRODUTÓRIA:O feminismo, indispensável ao fortalecimento de ações transformadoras na

realidade, tornou-se o movimento muito importante para se alcançar a igualdade social entre os povos, bem como movimento singular para a conquista dos direitos fundamentais das mulheres, fruto da autoconscientização e de autotransformação da nossa sociedade. Assim, diante do que fora mencionado, indaga-se: por que o feminismo é importante para o Direito? Por que o paradigma feminista se torna necessário nas questões jurídicas? Por que o filtro do feminismo precisa ser utili-zado em todas as disciplinas jurídicas? E, porque o feminismo ainda é visto com tanto preconceito?

QUESTÕES PARA O CAPÍTULO 01 – ÁUDIOVISUAL E DIREITOS DAS MULHERES QUESTÕES SOBRE O FILME “AS SUFRAGISTAS”:

1. A partir do filme “As sufragistas” é possível fazer uma leitura sobre a representatividade feminina na política brasileira?

2. Como podemos melhorar o sistema de representação e termos mais mulheres participando do processo legislativo?

3. Entre 2014 e 2018, o número de deputadas eleitas para a Câmara dos Deputados aumentou de 51 para 77. Esse número já representa um avanço?

4. Roberto Lyra Filho disse, em seu clássico “O que é Direito”, página 9, que “a lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daque-les que comandam o processo econômico”.

A partir dessa citação responda:

4.1 Existe relação entre a construção de leis pelos homens nos di-reitos das mulheres?

490 Para rEFLETir

Sugestão de leitura complementar: “A tradição jurídica sexista brasileira: manifesto da discriminação e desigualdade das mulheres”, de Ediliane Lopes Leite de Figueiredo que pode ser acessado no endereço eletrônico: https://emporiodo-direito.com.br/leitura/a-tradicao-juridica-sexista-brasileira-manifesto-da-discri-minacao-e-desigualdade-das-mulheres

5. (...) “Marielle, mulher negra lésbica com origem na favela, era voz de quem não é ouvida nos espaços de poder. Como mulher negra e femi-nista, era um corpo incômodo, que expunha o caráter sexista, racista e lesbofóbico de práticas e instituições. Denunciando os assassinatos de jovens da periferia, ela reforçava no debate público as vozes de suas mães, de suas irmãs, fundadas na dor da perda, para driblar a desuma-nização. Denunciava que o Estado de Direito se assenta sobre “vidas matáveis” e práticas de extermínio. O fato de que as vidas das mulheres continuem a ser ceifadas e que os corpos que caem sejam sobretudo corpos negros revela a insuficiência das garantias existentes e, de modo mais amplo, do Estado Democrático de Direito. O mesmo pode ser pensado sobre a participação política e os limites da democracia. O Brasil é 153º lugar no ranking da Inter-Parliamentary Union sobre mu-lheres nos parlamentos de 193 países. Na América Latina, o Brasil está à frente apenas de Belize e Haiti. Sem confrontar a violência contra as mulheres na política, estaremos distantes não apenas da paridade, mas também da democracia. O comitê de monitoramento da Convenção de Belém do Pará no âmbito da Organização dos Estados America-nos (MESECVI) recomenda a adaptação dos instrumentos legais na-cionais. Bolívia, México e Peru têm legislação específica, algo que nos parece necessário para o Brasil (...).” Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil, e Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), publicado no blog #AgoraÉ-QueSãoElas, da Folha de S. Paulo, em 14 de abril de 2018.

Responda:

5.1 1.1. Os partidos políticos no Brasil investem na candidatura de mulheres?

5.1 1.2. Quais interesses estão em jogo quando se fala em poder feminino nos espaços públicos?

6. Manuela D’Ávila em “Revolução Laura”, página 59, escreve que “du-rante a campanha me disseram que o estranhamento da presença de

Para rEFLETir 491

uma mulher com seu bebê no ambiente político apenas reforça a neces-sidade de termos mais mulheres na política”. A maternidade tem rela-ção com mulheres não ocuparem, em pé de igualdade com os homens, o espaço público?

7. O documentário ‘Democracia em Vertigem” mostra bastidores do pro-cesso de impeachment da primeira presidenta do Brasil. A constitucio-nalista Gisela Bester em seu artigo publicado inicialmente na Consulex sobre este processo revela que houve vários episódios de machismo e mi-soginia. Posicione-se a partir do feminismo sobre o processo de impea-chment de Dilma. Leitura complementar sugerida de autoria de Gisela Bester: http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/907

QUESTÃO SOBRE O FILME “A INFORMANTE”:1. Usando para análise o filme “A informante” que retrata a vivência de

uma policial no contexto do tráfico de mulheres na Bósnia, responda: quais discriminações, opressões e violações de gênero ocorridas no con-texto social, encarando suas influências na construção da vulnerabilida-de feminina para o tráfico de pessoas e de que forma o sistema de justiça valida e reforça essas violências?

QUESTÃO SOBRE “A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO”:1. O direito de liberdade de expressão em seus aspectos, a partir do Caso

Olmedo Bustos x Chile, envolveu a proibição da película “A última tentação de Cristo” e a intensa discussão sobre qual seria do limite do referido direito. Quais precedentes oriundos dessa discussão sobre o di-reito de liberdade de expressão e sua consequente aplicação no sistema jurídico brasileiro?

QUESTÃO SOBRE O DOCUMENTÁRIO “QUEM MATOU ELOÁ?” 1. A partir do curta-metragem “Quem matou Eloá?”, pergunta-se: qual

tratamento foi dado pela mídia brasileira ao sequestro praticado por Lindemberg contra Eloá e sua amiga Nayara? O que é espetacularização do crime?

QUESTÃO SOBRE O DOCUMENTÁRIO “ O CÁRCERE E A RUA”. 1. A partir do documentário “O Cárcere e a Rua”, discuta o encarcera-

mento feminino no Brasil, fenômeno que vem crescendo em virtude da feminização da pobreza e da política criminal de drogas.

492 Para rEFLETir

2. O documentário mostra as múltiplas formas de violência que en-volvem o cárcere de mulheres, compreendidas como inimigas que romperam as regras de uma ordem fálica e patriarcal. Que violências são estas?

QUESTÃO SOBRE O FILME “A JUÍZA” E “SUPREMA”1. Ruth Bader Ginsburg, magistrada da Suprema Corte Americana, atuou

como denunciadora da mera previsão geral e abstrata de que “todas” são iguais perante a Lei ao mostrar a desigualdade perante os Tribunais, algo que ocorre porque não há igualdade e paridade de composição dos Parlamentos e dos Tribunais. Pergunta-se: que situações dão conta de perceber o machismo dentro do Poder Judiciário, na OAB, na Defen-soria Pública e no Ministério Público?

QUESTÃO SOBRE A NOVELA “AVENIDA BRASIL”1. As personagens Tessália e Zezé mostram estereótipos racistas que con-

tribuem para manutenção de um consenso entre dominadores e domi-nados são mostrados? Que situações demonstram isso?

QUESTÃO SOBRE “O AUTO DA COMPADECIDA”1. “A advogada nossa”, a compadecida, evoca uma multiplicidade de sabe-

res culturais, compartilhados e imersos na ordem simbólica patriarcal. Uma mulher em favor dos pecadores ou, numa linguagem jurídica, dos criminosos, ressignifica o conceito de Justiça?

2. A tese do contraditório sendo apresentada por uma pessoa iletrada, João Grilo, possibilita que se questione o lugar do tecnicismo jurídico na construção de peças e defesas orais?

3. Qual a semelhança que apresenta o Tribunal do Júri do ordenamento processual penal com a composição do tribunal celeste apresentado por Ariano Suassuna na sua peça teatral “Auto da compadecida”?

Sugestão de leitura complementar: o livro “Tribunal do Júri: arte, emoção e caos”, e o artigo “60 anos de Auto da Compadecida e a invenção do Tribunal do Júri em Ariano Suassuna”, ambos de Ezilda Melo, este último pode ser acessado no seguinte endereço: https://emporiododireito.com.br/leitura/60-anos-de-auto--da-compadecida-e-a-invencao-do-tribunal-do-juri-em-ariano-suassuna

Para rEFLETir 493

QUESTÃO SOBRE OS FILMES “MARY SHELLEY” E “COLETTE”1. Muitas mulheres, ao longo do tempo, não assinaram seus escritos, os as-

sinaram com pseudônimos ou deixaram que seus maridos os assinassem. As histórias de Mary Shelley e Colette se cruzam neste ponto. O cinema, ao resgatar e contar tais histórias, possibilita discussões de gênero? Como os direitos autorais das mulheres pode ser visto nesta perspectiva histórica?

QUESTÕES PARA O CAPÍTULO 02 – LITERATURA E DIREITOS DAS MULHERES QUESTÕES SOBRE A OBRA “MULHER-MARAVILHA”:

1. Qual a principal distinção da filosofia do movimento feminista do sé-culo XIX para o movimento feminista do século XX?

2. Qual a mensagem que William Marston quis transmitir  na Wonder Woman n. 7, de 1943?

3. O texto sugere que a ex-presidenta Dilma Rousseff sofreu constantes ataques misóginos e falocráticos durante o seu governo. Neste sentido, descreva criticamente esses ataques.

4. Em 2019, qual a posição e porcentagem de participação feminina no Congresso Nacional? Descreva algumas medidas que podem mudar positivamente esse quadro?

5. Existe no mundo um forte crescimento dos políticos populistas e chau-vinistas. Sobre isto, o que podemos esperar desses políticos a respeito dos Direitos das Mulheres? Exemplifique.

Sugestão de leitura complementar: o livro “A História Secreta da Mu-lher-Maravilha”, da pesquisadora Jill Lepore e o livro “Como as Democracias Morrem”, dos Professores de Ciência Política da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

QUESTÕES SOBRE AUTORAS NEGRAS NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA

1. Sabemos que muitas autoras negras não têm seus “lugares de fala” ou espaços em muitos “Livros Didáticos de Língua Portuguesa” adotados nas escolas brasileiras. Assim, como fica assegurada a inserção da Lei 10.639 de inclusão da história africana ou afro-brasileira pelo olhar da mulher negra?

494 Para rEFLETir

2. Se as autoras negras não têm uma participação efetiva em muitos “Li-vros Didáticos de Língua Portuguesa” adotados nas escolas brasileiras, como fica o encontro das vozes plurais no ensino?

QUESTÃO PARA O ARTIGO SOBRE CAPITU“Frente a problemática levantada em “O Olhar e Observar em Capitu”,

considerando o atual contexto brasileiro que envolve a violência doméstica, como é possível identificar e dar voz às Capitu’s que nos rodeiam?”

QUESTÕES PARA O ARTIGO “BRUXAS, ADÚLTERAS E PROSTITUTAS: A MULHER E OS ESTEREÓTIPOS NA LITERATURA CLÁSSICA”

A literatura pode ser vista como   um veículo, através do qual se pode visua-lizar os pressupostos históricos, socioculturais e legais em relação às mulheres - o seu estatuto, seus papéis, as suas expectativas - em um dado período, em deter-minadas sociedades. Por qual razão na literatura clássica, em diferentes gêneros, a mulher é representada por estereótipos negativos, como: bruxas, adúlteras e prostitutas? Na atualidade, qual a importância da crítica feminista para a descons-trução desses diferentes “papéis sociais” destinados à mulher? 

QUESTÃO PARA “QUE SERVE UM PUNHO”?1. Na obra “um útero é do tamanho de um punho” (2012), Angélica

Freitas vai revitalizar e ressignificar o conceito de que a mulher é uma construção. Por que os elementos útero e punho estão implicados em suas (re)construções poéticas?

QUESTÕES SOBRE A OBRA “HOMENS TRAÍDOS”:1. Qual instituto do Código Civil de 2002 que ainda possui marcas da

heteronormatividade e misoginia?

2. Quais práticas de pedagogização do corpo feminino contribuíram para a manutenção dos códigos sociais e jurídicos machistas?

3. Mencione o instituto do Código Penal vigente que ainda possui marcas da heteronormatividade e misoginia. Posteriormente, apresente argumentos jurídicos e sociais críticos favoráveis ou desfavoráveis a esse instituto.

4. Quais os “lances” que o homem traído utilizou para buscar a prova do crime do adultério feminino?

5. O que significa a tese da “Legitima Defesa da Honra”? Apresente moti-vos que levaram a inconstitucionalidade dessa tese.

Para rEFLETir 495

Sugestão de leitura complementar: o livro “Homens Traídos e Práticas da Masculinidade para Suportar a Dor”, da historiadora Eronides Câmara de Araújo.

QUESTÕES PARA O ARTIGO “VIA CRUCIS” DO CORPO DA MULHER1. Como a literatura pode contribuir para o reconhecimento dos direitos

da mulher?

2. A violência crescente contra as mulheres tem sido retratada pela litera-tura adequadamente?

3. No conto “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector, a pig-méia descrita e analisada pelas personagens suscita a questão da alteri-dade, do estranhamento e da (in)capacidade de as pessoas colocarem-se no lugar do outro. Nesse sentido, os vários olhares sobre a situação da mulher compilados nesta obra são reveladores da “menoridade das mu-lheres”. O conto clariciano não é ainda de uma atualidade inquietante? Em que medida avançamos ou podemos avançar para que as mulheres sejam consideradas sujeitos de pleno direito?

QUESTÕES PARA A OBRA “TEREZA BATISTA”Tereza Batista, personagens icônicas do universo literário amadiano, é a

representação do descaso e da opressão sociolegal de muitas mulheres subalternas que, ao longo dos séculos, são relegadas ao silêncio, à prostituição ou à reificação sexual e à subjugação.  A análise jusliterária da obra problematiza a exclusão das mulheres, pobres e marginalizadas, e a suposta neutralidade de gênero da lei, a partir dos seguintes questionamentos: Quais mulheres a lei exclui ou prejudica? O prejuízo legal é o mesmo para as mulheres em desvantagem econômica?

QUESTÕES PARA O CAPÍTULO 03 – MÚSICA E DIREITOS DAS MULHERES

1. A “nova” política migratória brasileira permite pensar a feminização das migrações e suas demandas específicas?

2. A música “Respeita” convoca a pensar a igualdade para mulheres a par-tir de diferentes espaços e experiências femininas, bem como a partir da desconstrução de violências simbólicas e estruturais que atingem as mulheres. Nesse aspecto, como a Política Migratória Brasileira pode ser pensada a fim de não legitimar a estrutura de violência já existente e permitir enfrentar a sobreposição de vulnerabilidades enfrentadas por mulheres migrantes?

496 Para rEFLETir

3. A Política Migratória Brasileira, a partir da Lei 13.445/2017, se baseia na proteção aos direitos humanos. Como pensar a interseccionalidade gênero, raça e nacionalidade nesse contexto?

QUESTÕES SOBRE FEMINEJO, CANÇÕES DE SIMONE & SIMARIA E PROTEÇÃO À MULHER

1. O feminejo pode ser compreendido como “um sertanejo feminino em-poderado e comprometido com o direito humano à não violência”. Nessa linha, inspirado por tal gênero musical, como se podem concei-tuar os termos empoderamento e sororidade? Em que medida eles se relacionam entre si e como incidem em relações domésticas?

2. Certo trecho da canção “Amor Que Dói” indica: “se atinge uma, atinge o mundo, se machuca uma, machuca todo mundo”. Em plano inter-nacional, como a igualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra a mulher são compreendidos? Já no trecho da canção “Ele Bate Nela” refere-se: “Deus me tire desse sofrimento porque viver assim eu não aguento”. Afastando-se de experiências metafisicas, como o orde-namento nacional encara a violência doméstica e de quais mecanismos legais protetivos se vale?

QUESTÕES PARA O CAPÍTULO 04 – TEATRO E DIREITOS DAS MULHERES

1. Quais os desafios que o teatro propõe ao feminismo atual e, em sentido inverso, quais as propostas desafiadoras do feminismo atual ao teatro?

2. 2. Em que medida o resgate histórico de atrizes do primórdio do teatro possibilita questionamentos sobre a presença, atuação e limites das mu-lheres nas artes cênicas?

3. 3. Quais critérios devem ser analisados para avaliar se os papeis in-terpretados por mulheres ao longo da história do teatro brasileiro são representativos da diversidade nacional ou mantenedores do status quo da supremacia branca, hétero, capitalista, machista, prenconceituosa e misógina?

4. 4. Como associar a atuação profissional e pessoal da atriz Dina Lisboa no contexto atual do feminismo?

5. 5. Como a liberdade feminina se configura e se contextualiza no mun-do das artes cênicas?

Para rEFLETir 497

QUESTÕES PARA O CAPÍTULO 05 – ARTES PLÁSTICAS E DIREITOS DAS MULHERES

1. Na França da segunda metade do século XIX fazia diferença ser mulher para realizar um projeto pessoal de carreira na pintura?

2. Quais foram os obstáculos que Berthe Morisot, por ser mulher, enfren-tou para exercer sua opção de unir o espaço privado ao espaço público, a realização na vida pessoal e no âmbito profissional?

3. O fato de ser mulher reduziu a importância do papel de Berthe Morisot na História do Impressionismo e da Arte?

4. Como a apropriação da produção artística de mulheres, ao longo dos anos, contribuiu para engendrar e manter a desigual valorização do trabalho delas e para seu apagamento como força criadora e transfor-madora?

5. Desde a perspectiva profissional, faz diferença ser mulher no mundo da arte? E desde o objeto e expressão da arte, faz diferença ter a perspectiva feminina?

6. Temos conhecimento das histórias de superação e determinação das pioneiras que se lançaram em suas carreiras profissionais, “sobre cujos ombros pudemos olhar mais adiante”?

QUESTÕES PARA O ENSAIO SOBRE BARBIE E FRIDA1. Qual o poder de representação e o discurso da Barbie Frida Kahlo? 

2. O feminismo impõe um parâmetro de corporeidade ou feminilidade? 

POSFÁCIO

Recebi com alegria o convite para o posfácio do livro “Por uma estética artística-feminista do Direito”. Trata-se de iniciativa inovadora no universo das letras jurídicas articulando as múltiplas dimensões artísticas com o direito a par-tir do olhar feminino. O livro reúne trinta e sete escritos que transitam entre o audiovisual, a literatura, a música, o teatro, as artes plásticas e a dança. Todos os temas partem da perspectiva feminina, evidenciando formas de compreensão ge-ralmente subalternizadas no horizonte da formação cultural da Modernidade. A relevância do trabalho é evidenciada pela disposição das autoras e autores quanto ao enfrentamento de temas geralmente dominados por vozes masculinas, assu-mindo a perspectiva do universo feminino como ponto de partida. E o resultado é a reunião de textos com grande potencial de transformação social na medida em que desnudam as estratégias de dominação patriarcal encontrada na estrutura da sociedade do nosso tempo.

Os estudos antropológicos apontam que nas primeiras sociedades o pro-tagonismo e a centralidade social estiveram originalmente atribuídas à mulher. O patriarcado tal como concebido pela tradição ocidental, é fruto de uma cul-tura cujo desenvolvimento está atrelado aos mecanismos de divisão do trabalho próprios do capitalismo. O caráter assimétrico nas relações de gênero decorre da naturalização da opressão e da subalternização das vozes e dos corpos femininos refletindo uma estrutura social perversa e alheia a qualquer ethos igualitário.

Pensar em uma sociedade igualitária envolve assim o desvelamento das for-mas de dominação naturalizadas pelo discurso hegemônico. Os textos aqui apre-sentados ajudam a compreender os processos de atribuição de sentido à vida e ao universo. Em seu peculiar domínio de simbolismos, a arte funciona como catali-zador das emoções e sentimentos ampliando o campo da reflexão e da crítica. A singular reunião de trabalhos que o livro “Por uma estética artística-feminista do Direito” transita por temas de reconhecido interesse no entrecruzamento entre os campos do direito e da arte, tais como violência de gênero; voto feminino, tráfico de pessoas e espetacularização da violência contra a mulher; a liberdade de expres-são da mulher, o encarceramento feminino, a desigualdade da mulher perante os tribunais, a inferiorização da mulher nas telenovelas brasileiras, a representação do feminino no cinema, a representação da mulher na política e o lugar dela na literatura, nas artes plásticas e na dança.

500 PoSFáCio

Trata-se de um documento riquíssimo cuja leitura é obrigatória para todas as pessoas que compreendem a importância de estudos que transcendam o lugar comum da normatividade asséptica do direito, antes inserindo-a no contexto de uma sociedade plural e complexa, plena de significações e sentidos.

Agradeço a Ezilda Melo, dedicada idealizadora do projeto, pelo convite para escrever este posfácio e pelo empenho para que a obra viesse ao grande pú-blico. Aproveito ainda para saudar todas as autoras e autores que contribuíram com suas críticas e reflexões para o livro “Por uma estética artística-feminista do Direito” na certeza de que afinal, estamos no caminho certo.

João Paulo Allain Teixeira1*

Recife, abril de 2020

1 * Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco Líder do Grupo de Pesquisa REC - Recife Estudos Constitucionais. Pesquisador do CNPq (bolsa produtividade em pesquisa nível 2).

SOBRE OS PARTICIPANTES

Adriana da Rocha Leite - Advogada especializada em conflitos familiares (FADI Sorocaba/SP). Escritora e pedagoga. Mediadora judicial, escolar e priva-da. Instrutora em mediação de conflitos pelo CN (Conselho Nacional de Justi-ça). Supervisora em mediação da Escola Paulista de Magistratura. Facilitadora em Justiça Restaurativa. Presidenta da Comissão de Mediação de Itapetininga/SP (2019/2022). Sócia-proprietária da Primeira Câmara de Mediação e Arbitragem de Itapetininga e Região – LEXMEDIARE Ltda. Pós-graduada em Educação à Distância pelo Lante/UFF. Desenvolve e organiza práticas colaborativas em ad-vocacia e mediação. Feminista, busca o resgate de mulheres que, à sua época, romperam com padrões e não se silenciaram. E-mail: [email protected]

Alana Oliveira - Advogada. Mestre em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ/UFPB. Licencianda do Curso de Licenciatura Plena em Letras da UEPB – Campus I. Professora do Curso de Direito da UEPB – Campus III. Coordena-dora do Grupo de Pesquisa Direito e Literatura da UEPB – Campus III. E-mail: [email protected]

Alessandra Almeida Barros - Mestranda em Ciências Criminológico - Fo-rense pela Universidad de la Empresa - UDE - Montevidéu (Uruguay). Possui pós graduação em Direito Penal pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (PB) (2017). Pós graduanda em Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (PB). Possui graduação em Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (PB) (2016). Ministrante de cursos, minicursos e palestras. Têm experiência na área de Direito Penal, Psicologia Jurídica Investigativa, Crimi-nologia Forense e Mediação/Conciliação. Professora de Graduação na UniAteneu Centro Universitário, ministrando a disciplina de Direito Penal Parte Especial. Professora de Graduação da Faculdade Princesa do Oeste ministrando as disci-plinas de Direito Penal III - Parte Especial e Psicologia Jurídica. Professora de Pós-Graduação Lato Senso em Perícia Forense na UniAteneu, ministrando as dis-ciplinas de Criminologia e Vitimologia; e Psicopatia. Professora de preparatório para o exame da ordem no Bravo Cursos Preparatórios, ministrando a disciplina de Estatuto, Código de Ética e Regulamento Geral da OAB. Parecerista jurídico do Escritório Josué & Gurgel Advogados Associados. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/CE.: [email protected]

502 SoBrE oS ParTiCiPanTES

Amanda Mateus Robbi - Graduanda de Relações Internacionais da Uni-versidade Federal do ABC (UFABC), membro do Grupo de Estudos do Sul Glo-bal e bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq, Edital 01/2018 - PIC/PIBIC/PIBIC-AF/PIBITI. E-mail: [email protected]

Anna Faedrich - Doutora em Letras (PUCRS). Professora Adjunta do CAp-UERJ e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação Latu Sensu em Literatura Brasileira (UERJ). Foi Pesquisadora Residente da Fundação Biblioteca Nacional (2014-2015), onde realizou pesquisa sobre escritoras brasi-leiras do entresséculos (1870-1930). Organizou as reedições do romance Exal-tação (1916), de Albertina Bertha, e do livro de poemas Nebulosas (1872), de Narcisa Amália, pela Gradiva Editorial em coedição com a Biblioteca Nacional. E-mail: [email protected]

Carla Estela Rodrigues - Advogada. Pós-Graduada em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito (2018. Ex-bolsista do Programa de Iniciação Científica e Tecnológica (2013-2015). Coautora dos livros Feminismos, Artes e Direitos das Humanas, Direito e Cinema Brasileiro, Direito e Música Brasileira, e Autora de artigos em revistas especializadas. E-mail: [email protected]

Cecília de Amorim Barros Ramalho - Graduanda em Direito. Ex-alu-na UNIFACISA; atualmente, estudante da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Pesquisadora dos estudos jusliterários – membro da linha de pesquisa Es-tudos Culturais, Direito e Literatura do GESPI – Grupo de Estudos em Sociolo-gia da Propriedade Intelectual. E-mail: [email protected]

Cristine Koehler Zanella - Professora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenadora do Grupo de Estudos do Sul Global (GESG). Membro do Comitê Executivo do Caucus do Sul Global (GSCIS), da International Studies Association, representando a América Latina e o Caribe. Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Ciência Política pela Uni-versidade de Gent (UGent), Bélgica. Mestre em Integração Latino-Americana e bacharel em Direito e bacharel em Economia, esses três pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

Daniel Fauth Washington Martins - Graduando do 10º período de Psi-cologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bacharel e Mes-trando em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfei-

SoBrE oS ParTiCiPanTES 503

çoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financia-mento 001. E-mail: [email protected]

Daniela Baumgarten - Psicóloga atuante da área clínica, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Clínica da Pessoa e da Fa-mília, aluna especial do mestrado em psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Dinah Lima - Bacharela em Direito pelo UniCEUB. Bacharela em Fi-sioterapia. Advogada feminista integrante da Comissão Nacional da Mulher da ABA – Associação Brasileira de Advogados e da SOS Mulher. E-mail: [email protected]

Edileuza Batista de Araujo - Mestranda do Programa de pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL/UFT), Campus de Araguaína, professora de Língua Portuguesa e Literatura na Rede Estadual de Ensino do To-cantins. E-mail: [email protected]

Ediliane Lopes Leite de Figueiredo - Graduada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre e Doutora em Literatura e Interculturalidade pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Intercultura-lidade (PPGLI - UEPB), na área de concentração Literatura e Estudos Culturais. Pesquisadora dos estudos jusliterários - Coordenadora da linha de pesquisa Estu-dos Culturais Direito e Literatura do   GESPI – Grupo de Estudos em Sociolo-gia da Propriedade Intelectual. Professora no Centro Universitário UNIFACISA. E-mail: [email protected]

Edna Raquel Hogemann - Pós-Doutora em Direito (UNESA). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Coordenadora do Curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas da Universi-dade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transformação Social (GPDHTS – Cnpq). E-mail: [email protected]

Elaine Pimentel - É doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2011), mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (2005), graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (1999), Pro-fessora Adjunta do Curso de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Alagoas. Tem experiência em atividades de pesquisa e extensão nas áreas Direito e Sociologia, com ênfase em Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: feminismo, gênero, segurança pública, siste-ma punitivo, violência, criminalidade. É líder dos grupos de pesquisa Núcleo de

504 SoBrE oS ParTiCiPanTES

Estudos e Políticas Penitenciárias (NEPP) e CARMIM Feminismo Jurídico, Vi-ce-líder dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos sobre a Violência em Alagoas (NEVIAL) e Grupo de Pesquisa Educações em Prisões (GPEP), todos registrados no CNPq. E-mail: [email protected];

Eliane Cristina Testa - Pós-doutoranda no programa de Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL) e docente do Curso de Letras e do Programa de Mestrado Profissional em Letras – PROFLetras (UFT/Campus de Araguaína) e da Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL). E-mail: [email protected]

Ezilda Melo - Advogada. Historiadora. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Direito desde o ano de 2003. Autora dos livros “Tribunal do Júri: arte, emoção e caos” e “Águas de mim”, e organiza-dora das coletâneas “Feminismos, Artes e Direitos das Humanas” e “Direito e Cinema Brasileiro”. E-mail: [email protected]

Fernanda Caroline Alves de Mattos - Mestranda em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Graduada em Direito pela Universida-de Tiradentes, pesquisa nas áreas de direitos humanos, direito penal e criminologia com ênfase relação entre Gênero e Direito. E-mail: [email protected]

Hilda Helena Soares Bentes - Doutora em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP. Membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7621671933218419. E-mail: [email protected]

Iranilson Buriti de Oliveira - Doutor em História. Professor titular da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: [email protected]

Janayna Nunes Pereira - Mestranda em Direito do Programa de Pós-Gra-duação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Ad-vogada. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Mediadora Familiar (CNJ/TJPB). Vice- Presidente da Comissão de Combate à Violência e Impunidade contra as Mulheres e Coordenadora da Rede de Sororidade da OAB-PB. E-mail: [email protected]

Joana Mutti - Economista marxista, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra em economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

Juliana Borges Kopp - Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia e em Direito pela UNIFACS. Pós-Graduada em Direito Público pelo

JUSPODIUM. Advogada militante na área de Direito de Família e Direito Fe-minino, e membra da Comissão de Direito das Mulheres da OAB-BA. E-mail: [email protected]

Katie Silene Cáceres Argüello - Doutora pela Université Paris-8. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Cri-minologia nos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora do Núcleo de Criminologia e Política Criminal do Programa de Pós-Graduação da UFPR (NCPC). E-mail: [email protected];

Larissa Zucco Iarrocheski - Acadêmica de psicologia na Universidade do Contestado (UnC). E-mail: [email protected]

Larisse Leite Albuquerque - Advogada licenciada com OAB CE 33869. Possui graduação em bacharelado em ciências jurídicas e sociais pela fa-culdade de filosofia, ciências e letras de cajazeiras (2015). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado, mediação, direito ambiental e crimi-nologia. Possui Pós-graduação em Gestão Tributária pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (PB). Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela pela Faculdade Futura. Pós-graduanda Direito Processual Civil pela Fa-culdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (PB). Presidente do Conselho Municipal dos direitos do idoso de Ipaumirim/CE. Professora de curso preparató-rio para o exame de ordem. E-mail: [email protected]

Leda de Oliveira Pinho - Mestre em Direito Civil pela Universidade Esta-dual de Maringá e Juíza Federal aposentada. E-mail: [email protected]

Ligia Ziggiotti de Oliveira - Doutora em Direitos Humanos e Democra-cia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição (2015). Professora de Direito Civil da Universidade Positivo. Advogada. E-mail: [email protected]

Lize Borges - Advogada atuante na área de família e sucessões, especiali-zada em Direito Civil pela Faculdade Baiana de Direito, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica de Salvador, doutoranda em direito pela Universidade Federal de Bahia, integrante da Comissão Nacio-nal de Direito e Arte do IBDFAM, presidente da comissão de Direito Inter-nacional do IBDFAM/BA, integrante do International Society of Family Law (ISFL), pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direito e Sexualidade da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA), professora de Direito Civil da Faculdade Batista Brasileira. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7911895641077940. E-mail: [email protected]

SoBrE oS ParTiCiPanTES 505

506 SoBrE oS ParTiCiPanTES

Manuela Aguiar Damião de Araújo - Professora de História da Universi-dade Estadual da Paraíba, Campus III. Doutora em Literatura e Interculturalida-de. E-mail: [email protected]

Márcia Letícia Gomes - Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Gran-de – FURG, Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO. E-mail: [email protected]

Maria Aparecida Figueirêdo Pereira - Bacharela em Direito e Especia-lista em Direito Penal pela UEPB. Graduada e Mestra em História pela UFCG. E-mail: [email protected]

Maria Clara Arraes Peixoto Rocha - Bacharela em Direito e Espe-cializanda em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Integrante do Grupo de Estudo em Direitos Humanos e Fundamen-tais (GEDHUF), do Laboratório de estudos e pesquisas em gênero, educação, sexualidades e diferenças (Legrar), do Women in Spanish, Portuguese and Latin American Studies (WISP) e da Frente de Mulheres Cariri. E-mail: [email protected]

Míriam Coutinho de Faria Alves - Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Pesquisadora-Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Arte e Literatura  CNPq/UFS. Membro honorária da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL). E-mail: [email protected]

Paulo Silas Taporosky Filho - Mestre em Direito pelo Centro Universitá-rio Internacional (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Professor de Processo Penal e Criminologia na Universidade do Contestado (UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; E-mail: [email protected]

Priscilla Leal - Formada em Direito, com pós em gestão cultural pelo Cen-tro Universitário Senac. Também é atriz formada pelo Teatro Escola Macunaíma. Desde 2012 se dedico a discutir a produção artística das mulheres. Idealizou e produziu o projeto  “Mulheres Artistas na Ditadura”, que foi patrocinado pela Caixa Cultural e seguiu em parceria com a Coordenação de Direitos à Memória e à Verdade, com apresentações no Cine Direito Humanos e no CEU Perus, e o projeto “Las Abuelitas”, um site para reunir e divulgar o trabalho das mulheres artistas. E-mail: [email protected]

Rebeca de Souza Vieira - Graduanda em Direito pelo Centro Universitá-rio Jorge Amado, assessora do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia (PPEBA), membra do Grupo de Estudos Avançados - Sistema Penal e Necro-política -IBCCRIM/BA- Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, membra do grupo de iniciação científica Núcleo de Estudo sobre Justiça Restaurativa – NE-JUR no Centro Universitário Jorge Amado, membra do Grupo de Estudos Sobre Sanção Penal da Criminologia Crítica e Política Criminal- Núcleo de Estudos Sobre Sanção Penal-NESP/UFBA, membra do grupo de pesquisa Culpabilidade e Responsabilidade-UFBA), membra do grupo de pesquisa em Direito Arte e Literatura na Universidade Federal da Bahia/UFBA, membra do Grupo de Estu-do “Estudos sobre Pierre Bourdieu e Antônio Bispo - Rompendo Fronteiras da Universidade Federal da Bahia/UFBA, membra do CCRIM - Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves-2019, membra do laboratório de ciências cri-minais 2018 do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E-mail: [email protected]

Renato Bernardi - Doutor em Direito do Estado PUC-SP. Professor do Bacharelado, Mestrado e Doutorado – UENP, Coordenador Pedagógico do PROJURIS Estudos Jurídicos Ltda, Procurador do Estado de São Paulo, pesquisa nas áreas de Intervenção do Estado na vida da pessoa, Direito do Estado, Estado e Responsabilidade, Direito e Arte. E-mail: [email protected]

Susilene Feoli - Mestre em Literatura Dramática - Universidade Federal de Uberlândia. Ano de 2011 a 2013.E-mail: [email protected]

Taís Vella Cruz - Mestra em Direitos Humanos e Democracia pela Uni-versidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Integrante do Programa Política Migratória, Universidade Brasileira - Projeto Migração, refúgio e hospitalidade (UFPR). In-tegrante do projeto de pesquisa Direito das Famílias (UEPG). Integrante do Nú-cleo de pesquisa em Direito Público do Mercosul (UFPR). Assessora jurídica na 1ª Promotoria de Justiça de Proteção ao Meio Ambiente - Curitiba/PR. E-mail: [email protected]

Tatyana Scheila Friedrich – Professora de Direito Internacional da UFPR - E-mail: [email protected]

Thaize de Carvalho Correia - Doutoranda em Direito Público pela uni-versidade federal da Bahia – UFBA, Mestre em Direito Público pela universida-de federal da Bahia – UFBA, especialista em Ciências Criminais pelo instituto Juspodivm, Professora de Processo Penal da Universidade Federal da Bahia e da

SoBrE oS ParTiCiPanTES 507

508 SoBrE oS ParTiCiPanTES

Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Coordenadora da Especialização em Ciências Criminais da Universidade Católica de Salvador – UCSAL. Advogada Criminal Professora de Capoeira graduada pelo Grupo de Capoeira Regional Por-to da Barra, Mestre Cabeludo. E-mail: [email protected]

Sérgio Assunção Rodrigues Júnior - Mestrando em Ciência Jurídica Forense pela Universidade Portucalense (2018 – 2020), Pós Graduando em Direito Civil e Processual Civil pela UNESA (2018 – 2020), Pós Graduando em Direito Desportivo pela UCAM (2018 – 2020), Pós Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (2017). Membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Transfor-mação Social (GPDHTS – Cnpq). E-mail: [email protected]

Uda Roberta Doederlein Schwartz - Juíza de Direito da Comarca de Barra do Ribeiro/RS. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Penal e Processo Penal. Bacharel em Filosofia. Mestranda em Direito – UFRGS – Ênfase “Direito Europeu e Alemão”. É mãe da Marina e da Vitória. Gosta de ler, de es-tudar e de escrever. Sonha com um mundo com menos desigualdades sociais e de gênero. E-mail: [email protected]

Vanessa Guimarães dos Santos - Bacharel em Direito. Especializada em Ordem Jurídica e Ministério Público - Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - FEMPERJ. Atualmente, cursando Espe-cialização em Direito Público e Privado na EMERJ - Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Veyzon Campos Muniz - Doutorando em Direito Público pelo Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Mestre e Bacharel em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Público (UCS/ESMAFE-RS) e em Direito Tributário (UNIP). Advogado, jornalista e servidor público. Técnico na Defensoria Pública Especializada em Atendimento à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected]

Victor Sugamosto Romfeld - Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Homoafe-tivo e Gênero pela Universidade de Santa Cecília (UNISANTA). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela UFPR. E-mail: [email protected]

O objetivo desta coletânea é trazer o feminismo como fi ltro discursivo que une o Direito à Arte, tomando como pressu-posto de análise obras artísticas de cunho literário, audiovi-sual, musical, teatral, artes plásticas e dança. São 40 ensaios que possibilitam ver a face artística do direito a partir dos direitos das mulheres. A arte é inspiradora, transdisciplinar e permite exercício her-menêutico diferenciado, refl exivo, problematizador e cheio de possibilidades. A beleza de estudar a ciência jurídica ocorre pela perspectiva de abordagens telúricas. Permanecer numa discussão legislativa e enfadonha mata o Direito dentro de uma prisão sem saídas, sem oxigenação, sufocado, asfi xiado sem enxergar uma luz na escuridão. Estudar o direito pela arte, tomando como fi ltro a abordagem do feminismo, apesar de não ser uma novidade, é um exercício novidadeiro, cheio de graça e de prazer.