o rock brasileiro como metáfora da sociedade dos anos 1980 nas páginas da revista chiclete com...

13
O rock brasileiro como metáfora da sociedade dos anos 1980 nas páginas da revista Chiclete com Banana. Rodrigo Otávio dos Santos - UFPR O presente artigo pretende vislumbrar algumas das metáforas mais recorrentes na revista Chiclete com Banana, o maior expoente dos quadrinhos udigrudi (corruptela do norte-americano underground) e que foi comercializada no Brasil entre os anos de 1985 e 1990, época que, como veremos, profundas transformações sociais, políticas e comportamentais ocorreram em solo brasileiro. Seu criador e principal artista era Angeli, que ficara famoso alguns anos antes graças ao seu trabalho de charges junto ao maior jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo. Angeli percebeu, então, que uma das maiores formas de contestação do povo brasileiro e, mais especificamente, o jovem brasileiro era a música rock. No momento aqui trabalhado o rock estava em grande ascensão, pouco depois do Rock in Rio mas ainda antes do fenômeno maior que foi a banda RPM. Em muito momentos o rock era tratado pela revista Chiclete com Banana como expressão de contestação, que criava certa metáfora com a vida política e social do país na década de 1980.

Upload: poseaduninter

Post on 25-Nov-2023

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O rock brasileiro como metáfora da sociedade dos anos 1980 nas páginas da revista Chiclete com Banana.

Rodrigo Otávio dos Santos - UFPR

O presente artigo pretende vislumbrar algumas das metáforas mais recorrentes

na revista Chiclete com Banana, o maior expoente dos quadrinhos udigrudi (corruptela

do norte-americano underground) e que foi comercializada no Brasil entre os anos de

1985 e 1990, época que, como veremos, profundas transformações sociais, políticas e

comportamentais ocorreram em solo brasileiro. Seu criador e principal artista era

Angeli, que ficara famoso alguns anos antes graças ao seu trabalho de charges junto ao

maior jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo.

Angeli percebeu, então, que uma das maiores formas de contestação do povo

brasileiro e, mais especificamente, o jovem brasileiro era a música rock. No momento

aqui trabalhado o rock estava em grande ascensão, pouco depois do Rock in Rio mas

ainda antes do fenômeno maior que foi a banda RPM.

Em muito momentos o rock era tratado pela revista Chiclete com Banana como

expressão de contestação, que criava certa metáfora com a vida política e social do país

na década de 1980.

Figura 1. New Look Fonte: Angeli. Chiclete com Banana nº 1. Sao Paulo: Circo, 1985. p.34

Na figura acima, extraída da edição número 1, de 1985, percebemos o chiste de

Angeli ao apresentar novos tipos de cabelos que fazem alusão ao cotidiano juvenil da

década de 1980.

O artista já inicia sua piada ao mostrar o corte “Igreja”, mostrando a dualidade

da entidade religiosa, que ora é enraizada em suas tradições, conservadora e aliada das

elites, ora é progressista, aliada dos mais pobres, e em sintonia com o pensamento

jovem. A piada está na contradição entre estes lados antagônicos, que fazem do cabelo

da personagem meio new wave/punk, meio reto e conservador.

O segundo quadrinho mostra a visão do artista para a já explicada coalizão

Frente Liberal, ou seja, uma fachada de liberalismo e arrojamento sendo que em sua

maior porção continua o reacionarismo e conservadorismo.

O terceiro quadrinho é um chiste completo em relação ao rock carioca. O “rock

de bermudas” era visto por Angeli como descartável, graças às inúmeras bandas e

artistas que não se firmaram no mercado. Apesar de Paralamas do Sucesso, Lulu Santos,

Barão Vermelho e Kid Abelha terem conquistado certa perenidade, como informa

Bryan (2004), inúmeras outras bandas tiveram seu fim prematuro. Gang 90, Blitz e

Ritchie, por exemplo, foram forças meteóricas de vendagem, mas que mostraram não

ter capacidade de permanecer no panteão dos artistas que venceram os anos 1980. A

Blitz, como lembra Bryan (2004), acabou em fevereiro de 1986, ou seja, dois meses

depois do lançamento desta piada. A Gang 90 havia acabado mesmo antes de Júlio

Barroso morrer, em 1984 e Ritchie vinha de mais uma derrota nas vendagens de seu

disco Circular, sendo taxado mais como artista brega do que como roqueiro.

Principalmente graças à explosão de Ritchie e Blitz, que no lançamento da revista

estavam em franco declínio, mas que haviam vendido milhares de cópias no Brasil

inteiro, Angeli percebe as bandas cariocas como efêmeras.

O chiste continua com a menção da Rede Globo, que segundo Angeli estimulava

a criação e execução das bandas no Rio de Janeiro. Quando o artista escreveu a piada já

haviam sido veiculados os especiais Plunct Plact Zuum, Plunct Plact Zuum II, A Era

dos Halley, Blitz contra o gênio do mal, o programa Armação Ilimitada era sucesso e as

propagandas sobre o novo programa do rock nacional, Mixto Quente, já apareciam em

inserções durante a programação da emissora. Todos estes especiais e mais as aparições

das bandas em programas de auditório como Chacrinha ou Globo de Ouro aumentavam

a relação entre as bandas cariocas e a emissora de Roberto Marinho.

Para finalizar, Angeli insere uma personagem vestindo um peruca, em clara

provocação à idade dos músicos, mais velhos do que aparentariam nas telas da

televisão. Além disso, o fato de inserir uma peruca para aparecer perante o público

denota a tentativa de engodo por parte dos músicos, que enganam sua audiência em

relação às suas vestimentas, idade e principalmente sua habilidade com os instrumentos.

Angeli parece acreditar que as bandas cariocas são uma farsa total, capitaneada pela

maior emissora de televisão do país com claro intuito de entreter. Com isso, criam-se

canções efêmeras que só servem para determinado período consumidor sendo

esquecíveis para a posteridade.

O quadrinho do meio retrata o sofrimento da Dívida Externa, eterno pesadelo na

mente dos brasileiros, que precisam conviver com um arrocho salarial promovido pela

expansão – e consequente dívida – promovida pelo governo militar. A Dívida era o

principal tema nos noticiários de economia do período, haja vista que, como já vimos, o

Plano Cruzado só seria lançado dois meses depois da publicação desta página

quadrinística. O brasileiro, como aponta Leitão (2011), vivia e respirava sob a sombra

de ser devedor do FMI. Além disso, a carga tributária e a inflação derivada também da

necessidade do governo impor um programa de austeridade a fim gerar recursos para

pagamento da dívida afetava diretamente a mente dos brasileiros trabalhadores. E

consequentemente todo o restante da população, inclusive os jovens.

O quadrinho que representa o rock paulista retrata um punk da periferia, com seu

cabelo raspado, típico de quem foi para a cadeia, como Angeli deixa claro nas frases ao

lado da caricatura. O rock paulista, de acordo com Alexandre (2002), diferente do

carioca, contava com a soturnez típica de uma metrópole cinzenta, sinistra e super

povoada mostra outras características, que o aproximam mais do punk contestador do

que da new wave libertária. O próprio desenho da personagem, nervosa, tensa e pouco

amistosa representa uma grande faceta do rock paulista, facilmente identificável tanto

em bandas roqueiras como Titãs e Ira! quanto em bandas punk como Inocentes ou

Garotos Podres.

Ao mesmo tempo, nesta página, Angeli ignora a maior das bandas paulistas do

momento, o Ultraje a Rigor. Conforme Alexandre (2002), o conjunto vendia mais

discos a cada dia, tornando-se fenômeno de vendas e de popularidade. Entretanto, a

banda pouco tem a ver com o estereótipo montado no quadrinho, uma vez que sua maior

característica é o humor, a alegria e a contestação política por meio da ironia e do

sarcasmo. Quando ignora a banda de Roger Moreira, Angeli parece estar apontando sua

crítica às bandas underground, que sofriam mais com a verve paulista em suas canções.

Devemos aqui lembrar que no período tanto os Titãs quando o Ira! ainda não haviam

ganhado status de grandes e populares bandas nacionais. E os punks Inocentes e Garotos

Podres sequer chegaram a ter este status em algum momento de suas carreiras.

A marginalidade está clara na visão do artista em relação às bandas de seu

Estado. Angeli parece entender o rock paulista como marginal, tanto em relação às

vendas, quanto em relação às bandas cariocas e a Rede Globo, quanto em relação à

polícia e a própria Lei. A visão do punk como delinquente, como já apresentado aqui, é

novamente reforçada. O estereótipo do punk marginal idealizado em Bob Cuspe aqui

também é utilizado como referencia às bandas paulistas, ainda que este estereótipo,

mesmo no trabalho de Angeli, mudaria aos poucos ao longo do tempo.

A ironia com o PDS remonta aos problemas já apresentados pelo partido

apoiador dos militares após a volta da democracia. Com a saída de Sarney do partido e

sua migração para o PMDB, a agremiação ficou fraca, sem representações políticas no

Senado e no Congresso nas eleições de 82 e mais ainda a de 86, o que acabou por, de

certa forma, liquidar eleitoralmente o partido. Os poucos fios mostrados por Angeli

representam os poucos representantes políticos que ainda constavam no partido no final

de 1985, ao mesmo tempo que mostram a debandada geral de um partido político

fortemente associado com o governo ditatorial que precedeu o democrático.

O outro quadro mostra o penteado Dona Solange. A Solange aqui representada

era a censora oficial da república no momento da criação da tira de Angeli, Dona

Solange Hernandez, que, como já vimos, já havia sido ironizada em Sessão da Tarde,

de Léo Jaime. A censora no final de 1985, de acordo com Skidmore (1988) já não tinha

quase poder algum, mas ficou marcada como figura reacionária, principalmente pelos

jovens consumidores da Chiclete com Banana, que se divertem lendo o texto onde

Angeli diz que esta personalidade teve que “abaixar o topete”, ou seja, teve que

diminuir sua arrogância e sua intransigência. Além disso, os leitores já sabiam que

mesmo que não constitucionalmente, a censura já estava com seus dias mais do que

contados.

O penteado Nova República é uma crítica à instabilidade política do nosso país

na virada para o regime democrático. A enorme gama de políticos, ideias, ideais,

facções e ideologias fica explicitado na presença de diversos tipos de cabelo na cabeça

uma pessoa apenas. A representação gráfica de Angeli fomenta e endossa o que

anteriormente dissemos a respeito da profusão de partidos políticos e seus

representantes nesta nova fase da vida política brasileira. A crítica também fica evidente

quando se percebe que não é possível, em apenas uma cabeça, ter tantos e tão distintos

penteados. A confusão provocada pela tentativa de encaixar todas estas facetas em um

única Estado é o que faz rir, ao mesmo tempo que faz o jovem refletir.

Os constantes desvios de dinheiro do INAMPS também foram abordados por

Angeli, que fez chiste mostrando o “rombo” trilionário causado pelas fraudes

envolvendo hospitais de todo o Brasil ao longo do ano de 1985 e denunciado pela

revista Veja em 13 de março daquele ano, com a reportagem INAMPS – uma rede de

intrigas.

A última das críticas é a única não relacionada ao contexto puramente nacional.

O terror nuclear era uma constante ameaça pairando nas cabeças dos indivíduos de

qualquer nacionalidade. A Guerra Fria, explicada por Arbex (1997) já deixava clara a

nefasta perspectiva da extinção humana por meio da guerra nuclear entre EUA e URSS,

superpotências do período. Este constante medo era discutido, analisado e criticado em

todos os meios humanos, principalmente nas artes, como já vimos em relação ao rock

nacional, que por diversas vezes demonstrou tal preocupação, como nos casos das

canções Charme de artista e Apocalipse não, da Blitz, Barrados no Baile, de Eduardo

Dusek ou Guerra Nuclear dos Inocentes. Lembrando que estas canções já haviam sido

lançadas e eram muito ouvidas no período. Mais adiante outros artistas, como

Engenheiros do Hawaii, Ultraje a Rigor, Paralamas do Sucesso e Plebe Rude também

mostraram esta preocupação em relação à guerra nuclear.

Mas a utilização do rock nacional como metáfora já se inicia na contra-capa da

edição numero 1 da publicação, em tira de página cheia. A reprodução abaixo mostra

diversos supostos grupos musicais de rock:

Figura 2 - Hit Hit HurraFonte: Angeli. Chiclete com Banana nº 1. Sao Paulo: Circo, 1985. p.2

O primeiro deles, Partido de Oposição, traçam um paralelo entre a política

nacional do período e os artistas de rock que de alguma forma deixam suas raízes

agressivas com o passar dos anos, tal como o ícone Roberto Carlos, que no início trazia

aos seus fãs um rock calcado nos movimentos contraculturais em ebulição na Inglaterra

e nos EUA nos anos 60, e posteriormente passou a fazer canções que versavam apenas

sobre o amor ou questões religiosas, tendo o instrumental mudado e praticamente

abolido as guitarras distorcidas em prol de instrumentos e arranjos mais palatáveis e

suaves. A crítica também passa pelas bandas do período, como Barão Vermelho ou

Camisa de Vênus, que como indicado no quadrinho, suavizou um pouco seu repertório.

O Barão Vermelho estava, de acordo com Bryan (2004), em 1982, com seu primeiro

álbum, com músicas como Billy Negão ou Rock ‘n geral. No ano seguinte, o segundo

álbum já estava mais diluído, tanto que só fez sucesso depois do aval de nomes clássicos

da MPB, como Caetano Veloso e Ney Matogrosso. Além disso, o álbum possuía

canções como Manhã sem Sonho e Blues do Iniciante já analisadas previamente e que

mostravam uma banda muito mais próxima à pasteurização musical necessária para uma

audiência maciça de FM.

Outra banda que também suavizou seu instrumental foi o Camisa de Vênus. Seu

primeiro disco mostra uma banda violenta o suficiente para zombar de um estupro

seguido de morte em Bete Morreu ou do suicídio de um jovem desesperançoso em

Pronto pro suicídio. No segundo álbum, mesmo mantendo-se punk, a banda dilui um

pouco sua acidez, e consolida seu maior sucesso comercial, Eu não matei Joana D’arc,

além de uma canção de amor, Rostos e aeroportos, com instrumental calmo e letra mais

próxima às canções típicas de FM do que as do punk sarcástico que caracteriza a banda.

No segundo quadrinho temos a banda Cheque sem fundo, em um chiste com a

profissão do bancário, que lida com enormes montantes de dinheiro diariamente porém

recebem um salario baixo. O quadrinho faz alusão à antiga marchinha de carnaval Me

dá um dinheiro aí, o que distoa um pouco da proposta rock da página como um todo.

Ainda assim, a piada se completa com a dicotomia entre quem mexe com muito

dinheiro todos os dias mas não o leva para casa. Além disso, a inflação consumia o

dinheiro dos trabalhadores assalariados, o que fazia com que nominalmente o montante

de dinheiro aumentasse na mão daqueles que o movimentavam, mas diminuía seu poder

de compra, gerando angústias e, naturalmente, expressões artísticas que mostravam esta

faceta da sociedade brasileira, como o quadrinho aqui apresentado ou canções já

analisadas, como as satíricas Mim quer tocar e Deus me dê grana. Do ponto de vista

puramente iconográfico, é interessante a predileção de Angeli por desenhar bancários

como homens de bigode, cabelos bem aparados, vestidos de terno e aparentando meia-

idade. Este parecia ser o estereótipo do bancário na visão do jovem, que também

imaginava assim o funcionário público da década de 1980: desesperançoso, sem

perspectivas e cordato.

No quadrinho seguinte, vemos a banda Escândalo Financeiro, representando os

roubos feitos por organizações criminosas que povoavam as grandes redes financeiras

do período. A alta do dólar, a inflação e os crimes financeiros praticados por militares

de alta patente já apontados por Skidmore (1988) preenchiam regularmente as primeiras

páginas dos jornais a partir de 1982 e só aumentavam. Além disso, em 1985 um grande

escândalo financeiro nomeado Coroa-Brastel pela imprensa explicava como os ex-

ministros Delfim Netto e Ernane Galvêas haviam desviado grande soma de dinheiro

público por volta de 1981. O escândalo foi tão marcante que chegou a ser inserido

nominalmente na canção Alvorada Voraz da banda RPM, além de o nome de Delfim

Netto constar na canção Nome aos bois, da banda Titãs, lançada alguns anos depois. Os

escândalos financeiros aparecem também em outras canções, como O reggae, da Legião

Urbana, que diz assistia o jornal da TV / e aprendi a roubar pra vencer, ou na canção

Prisioneiro, da banda Ultraje a Rigor, já anteriormente analisada neste trabalho, e que

possui os versos Com tanta gente roubando ninguém vai me pegar / Sigo tranquilo no

meio ninguém vai me dedar / Vivo bem com o tráfico e com a corrupção / Se o negócio

sujar é só tomar um avião.

No texto de Angeli, fica explícita a noção de roubo quando o artista escreve “faz

um som altamente dançável. Marcou, dançou!”. Importante salientar que na década de

1980 o verbo “dançar” era utilizado como gíria para designar uma perda, uma

consequência ruim. E o verbo “marcar” ali era utilizado pelos jovens para designar um

vacilo, um descuido. Ou seja, se a pessoa descuidar do seu dinheiro, a banda vai rouba-

lo.

No quarto quadrinho, temos a banda Casa de detenção, iconograficamente

marcado pelo desenho de indivíduos armados com armas brancas, vestidos com camisas

onde está marcado o símbolo da prisão e com aparência raivosa. No texto, Angeli insere

a informação que a banda é oriunda de antigos detentos da prisão de segurança máxima

do Carandiru, na cidade de São Paulo, na época a maior casa de detenção da América

Latina. No período compreendido por esta tese a prisão teve diversas rebeliões, ainda

que nenhuma delas tivesse resultado tão desastroso como o massacre de 111 presos

ocorrido em 1992. Mesmo assim, as notícias de rebeliões no presídio eram constantes

na mídia brasileira na década de 1980. Ecos dessas rebeliões e sua repercussão da mídia

e na percepção juvenil podem ser percebidos em canções como as da banda Titãs

Estado violência, com as frases Homem em silêncio / Homem na prisão / Homem no

escuro / Futuro da nação / Estado Violência e Desordem, que versa Os presos fogem do

presídio / Imagens na televisão ou ainda na canção da banda paulista Inocentes Pânico

em SP, que em sua letra narra o momento de uma rebelião na cidade de São Paulo:

Chamaram os bombeiros / Chamaram o exército / Chamaram a Polícia Militar / Todos

armados / Até os dentes / Todos prontos para atirar / havia o que / Pânico em SP.

O quinto quadro mostra a banda Aviso prévio, em claro chiste aos

desempregados do período, já que, como dissemos apoiados em Skidmore (1988), o

desemprego aumentou 15% nas áreas urbanas em 1983, chegando a níveis alarmantes

na indústria. E este número aumentou ainda mais de acordo com Serra (1984). Uma das

piadas de Angeli é o fato de a banda ser um conjunto vocal, já que não possuem

dinheiro para comprar instrumentos. Outra piada é o fato dessa banda se apresentar na

fila da sopa comunitária, doada por pessoas ou entidades para pobres moradores de rua

sem capacidade financeira para alimentação.

O nível de desemprego no período era tão alarmante que diversas bandas

criaram músicas que falam diretamente sobre o tema, como os Titãs e a canção

Desordem, que fala Às filas de desempregados / Que tudo tem que virar óleo / Pra por

na máquina do Estado. Outra canção que lida diretamente com o desemprego de seu

protagonista é Gritos na Multidão, da banda Ira!, que diz Estou desempregado / Estou

desgovernado / A fome me faz mal / Estou passando mal. A cômica canção Tic tic

nervoso, cujo compacto foi comercializado com capa feita por Angeli também reflete o

desemprego do período, dizendo: Perdi o meu emprego / que já era mixaria.

O desemprego também refletia em determinadas canções que não abordavam o

tema diretamente, mas que implicitamente abordavam a falta de ocupação dos

indivíduos, caso das canção já analisada Até quando esperar, da Plebe Rude, que mostra

a pobreza oriunda da falta de emprego, ou Alagados, dos Paralamas do Sucesso, que

também revela a pobreza.

O sexto quadrinho mostra a banda A luta continua, cujos integrantes são todos

Luiz Inácio Lula da Silva. A piada de Angeli reflete a forma como o sindicalista que

viraria presidente do país era influente na vida política do Brasil. Lula, de acordo com

Pillagallo (2006) era influente sindicalista da região do ABC, como evidencia a piada, e

um dos mentores das greves existentes sobretudo a partir de 1979. A imagem existente

no quadrinho evidencia primariamente uma caricatura do sindicalista, repetida quatro

vezes, ainda que em tamanhos diferentes, com boina lembrando a icônica imagem de

Che Guevara fotografada por Alberto Díaz em 5 de março de 1960. Importante salientar

que a boina existente no desenho parece ter a função de atrelar visualmente Lula a

Guevara, sendo um signo do comunismo, da revolução empreendida na América Latina.

Luis Inácio da Silva nunca usou boina em seus discursos ou aparições públicas. Outra

questão a ser apontada no desenho são os instrumentos musicais da banda, todos chaves

de boca, importante acessório que remete à indústria mecânica onde Lula trabalhava e

procurava os direitos dos empregados.

O próximo quadrinho mostra a truculência das tropas de choque nas polícias

militares. O desenho mostra homens armados de cassetetes e escudos, com rosto pouco

amigável, e em posição de defesa pronta para o ataque. No texto, Angeli relembra casos

anedóticos de dois artistas de heavy metal e ícones juvenis, Ozzy Osbourne, que comeu

um morcego vivo acreditando ser um boneco de borracha da produção de seu

espetáculo, e a banda estadunidense Kiss, que segundo boatos esmagava pintinhos com

suas gigantescas botas de plataforma durante suas apresentações. Angeli diz claramente

que as tropas de choque das polícias espancam cidadãos em praça pública. Neste

sentido, pode-se perceber que no final de 1985, quando a revista chegou às bancas, a

censura não mais existia de fato, do contrário a crítica não seria tão explícita. Percebe-se

também que a juventude incomodava-se com a falta de segurança não apenas oriunda

dos marginais, mas também oriunda da entidade que deveria protege-la.

E crítica à violência da polícia são inúmeras no rock brasileiro da década de

1980. Podemos citar a forma bem humorada dos Paralamas do Sucesso na canção

Patrulha noturna, que coloca um policial como um ineficiente servidor da lei, que

prefere pegar garotos de moto ao invés de prender reais bandidos. A canção Batalhões

de estranhos, da banda Camisa de Vênus também mostra a truculência da polícia, que

chegam arrebentando e arrasando as pessoas e manifestantes. A canção inclusive deixa

claro uma espécie de toque de recolher promovido pela polícia, já que os policiais

patrulham com intensidade os quatros cantos da cidade / Proíbem qualquer mudança,

zelando pela segurança / (...) / Eles vem e vão com a forca de quem arrasa / Eles vem e

vão mas nós ficamos em casa. A polícia como força de coerção também aparece na

canção Brasília, da banda Plebe Rude. Segundo a letra analisada, a polícia é

preocupação constante da juventude brasileira, já que ela está lá para manter a ordem a

qualquer custo. E em uma sociedade cujo passado militarizado estava tão recente, este

medo tornou-se palpável em diversas manifestações artísticas.

A banda RPM expressou sua preocupação com a polícia na canção Alvorada

voraz, onde dizem Fardas e força / Forjam as armações / (...) / Juram que não /

Torturam ninguém / Agem assim / Pro seu próprio bem, deixando clara a impunidade

percebida pela população em relação às forças da lei e da ordem.

Outra canção que denuncia a truculência e a falta de ineficiência das forças

policiais é a canção Polícia, da banda Titãs, que diz de forma clara que a sociedade não

está mais aguentando o comportamento dos policiais e pede para que não haja mais

polícia nas ruas. Ainda que motivada pela prisão de membros da banda pela polícia

federal, a canção não deixa de responder à alguns anseios da população jovem do país.

O último quadrinho mostra a banda Cola de Sapateiro. Na metade dos anos

1980 existia uma epidemia de jovens e indigentes que cheiravam cola de sapateiro para

se drogar, anestesiando o corpo das mazelas sociais existentes. Estes indivíduos perdiam

o contato com a realidade, ficavam eufóricos e viciados em curto espaço de tempo. Esta

droga, por ser muito barata e ser adquirida de forma simples na década de 1980, era

muito associada à mendicância, e diversas referências a ela foram cantadas em canções

como Revoluções por minuto, da banda RPM, que diz explicitamente aqui na esquina

cheiram cola, fazendo alusão às condições sub-humanas vividas por uma parcela da

população. Mais explícita ainda é a forma como a banda Engenheiros do Hawaii

colocam a cena de um mendigo infantil usando a droga: Criança pequena / Cheirando

cola / Beijando a sola / Dos sapatos.

A associação com o crime também está posto no texto impresso por Angeli, que

fala que a banda de cheiradores de cola assaltam as pessoas durante as apresentações.

Além disso, ressaltando ainda mais o caráter juvenil das pessoas associadas à droga, o

artista diz que a banda foi formada do reformatório para jovens delinquentes da Febem,

em São Paulo. E que seu maior sucesso é Mamãe eu quero, neste caso uma alusão à

infância corrompida dos usuários.

Do ponto de vista imagético, a banda é representada por cinco integrantes, todos

apresentando um saco de papel ou plástico no nariz, lembrando ao leitor que cola de

sapateiro é uma droga inalável. Além disso, o último dos integrantes da banda tem sua

camisa remendada, e todos estão descalços, representando visualmente a pobreza. Para

ressaltar a marginalidade, apenas um dos participantes possui cabelo. Os demais estão

com eles raspados, em outra alusão à Febem, cuja primeira providência ao prender um

menor infrator era raspar seus cabelos. Os olhos recheados de circunferências são uma

forma de Angeli mostrar o estado de torpor e alucinação presentes nos usuários desse

tipo de droga.

Com tais exemplos, podemos perceber a influência da música rock na sociedade

brasileira, bem como nas entrelinhas do pensamento jovem no país. Angeli soube como

poucos canalizar a influência do rock para criticar toda a sociedade brasileira,

utilizando-se de duas grandes forças midiáticas – o rock e os quadrinhos – para dar ao

jovem outras linhas de pensamento, outras formas de atacar a sociedade e criticar os

erros por ela cometidos.

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002.

ARBEX, Jr. José. A Guerra Fria. São Paulo: Moderna, 1997.

BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho nao dança: Cultura Jovem brasileira dos

anos 80. Rio e Janeiro: Record, 2004.

LEITÃO, Miriam. A Saga Brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2010.

PILAGALLO, Oscar. A história do Brasil no século XX : (1980/2000). São Paulo:

Publifolha, 2006.

SERRA, José. A crise econômica e o flagelo do desemprego. In: Revista de economia

política vol. 4 nº 4, outubro-dezembro 1984. Disponível em

<http://www.rep.org.br/pdf/16-1.pdf> acesso em 28/09/2013.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1988 (a).