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CONSELHO EDITORIAL

Os pareceristas ad hoc do n. 27 serão divulgados junto com a lista na publicação do n. 28 da revista.Revisão: Lígia Pellon de Lima Bulhões; Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes; Tradução/revisão: Eric Maheu;Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh (“A Luz”, de Carybé – Escola Parque, Salvador/BA); Secretaria:Nilma Gleide dos Santos Silva; Claudejane Gonçalves da Silva.

REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO I – UNEB

Reitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa MarauxDEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues;Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenadora: Nadia Hage Fialho

Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaideEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleGrupo Gestor: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Elizeu Clementino de Souza, Jumara Novaes Sotto Maior(coordenadora), Luciene Maria da Silva, Nadia Hage Fialho.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

Raquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional /Instituto Paulo FreireYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da Bahia

Conselheiros internacionaisAdeline BeckerBrown University, Providence, USAAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEllen BiglerRhode Island College, USAFrancisco Antonio LoiolaUniversité Laval, Québec, CanadaGiuseppe MilanUniversitá di Padova – ItáliaJulio César Díaz ArguetaUniversidad de San Carlos de GuatemalaLuís Reis TorgalUniversidade de Coimbra, PortugalMarcel LavalléeUniversité du Québec à Montréal, CanadaMercedes VilanovaUniversidade de Barcelona, EspañaPaolo OreficeUniversitá di Firenze - Italia

Conselheiros nacionaisAdélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaJaci Maria Ferraz de MenezesUniversidade do Estado da BahiaJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Carlos Sebe Bom MeihyUniversidade de São PauloJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Católica de SalvadorMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia eUniversidade Católica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São PauloNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da BahiaPaulo Batista MachadoUniversidade do Estado da Bahia

Revista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBA

EducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoe Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus I

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007

Tiragem: 1.000 exemplares

Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade / Universidade doEstado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun.,1992) - Salvador: UNEB, 1992-

Periodicidade semestral

ISSN 0104-7043

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05)

Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Revista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural.Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc. deve serdirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPERua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR - BAHIATel. (071)3117.2316E-mail: [email protected]

Normas para publicação: vide últimas páginas.E-mail para o envio dos artigos: [email protected] da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br

Indexada em / Indexed in:- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação -Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html- CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana- Universidade Nacional Autônoma do México:E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx- INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la RechercheScientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr

Pede-se permuta / We ask for exchange.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007

S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I O

9 Editorial

10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação eContemporaneidade

13 Educação Especial: apresentaçãoLuciene Maria da Silva

EDUCAÇÃO ESPECIAL

19 Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise dofilme ‘Os dois mundos de Charly’José Leon Crochík

31 O que pensam e sentem crianças não-deficientes em relação às deficiências e à inclusão:revisão bibliográficaCamila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari

41 Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto daescolainclusivaViviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks

55 A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigadoLazara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna

69 Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das IFES mineirasLuciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; GabrielaSilveira Meireles

89 A percepção dos estudantes do curso de pedagogia sobre educação inclusivaCristiane Regina Xavier Fonseca-Janes

97 A inclusão e suas relações no cotidiano escolarGraciela Fagundes Rodrigues

105 Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos comdeficiência mental no ensino fundamental da rede municipal de ensino de São Luís-MAZinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva

125 Do horror à diferença: uma aproximação com o conto ‘O alienista’ de Machado deAssisLuciene Maria da Silva

131 Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a Educação Especial nocontexto educacional brasileiroRosalba Maria Cardoso Garcia

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007

255 Normas para publicação

143 Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiaisIsa Regina Santos dos Anjos

149 Pode-se falar em um ‘movimento de deficientes’ no Brasil ?Alessandra Santana Soares e Barros

159 O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de BrechtRoberto Sanches Rabello

169 No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhosMarisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva

183 Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças comdificuldades de aprendizagemElisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

203 Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de Asperger: estratégias paratrabalhar as habilidades narrativo-discursivas e a produção verbalSimone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

223 Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhoscom deficiência visual, em situação de avaliação assistida e tradicionalAna Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia PatrocínioPedroza Canal

239 Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidadeseducacionais especiaisAline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima AgostiniMartins

RESENHAS

251 BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em tempos modernos. SãoPaulo: Contexto, 2006. 172 p.Yara Dulce Bandeira de Ataide

253 OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, ZacariasPereira. Conselhos Municipais de Educação: um estudo da região metropolitana deCampinas. Campinas/SP. Editora Alínea, 2006. 300 p.Desimary Ferreira Lima de Miranda

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007

C O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T SC O N T E N T S

EDUCATION AND DISABILITY

11 Editorial

12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista daFAEEBA – Education and Contemporaneity

13 Education and Disability: an introductionLuciene Maria da Silva

19 Normalization and Differentiation of Individual with Mental Deficiency: an Analysis ofthe Film ‘Charly’José Leon Crochík

31 What Children without Disabilities Think and Feel about Disabilities and Inclusion:a review of literatureCamila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari

41 Educational Practice and Inclusion: Wondering about the Experience of Being Professorwithin the Context of an Inclusive SchoolViviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks

55 School Inclusion of the Deaf Person: some Reflections about Daily LifeLazara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna

69 Analyzing the Inclusion Discourses of the IFES Mineiras Psychology CoursesLuciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; GabrielaSilveira Meireles

89 Students of Pedagogy’s Perception about Inclusive EducationCristiane Regina Xavier Fonseca-Janes

97 Inclusion and its Relationships with Daily Life at SchoolGraciela Fagundes Rodrigues

105 Perceptions of School Headteachers about School Inclusion of Students with MentalImpairment in Primary Schools from São Luís-MA (Brazil)Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva

125 Horror of Difference: an approximation with Machado de Assis’ short story ‘TheAlienist’Luciene Maria da Silva

131 Theoretical-methodological Reflections upon Special Education Policies in the BrazilianEducational ContextRosalba Maria Cardoso Garcia

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007

255 Instructions for publication

BOOK REVIEWS

143 Professional Education: A Challenge for People with Special Educational NeedsIsa Regina Santos dos Anjos

149 Is it Possible to Speak of a “Movement of People with Disabilities” in Brazil?Alessandra Santana Soares e Barros

159 Theater in Education of Visually Impaired Persons and the Brecht’s Theory of DidacticPlayRoberto Sanches Rabello

169 In the Silence of the Sounds: Music and Deafness: Constructing WaysMarisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva

183 Proposal of Analysis of Emergent Literacy Abilities in Children with Learning DisabilitiesElisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

203 Strategies to Work with Narrative-Discoursive Abilities and Verbal Production in Childrenwith High-Funcioning Autism and Asperger SyndromeSimone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

223 Mother Conceptions about Child Development and Cognitive Performance of VisuallyImpairment Children in Dynamic and Static AssessmentAna Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia PatrocínioPedroza Canal

239 Knowing the Necessities and Potentialities of Mothers of Children with DisabilitiesAline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima AgostiniMartins

251 BOM MEIHY, J.C.S. Augusto and Lea: a case of (un)love in modern times. São Paulo:Contexto, 2006. 172 p.Yara Dulce Bandeira de Ataide

253 OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias Pereira. Cities’Education Counsels: a study of the metropolitan area of Campinas (São Paulo, Brazil). Campinas/SP: Editora Alínea, 2006. 300 p.Desimary Ferreira Lima de Miranda

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 9

Luciene Maria da Silva

EDUCAÇÃO ESPECIAL é o tema do número 27 da Revista da FAEEBA– EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE. Para sua elaboração rece-bemos a valiosa colaboração da professora Luciene Maria da Silva, da Linhade Pesquisa 3 do Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneida-de – PPGEduC, da UNEB, e membro do Grupo Gestor da Revista. Comocoordenadora deste número, ela fez uma ampla divulgação da temática e con-seguiu reunir uma equipe de 20 pareceristas ad hoc, a fim de avaliar os 48textos recebidos para fins de publicação.

Educação inclusiva é o conceito-chave que define o conjunto dos textos,propondo uma reforma radical no sistema educacional, que deve reestruturaros seus sistemas curriculares, avaliativos, pedagógicos e métodos de ensino, afim de respeitar a diversidade de desenvolvimento educacional e as necessida-des especiais, garantindo que todos os alunos tenham acesso ao ensino regulare impedindo qualquer forma de segregação e isolamento.

Ficou claro que se trata de um processo dinâmico, não se limitando apenasa uma reformulação administrativa, mas a um processo contínuo de reestrutu-ração educacional em construção e transformação permanente. A inclusãonão pode se restringir à mera inserção de alunos com necessidades educacio-nais especiais nas escolas regulares. Significa a proposta de uma escola dequalidade para todos os alunos.

Além dessa abordagem, esse número traz vários artigos que tratam deconteúdos específicos que dizem respeito à questão das necessidades educa-cionais especiais.

Os Editores

EDITORIAL

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 200710

Educação Especial: apresentação

Temas e prazos dos próximos números

da Revista da FAEEBA:

Educação e Contemporaneidade

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 11

Luciene Maria da Silva

EDITORIAL

Education and disability is the theme of the volume 27 of the Revista daFAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE. This volume be-nefited from the valorous help of Luciene Maria da Silva, from a researchgroup of the master program in Education at UNEB, who is also a member ofthe Editorial Committee of this journal. As a coordinator, not only did she publi-cize the theme but she succeeded in enrolling not less than 20 manuscriptevaluators to analyze the 48 texts received for publication.

Inclusive education is the keyword which define the set of texts whichproposes a radical reform of the educational system which must restructure itscurriculum, its ways of evaluating, its pedagogies and teaching methods, so asto respect the diversity of educational development and the special needs,granting to everyone the access to regular school and prohibiting all ways ofsegregation and isolation.

It is clear that we speak about a dynamic process, not limited only to anadministrative reform but to a continuous process of restructuring and trans-forming education. Inclusion may not be restricted to the simple inclusion ofpupils with special needs in regular schools. It means the proposal of qualityschool for all.

Beyond these approaches, this volume contains papers which discuss spe-cific contents related to special educational needs.

The editors

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 200712

Educação Especial: apresentação

Themes and terms for the next journals

of Revista da FAEEBA:

Educação e Contemporaneidade

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 13

Luciene Maria da Silva

EDUCAÇÃO ESPECIAL: APRESENTAÇÃO

Luciene Maria da Silva *

* Doutora em Educação pela PUC/SP. Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço paracorrespondência: Departamento de Educação I – UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

Os artigos organizados neste número da Revista da FAEEBA – Educaçãoe Contemporaneidade atendem a nossa pretensão de aprofundar a reflexãoacerca das questões relacionadas à educação para pessoas com deficiência,motivada pelo entendimento de que a temática encerra uma grande complexi-dade no seu enfoque, e pelo reconhecimento do difícil caminho que ainda te-mos para efetivar uma política educacional que reafirme o direito à educaçãopara todos, respeitando as singularidades dos indivíduos.

A crescente diversidade no âmbito da escola, resultado da pressão socialpor maiores oportunidades de escolarização, vem se tornando objeto de inves-tigação que dá centralidade às instituições escolares, por estas se constituíremem espaço de possíveis práticas heterogêneas envolvendo sujeitos e identida-des variadas. Alunos que possuem atributos particulares por terem algum tipode deficiência fazem parte desse universo e são classificados no contexto edu-cacional como alunos especiais vinculados à modalidade de educação especi-al. Esse campo consolidou-se a partir da forte influência da psicologia e dabiologia na aceitação de padrões de normalidade e classificações ajuizadascomo adequadas, e do pressuposto de que indivíduos “especiais” podem sereducados por meio de procedimentos educacionais especiais, em escolas se-paradas do sistema regular de ensino.

É importante observar que, para o senso comum, a educação especial estánitidamente relacionada às instituições especiais para educação de pessoascom deficiências. O “especial” dessa educação, por certo, advém daquilo queé particular do indivíduo - seu atributo físico, sensorial ou mental. É a únicamodalidade do sistema educacional cuja denominação reporta-se de formasubjetiva a uma peculiaridade do sujeito, ao que lhe é próprio e inegável, porestar circunscrito às suas características pessoais. Diante disso, fica claro queo “especial” da educação está fixado no indivíduo pela deficiência, pelo limiteou pela falta. Sendo o “especial” a deficiência, que diz respeito a uma particu-laridade que está no indivíduo, a organização do espaço escolar, o método e opróprio cotidiano da escola tornam-se especiais porque centrados não no alu-no, mas no aluno deficiente, na sua dificuldade para aprender desvinculada deoutras variáveis. Nesse sentido a educação especial em vários momentos dahistória da educação apresentou-se como algo distanciado da educação emgeral, não incorporando, inclusive, importantes reflexões sobre a articulaçãoentre educação e sociedade. E por ter focado de forma tão intensa a deficiên-cia e o ensino especial, sinônimo de ensino segregado, gerou uma resistênciaao próprio campo de conhecimento.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 200714

Educação Especial: apresentação

Os debates sobre educação inclusiva, fartos na década de noventa, salien-tam que as desvantagens e limitações das pessoas com deficiência nas suasatividades cotidianas não dizem respeito apenas à ausência de acessibilidade,mas principalmente à condição ou posição que ocupam na sociedade. Entre-tanto, não podemos direcionar o foco totalmente para o meio social como senão existissem, de fato, questões específicas que dizem respeito às deficiênci-as e suas interações com a educação. Ademais, a inclusão deve ser compre-endida como um princípio. Portanto, não podemos pensar a educação inclusivasenão como possibilidade dentro de um contexto, pois a sua realização depen-de dos sujeitos que a constituem.

Considerando esses aspectos, compreendemos a importância de organizarum número da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade comartigos que apresentam reflexões e experiências sobre educação especial nassuas abordagens relacionadas às categorias de deficiência, contexto escolar e/ou questões sobre pesquisa. Dezoito artigos compõem esse número temáticoda Revista da FAEEBA, do qual participam autores, pesquisadores e profissi-onais de diversas regiões do país, com variadas abordagens sobre problemasatuais postos pela pesquisa nesta área.

Abre essa coletânea o ensaio de José Leon Crochik intitulado Normaliza-ção e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise dofilme ‘Os dois mundos de Charly’, em que o autor evidencia que a normali-zação busca tornar o indivíduo com deficiência mental o mais próximo possíveldos que não a têm, enquanto a diferenciação defende que os indivíduos devemser aceitos com os seus limites, não sendo nem melhores ou piores que osoutros, mas diferentes.

Seguem-se artigos que discutem a inclusão sob abordagens diversas. Oartigo O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação àsdeficiências e à inclusão: revisão bibliográfica, de Camila Mugnai Vieira eFátima Elisabeth Denari, apresenta uma revisão bibliográfica de estudos sobreconcepções e atitudes de crianças não deficientes em relação às deficiênciase à inclusão. Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de serprofessor no contexto da escola inclusiva é o trabalho de Viviane Preichar-dt Duek e Maria Inês Naujorks, o qual busca uma compreensão da experiên-cia de ser professor na escola inclusiva. A inclusão escolar do surdo:algumas reflexões sobre um cotidiano investigado, de Lazara Cristina daSilva e Silvana Malusá Baraúna, traz o resultado de fragmentos de duas pes-quisas realizadas entre 1998 e 2004, na cidade de Uberlândia, em que se discu-tem as condições e possibilidades de inclusão dos aprendizes surdos nas escolasregulares de ensino.

O artigo Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psico-logia das IFES mineiras, de Luciana Pacheco Marques, Cristina Toledo, Fre-derika de Assis Burnier e Gabriela Silveira Meireles, objetiva desvelar os sentidosdo termo inclusão para os referidos cursos a partir das produções acadêmicas(dissertações) dos programas de mestrado em psicologia. Cristiane ReginaXavier Fonseca-Janes, no seu artigo A percepção dos estudantes do cursode pedagogia sobre educação inclusiva, constata que as representaçõesdos alunos em relação à inclusão na escola corresponde à mera inserção depessoas com necessidades especiais na sala de aula regular. O artigo A inclu-

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 15

Luciene Maria da Silva

são e suas relações no cotidiano escolar, de Graciela Fagundes Rodrigues,faz uma análise das representações das diferenças, dando especial atenção àsurdez e à síndrome de Down entre crianças no cotidiano escolar, em umaescola da rede pública estadual de Porto Alegre. Zinole Helena Martins Leitee Silvana Maria Moura da Silva, no artigo Percepções dos diretores de esco-las-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental noensino fundamental da rede municipal de ensino de São Luís-MA, fazemuma descrição da implantação da inclusão escolar de alunos com deficiênciamental no ensino fundamental da rede municipal de ensino de São Luís doMaranhão, segundo as percepções dos diretores das escolas-pólo. LucieneMaria da Silva, no seu artigo Do horror à diferença: Uma aproximação como conto ‘O alienista’ de Machado de Assis, traz uma discussão sobre dife-renças a partir do entendimento de ciência por parte de Simão Bacamarte,personagem do conto ‘O Alienista’, escrito por Machado de Assis.

Rosalba Maria Cardoso Garcia destaca, no seu artigo Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contex-to educacional brasileiro, o procedimento de análise documental frente àsproposições políticas no campo educacional. O artigo Educação profissio-nal: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiaisinsere-se no campo de investigação da educação profissionalizante, e a suaautora, Isa Regina Santos dos Anjos, considera que a idéia central da inclusãono ensino profissional deve ser a de uma mudança na forma de entender apessoa com necessidades educacionais especiais, propiciando uma “sociedadepara todos”. Já Alessandra Barros, em seu artigo Pode-se falar em um ‘mo-vimento de deficientes` no Brasil?, descreve a atividade das entidades deatenção aos deficientes no tocante à qualidade da assistência prestada, optan-do pelo recorte junto às APAEs - Associações de Pais e Amigos dos Excepci-onais e às Associações de Síndrome de Down.

Os dois artigos seguintes referem-se às possibilidades da inclusão por meioda arte. O artigo de Roberto Sanches Rabello, intitulado O teatro na educa-ção do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht, tem comobase um estudo de caso que investigou as possibilidades, limites e significadoda utilização da linguagem teatral por um grupo de adolescentes deficientesvisuais. Por sua vez, o trabalho No silêncio dos sons: música e surdez –construindo caminhos, de Marisa Pinheiro Mourão e Lázara Cristina da Sil-va, discute as contribuições da música no desenvolvimento cognitivo de crian-ças surdas.

Elisandra André Maranhe e Tânia Maria Santana de Rose discutem ashabilidades de letramento emergente por parte de alunos com dificuldades deaprendizagem, no trabalho Proposta de análise de habilidades de letramen-to emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem. Em segui-da, Simone Aparecida Lopes-Herrera e Maria Amélia Almeida apresentam,no artigo Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de Asper-ger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas e aprodução verbal, algumas conclusões que demonstram uma reciprocidadecomunicativa entre adulto e participantes, sendo os seus perfis comunicativossemelhantes em termos de medidas de produção verbal, como extensão médiados enunciados (EME) e complexidade de fala (CF).

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Educação Especial: apresentação

Os dois últimos trabalhos fazem reflexões sobre as percepções de mães decrianças com deficiência. Ana Cristina Barros da Cunha, Sônia Regina FiorimEnumo e Cláudia Patrocínio Pedroza Canal são as autoras do artigo Concep-ções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo defilhos com deficiência visual, em situação de avaliação assistida e tradi-cional, que discute os comportamentos maternos que têm potencial capacida-de de influenciar diretamente o desenvolvimento da criança com DV. AlineMaira da Silva, Enicéia Gonçalves Mendes e Morgana de Fátima AgostiniMartins finalizam a lista de artigos da coletânea com o trabalho Conhecendoas necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessida-des educacionais especiais, cujo objetivo foi construir e testar um instrumen-to para identificar as necessidades e potencialidades de parentes de criançascom necessidades educacionais especiais

Os textos aqui reunidos não expressam a totalidade das abordagens e nemdos posicionamentos teóricos-metodológicos das pesquisas na área de educa-ção especial. Por certo, os autores dos trabalhos esperam que as idéias apre-sentadas estimulem, de alguma forma, o debate sobre os seus aspectos maisimportantes.

EDUCAÇÃO ESPECIAL

19Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007

José Leon Crochík

NORMALIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO

DO INDIVÍDUO COM DEFICIÊNCIA MENTAL:

uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’

José Leon Crochík *

* Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de SãoPaulo. Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista de produtividade em pesquisapelo CNPq. Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Av. Prof. Mello deMorais, 1721, Bloco A, sala 196, Cidade Universitária – 05508-030, São Paulo/SP. E-mail: [email protected]

RESUMO

Neste ensaio são discutidas e relacionadas as tendências de normalização ediferenciação na inclusão de pessoas com deficiência mental. Para isso utilizaseda análise do filme “Os dois mundos de Charly”, produzido em 1968 por RalphNelson; das discussões da área de educação inclusiva, e obras dos pensadoresda Teoria Crítica da Sociedade.

Palavras-chave: Normalização – Diferenciação – Inclusão – Deficiênciamental

ABSTRACT

NORMALIZATION AND DIFFERENTIATION OF INDIVIDUALWITH MENTAL DEFICIENCY: an analysis of the film ‘ Charly’In this essay we argued about normalization and differentiation of people withmental deficiency. To do so, we use an analysis of the film “Charly”, producedin 1968, by Ralph Nelson; as well as the debates in the field of inclusive education;and the work of the thinkers of critical social theory.

Keywords: Normalization – Differentiation – Inclusion – Mental deficiency

Este ensaio tem como objetivo discutir astendências de normalização e de diferencia-ção do indivíduo com deficiência mental emnossa sociedade. A tendência de normaliza-ção busca tornar o indivíduo com deficiênciamental o mais próximo possível dos que não atêm, e a tendência de diferenciação defendeque os indivíduos devem ser aceitos com osseus limites, não sendo nem melhores nem pi-ores que os outros, mas diferentes. Para essadiscussão, o texto é dividido em três partes.Na primeira, os conceitos de normalização e

diferenciação são apresentados em conjuntocom algumas de suas implicações, tendo emvista a sociedade atual; além disso, discute-seo anacronismo de uma educação voltada paraas competências destinadas ao mundo do tra-balho, que não deixa de se pautar em normaspara a adaptação deste momento histórico. Nasegunda parte, a partir de análise do filme “Osdois mundos de Charly”, a discussão acercada normalização e diferenciação é retomada,e na última parte são expostas as considera-ções finais.

20

Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007

1. Os conceitos de normalização ediferenciação

O termo normalização se refere às nor-mas, à padronização, à uniformização. De-signa também a adaptação a um modelo quepermite ao indivíduo se constituir por sua in-corporação. Há normas para a linguagem,para o pensamento, para a ação, as quais seformam e se transformam historicamente. Seelas não são incorporadas, não há como secomunicar, pensar, agir; não há como expres-sar as próprias diferenças individuais. Se anormalização, porém, for a meta e não ummeio, a diferenciação, ou seja, a constituiçãode um indivíduo, no sentido liberal do termo,também não ocorre. Assim, neste texto, apre-senta-se a concepção de que não há diferen-ciação sem normalização, quando essa é en-tendida como a internalização das normas, eque se esse processo se torna um fim em simesmo também não há diferenciação. Essaquestão é inerente à formação do indivíduo,e se torna mais nítida quando se tenta incluiros que mais distam da normalidade, conside-rada como o conjunto de características ecompetências para ser normal.

A discussão acerca da normalização e/oudiferenciação do indivíduo com deficiência men-tal está presente nas atuais propostas de edu-cação inclusiva, ainda que nem sempre deforma explícita, e na distinção dessa da educa-ção integrada. Na educação integrada, grossomodo, a criança com deficiência ocupa um lu-gar na sala de aula regular sem que nada maisseja alterado, além da especificidade de méto-dos e avaliações dirigidas a ela; na educaçãoinclusiva, a própria escola é discutida, incluindoseu currículo, métodos, avaliações, relação doseducadores com os alunos etc. Em um dos ca-sos - o da educação integrada, a questão danormalização está no centro; no outro – o daeducação inclusiva – além do reconhecimentodas diferenças do aluno com deficiência men-tal, são propostas modificações na própria es-cola e em sua relação com a sociedade (verAINSCOW, 1997, e MITTLER, 2003)1 . Segun-do Mittler (2003):

A inclusão não diz respeito a colocar as criançasnas escolas regulares, mas a mudar as escolaspara torná-las mais responsivas às necessidadesde todas as crianças; diz respeito a ajudar todosos professores a aceitarem a responsabilidadequanto à aprendizagem de todas as crianças nassuas escolas e prepará-los para ensinarem aque-las crianças que estão atual e correntemente ex-cluídas das escolas por qualquer razão. (p. 16)

Abramowicz (2002) discute a distinção en-tre normalização e diferenciação nas propostasde educação inclusiva, sem a diferençar da edu-cação integrada. A partir dos estudos de De-leuze e de Pelbart, a autora evidencia atransformação da sociedade disciplinar para ade controle e se pergunta pela possibilidade deexterioridade nas propostas de educação inclu-siva, uma vez que a possibilidade de novas vo-zes na sociedade de controle é sufocada. Elanão se contrapõe ao movimento de educaçãoinclusiva, mas pergunta pelos seus objetivos, eaté que ponto a voz diversa dos incluídos nãopoderia apontar novas possibilidades sociais. Ainclusão, nesse sentido, assim como as altera-ções das instituições prisionais, psiquiátricas,comportaria a possibilidade de uma prisão ‘acéu aberto’. Ao contrário dessa prisão, a auto-ra propõe:

... nem aceitar, muito menos tolerar diferenças,mas sim produzir diferenças. Há uma incessanteforma de vida que são produzidas pelos diferen-tes que é preciso estar atento para aproveitar.Ou seja a educação só será inclusiva se prestar aexterioridade, ou seja, se ‘estes novos alunos’envergarem a escola com suas diferenças, e amodificarem. E ao mesmo tempo, teremos umaeducação inclusiva quando tais crianças e jo-vens puderem passear a céu aberto com toda aexuberância de suas diferenças. (p, 310)

As diferenças a serem produzidas pelos jádiferentes devem se contrapor à normalização.Nessa citação, contudo, essas diferenças nãosão negadas nem a princípio, nem a posteriori,e assim a relação entre natureza e cultura pa-rece se perder. Não se trata de abstrair a dife-rença entre os homens dada pela natureza, mas

1 Há diversas propostas e entendimentos do que seja educaçãoinclusiva; não é, contudo, objetivo deste texto apresentá-los.

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que essas são significadas socialmente, e que,independentemente da deficiência, todos devemincorporar a cultura para poder melhor expres-sar essa diferença como universal, expressan-do também a diversidade humana, que éessência da humanidade. Segundo Adorno(1991), “...lo esencial no es lo abstractamenterepetido, sino lo general en tanto que diferenci-ado. Lo humano se forma como sensibilidadpara la diferencia sobre todo en su experienciamás poderosa, la de los sexos.” (p. 203).

Kant, ao se referir à natureza humana comosendo a da sociabilidade insociável, defende aformação que deve ‘domar’ os impulsos masao mesmo tempo preservar a natureza do avan-ço da civilização (ver ADORNO, 1971). Se-gundo Adorno (1971), a diferenciação individu-al ocorre pela incorporação da cultura: “...laformación no es otra cosa que la cultura por ellado de su apropiación subjetiva” (p. 234). As-sim, a diferenciação parte da natureza, mas seconstitui pela cultura que a permite se desen-volver: “En tanto que se cancelan los momen-tos de diferenciación – originariamente sociales– en que residía la formación, pues formacióncultural y estar diferenciado son propiamentelo mismo, en lugar suyo prospera un sucedá-neo.” (p. 251). Se a formação cultural se modi-fica historicamente, suas normas, valores, prin-cípios – que estão associados às necessidadese conflitos sociais – são imanentes ao desen-volvimento do indivíduo, isto é, à sua diferenci-ação. Com o desenvolvimento da cultura, e aconseqüente geração de novas formas de ex-pressão, a possibilidade de diferenciação indi-vidual aumenta. Essas novas formas de expres-são não são independentes do desenvolvimentode novas técnicas, que por sua vez são atrela-das ao desenvolvimento social.

No progresso social estão envolvidos quer amelhoria das condições objetivas de vida – ali-mento, moradia, remédios, meios de locomoção– quer o estabelecimento de relações sociaisjustas. O progresso, contudo, não é linear, con-tém a contradição social entre aqueles dois ob-jetivos, de forma que a libertação dos grilhõesda natureza é contida pelos grilhões da nature-za humana sob a forma de dominação, e assim:

... quando a utopia baconiana de ‘imperar na prá-tica sobre a natureza’ se realizou numa escalatelúrica, tornou-se manifesta a essência da coa-ção que ele atribuía à natureza não dominada.Era a própria dominação. É à sua dissolução quepode proceder o saber em que Bacon vê a ‘supe-rioridade dos homens’. Mas, em face dessa pos-sibilidade, o esclarecimento se converte, aserviço do presente, na total mistificação dasmassas. (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 52)

Mesmo com condições objetivas suficien-tes, a libertação dos homens ainda se encontrasubjugada ao desejo de dominação, cuja supe-ração implica liberdade. Frente a essa possibili-dade, nas palavras dos autores, o esclarecimentose torna regressivo como mistificação das mas-sas. Nessa mistificação, a liberdade que seriapossível é delimitada pela existente, que aindaé dependente das formas de produção, quandonão mais precisaria ser. Um dos elementos des-sa liberdade seria a autodeterminação, a dife-renciação segundo os próprios interessessubstanciais conjugados com o reconhecimen-to de e em uma outra autoconsciência. A dife-renciação individual preservaria a diferenciaçãode nossa espécie tornando-a distinta da vidapuramente natural, para a qual a regra é a re-produção; o indivíduo, isto é a diferenciação,seria um resultado e não existente a priori:

É inverossímil que no princípio tenha surgido,primeiro, arquetipicamente, um homem individu-al qualquer. A crença nisso projeta miticamentepara o passado, ou para o mundo eterno dasidéias, o ‘principium individuationis’ já plena-mente constituído na história. A espécie talvezse tenha individuado por mutação para, logo,através de individuação, reproduzir-se em indi-víduos, apoiando-se no biologicamente singu-lar. (ADORNO, 1995, p. 200)

Pela mediação social o indivíduo se consti-tui, e ele se define como diferenciação dos de-mais; assim, as regras, as normas, os princípiossão fundamentais, e a objetividade do indivíduoé sua subjetividade. Quanto mais sujeito for,mais objetivo e capaz de exterioridade será.Claro, se a normalização se refere às necessi-dades sociais, e se esta sociedade tem o traba-lho como base, real ou ideológica, as normasdevem também se referir às questões das rela-

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ções de produção. Não se pode esquecer queem uma sociedade de classes a formação é dis-tinta para os proprietários dos meios de produ-ção e para os trabalhadores, ainda que, com ahomogeneização sociopsicológica, todos tendema ter uma formação semelhante e, mais do queisso, com a redução da cultura à civilização, estatende a ser técnica e instrumental (ver ADOR-NO, 1971). Tal formação instrumenta os indiví-duos, não os forma. Nesse sentido, a educaçãopredominantemente técnica não forma, masadestra, não permitindo a diferenciação indivi-dual. Assim, o avanço objetivo não tem possibi-litado a diferenciação individual, mas a suaregressão; ao invés do avanço técnico garantira base da sustentação individual e permitir aoindivíduo se diferenciar por suas experiências,a técnica se torna o modelo da não diferencia-ção. Na análise de Benjamin (1989), o modelode produção em série, no qual cada movimentonão se associa ao anterior, é independente dele,expressa a experiência restrita dos homens apartir do século XIX nas cidades mais desen-volvidas. Pela ação técnica que finda em seuresultado, deixa de haver continuidade entre asações do homem. Isso ocorre também devidoao predomínio das informações sobre a forma-ção, que são destacadas dessa, impedindo acontinuidade, a experiência, o tempo:

La experiencia, la continuidad de la concienciaen que perdura lo no presente y en que el ejerci-cio y la asociación fundan una tradición en elindividuo singular del caso, queda sustituida porun estado informativo puntual, deslavazado, in-tercambiable y efímero, al que hay que anotarque quedará borrado en el próximo instante porotras informaciones; ... (ADORNO, 1971, p. 260)

Assim, não só em relação aos indivíduos comdeficiência, a diferenciação individual tem sidoobstada pela tendência regressiva do progres-so, que torna a formação aquém do que pode-ria ser, posto que ela tende a ocorrer externa-mente ao indivíduo, sem uma relação imanentecom os conteúdos que são apreendidos.

Se as normas da modernidade se associamao trabalho e à técnica, os indivíduos com defi-ciência são diferentes também devido a elas, etêm, em geral, dificuldades de ser tão eficien-

tes como os que não a têm. Mas na sociedadede abundância de produção, real ou potencial,em que vivemos, há que se perguntar se a vidaainda precisa ser centrada no trabalho voltadoà produção, e se o valor dos homens deve ain-da ser aferido pela sua capacidade de ser efici-ente.

Com o avanço da tecnologia e da ciência,há muito a miséria poderia ser eliminada da faceda Terra, se não o é, isso se deve a motivospolíticos e não propriamente econômicos2 (verHORKHEIMER; ADORNO, 1985, e MARI-NI, 1997). Os economistas constatam, já há al-gum tempo, que o desemprego que temos éestrutural e que, assim, a lei da compensação,descrita também por Marx (1978), pela qual sea tecnologia suprimia alguns empregos numsetor gerava outros em novos setores, quasenão vige mais. Com a automação cada vez maisdesenvolvida, a necessidade do trabalho dimi-nui (ver MARCUSE, 1981). Se é assim, o quesignifica a escola propor, entre os seus objeti-vos, a preparação para o trabalho? Significa apossibilidade de que com a escolarização os in-divíduos tenham mais chances de encontrar umtrabalho, numa competição acirrada. A pesqui-sa de Lessa et al. (1997) mostra, no entanto,que nos anos 1990 o deslocamento da mão-de-obra empregável da indústria para o setor deserviços3 foi acompanhado da escolha, por partedos empregadores, de pessoas com maior es-colaridade para cargos em que conhecimentosbásicos seriam suficientes.

A escola, para desenvolver habilidades ecompetências, como hoje é fortemente defen-dido, encontra-se algo ultrapassada se conside-radas as necessidades sociais. Quando essashabilidades e competências não se referem aoconvívio social e à incorporação da cultura, pela

2 Se a sociedade analisada por Marx (1978), constituída porclasses sociais, tinha na economia um forte alicerce na suaestrutura, isso indicava a passagem de uma sociedade decarência de produção para uma outra de produção abundan-te. Como a atual sociedade resolveu economicamente essaquestão, resta o problema político: o usufruto dos bens portodos; se os motivos econômicos continuam preponderan-tes em nossos dias, os são em função da dominação política.3 Área que também está sendo automatizada, podendo pres-cindir de empregos.

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qual a subjetividade se constitui, conforme foiassinalado, mas ao preparo para o trabalho,devemos considerar que esse último já não éimprescindível, mesmo sob a forma de empre-go, para a produção dos bens necessários paratodos, como o era em outros tempos. Se a quan-tidade de trabalho necessário para a produçãodiminuiu e se a exigência para o trabalho é ob-jetivamente menor, volta a pergunta: que signi-fica educar para o trabalho? Este é um objetivoanacrônico, e se ele se mantém é como crença,como ilusão. Poderíamos já, tendo em vista ascondições objetivas, ter uma educação que sevolte para a vida. Algo disso está presente nasproposições dos parâmetros curriculares, comoo combate à discriminação, por exemplo, masnão parece suficiente.

Assim, a luta pela modificação dos objeti-vos escolares e, portanto, da escola não se res-tringe às crianças que têm dificuldades emaprender, como às que têm deficiência mental,por exemplo. Vale para todos os indivíduos. Sea questão da deficiência é contraditória à efici-ência necessária para o trabalho, e se esse jánão encontra sustentação objetiva para conti-nuar a ser exigido de todos nós como outrora,isso não significa que a escola não deva maisexistir; ela é uma das principais instituições res-ponsáveis pela transmissão da cultura e, comodito antes, sem a incorporação da cultura o in-divíduo não tem como se diferençar; assim eladeveria alterar os seus objetivos e, em conse-qüência, seus métodos.

Os indivíduos com deficiência mental sãodiferençados pela discriminação, que os colocaem um lugar desprezado socialmente. Mas nãoé dessa diferenciação que tratamos até aqui,mas daquela que permite aos indivíduos se de-senvolverem e se diferenciarem uns dos outrospara além de suas condições materiais, corpó-reas etc. Isto é, uma diferenciação que vá alémda discriminação por categorias. Ela pode serpensada superando-se a dicotomia expressa noinício deste texto entre normalização e diferen-ciação, posto que implica a incorporação tam-bém das normas culturais para que ocorra.Quanto mais diversificada uma cultura, maisinstrumentos existem de que os indivíduos po-

dem se valer para expressar os seus desejos,as suas preocupações e medos, e essa expres-são é parte da possibilidade da diferenciação.Assim, o patrimônio da cultura deve estar dis-ponível a todos para que seja apropriado, aindaque isso não implique métodos iguais para to-dos. Claro que se a escola mudasse seus obje-tivos, no sentido indicado, a necessidade daavaliação deveria ser repensada. Já são visí-veis, na atualidade, algumas propostas escola-res que se contrapõem ao modelo tradicional,mas para que se disseminem é necessário com-bater os limites da sociedade atual, ainda cal-cada na relação capital-trabalho e em suasilusões.

Há aproximadamente meio século Adorno(1995) enfatizou que a educação só faz sentidose for para a auto-reflexão, para o combate àbarbárie. Se a escola não se modificou subs-tancialmente no intento de cumprir esses obje-tivos, implica que continua a reproduzir, sem terconsciência disso, o que socialmente produz aviolência: a necessidade da sobrevivência alia-da à competição. Isto é, a escola contemporâ-nea tem uma limitada contribuição paraformação de indivíduos que transcenda a lutapela existência, ao mesmo tempo que incremen-ta os impulsos necessários à competição e, por-tanto, à dominação. O objetivo da escola deformar para a eficiência, ainda que importante,reproduz uma diferenciação, tida como natural,mas que é socialmente gerada: a hierarquia dosmais e menos aptos; o indivíduo com deficiên-cia está na base dessa hierarquia. A escola paraa qual queremos atribuir o objetivo da inclusãojá se mostrava problemática antes desse movi-mento social; mais do que isso, como visto, elase tornou anacrônica, tendo em vista as mu-danças sociais que tornam prescindíveis boaparte do trabalho (alienado) humano.

Antes de passarmos para a próxima partedeste texto, sublinhamos a título de síntese que:

1 - a contraposição entre as tendências paraa normalização e para a diferenciação individu-al é falsa, posto que a normalização, se essa éentendida como a aquisição e o desenvolvimentodos universais humanos, tais como a linguageme o pensamento, deve servir de meio para a

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diferenciação, sem a qual ela não é possível.Isto também diz respeito aos indivíduos comdeficiência, posto que sem a cultura não se di-ferenciam para além da deficiência, que é sig-nificada culturalmente; e

2 - a inclusão social deve ser pensada se-gundo novas formas de convivência que nãosomente as requeridas pelo mundo do trabalho,tendo em vista que o avanço social já permiteque seja dedicado um mínimo de esforço detodos para a reprodução de bens necessáriospara a sobrevivência da humanidade. Trata-sede uma luta política que, considerando o desen-volvimento econômico, já pode reivindicar di-reitos iguais para todos.

2. “Os dois mundos de Charly”

O filme “Os dois mundos de Charly” foi re-alizado em 1968 por Ralph Nelson, e traz a dis-cussão da normalização da deficiência mentalou da resignação a ela4 . Charly tem deficiên-cia mental e após se submeter a uma neuroci-rurgia passa a ter uma inteligência acima damédia, sendo que, antes dele, alguns ratos tam-bém se submeteram a essa cirurgia com bonsresultados. Com o tempo – a fase 5 após a ope-ração, o rato Algernon morre, indicando a to-dos que o êxito da cirurgia era temporário eque, portanto, Charly voltaria a ser como antes,o que acabou acontecendo.

Ao longo do filme são mostradas as ativida-des de Charly na padaria onde trabalhava, lim-pando o chão; as aulas no curso noturno quefreqüentava para melhorar sua alfabetização;o quarto que alugava; a balança na qual se di-vertia; e suas relações – antes e após a cirurgia– com a professora, com os seus colegas detrabalho e com a locadora de seu quarto. Esseé um resumo do filme que certamente não lhefaz justiça, mas penso que suficiente para aanálise que se segue.

Analisar um filme envolve necessariamentea intelecção do que o diretor quis apresentar,além da interpretação daquilo que é mostradocomo conteúdo manifesto. O conteúdo e a suaforma de transmissão são inseparáveis. Essa

intelecção envolve não só a separação do es-pectador do filme, mas também o envolvimentocom os personagens e com a trama. O duplomovimento se dá com a multiplicidade possívelapresentada na sensibilidade que o diretor trans-mite para a sensibilidade do espectador. Um fil-me não retrata diretamente a realidade, mas avisão da realidade do diretor, que apresenta ummosaico. Segundo Benjamin (1989), o filme éadequado à sensibilidade moderna habituada achoques contínuos sem relação entre si, à vi-vência, mas é tarefa do esclarecimento, por meiodo pensamento e da linguagem, relacionar o quese encontra separado. No caso do filme emquestão, a relação entre os diversos momentosdiz respeito também à construção do tempo notempo da obra. Tempo da transformação deCharly, daquilo que era – alguém com deficiên-cia mental – para aquilo que passou a ser, pormeio de uma operação – alguém dotado de in-teligência acima da média. Tempo que ele eAlgernon – o rato cobaia que se submeteu àoperação antes de Charly e que também au-mentou a sua inteligência – gastam para des-cobrir o caminho no labirinto5 ; tempo que Charlylevou para aprender o conteúdo escolar; tempoque ele levou para operar a máquina de fazerpães6 ; tempo defasado em que Charly amadu-receu cognitivamente em comparação com otempo de seu desenvolvimento afetivo7 ; tempoque Charly levou para buscar a solução de seuproblema8 . São tempos de comparação, tem-pos de separação, tempos de descoberta, tem-pos de reconhecimento, perenidade e afliçãopresentes nas visões distintas do amanhã da

4 Deve-se sublinhar que nesse filme, datado da década de1960, de movimentos sociais expressivos que lutavam pormodificações sociais e culturais, a discussão sobre a diversi-dade em relação às pessoas com deficiência ainda não seapresentava com a força de hoje.5 Charly competia com Algernon quanto ao tempo quenecessitariam para chegar ao fim de um labirinto. O labirin-to de Algernon era percorrido com o corpo, e o labirintodesenhado para Charly, pela mão.6 Após a cirurgia, um colega o desafiou a operar a sua máqui-na, algo que levou tempo para aprender, e Charly, de imedi-ato, consegue operá-la.7 O afetivo nesse caso se refere especialmente aos seusdesejos sexuais.8 Ao saber que voltaria a ser como antes, Charly tentaencontrar uma saída para que isso não ocorra.

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professora e de Charly. Charly prevê as bodasde ouro, no casamento com a professora; essaprevê o café da manhã seguinte. O tempo é desuperação do tempo e da impossibilidade des-sa. O tempo que leva da não diferenciação paraa diferenciação e dessa para a não diferencia-ção. Não é o tempo que aperfeiçoa os homense as coisas, como propõe Joubert, citado porBenjamin (1989), nem o tempo da recordação,como busca Proust. O passado – Charly comdeficiência mental – é negado e só aparececomo desespero, quando Charly procura reagira ele, buscando, pela ciência, não retornar a terdeficiência.

Ora, a luta de Charly para não se tornar oque era é compreensível para nós. Implica, noentanto, algo de universal: a negação da fragili-dade de nossa infância individual e coletiva, queé correlata ao desejo de regressão à naturezaque, segundo Horkheimer e Adorno (1985), geraa crueldade: “Extirpar inteiramente a odiosa,irresistível tentação de recair na natureza, eisaí a crueldade que nasce na civilização malo-grada, a barbárie, o outro lado da cultura” (p.106). Se o regresso ao passado significa fragi-lidade a ser negada, o tempo deve ser negado.O tempo do que é significativo para nós deveceder lugar ao tempo dos relógios. Para os quese movem sob a égide dos ponteiros do relógio,a lentidão dos que têm deficiência mental gerairritação, pois, assim como negam o passado,desaprenderam a se voltar ao amanhã, a umprojeto, uma vez que a rapidez é resposta de-sesperada a poder morrer no segundo seguin-te; é o medo de não ter tempo para concluir atarefa. Na luta de Charly para negar o passa-do, esse é igualado à morte. Segundo a frasede Bernard Shaw, citada no filme, a transfor-mação dada pelo conhecimento gera a sensa-ção de algo que perdemos, mas que o filmemostra que não perdemos.

A impaciência que temos com a lentidão dosque têm deficiência revela a repulsa do domí-nio do tempo dos objetos sobre nós. Marx (1978)indica que com o desenvolvimento da maquina-ria o homem se torna apêndice da máquina;deve, assim, obedecer ao seu ritmo. Mas, coma construção do tempo dos relógios, destruímos

o tempo dos objetos e não mais convivemos comeles. Segundo Benjamin (1989), os objetos namodernidade tendem a perder a sua aura, jánão suscitam mais o nosso olhar que, assimcomo as palavras, quanto mais permite proxi-midade, mais longe nos leva. O olhar para oindivíduo que têm deficiência mental – para asua lerdeza de movimento – , o olhar do indiví-duo com deficiência para os seus objetos pe-dem pela proximidade que nos leva longe, semprecisar voar.

Charly sem deficiência perde os amigos quenunca teve9 : “É igual a lei da gravidade, diz ele,mais inteligência significa a perda de amigos”.Charly está sozinho, nós estamos sozinhos.Esse, contudo, é o resultado do movimento doprogresso da civilização. Horkheimer e Ador-no (1985) nos lembram: “... a socialização uni-versal, esboçada na história de Ulisses, onavegante do mundo, e na de Robinson, o fa-bricante solitário, já implica desde a origem asolidão absoluta, que se torna manifesta ao fimda era burguesa. Socialização radical significaalienação radical.” (p. 66)

O desenvolvimento da inteligência, possívelcom a socialização radical, nos põe a distânciadaqueles que superamos. Assim, como quere-mos negar o passado como algo já superado,aqueles que superamos por nossa inteligênciase separam de nós. Charly, ao se tornar maisinteligente do que seus colegas de trabalho, éabandonado por eles. Por ter deficiência men-tal não pertencia propriamente ao grupo de co-legas (era humilhado por esses); já comointeligente não pode mais pertencer (os cole-gas se sentem humilhados por ele). Somente ainteligência medíocre, isto é, a que está no limi-te das tarefas cotidianas não é alvo nem de des-prezo e nem de medo. A amizade para Charlynão é possível com a sua deficiência e nem comoalguém que se destaca pela inteligência. O so-litário não quer solidão, como ocorre com a per-sonagem de Proust na busca do tempo perdido,que para escrever sobre a vida mundana afas-

9 Após operar a máquina de fazer pães, algo que seria supos-tamente impossível para Charly, seus colegas pedem paraque ele seja demitido.

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ta-se dela. No caso de Charly, a lembrança dopassado, ao qual resiste a retornar, é forte e oleva a tentar conseguir o que não tinha antes: aamizade. Das reações dos colegas de Charlydepreende-se que ninguém deve se diferençarpara pior ou para melhor, e que ninguém deveser diferente do que é.

“A neurose resulta da perda de contato como universal”, expressa o universitário, ao iníciodo filme, citando Jung. O universal contém asidéias de eternidade, perenidade e perfeição quese contrapõem à limitação e às imperfeiçõesdas contingências mundanas. O imperfeito –todos nós – tem o lugar do excluído-incluído nouniverso perfeito, apontando para aquilo quesomos e não queremos ser. Dessa forma, o efê-mero, o particular, não tem importância frenteao eterno; a idéia do universal tolhe qualquerparticular, como se ele não fosse constituído departiculares. Além disso, a tentativa do concei-to – representando o universal – coincidir como objeto obsta a percepção particular desse úl-timo, algo próprio do preconceito. Isso não sig-nifica que o conceito não seja importante paraque possamos superar as dificuldades existen-tes e sobrevivermos, mas quando ele tenta co-incidir com o objeto, não deixando restos,aniquila as possibilidades de liberdade desse úl-timo. A palavra, o conceito, pode aprisionar oulibertar; quando não guarda distinção do objeto,o aprisiona:

Antes, o juízo passava pela etapa de pondera-ção, que proporcionava certa proteção ao sujei-to do juízo contra uma identificação brutal com opredicado. Na sociedade industrial avançada,ocorre uma regressão a um modo de efetuaçãodo juízo que se pode dizer desprovido de juízo,do poder de discriminação. (HORKHEIMER;ADORNO, 1985, p. 188)

A comparação apresentada entre a inteli-gência do rato e a do homem, se centrada nainteligência, na compreensão do problema, éinsustentável, dado o instrumental e o objetivoque cada um deles – Algernon e Charly – têm.Algernon, principalmente, pelo olfato, sem ter a‘visão’ do todo (o labirinto), busca aquilo de quefoi privado – o alimento. Charly, utilizando a vi-são como instrumento de uma mente que ‘vê’

com dificuldades, busca a possibilidade daquiloque não é: ser inteligente, ver o mundo. Essacomparação, de outro lado, faz sentido, se lem-brarmos que o homem da civilização industrial‘perdeu’ o olfato com a predominância da vi-são. O cheiro nos aproxima ou nos distancia deimediato do objeto, o qual, por sua vez, paracontinuar a ser visto, pede pela distância. Maisum elemento da solidão radical. Não que a vi-são não seja importante, mas seu desenvolvi-mento não deveria nos mutilar outros sentidos.No labirinto exibido no filme, e também repre-sentado pela saída cirúrgica, não se procura asaída, mas o seu fim: para Algernon, o rato, amorte, para Charly, o retorno, o sempre igual10 ;será a morte?

Charly, antes da operação, queria ser maisesperto, tinha a percepção de que era diferentepois não percebia o que os outros diziam, falta-va-lhe algo para compreender o que é ‘prema-turamente científico’. As respostas que deu àplatéia de cientistas11 mostram o retorno à bar-bárie dado pela padronização da cultura; assim,a ciência não deu conta de seus objetivos. Aimpotência da cultura e da ciência frente a Char-ly é a impotência frente ao homem. Esse che-gou a um estágio da cultura no qual a razãoonipotente é irracional. A idiotização da culturarefletida nas guerras, na padronização da edu-cação pelos meios de comunicação, é fruto desua sofisticação, alheia aos interesses de proxi-midade entre os homens. Ela – a cultura – nãoé irracional por tentar fazer os homens melho-res do que são, mas por tentar anular neles oque os difere dos animais: a própria compreen-são dos limites.

Charly é considerado inferior, e na sua fala,quando despedido da padaria, a pedido dos co-legas, mostra o significado dessa inferiorização:“Ninguém ri de um cego, de um deficiente físi-co, mas ri daqueles que têm deficiência men-tal”. Quem tem deficiência é o semelhante-di-ferente, consegue compreender que lhe falta

10 O desespero de Charly operado aparece num labirinto, noqual em cada cruzamento encontra seu outro eu.11 Com o resultado da operação, os cientistas responsáveispor ela reuniram cientistas do mundo todo, para fazer ques-tões a Charly, isto é, para confirmar o êxito obtido.

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José Leon Crochík

algo para ser igual aos outros, o que o tornasemelhante aos demais. É um ‘incluído-excluí-do’ da cultura, é aceito para fazer determina-dos trabalhos, mas é ridicularizado. QuandoCharly mostrou, na padaria, ser mais inteligen-te do que os outros, continuou a ser diferente,pois, então, os outros é que passaram a se sen-tir ridicularizados. O encontro do Charly inteli-gente com o Charly ridicularizado, vivido pelogarçom desastrado12 , cessa o riso. Da solidari-edade, movida pela identificação, e não pelacompaixão, o homem pode se reconciliar como seu outro ‘eu’, mas isso só ocorre após Char-ly saber que voltará a ser o que era, e foge dalembrança, no labirinto, no qual em todos oscruzamentos se reencontra.

O diferente-semelhante gera o ódio pelo di-ferente por lembrar o quão próximos estamosdele, e o quanto nos esforçamos por dele nosafastar. Queremos modelar o diferente, tal qualmodelamos a massa do pão. O direito de Char-ly se tornar mais semelhante aos outros, pelaexperiência científica, e o dever dos cientistasde conseguir isso perpassa o filme. Será queCharly tinha condições de optar pela operação?Será que o médico deveria ser responsabiliza-do eticamente por fazer experiências com se-res humanos, sem antes ter experimentado osuficiente com animais?

A primeira questão nos coloca frente a umparadoxo. Trata da autonomia da razão parapoder escolher, de alguém que supostamentenão tem essa capacidade, mas compreende quecom a operação, no caso, pode ser mais igualaos outros. A segunda questão envolve, alémdo aspecto ético, algo que lhe é inseparável, queé a epistemologia. Impossível não associar osratos da fase cinco com a idéia de computado-res de última geração. A inteligência é associa-da à capacidade de trabalhar com variáveisabstratas, com o pensamento formal, e é esseque é utilizado pelos cientistas para tornarempossível a operação de Charly, e que é requisi-tado dele para resolver o seu problema. O per-correr o labirinto para Charly não tem sentido,assim como o culto à inteligência humana que,dissociada de seu aspecto ético, leva à regres-são, à barbárie. A inteligência substituiu a for-

ça bruta, mas enquanto força bruta e não noseu sentido social, que a obrigaria a se voltarpara o bem comum e à compreensão da possi-bilidade de pessoas diferentes conviverem. Asrespostas de Charly à platéia de cientistas mos-tram isso. O que é questionável, então, não é sóo ato do cientista, mas o que move a ciência e asua separação da moral e do mundo. A ques-tão é: por que tornar Charly inteligente, no sen-tido em que o filme denota inteligência? Por quejulgá-lo deficiente? Charly responde à platéiade cientistas: para ver o mundo, e ele vê guer-ras, tristeza, destruição.

Mas vê também o prazer, o amor. O amorque via antes da operação quase que aparecena lembrança da mãe, que não era a mãe, e sima mulher da instituição que punha a mão emsua cabeça. Não era só a ausência de inteli-gência que lhe negava o amor, o abandono tam-bém. O despertar da sexualidade, expressadonos quadros de Charly, levaram à dupla inter-pretação: o cientista defendia que o pensamen-to abstrato se expunha na tela; a cientista que odesenvolvimento emocional não acompanharao intelectual; num caso e no outro, a sexualida-de de Charly é negada. É negada também pelaprofessora, quando ele a beija e abraça à força,e a sua resposta é chamá-lo de ‘retardado’. Énecessário que Charly viaje, namore, tome dro-gas, para voltar e ser aceito como homem porela.

O cientista sabia que o êxito da operaçãopoderia ser temporário, mas tudo é temporário,e esse é o sentido que se extrai da frase deEinstein dita no filme e da recusa da professoraem se casar com Charly. O que é permanenteé a deficiência à qual ele está condenado. Obalançar do personagem repete sempre o mes-mo movimento: se move para voltar ao mesmolugar; do vôo às alturas retorna à proximidadeda terra.

O sorriso estúpido de Charly frente aos co-legas ilude a impotência frente aos zombetei-ros, que lembra a impotência desses frente à

12 Em um bar, Charly, que já sabe que retornará ao que era,vê um garçom derrubar a sua bandeja com copos; enquantotodos riem, Charly o ajuda. Nesse ato, faz todos cessarem oriso.

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Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’

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obediência à Carta Magna, que desconhecemmas a qual se submetem. Contrasta com o olharsério e triste de Charly frente à impotência quetem: quando de posse do universal da razão,tem de se submeter aos limites dessa. O queCharly deseja com a operação é compreendero que os amigos dizem para ser mais amigodeles, e não para ver as coisas como são. Charlye os cientistas se enganaram. Charly perdeuseus amigos, e os cientistas perderam a razãode Charly.

A solidão parece ser a marca do filme. Char-ly, a professora, a locadora. O animal domésti-co preenche o espaço da comunicaçãoimpossível com o outro. Cuidamos do animalde estimação para que ele nos dê algo em tro-ca. Mas ele precisa ser domesticado. Quandoobtém a inteligência, Charly não é mais domes-ticável, não precisa mais de cuidados, para, emtroca, ter de abarcar a manifestação dos senti-mentos dos outros. Mas ele busca a domesti-cação de seus sentimentos na procura docasamento. Quer se casar com a professora-mãe-mulher, criadora e castradora; no casa-mento, vê a perenidade. Mas ele precisa viajar,se separar da criadora, para que ela veja neleum outro, que não a sua criação, aceitando-ocomo amante, e não como marido. O casamentosó é aceito pela professora quando ela tem agarantia de que ele irá acabar. Frente à possibi-lidade da ilusão, o personagem prefere ficar só.Limite de Charly, limite dos homens.

3. Considerações finais

A questão discutida neste texto envolve umadialética: a dos limites. Os homens têm, histori-camente, superado limites e, ao mesmo tempo,buscado negá-los. Somos natureza e mais doque natureza. Se desconhecermos os limites denossa natureza, perdemos qualquer objetivo, todafinalidade que dela emana. Os desejos, segun-do a psicanálise, levam à busca de objetos quetentam satisfazê-los. Para essa busca precisa-se da imaginação, dos símbolos, da inteligência,mas eles remetem ao corpo. A definição dedesejos ilustra que a discussão que tenta sepa-

rar a cultura da natureza é infrutífera. No seutexto, Mal-estar na civilização, Freud (1986)argumenta que o sentido da vida para os ho-mens é sua felicidade e que o progresso, ape-sar de sua inegável importância, não temcontribuído com esse objetivo. SegundoHorkheimer e Adorno, o progresso ainda estáenvolvido com a necessidade de dominação, queFreud não deixou de relacionar com a onipo-tência infantil. O avanço da sociedade racionaltrouxe consigo a regressão infantil. Os desejosnão só não se desenvolvem na sua possível bus-ca de objetos, como regridem à sua expressãomais primitiva.

No que tange aos que têm deficiência men-tal, a cultura atual tenta lhes proporcionar apossibilidade de sua incorporação e assim apossibilidade de expressão e elaboração dos seusdesejos. As possibilidades da busca de objetosconsoantes a esses desejos, contudo, ainda sãoem boa parte obstadas: amizade, amor, escola-rização e trabalho (mesmo com os limites ex-plicitados no início deste texto).

Até que ponto os que têm deficiência men-tal conseguirão ir é difícil dizer, ainda que asperspectivas sejam promissoras. Mas da dis-cussão que contrapõe normalização à diferen-ciação, podemos dizer que ambas sãoimportantes: não dizem respeito unicamente aosque têm deficiência, mas a todos nós. Todospassamos pelo processo de socialização parapodermos viver uma vida humana, isto é, emcivilização. A socialização, por meio de suasnormas e transmissão da cultura, deveria nosdiferençar. Quanto mais incorporarmos da cul-tura, mais poderemos elaborar, expressar e bus-car os objetos e objetivos importantes para nós.Essa interpretação também pode ser feita dofilme analisado, a crítica de Charly à nossa cul-tura envolve a sua padronização e tendênciadestrutiva. Qualquer alteração na socializaçãosó é possível com alterações profundas na so-ciedade. Se essa é uma sociedade que enfatizaa eficiência e a competição, dificilmente osmenos competitivos terão um lugar que não sejao de menosprezo. Se por outro lado nos dermosconta de que a eficiência pode, em boa parte,ficar a cargo das máquinas e que a competição

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não é necessária para a sobrevivência dos ho-mens e entre os homens, poderemos ter umasociedade efetivamente humana, na qual ne-

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Recebido em 30.10.06Aprovado em 30.10.06

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Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari

O QUE PENSAM E SENTEM CRIANÇAS NÃO DEFICIENTES

EM RELAÇÃO ÀS DEFICIÊNCIAS E À INCLUSÃO:

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Camila Mugnai Vieira *

Fátima Elisabeth Denari **

* Psicóloga formada pela Universidade Estadual de Londrina, atua no Ambulatório de Saúde Mental da Prefeitura deCândido Mota-SP. Mestre em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Univer-sidade Federal de São Carlos. Endereço para correspondência: Rua Coronel Siqueira Reis, 45, Jardim Estoril – 17514-320 Marília-SP. E-mail: [email protected]** Mestre em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial e Doutora em Educação, áreade Metodologia de Ensino, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos.Professora adjunta do Depto. de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da UniversidadeFederal de São Carlos. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Univer-sidade Federal de São Carlos. Rodovia Washington Luis, Km 235 – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail:[email protected]

RESUMO

O presente artigo apresenta uma revisão bibliográfica de estudos sobreconcepções e atitudes de crianças não deficientes em relação às deficiênciase à inclusão. Os principais resultados são apresentados, com o intuito de realizaralgumas reflexões sobre o tema. De modo geral, as pesquisas indicam umafalta de conhecimento das crianças em relação às deficiências, e determinadasdeficiências parecem ser percebidas mais facilmente que outras. Alguns estudosindicam que as crianças reproduzem as concepções sociais sobre as pessoascom deficiência e as vêem como dependentes e incapazes. Os dados coletadossobre a escolarização de crianças com deficiência, a aceitação social delas eas atitudes em relação à inclusão são bastante diversos. Apesar de os resultadosainda serem variados e até contraditórios, a maioria dos estudos indica que ocontato com pessoas deficientes e o acesso a informações sobre o tema podemcontribuir para a construção de concepções mais adequadas e atitudes positivas.Os resultados também apontam para a necessidade de ampliação de pesquisase intervenções sobre o tema.

Palavras-chave: Atitudes sociais – Concepções – Crianças – Deficiências –Inclusão

ABSTRACT

WHAT CHILDREN WITHOUT DISABILITIES THINK AND FEELABOUT DISABILITIES AND INCLUSION: A REVIEW OFLITTERATURE

The present article presents a review of literature of conceptions and attitudesof children without disabilities concerning disabilities and inclusion. Our study

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O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica

reveals lack of information about disabilities. and that some disabilities seem tobe perceived more easily than others. Some studies indicate that the childrenreproduce social conceptions about people with disabilities, as they see themas incapable and dependent. The data collected about education of childrenwith disabilities, their social acceptance and attitudes toward inclusion are verydiverse. Although the results are still varied and sometimes contradictory, themajority of the studies indicates that contact with people with disabilities andaccess to information about the subject can contribute to the construction ofmore appropriate conceptions and positive attitudes. The results also indicatethe necessity to develop more research and intervention about this subject.

Keywords: Social attitudes – Conceptions – Children – Disabilities – Inclusion

Introdução

A proposta da educação inclusiva baseia-senos pressupostos de que todos podem e devemfazer parte da vida escolar comunitária, tendosuas necessidades educacionais e sociais aten-didas. Propõe-se que se escolarize na rede re-gular de ensino todas as crianças, buscandorecursos do ensino comum sempre que possí-vel, na direção de uma participação cada vezmais integral com os demais alunos.

Stainback e Stainback (1999) apontam que,para se efetivar uma real inclusão educacionale social, são necessárias muitas transformaçõesnos âmbitos políticos, curriculares, estruturais,ideológicos, de formação e capacitação profis-sional, entre outros.

Além destes, há outro aspecto que mereceatenção quando se fala em inclusão, que é oaspecto social, as relações humanas envolvi-das no processo. A inclusão refere-se a intera-ções entre pessoas que possuem crenças,valores e atitudes construídas socialmente aolongo da história de sua cultura e de sua vida, eque perpassam sua forma de entender o mun-do e relacionar-se com a diversidade humana.

Considerando tais aspectos, torna-se funda-mental a ampliação de estudos que não se ocu-pem apenas das pessoas com necessidadeseducacionais especiais ou com deficiência, mastambém das relações que estas mantêm com omundo à sua volta, e das representações e ati-tudes construídas na sociedade acerca dos de-ficientes, que interferem no processo deinclusão.

O presente trabalho faz parte de uma dis-sertação de mestrado (VIEIRA, 2006)1 queteve como objetivos analisar concepções, sen-timentos e atitudes de crianças não deficientessobre a deficiência mental e a inclusão, e avali-ar os efeitos de um programa informativo quetrata da temática. Neste artigo será apresenta-da uma revisão bibliográfica de estudos reali-zados em diferentes países sobre concepçõese atitudes infantis em relação às deficiências eà inclusão, com a síntese dos principais resulta-dos encontrados, com o intuito de realizar algu-mas reflexões sobre o tema.

O processo de estigmatização: as-pectos da aprendizagem e do con-texto social

As pessoas aprendem desde muito cedovalores, noções de normalidade e anormalida-de, a julgar o que é belo e feio e o que é certo eerrado. Aprende-se por orientação direta dosparentes e professores, por regras sociais, porobservação de modelos, por mensagens veicu-ladas na mídia ou em livros infantis. Assim, ascrianças aprendem quais os grupos estigmati-zados e os estereótipos sobre estes. SegundoColeman (1986), as crianças usam a reaçãoemocional e as interpretações alheias para for-mar suas próprias.

1 Pesquisa financiada pela CAPES – Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na forma deBolsa de Mestrado PROESP.

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Pensando no desenvolvimento infantil, o es-tigma pode estar relacionado a vários proces-sos de aprendizado e socialização. Dentre osprincipais, estão: capacidade de discriminar o“eu” do “não eu”, pessoa de não pessoa, e umapessoa da outra; capacidade de categorizá-lasem grupos; formação da própria identidade; in-terpretação do comportamento dos outros; erespostas diferentes às discriminações feitas(SIGELMAN e SINGLETON, 1986).

Sigelman e Singleton (1986) discutem resulta-dos de estudos na área de desenvolvimento queindicam que dos sete meses até os três anos acriança desenvolve a diferenciação clara e o tra-tamento distinto entre pessoas conhecidas e des-conhecidas. Assim, desde muito cedo, as criançascriam esquemas ou modelos cognitivos para ca-tegorização. Por volta do final do primeiro anogeralmente ocorre a chamada ansiedade frenteao estranho. Conseqüentemente, diante de umapessoa desconhecida, ou que a criança não dis-crimina em sua gama de categorias cognitivas,ela pode reagir com medo, rejeição, ou choro. Issoocorre pelo perigo que o estranho representa, pelaincerteza e insegurança que gera, necessitando acriança defender-se. Além do mais, as reaçõesdos pais diante de estranhos podem influenciar asreações infantis. Não se entende que essa reaçãoao estranho possa se transformar em estigmati-zação, embora reações desta ordem possam con-ter um tipo de protótipo para ela, que indicaria quetodas as pessoas têm um potencial para a estig-matização e que o seu desenvolvimento vai de-pender da experiência social no crescimento(SIGELMAN e SINGLETON, 1986).

Algumas teorias do desenvolvimento podemauxiliar na compreensão de como as pessoasestigmatizam determinados grupos em funçãode sua maturação enquanto seres humanos ede suas experiências específicas de aprendiza-gem desde a infância. Essas teorias podem au-xiliar na compreensão de como as crianças sesentem e agem diante de pessoas com defici-ência, uma vez que os deficientes formam umgrupo bastante estigmatizado na sociedade atual.

Sigelman e Singleton (1986) descrevem al-gumas teorias sobre o tema, entre elas a teoriapsicanalítica, baseada nos preceitos de Freud e

desenvolvida posteriormente por Adorno; a te-oria da aprendizagem social, de Bandura e Mis-chel; e a teoria do desenvolvimento cognitivo,de Piaget.

Segundo a teoria psicanalítica, a estigmati-zação reflete conflitos internos originados emexperiências da tenra infância, possivelmente arestrição aos impulsos sexuais. A estigmatiza-ção seria a expressão de mecanismos de defe-sa, como a projeção, ou seja, atribuir ao outrocaracterísticas suas, e o deslocamento, que serefere à expressão de frustração ou a senti-mentos negativos com relação a um grupo, nãosendo possível expressá-los com relação ao realgrupo que os originou. Esses conflitos internospodem gerar uma “personalidade autoritária”,uma pessoa hostil e rígida diante das diferen-ças, o que resulta na restrição de suas intera-ções sociais. A maior importância dessa teoriaparece ser a retomada dos aspectos emocio-nais, muitas vezes negligenciados.

A teoria da aprendizagem social defende queo aprendizado da estigmatização ocorre comoo aprendizado de outros comportamentos, pormeio da observação de modelos e especialmentedevido às conseqüências dos comportamentos,que vão mantê-los ou diminuir sua freqüência.Dessa maneira, o fundamental em tal teoria é aimportância dada ao ambiente social.

Segundo a teoria do desenvolvimento cogni-tivo, as crianças constroem o conhecimento in-ternamente em função da maturação e dasexperiências de interação. São desenvolvidosestágios subseqüentes do conhecimento, quali-tativamente diferentes, que seriam bases univer-sais do desenvolvimento infantil. A estigmatizaçãose desenvolveria nesse processo de construçãodo conhecimento pelas crianças, assim como odesenvolvimento de sua moralidade (SIGEL-MAN e SINGLETON, 1986).

Apesar das variadas explicações que podemauxiliar na compreensão das reações das pes-soas sem deficiência diante das com deficiên-cia, pode-se dizer que elas englobam elementoscognitivos, afetivos, sociais e comportamentais,desenvolvidos de acordo com a interação deaspectos maturacionais com o meio ambiente,a cultura e o momento sócio-histórico. Pode-se

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O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica

afirmar também que, independentemente dosmecanismos que geram tais reações, de ummodo geral elas criam “barreiras atitudinas”.Essas barreiras são ações ou comportamentosdiscriminatórios dirigidos a algo ou alguém, quese concretizam nas relações interpessoais ba-seadas em estereótipos e que funcionam como“entrepostos” entre as pessoas. São baseadasno desconhecimento vivencial e intelectual e têmcomo componentes ambivalentes emoções eopiniões ambíguas (AMARAL, 1996).

Segundo Coll e Miras (1995), em um estudoespecífico da interação entre alunos e profes-sores, as pessoas constroem representaçõesumas das outras em suas interações, baseadasna história pessoal, nos valores e na cultura decada um. Isso ocorre mediante diferentes me-canismos: por informações prévias cedidas porterceiros, pela observação mútua direta de suascaracterísticas e seus comportamentos, marca-da pela impressão inicial, e por uma observa-ção continuada.

Concepções e atitudes infantis emrelação à deficiência: o que di-zem as pesquisas

Magiati, Dockrell e Logotheti (2002) reali-zaram um estudo na Grécia com 83 criançasde oito a onze anos sobre a variedade de defici-ências, sua natureza e causas. As crianças fo-ram entrevistadas e avaliadas por uma escala,e muitas delas apresentaram respostas inapro-priadas ou não souberam responder às ques-tões. Com relação aos tipos de deficiências aosquais as crianças se referiram, 70% foram de-ficiências físicas e apenas 18% problemas cog-nitivos ou mentais. Segundo os autores, alémde as crianças perceberem mais rapidamenteas deficiências com características mais visí-veis, as identificam porque geralmente estasexigem mais técnicas e equipamentos diferen-ciados, possíveis de serem observados, comopor exemplo cadeira de rodas, máquina de es-crita Braile, linguagem de sinais, próteses, en-tre outros. As crianças apresentaram concep-ções estereotipadas sobre as implicações sociais

e emocionais das deficiências, indicando ver aspessoas com deficiência como indivíduos tris-tes, sem amigos, incapazes de brincar. Quantoao futuro, também foram apresentadas visõespessimistas de que as pessoas com deficiêncianão poderão trabalhar nem manter relaciona-mentos afetivos mais íntimos.

Ferreira (1998) realizou um estudo com 192crianças de cinco a oito anos, alunas da pré-escola e da primeira série das redes munici-pal, estadual e particular da cidade deLondrina-PR, com o objetivo de investigar assuas concepções acerca da deficiência men-tal. Os resultados revelaram uma ausência deinformações sobre deficiência por parte dascrianças participantes. A partir disso, a autoradesenvolveu um programa informativo sobreo tema por meio da realização de diversas ati-vidades educacionais e lúdicas, cujos dados,de modo geral, indicaram transformações con-sideráveis nas concepções, atitudes e senti-mentos das crianças a ele submetidas,indicando uma assimilação dos conteúdos tra-balhados. Participaram do programa 148 cri-anças da pré-escola e primeira série, sendoque esse trabalho representa uma das rarasintervenções acerca do tema no Brasil.

Marques, Moreira, Maria e Passos (1997),em uma pesquisa realizada com crianças darede pública municipal de Juiz de Fora-MG so-bre suas concepções a respeito da deficiência,observaram que as crianças relacionam a defi-ciência à falta, ausência e especificamente aum corpo imperfeito. Assim, aspectos de maiorvisibilidade foram mais citados entre as crian-ças na definição de deficiência. Muitas delasapresentaram uma visão do deficiente comoextremamente dependente, inclusive para rea-lizar atividades básicas. Com relação ao futuro,as crianças entrevistadas também disseram queas pessoas com deficiência não podiam traba-lhar, partindo da idéia de déficit social. Algu-mas sugeriram adaptações e possibilidades detrabalho, segundo determinadas condições,como a escolha de atividades adequadas e autilização de equipamentos.

Algumas diferenças quanto às idades pude-ram ser observadas. As crianças de sete anos

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Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari

ressaltaram a falta, a ausência de membros oufunções; as de oito anos citaram a necessidadede cura para a convivência social; as de noveanos mostraram-se dispostas a ajudar; e asmais velhas apresentaram discursos de carida-de e demonstraram ter piedade pelas pessoascom deficiência, devido à sua impossibilidadede viver uma vida normal. A maioria das crian-ças não acredita na escolarização de todos de-ficientes, em função de alguns tipos dedeficiência que impossibilitam a realização dealgumas atividades escolares. Elas falaram dasnecessidades de ajuda às pessoas com defici-ência e de sua disponibilidade em ajudá-las. Ospesquisadores interpretaram esses relatos comouma combinação de sentimentos de solidarie-dade e piedade.

Lewis (1995) desenvolveu várias pesquisascom crianças acerca do tema, na Inglaterra. Entrealgumas de suas descobertas pode-se destacarque, quando as crianças são questionadas paradescrever pessoas com deficiência, geralmentecitam a deficiência física, por ser a mais facil-mente reconhecida e compreendida. As crian-ças de até cinco anos percebem a deficiênciafísica e as deficiências sensoriais, enquanto osproblemas emocionais só são percebidos a partirdos oito anos. Segundo Lewis (1995), se a crian-ça tem familiaridade com uma deficiência, podegeneralizar características desta para outras de-ficiências que não conhece.

Diamond e Kensinger (2002), nos EstadosUnidos, entrevistaram 21 crianças pré-escola-res após estas assistirem a vídeos sobre crian-ças com deficiência física e outras comSíndrome de Down. A deficiência física foi maispercebida e compreendida que a deficiênciamental. Nesse estudo, algumas crianças ver-balizaram que as crianças com Síndrome deDown teriam conseguido realizar as atividadesno vídeo se tivessem se esforçado mais, evi-denciando uma incompreensão da deficiênciamental.

Martins (1999) entrevistou 64 crianças dociclo I do ensino fundamental de escolas deMarília-SP sobre diferentes aspectos da inclu-são de alunos com deficiência, sendo metadedos alunos entrevistados de escolas com clas-

ses especiais para deficientes e a outra metadede escolas sem alunos deficientes. Muitas cri-anças apresentaram dificuldades em responderse conheciam uma pessoa com deficiência ede caracterizar a pessoa conhecida, mesmoaquelas que estudavam em escolas com clas-ses especiais. Assim, a autora concluiu que,apesar de freqüentarem o mesmo espaço es-colar, as crianças pareciam não estar interagin-do. Alguns alunos deram a impressão de nãoter conseguido caracterizar as pessoas comdeficiência que conheciam pela invisibilidade dadeficiência. E várias crianças (43,9%) descre-veram os deficientes pelas características ne-gativas observadas, como anomalias e limita-ções. No mesmo estudo, o deficiente foi descritocomo incapaz e improdutivo, dependendo deajuda não apenas nas questões acadêmicas, mastambém no atendimento a necessidades bási-cas. Quanto à possibilidade de as crianças comdeficiência estudarem, a grande maioria (48 de64 no total) respondeu positivamente, enquantotreze responderam negativamente e três colo-caram restrições. Todavia, 65,4% responderamque as crianças deveriam estudar em escolasou classes de ensino especial, enquanto 28,8%responderam que deveriam estudar em escolase classes comuns. Entre os motivos apresenta-dos pelos alunos para não estudarem com cri-anças com deficiência foram citadas as dificul-dades acadêmicas e o possível aumento detrabalho para os professores e todos os cole-gas. Nenhum aluno citou a possibilidade de oprofessor de ensino especial participar da in-clusão ou trabalhar conjuntamente com o pro-fessor do ensino comum.

Batista e Enumo (2004) estudaram a intera-ção entre alunos com deficiência mental e seuscolegas de sala, em escolas de Vitória-ES, pormeio de testes sociométricos e filmagens dasinterações. A pesquisa indicou que as criançascom deficiência mental foram menos aceitas,mais rejeitadas e permaneceram isoladas dosdemais alunos da sala.

Resultados semelhantes foram encontradosna Austrália por Roberts e Zubrick (1993), emcujo estudo foram levantados apontamentosnegativos sobre alunos com deficiência por parte

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O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica

de alunos sem deficiência, que relacionaramcomportamentos inadequados e problemas aca-dêmicos percebidos à sua aceitação do defici-ente. Ray (1985) também evidenciou concep-ções negativas dos alunos sem deficiência comrelação aos deficientes.

Roberts, Pratt e Leach (1991) observarama interação de crianças com deficiência, inte-gradas a uma escola comum. Os dados indica-ram que as crianças com deficiência nãointeragiram diferentemente das outras na salade aula e com seus professores. Porém, nosrecreios, essas crianças não eram tão solicita-das quanto as outras e mostravam-se isoladasou interagindo com adultos.

Glat (1995), no Rio de Janeiro, coletou rela-tos de crianças que temiam a contaminação pelacriança com deficiência. Além desses dados,pais de crianças sem deficiência disseram sen-tir-se temerosos com a interação de seus filhoscom crianças com deficiência na sala de aula,supondo que seus filhos poderiam imitar com-portamentos inadequados ou ter seu desenvol-vimento comprometido.

Mulderij (1996), na Holanda, apresenta re-sultados semelhantes aos de Roberts et al.(1991), nos quais crianças já indicam “barrei-ras atitudinais” pelo desconhecimento ou nãocompreensão da deficiência, excluindo os cole-gas com deficiência de situações de jogos. Asatividades comuns da infância, como brincar,são essenciais para socialização. As criançascom deficiência geralmente não participam detais atividades, apenas interagem com familia-res e profissionais. Em instituições especiais eambientes restritos, as crianças com deficiên-cia diminuem suas possibilidades de aprendiza-do de iniciação e manutenção de amizades comcrianças não-deficientes. Mulderij (1996) rela-tou que algumas limitações do corpo impossibi-litam a participação de crianças com deficiênciaem algumas brincadeiras, mas a não aceitaçãodelas nas brincadeiras não ocorre apenas poresse motivo, mas também apenas com a justifi-cativa de serem deficientes. Segundo a pesqui-sadora, as crianças com deficiência podemnecessitar de um tempo maior para aprenderas brincadeiras ou para se adaptar a elas, e

podem precisar de ajuda em alguns momentos.Isso pode cansar ou irritar algumas das outrascrianças, que não estão acostumadas a espe-rar, ter paciência ou tolerância.

Bussab (1997), de São Paulo, discute estu-dos experimentais sobre comportamentos pró-sociais em crianças. A empatia é vista emmuitos estudos como mediadora de comporta-mentos pró-sociais e de ajuda. Porém, altos ní-veis de angústia diante do sofrimento do outrorevelaram-se prejudiciais aos comportamentosde ajuda, tendo as crianças a tendência de fo-calizar-se em seus próprios sentimentos emdetrimento do outro nestas situações. No en-tanto, outras pesquisas descritas pela autoramostram resultados contrários e relacionam aansiedade diante do sofrimento do outro a umapreocupação com ele e um aumento do com-portamento de ajuda. Alguns estudos citadospela autora mostram diferenças quanto ao gê-nero, sendo que na pré-escola as meninas de-monstram mais comportamentos sociais que osmeninos.

Lee, Yoo e Bak (2003) realizaram, na Co-réia, observações de pares formados por cri-anças sem deficiência e crianças comdeficiência, comparando-os com pares forma-dos apenas por crianças sem deficiência. Osautores levantaram, como principais tipos deinteração social relatados por crianças sem de-ficiência com relação a crianças com defici-ência, o “brincar juntos” e “ajudar o outro”, oque revela a possibilidade de relacionamentosde troca nas amizades e de interações basea-das na ajuda prestada pela criança sem defi-ciência à deficiente.

York et al. (1992) entrevistaram crianças doensino comum que estudavam em classes comalunos deficientes integrados, nos Estados Uni-dos. As crianças mostraram reconhecer atri-butos positivos dos deficientes, ter respeito poreles enquanto indivíduos e estar dispostas aauxiliá-los. A grande maioria das crianças(89,5%) mostrou-se a favor da integração, emfunção da importância para os deficientes deestar entre os normais e para os alunos semdeficiência aprenderem mais sobre seus cole-gas com deficiência. Apesar de a maioria ser a

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favor da integração, muitos (78,4%) restringi-ram a participação dos deficientes a algumasaulas.

Krajewski, Hyde e O’keeffe (2002) estuda-ram as mudanças ocorridas nas concepções dejovens estudantes americanos de 1987 a 1998,referentes às deficiências, utilizando um inven-tário multidimensional, com escalas que avalia-ram questões sobre integração, direitos, crençase proximidade social. Os resultados indicaramdistinções quanto ao gênero, tendo as mulheresapresentado atitudes mais positivas que os ho-mens. Uma importante diferença encontrada noperíodo foi um aumento nas atitudes positivas detodos, mas especialmente nas dos homens. Osautores atribuem essas mudanças às transfor-mações nas escolas e ao crescimento dos ambi-entes inclusivos de 1987 a 1998.

Vayer e Roncin (1989) realizaram um estu-do com crianças de quarta e quinta séries declasses com deficientes integrados, na França.Em seus relatos, as crianças participantes dis-seram que as crianças deficientes precisam serajudadas, e apresentaram certa culpabilidadenas respostas, algumas se sentindo capazes deajudar e outras não. Outro tema comum foi omedo, especialmente relacionado à reação dasociedade à deficiência. As crianças não sesentiam superiores aos deficientes, recusavam-se a fazer um julgamento negativo sobre o com-portamento deles, e a deficiência era vista comoinjustiça. Ainda no estudo de Vayer e Roncin(1989), a maioria das crianças disse que os de-ficientes deviam ficar entre os normais, e que aintegração era benéfica também para os pais.A tendência à zombaria foi reconhecida, maspassageira. As crianças falaram da necessida-de de os adultos, especialmente os professores,darem mais atenção a tais alunos e apresenta-ram as mesmas atitudes de procura, aceitaçãoe tolerância com relação aos deficientes quan-do comparados com outras crianças sem defi-ciência. Os autores apontam o recreio comoum momento fundamental, no qual a interaçãopode ser enriquecida.

Tamm e Prelliwitz (2001) realizaram umestudo na Suécia com quarenta e oito criançaspré-escolares e do primário, com a utilização

de desenhos e figuras para serem avaliados porelas. Os participantes indicaram atitudes positi-vas, visão das habilidades dos deficientes, dis-ponibilidade para brincar e ajudar, diferente-mente de alguns estudos que mostramisolamento e rejeição (BATISTA e ENUMO,2004, RAY, 1985, ROBERTS e ZUBRICK,1993). Segundo Tamm e Prelliwitz (2001), podeser que isso tenha ocorrido por essa ser umasituação hipotética e não real. As crianças, demodo geral, perceberam os obstáculos que ascrianças com deficiência física enfrentam. Hou-ve diferenças de gênero quanto às sugestõesfeitas, sendo que os meninos referiram-se maisà necessidade de equipamentos e as meninas àajuda e serviços humanos. Também foi obser-vada uma diferença entre as crianças de seis eoito anos quanto ao caráter permanente da de-ficiência, tendo as mais novas certa dificuldadede compreendê-lo, imaginando que as deficiên-cias pudessem ser curadas ou fossem passa-geiras. As crianças já podem falar de aspectosmais abstratos, segundo o autor, mas quandoquestionadas, e não voluntariamente.

Síntese dos resultados e considera-ções finais

De modo geral, as pesquisas indicam umgrande desconhecimento das deficiências porparte das crianças. Os dados indicam assimila-ções de informações equivocadas ou falta deacesso às mesmas, possibilitando, assim, a cri-ação de explicações fantasiosas e carregadasmuitas vezes de estereótipos e preconceitos. Afalta de conhecimento sobre o tema é apresen-tada mesmo por crianças em ambientes inclu-sivos, o que indica a escassez de trabalhoseducacionais sobre a temática, voltados à po-pulação infantil (FERREIRA, 1998; MAGIATIet al., 2002; MARTINS, 1999).

Alguns tipos de deficiência parecem serpercebidos mais facilmente pelas crianças, ain-da na pré-escola, enquanto outros passam semser percebidos até o primário. As crianças maisnovas reagem a aspectos visíveis das outraspessoas. No caso da deficiência, aspectos físi-

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O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica

cos e necessidade de equipamentos são perce-bidos mais prontamente por elas. Apenas maistarde notam deficiências mentais e, posterior-mente, problemas de conduta (SIGELMAN eSINGLETON, 1986). Dados dessa naturezaforam encontrados por Diamond e Kensinger(2002), Lewis (1995), Magiati et al. (2002) eMarques et al. (1997).

Alguns estudos indicam que as crianças pa-recem reproduzir as concepções vigentes nasociedade sobre as pessoas com deficiência,vendo-as como dependentes, incapazes, semperspectivas de futuro e de uma vida plena. Issoé evidenciado nos estudos de Magiati et al.(2002), Marques et al. (1997) e Martins (1999).

Os resultados de algumas pesquisas indicamdiferenças nas concepções e nos relatos, de acor-do com as idades ou os gêneros (MARQUES etal., 1997; TAMM e PRELLIWITZ, 2001). Se-gundo Sigelman e Singleton (1986), as criançasde idade pré-escolar apresentam maior aceita-ção de colegas com corpos perfeitos do que decolegas com deficiências físicas. As criançasparecem reagir à percepção inicial, à aparênciade normalidade ou não. Apesar disso, não pare-ce haver grandes indícios de preconceito e atitu-des negativas com relação às pessoas deficientesnessa faixa etária. Em crianças mais velhas, asreações parecem mais influenciadas pelas con-cepções dos pais e pelos valores culturais. Ascrianças passam a aprender quais as respostase atitudes socialmente aceitas ou politicamentecorretas com relação à deficiência. Assim, quan-do são acessadas informações verbais ou de baseracional, é encontrado menos preconceito com opassar dos anos. Mas, observações e estudosque buscam evitar a possibilidade de o sujeitosaber as respostas esperadas indicam que quan-do são acessados aspectos emocionais ou com-portamentais, o preconceito aumenta com aidade. De acordo com os autores, estudos socio-métricos mostram que crianças e adolescentesavaliam pessoas com deficiência mais negativa-mente que as outras, depositando-lhes menoscréditos sociais.

Com relação à escolarização de criançascom deficiência, quanto à aceitação destas porparte das crianças sem deficiência e às possi-

bilidades de interações positivas, as pesquisasindicam resultados diversos. Algumas indicamuma visão negativa da escolarização do defici-ente no ensino comum, em função de dificulda-des que ele possa vir a apresentar, prejudicando,assim, seu próprio aprendizado, em função deproblemas que possa vir a causar ao ambienteescolar, impedindo a rotina dos outros alunos.As pesquisas apontam ainda para a exclusãodo aluno com deficiência pelos demais alunos epara concepções bastante negativas e equivo-cadas sobre ele (BATISTA e ENUMO, 2004;GLAT, 1995; MARQUES et al., 1997; MUL-DERIJ, 1996; RAY, 1985; ROBERTS et al.,1991; ROBERTS e ZUBRICK, 1993).

Alguns achados apontam para posiciona-mentos contraditórios entre as crianças comrelação ao tema e para sentimentos ambivalen-tes (BUSSAB, 1997; MARQUES et al., 1997).A questão da inclusão é polêmica, pois algu-mas crianças parecem aceitá-la, porém parci-almente. As crianças também indicam uma faltade articulação entre o ensino regular e o ensinoespecial em seu cotidiano, como pode ser ob-servado na pesquisa de Martins (1999).

Há ainda os estudos que indicam atitudespositivas e aceitação social do deficiente porcrianças (LEE et al., 2003; TAMM e PRE-LLIWITZ, 2001; VAYER e RONCIN, 1989;YORK et al., 1992).

Apesar de os resultados ainda serem varia-dos e até contraditórios, alguns apontando paraatitudes e concepções negativas de crianças,com relação às pessoas com deficiência, e ou-tros indicando concepções e atitudes positivas,a maioria dos estudos em diferentes partes domundo indica que o contato com pessoas defi-cientes e o acesso a informações sobre o temapodem contribuir para a construção de concep-ções e atitudes mais favoráveis. Dessa forma,o aumento do contato em ambientes inclusivosproduziria concepções e atitudes mais positivase benefícios para todos os envolvidos (MAGI-ATI et al., 2002).

A maioria dos trabalhos ainda volta-se ape-nas para o levantamento e descrição das con-cepções e atitudes infantis, sendo os trabalhosde intervenção ainda escassos, especialmente

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os sistematizados e disponíveis à população emgeral, sobretudo no Brasil. Ainda mais raras sãoas investigações aprofundadas sobre os efeitosde programas informativos ou de mudanças deatitudes sobre o tema. Tendo em vista a evi-dente importância de intervenções acerca des-sa temática junto a crianças, indicadas nas

conclusões de várias das pesquisas citadas an-teriormente, entende-se como necessária a am-pliação de pesquisas desta natureza, queproduzam conhecimento científico sobre a rea-lidade e subsidiem intervenções mais eficazesà construção de facilitadores ao processo deinclusão.

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 23.01.07

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DOCÊNCIA E INCLUSÃO:

reflexões sobre a experiência de ser professor

no contexto da escola inclusiva

Viviane Preichardt Duek *

Maria Inês Naujorks **

* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestreem Educação e especialista em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - CE/UFSM. Espe-cialista em Educação Infantil pela UNIFRA. Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande doNorte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Av. Salgado Filho, s/n, Departamento de Educação, Sala 14, CampusUniversitário, Lagoa Nova – 59078-970 Natal/RN. E-mail: [email protected]** Doutora em Psicologia Social - USP/SP. Professora do Departamento de Educação Especial, credenciada no Progra-ma de Pós-Graduação em Educação - CE/UFSM. Endereço para correspondência: Universidade Federal de SantaMaria, Centro De Educação, Av. Roraima, Campus Universitário, Camobi – 97105-900 Santa Maria/RS. E-mail:[email protected]

RESUMO

O presente estudo, de cunho qualitativo, inserido no Programa de Pós-Graduaçãoem Educação da UFSM/RS, buscou alcançar uma compreensão da experiênciade ser professor na escola inclusiva. Participaram do estudo seis professorasde uma escola estadual de Santa Maria, RS, que trabalham com alunos comnecessidades especiais no ensino fundamental. As informações, obtidas atravésde observações e entrevistas, foram analisadas à luz dos pressupostos daAbordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, como o self e as atitudesfacilitadoras do professor. As reflexões produzidas neste trabalho nos apontamque ser professor no cenário da escola inclusiva exige desprendimento e aberturaexistencial, no sentido de se aceitar e acolher o outro em sua diferença,possibilitando devires para a aprendizagem do aluno e do professor. A inclusão,para as professoras do estudo, representa um desafio devido, sobretudo, àausência de formação em educação especial. Para elas, um espaço paracompartilhar saberes e experiências é fundamental para o aprimoramento dasua prática. Nesse sentido, a escola assume lugar privilegiado de aprendizagem,uma vez que, com a inclusão, o professor é convidado, constantemente, à criaçãoe re-invenção de suas ações e de si mesmo, num processo de (auto)formação.

Palavras-chave: Inclusão escolar – Prática docente – Formação de professores

ABSTRACT

EDUCATIONAL PRACTICE AND INCLUSION: wondering about theexperience of being professor within the context of an inclusive school

This qualitative research was realized at the graduate program in Educationfrom the Federal University of Santa Maria, Brazil. We aimed to understand

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the experience of being a professor within the context of an inclusive school,investigating the ways professors of regular classes perceive the reality ofworking with students with special educational needs (SSEN). Data wascollected using interviews and observations with six teachers of a public schoolat Santa Maria, RS, who work with SSEN. The analysis was based upon thePerson Centered Approach, including its relevant factors such as Carl Rogers’concept of self. We conclude that being professor in an inclusive school requiresan open-minded’s profile, in order to accept and to receive the other with itsdifference, making possible learning opportunities for both, student and professor.For the teachers involved in this study, inclusion constitutes a great challengeto be surpassed, and the relationship with SSEN can change their way ofperceiving and is related to the phenomenon of deficiency in the context of theinclusive school, where professors are invited to create and re-invent theiractions and themselves.

Keywords: Scholar inclusion – Educational practice – Teacher’s vocationalformation

1. Introdução

A inclusão, enquanto princípio educacional,volta-se para a construção de um projeto deensino-aprendizagem norteado pelo respeito ea valorização das diferenças, visando oferecera todos os alunos, não obstante suas peculiari-dades, a oportunidade de construir o conheci-mento no cerne da escola comum.

Nessa direção, a inclusão desafia o profes-sor, que precisa educar alunos fundamentalmen-te diferentes num mesmo espaço, qual seja, aescola regular. Isso vem exigindo que o docen-te seja capaz de atuar em ambientes diversos ecom uma população cuja característica maior éa heterogeneidade.

Apesar dos avanços percebidos em relaçãoao processo inclusivo, este ainda não represen-ta um consenso, suscitando reações e posicio-namentos diversos e, por vezes, contraditórios,que evidenciam a dificuldade – histórica, diga-se de passagem – da escola e dos professoresem compreender e lidar com o que é diferente,estranho aos padrões estabelecidos como “nor-mais”.

A complexidade gerada pela realidade in-clusiva confronta o docente com situações, cujaformação inicial não lhe deu condições de an-tever. Com isso vigora o discurso, entre uma

parcela dos professores, de que não são capa-zes de trabalhar com o aluno com necessida-des educacionais especiais, pois não forampreparados durante o seu percurso acadêmico.

Diante desse cenário, passamos a nos inda-gar acerca de como professores do ensino re-gular, sem formação na área da educaçãoespecial, que não optaram por trabalhar com oaluno com necessidades educacionais especi-ais no ensino regular, vêm lidando com essarealidade. A fim de responder tal questionamen-to, realizamos um estudo com o propósito decompreender a experiência de ser professor nocontexto da escola inclusiva, investigando omodo como percebem e vivenciam essa reali-dade.

Trata-se de uma pesquisa de cunho qualita-tivo, circunscrita a uma escola da rede públicaestadual de Santa Maria, RS, reconhecida peloseu pioneirismo no trabalho com a inclusão depessoas com necessidades educacionais espe-ciais nas classes regulares. Colaboraram coma pesquisa seis professoras de séries iniciais doensino fundamental, as quais foram escolhidascom base nos seguintes critérios: (a) não pos-suir formação em educação especial; (b) estartrabalhando com alunos com necessidades edu-cacionais especiais no momento da realizaçãoda pesquisa; (c) desejar de participar do estu-

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do, caracterizando, assim, a sua livre adesão aotrabalho.

As informações foram compiladas por meiode observações e entrevistas semi-estrutura-das. Na perspectiva de Lüdke e André (1986),a observação permite que o pesquisador esta-beleça contato íntimo com o universo pesqui-sado e uma maior aproximação da “perspectivados sujeitos”, bem como dos significados queatribuem à realidade que os cerca e às própri-as ações. Nesse sentido, as observações rea-lizadas contribuíram para o estreitamento dosvínculos entre as pesquisadoras e as profes-soras participantes, traduzindo-se numa pos-tura de confiança e envolvimento com apesquisa.

Também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas que, segundo Minayo (2002), re-presentam um instrumento que tem o propósitode “dar voz” ao entrevistado, no sentido deconhecer o que ele tem a dizer acerca da te-mática evidenciada. As entrevistas foram re-alizadas no segundo semestre de 2005, comdatas e horários definidos, mediante a disponi-bilidade das professoras. As entrevistas foramdivididas em tópicos, e a cada encontro foientregue uma cópia do roteiro para que cadaprofessora pudesse visualizar previamente asquestões, dando maior fluidez à sua fala. Oconteúdo foi gravado em áudio e transcrito nasua totalidade.

A análise versou sobre temas que, no nossoentender, perfazem a experiência de ser pro-fessor no contexto da escola inclusiva. Os da-dos coletados foram analisados à luz dospressupostos da Abordagem Centrada na Pes-soa (ACP), de Carl Rogers, com destaque parao constructo do self e as atitudes facilitadorasdo professor.

Nosso intuito, com a tessitura do presentetexto, é o de compartilhar parte dos achadosde nossa pesquisa de mestrado, desenvolvidano Programa de Pós-Graduação em Educa-ção da Universidade Federal de Santa Maria(UFSM), visando contribuir para o repensardo processo inclusivo, além de mostrar possi-bilidades para a instrumentalização do saber-fazer docente.

2. Abordagem Centrada na Pessoa:algumas notas teóricas

A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP),de cunho fenomenológico-existencial, tem seusaportes teóricos ancorados na Terapia Centra-da no Paciente, mais especificamente na teoriade personalidade de Carl Rogers (1902-1987).Vale ressaltar que a construção de tal aborda-gem guarda relação com sua experiência clíni-ca, haja vista que Rogers formulou muitas desuas hipóteses a partir da escuta de gravaçõesdas entrevistas realizadas com seus clientes,preocupando-se, essencialmente, com o proces-so de transformação da personalidade, comênfase, portanto, sobre a dimensão processualdo ser humano.

O self ou autoconceito ocupa lugar centralna teoria de personalidade de Carl Rogers. Oself, segundo a perspectiva rogeriana, tem pa-pel fundamental na dinâmica do comportamen-to humano: “a idéia do eu aparece, pois, comoum mecanismo regulador do comportamento”(ROGERS & KINGET, 1975, p. 167).

De acordo com Dutra (2000), essa aborda-gem prioriza o vivido, a experiência subjetivado indivíduo, ou seja, o mundo interno da expe-riência, onde cada pessoa percebe o meio deacordo com o seu mundo interno, seus senti-mentos, emoções e experiências, ou seja, deacordo com as percepções que ela tem do seuestar-no-mundo.

Rogers (1975, p. 468) afirma que: “o orga-nismo reage ao campo perceptivo tal como esteé experimentado e apreendido. Este campo é,para o indivíduo, a realidade”. Para ele, cadapercepção é uma hipótese sobre o mundo cir-cundante. Dependendo de tal hipótese ser con-firmada ou refutada pela experiência, a formacomo o indivíduo reage ao campo perceptualpoderá modificar-se. Pensar-se-ia, então, quea percepção que cada um tem das suas carac-terísticas, dos seus afetos, humores, relações evalores, traduzida pelos termos “autoconceito”ou “self”, tem forte influência sobre a condutado indivíduo. Em outras palavras, significa di-zer que a maneira como o sujeito se comportase dá pelo modo como vê/percebe as situações.

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Tais idéias, quando pensadas no contextodeste estudo, nos levam a inferir que, emboraos professores desenvolvam sua prática peda-gógica em condições ambientais e materiaissemelhantes, a experiência de trabalhar comalunos com necessidades educacionais especi-ais no ensino regular é considerada conformeas percepções de cada um, traduzidas no modocomo esses professores a vivenciam e comose comportam nesse contexto.

A Abordagem Centrada na Pessoa parte dapremissa de que o homem possui uma tendên-cia auto-realizadora ou atualizante para ocrescimento, a qual pode ser compreendida comoa capacidade interna que todo indivíduo possuide realização, impelindo o organismo no sentidoda unidade e da autonomia. Nas palavras deRogers e Kinget (1975, p. 159), esse pressupos-to obedece à seguinte proposição: “todo organis-mo é movido por uma tendência inerente paradesenvolver todas as suas potencialidades e paradesenvolvê-las de maneira a favorecer sua con-servação e seu enriquecimento”.

Esse movimento natural do organismo é pos-sibilitado pelo self, ou seja, pelo conceito que cadaum tem de si mesmo, entendido como aquele queimpulsiona o ser para o crescimento e atualiza-ção de suas potencialidades. Rogers e Kinget(1975, p. 167) explicitam que o self é “o critérioque ajuda o organismo a selecionar experiênci-as: os elementos da experiência que concordamcom a imagem do eu tornam-se disponíveis àconsciência, enquanto que os que não concor-dam com essa imagem são interceptados”.

O self, tal como apreendido na teoria roge-riana, refere-se ao conjunto de percepções ouimagens relativas ao “eu”. Seu desenvolvimen-to é de natureza relacional, isto é, envolve asrelações do sujeito consigo mesmo, com os ou-tros que lhe são significativos e com o mundocircundante, sendo, portanto, um constructopassível de mudanças à medida que o homemavança pela vida e se depara com novas situa-ções (ROGERS; KINGET, 1975).

Ao longo de sua existência, no entanto, afim de preservar a própria estima, o sujeito,motivado por essa necessidade básica de con-servação do conceito de si mesmo, assimila

valores alheios como se fossem seus, os quais,por sua vez, vão formando parte do seu campoperceptual. Isso pode gerar uma certa “distor-ção” entre os sentimentos e sua devida repre-sentação, resultando na alienação em relação àexperiência vivida, chegando a comprometer,inclusive, a tendência à atualização. A isso Ro-gers denominou de incongruência que, segun-do Rezola (1975), ocorre mediante a instalaçãode um conflito psíquico em virtude da discre-pância entre o que acontece em termos orga-nísmicos e as percepções conscientes de simesmo.

A incongruência ou inautenticidade é tidacomo o estado em que o sujeito não consegueestar em sintonia com os próprios afetos, nemexpressá-los de modo adequado, ou seja, é arepresentação insatisfatória ou a negação doque se pensa ou se sente realmente, compro-metendo a tendência atualizante (DUTRA,2000).

A Terapia Centrada no Cliente, dessa for-ma, intenta colocar o homem em contato comsua experiência organísmica (funcionamento docorpo e mente de forma indissociável), em sin-tonia com suas percepções/imagens sobre opróprio eu. Para tanto, Rogers (1961) enfatizaa necessidade de se criar um ambiente favorá-vel, uma atmosfera em que o cliente se sintaseguro e acolhido pelo terapeuta, a fim de queconsiga apreender os significados de suas ex-periências. O autor acredita que a criação deum ambiente com tais condições está atreladaa algumas atitudes facilitadoras por parte dapessoa do terapeuta, quais sejam: a congruên-cia do terapeuta, a aceitação positiva incon-dicional do terapeuta pela pessoa do cliente,e a compreensão empática do terapeuta paracom o outro.

Criada no contexto da clínica, essa aborda-gem veio, mais tarde, influenciar outras áreasdo conhecimento, dentre elas a educação. Asatitudes facilitadoras referentes ao terapeuta sãoconsideradas, também, como qualidades funda-mentais do professor, cujo papel passa a ser ode facilitador da aprendizagem.

Vista por esse ângulo, a criação de um am-biente favorável está atrelada a três atitudes

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que Rogers (1961, 1971) considera essenciaisao professor (facilitador), quais sejam: a con-gruência, pois, para que o ensino resulte efici-ente, o professor precisa atuar de maneiraunificada e integrada, sendo autêntico em suavivência junto ao aluno; a aceitação positivaincondicional do professor em relação aoeducando, que consiste numa postura de acei-tação irrestrita e de respeito à pessoa do aluno,no sentido de acolher sua alteridade, respeitan-do-o em sua singularidade; e a compreensãoempática do professor para com o aluno, afim de captar seu mundo “como se” fosse oseu próprio mundo.

Compreende-se, assim, que essa abordagemestá centrada na pessoa, tanto do professorquando do aluno, e ao fazê-lo, Rogers lança umanova possibilidade de se pensar o saber-fazerpedagógico, uma vez que se volta para o relaci-onamento professor-aluno em detrimento daaplicação de técnicas. Rogers (1961) argumen-ta, aqui, que a eficácia do processo educacio-nal reside na aprendizagem resultante desseencontro entre pessoas, sem se restringir à ca-pacidade intelectual do professor.

Nesse entorno, compreendemos que Rogersatribuiu papel importante aos sentimentos e àexperiência como fator de crescimento pessoal(auto-realização). Enquanto a experiência podeser compreendida como sinônimo de vivência ede sentimento corporalmente sentido, o termosentimento serve para designar “a significaçãopessoal da experiência com um acento afetivoou emocional” (ROGERS; KINGET, 1975, p.162), abrangendo, ao mesmo tempo, a experi-ência afetiva e a significação cognitiva para oindivíduo, tal como é experimentada no contex-to vivido, isto é, no momento em que ocorre.

Rezola (1975) nos lembra que a teoria roge-riana concebe a adaptação psicológica em ter-mos de uma congruência ou coerência entre oorganismo e o self. Nesse sentido, entende-seque a congruência representa uma espécie deajuste interior entre o conceito que a pessoatem de si mesma e a sua experiência, isto é, oindivíduo está familiarizado com todos os senti-mentos e experiências que estão em contínuamudança.

O pensamento de Rogers sofreu algumasatualizações, tais como aquelas propostas porEugene Gendlin, ao introduzir o termo experi-encing1 . As contribuições de Gendlin auxilia-ram na consolidação de alguns pressupostosintroduzidos por Rogers, ao mesmo tempo emque o levaram a revisar e reformular outros,como o próprio conceito de autenticidade oucongruência, concebido não mais como umaequação entre o organismo e a consciência, mascomo um modo de experienciar a si mesmo numdado instante (DUTRA, 2000).

Para Gendlin, a autenticidade representa aabertura ao mundo, a abertura às experiências,ao vivido, e não mais a simbolização de proces-sos conscientes. É um modo de viver a realida-de de maneira plena e imediata, tal como elaflui no momento, possibilitando que os valoresda pessoa procedam de seu organismo, sem queisso implique uma renúncia dos valores e signi-ficados sociais (REZOLA, 1975). Sob essaperspectiva, estar em congruência pressupõeuma abertura ao fluxo de experiências, e nãomais a simples concordância entre experiênciae consciência.

Nesse contexto, Dutra (2000) nos lembraque o conceito de self foi revisto pelo próprioRogers, a partir das influências do pensamentode Eugene Gendlin. Tal revisão denota que oconceito de self deixa de ser uma mera per-cepção de si, e passa a priorizar a dimensãosubjetiva, ao mesmo tempo em que parece con-templar o estar no mundo do indivíduo.

Assim sendo, podemos afirmar que, longede ser uma estrutura rígida e imutável, o self éuma entidade passível de novas configuraçõesmediante as experiências com as quais o sujei-to /vai se deparando ao longo de sua existên-cia. Conforme postula Rogers, a conduta doindivíduo se encontra ancorada num processoperceptivo mutável na relação com o mundo.Desse modo, ao ocorrerem mudanças no cam-po perceptual ou fenomenal, o comportamento

1 Rogers & Rosemberg (1977) comentam que Gendlin utili-za o termo experienciação para se referir a um fluxovivencial ao qual o indivíduo pode se voltar repetidas vezes,usando-o como ponto de referência para descobrir o signi-ficado de sua existência.

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tende a sofrer alterações, revelando a crençano devir humano e a possibilidade do homemressignificar a própria experiência.

3. A experiência de ser professorno contexto da escola inclusiva:tecendo compreensões

A coleta dos dados, realizada por meio deobservações e entrevistas semi-estruturadas,almejava uma aproximação do modo como aexperiência de ser professor na escola inclusi-va foi “captada” pelas participantes da pesqui-sa, bem como suas maneiras de sentir, pensar e(re)agir frente a essa realidade.

O tratamento dos dados consistiu na suatranscrição e leitura exaustiva, resultando emtemáticas de análise que, no nosso entender,melhor traduzem a experiência de ser profes-sor no contexto da escola inclusiva, e que são:1) Percepções acerca da inclusão escolar; 2)Percepções sobre o aluno com necessidadeseducacionais especiais; 3) Sentimentos queemergem da prática inclusiva; 4) Necessidadede uma equipe de trabalho mais integrada; e 5)Percepções acerca da formação docente.

A primeira temática, percepções acercada inclusão escolar, contempla o olhar dasprofessoras sobre o processo inclusivo na es-cola em que atuam, evidenciando maneiras dis-tintas de se relacionar com o fenômeno dadeficiência/diferença no cotidiano escolar, bemcomo o vínculo que estabelecem com o seu tra-balho.

Algumas falas revelam um modo de ser pro-fessora no cenário da escola inclusiva que con-diz com a sensação de que a inclusão é algoimposto, sem margem para escolhas ou discus-sões a respeito dessa realidade. As professo-ras, assim, ficam “presas” entre o “ter” e o“querer” fazer, entre o que gostariam de fazere o que conseguem realizar na prática, acarre-tando um sistema de desvínculos com o seu tra-balho em que vão, aos poucos, alienando-se dasua experiência vivida.

Outro ponto que merece destaque refere-se ao sentido de inclusão enquanto sinônimo de

socialização. Ao terem na socialização o aspectosobressalente da inclusão, essas professorasdeixam transparecer que elementos de ordemcognitiva estão sendo deixados à margem, o queencerra o conceito de que os alunos são tidoscomo incapazes de aprender em razão da suadeficiência. Isso sugere um quadro em que ainclusão encontra-se divorciada de aspectosoriundos da organização escolar, a qual se man-tém exonerada de mudanças, a fim de recebere atender todos os alunos em sua singularida-de.

Compreende-se, portanto, que a inclusão fazalusão à capacidade da escola de rever suaestrutura organizacional como um todo, de modoa atender as necessidades de cada um dos seusalunos, engendrando estratégias em favor dasua formação integral. Uma escola inclusivademanda tempo e comprometimento de todosos envolvidos nesse processo, além de profissi-onais abertos e dispostos a assumir o seu papelde agentes transformadores da realidade.

Por meio dessa temática, entendemos que ainclusão traz à tona inúmeros desafios para oprofessor, mobilizando elementos diferentes e,por vezes, contraditórios num mesmo indivíduo.Sob esse prisma, pensar-se-ia que a noção dedeficiência é decorrente de uma forma de con-ceber e perceber o outro, fruto de uma elabo-ração psicossocial. Isto é, as imagens dadeficiência e da inclusão estão ligadas a con-teúdos oriundos de nosso mundo interno, per-passados por códigos e normas sócio-culturais,o que se traduz numa forma de ver e atribuirsignificado à realidade.

Em outras palavras, pensar-se-ia que as ati-tudes e os comportamentos dos professoresfrente à inclusão refletem concepções de es-cola e de educação que irão definir formas deação e interação, bem como potencialidades elimitações dos educandos.

Entendemos, assim, que essas professorasnão se opõem à inclusão escolar, apenas não sesentem parte ativa desse processo, donde com-preendemos que ainda existem várias questõespendentes, uma vez que a vigência de leis quepreconizam a inclusão não é capaz de garantira efetivação desse projeto, pois a legislação não

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conduz, necessariamente, a uma nova constru-ção subjetiva acerca desse paradigma.

A segunda temática refere-se às percep-ções sobre o aluno com necessidades edu-cacionais especiais, abordando a imagem eos sentidos que essas professoras atribuem àpresença deste educando em sala de aula. Oconteúdo das entrevistas elucida que, no uni-verso escolar, a diferença tende a se apresen-tar como uma incógnita, sobretudo em setratando do outro deficiente que, por suas difi-culdades de aprendizagem, destitui a imagemdo que viria a ser um “bom aluno” ou um “alu-no regular”.

Logo, visões diversas sobre o fenômeno dadeficiência parecem se sobrepor no imagináriodas professoras participantes do estudo, deli-neando um quadro de pouca clareza conceitualpor parte delas, traduzido na dificuldade em iden-tificar quem é o aluno com necessidades edu-cacionais especiais, que necessidades são essas,se elas existem ou não, e em que casos o aten-dimento especializado se faz pertinente.

A imagem de que o aluno com necessida-des educacionais especiais é aquele que apre-senta “problemas” ou “dificuldades” deaprendizagem vem atrelada aos aspectos clíni-co-patológicos que envolvem o fenômeno dadeficiência, ainda muito presentes no discursodessas professoras e que constituem uma vi-são das dificuldades de aprendizagem como algoinerente ao aluno, subestimando as condiçõesdo meio ao qual estão circunscritas.

Percebemos, com essas falas, que para alémdos conteúdos e recursos metodológicos o en-contro pedagógico abrange elementos atitudi-nais e comportamentais dos professores, osquais são transpostos para a relação pedagógi-ca. Segundo Coll, Marchesi e Palacios (1995,p. 20): “os professores que valorizam, sobretu-do, o desenvolvimento dos conhecimentos e osprogressos acadêmicos têm mais dificuldadesem aceitar os alunos que não vão progredir comum ritmo normal nesta dimensão”.

O olhar do professor é que guiará o desen-volvimento da criança incluída, e quanto maiora rigidez de suas expectativas e a tendência dequerer enquadrar esse aluno em padrões pré-

existentes, maior a probabilidade de tal com-portamento repercutir de maneira negativa so-bre os ritmos de aprendizagem. Em outraspalavras, a rigidez nas expectativas acarretadificuldades quanto ao cambiamento de certasconcepções e práticas em relação ao aluno comnecessidades educacionais especiais, ficandoele impedido de avançar na sua aprendizagem,e assumir, de fato, o seu lugar de aluno.

Sobre isso Mantoan (2003a, p. 76) destacaque “a maioria dos professores tem uma visãofuncional do ensino e tudo que ameaça rompero esquema de trabalho prático que aprenderama aplicar em suas salas de aula é inicialmenterejeitado”. Acredita-se, portanto, que a inclu-são tem a ver com a postura que o professorassume frente ao que lhe é estranho, desco-nhecido. No caso da deficiência, isso irá de-pender de como o educador percebe a diferençado outro.

Sob esse viés, algumas professoras buscamtraçar uma divisão entre o que é “patológico” eo que é “normal”. A diferença, estabelecidacom base num padrão de referência, faz comque as palavras “igual” e “diferente” surjam car-regadas de sentido, cuja ênfase maior parecerecair sobre a necessidade de determinar o roldos “escolarizáveis” e dos “não escolarizáveis”,isto é, dos que conseguem e dos que não con-seguem aprender.

Nesse ínterim, o diagnóstico, apontado comofundamental para que se possam traçar estra-tégias de ensino com fins de que o aluno “apren-da”, pode servir, ainda, para avalizar e reiteraras antecipações docentes em relação às condi-ções de aprendizagem desse aluno. Em outraspalavras, o diagnóstico – ou a falta de – podeestar contribuindo para situar o lugar ocupadopelo educando no contexto da classe regular,equivalendo, não obstante, a um “não lugar”.

Em contraposição a essa imagem de inca-pacidade e impossibilidade, imputada ao alunocom necessidades educacionais especiais, for-ma-se outra, em que o educando é tido comosímbolo de lição de vida e exemplo de força ehumanidade. Sob essa ótica, vimos que, a partirda estranheza gerada no encontro com a dife-rença, essas professoras têm conseguido aden-

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trar num movimento de busca que envolve a(auto)descoberta, de si e do outro, como seresinacabados e incompletos, com limitações epossibilidades.

A convivência vem representando a pos-sibilidade de uma compreensão maior sobrea realidade e as necessidades dos alunos. Aexperiência de trabalhar com alunos com ne-cessidades educacionais especiais pareceestar contribuindo para que o professor re-veja seus conceitos e posturas, auxiliando naformação de atitudes positivas, de reconhe-cimento e valorização das diferenças, bemcomo na ressignificação da própria experi-ência de co-existência.

O desafio de ensinar todos os alunos na es-cola, que se quer inclusiva, exige o compromis-so com indagações, a fim de que o ideal deturmas homogêneas possa ser revisto, dandolugar a uma nova postura, de aceitação e deabertura ao outro como ser incompleto, dotadode sentimentos e potencialidades, o que podeservir de elemento facilitador da sua aprendi-zagem.

Os sentimentos que emergem da práti-ca inclusiva, retratados na terceira temática,evidenciam que a inclusão mobiliza elementosdiversos numa mesma pessoa, não represen-tando um consenso entre as professoras do es-tudo, que se questionam sobre a validade desseprocesso e os rumos da educação das pessoascom deficiência, pois estão incertas e insegu-ras de que é possível ensinar TODOS num con-texto que, por longa data, esteve destinado sópara ALGUNS.

Ao relatarem a sua experiência, esta surgeperpassada por sentimentos ambíguos, em queo paradoxo satisfação-frustração despontacomo sinalizador da angústia do professor que,ao se deparar com o “não aprender” do alunocom deficiência, conflita com o seu saber-fa-zer, que pode ser pensado, ainda, como da or-dem do “não saber o que fazer”. Logo,entende-se que a inclusão destitui o “chão decertezas” do professor, que ao se deparar como incerto e o insólito, vê-se diante do vazio de“não saber lidar com aquilo que está aconte-cendo”, angustiando-se.

Com a proposta inclusiva, o sentimento deimpotência é renovado no professor que, aodeparar-se com o seu “não saber”, anseia por“receitas”, por uma “solução definitiva” quevenha dirimir seu mal-estar. Esse movimentopode estar sendo motivado pela necessidade doprofessor de manter sua estrutura de self, o quepoderá se desdobrar na perpetuação de práti-cas cristalizadas que se constituem em verda-deiras barreiras para a construção de umaescola inclusiva. Segundo Mantoan (2003b),face à angústia e ao mal-estar, muitos profes-sores ficam paralisados, impedidos de ver e re-conhecer as diferenças e a riqueza que essastrazem para o desenvolvimento de todos.

A sensação de “não saber o que esperar”ou “não poder contar” com a aprendizagem doaluno com necessidades educacionais especi-ais e, até mesmo, de não estar sendo útil, denão estar contribuindo para o seu desenvolvi-mento surgem como desdobramentos da angús-tia dessas professoras. De acordo com Carvalho(2004a), o receio de muitos professores em tra-balhar com o aluno com necessidades educaci-onais especiais pode ser interpretado comomá-vontade, medo, pouca colaboração ou, ain-da, como a tradução do desejo de contribuir parao sucesso na aprendizagem do aluno, para oqual se sentem desqualificados e, segundo seuautoconceito, incapazes.

Um aspecto emergente nas falas é quanto àproximidade com o aluno com necessidades edu-cacionais especiais, que leva o professor a ques-tionar ele mesmo, o seu “jeito de ser”, a repensarsua postura profissional e (re)examinar sua pró-pria vida. Sob esse viés, a angústia pode repre-sentar o “motor” para um movimento reflexivo,oportunizando um “vir a ser” gerador de novasconcepções e atitudes em relação à pessoa comdeficiência, contribuindo para uma maior eficá-cia e autenticidade da ação docente.

A imagem de um aluno “perfeito”, “ideal”,fruto da formação proporcionada por essas pro-fissionais, também contribui para o aumento daangústia e do mal-estar sentidos no momentoem que se deparam com o aluno com deficiên-cia, o que se traduz na “fissura” de um ideal deprofessor que “tudo sabe” e “tudo pode”. Nes-

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se sentido, reconhecer os próprios limites surgecomo um fator importante para a inclusão, afim de que o professor consiga estabelecer umdistanciamento útil à reflexão e apropriação daexperiência, promovendo a abertura ao outro“diferente”.

As professoras descrevem que o estar jun-to desse educando, ao mesmo tempo em quesurge como algo difícil, contribui para a cons-trução do seu saber-fazer, para o amadureci-mento e desenvolvimento profissional. Dessecontato parece resultar um movimento no qualessas professoras vão descobrindo maneiras delidar com a realidade inclusiva, em que elas ar-ticulam estratégias de enfrentamento para osproblemas que emergem do cotidiano junto aoeducando com deficiência, revendo, assim, suaprática, tanto do ponto de vista teórico-metodo-lógico como das relações interpessoais.

O fato de não conseguirem atingir os objeti-vos aos quais se propuseram de antemão surgecomo a principal fonte de frustração e insatis-fação para essas professoras, conferindo-lhesum sentimento de impotência e incapacidadeque dificulta a vinculação com a sua atividadeprofissional.

Contudo, tais sentimentos parecem ser res-significados na medida em que visualizam osresultados do seu trabalho e os progressos nodesenvolvimento do aluno, traduzidos na cren-ça de que a inclusão, apesar de difícil, é possí-vel. Diante disso, a angústia se constitui nocombustível que move essas profissionais rumoà criação de estratégias de enfrentamento paraos problemas pedagógicos que se apresentamno cotidiano escolar. Pouco a pouco, a impo-tência, que antes representava sinônimo de pa-ralisia, cede lugar a um trabalho de construçãode estratégias contribuintes da aprendizagem doeducando.

Nos reportamos a Müller e Glat (1999) aoenfatizarem que a maior riqueza do trabalhojunto ao aluno com deficiência é, justamente, anecessidade de aprendermos a conviver comsentimentos conflitantes. “Assim, se por um ladovivenciamos, freqüentemente, decepções e fra-cassos (diga-se de passagem, geralmente cau-sados por nossas expectativas irreais), por outro,

estamos constantemente sendo impulsionadosa superar nossos próprios limites” (p. 32).

Pelo aqui exposto, vimos que a angústia, aoinvés de um efeito paralisante, tem representa-do, para a maior parte dessas professoras, umcombustível que as têm impulsionado para no-vas formas de ser e agir, propiciando uma mai-or abertura à experiência e abrindo caminhospara o conhecimento delas próprias, ao tomarconsciência de suas potencialidades e de seuslimites.

Um aspecto apontado de maneira unânimepelas docentes do estudo diz respeito à neces-sidade de uma equipe de trabalho mais in-tegrada, tida como condição essencial para queo atendimento dispensado ao aluno com neces-sidades educacionais especiais seja de melhorqualidade. Para esse grupo de professoras, ainclusão tem configurado um desafio, sobretu-do pelo fato delas não possuírem formação naárea da educação especial, o que demanda, nãoraro, um saber que elas julgam não possuir, poisagregado a um perfil profissional de vocação ealtruísmo que supõem próprio de educadorasespeciais.

Isso as têm levado a recorrer ao profissio-nal especialista na crença de que ele antecipa-rá as questões do seu trabalho junto ao alunocom necessidades educacionais especiais. Ci-tam, também, que o número expressivo de alu-nos nas classes regulares e o fato de teremdeficiências diversas numa mesma sala de aulasão impeditivos de um atendimento mais indivi-dualizado, o que, crêem, seria facilitado se hou-vesse um maior contato com as educadorasespeciais da escola.

O fato dos professores sentirem-se “aban-donados”, e sem um espaço-tempo para darvazão aos seus sentimentos e questionamentossobre a inclusão, vem acarretando sentimentosde incapacidade e despreparo ao trabalharemcom o aluno com necessidades educacionaisespeciais. Isso sugere a importância de um tra-balho colaborativo, por meio de dispositivos deacompanhamento do professorado.

Tais considerações vão ao encontro daquiloque Rogers (1971) postula como essencial aosque têm, como meta, a aprendizagem. Segundo

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o autor, as pessoas que desejarem aprender te-rão que “sentar juntas”, terão que se reunir, seencontrar. Pensar-se-ia que, no concernente àrealidade inclusiva, essa prerrogativa faz-se le-gítima no momento em que concebemos que ainclusão requer um trabalho conjunto e integra-do entre todos os envolvidos nesse processo.

Uma ressalva a ser feita é que a incapaci-dade carece ser pensada como uma supostacaracterística, em que essas professoras encer-ram uma condição de paralisia e estagnaçãoque as mantém imobilizadas, e sucumbindo, porvezes, a um saber que julgam não possuir.

Voltemo-nos, aqui, ao paradoxo que se ins-tala. Ainda que o discurso em prol de uma mai-or integração e colaboração entre a equipe detrabalho encontre sua legitimidade em meio aomote inclusivo, convém mencionar que, elemen-tos circunscritos ao percurso histórico da edu-cação especial, têm amargado a construção doideário inclusivo, pois nutridos, fundamentalmen-te, pela emissão de laudos ou pareceres, quesegundo os professores, cabe a um “especialis-ta” fornecer-lhes.

Logo, o professor, sob a presença de umadada peculiaridade tida, antes de tudo, comodestoante do que acredita poder estar em salade aula, dirige-se ao profissional “especialista”,nesse caso a educadora especial, com vistas aobter as respostas pelas quais tanto anseia, nacrença de que, a partir delas, far-se-á possívela tão preconizada inclusão. Essa visão é refor-çada por Mantoan (2003a, p. 28), quando dizque: “estamos habituados a repassar nossosproblemas para outros colegas, os ‘especializa-dos’ e, assim, não recai sobre nossos ombros opeso de nossas limitações”.

Em face de tal conjectura, nos parece certoque incluir exige que o professor, além da con-dição de quem ensina, se ponha no lugar de quemaprende. Para Rogers (1971), a aprendizagemque realmente importa é aquela tida como sig-nificativa. Essa, por sua vez, é auto-iniciada eenvolve o sujeito como um todo, afetiva e cog-nitivamente. Dela resultam mudanças nas ati-tudes e comportamentos do indivíduo,extrapolando, assim, a mera fixação de um de-terminado saber.

Esse autor entende que toda aprendizagemque nos obrigue a rever a nossa estrutura de“eu” surge como ameaçadora: “a aprendizagemque envolve mudanças na organização de cadaum na percepção de si mesmo – é ameaçadorae tende a suscitar reações” (ROGERS, 1971,p. 155). Pensar-se-ia, no contexto dessa pes-quisa, que será tão ou mais difícil, senão impos-sível, avançar na trilha da inclusão quão maiorese mais fixadas as barreiras que impedem o pro-fessor de adentrar um movimento crítico-refle-xivo que o mantém nesse lugar estéril, antestalvez, um “não lugar”.

Daí inferirmos a necessidade dos professo-res do ensino regular não estarem sozinhos notrabalho com a inclusão, fazendo-se urgente, aonosso ver, a criação e a manutenção de um es-paço onde possam entrar em contato com oscolegas da equipe de trabalho, dentre eles, aseducadoras especiais. Um espaço onde possamdar vazão aos seus sentimentos e possam falardas suas angústias e inquietações em relaçãoao processo inclusivo, compartilhando e signifi-cando a sua experiência, sem que isso impliqueno apaziguamento da dúvida, às expensas desupostas “receitas” para os problemas impos-tos pela prática.

Ligada às temáticas anteriores, nos debru-çamos agora sobre a que aborda as percep-ções acerca da formação docente, por meioda avaliação feita pelas participantes do estudoquanto às suas repercussões, no seu cotidianode trabalho junto ao aluno com necessidadeseducacionais especiais. As professoras, ao ava-liarem essa dimensão, traçam apontamentosreferentes às lacunas presentes na sua forma-ção inicial e sugerem avanços no tocante à for-mação continuada ou em serviço.

Ao relatarem sua experiência as professo-ras referem-se à formação recebida em seuscursos de licenciatura como insuficiente e re-pleta de lacunas, sobretudo no que concerne àinclusão escolar. A queixa maior destina-se àausência de um currículo que contemple ques-tões referentes à educação especial e às tipo-logias da deficiência. Elas deixam transparecer,em suas falas, a idéia de que estar preparadopara trabalhar com esses alunos é uma condi-

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ção alcançada a partir de uma formação pro-fissional, que, vinda de “fonte externa”, lhes darácondições e autonomia de atuação.

Arriscamo-nos a supor, nesse sentido, quemesmo que a formação inicial destinada aosprofessores pudesse ser “completa”, ainda as-sim produziria “respostas” parciais para os pro-blemas pedagógicos, visto ser a docência umaatividade feita às expensas do inusitado e doefêmero, não cabendo, portanto, a instauraçãode receitas ou modelos pedagógicos prévios.

Na vertente desse pensamento, uma dasprofessoras aponta que não basta ao professorque trabalha com a inclusão uma formação“conteudista”, um título apenas, e enfatiza anecessidade de um compromisso ético-políticodesse profissional, o que extrapola a formação“especializada”.

A formação de professores poderia ser pen-sada como uma questão de natureza complexa,pois não versa apenas sobre a construção dehabilidades e competências profissionais, reque-rendo, ainda, o seu deslocamento para outrosformatos em que prevaleça o gosto pelo novo eo direito de “não saber”, enquanto elementobasilar do poder criador.

Nesse ínterim, surge a formação contínuaou em serviço, cuja efetivação esbarra, princi-palmente, nas questões da ordem estrutural eorganizacional da escola. Nesse sentido, nosreportarmos a Rogers (1971) quando diz queas pessoas, para aprenderem, terão que “sen-tar juntas”, terão que se encontrar, comparti-lhando experiências. Nessa perspectiva, o autordefende que não caberiam mais exames, notase créditos. Abolir-se-iam os diplomas, dadoscomo títulos de competência, contraponto, se-gundo ele, de uma aprendizagem crescente econtinuada.

Convém refletirmos, portanto, sobre a ne-cessidade da criação de um “espaço de escu-ta”, enquanto momento de circulação da palavra,à medida que os professores, ao expressaremseus sentimentos, consigam ouvir a própria voz,significando a sua experiência. Este lugar, aonosso ver, pode representar uma estratégia deformação continuada ou em serviço para essesprofessores.

Além disso, é imprescindível que haja oreconhecimento de um “não-saber absolu-to” como forma de tornar o aprendizado con-tínuo e dar sentido ao trabalho desenvolvido.É preciso pensar nesse espaço-tempo tam-bém como um recurso que possibilite atenu-ar a angústia que perpassa o cotidiano detrabalho junto ao educando com necessida-des educacionais especiais, constituindo-se,ainda, em elemento indispensável para a res-significação e desenvolvimento de um saber-fazer pedagógico mais comprometido eeficaz.

Pensar a formação de professores paraatuarem com a diversidade é um fato que, àrevelia dos alunos em questão, demanda umamudança de postura dos professores. Nes-se contexto, a formação deixa de represen-tar a possibi l idade de atual ização oureciclagem de saberes e conhecimentos pe-dagógicos, para se transformar num movi-mento de criação de espaços onde aspessoas possam vir a aprender a convivercom a mudança e a incerteza. Colocar-seno lugar de quem aprende ao ensinar nosparece fundamental para aqueles que têmem suas mãos o desafio de incluir alunos an-tes excluídos do âmbito da escola.

Nesse sentido Rogers (1971) pontua que:O único homem que se educa é aquele que apren-deu como aprender; que aprendeu como se adap-tar e mudar; que se capacitou de que nenhumconhecimento é seguro, que nenhum processode buscar conhecimento oferece uma base desegurança. Mutabilidade, dependência de umprocesso, antes de um conhecimento estático,eis a única coisa que tem certo sentido comoobjetivo da educação, no mundo moderno (RO-GERS, 1971, p. 105).

Para tanto, é necessário que haja uma re-flexão da prática inclusiva, a fim de que oprofessor seja capaz de assumir um compro-misso ético-político com as demandas emer-gentes do contexto profissional, em que seusaber-fazer seja sinônimo de ressignificação,em detrimento de práticas cristalizadas, fun-damentadas no mero “achismo” ou em espe-culações empíricas.

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Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva

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5. (Re)dizendo da experiência... bus-cando formas para encerrar

Percebemos, com esta pesquisa, que embo-ra elementos comuns perpassem a experiênciadas professoras colaboradoras, a maneira comoa realidade inclusiva foi “captada” por elas de-corre de um quadro de referência interna, as-sumindo um significado particular para cada umadas professoras, o qual irá orientar os seusmodos de ser no mundo.

As reflexões produzidas neste trabalho anun-ciam que ser professor no cenário da escolainclusiva exige desprendimento e abertura exis-tencial, no sentido de aceitar e acolher o outro(aluno) em sua diferença. Implica, também, emter que lidar com situações diversas, em que ocontato com o aluno com deficiência se traduznuma intensa mobilização do professor que pa-rece vir acompanhada do sentido de aprendiza-gem. Isso denota uma realidade na qual oprofessor é convidado, constantemente, à cria-ção e re-invenção de suas ações e de si mes-mo, num movimento de busca por estratégiasque venham oportunizar devires na aprendiza-gem do educando.

É importante salientar que a discussão acer-ca dos sentidos de ser professor junto ao edu-cando com necessidades educacionais especiaisnos remete às condições “concretas” dessaprofissão, como a falta de recursos humanos emateriais, e de questões salariais, que podemimpedir a formação profissional. Tais condiçõesinfluenciam a constituição do self do indivíduo,podendo comprometer a sua tendência à atua-lização.

Estas questões são de fundamental impor-tância para a reflexão sobre a formação de pro-fessores, entendida aqui como sinônimo deaprendizagem, de vir a ser. Com a inclusão, tor-nou-se condição essencial que o professor as-suma o lugar de aprendiz. Mas esse processo,em que a aprendizagem se faz urgente e ne-cessária, pode estar se tornando algo dolorosopara o professor, que sente uma espécie dedesconforto em aprender.

Em outras palavras, os dados dessa pesqui-sa apontam para o fato de que essas docentes,

ao se julgarem não detentoras de um saber-fa-zer junto ao aluno com deficiência, ao invés dedespertarem para o desejo de aprender, sãoacometidas de um “bloqueio” frente ao que seconstitui ameaçador à sua estrutura de self.Talvez resida aí parte do que leva muitos pro-fessores a resistirem à atual proposta inclusiva.

Sob esse viés, urge que se (re)pense a for-mação dos professores no sentido de que essaconfirme e de certa forma realimente a dúvida– ou o direito a ela. Uma formação que incen-tive o gosto pelo novo, pelo diferente, a fim deque esses profissionais possam se lançar sobreaquilo que ainda não sabem, edificando estra-tégias criativas para aquilo que ainda é desco-nhecido. Para que o ideário inclusivo tome lugarnas escolas do ensino comum, convém pensá-lo de maneira ampla, abrangendo a possibilida-de de inclusão nesse contexto do própriodocente que trabalha com o educando com ne-cessidades educacionais especiais.

Nesse ínterim, a escola surge enquanto umespaço privilegiado de aprendizagem (autofor-mação), não só do aluno, mas também do pro-fessor. É mister, portanto, a edificação no seuâmbito de momentos que proporcionem o en-contro entre os profissionais dessa instituição,para que possam compartilhar experiências esaberes em prol da elaboração de estratégiasde enfrentamento para as dificuldades que sur-gem no cotidiano da prática educativa.

Convém refletirmos, ainda, sobre o fato deque, muito embora a legislação vigente trate desalvaguardar o direito de TODOS a uma edu-cação de qualidade, a escola não é um espaço“vazio” a ser preenchido com exigências e im-posições legais. O conteúdo das entrevistasevidencia, nesse sentido, que o desafio de in-cluir diz respeito, dentre outros fatores, a uminvestimento pessoal do professor, cujas práti-cas não serão alteradas pelo simples fato dainclusão ter sido decretada.

Assim sendo, a necessidade de uma equi-pe de trabalho integrada e de um suporte a seroferecido aos professores, os quais têm, emsuas mãos, a tarefa de incluir alunos com ne-cessidades educacionais especiais, põe emevidência a necessidade de se pensar a esco-

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la enquanto uma organização que aprende,isto é, uma comunidade capaz de rever(-se) eadaptar(-se) num mundo de “mudanças calei-

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 27.11.06

doscópicas” – expressão do próprio Rogers, afim de atender às demandas do novo contextoeducacional.

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A INCLUSÃO ESCOLAR DO SURDO:

algumas reflexões sobre um cotidiano investigado

Lázara Cristina da Silva *

Silvana Malusá Baraúna **

* Doutoranda em Educação pela UFU e mestre em Educação pela UnB. Professora Assistente III da Faculdade deEducação da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para correspondência: Av. João Naves de Ávila, 2121,Campus Santa Mônica, Bloco G, Universidade Federal de Uberlândia – 38.408-100 Uberlândia/MG. E-mail:[email protected]** Doutora em Educação. Professora Adjunta III da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.Professora dos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação. Endereço para corres-pondência: Av. João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G, Universidade Federal de Uberlândia –38.408-100 Uberlândia/MG. E-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir as condições e possibilidades de inclusãodos aprendizes surdos1 nas escolas regulares de ensino, fazer um panoramadas questões educacionais relativas à surdez no cenário nacional e apresentarum estudo sobre a inclusão de educandos surdos na rede pública municipal deUberlândia-MG. Ele é resultado de fragmentos de duas pesquisas realizadasentre 1998 e 2004, na cidade de Uberlândia, pela autora principal. Neste período,acontecem experiências educacionais variadas: há uma inserção em salas deaulas comuns de alunos surdos, sendo estas salas mistas compostas por alunossurdos e ouvintes; e, posteriormente, são criadas salas regulares para alunossurdos. O artigo aborda estas experiências a partir das diferentes percepçõesdos envolvidos: profissionais da educação, alunos surdos e seus parentes.

Palavras-chave: Educação inclusiva – Surdez – Inclusão escolar

ABSTRACT

SCHOOL INCLUSION OF THE DEAF PERSON: Some ReflectionsAbout Daily Life

This paper aims to discuss the conditions and possibilities of the deaf apprenticesin the regular schools, trough a panorama of the educational questions related todeafness in the Brazilian context and a study about the inclusion of deaf studentsin a municipal public school of Uberlândia/MG. The present article is a result offragments of two researches realized between 1998 and 2004, at Uberlândia, bythe main authoress. In this period, various educational experiences happened :the inclusion of deaf students in regular classroom, mixing deaf students andlisteners, and, later, regular classrooms for the deaf pupil are created. This paperapproaches these experiences from the different perceptions of the peopleinvolved: professionals of education, deaf students and their parents.

Keywords: Inclusive education – Deafness – School inclusion

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A inclusão de pessoas com necessidadesespeciais no ensino regular, antes atendidas emescolas especiais, tem trazido a educação es-pecial ao campo do debate e/ou do trabalhopedagógico de muitos profissionais da área. Ofato indica a necessidade de discussão de te-mas que atendam a nova realidade que se con-figura no campo educacional, a ser inserida e/ou ampliada no processo de formação dessesprofissionais em cursos de pós-graduação latusenso ou stritu senso.

Atualmente, na esfera política, há um em-bate entre, no mínimo, três grupos com diferen-tes concepções de educação para surdos. Assimhá: a) os que são a favor da inclusão dos surdosno ensino regular, em salas mistas de surdos eouvintes, cuja língua básica utilizada nas ativi-dades de ensino e aprendizagem é a língua por-tuguesa; b) os que defendem a concepçãoanterior de inclusão, porém com salas específi-cas/regulares2 para surdos; e c) os que dese-jam a permanência desses aprendizes nasescolas especiais.

Entretanto, é preciso estar atento a esteembate, pois não se trata de incluir para garan-tir o direito constitucional de igualdade educa-cional. A questão principal é garantir a essascrianças o acesso e a permanência na escolacom qualidade educacional3 . Esta preocupaçãoé decorrente da necessidade de se romper coma cultura do fracasso escolar presente no espa-ço educacional, pois, se este paradigma não sereverter, a marginalização e as histórias de fra-casso escolar poderão continuar presentes “nasescolas ditas para todos”.

Neste contexto, nos perguntamos: “A cri-ança surda responde bem à inclusão no en-sino regular? Como trabalhar com lingua-gens diferentes em um mesmo espaço?” Ainclusão da criança surda no ensino regular, alémde todos os complicadores enfrentados pelasdemais pessoas em condição de deficiência fí-sica e/ou sensorial, ainda enfrenta o diferencialda língua utilizada na sua comunicação – a lín-gua de sinais.

Este artigo contempla discussões de pesqui-sas realizadas4 no âmbito da inclusão escolarde aprendizes surdos, e tem a intenção de re-

fletir sobre as condições de inclusão escolardestes sujeitos, tendo como referência as ex-periências nesta área desenvolvidas na cidadede Uberlândia-MG5 durante o período de 1992a 2004.

1. Apresentando a história da in-clusão escolar do surdo emUberlândia

A Prefeitura Municipal de Uberlândia criou,a partir de 1992, um projeto visando atender asnecessidades legais de inclusão: O ProgramaBásico Legal Ensino Alternativo. De acordocom este projeto, todas as crianças com neces-sidades educativas especiais passam por umatriagem com multiprofissionais (psicopedagogos,psicomotricistas, médicos neurologistas, larin-gologistas, etc.) visando verificar o seu poten-cial educativo. Em seguida, as crianças sãomatriculadas no ensino regular e, no extra-tur-no, recebem atendimento especializado no en-sino alternativo6 . Durante a sua existência o

1 Segundo Behares (1995), ‘surda’ é a expressão mais co-mum na cultura padrão para fazer referência à pessoa quenão ouve. A utilização do termo surdo em detrimento dedeficiente auditivo ressitua a elaboração do conceito de sur-dez no marco sócio-cultural, e o retira do âmbito clínico.2 Entende-se por salas específicas para alunos surdos e/ou salasregulares de alunos surdos aquelas em que a língua utilizada nasatividades de ensino e aprendizagem é a Língua Brasileira deSinais (LIBRAS). Assim, a sala não precisa ser composta ape-nas por alunos surdos, já que o que a caracteriza de fato é adefinição da modalidade de língua utilizada. Entretanto, naprática, como a LIBRAS é utilizada apenas por pessoas surdas,estas turmas são compostas apenas por alunos surdos.3 Qualidade aqui entendida enquanto educação significativae promotora de aprendizagem em condições equânimes àsdestinadas aos demais alunos ouvintes.4 Foram realizadas duas pesquisas na área pela autora LázaraCristina da Silva: a primeira entre 1999 a 2002, intitulada OProcesso de Alfabetização de Aprendizes Surdos na RedeMunicipal de Uberlândia/MG, e a segunda entre 2002 a2004, cujo título é A Prática Pedagógica e a educação deAprendizes Surdos.5 Uberlândia, desde 1992, vem desenvolvendo experiênciasescolares de integração escolar de pessoas em condição dedeficiência física e/ou sensorial na rede regular de ensino.Iniciou-se com uma concepção de integração e atualmentetem trabalhado para alcançar os objetivos da inclusão edu-cacional.6 O Ensino Alternativo pode ser caracterizado como salas-recurso que na escola atendem individualmente e/ou empequenos grupos alunos em condição de deficiência física e/ou sensorial, no turno inverso ao que eles freqüentam.

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projeto sofreu mudanças superficiais, e conti-nua funcionando em treze escolas municipais.

O trabalho desenvolvido contempla o idealda filosofia integracionista7 para crianças comdeficiência física e/ou sensorial em condiçãopara freqüentar o ensino regular. A existênciade condição para se freqüentar o ensino regu-lar é definida na fase de diagnóstico psicope-dagógico realizado durante o processo dematrícula destas crianças. No caso dos apren-dizes surdos, o Programa Básico Legal Ensi-no Alternativo os insere em turmas de surdose ouvintes do ensino regular8 , ou em salas re-gulares de surdos das escolas–pólo para sur-dos, criadas em 2002. No primeiro caso, noextra-turno, eles recebem apoio pedagógico deprofissionais “qualificados”9 , visando atenderas especificidades de cada um, além do apren-dizado da Língua Brasileira de Sinais (LI-BRAS), que sempre foi valorizada pelosprofissionais do referido programa. No casodas escola-pólo, o atendimento no extra-turnoacontece esporadicamente de acordo com osprojetos de cada unidade de ensino.

Os documentos legais sobre esta questãoabrem a possibilidade de existência de traba-lhos com salas mistas e salas específicas/regu-lares; neste sentido, a Declaração de Salaman-ca10 , documento referencial para os demais11 ,pontua que:

Deve ser levada em consideração, por exemplo,a importância da linguagem dos sinais como meiode comunicação para os surdos, e ser assegura-do a todos os surdos acesso ao ensino da lin-guagem de sinais de seu país. Face às necessi-dades específicas de comunicação de surdos ede surdos-cegos, seria mais conveniente que aeducação lhes fosse ministrada em escolas es-peciais ou em classes ou unidades especiais nasescolas comuns. (Declaração de Salamanca, 1994,p.30 - grifos nossos.)

Assim, a proposta de trabalho para pessoassurdas desenvolvida pela rede municipal deUberlândia atendia plenamente a recomenda-ção inicial do documento, no que diz respeito aoaprendizado da LIBRAS, sendo que as crian-ças surdas sempre foram estimuladas a utilizá-la. Para tal, sempre existiu um profissional surdo

na escola para ensiná-la. No entanto, na primei-ra fase do ensino fundamental, nas escolas emque se trabalha com salas mistas, o uso da LI-BRAS se torna mais presente no atendimentono Programa Ensino Alternativo, pois o profes-sor regente e os demais alunos nem sempre adominam para manter uma comunicação efeti-va entre eles. Nestes casos, é garantida a pre-sença do intérprete em LIBRAS, embora nemtodas as salas o possuam. A presença deste pro-fissional é uma realidade a partir da primeira sé-rie da segunda fase do ensino fundamental.

Diante da situação apresentada, salientamosque os professores regentes de classes regula-res que recebem alunos surdos necessitam do-minar a LIBRAS para garantir condiçõesmínimas ao aprendizado. Como ensinar semcomunicação? Há, inicialmente, um bloqueioentre locutor e interlocutor.

O contexto atual apresenta uma iminentenecessidade de se propor uma reflexão sobreas características do surdo e suas necessida-des educacionais. A criança surda precisa serincluída na escola regular, mas com qualidade,no que se refere ao respeito à sua língua dosurdo e a procedimentos metodológicos comcaracterísticas próprias, que viabilizem umaaprendizagem significativa.

7 No paradigma da integração a pessoa com deficiênciaprecisa se adequar ao projeto educativo da escola. Ela épreparada para se integrar à escola e à sociedade. Cabe a elaadaptar-se às exigências do espaço no qual está sendo inserida.A escola, no caso da inclusão escolar, não precisa se adaptarpara recebê-la, basta garantir as suas condições de acesso.8 A composição das salas é realizada de forma que fiquem nomáximo dois alunos surdos em cada turma.9 Os profissionais do Programa Básico Legal Ensino Alter-nativo, a princípio, não possuíam qualificação específicapara os atendimentos especializados; porém, no momentoem que ingressam iniciam um processo permanente de for-mação continuada, que visa qualificá-los para atender asmúltiplas necessidades dos alunos do referido programa.10 Documento internacional firmado em Salamanca,Espanha, no ano de 1994, com o objetivo de traçar políti-cas, princípios e metas visando orientar a educação especialno mundo.11 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, lei9394/96, possui uma diretriz inclusiva apontando para oatendimento de todos aqueles com necessidades educativasespeciais, preferencialmente no ensino regular. Considerar:Cap. V, art. 58º, parágrafo 2º. No estado de Minas, a Lei Nº10.379/91, de 10 de janeiro de 1991, reconhece oficial-mente a LIBRAS como meio de comunicação objetiva e deuso corrente entre os surdos.

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Diante deste quadro, no início de 2002 foiproposta uma pesquisa em que se buscavaampliar as condições de sucesso escolar destegrupo de pessoas. Para tal, foram organizadosos atendimentos de alunos surdos em três es-colas-pólo12 , para melhor servir a essa cliente-la. Duas escolas trabalhavam com salasregulares para surdos13 , com professores emformação continuada e envolvidos na pesquisa,e uma outra escola com salas mistas (compos-tas por alunos surdos e ouvintes), com dois pro-fessores – o regente e o de apoio, este usuárioda LIBRAS, também envolvidos no estudo.

Essas escolas passaram a assumir a respon-sabilidade de realizar um trabalho coletivo, jun-tamente com a equipe multidisciplinar do Núcleodo Programa Básico Legal Ensino Alternativo14 ,visando a preparação dos profissionais, propi-ciando-lhes condições para o aprendizado daLíngua de Sinais, e, também, a busca de for-mas adequadas de atuação com as salas regu-lares para alunos surdos. Esses professoresatuaram na sala regular e na sala do ProgramaEnsino Alternativo.

2. Aspectos legais: algumas leitu-ras sobre a inclusão educacionaldo surdo

Desde o início da década de 90, o cenárioeducacional brasileiro deparou-se com a utopiada escola para todos, inclusiva, capaz de atenderaprendizes independentemente de suas condiçõesfísicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísti-cas e outras. A conferência mundial sobre ne-cessidades educativas especiais, organizada pelogoverno da Espanha e realizada em Salamanca,em 1994, teve o objetivo de definir princípiospolíticos e práticos para as necessidades educa-tivas especiais. No que diz respeito à política e àorganização, essa conferência chama atençãopara as garantias específicas de trabalho con-forme cada diferença. No que tange à surdez,entre outras questões, assegura-se à pessoa oacesso, a utilização da língua de sinais e o aten-dimento em escolas especiais ou classes e/ouunidades especiais, no interior de escolas comuns,durante a sua escolarização.

Desta forma, trabalhar com salas regularesde surdos não infringe o seu caráter inclusivistanem as recomendações legais, como algunseducadores pensam. O fato de se atenderemas características peculiares aos surdos (línguae cultura) lhes garante as condições de acessoe permanência na escola, pois neste espaço elesaprendem e são respeitados, de fato, em suascondições. Esta prática demonstra que este gru-po de pessoas possui condições de aprendiza-gem e desenvolvimento escolar em tempoequivalente ao dos ouvintes, o que revela al-guns conceitos equivocados mantidos pelo gru-po de profissionais que trabalham em instituiçõescom vistas à integração e à inclusão, e presen-tes até mesmo entre aqueles da educação es-pecial, que defendem que as pessoas surdaslevam um tempo maior para aprender e cursaras fases educacionais.

Seguindo os mesmos princípios, a Lei deDiretrizes e Bases da Educação Brasileira, lei9394/96, influenciada pela Declaração de Sala-manca, possui uma diretriz inclusiva apontandopara a inserção de todos os educandos em con-dição de deficiência física e/ou sensorial prefe-rencialmente no ensino regular. Esta situaçãotem sido motivo de preocupação para os pro-fissionais da educação15 , principalmente para

12A tentativa de realizar um trabalho com escolas-pólo vi-sava facilitar os trabalhos de acompanhamento, orientaçãoe avaliação do projeto, uma vez que aproximava os profis-sionais e os alunos, buscando encontrar uma melhor formade atender as dificuldades e necessidades do sujeito surdo.Durante o estudo, duas escolas abandonaram a proposta depesquisa, mas não a forma de trabalho. Todas as referênciase análises são apenas da escola que permaneceu até o finaldo estudo trabalhando com salas regulares para surdos naprimeira fase do ensino fundamental.13 Considera-se sala regular para surdos e/ou sala específicapara surdos aquela composta apenas por alunos surdos e/ousurdos e ouvintes, cuja língua básica utilizada para as ativi-dades de ensino e aprendizagem é a Língua Brasileira deSinais (LIBRAS).14 O Núcleo do Programa Básico Legal Ensino Alternativofoi criado com o objetivo de realizar pesquisa e dar assesso-ria a pessoas com necessidades educativas especiais emUberlândia. Mas desde a sua fundação, em 1992, o núcleonão realizou pesquisa por falta de profissionais qualificados,permanecendo apenas com a assessoria.15 O sentimento de desconforto em receber algum aluno emcondição de deficiência física e/ou sensorial por parte dosprofessores da rede regular de ensino é geral, sendo, portan-to, uma realidade conhecida pelos pesquisadores da área.Este texto, entretanto, abordará apenas as questões relati-vas à pessoa surda.

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aqueles que trabalham diretamente com cri-anças surdas, pois eles se sentem vulneráveisquanto às condições didáticas e lingüísticasapropriadas ao ensino e a aprendizagem des-tes alunos.

O papel social da escola nesta realidade éfundamental; entretanto, observa-se que as cri-anças surdas, ao serem inseridas em classesregulares com professores ouvintes, sem for-mação adequada, acabam não se desenvolven-do a contento. Em nome de uma pseudo-so-cialização, elas ficam restritas apenas aouniverso ouvinte, sem uma identificação comseus pares, além de não se desenvolverem sa-tisfatoriamente nos campos afetivos, cogniti-vos e sociais. Conseqüentemente acumulamfracassos, rebaixam sua auto-estima e, combaixa resistência a frustrações, tornam-se ner-vosas e agressivas. Essas crianças não têmem quem se espelhar para perspectivas de su-cessos futuros.

Segundo a história, quando a educação acon-tecia nas escolas especiais para surdos, comtodas as ressalvas que possam ser feitas, pos-sibilitava-se no mínimo o convívio da criançacom seus pares, o que contribuía com o seudesenvolvimento geral. Atualmente a convivên-cia com a comunidade surda se restringe a al-guns alunos que, na adolescência, influenciadospelos instrutores de LIBRAS (pessoas surdas),procuram a associação de surdos, que desen-volve atividades de cunho esportivo e de lazer.16

Questionar a inclusão neste momento histó-rico, em que esta é apontada como a soluçãopara os problemas apresentados pela educaçãoespecial, gera certo constrangimento. Entretan-to, essa crítica se faz necessária na medida emque a escola regular passa por uma profundacrise estrutural que tem sido desvelada, de cer-ta forma, pela inserção das crianças em condi-ção de deficiência física e/ou sensorial no seucontexto. Ainda, a inserção deste grupo deaprendizes no ensino regular, como vem acon-tecendo em nossas escolas, pode colaborar paraaprofundar mais esta crise, pois na prática esseprocesso tem sido excludente na medida em quenão se viabilizam condições específicas deaprendizagem. Estas experiências de inclusão

de aprendizes surdos também servem para ilus-trar a dicotomia entre o reconhecimento da ne-cessidade de uma “política da diferença” e suaefetivação nos espaços escolares.

Uma leitura superficial e ideológica do fe-nômeno da inclusão escolar e social pode serpercebida no constrangimento existente porparte de grande parcela dos profissionais quetrabalham na rede municipal de educação deUberlândia em questionar essa política inclusi-va. De forma geral, todos aprovam os argu-mentos apontados para que se proceda àinclusão dos aprendizes em condição de defici-ência na escola regular. A análise desta situa-ção e o posicionamento de resistência frente aela encontram ressonância no fato de não seter conhecimento, no Brasil, de experiênciasverdadeiramente inclusivistas capazes de apre-sentar resultados inquestionáveis com relaçãoà surdez.

Existem muitas iniciativas, mas que aindanão estão amplamente consolidadas, de se ofe-recer um respaldo necessário a este campo.Outro elemento a ser destacado é o fato de ainclusão ser um tema relativamente recente. Écomum encontrar experiências com integração.Isto limita um pouco o universo de questiona-mentos, uma vez que sempre que se discute oassunto, muitos se preocupam com a integra-ção, com os seus resultados e conseqüências,confundindo muitas vezes as duas situações.

Dentro desse quadro, o que se percebe éuma grande indefinição de como realizar estainclusão no ensino fundamental.

3. A inclusão sobre a perspectivada escola e da família uberlandense

Alguns educadores e pais argumentam serpositiva a inclusão de seu aluno(a) / filho(a)surdo(a), pelo fato de neste processo todos se

16 A Associação de Surdos de Uberlândia não possui um tra-balho bem estruturado, de cunho educativo eprofissionalizante, de seus associados. Existe um anseio paraque isto comece a acontecer nos próximos anos, emboranão haja recursos financeiros para a sua efetivação. A Pre-feitura Municipal de Uberlândia ainda não incluiu a ASULem suas propostas orçamentárias de subvenções.

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ajudarem enquanto seres humanos solidários:“Afinal todos os colegas o ajudam muito, sãosolidários com ele” (relato de uma professora).Uma fala carregada de humanismo igualitário, oque reforça o constrangimento naqueles que ques-tionam o movimento de inclusão escolar, comovem ocorrendo. Na realidade, em Uberlândia,nas práticas observadas, existe muito mais umaexperiência integracionista que inclusivista.

A fundamentação do discurso da escola in-clusiva tem como base o respeito às diferen-ças, a democratização do ensino e a igualdadede oportunidade para todos. Esta perspectivainclusivista defende a necessidade dos “defici-entes” de conviver com os colegas “normais”e vice-versa, constituindo a possibilidade maisindicada de integração desses grupos historica-mente segregados. (SKLIAR, 1999 e 2000;SASSAKI, 1999; BOTELHO, 2002; PALHA-RES, 2002; GOUVÊA, 2005; SILVA & VIZIM;2001, QUADROS, 2003).

Contudo, esse discurso gera uma série dequestionamentos, como por exemplo: O que sig-nifica aceitar as diferenças? É a prática deconvivência e de tolerância? Como o surdotem sido conduzido à sala de aula do ensinoregular? Os pais optaram pela inserção doseu filho nessa escola? Como os professo-res lidam com aprendizes surdos? Estes pro-fessores recebem alguma formação especí-fica para lidar com estes alunos surdosincluídos? Como as escolas estão receben-do estas crianças surdas?

Diante destas questões, o contexto discursi-vo presente nas entrevistas dos profissionais dasescolas da rede municipal de Uberlândia quepossuem o Programa Básico Legal Ensino Al-ternativo revelou a existência de uma atitudepassiva diante da diferença, uma “aceitação”do fato da integração ser uma realidade.

Eu acho que não teria que ser feito agora, teriaque acontecer, mas a pessoa precisa estar pre-parada para trabalhar com a criança surda,senão ela não tem condições de passar para osurdo a realidade, os conteúdos, em qualquerárea. Não tem jeito. Se a pessoa não tiver pre-parada para começar a trabalhar com esse sur-do não vai ter resultado (relato de uma professorade Educação Física).

Assim, no campo do discurso, há uma acei-tação generalizada da situação. Neste sentido,se pergunta: como questionar um programa doqual a escola faz parte, se o profissional nãopossui conhecimentos sobre a temática da in-clusão?

Assim os alunos estão na escola, freqüen-tam a sala de aula, mas seu desempenho esco-lar não é satisfatório. Na realidade os profes-sores não sabem o que fazer com estes alunos.O relato da professora abaixo, analisado a par-tir das observações de como suas aulas eramconduzidas, dos materiais didáticos utilizados,da sua postura diante dos alunos surdos, e dasformas de comunicação utilizadas com eles, ilus-tra esta questão, uma vez que demonstra umafragilidade muito grande com relação aos co-nhecimentos mínimos necessários para se tra-balhar diariamente com uma criança surda.

Eu acho interessante ter o surdo como aluno,que a gente aprende com ele. Ele é um cidadãocomum como os demais, irão viver as mesmasdificuldades. Assim têm os mesmos direitos deestar na escola junto com os demais. Acho difí-cil porque eu não sou bem preparada para tra-balhar com eles. Só comecei o curso deLIBRAS. É a primeira vez que tenho alunoDA17 (relato de professor Ensino Regular – grifonosso).

VYGOTSKY, em seus trabalhos, defendeque o aprendizado acontece, sobretudo, pelainteração social. Logo, como pode haver apren-dizado, se a comunicação entre a criança surdae sua professora está bloqueada? Se não hácomunicação, em geral o desenvolvimento detodo o processo educativo no interior da sala deaula, com essa criança, fica comprometido.Quanto à argumentação da professora de queos surdos terão as mesmas dificuldades que osouvintes na vida diária, e de que eles possuemdireitos iguais como cidadãos, é uma fala cons-truída a partir do discurso dos profissionais doPrograma Básico Legal Ensino Alternativo, uti-

17 A sigla DA utilizada pela professora equivale a deficienteauditivo, termo ainda utilizado pelos profissionais da esco-la. Esse termo é próprio da abordagem clínico-terapêutica,em que se enxerga o surdo como um deficiente, um doenteque precisa superar a perda da audição para se ajustar àsociedade.

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lizado nos cursos de formação continuada deseus professores. Este discurso garante a pre-sença dos alunos em condições variadas dedeficiência nas salas de aula comuns, e aindareforça a sua necessidade de convivência esocialização. No caso dos surdos cria-se umimaginário de que uma boa interação com osouvintes é fundamental para seu futuro pro-fissional e pessoal, ou seja, o seu futuro nomundo dos ouvintes depende do bom desem-penho desta relação.

O que se questiona é: só a convivência daforma como vem acontecendo nas escolas ob-servadas vai garantir aos surdos, no futuro,melhores chances no mercado de trabalho?Acredita-se que não, pois uma pessoa frustra-da e/ou fragilizada pelas condições educativasde aprendizagem dos conteúdos curriculares, ecom poucas vivências cidadãs, dificilmente serábem sucedida no mercado de trabalho. Aqui sejustifica a luta pela garantia de lugares reserva-dos a pessoas com algum tipo de “deficiência”nas atividades públicas.

Percebe-se que, apesar dos autores que fo-ram citados neste artigo, por conta dos estudosque realizaram, relatarem a falta de formaçãopedagógica18 que atenda as necessidades deum trabalho efetivo com as crianças surdas,existe certa dificuldade em se questionar a in-serção dessas pessoas na sala de aula. Primei-ro pela questão humanitária, o que gera umdesconforto diante do grupo, já que existe umforte sentimento de piedade envolvendo as re-lações de aceitação da criança surda. Segun-do, pelo receio do seu questionamento serconsiderado pelo grupo uma demonstração deincompetência.

A inclusão do surdo nas escolas regulares,como sugere a lei, não pode ser uma condutade subordinação e assimilação, mas sim de umaconsciência crítica e autônoma (BOTELHO,2002). A escola regular não está apta a rece-ber todos os aprendizes “especiais”. Os surdoscompõem este grupo que a grande maioria dasescolas não possui a menor condição de rece-ber, e com quem não consegue realizar um tra-balho satisfatório. É necessário um espaço19

nas instituições de ensino em que se trabalhe

com as peculiaridades, as potencialidades e asnecessidades de cada grupo, ou seja, que nãose faça um atendimento apenas de apoio noextra-turno, pois essas crianças, na sua maio-ria, não possuem maiores complicadores comrelação à aprendizagem, apenas são surdas enecessitam de um atendimento pedagógico di-ferenciado dos demais ouvintes. Acreditamosna necessidade de salas regulares próprias parasurdos, com professores realmente capacitados,e com domínio da LIBRAS para interagir deforma dinâmica e eficaz no processo educativodesses alunos.

A partir das experiências com salas regula-res de surdos da Rede Municipal de Ensino deUberlândia, MG, realizadas entre 2000 e 2004,tentou-se implantar novas estratégias de traba-lho. Buscando-se alcançar a inclusão no ensinoregular organizaram-se duas escolas-pólo paraatendimento de alunos surdos. Nestas escolasforam criadas salas regulares para surdos, emque a LIBRAS foi a primeira língua utilizadapelos professores em todas as atividades deensino. Para assumir estas turmas, foi designa-do um grupo de professores que dominava alíngua de sinais.

Durante a avaliação dos resultados destaexperiência, perguntou-se aos pais de uma dasescolas que trabalham com salas regulares parasurdos se estes tinham percebido diferençassignificativas no desenvolvimento escolar do fi-lho/filha, decorrentes do trabalho desenvolvidonestas salas regulares, específicas para surdos,em detrimento do trabalho realizado em salasregulares mistas, compostas por alunos surdose ouvintes, cuja língua principal utilizada pelosprofessores é a língua portuguesa, sendo a lín-gua de sinais utilizada apenas por intérpretes,quando estes se encontram disponíveis, e/ou noatendimento extra-turno com o professor espe-cializado. Dos trinta e dois pais entrevistados,vinte e oito responderam que sim e quatro que

18 Os profissionais entrevistados relataram que não recebe-ram nenhuma formação acadêmica e nem continuada narede municipal de Uberlândia, enquanto profissionais queatuam diretamente com essas crianças.19 A palavra espaço utilizada no texto não é relativa apenasao espaço físico, mas também à organização curricular, àestrutura da sala de aula, à formação de professores, etc.

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não, porém estes não souberam justificar suasrespostas.

As justificativas listadas pelos pais referem-se ao fato dos professores possuírem uma quan-tidade menor de alunos, de todos os alunos dogrupo serem surdos20 e todos os professores uti-lizarem a LIBRAS, estando estes, portanto, se-gundo os pais, preparados para atender asnecessidades específicas dos alunos e possibili-tar melhores condições para o seu aprendizado.

Os elementos destacados pelos pais nãoacontecem nas escolas regulares com salasmistas, compostas por alunos surdos e ouvin-tes, já que a maioria dos professores21 desco-nhece a criança surda, o seu processocognitivo22 , sua língua, sua história... Como podeser possível incluir assim?

No cotidiano de sala de aula observado, oque se encontra são professores angustiados,tensos com a diversidade de problemas que têmde enfrentar e, para complicar mais a situação,depara-se com problemas de ordem comunica-tiva, já que eles não dominam a língua de sinaispara se comunicar com seus alunos surdos, eestes, não raras às vezes, ainda não possuemnenhuma língua estruturada. A realidade dasescolas de Uberlândia tem sido essa: professo-res sem formação específica para receber cri-anças surdas, que não usam a LIBRAS, e cujaúnica recomendação recebida é a de falar de-vagar, olhando diretamente para os alunos sur-dos. O desconhecimento é tão profundo quemuitos profissionais da escola, inclusive profes-sores, pensam que todos os surdos sabem leros lábios, ou ainda, que se comunicam com aleitura do alfabeto manual (datilologia23 ). A co-municação originária de recursos como mími-ca, datilologia de forma generalizada, e mesmoleitura labial, de maneira geral tem se mostradoinsuficiente, não respondendo, portanto, às ne-cessidades comunicativas inerentes ao proces-so de escolarização.

Esta realidade demonstra a necessidade decompreensão por parte da sociedade em gerale, neste caso, por parte da escola, do que vemser a surdez, as diferentes concepções de sur-dez, e suas repercussões nestes contextos. Épreciso compreender a existência da comuni-

dade surda e de sua cultura24 , para criar condi-ções reais para a inclusão. Neste sentido, aindaque a proposta inclusiva vise contemplar a ne-cessidade de um olhar para as diferenças, sabe-se que as representações e a construção designificados são determinadas por uma culturadominante (a dos ouvintes). Isso significa dizerque a construção de significados de uma cultu-ra ouvinte não pode ser enquadrada no que temde específico na cultura existente entre os sur-dos (SKLIAR, 2000).

Desta forma, mesmo que o surdo viva en-tre os ouvintes e partilhe de sua cultura, hátraços culturais próprios de seu grupo que sãochamados de cultura surda (SKLIAR, 1998).

20 Não se defende a separação entre surdos e ouvintes, pelocontrário, valoriza-se a condição humana independente desuas características particulares. Entretanto, não se podenegar a importância da convivência com pares surdos paraa aprendizagem e desenvolvimento lingüístico e cognitivodos alunos surdos. O espaço de socialização e convivênciaentre surdos e ouvintes precisa ser cultivado. No entanto,não é possível compactuar com as crenças de que, em nomeda boa convivência e socialização, os aprendizes surdos fi-quem privados de todas as condições necessárias à sua apren-dizagem escolar e desenvolvimento humano. Assim, não sepretende estimular a cisão entre surdos e ouvintes, masgarantir um desenvolvimento saudável dos primeiros paraque seja possível a existência de uma sociedade para todos.21 A formação continuada destinada ao atendimento de cri-anças surdas na rede municipal de Uberlândia, têm sido his-toricamente priorizada aos professores de atendimento es-pecializado. Os professores da sala regular de ensino quepossuem uma carga horária maior de trabalho com os alu-nos e a responsabilidade por sua escolarização ficam à mar-gem deste processo.22 O desenvolvimento cognitivo de uma criança surda seestrutura tendo por base informações visuais. A imagem e aexperiência são fundamentais para que haja aprendizageme, consequentemente, evolução e desenvolvimento. Assim,não se defende que crianças surdas possuem naturalmenteum déficit cognitivo em relação às ouvintes; o déficit éprovocado pela ausência de linguagem e de informação, nãosendo, portanto, naturais, mas circunstanciais.23 Datilologia: uso de alfabeto manual para soletrar as pala-vras na língua oficial do país. A datilologia é um recursoutilizado pela comunidade surda para a apresentação de no-mes próprios de pessoas e/ou locais que não possuem sinaisconvencionais, sendo utilizada, também, para a introduçãode novos vocábulos e conceitos. Entretanto, só possui sen-tido ao ser utilizada por pessoas surdas alfabetizadas.24 Entende-se por cultura a expressão máxima de um grupoe/ou povo, a sua forma de enxergar e se relacionar com omundo, suas crenças e seus valores. A cultura surda, no casoorigina-se da língua de sinais, da experiência de mundo pró-pria das pessoas surdas, e seu principal canal é visuo-gestual.Não se pode negar a existência, por parte das pessoas sur-das, de uma forma muito peculiar de se relacionar com omundo. Por ser peculiar a este grupo, é denominada pormuitos de cultura surda.

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Isto não quer dizer que os surdos tenham umacultura totalmente distinta da chamada cultu-ra ouvinte, mas a própria natureza visuo-ges-tual deste grupo o faz dar prioridade a facesda cultura de seu país que, muitas vezes, nãosão percebidas e valorizadas pelos ouvintes.O que propicia aos surdos construírem umacultura própria é a significação e/ou ressigni-ficação que eles dão a tudo que existe na cul-tura ouvinte, criando assim costumes próprios,formas de ver e interpretar o mundo peculia-res à sua natureza visuo-gestual. É salutarcompreender que “a riqueza da diversidade cul-tural habita nas diferenças, na possibilidade deexistência de diferentes sujeitos culturais”(CANDAU, 2002, p. 74).

Assim, não é possível incluí-los sem respei-tar sua cultura em toda sua diversidade. Nãobasta buscar garantir a condição bilíngüe25 , masentender que o universo bilíngüe dos surdos, queopera entre a língua de sinais e a língua portu-guesa, é um espaço que necessita de interven-ções didáticas. Neste processo é preciso, ainda,se garantir a presença de profissionais surdos.Pois, como se efetivar de fato uma inclusão, seos principais interessados são excluídos do pro-cesso de organização do trabalho pedagógicoque os atenderá?

Acreditamos numa escola com salas de au-las regulares para surdos, que trabalhe a partirde uma perspectiva bilíngüe, respeitando os as-pectos específicos do processo cultural, sociale cognitivo desses aprendizes. Skliar (2002)destaca dois aspectos fundamentais para a es-colarização dos surdos: a língua e a identidade.

Conhecer o papel e a importância da línguana constituição do sujeito é fundamental parase pensar numa proposta curricular diferencia-da para os surdos. Saber que a língua de sinaisimprime uma identidade surda é uma questãopreponderante neste movimento. Assim, ao des-considerá-la, nega-se ao surdo o direito de cons-truir seu saber, sua identidade, sua cultura(PENIN, 1998).

Neste aspecto, a realidade investigada emUberlândia ilustra um paradoxo. A escola tema intenção de valorizar e de estimular o uso daLIBRAS entre seus alunos surdos; entretanto,

no momento em que ela os inclui na sala deaula regular mista, composta de alunos surdose ouvintes, com o professorado sem formação,e sem o mínimo de estrutura, inviabiliza o pro-cesso de apropriação lingüística destes apren-dizes; aceita-se a língua de sinais, semviabilizá-la.

Este fato pode ser ilustrado pelo relato deuma professora do ensino regular que possuíaem sua sala de aula crianças surdas, mas, queao iniciar seu trabalho com estes alunos, nãosabia a LIBRAS e nem possuía conhecimentospreliminares sobre a surdez:

Antes de fazer o curso de LIBRAS, eu ficava meioperdida, porque eu tentava passar alguma coi-sa e eles não entendiam, ficava uma comunica-ção bloqueada. Eu escrevia, mas como eutrabalhava com alfabetização, as crianças nãoconseguiam ler. Então, não tinha comunicação.(relato de uma professora regente).

O desconhecimento da língua de sinais - suaestrutura gramatical e lexical, sua abrangênciae complexidade - torna deficitária a relação doprofessor regente com a língua, gera precon-ceitos e dificulta as condições de ensino e apren-dizagem. Assim, a língua de sinais passa a serutilizada no cotidiano da sala como uma mímicapara traduzir grosseiramente algumas palavrasdo português, como sinais soltos sem contextu-alização. Esta situação foi amplamente obser-vada durante as fases de coleta de dados dasduas pesquisas de referência deste artigo.

Assim, as observações realizadas em salade aula apontaram para uma falta de conheci-mento generalizado sobre a língua de sinais, poismuitas vezes o professor utiliza sinais relativosa um objeto/palavra e pensa que faz uso da lín-gua, ou ainda utiliza o tempo todo a datilologiatambém pensando que está se comunicando e/ou mesmo fazendo uso da língua de sinais. Elenão compreende que esta língua, no caso a LI-BRAS, possui estrutura e gramática próprias, écomplexa como todas as línguas, etc; e que usar

25 Bilingüismo no caso da educação de pessoas surdas não sereduz ao uso e/ou domínio de duas línguas, a portuguesa e ade sinais; trata-se de uma filosofia de educação que incluiuma perspectiva histórica, identitária e cultural da comuni-dade surda. Representa, também, uma opção política.

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sinais isolados não significa fazer uso da LI-BRAS. Mesmo quando se usam esses sinaisna estrutura da língua portuguesa, não é LI-BRAS, mas português sinalizado, muitas vezesnão compreendido pelos surdos.

Esta prática contraria as disposições legaissobre este tema, pois atualmente a criança sur-da brasileira possui o direito legal de ter acessoà LIBRAS como primeira língua, assim como ode ser escolarizada tendo-a como base. É oaprendizado e a fluência nesta língua que lhegarante as condições básicas de desenvolvimen-to afetivo, cognitivo e social. Assim, a criançaconseguirá relacionar-se com o mundo de re-presentações, garantindo o estabelecimento debases mais sólidas para a aquisição de uma se-gunda língua – o português e, por conseguinte,para a alfabetização.

Ainda foi possível perceber que, no cotidia-no escolar investigado, existem muitas situaçõesque desconsideram a presença dessas crian-ças surdas no interior da sala de aula do ensinoregular. Pode-se ilustrar esta situação com oseguinte fato: numa aula de artes, a atividadeproposta pela professora foi a de se ouvir umafita, identificar o som produzido pelos objetos eanimais e finalizar com um desenho do objetoe/ou animal que emite o som ouvido. A propos-ta foi inadequada, a professora demonstrou nãoter conhecimento para trabalhar com criançassurdas, e não se preocupou com a aprendiza-gem e a participação delas neste processo. Istonão quer dizer que não se possa trabalhar commúsica na sala de aula onde haja crianças sur-das e ouvintes, mas este trabalho exige umametodologia própria que propicie a toda a tur-ma o envolvimento e o aproveitamento da aula.

4. Algumas reflexões finais

Na realidade, as crianças surdas estão sen-do incluídas apenas fisicamente em classes re-gulares, e o fracasso escolar é atribuído a elas.Na escola integracionista para surdos, tudo épensado, organizado e gerido pelos ouvintes,profissionais que, possuindo consciência ou não,representam e reproduzem a idéia de um mun-

do homogêneo, sem diferenças, com direitosiguais para todos, cabendo aos surdos se adap-tarem da melhor forma possível aos processosde trabalho pensados para eles. Estas práticas,discutidas por Quadros (2003), refletem umainclusão visando atender a interesses políticosbaseados no princípio da homogeneidade. Des-considerar as diferenças, no caso dos surdos, éno mínimo discriminar, pois o fato de não ouviré uma diferença sensorial considerável, querequer formas distintas de comunicação e, porconseguinte, de ensino.

Em decorrência da concepção de uma es-cola para todos, as crianças surdas estão sendoaceitas nas escolas regulares, tendo oportuni-dade de se socializar com os outros, e de adqui-rir, com grande dificuldade e sofrimento, algunsconhecimentos elementares para sua sobrevi-vência em sociedade. As experiências investi-gadas em Uberlândia demonstram o poucopreparo dos profissionais da escola para traba-lhar com estes alunos, pois nenhum aluno ou-vinte fica tanto tempo na escola apenas para sesocializar; ele está lá para aprender os conhe-cimentos socialmente acumulados.

Esta prática ainda revela a questão da baixaexpectativa pedagógica dos profissionais ouvin-tes com relação à aprendizagem dos educan-dos surdos26 . Como os ouvintes, estes possuemo direito de estar na escola, e de aprender e sedesenvolver com dignidade. Assim, é precisogarantir aos profissionais que atuam nestas es-colas uma formação adequada, para que reali-zem um trabalho capaz de promover aaprendizagem de todos, inclusive daqueles quese encontram em condição de deficiência físi-ca e/ou sensorial. Logo, não se trata apenas derecebê-los nem de incorporar o discurso pater-nalista e superprotetor, para o qual apenas ofato de se garantir a oportunidade de convivên-cia e socialização já representa uma grandeevolução. Não se trata de construir uma socie-dade melhor a partir do sofrimento e da exclu-

26 A presença da baixa expectativa pedagógica em relação àaprendizagem de pessoas em condição de deficiência físicae/ou sensorial é uma realidade comum nas escolas regulares,que precisa ser superada como condição básica para que seprocesse uma prática real de educação inclusiva.

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são velada de um grupo. É preciso que os pro-fissionais tenham consciência deste fato. Amelhoria das relações é construída a partir doconhecimento sobre a deficiência e suas impli-cações na vida de cada pessoa, do reconheci-mento da condição do outro, do respeito e daoportunidade de aprendizagem e desenvolvimen-to que são oferecidas às novas gerações.

No caso dos pais e educadores de Uberlân-dia que participaram dos estudos citados nestetexto, a grande maioria demonstrou não possuirconhecimentos específicos e pedagógicos so-bre a surdez, a língua de sinais, a cultura surda,etc. Ainda existe fortemente, nos relatos dospais e educadores, a crença de que, através daoralização, os surdos se tornarão “ouvintes”, ouseja, terão um desenvolvimento cognitivo, soci-al e lingüístico “normal” como as outras pesso-as. Isto é possível. Porém não será através daoralização27 que a criança surda poderá se de-senvolver naturalmente como uma criança semseqüelas cognitivas, sociais e afetivas.

Este desenvolvimento ocorre através da in-serção sócio-cultural e educacional das crian-ças surdas, desde a primeira infância, emprojetos educacionais que lhes garantam o aces-so à língua de sinais e à convivência com ou-tros pares surdos, e a oportunidade de interagircom os conhecimentos socialmente acumula-dos pela humanidade, como ocorre com as cri-anças ouvintes.

A comunidade surda da cidade assume, nes-te processo, um papel muito importante: o derealizar a ponte entre ela e a família da criançasurda, além de desmistificar as representaçõesde surdez como fardo social e familiar, e deapresentar aos envolvidos outra face da expe-riência de ser surdo. É seu papel divulgar a Lein. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõesobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS,e ainda trata do direito de os alunos surdos se-rem educados através dela, o que reforça anecessidade de salas regulares para surdos, umavez que cabe ao professor ensinar, e não aosintérpretes de LIBRAS28 .

As experiências com salas mistas de Uber-lândia têm evidenciado que os alunos surdos,por serem minoria, ficam sempre prejudicados

no seu processo de aprendizagem, pois, mesmoquando possuem professores bilíngües, estes sem-pre oferecem explicações e/ou explorações dostemas trabalhados em sala de aula primeiro paraos ouvintes e, posteriormente, com inúmeras in-terrupções, para os surdos. Assim, a prática do-cente desempenhada em um ambiente em que oprofessor precisa realizar a mesma tarefa porno mínimo duas vezes, utilizando estratégias deensino distintas e sendo interrompido pela dinâ-mica da aula por diversas vezes, é muito esta-fante. Ele fica sobrecarregado e o aluno surdosempre perde, por ser minoria dentro da sala deaula. O que ocorre nestas situações é que, du-rante a explicação do professor, os alunos sur-dos acabam não recebendo um atendimentocompleto com informações com início, meio efim, o que prejudica o seu aprendizado.

A partir desta situação, construiu-se, no seiodos profissionais que trabalham com escolasinclusivas, na educação de pessoas em condi-ção de deficiência física e/ou sensorial em Uber-lândia, o discurso de que este grupo de crianças,e aqui no caso, as crianças surdas, aprende epossui potencial escolar. Entretanto, para estesalunos, é necessário um tempo escolar distintodos demais, já que eles não conseguem cursaruma série escolar em um ano, como ocorre comas demais crianças. Sendo assim, é necessário,para este grupo, de dois a três anos para secursar uma série.

Este pensamento naturaliza o fracasso es-colar das crianças em condição de deficiência,e ainda centraliza nelas a responsabilidade pelo

27 Se isto fosse possível, provavelmente hoje a realidade daspessoas surdas seria outra, considerando que o Oralismoimperou no mundo por quase um século.28 Existe uma grande polêmica nesta questão, pois levam-semuitos anos para se formar um professor. Esta formaçãoexige aquisição de conhecimentos específicos da área deatuação e de conhecimentos pedagógicos para atuar na pro-fissão. Além disso, são necessários muitos outros saberesque são construídos durante a docência, os quais os intérpre-tes não possuem. Assim, sempre se pergunta a quem cabe atarefa de ensinar os alunos surdos. Ao professor ou ao intér-prete? Esta tarefa é sem dúvida do professor. Então, comofazê-lo se não há comunicação entre professor e aluno?Como o professor pode ter a garantia de que o intérpreteestá interpretando corretamente os conceitos ensinados?Estes são desafios que precisam ser superados. Cada profis-sional poderá encontrar um caminho. Porém, o ideal é oprofessor ser bilíngüe.

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seu desenvolvimento escolar. Esta postura aindainibe a busca por conhecimentos específicos epedagógicos capazes de ampliar as condiçõesde ensino e de aprendizagem das pessoas emcondição de deficiência no meio escolar. As cri-anças surdas têm potencial de se desenvolverem tempo escolar igual ou semelhante ao de cri-anças ouvintes. É necessária, entretanto, a pre-sença de conhecimentos específicos e pedagó-gicos adequados ao processo de ensino eaprendizagem destinado a este grupo.

Neste sentido, existe um grande trabalho aser desenvolvido nas escolas da rede municipalde educação de Uberlândia, a fim de se supe-rar a integração e se chegar à inclusão. Porém,pensar a inclusão com o modelo de escola quetem sido desenhada atualmente parece-nos umaproposta fadada ao fracasso.

Nesta perspectiva, as salas regulares parasurdos, com professores realmente capacitados,bilíngües e, portanto, aptos para interagirem deforma dinâmica e eficaz no processo educativodesses alunos, têm se mostrado um caminhoque, se bem estruturado, poderá ser capaz deampliar e respeitar o seu potencial de aprendi-zagem.

É preciso romper com as amarras do medoe a falácia de que só existe inclusão quandoestão surdos e ouvintes juntos em uma mesmasala de aula. Urge a presença de um conceitode inclusão que ultrapasse as questões físicas.Não se trata de inserir o aluno surdo em salasregulares e heterogêneas, contendo pessoassurdas e ouvintes, mas em garantir condiçõesreais de aprendizagem e de desenvolvimentohumano para ele. Desta forma, a existência desalas regulares para surdos não sinaliza para asegregação e nem para a “exclusão”. Segre-gar e excluir significa colocar o surdo em umasala de aula em que este permanece sempreisolado dos demais nas questões relativas àaprendizagem e desenvolvimento escolar. Estaé uma forma velada de segregação e exclusão.Em que melhora as condições de vida reais daspessoas surdas a sua inclusão física na escola?O que faria essa diferença seria uma inclusãode fato, em que se garantissem condições deensino e de aprendizagem a estes aprendizes.

Esta questão também não pode ser entendi-da sem se levarem em consideração a seletivi-dade e a exclusão presentes no sistemaeducacional brasileiro. Assim, discute-se a in-clusão, mas, na prática, exercita-se a exclusão.Isto porque não se pode negar o fato de quehistoricamente a escola regular brasileira temsido altamente excludente e seletiva em suaspráticas educativas.

Todavia, não se pode desconsiderar que sig-nifica um modo de inclusão social os alunossurdos se encontrarem em uma escola regularde ensino, possuindo a possibilidade real de serelacionar com todos da escola, independentedas suas condições físicas e sensoriais. Entre-tanto, acreditamos que esta inclusão social acon-tece também via inclusão real das possibilidadesde aprendizagem e desenvolvimento. Não bas-ta colocá-los em classes mistas para dizer queesta é uma ação inclusiva.

A experiência tem mostrado que o trabalhoem salas mistas não tem oferecido condiçõesde desenvolvimento escolar satisfatórias a estegrupo de alunos 29 . Em Uberlândia, atualmen-te, após mais de treze anos de experiência es-colar com salas mistas, os alunos surdosapresentam altos índices de reprovação esco-lar. E mesmo aqueles que alcançaram algunsíndices de sucesso escolar não conseguem lere escrever em língua portuguesa, mesmo es-tando em séries avançadas da segunda fase doensino fundamental (7ª e/ou 8ª séries), bemcomo do ensino médio. O que limita as suascondições de inserção no ensino superior e nomercado de trabalho.

Não se pretende, no entanto, dizer que emsalas regulares para surdos não há dificuldadesde aprendizagem e de desenvolvimento esco-lar. Existem muitas dificuldades, já que a salaregular para surdo também não homogeneíza,como muitos pensam. Cada surdo é um sujeitodiferente; mesmo que os déficits sensoriais pos-sam ser semelhantes e/ou idênticos, os fatoresbiológicos, sociais e culturais acabam constitu-indo pessoas diversas. Existem dificuldades,

29 Esta análise e discussão se restringem ao grupo de aprendi-zes surdos, em decorrência das especificidades lingüísticas.

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desde aquelas relacionadas à falta de conheci-mentos simples e informações do cotidiano es-colar, até as relativas ao entendimento deconceitos mais complexos, decorrentes da fal-ta de competência lingüística na LIBRAS e emportuguês, e de formação docente dos profissi-onais envolvidos, etc.

As dificuldades ultrapassam as questõespedagógicas e de formação docente, e esbar-ram em questões inerentes à falta de informa-ções e de vontade política da sociedade emgeral. Existe um número considerável de sur-dos em Uberlândia 30 , e os meios de comunica-ção de massa não atentam para as necessidadesdeste grupo de pessoas. Um exemplo simplesdiz respeito aos telejornais locais e nacionais,que não possuem um intérprete de LIBRAS, oque deixa os surdos à margem das informaçõesveiculadas. Atualmente existem recursos tec-nológicos que permitem que estes programassejam apresentados com legendas, para quepossam ser acompanhados através da leitura.Todavia, esta leitura, além de ter que ser muitorápida, não atende plenamente as necessida-des destes sujeitos, pois eles possuem dificul-dades de compreensão de todas as informaçõesem língua portuguesa. Ademais, uma grandeparcela desse grupo é semi-analfabeta.

Muitos pesquisadores da área defendemque essas mudanças podem acontecer via es-cola, e que o fato das crianças crescerem con-vivendo com as diferenças as torna maisconscientes e respeitosas com relação à cau-sa do outro. Porém, acreditamos ser este umraciocínio simplista. A escola historicamentetem servido muito mais como meio de se man-terem os interesses políticos e econômicos doque como instrumento propulsor de grandestransformações sociais. Esse raciocínio trans-fere para a escola algo que ultrapassa os seuslimites educacionais.

Outro ponto a ser ressaltado é que não setrata apenas de se oferecerem espaços soci-ais e profissionais a este grupo de pessoas, mastambém de se garantirem condições de desen-volvimento escolar condizentes com a sua in-serção nestes espaços. Atualmente a legisla-ção garante aos surdos o direito de ingresso

no mercado de trabalho, através de isençõesde impostos e outras facilidades para as gran-des empresas que colocarem em seu quadrode profissionais pessoas com deficiências sen-soriais e/ou físicas. No caso das empresaspúblicas, 10% das vagas em concursos públi-cos são destinadas a este grupo; entretanto,os surdos não possuem condições de desfru-tar destas garantias, pois lhes falta um desen-volvimento escolar e profissional capaz de ofe-recer condições reais para pleitearem taisvagas. Esta tarefa tem sido assumida pelasassociações das categorias. No caso da for-mação educacional, estas associações nãoconseguem desempenhar este papel, que, ali-ás, é de obrigação do Estado.

Neste sentido, trata-se de se criarem con-dições reais de aprendizagem, e de não haverpreocupação com o fato de ser ou não inclu-são os alunos estarem em salas regulares desurdos. Para o grupo de profissionais que atuaem salas regulares de surdos, este trabalho éinclusivo de fato, pois lhes possibilita, além deaprender os conteúdos curriculares, compre-ender e inserir-se na sociedade como um todo.Não se trata aqui de uma ação inconstitucio-nal, porque a legislação garante atendimentoespecializado aos grupos que demandam aten-dimentos específicos decorrentes de condiçõeslingüísticas, como no caso dos surdos, estran-geiros e indígenas.

Por outro lado, as escolas que possuemsalas regulares para surdos têm buscado es-tabelecer ações que viabilizem a aproxima-ção social entre todos os seus alunos,oferecendo cursos de LIBRAS para a comu-nidade escolar e local, a fim de que os inte-ressados possam aprender a se comunicar einteragir com os aprendizes surdos. Além dis-so, na convivência diária, nos eventos, nosrecreios e nas brincadeiras estes vão apren-dendo a se comunicar. Não há preconceitos,há possibilidades de escolhas.

30 A Associação de surdos apresenta um quantitativo de maisde seiscentas pessoas associadas. Acredita-se, porém, queexista um número significativo destas que não freqüentam aassociação e, portanto, não são associadas.

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A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 07.12.06

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ANALISANDO OS DISCURSOS SOBRE INCLUSÃO

NOS CURSOS DE PSICOLOGIA DAS IFES MINEIRAS

Luciana Pacheco Marques *

Cristina Toledo **

Frederika de Assis Burnier ***

Gabriela Silveira Meireles ****

* Doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação/UFJF. Endereço para correspondência: Campus daUniversidade Federal de Juiz de Fora/Faculdade de Educação/Núcleo de Educação Especial, Bairro Martelos – 36036-330 Juiz de Fora/MG. E-mail: [email protected]** Psicóloga. Mestranda do PPGE/UFJF. Endereço para correspondência: Campus da Universidade Federal de Juiz deFora/Faculdade de Educação/Núcleo de Educação Especial, Bairro Martelos – 36036-330 Juiz de Fora/MG. E-mail:[email protected]*** Psicóloga. Mestranda do PPGE/UFJF. Endereço para correspondência: Campus da Universidade Federal de Juizde Fora/Faculdade de Educação/Núcleo de Educação Especial, Bairro Martelos – 36036-330 Juiz de Fora/MG. E-mail:[email protected]**** Pedagoga. Mestranda do PPGE/UFJF. Endereço para correspondência: Campus da Universidade Federal de Juizde Fora/Faculdade de Educação/Núcleo de Educação Especial, Bairro Martelos – 36036-330 Juiz de Fora/MG. E-mail:[email protected] Pesquisa financiada pela FAPEMIG e pelo CNPq, realizada pelo Núcleo de Educação Especial/UFJF, Campus da Universi-dade Federal de Juiz de Fora/Faculdade de Educação/Núcleo de Educação Especial. Bairro Martelos – 36036-330, Juiz deFora/MG.

RESUMO 1

Este texto objetiva desvelar os sentidos do termo inclusão nos Cursos dePsicologia das Instituições Federais de Ensino Superior de Minas Gerais (IFESMineiras). Utiliza como referencial metodológico a Análise de Discurso e temcomo corpus discursivo as produções acadêmicas (dissertações) dos programasde mestrado em Psicologia das IFES Mineiras; a grade curricular dos cursosde psicologia destas instituições com a(s) respectiva(s) ementa(s) da(s)disciplina(s) relacionada(s) à temática; e uma entrevista individual realizadacom três alunos(as) do último ano, o(a) professor(a) responsável pela área deEducação Especial, e o(a) coordenador(a) destes cursos. Ao desvelar ossentidos do termo inclusão que estão sendo formados nestes cursos dePsicologia, são três as formações ideológicas no tratamento da diferença impostapela deficiência: exclusão, integração e inclusão.

Palavras-chave: Formação do Psicólogo – Inclusão – Diversidade – EducaçãoEspecial

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ABSTRACT

ANALYZING THE INCLUSION DISCOURSES OF THE IFESMINEIRAS PSYCHOLOGY COURSES

The aim of this study is to unravel the different meanings of the term inclusionin the Psychology Schools at the Minas Gerais Federal institutions for HigherEducation (IFES Mineiras). It uses the Discourse Analysis method and itsdiscursive corpus is based on academic productions (dissertations) in the IFESMineiras Master’s Degree Programs, the subjects and schedules of thePsychology schools at the IFES Mineiras, along with the respective appendicesto the subjects related to the aforementioned theme and an interview withthree separate students at the same year in college, the teacher responsible forthe Special Education area and the Coordinator of these courses. Uponunraveling the meanings of the term inclusion which are being taught at thesePsychology schools, three ideological themes were found in the treatment ofthe difference imposed by disability: exclusion, integration and inclusion.

Keywords: Formation of a Psychologist – Inclusion – Diversity – SpecialEducation

Introdução

Durante muitos anos buscou-se um enten-dimento da escola como locus de atendimen-to à diversidade humana. No entanto, as insti-tuições de ensino deparavam-se compsicólogos formados por currículos homoge-neizadores, que lhes obstaculizavam a com-preensão de que a modernidade onde estavaminseridos os situavam numa formação ideoló-gica excludente, onde imperava a dicotomianormal x anormal.

Verificou-se, assim, que era preciso com-preender os cursos de formação inicial aosquais estes profissionais eram submetidos,para que se pudesse, junto com seus colabo-radores – professores universitários, coorde-nadores de curso, graduandos e outros ,refletir sobre a questão da heterogeneidadedestes/nestes cursos.

Inicialmente abordou-se a questão da estig-matização, da construção dos paradigmas daexclusão, integração e inclusão, e tratou-se daformação em nível superior dos psicólogos parao atendimento à diversidade. Apresenta-se, en-tão, o objetivo, a metodologia, as análises e asconclusões dessa pesquisa.

Fundamentos teóricos

Historicamente percebe-se a busca da so-ciedade em encontrar artifícios que estabele-çam normas para a aceitação social dosindivíduos. Muitas vezes impõem-se estigmasàs pessoas que divergem de um determinadopadrão em função da diversidade humana, en-tendida nesse sentido com um caráter coletivo,uma vez que também considera as diferençasindividuais.

O estigma constitui uma marca de caráternegativo e pejorativo empregada para identifi-car e segregar pessoas que não se enquadramem padrões estabelecidos de normalidade. Se-gundo Goffman (1988, p. 14):

... o indivíduo que poderia ter sido facilmenterecebido na relação social cotidiana possui umtraço que se pode impor à atenção e afastar aque-les que ele encontra, destruindo a possibilidadede atenção para outros atributos seus. Ele pos-sui um estigma, uma característica diferente daque havíamos previsto.

Acreditando acima de tudo no saber cien-tífico por ele produzido, o homem se encon-tra no direito de poder dizer o que lhe conviera respeito do outro, principalmente daquele

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entendido como desviante do padrão de nor-malidade, estabelecido em tal momento comoúnico e absoluto. Já no cenário do mundo atu-al2 o discurso se funda na consideração dadiversidade. Pressupõe-se que todas as pes-soas são iguais no que se refere ao valormáximo da existência: a humanidade. Assim,considera-se que ser negro ou branco, ser altoou baixo, ser deficiente ou não-deficiente, serhomem ou mulher, ser rico ou pobre são ape-nas algumas das inúmeras probabilidades deser humano.

A exclusão social, porém, se constituiu comoideologia dominante na relação da sociedadecom as pessoas com deficiência, estabelecen-do uma relação marcada pela dicotomia do cer-to e errado, bom e ruim, normal e anormal.Dentro desse contexto, a deficiência é remeti-da à idéia de incapacidade e ineficiência. Me-diante a situação de inferioridade existencial dapessoa com deficiência, esta é isolada em insti-tuições de natureza segregadora.

De acordo com Marques e Marques (2003,p. 227):

... observa-se uma forte tendência em se avaliara deficiência do outro sobre o prisma biológico,passando seu portador a ser tratado como umdoente, ou seja, uma pessoa fragilizada, semprenecessitada de assistência, por isso, digna depena. Assim procedendo, as pessoas ditas nor-mais reduzem os significados da normalidade eda adaptação para os padrões estéticos e de pro-dutividade do corpo.

Sob esta ótica se fundamenta a manuten-ção dos asilos, hospitais e internatos para isola-mento de pessoas que se encontrem fora dospadrões estabelecidos como normais. Camu-flando a ideologia preconceituosa e discrimina-tória da sociedade, estas instituições semantiveram sob a justificativa de proteção epreparação das pessoas com deficiência parauma futura integração no ambiente social.

Para combater a prática de segregação aque eram submetidas as pessoas com deficiên-cia, surgiu a idéia de integração, que na décadade 1960, procurou inserir estas pessoas nos sis-temas sociais gerais, seja na educação, no tra-balho ou no lazer.

De acordo com Sassaki (1997, p. 35):... no modelo integrativo, a sociedade, pratica-mente de braços cruzados, aceita receber porta-dores de deficiência desde que estes sejamcapazes de: moldar-se aos requisitos dos servi-ços especiais separados (classe especial, escolaespecial, etc.); acompanhar os procedimentostradicionais (de trabalho, escolarização, convi-vência social, etc.); contornar os obstáculos exis-tentes no meio físico (espaço urbano, edifícios,transportes, etc.) (...) desempenhar papéis soci-ais individuais (aluno, trabalhador, usuário, pai,mãe, consumidor, etc.) com autonomia, mas nãonecessariamente com independência.

Embora imbuída dos princípios de equipara-ção de oportunidades, de respeito às diferen-ças e inserção plena das pessoas comdeficiência em todas as atividades sociais, a in-tegração não conseguiu propiciar a verdadeiraigualdade de oportunidades. Somente alguns,considerados mais capazes de superar e adap-tar-se às barreiras físicas e atitudinais da soci-edade conseguiram integrar-se. E a exclusãoainda se fez presente para aqueles não capa-zes de se adaptar ao sistema produzido naModernidade. Ou seja, não houve mudançano contexto social, político e ideológico para quea integração ocorresse efetivamente. Nestesentido, na tentativa de resgatar o sentido origi-nal de integração é assumido, no contexto daatualidade, o paradigma da inclusão.

Nas palavras de Sassaki (1997, p. 41), a in-clusão é “o processo pelo qual a sociedade seadapta para poder incluir, em seus sistemas so-ciais gerais, pessoas com necessidades especi-ais e, simultaneamente, estas se preparam paraassumir seus papéis na sociedade. A inclusãosocial se constitui, então, em um processo bila-teral.”

Segundo Marques e Marques (2003), sendoa escola parte constitutiva do todo social, elarefletirá os desdobramentos de todas as mu-danças ocorridas nas concepções que signifi-cam a vida, e a passagem de uma concepçãoexcludente de escola para outra fundada na di-versidade humana, o que deve significar uma

2 Foram empregados os termos Atual e Atualidade paradesignar o momento histórico que estamos vivendo.

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profunda mudança em toda a dinâmica educaci-onal.

Para estes autores (2003, p. 236):... a escola inclusiva constitui uma proposta den-tro de um paradigma capaz de ressignificar as prá-ticas desenvolvidas no cotidiano da escola, comoexigência da reorganização do trabalho escolar. Aescola inclusiva contribui para uma significativamudança na postura do professor e para a cons-trução de um novo perfil de escola que, a partir deentão, objetiva contemplar e valorizar a singulari-dade de cada um dos sujeitos, trabalhando parauma visão de conjunto e parceria na busca datransposição do ideal para o real.

O contexto da educação é marcado por su-cessivos fracassos. Entre as causas apontadaspor alguns autores, destaca-se a má e precáriaformação que os profissionais que atuam nestaárea recebem nos cursos secundários, ou mes-mo nos cursos superiores. Nesta perspectiva,os psicólogos têm apresentado uma visão res-trita dos alunos, desconsiderando a realidade emque eles se inserem e, na maioria das vezes,apenas realizam avaliações, rotulando os quese encontram “fora do padrão”. Fica evidenteportanto que não basta apenas adotar medidaslegais através de promulgações de leis, sem quehaja uma discussão envolvendo todos estes pro-fissionais, no que se refere a uma visão críticada prática escolar.

A escola que temos hoje no Brasil está apa-rentemente preparada para receber e trabalharcom alunos de boa capacidade cognitiva, quepodem caminhar com êxito com o apoio da es-cola, sem o apoio da escola, ou apesar do apoioda escola. Entretanto, no Brasil, nos depara-mos com um alunado marcado por diferençassociais, físicas, intelectuais, étnicas, religiosas,emocionais, entre outras. Sob este contexto sefaz cada vez mais necessária a discussão so-bre a atual formação de nossos profissionais daeducação.

Os psicólogos devem ter asseguradas ascondições materiais concretas que possibilitemprocessos de mudança e acesso ao conheci-mento produzido na área da educação e da cul-tura em geral, que auxiliem a constituição docurrículo no espaço escolar onde atua.

Diante disso, acredita-se, assim como Silva(1999, p. 20-21), que

... embora o currículo não coincida com a cultu-ra, embora o currículo esteja submetido a regras,a restrições, a convenções e a regulamentos pró-prios da instituição educacional, também ele podeser visto como um texto e analisado como dis-curso (...) O currículo, tal como a cultura, é umazona de produtividade. Essa produtividade, en-tretanto, não pode ser desvinculada do carátersocial e das práticas de significação. Cultura ecurrículo são, sobretudo, relações sociais.

A formação dos psicólogos implica não so-mente na constituição de sua identidade profis-sional, como também na sua identidade pessoal.Esta identidade deve estar alicerçada nos sa-beres curriculares, nos saberes da experiênciae nos saberes sobre o processo pedagógico(PEREIRA; MARTINS, 2002).

Segundo Santos (2002, p. 158):... os documentos oficiais, emanados do podercentral, têm destacado não apenas a necessida-de de os docentes possuírem uma cultura geralque os situe no mundo contemporâneo, comotambém conhecimentos que lhes forneçam umavisão ampla sobre o papel econômico, político esocial da educação. Além disso, (...) falam tam-bém em uma educação de qualidade, educaçãoinclusiva, educação para a cidadania, com baseem análises sobre a diversidade cultural e asdesigualdades educacionais e sociais.

Demasiadamente amplas são as discussõesque podem ser suscitadas das determinaçõeslegais postas para a formação e atuação dopsicólogo escolar, mas ressaltamos como pontode nosso estudo a formação para uma educa-ção comprometida com a inclusão, especifica-mente quando tal processo se refere às pessoascom deficiência.

Muito se tem discutido sobre a matrícula doaluno com deficiência no ensino regular. AConstituição Federal de 1988 e a Lei de Dire-trizes de Bases da Educação Nacional, Lei n.9.394, de 20 de dezembro de 1996, recomen-dam que a educação de crianças com deficiên-cia seja realizada, preferencialmente, na rederegular de ensino e, conseqüentemente, que taldiscussão seja levada para a formação dos pro-fissionais que irão trabalhar com este alunado.

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A atual LDB traz em seu artigo 59, incisoIII, ao tratar especificamente sobre a forma-ção do professor, que “os sistemas de ensinoassegurarão professores com especializaçãoadequada em nível médio ou superior, para aten-dimento especializado, bem como professoresdo ensino regular capacitados para a integra-ção desses educandos nas classes comuns”.Nesse sentido, devemos ressaltar a importân-cia de uma formação mais ampla, que favore-ça o reconhecimento das especificidades decada aluno, e ao mesmo tempo contemple acoletividade presente na sala de aula.

No que se refere à formação tanto do pro-fessor quanto do psicólogo, em 27 de dezem-bro de 1994, segundo Marques e Marques(2004), o então Ministro da Educação e doDesporto, Murilo de Avellar Hingel, baixou aPortaria n° 1.793, que recomenda a inclusãode disciplina específica e conteúdos sobre osportadores de necessidades especiais em cur-sos de terceiro grau, prioritariamente nos Cur-sos de Pedagogia, Psicologia e nas demaislicenciaturas, tornando estes profissionais ca-pacitados para atuar junto a esses educandose suas escolas.

Tais determinações causam polêmica entreos profissionais da educação, por estes teremassimilado uma concepção equivocada sobrecomo atender os alunos com deficiência. Tal-vez resida nesse fato o grande impasse da/naformação dos profissionais da educação, umavez que esta questão não implica somente naaquisição do domínio de técnicas e regras, sen-do essencial que eles criem uma perspectivacrítica em relação à escola, permitindo uma atu-ação para além do contexto da sala de aula.

A formação dos psicólogos deve levar emconsideração a diversidade cultural, não se res-tringindo à cultura dominante. Pressupondo a in-clusão como a possibilidade dada aos alunos dedesenvolver plenamente suas potencialidades,entende-se que os psicólogos devem contemplare ampliar a visão sociocultural dos alunos, dan-do-lhes oportunidade de vivenciar experiênciasmultissociais, de acordo com uma concepção queaceite a diversidade, gerando na escola um es-paço onde todos possam aprender uns com os

outros e viver a cidadania. Assim, o desejo deaprender deve superar o currículo proposto, res-peitando a cultura de cada aluno.

Não se trata de formar um psicólogo parasuprir as necessidades clínicas e terapêuticasdos alunos, mas para auxiliá-los na compreen-são de seu desenvolvimento e de sua aprendi-zagem, visando eliminar as barreiras própriasde suas relações na escola.

Conforme Almeida (2001, p. 65):... quanto à formação de professores para a in-clusão escolar, entendemos que inicialmente sefaz necessário desconstruir algumas concep-ções, tais como a idéia de que a escola inclusivarequer muito treinamento e só é possível con-cretizá-la com experts ou com especialistas emeducação especial; a idéia de que só turmas ho-mogêneas de alunos garantem o desenvolvimen-to de um bom trabalho, como se todos os alunosassimilassem da mesma forma e numa mesmaproporção o que lhes foi repassado; e finalmen-te, a idéia de que o domínio da teoria precede aprática (visão precedente de formação) como sea formação a priori, sem conhecer o aluno con-creto e real, assegurasse ao professor facilida-des para o trabalho.

As atitudes de resistência são respostas deinsegurança diante da exigência de mudanças,da necessidade de substituir o conhecido e se-guro pelo novo e desconhecido. Desta forma,para que se efetive de fato a inclusão é precisomais que garantia de vagas impostas por lei,sendo necessário que a escola reveja suas con-cepções, reflita e reestruture sua prática peda-gógica e sua organização.

Ao contrário do paradigma da inclusão, onascimento da psicologia escolar teve comoobjeto de estudo os problemas de aprendiza-gem, transformando o ambiente de trabalho dopsicólogo, de acordo com Kupfer (1997, p. 52),em “uma sala de atendimento, um espaço emque se podia aplicar testes”, constituindo-se,portanto, num modelo clínico. A forte influên-cia de uma visão médico-hospitalar deixou raí-zes profundas na formação dos psicólogos e namaneira de compreender a atuação destes noprocesso educacional.

Esta visão imprimiu na ação dos psicólogosuma linha nitidamente clínica, norteada, sobre-

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tudo, por atuações diagnósticas e curativas, nasquais predominam um atendimento psicotera-pêutico individualizado. O trabalho desenvolvi-do pelo psicólogo escolar centra-se no aluno,ficando em segundo plano a atuação junto àescola, aos professores e aos pais, já que ele seisenta do processo de ensino-aprendizagem naescola e na política pedagógica adotada, enfo-cando apenas, as deficiências e os possíveisatrasos cognitivos dos alunos. Observa-se, en-tão, a necessidade de reconstrução da identi-dade do psicólogo no contexto educacional, apartir da revisão das suas concepções e práti-cas profissionais, de modo que elas possam darconta da complexidade da realidade.

Nesse sentido, a psicologia é historicamen-te responsável, tanto no saber como na prática,pelas produções excludentes de concepçõesnormalizadoras, que desestabilizam os divergen-tes das curvas normais. São inúmeras as influ-ências geradas pelas idéias psicológicas nosprocessos de naturalização da separação dasdiferenças, na sua administração institucional,na criação dos grupos segregados e na produ-ção dos instrumentos técnicos e concepções quefundamentam a sua seleção e apartação. Háuma cumplicidade da psicologia com os proje-tos eficientizadores, de racionalização da Edu-cação, que somente encontram seu descansona produção da ordem, da disciplina estéril e daserialização dos sujeitos.

Ao se restringir o trabalho do psicólogo nasescolas à elaboração de diagnósticos, fortale-ce-se uma atuação avaliativa do desempenhoda criança, de forma a acentuar uma imagemreducionista do aluno, valorizando a avaliaçãopsicométrica, para a qual o aluno-problema éaquele que foge à média, que não é capaz deaprender e que está fora da norma estabeleci-da pelo rendimento escolar, valores, atitudes eexpectativa daqueles que se constituem comoa classe dominante. Nossa proposta consistena ampliação da concepção de queixa escolarque focalize não só a criança, mas também iden-tifique os fatores intra e extra-escolares asso-ciados a estas queixas, tornando possível umaintervenção mais adequada às necessidades daescola, dos professores e dos alunos. Destaca-

se ainda a importância de uma reformulaçãocrítica do papel do psicólogo escolar, enquantouma especialidade profissional que pode auxili-ar as escolas no equacionamento das suas difi-culdades.

Objetivo e metodologia

Considerando como fundamental o papel dopsicólogo na constituição desta nova práticaeducacional, buscou-se desvelar os sentidos dotermo inclusão nos Cursos de Psicologia dasInstituições Federais de Ensino Superior deMinas Gerais (IFES Mineiras).

Na análise desses discursos considerou-seo tratamento dado à questão da deficiência, porserem mais visíveis os processos de exclusão emarginalização na escolaridade das pessoascom deficiência do que de outras categoriashistoricamente excluídas.

Como referência teórica para a análise pro-posta utilizou-se o trabalho de Orlandi (1993,1996), que se orienta pela Escola Francesa deAnálise de Discurso (AD). Tendo iniciado nadécada de 1970, com Michel Pêcheux, a ADsitua-se, nesta perspectiva, como uma discipli-na de entremeio, no domínio de três campos deconhecimento: a Lingüística, o Marxismo e aPsicanálise, adquirindo seu sentido pleno aoconceber a própria língua dentro de um proces-so histórico-social que coloca o sujeito e o sen-tido como partes desse processo. O discurso,então, é a conjugação necessária da língua coma história, produzindo a impressão da realidade;e essa noção vai tornar possível na análise dalinguagem, independente do seu domínio, as re-flexões sobre o sujeito e a situação em que eleestá inserido, sendo o discurso uma noção fun-dadora.

Assim, de acordo com Orlandi (1996, p. 56),“o objetivo da AD é compreender como um tex-to funciona, como ele produz sentidos, sendoele concebido enquanto objeto lingüístico-histó-rico”. Dessa maneira, compreender, para a au-tora (1993, 1996), é explicitar o modo como odiscurso produz sentidos, ou seja, considerar ofuncionamento do discurso na produção de sen-

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tidos, ressaltando o mecanismo ideológico queo sustenta. O caminho para a compreensão dotexto é relacioná-lo com os diferentes proces-sos de significação que nele ocorrem, estandoestes em função da historicidade, ou seja, dahistória do sujeito e do sentido.

Além disso, Orlandi (1993, 1996) afirma quea heterogeneidade do discurso é caracterizadapela dispersão dos textos e do sujeito, este afe-tado pela ideologia. O texto, atravessado pordiferentes posições do sujeito, corresponde avárias formações discursivas, que se caracteri-zam pelas diferentes relações estabelecidas coma ideologia.

Conforme Orlandi (1993, p. 58), “a forma-ção discursiva se define como aquilo que numaformação ideológica dada (isto é, a partir deuma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que pode e o quedeve ser dito”. Já as formações ideológicas sereferem ao conjunto de atitudes e representa-ções das posições de classes em conflito umascom as outras. Neste sentido, cumpre ressaltarque o sujeito se apropria da linguagem no inte-rior de um movimento social, no qual está refle-tida sua interpelação feita pela ideologia. Comoconseqüência, uma formação discursiva divideo espaço discursivo com outras formações dis-cursivas, numa constante interpenetração desentidos oriundos de formações ideológicas di-ferentes. Ela representa, pois, o lugar de cons-tituição do sentido e da identificação do sujeito.Nela o sujeito adquire identidade e o sentidoadquire unidade.

O procedimento adotado foi o de compre-ender tudo que compõe o corpus discursivo,constituído das produções acadêmicas (disser-tações) sobre inclusão dos programas de mes-trado em psicologia das IFES Mineiras; da gradecurricular dos cursos de psicologia destas insti-tuições, com a(s) respectiva(s) ementa(s)relacionada(s) à(s) temática(s); e de uma en-trevista realizada com três alunos(as) do últimoano, o(a) professor(a) responsável pela área daEducação Especial, e o(a) coordenador(a) des-tes cursos.

A pesquisa realizou-se no período corres-pondente ao segundo semestre letivo do ano de

2003 nas IFES que na época ofereciam o Cur-so de Psicologia. Estas foram a UniversidadeFederal de Belo Horizonte (UFMG), Universi-dade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universi-dade Federal de São João Del Rei (UFSJ) eUniversidade Federal de Uberlândia (UFU).Dentre estas somente a UFMG tinha Mestra-do em Psicologia com dissertações já defendi-das. Os sujeitos entrevistados foram referenci-ados por pseudônimos a fim de preservar suaidentidade.

Análise dos currículos

Em todas as instituições investigadas, a gra-de curricular do curso de psicologia apresenta-va disciplinas relacionadas ao processo deinclusão de pessoas com deficiência. Porém, adisciplina Psicologia do Excepcional era com-ponente comum das grades curriculares pes-quisadas, variando somente no seu critério deoferta, sendo de caráter obrigatório em trêscursos e optativa em outro.

O Curso de Psicologia da UFJF tinha dura-ção de cinco anos ou dez períodos. Ele ofereciaduas terminalidades: Formação do Psicólogo eBacharelado. As áreas de atuação eram as ins-tituições privadas e públicas, com a Psicologiado Trabalho; as escolas do 1º grau (sic), lidandocom problemas de aprendizagem; e a PsicologiaClínica e Hospitalar em consultórios, ambulató-rios e hospitais gerais e psiquiátricos.

A disciplina Psicologia do Excepcional apa-receu em caráter obrigatório e, de acordo comsua ementa, trabalhava com “a classificação eetiologia dos deficientes mentais. Técnicas deavaliação da deficiência mental em crianças.Psicologia do gênio: técnicas de avaliação. Ti-pos de deficiências auditivas e visuais. Psicolo-gia da paralisia cerebral e DCM (DisfunçãoCerebral Mínima). Psicologia dos acidentes fí-sicos. Técnicas de exame e ação do psicólogona reabilitação”. Nas entrevistas foram citadasoutras disciplinas que também trabalhavam coma questão da deficiência: Psicologia Escolar eProblemas de Aprendizagem, Tópicos Especi-ais em Psicologia Escolar I, Tópicos Especiais

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em Psicologia Escolar II e Tópicos Especiaisem Psicologia do Desenvolvimento I, sendoessas duas últimas em caráter optativo.

O Curso de Psicologia da UFSJ tinha dura-ção de cinco anos ou dez períodos, quando in-tegral, e seis anos e meio ou treze períodos,quando noturno. O curso oferecia duas termi-nalidades: Formação do Psicólogo e Licencia-tura em Psicologia. As áreas de atuação erampsicologia organizacional em clínicas multipro-fissionais, hospitais, empresas, escolas, escolasespeciais, com participação em equipes que atu-am no âmbito da saúde, educação, trabalho,comunidade e demais locais onde o trabalho dopsicólogo seja utilizado.

Na UFSJ a disciplina Psicologia do Excep-cional era oferecida em caráter obrigatório as-sim como as disciplinas Psicopatologia Geral I,Técnicas de Entrevista Psicológica, PsicologiaSocial, e Escola I e II. Na ementa da disciplinaPsicologia do Excepcional constava do “con-ceito, classificação e etiologia dos vários tiposde excepcionalidade: abordagens terapêutico-educacionais possíveis”.

O Curso de Psicologia da UFMG tinha du-ração de cinco anos ou dez períodos, e ofereciatrês terminalidades: Licenciatura, Bachareladoe Formação do Psicólogo. Os campos de atua-ção profissional abrangiam consultórios e clíni-cas; postos de saúde e hospitais; centros dereabilitação; instituições de ensino e de pesqui-sa; empresas e organizações; agremiações es-portivas e comunitárias.

A grade curricular do curso da UFMG apre-sentava como disciplinas relacionadas à defici-ência: Psicologia Geral II, Psicopatologia GeralI, Psicofarmacologia, Laboratório de Brincar ePsicomotricidade. A ementa da disciplina Psi-cologia do Excepcional, oferecida em caráteropcional, referia-se à “definição, conceituaçãoe categorização nas diversas áreas e modos dosdesvios. Ajustamento pessoal e social do ex-cepcional e sua família: problemas”.

O Curso de Psicologia da UFU tinha dura-ção de cinco anos ou dez períodos, e ofereciatrês terminalidades: Licenciatura, Bachareladoe Formação do Psicólogo. As áreas de atuaçãoeram a Psicologia Clínica, Psicologia Educaci-

onal, Organizacional e Institucional, visando pro-mover a melhoria das relações humanas, quali-dade de vida em contextos diversos edesenvolvimento do homem nos seus aspectospsicossociais, além de formar professores epesquisadores em psicologia.

Neste curso a disciplina Psicologia do Ex-cepcional era oferecida em caráter obrigatório,e sua ementa tratava da “questão da excepcio-nalidade, nos modelos explicativos (médico eeducacional), aspectos históricos e sociocultu-rais e as principais definições e classificações– DM (deficiência mental), DV (deficiênciavisual), DF (deficiência física), DA (deficiên-cia auditiva) e Superdotações, abordando a eti-ologia, características principais e avaliaçãoeducacional e psicológica da excepcionalidade.O estudante deverá conhecer e discutir os pro-gramas institucionais dentro da área de Educa-ção Especial, assim como as perspectivas dapesquisa e atuação psicológica nesta área”. Asdisciplinas Psicopatologia Geral I e II, Proces-sos Cognitivos, Psicologia Escolar e Problemasde Aprendizagem, e Estudos Avançados emPsicologia da Educação também foram citadascomo as que trabalham a questão da deficiên-cia, sendo que a última em caráter optativo.

Observou-se que as disciplinas buscavamclassificar as deficiências, fornecer técnicas deavaliação psicométrica e estudar as formas dereabilitação. Não se encontrou uma disciplinaque tratasse, especificamente, da inclusão.Destaca-se, então, a manifestação de uma for-te influência dos moldes médicos do estudo dadeficiência, que vai desde a nomenclatura dadisciplina até o seu programa, o qual em ne-nhum momento discute o tratamento históricodado à deficiência e como esta tem-se inseridono paradigma de inclusão, com a abordagemda questão da diversidade humana.

Como já mencionado anteriormente, noscursos de psicologia, a disciplina que diretamenterelacionava-se com a Educação Especial era aPsicologia do Excepcional apesar do termo “ex-cepcional” ter sido extinto desde 1986, quandoo Centro Nacional de Educação Especial edi-tou a Portaria CENESP/MEC n°. 69, na qualapareceu, pela primeira vez, a expressão “edu-

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cando com necessidades especiais” em substi-tuição à expressão “aluno excepcional”, que daípor diante foi praticamente abolida dos textosoficiais (MAZZOTTA, 1996).

Pela análise das entrevistas foi possível per-ceber que desafios existem, já que apenas doisentrevistados apontaram o equívoco com rela-ção à nomenclatura da disciplina:

Professora Leandra: Então, em tudo que eu voufalar, de um jeito ou de outro, eu acabo tocan-do nessa questão, né? Mas, oficialmente é aPsicologia do Excepcional, nós estamos acei-tando sugestões pra outros nomes, porque essenome é horrível, démodé, ultrapassado.

Coordenador Maurício: É, eu poderia dizer queé... especificamente, vamos dizer assim, restri-tamente, é a disciplina ainda com esse nometradicional de Psicologia do Excepcional, né?

Alguns recortes das falas dos entrevistadossobre a situação em que se encontra a temáti-ca da inclusão, dentro do curso, mostra umamanifestação de insatisfação que se refere, prin-cipalmente, à dificuldade das demais discipli-nas em tratar o assunto por resistência dosprofessores, seja por não compartilharem des-te ponto de vista, seja por se restringirem aoestudo de sua área específica de trabalho, nãoconsiderando ser este um assunto que atinge osistema educacional como um todo:

Coordenador Marcos: É... eu não pensei muitosobre isso, esse assunto. A gente não trabalhaisso muito bem porque a gente, não é assuntoque é muito trabalhado, a gente tem dificulda-de até num nível é... aceitando colegas que sãode outra linha de... de... de aceitar pessoas dife-rentes, necessariamente isso é um ponto forteno momento.

Professora Jéssica: Pra gente falar que existeuma preocupação da instituição é porque ainstituição, entre outras coisas, se preocupa emtá é... formando pessoas assim, né? Então, eu,objetivamente, não percebo isso. Agora, em ter-mos práticos, tipo em relação aos alunos, nãosó a formação específica, também não percebogrande movimento nessa área.

Aluna Bruna: Olha, na verdade, esse tipo de...essa discussão ela é muito limitada, né? Eu, eu

acho, né? Que não é uma coisa que, que você táatuando, de repente você vai trabalhar com isso,vê formas de tá integrando as pessoas. É... euacho que fica meio falho, que é uma disciplinaque você estuda isso e...não tem, parece quenão tem aplicação nenhuma aquilo que vocêtá estudando. Cê viu de forma limitada e de-pois, não sei.

Ao contrário do enfoque adotado por estapesquisa, os Cursos de Psicologia das IFESMineiras ainda utilizavam currículos homoge-neizadores que não permitiam aos estudantes,aos professores e às instituições promoveremum debate crítico acerca da diversidade huma-na, permanecendo a lógica econômica. A res-trição do tema inclusão em uma única disciplina– Psicologia do Excepcional – mantinha a for-mação dos psicólogos repousada em tradiçõesde valorização do sujeito padrão, reconhecen-do a estratificação da sociedade através da clas-sificação dos indivíduos, desde os “mais aptos”até os “incapazes”.

De acordo com Macedo (1999, p. 57),... as disciplinas curriculares, como já aborda-mos, não representam necessariamente camposde saber cientificamente estabelecidos. São es-paços curriculares criados com critérios especí-ficos, alguns deles reproduzem esses camposde saber cientificamente estabelecidos, outrosbuscam tematizar questões julgadas relevantesem um dado momento histórico.

Como as discussões acerca da diferença eda diversidade, em geral, não perpassavam todaa grade curricular dos cursos, silenciava-se apossibilidade de uma formação crítica dos alu-nos em relação aos movimentos histórico-soci-ais, principalmente no que diz respeito aotratamento dado à deficiência. De acordo comOrlandi (1995), o silenciamento significa “pôrem silêncio”, caracterizando processos de pro-dução de sentidos que são silenciados: “o fun-cionamento do silêncio atesta o movimento dodiscurso que se faz na contradição entre o ‘um’e o ‘múltiplo’, o mesmo e o diferente, entre pa-ráfrase e polissemia” (p. 17). Na pesquisa essemovimento fica ainda mais claro quando se con-sideram os relatos de que, muitas vezes, os pro-fessores que lecionavam a disciplina Psicologia

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do Excepcional não tinham comprometimentocom essas discussões, ou de que, no caso daUFMG, a disciplina não era obrigatória.

Aluna Denise: Acho que o meu primeiro conta-to assim realmente próximo com deficiente foinesse estágio que eu fiz, e o primeiro contatonão foi bom, foi horrível, porque eu não sabiamuito bem o que era o trabalho e eu tava achoque no quarto período de psicologia, é mais oumenos, quarto ou quinto e eu não tinha feito adisciplina de Psicologia do Excepcional, en-tão foi horrível porque eu sabia que eu ia tra-balhar com autismo, mas eu não tinha muitaidéia do que era autismo.

Professora Jéssica: Eu acho sério, eu acho quea maior... prova de que isso não acontece, queninguém nunca me perguntou o que eu ia leci-onar em Psicologia do Excepcional. Eu achoque seria a preocupação básica de uma insti-tuição, ou de um... de um conjunto que achaisso importante.

Aluna Sara: E eu acho que é muito mais fácil cêpegar a teoria e, as duas coisas tão juntas tam-bém, não tem como separar, eu acho que a gen-te ir a campo também, sem ter, sem ter algumateoria na cabeça, a gente fica meio perdido, euvejo isso pelos meus estágios iniciais é... eu fi-cava meio perdida, eu pensava: Gente, o quêque a psicologia tá fazendo aqui? No iníciotambém eu achava que psicologia era só umacoisa clínica, então eu chegava e falava: Uaigente, o que eu tô fazendo aqui, não é nada depsicologia, é senso comum.

Uma das justificativas para esse silenciamen-to, em direção a uma discussão sobre a diversi-dade e o paradigma de inclusão, pode ser o medodas diferenças e o receio do desconhecido.

Coordenador Marcos: Acho que o primeiro pas-so da inclusão é o nível psicológico. É a pessoater uma coisa, a gente pode, a gente pode ten-tar forçar uma inclusão. Mas é complicadoquando as pessoas têm preconceito, quandoisso, a pessoa tá se sentindo ameaçada, a pes-soa tá se sentindo desconfortável com a pre-sença das diferenças das outras pessoas.

Como mostra Blanco (2002, n. p.):... as mudanças são difíceis, gostamos que onovo que chega se encaixe mais ou menos naestrutura na qual temos organizada nossa visão

de mundo. Portanto, acredito que as atitudes, àsvezes negativas, estão ligadas ao medo do des-conhecido. Temos que respeitar esses medos ecompreendê-los, e devemos levá-los em consi-deração e partir dali para construir o processo.

Dentro desse contexto, os cursos de psico-logia das IFES Mineiras funcionavam como uminstrumento de reprodução do status quo e deatendimento às necessidades do sistema eco-nômico neoliberal.

Aluna Érica: Minha concepção? Eu, eu tenhodúvidas a respeito da inclusão. Dúvidas seve-ras, inclusive, porque o que a gente trabalhou,o tempo todo, foi sobre a inclusão. Só que émuito complicado pro deficiente, pra ele poderacompanhar a pessoa dita normal, assim, né?Então, eu acho que isso pode acontecer no fu-turo, mas agora eu acho muito difícil.

Os programas dos cursos não objetivavamum campo de atuação autônomo, através deestudos críticos que envolvessem a análise dospressupostos ideológicos presentes na atualida-de, e a reflexão sobre os movimentos sócio-históricos anteriores.

Coordenador Marcos: A gente pode criar es-paços às... às pessoas. Mas isso é complicadotambém, porque a gente tem uma cultura queos valores das pessoas são muito, são muitovinculados à sua capacidade de ganhar di-nheiro e facilitar como ganhar dinheiro àsoutras pessoas.

Marques (2000, p. 38) esclarece essa idéiaao afirmar que: “associada à concepção funci-onalista de sociedade está a idéia de corpo pro-dutivo. Um corpo deficiente é considerado umcorpo improdutivo, sobre o qual as relações depoder têm alcance imediato”.

Essa ideologia de “corpo improdutivo” queapareceu nas entrevistas acaba por colocar,muitas vezes, a pessoa com deficiência comoum ser digno de caridade, explicitando porquea psicologia assume muitas vezes esse papelcaritativo.

Aluna Amanda: a gente fazia um trabalho vo-luntário lá, que era só com crianças, então eraum trabalho, assim, mais de acolher, mais ma-ternal, não era de cidadania, de tá colocandoo deficiente e inserindo na sociedade de novo,

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até porque eram crianças de zero, né? (...) en-tão o núcleo é um núcleo voluntário aqui (...)De uma entidade religiosa que dá medicamen-tos, que tem outros profissionais também, as-sim, exercendo essa função.

Marques (2000, p. 38) explica esse movi-mento ao afirmar:

... os portadores de necessidades especiais, eem particular os portadores de deficiência, cons-tituem uma categoria historicamente discrimina-da. Vítimas da rejeição ou da compaixão social,tais pessoas estiveram sempre à margem do con-vívio com os cidadãos considerados normais.Tal fato não pode ser desvinculado da concep-ção vigente de sociedade. Ao ser concebidacomo um corpo estruturado com órgãos e ondecada órgão tem uma função social muito precisa,a sociedade estabelece as funções de cada umdos seus membros e determina quem deve equem não deve desempenhar os respectivospapéis sociais.

Para Orlandi (2002), a linguagem vai seconstituindo entre dois processos: a paráfrasee a polissemia: “os processos parafrásticos sãoaqueles pelos quais em todo dizer há semprealgo que se mantém, isto é, o dizível, a memó-ria” (p.36); já “na polissemia, o que temos é odeslocamento, ruptura de processo de signifi-cação” (p.36). Esse movimento parafrásticoocorre no discurso da Professora Leandra quan-do, ao falar da sua concepção de deficiência,faz uma citação de Vitor da Fonseca, porém,logo em seguida se contradiz, mantendo o sen-tido de restrição da deficiência à limitação.

Professora Leandra: A deficiência, plagiandoVitor da Fonseca, é uma das muitas formas doser, do ser humano, ser humano, né? Então, adeficiência é uma condição oriunda de umacaracterística deficitária, né? Que provoca anecessidade de um recurso adicional, recursoesse que, que ele não é conseguido de uma for-ma natural.

Os sentidos produzidos nas IFES Mineirasestão calcados na paráfrase uma vez que estasreproduzem os discursos de exclusão presen-tes na sociedade. Não ocorre um rompimentoa nível institucional que caracterize uma polis-semia, ou quando isto ocorre é através de pe-quenos movimentos dentro das Universidades,

fazendo com que o discurso em direção à di-versidade fique restrito a algumas pessoas.

Professora Jéssica: Às vezes, um ou outro pro-fissional que se envolve nisso, né? Me questio-no muito nesse sentido, porque eu acho quenão existe uma transformação, principalmentequando a gente pensa em inclusão, num con-texto mais amplo: que sociedade é essa que agente vai transformar, se a gente não se preo-cupa em começar a transformar aqui?

Análise das dissertações

Procedeu-se também à análise de disserta-ções do Programa de Pós-Graduação em Psi-cologia da UFMG, contemplando-se trabalhosjá finalizados e entregues à Instituição, e queestivessem voltados para a temática da defici-ência, com o objetivo de analisar o sentido dodiscurso neles explicitado. Ressalta-se que asIFES Mineiras não oferecem o curso de Dou-torado em Psicologia, sendo que na época dapesquisa as únicas faculdades que possuíamMestrado nesta área eram a Universidade Fe-deral de Uberlândia, a Universidade Federal deMinas Gerais, e a UFU, sendo que esta, por tercomeçado o curso em 2003, não possuía ne-nhuma dissertação concluída.

O Mestrado em Psicologia da UFMG foi cri-ado em 1988 e, tendo admitido a sua primeiraturma em março de 1989, objetivava estudar ascondutas sociais dos indivíduos e os fatores queas influenciam, e analisar situações concretas daatualidade à luz da teoria psicanalítica. Divididoem duas áreas de concentração: Psicologia So-cial e Estudos Psicanalíticos, o curso possuía novelinhas de pesquisa: construção da identidade nainteração social; processos grupais nas institui-ções; processos coletivos e comunitários; pro-cessos psicossociais e saúde; cultura e subjetivi-dade; aspectos psicolingüísticos e psicossociaisda aquisição da linguagem oral e escrita; históriada psicologia e contexto sócio-cultural; concei-tos fundamentais em psicanálise; e investigaçõesclínicas em psicanálise.

Foram encontradas neste Mestrado cincodissertações sobre a temática em questão, de-

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fendidas entre 1996 e 2001, sendo que apenasuma discute o processo de inclusão.

Em 20 de novembro de 1996, Juliana Gonti-jo Aun defendeu a dissertação intitulada “Oprocesso de ‘co-construção’ como um con-texto de autonomia: uma abordagem às po-líticas de assistência às pessoas portadorasde deficiência”. Sua pesquisa, através de umametodologia participante, buscou investigar ummétodo de “co-construção” e estudar possibili-dades de sua utilização na elaboração de umconvênio entre um órgão do governo e entida-des particulares, que prestavam assistência apessoas portadoras de deficiência.

Envolvendo, no período de maio de 1994 ajunho de 1995, os membros do Departamentode apoio ao Portador de Deficiência da Secre-taria Municipal de Desenvolvimento Social daPrefeitura de Belo Horizonte, usuários, técni-cos e administradores de vinte entidades deassistência e/ou atendimento aos portadores dedeficiência conveniadas, a pesquisadora, Julia-na Aun (1996) chegou à conclusão de que sedeve procurar “encontrar o que existe em co-mum em todas as crianças, no ato de aprendera ler e escrever” (p. 103). Enfatiza-se o fato daautora conceituar a deficiência como:

...o termo portadoras de deficiência refere-seàquelas pessoas que são socialmente definidascomo necessitando de cuidados especiais, in-clusive de políticas públicas especiais, para atin-girem seu desenvolvimento pleno. Estas pessoasassim definidas têm sido as com deficiência físi-ca, visual, auditiva e mental que englobam osportadores de deficiência intelectual, seja de grauprofundo ou leve, de origem definida como or-gânica, psíquica ou social. (p. 45).

Em sua dissertação de mestrado, intitulada“Representações das instituições especiali-zadas sobre a profissionalização dos porta-dores de deficiência mental”, defendida nodia 01 de novembro de 1996, Maria de FátimaPio Cassemiro argumentou que, ao se conside-rarem:

... os indivíduos portadores de deficiência men-tal a partir da perspectiva da diferença, ou seja,que não existe uma ruptura entre estes indivídu-os e aqueles considerados normais, evidencia-

se que as chamadas ‘deficiências’ nada mais sãodo que reflexos dos valores sociais, fazendo parteportanto das relações e não propriamente de umdeterminado indivíduo. (p. 161).

O objetivo do trabalho foi pesquisar sobre aprofissionalização de pessoas com deficiênciamental dentro das instituições especializadas.Para isso, a autora procurou conhecer como asinstituições conceituavam a deficiência mentale, conseqüentemente, quais as possibilidades dedesenvolvimento destes indivíduos na percep-ção institucional, utilizando como recurso me-todológico a Análise de Discurso.

A autora concluiu que a representação do-minante que as instituições tinham dos indivídu-os portadores de deficiência mental estabeleci-am-se de acordo com cada grupo. Para o grupode não profissionalização, eles eram indivíduosdeficientes, doentes, incapazes; para os depré-profissionalização eram desadaptados, pos-suíam problemas emocionais e cognitivos, e ti-nham capacidade para aprender; e para o gru-po de profissionalização eles eram portadoresde deficiência, podendo desenvolver qualqueroutro aspecto que não estivesse relacionado como conceito de deficiente.

Objetivando estudar o conceito de liberdadedentro da obra de Helena Antipoff, LucianaSantoro Campanário defendeu, em 17 de de-zembro de 1999, a dissertação intitulada “Oestado próprio de todo ser vivo: a liberdadeem Helena Antipoff”.

A autora procurou mostrar como HelenaAntipoff trabalhou o conceito de liberdade re-lacionado-o a vários aspectos. Um desses as-pectos foi a liberdade como ambiente, quandoa partir da criação da Fazendo do Rosário elapercebeu que as crianças tinham um desempe-nho melhor em um ambiente de liberdade e as-sistência: “fica subentendida no texto tambéma idéia de que a natureza, os ‘espaços abertos’,propiciam além de liberdade, regras, normas elimites” (p. 98).

Conclui, então, seu trabalho dizendo que a:... liberdade é o excepcional e próprio, inato, doser humano, sendo assim a liberdade o que tor-na a ‘pessoa humana’, termo também abstrato edemocraticamente destituído de personalidade,

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em um ser totalmente individual e particular, úni-co e inigualável, ao mesmo tempo em que a liber-dade é também o que todos possuímos, e o quenos ‘irmana’, o que nos garante direitos pesso-ais iguais inalienáveis. (p.190).

Érika Lourenço defendeu a dissertação inti-tulada “A Psicologia da Educação na obrade Helena Antipoff: uma contribuição paraa historiografia da Psicologia”, em 07 deagosto de 2001. Neste seu trabalho ela utilizoua abordagem biográfica proposta por Sokal paraa historiografia da psicologia e, com objetivo deinvestigar as propostas de Helena Antipoff, bus-cou identificar aspectos de sua originalidade emrelação a outras propostas desenvolvidas naárea, na mesma época. A autora deixou claroque não pretendia fazer nenhuma análise daobra, no sentido de contextualizá-la dentro dotratamento histórico dado à deficiência.

Durante toda a sua pesquisa, Lourenço con-siderou o trabalho de Helena Antipoff atual edefendeu a sua continuidade ainda hoje, comose pode observar no seguinte trecho: “na vastaobra escrita de Helena Antipoff sobre a educa-ção do excepcional não há referência direta àpsicologia da educação. O que, pode-se dizer,não se faz necessário, pois a psicologia da edu-cação emerge das próprias propostas práticasque apresenta para educar os excepcionais”(p.148).

Das dissertações investigadas, a única quecontextualizou o tratamento histórico dado àdeficiência, abordando os paradigmas de exclu-são, integração e inclusão, foi a intitulada “Se-gregação, Integração, Inclusão: trajetóriasescolares do ´Aluno Especial´”, de DilmaFróes Vieira, aprovada em 20 de outubro de2000.

A autora objetivou construir uma reflexãosobre o processo de escolarização de criançascom deficiências físicas, sensoriais, cognitivase sociais com a intenção de “trazer um outro‘olhar’ sobre as dificuldades encontradas naproposta de integração” (p.07). Utilizando umaabordagem qualitativa, baseada no referencialteórico da psicossociologia, Dilma Vieira (2000)dedicou uma parte de seu trabalho a um estudode caso envolvendo cinco alunos encaminha-

dos para o ensino especial, numa escola espe-cializada de Belo Horizonte.

Percebeu-se que a autora enfatizou o para-digma da inclusão, mesmo tendo utilizado o ter-mo integração:

Se coube à escola o papel de transformar os alu-nos em ‘incapazes’, agrupando-os em classesou escolas especiais, fica agora o desafio de queela desenvolva maneiras de ensinar que estejamadequadas à heterogeneidade dos alunos. E,para isso, faz-se necessário que a escola se tor-ne aberta ao debate sobre a Integração Escolardos ‘alunos especiais’. (p. 65).

Análise das entrevistas

Percebeu-se a existência de uma confusãoconceitual sobre a deficiência, sendo incluídasdentro desta categoria as altas habilidades, ascondutas típicas, a hiperatividade e até a indisci-plina. Porém, a Política Nacional de EducaçãoEspecial (1994, p.13) definiu que os “portadoresde necessidades educativas especiais classifi-cam-se em: portadores de deficiência (mental,visual, auditiva, física, múltipla), portadores decondutas típicas (problemas de conduta) e por-tadores de altas habilidades (superdotados)”.

Professor Fernando, ao ser questionado sobrequais disciplinas leciona no curso que envol-vem a questão da deficiência: É PsicopatologiaGeral I, né? Que trata dos transtornos mentais,né? Infância e adolescência, que é mais especi-ficamente com o retardo, com o retardo mentale transtornos globais do desenvolvimento, comoo caso do autismo, né? A gente também trata aquestão das deficiências também.

Aluno Carlos: Uns dos primeiros casos que eupeguei foi uma criança que tinha é... hiperati-vidade, transtornos de hiperatividade mesmo,a gente, juntamente com a pedagoga e as coor-denadoras, nós fazíamos como oficina, né?

Aluno Alex: Doenças mentais mesmo? Entãotem psicopatologia, tem psicofarmacologia, é...bom... Ah, a minha mãe já teve... já teve proble-mas assim com esquizofrenia, sim. Tem, na ver-dade, ela toma remédio, tal. E a minha vó temAlzheimer.

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Nos discursos analisados apareceu, freqüen-temente, a idéia da escola enquanto uma insti-tuição seletiva, que tem como função classificare selecionar os sujeitos:

Coordenadora Beatriz: Eu acho que de um modogeral, né? A gente deve facilitar, né? O máximoque a gente puder para que o deficiente possater, é, uma... uma vida mais normal possível,né?

Aluna Paula, quando questionada sobre quaisdisciplinas cursou que envolvem a questão dadeficiência: A gente teve, mais no início, Pro-blemas de Aprendizagem, a disciplina Proble-mas de Aprendizagem, que era PEPA, quetratava mais da questão disciplinar da escola.

Aluna Taís: Então assim, o processo era desco-brir, assim, o quê que reforçava, o quê que eraum reforço, pra aqueles, pra aquelas pessoaspra tá usando isso. Então trabalhava assim, é,comportamentos inadequados tinha punição,é reforço e punição basicamente. Então era praeliminar comportamentos inadequados.

Coerente com a idéia de que a escola é umainstituição seletiva, veio a crença de que é ne-cessário se esperar que a sociedade se tornemais inclusiva para que, posteriormente, come-ce-se a construir uma educação inclusiva.

Professor Fernando: Agora assim, concordo comtodo esse processo, de inclusão, né? Por exem-plo, você ter, é... salas especiais, as escolas tam-bém receberem essas crianças também, mas,pelo que eu vi na disciplina, né? Pelo contatocom os profissionais também, né? Que tem queter um preparo das escolas pra isso. Acho quetodo esse processo de inclusão é muito interes-sante, né? De, de, é... as crianças participaremdisso, com outras crianças também no proces-so de ensino e aprendizagem e tal, né? Mas euacho que nada adianta se, se as próprias esco-las, né? E os professores não forem capacita-dos e treinados pra isso.

Aluna Taís: Que a pessoa, é a questão dos pro-fessores, aí, trabalha muito com esse professorna escola, vamos supor, é a preparação da es-cola pra tá recebendo esse tipo de... de traba-lho, pra tá fazendo esse tipo de trabalho, né?(...) eu acho que a questão da preparação daescola, dos professores ainda não tá, por exem-plo, a gente teve palestra aqui de, com a direto-

ra da APAE e tudo e... ela falou que uma escolaaí que ela foi, que alunos dela estavam prepa-rados para entrar nessas escolas.

Aluna Paula: A inclusão hoje no Brasil, ela pre-cisa ser muito bem tratada, muito bem revista,assim, porque tem muito problema é... Mesmonesse sentido, é, coloca uma criança numa salaé... é, sem nenhum, preparo, uma professora é,que não tem preparo é, específico pra tratardaquilo. (...) Como, é... como deficiente, ela deveé, existir sim, mas deve haver um, um preparo,um programa mais concreto sobre inclusão, quenão existe, hoje em dia, assim, a, no, no, na mi-nha opinião.

Essas ideologias acabam construindo a de-finição de que as deficiências causam dificul-dades de aprendizagem ou defasagem nascrianças com relação ao currículo que lhes cor-responde à idade.

Coordenadora Sandra: Nós temos o (...) ondeintegra as, as crianças e jovens mais compro-metidos. São aqueles que não conseguem mui-to alfabetizar-se, então, eles ficam ou ficam operíodo todo lá ou então fica meio período lá eoutro meio período fica na escola formal, né?

Aluna Amanda: Eu costumo falar assim: umaanalogia pra vocês entenderem, se tem a idadecronológica, se tem a idade mental, se tem aidade do corpo e a idade da alma; às vezes, issoé um pouco mais atrasado, mas não significaque você não vai tá desenvolvendo, não vaitá... como é que eu posso falar para vocês en-tenderem? Não vai tá trabalhando isso, parapoder alcançar ou chegar mais ou menos pertodo que uma pessoa normal tenha.

Blanco (2002, n. p.) contrapõe essas idéiasà sua argumentação sobre os objetivos da es-cola, a qual:

... tem como importante finalidade promover, deforma intencional, o desenvolvimento de certascapacidades, a apropriação de certos conteúdosda cultura que são fundamentais para que aspessoas depois se tornem membros ativos des-sa cultura, o que se chama, no Brasil, Constru-ção da Cidadania. (...) A escola não é reprodutorado sistema social estabelecido. Obviamente aeducação escolar tem a missão de socializar asfuturas gerações para que se insiram na socie-dade, mas numa perspectiva de transformar a

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sociedade. (...) se continuarmos falando de difi-culdades de aprendizagem, estamos centrandoo foco na criança e a idéia é ver como modifica-mos o sistema educativo e a resposta educativapara daí acolher toda essa diversidade que te-mos nas salas de aula.

De acordo com Marques (2000), é possívelidentificar a existência de três formações ideo-lógicas no tratamento da diferença imposta peladeficiência. A formação discursiva que coloca osujeito com deficiência como “desviante”, tendocomo referencial a dicotomia normalidade x anor-malidade, constitui a formação discursiva da se-gregação, que se filia à formação ideológica daexclusão. A outra, que pode ser identificada comoa da integração, torna visível a “diferença”, ondesão valorizados os considerados capazes e man-tidos isolados os ditos incapazes. A formação dis-cursiva inclusiva, que faz parte da formaçãoideológica da inclusão, pressupõe pensar os su-jeitos na sua diversidade.

Alguns sujeitos se posicionam dentro de umaperspectiva histórica da deficiência, fazendouma diferenciação entre os conceitos de inte-gração e inclusão.

Professora Leandra: A diferença básica, a inte-gração você se preocupa, você parte do pres-suposto de que existe um modelo normal, ideal,né? Aonde a maioria das pessoas vive esse mo-delo e que o deficiente é alguém é desajustado,é... defeituoso, incapacitado, que deve ser cu-rado, reparado, reajustado pra, se não ficar“norma”, pelo menos se aproximar dessa nor-malidade. Então a integração, ela é uma cisãoentre o grupo nós somos normais e você que é odeficiente, então nós vamo, você pode vim, agente te aceita desde que você se adeque a nós.A inclusão não, a inclusão parte do pressupos-to que somos todos diferentes, diferenças parti-culares nisso ou naquilo, alguns vão ter essanecessidade, outros, outras necessidades, e que,na interação, pra gente viver bem, todo mundotem que fazer a sua parte, todo mundo tem queé... se transformar na interação com o outro.

Coordenadora Sandra: Bom, a inclusão, pra mim,é a possibilidade de lidar com a diversidade,lidar com o diferente, né? Então, incluir, né?Seria você trabalhar no dia-a-dia a possibili-dade de aceitar, compreender, né? As diferen-ças no dia-a-dia que não necessita é, isso nós

deveríamos fazer não necessariamente precisade ser com uma deficiência tão aparente, né?Nós temos a, a inclusão ela tem que ser feitadiariamente no nosso cotidiano, né? Porque odiferente tá sempre presente. Então, pra mim, ainclusão é isso, a, a possibilidade de você tra-balhar com um conjunto, né? Mas com o dife-rente, com a possibilidade de cada um seperceber, conhecer as suas diferenças, mas am-pliar, né?

Professora Jéssica: Eu acredito que a inclusãoé você criar condições para que todas as pes-soas tenham a possibilidade de ter atendimen-to à saúde, aprendizado, trabalho. Você criaras condições num contexto macro social. Issopra mim é inclusão. Em contrapartida existe ainclusão, termo burocrático, né? Que acho quea gente precisa diferenciar. Onde a gente vê,até em alguns casos, como a exigência de quealgo seja feito, às vezes as coisas partem daímesmo, de uma exigência, de obrigar que asadaptações sejam feitas a ferro e fogo. Mas, euacredito em inclusão num contexto mais amploe não só voltado ao portador de necessidadesespeciais, inclusão voltada pra qualquer po-pulação: é pra criança, é pro idoso, é pra mu-lher grávida, é pro trabalhador que se aposentaantes do tempo, onde você cria condição praque as pessoas encontrem uma realização, umasatisfação, um aprendizado, alcancem níveismais altos em todos os aspectos.

Por considerar normalidade como padrãoestabelecido pela sociedade, alguns sujeitosexpuseram uma posição de segregaçãoquando limitaram a possibilidade de realiza-ção de tarefas para a pessoa com deficiên-cia. Percebe-se que os discursos sobredeficiência estão calcados na dicotomia nor-mal x anormal, demarcando a existência defronteiras entre aqueles que se encontramdentro da média e os que estão fora desta.Junto a esta concepção forma-se o discursodo sujeito padrão, onde as pessoas com de-ficiência encontram-se fora deste padrãoestabelecido pela sociedade, ou seja, fogemà curva normal.

Coordenadora Sandra: Bom, um deficiente pramim seria aquele que apresente um déficit emalguma área, né? Aquele que apresente um dé-ficit, que pode ser tanto na área motora, ex-pressiva, intelectual, social ou afetiva. Então,

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pra mim, a deficiência seria uma pessoa queaprende de forma ou aprende e apreende osconhecimentos de forma diferenciada do ou-tro, aquele que não entra na curva normal deum desenvolvimento, como a maioria, né?

Coordenador Marcos: Eu não gosto da palavradeficiência... de... de uma perspectiva e todasas características e, é... acredito estar distribu-ído na população e sempre tem pessoas que...são mais no nível da norma, tem pessoas nessesextremos, de uma área na outra.

Professora Jéssica: Atualmente, minha concep-ção de deficiência é um, um mau ajustamento,um mau funcionamento que exija uma estimu-lação adicional, onde as coisas não aconte-cem num ritmo ou num momento esperado, nadaalém disso, tá?

Dentro deste discurso de normalidade justi-fica-se a existência de instituições especializa-das uma vez que as crianças com deficiêncianão seriam capazes de acompanhar o desen-volvimento das crianças sem deficiência.

Aluna Taís: Então, nessa visão, sim, mas, porexemplo, como não tem cura o trabalho eraassim, nas melhores, nas pequenas coisas daqualidade de vida dele, tá sabendo arrumar acama, escovar o dente, as chamadas AVD (ativi-dades da vida diária), né? Que a gente fazia, praeles tarem é... se tornando dentro do possível,independentes, pra ter essa ressocialização. (...)É claro que todo trabalho visava isso, no fun-do, no fundo era depois tá, a pessoa não iaficar ali pra sempre, era um período que elatinha pra ficar internada, na verdade eles fica-vam internados lá.

De acordo com Silva (2000, p. 83), “norma-lizar significa eleger – arbitrariamente – umaidentidade específica como o parâmetro emrelação ao qual as outras identidades são avali-adas e hierarquizadas”. Percebe-se assim, queo objetivo da psicologia aparece como o de nor-malizar a vida das pessoas com deficiência, atra-vés da busca do diagnóstico, do tratamento eda cura, e sendo a deficiência vista como algolimitante.

Aluna Roberta: E agora, eu trabalho com o pro-cesso de psicodiagnóstico, com crianças comSíndrome de Down.

Aluna Paula: Como uma pessoa que precisa de,de outra estratégia, mas que ela vai conseguirdo mesmo jeito que as outras crianças, mas issoprecisa de treino.

Aluna Taís: Porque assim, claro que, por exem-plo, nesse trabalho de habilidades sociais, etodo trabalho que era feito lá, era no sentidode que, tem cura, então tá melhorado a quali-dade de vida daquelas pessoas.

Evidencia-se, assim, que tais discursos es-tão inscritos na formação ideológica da exclu-são, marcando a existência do Outro, quepertence a um outro grupo, que possui uma ou-tra identidade vista como negativa, não ocor-rendo um movimento no sentido de entender adiversidade humana.

Outros sujeitos filiaram-se a uma posiçãointegracionista ao impor condições para que aspessoas com deficiência pudessem estar naescola regular, limitando as possibilidades deinserção na mesma para alguns casos.

Aluno Alex: Mas eu acho que é, que ocorremuito um... uma coisa meio forçada assim, euacho que, considerando como inclusão, vamosrelevar a criança que tem uma deficiência men-tal muito forte, ah, põe na sala com todos osoutros. Acho que isso é meio pra inglês ver, sabe,que é tapar o sol com a peneira e não, não...

Alguns sujeitos se colocaram num movimentoda posição integracionista para a da inclusão,pois embora situassem que uma escola inclusi-va deve oferecer condições para o aluno comdeficiência, admitiram a possibilidade do trata-mento diferenciado dos outros alunos, demons-trando ainda não ter rompido completamentecom uma posição integracionista.

Aluna Taís: Tinha até uma... como é que se diz,não é oficina, mas tinha uma... um trabalho quea gente fazia de habilidades sociais que até nofinal parou, que era sair com eles de ônibus,passeava, assim, com dois ou três, dependendodo número de estagiários, né? Pra fazer habili-dades sociais.

Percebeu-se também que, muitas vezes, oúnico fator apontado pelas pessoas para queocorra a inclusão é o que se refere à remoçãodas barreiras naturais ou arquitetônicas, ou seja,a falta de acessibilidade. As barreiras atitudi-

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nais, como o preconceito, foram deixadas delado.

Aluno Alex: Eu acho que tem uma estrutura le-gal pra isso. Claro que eu tô falando de quem táde fora e quem tá meio distante. Mas parece-meque tem uma estrutura boa assim, tipo os eleva-dores aqui, tem o sistema de biblioteca, enfim.

Coordenadora Beatriz: A queixa dele eu achoque era outra, falta de rampas, né? Falta deuma estrutura dessa coisa de tá lendo o materi-al pra ele, né? Tá ajudando ele, né? Devia teruma estrutura pra fazer isso.

Considerações finais

Os Cursos de Psicologia ainda estão calcadosna perspectiva da normalidade considerando oeducando padrão, uma vez que as temáticas dosujeito com deficiência, o sujeito na diversidade, oparadigma da inclusão ficam restritas a basica-mente uma disciplina e que nem sempre é obriga-tória. A produção acadêmica pouco discute aquestão e, principalmente, evidencia-se a cristali-zação dos professores, coordenadores e alunosem um ideário médico, de tratamento e cura.

O que se percebe é que além da dificuldadeem reconhecer a relevância do tema para aformação do profissional, que deve estar en-volvido no trabalho com a diversidade, a situa-ção se agrava pela maneira como se encontraorganizada a estrutura curricular dos cursos.

Desvelando os sentidos de inclusão nos/dosCursos de Psicologia das IFES Mineiras pude-mos verificar os impasses e as perspectivaspresentes na formação de psicólogos, dandobase para que se possa deslocar os discursosconstruídos nos Cursos de Psicologia, possibili-tando a constituição de uma escola e de umasociedade inclusivas.

Considera-se, portanto, que uma das pers-pectivas da formação de psicólogos engloba o

fato destes passarem a atuar como um agentesocial, trabalhando com a diversidade cultural,em detrimento de uma construção calcada numsistema onde “saber é poder” e no qual a di-mensão social está associada à dicotomia “de-sejável-indesejável”. O que se propõe, com isso,é que o processo de escolarização passe poruma redefinição de sentidos e de propósitos.Dentro desse contexto, pode ser que se encon-tre o maior impasse da formação de psicólo-gos, uma vez que se passa a exigir, nas palavrasde Pereira (1983, p.429), a “realização de umanova aprendizagem: de valores, atitudes vitais,simbologia e linguagem”.

Nessa concepção propõe-se um discursoque vá além de uma igualdade educacional,em que o sujeito seja aceito e compreendidodentro de uma pluralidade etnocultural. Paratanto, a escola e seus recursos humanos de-verão adotar uma prática reflexiva e cultural-mente comprometida, defendendo a constru-ção de um currículo que desafie os discursosevidenciadores das diferenças e dos precon-ceitos, promovendo uma sensibilidade à diver-sidade cultural.

Defende-se, portanto, na mesma perspecti-va de Moreira e Macedo (1999), a formaçãode um “psicólogo cosmopolita”, que se relacio-ne com sujeitos plurais e não mais homogenei-zados; ou seja, um psicólogo que tenha umaposição intelectual de abertura para trabalharcom sujeitos diversos, que não mais tenham queobedecer a um padrão de normalidade. O sa-ber cosmopolita, “ainda que especializado, podeser melhor caracterizado por uma orientaçãogeral para as estruturas de significados impli-cadas na noção de discurso crítico” (p.23).Assim sendo, o “psicólogo cosmopolita” pode-rá ter um estudo histórico, social, educacional eclínico dos indivíduos, visto que a perspectivado intelectual cosmopolita sugere a apreciaçãoestética da diversidade cultural.

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Recebido em 15.09.06Aprovado em 20.11.06

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A PERCEPÇÃO DOS ESTUDANTES DO CURSO DEPEDAGOGIA SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes *

* Pedagoga com habilitação em Educação Especial, doutoranda em Educação, área de concentração Educação Especialno Brasil, pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciência – FFC/Campus de Marília.Professora de História da Educação Geral e Brasileira da União das Faculdades de Dracena – UNIFADRA/FUNDEC.Membro do Grupo de pesquisa Cátedra do Oprimido da FFC/UNESP/Campus de Marília e membro da AssociaçãoBrasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEES. Endereço para correspondência: Avenida Alcides ChaconCouto, 395, Bairro Metrópole, Dracena. E-mail: [email protected] Este trabalho faz parte de um projeto amplo que foi desmembrado em três partes, até o presente momento. Para maioresinformações sobre o projeto central, entrar em contato com a autora por e-mail.

RESUMO

A educação inclusiva é tida como uma educação de qualidade que deve seroferecida pelo sistema educacional. Teria como objetivo, além de oferecer ossaberes sistematizados, acumulados ao longo da história da humanidade, tambématender as diversificadas esferas sociais. A partir dessa perspectiva, o presentetrabalho pretendeu fazer um levantamento sobre o que os alunos do primeirosemestre do curso de pedagogia de uma faculdade em Dracena estariamentendendo por educação inclusiva. Para atingir tal objetivo, procurou-se:(1) elaborar um questionário sobre a temática; (2) aplicar o questionário; (3)tabular o levantamento; e (4) discutir e refletir sobre os resultados. A partirdos resultados pode-se inferir que os alunos pesquisados não estão entendendoa educação inclusiva como uma educação de qualidade que atenda a todosos cidadãos, independentemente de suas particularidades, como é discutido naliteratura; mas, como a inserção de pessoas com necessidades especiais nasala de aula regular. Desta forma, devemos preparar os futuros profissionaisda educação para esse grande desafio do sistema educacional.1

Palavras-chave: Educação básica – Inclusão – Formação

ABSTRACT

STUDENTS OF PEDAGOGY’S PERCEPTION ABOUT INCLUSIVEEDUCATION

Inclusive education is considered as a quality education that should be offeredby the educational system. Its goal together with offering systematisedknowledge, gradually increased in amount along of humanity history, would beto deal with the various social spheres. From that perspective, this paper aimedat investigating how students attending the first term of a higher training coursefor primary school teachers of a Faculty of Dracena grasped the concept ofinclusive education. For that, (1) a questionnaire about the subject was printed;

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(2) it was sent out to the students to be completed and returned; (3) data weretabulated; and (4) results were discussed and reflected on. From the resultswe can infer that the students questioned do not understand inclusive educationas a quality education that deals with all citizens regardless of their particularities,as the subject is discussed in the literature; otherwise, they think of it as theinclusion of people with special necessities in the ordinary classrooms.Therefore we must prepare future professionals for this great challenge of theeducational system.

Keywords: Basic education – Inclusion – Training

INTRODUÇÃO

A literatura aponta que a educação inclusi-va seria uma espécie de reforma radical no sis-tema educacional, uma vez que deveriareestruturar os seus sistemas curriculares, ava-liativos, pedagógicos e métodos de ensino. Aeducação inclusiva, para Mittler, seria “basea-da em um sistema de valores que faz com quetodos se sintam bem-vindos” (2003, p.34), res-peitando, ainda, a diversidade cultural, social,de gênero, etnia, desenvolvimento educacionale necessidades especiais. Ainda, segundo esseautor, tal reforma educacional garantiria quetodos os alunos tivessem acesso ao ensino re-gular, oferecendo, assim, estratégias para seimpedir a segregação e o isolamento.

A educação inclusiva seria mais do que aretirada dos obstáculos que impediriam algunsalunos de freqüentarem a escola regular. An-tes de tudo seria um processo dinâmico semtérmino, uma vez que não seria um mero esta-do de mudança, mas um processo contínuo dereestruturação educacional tanto organizacio-nal quanto pedagógico. Ou seja, ainda está emconstrução e passível de transformação e re-significação (MITTLER, 2003).

Para Mantoan, o termo inclusão não devese restringir apenas “à inserção de alunos defi-cientes e/ou com necessidades educacionaisespeciais nas escolas regulares” (MITTLER,2003, p. ix), mas ser empregado quando houver“a flexibilidade dos critérios de admissão e depermanência nos ambientes escolares” (p. ix),ou seja, uma escola que aceite e mantenha to-dos os alunos sobretudo, a meu ver, com quali-dade de ensino.

Mantoan argumenta, também, que essa es-cola que aceita e convive com a diversidadecultural possibilita uma educação para a verda-deira cidadania, uma vez que “novas identida-des são construídas a partir dos desequilíbriosprovocados pela tensão entre as diferenças” (p.x). Entretanto, a autora evidencia que, para afundamentação dessa nova comunidade esco-lar, todos devem estar dispostos a desconstruira escola tradicionalista, pautada no ensino ver-balista e elitista (FREIRE, 1982), e buscar al-ternativas educacionais que respeitem asdiferenças, ou seja, “um ensino que coloca oaluno como foco de toda ação educativa e pos-sibilita a todos a descoberta contínua de si e dooutro, dando sentido ao saber/sabor de educar”(MANTOAN, 2004, p. 141, grifo meu).

Para Stainback; Stainback (1999), a educa-ção inclusiva seria uma educação de qualidadedirecionada a todos os alunos da comunidadeescolar. Ao conviver com as diversidades to-dos os integrantes da comunidade escolar teri-am mais benefícios do que perdas. Por outrolado, o aluno com necessidades educativas es-peciais não deve apenas ser inserido na escola,mas fazer parte de uma comunidade escolarque prime pela inclusão social. E para se atingira meta de implementar uma educação inclusi-va seriam necessários administradores preocu-pados com a reforma, reestruturação erenovação de suas unidades de ensino. Cabe,ainda, a esta unidade a formação continuadado seu corpo docente em metodologias de ensi-no que privilegiem uma abordagem de ensinoprogressista.

Com esses passos estaríamos próximos deuma educação inclusiva, cujo resultado seria um

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sistema educacional fortalecido e eficiente, aoqual todas crianças teriam acesso. Diferente-mente dessa posição, os seus opositores argu-mentam que o ensino regular não está prepara-do para receber os alunos com necessidadeseducativas especiais. Ora, se a educação in-clusiva é percebida como uma mudança dementalidade visando uma sociedade mais hu-mana e justa, então ser uma pessoa com defici-ência seria uma das inúmeras diversidades. Ameu ver, o que está em questão não seria seruma pessoa com deficiência ou não, mas o com-promisso de todo educador que busca a cons-trução de uma sociedade democrática e, con-seqüentemente, de um sistema educacionaldemocrático. Sistema educacional que primepor uma educação de qualidade e acessível atodos os estratos sociais. Com essa perspecti-va, a rede regular pública de ensino responsá-vel pela educação básica – infantil, fundamen-tal e média – deveria oferecer qualidade deensino em equivalência com a rede particularque se destaca nesta área. Assim, o êxito paratal educação:

... é nossa disposição para visualizar, trabalhar econseguir uma rede regular que se adapte e dêapoio a todos. Todos os alunos, incluindo osrotulados como alunos com deficiência [pobres,ricos, negros, dentre outros], querem estar emuma rede regular que satisfaça às suas necessi-dades e na qual se sintam bem-vindos e segu-ros” (STAINBACK; STAINBACK, 1999, p. 434– palavras entre colchetes são minhas)

Omote (2005), baseado em Stainback;Stainback, e analisando o processo históricoe pragmático da educação inclusiva, apontaque o sistema educacional brasileiro está pro-curando incorporar estratégias para uma edu-cação que atenda a todos alunos. Aindasegundo o autor, a educação inclusiva visa,antes de tudo, um trabalho educacional vol-tado para a diversidade. Para Omote, os de-fensores da educação inclusiva apontaminúmeros benefícios para a comunidade es-colar como um todo que possivelmente irãose estender à sociedade.

Omote (2004b) argumenta que a busca pelainclusão sempre fez parte da história da huma-

nidade. Entretanto, por volta dos anos 90, a so-ciedade inclusiva transformou-se “em um im-perativo moral” (p. 299), intensificado pelosdefensores dos direitos humanos. Para esseautor, ao se pensar em uma comunidade esco-lar inclusiva, reflexo de tal imperativo, deve-secontar não apenas com soluções didático-pe-dagógicas, mas também com:

... outras medidas e arranjos, cientificamente fun-damentados, que possibilitem o convívio e a co-ação, por parte das pessoas com as mais variadasdiferenças, em principais situações e atividadesda vida diária, de modo que favoreçam a realiza-ção e o desenvolvimento de todos que delasparticipam (OMOTE, 2004b, p. 302).

Dessa forma, pensar a educação inclusivaseria pensá-la não de maneira fragmentada edescontextualizada, mas na sua construção his-tórica, social, psicológica e biológica.

A educação inclusiva, para Omote, implicanuma mudança de mentalidade que perpassemudanças nas concepções educacionais pau-tadas na padronização “de capacidades indivi-duais de realização” (OMOTE, 2005, p. 35), ouseja, do ensino verbalista ou bancário (FREI-RE, 1982, 1987), para as abordagens que res-peitem as diversificadas diferenças, “reconhe-cendo nelas a oportunidade de aprendizagemde todos” (OMOTE, 2005, p. 35). Entretanto,para conseguirmos essa educação não deve-mos partir de decretos e vontade de uma mino-ria; a educação inclusiva só será possível a partirde uma sociedade inclusiva, sociedade essa quemuito tem a trilhar.

Saliente-se que a história e a filosofia daeducação brasileira (ABREU, 2000; COTRIM,1989; FARIA FILHO, 2000; GADOTTI, 1994;GHIRALDELLI-JÚNIOR, 2003; LOPES &GALVÃO, 2001; NAGLE, 1977; PAIVA, 2000;XAVIER; RIBEIRO; NORONHA, 1994;WEREBE, 1971) têm mostrado que a educa-ção já foi muito mais excludente. Hoje aindatemos diversas formas de exclusão social e es-colar, mas, como aponta Omote, precisamos deum novo homem, e esse homem novo pode serconstruído e formado na escola, preferencial-mente numa escola que saiba conviver com asdiversidades.

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De acordo com o mesmo autor, essa escolajá está começando a ser construída e, como tal,alguns casos de inclusão têm sido relatados.Entretanto, sugere-se que sejam criadas medi-das avaliativas científicas para a verificação dosprocessos de educação inclusiva, uma vez quena análise de algumas práticas pedagógicassobre a inclusão percebeu-se a ocorrência de:“(1) uma mera inserção do aluno deficiente emclasses comuns a título de inclusão, (2) a mi-gração de deficientes no sentido inverso do queocorria no passado recente, (3) a institucionali-zação da normificação e (4) o desvirtuamentode objetivos precípuos da educação escolar”(OMOTE, 2004a, p. 05).

Diante dessas discussões teóricas fica-nos,ainda, uma dúvida: como os futuros profissio-nais da educação, que irão lidar com inúmerasdivergências em sala de aula, estão perceben-do a educação inclusiva? Assim, este trabalhode pesquisa teve como objetivo detectar e en-tender a percepção e compreensão de 36 estu-dantes do primeiro semestre do curso depedagogia da região de Dracena em relaçãoaos fundamentos da educação inclusiva. Paraatingi-lo, aplicou-se um questionário que foi ta-bulado e discutido, e seus resultados estão nostópicos que virão a seguir.

DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO

A partir dos pressupostos teóricos e das in-dagações feitas foi escolhida uma sala do pri-meiro semestre do curso de Pedagogia de umafaculdade da região de Dracena no ano de 2006.

O critério de seleção da sala foi a possibilidadede acesso da pesquisadora – docente da insti-tuição –, e interesse dos alunos em participarda pesquisa.

Após a seleção da sala elaborou-se umquestionário-piloto semi-aberto com identifica-ção e quatro questões sobre a temática. De-pois de elaborado, o questionário foi aplicadopela própria pesquisadora aos alunos, que leva-ram em média quinze minutos para respondê-lo. Todos os questionários foram respondidos eentregues.

Mediante a coleta de dados os questionári-os foram tabulados, refletidos e discutidos. Atabulação e discussão podem ser conferidas notópico a seguir.

TABULAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RE-SULTADOS

Na tabela 1 verificou-se que todos os ques-tionários aplicados foram respondidos e entre-gues, o que parece demonstrar o interessedesses estudantes com relação à temática.Apenas 3% dos estudantes possuem outra gra-duação e 47% possuem cursos voltados à áreaeducacional, como CEFAM ou Magistério, per-fazendo um total de 50% dos alunos. Pode-seinferir que esses estudantes possuem subsídiosteóricos e pedagógicos para atuarem em salasde aula. Ainda pode-se verificar que, do totaldos participantes, 25% já estão trabalhando nasala de aula, o que demonstra que de formadireta ou indireta já podem estar trabalhandocom a inclusão de alunos com necessidadeseducativas especiais.

Tabela 1 - Identificação dos alunos

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Na tabela 2 verifica-se que apenas 36%dos participantes que responderam os questi-onários afirmam ter tido informações sobre oque seria educação inclusiva, sendo que 64%desconhecem tais informações. Esses levan-tamentos demonstram que a temática não estáfazendo parte do cotidiano dos participantesda pesquisa até o momento; mas há possibili-

dade de, ao longo do curso, essa lacuna sersanada, uma vez que na grade curricular docurso de pedagogia existem disciplinas sobreos fundamentos da educação inclusiva. Poroutro lado, se 25% dos estudantes já estão atu-ando como profissionais, é de extrema urgên-cia a atuação na formação dos professores emexercício.

Tabela 2 - O conhecimento sobre educação inclusiva

Tabela 3 – A aquisição do conhecimento sobre educação inclusiva

Na tabela 3 foi possível verificar como es-ses estudantes adquiriram informação sobreeducação inclusiva. Dos 36% que responderamna tabela 2 ter conhecimento sobre a temática,46% assinalaram que esse foi adquirido em salade aula e 23% no local de trabalho (escola).Podemos inferir que a sala de aula é um dosmaiores responsáveis pela transmissão dos co-nhecimentos, reforçando assim o papel dos do-centes que ministram aulas no ensino superior,para que estejam preparados para discutir eampliar o debate sobre educação inclusiva. Poroutro lado, a inserção do local de trabalho dosparticipantes como um “outro” local de forma-ção de conhecimento indica que se deve incor-

porar cursos qualitativos à formação dos edu-cadores em exercício.Já na tabela 4 procurou-se verificar se oconhecimento sobre a educação inclusivaadquirido por esses estudantes está emconsonância com a literatura pesquisada. Paraisso, procurou-se colocar nos questionáriosalternativas com visões do senso comum edeixar uma questão aberta para verificar sealgum estudante levantaria hipótese diferentedas propostas. Essas alternativas, com asrespectivas freqüências, seriam: 1) colocartodos os deficientes em idade escolar na salade aula regular (53%); 2) colocar somente ossurdos em idade escolar na sala de aula regular

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(11%); 3) colocar somente os cegos em idadeescolar na sala de aula regular (5%); 4) colocarsomente os deficientes mentais em idadeescolar na sala de aula regular (8%); 5) colocarsomente os deficientes físicos em idade escolarna sala de aula regular (5%); 6) colocar todasas pessoas em idade escolar na sala de aularegular (33%); e 7) outros (8%). Pode-seinferir por esta questão que mesmo os sujeitos

pesquisados com interesse em se informarsobre a temática apresentam conhecimentosque estão em dissonância com a literatura.Para a maioria desses estudantes, a educaçãoinclusiva seria a colocação do deficiente nasala de aula regular, enquanto a literaturaespecífica da área tem apontado como sendoo acesso a uma educação de qualidade a todosos cidadãos.

Tabela 4 - O conhecimento dos discentes sobre a educação inclusiva

Ressalte-se que 2,64% dos estudantes pes-quisados afirmam não ter tido informações an-teriores sobre o que seria educação inclusiva.Este dado nos parece preocupante, uma vez queos meios de comunicação já estão explorandoa temática, assim como tem havido a preocu-

pação dos órgãos públicos em criar estratégiaspara ampliar o debate. Ficam-nos algumas dú-vidas. Onde o processo de inclusão está falhan-do? Na transmissão de conhecimento ou nointeresse dos alunos de se apropriarem dessaárea específica?

Tabela 5 - A opinião dos discentes sobre a preparação dos professores da rede regularde ensino com relação à educação inclusiva

Na tabela 5 verificou-se que 92 % dosestudantes pesquisados não acreditam que osprofessores do ensino regular estejam pre-parados para trabalhar com a educação in-

clusiva. Salienta-se que 82% dos participan-tes da pesquisa estão entendendo a educa-ção inclusiva como a colocação dedeficientes no ensino regular.

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E, na tabela 6, 86 % desses estudantes acre-ditam não estarem preparados para trabalharcom educação inclusiva. Para sanar essas de-ficiências de formação 100% dos estudantessugeriram, em questão aberta, ser necessário

cursos de especialização sobre a temática.Observa-se que, como os participantes da pes-quisa estão no primeiro semestre, esta falta depreparação poderá ser sanada pela grade cur-ricular até o final do curso.

Tabela 6 - A opinião dos discentes sobre sua preparação para trabalhar com a educaçãoinclusiva

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução deste artigo discutiu-se o con-ceito de educação inclusiva de acordo com lite-ratura especializada, que resumidamentepoderíamos dizer ser uma educação de quali-dade a ser oferecida pelo sistema educacional.Seu objetivo seria, além de oferecer os saberessistematizados e acumulados ao longo da histó-ria da humanidade, também atender às diversi-ficadas esferas e substratos sociais, através demetodologias e recursos apropriados.

Diante dessa perspectiva teórica, tinha-secomo hipótese que os alunos em formação do1º semestre do curso de pedagogia, sendo 25%deles professores em exercício, poderiam es-tar compreendendo a educação inclusiva comosemelhante ou próxima da literatura. Entretan-to, as tabulações e análises dos dados apon-tam uma grande lacuna entre a literatura e oque está sendo entendido como educação in-clusiva nesse curso específico de formação.Se, por um lado, encontramos essa grande dis-sonância, e 46 % dos participantes da pesqui-sa afirmam ter adquirido esse conhecimentoem sala de aula, pode-se inferir que os cursosde formação precisam de corpo docente qua-lificado para abordar essa temática, ou que oquestionário-piloto, aplicado aos participantes,não está dando conta de apreender o que re-almente os alunos estão entendendo por edu-cação inclusiva.

Ressalte-se, ainda, o surgimento de umavariável que não havia aparecido em traba-lhos anteriores (FONSECA-JANES, 2006), aqual aponta ser 23% do conhecimento sobreeducação inclusiva adquirido no local de tra-balho, sendo este local a própria escola. Des-ta forma, é possível sugerir que a formaçãoem exercício deve ser pensada de forma qua-litativa por especialistas de vários setores edu-cacionais.

Até o momento esta pesquisa tem aponta-do que, antes da discussão sobre a educaçãoinclusiva, deve-se repensar a formação holís-tica e específica dos futuros profissionais daeducação. É sabido que existem particulari-dades próprias de cada deficiência que somen-te uma equipe interdisciplinar seria capaz detrabalhar. Por outro lado, os cursos de peda-gogia devem oferecer subsídios teóricos e prá-ticos para formar um profissional reflexivo,crítico e transformador de sua realidade. Comessa formação o educador criaria e adaptariarecursos para se lidar com as divergências ediversidades próprias da sala de aula. Esseprofissional está em construção, e nos cabe,enquanto formadores de educadores, propici-ar esses subsídios necessários para que a edu-cação de qualidade realmente ocorra. Dessaforma, a necessidade de se preparar os futu-ros profissionais da educação para esse gran-de desafio do século XXI é de extremaurgência e de nossa responsabilidade.

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 03.04.07

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A INCLUSÃO E SUAS RELAÇÕES NO

COTIDIANO ESCOLAR

Graciela Fagundes Rodrigues *

* Especialista em Educação Inclusiva pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Educadoraespecial da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para pessoas com deficiência e altashabilidades no Rio Grande no Sul (FADERS). Endereço para correspondência: Rua Pedro Werlang, 1011, BairroIntercap – 91630-110, Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected]

RESUMO

A inclusão enquanto paradigma escolar vem, gradativamente, constituindo ummodelo de escola em que é possível acreditar na educabilidade de todos osalunos independentemente de suas diferenças. Este trabalho analisa asrepresentações das diferenças, dando especial atenção à surdez e a síndromede Down entre crianças no cotidiano escolar, e resulta de uma pesquisarealizada pela autora em 2004 em uma escola da rede pública estadual dePorto Alegre/RS. Por meio das práticas discursivas, das atitudes cotidianas erelações sociais entre os interlocutores foi possível caminhar no sentido detrazer para reflexão alguns dos dados obtidos. Objetiva-se problematizar asrepresentações circulantes no cotidiano escolar; e perceber como estasrepresentações (des)constroem olhares e formas de conviver tanto no espaçoeducacional quanto no social e familiar. Partindo de uma retomada históricasobre as diferenças até alcançarmos uma possível reconceitualização de olharese ações, podemos construir práticas que sejam tentativas de desmitificar opassado, em que a “diferença” deveria ser eliminada e “corrigida”. Sendoassim, “ouvir” os alunos que são integrantes deste amplo movimento de inclusão,entender de que maneira eles representam o “outro” possibilita entendermos ainclusão como um dos elementos favorecedores para a (des)construção deolhares simplificadores.

Palavras-chave: Inclusão escolar – Representações – Diferenças

ABSTRACT

INCLUSION AND ITS RELATIONSHIPS WITH DAILY LIFE ATSCHOOL

Inclusion, as a scholar paradigm, has gradually constituted a School Modelthat makes possible to believe in schooling for all, independently of theirdifferences. This paper analyses the representations of differences, givingspecial attention to deafness and Down syndrome among children in their dailyschool life, which was the result from a research that has been carried out bythe author in one public school in Porto Alegre/RS, Brazil. Through discursivepractices, quotidian attitudes and social relationships among the interlocutors,

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it has been possible to go ahead in order to reflect about some data which hasbeen obtained from a former investigation. Having as a goal to problematizeabout representations, it was perceived how these representations (dis)constructpoint of views and ways of co-existing within the educational field as well asthe social and familiar fields. Starting from a historical review about differencesuntil reaching a possible re-conceptualization of views and actions, we couldconstruct some practices that could be attempts for demystifying the past,where the “difference” should be eliminated and “corrected”. In this way,“listening” to students who are part of this ample inclusion movement,understanding in which way they represent the “other”, make possible tounderstand inclusion as one of the elements in favor for (dis)constructing short-minded points of view.

Keywords: School Inclusion – Representations – Differences

Introdução

Lugar de encontros e desencontros, lugar deencantos e desencantos. Sob este panorama con-figura-se o espaço da sala de aula. Este espaço– em que atualmente as atenções estão voltadaspara questões de acessibilidade a todos e per-manência – tem a responsabilidade de não tra-balhar apenas com o modelo ideal de aluno –quieto, passivo e de “aspecto saudável” – mastambém com aqueles que não seguem esta line-aridade de aluno ideal, ou seja, alunos provindosde diferenças étnicas, sociais, físicas, sexuais eintelectuais. Porém é preciso esclarecer que nãoé somente o ambiente escolar que não está fa-miliarizado com esta descontinuidade de perfildo ser humano, mas a sociedade como um todo.Como conseqüência disso, vivenciamos as desi-gualdades sociais manifestadas em diferentes ti-pos de exclusão, em diferentes segmentos sociais– seja no lar ou na escola.

O interesse por este espaço e pelos seusprincipais personagens, os alunos, dão o direci-onamento a este trabalho, constituído a partirdas representações infantis que perpassam ocotidiano escolar de uma turma de séries inici-ais, que se encontra sob o enfoque da propostade inclusão. A partir desta proposta, quem an-teriormente era considerado portador de defi-ciência, atualmente identifica-se sob uma novadenominação, que é pessoa com necessidadeeducativa especial, incluindo-se aqui todos

aqueles alunos que, por diversos fatores (físi-cos, intelectuais, psíquicos, culturais, étnicos ousexuais), distanciam-se dos padrões de “nor-malidade” construídos ao longo do tempo pornossa sociedade.

Observamos que, circunscritos a esse meio“inclusivo,”, se encontram vários sentimentos(pena, assistencialismo e rejeição), que, histori-camente, tomaram corpo na educação especiale que hoje percorrem os caminhos da escola e,mais especificamente, da sala de aula. E é nes-sa sala de aula que o aluno com necessidadeseducativas especiais é integrado/incluído1 – oque nos leva a investigar e compreender a re-presentação das crianças nesse processo.

O texto, desse modo, organiza-se da seguinteforma: primeiramente buscamos percorrer o ca-minho e os olhares historicamente construídossobre as pessoas com deficiência; e em seguida,abordamos as representações no cotidiano es-colar, na tentativa de construirmos um (meta)olhar na escola para além das deficiências, to-madas como sinônimo de “anormalidade”.

1 O termo integração foi o primeiro a ser utilizado naspropostas de inclusão, porém posteriormente o MEC pro-põe a distinção entre eles, que é a seguinte: “o termointegração passou a ser utilizado no sentido de se ter acessoao sistema de ensino, e não exclusivamente ao ensino regu-lar; o termo inclusão passou a ser utilizado no sentido de teracesso ao ensino regular, que inicia um processo dereestruturação, mantendo os serviços de apoio de EducaçãoEspecial”. (BRASIL, 2000). Porém, nesse estudo, não faze-mos esta diferenciação. Entendemos que ambos os termostêm um único objetivo, que é o acesso e a permanência deTODOS os alunos na Escola.

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Projetando um olhar através da his-tória

As representações da deficiência na anti-güidade e no presente determinaram e aindadeterminam as formas de olhar para a diferen-ça significativa2 . Para melhor entendermos ocontexto atual, é importante ressaltar algunsaspectos históricos buscando compreender oscaminhos através dos quais olhar para a dife-rença significativa foi sendo manifestado, natentativa de podermos, na atualidade, reconcei-tualizá-los.

Consideramos que a sociedade constrói for-mas de viver, assim como constrói valores paraque seja possível esta vivência. Segundo Fou-cault, mais importante que buscar explicar acultura, a ciência, as idéias de uma época oudeterminada sociedade, é “buscar o que em umasociedade é rejeitado e excluído. Quais as idéi-as ou os comportamentos, quais as condutas ouos princípios jurídicos ou morais que não sãoaceitos?” (1999, p.75 - tradução minha), sendopara ele o louco e o prisioneiro os principaismodelos de exclusão.

As imagens de deficiência alimentadas pe-las sociedades ao longo de seu desenvolvimen-to nada mais são que o produto de suas formasde organização. A história nos mostra a polari-zação eficiência/deficiência a que as diferen-ças significativas estiveram sempre atreladas,sendo dadas a partir desta polarização as justi-ficativas para as diferentes práticas de exclu-são, inclusive o extermínio nas sociedades gregae romana, principalmente. Podemos considerarque tanto as diferenças quanto as exclusões nãosão temas apenas atuais, já que sempre estive-ram presentes no contexto histórico da huma-nidade. Assim, concordamos com Albrecht(apud BARNES, 1998, p.65) quando afirmaque: “A insuficiencia es tan antigua como elcuerpo humano y las primeras sociedades co-nocidas: es una constante humana”.

Com o desenvolvimento da ciência o con-junto de saberes simplificadores, como crendi-ces, bruxarias e misticismos, que caracterizavaos deficientes na Idade Média, foi aos poucossendo desconstruído, dando lugar a estudos de

ordem mais objetiva nos quais a “cura” foi oprincipal objetivo a ser alcançado. Contudo, aoser a diferença considerada uma doença, osindivíduos passaram a sofrer isolamentos emasilos e hospitais, já que o perigo de transmis-são e contágio assusta a população. No séculoXVIII, na Europa, a internação dessas pessoasrepresentou um grande movimento, um períodode segregação e categorização dos indivíduos,internando a loucura pela mesma razão que adevassidão e a libertinagem. Os indivíduos ex-cluídos eram alienados, separados em grupos,entre os quais havia indigentes, vagabundos emendigos; prisioneiros e «pessoas ordinárias»;«mulheres caducas», «velhas senis ou enfer-mas»; «velhas infantis», pessoas epiléticas, «ino-centes” malformados e disformes; pobres bonse “moças incorrigíveis” (FOUCAULT, 2002).

No século XIX, na França, Jean Itard ela-borou o primeiro programa sistemático de edu-cação especial, sendo assim considerado o paida Educação Especial (FONSECA, 1995). Aprimeira experiência realizada por ele foi em1800, quando investiu na tentativa de recupera-ção e educabilidade de Victor de Aveyron, “omenino selvagem”. De acordo com Baptista &Oliveira (2002, p.100), na época considerava-se Victor deficiente, porém Itard argumentouque esse estado poderia estar relacionado aoseu modo de vida anterior, em que viveu numafloresta junto apenas de animais, sem qualquercontato com seres humanos. Esse tipo de vidateria provocado um estado completo de ‘priva-ção social’.

Nesse esforço de Itard em oportunizar aVictor uma educabilidade, nasce, poderíamosdizer, uma das primeiras tentativas de educar emodificar o potencial cognitivo de uma criança“diferente”. Outros nomes também importan-tes, que perduraram ao longo do século XIX,como representantes que “alimentavam” as idéi-as de Itard, são: Pinel, John Locke e Rousseau.Através desse breve panorama histórico pode-

2 Termo utilizado por Amaral (1998), designado para ossujeitos, ou um grupo, por suas características físicas, men-tais, sensoriais, psíquicas, não correspondendo a um tipo“ideal” de sujeito. A diferença significativa desdobra-se emtrês subconceitos: deficiência, incapacidade e desvantagem.

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mos dar uma caminhada pelos percursos que adeficiência passou, ora como algo a ser exter-minado e ora como de possível educabilidade.Podemos pensar no presente, no qual urge anecessidade de olharmos para as diferençassignificativas centradas nas possibilidades e nãomais nas impossibilidades. Nas sábias palavrasde Amaral (2001, p.150), “um dos caminhos épercebermos o que está se passando para quepossamos não eliminar preconceitos (objetivoimpossível de ser atingido), mas reconhecê-losem nós e, então, elaborá-los para que não seinterpolam em nossas relações vivas e pulsan-tes de cada dia”.

A inclusão como possibilidade de(des)contruções de representações

A inclusão, entendida como um processo empermanente construção, vem aos poucos dimi-nuindo as fronteiras entre a educação e a edu-cação especial, e entre escola regular e escolaespecial. Ambas iniciam, dessa forma, um pro-cesso de ressignificação de padrões conceptu-ais e organizacionais, planejamentos, formaçãode turmas, currículo, avaliação, e gestão de pro-cesso educativo em sua totalidade. Podemosafirmar que a inclusão escolar sugere a instabi-lidade, a busca constante de alternativas peda-gógicas diferenciadas, que não estão postascomo guias. Ensinar e aprender não podem sermais atribuídos ao professor e ao aluno respec-tivamente, mas à rede que o processo educati-vo incita.

... a criança que nos chega, em cada turma, acriança com deficiência, com dificuldades, o alu-no inteligente, o menino de rua, o aluno do Su-pletivo e, ao mesmo tempo, são os alunos quenos fazem profissionais apaixonados, inquietos,que precisam decifrar esses misteriosos seres,que nos provocam o encontro com um Outrodesconhecido, que nos colocam em perigo, quenos mostram os nossos limites, mas que nos fa-zem ir além de nós mesmos (MANTOAN, 2004,p.81).

E o que é ir além de nós mesmos em umasala de aula? Observa-se que muitas vezes, na

sala de aula onde se encontra o aluno com ne-cessidades educativas especiais, o ir além setorna: “ficar em....” Esse “ficar em” é na in-completude, na falta, no vazio. Relacionamosesse aspecto com o olhar. De que maneira olha-mos para nossos alunos? E de que maneira ospróprios alunos olham para seus colegas? Umolhar do que lhes falta ou um olhar para possi-bilidades? É preciso considerar, e esta é a pers-pectiva dessa reflexão, que os olhares, assimcomo as representações, formam-se nas rela-ções sociais, no contato do Eu e o Outro. Comrelação ao olhar para além da superfície, Omo-te (apud CARNEIRO, 1998, p.19) afirma que“...é preciso olhar para a coletividade que o iden-tifica como deficiente, encaixando-o em umacategoria de desviante e tratando-o distintamen-te. Ninguém é deficiente por si só. Alguém édeficiente perante uma audiência e dentro dedeterminadas circunstâncias”.

As relações em sala de aula estão imersasem diferentes olhares. E, a partir da inclusão,de que forma os educadores podem possibilitara construção de olhares acerca da diferença?Temos que tomar cuidado para que este alunonão se restrinja ao disléxico, ao surdo, ao defi-ciente, ao Down, dentre outras tantas maneirassimplificadoras de chamá-lo. O processo de in-clusão, enquanto proposta educacional, envol-ve diferentes âmbitos da escola, e um dosprincipais é a própria sala de aula. Este espaçoprecisa ser investigado a fim de possibilitar adesmitificação de idéias pré-concebidas acer-ca da diferença, da “estranheza”, já que é nes-te lugar que ocorre, basicamente, o aprender,mas que também é uma estrutura social em quea convivência e as trocas sócio-afetivas ocor-rem constantemente – sendo essenciais ao cres-cimento de cada ser humano. Eizirik (2003, p.07) refere-se a este espaço como contendo“...um mundo de significados, potencialidades,descobertas e aprendizagens, mas que tambémpode ser a própria representação do vazio, daperda de tempo, da repetição, dos exercíciosde poder e de violência, que ocorrem em múlti-plas vias, fazendo vítimas e algozes, entre alu-nos e professores”.

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Não esqueçamos que incluir não é acabarcom as diferenças, na medida em que integra-mos os alunos com diferenças significativas aos“iguais”, mas, pelo contrário, é enfraquecer aidéia de “padronização” e “normalização”. Aescola não é – e acreditamos que nunca foi – oespaço próprio de iguais. Assim, o questiona-mento feito pela escritora Virginia Woolf (apudEIZIRIK, 2003, p. 02): “Não deveria a educa-ção fortalecer as diferenças, e não as similari-dades?” permanece vivo no cenário atual,apesar dela o ter escrito em 1928, ou seja, háquase oitenta anos.

Ao se apresentar o panorama da sala de aulainclusiva, observa-se que os sujeitos geralmen-te são julgados sob diferentes imagens, taiscomo “doentes”, “loucos” ou “coitados”, con-tribuindo para que estas representações sejamconfirmadas tanto por adultos como por crian-ças. E, provavelmente, é deste representar quesão antecipadas as expectativas sobre o aluno,conferindo-lhe seu respectivo espaço e seu res-pectivo lugar no ambiente em que se insere, jáque, conforme Omote (1994, p. 70): “Na medi-da em que a pessoa é percebida como se per-tencesse a essa categoria e, conseqüentemente,portasse as características previstas nos mem-bros dessa categoria, criam-se expectativas parao desempenho dessa pessoa”.

Apesar de estarmos vivenciando um con-texto educacional onde, na medida do possível,se abrem as portas das escolas para a diversi-dade de culturas, sendo estas reconhecidas erespeitadas, por outro lado presenciamos agrande desinformação acerca desta diversida-de que, em conseqüência, se apóia em um con-junto de representações. Por essas atitudes seobtêm os pré-conceitos, as opiniões já forma-das a respeito de um determinado assunto, ob-jeto ou pessoa, como, por exemplo, a represen-tação da criança como um ser “puro”, “frágil”,“ingênuo”, ou as representações sobre a defi-ciência, que as associam a “anormalidade”, “ine-ficiência” ou “doença”. Com base nesses este-reótipos, a observação de um deficiente, porexemplo, nas ruas, na escola ou até mesmo nomercado de trabalho, nos causa surpresa ouespanto. Essas idéias, portanto, tanto do que é

ser criança quanto do que é ser deficiente, as-sim como inúmeras outras que não necessitamser apontadas, são construídas nas relaçõessociais, na convivência em grupos sociais nosquais se convencionam determinadas represen-tações, como as anteriormente citadas, sendo apartir delas que iremos constituir outras ou rea-firmar as mesmas.

As representações no cotidiano es-colar

Para iniciarmos a descrição de aspectos re-lacionados às representações, uma situaçãorelevante ocorrida no primeiro dia da pesquisamerece ser destacada. Enquanto eu procuravapela sala de aula alvo do estudo, uma aluna pas-sava pelo corredor. Como não estava conse-guindo encontrar o local, resolvi lhe perguntar:

– Você sabe qual é a sala da 3ª série?Ela respondeu:– A 3ª dos “normais” ou a dos surdos?Com curiosidade a contestei:– Como assim, eu não entendi. O que são

“normais”?Ela imediatamente me disse:–“Normal” é que nem a gente.Como gostaria de ouvi-la ainda mais, lhe

perguntei novamente:– Então quem é surdo não é “normal”, é

“anormal”?A menina ficou completamente sem graça

e saiu correndo, não querendo continuar a con-versa comigo. Percebemos nessa situação, cla-ramente, a dicotomia: normal/anormal. O normalcomo o que está padronizado, poderíamos dizeros “sem deficiência”, e o anormal como o queé significativamente diferente de mim, ou os“com deficiência”. De acordo com Oliveira(2004, p. 162), “...temos que ter um olhar críti-co para esses discursos dualistas que viabili-zam a construção do imaginário de discriminaçãosocial e buscar fundamentos teóricos que vi-sem a “desconstrução” deste imaginário”.

Uma outra fala significativa, remetida a alu-nos surdos desta escola, ocorreu durante o re-creio quando me dirigi a uma das alunas

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participantes da pesquisa, lhe perguntando o queela havia feito durante este intervalo de aula.Sua resposta foi:

– Ah! Eu estava brincando com a “mudi-nha”!

Essa denominação “mudinha” é muito fre-qüente não apenas em crianças, mas tambémem adultos, pois eles desconhecem que ser sur-do não é ser mudo, uma vez que a mudez temcausas que não estão diretamente ligadas aodéficit auditivo, e a surdez pode não ser, emalguns casos, um impeditivo de aquisição de umalíngua oral ou não.

A sala de aula é configurada sobre umarede de relações que lá se estabelece, seja depertencimento ou não ao grupo. Esse grupo éde suma importância para o desenvolvimentosocial de todos os alunos; daí a necessidadedo professor ficar atento aos “ditos” e “nãoditos”das crianças na sala de aula, a fim deprocurar estratégias que favoreçam as trocassócio-afetivas no grupo e o respeito às singu-laridades. Falas do tipo “ela é doente”, “elanão é que nem nós”, “ela tem problema nacabeça” (expressões das crianças remetidasà colega com síndrome de Down) favorecemum diálogo produtivo com os alunos. Um diá-logo em que estas representações sejam des-construídas e possam abrir espaços para umolhar diferente, fugindo das idéias de invali-dez, defeituosidade e incapacidade. A partirdessas colocações podemos afirmar o quantoé necessária a escuta do professor para o queos alunos pensam e expressam. Oliveira (2004)observa que: “Esse conversar com o outro, es-cutando o “dizer da palavra” do outro, consti-tui-se numa prática ética e democrática. (...)Ao dizerem a palavra, homens e mulheresexpressam em suas falas as suas representa-ções, seus desejos e angústias, a sua concep-ção e posição de mundo” (p. 165). É umaescuta que vai além do que é certo, do que éerrado ou de “lições de moral”. Uma escutapara as relações, como alicerces para a cons-trução de um grupo em que todos possam sesentir incluídos nas ações, nas escutas e nasconversas com o outro.

Considerações para recomeçar....

Investigar as representações dos alunos so-bre as diferenças significativas no contexto es-colar foi o trajeto seguido e “inacabado” desteestudo aqui apresentado. Entendemos que ainclusão escolar envolve diferentes aspectos quevão além da sala de aula, porém ainda é princi-palmente nesse espaço que as aprendizagensse efetivam, emergindo múltiplas relações tan-to com o saber quanto com os demais integran-tes deste processo. A existência dessas relações,principalmente com os outros, se torna funda-mental e propicia variadas investigações na es-cola, sendo, portanto, este trabalho impulsionadopelas experiências e situações vividas por alu-nos em um espaço contido de significados. Sig-nificados esses favorecedores de elementos quese incorporam ao seu significante, criando-o elimitando-o a uma determinada imagem que,muitas vezes, não é possível de ser(re)construída, uma vez que a busca pela ho-mogeneidade é histórica, sendo um caminho“natural” a segregação dos diferentes (DOR-NELLES, 2004).

Referindo-se às diferenças significativas, otrabalho desvelou as imagens que foram, ao lon-go da história, lançadas às pessoas, conferin-do-lhes rótulos de “doentes”, “loucos”,“anormais”, etc. Estas são denominações per-petuadas e ainda perpassadas nos diferentesespaços de nossa sociedade e que, se não fo-rem problematizadas, correm o risco de per-manecerem sob estes olhares históricos. Dessaforma, ainda vivenciamos a presença dos alu-nos “diferentes” nas escolas comuns como sen-do causadores da desordem, da angústia e domedo, pois permanecemos em um modelo deescola no qual se configuram padrões de quetudo deve ser “belo”, “perfeito” e “normal”.Refletir sobre essas “falsas” crenças envolvedesmitificar as representações enraizadas nocontexto social e que são adquiridas pelas pes-soas, chegando até a escola.

A perspectiva traçada não se fundamentaem querer negar as diferenças com a propostada inclusão, mas, sim, em visualizar, a partirdesta proposta, possibilidades de quebrar esses

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“muros”, dialogando, questionando e conhecen-do a diferença. Segundo Abramowicz (2001, p.8), devemos “...nem aceitar, muito menos tole-rar as diferenças, mas sim produzir diferenças.Há uma incessante forma de vida que é produ-zida pelos diferentes; que é preciso estar aten-to para aproveitar. (...) a educação só seráinclusiva se se prestar à exterioridade, ou seja,se ‘estes novos alunos’ envergarem a escolacom suas diferenças, e a modificarem”. Pois odesejo de querermos tornar “natural” uma salade aula em que a presença da diferença chamaa atenção é dar margem à produção de atitu-des ancoradas no desconhecimento, na pieda-de e na patologia. Consideramos que osilenciamento não é produtivo, uma vez que ascrianças “falam”, “ecoam vozes” às diferentessituações vividas no cotidiano – seja ele famili-ar ou escolar.

Devemos sempre pensar, portanto, que os ca-minhos são feitos ao caminhar, pouco a pouco,deixando para trás aquilo que irá ser “pesado”, eir o mais leve possível para que, no percurso,possamos nos alimentar de idéias e desafios, afim de conseguirmos cumprir nosso objetivo, queé a chegada. Porém, não uma única chegada,tendo a impressão de que finalizamos nosso ca-minhar. Pelo contrário, ao chegarmos podemosrecomeçar, mas com um novo jeito de caminhare para uma nova chegada, onde até nós já nãosomos mais o que éramos ao iniciar. E, finalizan-do para recomeçar, compartilho dessa significa-tiva passagem de Baptista (2003, p.30), quandonos diz que: “O futuro não é apenas a conquistade metas estabelecidas a priori, mas, principal-mente, a possibilidade de novas respostas a no-vas perguntas que escapam a todo e qualquercritério de previsibilidade”.

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Recebido em 29.09.06Aprovado em 30.11.06

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RESUMO

Este artigo descreve a implantação da inclusão escolar de alunos comdeficiência mental no ensino fundamental da rede municipal de ensino de SãoLuís do Maranhão, segundo as percepções dos diretores das escolas-pólo, queincluem os referidos alunos em salas regulares do ensino fundamental. Osinstrumentos utilizados para coleta de dados foram entrevistas estruturadascom cinco diretores das referidas escolas situadas na zona urbana de São Luís,nos bairros Centro, Cohab, Pão-de-açúcar, Cidade Operária e Alemanha. Osresultados apontam para a implantação da inclusão com a manutenção dasmodalidades de atendimento em educação especial. Os alunos com deficiênciamental são preparados em classes especiais e, posteriormente, encaminhadospara a sala regular. Esse procedimento, no entanto, não se coaduna com oparadigma da inclusão, e sim com o da integração. Conclui-se que a redemunicipal de ensino de São Luís parece trabalhar nos moldes da educaçãointegrada e não da educação inclusiva, na medida em que o aluno com deficiênciamental não se mostra apto a freqüentar a sala regular.

Palavras-chave: Inclusão escolar – Deficiência mental – Ensino fundamental

ABSTRACT

PERCEPTIONS OF SCHOOL HEADTEACHERS about schoolinclusion of students with mental impairment in primary schools fromSão Luís-MA (Brazil)

This paper deals with the description of the school inclusion of students withmental impairment at the Fundamental Teaching at the Municipal TeachingNet of São Luís of Maranhão, according to the perception of the principals at

* Mestre em Educação (UFMA). Especialista em Saúde Pública, Magistério Superior e Psicomotricidade. Psicóloga(UFRJ). Professora do Centro Universitário do Maranhão – UNICEUMA. Endereço para correspondência: RuaProfessor Luis Pinho Rodrigues, n. 16, Condomínio Costa Azul, Bloco II, apt. 201. Renascença II – 65.075-740, SãoLuís/MA. E-mail: [email protected]** Doutora em Educação Motora (UNICAMP); mestre em Educação Especial (UFSCar). Professora Adjunta IV doDeptº de Educação Física da Universidade Federal do Maranhão. Professora e orientadora do Mestrado em Educação/UFMA. Endereço para correspondência: Rua dos Portugueses, S/N, Núcleo de Esportes, Campus Bacanga – 65085-580, São Luís/MA. E-mail: [email protected]

PERCEPÇÕES DOS DIRETORES DE ESCOLAS-PÓLO

sobre a inclusão escolar de alunos com

deficiência mental no ensino fundamental

da rede municipal de ensino de São Luís-MA

Zinole Helena Martins Leite *

Silvana Maria Moura da Silva **

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the so called “Escolas-Pólo” which include such kind of students. The toolswhich were used for the collecting of data were structered interviews with5(five) principals from those “Escolas-Pólo” situated in the urban zone in SãoLuís, from the neighborhood Centro, Cohab, Pão-de-Açúcar, Cidade Operáriaand Alemanha. The results point to the implantation of the inclusion while keepingthe modalities of special education. The students with mental impairment areprepared in special classes and, later, taken to the regular classroom. Thisprocedure however does not correspond to the paradigm of inclusion but to theone of integration. We conclude expressing that the Municipal net of schoolingin São Luís seems to work in integrated education and not in inclusive educationas student with mental impairment seems not to show himself apt of attendingthe regular classroom.

Keywords: School inclusion – Mental impairment – Basic education

1. INTRODUÇÃO

Durante séculos, pessoas com deficiênciamental viveram à margem da sociedade, sendodiscriminadas e sem direito a uma educação dequalidade. Autores como Pessotti (1984) eMendes (1995) retratam esse aspecto no âm-bito mundial, sendo que semelhante abordagemé destacada por Januzzi (1985) no contexto daeducação brasileira.

O percurso histórico da educação de pesso-as com deficiência mental inicia-se através daintervenção médica, podendo-se citar Itardcomo exemplo de um dos precursores desseprocesso ao educar através de uma metodolo-gia própria Victor, “o selvagem de Aveyron”.Outros estudos podem ser citados, a exemplode Seguin e Montessori, que contribuíram so-bremaneira para a educação de pessoas comdeficiência mental.

Inicialmente, o atendimento educacional àspessoas com deficiência mental realizou-se emambientes segregados, como as escolas espe-ciais, as classes especiais, até que, a partir dadécada de 70, um novo movimento de âmbitointernacional, a integração, veio propor a edu-cação dessas pessoas, assim com a dos demaisdeficientes, em ambientes o menos restritivopossível. A integração fundamentava-se no prin-cípio da normalização e tinha como perspectivao modelo médico da deficiência, apontando parauma série de serviços destinados à educação

de pessoas deficientes. A idéia central desseparadigma era de que as pessoas deficientes,inclusive aquelas com deficiência mental, pu-dessem transitar de um serviço para o outro,buscando-se sempre aqueles menos segrega-dos no âmbito educacional.

Contudo, o movimento da integração sofreuvárias críticas, posto que essa transição rara-mente ocorria, na medida em que a pessoa de-ficiente é que deveria mostrar-se apta àmudança no sistema de cascata ou serviços,não havendo a preocupação de se reestruturaro contexto educacional para acolher essas pes-soas. Desta forma, a integração tornou-se ine-ficaz em alguns casos, o que desencadeou váriosquestionamentos e críticas a esse movimentono âmbito educacional.

Entretanto, a partir da década de 90, um novoparadigma se instaura neste contexto: a inclu-são. Esta, na esfera educacional, pressupõe quetodos os alunos, sem exceção de raça, cor, gê-nero, sexo e deficiência sejam educados emsalas regulares de ensino.

A inclusão escolar de pessoas com necessi-dades especiais tem sido amplamente estudadapor diversos autores, entre eles Ramos (2005);Carvalho (2004); Mantoan (2003a 2003b); Sas-saki (2003); Fonseca (2003); Mittler (2003);Oliveira (2003); Ribeiro (2003); Stainback eStainback (1999). Estes autores têm oferecidoinúmeras contribuições teóricas sobre o assun-to, destacando-se aspectos como a conceitua-

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ção de inclusão escolar, os obstáculos que seinterpõem à sua efetivação, as medidas adota-das para a sua execução, assim como os bene-fícios advindos desse processo.

Do ponto de vista filosófico, a inclusão es-colar fundamenta-se na Conferência mundialsobre educação para todos: satisfação dasnecessidades básicas de aprendizagem, de1990 (UNESCO, 1990), e na Declaração deSalamanca e linhas de ação sobre as neces-sidades educativas especiais, de 1994 (UNES-CO, 1994). Esses documentos internacionaisasseguram indistintamente a todos os indivídu-os com necessidades especiais ou não o direitoà educação de qualidade na rede regular deensino. Conclama-se o respeito à dignidadehumana e enaltece-se a diversidade como ele-mento indispensável na aprendizagem.

A inclusão escolar representa um novo pa-radigma no âmbito educacional, ao propor quea diversidade seja aceita como elemento cons-tituinte do processo ensino-aprendizagem. ParaCarvalho (2004, p. 27) “o paradigma da inclu-são representa um resgate histórico do igualdireito à educação de qualidade”.

Segundo Mantoan (2003b, p. 57)A inclusão é uma inovação que implica um es-forço de modernização e de reestruturação dascondições da maioria de nossas escolas (espe-cialmente as de nível básico), ao assumirem queas dificuldades de alguns alunos não são ape-nas deles, mas resultam, em grande parte, domodo como o ensino é ministrado e de como aaprendizagem é concebida e avaliada.

No contexto da inclusão a escola deve adap-tar-se às necessidades educacionais dos alu-nos, com deficiência ou não. A inclusãopreconiza, também, o respeito à dignidade hu-mana no contexto educacional, visto que seapóia no modelo social da deficiência, minimizaa responsabilidade do educando em relação aofracasso escolar. Convém salientar que, no âm-bito da inclusão escolar, persistem duas tendên-cias: a da inclusão total e a da inclusão com amanutenção das modalidades de atendimentoem educação especial. Na primeira perspecti-va está prevista a inserção radical e sistemáti-ca do aluno no contexto escolar independente

de suas condições. Saliente-se que esta é aabordagem defendida por Mantoan (2003a).

A inclusão com a manutenção das modali-dades de atendimento em educação especial éa proposta defendida por Carvalho (2004) eCorreia e Cabral (1999). Prevê-se nesta abor-dagem a inserção tanto em salas regularescomo nas diferentes modalidades de atendimen-to em educação especial, dependendo das ca-racterísticas dos educandos.

No âmbito internacional, o direito à educa-ção já vem sendo assegurado desde a Declara-ção Universal dos Direitos Humanos(UNESCO, 1948). Entretanto, a adesão ao pa-radigma da inclusão teve início com a Declara-ção Mundial sobre Educação para Todos:Satisfação das Necessidades Básicas de Apren-dizagem, de 1990, que, também, preconiza sera educação um direito fundamental de todos,começando desde o nascimento e prolongan-do-se por toda a vida. Tratando-se especifica-mente de pessoas com necessidades especiais,a Declaração de Salamanca de 1994 (UNES-CO, 1994) pressupõe que a Educação Inclusi-va é imprescindível para a construção de umasociedade justa, democrática e igualitária.

No plano nacional, a Constituição Federal(BRASIL, 1988) assegura que a educação éum direito de todos e um dever do Estado. Odocumento também prescreve que o atendimen-to educacional a pessoas portadoras de defici-ência (terminologia à época) deve ocorrerpreferencialmente na rede regular de ensino.Semelhante determinação é encontrada na Leide Diretrizes e Bases da Educação Nacional(BRASIL, 1996). Embora anterior a esta lei, aPolítica Nacional de Educação Especial (BRA-SIL, 1994) já previa a expansão do atendimen-to àqueles com necessidades especiais na rederegular de ensino.

Em nível estadual, a Constituição do Estadodo Maranhão (MARANHÂO, 1989) assegurao direito à Educação, e a Resolução nº 291/2002do Conselho Estadual de Educação (MARA-NHÃO, 2002) estabelece normas para a Edu-cação Especial na educação básica do sistemade ensino do Estado do Maranhão, e prevê ou-tras providências. O documento em questão

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adverte que o atendimento educacional a alu-nos com necessidades especiais deve aconte-cer no sistema regular de ensino em qualqueretapa ou modalidade da educação básica.

Tratando-se do município de São Luís doMaranhão, convém destacar dois documentos:a Resolução nº 10/2004 do Conselho Municipalde Educação (SÃO LUÍS, 2004a) e o PlanoDecenal Municipal de Educação de São Luís –2004/2013 (SÃO LUÍS, 2004b). A Resoluçãonº 10/2004 assegura em âmbito municipal asprescrições contidas na Resolução nº 291/2002do Conselho Estadual de Educação. Por suavez, o Plano Decenal Municipal de Educaçãode São Luís apresenta as diretrizes norteado-ras da Política de Educação Inclusiva da redemunicipal de ensino, dando destaque à escolainclusiva como espaço para a construção deuma sociedade justa e democrática que aceitee respeite a diversidade humana.

Embora existam determinações de âmbitointernacional, nacional, estadual e municipal,tratando-se da sociedade brasileira pode-se ve-rificar, no que se refere ao cumprimento dasprescrições desses documentos, que ainda sevive num estado de barbárie. A situação é tãoalarmante que, segundo dados do Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000),24.965.200 (vinte e quatro milhões novecen-tos e sessenta e cinco mil e duzentos) habitan-tes no Brasil apresentam deficiência! Dessetotal, 8,3% apresentam deficiência mental e,em 2003, apenas 251.506 recebiam atendimen-to educacional.

No Estado do Maranhão, segundo o CensoDemográfico de 2000, 99.307 pessoas apresen-tam deficiência mental. Desse total, apenas 601alunos com deficiência mental encontram-sematriculados em salas regulares da rede muni-cipal de São Luís, segundo a Secretaria Muni-cipal de Educação (2005), incluindo-se os níveisde Educação Infantil, Ensino Fundamental eEducação de Jovens e Adultos. Além disso,apenas 198 alunos com deficiência mental en-contram-se matriculados em classes especiaisna rede municipal de ensino.

Do exposto, verifica-se que a sociedade bra-sileira e, especificamente, a maranhense opta-

ram por um modelo de exclusão e segregaçãoescolar dessa clientela, que representa umagrande parte da sua população. Segundo Ribei-ro (1991), desde os primórdios da colonizaçãodo Brasil a educação esteve voltada para umaelite, fundamentou-se num modelo ideal de alu-no, produziu repetências, analfabetismo, evasõese excluiu do contexto escolar aqueles que dife-riam desse modelo, como o são as pessoas comdeficiência mental.

Uma análise dos dados apresentados peloCenso Escolar de 2005 e pela Secretaria Muni-cipal de Educação (SÃO LUÍS, 2005) sugereque, dado o percentual elevado de pessoas comdeficiência mental no Estado do Maranhão,persistem ainda atitudes de segregação nocontexto educacional em relação às pessoascom deficiência mental. Esses dados suscitamquestionamentos diversos, dentre eles: comoestá ocorrendo o processo de inclusão escolarde alunos com deficiência mental no ensino fun-damental da rede municipal em São Luís-MA?A perspectiva que tem sido adotada na inclu-são escolar de pessoas com deficiência mentalé a da inclusão total ou a da inclusão com amanutenção de modalidades de atendimento emeducação especial? Analisar como está ocor-rendo o processo de inclusão escolar de alunoscom deficiência mental no ensino fundamentalna rede municipal em São Luís - MA constituio objeto deste trabalho.

Para operacionalizar essa pesquisa delimi-taram-se os seguintes objetivos específicos:

a) especificar as principais barreiras enfren-tadas no processo de inclusão escolar de pes-soas com deficiência mental;

b) enumerar as medidas adotadas para a in-clusão escolar de pessoas com deficiência men-tal;

c) caracterizar os benefícios decorrentes dainclusão escolar de pessoas com deficiênciamental para a comunidade escolar e para a so-ciedade em geral.

A escolha da rede municipal de ensino, comocentro deste estudo, deve-se ao fato de estarprescrita, no Inciso I do Artigo 208 do CapítuloIII (Da Educação, da Cultura e do Desporto)

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da Constituição Federal (BRASIL, 1998) e noInciso I do Artigo 4º do Título III (Do Direito àEducação e do Dever de Educar) da Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,1996), a obrigatoriedade de atendimento educaci-onal no ensino fundamental. Nesta perspectiva,acredita-se que, neste nível de ensino, a aprendi-zagem entre alunos com necessidades especiaise os ditos “normais” levem à valorização da di-versidade, da condição humana e de valores uni-versais. Podem proporcionar mudanças de atitudesdesde as fases iniciais da escolarização. A edu-cação, em suas dimensões humanizadora e soci-alizante, possibilitará um novo olhar sobre oseducandos com necessidades especiais, respei-tando-os nas diferenças e desenvolvendo suas po-tencialidades no sistema regular de ensino,estabelecendo uma convivência construtiva, sa-dia e sem preconceitos entre os alunos não defici-entes e aqueles com deficiência.

A educação promove o pleno desenvolvimen-to da personalidade e das potencialidades dos in-divíduos e, nos primeiros anos de vida, éindispensável para evitar transtornos futuros nasaprendizagens escolares. Além disso, a possibili-dade de construção de uma sociedade para todoscomeça, também, no ensino fundamental, pressu-pondo-se que, neste nível de ensino, preconceitosem relação à pessoa com deficiência mental pos-sam ser dirimidos e atitudes calcadas em valoreshumanos relativos à igualdade, à fraternidade e àsolidariedade possam ser cultivados.

Corroborando o exposto, convém salientarque, segundo o Artigo 32º do Capítulo I (DaComposição dos Níveis Escolares) do Título V(Dos Níveis e das Modalidades de Educação eEnsino) da atual Lei nº 9.394/96 (BRASIL,1996), estabelece-se que:

O ensino fundamental, com duração mínima deoito anos, obrigatório e gratuito na escola públi-ca, terá por objetivo a formação básica do cida-dão, mediante:

I - o desenvolvimento da capacidade de apren-der, tendo como meios básicos o pleno domínioda leitura, da escrita e do cálculo; (...)

III – o desenvolvimento da capacidade de apren-dizagem, tendo em vista a aquisição de conheci-mentos e a formação de atitudes e valores;

IV – o fortalecimento dos vínculos de família,dos laços de solidariedade humana e detolerância recíproca em que se assenta a vidasocial.

Estudos visando analisar como se tem pro-cessado a inclusão escolar de pessoas com de-ficiência mental foram realizados por diferentesautores, como Voivodic (2004), Wise (2003),Santos (2003) e Oliveira (2003). Esses estudosprocuraram analisar as medidas adotadas paraa inclusão, o percentual de alunos com defici-ência mental matriculados no ensino regular,além dos benefícios desse processo para pro-fessores, alunos com deficiência mental e paraa sociedade como um todo.

Em São Luís do Maranhão encontram-secontribuições científicas de Leitão (2001) eCarvalho (1998), a partir de pesquisas sobrepessoas com necessidades especiais. A pes-quisa de Leitão (2001) procurou estudar a re-construção histórica da Educação Especial eteve como objetivo “problematizar conceitos,fundamentações, bases teórico-conceituais quecompõem o planejamento público educacionalpara os sujeitos denominados portadores de ne-cessidades especiais.” (LEITÃO, 2001, p. 9).A autora concluiu que as políticas de educaçãoespecial precisam ser analisadas no bojo daspolíticas sociais do estado capitalista, destacan-do que estas devem ser consideradas em seucontexto social, econômico e político.

Carvalho (1998), por sua vez, dedicou-se aoestudo da integração de alunos de classes es-peciais, especificamente de pessoas deficien-tes mentais, nas escolas públicas estaduais de1º grau de São Luís do Maranhão. A autoraoptou por “analisar as oportunidades que a es-cola pública estadual de 1º grau do municípiode São Luís oferece para a integração do alu-nado da classe especial – área de deficiênciamental.” (CARVALHO, 1998, p. 8). Os resul-tados desse estudo demonstraram que ocorreuma integração parcial nas classes especiais dasescolas pesquisadas.

Verifica-se, do exposto, que há uma carên-cia de estudos e pesquisas em São Luís doMaranhão em relação ao atendimento educa-cional a pessoas com necessidades especiais,

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mais especificamente à educação de pessoascom deficiência mental. Mendes (2002) ressal-ta que a literatura científica demonstra escas-sez de pesquisas avaliativas e propositivas sobrea inclusão na realidade brasileira. Segundo aautora, são necessários estudos que contribu-am para a elucidação de vários aspectos relati-vos a esse processo, tais como a avaliação decomo se tem dado a inclusão, a perspectiva dosenvolvidos na comunidade escolar, especialmen-te professores regulares e demais alunos, e osefeitos no acesso a recursos e serviços e nasatitudes e preferências das famílias. Para Men-des (2002), a ausência de avaliações compro-mete a implantação da educação inclusiva, efaltam conhecimentos sobre os suportes neces-sários para se garantir não apenas o acesso,mas também a permanência e o sucesso de alu-nos com necessidades especiais em classescomuns de escolas regulares. Esse estudo podepreencher lacunas relativas à realidade educa-cional da pessoa com deficiência mental em SãoLuís/Maranhão, dada a escassez de pesquisasnesta área.

Por fim, salienta-se que, além de sensibili-zar autoridades e a população para a proble-mática do atendimento educacional a pessoascom deficiência mental, essa pesquisa pode ofe-recer um diagnóstico da situação educacionalde alunos com deficiência mental no ensino fun-damental. Pode constituir-se, também, num pri-meiro passo para que medidas adequadas sejamefetivadas na rede municipal de ensino, no sen-tido de concretizar a inclusão escolar de pesso-as com deficiência mental, atendendo as suasreais necessidades.

2. INCLUSÃO ESCOLAR DE PESSO-AS COM NECESSIDADES ESPECIAIS

Carvalho (2004) e Mantoan (2003a, 2003b)têm oferecido inúmeras contribuições teóricassobre o assunto, destacando-se aspectos comoa conceituação de inclusão escolar, os obstácu-los que se interpõem à sua efetivação, as medi-das adotadas para a sua execução, assim comoos benefícios advindos desse processo.

A inclusão escolar representa novo paradig-ma no âmbito educacional, ao propor que a di-versidade seja aceita como elemento constituintedo processo de ensino-aprendizagem. ParaCarvalho (2004, p. 27) “o paradigma da inclu-são representa um resgate histórico do igualdireito à educação de qualidade”.

Segundo Mantoan (2003b, p. 57):A inclusão é uma inovação que implica um es-forço de modernização e de reestruturação dascondições da maioria de nossas escolas (espe-cialmente as de nível básico), ao assumirem queas dificuldades de alguns alunos não são ape-nas deles, mas resultam, em grande parte, domodo como o ensino é ministrado e de como aaprendizagem é concebida e avaliada.

No contexto da inclusão a escola deve adap-tar-se às necessidades educacionais dos alu-nos, com deficiência ou não. A inclusãofundamenta-se no modelo social da deficiên-cia, minimizando, assim, a responsabilidade doeducando em relação ao fracasso escolar. Sali-ente-se que no âmbito da inclusão escolar per-sistem duas tendências: a da inclusão total(MANTOAN, 2003a), e a da inclusão com amanutenção das modalidades de atendimentoem Educação Especial defendida por Carvalho(2004) e Correia e Cabral (1999).

A inclusão pode ser entendida como um prin-cípio que preconiza a convivência das diversi-dades, pressupondo-se que as diferenças sãoconstituintes do ser humano e caracterizam-secomo a maior riqueza da vida em sociedade. Aênfase no papel da diversidade é ressaltada porautores como Carvalho (2004), Mantoan(2003a; 2003b), Marques e Marques (2003),Fonseca (2003), Stainback e Stainback (1999)e Correia e Cabral (1999).

Para Carvalho (2004), a inclusão dirige-se atodos os educandos, contempla inúmeras ofer-tas educativas e considera a heterogeneidade ea diversidade. No entanto, para esta autora, aose adotar essa proposta não se deve eliminaras modalidades da educação especial, princi-palmente para aqueles que necessitam de apoiointenso e permanente.

Em comentário acerca do paradigma da in-clusão, Mantoan (2003b, p. 15) adverte:

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... a escola se entupiu do formalismo da raciona-lidade e cindiu-se em modalidades de ensino,tipos de serviço, grades curriculares, burocra-cia. Uma ruptura de base em sua estrutura orga-nizacional, como propõe a inclusão, é uma saídapara que a escola possa fluir, novamente, espa-lhando sua ação formadora por todos os quedela participam.

Outros aspectos relacionados à inclusão, ci-tados pela autora (2003b, p. 55), são os seguin-tes: “A inclusão implica em acesso, permanên-cia e prosseguimento da escolaridade até o nívelque cada aluno for capaz de atingir. (...) não háinclusão, quando a inserção de um aluno é con-dicionada à matricula em uma escola ou classeespecial.”

A inclusão, ainda, envolve basicamente “umamudança de atitude face ao Outro: (...) o outroé alguém que é essencial para a nossa consti-tuição como pessoa e dessa Alteridade é quesubsistimos, e é dela que emana a Justiça, agarantia da vida compartilhada.” (MANTOAN,2004, p. 55).

Para Mantoan (2003b, p. 8), “As escolasinclusivas são instituições abertas incondicional-mente a todos os alunos”. Nelas atende-se àsdiferenças sem qualquer discriminação, traba-lhando-se conjuntamente com todos os alunos.De maneira geral, para a autora, a inclusão afe-ta várias categoriais: profissionais da área deSaúde e Educação (geral e especial), associa-ção de pais, pais de crianças normais e gruposde pesquisa das universidades.

Segundo Marques e Marques (2003), comoprincípio alicerçado no dado atual da diversidadea inclusão contempla necessariamente todas asformas possíveis da existência humana. Paraesses autores a diversidade pressupõe dois as-pectos: “o reconhecimento e o respeito pelo quefaz uma pessoa um ser diferente de todos osdemais e a preservação do dado de que todas aspessoas são iguais no que se refere ao valormáximo da existência: a humanidade do homem.”(MARQUES; MARQUES, 2003, p. 233).

Correia e Cabral (1999) entendem que a in-clusão implica na inserção do aluno na classeregular, onde, sempre que possível, deve rece-ber todos os serviços educativos adequados,

contando-se, para esse fim, com um apoio apro-priado às suas características e necessidades.Para esses autores, a inclusão deve tambémadmitir um contínuo educacional em que a mo-dalidade de atendimento mais adequada para oaluno com necessidades educacionais especi-ais deverá ser determinada pelo Plano Educati-vo Individualizado (PEI). A proposta de Correiae Cabral (1999) é de inclusão com a manuten-ção do continuum de serviços educativos comoresposta às necessidades da criança. A seguintecitação ilustra essa idéia defendida por Correiae Cabral (1999, p.38).

Há casos em que as características, as capacida-des e as necessidades de aprendizagem de de-terminada criança podem requerer modalidadesde atendimento diversificadas. Acreditamos, as-sim, como muitos dos defensores do princípioda inclusão, que devem ser consideradas op-ções e providenciados serviços adequados paraas crianças com necessidades educacionais es-peciais severas, sempre que possível, na classeregular, mas não excluímos a hipótese da res-posta não estar sempre, o tempo inteiro, nessamesma classe regular.

Correia e Cabral (1999) sugerem um mode-lo de inclusão progressivo, que permita a for-mação de níveis de inclusão – de limitado a total,dependendo de uma série de fatores: naturezae severidade da problemática da criança comnecessidades educacionais especiais; os recur-sos humanos e materiais existentes; o relacio-namento entre o professor de ensino regular eo da Educação Especial; a participação paren-tal; os apoios prestados por outros serviços; e aformação do professor e de outros agentes edu-cativos.

Dessa forma, Correia e Cabral (1999) pro-põem três níveis de inclusão que devem ter porbase as atividades acadêmicas e sociais desen-volvidas na escola regular. Segundo esses au-tores, a maioria dos alunos com necessidadeseducacionais especiais (situações ligeiras emoderadas) deve ser inserida no nível I – inclu-são total. Só um pequeno número de alunos (si-tuações moderadas e severas que requeirampráticas excepcionais) deve ser considerado nonível II – inclusão moderada. E só um número

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reduzido de alunos (situações severas que oexijam) é que deve ser mantido no nível III –inclusão limitada.

Mantoan (2004), por sua vez, mostra-seradical em sua perspectiva, admitindo que ainclusão escolar pressupõe a inserção do alu-no com ou sem deficiência na classe regu-lar. A autora admite que o atendimentosegregado, seja provisório ou definitivo, de-riva do paradigma que se fundamenta naEducação Especial, promovendo a exclusãoparcial ou total.

No que tange às barreiras ou dificuldadesenfrentadas na concretização da Educação In-clusiva, a opinião dos autores é ampla. Carva-lho (2004) afirma ser indispensável, para quea Educação Inclusiva se concretize, a remo-ção de barreiras conceituais, atitudinais e polí-tico-administrativas, cujas origens são múlti-plas e complexas, não havendo, no entanto,necessidade de hierarquizá-las, na medida emque se relacionam. Essa autora identifica comoprincipais barreiras à implantação da propostainclusiva os seguintes aspectos: formação dosprofessores; as necessidades educacionais dosalunos; a freqüência das reuniões nas esco-las; as atitudes negativas frente à diferença eà deficiência; os modelos classificatórios deavaliação educacional; as injustiças sociais eeconômicas produtoras da desigualdade soci-al; a concepção que se tem da sociedade edas funções da escola.

Uma atenção especial é dada ao diagnósti-co que, segundo Carvalho (2004), se configuracomo mais uma dificuldade na implementaçãoda proposta inclusiva. A cultura de diagnosti-car, seja com a finalidade de triagem, seja paraescolher o melhor procedimento, ainda estámuito arraigada, segundo a autora. Além doresquício em relação ao modelo médico, esseaspecto é considerado um dos maiores obstá-culos à inclusão, na medida em que reforça osestigmas.

Um outro aspecto significativo ressaltado porCarvalho (2004), como empecilho à propostainclusiva, diz respeito ao mito de que as pesso-as com deficiência apresentam diferenças, en-tendidas como qualidades negativas. Este mito

tem alimentado a idéia de que tais pessoas ne-cessitam de espaços próprios e específicos paraserem trabalhadas, assim como de tratamentoe profissionais especializados, o que reforça ainsegurança, o medo e a resistência dos pro-fessores das classes regulares em trabalharemcom alunos com deficiência, justificando-se asua queixa de despreparo profissional. Desfa-zer esse núcleo de representações sociais, se-gundo Carvalho (2004), constitui-se numa dastarefas iniciais para a implementação da inclu-são, levando os educadores, em geral, a enten-derem que a proposta de educação inclusivadiz respeito a todos os que, por diversas razões,têm sido excluídos, abandonando precocemen-te a educação escolar.

Quanto à queixa de despreparo dos pro-fessores para trabalharem com alunos com de-ficiências, Carvalho (2004) é enfática,afirmando que os professores consideram-sedespreparados para a tarefa, porque a forma-ção habilitou-os a trabalhar sob a hegemoniada normalidade. Segundo a autora, é precisoultrapassar a qualidade da formação inicial econtinuada dos educadores, levando-os a con-siderar a diversidade e a heterogeneidadecomo elementos significativos no processoensino-aprendizagem.

Mantoan (2004) afirma como resistênciasou barreiras à inclusão as atitudes familiares,as dos professores da educação especial e doensino regular, e as atitudes dos próprios alu-nos. Para essa autora a reação dos professo-res à inclusão, justificando a sua falta de preparopara lidar com a diversidade dos alunos, mas-cara na verdade o medo de enfrentar o novo,uma das principais barreiras à inclusão.

Outra barreira que precisa ser transposta,para a efetivação do ensino inclusivo, segundoMantoan (2004, p. 84), é a:

... inadequação de métodos e técnicas de ensinotradicional, baseados na transmissão de conhe-cimentos e na individualização das tarefas deaprendizagem. Nessas condições organizacio-nais de trabalho pedagógico é impossível criarsituações, a partir das quais cada aluno possaaprender e perceber-se como sujeito ativo naconquista do conhecimento.

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Para Mantoan (2004), nas condições tradi-cionais de ensinar, reforçam-se a competição ea homogeneização entre os alunos. Isto impedeos professores de contemplarem as diferençase reconhecerem o valor e a riqueza que elasrepresentam para o desenvolvimento dos pro-cessos educativos, dentro e fora das escolas.

Uma outra barreira à inclusão, destacada porMantoan (2004), é a presença de professoresespecialmente destacados para acompanharemo aluno com deficiência nas atividades de salade aula, servindo como apoio ou mesmo res-pondendo diretamente pela inserção desse alu-no no meio escolar. Segundo a autora, essaatitude exclui e segrega o aluno, além de des-qualificar o professor responsável pela turma,que não modificará a sua maneira de atuar nasala de aula, visto que as necessidades educati-vas do aluno com deficiência estão sendo su-pridas pelo educador especializado.

Infelizmente, segundo essa pesquisadora(2004), muitos sistemas educacionais entendemque essa solução é válida em fases intermediá-rias de implantação do sistema inclusivo, consi-derando-se a presença dos professores de apoioe até mesmo das classes especiais sediadas emescolas regulares como degraus necessáriospara se chegar à inclusão.

Convém destacar, também, a contribuição deOliveira (2003, p.37), para quem a maior dificul-dade à inclusão é “lidar com as diferenças deforma diferente, garantindo o princípio de igual-dade de oportunidades a todos os educandos”.

Uma vez analisadas as principais barreiraspara a efetivação da educação inclusiva têm-seas principais medidas a serem adotadas nos sis-temas educacionais para que eles se tornem in-clusivos. Infere-se de Ramos (2005) que os prin-cipais requisitos para a efetivação da inclusãosão os seguintes: filosofia educacional de baseconstrutivista, pois considera as diferenças naaprendizagem dos indivíduos; de consciência dacomunidade (alunos, pais) de que os educandoscom necessidades especiais não vão atrapalharo processo de ensino-aprendizagem mas, sim,ajudar, construindo sentimentos de solidariedadee respeito às diferenças; presença de uma equi-pe preparada para o novo, o inusitado; matrícu-

las dos alunos com necessidades especiais, con-siderando-se sua idade cronológica; e combateà prioridade de aprendizagem de conteúdos emdetrimento da aprendizagem da vida.

Além desses aspectos, Ramos (2005, p. 15-16) acrescenta que, para a inclusão efetivar-se, faz-se necessária a desmistificação de que:

... portadores de necessidades especiaisnecessitam de cuidados especiais (...); aquelesque lidam com portadores de necessidadesespeciais, principalmente os professoresprecisam ser especialistas (...); portadores denecessidades especiais têm de estar em escolasespeciais; (...) de que eles atrapalham aaprendizagem de outras crianças.

Ramos (2005) ainda se refere à necessida-de de mudanças no processo avaliativo, quedeve considerar o potencial do aluno e não asexigências do sistema escolar, e respeitar o rit-mo de aprendizagem de cada um como aspec-tos a serem contemplados na inclusão escolar.

Segundo Mantoan (2004), os princípios edu-cacionais humanistas norteiam a escola inclusi-va e os professores devem ter um perfilcompatível com esses princípios. A sua forma-ção necessita ultrapassar a graduação e os cur-sos de pós-graduação, constituindo-se mesmonuma autoformação, na medida em que acon-tece no interior das escolas a partir do interes-se docente em melhorar a sua prática escolar.

Outro aspecto salientado por Mantoan(2004), no que tange à consecução de projetoseducacionais inclusivos, diz respeito à partici-pação de toda a comunidade escolar (pais, pro-fessores, diretor, alunos e todos os interessadosem Educação) na organização curricular, quedeve considerar as condições físicas e sócio-culturais do meio em que se insere a escola.Salienta Mantoan (2004, p. 91) que:

Nas escolas inclusivas, a progressão no ensinonão é serial, linear, mas sincrônica e organizadaem ciclos de formação/desenvolvimento quecobrem as faixas etárias de 6 a 11 anos, de 11 a 14anos para o caso do ensino fundamental.

Esses tempos permitem que o aluno transite numdado nível sem reprovações, sem desvios para oensino especial, pois não estabelecem quandouma criança ou jovem deve mudar de série esco-

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lar ou se estão ou não preparados num certomomento para uma ou outra de suas passagens.

Referindo-se à formação dos professores,uma outra medida relativa à consecução da in-clusão escolar, Mantoan (2003a) sugere que sejafeita a fusão entre a educação especial e a edu-cação regular nos sistemas escolares, e a im-plantação da formação única para todos oseducadores. A formação inicial dos educado-res eliminaria, em grande parte, as reações ne-gativas dos professores do ensino regular diantedos alunos com deficiência. Quanto à forma-ção continuada, os professores teriam garanti-do um tempo de estudo nas escolas e em seushorários de trabalho.

Mantoan (2003a) discorda do caráter espe-cial e da validade de métodos de ensino escolarpara pessoas com deficiências, pois tais proce-dimentos levam a um rebaixamento do nível deexpectativa do professor em relação às poten-cialidades do aluno, à sua capacidade de cons-truir conhecimentos. Segundo a autora, osprocedimentos de adaptar currículos, facilitartarefas e diminuir o alcance dos objetivos edu-cacionais devem ser substituídos pela crençanas potencialidades do educando e pela valori-zação do que foi produzido por ele.

A extinção das habilitações dos cursos dePedagogia para formação de professores dealunos com deficiência é sugerida por Mantoan(2004, p.93) quando afirma:

... os cursos de especialização não deveriam sededicar a especializar os educadores em algumtipo de incapacidade, em uma categoria de alu-nos, mas estar voltados para o aprofundamentopedagógico desse profissional, de modo quepudesse entender melhor as crianças em geral,em seu desenvolvimento.

Carvalho (2004) propõe, como medidas paraa efetivação da inclusão: projeto político-peda-gógico da escola compatível com o paradigmada inclusão; revisão da metodologia didáticaatualmente adotada; intensificação da relaçãofamília/escola; oferta de mais cursos para osprofessores; redução do numero de alunos porturma; presença de outra professora em sala-de-aula; trabalho, separadamente, com os alu-nos com deficiência; aumento do número de

professores especializados em cada escola ereestruturação do sistema educacional escolar.

A mesma autora (2004) salienta, também,que as condições sócio-econômicas do Brasildevem ser revistas, principalmente no que dizrespeito às suas implicações na desvalorizaçãodo magistério, a fim de que as escolas se tor-nem espaços inclusivos.

Por sua vez, Oliveira (2003) propõe umasérie de modificações à escola quando da im-plantação do paradigma da inclusão, para aten-der às necessidades do educando. Essasmudanças refletem-se em vários aspectos daescola como organização, e dizem respeito aofertas de apoios específicos para professorese alunos; utilização de recursos da comunidade(de ordem clínica, pedagógica, material ou físi-ca); intercâmbio entre escolas, classes e co-munidade; treinamento de funcionários;alterações arquitetônicas e estruturais; e capa-citação do pessoal técnico-administrativo.

Infere-se de Fonseca (2003) que, para aimplantação de escolas inclusivas, são neces-sárias as seguintes providências: modificaçõesna gestão, na organização, no equipamento, nossuplementos multiterapêuticos e, sobretudo, nasatitudes e atuação de uma equipe multidiscipli-nar. Além desses aspectos, salienta o autor, casose queira promover uma educação inclusiva,visando os efeitos benéficos de longo prazo,devem-se criar serviços de suporte, realizarmodificações psicopedagógicas, curriculares, edo processo avaliativo (que deve ser dinâmicoe longitudinal), reestruturar a cultura, as políti-cas e as práticas escolares, de forma a respon-der à diversidade.

Embora as escolas possam desenvolver inú-meras ações em prol da inclusão, também éverdade que elas enfrentam inúmeros limitesque só poderão ser superados com mudançassistemáticas nas políticas nacionais, com ênfa-se para aquelas diretamente relacionadas à edu-cação. Além disso, a política educacional devearticular-se com as políticas públicas responsá-veis pela distribuição de recursos financeirospara programas de saúde, nutrição, bem-estarfamiliar, trabalho, emprego, ciência e tecnolo-gia, transportes, desporto e lazer.

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De tudo que foi exposto, convém salientarque a inclusão implica, em primeiro lugar, na acei-tação de todas as crianças como pessoas, comoseres humanos únicos e diferentes entre si, o queacontecerá realmente quando todas as escolasse modificarem. A modificação não é somentenas instalações físicas, mas em todas as propos-tas pedagógicas, metodológicas e administrati-vas. Sassaki (2003) e Mantoan (1997) afirmamque é a escola que deve se adaptar às crianças,de modo a atender todos os alunos e não o con-trário. A inclusão necessita de professores es-pecializados para todos os alunos. Taisprofessores deverão voltar a estudar, a refletirsobre suas práticas e a buscar metodologias ino-vadoras de ensino para esse fim. O maior desa-fio para implantar-se a inclusão diz respeito aofator humano, segundo Mantoan (2003b).

Depreende-se das contribuições de Sassaki(2003) e de Stainback e Stainback (1999), quealguns benefícios da inclusão compreendem osseguintes aspectos: desenvolvimento da apre-ciação da diversidade individual; aquisição deexperiência direta com a variação natural dascapacidades humanas; acesso a uma gamaampla de modelos de papel social; atividadesde aprendizagem de redes sociais; demonstra-ção crescente de responsabilidade e melhoriasna aprendizagem através do ensino entre alu-nos; ganhos nas habilidades sociais e acadêmi-cas e preparação para a vida na comunidade,assim como atitudes positivas.

Além desses aspectos, Karagiannis, Stain-back e Stainback (1999) destacam que progra-mas adequados de inclusão tanto para alunoscom deficiência como para os sem deficiênciapromovem ganhos nas habilidades sociais eacadêmicas, preparando-os para a vida na co-munidade e para atitudes positivas. Madden eSilva (apud STAINBACK; STAINBACK,1999) corroboram esta perspectiva e acrescen-tam que há ganhos, também, nas habilidades davida diária. Prosseguem os autores, afirmandoque, em casos de graves deficiências cogniti-vas, é importante não se preocupar com habili-dades acadêmicas. Para esses alunos o queimporta é a oportunidade de adquirir habilida-des sociais através da sua inclusão.

Para Carvalho (2004, p. 133), os professo-res “reconhecem vantagens na inclusão de de-ficientes, nos aspectos sociais (54%) e noscognitivos (15%) na medida em que preconcei-tos serão eliminados, facilitar-se-à a integraçãosocial desses alunos, gerando solidariedade en-tre os colegas que se estimularão para ajudarna aprendizagem”.

No que tange especificamente aos benefí-cios para os professores, salientam Karagian-nis, Stainback e Stainback (1999) que o ensinoinclusivo requer destes novas habilidades paratrabalharem com alunos acadêmica e social-mente deficientes. Há apoio cooperativo e me-lhoria das habilidades profissionais, e aoportunidade de planejarem e conduzirem aeducação como parte de uma equipe, manten-do-se a cooperação entre professores e técni-cos (apoio psicológico), e consultas a outroscolegas. Essa atitude leva os professores amelhorarem suas habilidades profissionais.

Os mesmos autores asseveram que a razãomais importante para o ensino inclusivo é o va-lor social da igualdade. Em contraste com asexperiências passadas de segregação, a inclu-são reforça a prática de que as diferenças sãoaceitas e respeitadas. Quando as escolas inclu-em todos os alunos, a igualdade é respeitada epromovida como um valor na sociedade. ParaKaragiannis, Stainback e Stainback, (1999), emuma sociedade cada vez mais diversificada oensino inclusivo ensina os alunos a aceitaremas pessoas que são diferentes.

3. METODOLOGIA

Para abordar o tema sobre a inclusão esco-lar de alunos com deficiência mental no ensinofundamental, optou-se pelo método dialético, porele possibilitar a análise do fenômeno da inclu-são escolar em seu contexto mais amplo, con-siderando-se as contradições internas destefenômeno social.

Optou-se pela pesquisa descritiva tendo emvista que, segundo Gil (1999), busca-se a des-crição do fenômeno, a inclusão escolar de alu-nos com deficiência mental na rede regular de

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ensino, além da relação entre os fatores deter-minantes desse processo, considerando-se a suainerente contradição. Por sua vez, as informa-ções para a realização do referido estudo fo-ram buscadas em documentos internacionais,nacionais, estaduais e municipais, na própriabibliografia sobre o assunto e no campo, confi-gurando-se, assim, respectivamente, um estu-do de caráter documental, bibliográfico e decampo, segundo Gonsalves (2003).

Quanto à natureza dos dados, a pesquisa emquestão é qualitativa, pois preocupa-se com acompreensão e a interpretação do fenômeno.Entretanto, fez-se uso de medidas objetivas, debase estatística, o que também caracteriza oestudo como quantitativo, segundo Gonsalves(2003). Embora a ênfase tenha sido dada à pes-quisa qualitativa, procurou-se nesse estudo su-perar a dualidade existente entre os modelosqualitativos e quantitativos de pesquisa, anali-sando-se os dados objetivos a fim de ofereceruma melhor compreensão do fenômeno a serestudado.

Foram sujeitos deste estudo cinco diretoresde escolas-pólo da rede municipal de ensino deSão Luís-MA, que incluem em salas regularesalunos com deficiência mental. Os diretores ti-nham, na época da pesquisa, respectivamente56, 52, 51, 48 e 45 anos, sendo quatro do sexofeminino e um do sexo masculino. Quanto àformação profissional, um era formado em His-tória, outro em Matemática, e os demais emPedagogia, sendo que um deles com habilita-ção em Administração e Magistério de 1º e 2ºgraus e outro com habilitação em OrientaçãoEducacional e Magistério. Três diretores pos-suíam especialização, um (D1) em Administra-ção Escolar, outro (D3) em Educação Especial,enquanto um terceiro (D5) tinha três especiali-zações: Coordenação Pedagógica, Psicopeda-gogia e Gestão Pública.

Do total de dez escolas-pólo elencadas pelaSecretaria Municipal de Educação (SEMED)apenas cinco corresponderam aos critérios deseleção adotados pela pesquisa. Estes incluí-ram os seguintes aspectos:

a)presença de alunos com deficiência men-tal na sala regular;

b)localização na zona urbana de São Luís,devidamente delimitada, segundo documento daSEMED.

Optou-se pelas escolas da zona urbana porapresentarem percentual maior de escolas-pólo,segundo dados da SEMED, além de maior fa-cilidade de acesso.

A pesquisa foi realizada portanto em cincoescolas-pólo da rede municipal de ensino de SãoLuís. Estas, segundo a SEMED, são escolasque apresentam classes especiais, salas de re-cursos e alunos inclusos. As cinco situam-senos bairros da Alemanha, Anil, Centro, Pão-de-Açúcar, Cidade Operária e Cohab.

O instrumento de coleta de dados utilizadofoi a entrevista estruturada, feita com os dire-tores. Após a sua elaboração, realizou-se umapré-testagem com diretores de uma InstituiçãoFilantrópica em São Luís-MA.

O passo seguinte na coleta e análise de da-dos foi a realização de um contato junto à SE-MED, a fim de se realizar um levantamento dequantas e quais escolas-pólo, situadas na zonaurbana de São Luís do Maranhão, apresenta-vam alunos com deficiência mental matricula-dos em sala regular. Num segundo momento,foram contatados os diretores de cada umadessas escolas, devidamente enumeradas pelaSEMED, para verificar se nelas havia alunosna mesma situação. Após se certificar de queas escolas-pólo apresentavam alunos com de-ficiência mental matriculados, um novo contatofoi feito com as escolas para agendar entrevis-tas com os diretores. Estas foram realizadasindividualmente no ambiente da escola, com aautorização dos entrevistados, sendo gravadase, posteriormente, transcritas.

As entrevistas com os diretores das esco-las-pólo foram inicialmente transcritas na ínte-gra, preservando-se os conteúdos originais dasfalas. Inicialmente ouviu-se o começo dessasentrevistas; quando necessário se voltou ao iní-cio das gravações, sendo estas ouvidas nova-mente. A transcrição ocorreu de forma paulatinae progressiva, voltando-se várias vezes às fa-las até que se conseguisse a transcrição porcompleto, em termos impressionistas, confor-me entendido.

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Na transcrição dos conteúdos das gravaçõesconsiderou-se a perspectiva teórica de Queiroz(1983, p. 90), de modo a “... buscar os princípi-os que presidiram a construção do texto e des-vendar a origem do mesmo, pela compreensãoem profundidade daquilo que ele contém.” Apóster transcrito as entrevistas, deu-se prossegui-mento à análise dos depoimentos, identifican-do-se “... trechos que aparecem no discurso eque se relacionam com o objetivo da pesquisa,pinçando-se ou ressaltando-os para uma discus-são do conteúdo.” (MANZINI, 1991, p. 81).

Após a transcrição das entrevistas e análisedos conteúdos, os dados foram agrupados emcategorias, conforme cada pergunta realizada.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Seguem-se as perguntas das entrevistas comas respectivas respostas:

4.1. Entrevistas com os Diretores

1ª O que é inclusão escolar para o Sr.(a)?Ao referir-se à inclusão escolar observou-

se que três diretores a associam ao atendimen-to educacional voltado para a diversidade,enquanto os outros dois diretores interpretam ainclusão escolar com sendo a inserção de alu-nos com necessidades especiais na escola re-gular, o que constitui um equívoco.

Depreende-se dos depoimentos dos direto-res que ainda persistem entre eles equívocosem relação ao entendimento do que venha aser inclusão escolar, associando-a apenas à in-serção de alunos com necessidades educacio-nais especiais no contexto escolar, apesar detrês dos entrevistados considerá-la um proces-so mais amplo que diz respeito a todo aluno.

2ª Quais as dificuldades enfrentadas paraa inclusão escolar de alunos com deficiênciamental na rede municipal de ensino?

Segundo dois diretores, as atitudes familia-res constituem a principal barreira à inclusãoescolar de pessoas com deficiência mental.Segundo um diretor, a resistência dos professo-

res em efetivarem a inclusão escolar dessaspessoas também constitui um empecilho. Res-ta salientar que para os outros dois diretoresnão existem dificuldades desta ordem no ensi-no fundamental, da rede municipal de ensino deSão Luís-MA.

O aspecto salientado nos depoimentos, re-ferente à resistência dos professores em efeti-varem a inclusão, lembra Carvalho (2004),quando esta autora destaca que os professoresse consideram despreparados, porque a forma-ção habilitou-os a trabalhar sob a hegemoniada normalidade. Além disso, parece que a re-sistência dos professores passa pela dificulda-de em aceitar a diversidade humana, comosalienta Oliveira (2003). Convém ressaltar que,para Mantoan (2004), o “discurso do desprepa-ro profissional” na verdade mascara o medo deenfrentar o novo, representado pela inclusão.

3ª Quais medidas têm sido adotadas naescola para facilitar a inclusão de alunoscom deficiência mental na rede municipalde ensino?

Os quatro diretores ressaltaram que a for-mação de professores tem sido a medida maiscomumente adotada nas escolas para facilitara inclusão de pessoas com deficiência mental.Entretanto, um diretor apontou a sensibilizaçãoda comunidade escolar como medida para aimplantação da inclusão escolar de pessoas comdeficiência mental.

O despreparo dos professores para trabalha-rem com alunos com deficiências é apontada pordiversos autores. Carvalho (2004) explica essedespreparo, justificando que a formação habili-tou-os a trabalhar sob a hegemonia da normali-dade. É necessário considerar a diversidade e aheterogeneidade como elementos significativosno processo de ensino-aprendizagem.

A preocupação com a sensibilização da co-munidade escolar serve para dirimir preconcei-tos em relação à pessoa com deficiência mental,fazendo surgir atitudes adequadas e favoráveisà aceitação das diferenças. Proporcionam-se,dessa forma, elementos para minimizar uma dasmaiores dificuldades de inclusão, conforme Oli-veira (2003), que é lidar com as diferenças,

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aceitando-se a diversidade humana, evitando-se rótulos e comparações entre alunos comdeficiência mental e os “normais”.

4ª Que benefícios traz a inclusão escolarde alunos com deficiência mental para aescola, os professores, alunos em geral, paraos próprios alunos com deficiência mental,pessoal administrativo e para a sociedadeem geral?

Todos os diretores afirmaram que a inclu-são escolar de pessoas com deficiência mentaltraz benefícios. Tratando-se especificamente daescola, três diretores admitiram que o grandebenefício para ela é a mudança de olhar e atitu-de em relação à pessoa com deficiência men-tal, decorrente da diminuição de preconceitos ediscriminações. Por sua vez, um diretor admitiucomo benefício para a escola o fato dela tor-nar-se um espaço de referência para a comu-nidade. Apenas um diretor acredita que asocialização da pessoa com deficiência mentalé um benefício para a escola, decorrente da in-clusão deste tipo de aluno.

As mudanças que se processaram no mun-do, a partir da década de 80, com a internaciona-lização da economia, levou ao estreitamento dasrelações entre as culturas e os povos. Essas pres-cindem de espaços, onde se possa aprender aconviver com as diversidades e aceitar as dife-renças, como as escolas inclusivas. Assim sen-do, tornar-se uma referência como escola abertaa todos, corresponde a uma das exigências paraa construção de uma sociedade, que tambémaceite a diversidade e se torne inclusiva.

Três diretores destacaram que aprender alidar e conviver com as diferenças é o principalganho para os professores. Por sua vez, de acor-do com dois diretores, os docentes tendem amelhorar suas habilidades profissionais quandohá inclusão de pessoas com deficiência mentalno contexto escolar.

No que tange aos benefícios para os alunosem geral, todos os diretores destacaram que hámelhora no relacionamento e na aceitação dasdiferenças.

Em relação ao benefícios da inclusão paraos próprios alunos com deficiência mental, to-

dos os diretores declararam que, para eles, oprincipal benefício da inclusão escolar é o de-senvolvimento de suas condições psicológicas,tais como auto-estima, potencialidades, talen-tos, capacidades, relacionamento interpessoale socialização.

Para o pessoal administrativo o principalbenefício destacado por todos os diretores foiaprender a lidar e a conviver com os especiais,aprender a conviver com as diferenças, ou di-minuir o preconceito.

Em relação aos benefícios da inclusão es-colar de alunos com deficiência mental para asociedade, as diminuições do preconceito e dadiscriminação, levando a uma visão mais positi-va destes sujeitos, foram descritas por quatrodiretores. Essa visão mais positiva leva à dimi-nuição dos preconceitos em relação a eles que,conseqüentemente, passam a acreditar mais nassuas potencialidades. Para um diretor, os alu-nos deixam de representar um perigo para asociedade.

A visão de que pessoas com deficiênciamental são um risco para a sociedade repre-senta um resquício da teoria da degenerescên-cia de Morel, destacada por Pessotti (1984), paraa qual a deficiência mental representa o últimograu de degradação humana, constituindo-se emum risco à sociedade, na medida em que podeser transmitida geneticamente.

Os benefícios citados pelos diretores emrelação à inclusão corroboram as contribuiçõesde Sassaki (2003), Stainback e Stainback (1999),já que envolvem ganhos nas habilidades soci-ais, preparação para a vida na comunidade, as-sim como atitudes positivas.

5ª Qual a sua opinião sobre a política deeducação inclusiva da rede municipal deensino?

Todos os diretores foram favoráveis à polí-tica de educação inclusiva da rede municipalde ensino. Entretanto, um diretor advertiu paraa necessidade de melhorias na política de edu-cação inclusiva da rede municipal de ensino, coma adoção de investimentos na formação de pro-fessores e a reestruturação do contexto esco-lar. Dessa forma, a inclusão escolar exige

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mudanças estruturais na escola para que ela seadapte às necessidades dos educandos, comopreconiza a Declaração de Salamanca de 1994(UNESCO, 1994). A inserção de alunos comdeficiência mental sem as devidas modificaçõesde ordem atitudinal, conceitual, arquitetônica epedagógica no âmbito da escola, como salien-tam Oliveira (2003) e Ribeiro (2003), conduzi-ria não à inclusão, mas sim à integração, baseadano modelo médico.

6ª Na sua opinião, como está ocorrendoo processo de inclusão escolar de alunos comdeficiência mental na rede municipal de en-sino?

Quatro diretores demonstraram ter apenasconhecimento parcial sobre o processo, com ex-ceção de um diretor, que demonstrou saber comoeste está ocorrendo, destacando que os alunossão encaminhados para as escolas pela SEMED,após serem submetidos a uma avaliação diag-nóstica, realizada por técnicos da secretaria.

A partir dos dados coletados junto aos direto-res, depreende-se que o processo de inclusãoescolar de pessoas com deficiência mental estáocorrendo com a manutenção das modalidadesde atendimento em educação especial, na medi-da em que as escolas-pólo apresentam classesespeciais e alunos com deficiência mental nelasmatriculados, assim como professor itinerante.

Dos resultados deste estudo depreende-seque o processo de inclusão escolar de pessoascom deficiência mental na rede municipal deensino está ocorrendo da seguinte forma: osalunos com deficiência mental são submetidosa um processo de diagnóstico e, dependendodo resultado, são encaminhados para a sala re-gular ou classe especial. Nas classes especiaissão preparados para o ingresso no ensino regu-lar, sendo acompanhados na escola por um pro-fessor itinerante, funcionário da SEMED, a fimde observar se estão aptos ou não para o ensi-no regular. Por sua vez, conforme os dadosobtidos com os diretores, sujeitos da pesquisa,o processo de inclusão escolar está ocorrendocom a manutenção das modalidades de atendi-mento em educação especial, correspondendoà proposta defendida por Carvalho (2004), Cor-

reia e Cabral (1999), a qual prevê a inserçãodesses alunos tanto em salas regulares comonas diferentes modalidades de atendimento emeducação especial, dependendo das caracterís-ticas dos educandos.

7ªQuanto à inclusão escolar de alunoscom deficiência mental na rede municipalde ensino, o(a) Sr.(a) é favorável à inclusãototal ou considera necessária a inclusão coma manutenção das modalidades de atendi-mento em educação especial? Justifique asua resposta.

Todos os diretores são favoráveis à inclu-são com a manutenção das modalidades deatendimento em educação especial. As justifi-cativas dos diretores consideram que, depen-dendo do grau de deficiência mental, o alunonão consegue resultados acadêmicos satisfató-rios em classes consideradas heterogêneas enormais. Outros motivos relatados consistem emque nem todos os professores estão prepara-dos para a inclusão e os alunos com deficiênciamental deveriam ser trabalhados em salas es-peciais, com professores especializados.

Saliente-se que os autores favoráveis à in-clusão com a manutenção das modalidades deatendimento em educação especial, como Cor-reia e Cabral (1999) e Carvalho (2004), nãodestacam que o aluno deva ser preparado paraa classe regular nessas modalidades de atendi-mento, pois isso seria contra o paradigma dainclusão. O que eles observam é que as moda-lidades de atendimento em Educação Especialdevam atender às necessidades educacionaisdos alunos, e que as escolas se reestruturem, oque é compatível com o paradigma da inclusão.A idéia de que o aluno deva ser preparado paraa sala regular parece situar-se no âmbito da in-tegração, e não da inclusão.

5. CONCLUSÃO

Não restam dúvidas de que a inclusão esco-lar de alunos com deficiência mental no ensinofundamental apresenta-se como um desafio aser cumprido pelas redes municipais de ensino,

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como a de São Luís do Maranhão, dada à obri-gatoriedade de sua oferta, principalmente poressa instância administrativa. Verificou-se comesse estudo que, no segmento do ensino funda-mental, há um atendimento educacional reduzi-do a alunos com deficiência mental, dada aescassez de escolas que o fazem, sugerindo queas determinações legais não estão sendo cum-pridas pela rede municipal de ensino. Assim,parece que a inclusão escolar de alunos comdeficiência mental ainda é descumprida, levan-do a crer que existe um descaso do Estado paracom as prescrições que norteiam o processoeducacional tanto em âmbito internacional,como estadual e municipal.

Os dados apresentados sugerem que a redemunicipal de ensino tem realizado a inclusãoescolar com a manutenção das modalidades deatendimento em educação especial. No entan-to, tais modalidades, como a classe especial, paraonde é encaminhada a maioria dos alunos quenão freqüenta as salas regulares, servem depreparo para a inserção no ensino regular. Ob-serva-se, pois, que o modelo adotado aproxi-ma-se mais do da educação integradora do queda educação inclusiva.

Em vez de buscar a reestruturação tantopedagógica como arquitetônica das escolas, oque é condição para a inclusão, a SEMED pre-fere encaminhar os alunos com deficiênciamental para modalidades de atendimento, comoa classe especial, que os mantêm segregadosdo convívio escolar, ainda que essas se situemno âmbito da escola regular. Além disso, o usode uma avaliação psicopedagógica, como pré-requisito para a inserção nas classes regularesou nas classes especiais, sugere que ainda pre-valecem na rede municipal de ensino resquíci-os do modelo médico, condicionando a matrículade alunos com deficiência mental na classe re-gular conforme o resultado de tal avaliação.

Embora a inclusão esteja associada à aten-ção educacional, à diversidade, persistem equí-vocos sobre ela na medida em que algunsentrevistados a associaram à inserção de alu-nos com necessidades especiais na escola re-gular, e não a relacionaram à inclusão de todasas pessoas excluídas.

Tratando-se das condições favoráveis à in-clusão escolar de pessoas com deficiência men-tal na rede regular de ensino, ressalta-se que,embora os documentos internacionais, nacionais,estaduais e municipais sugiram a formação con-tinuada e em serviço para professores, essesainda mantêm o mito de que estão desprepara-dos para trabalhar com alunos com deficiênciamental. Talvez o motivo desse despreparo sejaa presença de preconceitos em relação a essaspessoas, mascarados pelo discurso da necessi-dade de cuidados especiais. Os professoresparecem não perceber que há necessidade deaceitar o aluno com deficiência mental comoum ser único, capaz, com características e po-tencialidades que podem ser trabalhadas. É estavisão que se deve ter de qualquer aprendiz, poisa diferença é que deve ser normal, e não a ho-mogeneidade.

O discurso do despreparo dos professores,embora a rede municipal de ensino esteja inves-tindo na sua formação, conforme relato dos di-retores, demonstra a sua inabilidade para traba-lhar com a diversidade humana em sua práticapedagógica. Os professores foram preparadospara conviver com uma suposta homogeneida-de, que durante séculos tem excluído e segrega-do do contexto escolar pessoas com deficiênciamental.

As barreiras que dificultam a efetivação dainclusão situam-se mais no âmbito atitudinal. Oinvestimento na formação de professores comomedida principal parece não sanar as dificulda-des enfrentadas, pois a formação pode ser ape-nas teórica, não levando a mudanças de atitudesnem à compreensão maior das necessidades,limitações e potencialidades do aluno com defi-ciência mental. Certamente, o trabalho de cons-cientização da comunidade escolar alcançariamelhores objetivos e poderia ser utilizado paraexplicitar que alunos com deficiência mental sãopessoas diferentes como as demais, desmistifi-cando preconceitos e estereótipos em relaçãoa eles.

No que concerne aos obstáculos à inclusãoescolar de alunos com deficiência mental narede municipal de ensino, o grande “vilão dahistória” parece ser a formação de professo-

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res. No entanto, parece contraditório tal discur-so, porque os entrevistados enfatizaram que arede municipal tem realizado investimentos naárea. Resta perguntar: onde estão os professo-res que dizem não estar preparados para atuarcom alunos com deficiência mental, apesar dosinvestimentos? Não restam dúvidas de que aimplantação da inclusão passa pelo compromissosocial de cada um com a construção de umaeducação de qualidade para todos, não somen-te alunos com deficiência mental, como sugereeste trabalho, mas também para todos os ex-cluídos dos diferentes sistemas sociais.

Outras medidas detectadas nesse trabalho,como a sensibilização da comunidade escolar,apontam para a necessidade de se efetivaremmudanças no âmbito atitudinal em relação aosalunos com deficiência mental. Essas mudan-ças devem acontecer inicialmente em relaçãoaos próprios professores, na medida em queestes alimentam, ainda, idéias preconceituosasem relação a este alunos. É oportuno salientarque essas atitudes constituem um entrave à in-clusão escolar, considerando-se que podem con-duzir à idéia errônea de que pessoas comdeficiência mental não são capazes de acom-panhar o curso normal de salas regulares, ne-cessitando de espaços segregados para quesejam educadas.

Foi dito pela maioria dos entrevistados queo grande benefício da inclusão escolar de pes-soas com deficiência mental, na rede municipalde ensino, é a aprendizagem da convivênciacom a diferença, dada a diminuição de precon-ceito em relação a essas pessoas. Certamente,se o benefício fosse estendido à sociedadecomo um todo, contribuiria para uma mudançade olhar em relação a elas, o que a levaria a ser

uma sociedade mais eqüitativa, justa e menospreconceituosa.

Quanto aos alunos com deficiência mental,esses tendem a desenvolver suas condiçõespsicológicas, como auto-estima, potencialidades,talentos, capacidades e respeito, quando inclu-sos no ensino regular.

Conforme o que já foi dito, é dever do Esta-do oferecer educação à população. No entan-to, o que se observa é a sua omissão nocumprimento de determinações neste sentido,relegando a um segundo plano os investimen-tos na área educacional. Mais do que de leis,um país, um estado ou município necessita deatitudes que concretizem as prescrições das leis,garantindo à população (mesmo aos alunos comdeficiência mental), dentre outros, o direito àeducação.

Frente às dificuldades enfrentadas pela redemunicipal de ensino no que se refere à inclusãoescolar de alunos com deficiência mental, já enu-meradas nesse trabalho, sugere-se que mais in-vestimentos sejam aplicados na capacitação derecursos humanos que garanta a adoção de umapostura inclusiva com relação a alunos com de-ficiência mental. Cursos eminentemente teóricoscontribuem para o enriquecimento profissional doprofessor; entretanto, não sensibilizam para aquestão da aceitação das diferenças humanascomo condição natural e peculiar a todos.

Os professores precisam entender que ne-cessitam rever a sua postura em relação aosaprendizes, sejam eles pessoas com deficiên-cia mental ou consideradas “normais”. Isto sóse consegue com práticas vivenciadas, comsensibilizações, em que cada um possa se colo-car no lugar do outro e, numa verdadeira em-patia, se compatibilizar com a sua realidade.

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 03.11.06

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DO HORROR À DIFERENÇA:

uma aproximação com o conto ‘O alienista’

de Machado de Assis

Luciene Maria da Silva *

* Doutora em Educação pela PUC/SP. Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço paracorrespondência: Departamento de Educação I – UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

RESUMO

O artigo trata de uma discussão sobre diferenças a partir do entendimento deciência por parte de Simão Bacamarte, personagem do conto ‘O Alienista’,escrito por Machado de Assis e publicado pela primeira vez entre 1881 e 1882.A discussão dá-se em torno das concepções científicas de então a respeito derazão e sanidade, que evidencia uma anormalidade historicamente construída,tendo como base a referência biológica e as respostas dadas nas relações como meio. Esse é o mote para uma reflexão sobre diferenças, deficiência e aproposta de Educação Inclusiva.

Palavras-chave: Deficiência – Diferença – Preconceito – Inclusão –EducaçãoInclusiva

ABSTRACT

HORROR OF DIFFERENCE: AN APPROXIMATION WITHMACHADO DE ASSIS’ SHORT STORY ‘THE ALIENIST’

This article discourses about differences from the Simão Bacamarte´sperception, personage of the Machado de Assis short story ‘the Alienist’,published for the first time between 1881 and 1882. The reflection turns aroundscientific conceptions of the time about reason and health that evidence aconstructed abnormality having from based biological reference and the answersgiven in the relations with the context. This is the motto for a reflection ondifferences, deficiency and the proposal of inclusive education.

Keywords: Disability – Difference– Discrimination – Inclusion – InclusiveEducation

A negação da diferença na sociedade é umadiscussão que tem na literatura de ficção umarica fonte para reflexões, dada sua possibilida-de de instaurar realidades ancoradas no cotidi-ano e na imaginação. Machado de Assis (1999,

p.15) relata em O Alienista, uma trama quetem Simão Bacamarte como personagem prin-cipal: homem de ciência, casado com uma mu-lher que “reunia todas as condições fisiológicase anatômicas de primeira ordem, digeria com

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ordens conceituais e dispô-los de tal forma queele mesmo e todos que devem utilizá-los pos-sam dominar os fatos o mais amplamente pos-sível”. A partir dessa apropriação dos fatos éque a teoria tradicional vai justificar suas pro-postas, assim como Bacamarte, com sua ciên-cia organicista e higienista que tinha um objetivo:“O principal nesta minha obra da Casa Verde éestudar profundamente a loucura, os diversosgraus, classificar-lhes os casos, descobrir en-fim a causa do fenômeno e o remédio univer-sal” (ASSIS, 1999, p.19). Esta abordagem émarcada pelo entendimento de que no planoempírico configura-se uma relação do objetocom seu meio, que para ser investigado deveser separado do contexto. E é assim que o mo-delo hierárquico de conhecimento para essateoria tradicional tem uma disciplina subjacenteou ciência básica que fornece os pressupostospara a prática.

Nesse ponto é que gostaria de iniciar algu-mas reflexões sobre a questão do preconceitoem relação aos alunos com deficiência na es-cola. Um aspecto importante para essa refle-xão diz respeito aos mecanismos de discrimi-nação social. Sabe-se, pelos estudos realizadospor diversas ciências (paleontologia, arqueolo-gia, sociologia, história etc), que as atitudes pre-dominantes no decorrer da história da civiliza-ção em relação a esses indivíduos têm sido asde abandono, exclusão, rejeição, discriminaçãoou preconceito.

Nos primórdios, o critério de sobrevivênciaàs rudes condições de vida era a plena capaci-dade física. Na antigüidade, o corpo guerreiroera um ideal legitimado por leis de Estado. Nostempos de emergência do Cristianismo incor-porou-se alma ao corpo deficiente, impedindosua eliminação, porém instaurando a dúvida cris-tã: “Se idiota, está livre do pecado? Tem mes-mo alma, já que não possui virtudes? Qual aculpa pela deficiência e a quem atribuí-la?”(PAIXÃO, 1996, p.22). Pensadores e médicospassaram a se interessar pela questão a partirdo século XV, com variadas explicações queresultaram no surgimento dos primeiros estu-dos sobre a escolarização de pessoas com de-ficiência.

facilidade, dormia regularmente, tinha bom pul-so e excelente vista; estava assim apta paradar-lhes filhos robustos sãos e inteligentes”.

Bacamarte, tendo direcionado suas ativida-des de pesquisador para o recanto psíquico,entendeu que deveria construir a Casa Verde,asilo que recolheria os deserdados do espíri-to, os doidos e dementes da cidade, que seri-am o objeto de análise metódica sobre seushábitos, palavras e gestos. Segundo ele, a insâ-nia abrangia vasta superfície de cérebros e jáhavia corrompido personalidades históricascomo Sócrates, porque possuía um demôniofamiliar, Pascal, que via um abismo à esquer-da, entre outros. Desde então, passou a encar-cerar em seu prédio para alucinados todos osque se distanciavam do seu padrão de sanida-de: os que emprestavam dinheiro sem juros, osdoidos de amor, os que tinham vocação para ascortesias, os mentirosos, os cultores de enig-mas, os fabricantes de charadas, os maldizen-tes, os curiosos da vida alheia, os gesticuladorese a própria esposa tida como demente.

Longe de querer empreender qualquer tipode análise literária deste brilhante conto macha-diano, é quase irresistível, após lê-lo, realçar al-guns aspectos narrados pelo autor para pensarsobre as práticas segregacionistas que ainda hojese fazem presentes na sociedade e na escola,no que tange às pessoas com deficiência.

Essas atitudes são perceptíveis no conto, po-rém, mais concentradas no olhar fixo do especi-alista em que se tornou Simão Bacamarte. Suavolúpia científica, cuja meta era alargar as basesda psicologia, tornava-o infatigável: “se algumacoisa o preocupava naquela ocasião, se ele dei-xava correr pela multidão um olhar inquieto epolicial, não era outra coisa mais que a idéia deque algum demente podia achar-se lá misturadocom a gente de juízo” (ASSIS, 1999, p.25).

Sua fé inabalável na racionalidade científi-ca, coerente com o contexto histórico de então,reverenciava o fato sob o disfarce da neutrali-dade na busca da correção. E o experimentopuro, como esclarece Horkheimer (1983, p.163),é a atividade teórica do cientista tradicional:“Dentro da divisão social do trabalho, o cientis-ta tem que conceber e classificar os fatos em

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Esse caldo de cultura exerce influência atéos dias atuais, sendo que, agora, a demarcaçãodas fronteiras da normalidade se constitui maisnitidamente pela segregação das pessoas con-sideradas fora dos padrões funcionais de pro-dução. Mesmo com os avanços tecnológicosque já poderiam ter eliminado o trabalho repeti-tivo e o esforço físico, é o ideal do corpo e damente úteis que predomina, demandando umcorpo rígido e funcional. Rejeita-se uma outrareferência de corpo que admita a flexibilidade,a possibilidade e as particularidades. Além docorpo útil para o trabalho, valoriza-se tambémo corpo falsamente belo, porque padronizadoem limites estéticos de peso, altura, cor e for-ma que favorecem a negação dos diferentescorpos fora dessas especificações.

A educação das pessoas com deficiênciatem uma trajetória marcadamente segregacio-nista. O conhecimento teórico que lhe dá sus-tentação tem origem na perspectiva clínica damedicina que classifica as patologias, e na psi-cologia cognitivista que concentra sua preocu-pação no desenvolvimento da inteligência e dacognição. Disso resultou o ensino segregado,também chamado de especial, que separa osconsiderados deficientes, denominados alunosespeciais, dos ambientes comuns de escolari-zação. Esse ensino especial é também siste-matizado em diversas subclassificações, comvariadas metodologias e recursos, segundo o tipode deficiência, tal como Simão Bacamarte pro-cedia com os habitantes da cidade de Itaguaíhá mais de cem anos. Para cada tipo, uma es-cola como a Casa Verde. Ocorre que grandeparte dos supostamente deficientes não apre-senta distúrbios que demandem serviços espe-cializados para sua escolarização. E, mesmopara os que deles necessitam, nada os impedede se beneficiarem da socialização possibilita-da pelas atividades escolares com suporte derecursos adicionais.

A partir da década de noventa um novo refe-rencial é posto: a escola inclusiva, cuja propostase insere na dinâmica da sociedade atual, no sen-tido de afirmação dos direitos sociais, entenden-do que pessoas com deficiência são sujeitosinteiros, independentemente de seus atributos.

A discussão sobre a escola inclusiva no Bra-sil tem gerado polêmicas que se reportam aaspectos legais, metodológicos e organizacio-nais da escola para a efetivação da proposta.Consideramos, todavia, que essas são questõesfundamentais para a educação de todos os alu-nos, posto que são diferentes, não cabendo for-mulações e políticas educacionais diferenciadas,no que se refere às condições para sua imple-mentação. Sendo assim, a que pode se atribuira resistência à inclusão de alunos com defici-ência nas escolas comuns?

Muitos dos que se posicionam contrários àproposta receiam que as crianças com defici-ência sejam mais marginalizadas nos ambien-tes de escolas comuns, principalmente peloscolegas de classe. Outros consideram que ascrianças sem deficiência podem ter o desen-volvimento retardado, causado pela convivên-cia e influência dos colegas que têm diferençasfísica, mental ou sensorial.

No entanto, pesquisas empíricas desmistifi-cam crenças sobre as interações desses alunosna escola. À guisa de exemplificação, podemoscitar a pesquisa de Odom, Deklyen e Jenkins(1984), que investigou os efeitos da inserção dealunos sem deficiência em classes de pré-es-cola, formadas por crianças com deficiência,concluindo que o ambiente assim constituído,por tornar-se mais complexo, estimula as inte-rações, influenciando o desenvolvimento cog-nitivo e a socialização das crianças. Segundoos autores, o potencial de efeitos negativos daimitação dos comportamentos singulares dascrianças com deficiência pelas crianças semdeficiência não se realiza.

O estudo de Klinger e Vaughn (1999), queanalisou a percepção de estudantes em classesintegradas sobre os processos de ensino eaprendizagem, mostrou que os alunos não per-cebem as adaptações instrucionais para respon-der às necessidades especiais como algoproblemático. Essas e outras pesquisas descons-troem concepções estanques nas quais a dife-rença é individualizada e percebida como inata,sem as marcas sócio-culturais. Nessas concep-ções, as diferenças não são vistas como produ-zidas socialmente, envolvendo relações de poder.

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As atitudes de preconceito se desenvolvemno processo de socialização que é fruto da cultu-ra e da sua história, como afirma Crochik (1995,p.11): “Como tanto o processo de se tornar indi-víduo, que envolve a socialização, quanto o dodesenvolvimento da cultura têm se dado em fun-ção da adaptação à luta pela sobrevivência, opreconceito surge como resposta aos conflitospresentes nessa luta”. O preconceito depende eindepende do seu objeto, não admitindo uma con-ceituação universal, pois tem aspectos constan-tes e aspectos variáveis, que “remetem àsnecessidades específicas do preconceituoso, sen-do representadas nos conteúdos distintos atribu-ídos aos objetos” (CROCHIK, 1995, p.12).

A ação irrefletida, a economia do esforçointelectual são as bases do preconceito enquantopré-disposição para a ação de discriminação.Essa atitude em relação aos alunos com defici-ência na escola configura-se como um meca-nismo de negação social, uma vez que suasdiferenças são ressaltadas como uma falta, ca-rência ou impossibilidade. Nesse ambiente, oaluno se constitui de forma defensiva para evi-tar maior sofrimento, não conseguindo, porém,evitar a adaptação dolorosa. Como afirma Ador-no (1995, p.145), “pelo fato de o processo deadaptação ser tão desmesuradamente forçado,por todo o contexto em que os homens vivem,eles precisam impor adaptação a si mesmos deum modo dolorido e, nos termos de Freud, iden-tificando-se com o agressor”.

Muitas vezes as pessoas com deficiênciaaceitam e até defendem encaminhamentos quenegam as suas possibilidades de escolha e atu-ação, reforçando ações beneficentes e assis-tencialistas que têm a incapacidade comoprincípio. Nesse sentido, se distanciam cada vezmais da possibilidade de autonomia e diferenci-ação, restando apenas a adaptação à situaçãoexistente. Geralmente, na escola comum, elespouco solicitam, permitindo a correção de suasdiferenças para não perder o que já conquista-ram, que é a convivência com colegas diferen-tes. Uma espécie de “irracionalidade daadaptação dócil”, que se torna mais “racionalque a razão” (HORKHEIMER; ADORNO,1985, p.190).

Nesse contexto, cabe enfatizar o elementopsicológico como determinante na adesão ouvinculação do indivíduo aos valores que contra-dizem seus próprios interesses. O ajustamentoà sociedade dá-se pela incompreensão de quepodemos nos constituir como seres autônomos,capazes de realização dos objetivos além dospuramente imediatos. A saída vislumbrada é oajustamento à sociedade tal qual nos é apre-sentada, pela impossibilidade de negar o real e,assim, refletir sobre os condicionantes e a pró-pria constituição do indivíduo.

O preconceito materializa um possível efei-to do encontro entre pessoas, quando são acio-nados mecanismos de defesa diante de algo quedeve ser combatido por constituir-se numa ame-aça. Um mundo em que o medo prevalece, in-dicando um perigo objetivo, e ao mesmo temponão possibilita sua elaboração, é porque as for-mas de organização social seguem negando adiferença de forma renovada.

A cultura, que se converteu em mercadoria,renuncia a ser liberdade do espírito para ser umveículo da alienação e domesticação, bloque-ando gradativamente o pensamento crítico quetornaria viável desvelar os sentidos da sobrevi-vência constantemente ameaçada, os quais de-terminam os comportamentos hostis. Oesclarecimento como desencantamento do mun-do seguiu uma trilha determinada pela intençãoexplícita de rompimento da natureza, de domi-nação do mundo. Tal metamorfose fez-se pelaobjetividade que a tudo busca assemelhar, in-duzindo à estranheza irracional. O cientificis-mo daí decorrente enrijece seu objeto na buscade apoderar-se dele para classificar, nomear,calcular até torná-lo nulo, a custo de suprimirtambém o sujeito que intenciona conhecer, e que,dessa forma, vê-se desprovido da possibilidadede discriminar/diferenciar.

A deficiência inscreve no indivíduo seu ca-ráter particular. O aluno com deficiência lem-bra ao preconceituoso a própria fragilidadehumana que se quer negar. A estrutura funcio-nal da sociedade demanda pessoas fortes, quetenham um corpo e mente “sãos”, que sejameficientes para competir no mercado de traba-lho. O corpo fora de ordem, e a sensibilidade

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dos fracos são um obstáculo para a produção.Os considerados fortes se sentem ameaçadospela lembrança da fragilidade, factível, conquan-to se é humano. Por isso é que “a violência con-tra os fracos se dirige, principalmente, contraos que são considerados fracos” (ADORNO,1995, p.122). A agressão é encaminhada parao alvo errado, por não terem consciência de quesão os princípios da sociedade impregnados nasrelações sociais e nas formas de trabalho quedevem ser combatidos, e não suas vítimas. Opreconceito é, portanto, contrário às diferenças,levando o preconceituoso a uma outra identifi-cação, como esclarecem Horkheimer e Ador-no (1973, p.179): “Para que se sintam alguém,essas pessoas têm necessidade de se identifi-car com a ordem estabelecida e essa identifi-cação faz-se com tanto mais agrado quantomais inflexível e poderosa for essa ordem”. Édessa forma que as particularidades são des-troçadas em função da totalidade.

Impedir a escolarização dos alunos com defi-ciência em ambientes comuns é não permitir aexperiência. A proposta de inclusão no contextoda democracia formal traz acoplada as idéias li-berais, porém, defendê-la é tornar possível oavanço das reflexões sobre a formação que ad-mita a diferenciação. A política inclusivista, por-tanto, nada tem de revolucionária, é uma propostaliberal para a educação, como o são as demaispolíticas compensatórias. Os princípios univer-sais formulados pelo liberalismo põem ênfase nosdireitos do homem e têm a educação como ummeio para o indivíduo fazer-se indivíduo social.Essa orientação ainda está para ser cumprida,mesmo que a sociedade já tenha conseguidoavançar em outros aspectos.

A proposta de colocar alunos com deficiên-cia na escola regular pode favorecer a identifi-cação, base para uma educação mais humanaque admita a aproximação com o outro. Sua abor-dagem se fará de diversas formas, enfatizandovários aspectos, considerando que a orientaçãoinclusivista segue um sentido de olhar a escolacomo um todo: formação dos professores, apa-relhamento das escolas e implantação de servi-ços de apoio, flexibilização e adaptaçãometodológica, definição do perfil de aluno e de

suas necessidades, e possibilidades de aprendi-zagem na escola regular, entre outras.

Este pode ser um instrumento questionadordos preconceitos que, por dificultar o contatocom pessoas diferentes, não possibilitam a ex-periência. E o pensamento que prescinde delaé puramente formal. É ela que permite a identi-ficação com o outro a partir da idéia de ser igualna diferença. A experiência desafia os medosdo contato com o diferente, medo de ser discri-minado, de experimentar algo não habitual,medo de arriscar-se ao erro. E é o medo queimpede o confronto com o sofrimento, que setorna mais resistente se não nos colocamos fren-te a ele. A identificação só é possível por meioda convivência, na medida em que enfatiza oque não é igual e, ao mesmo tempo, ressalta aidéia de ser igual na diferença, desafiando osreceios do estranhamento e do medo. A desva-lorização e distanciamento da experiência po-dem se explicar, também, porque queremos veros resultados, subtraindo-a, tal como demandamas relações contemporâneas baseadas no ime-diatismo e automatismo.

Como nossa sociedade cultua o útil e apa-rentemente saudável, aqueles que portam umadeficiência lembram a fragilidade que se quernegar. Não os aceitamos porque não queremosque eles sejam como nós, pois assim nos igua-laríamos. É como se eles nos remetessem a umasituação de inferioridade. Tê-los em nosso con-vívio funcionaria como um espelho que nos lem-bra que também poderíamos ser como eles.Esse potencial que é real, dadas as trágicasmudanças que nos podem ocorrer, é que nosfaz frágeis, uma vez que queremos ser semprecompletos e constantes.

O que também parece perturbar nos conta-tos com pessoas com deficiência é o fato de nãosabermos como lidar com elas, posto que a pre-visibilidade é uma forte característica das rela-ções sociais da contemporaneidade. O estigma,por ser uma marca, um rótulo, é o que mais seevidencia, possibilitando a identificação. Quan-do passamos a reconhecer alguém pelo rótulo, orelacionamento passa a ser com ele, não com oindivíduo. E assim, idealizamos uma vida parti-cular dos cegos, por exemplo, que passa a expli-

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car todos os seus comportamentos de uma for-ma inflexível: ele age assim porque é cego.

Nesse processo de rotulação o indivíduoestigmatizado incorpora determinadas represen-tações, passa a se identificar com uma tipifica-ção que o nega como indivíduo. Essas pessoaspassam a ser percebidas, a princípio, por essadiferença negativa, o que irá indicar fortemen-te como elas irão se comportar.

A ideologia induz os indivíduos a comporta-mentos “normais”e “naturais” tornando o mun-do cada vez mais uniforme e homogêneo. Nesseprocesso a ciência tem servido mais à domina-ção do que à perspectiva de seu abrandamento,na medida em que abstrai o sujeito e prioriza asclassificações, renunciando ao seu potencial deemancipação em função da apreensão de fatosisolados. Desta forma a ciência, como atividaderacional que busca superar as limitações postaspela natureza para reduzir o sofrimento dos ho-

mens, torna-se irracional. Como foi a atividadedo personagem de Machado de Assis, cujo pen-samento objetivador o impeliu a encerrar quasetoda a população da cidade na sua Casa Verde.Após aplicar seu racional sistema terapêutico,pôde concluir que havia estabelecido em Itaguaí“o reinado da razão (...) não havia loucos emItaguaí, em Itaguaí não havia um só mentecap-to” (ASSIS, 1999, p.69). Foi quando ele mesmoquestionou seu absoluto. Lampejo de humildadecientífica? Ou ainda a busca da perfeição? Tran-cou-se na Casa Verde para entregar-se ao estu-do e cura de si próprio, num gesto obstinado, pois,achava ele, que em si próprio reuniam-se “teoriae prática”. Fez-se assim sujeito-objeto da sua ci-ência como se admitindo ter sido sua teoria im-potente e sua práxis arbitrária.

Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezes-sete meses no mesmo estado em que entrou, semter podido alcançar nada. (ASSIS, 1999, p.69).

REFERÊNCIAS

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 20.03.07

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Rosalba Maria Cardoso Garcia

REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

ACERCA DAS POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL

NO CONTEXTO EDUCACIONAL BRASILEIRO

Rosalba Maria Cardoso Garcia *

* Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da Universidade Federal de SantaCatarina – Centro de Ciências da Educação, Departamento de Estudos Especializados em Educação – Campus Univer-sitário, Trindade – 88040-900, Florianópolis/SC. E-mail: [email protected]

RESUMO

O objetivo do artigo é apresentar alguns elementos teórico-metodológicosutilizados para compreender as políticas educacionais e os subsídios empregadospara o desenvolvimento de pesquisas que privilegiam a análise das que sevoltam para a educação especial. Serão destacadas reflexões acerca daspossibilidades de uma abordagem que busca analisar as proposições políticasno campo educacional sem perder de vista suas vinculações e seu papel designificação nos processos de implementação de ações educacionais. Nessecaso, salienta-se o procedimento de análise documental frente às proposiçõespolíticas no campo educacional, observando alguns elementos que as constituem,tais como os discursos específicos que dão vida aos pensamentos de naturezapolítica e a sustentação dos mesmos nos conceitos que veiculam. Ressalta-sea importância de expor a concepção de política que sustenta nossos estudos. Otrabalho culmina com um enfoque sobre as políticas para a educação especiale algumas referências para a pesquisa neste campo.

Palavras-chave: Política Educacional – Educação Especial – AnáliseDocumental – Pesquisa

ABSTRACT

THEORETICAL-METHODOLOGICAL REFLECTIONS ABOUTTHE POLICIES FOR SPECIAL EDUCATION IN THE BRAZILIANEDUCATIONAL CONTEXT

The objective of the paper is to present some theoretical-methodologicalelements used to understand the educational policies and the subsidies employedfor the development of researches which offer advantages for the analysis ofthose engaged in special education. Reflections about the possibilities of anapproach which seeks to analyze the policy propositions in the educationalfield will be highlighted, without loosing sight of their links and role of significancein the implementation of educational actions. In this case, one underlines theprocedure of a documental analysis in view of the political propositions in theeducational field, observing some elements which constitute them, like the specificspeeches which give life to thoughts of a political nature and the support of

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Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro

these speeches within the concepts they convey. The importance of exposingthe political conception, which sustains our studies, is highlighted. The workculminates with a focus on the policies for special education and some referencesfor research in this field.

Keywords: Educational Policy – Special Education – Documental Analysis– Research

Introdução

As políticas para a educação especial no con-texto educacional brasileiro recente têm causa-do impactos no âmbito da educação básica noque se refere à organização escolar, às questõescurriculares, à formação de professores, entreoutros aspectos. Por outro lado, tais políticas tam-bém atingem as instituições de atendimento es-pecializado, gerando reflexões acerca de seupapel educacional. A chamada perspectiva “in-clusiva” vem interpelando as redes de ensino nosentido de uma reorganização, propondo novasdemandas e definindo competências e respon-sabilidades. Com o intuito de contribuir com estedebate, apresentamos nesse artigo alguns ele-mentos teórico-metodológicos para a compreen-são das políticas para a educação especial e ossubsídios empregados para o desenvolvimentode pesquisas neste campo.

O enfoque a ser privilegiado refere-se àsreflexões acerca das possibilidades de umaabordagem que busca analisar as proposiçõespolíticas no campo educacional sem perder devista suas vinculações e seu papel de significa-ção nos processos de implementação de açõeseducacionais. Para tanto, serão apresentadosalguns elementos que o constituem, tais comoos discursos específicos que dão vida aos pen-samentos de natureza política e a sua sustenta-ção nos conceitos que veiculam.

Uma concepção para trabalhar comas políticas educacionais

O exercício de aproximação que vimos fa-zendo em relação às políticas educacionais, to-mando como objeto de estudo as políticas de

inclusão educacional e nesse universo manifes-tando claro interesse pela educação de alunoscom deficiência, está apoiado numa concepçãode políticas e práticas. A compreensão que nu-tre nossos estudos toma como pressuposto quepensar a política educacional implica pensarpráticas sociais vividas por sujeitos concretosque representam forças sociais diferenciadas eem luta constante. Tal compreensão pode ser abase para estudos que enfoquem as proposi-ções e concepções de políticas, assim comopara a sua implementação e mesmo para análi-ses da efetividade de propostas.

Gramsci apresenta uma compreensão depolítica como “ação permanente” (1989, p. 14),que supõe movimento, dinamismo, contradiçãoe antagonismo. O autor trabalha com a noçãode que a qual a política é constituída por “for-ças sociais em luta”. (1989, p. 17).

Percebe-se, na contribuição desse autor, umaidéia de política como uma apreensão da “von-tade coletiva” (GRAMSCI, 1989), a qual é de-volvida à população na forma de uma síntese epor uma figura que possa exercer a conduçãopolítica, que tenha o poder político de conduziras idéias, ou seja, a política se relaciona com adisputa hegemônica das idéias, das concepçõese das práticas. A condução da vontade coletivaimplica estar à frente desse processo de divul-gação de idéias para transformá-las em “ban-deiras” e, com isso, organizar uma reformaintelectual e moral. Tal processo está relacio-nado à produção de consenso operada por umgrupo social frente aos demais grupos sociais,impondo seu projeto de sociedade (STACCO-NE, 1991).

Este papel de condottiero consagrou histo-ricamente os partidos políticos, mas também foiexercido por sindicatos e outras organizações.

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Rosalba Maria Cardoso Garcia

Após a segunda guerra mundial, vimos surgirestruturas que aos poucos foram ganhando es-paço político no cenário internacional, apreen-dendo a vontade coletiva e transformando-a emdiretrizes, metas e propostas de ações para omundo todo, com estratégias organizadas paracada continente. Estamos falando dos organis-mos internacionais.1

Os organismos internacionais têm exercidoo papel de condutores das ações no campo dapolítica econômica e também das políticas rela-cionadas à distribuição dos direitos sociais, pro-movendo aí ressignificações importantes a partirde fundamentos neoliberais e neoconservado-res. Tais mudanças no campo dos sentidos edas práticas marcam as políticas sociais, ondese localizam as políticas educacionais, objeto denossas reflexões.

Podemos apoiar nossas ponderações acercadas transformações nos significados que acom-panham as bases de sustentação das políticaseducacionais no pensamento de Gramsci (1978),também quando o autor tece considerações so-bre a relação entre linguagem e política, e refe-re-se ao conceito de “transformismo”. Segundoele, no processo histórico-político da Itália, cam-po empírico de sua análise, foi possível observarum tipo de inteliggentzia que concebia a si mes-ma como “continuação ininterrupta na história”e independente da luta dos grupos sociais. Taisintelectuais, representantes de uma corrente po-lítica e defensores de uma concepção de mundo,estariam a divulgar a existência de uma realida-de que se instalava pela força de suas concep-ções, o que não significa, na compreensão gra-msciana, transformações sociais, mas sim o queo autor denomina de “revolução passiva”, ou“conservadorismo-reformista”.

É importante ressaltar, portanto, que o es-paço de disputa no campo da política está per-meado por uma intelectualidade que disputaterreno, nesse caso, no campo teórico. Assimsendo, o processo de desenvolvimento políticoestá ligado a uma dialética intelectuais-massa(GRAMSCI, 1978), qualquer que seja o projetosocial em questão. Grupos sociais pouco arti-culados tomam para si uma concepção de mundoestranha, por meio de relações de submissão e

subordinação (GRAMSCI, 1978). Portanto,estamos falando da relação da política e da lin-guagem da política com a produção das consci-ências.

Com isso, estamos afirmando uma compre-ensão segundo a qual as políticas educacionaisse constituem em meio a processos cujos con-tornos são dados pelos discursos, pelas teorias,pelas ações e estratégias, pelos recursos finan-ceiros, pelos compromissos e interesses pesso-ais e institucionais, enfim, por uma trama derelações e significados que podem ser apreen-didos, analisados e discutidos.

Dentre os autores contemporâneos que têmcontribuído para o desenvolvimento das análi-ses que estamos desenvolvendo sobre políticaseducacionais, destacaremos os que seguemabaixo, procurando apresentar algumas de suasidéias.

Michael Apple (2000) tem explicitado a con-dição de “modernização conservadora” presen-te nas políticas educacionais recentes propostaspelos organismos internacionais.

Roger Dale (2004) chama nossa atençãopara a “agenda globalmente estruturada para aeducação”: a produção de uma reforma edu-cacional em diferentes regiões do mundo comelementos em comum, com um discurso uni-forme, mas que conduz a resultados diferentesem países distintos, mediados pela divisão in-ternacional do trabalho. Esse autor destaca aimportância de se analisar o vocabulário da po-lítica como estratégia para perceber suas mu-danças, a partir dos significados que ganha emdiferentes contextos. Nesse caso, joga luz so-bre o poder dos discursos políticos e, por con-seguinte, sobre a importância atribuída aosconceitos: as palavras fazem diferença.

Stephen Ball (1999) indica que, embora aspolíticas educacionais sejam produzidas em con-textos particulares e de forma datada, não de-

1 Destacamos aqueles que consideramos serem os principaisorganismos internacionais e as respectivas datas de funda-ção: Organização das Nações Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura - UNESCO (1945); Banco Mundial - BM(1944); Comissão Econômica para a América Latina -CEPAL (1948); Organização para a Cooperação e Desen-volvimento Econômico - OCDE (1960); Organização dasNações Unidas (1945).

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vemos esquecer que há sempre uma interaçãocom as políticas de outros campos. Com basenessa percepção, podemos concluir que os dis-cursos políticos devem ser confrontados.

Jenny Ozga (2000) aprofunda a discussãonuma abordagem mesoanalítica, compreenden-do que o processo de apropriação da política étambém de formulação, uma vez que os sujei-tos da educação operam uma contestação ounegociação em relação aos textos e discursosà medida que refletem sobre manter ou modifi-car suas práticas. As diretrizes políticas che-gam aos sistemas de ensino e às escolas pelasmais diversas vias de divulgação. Cada diretrizsofre um processo de interpretação por partedos profissionais, e muitas compreensões dis-tintas são elaboradas. Todavia, alguns temas sãomais enfatizados, com o intuito de que sejamincorporados pelos professores. Estes, por suavez, estabelecem uma relação ativa e direta coma política, concordam com alguns pontos dodebate, discordam de outros, num processo dereelaboração de sentidos que tem repercussõessobre seus discursos e práticas. Além disso, asdiferentes compreensões presentes na escolatambém entram em negociação ou confronto,no conjunto de relações de poder que ali estãoestabelecidas. Aquilo que já está presente nasescolas, que são suas práticas e as formas derealizar o trabalho pedagógico, constituem aspolíticas educacionais, e acabam também im-primindo suas marcas nos textos documentais.

Ao desenvolver uma análise das políticaseducacionais no âmbito de sua proposição, éimportante que se diga qual a compreensão quenorteia esta abordagem. Neste caso, a políticanão está sendo considerada como um pacotede medidas que é entregue para a população,mas como um objeto de “contestação”, comoalgo a ser discutido, mais como um processo doque um produto (OZGA, 2000).

As propostas políticas são elaboradas, re-formuladas pelo debate público, apresentadaspara serem implementadas, rediscutidas assis-tematicamente no processo de implementação.Aquilo que é proposto politicamente é imple-mentado em termos, a partir dos sentidos queessa proposição imprime nos diferentes sujei-

tos e grupos envolvidos. Há uma relação desentidos uma vez que cada sujeito ou grupoocupa um lugar que também constitui aquilo queele diz e compreende do que é dito.

Deste modo, a análise de proposições políti-cas não se circunscreve a uma visão que oponhadiscurso e prática, uma vez que estes são doiselementos constitutivos da realidade social e quese formam mutuamente. Além disso, compreen-demos que o discurso é prática política, é expres-são e constituição da realidade social, não o único,mas um elemento fundamental no conjunto derelações sociais (FAIRCLOUGH, 2001).

Nesse caso, a máxima de que o discursopolítico não se materializa na prática está sen-do considerada aqui como superada pela com-preensão de que os discursos políticos já sãopráticas (FAIRCLOUGH, 2001), que se põemsob suas próprias concepções.

Contudo, pensar a importância dos discursose dos conceitos que os constituem no processode significações não implica considerar a reali-dade social e educacional apenas como textos.

O estudo das proposições políticas:uma abordagem de pesquisa edu-cacional

Ao investigar a política educacional pormeio da análise da documentação oficial, é im-portante ter como referência a compreensãode que as escolas nem ficam inertes nem ado-tam absolutamente todas as suas prescrições.Diferentes movimentos das e nas escolas, emrelação às proposições políticas, remetem no-vamente à noção de “contestação” (OZGA,2000). Os discursos políticos veiculam, muitasvezes, noções de responsabilidade e exigên-cia que colocam em cheque a “competência”dos professores e professoras. Reações de dis-cordância e resistência convivem com apro-vações e mesmo sedução em torno daspolíticas para a educação. Tais posicionamen-tos têm expressão nas práticas desenvolvidasnas escolas, de modo que os educadores tam-bém podem ser considerados, nesse caso, comoformuladores de políticas (OZGA, 2000). Pes-

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quisar as proposições políticas não significadescuidar das apropriações que são feitas acer-ca de seus conteúdos e sentidos no interior dasescolas. Ao contrário, nessa abordagem valo-rizam-se também os estudos sobre esses pro-cessos em relação aos discursos em foco,contribuindo para sua realização em uma des-sas esferas.

Ao se trabalhar com essa abordagem, por-tanto, é prudente tomar cuidado com duas ques-tões: em primeiro lugar, não considerar discursoe prática como antagônicos, mas como consti-tutivos da realidade social, portanto contraditó-rios; em segundo, não tomar o proposto comorealizado, mas como o conjunto de princípios eintencionalidades em relação a uma política.Considerando que a sociedade atual é hierar-quizada e dividida em classes e frações de clas-se, é preciso levar em conta as relações de forçaque se explicitam e são silenciadas no discurso,de modo a perceber quais as formações dis-cursivas que ganham mais força na sua rela-ção com as condições histórico-sociais deprodução de um discurso que sustenta as políti-cas educacionais.

As proposições políticas são cons-tituídas por discursos específicos

Ao analisar as políticas educacionais toma-mos como ponto de partida que os discursosque sustentam suas proposições são de um tipoespecífico. Tais discursos são produzidos à luzde um embate de interesses: são gestados, sãoexpressão, e são apreendidos em relações deconflito. São assimilados por grupos diferentesde maneira seletiva, a partir de seus crivos, se-gundo aquilo que é julgado como mais impor-tante nos enunciados.

Os discursos podem ser apreendidos, por-tanto, sob bases e filtros diferentes daqueles comos quais foram formulados. Mas, até que issoseja percebido, os slogans já foram divulgadose as palavras-chave já dominaram o discursodo cotidiano escolar. Alguns conceitos passama integrar a linguagem cotidiana dos profissio-nais da educação, de modo que, em alguns ca-

sos, os discursos sobre política educacional (ouseus fragmentos) absorvidos e reproduzidosacriticamente substituem a teoria na orientaçãodo trabalho educacional e pedagógico.2

A ação de reproduzir um discurso repetida-mente pode basear-se na premissa segundo aqual “o que funciona numa sociedade, na pers-pectiva da linguagem, não é a coisa mas os efei-tos imaginários que ela produz” (ORLANDI,1996, p. 96). Com esta compreensão, pode-seafirmar que os textos não são a política propri-amente, mas sua representação.

O discurso é um objeto simbólico e históricoque pode ser analisado. Ao expressar e consti-tuir sentidos, o discurso é também a materiali-dade específica da ideologia, que não é apenasa “representação imaginária do real”, relacio-nada a processos de dominação e de substitui-ção das “ações históricas reais” (CHAUÍ,1990). A ideologia é a forma pela qual os sujei-tos representam “o aparecer social, econômi-co e político” que constitui o “ocultamento ou adissimulação do real”. É, portanto, “um corposistemático de representações e de normas quenos ‘ensinam’ a conhecer e a agir” (CHAUÍ,1990, p. 3 – grifo no original).

A ideologia é criada e recriada ininterrupta-mente naquilo que os sujeitos falam e naquiloque calam, entre o dito e o não-dito. Esse movi-mento implica no uso dos signos, de modo aevitar a coincidência entre aparência e essên-cia (BAKTHIN, 1997).3 É claro que esse pro-cesso não é tramado previamente e executadode forma a resultar em um discurso ideológico,pelo contrário, o discurso resulta ideológico emcondições de não coincidência entre aparênciae essência. Segundo Chauí (1990, p. 3):

... o discurso ideológico é aquele que pretendecoincidir com as coisas, anular a diferença entre opensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar umalógica da identificação que unifique pensamento,linguagem e realidade para, através dessa lógica,obter a identificação de todos os sujeitos sociaiscom uma imagem particular universalizada, isto é,a imagem da classe dominante.

2 A este respeito ver: Duarte (2001), Moraes (2003).3 Para uma discussão mais ampla sobre ideologia, ver Konder(2002).

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Bakhtin (1997) colabora com este debateafirmando os aspectos ideológicos do discurso,mas destacando sua dinamicidade, o fato de seruno e plural ao mesmo tempo. A pluralidade desentidos que pode ser atribuída a um discursoestá relacionada à dinâmica social, aos diferen-tes modos de significar que podem coexistir napresença de emissores e receptores com com-preensões distintas de mundo. Ao mesmo tem-po, cada discurso é único, pois expressa umpensamento pessoal e social, representante dacultura de um grupo, de uma época, de umaclasse, de um posicionamento político.

Contudo, a significação de um discurso nãopode ser – e não é – acessada apenas pela lidacom palavras, conceitos e textos. A especifici-dade dos discursos que divulgam as proposi-ções políticas sugere a busca de formas tambémespecíficas para apreendê-los. O salto de qua-lidade na análise pode ser dado pela compreen-são do discurso em sua tridimensionalidade:como texto, como prática discursiva e comoprática social (FAIRCLOGH, 2001).

A concepção tridimensional do discurso res-gata três tradições analíticas: análise textual elingüística, a tradição macrossociológica de aná-lise da prática social e a tradição microssocio-lógica, que percebe a prática social como algoque as pessoas produzem e entendem com baseem procedimentos de senso comum partilhado(FAIRCLOUGH, 2001).

O discurso é expressão da realidade social,mas ao mesmo tempo causa impressões sobreela, é constituído e constituidor em relação àvida social.

Os discursos não apenas refletem ou represen-tam entidades e relações sociais, eles as cons-troem ou as ‘constituem’; diferentes discursosconstituem entidades-chave (...) de diferentesmodos e posicionam as pessoas de diversasmaneiras como sujeitos sociais (...), e são essesefeitos sociais do discurso que são focalizadosna análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.22 – palavra entre aspas no original).

Para tanto, destaca-se a importância dosconceitos de “interdiscurso”, de MichelPêcheux, e de “ordem de discurso”, de Micha-el Foucault (FAIRCLOUGH, 2001). Porém,

mais que concentrar a atenção no discurso, épreciso observar a mudança discursiva, procu-rando perceber a reconfiguração ou mutaçãodos elementos da ordem de discurso pela açãoque se realiza sobre as práticas discursivas esobre os sujeitos e suas identidades, as rela-ções sociais e os sistemas de conhecimentos(FAIRCLOUGH, 2001).

Nessa perspectiva analítica, pensar as pro-posições políticas pode ser possível pelo aces-so aos discursos, mas não só, pois é necessáriotambém identificar e analisar quem são os su-jeitos históricos que estão sintetizando posiçõespolíticas em lugares concretos na luta social. Odiscurso valoriza alguns pontos mais que ou-tros, desconsidera algumas questões, cala so-bre outras, mostra e esconde elementosconforme os sentidos a serem divulgados. Aprodução de discurso depende sempre das con-dições históricas: sujeitos, situação, memória desentidos, que constituem a realidade social. Aidentificação destes elementos pode possibili-tar ao pesquisador apreender a essência de umdiscurso que é específico no seu modo de tra-tar a política educacional, uma vez que ele éveiculado com a tarefa de divulgar e sedimen-tar propostas e diretrizes para o setor, além deprincípios, objetivos e valores.

Tal discurso, como qualquer outro, tem filia-ções e, em conjunturas diferentes, lança mãode enunciados já ditos, que já foram significa-dos historicamente e que são inseridos em no-vas conjunturas, nas quais ganham outrossignificados.

Os textos são feitos de formas às quais aprática discursiva passada, condensada em con-venções, dota de significado potencial. O signi-ficado potencial de uma forma é geralmenteheterogêneo, um complexo de significados di-versos, sobrepostos e algumas vezes contradi-tórios, de forma que os textos são em geralaltamente ambivalentes e abertos a múltiplasinterpretações (FAIRCLOUGH, 2001, p.103).

Esse redizer é tratado pelos autores da aná-lise do discurso como intertextualidade, que é“a propriedade que têm os textos de ser cheiosde fragmentos de outros textos, que podem serdelimitados explicitamente ou mesclados e que

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o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironi-camente, e assim por diante” (FAIRCLOUGH,2001, p. 114).

Compreender os discursos contidos nos do-cumentos educacionais implica saber como, nacondição de objetos simbólicos, eles produzemsentidos: quais os sentidos que eles produzemem um dado momento histórico? Em que ba-ses se sustentam? Essa compreensão implicana “explicitação dos processos de significa-ção presentes no texto e permite que se pos-sam ‘escutar’ outros sentidos que ali estão,compreendendo como eles se constituem” (OR-LANDI, 2001, p. 26 – palavra entre aspas nooriginal).

Na direção de fazer uma leitura dos ele-mentos presentes e em disputa nos discursossobre política educacional, uma das estratégi-as aqui sugerida é a tentativa de perceber aintertextualidade manifesta e a constitutiva(FAIRCLOUGH, 2001). A intertextualidademanifesta é aquela na qual outros textos estãoexplicitamente presentes no texto analisado;já na intertextualidade constitutiva são perce-bidos por marcas na superfície do texto emanálise (FAIRCLOUGH, 2001). Desse modo,na leitura de um discurso, é possível tentarapreender suas filiações, as matrizes de pen-samento com as quais tem proximidade, assimcomo perceber outros discursos nos quais po-dem ser encontradas passagens, conceitos econcepções semelhantes.

A intertextualidade também é reafirmadanos estudos de Ozga (2000, p. 24), segundo osquais “não há linhas perfeitamente claras dedemarcação entre políticas educacionais e ou-tras áreas de política social”. Essas esferasmantêm limites muito tênues, sendo procedentebuscar em uma referências para compreen-der a outra.

A análise das políticas educacionais pormeio de uma abordagem de pesquisa que pri-vilegie as proposições tem como conteúdo desuas discussões as concepções, os conceitos,as filiações teóricas, os pressupostos e a ideo-logia de uma proposta política, e possibilita com-preender as bases de sustentação de umprojeto político.

O procedimento da análise docu-mental frente às proposições po-líticas no campo educacional

A análise documental é um procedimentometodológico possível frente ao acesso a docu-mentos que contêm proposições em termos daspolíticas educacionais. Ao longo dos anos 1990observou-se uma prática das agências multila-terais (Banco Mundial, OCDE, Unesco, Cepal,entre outras) de disponibilizar na internet seusdocumentos, muitos dos quais abordando ques-tões referentes à política educacional nos paí-ses da América Latina, incluindo o Brasil.Temas como “educação para todos”, descen-tralização da gestão educacional, flexibilizaçãona formação de professores passaram a serdiscutidos também em nosso país, ganhandovisibilidade em documentos nacionais. Da mes-ma forma, a partir de um documento nacionalsobre uma temática específica, passaram a serproduzidos documentos no âmbito dos estadosda federação. A grande quantidade de docu-mentos produzidos e divulgados por diferentessujeitos sugere a elaboração de uma hipótese,com base em Orlandi (2001), em torno da ne-cessidade de se repetir um discurso para queele e os sentidos que carreia se sedimentem.Observou-se uma certa “catequização” políti-ca, uma vez que algumas afirmações a respeitoda realidade social, em especial no que se refe-re à educação, são insistentemente repetidas.

É preciso, portanto, dedicar às fontes umaimportância fundamental. As fontes tambémsão históricas, constituídas sob um conjunto decondições e, portanto, deve-se extrair delas oselementos relacionados a cada objeto de inves-tigação. No tratamento com as fontes, é preci-so que se estabeleçam estratégias para abor-dá-las de maneira sistematizada, elaborando asperguntas apropriadas ao objeto de pesquisa emquestão (THOMPSON, 1981; GINZBURG,1993). As idéias e noções veiculadas pelos dis-cursos políticos são expressão da realidade, ecomo tal podem ser apropriadas, mas o real nãoé passível de ser prontamente apreendido, o quetorna necessário proceder a um escrutínio quefavoreça ao pesquisador captar a significação

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dos dados fornecidos pelas fontes no âmbito deseu estudo. É preciso interrogá-las, “fazê-las fa-lar” sob critérios definidos, para não se cair norisco de elevá-las ao status de objeto (THOMP-SON, 1981). É importante salientar dentre aspossíveis armadilhas metodológicas que se apre-sentam, a de que documentos elaborados e di-vulgados em âmbito internacional e nacional se-jam tratados como “demiurgos” da políticaeducacional e das propostas que veiculam.

Os documentos expressam o resultado, numtempo e espaço históricos, do embate vivido pordiferentes forças sociais; eles representam aapropriação, por parte de seus formuladores,de conjuntos de idéias, pensamentos, políticas,ações vividas pelas diferentes populações. Den-tre aquilo que já está presente na vida social, osformuladores dessa documentação enfatizam,sublinham, focam algumas práticas e pensamen-tos; desqualificam, obscurecem, desprezamoutros. Pensamentos e práticas mais conveni-entes a um projeto social ganham corpo, for-mas, conceitos, concepções que os sustenteme passem a ser considerados como “propostas”,“diretrizes” e “parâmetros”. É como se essesmateriais ganhassem a força de “realizar”, amagia de “reinventar” o real, o fascínio de “de-terminar” a história. Com muito mais cuidado eatenção podem-se tomar essas fontes docu-mentais como material a ser pesquisado e aconcorrer para a compreensão da realidade,mas que, ao mesmo tempo, ganha legitimidadepara difundir suas idéias ao maior número pos-sível de pessoas.

O início do procedimento metodológico nes-sa abordagem é a definição das fontes, a esco-lha dos documentos que tratam da temática aser pesquisada, mas que também tem uma de-limitação temporal, espacial e do âmbito daspolíticas que estão em estudo (internacional,nacional, estadual, municipal, privado). Feitoisso, pode-se principiar com uma leitura explo-ratória, orientada sempre pela percepção e bus-ca de um ou mais conceitos tratados comoreferência para a leitura, os quais são definidosna própria lida com os documentos e pela te-mática a ser pesquisada. A partir da localiza-ção dos conceitos definidos nos textos

analisados, é importante perceber os tratamen-tos conferidos a estes, as definições, os sujeitosenvolvidos, as redes de influência, o contextode elaboração dos discursos, e a que outrosconceitos estão relacionados.

A leitura das fontes permitirá perceber asredes conceituais que dão substância aos dis-cursos, as quais podem ser rastreadas pela bus-ca dos conceitos relacionados ao(s) conceito(s)de referência. Identificar quais os conceitosveiculados e com que significados são apreen-didos pode possibilitar compreender a organi-zação dos documentos e quais as bases em quese sustentam para explicar a realidade social.Assim, acessando as nuances de um discurso,aquilo que se pode chamar de linhas ou matizesdiscursivos, vislumbra-se apreender suas filia-ções teóricas e sua racionalidade.

O conjunto dos materiais a serem examina-dos vai ganhando qualificação à medida que,pela sua leitura, percebem-se aqueles que cons-tituem o “corpus documental” (FAIRCLOU-GH, 2001), ou seja, as fontes principais, e aquelesque são importantes, porém, complementaresao debate pretendido. Outra qualificação quepode ocorrer na pesquisa das proposições polí-ticas refere-se ao caráter dos documentos: háaqueles com status de lei, que podem ser cha-mados de normativos, e outros documentos, tam-bém fundamentais, que podem ser tratadoscomo orientadores por serem produzidos coma função de estabelecer uma interlocução coma sociedade a respeito de idéias, de concep-ções, princípios, visando propor consensos so-bre as questões educacionais.

É razoável supor que os documentos norma-tivos também divulguem concepções a respeitoda educação e da sociedade como um todo, damesma forma que o conteúdo dos documentosorientadores pode ser apreendido como norma.Contudo, esta categorização cumpre a funçãode destacar características próprias de cada gru-po segundo as finalidades mais explícitas de suaprodução. Apesar de apresentarem argumentose fundamentos comuns, os quais expressam umacerta unidade na proposição de políticas para aeducação, cada documento precisa ser exami-nado em sua singularidade.

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Ainda um último aspecto que cumpre sali-entar é que os discursos que sustentam as polí-ticas são constituídos por uma rede ou teia deconceitos e slogans.4 Tratar dos conceitos queconstituem uma proposta política significa lidarcom palavras que estão “ganhando” sentidosnuma determinada situação, qual seja, a enun-ciação oficial de avaliações, diagnósticos e pres-crições a respeito da educação mundial,atingindo o Brasil em seus diversos níveis emodalidades educacionais.

Cada conceito, individualmente, funcionacomo um ingrediente que ganha novos contor-nos mediados pelo caldo ideológico e teórico noqual está embebido. Nesse processo, os con-ceitos estão relacionados a representações, aimagens formadas a partir de fatos, objetos,pessoas, situações. São históricos e suas signi-ficações são datadas; portanto, os sentidos atri-buídos às palavras estão relacionados à história,à ideologia, ao simbólico, ao político, ao cultu-ral, podendo-se afirmar que “os sentidos nãoestão nas palavras elas mesmas. Estão aquéme além delas” (ORLANDI, 2001, p. 42).

Compreender um conceito implica trabalharsobre sua história, sua origem e apreensão. Aspalavras sofrem mudanças em seus sentidos,devido ao contexto lingüístico e histórico em quese apresentam (KONDER, 1984). Para além daimportância das palavras, interessa sua signifi-cação como conceitos que constituem os pro-cessos de atribuição e sedimentação de sentidosàs práticas sociais. Portanto, é necessário aten-tar não somente para sua apreensão, mas tam-bém para os modos como são relacionados pelossujeitos nos debates políticos, como antagônicosou convergentes, servindo de base de sustenta-ção para explicações sobre a realidade social.

Um enfoque sobre as políticas paraa educação especial e algumas re-ferências para a pesquisa nestecampo

As propostas aqui em discussão não apenasapresentam conexões, mas constituem organi-camente políticas numa linha de “moderniza-

ção conservadora” para a educação e, numsentido mais amplo, para as políticas sociais.Isso, em princípio, já coloca uma série de defi-nições sobre as políticas para a educação es-pecial. Em síntese, não podemos pensar taispolíticas numa perspectiva de autonomia. Em-bora elas possuam características muito pró-prias, não podem ser pensadas à parte. Estamoscompreendendo as políticas de educação espe-cial como constituintes das políticas educacio-nais e, portanto, expressão do modelo vigentepara as políticas sociais. E, nesse caso, pode-mos elaborar a seguinte pergunta: Qual a con-dução hegemônica para as políticas sociais ecomo podemos perceber sua expressão naspolíticas voltadas para a educação especial?

O atual momento das políticas educacionaistem-se caracterizado pela busca de uma novagovernabilidade da educação pública (KRA-WCZYK, 2002) e de novas formas de gestãodo sistema educacional, dos professores, dosalunos, dos currículos e das unidades escola-res. Tais evidências são expressão daquilo queno debate das políticas sociais tem sido chama-do de “gestão da pobreza” (ANDRADE, 2000),ou seja, uma abordagem da questão social apartir de mecanismos de “regulação focaliza-da” que visam prioritariamente o alívio à po-breza (ANDRADE e DUARTE, 2005). Aeducação especial e as propostas inclusivas nocampo educacional estão sendo aqui tomadascomo expressão das políticas de alívio à pobre-za. Tal pressuposto apóia-se no caráter de ad-ministração, justificação e legitimação dasdesigualdades sociais e educacionais que assu-mem as políticas de inclusão sob a lógica domercado (GARCIA, 2004).

4 Alguns conceitos e slogans que marcam a política educa-cional atual: pobreza, equidade, desenvolvimento sustentá-vel, capital humano, emprego, responsabilidade, autono-mia, participação, organização social, coesão social,pertencimento, tolerância, diversidade, governabilidade,competitividade, proteção social, vulnerabilidade,neoinstitucionalismo estatal, transformação da escola, for-mação de professores, mudanças curriculares, informação,gestão, empregabilidade, necessidades básicas de aprendiza-gem, voluntariado, riscos sociais, capital social, sociedadedo conhecimento, empowerment, exclusão, comunidade,terceiro setor, cidadania, inclusão, competências, flexibili-dade, entre outros.

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Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro

As proposições de políticas para a educa-ção especial vêm sendo capitaneadas por agên-cias internacionais, em especial a UNESCO, aqual enfatiza, por meio de diversos documen-tos, propostas de desenvolvimento de uma edu-cação inclusiva.5 Contudo, o Banco Mundial ea OCDE disponibilizaram na internet, nos últi-mos anos, uma série de materiais por meio dosquais difundem idéias relacionadas a políticasde inclusão voltadas para diferentes grupos desujeitos, dentre os quais aqueles identificadoscomo com necessidades especiais.6

As proposições aqui mencionadas apóiam-se em um diagnóstico de “exclusão social”, tra-duzido para o campo educacional como nãoacesso à educação formal. A solução indicadarefere-se a garantir para os sujeitos com ne-cessidades especiais o acesso à escolaridade.A educação, numa perspectiva inclusiva, estásendo pensada, portanto, como redentora dasquestões sociais.

Outra idéia fundamental a sustentar as polí-ticas atuais para a educação especial é a ques-tão do atendimento à diversidade e do respeitoà diferença. A perspectiva “inclusiva” vem sematerializando desde a Conferência Mundialsobre Educação para Todos (Tailândia, 1990)por meio da universalização do ensino funda-mental e, conseqüentemente, da ampliação dacobertura de matrículas. Percebe-se nesse con-texto uma mudança na composição dos alunose um acento no discurso do reconhecimento daheterogeneidade na escola. Deriva dessas me-didas uma nova proposição de organização ra-cional do trabalho pedagógico, agora com basena diversidade e na heterogeneidade, que põepara a escola a necessidade de mudanças cur-riculares. No caso específico dos alunos comnecessidades especiais, observa-se uma ênfa-se no respeito às diferenças e uma abordagemdas capacidades individuais atualmente reno-meada pela expressão ‘diferenças individuais’.

Assim sendo, as políticas curriculares queacompanham a perspectiva “inclusiva” para aeducação estão assumindo um caráter de dife-renciação que pode ter como conseqüência adesigualdade no acesso à cultura, justificadapela qualidade multicultural da sociedade.

Considerando as bases nas quais estão apoi-adas as proposições para a educação especialno âmbito internacional, é possível analisar onível de sua apreensão no contexto educacio-nal brasileiro. Essa tarefa pode ser desenvolvi-da pelo escrutínio de alguns documentos nacio-nais, dentre os quais destaca-se aqui, por suaimportância, a Resolução CNE/CEB 2/2001,que institui as Diretrizes Nacionais para a Edu-cação Especial na Educação Básica, e o Pare-cer CNE/CEB 17/2001, o qual contém defini-ções e abordagens relativas aos conceitosreferenciais que sustentam o discurso da edu-cação inclusiva no Brasil.7

Já em relação aos conceitos mais citadosnos discursos políticos que sustentam as propo-sições para a educação especial, cumpre des-tacar: “serviços de educação especial”;“atendimento educacional especializado”; “edu-candos com necessidades educacionais espe-ciais”; “professores capacitados”; “professoresespecializados”; “flexibilizações e adaptaçõescurriculares”; e “serviços de apoio pedagógi-co” (BRASIL, 2001a). A compreensão dosconceitos principais, sua articulação, os signifi-cados que lhe são atribuídos podem contribuirsobremaneira para uma leitura crítica de pro-postas que são apresentadas como permeadaspor uma aura de inovação e de um sentido de-mocrático.

Considerações finais

As políticas para a educação especial brasi-leira, numa perspectiva inclusiva, têm geradoimpactos para as redes de ensino, propondomudanças na organização escolar, no currículo,na formação de professores, entre outros as-

5 O documento mais recente é: UNESCO (2004). Muitosestudos já analisaram o documento BRASIL (1994), o qualé a versão traduzida do documento original produzido paraa Conferência Mundial sobre Necessidades EducacionaisEspeciais: acesso e qualidade, realizada em Salamanca,Espanha, em 1994. Destacamos, também, Laplane (2004).6 BANCO MUNDIAL (2000) e Ranson (2001).7 Dentre os estudos que estabelecem análises a partir dainstituição dessas diretrizes, destacamos: Bueno; Ferreira etal. (2002) e Prieto (2003).

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Rosalba Maria Cardoso Garcia

pectos. A complexidade de tais proposiçõesfrente às condições sociais de produção da es-cola brasileira coloca para as pesquisas no cam-po da educação especial a necessidade de umareflexão teórico-metodológica que contribua paraa compreensão e explicitação da questão.

As referências aqui socializadas têm porbase o estudo de proposições políticas ampara-das na analise documental e dos discursos, vi-sando perceber as mudanças sociais propostas.Nesse caso, entende-se a política como práticasocial constituída pela disputa hegemônica deidéias fundamentais para que se exerça a con-dução política. A forma pela qual tais proposi-ções são difundidas e apreendidas envolve aelaboração de discursos políticos, entendidoscomo práticas sociais constituídas por redesconceituais que lhes atribuem substância. Nosúltimos anos, os sujeitos políticos que vêm as-sumindo, de maneira privilegiada, a conduçãodas orientações e diretrizes para a educação e,da mesma forma, para a educação especial, sãoos organismos internacionais, os quais têm nosdocumentos disponibilizados pela internet o seuprincipal instrumento de difusão. Porém, as idéi-as contidas nessa documentação não se pren-dem apenas a esta forma uma vez que cadasituação de apreensão é, ao mesmo tempo, ummomento de reformulação das propostas, a par-tir de novas interpretações que vão sendo de-senvolvidas. Os documentos expressam oresultado, num tempo e espaço históricos, doembate vivido por diferentes forças sociais, mas

os discursos ali contidos têm sido apreendidos,em grande medida, como substitutos da teoriana orientação do trabalho educacional e peda-gógico. Uma constatação como esta sugere anecessidade de que as análises busquem alcan-çar as filiações teóricas de tais discursos e per-mitam compreender qual a sua racionalidade.

A partir dos aportes teórico-metodológicosaqui apresentados, podemos afirmar que aspolíticas para a educação especial numa pers-pectiva inclusiva estão sendo analisadas comopromotoras de uma nova organização racionaldo trabalho educacional e pedagógico, com basena diversidade e na heterogeneidade.

O estudo da documentação referente a estecampo tem permitido perceber que se por umlado propõe-se uma diferenciação educacionaljustificada pelo reconhecimento da diversidade,por outro o respeito às diferenças sustenta umaproposta de individualização do ensino. Conside-rando as condições sociais de produção da es-cola brasileira, as possibilidades de ampliação dadesigualdade se fazem presentes.

As fontes documentais nacionais e interna-cionais foram apresentadas não com o objetivode serem aqui analisadas, mas muito mais comoreferências para a pesquisa nesse campo, combase numa abordagem de investigação de pro-posições políticas.

Pretendeu-se, assim, contribuir com os de-bates acerca das políticas inclusivas para a edu-cação especial, com consciência da necessidadede explicitar suas relações constitutivas.

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Recebido em 29.09.06Aprovado em 24.10.06

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007 143

Isa Regina Santos dos Anjos

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL:

um desafio para pessoas com necessidadeseducacionais especiais

Isa Regina Santos dos Anjos *

* Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Educação Especial pelaUniversidade Federal de São Carlos. Pedagoga do Centro Federal de Educação Tecnológica de Sergipe. Docente da redeestadual de Sergipe e, atualmente, técnica em Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe.Endereço para correspondência: Centro Federal de Educação Tecnológica de Sergipe, av. Engº. Gentil Tavares da Motta,1166, Bairro Getúlio Vargas – 49.055-260 Aracaju/SE. E-mail: [email protected]

RESUMO

Presencia-se, atualmente, no cenário mundial e nacional o debate sobre a políticade inclusão escolar e social de pessoas com necessidades educacionais especiais,enquanto estratégia para a garantia do direito a uma educação de qualidade, deacordo com os princípios de educação para todos presentes na Constituição de1988. No Brasil, a educação profissional para pessoas com necessidadeseducacionais especiais vem sendo amplamente discutida no âmbito da EducaçãoEspecial, a partir do pressuposto de que o trabalho constitui-se em uma via deinclusão social dessa população e, conseqüentemente, em uma forma de propiciara aquisição de conhecimentos teóricos, técnicos e operacionais, relacionados àprodução de bens e serviços, sejam estes desenvolvidos tanto na escola quantonas empresas. Concluindo, é evidente que uma proposta de educação para otrabalho para as pessoas com necessidades educacionais especiais representaum avanço na conquista dos direitos dessas pessoas. Porém, as questõesdiscutidas neste artigo mostram que ainda há muito por se fazer para que essaspessoas realmente possam ser incluídas no trabalho, pois o desafio é exatamenteencontrar possibilidades de construção de um sistema educacional inclusivonas diferentes formas de conceber e praticar o processo educacional.

Palavras-chave: Educação especial – Educação profissional – Inclusãoescolar

ABSTRACT

PROFESSIONAL EDUCATION: a challenge for people with specialeducational needs

It’s observed nowadays, in the worldwide and national setting, a discussionabout the social and school inclusion politics for people with special educationalneeds as a strategy for the guarantee of the right for a quality education, inaccordance with the principles of education for all, included in the 1988Constitution. In Brazil, the professional education for people with special

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Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais

educational needs is being widely discussed in the Special Education setting,considering that work constitutes a way of social inclusion for this populationand, consequently, a way of propitiating the acquisition of theoretical, technicaland operational knowledge related to the production of assets and services,developed both in the school and in the companies. It follows that it is clear thata proposal of education for work for people with special educational needsmeans a progress in the conquest of the rights for these people. However, thequestions discussed in this article show that there’s still much to do so thatthese people can, in fact, be included in the work market, since the challenge isexactly to find possibilities for the construction of an inclusive educational systemin different manners of conceiving and practicing the educational process.

Keywords: Special education – Professional education – School inclusion

A inserção de pessoas com necessidadeseducacionais especiais no contexto da educa-ção profissional é um tema que vem sendo bas-tante discutido na Educação Especial. Noentanto, essa questão começou a ser aprofun-dada a partir do surgimento de leis específicasque vêm tentando assegurar o direito dessaspessoas obterem uma qualificação profissionalpara o ingresso no mercado de trabalho.

Entretanto, percebe-se que a crise provo-cada pelo capitalismo vem ampliando e apro-fundando as desigualdades sociais, contribuindopara a redução de postos de trabalho e acentu-ando o desemprego estrutural. Nesse contexto,Marx (1968) aponta que o ponto de partida ló-gico e histórico do capitalismo é a disponibilida-de de uma mercadoria especial, a força detrabalho. Tal disponibilidade decorre de um lon-go processo de expropriação que transfere paraalguns a posse dos meios de produção, impon-do à grande maioria a condição de despossuídoe, logo, vendedor da força de trabalho.

É possível observar que, após terem decor-rido quase três décadas de mudanças nas for-mas de racionalização do capitalismo, que odesenvolvimento econômico não mais significadesenvolvimento social, como ocorreu por umlongo período em países hoje considerados de-senvolvidos. (CASTEL, 1998). Portanto, o de-semprego já não é resultado da ausência decrescimento econômico, mas se tornou ineren-te ao próprio crescimento econômico. No Bra-sil, essa relação nunca havia se dado de forma

intensiva; talvez a melhor expressão do avançodo capitalismo no Brasil seja justamente o re-gistro de profunda heterogeneidade produtiva edesigualdade das relações de trabalho.

É nesse contexto que vamos refletir sobre aeducação profissional para pessoas com neces-sidades educacionais especiais, pois entendemosque a sua inclusão está pautada em um contextohistórico-social permeado por uma prática com-plexa, mas que se estabelece na direção de ques-tionar e superar práticas sociais baseadas nadesigualdade. No que se refere à educação pro-fissional para pessoas com necessidades educa-cionais especiais, entendemos que as dificuldadessão ainda maiores, pois muitas vezes estas sãovistas como merecedores da caridade pública emfunção de suas limitações.

Alguns autores consideram que, no contex-to atual das discussões sobre o acesso de pes-soas com necessidades educacionais à educa-ção profissional, devemos considerar que ocaráter educativo do processo profissionalizan-te precisa predominar sobre os outros aspec-tos, porque não se trata apenas de inserir-se nomercado, mas de envolver o educando no con-texto da cidadania. Nesse sentido, Viegas (2000)afirma que o compromisso da educação profis-sional vai além de ensinar um ofício. Profissio-nalizar é também elevar o nível de escolaridadedos educandos, pois se trata da formação dapessoa, e não de treinamento.

Para se compreender de forma mais abran-gente a questão da educação profissional para

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Isa Regina Santos dos Anjos

pessoas com necessidades educacionais espe-ciais, explicitaremos as concepções de algunsestudiosos da área sobre esse tema.

Silva (2000) afirma que a questão da profis-sionalização se coloca no centro de uma articu-lação entre trabalho e inclusão social. Nessesentido, considera que a educação profissionaldas pessoas com deficiência enfrenta váriosdesafios colocados tanto pelas políticas gover-namentais, no que diz respeito à educação pro-fissional como sinônimo de desenvolvimentosocial, quanto pelas iniciativas das instituiçõesprivadas e/ou assistenciais, que priorizam nes-se momento os projetos de profissionalização einserção dessas pessoas no mercado de traba-lho. Jannuzzi (1994) afirma que exercer umaatividade produtiva, uma atividade que resultaem um bem concreto, ou seja, um trabalho, éde grande importância para a vida de todos osseres humanos. É de grande importância nãoapenas financeira, mas também se refere àpossibilidade de levar as pessoas a serem inde-pendentes em termos sociais e pessoais. A au-tora ainda diz que a profissionalização éconsiderada uma atividade produtiva à medidaque possibilita às pessoas desenvolverem umtrabalho no meio em que vivem, considerandosuas condições culturais e diferenças individu-ais; sendo assim, “se a possibilidade de traba-lho não lhe é aberta, acentua-se a sua exclusão,acentuando então a sua subordinação aos ou-tros, esmaecendo-se a própria identidade”.(1994, p.22)

Goyos e Manzini (1989) entendem a pro-fissionalização como alternativa para a inte-gração social do deficiente, ou seja, acreditamque a concepção profissional e o desempe-nho de uma atividade produtiva constituemdireito da pessoa com deficiência, e seria aestratégia principal, senão a única, para suaintegração social. Segundo esses autores, namedida em que o deficiente se integra comoforça de trabalho, passa a vivenciar a sua ci-dadania. Percebe-se que os aspectos maisressaltados se referem à educação profissio-nal enquanto um fator importante que contri-bui para que a pessoa com deficiência recebauma formação social adequada para a sua

inserção no tecido social e no mundo do tra-balho, como também uma questão de cidada-nia. No entanto, podemos inferir que aeducação e o conhecimento, particularmentena formação profissional, vêm subordinadosà lógica da produção e do mercado. Portan-to, a cidadania, nesta perspectiva, não deve-ria ser regulada pelas leis do mercado, a fimde propiciar processos educativos de forma-ção profissional que privilegiem condiçõespara os cidadãos lutarem pelos seus direitos.

O termo Formação Profissional, em seu sig-nificado mais amplo, refere-se aos processoseducativos capazes de possibilitar ao indivíduoa aquisição de conhecimentos teóricos, técni-cos e operacionais relacionados à produção debens e serviços, sejam estes desenvolvidos tantona escola quanto nas empresas.

Analisando-se a literatura sobre profissio-nalização para pessoas com necessidadeseducacionais especiais, verifica-se que sua ori-gem encontra-se em iniciativas promovidas porinstituições não-governamentais, que indicam asoficinas pedagógicas e as oficinas abrigadas ouprotegidas como modelos de formação profis-sional, os quais vêm sendo utilizados por estaspessoas. Essas oficinas eram situadas em insti-tuições especiais e proporcionavam atividadesconsideradas profissionalizantes, remuneradasou não, com o objetivo de incluir socialmente ossujeitos através do trabalho. E os serviços pro-fissionalizantes eram considerados uma partedo processo de formação do indivíduo com de-ficiência, representando uma escala a mais emsua trajetória educativa.

Entretanto, as oficinas pedagógicas ou pro-tegidas, ainda em funcionamento em diversasinstituições brasileiras, apresentam uma reali-dade pouco animadora, haja vista que propici-am o isolamento do trabalhador com deficiên-cia do mundo externo e do próprio mundo dotrabalho. Além disso, o trabalho nesse contextoé exercido por meio de subcontratos, os quaisnão representam os direitos dos aprendizes/tra-balhadores sendo, portanto, desfavoráveis aeles, e é promovido por intermédio de progra-mas que possuem uma tessitura rígida e inade-quada, diante de objetivos que se pretendam de

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Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais

inclusão social. Verifica-se, assim, a presençade contradições resultantes do desafio de com-patibilizar as atividades do ensino com as daprodução, de conciliar as necessidades pesso-ais do aprendiz/trabalhador com as do merca-do, reduzindo o trabalho, categoria fundante derealização do ser social, a mero meio de sobre-vivência (GOYOS, 1989; MANZINI, 1989;SILVA, 2000).

Em primeira instância, nas denominadas ofi-cinas pedagógicas, o currículo deveria visar odesenvolvimento de atitudes e hábitos para otrabalho, e não deveria haver remuneração, nemcompromissos contratuais. Posteriormente, osaprendizes poderiam ser encaminhados para asoficinas protegidas ou abrigadas que funciona-riam como uma micro-empresas, e o status doindivíduo deveria ser de um trabalhador, comos seus direitos garantidos (FERREIRA, MEN-DES, NUNES, 2003).

A literatura brasileira mostra que essas ofi-cinas têm sido alvo de várias críticas com re-lação aos procedimentos que utilizam paraprofissionalizar seus aprendizes. As críticas sereferem aos tipos de atividades ensinadas aosaprendizes, caracterizadas como profissiona-lizantes mas que pouco contribuem para a suaformação profissional, e ao processo de tran-sição oficina-mercado de trabalho, pois mui-tas vezes a instituição deixa de encaminharaqueles indivíduos que têm possibilidade deexercer um trabalho pela necessidade da suamão-de-obra (GOYOS, 1995). Outra críticarecorrente aos programas institucionais de pre-paração para o trabalho é de que estes se dãoem condições de isolamento, muito distancia-dos do mundo do trabalho.

Os teóricos apontam essas modalidades deatendimento como predominantes para a po-pulação com deficiência mental. As oficinaspedagógicas constituíram-se como propostasde “educação para o trabalho” e, a partir de-las, as oficinas protegidas, ou seja, o chamadotrabalho em regime especial, foi consideradoprodutivo, sendo então remunerado. Outras va-riedades de formação incluiriam desde os in-ternatos até os trabalhos em domicílio. (SIL-VA, 2000).

Rodrigues e Tanaka (2001) afirmam quenessas oficinas o ensino sistemático das ha-bilidades e dos comportamentos necessáriospara o exercício da atividade profissional aca-ba ficando para um segundo plano, compro-metendo o alcance dos objetivos propostos,tanto em termos de preparação para o traba-lho em si quanto de colocação no mercadode trabalho.

Nesse contexto de educação profissionalinclusiva, vários autores concluem que os ser-viços de formação oferecidos em oficinas abri-gadas ou protegidas, situados em instituiçõesespeciais ou em apêndices destas, proporcio-nam, segundo seus projetos pedagógicos, ativi-dades consideradas profissionalizantes, remu-neradas ou não, com o objetivo de incluirsocialmente essas pessoas por meio do traba-lho. Percebe-se, entretanto, em um contextosocial marcado pela competitividade, que a for-mação profissional promovida em oficinas as-sume um caráter restrito de adestramento damão-de-obra, o que pode ser identificado comouma via de estigmatização. Dessa forma, nãose tem clareza dos benefícios ou dos beneficiá-rios da formação profissional, uma vez que seregresso de uma instituição profissionalizantedificulta a inclusão social, objetivo final das ins-tituições que promovem a formação profissio-nal. (AMARAL, 1994).

É importante atentar que a simples trans-missão de conhecimentos adquiridos não possi-bilita à pessoa com necessidades educacionaisespeciais apropriar-se de novos conhecimen-tos necessários à sua interação com a realida-de; ao contrário, pode servir até para amanutenção da situação vigente, e contribuirpara alijá-la cada vez mais do processo social,culminando na sua segregação. Assim, o tra-balho nas oficinas não pode ser consideradocomo fator de equalização entre as pessoas di-tas “normais” e/ou pessoas com deficiência, poisa educação brasileira é marcada pela exclusãoe por políticas paliativas que privilegiam na for-mação profissional atividades baseadas, muitasvezes, em interesses institucionais.

A literatura vem apontando o sucesso deprogramas desenvolvidos em ambiente regular

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Isa Regina Santos dos Anjos

de trabalho, que é o supported employment ou“emprego apoiado”, que consiste em realizar otreinamento diretamente no local regular de tra-balho. Segundo alguns autores, esta é a manei-ra mais promissora de capacitação e integraçãoda pessoa com deficiência no trabalho compe-titivo. Porém, afirmam que estes programasapresentam um custo alto, embora sejam finan-ceiramente compensadores a longo prazo, poispossibilitam autonomia do indivíduo e represen-tam custo zero para o Estado.

Diante desse cenário, a opção do empregocom apoio surge hoje como opção no contextoda formação profissional, relacionada à educa-ção e à profissionalização de pessoas com ne-cessidades educacionais especiais. Há, noentanto, que se considerar que o conceito deeducação compreende o de formação integraldo sujeito, devendo contemplar as dimensões:humanas, culturais, afetivas, estéticas, físicas ebiológicas – voltadas para o desenvolvimento eemancipação do sujeito.

Portanto, acreditamos que programas deeducação profissional para indivíduos com ne-cessidades educacionais especiais devem con-templar o trabalho na vida do indivíduo enquantotradução de um significado de satisfação e departicipação social, como também de possibili-dade de mostrar suas potencialidades, habilida-des e competências para construir uma vida maisautônoma e independente.

Entretanto, é preciso compreender que se,por um lado, as pessoas com necessidades edu-cacionais especiais possuem capacidades, poroutro, elas também possuem especificidadesque não podem ser ignoradas ou escamotea-das. Isto é, suas limitações e possibilidades lhessão próprias, como são próprias as limitaçõese possibilidades de cada sujeito social. No en-tanto, isso não significa que possam concorrerde maneira igual entre si; tampouco significaque o possam fazê-lo em igualdade com todosos demais sujeitos sociais. Portanto, a inclu-são no mercado de trabalho, na sociedade docapital, é por si só excludente, pois mantémcritérios de aceitabilidade ou de rejeição per-manentes que independem de característicaspessoais.

Conclusão

Defendemos nesse artigo que, ao se fazeruma política pública em prol de uma sociedadeinclusiva, é necessário prover os serviços, su-portes e medidas que garantam às pessoas comnecessidades educacionais especiais o acessoe a possibilidade de participação nas diferentesinstâncias da vida coletiva, da forma mais inde-pendente possível. Essas adequações e apoios,que representam a colaboração da educaçãoespecial para uma educação profissional inclu-siva, devem efetivar-se por meio de:

a) flexibilizações e adaptações dos recursosinstrucionais: material pedagógico, equipamen-to, currículo e outros;

b) capacitação de recursos humanos: pro-fessores, instrutores e profissionais especiali-zados;

c) eliminação de barreiras atitudinais, arqui-tetônicas, curriculares, de comunicação e sina-lização, entre outras.

Para Mendes (2006), o debate sobre o prin-cípio da inclusão escolar no Brasil é hoje umfenômeno. É necessário que se reivindique ocomprometimento dos gestores das políticaseducacionais, para que a educação inclusivareceba as condições e os recursos necessáriospara o atendimento adequado aos alunos espe-ciais, conforme determinam os documentosnormativos vigentes.

Portanto, a inclusão de pessoas com neces-sidades educacionais especiais na EducaçãoProfissional visa transformar essas posturasobservadas ao longo da história das socieda-des, a partir de uma educação inclusiva, opor-tunizando a essas pessoas disputar comdignidade e capacidade sua inserção no mer-cado de trabalho. A idéia central da inclusão noensino profissional é a de uma mudança na for-ma de entender a pessoa com necessidades edu-cacionais especiais, propiciando uma “sociedadepara todos”.

Assim, é necessário vislumbrar alternativasde processos educativos e de formação técni-co-profissional que se articulem para uma ci-dadania que se constrói no processo detransformações das relações sociais vigentes.

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Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais

Talvez esta seja uma das lacunas ou um dosdesafios a enfrentar; portanto, é necessária acriação de políticas de inclusão escolar no con-texto das escolas de educação profissional, fatoque poderia implicar em mudanças mais pro-missoras nessa área para o cenário brasileiro.

Dessa forma, as políticas públicas nesta áreadevem atender aos interesses sociais, oferecen-do a essas pessoas a sua inserção e permanên-cia no mercado de trabalho, enquanto parte daforça produtiva do país, a partir da conquista dodireito igualitário e da sua cidadania.

Este artigo contribui para evidenciar que,para oferecer educação profissional a pessoascom necessidades educacionais especiais, é

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 26.11.06

preciso investimentos substantivos em educa-ção. Para que o ambiente de aprendizagem naescola se efetive, ele necessita existir enquantoambiente e condições objetivas na sociedadeem todas as suas dimensões, pois não há esco-la democrática em uma sociedade autocrática,injusta e excludente.

Enfim, o futuro da inclusão escolar em nossopaís dependerá de um esforço coletivo, que nosobrigará a uma revisão na postura de pesquisa-dores, políticos, prestadores de serviços, familia-res e indivíduos com necessidades educacionaisespeciais, para se trabalhar numa meta comum,que seria a de garantir uma educação de melhorqualidade para todos (MENDES, 2006).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 149

Alessandra Santana Soares e Barros

PODE-SE FALAR EM UM

‘MOVIMENTO DE DEFICIENTES’ NO BRASIL ?

Alessandra Santana Soares e Barros *

* Sanitarista. Doutora em antropologia. Professora adjunta na Faculdade de Educação da Universidade Federal daBahia. Endereço para correspondência: Av. Reitor Miguel Calmon, s/nº - Canela – 40.110.100. Salvador/BA. E-mail:[email protected]

RESUMO

Este artigo explorou a questão da possível configuração das entidadesorganizadas pelos interesses de pessoas deficientes na forma de um movimentosocial. Para caracterizar o que se tem como um “movimento” de deficientesno Brasil, optou-se por descrever a atividade das entidades de atenção aosdeficientes no tocante à qualidade da assistência prestada. Para tanto, optou-se pelo recorte junto às APAEs - Associações de Pais e Amigos dosExcepcionais e às Associações de Síndrome de Down, alcançadas atravésde suas respectivas federações, em documentos, pesquisas e relatórios detrabalhos produzidos por elas, ou a respeito delas. Do ponto de vista metodológicofoi empreendida, então, uma pesquisa de cunho documental. As conclusõesalcançadas sugerem que não se pode falar da existência de um movimentosocial de deficientes, ao menos não na perspectiva sociológica estrita. Estetrabalhou representou, ainda, uma tentativa de proposição de marcos teórico-conceituais, a partir dos quais se deve discutir o ativismo e a militância dasentidades de pessoas com deficiências.

Palavras-chave: Movimentos sociais – Entidades de pessoas com deficiências– Sociedade civil organizada – APAE

ABSTRACT

IS IT POSSIBLE TO SPEAK OF “MOVEMENT OF PEOPLE WITHDISABILITIES” IN BRAZIL?

This paper explores the question of the possible configuration of the entitiesorganized for the interests of people with disabilities in the form of a socialmovement. To characterize what is called a “movement of people withdisabilities” in Brazil, we opted to describe the activity of the entities whocared for the disabled regarding the quality of the given assistance. To carrythis out, the author choose the Association of parents and friends of exceptionalchildren (in Brazilian APAE) - and the Associations of Down Syndrome, reachedthrough its respective associations, documents, research and reports related tothem or produce by them. Our paper is thus based upon documentary analyses.We conclude that we cannot speak of the existence of a social movement ofpeople with disabilities, at least not in a strict sociological perspective. This

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Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?

paper represented, still, an attempt of a theoretical-conceptual landmark proposal,from which should be discussed the political activity of the entities of peoplewith disabilities in Brazil.

Keywords: Social movements – Entities of people with disabilities – Organizedcivil society – APAE

Introdução

Este artigo questionou em que medida a ati-vidade de entidades organizadas pelos interes-ses de pessoas deficientes, e a mobilização deoutros sujeitos coletivos em torno da mesmacausa, configuram um movimento social. Mui-to embora a designação ‘movimento social’ sejade uso corrente, a apropriação atual da expres-são é bastante imprecisa – mesmo na literaturaprofissional – o que pode ser devido à grandevariedade de fenômenos empíricos aos quaisessa noção potencialmente se aplica. Assim, nãopor acaso, entidades filantrópicas como a APAEe a Associação de S. de Down fazem referên-cias a si mesmas como parte de um movimento(“movimento apaeano” ou “movimento associ-ativo das pessoas Down no Brasil”) em docu-mentos oficiais ou literatura produzida no âmbitodestas instituições (TÍBOLA, 2001, p. 22-25;BARBOSA, 2001, p. 283-290; FEDERAÇÃOBRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DESÍNDROME DE DOWN,1999, p. 126-127).Sendo, contudo, um conceito caro à teoria soci-ológica, nem todo modo de ação coletiva per-mitiria a denominação de movimento social,ainda que consideradas especificidades analíti-cas que possivelmente conformariam açõesdesta ordem como ‘novos movimentos sociais’.

Para tentar caracterizar o modo como acategoria pessoas com deficiência estaria or-ganicamente mobilizada em torno desta causacomum, ou em outros termos, o que haveria detípico no modo como se configurou um “movi-mento” de deficientes no Brasil, optou-se pordescrever a atividade das entidades de atençãoaos deficientes no tocante à qualidade da assis-tência social prestada. Não sendo possível ava-liar o conjunto das entidades que atuam no Brasilem favor das pessoas deficientes, optou-se pelorecorte junto às APAEs - Associações de Pais

e Amigos dos Excepcionais e às Associaçõesde Síndrome de Down, alcançadas através desuas respectivas federações a partir de algunsdocumentos, pesquisas e relatórios de trabalhosproduzidos por elas, ou a respeito delas. Doponto de vista metodológico, diz-se, então, queas conclusões alcançadas são fruto de umapesquisa de cunho documental.

A atividade das entidades de defici-entes não configura um MovimentoSocial

Ressalvadas as devidas considerações epeculiaridades existentes em meio às tantasentidades brasileiras voltadas para a atençãoao deficiente, pode-se dizer que, em geral, oque as caracteriza é o fato de manterem umperfil tradicionalmente assistencialista, que sesobressai em relação à função promotora decidadania, por elas anunciada. Por um perfilassistencialista entende-se o fato delas se limi-tarem ao cumprimento da prestação de servi-ços e serem representativas apenas dosinteresses particulares e coorporativos de seusassociados. Logo, a vocação solidária e altruís-ta na qual se afirma estarem baseados seusserviços é acionada apenas para atender asfamílias diretamente afetadas. A esse respeitovale destacar que, no que tange especificamenteà atividade das entidades do tipo APAE, estan-do a filiação da clientela beneficiada circuns-crita pela condição de deficiência, esta, que jáse mostra circunstanciada à oferta dos servi-ços assistenciais terapêuticos e/ou educacionais,é limitada no tempo pela faixa etária em queesses beneficiados serão atendidos pelos servi-ços. Para exemplificar este aspecto, uma pes-quisa realizada pela própria FederaçãoBrasileira das Associações de Síndrome de

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Down, em um universo composto por aquelasassociações, por APAEs e por unidades Pesta-lozzi, traz referências elucidativas: “Observou-se que, na percepção de grande número de pais,a participação em associações só se justificaenquanto seus filhos são crianças ou adoles-centes. Com efeito, uma parcela expressiva dis-se que não se interessava em participar porqueseus filhos já eram adultos” (FEDERAÇÃOBRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DESÍNDROME DE DOWN, 1999, p.125). Estasafirmações são corroboradas por estudos acer-ca da situação organizacional da categoria, quetêm concluído que “As pessoas portadoras dedeficiências não estão propensas, na sua maio-ria, à mobilização pela formação própria do pa-ternalismo.” (VIVOT, 1994, p.30).

A pouca expressividade do ativismo políticoé também uma característica diferencial des-tas entidades. Justificativas históricas estariamcalcadas no fato de que, em sua gênese, asentidades beneficentes, como as do tipo volta-das para a atenção aos deficientes, não forammarcadas pela crítica ao Estado, por operaremà margem do sistema, ou por terem pouca visi-bilidade pública e reservas ideológicas às fon-tes de financiamento. Assim, numa perspectivahistórica, suas atuações no Brasil não contribu-íram para a mudança da relação entre a socie-dade e o Estado, configurando-se apenas comode complementariedade à presença deste ou desuplementação de suas ausências.

Esta inércia do ponto de vista da mobiliza-ção política pode ser explicada ainda pelo fatode que os quadros de pessoal das entidadesbeneficentes tradicionais, como as APAEs, sãocompostos por funcionários ou voluntários semformação universitária. Quando existe forma-ção superior, esta em grande medida refere-seàs áreas de saúde e educação, o que em geralnão operacionaliza politicamente estes profissi-onais. Uma pesquisa demonstrou que:

Dos 211 profissionais que reportaram ter con-cluído um curso superior e/ou pós-superior eresponderam à determinada questão, 113 (53,5%)tiveram formação na área de Educação; outros89 (42,2%) na área de saúde; cinco profissionaisformaram-se em Serviço Social e os quatro res-

tantes em outra área. (...) Entre os que obtiveramformação em Saúde, os campos mais referidos –pela ordem – foram Fonoaudiologia, Psicologia,Fisioterapia e Terapia Ocupacional ... (FEDERA-ÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DESÍNDROME DE DOWN, 1999, p.97- 98).

Por outro lado, a respeito da formação ma-joritariamente universitária dos quadros de pes-soal das ONGs, a seguinte referência éesclarecedora:

Por ocasião do evento que culminou com a fun-dação da ABONG (Associação Brasileira de Or-ganizações Não Governamentais), pesquisaefetuada com entidades presentes (...) trouxe in-formações interessantes. No item dirigentes, foiconstatado que 87% tinham diploma universitá-rio e 39% pós-graduação (dos quais 19% com-pletaram cursos no exterior). Um quadro dasdisciplinas cursadas na graduação indicava quea mais freqüentada foi a filosofia, seguida dasociologia, economia, teologia, advocacia e ou-tras. Na pós-graduação, um terço fez sociologia.(WANDERLEY, 2002, p. 121).

Muito embora seja possível apreciar refe-rências às APAEs e às Associações de Sín-drome de Down, principalmente quando prove-nientes de bibliografia por elas produzidas, comosendo as mesmas caracterizáveis na forma deorganizações não governamentais, uma análisedos pressupostos teóricos que distinguem osvários tipos de entidades de assistência socialmostrará que tais entidades beneficentes nãopodem ser descritas nem mesmo como ONGs.Distinguir as ONGs de outras entidades de as-sistência social ainda tem sido tarefa persegui-da com afinco por acadêmicos que dividem es-paços com a universidade e com a militância, eque reclamam por uma distinção que proteja asentão reconhecidas ONGs do confundimentocom a chancela de entidades beneficentes que,no decorrer de seus remetimentos ao sensocomum, ficaram notórias pela atuação poucoidônea que, por vezes, as marcou com a alcu-nha de “pilantrópicas”. (LANDIM, 2002, p. 17-50). (Acerca da caracterização das ONGs, es-trito senso, ver DURÃO, 2001, p.55-74).

Se as entidades de deficientes não têm bus-cado a universidade, pode-se dizer que, do mes-mo modo, a universidade não tem buscado as

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entidades de deficientes. Pois, em investigaçãoacerca das ações realizadas pelas instituiçõesde ensino superior brasileiras, no que diz res-peito ao ensino, à pesquisa e às atividades deextensão no campo da educação especial, cons-tatou-se que:

Por outro lado, as iniciativas [relativas a ativi-dades de extensão] junto à sociedade civil pri-vilegiaram tanto entidades assistenciais comoescolas privadas, o que também se constituinum paradoxo: muito tem se falado e discutidonas universidades sobre a construção da cida-dania das pessoas deficientes, mas as entida-des de defesa dos deficientes, bem como osconselhos governamentais e municipais, têmsido alvo de pouquíssimas iniciativas. (BUENO,2002, p.109). (Grifo meu - palavras entre colche-tes são minhas)

A questão da formação profissional e da ca-pacitação do quadro de funcionários das entida-des do tipo APAE é, a propósito, denunciadora desuas condições administrativo-funcionais. Em pes-quisa encomendada pela Federação das APAEsa consultores organizacionais externos, para ava-liar o que então denominaram Eixo Referencialde Atuação destas entidades, concluiu-se, a res-peito de seus dirigentes, que “A falta de prepara-ção gerencial dessas lideranças, no entanto, temgerado conseqüências na gestão de recursos hu-manos, mesmo porque um grande número de diri-gentes não tem experiência em coordenação deequipe, fora da APAE.” (FEDERAÇÃO NACI-ONAL DAS APAES, 1997, p. 29).

Além das características já apontadas, pode-se dizer que, enquanto herdeiras do modelo ca-ritativo da filantropia religiosa, as entidades deassistência a deficientes apresentam dificulda-des em imprimir, nas gestões administrativas,maior profissionalismo na captação de recur-sos e tratamento empresarial no compromissocom a transparência e com a publicização deseus resultados. Este amadorismo as aproximada informalidade com a qual se administram osespaços domésticos – espaços por excelênciaprivados – e aponta ainda para as mesmas pos-turas próprias daquele domínio, o qual se acre-dita imune às interferências ou exigências daordem pública.

Em trabalho realizado acerca da indisponi-bilidade das entidades beneficentes à presta-ção de contas, abertura à auditoria e transpa-rência de procedimentos, fica claro que estacondição se dá, em parte, devido à herançaadvinda da relação destas entidades com a fi-lantropia de tradição caritativa e religiosa. Naspalavras daquele autor: “De um lado a influên-cia da Igreja, e em conseqüência das regaliasque a Igreja tinha de não ser fiscalizada em ter-mos organizativos, nem pelo Estado, nem peloVaticano, pois os padres sempre (e apenas)prestaram contas diretamente ao Criador.” (LO-PES, 2002).

As ONGs propriamente ditas também con-taram, em sua gênese, com a participação daIgreja, ainda que a vertente religiosa à qual sefiliaram as entidades hoje tidas como ONGs detradição cívica fosse mais próxima à militânciade esquerda, como a Teologia da Libertação,diferentemente dos ramos da Igreja parceirosdas entidades assistencialistas tradicionais. Detodo modo, pode-se argumentar que estas ONGsestariam sujeitas aos mesmos riscos de infor-malidade excessiva no trato institucional e or-ganizativo. Mas o referido estudo destacoutambém a influência da clandestinidade, comoforma de sobrevivência à ditadura, na históriadas ONGs. Segundo LOPES, as ONGs passa-ram, então, a rejeitar a organização e institucio-nalização formal, como um modo de resistênciaà lógica capitalista, que era fortemente identifi-cada com toda uma sistemática organizacionalvoltada para a sustentação lucrativa de umaempresa. Contudo, essa premissa não procedepara o caso das APAEs, tendo em vista queelas não operaram na clandestinidade, ou àmargem do regime militar; muito pelo contrá-rio, tiveram inclusive postos ocupados por ofi-ciais do Exército. (ANTUNES, 2000).

No Brasil, a primeira iniciativa de congre-gar pais de pessoas portadoras de deficiência eoutras pessoas interessadas em apoiá-las ocor-reu no estado do Rio de Janeiro, por demandade uma mãe de criança com deficiência men-tal. Segundo Tíbola (2001, p.22-25), em dezem-bro de 1954 foi então fundada a primeira APAEdo Brasil. Desde o seu início, a despeito da ini-

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ciativa laica, ela contou com a presença da IgrejaCatólica, tanto que esta primeira assembléia foipresidida por um padre. Além disso, há de seconsiderar que os primeiros embriões da filan-tropia caritativa religiosa no Brasil, que remon-tam ao Período Imperial, já elegiam no conjuntodos assim chamados “desassistidos” as pesso-as com deficiência. (MESTRINER, 2001, p.45).O olhar voltado a esta categoria haveria de seestender no tempo por meio da filantropia higi-ênica, própria da Primeira República, e da fi-lantropia disciplinadora, própria do Estado Novo.Contudo, entidades criadas com a finalidadeexclusiva de atender pessoas deficientes, e tãosomente elas, surgiriam no Brasil, de fato, sóna década de cinqüenta.

As suposições aqui sugeridas devem serapreciadas, ainda, à luz do fato de que as enti-dades beneficentes consideradas para os finsdeste trabalho estão consubstanciadas em ins-tituições com uma característica muito especí-fica. Pois as instituições de amparo aosdeficientes mentais – à diferença daquelas queatendem deficientes físicos, visuais e auditivos– são instituições tipicamente formadas e diri-gidas por mães e pais que se organizaram paraassistir as necessidades de seus filhos. Ocorreque estas instituições, então geridas por paren-tes dos deficientes mentais, reproduzem nasgestões institucionais os modelos de relaçõesfamiliares conflituosas, tensionadas pelo proces-so de luto do filho idealizado. Nas palavras deDantino:

Toda gama de sentimentos (culpa, negação, re-jeição, autopiedade) que acompanha o proces-so pelo qual passam os pais quando donascimento ou da descoberta que o filho ideali-zado não nasceu, tendo vindo outro em seu lu-gar, parece reapresentar-se na instituição, ou seja,acredita-se que este conteúdo emocional façaparte do cenário institucional e, como tal, silen-cia a cena.” (DANTINO, 1998, p.34).

Deste modo, as manifestações emocionaispeculiares, e por que não dizer, os valores comfreqüência emanados por estas mães e paisacabam por se constituir em elemento signifi-cativo das relações profissionais mantidas como pessoal técnico contratado, e mesmo das re-

lações extra-institucionais que promovem osideais das entidades.

Expressões de confundimento e promiscui-dade entre as esferas pública e privada, comoas assinaladas acima, podem ser ainda descri-tas pelo fenômeno do clientelismo, tipo de rela-ção, contudo, cuja natureza corrompida nemsempre é assim identificada pela tradição cul-tural brasileira. O clientelismo pode ser descri-to como uma relação de troca de favores, emgeral políticos, por benefícios econômicos devariado escopo. Havendo o clientelismo se dis-seminado na tradição política brasileira, esteacaba por transitar para além dos momentosde manifestação representativa da democracia– como a eleição de governantes – contami-nando igualmente a dinâmica das trocas esta-belecidas ao nível da participação cidadã nasociedade civil organizada.

Logo, a perspectiva de análise da cultura po-lítica também identificaria expressões de clien-telismo quando, por exemplo, o público-alvo deuma entidade beneficente a busca apenas paraa prestação de serviços imediatos, como um merocliente busca uma empresa, desobrigado de con-tribuir para o fortalecimento identitário da cate-goria por aquela entidade assistida. Clientelismoe assistencialismo se complementariam na me-dida em que o primeiro corresponde ao modo deresposta dos usuários daqueles serviços, oferta-dos de uma forma puramente assistencial pelasentidades de atenção.

Desde a emergência do Terceiro Setor, nasdécadas de redemocratização do regime e defortalecimento da sociedade civil, as entidadesde deficientes vêm tentando transpor este ca-ráter assistencialista de suas atividades. Supe-rar esta marca paternalista de sua atuação sefez necessário para que não destoassem doconjunto das organizações não governamentais,caracteristicamente definidas pela qualidadeemancipatória de suas intervenções junto aosgrupos e parcelas da população sob seus cui-dados.

Essa tendência de reordenamento identitá-rio das entidades de deficientes, a exemplo daFederação das APAEs, esteve expressamentevisível no processo de discussão da reforma do

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Estado e do enquadramento legal das organiza-ções da sociedade civil (denominado MarcoLegal para o Terceiro Setor/Lei das OSCIPs -Organizações da Sociedade Civil de InteressePúblico), que disciplinou o uso dos fundos pú-blicos de financiamento pelas instituições per-tencentes ao universo do associativismo. A Leidas OSCIPs, n. 9790/99, discriminou ainda, dis-tintivamente, o pertencimento de ONGs, fun-dações empresariais e outras entidades deassistência social ao universo do associativis-mo. Segundo Landim:

Pode-se então dizer que aquelas entidades ten-dem a se publicizar, ou se politizar, em sentidolato, ou seja, há, nessas dinâmicas, ao mesmotempo e de forma contraditória e combinada, uma‘filantropização’ e uma ‘politização’ no campoda assistência social através das instituiçõesprivadas. Exemplos: organizações nas áreas decrianças e adolescentes ou dos portadores dedeficiência, ou ainda de idosos, em que uma tra-dição de assistencialismo começou a se quebra-da pela sua entrada no campo da luta por direitos.Muitas ‘viram’ ONGs, no sentido em que pas-sam a se enquadrar em determinadas redes, dis-cursos, espaços institucionais.” (LANDIM,2002, p. 33). (grifos meus)

Deste modo, passaram a fazer parte dasagendas destas entidades beneficentes pautascomo inclusão social do deficiente a partir doacesso ao ensino regular, empregabilidade, de-fesa ampla de direitos e promoção à vida inde-pendente, em substituição aos consagradostemas da assistência médica e terapêutica e daescolarização no ensino especial. Característi-cas deste momento são as Associações de Sín-drome de Down que, nascidas na década de80, pareceram buscar se identificar menos como amparo meramente protetor e paliativo – muitopróprio das APAEs – e mais com o investimen-to no empoderamento das pessoas com síndro-me de Down e de suas famílias.

Este incremento cívico das ações da filan-tropia foi especialmente apreciável pela esco-lha da representação paritária que passou acompor, em 1993, o então instituído ConselhoNacional de Assistência Social – CNAS. Umavez que este conselho visava implantar a novapolítica de seguridade social de forma partici-

pativa e marcada pelo controle social, a com-posição deste órgão estava dada tanto por re-presentantes governamentais quanto porrepresentantes da sociedade civil – como as en-tidades de assistência social. Foi neste contex-to, então, que se deu a formalização da presençadas entidades de deficientes no processo de‘democratização da filantropia’ no Brasil, namedida em que parte da representação doCNAS foi ocupada por organismos como aOrganização Nacional de Entidades de Defici-entes Físicos e a Federação Brasileira de Insti-tuições de Excepcionais. (MESTRINER, 2001,p. 220).

Entretanto, foi justamente no cenário da im-plantação deste conselho que se puderam ob-servar sintomas de uma postura poucoprogressista por parte das entidades beneficen-tes, dentre as quais, as entidades de deficien-tes. Nos anos iniciais de vigência da LOAS –Lei Orgânica de Assistência Social, a políticanacional recentemente abalada pelo escândaloda LBA buscava, então, através do CNAS,novas e mais exigentes formas de recadastra-mento de entidades e de renovação de certifi-cados de filantropia.

Assim, ocorreu que algumas entidades fi-lantrópicas, temerosas com o curso das nego-ciações e deliberações que partissem do CNAS,cujas normas implementadas poderiam levá-lasa perder recursos e subvenções, buscaram for-mas de obstruir esse processo de ‘moralização’da política de assistência social. Em relato dapresidente do CNAS, em 1988, pode-se ler:“Logo tivemos clareza sobre as forças contrá-rias à redefinição do sistema de regulação dafilantropia. Sofremos lobbies fortíssimos.(...)Fomos atropelados por medidas provisórias ge-radas por pressões de APAEs, Santas Casas,reabrindo prazos, mudando formas de recadas-tramento.” (MESTRINER, 2001, p. 235).

O nível de engajamento participativo dasentidades de deficientes, ou seja, da referida“politização” da assistência prestada, pode serainda explicitado pela apreciação de suas pre-senças e manifestação junto aos canais de par-ticipação cidadã, bem como pela utilização demecanismos institucionais e sociais com o mes-

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mo fim. Quanto a estes mecanismos, “algunsforam institucionalizados a partir de propostasda sociedade civil (...), outros resultam das prá-ticas dos movimentos e seu uso depende daconjuntura, da interlocução entre as diversasforças sociais, e da relação com o Estado.”(TEIXEIRA, 2001, p.173).

Estes mecanismos de participação são ba-sicamente mecanismos de expressão do con-trole social nas tomadas de decisão. Podem serdo tipo administrativo, parlamentar ou judicial.São usados para cobrar a responsabilidade deautoridades, identificar erros, omissões e frau-des, ou opinar na propositura de projetos de lei.No tocante a esta última, por exemplo, a viaimediata de intervenção se daria na forma deacompanhamento, por parte de representantesde entidades de deficientes, de sessões parla-mentares ou audiências públicas, nas quais, nes-ses casos, bastaria a inscrição prévia para acessoàs tribunas das câmaras (de vereadores, ou doCongresso Nacional).

Para além destes mecanismos formalmenteinstituídos, consideram-se ainda outros tipos deinstrumentos político-sociais de participação ci-dadã, como, por exemplo, a publicização demoções, cartas-abertas e manifestos, atravésdo uso da mídia, ou o advocacy dos ideais daentidade pela inserção de notícias na grandeimprensa. (TEIXEIRA, 2001, p. 191). A res-peito dos fatores críticos para o sucesso doadvocacy de um entidade (onde se entenda poradvocacy a pregação de mensagens, campa-nhas ou lobbies em favor de uma causa), Ro-che destaca: “... excelente trabalho com a mídia,fundamentado em bons contatos com os jorna-listas.” (ROCHE, 2000, p.244).

Não obstante, segundo Wanderley Guilher-me dos Santos (SANTOS, 1993), para o con-texto brasileiro como um todo, sejam deficitáriosos índices de participação política e investimentocolaborativo, bem como se apresentem taxasbaixas de resolução de conflitos mediados pelajustiça ou normas legais, o caso específico doassociativismo de pessoas deficientes é ilustra-tivo da condição de fragilidade desta categoriafrente às possibilidades de mobilização cidadãe participação política.

No tocante à subutilização dos mecanismosde engajamento participativo por parte das en-tidades de deficientes, em especial os mecanis-mos parlamentares, deve-se sublinhar o episódioda revisão do Código Penal Brasileiro, o qual,nos aspectos que tangiam à possibilidade de le-galização do aborto por anomalia fetal, concla-mou a ampla participação da sociedade civil paraque esta opinasse, como forma de expressãodemocrática.

Contudo, consta que, por ocasião daqueleperíodo de espera de sugestões, a parte do an-teprojeto relativa ao aborto por anomalia fetalnão chegou a receber nenhuma consideraçãopor parte das entidades de deficientes. Algumapressão pela suspensão desta possibilidade deaborto teria partido de setores da igreja católi-ca. Bispos e arcebispos anteciparam ao presi-dente da comissão de revisão do Código Penal,a possível insatisfação da comunidade de defi-cientes com uma redação que pudesse incluirvários quadros de deficiências Deve-se desta-car ainda a ausência notória de representantesdestas entidades ao longo do processo de vota-ção, redação e sugestão ao Projeto de Lei doAborto Legal, o qual também implicava nos in-teresses de pessoas deficientes dada a proxi-midade da questão com o aborto por anomaliafetal. (VASCONCELOS, 2000.)

A presença insignificante de vozes de auto-ridade destas entidades no espaço que a mídiaofereceu para debater esta questão deve serapreciada a partir da consideração de que “OsNovos Movimentos Sociais (...) usam a mídia eas atividades de protesto para mobilizar a opi-nião pública a seu favor (...). Criar fatos novosque gerem impactos e virem notícia na mídia éuma preocupação permanente da maioria dosmovimentos sociais.”(GHON, 2002, p.238).Entretanto, segundo a ANDI – Agência deNotícias dos Direitos da Infância (2000, p.17)em relatórios de pesquisas publicados, o temada deficiência tem recebido cobertura jornalís-tica muito pouco significativa. Tendo em vistaque as pautas jornalísticas surgem, em grandemedida, a partir de demandas geradas por fon-tes do poder público e da sociedade civil, aomissão por parte da comunidade de deficien-

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tes parece responsável pelo fraco noticiamentode questões acerca da deficiência.

Essas constatações, que a princípio se refe-rem especialmente às entidades de pessoasdeficientes não parecem, contudo, surpreenden-tes, se tomadas as palavras de Teixeira (2001,p. 189), para quem “qualquer processo não estáimune às mazelas enraizadas em nossa culturapolítica”. Logo, este viés personalista, por exem-plo – que confunde a ordem doméstica com aordem pública – na gestão interna das entida-des beneficentes de assistência ao deficientemental, parece, ao fim e a cabo, reflexo de umacontaminação sofrida a partir das interaçõesanômicas mais amplas iniciadas entre os cida-dãos e o Estado.

O circuito de trocas, fragilizado no que tan-ge à circulação da reciprocidade e ao fluxo re-forçador da confiança, fica expresso pelaincapacidade destas entidades em alargar o âm-bito de suas atuações e preocupações para alémdo plano familiar, ou de considerar o tratamen-to empresarial necessário à sobrevivência delongo prazo ou à auto-sustentabilidade financei-ra. Do mesmo modo, Reis (1995), em análisedo fenômeno do comunitarismo restrito con-textualizado para a conjuntura brasileira e paraas circunstâncias vigentes de escassez de re-cursos materiais e culturais, destacou o caráterestéril de ideais filantrópicos que não logramuma institucionalização efetiva de seus resulta-dos, dada a insuficiência organizacional da so-ciedade civil. Assim, o caso das entidades dedeficientes mentais, aqui tomado como emble-mático, pode apenas estar sinalizando a abran-gência dos déficits em acumulação de capitalsocial na sociedade brasileira.

Considerações finais

Não obstante as considerações generalistasque isentam as entidades de deficientes de ex-clusividade neste cenário de uma sociedade ci-vil fracamente organizada, o que se tem, diantedo exposto até aqui, é que, a despeito de umdiscurso que reclama a superação de um mo-delo de atenção típico da prestação de servi-

ços, estas entidades pouco sucesso têm alcan-çado na efetivação de práticas que, pelo cará-ter político, contribuiriam para este fim.

O recurso adotado pela argumentação atéaqui desenvolvida, de perseguir o enquadra-mento das entidades de deficientes na formade entidades filantrópicas tradicionais, tipica-mente assistenciais, para então distanciá-lasda configuração de um movimento social, podeser questionado. Pois, a depender do paradig-ma explicativo que se adote para descrição eanálise dos movimentos sociais, esta preocu-pação de enquadramento de entidades que aosmovimentos corresponderiam não é absoluta-mente relevante. Assim, segundo a posição deMelluci (apud GHON, 2002. p.129), os novosmovimentos sociais, por serem mais fluídos,mais flexíveis, são menos forma e mais con-junto de representações significativas, expres-sões culturais.

Logo, a forma dada pelas estruturas associ-ativas assume menor importância, uma vez quea concepção de movimento social que se tem éaquela pertinente com o conjunto de represen-tações que se cria ao longo de sua existência,não se devendo, assim, buscar objetos empíri-cos concretamente observáveis, consubstanci-ados, por exemplo, na organicidade de entidadesbeneficentes representativas dos interesses dosdeficientes. Neste sentido, movimentos sociaissão construções analíticas, e não entidades quese movem com a unidade de objetivos a elesatribuídos.

Todavia, mesmo essa forma de categoriza-ção de um movimento social mostra-se proble-mática no caso da atividade e da militância dosdeficientes. Os movimentos sociais têm se con-centrado em lutas em torno da identidade, sen-do que a afirmação política destas identidadesexige alguma forma de autenticação (WOO-DWARD, 2000). Esta se dá, dentre outros fa-tores, através da coesão relativa de valores queunificam um discurso que ajuda a construir asrepresentações simbólicas em torno daquelacategoria diferenciada. No contexto brasileiro,o processo de conformação do ideário acercada deficiência se debateu ainda com a circuns-tância de ter absorvido acriticamente discursos

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acerca da igualdade e da diferença – dentre osquais, o do modelo social de descrição da defi-ciência – maturados na tradição democráticada sociedade norte-americana, caracterizadapelo associativismo comunitário, do qual o Bra-sil não compartilha historicidade.

Acrescenta-se que no Brasil, ao longo dasdécadas de oitenta e noventa, o emergir de po-líticas de identidade – e a conseqüente forma-tação de imagens de especificidade acopladasa movimentos reinvidicatórios – se deu na es-teira das pautas de exigências de agências decooperação, como o BID e o BIRD, que con-tingenciavam empréstimos à alavancagem deuma cultura comunitária. Discorrendo acercadas ONGs do Terceiro Setor, Boaventura deSouza Santos destaca que:

Nos países periféricos e semiperiféricos os pa-drões normativos de organização são decisiva-mente afectados pelas fontes de financiamentodas suas actividades, quase sempre doadoresestrangeiros, e pelas condições por estes pos-tas quanto à orientação, gestão e responsabili-zação da actividade das organizações (SANTOS,1998, p. 11).

Esta influência se deu, então, basicamenteatravés das agências de cooperação internacio-nal que financiavam recursos indispensáveis àsobrevivência das entidades civis sem fins lucra-tivos. Mesmo as ONGs, tidas como mais repre-sentativas de uma atuação cívica – e nestesentido diferenciadas das entidades assistencia-listas, seriam objeto de críticas, como, por exem-plo, a de Elenaldo Teixeira, para quem “Apesardo debate provocado pela ABONG em relação

a questões estratégicas (acesso a fundos públi-cos, relações com o Estado, etc) e de algumasiniciativas de poucas ONGs, a maioria tem seocupado com a realização de microprojetos, se-gundo as temáticas priorizadas pelas agênciasinternacionais.” (TEIXEIRA, 2001, p.172)

Conclui-se, pois, que a marca emancipató-ria, própria deste fenômeno, estaria ausentenesta forma de organização que são as entida-des, autodenominadas ou não de “entidade depais, mães e familiares de deficientes”. Estaposição pode ser corroborada pelas reflexõesde Andrew Arato (apud GHON, 2002), paraquem, em países periféricos como o Brasil, dadaa ausência de formas expressivas de participa-ção democrática, a existência de capital socialdeficitário e cultura cívica predatória, e a quali-dade específica da cultura política (notória peloclientelismo e promiscuidade na relação comos bens públicos), não teríamos uma sociedadecivil organizada. E sendo os Movimentos Soci-ais uma expressão de mobilização organizadada sociedade civil, não seria, talvez, cabível fa-lar na atuação de movimentos sociais no con-texto brasileiro.

Finalizando, valem aqui as considerações deMelucci (apud SCHERER-WARREN, 2002,p.68), para quem as redes de organizaçõesda sociedade civil – categorização mais apro-priada ao agrupamento das entidades assisten-ciais, como as que prestam atenção aosdeficientes – somente constituirão um movimen-to social à medida que forem reativas às con-tradições sistêmicas e estruturais e buscaremsuperar estes limites.

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 28.10.06

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Roberto Sanches Rabello

O TEATRO NA EDUCAÇÃO DO DEFICIENTE VISUAL

E A TEORIA DA PEÇA DIDÁTICA DE BRECHT

Roberto Sanches Rabello*

* Bacharel em Artes Cênicas (UFBA), mestre em Educação pela UFBA e doutor em Educação pela Universidade de SãoPaulo (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenador do projeto“Ensino de arte e atendimento ao aluno com deficiência visual na rede estadual de ensino”, desenvolvido com o apoiodo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC. Endereço para correspondência: Faculdade deEducação da Universidade Federal da Bahia, Av. Reitor Miguel Calmon, s/n. Vale do Canela – 40110-100 Salvador/BA.E-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo tem como base um estudo de caso, realizado na Faculdade deEducação da USP, que investigou as possibilidades, limites e significado dautilização da língua teatral por um grupo de adolescentes deficientes visuais. Onosso intuito é o de refletir a respeito da utilização do texto dramático Romeue Julieta como “modelo de ação” brechtiano, no experimento de teatro-educaçãorealizado no Instituto de Cegos da Bahia. Para isso, procuramos refletir arespeito da particularidade da deficiência visual e da educação do cego, tomandocomo referência empírica o processo de trabalho desenvolvido junto aosadolescentes. Além das informações colhidas na literatura especializada emdeficiência visual, tomamos a teoria da peça didática de Brecht como referênciabásica para ilustração do processo desenvolvido. O presente artigo mostra queo teatro contribuiu para a reflexão de problemas de uma determinadacomunidade, atualizando o contexto de uma obra literária, mediante a imitaçãode atitudes e ações corporais advindas do cotidiano dos participantes.

Palavras-chave: Arte-educação – Teatro-educação – Deficiência visual –Cegueira – Peça didática

ABSTRACT

THEATER IN EDUCATION OF VISUALLY IMPAIRED PERSONSAND BRECHT’S THEORY OF DIDACTIC PLAY

This article is based on a case study research realized at the USP (Universityof Sao Paolo) School of Education. We investigated the possibilities, limits andmeaning of the use of the theatrical language with a group of visual deficientadolescents. We intend to look upon the use of the dramatic text Romeo andJuliet as a brechtian “model of action”, in the theater-education experimentaccomplished at the Bahia Institute for Blinds. Then, we tried to know in detailsthe particularities of the visual deficiency and blind person’s education, takingas empirical reference the work process developed alongside the adolescents.Besides the informations founded in the specialized literature in visual deficiency,

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O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht

we took Brecht’s theory of didactic play as a basic reference to illustrate theprocess. The present article shows that theater stimulate reflection aboutproblems within the community, updating the context of a literary work, throughimitation of attitudes and corporal actions from the daily life of the participants.

Keywords: Art-education – Theater-education – Visual deficiency – Blindness– Didactic play

As reflexões deste artigo têm como baseuma pesquisa de maior abrangência, desenvol-vida originalmente na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo – USP 1 . O es-tudo foi feito a partir do relato das oficinas deteatro realizadas no Instituto de Cegos da Bahia- ICB, no período de março a dezembro de 1997.As preocupações surgidas no decorrer dessaatividade provocaram a reflexão sobre os dife-rentes elementos constitutivos da linguagem te-atral experimentados por meio do jogo teatral eda apropriação de um texto dramático.

No presente momento, o intuito é o de ilus-trar, com base na teoria da peça didática deBrecht, o momento em que os alunos do Insti-tuto de Cegos da Bahia trabalharam com a peçaRomeu e Julieta de Shakespeare e refletiramsobre a afetividade entre adolescentes que vi-vem em regime de semi-internato em institui-ções mistas.

O texto dramático foi tomado como “mode-lo de ação” brechtiano, ou seja, como forma deimitação crítica e de reflexão a respeito dasrelações entre os participantes da montagemteatral. As improvisações criadas a partir dapeça teatral exercitaram maneiras de agir, pos-turas e falas cuja imitação consciente atravésdo jogo teatral, como lembra Steinweg (1992,p. 48), podem provocar “reflexão e crítica so-bre a sociedade e/ou sociabilidade, comunica-ção interrompida, possibilidades atrofiadas desocialização, de associação”.

A intenção ao divulgar essa experiência é,sobretudo, refletir sobre o significado do teatrona educação da pessoa com deficiência visual.Um dos aspectos relevantes deste trabalho é oregistro de uma prática pedagógica de ensinode arte, em que o autor, mesmo não sabendoinicialmente nada a respeito de alunos com de-ficiência visual, se propôs a alfabetizar esteti-

camente adolescentes que viviam em regimede internato, ávidos por expressarem o explosi-vo momento do despertar da sexualidade.

Estudos e pesquisas vêm mostrando a difi-culdade dos professores em lidar com alunoscom necessidades educacionais especiais(COLL, 1995), inseridos, muitas vezes por for-ça da lei, em classe regular. Por outro lado, sãopraticamente inexistentes trabalhos que apon-tem para formas efetivamente empregadas peloprofessor de arte no desenvolvimento de pro-cessos lúdicos, afetivos, sensoriais e estéticos,sobretudo com alunos deficientes visuais.

O que gostaríamos de discutir nesse proces-so é a apropriação do texto teatral e o significa-do da experiência, para um grupo de adoles-centes, alguns sem nenhuma escolarização eque pouco conheciam sobre teatro. Eles mes-mos afirmavam que nunca tinham participadode dramatizações e nunca tinham apreciado umespetáculo teatral. Seria possível uma alfabeti-zação estética efetiva, no sentido do aprendiza-do de uma linguagem especificamente teatral?As aulas de teatro deveriam ficar apenas nonível da integração e sensibilização ou o traba-lho poderia ser encaminhado em direção aoaprendizado dessa linguagem, por meio da mon-tagem teatral?

O posicionamento teórico do estudo, procu-rando valorizar o conteúdo de teatro e os temasemergentes, tomou a teoria da peça didáticacomo forma de espelhar e analisar a experiên-cia realizada. Embora não negando os benefí-cios terapêuticos do teatro enquanto expressão,levantamos a hipótese do teatro enquanto lin-

1 Trata-se de um estudo de caso, orientado pela professoraDra. Elcie Fortes Salzano Masini, que investiga as possibili-dades, limites e significado da utilização da língua teatralpor um grupo de adolescentes deficientes visuais (RABÊLLO,2003).

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guagem comunicativa entre adolescentes defi-cientes visuais, que pudesse ser aprendida pormeio do fazer e da apreciação teatral. Procu-rávamos ressaltar, dessa maneira, tanto o cará-ter intuitivo, subjetivo, emocional e coletivo dofazer teatral, como também o seu valor enquantoforma de conhecimento que tem um conteúdopróprio, relacionado com a manipulação expres-siva de seus elementos estruturais, cujo apren-dizado ajuda na compreensão da realidadecotidiana, no jogo dialético do ser humano como mundo.

Foi esse posicionamento teórico e político arespeito do ensino de teatro como objeto deestudo que nos levou ao problema da aprendi-zagem da linguagem teatral pelos adolescentesdeficientes visuais, que participaram das ofici-nas de teatro, e ao significado desse aprendiza-do para o seu desenvolvimento.

O estudo dos processos de aprendizagemdo teatro por pessoas deficientes visuais se le-gitima em função do próprio significado da artepara o conhecimento humano. A arte representauma das formas de captação da realidade, quese complementa com a ciência, na compreen-são do ser humano e do mundo em que vive(LANGER, 1962). Se não desenvolver o co-nhecimento em arte, a pessoa não estará aptaa uma compreensão totalizadora da realidade.

Sabemos que a dimensão estética e artísti-ca, entretanto, não vem sendo valorizada nanossa educação cartesiana, racionalista e ver-borrágica. No caso do deficiente visual os pro-blemas se agravam, na medida em que o seudesenvolvimento e aprendizagem são definidos,em geral, a partir de padrões adotados para osvidentes, tendo a visão como pressuposto doconhecimento, não se levando em conta a suamaneira diferente de perceber e relacionar-seno mundo, sendo o seu corpo concebido e utili-zado como um mecanismo sem interioridade(MASINI, 1994).

Diante do que ocorre no cotidiano das esco-las brasileiras, com uma educação em que, con-forme Masini (1994), o conhecer tem comopressuposto o ver, não se levando em conta atotalidade do indivíduo, os processos corporais,emocionais e as diferenças de percepção, é

fundamental a exploração de novas formas deexpressão e comunicação que transcendam odiscurso articulado, valorizem a dimensão ex-periencial do conhecimento e a percepção dofenômeno estético, por meio da introdução dojogo teatral e do texto dramático entre pessoascom deficiência visual.

Devido a sua localização na fronteira entrediferentes áreas, este artigo tem, grosso modo,dois pólos referenciais; um relativo à deficiên-cia visual e outro ao teatro como arte-educa-ção. Para as nossas reflexões utilizamosreferências sobre deficiência visual e sobre aeducação do cego, pois trabalhamos com seisadolescentes, quase todos cegos congênitos, equeríamos entender melhor essa particularida-de. Além disso, com o sentido de mostrar o sig-nificado da apropriação textual para osparticipantes, buscamos alguns conceitos e prin-cípios, tomados, sobretudo, da teoria da peçadidática de Brecht, muito explorada no Brasil apartir do trabalho de Koudela (1991, 1996).

A deficiência visual e a cegueira

A vivência desenvolvida no Instituto de Ce-gos da Bahia estimulou a curiosidade de co-nhecer melhor as características peculiares daspessoas que não enxergam, ou que têm visãoreduzida. Procuramos saber mais sobre a ce-gueira, sobretudo a respeito do que é estar nomundo sem dispor da visão como sentido pre-dominante, as desvantagens inerentes à própriadeficiência, e as limitações causadas tambémpelos estigmas sociais que se manifestam emestereótipos culturais e que terminam atingindoefetivamente as pessoas cegas.

A falta de informação das pessoas normal-mente leva a uma incompreensão a respeito dacegueira. Essa falta de compreensão faz comque as capacidades sejam muitas vezes exage-radas ou subestimadas. A literatura específicaprocura desvelar os equívocos de uma falsaconcepção de cegueira, desfazendo mitos eestereótipos e situando o problema no campoeducacional, relacionando-o com as diferençasindividuais. Dessa maneira, essa literatura

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O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht

comprova que os sujeitos que nunca enxerga-ram não sentem falta da visão, não se sentemcompadecidos de si mesmos, não anseiam pelaluz, e a cegueira não tem um significado terrí-vel para eles como tem para o vidente. A suarelação com os videntes é que vai denotar paraeles a cegueira como terrível. Os cegos com-preendem a falta que a vista representa, devi-do às possibilidades dos que estão enxergandoà sua volta.

Quando nos debruçamos sobre a literaturapercebemos que não existe um conceito uni-versalmente aceito sobre cegueira, ou sobredeficiência visual, e que muitos são os critéri-os adotados para sua definição. Essas expres-sões geralmente são utilizadas para caracterizara situação dos sujeitos privados da vista ou comvisão reduzida (também denominados pesso-as com “baixa visão” ou com “visão subnor-mal”).

Segundo o enfoque médico-oftalmológico, acegueira significa “uma redução da acuidadevisual central desde cegueira total (nenhumapercepção de luz) até acuidade visual menorque 20/400 P (ou seja 0,05) em um ou ambosos olhos, ou redução do campo visual ao limiteinferior a 10º”; e visão subnormal (visão re-duzida) significa “a acuidade visual centralmaior que 20/400 até 20/70 (ou seja 0,3)” (BRA-SIL, 1995, p. 17). Entretanto, alguns autores con-sideram pouco apropriada essa delimitação pelaacuidade visual para fins educacionais, consi-derando que o modo pelo qual uma pessoa uti-liza a visão é mais importante que a medida desua acuidade visual.

Masini (1994), por exemplo, prefere adotara definição, referente à deficiência visual, daAmerican Foundation for the Blind, na qualcriança cega é aquela que não pode ser educa-da através da visão e que necessita, conseqüen-temente, de um programa educacional que utilizeo sistema braile, aparelhos de áudio e demaisequipamentos especiais necessários para quealcance seus objetivos educacionais. A pessoacom visão subnormal é a que ainda conservavisão útil como via de aprendizagem, não ne-cessita do sistema braile, mas cuja deficiênciavisual reduz o progresso escolar em extensão

tal que a leva a necessitar de recursos ópticose educativos especiais.

Amiralian (1997) observa que, do ponto devista médico e educacional, cego não é apenasaquele que nada enxerga, geralmente em nú-mero reduzido, mas também os que conseguemdistinguir o claro do escuro, percebem vultos econtam dedos a uma determinada distância.Para Lowenfeld (1957), psicologicamente cegoé quem sempre foi totalmente sem vista, ou queperdeu a visão antes dos cinco anos de idade e,conseqüentemente, não conserva ou utiliza lem-branças visuais na aquisição de novos conheci-mentos ou, em outras palavras, não conseguepôr em termos de visão as suas impressões tá-teis, cinestésicas, olfativas e auditivas, como osvidentes o fazem.

Como acentua Ormelezi (2000), os avançosda própria prática educacional e clínica nos anossetenta provocaram a mudança no enfoque dadeficiência visual, determinando uma nova de-finição e classificação funcional, não mais combase na acuidade visual, e sim na eficiência davisão. Assim, as pessoas com baixa visão utili-zam a visão residual para a leitura e a escrita,com ou sem recursos ópticos de ampliação epara situações práticas da vida diária.

Na contemporaneidade, esses conceitos sãodiscutidos com vistas a uma mudança de atitu-de da sociedade frente à pessoa com deficiên-cia. O estabelecimento das especificidadesganha uma conotação de respeito às diferen-ças individuais e o sentido da inclusão de indiví-duos com deficiência nas escolas e nasatividades de trabalho e de lazer. Para Vygotsky:

... é necessário liquidar o isolamento a partir deuma educação do cego e apagar a demarcaçãoentre a escola especial e a escola normal. A edu-cação de uma criança cega na atualidade deve serorganizada nos mesmos termos da educação detodas as crianças capazes de um desenvolvimen-to normal (...) a Ciência Moderna deve dar ao cegoo trabalho social certo, não degradante, não filan-trópico (como tem sido a prática padrão até ago-ra), mas em formas que correspondam à verdadeiraessência do trabalho (VYGOTSKY, 1989, p. 108).

Essa atitude, entretanto, parece não contem-plar a totalidade do indivíduo nos estudos reali-

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zados na área de deficiência visual. Masini(1994) e Amiralian (1997) afirmam que a mai-oria das pesquisas sobre o deficiente visual estápreocupada com a questão do desenvolvimen-to cognitivo ou com a defasagem da comunica-ção do deficiente visual em relação ao vidente.

Sabemos que a cegueira limita variadas for-mas de informação sobre o ambiente externo,ocasionando danos para o sujeito cego, que ficaimpossibilitado de conhecer as característicasdo ambiente de forma rápida e eficaz. Confor-me Amirialian (1997), a cegueira, ao limitar aspossibilidades de apreensão do mundo externoe impor um peculiar processo perceptivo ao in-divíduo, interfere no seu próprio desenvolvimentoe ajustamento às situações comuns da vida, pro-vocando uma mudança significativa na estrutu-ração cognitiva e na organização e constituiçãodo sujeito psicológico.

Além do mais, a visão, no cotidiano social,geralmente aparece como pressuposto do co-nhecimento. Masini trata da questão epistemo-lógica da mistura confusa do conhecer e dover e revela que,

... histórica e etimologicamente, na civilizaçãoocidental, o “conhecer” se faz com o “ver”; o“ver” é condição para o “conhecer” e em certasinterpretações os dois significados se confun-dem. Daí se desvela a situação do deficiente vi-sual de pertencer a uma cultura na qual o“conhecer” se confunde com uma forma de per-cepção de que ele não dispõe; condição intensi-ficada na sociedade de massa do século XX,onde tudo se mostra ao olhar e é produzido paraser visto (MASINI, 1994, p. 25-26).

Numa cultura onde o saber se origina e de-pende basicamente da visão, cabe o questiona-mento da autora: “Como é o pensar daqueleque aí está e não é vidente? (...) Como se dá oconhecimento na ausência da visão?” (MASI-NI, 1994, p. 81).

A educação do deficiente visual

Por muito tempo acreditou-se que a pessoaprivada da visão era providencialmente com-pensada pela maior acuidade dos sentidos res-tantes. A teoria da compensação sensorial, que

teve muita influência nos trabalhos científicossobre a cegueira, afirmava que a ausência deum dos sentidos aumentava o grau de acuidadedos sentidos restantes. Assim, uma pessoa cegateria em compensação os outros sentidos maisapurados e uma conseqüente superioridade sen-sorial em relação aos videntes. Hoje, sabemosque as pessoas cegas não possuem melhor au-dição, tato, olfato ou paladar, somente pelo fatode serem cegas. Na verdade, elas utilizam osrecursos a seu alcance para buscar a estimula-ção em vias alternativas, o que exige uma edu-cação adequada (COBO; RODRÍGUEZ;TORO BUENO, 1994, p.130).

Nem a audição, nem as sensações táteis sãoem nada superiores, apesar das fantasias e len-das que tentam justificar feitos extraordináriosatribuídos aos cegos. A capacidade para distin-guir variações de peso, para determinar varia-ções de pressão em diferentes pontos da pele,a acuidade do paladar e do olfato, a capacidadepara determinar pequenas mudanças de tem-peratura também não mostram superioridadedos cegos em relação aos videntes.

A educação tem que ser adaptada, pois opoder dos sentidos é influenciado pela atençãoeducada. Isso implica em atividade, aplicaçãocuidadosa da mente, concentração. Ademais,a percepção ocorre em um corpo “visto numatotalidade, na sua estrutura de relação com ascoisas ao redor” (MASINI, 1994, p.85). As-sim, as impressões sensoriais não ocorrem deforma isolada, embora possa haver predominân-cia de um dos sentidos sobre os outros. A visãoparece sobrepor-se aos demais sentidos no casodo vidente, mas, para o cego, a complementa-ção das fontes parece ser fundamental. Por isso,geralmente as pessoas ficam intrigadas tentan-do entender como eles conseguem compreen-der o mundo sem o sentido da visão, conside-rando-se que grande parte da compreensão dovidente provém da visão.

Ao procurarmos informações sobre a defi-ciência visual tivemos inicialmente dificuldadede encontrar na literatura conceitos ou propos-tas que compreendessem o sujeito na sua intei-reza. Neste sentido, encontramos em Masini(1994) questionamentos e informações impor-

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O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht

tantes a respeito do que é estar no mundo semdepender da visão como sentido predominante.Isso nos ajudou a refletir melhor sobre o que osdeficientes visuais do grupo de teatro eram ca-pazes de fazer teatralmente e o que não cor-respondia às suas características.

Masini (1994) defende a busca das caracte-rísticas do sujeito para se poder definir uma ori-entação apropriada para a sua educação,mostrando que o corpo é um instrumento de com-preensão e um caminho possível para conhecera pessoa. A autora acentua a necessidade de“buscar as raízes do conhecimento no mundovivido, no contato com a experiência original –na situação em que o sujeito, através do própriocorpo (que sabe, que sente, que compreende)encontra o objeto” (MASINI, 1994, p. 94).

Compreender o sujeito na sua inteireza sig-nifica entender a diversidade e heterogeneida-de da população. Uma pessoa que perde a visãotardiamente possui referências visuais que fa-cilitam o trabalho de expressão corporal. Omomento do surgimento dos problemas visuais,o grau de diminuição da visão, a forma comoaconteceu, a circunstância social, familiar epsicológica, a própria aceitação da deficiência,tudo isso pode exercer um efeito sobre o de-senvolvimento do indivíduo, o que termina porinterferir no trabalho das oficinas de teatro.

No trabalho desenvolvido, verificamos aimportância da percepção do modo como cadapessoa utilizava os sentidos de que dispunha,inclusive os resquícios de visão. A visão de luze a percepção de vulto, por exemplo, ajudavammuito na locomoção, na interação com o outroe com o espaço, facilitando a agilidade no jogoteatral. Como lembra Masini (1994), a ausên-cia do sentido da visão muda o modo próprio deestar no mundo e de relacionar-se, imprimindoestilos de movimento e atitudes diferenciadas.

Além do mais, estamos nos reportando aum grupo de adolescentes em particular, quetinha uma potencialidade afetiva muito gran-de. Pessoas cada vez mais unidas pela vonta-de de fazer teatro, de serem amigas umas dasoutras, de refletir e de batalhar pelos seus so-nhos, dividindo suas emoções e idéias comoutros adolescentes. Os processos teatrais que

passaremos a relatar ajudaram muito nessesentido, terminando por integrar o jeito de serde cada um com o direito de sonhar conjunta-mente, projetando um mundo mais feliz, agra-dável e prazeroso.

O texto dramático como “modelode ação” brechtiniano

O processo de improvisação teatral tevecomo base a proposta de Spolin (1979), que partedo pressuposto de que todas as pessoas sãocapazes de atuar no palco e aprender atravésda experiência criativa, desenvolvendo habili-dades através do jogo teatral e transpondo oprocesso de aprendizagem para a própria vida.

Sabemos que o teatro é uma linguagem quese manifesta por meio de um sistema de signosde enorme riqueza, variedade e densidade, en-volvendo não apenas o texto falado, mas incor-porando a atitude corporal, a expressão físicado ator (a ação, o movimento, o gesto, a ex-pressão facial), a sua localização no espaço,entre outros sistemas (KOWZAN, 1978, p.117). Este sistema de signos foi explorado nasoficinas de teatro a partir de jogos tradicionais,de jogos corporais e de improvisação teatral,na perspectiva do aparecimento de temas dointeresse dos alunos.

Para facilitar a aprendizagem dos participan-tes das oficinas de teatro, seguimos um esque-ma pautado nos seguintes pontos: no fator deinteração, envolvendo jogos com dinâmicas lú-dico-afetivas de união grupal, de cooperação ede pesquisa sensorial; na exploração dos ele-mentos da linguagem teatral a partir da expres-são corporal (movimento, ação, gesto, som),antes mesmo da introdução da linguagem ver-bal; no aprofundamento de temas sugeridos nasimprovisações, quando os atores combinavam,em pequenos grupos, a ação, os personagens eo ambiente que desejavam representa; e naavaliação das cenas produzidas cotidianamen-te, refletindo a respeito dos temas e da formacriada coletivamente.

Nas improvisações e nas rodas de conversaque realizávamos para refletir sobre as vivên-

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cias diárias foi que surgiu o tema do “amor proi-bido”, sugerido pelos participantes. Eles nãoqueriam falar sobre doenças, nem sobre pre-conceitos e estereótipos a respeito da cegueira,queriam falar do “amor proibido” pelas barrei-ras institucionais, queriam tratar de situaçõesromânticas, da dificuldade de afeto entre ado-lescentes, sobretudo entre os que viviam emregime de semi-internato, como era o caso de-les na época.

Além de falar de amor, os alunos queriammostrar para as pessoas que eram capazes deatuar teatralmente e de encenar uma peça.Esse desejo nos levou a uma montagem base-ada no “Romeu e Julieta“ de Shakespeare.Um texto clássico universal foi utilizado como“modelo de ação”, colocando em pauta a proi-bição do namoro.2

O processo de criação do espetáculo acon-teceu de maneira lúdica, envolvendo situaçõesda peça teatral Romeu e Julieta, misturadascom situações representadas nas improvisaçõesteatrais. Nas oficinas de teatro o texto deShakespeare foi utilizado como modelo deação, conceito brechtiano que não tem o senti-do da reprodução por imitação fiel de situaçõesexemplares. Na proposta de Brecht, a monta-gem teatral é um exercício artístico coletivo queutiliza o texto como objeto de “imitação crítica”e investigação de relações construídas social-mente. A peça não é entendida como uma có-pia da realidade, mas sim como uma metáfora,pois, segundo os princípios brechtianos, o cará-ter estético do experimento teatral é um pres-suposto para os objetivos de aprendizagem(KOUDELA, 1996, p. 17).

Brecht é conhecido no mundo inteiro comorepresentante de um teatro crítico, que eledenominava “épico” ou “dialético”, que se ca-racterizava por uma forma de encenação ede uma técnica de atuação que despertava opúblico da passividade, sobretudo pelo cará-ter demonstrativo do jogo do ator. Ao invésde uma imitação da realidade, muito comumem um tipo de teatro ilusionista, e que provo-ca a identificação passiva do espectador, osistema brechtiano procurava um efeito dedistanciamento que levava o público a es-

tranhar o que é habitual, assumindo uma po-sição crítica em relação ao que estava sendomostrado.

O que é distanciamento? Distanciar um fato oucaráter é, antes de tudo, simplesmente tirar des-se fato ou desse caráter tudo o que ele tem denatural, conhecido, evidente, e fazer nascer emseu lugar espanto e curiosidade (...). Distanciaré historicizar os fatos e personagens (BRECHT,1967, p. 137-138).

Com o aprofundamento e aplicação dessesconceitos, Brecht (1967) procurou desenvolverum teatro didático, com o intuito de atingir osestudantes, os grupos amadores e os corais detrabalhadores, enfim, as pessoas que não fre-qüentam o grande teatro, mas que desejam fa-zer arte. Assim, o aluno/ator devia aprender, aodiscutir o conteúdo social da peça e ao experi-mentar situações que despertassem o espíritocrítico.

No processo de encenação das peças didá-ticas, Brecht radicaliza a relação entre atores epúblico, uma vez que a platéia não precisa se-quer existir, importando fundamentalmente aeducação dos participantes. Essa forma de te-atro, ao exigir uma preocupação maior com aconscientização dos atuantes, favorece a suautilização como forma de conhecimento. Segun-do a definição de Brecht, as peças didáticastêm como objetivo ensinar não primordialmen-te o público, mas sim aqueles que tomem partede sua representação. Ela instrui pelo fato deser representada, e não pelo fato de ser vista,pois, mesmo contando com a presença de umpúblico, o objetivo da encenação é o ensina-mento de atitudes sociais aos próprios atores:

A peça didática se diferencia da peça épica deespetáculo, que exige a arte da interpretação.Brecht sublinha que a principal função da peçadidática é a educação dos participantes do Kuns-takt (ato artístico). A peça didática ensina quan-do nela se atua e não através da recepção estéticapassiva (KOUDELA, 1996, p. 13).

O texto é utilizado então como forma decriação de alternativas de atuação (improvi-

2 O espetáculo teatral foi apresentado e discutido com maisde seiscentos adolescentes em teatros e escolas, com apoioda UFBA e do Instituto de Cegos da Bahia.

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O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht

sação) que levem o ator a pensar sobre a suaprópria realidade cotidiana. Por isso, não im-porta a memorização mecânica de um texto,sendo permitido inclusive a introdução de tre-chos de invenção própria, em função do alvoque se quer atingir.

Os princípios abordados oferecem grandecontribuição para o ensino de teatro e servempara espelhar a experiência prática desenvolvi-da no Instituto de Cegos da Bahia, sobretudono que se refere à apropriação do Romeu eJulieta como modelo de ação.

A apropriação do texto como ob-jeto de imitação crítica

O texto dramático tinha sido praticamentebanido nas oficinas de teatro com crianças eadolescentes nos anos 60, com o pressupostode que prejudicaria a espontaneidade natural doeducando. Somente nos anos 70 e 80 as práti-cas de teatro-educação passaram a incorporaro desafio da apropriação lúdica de textos dra-máticos, com o objetivo de enriquecer o imagi-nário e ampliar a visão de mundo dos partici-pantes.

Essa tendência do teatro com preocupaçõeseducacionais e lúdicas é reiterada nos Parâme-tros Curriculares Nacionais – Arte (BRASIL,1998), que destacam o texto como objeto deimitação crítica e princípio unificador do pro-cesso pedagógico, desde que se possibilite a li-berdade e diversidade de construções.

No experimento educacional realizado, aencenação do texto de Shakespeare foi desen-volvida a partir de improvisações, que expres-savam idéias comuns aos atores e ao texto.Neste processo, a proposta brechtiana forne-ceu um método para pensar a realidade. O jogocom o texto implicou em imitar, acrescentarnovos elementos, novas cenas, novos diálogose ações, o que envolveu um processo de cria-ção e aprendizagem.

Não existia uma estrutura rígida a ser cum-prida, pois, na adaptação realizada, a históriado Romeu e Julieta era emoldurada por umprograma de rádio que permitia a inserção de

trechos novos e improvisações produzidas pe-los alunos. Inclusive devido à pouca experiên-cia dos alunos na leitura em braile, utilizamosapenas fragmentos do texto, como recurso parasua apropriação. O texto tornou-se um elementoa mais no jogo teatral, e a sua modificação ocor-reu naturalmente, em função da improvisaçãodos alunos, permitindo a comparação direta comsituações de vida.

As insatisfações com o cotidiano apare-ceram no exercício do fazer teatral, possibili-tando a elaboração de uma questão quecolocava em dúvida as normas sociais esta-belecidas, lançando um novo olhar sobre orelacionamento entre os jovens e sobre o pró-prio mito presente no Romeu e Julieta. Ofoco, entretanto, se deslocou da instituiçãofamília para os internatos.

O princípio do distanciamento, muito utili-zado por Brecht, também ajuda a espelhar otrabalho. A história que vinha sendo mostradano “aqui e agora” foi colocada em suspensopor um programa onde os atores da peça eramentrevistados, colocando-se ora como persona-gens, ora como atores que comentavam a açãoda peça, discutindo até mesmo uma nova for-ma de “solução para o caso de Romeu e Julie-ta”. A entrevistadora solicitava, inclusive, umposicionamento dos atores e do público a res-peito da “proibição do namoro em instituiçõesmistas”. O fato de diferentes argumentos eposicionamentos serem colocados, provocavauma discussão sobre uma matéria polêmica ede interesse coletivo.

Outra forma de distanciamento foi realiza-da por meio do jogo de representação de ummesmo papel por três atores diferentes, comono exemplo da proposta em que três pessoasrepresentavam Romeu e três representavamJulieta. O público não podia se identificar como personagem central, de forma a ficar hipnoti-zado, posto que percebia que era uma repre-sentação encenada por um grupo, onde trêsatores representam o mesmo personagem. Esserecurso foi utilizado como forma de atender aointeresse de “mostrar que é teatro”, quebrandoa empatia com o personagem central, caracte-rística do teatro ilusionista.

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Considerações finais

A experiência do Instituto de Cegos da Bahiaevidenciou que os processos teatrais têm a pos-sibilidade de fornecer uma série de situaçõesnas quais os alunos deficientes visuais se en-contram motivados pela aprendizagem, exerci-tando o fazer, a leitura e a observação/reflexãodo seu contexto cotidiano.

Os processos teatrais empregados, que emnada diferem do método utilizado com atoresvidentes, ajudaram a refletir coletivamente so-bre a tarefa social de reconstrução da realida-de. Diferente de situações tradicionais de ensino,a aprendizagem não se desenvolveu por umprocesso passivo de escuta diante do professore de assimilação de informações teóricas, maspela ativação da relação teoria e prática reali-zada pela vivência crítica.

Esse método termina levando o aluno a va-lorizar seus próprios interesses, refletir sobre asua realidade, lidando com o cotidiano e com osentido da experimentação. Observamos que acriação a partir do texto de Shakespeare pro-porcionou aos participantes a crítica de suaspróprias experiências enquanto membros de umainstituição social.

Sustentamos a proximidade com os princí-pios brechtianos da peça didática, na medidaem que o texto desencadeou processos que vi-sam à reconquista de formas de expressão peloparticipante, que imita um “modelo” com ges-tos, posturas, imagens que tornam reconhecí-vel algo que estava encoberto, revelando outraspossibilidades de se perceber o que estava sen-do mostrado. A atuação é essencial para oaprendizado porque permite a criação (cons-trução de relações) e, conseqüentemente, aaquisição do conhecimento.

As relações que se estabeleceram no confron-to com o texto despertaram nos alunos um com-portamento político. O objetivo de fazer teatro nãoestá dissociado do significado social e político docotidiano. Situações sociais típicas de um interna-to foram reconhecidas e a sua experimentaçãojogou com a possibilidade de transformá-las.

Assim, a estrutura dramatúrgica permitiu autilização do texto como “modelo de ação”, um

desencadeador de sentimentos e idéias que pro-picia o reconhecimento de problemas de suaprópria comunidade e o relacionamento ação/reflexão. Os alunos adaptaram e atualizaram ocontexto da obra literária mediante a imitaçãode atitudes e ações corporais advindas do coti-diano, apossando-se do texto como “modelo”,para interpretação da própria vivência ou dogrupo social no qual estavam inseridos.

Podemos, então, concluir pela possibilidadedo desenvolvimento de uma linguagem especi-ficamente teatral entre os adolescentes queparticiparam do experimento teatral. As aulasde teatro não ficaram apenas no nível da inte-gração e sensibilização, caminhando em dire-ção ao aprendizado do teatro em consonânciacom a apropriação de mundo.

E um aspecto que muito contribuiu para essaaprendizagem do teatro entre os participantesdas oficinas foi a linguagem verbal. A lingua-gem, como principal elemento para a aprendi-zagem dos elementos sócio-culturais do meioambiente, instrumento fundamental de comuni-cação social, forneceu o nexo para a compre-ensão da cena teatral, proporcionando relaçõescom os colegas em cena e com as pessoas deuma platéia interna ao grupo, assim como osmeios de entendimento do ambiente onde sepassava a ação, dos personagens, da época.

Podemos, então, sugerir que, além da ex-pressão física no espaço e da integração da in-formação sensorial recebida por outros canais,que se facilite ao deficiente visual as informa-ções verbais possíveis, dado que esta lingua-gem constitui sua forma preferencial pararepresentar o mundo. A linguagem funcionacomo integradora das percepções táteis, auditi-vas, olfativas, gustativas e, nas atividades tea-trais, quando era utilizada pelos alunos, assumiade fato essa função integradora.

O teatro contribuiu para que os alunos pu-dessem conhecer e compreender melhor seusproblemas, e o texto favoreceu essa compre-ensão ao tratar do tema do namoro. A defesade aspectos relacionados com a afetividadedentro do ICB aconteceu de maneira dramáti-ca, mas sem perder o humor que caracterizavaas pessoas do grupo. Isso mostra que os pro-

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O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht

cessos teatrais podem colaborar para revertera situação contraditória de instituições como aescola, que pretende educar pessoas deixando

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 26.10.06

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Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva

NO SILÊNCIO DOS SONS: MÚSICA E SURDEZ

construindo caminhos

Marisa Pinheiro Mourão *

Lázara Cristina da Silva **

* Graduanda em pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para correspondência: UniversidadeFederal de Uberlândia, Avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G – 38408-100 Uberlândia-MG. E-mail: [email protected]** Orientadora. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para corres-pondência: Universidade Federal de Uberlândia, Avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G– 38408-100 Uberlândia-MG. E-mail: [email protected]

RESUMO

Este estudo diz respeito a uma pesquisa realizada de acordo com a abordagemqualitativa, sendo mais precisamente um estudo de caso. Seu objetivo geral édiscutir as contribuições da música no desenvolvimento cognitivo de criançassurdas. As fontes pesquisadas e analisadas demonstraram a possibilidade de amúsica fazer parte do cotidiano de crianças surdas e ser utilizada como açãopedagógica, pois constitui uma fonte de expressão, prazer e interação.Identificou-se o interesse das crianças em conhecer mais sobre a música;porém, para a maioria das pessoas, ela é privilégio do mundo dos ouvintes e,por isso é retirada da vida dos surdos. Além disso, poucas pesquisas com essetema são realizadas nesta área de estudos. Para que a música esteja ao alcancedessas crianças, muitas transformações precisam ocorrer nos conceitos damaioria das pessoas. A principal delas é acreditar no potencial dos surdos, nãorotulá-los e não desacreditar no seu potencial, tendo por base apenas a suasurdez. Os surdos, assim como os ouvintes, têm o direito de conhecer a músicae expressar sua musicalidade, cabendo, portanto, aos educadores e à famíliaampliar sua visão educacional e lhes possibilitar o maior número de experiênciasprazerosas, que contribuíam com o seu desenvolvimento global.

Palavras-chaves: Surdez – Música – Desenvolvimento cognitivo

ABSTRACT

IN THE SILENCE OF THE SOUNDS: MUSIC AND DEAFNESS -Constructing Ways

This paper is based upon a qualitative case study. Its main object is to discussthe music contribution in the cognitive development of deaf children. Theliterature researched and analyzed showed the possibility of music making partof the deaf children’s daily life and being used in pedagogical action, because it

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No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos

constitutes a source of expression, pleasure and interaction. The interest ofpart of the children to know more about music was identified, but, to the majorityof the people, music is a privilege of the listener world and because of this, it istaken away from the deaf life and few researches are made in this field. Tomake music available for these children, a lot of changes must be done in theconcepts of most people, the main one is to believe in the deaf people’s potentialand not label or disbelieve them because they can’t hear. Deaf people, just asthe listeners, have the right to know music and express themselves musically.It’s up to teachers and parents, to broaden their educational vision and makepossible the greatest number of pleasure experiences, thus contributing to theirglobal development.

Keywords: Deaf – Music – Cognitive development

Este artigo é o resultado de uma pesquisamonográfica, realizada no ano de 20031 , queaborda a possibilidade da presença da músicana vida de crianças surdas, considerando a suagrande influência no cotidiano das pessoas emgeral e a sua exclusão da vida dos surdos. Pre-tendeu-se com este trabalho conscientizar aspessoas de que o surdo pode, assim como osouvintes, ser um sujeito musical.

A música está presente na humanidade des-de muito cedo. Afinal, todo ser humano nascenum mundo rodeado de sons, e a qualidade equantidade desses sons dependerá do ambi-ente em que se vive. O poder da música nahumanidade é objeto de estudo de vários cien-tistas que procuram comprovar os benefíciostrazidos por ela na busca de uma vida melhor.Em toda a história a música esteve presentecomo forma de expressão, de protestos, de fes-tividades e de cultura. Nesse contexto, a cri-ança entra em contato com a atividade musicaldesde muito cedo, uma vez que esta já faz par-te de sua vida.

A música é a linguagem que se traduz emformas sonoras capazes de expressar sensa-ções, sentimentos e pensamentos. Está presenteem todas as culturas, no cotidiano das pessoas,sendo capaz de integrar aspectos afetivos, lin-güísticos e cognitivos, assim como possibilitar ainteração social. Ela é um importante meio decomunicação existente em nossa vida e, por isso,é parte do contexto educacional, particularmen-te na educação infantil. Trabalhá-la no cotidia-

no escolar significa ampliar a variedade de lin-guagens e permitir a descoberta de novos ca-minhos de aprendizagem. É antes de tudo umfazer artístico, é explorar e trabalhar a sensibi-lidade humana.

Salienta-se, ainda, que música tem granderepercussão sobre a identidade das pessoas, suaauto-estima, expressividade, socialização, alfa-betização, capacidade inventiva, raciocínio, sen-sibilidade e percepção sonora, contribuindotambém para o desenvolvimento cognitivo.

Entretanto, a prática musical tem sido, aolongo dos tempos, pouco utilizada como recur-so didático, embora este seja um valioso aliadona educação de forma geral e esteja presentena vida das pessoas desde muito cedo. Funda-mentando-se na sua contribuição e significadopara a educação, surge a questão central desseestudo: a música está presente no cotidiano daspessoas de forma geral. No entanto, qual o es-paço que ela tem ocupado na vida escolar efamiliar de crianças surdas? Estas ao menossabem o que é música?

Para muitos, discutir a música para os sur-dos é uma tarefa impossível; mas é importantelembrar que, neste trabalho, procurou-se per-ceber se a música poderia contribuir para odesenvolvimento cognitivo enquanto ação pe-dagógica, buscando aproximar os surdos da

1 Este estudo ocorreu num período de um ano, sendo que osprimeiros seis meses foram dedicados ao estudo sobre otema e os últimos meses à coleta, análise de dados e cons-trução do texto final da monografia.

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música e não fazê-los entender as proprieda-des do som e da música em si, pois isto requerum trabalho mais longo, com a ajuda de profis-sionais da área da música.

É comum a indagação sobre a possibilidadedos surdos perceberem e sentirem as vibraçõesmusicais. Há, relativamente, poucas pesquisasnesta área, mas a relação entre o surdo e amúsica se torna possível através das vibraçõese dos recursos sensório-táteis. Ou seja, elessentem a música através da pele e das suasvibrações. Ao explorar as potencialidades dossurdos na música, torna-se necessário reforçare explorar as sensações que nascem de infor-mações recebidas pelas vias não-auditivas,como as vibrações sentidas pelo corpo ou sen-sações advindas do tato, que servem de apoiono processo de percepção corporal e sonoradeste grupo de pessoas.

O ser humano possui um potencial ilimitado,incluindo o potencial do surdo para a música,apoiado em suas sensações táteis, corporais, eaté mesmo auditivas (resíduos auditivos). Segun-do Almeida (2000), desenvolver a capacidadesensorial, cognitiva e física do surdo poderá aju-dá-lo na inserção social, pois, ao se demonstra-rem possibilidades e habilidades, adquire-serespeito e conseqüentemente autoconfiança, es-tabelecendo-se, assim, condições para a intera-ção com seu meio social de maneira cada vezmais espontânea e independente, já que se sentircapaz e participante é essencial para todos.

É fundamental começar uma pesquisa con-siderando que todas as pessoas podem apren-der. O que varia são os caminhos utilizados porcada um. Cada pessoa possui experiências eaptidões internas diferenciadas que a ajudam afazer seus elos cognitivos e estruturar seus co-nhecimentos. Como dizia Villa Lobos, “a músi-ca é um direito de todos” e, com tal frase,conclui-se que, se a música é um direito de to-dos, por que privar os surdos de entendê-la, dis-cuti-la, apreciá-la e, até mesmo, de tornar-seum músico?

As pesquisas nessa área ainda estão sendodelineadas, mas crê-se na sua importância parao meio acadêmico-científico no sentido de au-mentar as possibilidades de enriquecimento pro-

fissional, através de melhor capacitação para oatendimento de pessoas surdas, haja vista oaumento da presença de crianças surdas noambiente escolar e as dificuldades dos profissi-onais para atuarem na área de forma a propici-ar o desenvolvimento satisfatório deste grupode aprendizes.

Como objetivo geral deste trabalho, buscou-se estudar e analisar as contribuições da músi-ca para o desenvolvimento cognitivo dascrianças surdas de sete a onze anos, da 1ª e 2ªséries do ensino fundamental de uma escolapública municipal de Uberlândia – Minas Geri-as, procurando descobrir o espaço que ela po-deria ocupar no desenvolvimento cognitivo eescolar dessas crianças, para, posteriormente,identificar e compreender o contato e/ou co-nhecimento que este grupo de aprendizes pos-suía sobre a música. Constituíram os objetivosespecíficos a investigação e a análise de comoo professor utilizava a música no espaço esco-lar, de como a família desse grupo de criançasa utilizava no contexto familiar e, em caso afir-mativo, como isto acontecia.

Optou-se por realizar um estudo de casoqualitativo, envolvendo alunos de uma escolamunicipal da cidade que possuía um grandenúmero de aprendizes surdos e realizava umtrabalho diferencial na área da surdez. A esco-lha por esse tipo de metodologia aconteceu por-que nela todas as partes envolvidas têmliberdade de participar do processo de conheci-mento e serem reconhecidas como sujeitos;afinal, a construção do conhecimento é um pro-cesso coletivo, não se limitando a dados isola-dos, em que todos podem ter o direito de proporalternativas, soluções e estratégias propíciaspara o desenvolvimento da pesquisa.

A escola objeto desse estudo recebia apren-dizes surdos de diversos bairros da cidade, for-necendo-lhes atendimento na primeira fase doensino fundamental. Ela possuía, ao todo, qua-renta e oito alunos surdos matriculados em sa-las regulares de surdos, segundo a série emcurso, e o seu corpo docente compunha-se deprofessores que conheciam e utilizavam a Lín-gua de Sinais Brasileira como meio de comuni-cação e educação.

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No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos

A entrevista semi-estruturada foi utilizadacomo técnica para coleta de dados, pois aomesmo tempo em que ela valoriza a presençado investigador, também dá espaço para que osujeito investigado tenha liberdade de partici-par e enriquecer a investigação.

Foram entrevistados diferentes grupos depessoas, tais como pais, alunos e professores, oque contribuiu para o enriquecimento da pesqui-sa, uma vez que estes puderam apresentar al-guns pontos importantes que ainda não foramabordados nas pesquisas desta área. Na entre-vista com as crianças, dedicou-se atenção a ques-tões relativas à sua percepção sobre a música esobre o seu conhecimento prévio sobre a temáti-ca. Os professores foram questionados sobre apossibilidade de implantação da música na práti-ca pedagógica, e se esta já foi utilizada nestecontexto. Perguntou-se aos pais se eles consi-deravam a música importante na educação deseus filhos e se achavam que ela poderia contri-buir para melhorar a sua inclusão na sociedade.Para todos, o questionamento principal que serealizou foi: a música, ao ser utilizada como ins-trumento pedagógico, contribui para o aprendi-zado de crianças surdas? Ela pode estar presentena vida desse grupo de aprendizes?

Com o objetivo de auxiliar a compreensãodo leitor sobre a temática discutida, inicialmen-te apresenta-se o conceito de surdez e as suasimplicações no imaginário social e educacional;em seguida trata-se das contribuições da músi-ca para o desenvolvimento cognitivo em geral,para posteriormente se discutir a música e asurdez, que são o foco deste artigo.

1. Repensando o conceito de surdez

O termo ‘surdo’ é carregado, no imagináriosocial, de estigma, de estereótipo, da noção dedeficiência, mas o que afinal o sujeito surdo temde diferente? Por que não se pode repensar omodo de vê-los? É urgente a necessidade deuma nova visão sobre o sujeito surdo, que é di-ferente e não deficiente.

O conceito de surdez que será adotado nes-te trabalho terá por base quatro níveis diferen-

ciados, porém politicamente interdependentes,que Skliar (1998) define como uma diferençapolítica e uma experiência visual2 , caracteriza-da por múltiplas identidades e localizada dentrodo discurso da deficiência.

Para entender como o sujeito surdo se rela-ciona socialmente, é necessário entender algunsconceitos que permeiam a educação especial,tais como o conceito de integração social, e deinclusão social e os modelos clínico-terapêuticoe sócio-antropológico.

O primeiro deles é o conceito de integraçãosocial que, segundo Sassaki (1999), consiste noesforço de inserir na sociedade pessoas comdeficiência que alcançaram um nível de com-petências compatíveis com os padrões sociaisvigentes. A integração insere a pessoa comdeficiência sensorial e/ou física na sociedade,mas desde que esta esteja capacitada para su-perar as barreiras físicas e atitudinais existen-tes neste contexto. Ou seja, a sociedade aceitade braços cruzados a pessoa, desde que estaseja capaz de se moldar a ela.

Já a inclusão social é um processo pelo quala sociedade se adapta para poder incluir, emseus sistemas sociais, pessoas com necessida-des especiais, enquanto que, simultaneamente,estas se preparam para assumir seus papéis nasociedade. “A inclusão constitui um processobilateral no qual as pessoas, ainda excluídas,buscam equacionar problemas, decidir e efeti-var a equiparação de oportunidades para todos”(SASSAKI, 1999, p. 42).

O que se tem percebido é que essa inclu-são, tão teorizada e idealizada, não acontece narealidade como deveria, pois muitas vezes ossurdos são colocados em uma sala com alunosouvintes, sem a ajuda de um intérprete que do-mine a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS,prejudicando, assim, o ritmo e a compreensãoeducacional, uma vez que não são atendidas assuas necessidades educativas básicas. A inclu-são, que deveria ser uma porta que se abre para2 Skliar (1998) não restringe o visual a uma capacidade deprodução e compreensão especificamente lingüística ou auma modalidade singular de processamentos cognitivos.Experiência visual envolve todo tipo de significações ouproduções, seja no campo intelectual, lingüístico, ético, es-tético, artístico, cognitivo, cultural, etc.

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Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva

o aperfeiçoamento da educação de pessoascom necessidades especiais, acaba sendo maisum fator negativo e segregacionista na educa-ção de sujeitos surdos.

O fato é que muito se tem discutido sobre oconceito de surdez, e as pessoas envolvidas como sujeito surdo se dividem entre o modelo clíni-co-terapêutico e o modelo sócio-antropológico.

No modelo clínico-terapêutico, a surdez éconsiderada uma ‘deficiência auditiva’, limitan-do-se à quantificação da perda auditiva, e su-gerindo a redução ou ausência da capacidadede ouvir. Percebe-se que, quando se utiliza otermo ‘deficiência auditiva’, o sujeito surdo já érotulado negativamente e a sua ‘deficiência’ évista como um fardo que ele carregará pelo oresto da vida, ocorrendo um descrédito em seuaprendizado e em suas potencialidades.

Neste modelo, segundo Skliar (1997), o sur-do é considerado uma pessoa que não ouve e,portanto, não fala. Ele é definido por suas carac-terísticas negativas; sendo assim, a educação seconverte em terapêutica, e o objetivo do currícu-lo escolar é dar ao sujeito o que lhe falta: a audi-ção, e sua derivada: a fala. Aqui os surdos sãovistos como pessoas educativamente incomple-tas, por isso tentam reeducá-los. São dependen-tes de outras pessoas, incapazes de trabalhar eisentos de deveres naturais a qualquer cidadão.O termo deficiência está estampado na sua cons-trução como sujeito. Esse ser, que nunca seráautônomo e acreditado, será uma pessoa inferi-or, rotulado pela sua deficiência e pela busca in-cessante em participar do mundo dos ouvintesque lhe é apresentado como a única forma de setornar um cidadão produtivo e capaz.

Por outro lado, no modelo sócio-antropoló-gico, que foi o adotado como referencial básicopara o desenvolvimento dessa pesquisa, a sur-dez é tratada como uma diferença que se cons-titui histórica e socialmente, caracterizada poruma experiência visuo-gestual. Essa abordagempossibilitou um novo olhar sobre a educação desurdos e principalmente valorizou o uso da lín-gua de sinais, oportunizando o acesso da crian-ça surda a ela o mais cedo possível, preocu-pando-se com o desenvolvimento de suasestruturas cognitivas e lingüísticas, tomando por

referência os seus potenciais e não a sua ‘defi-ciência’, e proporcionando-lhe autonomia e in-dependência social, econômica e pessoal.

É este o objetivo da educação: trabalhar comformas diversificadas que garantam condiçõesde aprendizagem dos conhecimentos socialmen-te acumulados, pois todos devem ter os mes-mos direitos e possibilidades de se desenvolvere, também, de atingir o sucesso escolar. Paraisso, é preciso acreditar no sujeito surdo e in-vestir pedagogicamente nele de acordo comsuas necessidades educativas.e

As barreiras de uma educação para todosainda são muitas, mas o que importa é traba-lhar para que todos tenham seu lugar de direitona sociedade. Necessita-se socializar, discutire repensar o conceito de surdez e a forma comoo surdo é visto pela sociedade, de modo a ga-rantir que todos os educandos tenham a possi-bilidade de desenvolver suas capacidades emtodas as etapas da educação.

2. A importância da música no de-senvolvimento cognitivo

Segundo Rudd (1997), Pitágoras dava à te-rapia pela música o nome de purificação. Suamúsica curativa se propunha a equilibrar asquatro funções básicas do ser humano: pensar,sentir, perceber e intuir.

A música representa um instrumento de ava-liação pedagógica, e de desenvolvimento depotenciais cognitivos, formas de expressão e desaúde3 . Ela é utilizada no ambiente escolar e asua prática auxilia no processo de aprendizadodas crianças. Além disso, ela também é utiliza-da como terapia e recuperação em hospitais enos trabalhos de musicoterapia desempenhadosem muitas instituições escolares. Entretanto,chama-se atenção para os cuidados que a es-

3 Segundo Vilela e Mendes (2002), o conceito clássico desaúde é a ausência de doença. Logo, cuidar da saúde seriameramente cuidar dos problemas médicos relacionados aoaparecimento de doenças em indivíduos da população. Oque pode ser considerado “saúde”, de fato? O conceito desaúde tem sido cada vez mais difundido e almejado na soci-edade atual, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida dohomem.

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cola precisa tomar para não assumir uma pos-tura clínico-terapêutica no seu fazer educativo,que poderia ser altamente prejudicial no desen-volvimento escolar destes educandos, como, porexemplo, utilizar a música para aproximar osurdo do ‘mundo ouvinte’.

A influência da música é tão grande, que elaatua constantemente sobre as pessoas, aceleran-do ou retardando, regulando ou desregulando asbatidas do coração, relaxando ou contraindo osnervos, influenciando a pressão sangüínea e oritmo da respiração. Tanto que o próprio contatocom a música, ao ouvi-la e apreciá-la, exerceuma interferência no estado emocional das pes-soas. O estilo musical escolhido pelo sujeito emdeterminado momento revela a sua situaçãoemocional. Um exemplo disso é que, quando ascrianças choram ou querem dormir, seus paiscolocam uma cantiga de ninar ou uma músicaclássica para elas se acalmarem.

Segundo Willems (1964, apud ROSA, 1990,p. 69), cada um dos aspectos ou elementos damúsica corresponde a um aspecto humano es-pecífico, que ela mobiliza com exclusividade oumais intensamente: o ritmo musical induz aomovimento corporal; a melodia estimula a afe-tividade; a ordem ou a estrutura musical contri-bui ativamente para a afirmação ou para arestauração da ordem mental no homem.

Neste sentido, Rudd (1997) defende que amúsica afeta o nível de vários hormônios, comoo cortisol (responsável pela excitação e peloestresse), a testosterona (responsável pelaagressividade e pela excitação) e a oxitocina(responsável pelo carinho), assim como as en-dorfinas e a serotonina (neurotransmissor quefaz a comunicação entre os neurônios).

O exercício musical cria, também, um vín-culo entre linguagem, música e movimento, pro-piciando às pessoas se comunicarem e seexpressarem através da música, e constituindouma verdadeira fonte de prazer e emoção.

3. Os grandes musicistas e a surdez

Quando se propõe pensar a relação entremúsica e surdez, logo se imagina uma prática

impossível. Entretanto, ao se realizar um breveretrocesso envolvendo o mundo musical, pode-se perceber como a surdez e a música fizeramparte da vida de alguns musicistas que deixa-ram nome na história, como Beethoven (1770-1827) e Smetana (1824-1884).

Bedrich Smetana nasceu na Boêmia em 02de março de 1824. O grande sucesso do com-positor Smetana só chegou em 1866, quandoviu sua primeira ópera, Os “Brandenburgos naBoêmia”, agradar ao público. Ele escreveu umanova ópera, “Libuse”, e começou um projetoque o tornaria, anos mais tarde, uma celebrida-de internacional: o ciclo de poemas sinfônicos“Ma Vlast” (“Minha Terra”), o qual levou seteanos para ser concluído. Nesse tempo, o com-positor começou a ficar surdo, mas mesmo coma sua surdez conseguiu terminar o seu primeiroquarteto de cordas, “Da Minha Vida”. No anoseguinte reuniria forças para escrever sua pe-núltima ópera, “O Segredo”, e terminaria em1881 a oitava e última ópera. Smetana viveu osseus últimos dias de vida em um asilo para do-entes mentais, vindo a morrer em 1884. 4

Ludwig Van Beethoven se tornou um meni-no prodígio no piano e logo atingiu um grandesucesso profissional. Perto dos 30 anos come-çou a perder a audição, ficando surdo em pou-co tempo. A surdez fez com que Beethoven sedesesperasse e desacreditasse totalmente nasua carreira de músico. Ele passou por grandescrises e pensou até em se suicidar, mas doisanos depois, já conformado, decidiu retomarseus trabalhos e compor novamente, e acabousendo considerado um dos mais brilhantes com-positores de todos os tempos.

Beethoven utilizou uma corneta para atenu-ar a surdez, antes de ter de usar os cadernos deanotações. Até 1814 a sua surdez não foi total,permitindo a elaboração de numerosas obras-primas musicais; depois dessa data, foi a pró-pria surdez que abriu ao compositor as portasde uma nova arte, totalmente abstrata. Foi otempo da sua única ópera, Fidélio, das grandessonatas para piano, dos monumentais concer-4 A bibliografia completa encontra-se disponível no sitehttp://almanaque.folha.uol.com.br/musicasmetana.htm -acesso em 23/02/07.

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tos, e dos quartetos para cordas do períodomédio. Foi, principalmente, a época das obrasque lhe deram maior popularidade: as suas re-volucionárias sinfonias e, em especial, a Sinfo-nia n. 5.

Tanto Smetana como Beethoven não tiveramsuas composições afetadas pela surdez, pelocontrário, na surdez compuseram as suas obrasmusicais mais difíceis e de maior sucesso. Em-bora surdo, Beethoven compôs as últimas sona-tas e quartetos, estendendo a sua popularidadeaté a Sinfonia n. 9. Para compor a nona sinfoniamandou cortar o pé do piano com uma serra, deforma que este ficasse rente ao chão e ele pu-desse sentir as vibrações; assim, encostava o seuouvido junto ao piano e ao chão para que pudes-se sentir as notas musicais5 . Até hoje esses doiscompositores são estudados e admirados pelosseus contemporâneos.

4. Perspectivas iniciais sobre amusicalidade da criança surda

Rosa (1990) discute a idéia de uma pedago-gia cognitivista da música em que o conheci-mento musical se inicia por meio da interaçãocom o ambiente, através de experiências con-cretas, que aos poucos levam à abstração. Acriança se envolve integralmente com a músi-ca e a modifica constantemente, transforman-do-a numa resposta estruturada. Ela tambémmenciona a música como meio de sensibiliza-ção para a educação de crianças surdas.

Discriminar, perceber e sentir são caracte-rísticas importantes para o surdo estabelecer aligação entre seu corpo e a música. As potenci-alidades das pessoas para a música não vêm sópela via auditiva, mas também pelas não-auditi-vas, como a pele, o tato, a visão e os ossos.

As ondas vibratórias, transmitidas pelo ar, che-gariam até a pele, aos músculos, aos ossos, atin-gindo o sistema nervoso autônomo (simpático eparassimpático), viabilizando ao surdo percebero ritmo, a acentuação, a altura, a intensidade e aduração. Essas percepções, integradas à percep-ção interna de movimento, permitem a apreciaçãode elementos do som. (BENEZON, 1985, p. 136).

De acordo com Almeida (2000), os recep-tores sensórios de pressão (tato profundo), pre-sentes em torno dos músculos, articulações etendões, possuem propriedades de ressonâncianitidamente definidas. Sabendo explorar as sen-sações captadas pela pele, o professor auxilia oaluno a ampliar seu instrumental. As informa-ções transmitidas ao cérebro por esses órgãospermitem a percepção do ritmo e suas varia-ções. A pele é capaz de responder às ondassonoras e pressões que lhe são impostas.

Alguns métodos musicais desenvolvidos hojecom os surdos, não prevêem o uso da músicacomo fonte de realização humana, mas comouma forma de imposição da cultura ouvinte, nabusca incessante pela aquisição da linguagemoral. Por isso, faz-se necessário esclarecer,antes de tudo, que nessa pesquisa é fundamen-tal considerar a música como ferramenta esté-tica, tendo como objetivo final o bem-estar e acontribuição para o aprendizado das criançassurdas. Para que isso aconteça, a música pre-cisa ser uma atividade prazerosa que pode fa-zer parte do seu mundo não como uma açãomecânica, repetitiva, que vise apenas o desen-volvimento da fala e a aproximação com o mun-do dos ouvintes6 .

Cervelline (1987) evidenciou, após vivênci-as musicais durante o ano letivo, que a criançasurda, independente do seu grau de perda audi-tiva7 , é sensível à música, gosta dela e a dese-ja, manifestando-se, tocando, dançando ecantando espontaneamente.

Infelizmente, pelo fato da maioria das pes-soas não considerar a capacidade do surdo en-quanto sujeito musical, existem poucas pesquisase investimentos nessa área. Mas não convémprivá-lo da música por mero descrédito, é pre-ciso trabalhar para que professores e parentes

5 A bibliografia completa encontra-se disponível no sitehttp://www.classicos.hpg.ig.com.br/beethove.htm - acessadoem 23/02/07.6 Esta pesquisa não concorda com a utilização da músicacomo elemento de apoio à oralização e de aculturamentodos surdos, na tentativa de aproximá-los dos padrões acei-tos pelos ouvintes.7 O grau de perda auditiva na comunidade surda é um dadoirrelevante. Os ouvintes é quem têm a prática de classificaros surdos segundo os graus de perda de audição.

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lhe propiciem o conhecimento sobre a música,cabendo aos próprios surdos decidirem se que-rem ou não manter essa relação.

O que normalmente acontece é que muitossurdos chegam à idade adulta sem ao menossaber o que é música, por considerá-la própriado mundo dos ouvintes, conceito este que lhesfoi transmitido pela sociedade em geral.

Para que o leitor tenha idéia da representa-ção que é imposta ao sujeito surdo pela socie-dade, Skliar (1997), abordando o conceito deeducação especial, afirma:

Se o critério para afirmar a singularidade educa-tiva desses sujeitos é o de uma caracterizaçãoexcludente a partir de uma deficiência que pos-suem, então, não se está falando de educação,mas de uma intervenção terapêutica; se se acre-dita que a deficiência por si mesma é o eixo quedefine e domina a vida desse sujeitos, então nãose estará construindo um verdadeiro processoeducativo, mas um vulgar processo clínico.(SKLIAR, 1997, p. 10)

Vê-se que a visão que se tem das pessoascom necessidade especial é ainda excludente.A obstinação do modelo clínico dentro da edu-cação especial impede que muitos passos se-jam dados em direção à melhoria do aprendizadodesses sujeitos. Se muitos profissionais conti-nuarem a pensar que trabalhar com educaçãoespecial é minimizar o sujeito e colocá-lo nacondição de inferior, diferente e incapaz, comodar a ele uma educação produtiva?

Segundo Cervelline (2003), quando diagnos-ticada a surdez, o imaginário social traz uma re-presentação de surdo: aquele que não escuta, queé imediatamente assumida pela família. Assim,a representação social que se tem de surdo é deum ser incompleto, menor e que tem dificulda-des para aprender. Não está em pauta a pessoacomo um sujeito que possui um conjunto de pos-sibilidades que ultrapassam a surdez.

A família e a sociedade, na maioria das ve-zes, formam o conceito de surdez e recebemos seus impactos, construindo-o para o surdo.Segundo este conceito, o sujeito surdo é carre-gado de impossibilidades decorrentes da inca-pacidade auditiva, o que automaticamente criaproblemas para sua inserção social.

Se a idéia que surge na concepção das pes-soas é a de que a música só faz parte do cotidi-ano dos ouvintes, então, mais uma vez, oimaginário social dirá o que o surdo pode ounão fazer, pode ou não aprender e assumir comoparte de sua vida. Isto acontece porque, para amaioria das pessoas, a música está embutidana idéia de ser ouvinte.

O surdo, assim como qualquer ser humano,é sensível às críticas, aos fracassos e às desilu-sões. Se a surdez é condição para o fracasso eincompetência na visão das famílias, que per-cepção os surdos terão de si mesmos na socie-dade? Se a idéia que estes possuem de músicaé aquela própria do mundo dos ouvintes, comoterão interesse por ela?

A música lhes é alheia, estranha e poucoimportante, ela está fora do seu mundo e nãolhes desperta interesse. Mas como lhes des-pertar o interesse para um assunto que nuncafoi mencionado, e sim simplesmente excluído àsua revelia?

A sociedade ouvinte insiste em tirar as pes-soas com necessidades especiais do seu lugarhistórico e social, descontextualizando-as. Como surdo isso se dá na medida em que lhe convi-dam a ser um ‘ouvinte-falante’. As pessoas emgeral querem eliminar os vestígios das diferen-ças que elas próprias elegem, buscando elevaro surdo à condição de ‘normalidade’.

Skliar (2003), em uma palestra8 na Universi-dade Federal de Uberlândia, discute o processoda invenção do outro que se constitui numa ten-tativa de desconstruir a naturalização que foi feitado problema da deficiência: o problema da defi-ciência é o deficiente, deslocando-o para aquiloque se configurou como campo do anormal.

Segundo Skliar (2003), o que domina no pro-cesso de formação de professores e de cida-dãos é a pergunta sobre o outro, que nasce dasuspeita original: “será que o outro é como eu?”Busca–se evidenciar que alguma situação queacontece com o outro não é igual à que ocorrecom as demais pessoas. A simples presença

8 SKLIAR, Carlos. Aspectos Educacionais da Surdez. In:Curso de formação de professores da educação espe-cial, 1: dos caminhos percorridos aos desafios que se apre-sentam.

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do outro gera uma pergunta sobre ele, que setransforma em uma perturbação, porque se nãohouvesse o outro (cegos, surdos, deficientes,analfabetos, estrangeiros...) o sistema funcio-naria; mas ao mesmo tempo o outro existe e foiinventado para que as pessoas pudessem se sen-tir mais confiáveis, mais racionais, mais segu-ras e mais perfeitas. O outro deficiente foi criadopara melhor definir a normalidade, e se é dife-rente, é ele que tem que se esforçar para seaproximar do mundo normal.

O sujeito surdo, ao ser compreendido comoaquele que não pode ouvir, é automaticamenteafastado da música e isso já é uma forma detomá-lo como outro, porque, na visão da maio-ria, a música é própria da cultura ouvinte, a qualdefine a cultura surda. São os ouvintes quemdefinem o que os surdos podem ou não apren-der, se a música é importante ou não no seudesenvolvimento. Entretanto, pergunta-se: quemtem o direito de definir a cultura surda? Se osouvintes têm o direito de decidir o que queremouvir, o que querem fazer e o que querem sen-tir, por que o surdo não pode ter o direito deescolher ter ou não a música no seu cotidiano?

No início da pesquisa perguntou-se a trêssurdos adultos, em entrevista indireta, o que elesachavam da música: se gostavam, o que senti-am quando estavam em contato com ela, e umdeles respondeu: “música é um pouco chato,não é interessante para os surdos”. Chegou-se a conclusão posteriormente que nunca al-guém havia lhes explicado o que era a música.

Iniciou-se uma grande discussão sobre ovalor e o significado da música para o surdo.Será que uma sessão de musicoterapia tem sig-nificado para o surdo? Será que a interpreta-ção em língua de sinais tem sentido para ele?Ou ainda, será que a música sob o título de “aju-da” aborda a surdez na tentativa de lhe propici-ar a alegria de participar do mundo ouvinte,proporcionando a oralização?

Não se pretende com isso criticar os traba-lhos com música realizados com os surdos, masatentar para o significado que trazem para eles,pois o sentido da música só pode ser percebidopelos surdos através da língua de sinais e pelasvibrações. A letra e o ritmo constituem um ins-

trumento precioso para a compreensão total damúsica. Os surdos captam as suas vibrações etambém podem cantar, se expressar, e dançarno ritmo e na melodia.

A controvérsia do trabalho com música esurdez é discutida por Cervelline (2003), queexplica a busca incessante de uma família emusar a música exclusivamente como recurso demelhoria da fala. “A sociedade, pais e profissi-onais acabam por estabelecer vínculos com osujeito surdo que afetarão sua auto-estima, con-tribuindo para sua estigmatização, em vez deauxiliá-lo na preservação da sua saúde mentale construção de uma personalidade sadia.”(CERVELLINE, 2003. p. 65).

Desta forma, a representação do surdocomo ser musical se encontra impregnada pe-los conceitos de normalidade e possibilidade quea sociedade constrói. A representação que to-dos possuem é de que ser musical é um direitoe atributo dos ouvintes. Entretanto, é fundamen-tal acreditar nos surdos e nas suas possibilida-des, mostrando-lhes desde crianças que elestambém podem usufruir da música como osouvintes, ou até mais que eles.

Surge então a pergunta: por onde se devecomeçar? Primeiramente olhando o surdo apartir das suas possibilidades e não a partir dasua ‘deficiência’. Transportar a música para ocotidiano dos surdos pode ser um instrumentode trabalho do professor, uma fonte de satisfa-ção, de confiança e de aprendizado para estessujeitos. A música pode ser um dos caminhospara a transformação da representação socialque muitas pessoas têm dos surdos, pois pen-sá-los como sujeitos musicais exige uma modi-ficação das representações já estabelecidas.

É fato que a música e suas formas de ex-pressão têm passado por diversos discursosdentro da sociedade. A censura social impedeo desenvolvimento da desenvoltura corporal, li-mitando as suas condições de expressão, o quefaz com que os ouvintes temam um trabalhoutilizando a música em língua de sinais, uma vezque esta exige uma grande expressividade. Nãoé qualquer pessoa que sabe interpretar esta lin-guagem, e utilizá-la para interpretar músicasexige uma grande expressividade, movimento,

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desinibição, teatralidade, o que recai sobre aquestão da censura social.

Cabe aos professores e à família acreditarnas possibilidades do surdo, aproximar a músi-ca da sua realidade e rever os conceitos queelegeram e criaram para si. Os surdos têm con-dições de aprender como qualquer outra pes-soa e a música poderá trazer novas perspectivaspara o seu universo, uma vez que lhes possibili-ta sentir o prazer e a satisfação que todos sen-tem quando ouvem uma boa música.

5. Música: arte e expressão huma-na enquanto ação pedagógica paracrianças surdas

Nas discussões sobre o sujeito surdo, pormais que se escondam os propósitos, o maiorobjetivo de muitos métodos educacionais e demuitas famílias tem sido o de levá-lo à condi-ção de ouvinte-falante. Os métodos educativosbuscam mais uma reabilitação do que a própriaeducação, no intuito de aproximar o surdo donormal, que, neste caso, são os ouvintes.

Soares (2002) observou que a educação dossurdos havia tomado para si, como principalfunção, o trabalho terapêutico de desenvolvi-mento da audição e dos órgãos fonoarticulató-rios, colocando em segundo plano o trabalhodestinado à escolarização. A responsabilidadeprincipal de possibilitar ao aluno surdo o acessoaos conhecimentos previstos no currículo es-colar se tornou, então, secundária. Esta autoraainda relata o fracasso escolar do aluno surdoe os procedimentos pedagógicos utilizados nasua educação.

Mas, para se entender de onde surge essefracasso, Soares (2002) coloca a questão de queeste se inicia na própria formação do professor.

Se aprendemos nos cursos de especializaçãoque a surdez não é impedimento para aprendi-zagem e que o conteúdo escolar deve ser omesmo da educação comum, por que não o te-mos oferecido aos alunos surdos? Por que ra-zão negamos a escolaridade a quem têm direitocomo qualquer outro aluno que entra na esco-la? (SOARES, 2002. p. 15)

O fracasso escolar recai mais intensamentesobre os surdos, embora eles não sejam culpa-dos disso, pois as metodologias desenvolvidaspelo professor e pela escola muitas vezes sãoinadequadas, comprometendo o seu desenvol-vimento cognitivo.

Skliar (1998), relatando o método de educa-ção bilíngüe9 para os surdos, enfatiza a neces-sidade de um novo olhar sobre a surdez quepossibilitaria refletir sobre algumas questõesignoradas nesse território, entre as quais se des-tacam: as políticas de significação dos ouvintessobre os surdos; o amordaçamento da culturasurda; os mecanismos de controle através dosquais se obscurecem as diferenças; o processopelo qual se constituem e ao mesmo tempo senegam as múltiplas identidades surdas; a “ou-vintização”10 do currículo escolar; a burocrati-zação da língua de sinais dentro do espaçoescolar; e a necessidade de uma profunda re-formulação nos projetos de formação de pro-fessores (surdos e ouvintes), entre uma sériede fatores.

Para a sociedade atual é fundamental capa-citar o surdo para sua inserção no mercado detrabalho e no mundo dos ouvintes. Métodos,técnicas e instrumentos têm sido utilizados paratorná-los mais eficientes e produtivos, o que namaioria das vezes não leva em consideração orespeito à identidade e à cultura surda.

Esta pesquisa, como dito antes, não tevecomo meta levar o surdo à condição de ouvin-te, mas propiciar experiências prazerosas e di-versificadas. Para Cervelline (2003. p. 81), “Amúsica pode estar presente na vida do surdo,enriquecendo suas experiências e, basicamen-te, possibilitando a expressão e vivência de es-tados afetivos, de prazer e de auto-realização,contribuindo para a construção positiva de umaauto-imagem e para o seu desenvolvimentoemocional.”

9 Segundo Skliar (1998), a educação bilíngüe é algo mais queo domínio de duas línguas. O foco das análises sobre essaeducação para os surdos deve-se deslocar dos espaços esco-lares, das restrições formais e metodológicas, para locali-zar-se nos mecanismos e relações de poder e conhecimen-tos situados dentro e fora da escola.10 Ouvintização: termo utilizado por Skliar (1998) paradenominar a sujeição aos valores ouvintes pelos surdos.

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Segundo a autora, em pesquisas anterioresconstatou-se que a vivência da música e a ex-pressão da musicalidade se apresentam comopossibilidades do sujeito surdo. A vivência mu-sical se revelou extremamente benéfica, no sen-tido de proporcionar-lhe prazer, alegria erealização pessoal. No entanto, o que se vê éque esta vivência, tão importante para a reali-zação desse sujeito, tem sido sistematicamenteretirada de sua vida, seja na escola, seja no lar.

As entrevistas com professores, famílias ealunos evidenciaram que a música nunca haviasido explicada para as crianças surdas, e quegeralmente estas não gostavam muito de estu-dá-la. As crianças entrevistadas disseram quea primeira idéia partiu dos pais, mas que hoje jágostavam um pouco de música, como se podeperceber nas entrevistas.

Gosto de música e acho a música muito legal...(pausa). É... Gosto só um pouco, muito não. (En-trevista com uma aluna).

Gosto só um pouquinho. (Entrevista com umaaluna).

Apenas na última entrevista a aluna falouespontaneamente que fazia música porque gos-tava e não porque os pais queriam:

Gosto muito e faço conservatório. Minha mãefalou para eu ir lá e hoje eu gosto muito e nãofaço de obrigação. (Entrevista com uma aluna).

Ao analisar essas duas falas acima, pode-se aliá-las à questão colocada por uma profes-sora entrevistada:

Devemos pensar até que ponto eles fazem issopara eles ou pra agradar os pais. (Entrevistacom uma professora ouvinte).

Abre-se um parêntese aqui para pontuarnovamente a não aceitação dos valores dossurdos pelos pais, e a tentativa de aproximá-losdos valores ouvintes, utilizando-se da músicacomo uma forma de proporcionar o desenvol-vimento da oralização e da percepção auditiva.Diante disso, não há satisfação quando os sur-dos entram em contato com a música, pois elesnão a incorporam à sua vida.

É necessário que o professor de música tenhapaciência e disponibilidade para realizar um tra-

balho com surdos, principalmente se não dominarbem a língua de sinais, e evitar fazer compara-ções do surdo com o ouvinte. Será necessárioentender que ele terá que trabalhar com um outrocanal comunicativo: a linguagem gestual e visual,seguida de recursos sensório-táteis. A compara-ção inibe a criança surda de prosseguir neste apren-dizado e esta acaba por internalizar o estigma deser incapaz para a música.

Um instrutor surdo relata bem essa idéia, aoexplicar que tinha contato com a música na suainfância, mas aos poucos foi desgostando delae ficando receoso em tocar um instrumento, porachar muito difícil e por não ter recordaçõesmuito boas de suas experiências musicais, ale-gando que não era muito bom nisso, mas quetinha vontade de aprender por causa de seu ir-mão que era músico:

Eu já toquei piano, só que eu saí porque nãodava conta de seguir o ritmo. A professora fala-va mais rápido, mais lento e eu não entendia.(Fala de um professor surdo entrevistado).

Nesse depoimento, a visão de seu irmãocomo músico e de sua professora acabaram portornar a sua vivência musical desastrosa, por-que a representação social que ele próprio con-cebia era a idéia de que ser musical é serouvinte. A música, para ele, parecia ser privilé-gio somente de quem ouvia, o que o fez perdero contato com ela e deixá-la excluída de seumundo. Além disso, a impaciência e o descré-dito o fizeram sentir o receio de não correspon-der ao esperado.

A surdez tem um rótulo que necessita sersuperado. Os pais consideram tudo muito difícilpara os seus filhos. Vêem a música para os sur-dos, mas a representação que eles têm não con-templa a possibilidade de vê-los exercê-laprazerosamente em sua vida. Porém, algumasmães mostraram-se empenhadas em propiciar ocontato de seus filhos com a música, relatando ointeresse que eles têm por ela ao ligar o som, aopedir pela música e ao demonstrar interesse emaprender algum tipo de instrumento.

Às vezes ela dança uma música que nem é dedançar, mas ela está dançando. Se eu paro, elaquer que eu continue, ela quer tocar e fica com

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a mão sobre o teclado. Eu tenho muita vontadeque ela toque, de colocar ela na aula de músi-ca. (Fala de uma mãe entrevistada).

As respostas do pai surdo e da mãe ouvinteevidenciaram um ponto coincidente, em que nãose sabe se a música é prazerosa para seus fi-lhos ou se constitui mais uma imitação de for-ma mecânica:

Eu não sei se eles dançam porque vêem todosdançando, ou porque sentem e gostam mesmo(Fala de uma mãe entrevistada).

Quando está passando a música ele continuabrincando, não dá muita bola, imita se vê ecopia, fica imitando as pessoas (Fala de um paientrevistado).

O interessante foi que todos os pais falaramque achavam que a preferência de seus filhosera pela música mais agitada, barulhenta, mas,nas entrevistas com as crianças, notou-se quea preferência era mais pela música calma e len-ta, diferente do que foi encontrado em algumasreferências bibliográficas que tratam da rela-ção entre música e surdez, como na fala da alunaentrevistada:

Gosto de música mais lenta e menos agitada.(Entrevista com aluna).

Se para os ouvintes a música lenta acalma econforta, por que para o surdo isso haveria deser diferente? Não se pretende aqui, fazerr no-vamente uma pesquisa pré-rotulada dizendo quesó é possível ao surdo perceber instrumentosde percussão, devido à sua maior possibilidadede proporcionar maior impacto sonoro.

Todas as crianças acharam que a músicaera uma atividade separada da vida escolar,e que esta não tinha relação com seu apren-dizado e desenvolvimento. Isso também sedeve ao fato de os professores não trabalha-rem com atividades musicais no seu cotidia-no e nem lhes explicar o que é a música. Porexemplo, na fala das alunas entrevistadas,quando lhes foi perguntado se achavam quea música poderia ajudá-las no desempenhoescolar, responderam:

São coisas diferentes, ah, é diferente, não sei.(Fala de uma aluna surda entrevistada).

Não sei. É difícil. (Fala de uma aluna surda en-trevistada).

A escola é diferente da música, acho que nãodá pra juntar os dois. (Fala de uma aluna surdaentrevistada).

Essas crianças não conseguiam visualizar amúsica como parte de sua vida escolar e, tal-vez, nem imaginassem o quanto esta poderiaser utilizada para ajudá-las no aprendizado, naaquisição de cultura, na expressividade. Essaidéia ocorre devido à ausência da música nocontexto escolar, nos trabalhos pedagógicos comaprendizes surdos. É uma manifestação cultu-ral pensar que a música é adequada ao traba-lho apenas com crianças ouvintes.

E, por último, nas entrevistas dos profissio-nais que trabalham com essas crianças, identi-ficou-se que o único espaço em que ela estápresente é nas comemorações, pois sendo umaescola que trabalha com surdos e ouvintes, amúsica atende exclusivamente aos interessesdos ouvintes, e não dos surdos. Estes comparti-lham da música por mera coincidência.

Nas salas de aula, a música não é trabalha-da e fica ao alcance dos surdos apenas em da-tas comemorativas, como se vê na entrevistacom professores:

Eles cantam, dançam, fazem coreografias nasfestas aqui da escola. Dançam country nas fes-tas juninas, dia das mães, interpretam o hinonacional usando a LIBRAS e pedem para pas-sar os CDs de Sandy e Júnior nas festas. (Falade uma professora entrevistada).

Nessa entrevista, pode-se perceber o maisimportante: que o pouco contato que as criançastiveram com a música mostrou-se muito provei-toso, uma vez que elas demonstraram interessee envolvimento, utilizando a música como fontede prazer, emoção, cultura e entretenimento.

6. Considerações Finais

Através da educação os surdos poderão teracesso a um avanço profissional, social e inte-lectual. Mas a educação que se destina a essessujeitos é permeada de descréditos e métodosque tentam aproximá-los do mundo dos ouvin-

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Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva

tes; o que, automaticamente, bloqueia seus di-reitos de cidadão.

Desta forma, torna-se importante ressaltarque um bom processo de aprendizagem depen-de da comunicação entre aluno e professor, poisambos são produtores de conhecimento. O quevem acontecendo é que os surdos lidam comseus professores ouvintes, seus fonoaudiólogosouvintes e com uma grande parte da sociedadeouvinte, que, na maioria das vezes, querem lheditar o que aprender, o que podem, para o quetêm potencial, o cargo que podem alcançar,deixando a cultura surda cada vez mais amor-daçada. Quando sentem que os ouvintes que-rem convidá-los a participar do seu mundo eretirá-los da condição de surdos, não é surpre-endente rejeitarem o “convite”, porque eles têmuma identidade própria que merece ser respei-tada e não esquecida.

A educação dos surdos precisa levar emconsideração as necessidades sociais, intelec-tuais e o interesse desses aprendizes, constru-indo um processo educativo que envolva todasas partes. Não é um olhar caridoso que mudaráessa situação, mas a compreensão do surdo emsua totalidade sócio-histórica e cultural.

Essa pesquisa buscou contribuir para que ascrianças surdas tenham novos conhecimentospara transformar e explorar a sua realidadesocial, encaminhando-as para serem produto-ras de cultura, mostrando-lhes diversas formasde comunicação.

A música foi escolhida porque é uma ativi-dade natural do ser humano, constitui fonte deprazer e de emoção e foi excluída da educaçãodas crianças surdas por simples descrédito. Elapoderá ajudar na construção da identidade sur-da, utilizando a língua de sinais, integrando so-cialmente os surdos, e possibilitando diferentesformas de expressão e comunicação.

Acreditar no surdo e nas suas possibilida-des é requisito principal para começar a colo-car em prática este estudo. Discutir a repre-sentação social de ‘ser musical’ que freqüentao cotidiano na sociedade é fundamental para asua execução, pois a musicalidade parece serum atributo e possibilidade dos ouvintes, queestão embutidos na idéia de que para ser músi-

co é preciso ter talento, dom e bom ouvido.Neste caso, como explicar o magnífico traba-lho de Beethoven e de Smetana, na história dosgrandes musicistas, que não tiveram um ‘bomouvido’ para a maioria das pessoas, mas, emcompensação, deixaram as mais brilhantesobras musicais, provando que a música tam-bém acontece na vibração dos acordes, no si-lêncio dos sons e na interiorização dos senti-mentos? Afinal, não existiria som se nãohouvesse o silêncio.

Propiciar a música na infância pode ser umaferramenta fundamental para o surdo. Este pode-rá utilizá-la em sua formação, no seu desenvolvi-mento, na busca de sua expressão e aprendizado.A música é uma forma de comunicação, expres-são e cultura, e a sua prática pode proporcionardiferentes vivências para o surdo, contribuindopara o seu desenvolvimento cognitivo.

Porém, identificou-se nessa pesquisa que amúsica é uma atividade inconstante na vida damaioria das crianças surdas, e que ela está pre-sente na escola primeiramente para proporcio-nar satisfação aos ouvintes. A representaçãosocial que se abate sobre os sujeitos surdos lhespriva do contato com a música como fonte deprazer, representação esta que acaba por afe-tá-los e fazê-los se distanciar da música.

Por a música estar ausente do cotidiano damaioria das crianças surdas e não ser trabalha-da na prática escolar, não foi possível confir-mar neste trabalho as suas contribuições parao desenvolvimento cognitivo, pois os professo-res ainda não acreditam que a música possaser uma ferramenta de auxílio pedagógico e,tampouco, que possa ajudar os surdos no seudesempenho escolar.

Por tudo isso, a música precisa ser trabalha-da de forma atrativa e prazerosa na infância, paraque a criança não se distancie dela como se re-presentasse uma experiência mal-sucedida, im-possível e desprazerosa. Mesmo que o professorque atua na escola não tenha formação profissi-onal na área da música, ele pode elaborar outrostipos de experiências, como trabalhar a letra, aexpressão corporal, a interpretação em língua desinais, contanto que não exclua a vivência musi-cal da vida de seus alunos.

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No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos

Pensar a música e a surdez exige uma re-flexão do imaginário já construído de que sermusical é ser ouvinte. A valorização e o incen-tivo da família e professores constituem o pri-meiro passo para fazer os surdos acreditaremnas suas possibilidades musicais, pois a surdeznão é impedimento para se usufruírem os pra-zeres da música.

Os pais manifestaram interesse em propor-cionar a música para seus filhos desde a infân-cia, porque estão buscando caminhos diferentese atrativos para lhes proporcionar um melhoraprendizado.

A maior dificuldade encontrada em possi-bilitar essa vivência musical foi o fato de aprática musical ser considerada impossível

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Recebido em 21.09.06Aprovado em 26.01.07

para a maioria das pessoas surdas, o que leva,conseqüentemente, à retirada da música da suavida social, principalmente escolar, fazendocom que existam poucas pesquisas e poucosprofissionais na área. A família tem um papelimportante ao possibilitar o contato do surdocom a música desde o lar, incentivando-o, va-lorizando-o e acreditando em seu potencialmusical.

O mais importante de tudo foi saber que ascrianças têm interesse e acham a música atra-tiva e divertida. Cabe aos profissionais que li-dam com os surdos a responsabilidade desocializar a música constantemente e redimen-sionar a representação social que transmite aidéia de que ser musical é ser ouvinte.

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

PROPOSTA DE ANÁLISE DE HABILIDADES

DE LETRAMENTO EMERGENTE PARA CRIANÇAS

COM DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM

Elisandra André Maranhe *

Tânia Maria Santana de Rose **

* Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Pos-doutoranda pela Universidade Federalde São Carlos e Unesp de Botucatu. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Educação Espe-cial – Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luíz, Km 235, Caixa Postal 676, Monjolinho – SãoCarlos/SP. E-mail: [email protected]** Doutora em Psicologia pela USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial – UniversidadeFederal de São Carlos. E-mail: [email protected] Artigo baseado em dissertação desenvolvida pela primeira autora sob orientação da segunda autora, com apoio da CAPES,no Programa de Pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos.

RESUMO 1

O objetivo deste estudo foi obter a caracterização de um conjunto de habilidadesde letramento emergente, como a evolução da concepção da escrita, os conceitosbásicos sobre a escrita, e a evolução do esquema de história e da leitura defaz-de-conta, referente a alunos com dificuldades de aprendizagem, e verificara eficácia do material utilizado com relação a eles. Participaram deste trabalho20 alunos de duas escolas públicas, com idade média de nove anos e oitomeses. Para as avaliações realizadas foram utilizados livros de histórias infantise protocolos de pontuação. Aos resultados foram aplicadas análises estatísticasdescritivas e correlacionais, mostrando que, de modo geral, as criançasapresentaram atraso na aquisição das aprendizagens do período do letramentoemergente, tendo em vista os resultados das pesquisas com alunos de idadepré-escolar e escolar. Além disto, os dados obtidos revelaram a eficácia domaterial utilizado, que se mostrou útil para futuras pesquisas voltadas para odesenvolvimento de recursos educacionais.

Palavras-chave: Letramento emergente – Dificuldade de aprendizagem –Educação especial

ABSTRACT

PROPOSAL OF ANALYSIS OF EMERGENT LITERACY ABILITIESIN CHILDREN WITH LEARNING DISABILITIES

The aim of this study was to obtain a characterization of emergent literacyskills – the evolution of writing conception, basic concepts about writing, theevolution of story scheme and simulated reading – by students with learningdisabilities and to verify the efficacy of the material by these students. Twenty

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

children from two public schools, mean age 9 years and 8 months old, participatedin this study. Story books and scoring procedures were used for the assessmentperformed. Descriptive and correlational statistical analyses were applied,showing that, in a general manner, the children presented delay in the acquisitionof learning in the emergent literacy period, in the view of research resultsperformed in preschool and school ages. Furthermore, the data revealed theefficacy and importance of the material used for further research aimed atdeveloping educational resources.

Keywords: Emergent literacy – Learning disabilities – Special education

INTRODUÇÃO

A análise da literatura evidencia intenso es-forço para se obter melhor entendimento decomo é possível colaborar com o desenvolvi-mento da leitura e da escrita de crianças emperíodo pré-escolar e escolar (FERREIRO;TEBEROSKY, 1986; BRANDÃO; SPINI-LLO, 1998, 2001; MARANHE, 2001, 2004;SPINILLO; SIMÕES, 2003; MONTEIRO,2005; SILVA, 2005). Este esforço ganha maiordimensão quando o entendimento se volta paraos problemas de leitura e de escrita de criançascom necessidades educativas especiais.

A preparação informal, currículo oculto demuitas crianças bem-sucedidas na escola, podese manifestar por meio da aquisição de um con-junto de conhecimentos adquiridos na primeirainfância e no período pré-escolar, que auxiliamno processo de aquisição da leitura e da escritano ensino fundamental. Essa perspectiva ga-nhou força a partir da década de 80, quandoautores como Sulzby (1985), Rego (1985, 1988),e Sulzby e Teale (1991) denominaram Letra-mento Emergente o processo de aquisição des-tes conhecimentos.

Este processo visa a compreensão da evo-lução dos conhecimentos e das habilidades maisdiretamente relacionadas à linguagem escrita,antes da aprendizagem convencional – conhe-cimentos sobre a forma, o conteúdo e o usodesta linguagem, além de considerar que estasmanifestações não convencionais são úteis enecessárias para o processo de aprendizagemconvencional da leitura e da escrita; portanto,visa a aprendizagem da linguagem escrita não

apenas como processo cognitivo, mas tambémcomo processo social, psicológico e lingüístico.Visa também entender o desenvolvimento daleitura e da escrita a partir da perspectiva daprópria criança, considerando que as tentativasde leitura e de escrita não convencionais feitaspor pré-escolares são consideradas legítimas ecomo integrantes de um continuum que se es-tende até a aquisição das aprendizagens con-vencionais (CLAY, 1985; TEALE; SULZBY,1986; SULZBY; TEALE, 1991).

Teale e Sulzby (1986) apontaram quatroconclusões importantes derivadas de estudossobre letramento emergente:1. O processo de aprendizagem da leitura e da

escrita começa na primeira infância e es-tende-se até as primeiras séries do ensinofundamental. Considera-se que, assim comoas crianças não aprendem, de repente, a fa-lar no dia do seu primeiro aniversário, elastambém não começam a ler, instantaneamen-te, ao entrar na primeira série;

2. As habilidades de leitura, escrita, fala e au-dição desenvolvem-se de maneira concor-rente e inter-relacionada; não de formaseqüencial. Valoriza-se o intercâmbio en-tre a linguagem oral e a escrita, ou seja, oque a criança aprende a partir de determi-nada linguagem possibilita a exploração e odesenvolvimento de outros aspectos, e asíntese desta aprendizagem é a base dodesenvolvimento da linguagem oral e es-crita;

3. Aprender as funções do ato de ler e de es-crever é considerado tão importante quan-to aprender sobre os aspectos formais da

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

linguagem escrita. O desenvolvimento doletramento é favorecido pela experiência dacriança em atos de leitura e escrita funcio-nais e intencionais, conduzidos por adultosletrados. As crianças pequenas observame participam de vários eventos de leiturafuncional: leitura de histórias na hora dedormir, audição de histórias da Bíblia, es-crita de nomes em convites de aniversári-os, etc. O ler e o escrever mediam váriosaspectos da vida diária: entretenimento, ro-tinas do dia-a-dia, trabalho, religião, comu-nicação interpessoal, etc;

4. As crianças aprendem sobre a linguagemescrita por meio do engajamento ativo como seu mundo. A aprendizagem do letramen-to emergente é construtiva, ativa e interati-va, ou seja, só o contato com os materiaisde escrita não é suficiente para a criançaaprender a ler e a escrever. É pela obser-vação e interação com pessoas letradas queas crianças aprendem a que prestar aten-ção, como usar os vários materiais escritose quais processos de pensamento empre-gar. Os pais fornecem modelos de compor-tamentos e atitudes de letrados, fornecemmateriais e experiências, e modelam indi-retamente os comportamentos das crian-ças, transmitindo a elas expectativas departicipação e de competência.

Os estudos nesta área têm mostrado a emer-gência gradual de padrões de desenvolvimentorelevantes da leitura e da escrita entre as cri-anças com relação ao domínio de aspectos for-mais da escrita, ao entendimento do princípioalfabético, ao conceito e uso de esquemas dehistórias, e à leitura de faz-de-conta.

O desenvolvimento da consciência das cri-anças acerca das convenções da escrita e delivros é verificado em alguns aspectos, taiscomo: o manuseio dos livros, o entendimentoda direcionalidade da escrita, os conceitos deletra e palavra, e as funções dos diferentes ti-pos de pontuação. A análise destes aspectostem mostrado a necessidade de mudanças cur-riculares para melhorar a estimulação e o ensi-no de crianças pré-escolares e escolares, quepodem vir a ser coadjuvantes no processo de

alfabetização (CLAY, 1985; KATIMS, 1994; DEROSE et al., 1998; SAINT-LAURENT; GIAS-SON; COUTURE, 1998; MARANHE, 2001).

Com relação ao desenvolvimento da con-cepção de escrita observa-se que a compreen-são do sistema de escrita vai desde o rabiscoou da escrita com desenho, até o momento emque se descobre que as letras representam osaspectos sonoros da palavra, passando inicial-mente por uma fase silábica para, por fim, en-tender a representação alfabética (FERREIRO;TEBEROSKY, 1986; MARQUES, 1997; BO-NETI, 1999; MARANHE, 2001).

A compreensão das crianças acerca decomo as histórias se organizam se dá de acor-do com o número de elementos estruturais queestas apresentam, que são usados por elas aorecontarem as histórias ou ao produzi-las oral-mente. As crianças entre quatro e seis anos,em geral, apresentam os seguintes elementosem suas histórias: a situação (época, local epersonagens), o tema (o evento inicial que levao personagem principal a reagir, a ter um obje-tivo ou a enfrentar um problema) e a resoluçãoda história (o alcance do objetivo ou a soluçãodo problema). As crianças das primeiras sériesdo ensino fundamental apresentam, além doselementos incorporados pelos pré-escolares, osepisódios do enredo (os eventos por meio dosquais o personagem tenta alcançar o objetivoou solucionar o problema) (MANDLER; JO-HNSON, 1977). A consciência da estrutura dahistória auxilia a criança a fazer previsões so-bre a história, a organizá-la, interpretá-la e pro-duzi-la (GLEEN, 1978; MORROW, 1985, 1986;REGO, 1985, 1988; SPINILLO; PINTO, 1994;DE ROSE, 1995; CARVALHO, 1996; ZA-NOTTO, 1996; MARANHE; DE ROSE, 2000;BRANDÃO; SPINILLO, 2001; SPINILLO,2001; MARANHE, 2001, 2004).

Considera-se que a leitura de faz-de-contaou leitura não convencional de livros, feita in-dependentemente, por crianças pré-escolarese em fase escolar, indica o grau de consciênciaque elas têm acerca das características da lin-guagem escrita (SULZBY, 1985; SULZBY;TEALE, 1991; ZANOTTO, 1996; MARA-NHE, 2001). A evolução da leitura de faz-de-

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

conta de livros favoritos entre crianças de doisa seis anos de idade foi detalhada no estudo deSulzby (1985), e vem sendo referencial paranovas pesquisas que tomam como base o en-tendimento desta habilidade de letramentoemergente por crianças no processo de aquisi-ção da textualidade. Ela identificou que o pa-drão inicial da leitura de faz-de-conta consisteem lidar com as páginas do livro como unida-des discretas, não se chegando a formar histó-rias, sendo que há uma evolução até o lidar comas páginas de maneira articulada, formando aseqüência da história. A leitura de faz-de-con-ta da criança progride do uso da fala semelhan-te à linguagem oral ao da fala semelhante àlinguagem escrita. Com isto a autora conseguiucategorizar os padrões evolutivos da leitura defaz-de-conta na seguinte seqüência: uso de es-tratégias de rotulação e comentários das figu-ras presentes nos livros; uso de explicaçõessobre a seqüência de figuras; criação de histó-rias contendo os elementos da linguagem oral;criação de histórias contendo os elementos dalinguagem escrita; e leitura convencional de his-tórias.

A implicação educacional básica derivadadas pesquisas da área de letramento emergen-te é que a criança aprende a ler, lendo, e a es-crever, escrevendo. Toda criança tem potencialpara alcançar determinado nível de leitura eescrita, e o desenvolvimento deste potencialdepende quase inteiramente das oportunidadesfornecidas nos ambientes familiar e escolar.Infelizmente, as estatísticas brasileiras têmmostrado índices elevados de crianças que che-gam ao final do ensino fundamental com difi-culdades nas habilidades de leitura e escrita2 .Vários fatores podem estar relacionados a isto,e um deles pode ser o repertório ligado ao le-tramento emergente.

Os estudos sobre o processo de letramentoemergente têm apresentado importantes impli-cações para a área de educação especial, como:a revisão da noção de que crianças com defici-ências cognitivas, físicas e de comunicação sãoincapazes de aprender a ler e a escrever; a valo-rização da noção de que é necessário propiciaràs crianças deficientes as experiências com a

linguagem escrita vividas normalmente pelas cri-anças sem deficiências (VAN KLEECK, 1990;KOPPENHAVER et al., 1991; KATIMS, 1994);e a possibilidade de tornar os ambientes familiare escolar destas crianças favorecedores do pro-cesso de letramento, modificando os programase materiais utilizados nas escolas (SAINT-LAU-RENT; GIASSON; COUTURE, 1998). Nestesestudos o que mais se observou foi a falta deconsciência dos educadores acerca da impor-tância do letramento emergente e de como asatividades diárias baseadas neste paradigma po-deriam ser usadas para promover o interesse e oengajamento das crianças em atividades de en-sino da leitura e escrita.

Levando-se em consideração a importânciados trabalhos desenvolvidos nesta área, o pre-sente estudo teve como objetivo obter a carac-terização de um conjunto de habilidades deletramento emergente de crianças com dificul-dades de aprendizagem, que freqüentavam clas-ses especiais, bem como verificar a eficácia domaterial utilizado para esta caracterização eprincipalmente para estas crianças, no intuitode fornecer subsídios para futuras pesquisas emelhoria de recursos educacionais.

A caracterização envolveu os seguintes as-pectos: a) as hipóteses utilizadas pelas criançasao escreverem; b) o domínio dos conceitos bá-sicos sobre a escrita; c) o conhecimento acer-ca da concepção de histórias, da sua estruturae o uso da estrutura de história na produçãotextual oral e no recontar; e d) o grau de cons-ciência acerca das características da linguagemescrita durante a leitura de faz-de-conta.

MÉTODO

ParticipantesParticiparam deste estudo vinte crianças com

dificuldades de aprendizagem (não sabiam ler eescrever) que, na época do estudo, freqüenta-2 Para averiguar estes índices, aconselha-se pesquisar osdados apresentados pelo Instituto Nacional de Estudos ePesquisas Educacionais (Inep), do Ministério da Educação,sobre o SAEB de 2003. O relatório foi publicado em junhode 2004. Ver maiores detalhes no site do MEC:www.mec.gov.br.

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

vam classes especiais de duas escolas estaduaisde ensino fundamental do interior de São Paulo.Os oito participantes (todos meninos) de umaescola e os 12 (três meninas e nove meninos) daoutra escola possuíam de nove anos e três me-ses a dez anos e três meses de idade.

Houve consentimento formal dos pais dosparticipantes por meio do termo de consenti-mento, que esclareceu todos os procedimentosque seriam realizados durante o estudo, comofilmagem e gravação em fita cassete, além defutura publicação dos dados obtidos. Tambémhouve aprovação pela Comissão de Ética daInstituição da qual a pesquisadora fazia parte,sob o no 003/02.

Materiais e procedimento de coleta dosdadosForam realizadas as seguintes avaliações

com seqüência pré-estabelecida:(1o) Avaliação da concepção da escrita

– adaptada dos estudos de Ferreiro e Teberosky(1986) e De Rose et al. (1998). Foi solicitadoda criança que escrevesse, em folha de papel,o nome de quatro objetos (telefone, banana,mesa e pão) e de duas frases (Pitoco come bolo.Ele bebe limonada.) ditadas pela pesquisadora;

(2o) Avaliação dos conceitos sobre a es-crita – adaptada do estudo de Clay (1985).Durante a leitura de um livro de história infan-til pela pesquisadora, a criança foi solicitada ademonstrar, oralmente seu conhecimento so-bre 15 conceitos básicos que lhe foram ques-tionados: 1) localização da frente do livro; 2)conceito de início e término do texto escrito;3) localização de texto para leitura (diferenci-ação entre escrita e desenho); 4) discrimina-ção e localização de letras maiúsculas eminúsculas; 5) discriminação e localização deuma e duas letras; 6) discriminação e localiza-ção de uma e duas palavras; 7) conceito deletra maiúscula; 8) noção de início de leitura àesquerda; 9) noção de direção de leitura dadireita para a esquerda; 10) noção de direçãode leitura ao término da linha; 11) emparelha-mento de leitura-palavras; 12) significado doponto de interrogação; 13) significado do pon-to final; 14) significado da vírgula; 15) signifi-

cado do travessão. Tais conceitos foram gra-vados em áudio e protocolados para futuraanálise (ver apêndice);

(3o) Avaliação da produção oral de his-tórias – adaptada do estudo de Morrow (1986).Para esta avaliação a pesquisadora utilizou cin-co motivadores de textos, ou seja, a figura deum cachorro, de um menino ou menina, de umacasa, de um carro e de uma bruxa, para que acriança elaborasse uma história a partir da es-colha de três deles. As produções foram gra-vadas em áudio, transcritas e protocoladas comoregistro dos dados (ver apêndice);

(4o) Avaliação do recontar de histórias –baseada nos estudos de Morrow (1986) e Za-notto (1996). O recontar das crianças foi avali-ado diante de quatro situações com variaçõesquanto ao grau de familiaridade da criança como livro e quanto ao grau de apoio deste para arealização da atividade. Na primeira situação,a criança recontou a história de um livro famili-ar, podendo tê-lo como apoio para acompanhara atividade. Na segunda situação, a criança tam-bém recontou uma história familiar, porém nãoteve o livro como apoio. Na terceira situação, acriança recontou uma história não familiar, ten-do o livro como apoio. Na quarta situação, acriança recontou uma história não familiar, nãotendo o livro como apoio. Em cada situação derecontar a criança escolheu um livro diferentepara que a pesquisadora o lesse, sendo que paraos recontares familiares os livros selecionadosforam lidos quatro vezes, em sessões distintas,enquanto que os livros não familiares foram li-dos somente uma vez. Cada uma das históriasrecontadas foi gravada em áudio, transcrita eprotocolada para registro (ver apêndice);

(5º) Avaliação da leitura de faz-de-conta– baseada nos estudos de Sulzby (1985). Osdados desta atividade são os mesmos da pri-meira situação de recontagem de história do itemacima (recontar de livro familiar com apoio domesmo). Segundo a autora citada, este tipo desituação pode dar melhores indicativos de comoanda o grau de consciência da criança acercadas características da linguagem escrita. Poreste motivo a escolha da avaliação somente comesta situação de recontar. A opção de se utili-

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

zarem os mesmos dados coletados anteriormen-te foi feita na intenção de não deixar todo oprocedimento de coleta mais extenso do queparecia ser.

Análise e tratamento dos dadosA análise e tratamento dos dados de cada

avaliação foram realizados da seguinte forma:(1º) Concepção da escrita: as produções

gráficas foram classificadas nos níveis pré-si-lábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético,e calculou-se a percentagem de crianças quese encontrava distribuída em cada nível;

(2º) Conceitos sobre a escrita: a análisedos protocolos de registro possibilitou o cálculoda porcentagem de acertos para cada conceitoavaliado;

(3º) Produção oral e recontar de históri-as: as transcrições destas avaliações foram pro-tocoladas e pontuadas em função de quatrocategorias estruturais (cenário, tema, enredo eresolução) e de uma quinta categoria que ana-lisa a seqüência destas últimas (seqüência), pro-postas por Morrow (1986). Tais categorias eramcompostas por itens que as caracterizavam,podendo apresentar as seguintes pontuações:zero ponto quando havia ausência do item; ½ponto quando o item apresentava-se incomple-to e um ponto quando o item apresentava-secompleto. Como o número de itens analisáveisnão era o mesmo para todas as categorias, foifeita a média ponderada (Total ajustado = Total da

categoria / Número de itens x 10) do somatório dos itenscaracterizados (Total da categoria = ∑pontos dos itens),sendo que cada categoria poderia receber até10 pontos e a estrutura completa 50 pontos (verapêndice);

(4º) Leitura de faz-de-conta: como ditoanteriormente, esta análise baseou-se somenteno recontar de história familiar com apoio dolivro, cujas transcrições foram caracterizadasde acordo com o que a criança parecia consi-derar como fonte de informação no livro: a) agravura ou a escrita; b) se as construções erammais semelhantes à escrita do que à fala, e c)se os modelos de entonação soavam mais se-melhantes à leitura do que à conversação ou aocontar histórias. Com base nestas característi-

cas foi possível categorizar as tentativas emer-gentes de leitura conforme o método classifi-catório proposto por Sulzby (1985) e calcular aporcentagem de crianças para cada um dos seustipos: (1) tentativas governadas pela gravura,não formando histórias (1.1- descrição e co-mentário; 1.2- acompanhando ou seguindo aação); (2) tentativas governadas pela gravura,formando histórias com características de lin-guagem oral (2.1- contar histórias em forma dediálogo; 2.2- contar histórias em forma de mo-nólogo); (3) tentativas governadas pela gravu-ra, formando histórias com características delinguagem escrita (3.1- leitura e contar simultâ-neo; 3.2- leitura similar à história original; 3.3-leitura com as palavras da história); (4) tentati-vas governadas pela escrita (4.1- recusa emler, baseada na consciência da escrita; 4.2- lei-tura dos aspectos da escrita; 4.3- leitura hesi-tante; 4.4- leitura independente).

RESULTADOS

Primeiramente, as respostas apresentadaspelos alunos nas avaliações foram classifica-das de acordo com as categorias pertinentes acada uma delas. Depois, foram calculadas asporcentagens de alunos cujas respostas foramclassificadas em diferentes categorias.

O Gráfico 1 apresenta as porcentagens dealunos que se distribuíram nas categorias pré-silábica (pré-silábica 1 e 2), intermediária(transição da pré-silábica 2 para silábica), silá-bica-alfabética e alfabética, relativas aos di-ferentes níveis de concepção da escrita.

Os dados mostram que a maioria dos parti-cipantes encontrava-se no nível pré-silábicoquanto ao processo de construção da escrita.Sessenta e cinco por cento dos participantesapresentaram nível de concepção pré-silábicoda escrita (20% no nível pré-silábico 1 e 45%no nível pré-silábico 2), e 20% apresentaramconcepção classificada como de transição donível pré-silábico 2 para o nível silábico. Umaporcentagem pequena dos alunos dominavaconcepções mais avançadas: 5% o nível silábi-co-alfabético e 10% o nível alfabético.

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

O Gráfico 2 mostra as porcentagens deacertos para cada conceito sobre a escri-ta avaliado, a partir das quais foi possível

Gráfico 1 – Distribuição percentual dos participantes por níveis de concepção da escrita

Gráfico 2 - Média das porcentagens de acertos obtidos em cada conceito sobre aescrita avaliado

observar que alguns grupos de conceitoseram mais familiares para os alunos do queoutros.

Os alunos demonstraram maior familiarida-de em relação aos conceitos que privilegiam omanuseio do livro (87,5%), a orientação es-pacial da leitura (81,7%) e as característi-cas da escrita (59%). os dois últimos gruposde conceitos tiveram percentuais médios bemdiferenciados dos anteriores, demonstrandomenor familiaridade dos participantes: 5,0% parao grupo relação entre palavra falada e pala-vra escrita, e 6,3% para o grupo conceitos depontuação.

O Gráfico 3 apresenta as porcentagens departicipantes que incluíram as categorias estru-

turais de história nas atividades de produçãooral. Tais categorias estão expostas individual-mente e da forma em que cada uma foi incluídana história produzida, ou seja, de forma com-pleta ou incompleta. Para melhor interpretaçãodo gráfico é importante ressaltar que, para asquatro primeiras categorias, o conceito comple-ta/incompleta refere-se às características quecompõem a análise de cada uma delas, enquan-to que para a categoria seqüência, o conceitorefere-se à omissão ou não das categorias an-teriores e à ordem seqüencial de aparição dasmesmas dentro da história.

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

Ao se verificar as pontuações obtidas naprodução oral das histórias, foi possível consta-tar maior tendência entre os participantes deincluírem, de forma completa, as categorias temae enredo, como mostra o gráfico acima.

A categoria tema foi incluída de forma com-pleta por 57,5% dos alunos, e a categoria enre-do por 30% do grupo. Nenhum participanteincluiu as categorias cenário e resolução deforma completa.

Por outro lado, os dados também permiti-ram verificar que embora a categoria cenárionão tenha apresentado pontuação completa,100% dos participantes a incluíram em suas his-tórias de forma incompleta, ou seja, omitindoalguns itens que compõem a análise da catego-ria. Para a categoria tema, 42,5% dos partici-pantes incluíram-na em suas histórias de formaincompleta, enquanto a categoria enredo foiincluída de forma incompleta por 50% dos par-ticipantes. A última categoria estrutural, reso-lução, apesar de não ter sido incluída de formacompleta em nenhuma história, teve sua inclu-são de forma incompleta por 40% dos partici-pantes.

De um modo geral, o gráfico mostra quetodos os participantes apresentaram estruturade história contendo pelo menos duas categori-

as: cenário e tema, sejam elas completas ouincompletas.

Do ponto de vista seqüencial da estrutura,os dados mostraram que 37,5% dos participan-tes incluíram todas as categorias estruturais emsuas histórias e na ordem correta, mesmo queestas estivessem incompletas. Os 62,5% res-tantes apresentaram seqüência estrutural comomissão de categorias, embora as que foramapresentadas estivessem na ordem correta.

A análise das pontuações obtidas com asquatro avaliações de Recontar de Históriastambém permitiu visualizar a porcentagem departicipantes que incluíram as categorias estru-turais em seus recontares de forma completa eincompleta, como mostra a Figura 1.

A categoria cenário foi incluída por 84,2%dos participantes de forma completa e por15,8% de forma incompleta, no recontar dehistória familiar com apoio do livro (2a); parao recontar de história familiar sem apoio (2b),78,9% incluíram-na de forma completa e 21,1%de forma incompleta; para o recontar de his-tória não familiar com apoio (2c), 57,9% deforma completa e 42,1% de forma incompleta;e para o recontar de história não familiar semapoio (2d), 26,3% de forma completa e 73,7%de forma incompleta.

Gráfico 3 - Porcentagem de participantes que incluíram as categorias de forma com-pleta e incompleta na produção oral de histórias originais

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A categoria tema foi incluída no recontarde história familiar com apoio (2a) por 42,1%dos participantes de forma completa, e por57,9% de forma incompleta, e no sem apoio(2b) por 21% de forma completa, e por 79% deforma incompleta; no recontar de história nãofamiliar com apoio (2c) por 15,8% de formacompleta, e por 84,2% de forma incompleta, eno sem apoio (2d) por 5,2% de forma comple-ta, e por 63,2% de forma incompleta.

Para a categoria enredo verifica-se que,para o recontar familiar com apoio (2a),36,8% dos participantes incluíram-na em suahistória de forma completa, e 63,2% de formaincompleta, e, no sem apoio (2b) 10,5% o fize-ram de forma completa, e 89,5% de forma in-completa. No recontar não familiar comapoio (2c) e sem apoio (2d) não houve a in-clusão da categoria de forma completa pelosparticipantes avaliados. Porém 89,5% destes

Figura 1 - Porcentagem de participantes que incluíram as categorias de forma com-pleta e incompleta nas quatro avaliações de recontar histórias

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

incluíram a categoria de forma incompleta norecontar com apoio, e 94,7%, no sem apoio.

Também pode ser observado que 42,1% dosparticipantes incluíram a categoria resolução norecontar familiar com apoio (2a) de forma com-pleta, e 57,9% de forma incompleta, e no recon-tar sem apoio (2b), 36,8% de forma completa e36,9% de forma incompleta; o recontar não fa-miliar com apoio (2c) foi incluído por 15,8% deforma completa, e 73,7% de forma incompleta; e,no recontar sem apoio (2d), não houve inclusãocompleta pelos participantes, porém 42,1% inclu-íram a categoria de forma incompleta.

No geral, os gráficos mostram que todos osparticipantes apresentaram estrutura de histó-ria contendo todas as categorias no recontarfamiliar com apoio, sejam elas completas ouincompletas; apresentaram pelo menos trêscategorias (cenário, tema e enredo) no recon-tar familiar sem apoio; pelo menos duas (ce-nário e tema) no recontar não familiar comapoio; e pelo menos uma (cenário) no recon-tar não familiar sem apoio. Com isto é possí-vel dizer, analisando-se as duas variáveisestudadas – familiaridade e apoio, que hou-ve domínio maior de estrutura gramatical dorecontar familiar sobre o não familiar e dorecontar com apoio sobre o sem apoio.

Do ponto de vista seqüencial da estrutura, osdados mostram que para o recontar familiar com

apoio (2a), embora todos os participantes tenhamincluído as quatro categorias estruturais em suashistórias, sejam elas de forma completa ou incom-pleta, quando se espera que os resultados mostrem100% para a categoria seqüência, 5,3% dos parti-cipantes não tiveram a seqüência estrutural consi-derada completa, pois apresentaram categorias forada ordem correta. Portanto, apenas 94,7% apre-sentaram todas as categorias em suas histórias deforma completa ou incompleta e na ordem correta.

Para o recontar familiar sem apoio (2b),68,4% dos participantes incluíram todas as ca-tegorias estruturais em suas histórias e na or-dem correta, mesmo que estas estivessemincompletas. Porém 31,6% apresentaram se-qüência estrutural com omissão e/ou com or-dem incorreta de categorias.

No recontar não familiar com apoio (2c),73,7% dos participantes incluíram todas as ca-tegorias estruturais em suas histórias e na or-dem correta, mesmo que estas estivessemincompletas. Os 26,3% restantes apresentaramseqüência com omissão e/ou com ordem incor-reta de categorias.

O mesmo ocorreu no recontar sem apoio(2d), ou seja, 31,6% incluíram todas as catego-rias estruturais na ordem correta, mesmo in-completas, e os 68,4% restantes apresentaramseqüência com omissão e/ou ordem incorretade categorias.

Gráfico 4 - Média das pontuações totais das quatro avaliações de recontar histórias

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Partindo dos resultados da análise indivi-dual das categorias, na qual foi possível supordomínio de estrutura gramatical de um tipo derecontar sobre outro, foi aplicado o Teste deComparações Múltiplas de Student-Newman-Keuls, com o intuito de verificar se havia ounão diferenças estatísticas entre as médias daspontuações obtidas em cada tarefa de recon-tar, comprovando, assim, diferença estatísticasignificante (P<0,05) entre suas estruturas gra-maticais (cenário, tema, enredo, resolução eseqüência), como mostra o Gráfico 4.

As médias sugerem domínio de estruturaentre as variáveis estudadas: familiaridade –FC – 41,45 > NC – 33,29; FS – 35,39 > NS –23,29; e apoio – FC – 41,45 > FS – 35,39; NC– 33,29 > NS – 23,29, ou melhor dizendo, osdados mostram que as crianças, ao fazerem suas

próprias interpretações das histórias, sugeriramescala crescente de dificuldade do recontarquanto à inclusão das categorias estruturais.

O Gráfico 5 apresenta os resultados relati-vos aos tipos de tentativas de Leitura de Faz-de-conta observados no recontar de históriafamiliar com apoio do livro. Foram utilizadospelas crianças quatro tipos de categorias evo-lutivas dos 11 propostos por Sulzby (1985): (Tipo1) Atenção à gravura formando história comcaracterística de linguagem oral: contar em for-ma de diálogo; (Tipo 2) Atenção à gravura for-mando história com característica de linguagemoral e escrita: ler e contar simultâneos; (Tipo 3)Atenção à gravura formando história com ca-racterística de linguagem escrita: similar à his-tória original; e (Tipo 4) Atenção à escritaapresentando leitura das unidades da escrita.

Gráfico 5 – Distribuição percentual dos participantes nos quatro tipos de tentativasde leitura de faz-de-conta apresentados por eles

Observou-se que 10,5% dos alunos demons-traram leitura de faz-de-conta pautada na gravu-ra e com características de linguagem oral, 52,7%apresentaram tanto características de linguagemoral como de linguagem escrita, e 31,6% apre-sentaram predomínio de linguagem escrita, simi-lar ao do texto. Somente 5,2% ficaram sob controleda escrita e tentaram ler palavras de forma aindanão fluente e precisa (leitura silabada).

Correlações obtidas com os resultados ana-lisados

O estudo também manteve o interesse emverificar se havia algum tipo de correlação en-

tre as aprendizagens relacionadas ao letramen-to emergente aqui avaliadas, ou seja, se o do-mínio de determinada habilidade poderia estarassociado ao domínio de outra habilidade apre-sentada pelas crianças.

Para tanto, foi feito o cálculo de correlaçãonão-paramétrico de Spearman, a partir das pon-tuações obtidas em todas as avaliações realiza-das, cujos resultados encontram-se na Tabela 1,na página seguinte.

Os resultados indicaram que houve correlação,ou seja, tendência de que os alunos dominassemsimultaneamente um conjunto de aprendizagens –

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

conhecimento sobre a concepção de escrita, osconceitos sobre a escrita, a estrutura de história norecontar e os tipos de tentativas de leitura de faz-de-conta. Entretanto, cabe ressaltar que os índicesobtidos foram relativamente baixos, pois algumas

categorias de análise eram discretas, devendo-se,assim, olhar para os dados com cautela, tendo emvista que os cálculos de correlações contemplamvariáveis não contínuas, passíveis de mensuraçãoapenas nominal.

Tabela 1 - Cálculo de correlação não-paramétrico de Spearman para todas as ava-liações realizadas

Nota:(*) há correlação;(ns) não há correlação;(**) o cálculo do coeficiente de correlação para esta avaliação foi aplicado com base namédia obtida pelo somatório das pontuações totais das quatro avaliações de recontar;(r) coeficiente de correlação não-paramétrico de Spearman.

DISCUSSÃO

Os resultados mostraram que mais da me-tade dos alunos encontravam-se no nível pré-silábico de concepção da escrita no início dacoleta dos dados. Considerando que estas cri-anças já haviam passado pela experiência dofracasso escolar no sistema de ensino regular,sendo encaminhadas para classes especiais,entende-se que não houve uma evolução con-

ceitual. Talvez as experiências que estas crian-ças tiveram com a escrita não fosse aquela quede fato elas necessitassem para entender osprincípios silábicos e alfabéticos.

A avaliação dos conceitos sobre a escritarevelou que nenhuma criança tinha conheci-mento de todos os conceitos. A maior porcen-tagem de acertos ficou na faixa entre sete anove conceitos (metade dos alunos avaliados).Ao se compararem estes dados com os de Clay

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(1985), é possível sugerir que os alunos do pre-sente estudo já deveriam ter conhecimento detodos os conceitos avaliados, visto que em seuestudo com crianças européias, a autora mos-tra que a aquisição destes conceitos se deudos cinco aos sete anos de idade. Além disto,é possível dizer que esta avaliação tambémmostrou sensibilidade aos conhecimentos dascrianças de faixa etária maior que a estudadapor Clay, e que apresentavam dificuldades deaprendizagem.

Quanto à avaliação da inclusão das catego-rias estruturais na produção oral, os resultadosmostraram que todas as crianças apresentaramestruturas de história contendo pelo menos duascategorias: cenário e tema. A quantidade decrianças que conseguiu produzir histórias comtodas as categorias foi menor que a metade doque o seu número total. Comparando as crian-ças deste estudo com as pré-escolares avalia-das por Morrow (1986), percebe-se o quantoelas apresentaram estruturas de histórias ima-turas para a sua faixa etária e escolaridade, semdesconsiderar outras possíveis variáveis inter-correntes, como classe social e experiênciascom textos, que podem também ter influencia-do neste resultado, mas cuja análise a metodo-logia proposta aqui não privilegiou3 .

Outro fator importante discutido na literatu-ra quanto à interferência na complexidade daprodução é o material utilizado para avaliá-la(SPINILLO, 2001). Mais uma vez tomandocomo análise o trabalho de Morrow (1986), cri-anças pré-escolares mostraram-se instigadas ànarração de histórias com apoio dos motivado-res de texto, também utilizados no presente es-tudo. Os seus resultados não garantem que otipo de material utilizado possa ter sido o maisadequado para que as crianças com dificulda-des de aprendizagem produzissem suas própri-as histórias; entretanto, o inverso também nãopoderia ser garantido, diante do fato de quepossa ter ocorrido a interferência dos outrosfatores levantados no parágrafo anterior. Dequalquer forma, fica a proposta do uso destematerial como mais um instrumento para a ava-liação destas crianças, juntamente com o pro-tocolo de análise proposto.

Com relação ao recontar de histórias, a es-colha em realizar avaliações das inclusões dascategorias estruturais no recontar com e sem oapoio do livro proporcionou a oportunidade deanalisar o efeito destas diferentes condições so-bre o recontar dos alunos. O recontar com apoiodo livro permitiu às crianças avaliadas um dire-cionamento no esquema de história, tanto na ori-entação causal quanto temporal, facilitando seudesempenho na tarefa. O recontar sem apoio dolivro também proporcionou a obtenção de dadossobre o uso exclusivo do esquema de história,porque naquela situação o participante contavaexclusivamente com ele para dirigir o armaze-namento do texto na memória e também a suarecuperação no momento de recontá-la.

Além da análise da variável apoio, a famili-aridade ou não com livro também foi outro as-pecto considerado relevante. O uso deste comouma variação experimental partiu dos estudosde Sulzby (1985), que utilizou livros familiarespara avaliar as crianças durante a leitura de faz-de-conta. A autora julga o livro familiar comoum ponto importante na avaliação da leitura, poisa criança já consegue fazer suas próprias rein-terpretações do conteúdo do texto sendo a his-tória conhecida, mostrando em que nível dedesenvolvimento encontra-se sua linguagemescrita. Por conseguinte, a análise do desem-penho da inclusão seria facilitada, visto que oconhecimento do livro passou a ser uma variá-vel importante.

De um modo geral, a análise dos dados ob-tidos nesta avaliação mostrou estruturas me-lhores do que as apresentadas na produção oral.Esta melhora foi decorrente do tipo de situaçãoexperimental proposta, ou seja, observou-se quequanto maior o número de variáveis analisáveis(familiaridade e apoio) presentes durante a ava-liação, mais complexa se apresentava a estru-tura narrada. Houve, portanto, o domínio dorecontar familiar sobre o não familiar, e do re-contar com apoio sobre o sem apoio, sugerindouma proposta metodológica interessante na bus-ca pela dentificação da complexidade estrutu-ral das histórias recontadas pelas crianças.

3 Cf. Maranhe, 2004; Spinillo, 2001.

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

Para situar os resultados sobre as tentativasde leitura de faz-de-conta obtidos com as cri-anças deste estudo, é necessário discutir osdados obtidos por Sulzby (1985) com o métodoclassificatório proposto por ela, e que tambémfoi utilizado neste trabalho.

A autora desta pesquisa realizou seu estudocom crianças pré-escolares com média de cin-co anos e oito meses de idade no início da cole-ta, e mostra que ao final do estudo (após setemeses de coleta), pouco mais de um terço de-las apresentavam leitura de faz-de-conta comatenção à escrita, e não mais às gravuras comoera no início.

Partindo do princípio de que é possível pres-tar atenção à escrita durante a leitura entre cri-anças pré-escolares, poderia se dizer que ascrianças deste estudo estariam atrasadas nahabilidade de leitura de faz-de-conta, conside-rando sua idade e escolaridade. É relevantecomentar que o trabalho conduzido por Sulzby(1985) foi com crianças americanas, pré-esco-lares e de classe média, cujas experiências coma leitura de livros de histórias infantis são roti-neiramente desenvolvidas nas escolas e famíli-as, diferente das experiências apresentadaspelas crianças do presente estudo, como o re-latado pela professora em conversa informalcom a pesquisadora.

Os resultados mostraram que das vinte cri-anças avaliadas, apenas uma manteve atençãoà escrita (mas porque já estava começando aler as primeiras palavras); o restante voltou suaatenção para as gravuras, sendo que a maioriaapresentou uma mescla de linguagem oral (ex.daí, então...) e escrita (ex. “O sol disse: sóas pássaras botam ovos”) para recontar ashistórias lidas.

Estes dados mostram que a forma de análi-se, ou seja, o método classificatório utilizado porSulzby (1985) pode ser interessante para reve-lar o grau de conscientização dos aspectos da

linguagem escrita pelas crianças com dificul-dades de aprendizagem ao tentarem ler livrosde histórias infantis e, assim, propor novos ca-minhos para se chegar a objetivos mais com-plexos, como a leitura e a escrita.

Cada vez mais, autores como Sulzby (1985),Sulzby e Teale (1986), Rego (1988), Maranhe(2004), e Monteiro (2005) vêm discutindo aimportância do trabalho com livros de históriase o quanto eles podem ajudar no trabalho deaquisição da leitura e escrita.

CONCLUSÕES

Os dados obtidos com as avaliações propos-tas neste estudo identificaram que um conjuntode conhecimentos relevantes, previstos no pe-ríodo de letramento emergente, ainda não esta-va dominado pelas crianças. Estudos posterio-res deveriam ser feitos visando a análise decondições que poderiam ser oferecidas a estesalunos, tendo em vista o desenvolvimento dashabilidades de letramento emergente que semostram relevantes para a aprendizagem for-mal da leitura e da escrita, como a literaturamesma propõe.

Verifica-se, atualmente, a tendência na áreade educação especial ao incentivo de pesqui-sas que mostrem interesse pela proposição deprogramas de desenvolvimento da linguagemoral e escrita de crianças com dificuldades deaprendizagem (VAN KLEECK, 1990; KO-PPENHAVER et al., 1991; KATIMS, 1994;SAINT-LAURENT, GIASSON & COUTU-RE, 1998; SANTOS, 2001; MARANHE, 2004).O material utilizado neste estudo mostrou-sesignificativo para a análise de dados importan-tes destas crianças, e pode ser um ponto departida para novas pesquisas na busca pelo de-senvolvimento de programas que possam auxi-liar no processo de alfabetização4 .

4 Cf. Maranhe, 2004.

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 03.11.06

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 199

Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

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Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem

PROTOCOLO DE PRODUÇÃO ORAL

Nome: _________________________________________________________ Idade: ______________D.N.: ______________________ Sexo: ______________________________ Data: ______________

1. Cenário Escores*

A. A história começa com um enunciado de começo ____B. Um ou mais personagens centrais aparecem e assumemum papel principal durante toda a história ____C. O tempo da história é mencionado ____D. A localização da história é mencionada ____

Total ____Total Ajustado ____

2. TemaA. Um começo introduzindo o problema ocorre a fimde causar uma reação no personagem principal ____B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim deconduzir o personagem principal em direção à resoluçãodo problema ou para alcançar o objetivo da história ____

Total ____Total Ajustado ____

3. EnredoA. Um evento, ou uma série de eventos, são mencionados,relacionando-se ao personagem principal ____B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de conduziro personagem principal em direção à resolução do problemaou para alcançar o objetivo da história ____

Total ____Total Ajustado ____

4. ResoluçãoA. O personagem principal resolve o problema ou alcança o objetivo ____B. A história é encerrada com um enunciado final ____C. O final apresenta conseqüências a longo prazo ____

Total ____Total Ajustado ____

5. SeqüênciaA. As categorias da estrutura de história estão presentes na ordemcorreta de seqüência (cenário, tema, enredo, resolução) ____

Total ____Total Ajustado ____

6. Total da História contada Escore Total ____

* TA = T/Ni x 10, sendo que T = ?pi , p: pontos e i: itens (0 = pi = 1); pi = 0 (ausência do item); pi = ½ (item incompleto);pi = 1 (item completo).

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Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose

PROTOCOLO DE RECONTAR DE HISTÓRIAS

Nome: _________________________________________________________ Idade: ______________D.N.: ______________________ Sexo: ______________________________ Data: ______________

1. Cenário Escores*

A. Um ou mais personagens centrais aparecem e assumemum papel principal durante toda a história ____

Total ____Total Ajustado ____

2. TemaA. Um começo introduzindo o evento ocorre a fimde causar uma reação no personagem principal ____B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim deconduzir o personagem principal em direção à resoluçãodo problema ou para alcançar o objetivo da história ____

Total ____Total Ajustado ____

3. EnredoA. Um evento ou uma série de eventos são mencionados,relacionando-se ao personagem principal ____B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de conduziro personagem principal em direção à resolução do problemaou para alcançar o objetivo da história ____

Total ____Total Ajustado ____

4. ResoluçãoA. O personagem principal resolve o problema ou alcança o objetivo ____

Total ____Total Ajustado ____

5. SeqüênciaA. As categorias da estrutura de história estão presentes na ordemcorreta de seqüência (cenário, tema, enredo, resolução) ____

Total ____Total Ajustado ____

6. Total da História contada Escore Total ____

* TA = T/Ni x 10, sendo que T = ?pi , p: pontos e i: itens (0 = pi = 1); pi = 0 (ausência do item); pi = ½ (item incompleto);pi = 1 (item completo).

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Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

CRIANÇAS AUTISTAS DE

ALTO FUNCIONAMENTO E SÍNDROME DE ASPERGER:

estratégias para trabalhar as habilidades

narrativo-discursivas e a produção verbal

Simone Aparecida Lopes-Herrera *

Maria Amélia Almeida **

* Fonoaudióloga. Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente doDepartamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru – Universidade de São Paulo (USP). Endereçopara correspondência: Alameda Dr. Octávio Pinheiro Brisolla, 9-75 – A/C Departamento de Fonoaudiologia (FOB-USP) – 17012-101 Bauru/SP. E-mail: [email protected]** Educadora. Pós-Doutora na Área de Educação Especial. Docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação emEducação Especial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Endereço para correspondência: UniversidadeFederal de São Carlos (UFSCar), Programa de Pós-Graduação em Educação Especial (PPGEE). Rodovia WashingtonLuis, KM 235, Caixa Postal 676 – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail: [email protected]

RESUMO

O autismo de alto funcionamento (AAF) e a síndrome de Asperger (SA) sãotranstornos globais do desenvolvimento que, entre outros sintomas, apresentamalterações nas habilidades comunicativas. O objetivo deste trabalho foi realizarum levantamento das estratégias que favorecessem o uso de habilidadesnarrativo-discursivas (HND) e uma maior produção verbal em indivíduos comAAF e SA. Participaram deste estudo três indivíduos do sexo masculino, com7 anos de idade, sendo um com diagnóstico de SA e dois com diagnóstico deAAF. O material para análise dos dados foi constituído das gravações emvídeo de sessões de interação, com duração de 30 minutos, de cada um dosparticipantes com a pesquisadora. Foram avaliadas 5 sessões de cadaparticipante, totalizando 450 minutos de gravação. Os resultados demonstraramque há uma reciprocidade comunicativa entre adulto e participantes, sendo osperfis comunicativos destes semelhantes em termos de medidas de produçãoverbal, como extensão média dos enunciados (EME) e complexidade de fala(CF). Os resultados também mostraram que as estratégias propostasalcançaram, com os três participantes, o objetivo de promover um aumento nouso de habilidades narrativo-discursivas e nas medidas de produção verbal,como a EME e a CF.

Palavras-chave: Autismo – Autismo de alto funcionamento – Educaçãoespecial – Síndrome de Asperger – Habilidades comunicativas verbais

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Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...

ABSTRACT

STRATEGIES TO WORK WITH NARRATIVE-DISCOURSIVEABILITIES AND VERBAL PRODUCTION IN CHILDREN WITHHIGH-FUNCTIONING AUTISM AND ASPERGER SYNDROME

High-functioning autism and Asperger syndrome are pervasive developmentaldisorders, that among other symptoms, present alteration in communicativeabilities. This paper’s objective was to realize a survey of strategies that couldsupport the use of a higher number of narrative discursive communicativeabilities and, consequently, a major mean length utterance, talk complexity ormajor use of other verbal communicative abilities expressed by individuals withhigh-functioning autism and Asperger syndrome. Three 7 years old males wereparticipants in this survey, one diagnosed as having Asperger syndrome andthe other 2 diagnosed as high-functioning autism. The data was collected duringindividuals interactive sessions with the researcher. Five sessions tapes of eachparticipant were evaluated, with a total of 450 minutes of records. The resultsof the study demonstrated that there is a communicative reciprocity betweenthe adult and the participants and that their communicative profile are similar,since the values of the mean length utterance (MLU) and talk complexity (TC)demonstrated by the adults were higher, but it was possible to note that thevariation continues the same. The participant’s use of narrative discursive abilitieswere also increased.

Keywords: Autism – High functioning autism – Special education – Aspergersyndrome – Communicative abilities

Introdução

A comunicação de indivíduos com autismosempre foi foco de atenção dos estudos na áreada fonoaudiologia e educação especial, vistoserem a interação social e a comunicação duasáreas básicas em que se concentram as dificul-dades dos autistas. A educação de indivíduosautistas envolve várias indagações sobre quaisseriam as habilidades que eles utilizam para sefazer entender, de que forma eles se comuni-cam, se esta comunicação é efetiva e como elase diferencia da maneira das outras pessoas secomunicarem. É este o “olhar” que influenciaas ações direcionadas a esta população, sejamelas ações terapêuticas ou educacionais.

Estas indagações são comuns em profissi-onais que trabalham com crianças autistas, quemuitas vezes não falam e acabam por usar for-mas alternativas de comunicação, ou utilizam acomunicação não-verbal em detrimento de

meios verbais. Porém, estas mesmas indaga-ções muitas vezes são abandonadas quando háo aparecimento de fala, justamente porque omeio verbal de comunicação é o mais aceitosocialmente. O que se observa em casos deautismo de alto funcionamento ou de criançascom síndrome de Asperger, que apresentamfala, é que esta por si só constitui o grande re-sultado de um ou mais programas educacionaise terapêuticos a que a criança tenha sido sub-metida, e o “olhar” do profissional fica muitasvezes restrito a isto, sem considerar se a repro-dução verbal apresentada está garantindo a efi-cácia comunicativa.

Para a Fonoaudiologia, ciência que estuda alinguagem e a comunicação humana, dados queesclareçam estas questões são úteis, devido àpossível utilização terapêutica de elementos fa-cilitadores do processo de comunicação. Paraum educador, tais dados proporcionam uma vi-são mais ampla e compreensiva da comunica-

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Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

ção de seus alunos, e seriam um passo à frentena facilitação do processo comunicativo e edu-cacional do educando de forma global.

Transtornos globais do desenvol-vimento

A categoria transtornos globais do desen-volvimento (TGD) é referente aos transtornosque se caracterizam por prejuízos severos e in-vasivos em diversas áreas do desenvolvimento,como: (a) habilidades de interação social recí-proca, (b) habilidades de comunicação, e (c)presença de comportamentos, interesses e ati-vidades estereotipados. Os prejuízos qualitati-vos que definem estas condições representamum desvio em relação ao nível de desenvolvi-mento/idade do indivíduo, o que afeta sua adap-tação social e educacional. Em geral, asalterações se manifestam nos primeiros anosde vida e podem aparecer associadas a váriosquadros (neurológicos ou sindrômicos), varian-do em grau e intensidade de manifestações.Entram nesta categoria os transtornos autistas,de Asperger, de Rett e os transtornos desinte-grativos da infância. (ASSOCIAÇÃO AME-RICANA DE PSIQUIATRIA, 1995, 2002).

O DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatís-tico de Transtornos Mentais, da AssociaçãoAmericana de Psiquiatria) é uma publicaçãomundialmente adotada no diagnóstico clínico,principalmente no que se refere aos transtor-nos mentais. Em 2002, foi editado o DSM-IVTR e a terminologia adotada foi a de transtor-nos globais do desenvolvimento (TGD).

Não há categoria específica para o autismode alto funcionamento, sendo que os estudosque optam por classificá-lo como entidade no-sológica diferenciada do autismo, ou como par-te de um espectro autístico, consideram odiagnóstico de autismo de alto funcionamentopara aqueles indivíduos que possuam diagnósti-co de autismo antes dos trinta meses de idade,tenham desenvolvido habilidades de interaçãosocial e de comunicação e que, na época daavaliação/diagnóstico atual, não tenham se en-caixado nos critérios propostos pelo DSM-IV

ou DSM-IV TR para nenhum outro transtornoglobal do desenvolvimento, nem qualquer outroquadro psiquiátrico (GHAZIUDDIN; LEININ-GER; TSAI, 1995).

Desde 1990, o autismo vem sendo conside-rado uma síndrome comportamental com etio-logias múltiplas e curso de um distúrbio dodesenvolvimento, sendo caracterizado sucinta-mente por déficits de interação social, visuali-zado pela inabilidade em relacionar-se com ooutro, usualmente combinado com déficits delinguagem e alterações de comportamento (GI-LLBERG, 1990; SCHWARTZMAN, 2003).

Baltimore e Kanner (1944), no estudo origi-nal que descreveu o autismo, observaram aexistência de algumas características específi-cas da linguagem de crianças autistas, como ainversão pronominal (uso da primeira pessoa dosingular pela terceira), a ecolalia (repetição depalavras ou expressões ouvidas anteriormen-te), a rigidez de significados (a dificuldade emassociar diversos significados a um único signi-ficante). Mas o que mais chamou a atençãodestes autores foi o fato de que as alteraçõesmais significativas se relacionavam às funçõescomunicativas da linguagem (até por ser a co-municação um conceito de referência social eser a socialização uma das maiores dificulda-des do autista).

Conforme se observa pelo relato do estudoque originalmente descreveu o autismo e peloconceito que atualmente o define, a linguagemé um dos pontos no qual se focam as altera-ções mais evidentes do autismo. Quer seja pelaausência de fala ou a presença de fala sem fun-ção comunicacional, quer seja pelo desenvolvi-mento atípico de linguagem que estas criançasapresentam, a linguagem é fundamental na ca-racterização do quadro.

Autismo de alto funcionamento esíndrome de Asperger

O diagnóstico do autismo e da síndrome deAsperger é basicamente clínico, isto é, realiza-do por meio de observações que caracterizamo quadro, observações comportamentais e aná-

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Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...

lise do histórico do indivíduo, e não por intermé-dio de exames laboratoriais – exceção feitaquando o autismo aparece associado a outracondição (SCHWARTZMAN, 1995, 2003).

Compete aqui explicitar que os diagnósticossão geralmente realizados por equipes multidis-ciplinares, e o que tem norteado estes diagnós-ticos são as listas de sintomas propostas pelosmanuais específicos já citados, como o DSM-IV, o DSM-IV TR e o CID-10 (ClassificaçãoInternacional das Doenças). Como a tríade di-agnóstica dos transtornos globais do desenvol-vimento se refere aos déficits de comportamen-to, interação social e linguagem, a comunicaçãoé um dos aspectos em que se baseiam as ob-servações clínicas necessárias ao diagnósticoe possíveis intervenções.

Muitas são as discussões na literatura a res-peito do autismo, do autismo de alto funciona-mento e da síndrome de Asperger: discute-se ofato do autismo ser uma patologia que abarca-ria desde as mais leves manifestações (estan-do aí o autismo de alto funcionamento e asíndrome de Asperger) até manifestações maisseveras; aborda-se a questão de o autismo seruma patologia diferenciada, classificando o au-tismo de alto funcionamento e a síndrome deAsperger como a mesma patologia; e ainda ahipótese de tratar-se de patologias diversas comsintomatologias comuns, mas com pontos diag-nósticos diferenciais.

Wing (1981, 1992) sugeriu a hipótese de sero autismo parte de um continuum ou spectrumde desordens que teria, como problema central,prejuízo intrínseco no desenvolvimento da inte-ração social recíproca e na linguagem, sendoque tais características variariam na tipologia ena severidade com que se manifestariam.

Perissinoto (2004) citou que a expressãoespectro autístico, já consagrada na prática clí-nica, reuniria os quadros de autismo leve, dealto e baixo funcionamento, os traços autísti-cos, o autismo clássico e a síndrome de Asper-ger, assumindo a função de diagnóstico iniciadasem que o clínico perca de vista a gravidade decada uma das manifestações atípicas e a buscapor diagnósticos precisos e norteadores de con-dutas terapêuticas.

Estudos mais recentes (VOLKMAR;COOK; POMEROY, 1999) sugeriram que oautismo de alto funcionamento poderia ser di-ferenciado da síndrome de Asperger com baseem seu histórico de desenvolvimento, históricofamiliar e comorbidades.

Howlin (2003), em pesquisa na qual fez umlevantamento dos estudos que comparavam oautismo de alto funcionamento e a síndrome deAsperger em 15 anos de literatura (entre 1985e 2000), em grandes bases de dados (MEDLI-NE e Psych-INFO), encontrou um total de 26artigos, sendo que os resultados destes artigosindicavam que os autistas de alto funcionamen-to apresentariam maiores déficits nas habilida-des sociais e de linguagem, e mais interessesbizarros, estereotipias e alterações no desen-volvimento inicial de linguagem. Em contrapar-tida, os indivíduos com síndrome de Aspergerapresentariam maior número de desordens depensamento, alterações motoras e associaçãode patologias psiquiátricas, apresentando tam-bém melhor desempenho em testes verbais (dememória verbal e de habilidades verbais), sen-do que não manifestariam problemas no desen-volvimento inicial da linguagem.

Habilidades comunicativas verbais

A comunicação seria um conceito observá-vel, amplo e de referência social. Poderia serrealizada por meio de códigos lingüísticos (fala,escrita, linguagem gestual) e não-lingüísticos(expressões fisionômicas, sorrisos, olhares, to-ques e “silêncios”) e envolve, no mínimo, duaspessoas, classificadas como emissor-receptorou como interlocutores, que trocariam entre siuma mensagem qualquer (SYDER, 1987).

A fala, que garantiria uma das formas de co-municação mais aceitas socialmente (comunica-ção verbal ou linguagem verbal), também seriaum conceito observável e referir-se-ia à exterio-rização do pensamento por meio do uso de sím-bolos verbais comuns entre as pessoas queestabelecem o processo de comunicação. A falaconstituir-se-ia, desta forma, como a manifesta-ção verbal da linguagem (LAHEY, 1988).

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Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

O processo de linguagem envolveria a re-presentação e a organização das experiênciasmentais que, quando codificadas por meio derepresentantes verbais, orais ou gráficos, cons-tituiriam a forma mais sofisticada de comuni-cação entre seres humanos (PERISSINOTO,2003).

Lahey (1988) definiu, como componentes dalinguagem verbal, três fatores - o conteúdo, aforma e o uso. O conteúdo, segundo o autor,refere-se ao conhecimento, às experenciações,e relações significativas e pessoais estabeleci-das e transmitidas por palavras ou frases (estárelacionado à parte semântica da linguagem).O componente forma abrange os aspectos queconstituiriam a estrutura, como a organizaçãodos sons de uma língua (fonologia) e suas re-gras (sintaxe). Finalmente, o componente usorefere-se aos aspectos funcionais da comuni-cação, isto é, à intenção do falante, o “para quê”seriam utilizadas as expressões lingüísticas. Ouso incorporaria todos os aspectos da lingua-gem, conforme ocorressem no contexto. Eleincluiria o propósito do falante, quer este fossedirecionado aos outros (informar, solicitar ouregular o comportamento) ou a si mesmo (racio-cinar, auto-regular). O uso também incluiria omodo como a linguagem seria adaptada paraamoldar as diferentes situações. Aspectos do usoda linguagem são denominados pragmática.

Estes três aspectos, para Lahey (1988), nãopoderiam ser dissociados, já que se inter-relacio-nariam de forma intrínseca e interdependente. Aalteração em um deles com certeza afetaria osoutros componentes, mas um destes poderia es-tar mais alterado que os demais. Ao fazer a inter-relação conteúdo/forma da linguagem verbal,tendo como objetivo determinada função (uso), ointerlocutor lançaria mão do que Lahey (1988)definiu como habilidades comunicativas verbais.

Na realidade, desde a descrição inicial doautismo, há um substancial número de pesqui-sas que identificam características particularesdos autistas e de outras desordens do espectroautístico em relação a desordens de linguagempré-lingüística, não-verbal e verbal. Passadasmais de três décadas de pesquisas sobre a com-petência comunicativa destes indivíduos, pode-

se ressaltar duas grandes linhas investigativas.Primeiramente, a ênfase das pesquisas em ana-lisar as funções comunicativas ou pragmáticasem detrimento de pesquisas que envolvam osaspectos estruturais, como o desenvolvimentogramatical e morfológico. Segundo, a ênfase emdesenvolver formas de avaliar estes déficits enão necessariamente em desenvolvê-los (ZIA-TAS; DURKIN; PRATT, 2003).

Em parte, isto se deveria ao fato de que asobservações de indivíduos autistas demonstra-riam claramente que a eficiência comunicativanão depende apenas da competência nas áreasde morfologia, sintaxe e semântica, mas tam-bém incluiria habilidades sociais como iniciar umdiscurso, responder a diversos interlocutores,lidar com tópicos de conversação variáveis,considerar pressuposições de ouvintes diferen-tes, bem como emitir e replicar as sutis pistaspara trocar turnos dialógicos (BISHOP; MO-GFORD, 2002).

Indivíduos com autismo de alto funcionamen-to e síndrome de Asperger exibiriam falhas emcomponentes da esfera pragmática da comuni-cação, por mais que falassem fluentemente –falhariam em reconhecer conotações para aspalavras ou em usar verbos que traduzissemestados mentais na fala espontânea (FRITH,1991; TAGER-FLUSBERG, 1992).

Klin (2000) defendeu a idéia de que os in-divíduos com boas habilidades verbais, comoos com síndrome de Asperger, quando sub-metidos a situações de testes apresentados deforma verbal e que exigissem respostas ver-bais (como os testes utilizados pela teoria damente, por exemplo), utilizariam suas habili-dades verbais com eficiência e demonstrari-am um nível de desempenho satisfatório;porém, quando estas mesmas habilidades fos-sem exigidas em situações da vida real, elesapresentariam dificuldade de generalização.Isto ocorreria porque, em situações naturais,dificilmente seria apresentado ao indivíduo umproblema de forma tão diretiva – normalmen-te as situações de interação social promoveri-am a necessidade de resolução de problemassem que estes fossem colocados tão claramen-te. Desta forma, situações naturais exigiriam

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Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...

a análise de diversos elementos sociais do con-texto e incluiriam a necessidade de uma deci-são por parte do indivíduo.

Programas de intervenção em casosde autismo de alto funcionamentoe síndrome de Asperger

Klin (2003) acredita que qualquer interven-ção em indivíduos com síndrome de Aspergerdeve ter como prioridade o fornecimento de si-tuações naturais. O trabalho com a comunica-ção deveria abranger a comunicação não-verbal(expressões faciais, uso de gestos), a lingua-gem não literal (uso de metáforas, ironias, ab-surdos, humor), traços suprasegmentais da fala(padrões de inflexão e modulação vocal), prag-mática (troca de turnos, sensibilidade sobre asreações do interlocutor) e, finalmente, conteú-do e contingência da conversação. Atençãoespecial deve ser dada quanto à perseveraçãonos mesmos tópicos de conversação, nas habi-lidades metalingüísticas e na reciprocidade co-municativa na conversação. Os interessesespecíficos que muitos autistas apresentam emum único assunto ou tópico de conversaçãodeveriam ser utilizados na criação de situaçõessociais em que fosse adequado usá-los.

Rhea (2003) fez um estudo revisando pro-gramas de intervenção aplicados em criançase jovens com autismo de alto funcionamento esíndrome de Asperger desde a idade pré-esco-lar até a adolescência. Crianças entre 3 e 5 anos(idade pré-escolar) com desenvolvimento nor-mal, desenvolveriam nesta fase uma gama dehabilidades de interação social em decorrênciados estímulos a ela fornecidos em contextos deinteração lúdicos. Por estas razões, programasde desenvolvimento social e de comunicaçãono período pré-escolar utilizariam tipicamenteas brincadeiras como contexto primário, sem-pre conduzidas por um adulto.

Durante a idade escolar, a criança come-çaria a usar a linguagem para adquirir novasinformações sobre o ambiente que a cerca esobre fatos ou eventos com os quais ela, ne-cessariamente, não teve contato direto ou ex-

periência. Esta seria a época em que criançascom autismo de alto funcionamento e síndro-me de Asperger se sentiriam mais isoladas e,por isso, os programas de intervenção nestafase deveriam abranger diversos locais de usonatural das habilidades comunicativas verbais,utilizando estratégias com mediação feita poradultos ou pares. Nestes tipos de procedimen-to, seriam utilizadas instruções diretas com re-forços naturais e estratégias com tempo de es-pera – utilizadas de forma combinada ouisolada. Uma estratégia eficiente nesta faseseria o uso de histórias, utilizadas para abor-dar e/ou reduzir comportamentos que atrapa-lhassem a interação social e para desenvolverhabilidades narrativas. Poderiam ser propos-tas situações-problema e, logo após, o adultoforneceria uma resposta aceitável ou espera-ria que a criança o fizesse; em seguida, ha-vendo a mediação do adulto, esta resposta se-ria avaliada em sua adequação. Este tipo deestratégia poderia ser usado como forma dereduzir a ansiedade de crianças com autismode alto funcionamento e síndrome de Asper-ger em situações que ocorreriam em sala deaula ou em outros contextos comunicativos(NORRIS; DATILLO, 1999).

Na adolescência, os jovens se engajariamna interação social simplesmente para conver-sar, isto é, utilizariam a linguagem como umcanal para interação e aceitação social. Comoesta seria a dificuldade específica da síndromede Asperger, adolescentes com estas patologi-as tenderiam a se sentir isolados deste proces-so, o que geraria sentimentos de impotência efrustração (KLIN, 2003).

Estas limitações não afetariam somente acapacidade de fazer amigos, mas também limi-tariam oportunidades nas quais as habilidadesespecíficas dos adolescentes com autismo de altofuncionamento e síndrome de Asperger pudes-sem ser utilizadas funcionalmente. Sendo assim,para estes adolescentes, a intervenção direcio-nar-se-ia ao desenvolvimento de estratégias emque eles se engajassem e estendessem suas con-versações com os outros, utilizando habilidadescomunicativas verbais como a solicitação de in-formação e as habilidades narrativas.

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Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

Portanto, as intervenções com crianças ejovens com autismo de alto funcionamento esíndrome de Asperger devem abordar as habi-lidades comunicativas; como estas implicam emhabilidades sociais, devem ser o foco inicial deum programa de intervenção individualizado.Porém, para trabalhar as habilidades comuni-cativas verbais de forma adequada, haverianecessidade de se fazer, inicialmente, um le-vantamento de quais habilidades o indivíduo utili-zaria, de que forma e com que freqüência(RHEA, 2003).

Habilidades narrativo-discursivas noautismo de alto funcionamento e nasíndrome de Asperger

É por meio da narrativa que as pessoas po-dem definir a si mesmas e aos outros, definirpapéis diferentes a interlocutores/personagense atribuir-lhes emoções, sentimentos e idéias.Reviver experiências por meio da representa-ção narrativa seria uma importante atividadesociocultural que possibilitaria a organização deexperiência e eventos muitas vezes descone-xos e a conseqüente reflexão sobre eles. Nar-rar seria reconfigurar os acontecimentos eintegrá-los nas histórias de dinâmica pessoal ecultural de cada indivíduo, quanto ao passado,ao presente e ao futuro. Considerando estasfunções, é importante deixar claro que a difi-culdade em formular narrativas limitaria umarica forma de interação e afetaria a questãosócio-emocional e a competência comunicati-va (LOSH; CAPPS, 2003).

No nível pragmático, a competência narra-tiva requer o aprendizado das convenções paraintroduzir a narrativa, suprir elementos contex-tuais necessários e fornecer informações refe-renciais, além de monitorar a compreensão doouvinte e manter o envolvimento, tendo a pers-pectiva de não descaracterizar os eventos nar-rados (DENNIS; LAZENBY; LOCKYER,2001; NORBURY; BISHOP, 2003; TAGER-FLUSBERG, 1995).

A habilidade de narrar eventos advém dacapacidade causal e explanatória e também da

aquisição das estruturas sintáticas e morfológi-cas para realizar estas marcações temporais ecausais, assim como da capacidade de atribuiremoções, pensamentos, ações e intenções, einterpretá-las de acordo com as expectativasnormativas. Portanto, as habilidades narrativasenvolveriam aspectos sócio-emocionais, cogni-tivos e lingüísticos e, por isso, a análise da nar-rativa representaria um meio rico de investigaçãodas desordens do espectro autístico, uma vezque estes indivíduos tenderiam a demonstrar ashabilidades narrativas menos freqüentemente nainteração conversacional do que outras crian-ças, produziriam narrativas mais pobres, commenos complexidade e coerência (ZIATAS;DURKIN; PRATT, 2003).

Losh e Capps (2003) realizaram estudo noqual examinaram as habilidades narrativas decrianças com autismo de alto funcionamento ousíndrome de Asperger (28 crianças no total), ede crianças com desenvolvimento normal de lin-guagem (22 crianças). A avaliação ocorreu emdois contextos discursivos diferentes: narrati-vas em livros de histórias e narrativas de expe-riências pessoais. Ambos os grupos eramcompostos de crianças entre 8 e 14 anos. Com-paradas com as crianças com desenvolvimentonormal de linguagem, o grupo de crianças comautismo de alto funcionamento ou síndrome deAsperger teve performance relativamente boano contexto de narrativas de livro de histórias(era solicitado que a criança relatasse a histó-ria depois de lida), mas exibiu dificuldade emnarrar experiências pessoais com tantos deta-lhes e sofisticação quanto o grupo de controle.Ademais, crianças com autismo de alto funcio-namento ou síndrome de Asperger demonstra-ram dificuldade em construir relações decausalidade e organização temporal em ambosos contextos de narrativa estudados.

A importância do adulto na facilitação do pro-cesso de comunicação é citada por Perissinoto(2003), que afirmou que cabe ao interlocutor umpapel importante na relação entre os processose produtos da linguagem dos indivíduos do es-pectro autístico, ao identificar e salientar pistasde informação e buscar sua coesão em um con-texto. Este papel facilitador e de suporte no de-

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senvolvimento de habilidades comunicativas per-mitiria ajustes na compreensão do mundo físicoe social por parte destes indivíduos.

Segundo Parker (1996), as recomendaçõesgerais para intervenção e desenvolvimento dehabilidades narrativas e discursivas em indivídu-os autistas de alto funcionamento e síndrome deAsperger são: minimizar o uso de instruções ouperguntas curtas porque favoreceriam respos-tas também curtas (enunciados pouco extensosnão favorecem a elaboração de narrativas); au-mentar o uso de comentários (a medida que asinstruções e perguntas diretas vão diminuindo,crescem os comentários); utilizar estratégias comtempo de espera (isto é, se solicitar uma infor-mação, esperar por ela ou então fazer a solicita-ção de diversas formas até que se obtenha res-posta); promover um ambiente comunicativofavorável e aumentar o uso das habilidades co-municativas desejadas, utilizando-as de forma alevar o indivíduo a produzi-las; utilizar abundan-temente gestos, expressões faciais e variaçõesentonacionais, pois elas direcionariam a atençãodo interlocutor; utilizar a modelação ou expan-são das produções verbais do indivíduo (isto é,se a resposta for considerada inapropriada ouincorreta, não a corrigir diretamente, mas refa-zer a produção, por exemplo e, em seguida, pro-mover situações similares para que o indivíduopossa reproduzi-las); utilizar reforços para pro-mover a produção verbal espontânea e desen-volver o uso de habilidade comunicativas ver-bais (poderia ser um reforço verbal ou social);por fim, fazer das sessões algo divertido, demons-trando prazer na voz, no sorriso e mostrando queas situações de comunicação são positivas e,para isso, o desenvolvimento de estratégias deveser realizado de forma programada a utilizar aimaginação, a criatividade e a diversidade.

Medidas de produção verbal e efi-cácia comunicativa

A extensão dos enunciados como medidapara analisar o desenvolvimento de linguagemvem sendo utilizada há muito tempo na literatu-ra (BROWN, 1973). Levando em considera-ção que a idade da criança não seria um indica-

dor adequado de seu desenvolvimento lingüísti-co, Brown (1973) propôs uma medida de de-senvolvimento baseada na média de palavrasempregadas no enunciado (MLU – mean len-ght of utterance), embora diferentes pesquisa-dores utilizem outros parâmetros lingüísticos ouformas adaptadas do MLU (BRANDÃO, 1985;MAYRINK, 1975).

Mayrink (1975), em um estudo similar ao re-alizado por Brown, mas sobre o período inicialda aquisição da língua portuguesa, salientou aimportância de se lembrar que a medida do MLUfoi feita para a língua inglesa, que é pouco flexi-onada, ao contrário do português. Por isso, aautora citou o uso de uma interpretação mais rica,na qual a análise não fosse simplesmente distri-bucional, mas considerasse o conhecimento lin-güístico da criança em direção ao modelo adultodo português (a autora defendia que as fases dodesenvolvimento eram constantes) e o contextoglobal em que ocorria a interação verbal com acriança. Como contexto global entendia-se ocontexto lingüístico (fala dirigida pelo adulto àcriança e vice-versa) e extra-lingüístico (presen-ça de objetos, pessoas, observações do compor-tamento da criança, uso de gestos e atividadesenvolvidas no contexto da interação).

Em estudo sobre a análise funcional do am-biente lingüístico de crianças normais e comdeficiência mental, Brandão (1985) citou a im-portância do trabalho de Brown na medida doMLU, considerando esta medida eficaz e sen-sível ao objetivo de descrever o desenvolvimentode linguagem e identificar estágios de desen-volvimento; porém, a autora utilizou outras me-didas auxiliares para verificar a qualidade daprodução verbal, como o número de palavras ede frases (enunciados verbais), o número deverbos e a complexidade de fala (número deverbos dividido pelo número de enunciados ver-bais) em determinada unidade de tempo (nocaso, o minuto).

Tendo por base os dados disponíveis em li-teratura, na época, sobre a comunicação decrianças com autismo de alto funcionamento esíndrome de Asperger, Lopes (2000) realizouuma pesquisa com o objetivo de descrever eanalisar as habilidades comunicativas verbais

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de duas crianças, uma delas com diagnósticode autismo de alto funcionamento e a outra como de síndrome de Asperger, em interação comum adulto-interlocutor. O desenvolvimento me-todológico desta pesquisa possibilitou a descri-ção de quatro categorias de habilidadescomunicativas verbais (vide anexo). Os resul-tados demonstraram significante uso do meioverbal de comunicação tanto pelo adulto quan-to pelos sujeitos, sendo que, de forma geral, ossujeitos e o adulto apresentaram perfil comuni-cativo homogêneo quantitativamente, emboratenham sido constatadas diferenças no tocanteà extensão e complexidade dos enunciados ver-bais. Estes, embora fossem similares em ter-mos de funcionalidade, apresentaram-se maislongos e estruturados nas habilidades comuni-cativas utilizadas pelos adultos do que nas dossujeitos. Importante ressaltar que, embora amaioria dos enunciados verbais dos sujeitos fos-se menos extensa e complexa que os do adulto,essa extensão e complexidade apresentaram-se de forma variável, uma vez que cada habili-dade comunicativa verbal poderia ser compostade um ou vários enunciados verbais.

Partindo deste pressuposto, determinadas ha-bilidades comunicativas verbais utilizadas peloadulto de forma isolada ou encadeadas em algu-mas situações poderiam favorecer o aparecimen-to de enunciados mais extensos e complexos nosindivíduos do que outras, assim como poderiamdificultar este aparecimento em várias situações.O aumento da extensão média dos enunciados éimportante, quando associado a um trabalho comas habilidades comunicativas verbais, porque pro-move uma maior complexidade e funcionalidadeda produção verbal e, conseqüentemente, bene-ficia o uso das habilidades narrativo-discursivasde forma geral.

Objetivo

O trabalho aqui exposto foi desenvolvidocom objetivo de descrever e analisar estraté-gias terapêuticas utilizadas em ambientes clí-nicos e educacionais para trabalhar habilida-des narrativo-discursivas em crianças comautismo de alto funcionamento e síndrome de

Asperger, e verificar a relação do desenvolvi-mento destas estratégias com a eficácia no usodas demais habilidades comunicativas e como aumento de medidas de produção verbal,como a complexidade de fala e a extensãomédia dos enunciados.

Método

Seleção dos participantes – Os partici-pantes foram indicados por profissionais dasescolas que freqüentavam. A pesquisadora,então, realizou contato prévio com os pais dosparticipantes, havendo a anuência dos respon-sáveis e a apresentação do termo de consenti-mento livre e esclarecido da pesquisa. Todosos procedimentos deste estudo foram aprova-dos pela Comissão de Ética em Pesquisa daUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Descrição dos Participantes – Participaramdeste estudo três crianças, duas com diagnósticode autismo de alto funcionamento e uma com di-agnóstico de síndrome de Asperger realizado poruma equipe clínica de uma instituição educacionalpara autistas. Na época da coleta de dados osparticipantes da pesquisa tinham 7 anos de idade.

Local – Este estudo foi realizado em salade atendimento fonoaudiológico no interior deSão Paulo. Estavam dispostos nesta sala osseguintes móveis: uma escrivaninha com trêscadeiras para adulto, uma mesa infantil com doisbanquinhos, um espelho de parede disposto naparte de cima desta mesa infantil, um armáriofechado com brinquedos, jogos e livros infantis.

Materiais e equipamentos utilizados –Foram utilizados uma filmadora (câmera de ví-deo JVC, handcam), tripé para sustentação dacâmera em local fixo, fitas cassete para grava-ção, livros infantis, brinquedos e jogos pedagó-gicos previamente selecionados, folhas sulfitese canetas para registro.

Procedimento de coleta de dados – Osdados foram coletados por meio de gravaçõesem vídeo de sessões de interação de cada indiví-duo, separadamente, com a pesquisadora, e estasomente propunha as estratégias selecionadas.

Cada gravação teve a duração aproximadade trinta minutos. No total, foram realizadas cin-

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co filmagens de cada indivíduo, com intervalosvariando em média uma semana entre as gra-vações. Foram contabilizados, ao final da análi-se, 450 minutos de gravações em vídeo,transcritas e analisadas pela própria pesquisa-dora, tendo sido 30% destas submetidas a cál-culo de fidedignidade com média final defidedignidade variando entre 91,81% e 94,42%.

Procedimento de análise dos dados –Após as gravações, cada sessão era transcritaliteralmente pela pesquisadora e, em seguida,os dados de cada transcrição eram transferi-dos para um protocolo individual, para análisedas habilidades comunicativas verbais e verifi-cação da extensão média dos enunciados e dacomplexidade de fala dos participantes. A aná-lise dos enunciados verbais foi feita em deter-minada unidade de tempo. Definiu-se comounidade de tempo, com base na literatura(BRANDÃO, 1985; MAYRINK, 1975), a ado-ção da análise minuto a minuto e a utilizaçãodas seguintes medidas de análise:– Produção verbal (número de unidades ver-

bais por minuto): segundo Brandão (1985),unidade verbal (ou enunciado) pode ser en-tendida como um conjunto de palavras, de-lineadas por inflexão e pausas respiratóriasque, geralmente, correspondem, na escrita,às pausas demarcadas pelos sinais conven-cionais de ponto final, interrogação, excla-mação e reticências. Exemplo: “Vamos lá?!Já está no hora! Do que você quer brincarhoje?” Neste segmento há três enunciadosverbais (Enunciado 1: “Vamos lá, D.?!”;enunciado 2: “Já está na hora!”; enunciado3: “Do que você quer brincar hoje?”).

– Número de palavras por minuto: segundoBrandão (1985), são consideradas palavras(ou morfemas) as vocalizações constituídaspor mais de uma sílaba, que tenham refe-rentes listados em dicionário (linguagemampla) ou que sejam compartilhados pelacomunidade imediata ou específica (dicio-nário de família). Ex: “deitá” significando“travesseiro” porque no ambiente familiar dacriança isto é utilizado e aceito. Uma sílabaou vocalização pode ser considerada pala-vra quando tem a natureza de poder ser

entendida por alguém que a ouve. Produ-ções de uma sílaba são consideradas pala-vras somente quando forem pronomespessoais, relativos e possessivos, advérbiosde afirmação ou negação, numerais e, oca-sionalmente, alguns verbos (ex: o verbo ser).Exemplo: no enunciado “Vamos lá?!” há duaspalavras. Se, em um minuto de conversa-ção, um dos interlocutores produz os trêsenunciados já citados como exemplo (“Va-mos lá, D.?!”, “Já está na hora!” e “Do quevocê quer brincar hoje?”), este interlocutorterá produzido doze palavras por minuto.

– Extensão média do enunciado: segundoMayrink (1975) e Brandão (1985), a ex-tensão média do enunciado é constituídapela média de palavras (morfemas) sobreo total de unidades verbais (enunciados)definidas minuto a minuto. Portanto, estevalor é calculado de dividindo-se o númerototal de palavras pelo número de enuncia-dos (produção verbal). Exemplo: seguindoo exemplo utilizado anteriormente, se hádoze palavras produzidas por minuto e trêsenunciados, a extensão média do enuncia-do produzida por este interlocutor é quatro.

– Complexidade de fala: segundo Brandão(1985), a complexidade de fala seria obtidacalculando-se a média por minuto do nú-mero de verbos utilizados por unidade ver-bal – sendo, portanto, a razão entre o totalde verbos por minuto e o total de unidadesverbais. Neste caso, seria necessária a con-tagem do número de verbos por minutocomo medida auxiliar. Exemplo: usando ostrês enunciados produzidos por um interlo-cutor (“Vamos lá, D.?!”, “Já está na hora!”e “Do que você quer brincar hoje?”), hou-ve uso de quatro verbos (vamos, está, quer,brincar). Se há quatro verbos em três enun-ciados, a complexidade de fala é de 1,33(número de verbos por minuto dividido pelonúmero de enunciados).

Resultados e discussão

Inicialmente, serão apresentadas as tabelascom os resultados brutos do estudo, obtidos com

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os três participantes. Os dados apresentadosnestas tabelas foram obtidos no total de sessõesrealizadas com cada indivíduo, sendo o partici-pante 1 (P1) a criança com diagnóstico de sín-drome de Asperger e os participantes 2 e 3 (P2e P3) as crianças com diagnóstico de autismo dealto funcionamento. Para a tabela 1 foram con-siderados os maiores e menores valores de cadauma das medidas calculadas no total de sessões(cinco para cada um dos participantes).

A tabela 1 foi elaborada no intuito de se bus-car uma relação entre os valores (maiores e me-nores medidas) obtidos pelo adulto (A) com ostrês participantes (P), embora não seja apenas arelação de A e P a responsável pelo desempenhodestes. Notou-se que o participante 1 teve o me-nor valor médio de produção verbal (PV), o me-nor número de palavras (PAL) e o menor númerode verbos (V), mas, em contrapartida, tambémfoi ele que alcançou, entre todas as sessões, o

maior valor de número de palavras (PAL), com-plexidade de fala (CF) e extensão média dos enun-ciados (EME). Este fato reforça a suposição deque são as situações propostas ou as habilidadescomunicativas verbais utilizadas que mais influ-enciam na variação desses tipos de medida (vistoque o desempenho do indivíduo se mostra variá-vel e ele se mostra capaz de alcançar desde omenor até o maior valor de determinada medida).O adulto, em interação com o participante 1, tam-bém apresentou o maior e o menor valor médiode extensão média dos enunciados.

O participante 2 foi o que apresentou os mai-ores valores médios de produção verbal (PV) enúmero de verbos (V) e o menor valor médio decomplexidade de fala (CF). Foi com ele que oadulto apresentou também os maiores valoresde produção verbal (PV), número de verbos (V),número de palavras (PAL) e o menor valor mé-dio de extensão média dos enunciados (EME).

Obs: Tais medidas referem-se a valores médios de: PV – produções verbais (nº enunciados/minuto); PAL – nºde palavras / minuto; V – nº verbos /minuto; EME – extensão média dos enunciados; CF – complexidade de fala.Os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior e o menor valor da medida indicada.

Tabela 1 - Valores médios das medidas utilizadas na parte 1 do estudo, demonstrados pelo adulto epelos três participantes (P1, P2 e P3), separadamente.

Já o participante 3 foi o que apresentou omenor valor médio de extensão média dos enun-ciados (EME), mas também o maior valor decomplexidade de fala (CF). O adulto, em inte-ração com o participante 3, apresentou os me-nores valores de produção verbal (PV), númerode palavras (PAL), número de verbos (V) ecomplexidade de fala (CF).

Estes dados salientam que não há como fa-zer uma relação instantânea entre estas medi-

das, sejam comparações dos indivíduos comeles mesmos ou dos indivíduos com o adulto.Por exemplo, não se pode afirmar que um in-divíduo terá maior complexidade de fala ou ex-tensão média dos enunciados se apresentar omaior número de palavras. Em termos de atua-ção com a linguagem, este fato é importantepara mostrar que, na avaliação de fala de umindivíduo, não se pode considerar uma únicamedida de desempenho.

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As tabelas 2 e 3 a seguir mostram os valo-res absolutos da extensão média dos enuncia-dos e da complexidade de fala (EME e CF),para que se possa observar o desempenho decada participante por sessão e se possa relaci-onar este desempenho com o desempenho ge-ral dos indivíduos apresentado na tabela 1

Pela tabela 2, constata-se que os maio-res valores de EME foram 10,0 (participante

1), 6,6 (participante 2) e 9,33 (participante 3),e os menores valores de EME foram de 1,0(para participantes 1 e 2) e 0,4 (para partici-pante 3). Realmente, os dados por sessãorefletem o resultado geral que já havia sidoconstatado: o de que o participante 1 era oque havia alcançado o maior valor de EME eo participante 3 o que havia alcançado o me-nor valor de EME.

Obs: Sendo EME a extensão média dos enunciados, os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior eo menor valor desta.

Tabela 2 – Valores absolutos da EME dos três participantes, separadamente.

De forma mais específica, os valores de EMEpara o participante 1 variaram entre 1 e 10, parao participante 2 entre 1 e 6,6, e para o partici-pante 3 entre 0,5 e 9,33. Em estudo realizado porJakubovicz (2002), em que foram levantadas asmédias dos valores da frase (MVF) de 45 crian-ças com desenvolvimento normal de linguagem,na faixa etária de 2 a 7 anos, os resultados de-monstraram ligeira variação: com 2 anos de ida-de a MVF variou entre 3,2 e 4,2; com 3 anos avariação ficou entre 4,4 e 6,7; com 4 anos entre6,4 e 7,7; com 5 anos entre 6,8 e 8,0; com 6 anosa variação foi entre 7 e 8,5 e, com 7 anos, entre8,2 e 11,0. Comparando tais resultados de varia-ção de MVF com a variação da EME consegui-da neste estudo observamos, como primeiro fatorelevante, que a gama de variação das crianças

com autismo de alto funcionamento e síndromede Asperger desta pesquisa apresentou-se mai-or do que a de crianças com desenvolvimentonormal de linguagem. O segundo fato relevanteé que os participantes 1 e 3 tiveram desempenhoequivalente ao de crianças com 7 anos de idade,e o participante 2 teve desempenho equivalenteao de crianças com 3 anos de idade (do referidopor JAKUBOVIZ, 2002).

Pela tabela 3, observa-se que os maiores valo-res de CF foram 3,0 (participante 1), 2,66 (partici-pante 2) e 1,75 (participante 3), e os menores valoresde CF foram 0,16 (participante 1), 0,06 (participan-te 2) e 0,1 (participante 3). Estes dados refletem oque já havia sido observado pela análise da tabela2, que mostra que o maior valor de CF foi alcança-do pelo P1 e o menor valor de CF pelo P2.

Obs: Sendo CF a complexidade de fala, os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior e o menor valor desta.

Tabela 3 – Valores absolutos da CF dos três participantes, separadamente.

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Comparando-se os resultados de ambas astabelas (tabelas 2 e 3), nota-se que não sepode correlacionar o fato dos maiores valo-res de EME serem proporcionais e garanti-rem maior complexidade de fala (CF), umavez que a CF é conseguida pela presença euso de verbos em enunciados e a medida EMErefere-se à extensão de enunciados (sejameles com ou sem verbos). Isto permite con-cluir que, na avaliação do desempenho co-municativo, ambas as medidas deverão serutilizadas.

Considernando-se todas as habilidades co-municativas verbais deste estudo, além de tersido enfocado como elas favoreceriam maio-res valores de EME, atenção especial foi dadaàs habilidades narrativo-discursivas, por seacreditar que estas seriam mais utilizadasquanto maior fosse a produção verbal (PV)ou a complexidade de fala (CF). Portanto,quanto ao aparecimento de habilidades nar-rativo-discursivas (HND), a análise em ter-mos qualitativos permitiu observar (tabela 4)que todas foram utilizadas, mas que a maio-ria delas foi de relato de história ou aconteci-mento (RH) e de argumentação (ARG), que

surgiram especialmente em situações de con-versa espontânea e em atividades nas quaiso adulto, enquanto em atividade dialógica comos participantes, solicitava informações (SI)ou proporcionava situações em que a argu-mentação (ARG) era requerida claramenteaos participantes. A HND de reprodução dehistórias (RPH) apareceu em menor quanti-dade, em situação em que o adulto solicitavaque os participantes reproduzissem determi-nada história, sendo que estes se atinham arealmente reproduzi-las (conforme solicitado).A habilidade de interpretação de histórias(IH) só surgiu em seguida a de reproduçãode histórias (RPH), quando o adulto solicita-va informações diretas aos participantes so-bre o tema após a reprodução. Como resul-tado, no total de HND produzidas por cadaparticipante, o P1 produziu 16 HND, o P2 15e o P3 produziu 17 HND. Embora a diferen-ça não tenha sido significativa, pode-se veri-ficar uma tendência no fato de ser o P3 queproduziu mais HND e de ter sido ele o queapresentou, na análise geral, maior comple-xidade de fala (CF) e não a maior extensãomédia dos enunciados (EME).

Obs: RH – relato de histórias; RPH – reprodução de histórias; IH – interpretação de histórias e ARG –argumentação.

Tabela 4 – Habilidades narrativo-discursivas (HND) utilizadas pelos três participantes,separadamente.

Em seguida à análise dos menores e dos mai-ores valores de cada medida obtida com cadaparticipante, a pesquisadora realizou a tarefade verificar, no registro cursivo, exatamente nosminutos em que estes valores eram alcança-dos, quais as atividades que estavam sendo re-alizadas com os indivíduos e que habilidadesnarrativo-discursivas (HND) eram favorecidas

pelas estratégias propostas. Desta forma, seráapresentado a seguir o quadro 1, com a sínte-se geral das estratégias utilizadas.

O quadro a seguir (quadro 2) mostra a des-crição de cada uma das estratégias que foramfavorecedoras do desenvolvimento de habilida-des narrativo-discursivas, extensão média dosenunciados e complexidade de fala.

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De forma geral, a descrição destas estraté-gias é útil na estruturação de atividades utiliza-das em situações de interação natural eespontânea ou em situações educacionais pla-nejadas para ampliar o repertório de interesses,o uso de habilidades comunicativas verbais e,especificamente, de habilidades narrativas, comojá apontavam Klin (2003) e Rhea (2003).

Conclusão

A pesquisa e a experiência clínica e educaci-onal aumentam a compreensão do autismo de

alto funcionamento e da síndrome de Asperger,e oferecem potencial para o aperfeiçoamento dasabordagens terapêuticas e demais intervenções.Todavia, muitas questões complexas continuamsem resposta e inúmeras formas de intervençãopermanecem sem ter sido exploradas.

A transcrição de amostras de linguagem pro-porciona uma descrição muito clara da lingua-gem que o indivíduo utiliza normalmente, epermite realizar a análise pormenorizada de to-das as suas dimensões e processos. A produ-ção verbal espontânea é a estratégia ouprocedimento de avaliação que oferece uma

Quadro 1 – Estratégias utilizadas com os três participantes, que favoreceriam (?) oudesfavoreceriam (?) as habilidades narrativo-discursivas (HND), a extensão médiados enunciados (EME) e a complexidade de fala (CF).

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descrição mais exata do nível “real” do desen-volvimento lingüístico, ou seja, do tipo de lin-guagem que o indivíduo utiliza habitualmente.Sua maior importância reside no fato de que,uma vez transcrita no papel, permite uma gran-de variedade de análises (fonológica, sintática,semântica, pragmática, etc); além disso, dimi-nui o risco de interpretações subjetivas ou per-

da de informações e, por outro lado, pode seranalisada por vários profissionais – o que, semdúvida, auxilia a realização de estudos e análiseinterdisciplinar.

No caso da utilização de vídeos, como ocor-reu na pesquisa aqui apresentada, deve-se re-produzir as imagens da situação interativa, istoé, o registro deve incluir não só as produções

Quadro 2 – Descrição de estratégias utilizadas com os três participantes, que favoreceriam ashabilidades narrativo-discursivas (HND), a extensão média dos enunciados (EME) e acomplexidade de fala (CF).

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do indivíduo, mas também as do terapeuta ouavaliador e de todos os elementos verbais e não-verbais que determinam o significado ou a in-tencionalidade comunicativa.

De forma geral, ficou clara a importância deum ambiente comunicativo favorável e estimu-lador, assim como das atividades programadas esituações estruturadas. O adulto-interlocutor,quando se coloca na posição de mediador e mo-delo, oferecendo uma gama variada de habilida-des comunicativas verbais (HCV), deve partirdo pressuposto de que há sempre e em qualquerinteração, com qualquer indivíduo, o princípio dareciprocidade comunicativa. A utilização de umagama variada de HCV pelo adulto favoreceu ouso de uma maior variabilidade das HCV porparte dos participantes da pesquisa. O achadomais relevante é, sem dúvida, o da importânciado adulto-interlocutor fornecer apoio e suporteconstituído de pistas adicionais ao indivíduo, au-xiliando-o na compreensão de determinadas es-tratégias, com exemplificações e demonstraçõesconcretas. Para isto, é necessário que o adultoesteja atento a toda e qualquer pista do indivíduoe, também, dos interesses específicos e das situ-

ações de vida diária (ambiente natural) deles(como rotina escolar, social, etc).

A habilidade de narrar eventos advém dacapacidade causal e explanatória e também daaquisição das estruturas sintáticas para realizarmarcações temporais e causais, assim como dacapacidade de atribuir emoções, pensamentos,ações e intenções e interpretá-las de acordocom as expectativas normativas. Portanto, ashabilidades narrativas envolvem aspectos só-cio-emocionais, cognitivos e lingüísticos e, porisso, a análise da narrativa representa um meiorico de investigação de desordens como o au-tismo de alto funcionamento e a síndrome deAsperger, uma vez que tendem a utilizar as ha-bilidades narrativas menos freqüentemente doque as outras pessoas e produzem narrativasmais pobres, com menos complexidade e coe-rência. Nesta pesquisa, notou-se menor uso dehabilidades narrativo-discursivas com menorcomplexidade pelos participantes do que peloadulto; porém, demonstrou-se que, se o traba-lho for direcionado a ampliar a extensão médiados enunciados, os resultados se estenderão àprodução de narrativas mais complexas.

REFERÊNCIAS

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Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida

ANEXO

Descrição das habilidades comunicativas verbais (LOPES, 2000)

HABILIDADES DIALÓGICAS (HD). Aquelas que envolvem a troca de informações com conteúdos variados,obedecendo às regras sociais de estabelecimento de diálogos. São elas:Início de turno (IT). Habilidade em iniciar um diálogo, quando ainda nenhum assunto foi abordado, comexceção dos cumprimentos sociais convencionais. Ex: um interlocutor diz ao outro Vamos brincar de bola?.Manutenção de diálogo (MD). Habilidade em manter um tópico de conversação proposto pelo interlocutor(atendo-se ao contexto) ou de tentar focalizar a atenção do interlocutor em determinado tópico já iniciado(incluem-se aqui recursos como a repetição de parte de um enunciado para sua posterior continuidade,evitando a quebra do diálogo). Ex: quando um interlocutor diz Vamos brincar de bola? e o outro respondeDe bola? Tudo bem, mas só se for de futebol!.Inserção de novos tópicos no diálogo (NT). Habilidade em sugerir, dentro de um diálogo, novos tópicos deconversação. Ex: quando estão jogando futebol, um interlocutor diz ao outro Quem será que vai ganhar oCampeonato Brasileiro? ou quando se está dialogando sobre um assunto e o interlocutor fala Você assistiuBom Dia SP hoje?.Organização dialógica seqüencial (OS). Habilidade em respeitar as convenções de organização sequencialdas conversações, para preenchimento de turno dialógico, através de recursos como:1. Comentários (OS(CM)) – emissões verbais utilizadas para identificar ou descrever objetos, pessoas ou

ações sem outra função que não a de partilhar a informação com o interlocutor. Tais emissões podem seconstituir de enunciados verbais completos ou vocalizações (incluindo onomatopéias ou músicas). Ex:um interlocutor fala Este carro é um fusca e imita o som do carro.

2. Respostas diretas (OS(RD)) – quando, após uma indagação direta ou indiretamente formulada pelointerlocutor, há a presença de uma resposta verbal contextual ou de atos motores (acompanhados deverbalizações). Ex: um interlocutor solicita Você pode pegar a caneta para mim? e o outro fala Tá aquisua caneta!, ao mesmo tempo que a pega e devolve ao outro.

3. Imitação (OS(I)) – quando, para preencher um turno do diálogo, há a repetição integral da fala dointerlocutor ou de alguma outra emissão verbal relacionada ao assunto e evocada pelo diálogo. Ex: uminterlocutor fala Eu acho que hoje eu quero brincar de bola e o outro responde Eu acho que eu querobrincar de bola.

4. Feedback ao interlocutor (OS(FI)) – composto de enunciados ou expressões verbais que indicamapenas atenção à fala do outro, tendo o intuito de reforço ou correção. Ex: quando um interlocutor estáfalando e o outro exclama Hã, hã ou Certo, certo.. ou Fala mais alto!.

Reparação de falhas (RF). Quando há a repetição integral ou em parte de uma emissão verbal, para correçãode algum erro de pronúncia ou formulação em si ou no outro. Ex: um interlocutor está falando Ontem, eu fuiao paque, quer dizer, ao parque.Variação de papéis (VP). Quando há utilização de formas verbais lúdicas que indiquem a emissão de umoutro falante não presente, real ou fictício. Ex: ao contar uma história que aconteceu em casa, um interlocutordiz Daí, minha mãe falou: - Menino, como você está sujo! ou, ao brincar de fantoche, um dos interlocutoresfala no lugar do boneco.Rotina social (RS). Uso de emissões verbais estereotipadas e socialmente adotadas no início ou final dasinterações sociais, tais como cumprimentos, agradecimentos e outras emissões de função fática. Ex: Oi, tudobem? ou Tchau, até amanhã!.Expressão de sentimentos (ES). Emissões verbais cuja função é a de expressar sentimentos como protesto,surpresa, agrado, desagrado ou qualquer outra reação emocional. Ex: um interlocutor diz, ao final de um jogoAdorei brincar com este jogo! É muito legal!

HABILIDADES DE REGULAÇÃO (HR). Emissões verbais cuja função é regular o ambiente comunicacional,o seu próprio comportamento comunicativo ou o do interlocutor.Auto-regulatória (AR). Emissões verbais utilizadas para controlar verbalmente sua própria ação. As emissões

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precedem imediatamente ou acompanham o comportamento motor referido. Ex: o interlocutor exclama Calmaenquanto tenta tirar o sapato (e não está conseguindo).Direcionamento de atenção (DAT). Qualquer emissão verbal realizada no sentido de chamar a atenção dointerlocutor par si mesmo, uma ação ou objeto determinado. Ex: um interlocutor diz ao outro Olha aquilo,que bonito!Direcionamento de ação (DAO). Qualquer emissão verbal realizada no sentido de controlar, solicitar ouacompanhar uma ação direta do interlocutor. Ex: um interlocutor diz ao outro Termina este desenho maisrápido, termina!Solicitação de objeto (SO). Emissões verbais utilizadas para solicitar um objeto concreto ao outro. Ex: Mepassa aquele brinquedo ali!Solicitação de informação (SI). Emissões verbais utilizadas no sentido de solicitar uma informação dointerlocutor. Podem ser compostas de expressões interrogativas diretas ou indiretas. Ex: Você tem namorado?.Consentimento (CS). Emissões verbais que solicitam o consentimento do outro para realização de umaação. Ex: Posso pegar aquele caderno depois de guardar o livro?

HABILIDADES NARRATIVO-DISCURSIVAS (HND). Refere-se a todo e qualquer relato, real ou imaginário,que envolva descrição de ações ou explanação de idéias.Relato de histórias ou acontecimento (RH). Habilidade de relatar um fato ou história de forma coerente,através de emissões espontâneas, com ou sem o auxílio do interlocutor. Ex: um interlocutor começa contaruma história, a partir de figuras que vê Era uma vez uma menina que vivia triste.. ou um interlocutor relataao outro algo que fez Hoje, na escola, eu cortei o cabelo da minha amiga.Reprodução de histórias (RPH). Habilidade em reproduzir integral ou parcialmente um fato ou históriarelatado por outrem ou lida, com ou sem auxílio do interlocutor. Ex: ao se acabar de contar uma história, comoa Branca de Neve, o outro imediata ou posteriormente reproduz de forma correta Era uma vez uma moçabonita, branquinha, branquinha como a neve....Interpretação de histórias (IH). Habilidade de tirar conclusões e emitir opiniões sobre fatos ou histórias e decompreendê-las. Ex: depois de contar uma história, pergunta-se Por que será que a bruxa queria matar aBranca de Neve? e o outro responde Porque a bruxa era feia e má e tinha muita inveja da moça bonita eboazinha.Argumentação (ARG). Habilidade em utilizar emissões próprias para convencer o outro, utilizandoargumentos verbais e convincentes. Ex: um interlocutor diz Agora, vamos ter que guardar os brinquedos eir embora e o outro responde Mas é cedo ainda e meu ônibus vai demorar para passar, além disso vocêprometeu deixar eu ver o livro novo.

HABILIDADES VERBAIS NÃO-INTERATIVAS (HNI). Referente a emissões verbais que não tenham oconteúdo de interação como objetivo principal.Uso da linguagem para estabelecimento da própria identidade (LPI). Quando o indivíduo refere-se a simesmo em suas emissões verbais. Ex: Daí, eu fiquei muito bravo e disse – Não bate mais em mim, que eu souforte!Jogo simbólico (JS). Uso da linguagem para estabelecimento de relações de representação direta ou indiretade objetos e/ou ações, utilizando-se de expressões verbais. Ex: um interlocutor diz, ao pegar dois bastões demadeira e cruzá-los com movimentos no ar, O avião do Rei do gado ´tá voando! Uóm! Uóm!.Metalinguagem (ML). Quando o indivíduo utiliza a fala para se referir à própria fala ou linguagem. Ex: Euacho que falar serve para as pessoas ficarem só assim, mexendo a boca. Eu já pensava mesmo, antes de sófalar – resposta de um interlocutor ao outro, quando indagado por que as pessoas falavam.

Recebido em 23.09.06Aprovado em 04.11.06

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Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal

CONCEPÇÕES DE MÃES

sobre desenvolvimento infantil e desempenho

cognitivo de filhos com deficiência visual,

em situação de avaliação assistida e tradicional

Ana Cristina Barros da Cunha *

Sônia Regina Fiorim Enumo **

Cláudia Patrocínio Pedroza Canal ***

* Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo/UFES. Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal doRio de Janeiro/UFFJ. Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia/UFRJ (pavilhão Nilton Campos), AvPasteur, 250, Praia Vermelha – 22250-040 Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected]** Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo-USP. Professora Associada 1 do Departamento de Psicolo-gia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do EspíritoSanto; bolsista de produtividade em pesquisa 1 B do CNPq. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES, Avenida Fernando Ferrari, Avenida Fernando Ferrari, 514, CEMUNI VI – 29075-910Vitória/ES. E-mail: [email protected]*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista daCAPES. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES, Avenida Fernando Ferrari,514 – 29075-910 Vitória/ES. E-mail: [email protected] Este trabalho é parte da tese de doutorado da primeira autora, com bolsa da CAPES, orientada pela segunda autora.Financiamento: CNPq/MCT, Proc. n. 520808/97-5 (NV) e (SU) e bolsa de IC para a terceira autora.

RESUMO1

Mães de crianças com deficiência visual (DV) podem ter baixas expectativassobre o desenvolvimento e o desempenho dos filhos em avaliações cognitivas.Este estudo analisou se duas abordagens de avaliação cognitiva – tradicional eassistida – afetam as expectativas maternas sobre o desempenho do filho comDV (baixa visão). Doze díades mãe-criança (5-9 anos) foram aleatoriamenteseparadas em dois grupos. Seguiu-se um delineamento cruzado, com três fases– G1: A-B-A-C-A; G2: A-C-A-B-A, com uma semana entre as fases B e C.Na fase A entrevistaram-se as mães sobre desenvolvimento e desempenhocognitivo dos filhos. Na fase B , as mães observaram os filhos sendo avaliadospor uma prova assistida – Children’s Analogical Thinking Modifiability ouJogo de Perguntas de Busca de Figuras Geométricas para DV. Na fase C, asmães observaram a aplicação da Escala de Maturidade Mental Columbia nosfilhos. Estes tiveram melhor desempenho nas provas assistidas; mas,independentemente do delineamento cruzado, as mães avaliaram como melhoro desempenho na última prova aplicada; da mesma forma, suas altasexpectativas não mudaram após observarem as avaliações. Contudo, oito mãesconsideraram a avaliação assistida mais adequada para crianças com DV,

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Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...

sugerindo haver possibilidade dela auxiliar na mudança de expectativas dessespais, como ocorreu em pesquisas com professores.

Palavras-chave: Concepções sobre desenvolvimento – Avaliação assistida –Mães de crianças com deficiência visual – Crianças com deficiência visual

ABSTRACT

MOTHER CONCEPTIONS about child development and cognitiveperformance of visually impairment children in dynamic and staticassessment

Mothers of visually impairment children can have low expectations aboutchild development and cognitive performance in cognitive assessment. Thisstudy analyzed if two cognitive assessment approaches – static and dynamic– could affect the mother’s expectations about performance of visuallyimpaired children (low vision). Twelve dyads mother-child (5-9 years old)were randomly organized in two groups. It was applied a crossover design inthree steps – G1: A-B-A-C-A, G2: A-C-A-B-A, with a week between thestep B and C. Step A: interview with mother about hers expectations aboutchild development and cognitive performance. Step B: mothers observed theapplication of one dynamic cognitive testing to evaluate their children usingChildren’s Analogical Thinking Modifiability or the Search ThroughQuestion Game for Visually Impaired Children. Step C: mothers observedthe application of the Columbia Mental Maturity Scale to evaluate theirchildren. These children had better performance in dynamic testing, butindependently of the crossover design, mothers considered their childrenperformance was better in the last testing; in the same way, high mother’sexpectations did not change after mothers observed both kinds of cognitiveassessment procedures. However, eight mothers considered the dynamicassessment more adequate for visually impaired children than static test; itsuggests the possibilities of dynamic assessment to help changing the parent’sexpectations, like occurred in studies with teachers.

Keywords: Development conceptions – Dynamic assessment – Mothers ofvisually impaired children – Visually impaired children

INTRODUÇÃO

Quando o tema de estudo é a criança comnecessidades educacionais especiais (NEE),como, por exemplo, a criança com deficiênciavisual (DV), muitas questões interessantes parainvestigação, tanto de ordem teórica quantometodológica, são colocadas. Nesse caso, comoproceder à escolha de um tema de estudo quan-do existe um grande leque de opções de pro-blemas a serem investigados?

Nesse sentido, um breve panorama da pro-dução bibliográfica sobre temas relativos à de-ficiência visual, tais como a avaliação cognitivae a interação mãe-criança com DV, indica quesão escassos os trabalhos que investiguem arelação entre comportamentos maternos quetêm potencial capacidade de influenciar direta-mente o desenvolvimento da criança com DV,sobretudo no que diz respeito à área cognitiva.

Tomando como exemplo o tema da criançacom deficiência, incluindo a avaliação cogniti-

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Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal

va dessas crianças e as expectativas maternasacerca do desenvolvimento infantil, uma bre-ve pesquisa sobre o assunto revela que temasdesta ordem não têm sido freqüentes em pu-blicações científicas. Tal fato é, no mínimo,preocupante, uma vez que em 2000 existiam24,5 milhões de portadores de deficiência, ouseja, 14,5% da população brasileira possuía al-guma deficiência, segundo cálculos da Funda-ção Getúlio Vargas (FGV, 2003), com base nosdados do Censo Demográfico realizado peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE) neste ano. Dentre as deficiências ca-talogadas, a deficiência visual aparece em pri-meiro lugar, com 57,16% de brasileiros comalguma dificuldade para enxergar, havendo tam-bém 10,5% de pessoas com grande dificulda-de para enxergar e 0,6% com incapacidadetotal para ver (FGV, 2003).

Há escassez de trabalhos nacionais publi-cados sobre o tema da avaliação cognitiva dacriança com DV, sendo exceção as pesquisasrealizadas no Centro de Estudos e Pesquisasem Reabilitação da Faculdade de CiênciasMédicas da UNICAMP e na Pós-Graduaçãoem Psicologia da Universidade Federal do Es-pírito Santo (BATISTA; ENUMO, 2000; BA-TISTA; HORINO; NUNES, 2004; CUNHA,2004; CUNHA; ENUMO; CANAL, 2006a;ENUMO; BATISTA, 2000, 2006a, 2006b;ENUMO; BATISTA; FERRÃO, 2005).

Nesse contexto, são relevantes os estudosque investiguem possíveis relações entre desen-volvimento e desempenho cognitivo infantil eas concepções de mães de crianças com DV arespeito desse desenvolvimento. Partindo doprincípio de que o desenvolvimento infantil, so-bretudo da criança com NEE, em especial aque-las que têm DV, pode ser afetado por diferentesfatores, afirma-se que as expectativas mater-nas acerca do desempenho da criança em situ-ação de aprendizagem é um dos fatores quepode influenciar sobremaneira o desenvolvimen-to da criança com DV.

No caso da criança com deficiência visual(DV), um padrão de interação, com baixos ní-veis de comportamentos maternos mediadores,pode ser provocado pela compreensão inade-

quada do que é a deficiência visual do filho, oumelhor, dos reais limites e possibilidades deaprendizagem da criança (BATISTA; ENUMO,2000; CUNHA; ENUMO; CANAL, 2006b).Dessa forma, as mães de crianças com DVpodem, devido a baixas expectativas acerca dodesenvolvimento e desempenho do filho, nãodesenvolver a prática de incentivá-lo a explo-rar o ambiente, limitando a possibilidade de es-tabelecer com ele uma interação rica emprincípios de aprendizagem mediada, que tenhacomo objetivo principal promover a flexibilida-de e plasticidade mental da criança.

Dessa forma, o padrão de mediação esta-belecido na interação adulto-criança pode serconsiderado um fator importante de influênciano desenvolvimento da criança com DV, em quese pode considerar fundamental o oferecimen-to a ela de um ambiente rico em experiênciasque tenha como princípio uma mediação dequalidade cujo objetivo seja a promoção do de-senvolvimento infantil como um todo.

Particularmente no contexto da interaçãomãe-criança com DV, a criança deve receber,sistematicamente e de forma planejada, situa-ções de aprendizagem que a criança normal temde modo assistemático e não planejado (BA-TISTA; ENUMO, 2000; CUNHA; ENUMO,2003; ENUMO; BATISTA, 2000, 2006b; FON-SECA; CUNHA, 2003; FONSECA; CUNHA;ENUMO, 2002). Entretanto, cabe questionarquais fatores podem influenciar a percepção quea mãe constrói acerca do desenvolvimento dacriança com DV e que poderá definir a quali-dade das situações de aprendizagem mediada,necessárias para promover o pleno potencial deaprendizagem da criança com DV.

Existem evidências de que é estreita a rela-ção entre aprendizagem mediada, interaçãoentre criança e família, e modificabilidade cog-nitiva (TZURIEL, 1999). De acordo com osprincípios da abordagem da ModificabilidadeCognitiva Estrutural (Structural CognitiveModifiability - SCM Theory) e da Teoria daExperiência de Aprendizagem Mediada (EAM),de R. Feuerstein, o adulto pode modificar cog-nitivamente o indivíduo e reduzir a discrepânciaentre as performances típicas e as performan-

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Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...

ces potenciais do desenvolvimento cognitivoinfantil (FEUERSTEIN; FEUERSTEIN, 1991;FONSECA, 2002; FONSECA; CUNHA, 2003;LIDZ, 1991, 2000, 2002; TZURIEL, 1999). Apartir dessas teorias, as interações mãe-crian-ça baseadas em princípios de aprendizagemmediada, ou seja, quando a mãe auxilia a crian-ça a interpretar suas experiências de vida eadquirir dessas experiências regras e princípiosque serão utilizados em novas experiências,favorecem o desenvolvimento de várias funçõescognitivas que beneficiam a aprendizagem dacriança em diferentes contextos (FONSECA;CUNHA, 2003).

Diferentes estudos revelam que as criançascuja mãe apresenta altos níveis de mediação,internalizam os mecanismos de mediação, emostram melhor desempenho em situações deavaliação de habilidades cognitivas e/ou con-textos específicos de aprendizagem (TZURI-EL, 1996; TZURIEL; ERAN, 1990; TZURIEL;WEISS, 1998; TZURIEL; WEITZ, 1998). Aocontrário, um padrão inadequado de mediaçãomaterna em função de baixas expectativas dasmães acerca da capacidade de aprendizageminfantil, ou de uma postura materna pouco ati-va, mais diretiva e controladora na interaçãocom a criança, pode afetar o desenvolvimentocognitivo infantil, sobretudo quando a criançatem necessidades especiais como a DV (BA-TISTA; ENUMO, 2000).

Considerando que a mãe assume papel es-pecialmente importante na promoção do desen-volvimento cognitivo infantil, já que, na maioriadas vezes, são elas que permanecem a maiorparte do tempo interagindo com a criança e têmmaior controle sobre os mais poderosos refor-çadores do comportamento infantil, faz-se im-portante pensar em estratégias que visempromover expectativas maternas mais otimis-tas, ou melhor, uma percepção materna maiscoerente com a real capacidade de aprendiza-gem infantil e que, conseqüentemente, faciliteuma postura mais ativa da mãe na interaçãocom a criança com DV.

Dentre essas possíveis estratégias, os pro-cedimentos de avaliação cognitiva assistida po-dem ser indicados como ferramentas úteis na

construção de concepções maternas positivas,já que propiciam à criança com DV revelar oseu potencial de desenvolvimento e de aprendi-zagem (BATISTA; HORINO; NUNES, 2004;CUNHA, 2003, 2004; CUNHA; ENUMO,2003; CUNHA; ENUMO; PEDROZA, 20042 ;ENUMO, 2005a, 2005b; ENUMO; BATISTA,2000, 2006a, 2006b; ENUMO; BATISTA; FER-RÃO, 2005; ENUMO et al., 2002; FONSECA;CUNHA; ENUMO, 2002). Nesse sentido, aabordagem da avaliação cognitiva assistidapode favorecer a construção de expectativasmais otimistas com relação ao desenvolvimen-to infantil e a adoção de um padrão de media-ção de interação mais adequado, já quepossibilita às crianças, sobretudo aquelas quetêm alguma deficiência, demonstrar sua realcapacidade de aprendizagem.(BENJAMIM;LOMOFSKY, 2002).

No contexto da avaliação cognitiva assisti-da da criança com deficiência visual (DV),Enumo e colaboradores (ENUMO; BATISTA,2000, 2006a, 2006b; ENUMO; BATISTA; FER-RÃO, 2005) elaboraram uma proposta de ava-liação assistida para crianças com DV, com oobjetivo de fornecer subsídios para a elabora-ção de programas de ensino para crianças combaixa visão e cegueira. Essa proposta incluiuos seguintes instrumentos: teste padronizado(WISC-Verbal, WECHSLER, 1964), tarefas deformação de conceitos (avaliação assistida), etarefas escolares, com duas formas de apre-sentação do material. Dentre os materiais cria-dos e elaborados por essas autoras paraavaliação assistida de habilidades cognitivas decrianças pré-escolares e escolares com DV,destaca-se o Jogo de Perguntas de Busca deFiguras Geométricas para Deficientes Visuais(PBFG - DV) (ENUMO; BATISTA, 2000,2006a, 2006b).

O PBFG-DV foi adaptado do PBFG, Jogode Perguntas de Busca de Figuras Geométri-cas, criado por Linhares (1996). O PBFG-DVfoi elaborado para ser usado por crianças de 7

2 Vide o site:h t t p : / / p o r t a l . i e f p . p t / p o r t a l /page?_pageid=117,114199&_dad=gov_portal_iefp&_schema=GOV_PORTAL_IEFP). Acesso em: 01.03.07.

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Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal

a 11 anos com DV e consiste de 20 pranchas(50 cm X 15 cm), onde em cada prancha é apre-sentada uma combinação de quatro figuras ge-ométricas diferentes entre si, variando emtamanho (grande, pequeno), forma (triângulo,quadrado e círculo) e cor/textura (azul escuro/papel sanfonado azul, amarelo/emborrachadoliso amarelo, vermelho/emborrachado crespovermelho). O PBFG-DV exige a elaboração dequestões de busca de informação em situaçãode resolução de problemas (constraint-seekingquestion), em que a criança deve formular per-guntas de busca de informação visando desco-brir, por exclusão de alternativas, qual das quatrofiguras em cada arranjo foi escolhida pela exa-minadora como figura-alvo, fazendo até 12 per-guntas sobre as dimensões da figura com ointuito de descobrir qual é a figura-alvo, sendoque o aplicador só pode responder sim ou nãoa cada pergunta feita pela criança, que devejustificar a sua escolha.

A aplicação do PBFG-DV inclui quatro fa-ses: 1) fase preliminar, em que ocorre uma ve-rificação de requisitos pela apresentação de to-das as figuras geométricas em cartões, nas quatrodiferentes dimensões (tamanho, forma e cor/tex-tura); 2) fase de pré-teste (ou fase sem ajuda),em que, sem ajuda do aplicador, são apresenta-das quatro pranchas; 3) fase de teste (fase deassistência), em que, com ajuda do aplicadorauxiliando a criança na formulação de perguntasrelevantes e corretas que tenham efeito de res-trição de alternativas, são apresentadas 12 pran-chas; e 4) fase de pós-teste (fase de manuten-ção), em que, novamente sem ajuda do aplicador,são apresentadas quatro pranchas para que acriança mostre o seu desempenho real apósmediação adequada.

Ao aplicarem essa prova assistida, Enumoe Batista (2000, 2006a, 2006b) mostraram ha-ver diferenças no desempenho das crianças comDV em cada fase da prova (sem ajuda, comajuda e de manutenção), e observaram que asperguntas relevantes e corretas aumentarame diminuíram os acertos-ao-acaso. Da mesmaforma, houve um aumento no uso de operaçõescognitivas facilitadoras por parte das crian-ças ao longo da prova.

Ainda que o PBFG-DV possa apresentaralguns pontos negativos, como, por exemplo, acriança com maior comprometimento visual secansar mais rapidamente e perder o interesse,indicando necessidade de revisão da prova, paraEnumo e Batista (2000, 2006a, 2006b) a avalia-ção assistida pode ser considerada mais ade-quada para a identificação de crianças que têmmaior ou menor facilidade para aprender, e seusrespectivos estilos cognitivos, já que pode for-necer critérios para o planejamento de estraté-gias de intervenção que visem promover odesenvolvimento de habilidades cognitivas atra-sadas.

A partir dessa perspectiva e em consonân-cia com resultados encontrados em pesquisasrealizadas com professores, que comprovaramser a avaliação cognitiva assistida um instru-mento eficiente para promover uma percepçãomais positiva do adulto acerca do desempenhoda criança em situação de aprendizagem, o pre-sente estudo investigou como duas abordagensde avaliação cognitiva – tradicional e assistida– podem afetar as avaliações maternas sobre odesempenho cognitivo da criança com defici-ência visual (DV). (BENJAMIN; DELCLOS;BURNS; KULEWICZ, 1987; DELCLOS;BURNS; VYE, 1993; LOMOFSKY, 2002;VYE et al., 1987).

MÉTODO

Com objetivo de identificar e analisar possí-veis alterações nas expectativas maternas acer-ca da criança, antes e após a mãe observar aaplicação de procedimentos de avaliação cog-nitiva assistida e tradicional na criança com DV,foram descritos e analisados os relatos verbaisde 12 mães de crianças com DV (baixa visãoleve) sobre suas concepções acerca do desen-volvimento infantil e suas avaliações acerca dodesempenho cognitivo do filho com DV na si-tuação de avaliação.

As crianças e suas mães freqüentavam ins-tituições especializadas de atendimento e ensi-no, localizadas nos municípios de Vila Velha eVitória, ES, e no município do Rio de Janeiro. A

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Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...

idade das mães variava entre 30 e 60 anos (mé-dia = 40 anos de idade) e as crianças tinhamentre 5 anos e 2 meses e 9 anos (média = 7anos e 6 meses de idade), sendo 4 meninos e 8meninas. Todas as crianças tinham deficiênciavisual, com predomínio de baixa visão leve, de-corrente de causas como retinoplastia da pre-maturidade e atrofia do nervo óptico, porexemplo, com destaque para os problemas con-gênitos, como a toxoplasmose, a catarata e oglaucoma. Todas as crianças freqüentavam aescola (2 na rede privada de ensino, e 10 narede pública), sendo que 8 delas ainda tinhamatendimento especializado em instituições deeducação especial e de reabilitação.

Com o objetivo de obter indicadores de comoo fato da mãe observar a aplicação de provasassistidas e tradicionais em seu filho com DVafetaria sua avaliação sobre o desempenho cog-nitivo infantil em situação de avaliação cogniti-va, as mães foram divididas, aleatoriamente, em2 grupos de acordo com a seguinte condiçãoexperimental: G1-avaliação assistida versus tra-dicional, e G2-avaliação tradicional versus as-sistida.

Os dois grupos de mães (G1 e G2) foramsubmetidos a um delineamento experimental detratamento múltiplo, em delineamento cruzado(crossover design), com 3 fases: A, B e C.Para G1, foi adotada a seqüência de fases A-B-A-C-A, enquanto que, para G2, a ordem foiinversa (A-C-A-B-A), a fim de contrabalançarpossíveis efeitos da seqüência de exposição dasmães à situação de avaliação cognitiva tradici-onal e assistida, e as expectativas maternasacerca do desempenho infantil nessas situaçõesde avaliação. Houve um intervalo de uma se-mana entre as fases B e C.

Antes do início da coleta de dados, foi soli-citada a cada mãe participante uma autoriza-ção formal por escrito, obedecendo aos aspectoséticos que devem ser considerados em pesqui-sas com seres humanos. Logo após foram rea-lizadas, individualmente, as entrevistas, queforam gravadas em áudio e, posteriormente,transcritas na íntegra.

Na fase A, utilizando um roteiro de entre-vista semi-estruturado, elaborada pelas autoras,

foi coletado o relato verbal de cada mãe sobresuas avaliações em relação ao desenvolvimen-to do filho, inclusive ao seu desempenho nassituações de avaliação assistida (fase B) e tra-dicional (fase C). O roteiro de entrevista comas mães da criança com DV incluía 17 pergun-tas abertas sobre cinco temas principais: 1)desenvolvimento da criança, descrevendoseus principais aspectos; 2) comparação dacriança com DV com a criança normal, iden-tificando sentimentos de negação e aceitaçãoda deficiência, assim como a reação emocionala esta comparação; 3) avaliação do desen-volvimento cognitivo da criança, avaliandoo desempenho cognitivo, suas dificuldades efacilidades para aprender, os fatores que influ-enciam e agentes que ajudam na aprendizagemda criança; 4) identificação como mãe decriança deficiente, esclarecendo a interaçãocom a criança e seu papel e sentimentos comomãe de filho deficiente; 5) expectativas so-bre o futuro da criança, destacando as preo-cupações e expectativas sobre o futuro dacriança no que se refere à área pessoal, sociale profissional.

Esse roteiro de entrevista foi usado integral-mente no início da coleta de dados (fase A).Após as fases B e C, foram realizadas novasentrevistas com as mães, que prescindiram deroteiro uma vez que era perguntado a elas so-mente a sua opinião a respeito do desempenhoda criança na sessão de avaliação cognitiva quetinham acabado de assistir.

Na fase B (avaliação assistida), as mãesassistiram a suas crianças serem avaliadas peloCATM - Children’s Analogical ThinkingModifiability (TZURIEL; KLEIN, 1990), paraas crianças com idade abaixo de 7 anos ou paraaquelas que tiveram dificuldade na outra provaassistida. Para as crianças com idade acimade 7 anos foi usado o PBFG-DV- Jogo de Per-guntas de Busca com Figuras Geométricas paraCrianças com DV (ENUMO; BATISTA,2006a), já descrito anteriormente. Na fase C(avaliação tradicional), as mães assistiram àaplicação da Escala de Maturidade MentalColumbia (BURGEIMESTER; BLUM; LOR-GE, 1999) nas crianças.

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Com relação aos dados das crianças, cabedestacar que foram obtidos diversos indicado-res de desempenho cognitivo infantil de acordocom cada tipo de prova assistida (CATM ouPBFG-DV). No entanto, para a análise propostaneste estudo, foram consideradas, para avalia-ção cognitiva tradicional, as respostas dascrianças em termos de escores de desvios deidade (EDI), obtidos por elas na Escala Colum-bia; e para avaliação cognitiva assistida, operfil de desempenho cognitivo das crianças,de acordo com a seguinte classificação: alto-escore, ganhador-mantenedor, ganhador-dependente-de-assistência e não-mantene-dor. Esse perfil de desempenho obtém-se apartir das respostas das crianças entre as dife-rentes fases da prova assistida (sem ajuda-SAJ,de assistência-ASS e de manutenção-MAN),em termos dos tipos de tentativas de solução(acertos, acertos-ao-acaso e incorretas), porcartão no CATM, e em termos de tipos de per-guntas de busca (relevantes, irrelevantes, re-petidas) e tipos de tentativas de solução (acer-tos, acertos-ao-acaso e incorretas), por pranchano PBFG-DV3 .

Em relação aos dados com as mães, oconteúdo das entrevistas foi analisado de acor-do com a metodologia de análise de conteúdo(BARDIN, 1977), em categorias e suas res-pectivas subcategorias para os cinco temas prin-cipais anteriormente descritos, sendo registradasa freqüência simples e a proporção de mães oude citações que se enquadrava em cada subca-tegoria.

Os dados das entrevistas das mães realiza-das logo após a prova cognitiva, em que elasavaliaram o desempenho cognitivo das crian-ças na avaliação cognitiva tradicional e assisti-da, foram classificadas nas duas categorias depontuação do desempenho cognitivo infantil aseguir:

1) Bom – resposta verbal da mãe que ex-pressava uma avaliação positiva do desempe-nho cognitivo da criança na prova, como, porexemplo, “... acho que ele foi melhor nesteteste de hoje” (avaliação assistida) (M8);

2) Mau – resposta verbal da mãe que ex-pressava uma avaliação negativa do desempe-

nho cognitivo da criança na prova, como, porexemplo, “Estava com mais dificuldade (ava-liação assistida) “... esse, eu acho que foi maisfácil” (avaliação tradicional) (M4).

Esses dados foram tratados estatisticamen-te pelo teste Kruskall Wallis Test, com objeti-vo de analisar os efeitos da condição experi-mental (G1 versus G2) sobre as avaliaçõesmaternas acerca do desempenho cognitivo dacriança na avaliação cognitiva.

RESULTADOS

Os resultados das crianças serão apresen-tados antes dos resultados das mães, a fim decontextualizar a situação observada por elas,fornecendo subsídios para a análise da possívelinfluência dos diferentes procedimentos de ava-liação cognitiva, assistida e tradicional sobre asavaliações maternas acerca do desenvolvimentoe do desempenho cognitivo da criança com DV,já que os dados das crianças também descre-vem e permitem comparar seu desempenho nasduas modalidades de avaliação cognitiva.

Assim, com relação aos resultados das cri-anças na avaliação tradicional pelo Columbia,elas apresentaram desempenho cognitivo bai-xo em termos de escore de desvio de idade(EDI), o que classificou mais da metade daamostra (n = 7) como tendo um desempenhocognitivo “inferior” e “médio-inferior”. As de-mais crianças foram classificadas como tendodesempenho na “média”. Apesar de ter ocorri-do diferença de desempenho no Columbia en-tre as crianças dos grupos G1 e G2, de acordocom o Teste de Wilcoxon essa diferença nãofoi significativa.

Quanto ao perfil de desempenho cognitivoinfantil identificado nas provas assistidas, a

3 Por exemplo, para a criança ser classificada como ganha-dora-mantenedora, ela deveria melhorar ou manter seu de-sempenho na fase de assistência em relação à fase semajuda em uma proporção de pelo menos 0.50 de créditostotais (para o CATM), ou em uma proporção de pelo me-nos 0,60 de perguntas relevantes e 0.50 de acertos (para oPBFG-DV), mantendo esse ganho no desempenho na fasede manutenção em uma proporção de 0.50 de créditos to-tais (no CATM) ou em uma proporção de 0,60 de perguntasrelevantes e 0,50 de acertos (no PBFG-DV).

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maioria das crianças (n = 5), no PBFG-DV, foiganhadora-mantenedora e uma criança foiconsiderada alto-escore; enquanto que, noCATM, as crianças foram classificadas comoganhadoras-mantenedoras (n = 3), ganha-doras-dependende-de-assistência (n = 1) enão-mantenedoras (n = 2).

Como pode ser observado na Figura 1, com-parando-se esses perfis de desempenho, obti-

dos na avaliação assistida, e os escores de des-vio de idade (EDI), obtidos na avaliação tradi-cional, a maioria (n = 7) das crianças, mesmoaquelas consideradas pela avaliação assistidacomo ganhadoras, foi classificada, segundo aEscala Columbia, como tendo desempenho “in-ferior” e “médio-inferior” (C1, C2, C7, C9, C10,C11 e C12), ou seja, indivíduos com EDI inferi-or a 69 ou EDI entre 70 e 88, respectivamente.

Figura 1. Desempenho cognitivo das crianças em termos do perfil de desempenho na avaliaçãoassistida (CATM e PBFG-DV) e do desvio de idade (EDI) na avaliação tradicional(Columbia) (n= 12).

Os resultados das mães serão descritos emtermos dos dados referentes às suas avaliaçõesacerca do desenvolvimento das crianças e dodesempenho destas na situação de avaliaçãocognitiva, tomando por base o número de mãesque se pronunciaram sobre cada categoria esubcategoria para cada um dos cinco temas deanálise de conteúdo. Além disso, foram anali-sados os dados referentes à análise da influên-

cia da condição de teste (G1- condição 1: as-sistida-tradicional; G2- condição 2: tradicional-assistida) sobre a avaliação das mães acercado desempenho infantil nas provas.

No que se refere ao primeiro tema descri-ção da criança, mais da metade das mães (58%da amostra) utilizou aspectos afetivos negati-vos, como, por exemplo, ser nervoso, inseguro,implicante, para caracterizar a criança. Com

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relação aos aspectos sociais do comportamen-to, cinco mães usaram termos positivos, comoamistoso, comunicativo, companheiro, ao pas-so que, para descrever o comportamento dacriança na área cognitiva, seis mães considera-ram seus filhos com inteligência média (“inteli-gentes”), quatro consideraram acima da média(“muito inteligentes”) e duas mães considera-ram os filhos como superior à média (“superin-teligentes”).

No que se refere ao segundo tema compa-ração da criança com DV com a criançanormal, observou-se que, ao fazer essa com-paração, a maioria das mães (n = 7) relatoutanto aspectos positivos quanto negativos, sen-do que nenhuma delas indicou somente aspec-tos negativos. Igualmente, mais da metade dasmães (n = 7) negou a deficiência da criança,apresentando verbalizações do tipo: “não temdeficiência, só vê pouco”; enquanto que trêsdelas demonstraram aceitar a deficiência, ver-balizando frases como: “Eu sei que ele não éuma criança normal, que não tem deficiên-cia”; e duas mães mostraram ambigüidade comrelação à aceitação/negação da deficiência dacriança.

As reações emocionais maternas variaramde sentimentos de conotação negativa, como,por exemplo, tristeza e medo (n = 6), sentimen-tos de conotação positiva, como, por exemplo,tranqüilidade (n = 1) e sentimentos ambivalen-tes, como, por exemplo, tristeza e satisfação (n= 1). Quatro mães ainda demonstraram indife-rença frente à comparação da criança defici-ente com uma criança normal, apresentandoverbalizações do tipo: “Eu não esquento, não,não ligo, não”, ou simplesmente não fizeramcomparação.

Os dados referentes ao terceiro tema ava-liação do desenvolvimento cognitivo dacriança, em que as mães avaliaram o desem-penho cognitivo da criança em termos de inteli-gência média, acima da média e superior, eindicavam se a criança tinha dificuldade ou nãopara aprender e em que aspectos, revelaramque cinco mães classificaram as crianças comotendo inteligência média (“inteligentes”), seis,acima da média (“muito inteligentes”) e uma

mãe, como superior (“superinteligentes”). Noque diz respeito à aprendizagem, apenas umamãe afirmou que a criança não tinha dificulda-de para aprender; as demais relataram que acriança tinha, algumas vezes, dificuldade e, emoutras situações, facilidade para aprender. Des-sas mães, seis mães justificaram a dificuldadeque a criança tinha para aprender citando as-pectos sensoriais, ou seja, a deficiência visualpropriamente dita, e duas mães citaram aspec-tos motores (problemas psicomotores, de coor-denação motora).

A visão associada a outros aspectos como,por exemplo, aspectos neuropsicológicos, psicos-sociais e motivacionais, foi ainda citada por trêsmães para justificar a dificuldade da criança paraaprender. Quanto à facilidade de aprendizagemda criança, a grande maioria das mães (n = 10)afirmou que a criança, em geral, tinha facilidadepara aprender e duas mães disseram que a cri-ança tinha facilidade para aprender em determi-nadas condições, quer seja quando ela estavamotivada (“Quando é coisa que ela se inte-ressa”), quer seja quando dependia do ambiente(“Dependendo se a professora tiver paciên-cia, ela tem facilidade”).

Ainda em relação ao terceiro tema investiga-do (avaliação do desenvolvimento cognitivo dacriança), quando as mães avaliaram a criançacomo sendo inteligente, justificaram citando di-ferentes habilidades: lingüísticas (n = 2), sócio-afetivas (n = 1), sociolingüísticas (n = 4) epsicomotoras (n = 2). No entanto, na maioria dosrelatos das mães (n = 7), foram citadas as habi-lidades cognitivas, como, por exemplo, atenção,memória, criatividade, análise e síntese, paraexplicar porque julgavam a criança inteligente,com frases como: “Se ele ler uma revistinha,uma historinha, depois ele conta ela todinhado início ao fim” ou “Ela pode ser mais inte-ligente em termos de observar, ela observa ascoisas porque ela quer aprender”.

E, ainda, a família foi citada como um dosprincipais agentes que ajudam na educação dacriança com DV (n = 9), seguida do professor(n = 5). Já o médico (n = 3) foi o terceiro agen-te, e o terapeuta (n = 2) ficou em último lugarna opinião dessas mães. No que se refere aos

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fatores que mais influenciam o desenvolvimen-to cognitivo infantil, em primeiro lugar elas cita-ram a escola e a família (8 vezes), e em segundolugar o atendimento, que foi citado cinco vezes.Nos relatos das mães, foram lembradas aindaatividades desportivas e de lazer (n = 2) e, em-bora com menor freqüência, o esforço da pró-pria criança (n = 1) (“Ele mesmo, a vontadeque ele tem de aprender, a força de vontadedele mesmo”), além de atividades realizadas nacomunidade como, por exemplo, participar deum grupo religioso (n = 1) (“Ele contava osdias pra chegar o sábado, ele ir pro cate-cismo... é uma coisa mínima, mas pra ele émuito, ajuda no desenvolvimento”).

Com relação ao quarto tema investigado,identificação como mãe de criança defici-ente, no que se refere à interação com o filho,oito mães citaram o brincar como principal ati-vidade de interação com a criança, seguida deatividades rotineiras como levar para a escola(n = 5), para o atendimento (n = 5) e auxiliarnas tarefas escolares (n = 5). Ensinar compor-tamentos adequados, como, por exemplo, disci-plina e atividades domésticas, foi citado quatrovezes, enquanto que ocorreu apenas uma cita-ção de dar carinho e levar para atividades ex-tra-escolares, como natação, por exemplo.

Em contrapartida, demonstrar afeto (darcarinho = “Então eu tenho mais que acolhere aceitar com carinho” e valorizar auto-esti-ma = “Eu não deixo ela se diminuir”) foi acategoria mais citada (n = 9) para identificar asatribuições de uma mãe de criança deficiente.Cumprir deveres, como levar para a escola epara o atendimento, além de promover suportesócio-educacional (promover autonomia, inde-pendência e oferecer proteção), foram as prin-cipais atribuições maternas citadas por estasmães (n = 6, respectivamente).

Aceitar a deficiência da criança seria umaatribuição importante que aparece cinco vezesnos relatos das mães, representada por frasescomo “... toda mãe, toda mulher quando ti-ver que ser mãe é mãe. Mas, ser mãe de umdeficiente, nem toda mulher tem esse direito.Só Deus quem dá”. Da mesma forma, trans-mitir valores foi citado com freqüência (n = 6),

com frases como: “Ensinar ele a dar valoraos estudos, porque é uma peça importantepra ele ir pro adulto”. Já sentimentos negati-vos, como, por exemplo, resignação, frustração,tristeza e vergonha, foram relatados pela maio-ria das mães (n = 8). Por suas vez, privilegia-da e realizada são exemplos de sentimentospositivos que foram citados apenas duas vezes;o mesmo ocorreu com os sentimentos ambíguosde felicidade e culpa, que foram citados duasvezes e aparecem em frases do tipo: “Me sin-to feliz, até porque eu não posso consertar,né? Eles não têm culpa, eles não têm culpa,porque a culpada mesmo sou eu”.

Por fim, o quinto e último tema analisadonas entrevistas maternas refere-se às expec-tativas sobre a criança. Dentre as principaispreocupações das mães destacam-se as de or-dem social e as relativas à saúde física da cri-ança, citadas em quatro relatos maternos. Emrelação à saúde da criança, a perda da visão foia única preocupação apontada. Como preocu-pações de ordem social foram apontadas asquestões relacionadas ao suporte familiar, àadaptação social e independência/autonomia dacriança. Apareceram também relatos de preo-cupações de ordem financeira, como ter umsalário ou uma poupança para, no futuro, a cri-ança ser independente, que foram citadas trêsvezes. Além disso, preocupações de ordem psi-cossocial apareceram duas vezes, e preocupa-ções de ordem profissional apenas uma vez nosrelatos das mães.

As expectativas das mães se relacionam aosaspectos sociais, acadêmicos e profissionais arespeito do futuro da criança. Ocorreram 11citações maternas que expressavam a expec-tativa da mãe sobre a criança ter uma profis-são, como, por exemplo, a de psicólogo, dedentista, ou de veterinário, ocorrendo, conse-qüentemente, uma alta freqüência de mães(83%) que relataram desejar que a criança in-gressasse na faculdade ou simplesmente estu-dasse para ter uma profissão. Com relação aosaspectos sociais do futuro da criança, as cate-gorias constituir família (“depois ela não vaimorar com mamãe, vai crescer, vai casar”) eter independência e autonomia social (“Expli-

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cando que ela vai ter que fazer faculdade,ela estudar, ser uma pessoa independente”)foram ambas citadas cinco vezes.

Os dados das mães relativos às entrevistas,realizadas após elas assistirem à avaliação cog-nitiva assistida e tradicional da criança, indicamque, comparando o desempenho infantil emcada tipo de avaliação, de acordo com a condi-ção experimental (G1: assistida-tradicional e G2:tradicional-assistida), oito mães consideraramo desempenho da criança melhor na avaliaçãoassistida do que na tradicional. Destas mães,seis pertenciam ao G2 e duas ao G1, o que sig-nifica que nenhuma mãe do G2, ou seja, queassistiu à criança ser inicialmente avaliada pelométodo tradicional, considerou o desempenhoda criança melhor neste tipo de avaliação.

A maioria das mães (n = 8) considerou odesempenho da criança melhor na avaliaçãoassistida, justificando sua opinião baseada emquatro justificativas: 1) apresentação do mate-rial da prova assistida (“... hoje, foi bom por-que a criança observa, além das cores, asformas, o conjunto, né? Quando coloca jun-to assim, ela pensa que tem que observar otamanho do conjunto pra saber a forma...tem que prestar atenção...”); 2) dificuldadesda criança relacionadas ao material do teste tra-dicional (“... então, ela tinha que firmar mui-to as vistas e ver as comparações... tinhaque trabalhar mais a memória”); 3) procedi-mento de aplicação do teste tradicional ( “...ele não entendeu bem... talvez o modo deperguntar”); e 4) dinâmica do teste tradicional(“... ele estava cansado, ele estava maisapontando por apontar...”).

Por outro lado, as quatro mães que conside-raram o desempenho da criança melhor na ava-liação tradicional justificaram sua resposta emfunção, por exemplo, da prova ter sido maisrápida (M6, G1: “Também achei bom e foi maisrápido, não foi?”), da criança estar mais dis-posta e interessada (M3, G1: “... No outro, eleestava fadigado, querendo ir embora logo...neste, eu percebi que ele estava realmenteinteressado em achar a diferença”), ou mes-mo do fato da criança estar ou não usando ócu-los no dia da aplicação.

Com objetivo de saber se as avaliaçõesmaternas sobre o desempenho cognitivo in-fantil foram afetadas pela condição experi-mental (G1 versus G2 = a mãe observarprimeiro a avaliação assistida e depois a tra-dicional ou vice-versa), foi calculada a signi-ficância estatística das diferenças, de acordocom o teste de Kruskall-Wallis4 . Observou-se que, ainda que descritivamente, a maioriadas mães (n = 8) tenha considerado o de-sempenho da criança melhor na avaliaçãoassistida, a ordem de apresentação e o tipode prova não afetaram estatisticamente assuas verbalizações sobre o desempenho dacriança na prova, uma vez que não ocorre-ram diferenças significativas a 5% de proba-bilidade entre as condições de teste (G1versus G2) para ambas as situações de ava-liação, tradicional e assistida. Conclui-se, en-tão, que a segunda prova cognitiva aplicadano filho, após uma semana de intervalo daprimeira aplicação, foi sempre melhor avali-ada pelas mães com 95% de probabilidadeestatística.

Igualmente, a fim de constatar possíveis re-lações entre as avaliações maternas sobre odesempenho cognitivo dos filhos nas duas pro-vas aplicadas e os resultados das crianças nasprovas cognitivas - tradicional e assistida -, foifeita uma correlação (Spearman) entre a pon-tuação da mãe em termos de bom desempenho(1) e mau desempenho (2) da criança nas pro-vas cognitivas, e os resultados da criança naavaliação tradicional (desvios de idade peloColumbia) e na avaliação assistida (acertos nafase de manutenção do CATM e do PBFG-DV). Observou-se que não houve correlaçõessignificativas (p = =0.05; p = =0,01) entre asavaliações maternas e os resultados das crian-ças nem na situação de avaliação tradicional,nem na situação de avaliação assistida (p =0,156; p = -0,591). Isto significa que, para estaamostra (n = 12), uma boa ou má avaliação damãe sobre o desempenho cognitivo da criança,

4 O Teste de Kruskal-Wallis faz a análise de significânciaestatística a partir da média de Rank, em que se consideramas médias mais baixas representando melhores resultados.Foi usado o nível de significância de p= 0,05.

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tanto na avaliação tradicional como na avalia-ção assistida, não se correlacionou com o bomou mau desempenho da criança na avaliaçãocognitiva.

DISCUSSÃO

Primeiramente, cabe fazer considerações arespeito da adequação das provas assistidas paraavaliação cognitiva da criança com deficiênciavisual (DV). Apesar de mais da metade daamostra (n = 7) ter sido classificada com umdesempenho cognitivo “inferior” e “médio-in-ferior” na prova cognitiva tradicional (Colum-bia), o perfil de desempenho cognitivo obtidona avaliação assistida pelo CATM e PBFG-DVmostrou que apenas duas crianças (C1 e C2)foram consideradas não-mantenedoras, isto é,não se beneficiaram da mediação oferecida nafase de assistência da prova assistida, não me-lhorando o desempenho nas proporções dese-jadas na fase de manutenção.

Dessa forma, comparando os resultados daavaliação tradicional e da avaliação assistida,pode-se supor que as provas assistidas forammais sensíveis em identificar a variação de de-sempenho das crianças com DV, como obser-vou Enumo e Batista (2000, 2006a, 2006b). Alémdisso, a avaliação assistida para a criança comDV pode propiciar a compreensão do funcio-namento cognitivo da criança no que diz res-peito aos processos, estratégias, funções e estiloscognitivos, subjacentes ao desempenho infantilna situação de aprendizagem.

A avaliação assistida foi usada em estudoscom o objetivo de verificar a relação entre aobservação da situação de avaliação assistidae a mudança na percepção de professoresacerca do desempenho cognitivo do aluno comnecessidades especiais (BENJAMIN; LO-MOFSKY, 2002; DELCLOS; BURNS; KU-LEWICZ, 1987, 1993; VYE et al., 1987). Nes-ses estudos, comprovou-se que o fato do adultoobservar a avaliação assistida pode promoveruma mudança na postura adotada por ele nainteração com a criança, ao passar a apresen-tar um estilo baseado na mediação, além de

responder de forma mais positiva nesta inte-ração.

No presente estudo, semelhante aos acha-dos de Benjamim e Lomofsky (2002), ainda quesem a existência de correlações estatisticamentesignificativas, a maioria das mães (n = 8) consi-derou o desempenho cognitivo infantil melhorna avaliação assistida, e esse tipo de avaliaçãomais adequado para a criança com DV devidoa fatores relacionados ao material e/ou à dinâ-mica do teste em si.

No entanto, ao contrário do que ocorreu nosestudos de Benjamim e Lomofsky (2002), deDelclos, Burns e Kulewicz (1987), de Delclos,Burns e Vye (1993) e de Vye et al. (1987),quando professores desenvolveram uma visãomais otimista acerca do desenvolvimento cog-nitivo infantil após observarem uma situaçãode avaliação assistida, na presente pesquisa,não ocorreram mudanças nas avaliações dasmães acerca da criança depois de observa-rem a avaliação assistida ou tradicional do fi-lho. Neste caso, para essas mães, tanto acondição experimental (ordem de apresenta-ção – G1: assistida-tradicional; G2: tradicio-nal-assistida) quanto o tipo de prova (tradicionalou assistida) não alteraram as suas verbaliza-ções sobre as avaliações acerca da criança.Todas as mães continuaram considerando queos filhos tinham inteligência média (n = 6),acima da média (n = 5) e superior (n = 1),independente do desempenho das crianças nasavaliações. Ou seja, as expectativas das mãeseram altas e, às vezes distorcidas, desde o iní-cio da pesquisa, havendo, portanto, poucaspossibilidades de alteração.

A fim de ilustrar, cabe destacar o caso deCarolina (C1), que foi avaliada como tendo umainteligência acima da média (“muito inteligen-te”) pela sua mãe e, na verdade, apresentouum dos mais baixos desempenhos da amostra,tanto na avaliação assistida quanto na tradicio-nal. Essa criança foi classificada como defici-ente mental (QI = 56) no Columbia enão-ganhadora na avaliação assistida peloCATM. Este caso exemplifica o fato de que,por vezes, as mães podem apresentar uma ava-liação completamente incompatível com o de-

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Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal

sempenho cognitivo da criança, o que torna suapercepção ainda mais difícil de ser modificada.

As provas assistidas foram consideradasmais adequadas do que a tradicional na opiniãoda maioria das mães (n = 8); no entanto, anali-sando as condições em que esta resposta foiobtida, vê-se que este dado não foi estatistica-mente significativo, já que a segunda etapa daavaliação é sempre melhor avaliada pela mãe,com 95% de probabilidade estatística. Cabeesclarecer que, para evitar que as respostas daamostra fossem controladas pela condição ex-perimental, recorreu-se ao uso do delineamen-to cruzado (crossover design). Neste tipo dedelineamento experimental, a metade da amos-tra passou pela condição inversa de exposiçãoàs condições de estímulo ou de exposição àvariável independente (tipo de prova cognitiva),com objetivo de evitar que os participantes fos-sem controlados pela exposição das condiçõesde estímulo, ou seja, que a exposição à últimaprova influenciasse as respostas das mães.

Apesar deste controle metodológico, a se-gunda etapa de avaliação cognitiva da criançafoi mais bem avaliada pelas mães. Uma possí-vel justificativa para este dado estaria no in-tervalo de tempo de exposição entre a primei-ra e a segunda etapas de avaliação – umasemana. Esta situação pode ter levado as par-ticipantes a ficarem sob controle da “recenti-cidade do estímulo”, respondendo à condiçãomais próxima em termos de memória (CAPO-VILLA et al., 1997). Outras pesquisas poderi-am verificar esta condição, apresentando asprovas com intervalo de tempo maior e amos-tras maiores também.

Analisando os relatos verbais maternos, ob-servou-se que as mães descreveram negativa-mente as crianças como nervosas e inseguras,e positivamente como “inteligente”, “muito in-teligente” e “superinteligente”. Ao comparara criança com DV com a criança normal, asmães negaram a deficiência (n = 7), além derelatarem indiferença, tristeza e medo comoreações emocionais à comparação. Esses da-dos são corroborados por Batista e Enumo(2000), que afirmam ser a interação familiar dacriança com DV prejudicada pela família quan-

do esta experimenta sentimentos como triste-za, culpa e medo, ao constatar que um dos seusmembros tem alguma deficiência. Tais senti-mentos podem ou não ser superados, mas cer-tamente alteram a dinâmica da família.

Na avaliação do desenvolvimento cog-nitivo da criança, as mães classificaram-nacomo “muito inteligente”, “inteligente” e “su-perinteligente’, citando, em geral, as habilida-des cognitivas de memória para justificar essejulgamento e relatando que as crianças tinhamfacilidade para aprender (n = 10). Simultane-amente, as mães relataram que as criançastinham dificuldades para aprender relaciona-das à visão (n = 6), com outros aspectos asso-ciados ou não (n = 3). Este dado revela umacerta incongruência ou dissonância nas avali-ações das mães acerca do desenvolvimentocognitivo do filho, pelo fato das dificuldadesde crianças com DV poderem não ser atribu-ídas imediatamente a uma dificuldade de apren-dizagem, mas sim à incapacidade visual(LAYTON; LOCK, 2001). Para essas mães(n = 9), a família foi considerada a influênciamais importante na educação da criança comDV e um dos agentes que mais auxiliam nasua educação. Elas (n = 8) também conside-raram a escola como o segundo agente quemais ajuda na educação da criança. Cabe des-tacar que o terapeuta ficou em último lugarnas suas indicações (n = 2), o que é confirma-do por dados de pesquisa da área, que reve-lam que os pais de crianças com DV enfrentamstress devido a dificuldades em encontrar aju-da profissional adequada para sua criança(LEYSER; HEINZE; KAPPERMAN, 1996).

Merece destaque o fato da maioria das mãescitar o brincar como atividade principal na inte-ração mãe-criança. Esse dado é bastante re-velador, considerando que, de acordo comVygotsky (1978/1991), a brincadeira é a ativi-dade principal e condutora do desenvolvimentoinfantil, pois cria zonas de desenvolvimento pro-ximal, em que as crianças se comportam “...além do comportamento habitual de sua idade,além do seu comportamento diário” (p. 117).Na interação com a criança com DV, as mãestambém citaram as atividades relacionadas à

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Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...

escola e ao atendimento clínico, ao lado da ne-cessidade de ensinar comportamentos adequa-dos. De fato, na educação de uma criança comDV, a mãe se depara com demandas diferen-tes das existentes na criação de uma criançaque enxerga. Para Troster (2001), mães de cri-anças com DV, em comparação com as mãesde crianças normais, experimentam mais stressrelacionado aos aspectos resultantes do com-portamento da criança deficiente.

No que se refere às expectativas sobre ofuturo da criança houve relatos maternos queexpressaram preocupações relativas à saúde (per-da da visão) e à adaptação social (n = 4) da crian-ça, coerentemente com dados da literatura, quemostram haver preocupações também em rela-ção à sua própria vida pessoal (LEYSER; HEIN-ZE; KAPPERMAN, 1996). A título de ilustração,cabe destacar a fala de uma mãe sobre sua preo-cupação com a filha: “Eu me preocupo já com ofuturo dela como ela vai reagir quando elativer 12 anos, 13 aninhos, por aí, fase da ado-lescência”. Para Hancock, Wilgosh e McDonald(1990), mães de criança com DV se preocupam

também com as atitudes das pessoas, o suportefinanceiro e emocional e os recursos produzidospara enfrentar a situação da deficiência.

Segundo Vye et al. (1987), os resultados quea criança atinge na avaliação assistida podemservir como argumento para convencer o adul-to de que ela tem mais potencial para aprenderdo que aparenta. Assim, a mãe ser exposta àaplicação de procedimentos de avaliação cog-nitiva assistida ou tradicional, com intervalo deuma semana entre as aplicações, não modifi-cou significativamente suas concepções acer-ca do desenvolvimento e desempenho cognitivoda criança com DV. Porém, semelhante a ou-tras pesquisas com professores (BENJAMIN;LOMOFSKY, 2002; DELCLOS; BURNS;KULEWICZ, 1987, 1993; VYE et al., 1987), ofato da maioria das mães ter avaliado as pro-vas assistidas como melhores para essas crian-ças sugere a capacidade dessa prova em serum modificador da percepção materna acercado desempenho cognitivo do filho, de forma amelhorar as expectativas e, conseqüentemen-te, a interação da mãe com a criança.

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Recebido em 30.09.06Aprovado em 04.12.06

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Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins

CONHECENDO AS NECESSIDADES E POTENCIALIDADES

DE MÃES DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES

EDUCACIONAIS ESPECIAIS

Aline Maira da Silva *

Enicéia Gonçalves Mendes **

Morgana de Fátima Agostini Martins ***

* Mestre em Educação Especial. Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)– Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Endereço para correspondência: Av. Vicente Guaglianoni, 60,Santa Angelina – 14802-120 Araraquara/SP. E-mail: [email protected]** Doutora em Psicologia. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos(UFSCar) – Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Endereço para correspondência: Rodovia WashingtonLuís, Km 235, Monjolinho – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail: [email protected]*** Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Programa de Pós-Graduaçãoem Educação Especial. Endereço para correspondência: Rua Oscar Chaves, 26, Jardim Conde do Pinhal 1 – 17203-100Jaú/SP. E-mail: [email protected]

RESUMO

Existe um razoável consenso na atualidade sobre a necessidade de incluir afamília no trabalho com crianças com necessidades educacionais especiais.Neste sentido, o presente estudo pretendeu construir e testar um instrumentoque visa identificar as necessidades e potencialidades de parentes dessascrianças. A primeira etapa teve como objetivo desenvolver o instrumento, tendocomo base a literatura da área, a partir da qual foram derivados os itens deuma escala, que foi submetida a procedimentos de validação de conteúdo evalidação semântica. Na segunda etapa, a versão final da escala foi aplicada a39 mães de crianças com necessidades educacionais especiais, com idade entrezero e seis anos. Em seguida os dados obtidos foram analisados com base emprocedimentos estatísticos descritivos. As potencialidades que as famíliasapresentaram com maior freqüência relacionam-se com percepções positivas,estratégias de adaptação e aceitação da criança. Por sua vez, as necessidadesapontadas pelas mães com maior freqüência foram as de receber informaçõese aprender técnicas que lhes permitam ensinar habilidades para seus filhos.Espera-se que o instrumento possa contribuir para capacitar profissionais, afim de que eles possam obter informações que subsidiem programas deintervenção baseados na abordagem familiar sistêmica.

Palavras-chave: Família – Necessidades Educacionais Especiais –Profissionais

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Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais

ABSTRACT

KNOWING THE NECESSITIES AND POTENTIALITIES OFMOTHERS OF CHILDREN WITH DISABILITIES

There is a reasonable consensus in the present time about the necessity ofincluding the family while working with the children with disabilities. This studyhad as a goal to compose and to test an instrument that could identify thenecessities and potentialities of family members. The first stage aimed to developthe instrument based on the literature of the field, from content validation andsemantic validation. On the second stage, the final version of the scale wasapplied to 39 mothers of children with disabilities, aged between zero and sixyears old. The data obtained were analyzed based on descriptive statisticalprocedures. The potentialities that the families showed with higher frequencywere related with positive perceptions, coping and acceptance of the child. Onthe other hand, the necessities mentioned with higher frequency were to receiveinformation and to learn techniques that allow them to teach abilities to theirchildren. It is expected that the instrument can contribute to provide theprofessionals with suitable tools in order to obtain information to subsidizeintervention programs based on the systemic familial approach.

Keywords: Family – Disabilities – Professionals

Os estudos sobre parentes de indivíduos comnecessidades educacionais especiais oferecemum quadro de referência bastante negativo so-bre as reações, percepções e sentimentos ex-perienciados por essas pessoas. Entretanto, jáexistem também vozes discordantes de algunsautores que, se contrapondo a esta visão nega-tiva, enviesada e estereotipada, enfatizam anecessidade de substituí-la por uma percepçãomais realista, mais normalizante e positiva des-tas famílias. Refletindo essa nova tendência, aliteratura científica sobre o tema aponta que,além das tradicionais atitudes negativas carac-terizadas como resistência, superproteção, re-jeição e peregrinação (PALOMINO, 2002;TELFORD; SAWREY, 1984), existe uma ou-tra vertente promissora dos estudos sobre fa-mílias que visam investigar como elas buscame desenvolvem meios para lidar com as conse-qüências ocasionadas pela necessidade espe-cial, que são as denominadas estratégias deenfrentamento.

As estratégias de enfrentamento são defi-nidas por Taanila, Syrjälä, Kokkonen e Järve-lin (2002), como o processo ativo que envolve

comportamentos que as famílias tentam em-pregar para conseguir controlar, se adaptar elidar com situações de muito estresse. O de-senvolvimento dessas estratégias requer mu-danças cognitivas e esforços comportamentaisconstantes para administrar demandas inter-nas e/ou externas. Deste modo a família de-senvolve estratégias de enfrentamento paramanter ou restaurar o equilíbrio entre deman-das e recursos disponíveis.

O modo como as famílias fazem uso de es-tratégias de enfrentamento torna clara a dinâ-mica familiar diante de uma nova situação aser enfrentada. Essa dinâmica baseia-se no fatode que a família funciona como um sistema noqual um problema que atinge um dos membrosafeta todos os outros. As famílias podem servistas como sistemas à medida que possuempadrões de interação que se repetem e que sãoprevisíveis, sendo que grande parte desses pa-drões se desenvolve com o passar do tempodentro de cada família. Além disso, cada famí-lia possui subsistemas que se correlacionam pormeio de regras implícitas e explícitas (MINU-CHIN; COLAPINTO; MINUCHIN, 1999).

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 241

Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins

Embora seja essencial para o sucesso deintervenções voltadas para o aluno com neces-sidades educacionais especiais considerar afamília como um sistema, muitos profissionaisfocalizam sua ação no indivíduo e acreditam queo atendimento às famílias é um trabalho extra eque pode ser dispensado para que não aumenteainda mais a sua carga de trabalho. Assim, aten-der as famílias não é tido como fundamental eos profissionais não são incentivados a mudaressa situação (MINUCHIN; COLAPINTO;MINUCHIN, 1999).

Considera-se que, para se desenvolver umaparceria entre família e escola especial, é pre-ciso buscar o envolvimento da família, aoinvés de lidar apenas com as dificuldades queesta apresenta. O problema do qual partiu opresente estudo foi a necessidade de se busca-rem meios para que os profissionais responsá-veis pela educação de alunos com necessidadeseducacionais especiais identifiquem o que assuas famílias precisam em termos de apoio,assim como os pontos fortes que elas possuem,de modo a facilitar o desenvolvimento de pro-gramas voltados para toda a família.

O objetivo do presente estudo foi construir etestar um instrumento capaz de levantar as ne-cessidades e potencialidades de famílias de cri-anças com necessidades educacionais especiais.

MÉTODO

O delineamento do estudo envolveu duasetapas, sendo a primeira destinada a construiro instrumento e a segunda a testá-lo num estu-do de campo.

LocalA primeira etapa foi realizada em uma es-

cola especial privada de natureza filantrópicado interior do estado de São Paulo, e a segundaem três escolas privadas da mesma natureza,também localizadas em cidades do interior doestado de São Paulo.

MaterialO estudo envolveu basicamente a utilização

do instrumento em suas três versões (prelimi-nar 1, preliminar 2 e final), lápis e canetas.

ParticipantesParticiparam da primeira etapa, especifica-

mente do procedimento de validação semânti-ca, nove mães e uma avó de crianças comnecessidades educacionais especiais.

A idade desse grupo variou entre 28 e 60anos. Em relação ao grau de instrução, quatroparticipantes não completaram o ensinofundamental; três têm nível médio, duas têmnível superior completo, e uma das mães é anal-fabeta.

Na segunda etapa foram selecionadas mãesque tinham filhos com necessidades educacio-nais especiais na faixa etária entre zero a seisanos, a fim de reduzir a variabilidade da amos-tra na qual o instrumento seria testado. Seguin-do este critério foram selecionadas 36 mães etrês avós. É importante observar que as trêsavós foram entrevistadas por serem elas as res-ponsáveis pelos cuidados da criança.

A idade das participantes variou entre 21 e51 anos. Quanto ao grau de instrução, consta-tou-se que a maioria (61%) não completou oensino fundamental, 25,5% têm nível médio,2,5% nível médio incompleto, e 10% apenas onível fundamental. Em relação ao estado civil,pouco mais da metade das participantes (56,5%)são casadas, 18% são solteiras, 15,5% sãoamasiadas, e o restante das participantes (2,5%)são divorciadas. Além disso, a maior parte dasmães (79,5) são donas-de-casa e poucas(20,5%) trabalham fora do lar.

Os dados familiares indicam que a maiorparte das famílias possuem renda entre dois equatro salários mínimos (46%), ou entre zero edois salários mínimos (31%). Apenas 10% dasfamílias têm renda entre quatro e seis saláriosmínimos, sendo que 13% têm renda entre seise oito salários mínimos. Em relação ao númerode filhos, 28% das participantes possuem umfilho, 31% possuem dois, 20,5% três filhos, 10%quatro filhos, 8% cinco e, finalmente, 2,5% dasparticipantes possuem seis filhos.

Procedimento de coleta de dadosO delineamento do estudo envolveu duas

etapas, sendo a primeira destinada a construiro instrumento e a segunda a testá-lo num estu-do de campo.

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Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais

Etapa 1: Desenvolvimento do instrumen-to. Formulário de identificação das neces-sidades e potencialidades de famílias decrianças com necessidades educacionaisespeciais

Para a construção da versão preliminar 1foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobrepublicações que abordam, direta ou indiretamen-te, o tema da família da pessoa com necessida-des educacionais especiais, suas características,necessidades e expectativas.

Com base na leitura e fichamento do mate-rial pesquisado foram extraídas as informaçõesque permitiram elaborar as frases afirmativasque se tornaram itens do instrumento. Tais in-formações foram baseadas em evidências oufatos apontados pelos autores como relaciona-dos à condição de famílias que possuem pelomenos um membro com necessidades educa-cionais especiais.

A versão preliminar 1 foi então submetidaao procedimento de validação de conteúdo, queteve como objetivo avaliar se o conteúdo do ins-trumento seria capaz de medir precisamente asnecessidades e potencialidades de famílias decrianças com necessidades educacionais espe-ciais. Para tanto ela foi analisada por quatroperitos na área, e as modificações sugeridaspelos juízes foram incorporadas, chegando-seassim à versão preliminar 2 do instrumento, quefoi em seguida submetida ao procedimento devalidação semântica.

O procedimento de validação semânticateve como objetivo adequar o vocabulário utili-zado no instrumento às habilidades de compre-ensão de linguagem das mães. Neste passo oinstrumento foi testado para avaliar se as mãescompreendiam ou não o vocabulário utilizadonos itens, e identificar as necessidades de ade-quação da redação para aperfeiçoá-lo. Assima versão preliminar 2 do instrumento foi aplica-da a nove mães e uma avó, que não participari-am da última etapa do estudo.

Após submeter o instrumento preliminar àanálise de conteúdo e à validação semântica, erealizar todas as alterações necessárias, che-gou-se à versão final do instrumento denomi-nado “Formulário de identificação das

necessidades e potencialidades de famíliasde crianças com necessidades educacionaisespeciais”.

O instrumento é composto por quatro par-tes: a primeira parte contém instruções sobrecomo o instrumento deve ser aplicado; a se-gunda parte traz a Ficha de Identificação; a ter-ceira parte corresponde ao formulário propria-mente dito; e a quarta parte compõe-se de doisprotocolos de registro.

A Ficha de Identificação levanta dados so-bre a família da criança com necessidades edu-cacionais especiais. Ela contém perguntas sobrea idade, o grau de instrução, a profissão e oestado civil da mãe e do pai da criança, assimcomo perguntas sobre características familia-res, tais como renda familiar e número de fi-lhos. Também estão presentes na fichaperguntas sobre a criança com necessidadesespeciais, tais como a necessidade especial queela apresenta e os serviços que freqüentou efreqüenta.

O Formulário foi confeccionado em forma-to de texto e é composto por afirmativas emforma de itens numerados de 01 a 57. Para cadauma das alternativas estão relacionadas as res-postas concordo e discordo, sendo que cadaresposta está acompanhada de um local paraser assinalado.

Os itens estão divididos em 11 categoriasde análise, que foram construídas com basenos temas mais discutidos pela literatura refe-rentes à família de crianças com necessida-des educacionais especiais. As categoriasresultantes são: estratégias de adaptação, ne-cessidade de serviço, percepções positivas,necessidade de treinamento, informações, su-porte social, atitudes, relacionamento com aescola, reações frente ao diagnóstico, aceita-ção, e preocupação e estresse.

O Protocolo de Registro 1 deve ser utilizadoquando o instrumento for aplicado a um grandenúmero de mães, já que permite que os dadossejam tabulados com vistas à sua análise esta-tística.

O Protocolo de Registro 2 deve ser utilizadoquando o instrumento for aplicado a um núme-ro pequeno de mães; por exemplo, no caso de

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mães que estão pleiteando uma vaga para o fi-lho na escola regular ou especial. Neste caso, oprotocolo permite que um perfil da mãe e dafamília da criança com necessidades educacio-nais seja obtido de maneira direta, já que os itensestão divididos de acordo com a categoria à qualeles se referem.

Concluída a etapa de elaboração do instru-mento, foi realizado um estudo de campo a fimde testá-lo.

Etapa 2: Estudo de campo para testar oformulário

Primeiramente, o estudo foi submetido àaprovação pela equipe responsável e tambémpelo setor administrativo de cada uma das trêsinstituições. Após aprovação, iniciou-se o con-tato com as mães.

A aplicação do instrumento foi realizada in-dividualmente por duas pesquisadoras treinadas.Em primeiro lugar, o Termo de ConsentimentoLivre e Esclarecido foi lido pela pesquisadora eassinado por cada mãe. A seguir, uma breveexplicação do objetivo do estudo e instruçõesreferentes ao instrumento foram lidas para asmães. Cada participante forneceu os dadospessoais e familiares para que a Ficha de Iden-tificação fosse preenchida pela pesquisadora.Os itens que compõem o Formulário tambémforam lidos para elas e as respostas (concordoou discordo) assinaladas pela pesquisadora.

Procedimento de análise de dadosPara a análise, todas as respostas fornecidas

pelas participantes foram tabuladas no progra-ma Excel. Para tanto, foi necessária a atribuiçãode valores numéricos às respostas afirmativasdo questionário. Foram atribuídos, então, os va-lores um e zero para cada resposta. Após a atri-buição de valores para cada um dos itens, todosos protocolos de registros foram preenchidos eos dados dos formulários somados e distribuídosnas categorias de análise.

RESULTADOS

Os resultados aqui apresentados referem-se às respostas fornecidas pelo conjunto dastrinta e nove participantes deste estudo medi-

ante a aplicação do instrumento “Formuláriode Identificação das Necessidades e Poten-cialidades de Famílias de Crianças com Ne-cessidades Educacionais Especiais”.

A Figura 1 apresenta a distribuição de fre-qüências relativas em cada uma das categoriasdo instrumento, calculadas a partir da freqüên-cia absoluta de respostas das 39 participantespara cada categoria.

De acordo com as evidências obtidas foipossível obter um perfil do conjunto das par-ticipantes. Esse perfil será apresentado emduas partes, sendo que na primeira parte se-rão descritas as potencialidades apresenta-das pelas participantes e na segunda parteserão apresentadas suas necessidades deatendimento.

Potencialidades das mães e fami-liares

A maior parte das participantes (95%) indi-cou possuir percepções positivas em relação aofato de ser mãe de uma criança com necessi-dades educacionais especiais, ou seja, elas re-latam sentimentos positivos e consideram quea vida delas ganhou em significado, enriqueci-mento e crescimento pessoal com o nascimen-to da criança.

Outra potencialidade observada diz respeitoàs estratégias de adaptação, pois 89% das parti-cipantes informaram ter realizado ou continuarrealizando mudanças em seu estilo de vida, parase adaptar à condição de mãe de uma criançacom necessidades educacionais especiais.

Em relação à aceitação, 74% das partici-pantes relataram que aceitam a necessidadeespecial da criança e também que percebemessa aceitação por parte dos demais membrosda família.

As categorias atitudes e reações frente aodiagnóstico receberam a mesma freqüência derespostas. Assim, 66% das participantes indi-caram ter atitudes adequadas em relação aofilho, não o superprotegendo, deixando que elerealize tarefas simples e até o incentivando arealizá-las, além de dar a mesma atenção para

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os outros filhos. Por sua vez, 66% também re-lataram reações emocionais favoráveis antes eapós terem recebido o diagnóstico da necessi-dade especial, modificando suas expectativas

em relação à criança e não realizando peregri-nação a diferentes profissionais em busca daconfirmação de um diagnóstico mais favoráveldo que o recebido.

LEGENDAEA: Estratégias de adaptação NS: Necessidade de serviçosPP: Percepções positivas NT: Necessidade de treinoI: Informações SS: Suporte socialAt: Atitudes RE: Relações com a escolaRD: Reações frente ao diagnóstico A: AceitaçãoPE: Preocupação e estresse

Quanto ao suporte social, 63% das partici-pantes responderam possuir apoio de seus ou-tros filhos, de seu marido, demais parentes etambém de amigos. Tal apoio foi observado tan-to em relação ao cuidado diário com a criança,quanto em relação ao suporte emocional quese fornece à mãe ao escutá-la e ao demonstrarempatia, apoiando as suas decisões e conver-sando com ela sobre seus sentimentos, dúvidase angústias.

Finalmente, 57% das participantes não apre-sentam indicadores de preocupação e estresse,já que a freqüência de respostas nessa catego-ria foi de 43%, ou seja, a maioria das mães nãodemonstrou experienciar sentimentos negativos(tais como estresse e depressão) provocadospelo fato de ser mãe de uma criança com ne-cessidades educacionais especiais.

Necessidades apresentadas pelasmães

Quanto às necessidades que as participan-tes possuem, a maioria (81%) informa que ne-

cessita receber informações sobre o diagnósti-co de seu filho e também informações que lheajudem na sua criação e educação.

Grande parte das participantes (78%) tam-bém indicou a necessidade de aprender técni-cas que lhe permitam ensinar certas habilidadespara seus filhos, tais como as de tomar líquidossem auxílio, comer e vestir-se sozinho, ser in-dependente nas atividades de higiene, prestaratenção, seguir e imitar modelos, comunicar-se, fazer uso de regras de conduta, relacionar-se bem com outras crianças, utilizar as mãos emovimentar-se de forma mais adequada, movi-mentar-se de forma independente em seu lar,realizar tarefas domésticas, e locomover-sesozinho pela vizinhança e em sua cidade de for-ma independente.Dentre essas habilidades,aquelas que obtiveram maior freqüência de res-postas foram: comunicar-se (92%), vestir-sesozinho (90%), prestar atenção, seguir e imitarmodelos (87%), ser independente nas ativida-des de higiene (87%), relacionar-se bem comoutras crianças (82%), e locomover-se na suacidade de forma independente (82%).

Figura 1: Freqüência de respostas em cada categoria

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As participantes também relataram que ne-cessitam de serviços, ou seja, 63% delas preci-sam de atendimento profissional específico oude uma orientação por parte da escola que asajude com seus sentimentos, dúvidas e deman-das em relação às necessidades especiais dofilho. Além disso, as mães relataram que gos-tariam que as escolas desenvolvessem mais ashabilidades de seus filhos, ou seja, que ensinas-sem habilidades diretamente para a criança ouentão através de treinamento com os pais, paraque estes possam realizar algumas atividadesestimuladoras em casa.

Por fim, observou-se que 57% das partici-pantes apresentam relações desfavoráveis coma escola de seus filhos, já que 43% responde-ram manter relações favoráveis com ela. As-sim, fica claro que as mães evitam contatos coma escola, que o seu relacionamento com a insti-tuição é restrito, e que elas não são participati-vas, deixando de ir à escola quando solicitadasou então faltando a seus eventos comemorati-vos. Constatou-se ainda que há pouco ou ne-nhum diálogo entre família e profissionaisresponsáveis pela educação da criança com ne-cessidades educacionais especiais.

DISCUSSÃO

Diante do perfil apresentado pelas partici-pantes, é possível confrontar alguns dos resul-tados obtidos com aqueles encontrados naliteratura sobre famílias de pessoas com neces-sidades educacionais especiais.

O resultado que chama mais a atenção é oindicador de que 95% das participantes indica-ram ter percepções positivas em relação ao fatode ser mãe de uma criança com necessidadeseducacionais especiais. Hastings e Taunt (2002)revisaram cinco estudos nos quais foram feitasperguntas aos parentes com o intuito de des-crever o impacto positivo que uma criança comnecessidades educacionais especiais pode ge-rar na família como um todo, ou nos seus mem-bros individualmente. Os autores concluíram queos componentes da família relatam experiênci-as e percepções positivas em relação à criança

e ao impacto neles causado pelo seu nascimen-to. Observou-se uma consistência razoável nospadrões dos resultados identificados nos cincoestudos, o que sugere que há dados segurosacerca de existência de percepções e experi-ências positivas da família.

Tais evidências parecem indicar primeira-mente que o nascimento de um filho, ou a exis-tência de um membro com necessidadeseducacionais especiais na família, não é neces-sariamente uma experiência negativa, tal comoretrata a literatura da área.

Entretanto, cabe ressaltar que a amostra dopresente estudo foi selecionada entre mães decrianças com idade entre zero e seis anos. Podeser que, ao longo do tempo, tal percepção sealtere e, por isso, sugere-se que sejam feitosestudos com mães de crianças de diferentesfaixas etárias.

Em relação às estratégias de adaptação, osresultados encontrados também corroboram osresultados obtidos em outros estudos. Taanila,Syrjälä, Kokkonen e Järvelin (2002), por exem-plo, também encontraram essas estratégias.Eles realizaram um estudo com 27 pais de cri-anças com deficiência mental, com deficiênciafísica e com deficiência mental e física. Estespassaram por uma entrevista inicial que buscouesclarecer como eles reagiram à necessidadeespecial do filho, de que modo isso afetou a vidae o funcionamento da família, as relações entreestes pais, a vida social e o trabalho, e o tempoque eles se dedicam às atividades de lazer.Depois dessa entrevista inicial os pesquisado-res investigaram o funcionamento de cada fa-mília, fazendo uso de uma escala. Para a segundaentrevista foram selecionadas as quatro famíli-as com as menores (grupo I) e as maiores pon-tuações (grupo II). Essa segunda entrevistavisou conseguir informações sobre como asfamílias enfrentaram a situação, que tipo de vidaelas estavam vivendo no momento da entrevis-ta, e que estratégias de enfrentamento usavam.Os resultados indicaram que as estratégias deenfrentamento mais freqüentemente relatadaspelos pais foram: busca de informações, acei-tação, boa cooperação familiar e bom apoiosocial. Os dois grupos usaram estratégias simi-

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Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais

lares, mas o grupo II, além de fazer maior usodessas estratégias, tinha maior repertório emaior controle em relação a ele.

Por sua vez, o estudo desenvolvido por Sil-va (1988) com o objetivo de investigar quaissão as experiências e necessidades da mãe apóso recebimento do diagnóstico da deficiênciamental do filho encontrou resultados semelhan-tes, no que diz respeito à categoria aceitação.Quando a pesquisadora indagou sobre os senti-mentos das mães ao receberem o diagnóstico,apenas 6% das mulheres entrevistadas relata-ram o sentimento de não aceitação da criança.Por outro lado, o estudo realizado por Colnago(2000) descreveu resultados diferentes quantoà aceitação, já que a autora considerou, apósimplementar e avaliar um programa de orienta-ção para pais de crianças com Síndrome deDown, que um dos aspectos que deve ser tra-balhado com os pais é, justamente, a aceitação.

Colnago (2000) também apresenta resulta-dos discordantes quanto à categoria reaçõesfrente ao diagnóstico. Colnago observou que asreações à notícia da necessidade especial dofilho são diversas, porém todas as famílias par-ticipantes demonstraram descrença, choque etristeza. Assim, esse estudo mostrou que asfamílias experienciam reações desfavoráveisfrente ao diagnóstico, ao passo que o presenteestudo encontrou resultados totalmente opos-tos ao descrever que 66% das participantesrelataram reações favoráveis. Para investigarmelhor essa categoria talvez fosse necessárioformular mais itens sobre ela, de modo a verifi-car se as mães realmente experienciam rea-ções favoráveis frente ao diagnóstico, ou se ositens que tratavam desse tema foram insufici-entes para verificar reações desfavoráveis.

A categoria suporte social foi confrontadacom a pesquisa de Matsukura (2001), na qualum dos objetivos foi investigar a percepção quemães de crianças com necessidades educacio-nais especiais (grupo 1) e mães de crianças comdesenvolvimento típico (grupo 2) possuem emrelação aos níveis de estresse e de suporte so-cial. Foi constatado que as mães do grupo 1demonstram perceber um número menor depessoas em sua rede de suporte social em com-

paração com as mães do grupo 2. Porém, nãohouve diferenças significativas entre os doisgrupos quanto à satisfação com o suporte soci-al recebido. Por sua vez, no presente estudo,63% das mães indicaram que percebem o su-porte social que recebem. Diante disso, fica cla-ra a importância de se desenvolverem mais itensdentro do instrumento que aborda tal questão,para se investigar quais são as pessoas quecompõem a rede de suporte social das mães, etambém o quanto elas estão satisfeitas com aspessoas que lhes apóiam.

Observou-se também que 57% das mãesnão relataram ter preocupação e estresse emrelação ao fato de possuir um filho com neces-sidades educacionais especiais. Embora tal re-sultado não possa ser considerado significativo,ele ainda é surpreendente, já que vários estu-dos demonstram o contrário. No estudo deMatsukura, citado acima, a autora conclui queo número de participantes com estresse per-tencentes ao grupo das mães de crianças comnecessidades educacionais especiais é maior doque o número de participantes com estresse dogrupo das mães de crianças com desenvolvi-mento típico.

Por outro lado, o baixo índice de preocupa-ção e estresse apresentado pelas participan-tes desse estudo pode ser devido ao seu índiceelevado de estratégias de adaptação.Tais es-tratégias permitem que elas enfrentem commaior eficácia os momentos difíceis vivencia-dos e que estão relacionados com a necessi-dade especial apresentada pelo filho. Alémdisso, as percepções positivas que as partici-pantes também indicaram possuir podem fun-cionar como um contraponto para que assituações de preocupação e estresse não se-jam tão prejudiciais para elas.

No que diz respeito à necessidade que asmães têm de receber informações e serviços,relatada por elas nesse estudo, observamosque Praconi (1988) também alcançou resulta-dos semelhantes em sua pesquisa, que tevecomo objetivo investigar e propor uma formaalternativa de atuação por parte dos profissio-nais em relação aos pais de crianças com de-ficiência mental. Segundo a autora, 90% das

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mães participantes apontaram a necessidadede receber orientação sobre como lidar com ofilho; 70% indicaram o desejo de receber maisinformações sobre a necessidade especial queo filho apresenta; e 40% das mães considera-ram importante obter informações sobre os re-cursos que a comunidade dispõe para a saúdee a educação, a fim de poderem lidar melhorcom o filho.

Finalmente, em relação à categoria relaçõescom a escola, Costa (1989) demonstrou, emestudo realizado com 52 mães de crianças comnecessidades educacionais especiais que fre-qüentavam seis instituições, que as relaçõesentre mães e escola especial são desfavorá-veis. Quando as mães foram questionadas se ainstituição tinha conhecimento sobre seus de-sejos, 60% delas responderam que não ou porfalta de tempo para conversar durante as reu-niões propostas, ou por considerar que a escolajá faz muito, não sendo conveniente trazer maisproblemas. Quanto à categoria necessidade deserviço, ainda no estudo de Costa, 86% dasmães entrevistadas responderam que precisamde ajuda: orientação e apoio psicológico.

CONCLUSÃO

É possível considerar que os objetivos doestudo foram alcançados, já que foi desenvol-vido um instrumento a ser utilizado por profissi-onais, para que estes possam conhecer tantoas necessidades quanto as potencialidades dasfamílias de crianças com necessidades educa-

cionais especiais. Além disso, também foi al-cançado o objetivo de verificar a eficácia doinstrumento em levantar indicativos para a ela-boração de um plano de intervenção voltadopara a família destas crianças.

Embora o instrumento construído tenha sidoeficaz no sentido de fornecer um quadro sobreas necessidades e potencialidades das famíliasem questão, ainda é necessário que ele sejavalidado. Por esse motivo, uma sugestão parafuturas investigações é a aplicação desse ins-trumento a um número maior de participantes,com o intuito de verificar se todos os itens sãocompreensíveis e se, em outra população, eleainda será capaz de levantar dados sobre a fa-mília de crianças com necessidades educacio-nais especiais de modo que um plano deintervenção possa ser desenvolvido.

Outra sugestão para futuras investigaçõesé o desenvolvimento de uma pesquisa na qualum plano de intervenção seja traçado tomandocomo ponto de partida o instrumento construí-do. Dessa forma, grupos de pais podem ser cri-ados de acordo com as necessidades relatadaspor eles durante a aplicação do instrumento.

Espera-se que este instrumento seja aper-feiçoado e que ele contribua para instrumenta-lizar os profissionais responsáveis pela educaçãode crianças com necessidades especiais, paraque possam obter informações para subsidiarprogramas de intervenção baseados na abor-dagem familiar sistêmica, e possam melhorar aqualidade de atendimento educacional às cri-anças e jovens com necessidades educacionaisespeciais na realidade brasileira.

REFERÊNCIAS

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MATSUKURA, T. S. Mães de crianças com necessidades especiais: stress e percepção de suporte social.Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2001.

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MINUCHIN, P., COLAPINTO, J.; MINUCHIN, S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artmed,1999.

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PRACONI, J. M. Diagnóstico e intervenção sobre as deficiências do sistema onde vive o deficiente mentalcomo alternativa de atuação profissional. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos,São Carlos, 1988.

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TELFORD, C. W.; SAWREY, J. M. O indivíduo excepcional. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

Recebido em 29.09.06Aprovado em 26.11.06

RESENHAS

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 251-252, jan./jun., 2007 251

BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em temposmodernos. São Paulo: Contexto, 2006. 172 p.

Em tempos de AIDS: uma tragédia Shakespeareana

Yara Dulce Bandeira de Ataide*

Augusto and Lea: a case of (un)love in modern times

* Doutora em Educação. Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Departamento de Educação I e doPPGEduC – Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade. Autora de diversos livros sobre HistóriaOral. Editora geral da Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Endereço para correspondência: Univer-sidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I, Mestrado em Educação e Contemporaneidade, Rua Silveira Martins,2555, Cabula, 41150-000 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

AUGUSTO E LEA é uma tragédia pós-moderna marcada por intenso sofrimento e vi-vências dramáticas que certamente irãoemocionar os leitores, e enriquecer a experiên-cia existencial e científica dos estudiosos dafamília e da História Oral.

Trata-se de um emocionante conjunto derelatos que contam uma história real, com con-trastes, lances e situações dramáticas capazesde provocar inveja nos autores mais criativos etrágicos da literatura de ficção.

O livro do Prof. J.C.S. Bom Meihy relata ahistória de um executivo da alta sociedade pau-listana, vitimado pelo flagelo da AIDS e que, aocontaminar a esposa, abalou a estrutura de todaa família. O autor enfoca, com especial habili-dade, através dos oito relatos dos principais en-volvidos, o abalo afetivo, a história clínica e osproblemas sociais resultantes das questões atu-ais ligadas aos preconceitos, valores éticos, mo-rais e afetivos relacionados a essa doença tãotemida.

Através do suspense e dos sofridos depoi-mentos dos seus integrantes, o drama da famí-lia é tecido pelo autor, com sua já conhecidahabilidade de escritor e historiador oral.

Trata-se de uma obra que busca traduzir a“indizível” experiência de vida que marcou umgrupo familiar e que emociona, desconserta efustiga todas as pessoas. O autor retrata per-sonagens que marcam suas presenças numahistória que desperta afeto, surpresa e medo,

abalando certezas, convenções e convicções elevando todos a profundas reflexões sobre osproblemas abordados. O leitor tem muito quepensar depois da leitura deste livro.

Sou aidética. Contraí o vírus do meu marido,Augusto. Isso é triste demais. Não foi azar, não...foi desgraça. (Lea, a mãe)

Sei que Lea é vítima, mas entendi que eu tambémsou. Ela foi infectada por mim. Eu fui pela minhahistória e pelo passado de minha família.(Augusto, o pai)

Se o olhar técnico e científico do livro fosseomitido, ele poderia competir – com acentuadavantagem – com qualquer obra de literatura deficção. Com especial competência o autor mar-ca os seus leitores ao textualizar histórias tãodramáticas, como se elas fossem um ferro embrasa.Todos, leitores, estudiosos e pesquisado-res, deveriam conhecer este livro, fruto de umapesquisa de história oral de família que revela oimpacto provocado pela AIDS, e que se baseianos diversos olhares dos próprios atores envol-vidos na trama do grupo familiar.

História Oral e Ciências Sociais, ou HistóriaOral e ficção? Haverá sempre uma fronteirafluida e movediça entre as explicações da rea-lidade e as narrativas elaboradas pela imagina-ção. Mais uma vez, confirma-se o aforismo quediz que a vida imita a arte. Nesse caso, no livrode J.C.S. Bom Meihy, a vida não só imita aarte, mas a supera e ultrapassa.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 251-252, jan./jun., 2007252

Assim afirma Leta, a nora:... quero dizer que hoje sou outra pessoa... Foicomo se pegasse uma faca afiada e dividisse avida em dois pedaços...”

Neste livro original e marcante, o pesquisa-dor analisa seu próprio papel como mediador eassim afirma:

Em termos pessoais, sendo eu o ouvinte de to-dos, aprendi à força das mensagens enviadas deuns para outros e notei que, ao me tornar regis-trador fui visto como um caderno em branco, noqual as pessoas escrevem suas experiênciascomo quem, de um certo jeito, acertava contacom uma história que, afinal, não era apenas sódeles, mas, sim, de um mundo urbano em mu-danças aceleradas. (MEIHY, 2006, p. 127)

Como cidadãos desse mundo global, exci-tante e descartável sentimos a sensação de li-berdade quase sem limites que nos dá asas.Mas, proporcionalmente, há um grande risco eum permanente vazio que impulsiona a vora-gem e a ânsia de ter mais, viver intensamente,experimentar mais. Ser em plenitude não é oobjetivo mais perseguido.

O mundo atual seduz e aponta para um ca-leidoscópio de opções e realizações. Mas as con-seqüências dessas escolhas e estilos de vida têmum ônus que é inevitável. Há que se pensarespecialmente na ética, sustentabilidade, na saú-de do ser e da terra, no HIV e na vulnerabilida-de humana.

Recebido em 11.03.07Aprovado em 11.03.07

OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias Pereira. Conselhos Municipais de Educação...

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 253-254, jan./jun., 2007 253

OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, ZacariasPereira. Conselhos Municipais de Educação: um estudo da regiãometropolitana de Campinas. Campinas/SP. Editora Alínea, 2006. 300 p.

A Participação como Forma de Democratização dos Sistemas

Desimary Ferreira Lima de Miranda*

Cities’ Education Counsels:a study of the metropolitan area of Campinas (São Paulo, Brazil)

* Mestranda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/RS. Endereço para correspondência: Rua SãoJoaquim, 250, apt 301, Centro – 93010190, São Leopoldo/RS. E-mail:

O livro Conselhos Municipais de Educa-ção: um estudo da região metropolitana deCampinas é resultado do trabalho coletivo depesquisadores e professores de diferentes ins-tituições de ensino superior que, num primeiromomento, se propuseram a investigar, analisar,acompanhar e avaliar o processo de municipa-lização da educação, nos aspectos político-so-cial, legal, administrativo e pedagógico, em dezmunicípios paulistas. Estes profissionais, inte-grantes do Laboratório de Gestão Educacional– LAGE, da Faculdade de Educação da UNI-CAMP, desenvolveram uma pesquisa no perío-do de 1998 a 2000 que, naquela ocasião,resultou em um livro intitulado Descentraliza-ção, Municipalização e Políticas Educativas.

Posteriormente, com a nova realidade gera-da pela Lei Complementar 870, de 19 de junhode 2000, que criou a Região Metropolitana deCampinas – RMC, os integrantes do LAGE de-cidiram conhecer os Conselhos Municipais deEducação dos 19 municípios que compõem estanova região metropolitana, quais sejam: Ameri-cana, Artur Nogueira, Campinas, Cosmópolis,Engenheiro Coelho, Hortolândia, Holambra, In-daiatuba, Itatiba, Jaguariúna, Monte Mor, NovaOdessa, Paulínia, Pedreira, Santa Bárbara doD’oeste, Santo Antonio da Posse, Sumaré, Vali-nhos e Vinhedo. Assim, no período de 2002 a2004, com o financiamento da FAPESP, foi de-senvolvida uma segunda pesquisa do LAGE, quetambém se transformou em livro, investigando

agora os Conselhos Municipais de Educação -CME em funcionamento no período de 1997 a2003, bem como os Conselhos da RMC, obser-vando as possíveis interfaces entre estes órgãos.

A obra tem quatro autores: Cleiton de Oli-veira, doutor em educação pela UniversidadeEstadual de Campinas e titular do programa dePós-Graduação em Educação da UNIMEP; Pe-dro Ganzeli, doutor e mestre pela Faculdade deEducação da Universidade Estadual de Campi-nas e discente do Departamento de Políticas,Administração e Sistemas Educacionais e do pro-grama de Pós-Graduação da FE/UNICAMP;Sonia Giubilei, doutora em educação pela Uni-versidade Estadual de Campinas, professora doDepartamento de Políticas, Administração e Sis-temas Educacionais e do Programa de Pós-Gra-duação em Educação da FE/UNICAMP, ecoordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisaem Educação de Jovens e Adultos (GEPEJA) daFE/UNICAMP; e Zacarias Pereira Borges, dou-tor em educação pela Universidade Estadual deCampinas e professor do Departamento de Políti-cas, Administração e Sistemas Educacionais doPrograma de Pós-Graduação em Educação daFE/UNICAMP, e coordenador do Laboratório deGestão Educacional da FE/UNICAMP.

Segundo os autores, a pesquisa exigiu análi-se do significado da educação enquanto políti-ca social, fazendo-se necessário conhecer oprocesso de produção das ações do Estado noâmbito da RMC, na área da educação.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 253-254, jan./jun., 2007254

Eles consideram o processo de reforma doEstado desencadeado nos anos 90, referente àredução de seu tamanho e ampliação de suagovernabilidade, e a preocupação dos educa-dores no que diz respeito à descentralização doensino, à autonomia e à participação nos pro-cessos decisórios. Fazem referência às trans-formações do sistema federativo brasileiro,tendo por base o poder atual do município rela-tivo à educação, caracterizado como ente au-tônomo dentro da Federação. A pesquisaportanto deu ênfase às praticas da descentrali-zação, autonomia e participação nas ações queo município desenvolve, incluindo a criação e adinamização dos CME.

Além de analisar a organização e o funcio-namento dos Conselhos Municipais de Educa-ção da RMC, o estudo teve como objetivosgerais verificar a existência de sistemas muni-cipais de educação e examinar as divergênciase convergências das propostas dos CME quecontribuíram para a coesão ou dispersão dasações educativas na RMC. Assim sendo, o Pro-jeto de pesquisa estabeleceu como meta análi-ses individuais dos municípios, determinando umpesquisador responsável para cada municípioestudado. De modo geral, a dificuldade da pes-quisa concentrou-se nos diferentes interessesque envolveram os 19 municípios.

Após a coleta dos dados, e feita a análiseem consonância com os objetivos propostos, aequipe de pesquisadores concluiu que:

A criação, organização e funcionamento dosCME está diretamente ligada à discussão so-bre sistemas de ensino. Nos termos da legisla-ção, a constituição de um sistema pressupõe acriação do CME e um dispositivo legal quenormatize a matéria. Observando, entretanto,a realidade efetuada nos municípios, constata-mos que isso não acontece. Verificamos que nãohá consenso entre os agentes educacionais so-bre o seu significado. Falta clareza entre osmembros sobre a constituição do sistema muni-cipal de ensino, bem como a relação entre estee o sistema estadual de ensino. (p.271).

Questões como o processo de municipaliza-ção induzindo a criação dos CME, a dependên-cia dos Conselhos com relação ao órgãomunicipal de educação, o pouco tempo de atu-

ação dos Conselhos e a ausência de clareza desuas atuações, entre outras, emergem comopontos que necessitam ser discutidos pela soci-edade para que se possa garantir um aprendi-zado democrático da sociedade como um todo.

Como questões finais os pesquisadores for-mularam algumas recomendações para aprimo-rar a estrutura e o funcionamento dos CME.São elas: o reforço da estrutura e do funciona-mento da Câmara Temática de Educação1 ; aorganização de encontros entre os CMEs, atra-vés da Câmara Temática de Educação; cria-ção de novas formas de divulgação das açõesrealizadas pela Câmara Temática de Educaçãoe pelo CMEs; promoção de cursos de prepara-ção de conselheiros que abordem temas liga-dos a sua estrutura e funcionamento, bem comotemas ligados à área de educação; revisão daperiodicidade e do horário de realização dasreuniões do CME, de forma a facilitar a pre-sença de maior número de participantes; ga-rantia de assessoramento técnico aos membrosdo CME, de forma a melhorar a qualidade dasdecisões tomadas e ampliar sua autonomia; eampliação das diferentes estruturas participati-vas na área da educação.

Tendo em vista a necessidade de aprimora-mento da estrutura e do funcionamento dosCMEs, a obra contribui para o entendimentodas formas de gestão da educação brasileiradentro de um contexto político, em que se re-quer de todos os envolvidos a participação cons-ciente para a melhoria da qualidade de ensino.

A leitura é imprescindível a todos aquelesque se dedicam à temática da educação muni-cipal, das políticas públicas e das formas cole-giadas de gestão. A metodologia clara, asquestões objetivas e a seriedade da pesquisaconfiguram a qualidade do trabalho, que inves-tiga os Conselhos Municipais de uma regiãoimportante pela sua representação no territórionacional.

1 A Câmara Temática de Educação é um órgão formalmenteconstituído por técnicos e representantes de vários setoressociais. Essa, em especifico, foi criada pela DeliberaçãoCD-RMC nº 11/02, de 5 de junho de 2002. É composta pordoze municípios e, também, por um representante do Esta-do, totalizando treze membros.

BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em tempos modernos.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007 255

Revista da FAEEBA: Educação e ContemporaneidadeISSN 0104-7043

Revista temática semestral do Departamento de Educação I – UNEB

Normas para publicação

I – PROPOSTA EDITORIAL

A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e se-mestral, que tem como objetivo incentivar e promover o intercâmbio de informações e resultadosde estudos e pesquisas de natureza científica, no campo da educação, em interação com as de-mais ciências sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Acei-ta trabalhos originais, que analisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural, e quesejam classificados em uma das seguintes modalidades:- ensaios: estudos teóricos, com análise de conceitos;- resultados de pesquisa: texto baseado em dados de pesquisa;- estudos bibliográficos: análise crítica e abrangente da literatura sobre tema definido;- resenhas: revisão crítica de uma publicação recente;- entrevistas com cientistas e pesquisadores renomados;- resumos de teses ou dissertações.

Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outroperiódico. A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo queos pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originaisem francês e inglês poderão ser traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coor-denação do autor ou de alguém indicado por ele.

Os temas dos futuros números e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimosnúmeros da revista, assim como no site www.revistadafaeeba.uneb.br, ou podem ser informadospelo editor executivo a pedido. Também será publicada, em cada número, a lista dos periódicoscom os quais a Revista da FAEEBA mantém intercâmbio.

II – RECEBIMENTO E AVALIAÇÃO DOS TEXTOS RECEBIDOS

Os textos recebidos são apreciados inicialmente pelo editor executivo, que enviará aos autoresa confirmação do recebimento. Se forem apresentados de acordo com as normas da Revista daFAEEBA: Educação e Contemporaneidade, serão encaminhados para os membros do ConselhoEditorial ou para pareceristas ad hoc de reconhecida competência na temática do número, semidentificação da autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação.

Os pareceres têm como finalidade atestar a qualidade científica dos textos para fins de publica-ção e são apresentados de acordo com as quatro categorias a seguir: a) publicável sem restrições;b) publicável com restrições; c) publicável com restrições e sugestões de modificações, sujeitas anovo parecer; d) não publicável. Os pareceres são encaminhados para os autores, igualmente semidentificação da sua autoria.

Os textos com o parecer b) ou c) deverão ser modificados de acordo com as sugestões doconselheiro ou parecerista ad hoc, no prazo a ser definido pelo editor executivo, em comumacordo com o(s) autor(es). As modificações introduzidas no texto, com o parecer b), deverão sercolocadas em vermelho, para efeito de verificação pelo editor executivo.

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007256

Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes eminglês, o(s) autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo aoportunidade de introduzir eventuais correções de pequenos detalhes.

III – DIREITOS AUTORAIS

O encaminhamento dos textos para a revista implica a autorização para publicação. A aceita-ção da matéria para publicação implica na transferência de direitos autorais para a revista. Areprodução total ou parcial (mais de 500 palavras do texto) requer autorização por escrito dacomissão editorial.

Sendo a Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade um periódico temático, serádada preferência à publicação de textos que têm relação com o tema de cada número. Os outrostextos aprovados somente serão publicados numa seção especial, denominada Estudos, na medi-da da disponibilidade de espaço em cada número, ou em um futuro número, quando sua temáticaestiver de acordo com o conteúdo do trabalho. Se, depois de um ano, não surgir uma perspectivaconcreta de publicação do texto, este pode ser liberado para ser publicado em outro periódico, apedido do(s) autor(es).

O autor principal de um artigo receberá três exemplares da edição em que este foi publicado.Para o autor de resenha ou resumo de tese ou dissertação será destinado um exemplar.

IV – ENCAMINHAMENTO E APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS

Os textos devem ser encaminhados exclusivamente para o endereço eletrônico do editorexecutivo ([email protected]). O mesmo procedimento deve ser adotado para os contatosposteriores. Ao encaminhar o texto, neste devem constar: a) a indicação de uma das modalidadescitadas no item I; b) a garantia de observação de procedimentos éticos; c) a concessão de direitosautorais à Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade.

Os trabalhos devem ser apresentados segundo as normas definidas a seguir:

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereçosresidencial (somente para envio dos exemplares dos autores) e institucional (publicado junto comos dados em relação a cada autor), telefones (para contato emergencial), e-mail; c) titulaçãoprincipal; d) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo e Abstract: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultadoe conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, nomínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo, assim como dotrabalho resenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções de boa qualidade.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quandoapresentados em separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser tituladose apresentar referências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentaçãotabular, estabelecida pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dosautores e das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de NormasTécnicas). Vide os seguintes exemplos:

a) Livro de um só autor:BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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b) Livro até três autores:NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução deGeraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.

c) Livro de mais de três autores:CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

d) Capítulo de livro:BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.e) Artigo de periódico:MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? umabreve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.f) Artigo de jornais:SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. OGlobo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.g) Artigo de periódico (formato eletrônico):TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileirade História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago.2000.h) Livro em formato eletrônico:SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.i) Decreto, Leis:BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos paradespacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, SãoPaulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.j) Dissertações e teses:SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) –Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.k) Trabalho publicado em Congresso:LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridadesbrasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.

IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto empregoda pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entreaspas ou, quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo aoautor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aosprocedimentos gramaticais da língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quandoo autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e emletra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias está à disposição de todos(FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas de sites devem, além disso, conter o endereço (URL)entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer referência a um autor deve seradotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas do texto devem constar apenasas notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003.

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6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como osagradecimentos, apêndices e informes complementares.

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas e, no mínimo, 12 páginas; as resenhas podem teraté 5 páginas. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e contertítulo, número de folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e datada defesa pública, assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave.Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windowsou equivalente:

• letra: Times New Roman 12• tamanho da folha: A4• margens: 2,5 cm• espaçamento entre as linhas: 1,5;• parágrafo justificado.

Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de enca-minhar os textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação.

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