o discurso silente: considerações sobre linguagem no hinduísmo, budismo e taoísmo
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GIOVANNA MARINA GIFFONI
O DISCURSO SILENTE: Considerações sobre linguagem no Hinduísmo, Budismo e Taoísmo
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura: Poética,
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Ciência da
Literatura: Poética.
Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim
.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
2009
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.....................................................................................................5
PRIMEIRA PARTE...................................................................................................8
I - A LINGUAGEM.....................................................................................................8
II - A DEMANDA......................................................................................................16
III - O CAMINHO......................................................................................................21
IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.................................................................30
V - O JOGO................................................................................................................32
VI - O GESTO............................................................................................................39
VII - O EQUÍVOCO...................................................................................................42
VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL.................................................................................45
SEGUNDA PARTE..................................................................................................47
I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO..........47
i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do
conhecimento..................................................................................................................47
ii) Ouvir à distância: o conhecimento revelado......................................................52
iii) Ver de perto: o conhecimento secreto...............................................................60
iv) Ouvir x ver: disputa pelo conhecimento............................................................68
v) Revela-se o grande conhecimento secreto: a realidade é apenas isto...............75
II: A GRANDE BALSA E A IMPOSSÍVEL CONTEMPLAÇÃO DO RIO.............88
i) O claro discurso de obscuros rios.........................................................................88
ii) A aceitação do curso do rio..................................................................................94
iii) Grande balsa ao sabor do curso do rio.............................................................99
iv) O caminho do meio............................................................................................104
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Entrecaminhos: I Ching.........................................................................................110
Entrecaminhos: o supremo caminho do não caminho........................................114
Entrecaminhos: Tao dito tao não é tao.................................................................116
v) O caminho indescritível......................................................................................119
TODOS OS CAMINHOS DA LINGUAGEM.....................................................124
APÊNDICE A: CHANDOGYA UPANISHAD (Capítulo VI).............................131
APÊNDICE B: O SUTRA DO DIAMANTE.........................................................139
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................154
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Quando coisas criadas por mágica são vistas como tais, elas deixam de existir. Tal é a natureza de todas as coisas.
(NAGARJUNA. Mahayana Vimsaka, "Vinte [versos] do Mahayana")
5
APRESENTAÇÃO
Isto é um percurso. Nele, percorrem-se três caminhos filosóficos em busca do Isto. Seus
nomes indicam-nos o caminho sem dar conta da viagem: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo. Isto
é uma busca, a busca de como se dá a busca, a pergunta pelo que é o Isto nesses três
percursos. Teriam eles realmente se debruçado sobre a questão do Isto?
Isto é o mesmo que perguntar se eles de fato constituem filosofia. Pois Isto e filosofia são o
mesmo. Por isso, aqui já se assumiu o pressuposto: o de que há o Isto, ou seja, de que há
filosofia, no que se convenciona chamar por aqueles três nomes, ou por um só: Oriente.
Por muito tempo houve a recusa em reconhecer e estudar as produções "orientais" como
obras filosóficas. E, mesmo quando passa a haver algum reconhecimento de sua importância,
ainda são vistas como assistemáticas. Afirmações, que servem convenientemente tanto ao
menosprezo quanto ao elogio, de que não teriam separação de disciplinas, de que não teriam
especialização em sua organização (ou "desorganização"), negaram por muito tempo,
portanto, o fato de elas mesmas terem consciência de serem sistemas1.
Sistema, em filosofia, liga-se à noção de totalidade, um todo organizado, constituído por
partes desenvolvidas umas a partir das outras. Na totalidade sistemática, portanto, está
resguardada a unidade do pensamento, sua especialização e seu desenvolvimento, sua
“evolução”. Não é a totalidade de seu discurso (muito menos ainda sua dedutibilidade) que se
1 Sistema: 1. Uma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, foi empregada por Sexto Empírico para indicar o conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas, e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedutivelmente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam de outras. (ABBAGNANO: 2000, 908. Grifo nosso.)
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tem negado à filosofia hinduísta ou budista, mas a sua constituição histórica, documental,
evolutiva.
No Ocidente as distinções mencionadas aqui [entre as filosofias grega e indiana] têm sido tratadas como dicotomias simples e absolutas: história vs. atemporalidade, análise crítica vs. misticismo. Devido à sua permanente conexão com religião, e, particularmente, à presença preponderante do Hinduísmo, o pensamento indiano é frequentemente encarado no Ocidente como outra coisa que não – e, implicitamente, menor que – filosofia, algo que carece da autonomia e abstração da pura filosofia. (McEVILLEY:2002, 650)2
Que maior abstração há do que a unidade, no entanto, que concretude alcança ao se
identificar com a verdade. Ao se negar a abstração no pensamento indiano, nega-se com isso a
sua unidade, a sua verdade. A verdade é sempre o uno que se depura de uma dinâmica, ou
mesmo a verdade pode ser a dinâmica da unidade, mas sua propensão ao uno é evidente.
Verdade nada mais é para a filosofia, desde a sua origem sacerdótica, a unidade. Verdade,
história, evolução, desenvolvimento, são, todas, palavras muito caras à modernidade,
modernidade que já se inicia com o movimento de se afastar desse âmbito atemporal, onde
não se podem vislumbrar nem mesmo vestígios de escritas em lápide erodida. O discurso
silente não-gravado em pedra documenta a presença de uma dinâmica do tempo. É a essa
dinâmica que se cunha a-histórica. História é verdade, verdade é o testemunho da unidade. É
por se negar a proferir e professar tal testemunho que as filosofias aqui tratadas são alijadas da
história, da filosofia, da história da filosofia, da filosofia da história, da verdade.
2 Todas as citações e apêndices traduzidos são traduções do autor.
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No entanto, a distância alcançada pela filosofia oriental em relação ao percurso ocidental
não está em ser assistemática ou não. O caminho é o mesmo. A diferença está na linguagem3.
A linguagem é o que, de um lado, aproxima todos os discursos filosóficos, e, de outro, impõe-
lhes uma barreira e uma distância.
Não conseguimos, portanto, escapar à tarefa de confrontar essa diferença em nosso
trabalho, principalmente porque todo pensamento é impregnado de linguagem. Assim, antes
mesmo de passarmos à investigação do que é o Isto para o Hinduísmo, para o Budismo, e para
o Taoísmo, e antes de investigarmos a busca do Isto em si, traçaremos algumas considerações
sobre o caminho da linguagem.
3 Esta tese é, antes de tudo, sobre linguagem. Linguagem aqui não se trata, entretanto, da linguagem entidade Linguagem, nem, tampouco, da linguagem instrumento linguagem. Nas páginas que se seguem: linguagem não é linguagem: linguagem é a palavra linguagem.
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PRIMEIRA PARTE
I - A LINGUAGEM
Qual o percurso da linguagem na filosofia ocidental? O que é o Isto da filosofia ocidental,
da propriamente chamada filosofia?
O pensamento parte da Grécia, já desde os pressocráticos, principalmente com Heráclito e
Parmênides, como um exercício esmerado de linguagem. Heráclito é quem vai primeiro
abandonar o caminho da origem do universo para pensar e fazer surgir o Logos. Deste
primeiro passo surgem os conceitos que, desde os seus mais antigos comentadores,
permanecem como questões a impulsionar o movimento dos discursos.
O principal objeto dos mais antigos e deliberados esforços para explicar o mundo permanece na descrição de seu desenvolvimento a partir de um simples, e, portanto, totalmente compreensível, começo. Questões concernentes à vida humana pareciam pertencer a um diferente tipo de investigação – à tradição poética na verdade, pela qual as antigas crenças herdadas, ainda que algumas vezes inconsistentes, eram ainda consideradas válidas. Além disso, o estado original do mundo, e o modo como se diversificou, eram geralmente imaginados antropomorficamente, em termos de um ancestral, ou um par de ancestrais. Esta atitude genealógica persistiu mesmo depois do eventual abandono pelos filósofos milesianos da tradicional investigação mitológica (...). É parte da originalidade de Heráclito que ele tenha rejeitado tal investigação por completo. (KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M: 1983, 8)
Ainda entre os pressocráticos, portanto, acontece a separação entre pensar os fenômenos e
pensar a linguagem. Esta especialização vigora até hoje e foi responsável pela divisão dos
discursos em filosófico e científico. É devido a esta cisão que muitas vezes se retira o
pensamento pitagórico do âmbito do pensamento pressocrático, pois passamos a conceber
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filosofia como o pronunciar-se da linguagem por si só, e não mais "a serviço" de
investigações científicas, místicas ou míticas.
Para entender o que é esse pronunciar-se da linguagem, basta que comparemos os tipos de
discurso em que ela se manifesta. Os textos do Budismo Zen lançam mão em particular de
dois gêneros, o yü-lu (do chinês, "compilação de ditos", "dizeres registrados") e o wen-ta
("pergunta e resposta"). O cânone pressocrático que nos resta constitui-se de compilações, em
diferentes épocas, tardias em sua maioria, dos dizeres de diferentes filósofos. Platão utiliza o
método dialógico, explicado muitas vezes como permanência de uma oralidade que já em seu
tempo estava com os dias contados, ou mesmo como uma reação ao apelo da escrita, numa
patente desconfiança. A partir do abandono destes gêneros pelo ocidente, o texto filosófico
torna-se quase uma entidade, uma verdade que se pronuncia, que se gera. Ninguém pergunta
por ela, e eis que, de repente, brota, passando-nos a impressão de que não foi obra de um
filósofo, mas a própria verdade que se pronunciou, que se doou à escuta.
A linguagem não é A Linguagem, não é uma entidade. A linguagem é a palavra linguagem.
Ao dizer filosofia é linguagem, tendemos a pensar num movimento recíproco que não é
verdadeiro. Linguagem não é filosofia. Linguagem é sempre predicado, um predicado que se
quer sujeito, exorbitando a esfera de suas possibilidades.
É por esse tratamento conferido à linguagem que a filosofia de tradição ocidental é
marcada pela cisão, pela dialética, pela crítica, pelo combate, e, acima de tudo, pelo eterno
retorno da tentativa de superação de si mesma. Mas uma superação que nunca chega a atingir
seu fim, pois sempre parte daquele mesmo isto que constitui o objeto a ser superado: a
linguagem.
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A cisão empreendida pelo filósofo de Éfeso, além de definir os limites entre filosofia e
ciência, erigiu uma barreira que separou estas duas instâncias definitivamente do discurso
mítico, que, primitivamente, reunia em si todas as possibilidades da linguagem. Reunir em si
todas as possibilidades da linguagem não significa, porém, ser uma linguagem mais "pura",
significa apenas reunir pensamento cosmológico, pensamento lógico e pensamento da
linguagem, todos, ainda, como pensamento.
A linguagem, seja para os mitos ou para a ciência, é sempre discurso. Mas, como a
linguagem da filosofia, após os pensadores originários, tornou-se cada vez mais especializada,
mais distante de qualquer possibilidade de reunião, houve a necessidade de se resgatar uma
instância primeira, uma protolinguagem filosófica, aliás, uma linguagem despida de qualquer
termo adjetivante, uma linguagem substantiva; nem mesmo isso: uma linguagem linguagem.
Linguagem.
Por isso, há o retorno ao caminho iniciado por Heráclito. Ao chegar lá, os filósofos do
ocidente olham para trás e tudo o que veem são os mitos já bastante degenerados, já bastante
dispersos, fragmentados, que se conservam esparsamente em Homero e Hesíodo4. O que fazer
com um discurso em ruínas, o que fazer com ecos que mal podem ser ouvidos da distância? O
pensador toma então uma nova decisão. Tenta resgatar os mitos como origem do pensamento,
como fonte de toda linguagem, como linguagem propriamente, uma linguagem concreta, e, a
partir deles, tenta novamente refazer o caminho de volta até nossos dias.
4 Esta afirmação, que soará estranha a alguns, não intenta de modo algum diminuir a importância destes mitos para a nossa cultura, sobretudo a nossa cultura enquanto fundamentada numa época idealizada de Homero e Hesíodo. Como não cabe aos propósitos deste trabalho estender-nos sobre este assunto, indicamos alguns pesquisadores que tratam da questão do processo de degenerescência do discurso mítico na Grécia Antiga. Ver KIRK, G. S., RAVEN, J. E. e SCHOFIELD, M com relação aos mitos do oriente próximo e OTTO, W. para uma confrontação com os hinos homéricos, e sobre uma possível heterodoxia daqueles autores.
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Acredita-se, dessa forma, que possa haver uma linguagem concreta, que traria em si uma
experiência originária. Esta é uma via que nasce da própria negligência com a verdade de
fazer o caminho em direção a si mesmo, em conhecer-se: a linguagem em que se funda a
filosofia ocidental, e, não só ela, mas toda linguagem, é abstrata, é raciocínio, é logos. Ir à
origem não quer dizer necessariamente encontrar uma linguagem originária. Origem só pode
ser entendida a partir de um movimento de fora, ou seja, de quem já se encontra longe da
origem. Mas, é verdade que estamos fora da origem? Se estamos, como compreendê-la, se
não estamos, por que buscá-la?
A cisão que houve nos modos de pensar não pode ter havido na linguagem. Não há
linguagem anterior, ou posterior, ou concreta, ou abstrata, ou originária. Ela é sempre
originária, pois é sempre condição humana, a partir dela tudo o que é humano brota. A menos
que tivesse ocorrido uma cisão também no humano, poderíamos distinguir dois apelos da
linguagem e estaríamos à procura igualmente desse outro que ficou para trás. O homem é
sempre o mesmo, pois a linguagem é sempre a mesma. A linguagem do homem, portanto, não
é a linguagem do homem. É a linguagem, que lhe confere existência.
No pensamento oriental essa experiência traduz-se numa angústia. O filósofo oriental
sente-se assolado pela linguagem, como o filósofo ocidental sente-se assolado pela existência.
Em lugar de se encontrar para além de uma instância do ser, a existência conferida pela
linguagem no pensamento oriental é, antes de tudo, uma instância delimitada por ela,
determinada por suas infinitas manifestações. É preciso cessar esse mostrar, esse aparecer da
linguagem sob diferentes formas, é preciso dominá-la.
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"A palavra que eu pronuncio me domina, a que eu não pronuncio é dominada por mim" 5.
Eis uma conduta que se apresenta de uma maneira bastante heterodoxa aos nossos olhos
carregados de linguagem. Dominar a linguagem é para nós, no mínimo, estéril, sem o extático
prazer de se deixar dominar por ela. No entanto, esta frase constitui um princípio, constante
em todo o pensamento oriental.
Um pensamento que não se deixa dominar pela linguagem, que evita os discursos. Isso,
contudo, não quer dizer que não produza obras filosóficas; é extensa a produção na Índia, na
China, no Japão, na Pérsia. É, por outro lado, uma produção que apresenta um cuidado com a
linguagem bastante diferente. Tentaremos daqui para frente dar algumas indicações do que
seria esse cuidado, entretanto, isso só pode de fato ser sentido num contato direto. Assim,
estudaremos nos próximos capítulos uma ínfima parte, é certo, dessa extensa produção, tendo
sempre em mente a busca do Isto nos diferentes modos de pensar, bem como o caminho
trilhado em cada busca.
Mas, em que, verdadeiramente, constitui esse domínio? Dominar significa tornar-se
senhor. E já não são os homens, todos, senhores da linguagem?
Não.
É um lugar-comum a ideia de que a linguagem é o que diferencia os homens dos demais
habitantes da Terra. Aliás, é com e pela linguagem que é ele o único a habitá-la. Enfim, é ela
que confere a humanidade do humano.
5 Esta frase encontra-se no Kalila e Dimna, tradução para a língua árabe de uma versão persa de uma obra considerada, pelo saber que encerrava, um tesouro da Índia, cobiçado por muitos reis: o Pañcatantra. Como nada que é dito num texto de tradição oriental, principalmente nas fábulas, diz o que está dizendo, deve-se tomar o cuidado com a "palavra".
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A linguagem é própria à condição humana. Desse modo, todos os homens compartilham
essa condição e, mais do que isso, sofrem essa condição. A linguagem é, a um tempo,
condição e gênero. A partir dela todo humano brota, nela habita o homem; a partir dela o
homem constrói, nesta construção habita o homem; a partir dela o homem destrói, nesta
destruição habita o homem; a partir dela.
Como pode, então, o homem diferenciar-se dos outros seres se, como todos eles, sofre
também uma condição, a condição de sua humanidade? Se está sempre correspondendo à
linguagem? Esse humano corresponder é o voo da águia e o rastejar da serpente. De que
modo, pode, então, dominar a linguagem se, mesmo quando ela cessa, correspondemos com o
silêncio. Haveria um meio de escapar à condição humana?
O homem nunca duvidou dessa possibilidade nem por um segundo em toda a sua humana
trajetória. Ele cria, busca, questiona. Sempre de novo e novamente. Para cada criar, uma
resposta, para cada busca, uma resposta, para cada questão, uma nova questão. E cuida, assim,
através da criação, escapar à condição – ao constituir mundo. Entretanto, constituir mundo é
próprio do homem, que, habitando este mundo, humanamente o sofre. O homem sofre o
mundo em que habita. Sustenta-o como a tartaruga ao seu casco. A linguagem, genus de todo
movimento e criação, é humano casco.
A rota de fuga traçada pelo homem só o tem levado cada vez mais ao centro do labirinto.
E, quanto mais ao centro, mais próximo da linguagem; quanto mais em sua proximidade, mais
acredita que escapou à sorte dos outros seres. Quanto mais afirma sua humanidade, mais
afirma sua condição; quanto mais nega essa condição, mais afirma sua humanidade. Nunca do
mesmo modo, e, portanto, sempre do mesmo modo, o homem corresponde. Não há como
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fugir. Uma leoa, que, num dia caça uma zebra, em outro um bisão, e, em, outro, se não sentir
fome, descansa à sombra, está sempre caçando. Assim também é o homem com sua própria
determinação.
O homem é um ser determinado. Imaginando a determinação como movimento voluntário
e criativo, não desperta para o fato de que voluntário e criativo é o corresponder determinado
do homem. O homem não está desperto, mas é preciso que desperte para tentar dominar a
linguagem. Mas, ainda, pouco antes de despertar, o homem desespera. Para desesperar é
preciso ainda um outro movimento: é preciso que se depare.
O homem se depara quando percebe o movimento. Percebê-lo é parar. Quando para, o
homem depara-se com alguma coisa. Esta coisa faz com que se desespere. O que é isto que o
faz desesperar? Esporadicamente o homem depara-se com a morte e isso muitas vezes o faz
desesperar. O desespero causado pela visão da morte leva-o a criar cada vez mais. É um
deparar que não para o movimento. Ao contrário, perpetua-o.
O deparar-se com a morte é um deparar estático de algo que, em cessando, faz com que o
homem deseje o movimento, impulsionando-o sempre de novo, a cada nova morte. Ao desejar
escapar da cessação da morte, o homem esquece que ela também é a linguagem que o atira
sempre em frente e o domina. Como cessação não consegue angustiar o homem tanto como a
sua outra faceta, que tanto pode levar à criação quanto à não-criação. Esta outra manifestação
da linguagem é a mutação.
Antes de se deparar com a morte, o homem depara-se perplexo com a transitoriedade. Na
vida de Buda, o consciente da transitoriedade por excelência, isto fica bem claro. Suas quatro
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visões, ao contrário do observado em hagiografias católicas, não têm nada de
"extraordinário": são o próprio extraordinário que possui morada no comum, em todas as
partes. Mais do que visões, a experiência de Buda é de contemplação. É uma contemplação
no espelho de um rio em curso, a impossível contemplação, pois tudo flui em águas sempre
turvas pelo seu revolver constante. Sua contemplação perfaz o seguinte curso:
A visão do ancião;
A visão do enfermo;
A visão do cadáver;
A visão do asceta.
A morte, portanto, é apenas mais um entre os aspectos da mutação. A morte é uma entre as
mudanças. Não ocupa uma posição privilegiada no rol das angústias humanas. Não é A-
Questão-Humana. Talvez, nem mesmo exclusiva do homem. Esta constatação provoca o
homem, incitando-o a desejar a superação da transitoriedade e partir em busca. A busca acaba,
como acontece sempre que se quer mudar o destino, por fazê-lo aproximar-se cada vez mais
da verdade da triste constatação: tudo passa. Mas, enquanto em busca, não se dá conta de que
aquilo que busca, o permanente que permanece diante de todas as transformações – o Uno, a
Essência, o Vazio, o Tao, ou o Isto – também é impermanente. Não há mundo que gira, pois
isso necessitaria de uma perspectiva, de um ponto de vista, de uma visão de fora. Só há o
movimento, e nele, ele mesmo, tudo, passa. Ignorar essa verdade é partir em busca. E a busca
só aumenta a velocidade das transformações transitórias.
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II - A DEMANDA
Um dos mais importantes rituais hindus era o rito de consagração do kshatrya6 herdeiro de
um determinado reino. Este ritual, em que há o sacrifício do cavalo, é o chamado asvamedha.
Uma importante etapa do asvamedha é o digvijaya.
Durante um digvijaya, "conquista das direções", um rei, desejando ser aclamado
imperador, libertaria um cavalo para vagar à vontade em torno de vários reinos adjacentes.
Algum rei que não aceitasse a jurisdição do aspirante a imperador poderia capturar o cavalo e,
desse modo, provocar uma confrontação. Outros, permitindo ao cavalo transitar pelos seus
reinos, atestariam sua subserviência, e deles se esperaria o pagamento de tributos.
O cavalo, nos primórdios da cultura indo-européia, está sempre associado aos rituais de
conquista do outro mundo. Ele era o elemento que unia os dois mundos. Está, por isso
mesmo, associado à água, aos oceanos. É montaria de Possêidon, cultuado em Tróia; é
associado a Vāruna, deus dos oceanos no Hinduísmo. Contudo, ao longo dos séculos e das
conquistas arianas nas quatro direções, este papel do cavalo foi-se esvaecendo, seu status
sagrado dos rituais védicos, e, profano, de ligação com os reinos ínferos, apagou-se da
memória das gerações. Com a expansão das conquistas, expande-se o sentido do digvijaya,
expandem-se suas proporções, seu poder bélico.
Isso se encontra muito bem ilustrado nos grandes épicos hindus: o Mahabharata e o
Ramayana. Aí, o ritual perde muito de seu simbolismo para se tornar apenas uma prática arma
6 Os termos em Sânscrito ou Chinês que não tenham sido incorporados ao Português, ou com os quais não tenhamos familiaridade, não estão transcritos foneticamente, mas transliterados de modo convencional, sem uso de símbolo especial. O sh representa dois sons distintos em Sânscrito que correspondem mais ou menos ao nosso dígrafo (ch). O ch, por sua vez, deve ser pronunciado como uma africada, semelhante ao inglês chair. Todos os demais h devem ser pronunciados com uma aspiração como no inglês madhouse ("mad-house").
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de dominação. Representando todo o poder bélico de um determinado clã, o cavalo é agora
um entre muitos, utilizados como montarias a serviço de bigas que conduzem jovens
guerreiros com seus exércitos. A conquista não é mais uma questão sagrada, mas terrena, com
homens e armas terrenos, sem mitos, sem mistério. Desta maneira, o antigo ritual torna-se
uma questão sangrenta, de invasões, de violência. Ao dominado não é mais permitido prestar
reverência a um ser divino, a contemplar uma visão extraordinária. Esta mudança de conduta
irá operar uma nova mudança do digvijaya.
Conta-se que foi o rei Ashoka, que viveu entre os séculos III e II a.C., e unificou de
maneira violenta os reinos da Índia, dominando de maneira mais ou menos direta o vasto
território compreendido entre o Afeganistão e o Sri Lanka, que operou esta mudança.
Atormentado pela truculência de suas próprias ações, parte pelo mundo numa outra conquista,
uma conquista espiritual, de libertação. Ashoka torna-se, por influência de sua esposa, o
primeiro rei budista e passa a divulgar os ensinamentos de Buda até o sul da Índia. Assim, ele
instaura um novo digvijaya, o chamado dharmavijaya, a conquista do dharma, da correta
conduta.
A partir daí opera-se simultaneamente uma transformação no conceito de herói. Vira, que
antes designava o jovem militar, o jovem príncipe, um kshatrya, ou seja, um membro da casta
dos guerreiros, começa, pouco a pouco, a designar o sábio ou o santo, como aquele que
conquistou a si mesmo. A esta mudança na concepção do ritual e do herói corresponde a
utilização do digvijya como tema literário. E como tema literário possui uma amplitude de
sentido ainda maior.
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Na literatura contemplamos diferentes buscas, diferentes conquistas em diferentes planos.
Ainda há a conquista concretizada pelo guerreiro, mas ao seu lado atuam as conquistas
amorosas (estas são as mais recorrentes), e as conquistas espirituais. Entre o vira guerreiro e o
vira santo, surge um novo herói, que, comparado aos nobres propósitos de seus antecessores,
ocuparia uma escala mais baixa de heroísmo. E que se espalharia pelo mundo como o herói
típico dos romances de aventura, dos romances picarescos, até se traduzir em modelo de herói
de nossos dias, nós que não buscamos mais nada.
Várias obras iniciam-se com o tema da viagem de jovens príncipes e seus fiéis escudeiros
em busca da realização, seja ela material (com os reinos e poder), sensual (com mulheres e
riquezas) ou "dhármica" (com o cumprimento de seus deveres como chefe de estado, ou com
crescimento espiritual). O digvijaya, deste ponto de vista, como tema literário, é universal – o
tema da errância, do cavaleiro errante que tão bem ilustram as mais diversas novelas de
cavalaria.
E, no entanto, tudo isso nasce a partir daquela busca inicial. Da busca buscada por quem
contempla o transitório estado de tudo. A busca pelo permanente subjacente a toda
transitoriedade. Não foram só a Buda concedidas aquelas visões, sempre inaugurais. Não é
preciso ser como os santos para encarar a velhice, a doença, a morte e a outra morte.
E foi essa mesma melancolia incutida por essa mesma busca, que levou o homem a
desenvolver sistemas filosóficos, a querer compreender o funcionamento, a grande máquina
do mundo. O que antes lhe advinha como concessão divina, ou como prêmio após a sua
errância, mas nunca, de fato, chegava, ele teria que conquistar de uma outra maneira, errando
por outros caminhos – o caminho da linguagem. Assim o homem tem errado nesta outra
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busca, tida muitas vezes como superação das ingênuas buscas sagrada e literária – a busca
pelo conhecimento.
O permanente que antes era concebido como a perpetuação de uma vasta dinastia sobre a
terra ou como a glória de um nome numa obra, agora seria suplantada pelo domínio da
Verdade. A Verdade é o Isto de todos os sistemas filosóficos. Todos eles querem encontrar, e
não só isso, mas também sistematizar, uma verdade que seja universal, pura, concreta, e,
principalmente, imutável.
Um texto clássico da China, e que percorre uma história anterior a 1500 anos antes de
Cristo até nossos dias, é o tardiamente chamado I Ching (ou "livro", "clássico" – Ching – das
"mutações" – I). Ele é uma incógnita para nós, mesmo para os chineses, pois lida com
símbolos que não se encontram em mais nenhum outro lugar. E assim, diversas especulações
têm sido feitas acerca de seu sentido. É, originalmente, um livro composto apenas por
elementos, figuras lineares, sem nenhum texto, e assume-se que ele teria sido utilizado em
rituais divinatórios a princípio, e, mais tarde, também como compêndio filosófico, para
investigações acerca do conhecimento. Entretanto, estas funções foram atestadas já
tardiamente pela Dinastia Chou, quando foram escritos textos explanatórios acerca de cada
elemento do livro.
E, para provar que nada permanece, nem a mais pura das descobertas filosóficas, os textos
explanatórios também se obscureceram com o tempo, e foi preciso que Confúcio (segundo
alguns; segundo outros, que seus discípulos) acrescentasse novas explicações àquelas
providas pelo Rei e pelo Duque da Dinastia Chou. Hoje esta é uma obra que permanece
inacessível. Toda obra o é. Apesar de não ser visível, como ocorre com os símbolos do "I",
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todo símbolo é transitório porque é uma coisa e como coisa muda; seu sentido é sempre
imediato, mesmo quando pensamos estarmos diante de grandes questões universais.
Tudo é "I". E ainda assim há a distinção, criando um ponto de vista, um ponto de partida
de onde se poderia contemplar a transitoriedade. Quem parte em busca corre sempre o risco
de descobrir que não há esse eixo em torno do qual giraria o mundo e que caberia a nós
descobrir para alcançar a eternidade, a cessação, a verdade, o vazio, o tao. Dizer "Tudo é um",
"Tu és aquilo", "Tudo passa", ainda é crer na possibilidade de contemplação da coisa. A coisa
nunca pode ser contemplada, pois giramos com ela, e nosso discurso gira conosco, tudo gira
ao mesmo tempo. Esta é a impossível contemplação do rio.
Buda percebe que não há caminho, não há permanente, não há verdade, não há essência,
mas perceber isto é não poder dizer isto, o dizer é um Isto, o não dizer também. E, pela
errância dos discursos, que superam a nós mesmos (que julgamos ser os pronunciadores dos
discursos), o Budismo é tanto inaugurado como um sistema filosófico, quanto como religião.
Maior do que a impossibilidade material de se apreender a transitoriedade das coisas,
maior do que a impossibilidade visual de se contemplar a transitoriedade das coisas, é a
impossibilidade filosófica, da linguagem, de se pensar, ou melhor, de dizer a transitoriedade
das coisas. Não há rio, não há ideia que acomode ou desacomode a transitoriedade das coisas,
pois o rio e a ideia existem tanto quanto as coisas, que não existem, nem não existem. Esta é a
impossível contemplação do rio.
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III - O CAMINHO
O percurso da tradição oriental também se faz com e pela linguagem. É preciso que se
tome conhecimento disto. É exercício de linguagem, é discussão, é pensamento. Os caminhos
são diferentes, mas existe o caminhar, a busca. E a busca, que é sempre pelo Isto, é também a
mesma busca desse percurso.
Não só no ocidente há a questão "o que é o Isto?". Não só no ocidente ela vem sendo
respondida de diferentes modos. As inúmeras escolas de pensamento no oriente, sejam da
Índia, da China, ou de qualquer outro lugar onde tenha lugar a questão, elaboraram vastas
obras, promovendo intensas discussões acerca do tema. Neste trabalho procuramos discutir
como a questão está presente.
Apresentaremos as filosofias orientais como escolas, que trabalham na elaboração de seus
discursos, que buscam o Isto. Não apenas como filosofias "de vida" que podem ser tomadas
fora de seus contextos e aplicadas na vida de indivíduos que sigam outro percurso filosófico.
Muitos serão os questionamentos. Hinduísmo não é religião? Budismo não é religião?
Taoísmo não é religião? Todos eles não são uma espécie de idílio de serenidade e sabedoria
almejado por uma cultura que caminha numa velocidade atroz rumo ao aniquilamento traçado
por seu próprio percurso filosófico-científico? Estas "doutrinas" não estão aí a nosso serviço?
Não são a resposta a todas as nossas ansiedades consumistas? Não são elas apenas "filosofia
de vida"?
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É, no mínimo, curioso o fato de a filosofia ocidental, que vem refazendo seu caminho a fim
de resgatar os mitos como fundadores, não conseguir reconhecer como filosofia sistemas de
pensamento que ainda co-habitem com eles, que não se dissociem da religião. Ainda mais
quando, no fundo, qualquer filosofia é sempre religião, mesmo as que não mais vivenciam a
proximidade de seus mitos.
Realmente, não se deve confundir mito e religião, nem podemos confundir:
desconhecemos o que seja mito. E, atualmente, desconhecemos religião. Sim, corremos então
o risco de confundi-las por nossa própria ignorância. Ambas são um mistério e o que mais se
aproxima de mistério, o que nos chega sempre como tal é a filosofia. Filosofia requer uma
iniciação em seus mistérios, há ali sempre um discurso que nos escapa, um fundamento que
não podemos (não nos é lícito), ou não somos capazes de ver.
Jamais nos iniciamos em filosofia, contudo. Nós a estudamos, como a um objeto, como se
não o estivéssemos, de certa forma, ajudando a montar. Como se não fosse quase impossível
desmontá-lo. Queremos conhecer as raízes de uma árvore através de seus ramos mais finos, os
que nos espetam os olhos, e, por isso mesmo, nos presenteiam com uma cegueira que, de
modo algum, tem sido passageira. Mas será que desejamos, de fato, conhecer essas raízes tão
profundamente arraigadas em nós mesmos? Talvez sejamos nós os primeiros a nos arremessar
violentamente em seus espinhos para que não vejamos: a verdade da origem do nosso
pensamento.
Buscamos nossa origem de fora, de cima, do alto, ao rés do chão, de forma rasteira ou
elevada. Nunca descemos, cavamos, desenterramos. Ela sempre parece nos iludir como a
inscrição tumular que diz ao caçador de tesouros: “Oh, homem, quem quer que sejas e de
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onde quer que venhas, pois estou certo de que virás, eu sou Ciro, que conquistou o império
dos persas, e rogo-te não tenhas nenhuma inveja deste pouco de terra que cobre meu pobre
corpo”7.
Mas não são só tesouros que se encontram sob a terra que cobre o cadáver de alguém.
Além do cadáver, que lá se encontra, pode haver uma maldição, uma praga, uma peste. Houve
já um filósofo que desenterrou o cadáver originário da nossa filosofia, e, ao fazer isso,
despertou um mau cheiro que, se não nos assola desesperadoramente, se não nos
incomodamos com ele é porque somos nós mesmos que continuamos a exalá-lo em nossos
próprios corpos, em nossa mente, em nossa filosofia. Quando ele pioneiramente o desencavou
esperava causar náusea, esperava que nós renegássemos toda uma tradição putrefata que
contaminava há milênios nosso pensamento. Mas o fato é que já abraçávamos a carniça e o
seu cheiro nos era costumeiro, mais do que isso, uma fragrância que nos agrada e com a qual
nos perfumamos diariamente: o cristianismo.
Nietzsche vai desencavar a origem da filosofia ocidental num terreno que a nós sempre
professa o testemunho enganador da lápide de Ciro. Passamos sempre ao largo desse pedaço
de terra que, no entanto, parece esconder o nascimento do mundo inteiro: o Oriente Médio. É
lá que o filósofo alemão vai encontrar o tesouro que buscava. A origem da filosofia ocidental
encontrava-se nada mais nada menos do que no pensamento judaico, cujo princípio
inquebrantável é ser sacerdotal, do qual seriam apenas derivações o que chama de
cristianismo primitivo, em menor grau, e o nosso cristianismo atual, num grau
acentuadíssimo. A conformação sacerdotal é a própria condição de ser do judaísmo: se não é
sacerdótico, não é. O próprio ser só é concedido ao divino, e quem o concede ao divino
7 Alexandre avançando com suas tropas pelo território iraniano chega à tumba de Ciro, o fundador do grande império persa. Pensando encontrar ali tesouros chocou-se com a simplicidade do sepulcro encontrando apenas uma espada, dois arcos cítios e a inscrição citada.
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unicamente, é o sacerdote. É desse pensamento que deriva a filosofia dita “dos gregos”, dita
“ocidental”, dita “Filosofia”. Quem concede essa instância privilegiada a ela, quem lhe
concede o ser são os sacerdotes, os filósofos. Por isso, podem negar o ser, a “Filosofia”, das
outras filosofias, porque foram eles que negaram há muito tempo o ser de todos os deuses, de
toda a dinâmica da multiplicidade de todos os deuses para apontar o ser exclusivo do único
deus, para proferir a profissão de fé da unidade divina, para professar a verdade. A verdade
está na unidade. Não tão conscientes disso os filósofos atualmente professam a seguinte
verdade: “Filosofia fala grego e somente grego!” Quão cristão, e quão semelhante não é da
shahâda islâmica: “Não há deus senão Deus e Maomé é seu profeta.”
Artigo Segundo – Qualquer participação num ofício divino é um atentado
contra a moral pública. Seremos mais duros para um protestante do que para um católico, mais duros para um protestante liberal que para um puritano. Quanto mais próximo se está da ciência, maior é o crime de ser cristão. Por conseguinte, o maior dos criminosos é o filósofo. (NIETZSCHE: 2000, 129.)
Ao estabelecer as suas “leis contra o cristianismo”, pensava o filósofo que inauguraria a
partir daí um novo calendário, um dia “da Salvação”. Sua preocupação era menos com a
redenção dos homens do que com a da própria filosofia e não percebia que se utilizava
também de um discurso messiânico, de levar a luz a todos os homens, tão próprio ao judaísmo
de que se queria salvo. O próprio filósofo que, mais do que todos, embrenhado em sono
profundo, pensa ser seu o dever de fazer acordar a humanidade.
Ao homem, entretanto, convém a crença na verdade alcançável, na ilusão
que se aproxima de modo confiável.(...) Curiosidade fatídica dos filósofos, que possibilitou olhar para fora e para baixo, por uma fresta na cela da consciência: talvez o homem pressinta, então, que se apóia no ínfimo, no insaciável, no repugnante, no cruel, no mórbido, na indiferença de sua ignorância, agarrado a sonhos, como sobre o dorso de um tigre.
“Deixem-no agarrar-se”, grita a arte. “Acordem-no”, grita o filósofo, no pathos da verdade. Mas ele mesmo mergulha em sono ainda mais profundo, enquanto acredita estar sacudindo aquele que dorme (...) (NIETZSCHE: 2005, 29-30)
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Para esta verdade, contudo, ninguém quer estar desperto. Há uma repulsa, convulsão,
náusea, instantâneas, como as que causa a presença de um cadáver horrendo e podre: Filosofia
é sempre religião.
Filosofia é sempre religião porque está sempre lidando com a crença. É a crença em
determinado conceito, em sua validade, que movimenta a roda dos discursos filosóficos e que
dirige seus fiéis, os filósofos, para a mesma trilha de seus profetas. O caminho em busca do
Isto de qualquer filosofia é antes de tudo uma peregrinação.
De outra parte, os mitos sempre fundamentaram os discursos filosóficos. A cisão entre
mito e filosofia foi um empreendimento ocidental, mas não foi um empreendimento
voluntário. Há muito o conhecimento transmitido por eles já teria se perdido para que
tivessem se degenerado em meras histórias de deuses, tão criticadas por Platão, cujas críticas
confundem-se com um moralismo, uma correção, mas que, de fato, refletem essa mesma
percepção da distância.
Além disso, deve-se sempre levar em conta que a descrença na religião é, também, própria
dos filósofos, que, em qualquer cultura, são aqueles que tentam dominar o discurso, que têm
consciência dos discursos, sejam eles religiosos ou filosóficos. A consciência de que o
discurso religioso é só isso, discurso, e de que como discurso já se encontrava bastante
inconsistente, levou o ocidente ao desapego da fé religiosa. Entretanto, ainda não acordara
para o fato de que o discurso filosófico também não passa de discurso, e, por isso, houve uma
mera substituição do objeto da fé. O ocidente tirou do altar os deuses e colocou o filósofo, a
Filosofia.
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A fé na filosofia é um princípio da cultura ocidental. E a sua filosofia é linguagem, é o
caminho da linguagem, a busca da linguagem. Ela é tão cara ao filósofo que, mesmo quando
nos chegam apenas extratos fragmentários de um determinado pensador, busca-se a sua
reconstituição. Qualquer palavra é importante nesta trajetória que se faz muitas vezes por uma
via unicamente filológica. Heidegger (HEIDEGGER e FINK: 1973), por exemplo, distingue
dois extremos na discussão do pensamento de Heráclito: a filologia pura que julga sozinha dar
conta de todo o pensamento, e o filosofar instantâneo que se disfarça em muito pensar. Entre
os dois diz haver uma terceira via que deve buscar na tradição a compreensão, o sentido e a
interpretação.
A linguagem no percurso filosófico do ocidente é um caminho, ou melhor, o caminho. Para
as filosofias orientais que estudaremos a seguir a linguagem é um obstáculo, ou melhor, o
obstáculo. Mesmo sendo ela sempre obstáculo e, em todos os lugares, caminho.
Nem sempre o caminho mais fácil é o mais rápido; nem sempre o mais longo é o mais
difícil. E tomar o rumo da linguagem é caminho costumeiro de todos os homens, demorar-se
em suas paragens constitui-se mesmo um vício de linguagem. Difícil é levitar, é não ser
incomodado por pedras, é não se iludir com a falsa impressão de possibilidades que a
encruzilhada dá. Difícil é tirar os olhos do caminho, do chão. Este é o caminho mais curto,
porém. Este, que é o caminho mais difícil.
Empenho mais acurado com a linguagem é procurar evitá-la. É, fazendo-a aparecer, resistir
a ela. Mostrar que é um empecilho, não uma via. É por esse motivo que é muito difícil estudar
as filosofias ditas orientais. Não porque elas trabalhem com a linguagem de modo a torná-la
inacessível, mas porque a própria linguagem dificulta o acesso.
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Entretanto, assumimos que mesmo esse cuidado com a linguagem é um cuidado com a
linguagem. Pensamento é linguagem. A linguagem é tudo o que nos é possível, é tudo o que
conhecemos. Os mitos, a religião, a filosofia, a ciência, e mesmo a descrença em tudo isso é
sempre linguagem.
Todo pensamento é linguagem. Quando se afirmou anteriormente que o Isto da filosofia
ocidental era a linguagem, havia o intuito de se chamar atenção para o seu percurso, o seu
caminho e a sua busca. E, esse buscar da linguagem revela-se como perseguição,
infinitamente seguindo os passos de uma tradição em direção à superação pela linguagem.
Na tradição do pensamento ocidental, o cuidado com a linguagem dá-se no cuidado como
cultivar, acolher, resguardar do logos; crê-se no logos como lugar onde habita a verdade e não
é por acaso que o mito no ocidente cedo se transformou em logos. Em textos filosóficos do
Budismo ou Taoísmo, o cuidado com a linguagem é o cuidado de quem se resguarda do seu
domínio.
A possibilidade de linguagem deve necessariamente pré-existir sua descoberta e uso. Seu ponto de partida recai, não na mudança de costumes, mas em princípios eternos. O rol de nossas possibilidades de conhecimento é determinado pelos limites da linguagem. (DANIÉLOU: 1987, 252)
A certeza de que os limites da linguagem impõem limites ao pensamento, ao próprio
conhecimento, leva o sábio a desejar transcender a linguagem. A linguagem é o caminho, a
via por onde almeja chegar à superação o filósofo. Ao pensar escolher o caminho a seguir,
não percebe que caminha pelo único caminho possível. Um caminho que, longe de levá-lo ao
lugar que procura, cerceia os seus horizontes. Ao pensar escolher o caminho, o filósofo
imagina-o pleno de possibilidades, como via de infinitas possibilidades. Assim, não tira os
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olhos do caminho, não sabe se percorre tranquilas pradarias floridas ou desertos áridos e
tempestuosos. Ao pensar que escolhe o caminho, pensa que é o guia e não que é guiado, como
um cego que não tirasse os olhos do chão.
A crítica feita a Platão ao longo dos séculos tem se revelado infrutífera com relação à
tentativa de superação da ideia. Localiza-se a origem do pensamento abstrato, discutem-se
seus efeitos na trajetória do pensamento ocidental, busca-se o resgate de um modelo
originário, mais concreto, através dos mitos. Mas não se chega a reconhecer que o resgate é
debalde, pois não se questionou a origem de toda abstração que mora na linguagem. Os mitos
são, de fato, o que mais se aproxima de uma experiência concreta (ou, talvez, apenas não nos
tenha chegado a totalidade de suas abstrações), mas, ao tentar resgatá-los, o filósofo tende a
fazê-lo com uma linguagem racionalizante, com investigações etimológicas, históricas ou,
mesmo, mitológicas. Portanto, o mito já há muito se tornou o que talvez sempre tenha sido:
logos.
Mito é logos porque o mito diz. Dizendo, o mito pronuncia-se. O que diz o mito? Quando
essa questão é feita acerca dos mitos fundadores do ocidente, torna-se muito difícil de ser
pensada.
Ainda não se atentou para o fato de que mesmo o mais "concreto" dos discursos ainda é
linguagem, a mais "concreta" manifestação da linguagem é fenomênica. Como dizer e
mostrar, o fenômeno não exclui o dizer, não é livre do dizer. É bem difícil ver (justamente
porque é o ver que está em questão), mas, mesmo no mostrar não há concretude. É essa
confusão que faz com que vejamos concretude nos mitos, que vejamos concretude nas origens
do pensamento ou no Oriente.
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É claro que, comparado à nossa forma de dizer, de ar-ti-cu-lar pensamento, um discurso do
Budismo ou de tempos anteriores parecerá mais concreto. Mas só o que todos eles são:
discurso. Sobre as origens não se pode saber mais do que aquilo que elas nos trazem de ecos,
mas o pensamento budista tem consciência disto, não pretende fugir da linguagem, sabe que
isso não é possível, pois é ela que determina e limita o caminho do próprio conhecimento,
mas seu cuidado e desconfiança com ela é que são, digamos, mais "concretos".
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IV - OS CAMINHOS DA LINGUAGEM
Em diversas escolas filosóficas do Budismo, o conhecimento percorre etapas que vão do
mais baixo, mais elementar, e, por isso, mais acessível – transmitido por meio do fala – passa
pelo estágio do gesto, até chegar ao silêncio. Não devemos cair na fácil armadilha de
comparar esta instância ao hermetismo em que se movimenta grande parte dos discursos
filosóficos, porque, no fundo, eles muitas vezes se revelam apenas como um jogo de palavras:
quem detém as regras básicas de seu esquema pode "decifrá-lo", além disso, podem ser,
algumas vezes, apenas uma espécie de idioleto de cada filósofo.
Coloquemos, desse modo, lado a lado, dois discursos, dois extratos filosóficos originários:
O Discurso da Flor Nos tempos antigos, em uma reunião no Pico do Abutre, Buda apanhou
uma flor e mostrou-a para a multidão. Todos permaneceram em silêncio, exceto pelo santo Kashyapa, que abriu
um sorriso. Buda disse: “Eu tenho o tesouro do olho da verdade, a inefável mente do
nirvana, o mais sutil dos ensinamentos da aformal forma da realidade. Isto não é definível em palavras, mas é transmitido fora das doutrinas. Eu o confio a Kashyapa, o ancião”.
Fragmento 50 Ouvindo não a mim, mas ao logos, é sábio dizer: tudo é um.
É bem grande a diferença dos discursos. No primeiro texto, tudo o que se acrescenta ao
primeiro enunciar – que é o gesto – se contrapõe a este, é para se contrapor a este, para validá-
lo ainda mais pela ausência de discurso. O discurso proferido por Buda vai de encontro ao
gesto. É puro logos, pura enumeração de diversos conceitos sobre a Verdade, sobre o Isto. Ao
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dizer "olho da verdade", "inefável mente do nirvana", "mais sutil dos ensinamentos", "aformal
forma da realidade", Buda não está querendo ratificar o gesto anterior pela afirmação,
definição, conceituação de seu sentido. Mas pela anulação da validade desses mesmos
conceitos, todos surgidos anteriormente ao ou com o Budismo, mas todos adjetivos.
De modo bastante distinto, a inserção de elementos adjetivos no texto de Heráclito é para
ratificar através de cada novo conceito adjetivante, com afirmação de validade desses
conceitos. Tem-se nesse caminho a logia do logos, impregnando-se cada vez mais de
linguagem, embrenhando-se cada vez mais em suas trilhas que apenas dificultam o acesso.
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V - O JOGO
Já se chegou a dizer que entre os pressocráticos ainda não haveria conceitos. Eles teriam
surgido a partir de interpretações posteriores. Mas, na verdade, essa questão dos conceitos
surge daquela opinião de que haveria uma linguagem concreta, não abstrata, não baseada em
conceitos. Assim parte-se em busca dos substantivos numa linguagem que sempre é, e só
pode ser, adjetiva. A linguagem, portanto, é sempre conceitual. Mesmo os gestos do Zen são
conceitos, tanto que eles se cristalizaram, são utilizados, podemos citá-los. Como citar o
concreto das coisas? Como retirar da linguagem seu caráter abstrato?
Não podemos, dessa forma, concordar com Hegel sobre a natureza substancial dos
pensadores originários. O que, dessa forma, teriam originado, se o percurso seguido pelos
seus sucessores foi o da conceituação? Por termos consciência de que toda linguagem é
abstrata, admitimos os conceitos pressocráticos. Logos, alethea, panta, não são conceitos?
Sua investigação não é também sempre conceitual?
Pode-se identificar no Fragmento 50 de Heráclito, um conceito: o Uno. Mais do que isso, o
uno que brota da aproximação de opostos, e igualmente, da oposição de elementos próximos e
e da identificação de elementos distantes. Não só há unidade entre Tudo e Um, como há
unidade na diferença entre o Eu e aquilo que pronuncia – o Logos. Entretanto, diversas foram
as interpretações sobre o que seria o Logos. A dicotomia estabelecida entre o "não a mim, mas
ao logos" talvez seja o que há de mais perturbador nos textos de Heráclito.
Ouvindo não a mim, mas ao logos. Tem-se aí também um gesto, uma postura como de
quem aponta. Entretanto, a simplicidade do gesto não se basta a si mesma. A inserção de
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outros elementos, a produção de mais discurso, causa tanto aclaramento como
obscurecimento. É própria aos discursos filosóficos a explanação, o cuidado em deixar claro;
e, ao mesmo tempo, todo este esforço traduz-se muitas vezes como jogo com as palavras,
como aproximação de opostos, analogias, comparações, refutações. Afirmar os opostos, pô-
los lado a lado é um exercício recorrente, que, apesar de simples, dá a um texto a aparência de
coisa hermética, misteriosa, sutil.
No entanto, este fragmento é feito de respostas, tudo é dado, tudo está categoricamente
estabelecido, mas, apesar disto, não é um discurso que se pode perceber com um sorriso. É
obscuro, causa discussões, diferentes interpretações. O jogo com as palavras é o causador
deste efeito. Quando se percebe isso, e se percebe que é apenas uma questão de distinção e
aproximação de elementos que se querem opostos, percebe-se a chave para compreender este
tipo de discurso.
Uma negação que leva a uma afirmação: as duas juntas são unidade: tudo é um. Para se
chegar a esta conclusão deve-se negar a unidade entre o Eu e o Logos, entre o ato de ouvir a
mim e o de ouvir ao Logos. Mas os dois são um – tudo é um. É uma incoerência de Heráclito?
Não. É um jogo.
Num jogo de xadrez as peças brancas e pretas também vivem essa tensão dilatada entre
aproximação/anulação X distanciamento/ afirmação. Estaticamente, o jogo é só um tabuleiro
com peças brancas e pretas que ocupam limites demarcados. Esteticamente, essas peças
articulam-se. Ora joga-se de um lado, ora de outro do tabuleiro; ora com peças brancas, ora
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com pretas. Tanto faz, basta virar o tabuleiro. Qual o sentido de se diferenciar peças brancas
de pretas? Qual o sentido em aproximá-las?
O discurso oriental, após examinar peça a peça, e cuidar a respeito de cada categoria do
jogo, assim como fez e vem Fazendo o discurso do pensamento ocidental, cansou-se do jogo;
o discurso da flor assinala para o movimento de guardar as peças, juntas, no mesmo lugar, no
lugar de sempre. Restou a percepção de que o jogo existe e de que o jogamos exaustivamente.
O fato de analisarmos meticulosamente suas peças desvia a nossa atenção para o fato de que
estamos apenas jogando, sendo dominados por um jogo em que não estamos de modo algum
vencendo.
Inúmeros são os fragmentos de Heráclito que se constroem a partir de aparentes oposições.
A aproximação de contrários forma o paradoxo. Mas o paradoxo é apenas aparente, uma mera
questão de ausência de determinantes ou de referentes que, se recuperados, poderiam tornar as
mesmas sentenças, antes obscuras, em inconsistentes do ponto de vista filosófico. Sobre isso,
aponta-nos Barnes (1982, 74) um fragmento que dá testemunho da construção de seus
paradoxos:
Fragmento 61 A água do mar é a mais pura e a mais impura das águas. Peixes podem
bebê-la, é saudável para eles; para os homens ela é insalubre e destrutiva. (Grifo nosso)
Se dele houvesse restado apenas: "a água é pura e impura, saudável e insalubre" estaríamos
diante de mais um paradoxo. Mas será que paradoxo é simplesmente esse arranjo totalmente
lógico de opostos? A doxa realmente não compreende tal aproximação? Isso realmente habita
fora da doxa? A noção de contrariedade não é por si só um conceito dos mais abstratos?
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O paradoxo do pensamento originário grego é baseado numa lógica bastante precisa. Seu
sentido paira sempre sobre termos adjetivos, na maioria das vezes sem referentes. A
obscuridade reside em não se saber sobre o que realmente se fala. Daí todo aquele esforço
filológico que não vê outra saída senão tentar recuperar a substância contida em termos
adjetivos.
A linguagem, como já dissemos, é sempre adjetiva. Não é de adjetivo e substantivo como
classes gramaticais que se está falando. As categorias gramaticais de substantivo e adjetivo
são altamente arbitrárias. Não é por aparentemente não permitir pares de oposição que o
substantivo guarda em si uma concretude que o adjetivo não possui; não é por aparentemente
permitir pares de oposição que o adjetivo carece de concretude. A própria noção de oposição
e aproximação é em si uma noção arbitrária. E, no entanto, ambas as arbitrariedades
obedecem a uma lógica. É tão lógico aproximar Tudo de Um, quanto afastar Eu (a mim) de
Logos. Pensamos que é tão lógico opor adjetivos quanto seria ilógico opor substantivos.
Jamais abandonamos a lógica de nossas categorias arbitrárias.
Ao contrário, "não há solução lógica às palavras paradoxais e ações estranhas que se
introduziram na escola Zen do sul da China." (DUMOULIN: 1969, 99), não é uma mera
questão de aproximação ou afastamento de adjetivos vazios de referentes. Não se trata mais
de obedecer às categorias gramaticais de substantivo e adjetivo. Trata-se agora de revelar a
inconsistência da linguagem como um todo, a ausência de lógica. Nesta desconstrução, é a
própria linguagem, sempre adjetiva, que serve ao jogo de oposição e aproximação, é através
dos discursos, com os discursos e pelos discursos que o processo se dá.
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Exemplos de como a desconstrução do raciocínio lógico se dá no discurso Zen são as
respostas dadas pelo mestre Chao-chou a discípulos que lhe vinham com questionamentos
metafísicos:
Quando o corpo se decompõe por inteiro, resta aí uma coisa, a alma eterna. O que então acontece com ela?
O vento está soprando novamente esta manhã. (In: IDEM: Ibdem, 100)
O paradoxo Zen é proposto pela própria natureza paradoxal de todo e qualquer discurso.
Ou:
Uma grande zombaria de todas as regras da lógica. Geralmente, o discípulo Zen primeiro procura resolver o problema intelectualmente. Mas isso se prova impossível. (...) tal assalto contra os muros da razão humana inevitavelmente dá surgimento à desconfiança em qualquer percepção racional. (In:IDEM: Ibdem, 130)
O discurso proferido pelas escolas do Budismo Zen quer descortinar sua própria
incongruência, revelar sua fragilidade. Mas é muito difícil perceber isto. Não é com um
niilismo instantâneo que se pode disciplinar a linguagem, desmascará-la. É preciso muita
linguagem para fazê-la aparecer. É preciso muita linguagem para fazê-la desaparecer. Um
lendário episódio que revela o surgimento da cisão dentro do Budismo Zen na China,
inaugurando duas escolas – a do norte e a do sul – nos mostra como o trabalho com a
linguagem, mesmo quando se quer evitá-la, é árduo, e, por menos que se diga, extrapola-se o
seu uso:
Hung-jên ordenou todos os discípulos a compor um gatha (estrofe ou verso) com a finalidade de revelar ao mestre seu grau de iluminação. Desta forma, ele planejava descobrir um sucessor a quem passar a insígnia patriarcal.
Destaque entre os discípulos naquele tempo era Shên-hsiu (606-706), que, em vista de seus companheiros, merecia a sucessão. Shên-hsiu,
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entretanto, apesar de bem versado nos sutras, estava ainda longe da iluminação. A demanda de seu mestre tomou-o de uma aura de profunda apreensão. Mas, finalmente, ele produziu um gatha, e à noite escreveu-o na parede do salão do monastério:
O corpo é a árvore Bodhi (iluminação), A mente é como um límpido espelho suspenso. Cuide em poli-lo todo o tempo, Não permita nenhum grão de poeira assentar. Na manhã seguinte, os outros discípulos leram as linhas com admiração e
secretamente pensaram que a sucessão estivesse definida. Na presença de todos, Hung-jên elogiou a composição, mas, privadamente, disse a Shên-hsiu que o poema não mostrava nenhum sinal de iluminação e sugeriu que escrevesse outro. Estas linhas estavam destituídas de contradição lógica e poderiam ser prontamente interpretadas resolvendo-se as duas alegorias; elas não eram, portanto, aceitáveis como uma expressão de verdadeira iluminação.
Neste momento, um jovem de pouca ou nenhuma educação chamado Hui-nêng (638-713) estava vivendo no monastério. Ele viera do sul da China oito meses antes e pedira ao mestre admissão no círculo de discípulos, mas tinha ficado encarregado, em vez disso, de cortar madeira e pilar arroz, apesar de o mestre ter imediatamente reconhecido sua extraordinária capacidade intuitiva e intelectual. Este rapaz ouviu sobre o gatha, e, como não soubesse ler ou escrever, ele pediu para que o lessem a ele duas vezes. A partir daí formulou uma segunda estrofe e pediu que esta também fosse escrita na parede. Estas foram as linhas:
Bodhi não é como uma árvore, O límpido espelho não está suspenso em parte alguma. Fundamentalmente nada existe; Onde então um grão de poeira se assenta? A admiração de todos os discípulos pelos versos do camponês iletrado foi
sem limites. E, mesmo assim, o mestre foi reservado em seus elogios. Ele apagou as linhas, Dizendo que Hui-nêng também ainda não havia alcançado a iluminação. Mas, secretamente, convocou-o em seus aposentos à noite e conferiu a ele a insígnia patriarcal. Depois ordenou que fugisse para o sul, pois temia a inveja de Shên-hsiu e dos outros discípulos. (In: IDEM: Ibdem, 81-82)
Desta anedota percebe-se o cuidado com a contradição lógica. Mas não apenas uma
contradição lógica baseada numa lógica a priori ou, pior ainda, no senso comum. Ela não
pode ser passível de ser recuperada. Porque não há lógica a priori; todo discurso é carente de
lógica; lógica também é uma abstração, uma arbitrariedade, isto é, mais um nome, mais uma
categoria da linguagem.
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É isto que se quer fazer aparecer, e não, com um aparente paradoxo, firmar conceitos
apoiados numa lógica, ou firmar a própria validade desses conceitos pela desconstrução de
sua lógica (que sempre se assume como existente). A lógica no discurso pressocrático não
está em jogo. A linguagem é sempre lógica, por isso, pode criar jogos que a escamoteiem. A
linguagem é sempre ilógica, por isso, o Budismo Zen a quer revelar, fazendo-a aparecer.
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VI - O GESTO
O Discurso da Flor integra o conjunto dos chamados Koans, da escola do Budismo Zen.
"Koans", cujo significado estrito é "causas públicas", "causas a serem julgadas", são histórias,
exemplos, diálogos, questões, postulados, da tradição Zen. São grande parte da obra filosófica
desta escola, que surge na China com a aproximação do Budismo chegado da Índia com
sistemas autóctones como o Taoísmo. Na China há uma máxima que diz "A sabedoria de um
pensador se mede pela sua capacidade de dar um exemplo" (Cit. in: PINTO, Gustavo.
"Prefácio". In: I Ching: 2003, xiv). Os exemplos são a base do pensamento de diversas
escolas orientais.
História exemplar, paradigma, fábula. Nenhum destes gêneros de narrar manteve-se com
prestígio no ocidente. Nem como literatura, menos ainda como filosofia. Sua característica
fundamental é o didatismo e o didatismo vigora como gesto de apontar um caminho.
Sobretudo, apontando, mostrar que é caminho, com obstáculos. Sobre o gesto de apontar disse
um mestre Zen que: "O dedo serve para apontar a lua; o sábio olha para a lua, o ignorante,
para o dedo".
Em se tratando de filosofias orientais, não devemos nos ater ao dedo que aponta. Espantar-
se com o risível, o prosaico ou a crueldade desses textos é assumir a postura do néscio. Os
néscios riem das situações cômicas das fábulas, divertem-se com a fala dos animais, ou dos
rios e das plantas, e não percebem que ali, por trás da árvore, no fundo do rio, jaz o discurso.
Um discurso tão elaborado quanto perigoso, pois, na medida em que ele ilustra a armadilha da
linguagem, ele pode conscientemente atrair para essa arapuca. Cabe assim, a quem se depara
com este tipo de discurso, puxar a corda e ficar preso, ou não a puxar e escapar.
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Ao lermos os koans, encontramo-nos diante de armadilhas. Seus textos, todos desta
natureza, são um exercício de linguagem. Uma prática de disciplina da linguagem. Em todas
elas perpassa a noção de que se devem evitar os discursos, de que se deve buscar a sua
cessação. Ora, como uma escola filosófica pode seguir esta via?
Não seria mais fácil, mais coerente, nem mesmo se fundar como filosofia, abandonar este
ofício?
Não.
Não seria mais fácil, mais coerente, isolar-se numa alta montanha ou numa profunda e
escura caverna?
Não.
Assim não se evitariam, de modo mais radical, todos os discursos?
Não.
Somos linguagem e a linguagem é sempre discurso. Todos os nossos atos, até mesmo o
menor dos gestos nascem com ela. O gesto de apontar ou de se mostrar uma flor, por mais
concreto que pareça, é discurso. Com ele há o que ele mesmo enuncia, e tudo aquilo que já foi
enunciado, tudo aquilo que ele, como inaugurador, rejeita, quer abandonar, quer apontar.
Mostrando-se a flor, mostra-se tudo o que não é flor e nisto mora muito mais discurso do que
se pode perceber à primeira vista.
É uma escolha, uma via, um caminho. Kashyapa, que é o segundo da linha patriarcal da
escola Zen, consegue perceber, não a flor, mas todo o caminho seguido para mostrá-la, ele é o
único que consegue perceber o discurso, por isso, a ele se confia, já é confiado desde então,
todos os ensinamentos.
41
Não há hermetismo aqui, não há um exercício virtuoso da linguagem. O gesto de mostrar e
o silêncio que o complementa são o que há de mais simples, de mais acessível. Entretanto,
apenas um discípulo compreendeu. E, novamente, o mestre Zen nos diz: "o sábio olha para a
lua, o ignorante para o dedo". Contemplar a flor é olhar para o dedo que aponta.
Quase sempre que um pensador ocidental volta-se para o estudo de sistemas filosóficos de
outras tradições é para a flor que está olhando, e assim classifica-a de "bela", "ingênua",
"simples", "pura", "concreta", "impossível". Pega a flor e a analisa à luz de seu próprio
percurso, de suas doutrinas. Mas, antes que ele o faça: é a flor que o permite. Mesmo a mais
concreta manifestação permite o uso, a aplicação e adequação.
Ao contrário, a experiência, que concentra a harmonia do gesto e do silêncio, só ocorre aí
neste koan, é um princípio do Zen, não pode se dar em nenhum outro contexto. É fácil tomar
uma flor nas mãos, retirá-la de seu lugar original e usá-la como ornamento, depô-la em um
vaso ou pisar sobre ela. Com o discurso da flor isso não é possível. Os que tentam fazer isso
recaem em erro. E este parágrafo talvez seja um erro. Não sorrir simplesmente já é errar,
como sorrir.
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VII – O EQUÍVOCO
Se, mesmo quase puro de linguagem, o discurso ocasiona mal entendidos, incompreensões,
equívocos, o que não ocasiona uma filosofia que tem somente na linguagem e no trabalho
com ela, todo o seu fundamento e superficialidade?
Até certo ponto, o verdadeiro pensamento filosófico tem que ser de difícil compreensão quando se considera a totalidade de seu alcance e de suas implicações. Ainda que enunciado com absoluta claridade e a mais precisa coerência lógica, permanece fugidio. (ZIMMER: 2005, 30)
(...) A Antigüidade possuía todo o texto de Heráclito – não apenas os poucos e incompletos fragmentos e referências ocasionais que chegaram até nós – e já então ele era conhecido como "o obscuro"; entretanto, na literatura ocidental, Heráclito é o primeiro mestre das frases incisivas e dos aforismos claros e sucintos. (ZIMMER: 2005, 30-31)
Esta incompreensão, que se enraíza na linguagem, nasce, porém, de um contexto bem mais
específico: na linguagem escrita. A inevitável fixação de toda tradição filosófica cria a
impressão de que ela é como a flor, que pode ser arrancada de seu lugar e transportada.
Quando, na verdade, nem mesmo a flor poderia ser retirada, se pensarmos radicalmente. A
filosofia escrita leva à incompreensão de que não é experiência de discurso, exercício
dinâmico do discurso, mas postulados estáticos, válidos eternamente, pois são a verdade
afirmada pelo documento.
O filósofo vive iludido com a sua linguagem, acreditando nela como verdadeira, como
genus da verdade8. E, quando ele, ou outros, escrevem esta verdade, passam a viver iludidas
8 A afirmativa, que aponta de modo tão genérico, não pretende ser a enunciação de um preconceito, nem pretende, muito menos, dar conta de toda a filosofia de todos os filósofos. Nem é preciso. Não é preciso que se acumule um vasto conhecimento da obra de todos os filósofos – além de desnecessário, impossível. É preciso que o filósofo, e, não só ele, que todos os homens, andem iludidos com a linguagem: só assim a enunciam, só
43
as gerações futuras. E, quanto mais distante da enunciação da verdade, mais difícil parece o
texto filosófico, quanto mais longe da escrita do texto filosófico, mais cristalizada torna-se a
sua linguagem, o que, consequentemente, cria a ideia de dificuldade, hermetismo.
Não acontece isso a todos os fragmentos heraclíticos? Já há muito não foram arrancados de
seu lugar de origem para ilustrarem obras que lidam com questões completamente diversas
religiosa e filosoficamente? E, mesmo os que tentam "salvar" o discurso pressocrático, que
tentam replantá-lo, num movimento ecológico de reflorestar a Grécia, não o fazem também
segundo suas especulações sempre arbitrárias acerca da religião, dos mitos e do pensamento
grego? Por isso, com humor evidencia Barnes (1982, 57): "A verdade é que Heráclito atrai
exegetas como um pote vazio de geleia atrai abelhas; e cada abelha discerne traços do seu
sabor favorito".
Afirmações como estas são fruto dessa espécie de maldição que se atrela aos textos
escritos. Eles viram objeto de uso, e os objetos ficam obsoletos, empoeirados, obscuros, rotos
ou mesmo vazios. A filosofia que se escreve é como o cadáver que monta o dorso do rei e o
obriga a ir por um caminho que não quer, que o desagrada, decifrando seus enigmas. Este
exemplo é o tema de uma obra da literatura indiana, Vetalapancavimsatika ("Vinte e cinco
[histórias] do vetala") que se encontra no Kathasaritsagara ("Oceano dos Rios de História").
"Vampiro" é a tradução de mais fácil entendimento para o termo do sânscrito vetala. De
fato, vetala é uma raça de demônios, que nesta história se apodera do cadáver de um
enforcado e o anima, de modo que deve ser conduzido nas costas do rei, de um extremo ao
outro do cemitério, enquanto lhe vai contando uma história, sempre exemplar, que provocará
assim a correspondem, só assim a fazem aparecer, só assim pretendem fazê-la desaparecer, ou pensá-la, ou escamoteá-la, ou purificá-la, ou concretizá-la, ou consertá-la, ou concertá-la, ou...
44
uma questão a ser respondida corretamente pelo rei. O rei a responde adequadamente e o
cadáver desaparece de seus ombros para voltar à árvore de onde pendia anteriormente. E,
assim, novamente o rei deve voltar para transportá-lo até a outra ponta do campo de
cremação.
Somos muitas vezes os que procuram responder de maneira adequada a questões impostas
por uma filosofia morta. Se correspondemos, ela nos atira de volta ao ponto de partida para
que sempre a sustenhamos nas costas por mais um tempo. Se não respondemos
adequadamente, corremos o risco de ter a cabeça explodida – pois é com isso que o vampiro
ameaça o rei.
45
VIII - O GESTO IMPOSSÍVEL
Heráclito foi o primeiro pensador do ocidente a se deparar com a mutação. A notar que as
coisas estão em constante fluxo, constante mudança, mas todas são o mesmo: Tudo é um.
Mas, numa prática que se estabeleceu como marca de nossa cultura, estas constatações, já
desde Heráclito, são vistas sempre de fora, objetivamente, como se parando o movimento da
terra, dos seus elementos, do fluxo. A busca do Isto na filosofia ocidental dá-se sempre para
fora, como objeto de análise. O filósofo pensa que pode se retirar por uns momentos da roda
do mundo para pensar seus elementos e fenômenos, mas não pode. Primeiro, porque eles
estão em eterna mudança, e, como tais, são tão fugazes quanto eternos. Fugazes, escapam-nos
à percepção; eternos, transcendem-na. Segundo, porque somos tão eternos e fugazes quanto
aquilo que pensamos reconhecer como eternos e fugazes.
Nesse sentido, lá atrás na história do pensamento grego, já houve um pensador que
questionou Heráclito, proferindo um tipo de discurso tão mais próximo do pensamento
oriental quanto distante de nós. Cratylus pensou a impossibilidade da linguagem, dizendo que
sobre qualquer coisa nada se deveria dizer, apenas mover o dedo. E reprovou Heráclito por ter
dito que não se pode pisar o mesmo rio duas vezes pela própria impossibilidade de pisá-lo
mesmo por uma única vez.
Se atentarmos ao gesto inicial do Fragmento 50, veremos que ele aponta para algo que está
muito próximo – há o eu que aponta o logos. Mas desse apontar não surge uma proximidade
como a do dedo que, apontando a lua, coisa longínqua, parece tocá-la ou cobri-la em todas as
suas dimensões. Dando a impressão de que ela pode se reduzir à dimensão de uma polegada.
46
Apontando o que está extremamente próximo, Heráclito o distancia a uma distância lunar.
O eu e aquilo que eu profiro – o logos – não dizem o mesmo. Essa é uma questão que atenta
para a própria impossibilidade de se apontar para as coisas. É dela que vai surgir a constatação
de que nada é transitório nem permanente, porque não se pode apontar para nada. Tudo está
muito próximo do dedo que aponta, ou extremamente distante. E a tudo o dedo reduz às suas
próprias dimensões.
Reduzir às suas próprias dimensões é o caminho inevitável de quem olha para algo. Um
ponto aponta sempre um ponto numa reta. Uma reta aponta sempre uma reta num polígono.
Estamos limitados pelas dimensões que constituem nossa natureza física e pelo caminho
traçado por nosso pensamento. É impossível apontar para qualquer coisa: corremos o risco de
apartá-las demais de nossa proximidade (num empenho altamente artificial, próprio da
ciência) ou de reduzi-las ao nosso esparso entendimento, que nesse âmbito possui as
dimensões de um dedo.
47
SEGUNDA PARTE
I: TAT TVAM ASI: O ISTO QUE SE APONTA NO HINDUÍSMO VÉDICO
i) O antigo caminho, extremamente estreito e extenso, e a estreita esfera do
conhecimento
Neste capítulo buscaremos o Isto que brota no Hinduísmo védico, mais precisamente
nas Upanishads, que, a partir de seu aparecimento, passaram a constituir propriamente o saber
hindu. De fato, elas dividem com o seu surgimento a religião hindu. Assim, chama-se
"Brahmanismo" a religião própria dos Vedas, e "Hinduísmo", propriamente dito, a religião
desenvolvida a partir dos textos upanishádicos:
Apesar de os hindus considerarem toda a literatura védica como fundamento de sua tradição, na prática, os Brahmanas e Aranyakas, e, até mesmo, a maioria dos hinos do Samhita, são agora do domínio de especialistas. Mas as Upanishads ainda são amadas, estudadas e tratadas como guias para a vida pelos hindus até hoje, talvez mais do que qualquer texto exceto o Bhagavadgita. (ROEBUCK: 2003, xix)
O que vem a ser este saber introduzido pelas primeiras Upanishads no contexto do
Hinduísmo védico dos primeiros hinos aos deuses? E, principalmente, qual a pertinência para
o nosso estudo do Isto o conhecimento de alguns extratos das principais Upanishads?
Sua importância está na linguagem que elas inauguram, pois elas inauguram a própria
linguagem (Linguagem) na filosofia indiana, quiçá na grega. Elas também – aliás, de modo
inédito – fazem aquele movimento de abandono do pensamento cosmogônico para pensar
questões mais próximas do humano, de sua condição – a Linguagem.
48
Alguns, entretanto, consideram esta linguagem ainda bastante aformal, inconsistente,
revelando uma ausência de reflexão propriamente filosófica. Para eles ainda não poderia ser
considerada filosofia de filósofos, que ainda seriam, nas palavras de Radhakrishnan e Moore
(1957, 37), "veículos mais de uma iluminação espiritual do que de uma reflexão sistemática".
Esta, mesmo se referindo especificamente às Upanishads, é aquela mesma visão, que
insiste em permear os estudos filosóficos, de que as filosofias orientais seriam a-históricas e
assistemáticas. Estudos filosóficos tornam-se, portanto, estudos culturais, baseados em noções
de raça, genialidade, "povo eleito". Não se ouve, não se vê, muito menos se chega a perceber
o sentido próprio desses textos, e o grande motivo é: não se quer ouvir, não se quer ver, nem
perceber coisa alguma – isto poria em risco o chamado "milagre grego", que, já sabemos,
advém de outra parte.
A afirmação feita na introdução deste trabalho de que tudo é discurso e de que todo
discurso trava sempre um combate com outro, do qual muitas vezes não temos referência,
torna-se ainda mais válida no tocante ao início dos estudos orientais feitos por pensadores
ocidentais. O “Orientalismo”, inicialmente, apresenta-se, na verdade, como uma grande
querela entre estudos clássicos e indologia. E o vencedor já nos é bastante conhecido.
Zimmer nos conta que, em seus tempos de estudante de filosofia, falar em filosofia
indiana era tão absurdo como dizer "madeira de ferro". O único a se aventurar pelos caminhos
dessa disciplina foi um professor seu que teria sido discípulo de Schopenhauer. Este
discípulo, no entanto, talvez estivesse apenas influenciado por um eufórico e acalorado
Orientalismo Romântico, abundante também em visões preconceituosas, e cuja infeliz
contribuição foi instituir o termo "sabedoria" para se referir ao pensamento oriental.
49
Entretanto, "pode-se referir à sabedoria dos animais, mas não à sua filosofia. Pode-se referir à
sabedoria da natureza – mas não à sua filosofia. Sabedoria significa algo mais instintivo que
filosofia, menos rigoroso e sistemático – em suma, menos racional."(McEVILLEY: 2002,
650)
E esse preconceito funda-se numa cega confiança na escrita. Ora, no mínimo já não
mereceria atenção a "paradoxal" disciplina (Filosofia Oriental) por legitimar e incentivar a
desconfiança na escrita. Mas a questão é mais profunda. Por desconfiarem da escrita, os textos
orientais não confiam a ela todos os seus ensinamentos, ou o fazem de maneira velada na mais
obscura simplicidade. Isto faz com que imaginemos não haver filosofia, foi isso que levou Al-
Biruni a escrever:
Os hindus não possuem homem desta qualidade [referindo-se a Sócrates]
capaz e pronto para elevar as ciências a uma clássica perfeição. Por isso, muitas vezes você percebe que mesmo os chamados teoremas científicos dos hindus encontram-se num estado de grande confusão, destituídos de qualquer ordenação lógica, e, em última instância, sempre misturados às ingênuas noções do povo. (AL-BIRUNI: 1983, 11)
Nascido no século X d.C., no território persa de Khwarizm (atual Khiva), o mesmo do
matemático que leva seu nome e que, através da língua árabe, nos legou a palavra
"algarismo", Al-Biruni expressa uma reação que se pode esperar e justificar até mesmo pelo
seu meio, que estava impregnado de pensamento matemático. Conhecia várias línguas (árabe
e persa profundamente, e, além de seu dialeto local – o khwarizmi – hebraico, sânscrito e
siríaco); era leitor de Platão e outros mestres gregos através de traduções árabes e siríacas;
escreve toda sua obra em árabe, língua científica de então. Confiava na ciência e confiava na
linguagem, sobretudo na linguagem escrita, por isso não podia perceber que as "ingênuas
noções do povo" nos textos orientais cumprem determinadas funções, não são para serem
tomadas ao pé da letra. Ele não tinha a menor noção de que:
50
Fábulas, histórias e piadas têm sido utilizadas por filósofos por milhares de anos como meio de transmitir ideias e impressões à mente receptiva. São particularmente úteis para sutilezas que não são bem traduzidas pela lógica formal, e para causar uma impressão direta, evitando preconceitos intelectuais na mente do leitor. (CLEARY: 2003, 53)
Entretanto, o texto de Al-Biruni, mesmo pecando às vezes por falta de percepção
como esta, ainda dista muito de estudos modernos, não só pelo tempo em que foi escrito. Seu
texto, de um muçulmano medieval (duas informações que para o preconceito imperante são
sinônimo de tudo que é retrógrado e bárbaro), demonstra na maioria das vezes um respeito e
uma curiosidade de busca que não temos demonstrado com a tradição oriental até hoje, das
alturas de nosso moderno ateísmo9.
Como aconteceu ao Rio da fábula taoísta a seguir, atribuída a Chuang Tzu, após ouvir
algumas grandes verdades, julgamo-nos inequiparáveis em conhecimento, técnica, ciência,
filosofia.
As cheias de outono Na época das cheias de outono, centenas de regatos afluíram para o rio.
Ele tanto se avolumou em seu turbilhão, que era impossível, da margem oposta, ou das pequenas ilhas, distinguir uma vaca de um cavalo. Então, o Espírito do Rio rejubilou-se por abrigar em si toda a beleza da terra. Rio abaixo, fez sua jornada para o leste, até tocar o Mar do Norte. Lá, mirando a Oriente e não vendo limites à sua vasta expansão, sua aparência começou a mudar.
Contemplando suas águas, suspirou ao Deus do Oceano: "Um conhecido provérbio diz que aquele que ouviu algumas verdades considera-se inigualável em sabedoria. E tal homem sou. Antes, quando ouvia pessoas menosprezando a erudição de Confúcio ou subestimando o heroísmo de Po Yi, eu não podia acreditar em meus ouvidos. Mas, agora que eu estou consciente da tua inexaustibilidade – pobre de mim! Não tivesse eu
9 Curiosamente, McEvilley nos indica um outro pesquisador islâmico, o filólogo Darah Shukoh, que, já no séc. XVII de nossa era, estudou séria e respeitosamente as Upanishads, referindo-se à mensagem nelas contida como "o Grande Segredo". (McEVILLEY: 2002, 652)
51
alcançado a tua morada, teria para sempre servido de piada estúpida aos de grande iluminação!"
A isto o Espírito do Oceano respondeu: "Não se pode falar de oceano a um sapo de poço, limitado que é pela sua própria morada. Não se pode falar de gelo a um inseto de verão, limitado que é pela sua curta experiência. Não se pode falar em Tao a um 'mestre', que é limitado pelo seu conhecimento. Mas eis que tu emergiste de tua estreita esfera e contemplaste o desmedido oceano, então conheceste tua própria insignificância, e eu posso falar-te a respeito de grandes princípios." (In: YUTANG: 1957, 22)
Uma filosofia que imprescinde do "de repente (um de repente só possível através de
muito estudo) perceber", não postula seu ensinamento, mas, sim, fabula na reunião de mestre
e discípulos sentados. Há quem dê bastante importância às situações descritas nestas
narrativas, às pessoas, às cores, ao mundo onde transitam; há quem, por outro lado, atenha-se
a algumas das máximas que as histórias podem conter achando que num ou noutro caso
encontraram o caminho. Entretanto, apenas erram à sua margem, desviados pelos sentidos e
pelo desejo de entendimento rápido pelo logos. A filosofia nestas histórias não mora nem
num, nem noutro universo: nem no colorido da fábula, nem na sentença que abruptamente se
insere no meio delas. O ensinamento se dá através de um perceber, que só se dá ouvindo "o
nunca antes ouvido" para enfim poder ver.
O "bem" e o "rio" são igualmente abstratos ou concretos. A experiência do rio de Heráclito
como um dos primeiros "aforismos claros e sucintos" do pensamento grego, é abstração se
comparada ao vigor do rio que é rio em direção ao oceano da fábula de Chuang Tzu. E, no
entanto, ambos não são nem uma nem outra coisa: o Isto que devemos perceber.
52
ii) Ouvir à distância: o conhecimento revelado
O Período Védico, que se pode situar desde mais ou menos quinze séculos antes da nossa
era (datação proposta para a composição de seu texto mais antigo, o Rg Veda, que é, além
disso, "o mais antigo monumento literário-filosófico indo-europeu" (RADHAKRISHNAN e
MOORE: 1957, 3), é aquele que tem no profundo conhecimento do Veda o seu fundamento.
O próprio nome "veda" significa "conhecimento", "saber". O saber do Veda encerra-se nos
quatro livros que o compõem, distribuindo-se em cada uma de suas quatro seções.
Os quatro Vedas são os seguintes: Rg Veda, composto por hinos; Yajur Veda, que lida com
os rituais e fórmulas sacrificiais; Sama Veda, ocupado da música e da melodia; e o Atharva
Veda, que, contendo um grande número de fórmulas mágicas, é considerado o precursor da
ciência médica hindu. E suas partes ou seções: Samhita (conjunto de hinos, orações,
fórmulas); Brahmanas (tratado em prosa sobre o sentido dos ritos sacrificiais e das
cerimônias); Aranyakas ("textos da floresta", para serem recitados na floresta10) e as
Upanishads (última parte de cada Veda). Estes dois últimos são posteriores desdobramentos
dos Brahmanas.
Os textos védicos integram na classificação hindu o conjunto dos textos "revelados" (sruti,
"o que é ouvido")11 e disso não se distinguem de nenhuma outra religião "revelada". Os Vedas
também teriam sido revelados no início dos tempos pelos deuses. Sua revelação é, aliás, uma
revelação contínua a cada recitação, por isso, o conhecimento desse "conhecimento" é
relegado a poucos, à casta dos sacerdotes, os brâmanes, que são também os professores da
10 Al-Biruni testemunha-nos que: "Há certas passagens no Veda que, conforme eles [os hindus] asseguram, não devem ser recitadas dentro das habitações, pois temem que possam causar aborto tanto nas mulheres quanto no rebanho. Por isso, vão para campo aberto para recitá-las lá." (AL-BIRUNI: 1983, 59) 11 As outras categorias a que pertencem os livros sagrados da ortodoxia hindu são: smrti ("o que é recordado"), purana ("saber antigo") e tantra ("trama", "urdidura", "ritual", "doutrina").
53
casta real e guerreira, os kshatryas, e a eles ensinam, não tudo, o que aprenderam em sua fase
de discípulos jovens e castos.
Como conhecimento e como linguagem, o conhecimento revelado pressupõe sempre, e ao
contrário do que se possa pensar, conhecimento velado. O conhecimento designado pelos
Vedas não é um conhecimento humano, mas não-humano, atemporal e desconhecido até o
momento em que os deuses, pela boca de Brahma, revelam-no ao homem.12 Revelam-no para
que permaneça velado, e tanto é assim que:
Os brâmanes recitam o Veda sem entender seu significado, e, da mesma maneira, aprendem-no de cor, passando de um para o outro. Apenas alguns poucos entre eles estudam sua explanação, e um número ainda menor dentre estes dominam os conteúdos do Veda e sua interpretação num grau que lhes permita sustentar uma disputa teológica.
Os brâmanes ensinam o Veda aos kshatryas. Estes o aprendem, mas não lhes é permitido ensiná-lo, nem mesmo a um brâmane. O vaisya (comerciante) e o sudra (trabalhador) não podem ouvi-lo, menos ainda pronunciá-lo e recitá-lo. Se isso puder ser provado contra um deles, os brâmanes arrastam-no até o magistrado e ele é punido com a língua cortada.13(AL-BIRUNI:1983, 58)
Este não entendimento mesmo por parte dos mais capacitados origina-se na linguagem.
Primeiro, os Vedas não eram escritos.14 Além disso, como aquilo que é ouvido, sua oralidade
foi preservada com esmero numa modalidade métrica diferente da sloka15, que é encontrada
12 Ver OLIVELLE (1996, nota 15, p. xxxiv): "A visão mais aceita é de que não possuem autores, nem humanos, nem divinos; eles são o conhecimento autoexistente "ouvido" pelos antigos sábios ["seers"] (daí sruti ou 'audição' ser um outro termo para Veda). Outros consideram que os Vedas foram revelados por Deus. 13 Comparar com: "Nos mais antigos Dharma-Sastra lê-se que, se um sudra ouvisse acidentalmente a recitação de um hino védico, deveria ser punido enchendo-se-lhe as orelhas com chumbo derretido". (GAUTAMA. Institutes of the Sacred Law 12-4. (Sacred Books of the East, vol. II, parte I, p. 236) Cit. em: ZIMMER: 2005, 56) 14 Excetuando-se a escrita do Vale do Indo, considerada uma das mais antigas, senão a mais antiga, a surgir, e que desapareceu sem ter sido decifrada até hoje, foi somente no século VI a.C. que Dario introduz a escrita aramaica na Índia, e é dela que derivam os antigos alfabetos sânscritos. As primeiras inscrições datam do século III a.C.. Consultar McEVILLEY (2002, Cap. V) e DANIÉLOU (1987, Cap.I) para mais informações. 15 Este metro, que também é sinônimo de "poesia", compõe-se de versos divididos em quatro partes (padas, "pés") de mesmo número silábico. Possui um nascimento mítico, que é o próprio nascimento da poesia, descrito no início do Ramayana, onde seu nome é associado à palavra soka, "lamento".
54
na maioria dos textos versificados da Índia. Aliás, tal metro só é encontrado no Veda, tanto
por ser considerado uma obra divina (e fenômeno semelhante se dá com o Alcorão, que
pertence a um gênero cuja imitação é interdita), como também por ser considerado um metro
muito difícil, na verdade impossível, de ser imitado. Sua recitação segue, de igual maneira,
modelos bastante complexos, especialmente a do Rg Veda, na qual não se pode realizar a
ligação das palavras (samdhi), podendo-se recitá-lo duas vezes simultaneamente, recitando-se
um pequeno trecho e em seguida repetindo-o com o acréscimo do trecho seguinte, que, por
sua vez, será repetido isoladamente, seguido de sua repetição acrescida de um novo trecho e
assim sucessivamente. Al-Biruni nos conta que tal modo de recitação é o mais digno de
méritos, para o qual estariam asseguradas promessas do Paraíso.16
Tamanha complexidade teria levado à necessidade de escrita nos tempos de indigência. A
história de sua fixação nos dá testemunho do processo de degenerescência cultural marcante
do Kali Yuga. O Kali Yuga, a nossa era atual, iniciada num jogo de dados que dita um destino
sangrento no Mahabharata, é a última das quatro idades que constituem a visão cíclica de
tempo na Índia. É somente nesta era de declínio que pode surgir a necessidade da escrita:
Esta foi a razão pela qual, não há muito, Vasukra, um nativo da Kashemira, um famoso brâmane, de espontânea vontade prestou-se à tarefa de explicar o Veda e fixá-lo na escrita. Ele se encarregou de uma tarefa que qualquer outra pessoa teria recusado, mas prosseguiu, porque temia que o Veda fosse esquecido e se esvaecesse completamente da memória dos homens, pois observou que o seu caráter só piorava, e que não se importavam mais com a virtude, e nem mesmo com o dever. (AL-BIRUNI: 1983, 59)
A filosofia sempre tende a buscar uma verdade que transcenda as esferas do tempo e
do espaço; houve os movimentos de divinização dos postulados, como revelação (o Veda, a
16 AL-BIRUNI: 1983, 60.
55
Bíblia, o Alcorão); há atualmente o esforço da comprovação científica. E tudo isso só se torna
possível com a supervalorização da escrita. Como aponta Daniélou, a escrita é um fenômeno
urbano característico do Kali Yuga (última idade no ciclo das eras da terra, marcada pela
degeneração, pela decadência):
O advento da escrita permitiu a substituição dos conceitos de reformadores religiosos ou sociais, tidos como profetas inspirados, pelos ensinamentos de sábios [seers]. Isto deu nascimento à religião do livro, que caracteriza o Kali Yuga.(DANIÉLOU: 1987, 87)
A consciência “filosófica” só pode vir apoiada num suporte escrito. A inspiração dá lugar à
autoria, a obra substitui a revelação. Assim nasceu a filosofia, que é uma grande religião do
livro, todas as filosofias o são. Por isso, àquelas que possuem um menor grau de intimidade
com essa que é a maior e mais complexa das tecnologias – a escrita – nega-se o status
filosófico.
Chama-nos bastante atenção o fato de que aquela linguagem versificada de difícil
entendimento, cuja sonoridade agrada tanto ao gosto hindu, passa agora a ser escrita, mas,
assim como o conhecimento revelado se mantém velado, o texto escrito (não só os Vedas) se
mantém oral. Por isso Al-Biruni (1983, 66), mais uma vez, observa:
A Gramática é seguida [em importância] por outra ciência, chamada Chandas, i.e. a forma métrica da poesia (...), uma ciência indispensável para eles [os hindus], já que todos os seus textos são em verso. Compondo seus livros em versos, intentam facilitar sua memorização e impedir que as pessoas recorram ao texto escrito, salvo em caso de suma necessidade. (...) Eles rejeitam composições em prosa apesar de serem de mais fácil entendimento. (Grifo nosso)
56
Eis o problema do entendimento, que perpassa todas essas questões de oralidade/
escrita; poesia/ prosa. O problema da escrita leva ao problema da prosa: a necessidade de
esclarecimento, de entendimento. Tal necessidade surge com os primeiros diálogos
filosóficos. Mas, na Índia, assim como a escrita e como a prosa, esse entendimento pela
linguagem é rejeitado, não é bem visto.
Se no ocidente só foi possível para a filosofia triunfar sobre o mito através da fixação dos
textos, no oriente a escrita parece ter contribuído também para o enfraquecimento de seu
vigor. Mesmo assim, a figura da deusa Kali, a devoradora, sempre nutre na memória da
comunidade aquela ancestral desconfiança em relação ao texto escrito, especificamente, mas,
de um modo mais amplo, a toda forma de linguagem.
E isso é justamente o que faz com que durante muito tempo as filosofias da Índia não
tenham sido agraciadas com este título, de filosofias, por não abrirem mão de uma linguagem
que não conduz de modo claro e evidente o discurso que sempre carrega. Desse modo estão
atrelados ao discurso indiano tanto, de um modo mais abrangente, o gênero da poesia (como
oposto ao da prosa, utilizando versos metrificados e melódicos), quanto, mais
especificamente, os mais variados gêneros textuais: narrativas míticas, fábulas, fórmulas
mágicas, biografias, e diálogo inquisidor presente nas Upanishads. E é por esse motivo que:
Todas as escolas de filosofia indiana, ainda que divirjam em suas formulações concernentes à essência de verdade última ou da realidade fundamental, são unânimes em afirmar que o objeto último do pensamento e a meta final do conhecimento estão além do alcance de namarupa17. Tanto o Hinduísmo vedantino quanto o Budismo Mahayana insistem constantemente no caráter inadequado da linguagem e do pensamento lógico para expressar e compreender seus sistemas. (ZIMMER: 2005, 32)
17 Totalidade do mundo subjetivo e objetivo como observado e conhecido.
57
Na Índia, portanto, a recusa ao pensamento lógico se verifica em todos os níveis do
discurso, como pode se ver a seguir:
A filosofia indiana afirma com insistência que as possíveis experiências que a mente pode ter da realidade ultrapassam, em muito, a esfera do pensamento lógico. Para expressar e comunicar o pensamento adquirido em momentos de intuição que transcendem o plano gramatical, devem ser usadas metáforas, símiles e alegorias que não são meros adornos e acessórios dispensáveis, mas os próprios veículos da significação, impossível de ser alcançada por meio de fórmulas lógicas do pensamento verbal comum. (IDEM: ibdem, 32)
Destarte, desde os primeiros hinos védicos, desde o sempre, há o cuidado com a
linguagem, que é muito mais do que uma conformação racional do pensamento em discurso.
O pensamento está além dessa filosofia da linguagem – racional e lógica – e é, portanto,
anterior ao discurso racional e evidente, é anterior à linguagem como questão, e se fazia
presente mesmo quando ela era "apenas" conhecimento revelado.
Apesar de já apresentarem uma investigação acerca do Isto, os Vedas, como "saber", não
constituem ainda o que se entende por filosofia. Isso devido, basicamente, ao seu caráter
cosmogônico, condicionado a uma fé politeísta, à sua ambiência predominantemente mítica. É
digna de nota, aliás, a comparação feita por McEvilley (2002, 60-61) entre este estágio do
contexto hindu e a produção de Homero e Hesíodo. O autor enfatiza a curiosa permanência do
pensamento politeísta na literatura grega, mesmo após as primeiras discussões filosóficas
sobre a Unidade, e o monismo; além disso, chama a atenção para o caráter essencialmente
monoteísta do politeísmo de Homero, cujo Zeus "está mais próximo de Yahweh do que do
panteístico Zeus de Ésquilo."
58
Na Índia, ao contrário, as produções literárias, a partir do surgimento de novas doutrinas
filosóficas, tentam incorporar os novos conceitos, num habilidoso exercício de síntese do qual
o BhagavadGita, do Período Épico, é um exemplo. Esta, no entanto, é mais do que uma
questão de incorporação, de síntese. É aquilo que nos faz pensar muitas vezes que não haja
sistematização na filosofia indiana. É a linguagem. É a linguagem que congrega e resguarda
todas as possibilidades de manifestação de si mesma, é uma linguagem que não privilegia um
determinado discurso. Como linguagem é sempre discurso, não precisa se especializar.
Filosofia é linguagem, não o contrário. Entretanto, quando se fala em filosofia está sempre se
esperando uma determinada e especializada linguagem, racional, lógica, clara, objetiva. Uma
linguagem, diríamos, per se. A Linguagem.
E é somente por isso que não se pode falar em filosofia védica, pois, na verdade, conceitos
e um elaborado e consciente discurso filosófico só surgiriam depois de um período de
degenerescência dos mitos védicos, o chamado Período Épico (cujas referências são os épicos
Mahabharata e Ramayana), com o Mimamsa (entre os séculos VI e III a.C.), que é a posterior
interpretação, tanto do sentido prático (Purva Mimamsa), como espiritual (Uttara Mimamsa
ou Vedanta), dos Vedas, e outros sistemas filosóficos, entre heterodoxos e ortodoxos.
Esta degenerescência dos mitos é fundamental para o surgimento da filosofia em qualquer
contexto. Pois a filosofia é aquilo que para sempre irá retirar os deuses, a magia, os mitos e,
principalmente, os rituais, do lugar sagrado, substituindo-os pela Linguagem. Filosofia,
portanto, é o culto da linguagem, o mostrar da linguagem, a saga da linguagem, e,
principalmente, o trabalho com a linguagem. Nas duas civilizações das quais o ocidente atual
é filho órfão, Índia e Grécia, isso assim se dá. Entretanto, é apenas na Índia que se pode "ver"
59
o processo em que isso se dá.18 Este processo inclui questionamentos filosóficos já
encontrados em alguns hinos aos deuses, que aí já se despojaram de qualquer personificação
mítica para encarnar o conceito de Todo / Unidade; inclui também os Brahmanas, com sua
prosa interpretativa do sentido por trás dos ritos; e, por fim, as Upanishads.
18 E esta é a evidência utilizada por McEvilley para defender a transmissão, da Índia para Grécia, via Pérsia, dos conceitos de que se utilizam os filósofos pressocráticos.
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iii) Ver de perto: o conhecimento secreto
Inexistindo uma palavra genérica para designar filosofia, há um termo que diz de uma
experiência que funda a própria experiência do pensar na Índia. Darshana, da raiz drs ("ver"),
que se traduz no ocidente como a filosofia na Índia, significa "visão, ponto de vista,
aproximação". Mas, ao contrário do que aparenta, não diz de um simples apelo sensorial. É o
ver que já se retirou do âmbito sensorial, um ver a partir de dentro19, um ver que inaugura o
nunca antes ouvido, o nunca antes pensado. No mesmo sentido, os sábios, são os rishi, os que
veem. Vistas de uma maneira inaugural, as visões dos que veem tornam-se de difícil
formulação, pois, "de qualquer forma, a relação entre a visão e as palavras que a expressam é
válida somente num momento particular." (DANIÉLOU: 1987, 86)
Entretanto, o discurso é um caminho que leva a esta experiência de ouvir o nunca
antes ouvido e ver, perceber. A superação do discurso só ocorre depois de longa trajetória de
convívio em seu caminho. E, mesmo assim, corre-se sempre o risco de apenas se
abandonarem os discursos à margem do caminho, convivendo-se ainda mais uma vez com
eles, à sua sombra.
Abandonar os discursos não é evitá-los, mas tampouco é investigá-los, questioná-los,
perdendo-se mais uma vez na trilha de um falar e um dizer inesgotável. Abandonar os
discursos é, após muito discurso, desviar para a trilha do silêncio que se perscruta.
Tendo estudado assiduamente os livros, os sábios, que têm por meta
somente o conhecimento e a plenitude do conhecimento, devem dispensar os livros por completo, assim como quem quer conseguir o arroz atira fora as cascas.
19 Heráclito, Fragmento 101: "Eu busquei a mim mesmo."
61
A sabedoria inferior e preliminar é como uma jangada: tem de ser abandonada tão logo o viajante chegue a seu destino.20 (Amrtabindu Upanishad. In: ZIMMER: 2005, 267)
As Upanishads vão sempre ao encontro daquele que já percorreu um vasto caminho de
aprendizado, e, ao estender a mão ao caminhante convidando-o a retirar-se do caminho
costumeiro, apresenta-o a uma série de histórias e exemplos como o acima, e é nas
Upanishads que se encontra o mais remoto exemplo de fábula. É uma outra configuração de
mundo, um outro arranjo. Um arranjo basicamente em forma de diálogos, diferenciando-se de
todo o vasto campo de hinos, fórmulas mágicas e manuais de conduta do restante dos Vedas.
As Upanishads trazem em si a experiência do discípulo e do mestre; diferente dos
outros textos védicos, seu ensinamento se dá através da contação de histórias de caráter
dialógico, não mais do elogio aos deuses, ou das práticas litúrgicas. Anteriores ao Budismo,
sua influência nesta nova e heterodoxa doutrina verifica-se mais acentuadamente em sua
vertente ainda mais heterodoxa – a escola Mahayana, que estudaremos no próximo capítulo.
O Budismo Mahayana também tende, pouco a pouco, a abandonar antigos gêneros filosóficos
(o sutra e o shastra), culminando pela utilização também do gênero da fábula pelo Zen
Budismo. E, mesmo os textos mais canônicos são impregnados desse caráter dialógico e
biográfico que inauguram as Upanishads. Isto está, mais uma vez, diretamente ligado ao
gosto pela oralidade da filosofia oriental como um todo, da qual as Upanishads são, sem
dúvida, ilustres ancestrais.
20 Esta passagem aproxima-se muito do Budismo Madhyamika com a visão de Nagarjuna sobre os ensinamentos budistas serem uma etapa, um estágio (ver infra). Além disso, é inevitável comparar a imagem da jangada com a "balsa" da vertente Mahayana ("grande balsa") do Budismo, inaugurada por Nagarjuna.
62
Última parte dos Vedas, as Upanishads estão na vanguarda desta sistematização filosófica
que careceria da queda de alguns deuses para seu completo estabelecimento. Elas são a fonte
do estudo daquele sistema filosófico de que se falou acima –Mimamsa – e, de fato, são a fonte
de todos os outros sistemas, porque é nelas que se encontram pela primeira vez todos os
conceitos fundamentais da filosofia e espiritualidade hindus até nossos dias. É nelas que vai
se consolidar a transição do pensamento politeísta, ao panteísta e monista, bem próximo da
filosofia dos primeiros pensadores gregos. É nelas também que surgem os conceitos de
samsara, karma e nirvana, fundamentais à filosofia budista, desde seu surgimento (pois nasce
com e a partir desses conceitos) até hoje em algumas escolas. Por isso: "As Upanishads têm
dominado a filosofia, a religião e vida indianas por quase três mil anos. Apesar de distantes de
nós no tempo, não o são em pensamento. O ideal buscado pelos pensadores das Upanishads
(...) ainda é o nosso ideal". (RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 37.)
Conta-se entre 108 e 200 Upanishads, umas versificadas, outras em prosa, as mais antigas,
que são pré-budistas, datando entre o século VIII e VII a.C.. Há catorze principais
Upanishads, entre as quais, por sua vez, dez se destacam: Brhadaranyaka, Chandogya,
Taittiriya, Aitareya, Kena, Katha, Isa, Mundaka, Prasna e Mandukya, sendo as duas
primeiras (que juntas formam dois terços do corpus mais antigo) as mais antigas, mais
importantes, além de mais conhecidas. Não nos deteremos sobre a questão cronológica, mas
gostaríamos de ter sempre em mente que, de modo geral, estes textos são contemporâneos dos
primeiros pensadores gregos (séculos VI a V a.C.) e de Buda (século VII a IV, dependendo da
"conveniência").
O termo "Upanishad" vem sendo mais comumente traduzido por "sentar-se próximo"
("upa" – "perto"; "ni" – "embaixo"; "sad" – "sentar"), o que traduz o próprio contexto dos
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discursos e ensinamentos filosóficos de todo pensamento originário, geralmente passado
numa relação direta, de diálogo, entre mestre e discípulo(s).
Pensamos que é tarefa bastante vã assegurar-se de hipóteses filológicas e etimológicas para
o resgate do sentido próprio de uma palavra proferida num tempo que não é mais; num
contexto que não mais vigora. Mesmo assim, fomos buscar numa outra tradução um sentido
mais próximo ao termo, que também se encontra na proximidade do sentido de sentar-se
próximo. Olivelle (1996) propõe, baseado nos mais antigos usos da palavra nos textos
upanisádicos, as traduções "conhecimento velado", "conhecimento oculto", "conhecimento
escondido" e "conexão secreta". McEvilley (2002, 100) faz notar também que "muitas
passagens deixam claro que este conhecimento não é o do tipo ordinário, discursivo, mas,
antes, aquele 'pelo qual o inaudível é ouvido, o imperceptível é percebido, o desconhecido
torna-se conhecido' (CU21 VI.i.3)".
É necessário sentar-se próximo para ouvir o que não pode ser dito a qualquer um, o
conhecimento oculto, que desvendaria a secreta conexão do mundo dos deuses e homens.
Além disso, quem percebe a "conexão" não a quer dividir com todos os homens, nem mesmo
com reis. Assim é que o filósofo Yajñavalkya22, um mestre pertencente à casta dos kshatrya (a
casta real e dos guerreiros), vai, disposto a não dizer, ao encontro de um famoso rei:
Um dia, Yajñavalkya pagou uma visita a Janaka, rei de Videha, pensando consigo mesmo, "eu não direi a ele". Entretanto, uma vez, quando ambos estavam entretidos numa discussão sobre o diário sacrifício do fogo, Yajñavalkya concedeu a Janaka de Videha um desejo. O desejo que escolheu
21 Chandogya Upanishad 22 Sobre ele comenta McEvilley (2002, 114): "A engajada figura deste sábio ecoa largamente na história do pensamento indiano, na verdade, do pensamento mundial, apesar de isso não ser totalmente reconhecido."
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foi a liberdade de perguntar qualquer questão que quisesse e Yajñavalkya concedeu-o a ele. (Brahadaranyaka. In: OLIVELLE: 1996, 58.)
Esse trecho lida de uma só vez com muitas questões pertinentes à revolução operada na
religião hindu pelas Upanishads. Primeiro, elas não compartilham com os hinos védicos o
status de conhecimento revelado. Apesar de se inserirem também no gênero do "que é
ouvido" (sruti), já são textos de filósofos, já nascem como discussão filosófica. Uma
discussão, na maioria das vezes, do tipo pergunta-e-resposta.
Esse tipo de discussão filosófica, este inquérito (mimamsa), já era perceptível nos
Brahmanas, de onde se desmembraram as Upanishads, que seguiram com o modelo e
acrescentaram-lhe novas formas. Assim, há, ao lado da pergunta feita por um humilde
discípulo que se posta aos pés do sábio, a pergunta "mal-intencionada", que induz ao erro do
oponente, aquela desejosa apenas de testar, e que já possui no próprio questionamento a
crítica à resposta. E, pela própria mudança em determinados valores, de que já se falou
anteriormente, a sabedoria, antes irrefutável de alguns, é posta por terra por pessoas de menos
prestígio até o momento.
Dessa maneira, tudo é posto em discussão, não só os espontâneos questionamentos acerca
do Isto que seguiam um desenvolvimento natural dentro da matriz védica. Mesmo porque,
mesmo esse desenvolvimento "natural" já é pôr uma Verdade – atemporal e revelada – em
questão. Entretanto, o grande questionamento, antes inaudito, inaugurado por elas é o
questionamento dos discursos, colocando a Linguagem como agente e alvo do processo de
conhecimento.
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Nesses diálogos, em que um sábio era testado a todo o momento, era preciso desempenhar
uma linguagem que se autoafirmasse, que sustentasse bem uma determinada visão. Uma
linguagem que não facilitasse o acesso ao oponente para quebrar livremente seu argumento. A
linguagem precisava ser o próprio argumento. Por isso: "Um sábio que desejasse exceder-se
nisso [no combate verbal], necessitaria não apenas de um profundo conhecimento do ritual e
seu significado, mas também poderosas habilidades de debate e a habilidade para propor e
responder questões de novas e inesperadas maneiras" (ROEBUCK: 2003, xxxv).
Nas Upanishads cria-se, portanto, o jogo que também seria jogado pelos gregos, e que nós
ainda continuamos a jogar, o jogo chamado Filosofia. A diferença novamente está na origem:
a linguagem. Está em que essas "novas e inesperadas maneiras" de a linguagem mostrar-se já
eram um caminho costumeiro percorrido pela filosofia e religião hindus. Fundamentavam-se
naquela eterna desconfiança da linguagem, de sua eficácia em corresponder e em transmitir
qualquer coisa.
"O enigma e o paradoxo são essenciais a este estilo de ensinamento [os debates verbais das
Upanishads], tanto para abrir a mente do oponente a conceitos não familiares, como para
deleitar, pois 'os deuses parecem amar o mistério e detestar o óbvio.'"23 (ROEBUCK: 2003,
xxxv)
Assim como uma doutrina revelada como os Vedas não pode ser posta em discussão, não
pode levar ao erro, e, sobretudo, não pode levar ao entendimento. Muito menos ao
entendimento de todos. Neste todos habita o segundo movimento iniciado com as
Upanishads, uma certa relativização do sistema de casta e suas atribuições, e que seria, um
23 Comparar com Heráclito, Fragmento 123: "A physis ama velar-se." / "É próprio da physis velar-se."
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pouco mais tarde, com a vertente Mahayana do Budismo, expandido numa crítica mais
profunda.
Assim, o Hinduísmo upanishádico baseia-se em questões postas por filósofos, e são sete os
que se destacam: o próprio Yajñavalkya, Uddalaka Aruni (também chamado Gautama),
Janaka, Pravahana Jaivali, Ajatasatru, Sandilya e Satyakama Jabala. Entre estes há os que,
sem dúvida, pertenciam à casta dos sacerdotes, os brâmanes, responsáveis pelos rituais
védicos. Mas, em sua maioria, os novos pensadores hindus não tomam mais parte nos rituais e
sacrifícios védicos, pois não fazem parte daquela casta, e, sim, são apresentados como
membros da classe real e guerreira, a dos kshatrya, ou, até mesmo, como reis, como é o caso
de Janaka.
Há que sempre se considerar que "filósofo" na Índia liga-se à sua capacidade de
"enxergar", de "ver". Mesmo pertencendo as Upanishads, como obras do Período Védico, e,
mais do que isso, como seções inseridas nos Vedas, ao gênero do que se ouve, daquilo que é
revelado (sruti), seus "filósofos" são já aqueles que começam a "ver", a "enxergar", dentro de
alguns hinos védicos de caráter mais reflexivo, alguns conceitos importantes concernentes ao
Isto, à Verdade. Assim, "hinos a deuses e deusas são substituídos pela busca da realidade
subjacente ao fluxo das coisas." (RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 38)
Não contentes em apenas enxergar, os filósofos das Upanishads são os que passam
adiante a busca, a investigação filosófica, tornando-se os mestres de todas as demais doutrinas
filosóficas a surgirem na Índia. Por certo, não há quem assine pelos hinos védicos, nem
mesmo pelas Upanishads, mas delas nos chegam nomes mais próximos de nossa existência de
67
mortais, e não apenas uma voz que se pronuncia a partir da physis para louvar algum deus.
Mesmo que não haja autoria atestada para estes textos, aqueles sete nomes devem,
seguramente, ter sido responsáveis pelo discurso neles contidos. Por isso, diferenciam-se
fundamentalmente dos outros textos revelados. Constituem, verdadeiramente, um
conhecimento passado de mestre para discípulo, através do diálogo, ponte que aproxima do
saber oculto, quem antes dele se achava obrigatoriamente distante: os homens.
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iv) Ouvir x ver: disputa pelo conhecimento
Nas Upanishads observa-se uma das maiores questões trazidas com o desenvolvimento e
especialização da filosofia: a disputa pelo saber entre os antigos sábios e os novos pensadores,
que também se verificou na Grécia, dividindo poetas e filósofos. Essa é, sobretudo, a mesma
disputa entre os antigos deuses telúricos e os novos deuses olímpicos; entre os antigos deuses
pré-árias e os novos deuses védicos. Entre Shiva e Dionyso, de um lado, Vishnu e Apolo do
outro; religiões do êxtase vs. religiões morais.
Em meio a muitas disputas "ficcionais" pelo saber presente nesses textos, há, digamos, a
disputa "real" pelo conhecimento. A figura do brâmane, que congregava todas as atribuições
de um filósofo dos tempos primevos (e que por essas mesmas atribuições deixa de ser
filósofo) – poeta, profeta, médico, e filósofo – é retirado da cena principal para dar lugar ao
kshatrya, que, nascido na realeza, vive para se dedicar confortável e exclusivamente à
filosofia. Esta mesma batalha toma proporções ainda maiores no Mahabharata e no Vishnu
Purana, onde é necessária a interferência de um avatar do deus Vishnu – Parashurama
("Rama com o machado") – para restabelecer a ordem do mundo, devolvendo o poder aos
brâmanes, de quem é o protetor maior.
Parashurama nasce como o quinto filho de um brâmane que vem a ser morto pelos filhos
de um rei, de um kshatrya. Por esse episódio, Parashurama jura vingança não só contra eles,
mas contra toda a raça dos kshatryas, e, assim, "três vezes sete vezes [ou seja, por 21
gerações] ele livrou a terra da casta kshatrya, enchendo com seu sangue os cinco grandes
lagos de Samanta-panchaka." (In: DOWSON: 1982, 231)
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Contudo, já abrindo a trilha seguida pelo Budismo, uma das passagens mais famosas de
todo o conjunto das Upanishads parece mesmo desdenhar da divisão de casta, quando elege o
caráter e a verdade como superiores ao nobre nascimento. É a história de Satyakama Jabala,
contada na Chandogya. Desejando estudar as escrituras sagradas como discípulo de um
brâmane, Satyakama precisa informar a que família pertence, ou seja, qual a família de seu
genitor. Fica sabendo, entretanto, de sua mãe, mulher simples e honesta, que é um filho de
mãe solteira e foi concebido enquanto ela trabalhava como serviçal, desconhecendo
totalmente sua linhagem. Assim, esta resolve lhe dar seu próprio nome, Jabala, e ele, então,
passa a se chamar Satyakama Jabala. O que segue é sua entrevista com o mestre:
Então foi até Haridrumata Gautama e declarou: "Levarei a vida de um
estudante do sagrado conhecimento. Senhor, desejo tornar-me seu pupilo." Ele então lhe perguntou: "A que família, por gentileza, pertence, meu
caro?" Ao que respondeu: "Não sei, senhor, a que família pertenço. Perguntei à
minha mãe e ela me respondeu: 'Na minha juventude, quando, em grandes dificuldades, trabalhei como serviçal, tive você. Então não sei de que família você é. Em todo caso, tenho Jabala por nome, e seu nome é Satyakama.' Portanto, sou Satyakama Jabala, senhor."
A ele então foi dito: "Um não-brâmane não seria capaz desta explicação. Traga o necessário, meu caro. Recebo você como discípulo. Você não se desviou da verdade.24" (In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 66)
E essa verdade que perseguem os novos filósofos direciona-lhes os caminhos para uma
nova maneira de "ver". O "ver" ao qual está atrelada a origem etimológica da palavra em
sânscrito para "filosofia" (darshana) é o próprio ver como conhecimento, não mais aquele
conhecimento dos Vedas, condicionado a divinas revelações através da audição25. Fica bem
clara a rejeição, pelos filósofos upanishádicos, do conhecimento de rituais, de sacrifícios,
24 Comparar com este ensinamento contido no Bhagavad Gita: "Melhor é cumprir o próprio dever (dharma), ainda que sem valor nem qualidades (vi-guna), que cumprir o dever de outrem, mesmo quando bem realizado." (In: ZIMMER:2005, 279). E, este mesmo autor, ao falar da verdade (satya): "Mesmo uma verdade vergonhosa é melhor que uma falsidade decente." (Ibdem, 131) 25 Heráclito, Fragmento 101: "Os olhos são testemunhas mais exatas do que os ouvidos".
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cerimônias e encantamentos. Sua mais nova questão é a Verdade, o conhecimento que retira o
homem do ignorante contentamento de, através das boas ações (que se traduzem na boa
condução e constância na observação dos sacrifícios) almejar a recompensa do além-morte ou
de um nobre renascimento.
Para a nova "visão", só o conhecimento, o questionamento, podem tirar o homem de seus
cuidados, libertando-os de qualquer esperança em uma outra vida. A nova meta que se quer
alcançar pelo conhecimento é a cessação dos nascimentos, dos renascimentos e da morte.
O objetivo não é um celestial estado de paz ou renascimento num mundo
melhor. Negativamente, é a libertação da objetiva lei cósmica do karma; positivamente, é a identidade com o Supremo. Até que estejamos libertos da lei do karma e alcançarmos moksha, estaremos no samsara ou processo temporal. (IDEM: Ibdem, 38)
Por isso, o foco da atenção da religião hindu desloca-se do tema dos rituais sagrados para
questões filosóficas, como a doutrina tripartida da reencarnação, que lida com as questões do
ciclo de renascimentos, karma e liberação da roda das encarnações, esta última envolvendo a
concepção de práticas ascéticas e de meditação26. Coincidentemente, a questão da
reencarnação vai constituir também um tema central das discussões filosóficas dos gregos
desde os pressocráticos, principalmente Heráclito, Pitágoras e Empédocles. Os filósofos
originários gregos, dos quais coincidentemente sete se destacam, também configuram o
surgimento de uma nova maneira de pensar não mais apoiada em rituais e liturgias divinas,
mas em questões filosóficas de pensadores.
26 Eis aqui também uma nova mudança: a mudança no conceito de prática. A prática da religião védica, que antes se traduzia em ação por meio dos rituais sagrados, passa a designar a cessação e a quietude das práticas ascéticas de meditação.
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Esta nova doutrina, contudo, mesmo já despojada de um caráter sagrado, ainda necessita
ser secreta.27 Na Brhadaranyaka Upanishad, a Upanishad mais antiga, aparece pela primeira
vez dois dos três conceitos fundamentais à doutrina da reencarnação: samsara (o ciclo de
nascimentos) e karma. É aquele mesmo filósofo do extrato citado anteriormente –
Yajñavalkya – que os profere numa disputa que se dá entre todos os filósofos a serviço do rei
e ele, uma disputa pelo mais sábio. Ao ser questionado por um dos filósofos sobre o destino
de uma pessoa quando de sua reintegração cósmica, Yajñavalkya dá a seguinte resposta:
"Meu amigo, não podemos falar sobre isso em público. Dê-me sua mão,
Artabhaga, discutamos isso em particular". Então eles se foram e falaram sobre isso. E sobre o que eles falaram? –
Sobre nada que não fosse ação. E o que eles prezaram? – Nada que não fosse ação. Yajñavalkya disse-lhe: "Um homem transforma-se em algo bom através de boas ações e em algo ruim através das más ações."
Com isso Jaratkarava Atabhaga calou-se. (In: OLIVELLE: 1996, 38)
Este diálogo se passa nessa disputa pelo mais sábio da qual participa Yajñavalkya, e, não
só ele, mas, de certa forma, todos os kshatryas e brâmanes. O rei Janaka, desejando saber
quem entre seus ilustres visitantes era o mais douto no conhecimento dos Vedas, reúne um
grupo de mil vacas adornadas com várias peças de ouro em cada chifre, e pede que o mais
sábio as conduza adiante. Ninguém se atreve a fazê-lo exceto Yajñavalkya. Então, "os
brâmanes ficaram furiosos e murmuraram: 'como ele ousa proclamar-se o mais douto?'".
(BU28. In: OLIVELLE: 1996, 34).
Furiosos, todos eles, cada um na sua vez, começam a conduzir o malicioso inquérito sobre
todos os conceitos; e, a cada novo questionamento, Yajñavalkya responde de "novas e
inesperadas maneiras". Essas "novas e inesperadas maneiras" não dizem respeito somente à
27 Novamente Heráclito, Fragmento 54: "A oculta harmonia é melhor do que a aberta." 28 Brhadaranyaka Upanisad
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conformação de sua linguagem – há, de fato, a refutação de todas as verdades estabelecidas
ensinadas pelos brâmanes aos kshatryas. Mas talvez isso ainda signifique mais.
Vemos no trecho acima, que o opositor do filósofo-khsatrya (ou kshatrya-filósofo) cala-se
ao final de sua explanação. Isso significa mais do que a aceitação deste no grupo dos homens
doutos. Além de todos aqueles conceitos concernentes à reencarnação, esta passagem e todas
as outras entrevistas com os outros brâmanes inauguram o silêncio. Todos os seus oponentes
se calam após a sua resposta, isso quer dizer mais do que uma aceitação passiva. É a base do
pensamento de nosso próximo objeto de estudo, o Budismo Mahayana, mais precisamente as
escolas Madhyamika e Zen. É a compreensão que se reflete no silêncio.
A partir das Upanishads será cada vez mais frequente o uso deste modelo de ensinamento
filosófico, em que um mestre é questionando por vários discípulos (que muitas vezes são
mestres também) acerca do Isto. Por isso, as Upanishads são consideradas, juntamente com os
sutras do Prajñaparamitra, os fundamentos da vertente Mahayana do Budismo, nascida com
a Madhyamika, e que originaria a escola mais popular atualmente, o Zen. O que todos eles
possuem em comum é essa noção do silêncio como resposta.
No fragmento supracitado, Jaratkarava não se cala por falta do que dizer. Se ele o fizesse
não teria compreendido, se tivesse ainda algo a dizer igualmente não teria compreendido.
Não. A sua resposta é o silêncio. Esta passa a ser a única resposta possível daquele que
compreende.
E o que é essa compreensão? Tudo é discurso. Quando se começa a perceber a roda, a
perpétua ilusão em que se vive, por fim se compreende que tudo é discurso e que ele é o
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grande e único agente, o único a mover a roda dos acontecimentos, das reencarnações, que
leva tanto à degenerescência quanto à criação. Somente quando se percebe que tudo é
discurso é que se pode querer parar o discurso, por meio da cessação. Este é outro dos muitos
legados das Upanishads à filosofia oriental.
No capítulo seguinte ao que contém o trecho acima, portanto, nessa mesma Upanishad,
que é a mais antiga e seguramente pré-budista, encontramos novamente o rei Janaka e
Yajñavalkya. Mas, dessa vez, é Yajñavalkya quem vai testar diretamente o rei, atacando os
conceitos que lhe transmitiram seus mestres brâmanes. Numa série de perguntas, Yajñavalkya
põe por terra todo o conhecimento do rei, dando-lhe "novas e inesperadas" repostas. A mais
importante delas e que resume tudo o que se falou até agora é quando discutem acerca do
próprio conceito de conhecimento:
"O que constitui conhecimento, Yajñavalkya?" "Discurso em si, ó Majestade", ele respondeu. "Pois certamente,
majestade, é através do discurso que nós vimos a conhecer o seu oposto. Rg Veda, Yajurveda, Samaveda, Atharva-Angiras, histórias, contos antigos, ciências, conhecimentos ocultos (upanisad), versos, aforismos, explanações, glosas; ofertas e oblações; comida e bebida; este mundo e o outro; e todas as coisas – é através do discurso, majestade, que conhecemos tudo isso. (BU, Cap. 4. In: OLIVELLE: 1996, 53)
Ao se referir às mais variadas manifestações da linguagem Yajñavalkya não privilegia,
nem rechaça, nenhuma delas. O que ele procura fazer é de certo modo fugir das
discriminações, que são sempre, como ele já percebeu, meramente aparentes. O Isto, aquele
princípio buscado por toda filosofia, por toda criação, por todo movimento, o imutável, o
permanente, é aquilo que curiosamente traz em si toda possibilidade de oposição: o discurso.
74
Não por acaso as Upanishads inserem-se num contexto de profundas tensões. Até mesmo
aquele elemento que aparentemente restabelece a ordem nesse caos de disputas pelo poder
entre kshatryas e brâmanes, Parashurama, contém a tensão dentro de si. Porque ele também é
discurso. Ele é um avatar de Vishnu, o deus dos brâmanes, mantenedor da ordem do mundo,
mas, ao mesmo tempo, demonstra um vigor guerreiro que supera a força dos mais poderosos
kshatryas, com uma sede de sangue que remete ao culto do deus Shiva29. E é por esse motivo
que Daniélou (1987) afirma que os grandes movimentos de transformação do mundo, que o
desconfiguram e fazem aparecer o novo, o inaudito, o nunca antes percebido, o nunca antes
visto, surgem nos tempos de predominância das religiões extáticas.
São aqueles movimentos que percebem o movimento, é aquele discurso que percebeu que
conhecimento é discurso, que o próprio discurso é discurso, que tudo é discurso. E que no
discurso habitam todas as oposições, todas as tensões. Como as tensões fazem a roda do
discurso girar cada vez mais rápido, percebê-lo é, pois, perceber o movimento. Perceber o
movimento é o primeiro passo em direção a fazê-lo parar. Entretanto, como são muitas as
questões das quais as Upanishads tiveram o pesado fardo de ser pioneiras, mesmo que todas
sejam subjacentes a esta grande questão, caberia somente às outras filosofias inspiradas nestes
importantes textos, desenvolvê-la de uma maneira consciente, desenvolvê-la propriamente
como questão.
29 Deus de origem pré-ária, contém (às vezes de forma não-contida) em si todas as tensões e contradições: é o pacífico asceta, o chefe de uma verdadeira sagrada família, e o terrível deus da destruição, entre outras inúmeras atribuições.
75
v) Revela-se o grande conhecimento secreto: a realidade é apenas isto
Até agora detivemo-nos sobre o contexto onde estavam inseridas as Upanishads, sobre
suas contribuições para a filosofia hindu, sobre suas tensões. Entretanto, não se falou sobre o
grande sentido contido em suas linhas, o "Grande Segredo" que desvelam. Procuraremos
ouvir, ver, pensar e perceber, então, essa "conexão secreta", que liga todas as coisas, todos os
discursos. Pois é, ao mesmo tempo, a Unidade, o Logos, a Ideia, o Ser, Brahman/ Atman,
enfim, o Isto.
Como visto anteriormente, à época do chamado Orientalismo Romântico, foram
consideradas a fonte primeira da "sabedoria", tese que, como nos afirma McEvilley (2003,
252) foi "reforçada pela tradução para o Francês, por Anquetil Dupperon em 1801-02, das
cinquenta Upanishads que Darah Shukoh traduzira para o Persa em 1657 sob o título de Sirr-i
Akbar ([do Árabe], "O Grande Segredo")." O mesmo autor nota também que:
As Upanishads parecem preceder Parmênides em relação ao monismo, e ter influenciado diretamente a visão de Heráclito sobre o processo da physis [o fluxo]; o atomismo jaina e o materialismo carvaca parecem preceder Demócritus (apesar de não muito). Por outro lado, Parmênides e Zenão formalizaram a dialética e Aristóteles formalizou a lógica bem antes dos pensadores indianos. Pode-se dizer que a Índia estabeleceu o conteúdo da filosofia, e a Grécia pioneirizou seu método e forma30. (IDEM: Ibdem, 653)
Já muitos outros também puderam ver as "surpreendentes" semelhanças encontradas em
sua superfície31. Essa conexão, entretanto, não se dá ao sabor das interpretações parciais e
30 E esta observação só vem a reforçar aquela diferença no cuidado da Linguagem que vimos discutindo ao longo deste trabalho. Novamente, a diferença está na Linguagem; é ela que dá a sensação de não-sistematização, é por sua causa que realmente se dá o abandono da sistematização. 31 McEvilley (2002, Capítulo II) enumera, por exemplo, uma série de correspondências, com extratos retirados (os upanishádicos, voluntariamente; inevitavelmente, os heraclíticos) de seu contexto original, entre o pensamento das Upanishads e o de Heráclito.
76
escolhas arbitrárias dos estudiosos. É uma conexão profunda, estabelecida de modo radical,
naquilo que constitui o fundamento de toda filosofia: a busca pelo Isto.
Buscando a si mesmos, os filósofos das Upanishads partem na busca pelo conhecimento.
Com eles é inaugurado o caminho do conhecimento, com a doutrina bipartida dos dois
caminhos: o caminho dos antepassados e o caminho dos deuses. A prática dos rituais
sagrados, observada com constância e rigor (as ações) conduziria ao além-vida (com períodos
intermediários de punição infernal e paradisíaca recompensa, podendo-se, até mesmo, morrer
e reencarnar durante a morte), seguido de um renascimento terrestre de acordo com o mérito
daquelas ações de outra vida. Este, que é, portanto, um caminho de dupla purgação, é o
caminho dos antepassados, para onde se dirigem as almas dos homens de muita habilidade e
experiência nos rituais védicos, mas de pouco conhecimento.
O caminho dos deuses, para onde se dirigem as almas dos de grande conhecimento, é o
caminho da liberação; a liberação da roda das reencarnações. O conhecimento do
conhecimento secreto, da secreta conexão, passa a ser o caminho mais desejado em
detrimento de um conhecimento sagrado através da revelação. Além disso, o conhecimento
passa a ser visto como o objetivo maior, como a maior herança, e o maior dom.
Na Brhadaranyaka Upanishad, ficamos sabendo que Yajñavalkya irá partir. Apesar de não
ficar claro qual o caminho por ele tomado, o da morte física, o do retiro para a floresta32, ou o
da mendicância imediata, ele irá partir. Como possuía duas esposas, chama-as para a partilha
32 Terceiro estágio na vida hindu (vanaprastha), que Yajñavalkya provavelmente teria atingido, quando um chefe de família, tendo criado seu filhos e cumprido com todas as suas obrigações religiosas e seculares, parte para a floresta para estudar os Vedas. O próximo e último estágio é o da mendicância (sannyasa), quando se abandona desde a choupana da floresta, às próprias roupas e, principalmente, o conhecimento. Os dois primeiros estágios são o da vida casta do estudante (brahmacarya) e o do chefe de família (garhasthya).
77
de todos os seus bens. Há duas versões para esta história, uma no capítulo II e a outra no IV33;
em ambas é evidente a predileção de Yajñavalkya por Maitreyi34 a Katyayani. Isto porque:
Das duas, Maitreyi era uma mulher que tomava parte nas discussões teológicas, enquanto o entendimento de Katyayani limitava-se aos assuntos femininos. (Cap. IV.5. In: OLIVELLI: 1996, 69)
É ela a única que irá dizer na ocasião da partilha:
'Se eu possuísse o mundo inteiro coberto de riquezas, senhor, isto me faria imortal?' 'Não', respondeu Yajñavalkya, 'Isto só permitiria que levasses a vida de uma pessoa rica. Através da riqueza não se pode esperar a imortalidade.'
'Qual o sentido em possuir algo que não me tornará imortal?' retorquiu Maitreyi. 'Conta-me, em vez disso, senhor, tudo o que sabes.'
Yajñavalkya disse em resposta: 'Tu sempre foste muito querida por mim, e agora falas em algo muito caro a mim! Vem e senta. Eu explicarei isto a ti. Mas, enquanto estiver explicando, tenta te concentrares. (Cap. II.4. In: IDEM: Ibdem, 29)
O conhecimento é a única coisa que pode conceder a imortalidade, que é a liberação da
roda dos renascimentos. Mas, para percebê-lo, são necessárias duas coisas: sentar e se
concentrar. As duas, na verdade, são uma: o sentar-se na proximidade [de si] – upanishad – o
buscar a si mesmo – o calmo sentar.
Como se pode observar, esse é o primeiro passo no caminho em direção ao nirvana do
Budismo; como não se pode facilmente observar, é o primeiro passo também em direção ao
não caminho do não conhecimento que leva ao não nirvana.
33 Nesta versão o caminho é mais bem delineado, pois se diz que ele irá levar "um diferente modo de vida". 34 Maitreyi e Gargi (uma entre os filósofos que questionam Yajñavalkya diante do rei de Videha) são as duas grandes personagens femininas da filosofia upanishádica.
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Uma outra passagem, encontrada na Katha Upanishad, composta por seis capítulos em
versos, apresenta o diálogo entre Nachiketas e Yama (o deus do submundo, da morte). Este
diálogo é na verdade a maior e principal parte da Upanishad, seus dois primeiros capítulos; os
outros quatro restantes são tentativas posteriores de explicar seu sentido oculto. Realmente, o
texto é obscuro não só pela sua linguagem carregada de expressões curtas e elípticas, e de
termos raros e difíceis como se queixam os tradutores contemporâneos, como Olivelle. O
velamento de seu sentido revela-se desde o seu enigmático início:
Ushan, o filho de Vajashravas, um dia abdicou de todas as suas posses. Ele tinha um filho chamado Nachiketas. Mesmo jovem como era, foi tomado pela fé, e, enquanto as vacas, que tinham sido oferecidas como prêmios sacrificiais, estavam sendo tocadas embora, refletiu:35
'Elas beberam toda a sua água, comeram toda a sua ração, Foram ordenhadas, e são totalmente estéreis36 – "Amargos" são aqueles mundos chamados, Aonde se dirige um homem Que as oferece como prêmios' (In: OLIVELLE: 1996, 232)
Neste trecho encontra-se o de repente perceber o nunca antes percebido. Nachiketas então
percebe o caminho dos antepassados, dos rituais, do sacrifício, que só leva a "mundos
amargos". Ao perceber isto ele se inquieta, ele apresenta aquele tormento de quem de repente
se depara com a transitoriedade, que, aqui é este ciclo incessante de morte e renascimento até
na morte. O tormento leva-o a buscar; a buscar a verdade.
Então perguntou ao seu pai: 'Pai, a quem você ira me oferecer?' e repetiu isso uma segunda, e de novo uma terceira vez. Até que o pai lhe vociferou: 'À Morte irei te oferecer!'37
35 As passagens em prosa utilizadas por Olivelle foram, como ele afirma, parafraseadas da Taittiriya Brahmana (Capítulo 3.11.8.1) onde há a narração deste mesmo episódio. 36 Olivelle nota o tom sarcástico aí presente que evidencia tanto a ineficácia das oferendas sacrificiais, quanto a hipocrisia das pessoas, que só doam o que possuem de pior (por ex. vacas estéreis). 37 Olivelle relata que, na versão em prosa desta história, ficamos sabendo que, não podendo voltar atrás nas suas palavras, seu pai lhe diz que, quando chegar à residência da Morte, ela estará ausente e Nachiketas permanecerá lá sem comida por três dias. O pai o instrui então no que fazer quando a Morte chegar. Quando retorna a casa, a Morte lhe pergunta por quantos dias esteve ali, e Nachiketas responde: 'Três.' Morte: 'O que comeste na primeira
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[Nachiketas reflete] Irei como o primeiro de muitos Irei como um entre muitos. O que é isto que Yama precisa fazer, Que irá fazer comigo hoje? (In: IDEM: Ibdem, 232)
Então, já no outro mundo, começa o diálogo de Nachiketas e Yama; antes, porém, uma voz
(cuja função é a mesma do coro das tragédias gregas)38 nos descreve o que ele vê e como é
recebido sem nenhuma hospitalidade, permanecendo três noites sem notícias de seu anfitrião e
sem comida.
[Uma voz.] Olha à frente! Veja o modo como partiram, Aqueles que antes de nós partiram! Olha para trás! Desse modo partirão Aqueles que depois de nós virão. Mortais são ceifados como grão, E, como grão, novamente nascerão. Um hóspede brâmane adentra uma casa Como o fogo em todos os homens. Traga água, Ó Vaivashvata, Assim é como o apaziguam. Esperanças e expectativas, lealdade e boa intenção, Prole e criação, ritos e oferendas – Tudo isso um brâmane usurpa do homem tolo, Em cuja casa resida sem lhe ter sido oferecida comida. (In: IDEM:
Ibdem, 232)
Mesmo sendo o Senhor da Morte, Yama reconhece a falta cometida no desrespeito às
regras de hospitalidade para com um brâmane. Assim, como para apaziguá-lo, concede-lhe
três desejos. O primeiro que escolhe, é, certamente, o seu retorno para o seu pai, na terra; o
segundo, é o entendimento do fogo sacrifical que leva aos céus; o terceiro, que é o motivo de
noite?' Nachiketas: 'Seus filhos.' Morte: 'O que comeste na segunda noite?' Nachiketas: 'Seus animais de criação.' Morte: 'O que comeste na terceira noite?' Nachiketas: 'Suas boas ações.' 38 Aliás o texto como um todo apresenta uma ambientação trágica.
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toda discussão filosófica é a dialética questão existente/ não-existente encontrada também em
outras Upanishads.
[Nachiketas] Sobre um homem que está morto paira esta dúvida. 'Ele existe,' dizem uns; outros dizem 'Ele não existe.' Isto desejo saber, ensine-me por favor. Eis o terceiro dos meus três desejos. ((In: IDEM: Ibdem, 234)
Yama recusa-se39, de fato, teme, revelar este conhecimento secreto que, nas palavras de
Nachiketas, é um dom que não possui equivalente. Mesmo lhe sendo oferecidos abundantes e
inestimáveis tesouros, entre os quais uma descendência centenária, muito gado, elefantes,
ouro, cavalos e ninfas celestiais inacessíveis aos homens, Nachiketas persiste firme em seu
desejo pelo conhecimento, numa recusa e desprendimento semelhantes ao de Maitreyi:
O transcorrer dos dias de um mortal, Ó Morte, Vai sorvendo a energia de todos os seus sentidos; Mesmo uma vida plena não passa de frivolidade; Assim sendo, guarde seus cavalos, suas músicas e danças! Com riqueza não se pode contentar um homem; Conseguirá ele mantê-la, vendo você? Pois nós só vivemos enquanto você permite! Este é, pois, o único desejo que eu gostaria de escolher. (...) O ponto sobre o qual eles têm grandes questionamentos O que se passa naquele grande trânsito Diga-me isto, Ó Morte! Este é o meu desejo, penetrar fundo o mistério. Nachiketas não deseja nada Mais do que isto. (In: IDEM: Ibdem, 235)
39 Como na Brhadaranyaka Upanishad: "Eu não direi a ele."
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Por estes esparsos trechos pode-se perceber que nela de fato se consolida a busca pelo
conhecimento. Mas nela se consolida também o desapego do conhecimento.
Chafurdando em ignorância, mas se julgando sábios, Considerando-se instruídos, circulam os tolos, Acotovelando-se como um grupo de homens cegos, Guiados por um homem, por sua vez, cego.40 (In: IDEM: Ibdem, 235)
A descrença no conhecimento, em seu acúmulo, sustenta-se na visão de que só se pode
chegar à compreensão pelo de repente perceber, por um intuitivo insight, como vai, mais
tarde, pregar também o Budismo Zen através dos koans, como já se viu e se verá adiante.
Buscando o conhecimento e não mais uma revelação, nas Upanishads, em contraste com a
famosa "universalidade" do pensamento oriental, pela primeira vez se vê um processo de
cisão entre religiosidade e filosofia. Como pode então, que, mesmo após essa ruptura
inaugural, as filosofias da Índia tenham conseguido manter até hoje uma estreita proximidade
com os mitos demasiado religiosa para a visão ocidental; utilizando-se de gêneros textuais
demasiado literários para a visão ocidental. E de uma linguagem demasiado poética para a
visão ocidental.
Isto é assim porque, pioneiras na busca pelo conhecimento, são também pioneiras da
desconfiança com o próprio conhecimento. Pondo primordialmente em discussão
conhecimento e verdade, sempre subjacente à discussão entre filosofia e religião, perceberam,
40 Esta passagem assemelha-se muito à imagem (já citada) de Nietzsche:
“Deixem-no agarrar-se”, grita a arte. “Acordem-no”, grita o filósofo, no pathos da verdade. Mas ele mesmo mergulha em um sono mágico ainda mais profundo, enquanto acredita estar sacudindo aquele que dorme.
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já muito antes de nós, que ainda não percebemos, que tudo é o mesmo discurso, as distinções
"são apenas um instrumento verbal, um nome." A diferença, novamente, está na linguagem.
Há nas Upanishads, portanto, como em todo o contexto filosófico oriental, um desapego da
Linguagem, que se traduz na desconfiança do conhecimento que se busca vaidoso, dos
discursos. E eis que na menor de todas elas – a Isa Upanishad – no nono de seus meros, mas
não desimportantes, dezoito versos há a assertiva:
Em profunda escuridão penetra Quem venera a ignorância Em maior do que aquela Quem se rejubila com o conhecimento (In: RADHAKRISHNAN e
MOORE: 1957, 40)
Eis a tensão em que se funda toda escola de pensamento de origem hindu. Eis a tensão que
eles, ao contrário de nós, têm sempre conseguido equilibrar.
Levando-se em consideração que estas duas últimas Upanishads citadas não estão entre as
mais antigas, poderíamos pensar que isto seria uma reação contra a euforia de conhecimento
instaurada por suas antecessoras. Mas, estes mesmos versos acima encontram-se também na
Brhadaranyaka Upanishad, recitados pelo filósofo Yajñavalkya ao rei Janaka de Videha. A
desconfiança com a linguagem, como já sabemos, permeia todo o discurso filosófico oriental.
E ela pode ser encontrada também na segunda Upanishad mais antiga, num de seus mais
importantes episódios, onde se insere o gesto que encabeça o nosso capítulo.
83
Debruçar-nos-emos a partir de agora sobre este que é um dos textos mais significativos de
todas as Upanishads. O capítulo VI da Chandogya Upanishad41 conta a história de um pai e
de seu filho, que acaba de retornar ao lar após os doze anos necessários de estudos védicos
como discípulo de um brâmane:
Havia um Shvetaketu, filho de Aruni. Um dia seu pai lhe disse:
'Shvetaketu, adota a vida celibatária de um estudante, pois não há, meu filho, ninguém em nossa família que não tenha estudado, sendo brâmane apenas de nascimento.'
Então ele partiu, com doze anos de idade, para se tornar estudante, e, depois de aprender todos os Vedas, voltou aos vinte e quatro anos, vaidoso, arrogante e se julgando instruído.
Inicialmente, também podemos detectar aqui aquela relativização de casta, já abordada no
episódio de Satyakama Jabala. Assim como há os brâmanes verdadeiros, independente de sua
linhagem, há os brâmanes apenas de nascença, que não se dedicam aos estudos, que não
buscam o verdadeiro conhecimento. Mas, sendo Uddalaka Aruni um verdadeiro brâmane,
tanto por sua dedicação quanto por sua linhagem, seu discurso não se enquadra naquela
disputa pelo poder liderada pelos kshatryas. O que ele combate e invalida é o próprio
conhecimento, o simples acúmulo de conhecimento que ele um dia já cultivou42, como já o
fizeram seus antepassados e como aconselha seu filho a fazer43. A questão fundamental, não
só deste pequeno trecho, mas de todo o capítulo, é a busca do conhecimento verdadeiro.
Disse-lhe seu pai: 'Shvetaketu, aqui estás, meu filho, arrogante e
vaidosamente julgando-te instruído; pediste então aquele conhecimento44
41 Por toda a sua importância histórica para a religião e filosofia hindus, e, igualmente, para o mundo, onde se insere o presente trabalho, esse texto encontra-se integralmente no Apêndice A. 42 Heráclito, Fragmento 40: "O aprendizado de muitas coisas nada ensina ao entendimento, senão, teria instruído Hesíodo e Pitágoras, bem como Xenófanes e Hekataios." 43 Pois sabe que é somente depois de muito discurso que alguém consegue atravessar para a outra margem do rio das discriminações verbais. 44 Olivelle traduz "adesha" com um termo técnico da tradição gramatical do sânscrito, "regra de substituição" (i.e., um princípio metafórico, um termo por outro). Nossa tradução como "conhecimento" baseia-se em sua própria observação de que "no contexto da tradição upanishádica, tais regras de substituição são consideradas
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através do qual se chega a ouvir o que não se tinha antes ouvido, a pensar o antes não pensado e a perceber o que não tinha sido percebido antes?'45
Este conhecimento é aquela própria "conexão secreta" (upanishad) – o "Grande Segredo" –
que abre os caminhos de um novo pensar, "nunca antes pensado". Opõe-se, portanto, a uma
verdade antes estabelecida, passada de geração a geração, mas, que, contudo, se achava
limitada, como o mestre da fábula de Chuang Tzu, por seus próprios conhecimentos. É a
verdade religiosa que começava a se cindir, originando uma verdade filosófica, não mais de
acúmulo de conhecimentos práticos, mágicos, transcendentes, mas de seu questionamento, de
sua investigação.
Estende-se, dessa forma, o campo onde debatem os novos filósofos hindus. Nele se trava
uma batalha em torno da questão do conhecimento em si, independente da casta que o
proclame. Neste texto encontra-se a discussão de uma verdade que se encontra na origem de
várias culturas: a de que o mundo teria se originado do nada, do vazio, do não-existente. Este
é o início da dialética que discutirá a origem do ser, que será aperfeiçoada mais tarde pelo
Budismo Madhyamika.
Na busca daquele princípio imutável que atravessa todas as mutações, a filosofia das
Upanishads estabelece o existente como aquilo que sempre permanece. Deste permanente
imutável nasce toda discriminação aparente, a maya, a ilusão, que povoa este mundo e todos
os discursos.
secretas (...), aproximando-se, assim, do sentido de upanisad [conhecimento secreto]." (OLIVELLE: 1996, 305 – 3.6n.) 45 Heráclito, Fragmento 41: "O conhecimento é um só. É conhecer o pensamento através do qual todas as coisas estão ligadas a todas as coisas."
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'Como se dá este conhecimento, senhor?' 'Isto é assim, filho. Através de apenas um pedaço de argila, compreende-
se tudo feito de argila – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é argila".
'Isto é assim, filho. Através de apenas um jarro de cobre, compreende-se tudo feito de cobre – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é cobre".
'Isto é assim, filho. Através de apenas uma tesoura de unha, compreende-se tudo feito de ferro – a transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é ferro".
'Isto é, filho, como esse conhecimento se dá'.
A partir das Upanishads o "conhecimento é um só", a busca é uma só, é a busca pela
superação das diferenças aparentes manifestas pela linguagem, é a busca do princípio eterno e
imutável. Este princípio, que nos primórdios da filosofia grega era o Logos, em Platão é a
Ideia, e é nas Upanishads a tensão Brahman/ Atman, encontra-se na própria origem do
mundo, é a própria origem do mundo, por isso, Aruni vai dizer:
'De fato, isto era o que eles sabiam, aqueles homens extremamente
prósperos e imensamente instruídos de outrora, quando diziam: "Ninguém será capaz de produzir diante nós algo que já não tivéssemos ouvido, ou pensado, ou compreendido antes"
Por isso, a preocupação deste texto não é pôr à prova este ou aquele filósofo pertencente a
uma determinada casta. Seu interesse é discutir uma grande verdade, uma verdade
cosmogônica, uma verdade mítica, e transformá-la num discurso filosófico, precursor da mais
importante questão tanto para a dialética, quanto para a superação da dialética: a questão do
ser e não-ser.
Ao longo desse capítulo, o pai vai questionar o filho acerca de seus conhecimentos, mas
não como fez Yajñavalkya com o rei Janaka, refutando ponto por ponto a doutrina passada
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por seus mestres. Ele simplesmente cala as vozes de todos os discursos anteriores, pela
afirmação de algo "novo e inesperado":
'No princípio, meu filho, este mundo era simplesmente o que é existente –
um somente, sem nenhum outro. Agora, sobre isso, há quem diga: "No princípio este mundo era simplesmente o que não é existente – um somente, sem nenhum outro. E do não-existente nasceu o existente".
'Entretanto, filho, como isso pode ser possível?' ele continuou. 'Como pode do não-existente nascer o existente? Ao contrário, filho, no princípio este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem nenhum outro.46
Esta é a própria percepção da unidade ("Tudo é Um") e das ilusórias manifestações da
linguagem, que sendo uma só, sem nenhuma outra, congrega em si todas as aparentes
distinções. Neste perceber o nunca antes percebido está a atitude de alguém que, como o Rio
de Chuang Tzu, emerge de seu estreito círculo e contempla um oceano, contendo em si todas
as possibilidades do discurso, desfaz todas as distinções, diluindo em si todos os rios
indistintamente.
'Agora, toma esses rios, filho. Os orientais fluem para o leste e os
ocidentais para o oeste. Do oceano, todos mergulham deveras no oceano47; tornam-se apenas oceano. Neste estado não têm tal consciência: "Eu sou aquele rio". "Eu sou este rio". Exatamente do mesmo modo, filho, quando todas as criaturas alcançam o existente, não têm tal consciência: "Nós estamos alcançando o existente"48. Não importa o que sejam neste mundo – seja tigre, leão, lobo, javali, minhoca ou mosquito – todos eles mergulham dentro disto.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.(Grifo nosso)
46 Aqui se ensaia o princípio de uma dialética que culminaria na obra de Nagarjuna, Mulamadhyamikakarikas. 47 Os dois oceanos são o oceano celestial e o oceano terrestre. Acreditava-se que tanto o rio Indo como o rio Ganges estariam conectados aos rios celestiais da Via Láctea. 48 Olivelle (1996, 349-350; 10.2n) declara haver uma outra tradução bastante usual para estas sentenças: "Apesar de todas essas criaturas terem vindo do Existente, não têm a consciência: 'Viemos do Existente'."
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Esta conclusão, em destaque, apresenta-se como um refrão após cada novo exemplo de
Aruni para seu filho. Os exemplos são muitos, variam, mas o conhecimento que revelam é
um só: Isto.
Ao nos depararmos com este texto é difícil não cair na armadilha de interpretá-lo à luz dos
gêneros e da essência platônica. Entretanto, se persistirmos no cuidado de ouvir o que ainda
não tinha sido ouvido, pensar o que não fora ainda pensado, e perceber o que não havia sido
percebido, compreenderemos a diferença a partir mesmo do próprio gesto, que aponta sempre
para algo concreto, a argila, o cobre, o ferro, todos eles artefatos de manipulação, de artes e
ofícios. E, se a palavra "essência" soa-nos como testemunha contraditória do que acabamos de
afirmar, isto é mais uma prova das limitações de nossa linguagem principalmente quando da
tentativa de transmitir-se em outras línguas.
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II: A GRANDE BALSA E A IMPOSSÍVEL CONTEMPLAÇÃO DO RIO
i) O claro discurso de obscuros rios
Como vertente heterodoxa, o Budismo surge num período de grandes transformações
sociais ocorridas em diferentes partes do mundo e, pontualmente, na Índia. É o Período Épico
(por volta do séc. VI), tratado no capítulo anterior, quando a sacralidade do que é ouvido
ajusta-se aos novos tempos, abrindo espaço para o que é recordado; confiando o saber à
memória humana, e não mais a antigos sábios inspirados por divinas revelações. Neste
período, portanto, dá-se um resgate do humano, primeiramente com os heróis sobrepujando os
sábios, e, em seguida, com os santos sobrepujando os heróis. Durante esse período os avatares
de Vishnu tornam-se humanos (Parashurama, o primeiro deles, seguido por Rama, herói do
Ramayana, Krishna, herói do Mahabharata, e, o único de alegada existência histórica, Buda).
Este é o período em que a ortodoxia dos Vedas e das Upanishads daria lugar, pouco a
pouco, aos ensinamentos tântricos de Shiva, (reforçando a tese de Daniélou sobre a presença
das forças dionisíacas em tempos de grandes mudanças) e às mais diversas correntes
filosóficas tais como Yoga e Samkhya, Vaisesika, Nyaya e Mimamsa, de um lado; Carvaca,
Jainismo e Budismo, de outro.
Entretanto, há quem diga que nenhuma delas - muito menos o Budismo, como veremos a
seguir – tenha criado qualquer postulado filosófico próprio, havendo, na verdade, várias novas
interpretações daquele "Grande Segredo" revelado pelas Upanishads. Essas novas "visões"
desenvolveram, sim, uma linguagem própria, que, pela primeira vez, pode ser considerada
"filosófica" no contexto das diversas filosofias orientais. Sua nova linguagem é fruto de uma
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insurgência, num primeiro momento, contra aquela "falta de sistematização" anterior presente
nas doutrinas veiculadas pelos Vedas, e, já em menor escala, pelas Upanishads. Por isso, elas
representam uma crescente "sistematização" no pensamento hindu.
Como se viu anteriormente, a filosofia védica, por sua desconfiança com a linguagem, não
abria mão da linguagem literária, metafórica, dos mitos, para a concepção de suas verdades.
Esta linguagem era, além disso, e, antes de tudo, um mecanismo de velamento, utilizado para
ocultar o pensamento sagrado, resguardando-o, assim, da gente comum, dos não-iniciados.
À época de Buda, no entanto, o conhecimento filosófico já começava a se difundir através
de épicos como o Mahabharata e o Ramayana. Por esse motivo, estas obras já são
consideradas marcas do declínio na transmissão do conhecimento. Mesmo assim, o princípio
de velamento do discurso filosófico por meio dos mitos, agora heróicos, ainda de alguma
forma se conservava. Eram discursos que não apareciam como tais; eram, portanto, de difícil
sistematização e ainda relegados a poucos.
Isto se nos revela um pensamento dos mais desconcertantes. Os mitos contidos na poesia
épica serem marcas de decadência cultural é uma ideia que incomoda o ocidente, quanto mais
quando se sabe que o Mahabharata sozinho é oito vezes maior do que a Ilíada e a Odisseia
juntas. Mais do que desconcertante, é uma ideia extremamente desconfortável. Para o
Hinduísmo, no entanto, os textos do período épico já integram o cânone concebido para
instruir os ignorantes. Isso, contudo, não significa que o ensinamento filosófico tenha se
estendido às castas mais baixas, sem instrução. Isso significa que a ignorância expandia seu
raio de influência entre os homens.
90
Às margens do rio Ganges há a cidade de Patali-Putra. Lá houve uma vez um rei que possuía todas as qualidades de um governante. Um dia ouviu de alguém a recitação dos seguintes versos:
“O conhecimento soluciona inúmeras dúvidas e revela além da percepção. O conhecimento é o olho universal; sem ele estamos cegos.
Juventude, riqueza, poder, impetuosidade podem, cada uma, levar ao desastre; a um desastre ainda maior quando combinadas!”
Quando o rei ouviu essas palavras, inquietou-se a respeito de seus filhos, que ainda não haviam recebido qualquer instrução, sempre seguindo o caminho errado, nunca os bons ensinamentos. Pensou então:
“De que serve um filho se ele não é nem culto, nem virtuoso? – De que serve um olho doente? Somente para causar dor. Entre um não-nascido filho, um filho morto, e um filho estúpido, os dois primeiros são preferíveis, pois causam dor uma única vez, enquanto o último, a cada passo que dê.” (TÖRZSÖK: 2007, 63)
Esta é a introdução à obra Hitopadesha, uma compilação feita no século XII d.C. de 25
contos do Pancatantra e de contos de uma outra antologia desconhecida. Apresenta o mesmo
argumento que, seis séculos antes, já figura na introdução do Pancatantra: um rei,
desesperado com o estágio de ignorância avançado de seus filhos, vai pedir a um sábio que os
instrua nos conhecimentos práticos (jurisprudência e política) de uma maneira rápida, simples
e eficiente. Este é o domínio das fábulas, cujo gênero em sânscrito é nitishastra (niti
“conduta” – de príncipes – shastra “manual”, “instrumento”), que restou como única fonte de
conhecimento para os príncipes – a possibilidade mítica, filosófica, poética já descartada para
sempre.
A doutrina e os fundamentos contidos nos hinos védicos já teriam desaparecido do
convívio dos homens nesta última fase do ciclo da existência em que nós ainda nos
encontramos: o chamado Kali Yuga. Assim, a nossa postura frente a um texto épico pode ser
considerada ainda mais degradada do que a de um ignorante do Período Épico, pois nós
podemos apenas nos encantar com os artifícios de uma narrativa cujos sentidos velados, em
sua maioria, para sempre nos escaparão.
91
O nosso encantamento com a narrativa é uma via de mão dupla. Ele faz com que nos
sintamos na proximidade de qualquer mito, e, ao mesmo tempo, este mesmo encantamento
causado pela narrativa faz-nos desconfiar desta como veículo para a transmissão do
verdadeiro conhecimento: a filosofia.
Talvez, no tempo do surgimento daquelas novas correntes filosóficas da Índia, essa
ignorância, essa distância, da qual compartilhamos num grau cada vez mais elevado, já fosse
patente, e, por isso, mesmo o sentido dos textos de "mais fácil acesso" já seria do domínio de
um círculo estreito de pessoas, os "árias" de todos os tempos. Talvez esse mesmo movimento
tenha ocorrido na Grécia e é por isso que também se fala em degeneração dos mitos gregos já
em Hesíodo e em Homero. Por isso, na introdução de seu The Epic of Gilgamesh, Andrew
George, referindo-se a este épico, nos diz: “A principal função do poema não é explicar
origens. Está mais interessado em examinar a condição humana tal qual ela se dá. Nesses
termos, o épico não é mito.” (GEORGE: 1999, xxxiii. Grifo nosso.).
Na verdade, a questão dos mitos e a relação de sua degenerescência com a épica não é uma
questão de simultaneidade. As duas instâncias – mítica e épica – jamais convivem. Os épicos
não são somente uma versão degenerada dos mitos: a degenerescência dos mitos se dá,
inicialmente (até desaparecerem por completo), sob a forma de uma épica. Mesmo os hinos
aos deuses atribuídos a Homero já se encontram sob esse discurso de caráter edificante,
conduzindo-se como uma narrativa de percurso da vida de um herói, seus feitos, suas alianças,
suas derrotas, sua vitória. Não podem ser comparadas a esse gênero único, esse gênero
interdito, inimitável, característico dos mitos, e de força tão estranha que um esforço
exegético vai sempre, inevitável e necessariamente, acompanhá-lo, impulsionando toda a roda
dos discursos filosóficos.
92
A primeira escola filosófica propriamente dita da Índia, que passa a clamar pelo nome de
darsana (que, como sabemos, liga-se à concepção de "ver"), o Samkhya, e, após ela, todas as
demais filosofias tentam recuperar o discurso, evidenciando-o como discurso lógico,
sistematizando-o. Assim, surgem as filosofias ortodoxas hindus, debruçando-se sobre o
sentido por trás dos mitos e rituais védicos, e, predominantemente, sobre a secreta conexão
presente nos diálogos proferidos pelos "filósofos" das Upanishads. Fazê-los aparecer por trás
dos mitos e discuti-los como princípios válidos foi a pedra de toque para o surgimento das
outras doutrinas, as heterodoxas, que não mais teriam como parâmetro um discurso mítico ou
épico, mas, sim, o próprio Discurso.
As doutrinas heterodoxas que, portanto, se desligam do universo mítico da religião hindu,
integram aquele segundo grupo supracitado: Carvaca, Jainismo e Budismo. O Budismo em
suas escolas da vertente Mahayana, Madhyamika e Zen, que particularmente nos interessam
neste trabalho, tem como principal meta revelar o discurso por trás de qualquer linguagem,
revelá-la como discurso, revelando assim sua inconsistência e a impossibilidade de uma
lógica, de uma verdade universal, baseada na linguagem.
O Budismo vai nos mostrar que, tanto o texto poético, quanto o filosófico, são exercício de
linguagem para escamotear o discurso. Parece um contrassenso que os discursos queiram
escamotear-se. Que eles não queiram ou não tenham a necessidade de se transmitir. Ora, mas
se é desse impulso, de trazer à claridade, de tornar visível que as filosofias da Índia
(darsanas) surgem... mas, por fim, o Budismo de repente percebe que, quanto mais se tenta
clarificar a linguagem, despojando-a de seus elementos poéticos, metafóricos, mais se enreda
na ilusão de que ela revela a verdade absoluta. Desconfiando da linguagem, através dos mitos,
93
ainda se pode desconfiar do discurso que carregam. Sendo apenas discurso clarividente, a
linguagem se mune de uma falsa obscuridade e de uma falsa verdade inquestionável.
Assim, o Budismo insere-se num contexto onde o problema da linguagem já havia se
dirigido para o problema do discurso. Seguindo por um caminho que quer se distanciar cada
vez mais dos mitos, o Budismo mune-se do discurso filosófico para interpretar de "novas e
inesperadas maneiras" os conceitos pré-formulados por Yajñavalkya e seus companheiros.
Mas, como veremos mais adiante, a filosofia budista não responde de novas e inesperadas
maneiras às questões anteriores. Sua resposta será, na verdade, o silêncio, que naturalmente
segue uma etapa inicial de negação, de refutação de todas as doutrinas anteriores e de sua
própria doutrina, que, na verdade, não existe; Buda nunca teria ensinado coisa alguma:
Nenhuma [separada] realidade foi pregada Em nenhum lugar e nunca por Buda (Madhyamika. In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 345)
94
ii) A aceitação do curso do rio
Ao longo de sua história e expansão pelos quatro cantos do mundo49 inserem-se todas as
possibilidades de discurso. Por isso se torna, a despeito de sua motivação inicial, uma religião,
com cultos, rituais, livros sagrados. De fato, torna-se uma das grandes religiões do mundo,
mais uma entre as religiões moralistas.
A vertente mais antiga do Budismo, a escola Theravada (thera "antigo", "dos
antepassados"; vada, "conhecimento", "doutrina") é, sobretudo, uma religião exclusivamente
monástica. Como conhecimento antigo, ainda não consegue afastar-se dos preceitos
instituídos desde as bases do pensamento hindu. De cunho altamente conservador, observa
diligentemente a manutenção do antigo sistema de castas, reservando, somente aos brâmanes
e kshatryas a possibilidade de iluminação (nirvana), que é a libertação da roda dos
acontecimentos e das encarnações (samsara). É por esse motivo que ela será mais tarde
pejorativamente chamada de Hinayana (hina, "pequena"; yana, "balsa"). Essa primeira
vertente budista, que transformou os discursos e ensinamentos de Buda em religião moralista,
traduz exemplarmente a confusão instaurada pela linguagem.
Despojada de qualquer carga mítica, a linguagem como puro discurso carrega-se de uma
aura autossuficiente, que lhe dá a aparência de verdade absoluta, que pode ser adequada a
qualquer intenção, a qualquer situação. Assim, o Budismo, que é um dos agentes de grandes
transformações, que se volta contra todas as doutrinas pré-existentes, vê-se de repente
transformado num conjunto de dogmas de conformação universal, absoluta. Vê-se também
regressando ao misticismo dos antepassados. Como religião, aproxima-se bastante das
49 O Budismo é a única religião/ filosofia de origem hindu que extravasa os limites do subcontinente indiano e só sobrevive, na verdade, aí fora.
95
grandes religiões do Ocidente, que são, na verdade uma só e a mesma. Possui como elas um
salvador, que nasce de modo milagroso e puro – sua mãe sonha com a sua chegada, que é
anunciada por uma série de sinais auspiciosos, e dá a luz não da forma natural, mas de pé, sob
uma árvore, parindo a criança pela lateral de seu corpo, logo abaixo do braço.
É possível, entretanto, que a própria recusa dos mitos tenha originado o desejo do mito. De
fato, há uma grande rejeição inicial a essa linguagem pura, sistemática, que tem início no
Período Épico. O pensamento hindu, que sempre entendera linguagem como pobre de
experiência, ainda necessitava equipá-la com instrumentos que levassem ao entendimento, à
percepção do nunca antes percebido, nem visto, nem ouvido. Para esse pensamento a
linguagem carece da ajuda da linguagem, a ajuda das imagens, dos mitos, das narrativas. Por
isso o Período Épico ainda trabalha com narrativas “míticas” ao lado de concepções
filosóficas das mais variadas e opostas; ainda busca o culto religioso mesmo num movimento
de racionalização da fé hindu.
Por isso mesmo, tendo surgido num período de mudanças, em meio ao ressurgimento de
antigas religiões pré-árias e extáticas, a religião Budista também irá admitir práticas
ritualísticas de cunho shivaísta. Esta será a forma do Budismo Tibetano – herdeiro direto do
culto de Shiva, cuja morada é uma montanha no Himalaia – chamado Vajrayana ("Veículo do
Diamante"), Tantrayana ou Mantrayana, que adota uma meditação fundamentada no transe e
no uso de entorpecentes.
Talvez o motivo para práticas tão díspares seja o próprio debruçar-se desta nova filosofia
sobre o discurso, percebendo o até então não percebido fato de que toda manifestação da
linguagem é o mesmo e único discurso: a própria Linguagem. Assim, o Budismo tenta superar
96
esta superficialidade, que são as aparentes diferenças, dicotomias, contradições da linguagem,
ao admitir e relevar qualquer divergência de prática, conceitos e até de propósitos. Mas,
mesmo com essa postura tolerante, é inevitável, a partir do momento em que se profere um
discurso, o surgimento do combate, e da partidaridade.
Assim, houve, depois que Buda parte em definitivo desta terra, depois de sua iluminação,
inúmeras divergências entre seus discípulos, originadas já naquele primeiro estágio
monástico. O mote principal das discussões teria sido a questão da própria iluminação, e de
quem estaria habilitado a alcançá-la, enfim, que seres possuiriam a chamada "essência
búdica". Eis o início do grande sismo, que dividiria o Budismo – tanto a religião como a
filosofia – em Hinayana (que atualmente sobrevive apenas como religião e somente nos
países do sudeste asiático) e Mahayana (maha "grande"; yana, "balsa").
Sobre toda esta polêmica conta-nos Zimmer que "um dia chegou aos ouvidos de Buddha
este relato complexo:"
Senhor, um certo monge cometeu uma ofensa que considerou ser de fato uma ofensa, ao passo que os outros monges consideraram aquela ofensa como não ofensa. Depois, ele passou a considerar aquela ofensa como não ofensa, enquanto os outros monges começaram a tomá-la como ofensa (...). Então aqueles monges expulsaram o monge por sua recusa em reconhecer a ofensa (...). O monge, então, reuniu seus companheiros e amigos entre os monges que estavam a favor e enviou um mensageiro a seus companheiros e amigos entre os monges de todo o país (...) e os partidários do monge expulso permaneceram a seu favor e o seguiram. (Mahavagga 10. 1. In: ZIMMER: 2005, 353)
Este texto, contudo, como qualquer outro de tradição oriental não pode ser levado ao pé da
letra, devemos olhar para o que ele aponta, para o que põe em evidência, não para o modo
como o faz, não para o dedo. O indiscutível tom cômico aí presente enfatiza a banalidade dos
97
discursos, e das convicções, a fragilidade da linguagem que não consegue sustentar por muito
tempo a validade de qualquer verdade, seu caráter pontual, seu caráter arbitrário.
Em sua passagem de Hinayana para Mahayna, o Budismo tende cada vez mais à aceitação.
Aceita, primeiramente, que todos os seres, independente de casta, independente de ordenação
monástica, possuem essência búdica. Aceitando que não há nem transitoriedade nem
permanente absoluto – fundamento da escola Madhyamika, ou "Caminho do Meio" – aceita a
triste constatação de que nirvana e samsara são o mesmo, e que, portanto, não há iluminação.
Não há qualquer diferença Entre nirvana e samsara Não há qualquer diferença Entre samsara e nirvana (Madhyamika. In: RADHAKRISHNAN e MOORE: 1957, 344)
E, por fim, desta aceitação nasce a postura fundamental ao ponto culminante de sua
filosofia – o Zen: a aceitação do assim sendo (tathata), onde o assim, significando o
indescritível, aponta para a impossibilidade de qualquer postulação. Essa é a postura do
seguinte mestre Zen, na China do século XIV:
Yün-mên um dia mostrou o seu cajado para uma assembleia de monges dizendo: "Pessoas comuns ingenuamente tomam-no por uma realidade; os dois Yanas50 analisam-no e declaram-no não-existente; os Pratyekabuddhas51 declaram-no como uma manifestação da Maya; e os Bodhisattvas52 aceitam-no tal qual é, declarando-o vazio. Quanto aos seguidores do Zen, quando veem um cajado, simplesmente chamam-no cajado. Se querem caminhar, simplesmente caminham; se querem sentar, simplesmente sentam." (In: DUMOULIN: 1971, 37)
Ambos os extratos acima evidenciam o mesmo exercício de negação, a mesma cessação
dos discursos presentes desde a origem do Budismo. Esta mesma negação e cessação dos
50 Mahayana e Hinayana. 51 Os seguidores do Hinayana. 52 Os seguidores do Mahayana.
98
discursos encontravam-se já no cânone theravada, num conjunto de textos denominado
Prajñaparamita ("Perfeição da Sabedoria Transcendental"), que é considerado, desse modo,
o precursor da vertente Mahayana.
99
iii) Grande balsa ao sabor do curso do rio
O Budismo Mahayana surge, na verdade, com o próprio Buda. É o próprio discurso em
discussão que motivou todas as demais doutrinas heterodoxas da Índia. Como qualquer outro
movimento de rompimento com a tradição, o Budismo não poderia se contentar com um
conhecimento dos antepassados inflexível e dogmático. Por isso, dissidente talvez seja apenas
a vertente Hinayana, que resgata uma linguagem fundamentada em ações, em práticas de
rituais e cultos religiosos, na manutenção da ordem estabelecida.
Conta-se, então, que a doutrina mahayana, ou seja, o real ensinamento de Buda, não surge
como uma reação ao dogmatismo do Theravada, mas, sim, é resgatado após uma maturidade
filosófica, após um acostumar-se aos discursos, desenvolvidos durante aquela primeira etapa,
que, assim, é, apesar de tudo, de extrema importância.
Isto nos faz lembrar o caso de Uddalaka Aruni, que após aconselhar seu filho a uma
dedicação exclusiva aos estudos durante doze anos, faz com que veja a vanidade do acúmulo
de conhecimento. O entendimento disso, entretanto, só é possível através da experiência desse
acúmulo. Este pensamento coaduna-se também com a imagem da jangada presente na citação
da Amrtabindu Upanishad, no capítulo anterior. É o mesmo pensamento deste discurso de
Buda pertencente ao cânone páli do Budismo Hinayana:
"O homem inteligente não seria aquele que abandonasse a canoa (não mais útil para ele) ao fluxo do rio e continuasses seu caminho sem olhar para trás? A canoa não é um simples instrumento a ser descartado e abandonado uma vez que tenha cumprido o propósito para o qual foi construída?"
Os discípulos concordam que esta é a atitude apropriada a tomar em relação ao veículo, uma vez que desempenhou sua função.
O Buddha conclui então: "Da mesma maneira, o veículo da doutrina deve ser descartado e abandonado quando se alcança a margem da Iluminação (nirvana)." (Majjhima-Nikaya 3. 2. 22, 135. In: ZIMMER: 2005, 344)
100
Esta doutrina a que se refere está longe de ser apenas a doutrina dos antepassados (a
filosofia védica ou upanishádica), ou a doutrina monástico-dogmática do Theravada. É todo e
qualquer ensinamento, inclusive o ensinamento de Buda por excelência – a doutrina
Mahayana, que, ainda apoiada em conceitos, é igual a todos os outros discursos: um
instrumento que deve ser abandonado.
Isto vem ao encontro da questão do vazio (sunyata), que, ao lado do conceito de tathata (o
assim sendo, o indescritível), é a nova base do Budismo Mahayana. Esta nova, porém desde
sempre existente, vertente budista deixa de lado, como a uma canoa, a filosofia tripartida da
reencarnação (karma, samsara e nirvana) para, "olhando para si mesma" questionar a própria
validade de seus ensinamentos.
É novamente a questão da cessação levada radicalmente a cabo pelo Budismo –
principalmente na escola Zen. E é uma das maiores contradições encaradas por quem se
dedica ao estudo desta filosofia. O questionamento levantado já no início deste trabalho é o
questionamento que sempre se faz ao se deparar com o que parece um impasse. Como pode
uma filosofia seguir por esta via, a via da cessação dos discursos? Como é possível que
produza discursos como este, presente no Sutra do Diamante53 (Vajrachchedika-
Prajñaparamita-Sutra):
53 Por sua grande importância para a compreensão do Budismo Mahayana, este texto encontra-se disponível integralmente ao final deste trabalho, no Apêndice B.
101
7 Os maiores, perfeitos além do aprendizado, não pronunciem palavras de ensinamento
Subhuti, o que pensa? O Tathagata alcançou a consumação da
incomparável iluminação? O Tathagata tem algum ensinamento a ser enunciado?
Subhuti respondeu: Como eu compreendo o significado de Buddha54, não há nenhuma formulação de verdade na consumação da incomparável iluminação. Acrescentando que o Tathagata não tem nenhuma formulação de ensinamentos a enunciar. Por quê? Pois o Tathagata disse que a verdade não pode ser contida nem expressa. Ela não é ser nem não ser.
Este é o princípio não-formulado do fundamento dos diferentes estágios de todos os sábios.
O Sutra do Diamante pertence àquele conjunto de textos chamado Prajñaparamita.
Anterior ao Mahayana, é considerado de fundamental importância para o seu resgate, visto
que participou de maneira chave para o amadurecimento das mentes dos discípulos budistas,
influenciando aquele que é considerado o "fundador" do Mahayana: Nagarjuna, que, com sua
doutrina do "Caminho do meio" (Madhyamika), lança definitivamente a grande balsa no fluxo
do rio e, definitivamente, a abandona ao sabor do curso do rio.
Qual a sua participação no resgate deste que é, por excelência, o conhecimento búdico?
Seu nome evidencia-a. Na natureza o diamante é o material de maior dureza, de mais alta
indestrutibilidade. Só ele é capaz de riscar todos os outros materiais, só ele é capaz de riscar a
si mesmo. Filosoficamente, o Sutra do Diamante tem a habilidade de cortar, de destruir todas
as categorias de distinção mental propostas pela linguagem filosófica como verdades
absolutas, até mesmo aquelas propostas por si mesmo, pelo Budismo.
54 Manteve-se aqui, contrariamente ao que se fez no restante do trabalho, a grafia original Buddha, para manter a predominante carga de epíteto, "o iluminado" que o termo apresenta neste texto, juntamente com Tathagata (de cujo controverso significado trataremos mais à frente). Assim, não é do "nome" como o personagem histórico, o filósofo, o líder religioso, é mundialmente conhecido que se fala aqui – é o modo como um discípulo se dirige ao seu mestre.
102
18 Todas as modalidades mentais são apenas uma mente "Subhuti, o que pensa? O Tathagata possui o olho humano?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho divino?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho gnóstico?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho da verdade
transcendental?" "Sim, Honorável, ele possui." "Bem, você acha que o Tathagata possui o olho búdico da onisciência?" "Sim, Honorável, ele possui." "Subhuti, o que pensa? Sobre os grãos de areia do Ganges, o Buddha
lecionou sobre eles?" "Sim, Honorável, o Tathagata lecionou sobre esses grãos." "Bem, Subhuti, se houvesse tantos rios ganges como grãos de areia do
Ganges e houvesse uma terra búdica para cada grão de areia em todos esses rios ganges, muitas seriam estas terras búdicas?"
"Sim, realmente, Grande Honorável!" Então o Buddha disse: "Subhuti, tal seja o número de seres que habitem
nestas terras búdicas, apesar de eles possuírem diversos modos mentais, o Tathagata compreende todos. E por quê? Pois o Tathagata ensina que todas estas não são mentes, elas são apenas chamadas mente. Subhuti, é impossível reter a mente passada, impossível reter a mente presente, e impossível tatear a mente futura."
Mais uma vez vemos esta prática, que já pode ser percebida lá no capítulo VI da
Chandogya Upanishad55, de pôr em evidência as distinções aparentes da linguagem, de
qualquer linguagem, mesmo, e principalmente, da linguagem filosófica. Como uma filosofia
pode seguir esta via? Como pode uma filosofia abandonar o discurso? Como pode abandonar
seu próprio discurso?
Percebendo que tudo é discurso, que tudo é o mesmo discurso, que discurso é apenas o
nome discurso. O discurso é a balsa que deve ser abandonada ao sabor do curso do rio. A
experiência da verdade é impronunciável, indescritível, vai além do jogo de afirmação ou
negação. E isto é, contraditoriamente, entretanto, um novo discurso movimentando
infinitamente a roda dos discursos ("impossível reter a mente passada, impossível reter a
55 "A transformação é um instrumento verbal, um nome."
103
mente presente, e impossível tatear a mente futura"). Estes são os novos ensinamentos do
Budismo Mahayana:
A verdade não pode ser contida nem expressa.
Ela não é ser nem não ser.
E cada um desses novos ensinamentos vai ser acolhido por cada uma dessas duas escolas
mahayanas: o Madhyamika e o Zen. O "Caminho do meio" (madhyamika) segue a trilha do
exercício da negação de postulados, negando, principalmente, ambos os extremos da
preocupação filosófica: a afirmação e a negação do ser. A esse exercício dá-se o nome de
Vazio (sunyata). Essa doutrina do Vazio relaciona-se diretamente com a "aformal forma da
realidade", o indescritível "assim sendo" (tathata), que será cuidadosamente observada pelo
Zen em seu resgate de antigos gêneros, abandonando o discurso lógico e racional através de
uma linguagem figurativa, paradoxal, que tende a buscar aquele entendimento pelo silêncio.
104
iv) O caminho do meio
Conta-se que, após atingir o estágio do completo despertar, da iluminação, Buda calou-se,
e para sempre se calaria não fosse a súplica do deus Brahma, do panteão hindu, para que ele
dividisse seu conhecimento entre deuses e homens. Tal conhecimento, entretanto, não podia
ser revelado; mas não pelo mesmo motivo do Hinduísmo – por uma questão de manutenção
dos segredos e mistérios nas mãos de castas superiores, mas por ser de impossível revelação.
Buda, que nasceu numa casta guerreira, no clã dos Shakya, é propriamente chamado de
"Shakyamuni" – o "silencioso sábio" (muni) dos Shakya.
Vemos assim, que desde o início, a doutrina budista está atrelada ao silêncio. É do silêncio
que ela nasce. É, no mínimo, espantoso que uma filosofia que nasce do silêncio com o
propósito de calar-se para sempre atinja tantas culturas para fora da esfera de sua origem e
produza tantos textos filosóficos dos mais variados gêneros. Não, não é de se espantar: até
mesmo o silêncio diz, até mesmo o silêncio é discurso. E talvez seja o mais profundo e
profícuo dos discursos.
Como já foi tratado anteriormente, o gênero pergunta-e-resposta (chin. wen-ta), ao lado
dos textos biográficos, é um dos meios mais utilizados na transmissão da filosofia budista.
Estes gêneros resgatados pelo Budismo Mahayana, principalmente pelo Zen, cresceram e
suplantaram os antigos gêneros do cânone Theravada – Hinayana – e do Hinduísmo, que são
os tratados filosóficos – shastra.
105
Neste exercício de pergunta e resposta, num esforço quase oral de linguagem56, a resposta
é sempre desconcertante, no sentido de fazer aparecer, pela desconstrução lógica, a própria
falta de lógica da pergunta anterior ou de qualquer formulação lógica. Anular os
questionamentos é anular os discursos. Então, por que os discursos de Buda? Por que, então,
estudar os textos do Budismo?
Pelo mesmo motivo por que eles se conceberam: para fazer aparecer a linguagem.
Não há filosofia sem dizer. Como então buscar o Isto, se tal busca é filosófica? Como
buscar o Isto sem dizê-lo? O Isto existe, mas não é. O Isto é apenas mais uma entre tantas
categorias criadas pela linguagem assim como a própria linguagem. Como podem, então,
existir os ensinamentos budistas em torno do Isto, com categorias como a iluminação, o vazio,
e o silêncio? É Nagarjuna quem vai primeiro questionar isto e, de não tão "novas e
inesperadas maneiras" responder a isto.
A resposta dada por Nagarjuna é a de que há dois ensinamentos: o que é passível de ser
transmitido e que confere uma verdade, e o que não é passível de ser transmitido e que
confere, assim, não conferindo, uma outra verdade. No primeiro ensinamento ainda se deve
buscar, já que é o único caminho possível, a discriminação e aproximação por meio da
linguagem. Daí os termos "verdade", "iluminação", "vazio", "silêncio". Nagarjuna sabe-os
apenas nomes, mas não os considera prova de contradição alguma no pensamento budista da
cessação dos discursos. Mesmo sendo discursos, estes termos são necessários a um primeiro
estágio de compreensão. São, novamente, como a canoa, a jangada.
56 O Budismo Mahayana, por estender o acesso à outra margem a todos os seres, indiscriminadamente, vai também se desligar da língua sagrada, que era também a língua de cultura, o sânscrito, contemplando tanto os coloquialismos de diferentes dialetos, quanto outras línguas pelo mundo.
106
Considerado o fundador do Budismo Mahayana, o Budismo que se difundiria pelo mundo,
abarcando pessoas das mais variadas castas, Nagarjuna ("Luz das Serpentes"), que teria
vivido no século II ou III d.C., possui uma origem incerta e questionável. Sobre ele, conta-nos
um sábio hindu de nome Kumarajiva, numa biografia que traduziu para o chinês no século V,
que nasceu numa família brâmane, e que, ainda garoto, dominava os quatro Vedas e todas as
ciências, inclusive a magia. Mais tarde, fazendo uso dessa magia para se tornar invisível,
entrou, junto com três amigos, no harém real, mas logo foram apanhados. Seus amigos foram
condenados à morte, e a ele foi permitido escolher a outra morte: os votos monásticos.
Em noventa dias, estudou e dominou todo o cânone páli do Budismo (o cânone theravada),
após o que, seguiu para o norte em busca de novos conhecimentos, chegando ao Himalaia,
onde um velho monge ensinou-lhe os sutras do Mahayana. Após esse contato, um rei-
serpente (nagaraja) transmite-lhe um comentário autêntico sobre aquelas páginas.
Como pode então Nagarjuna ser considerado fundador de uma vertente filosófica que ele
mesmo teve que aprender após estudo e peregrinação? Na verdade, ele apenas revela este
conhecimento que surge desde os primeiros ensinamentos de Buda e os difunde pelo mundo.
Diz-se que os ensinamentos do Mahayana foram considerados pelo próprio Buda demasiado
profundos para os seus contemporâneos e, por isso, deixara-os guardados em segredo sob a
proteção de competentes guardiães. Foram necessários séculos de aprendizado na doutrina
Hinayana – institucional, monástica, voltada somente às castas dos brâmanes e kshatryas –
para que esses ensinamentos pudessem finalmente ser revelados.
A história de Nagarjuna confunde-se, portanto, com a própria trajetória de amadurecimento
do Budismo. Um brâmane que é condenado à vida monástica, necessariamente numa doutrina
107
heterodoxa, já que o bramanismo não possuía ordem, passando pelo estágio da peregrinação
até a obtenção dos sutras mahayanas. Mahayana, como se sabe, significa "grande balsa".
Nagarjuna é, assim, o condutor dessa balsa que é levada pelo rio em que transitam os homens.
Mas em que consiste essa mudança de balsa em termos filosóficos? Nestes termos, é mais
que uma mudança de veículo, é uma mudança no próprio curso do rio. É a percepção da
impossibilidade do rio, do seu percurso e do seu transitar. Na busca do Isto de todas as
filosofias anteriores a Buda havia a ilusão da Verdade. A Verdade que era o conhecimento
dos mitos, que era a essência, que era nirvana, que, enfim, podia servir a diferentes doutrinas
com diferentes nomes, chega até o Budismo como "iluminação".
A vertente Hinayana vai reservar esse conhecimento da Verdade, a iluminação, apenas às
duas castas mais altas da sociedade hindu: os brâmanes e os kshatryas, e apenas por via
monástica. A grande balsa mahayana vem e estende a possibilidade da iluminação, a
"essência búdica", a todos os seres: todas as castas, estrangeiros, animais, plantas, etc. sem
necessidade da ordenação religiosa.
Com Nagarjuna tem lugar a desconcertante visão: não há iluminação, não há balsas não há
nem mesmo o rio. Nirvana (iluminação) e samsara (o mundo, a roda dos acontecimentos) são
o mesmo. Não há como escapar à roda das encarnações. Não há salvação. Tudo é discurso.
Nenhuma verdade existe, não há nada a ser ensinado.
Herdeira direta da filosofia contida no Prajñaparamita, sua obra Mulamadhyamikakarikas
("Versos sobre o Caminho do Meio") retoma, ao mesmo tempo que inicia, esta que será, mas
sempre foi, a grande tradição budista: a cessação dos discursos. Sua obra, portanto, além de
108
pôr em movimento uma outra balsa, um outro veículo, inaugura também uma outra via no rio
dos discursos: o caminho do meio.
Este é o caminho entre a negação e a afirmação, entre ser e não ser. A partir de seus versos,
que ironicamente protagonizam o surgimento das primeiras formulações do pensamento
dialético na Índia, exerce-se radicalmente uma crítica às categorias discriminatórias da
linguagem.
A partir daí se inicia, pois, todo um movimento que não postula nenhum ensinamento,
nenhuma nova doutrina, contentando-se em negar conceitos pré-existentes. Já observamos
este movimento no Sutra do Diamante e podemos observá-lo também em outro sutra que
compõe o Prajñaparamita, o Sutra do Coração:
Não há nem forma, sem sentido, nem percepção, nem impulso, nem consciência, nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente, nenhuma forma, ou som, ou cheiro, ou sabor, ou tactilidade, nenhum objeto da mente... (In: McEVILLEY: 2002, 419)
Neste como naquele trecho do Sutra do Diamante, podem-se perceber várias categorias da
linguagem sendo negadas, várias verdades e conceitos filosóficos anuladas por aquilo mesmo
que as criaram: os discursos. Mas contra elas não se posiciona nenhum novo discurso, não há
nenhum ensinamento, contra elas está apenas a sua própria inconsistência.
Este exercício de negação é, entretanto, mais antigo que os sutras do Prajñaparamita,
iniciam-se, como toda filosofia da Índia, lá nas Upanishads, com os postulados,
aparentemente contraditórios, de Yajñavalkya: "neti, neti" ("nem isso, nem isso") – referindo-
se às manifestações aparentes, e "iti, iti " ("isso e isso") – referindo-se ao princípio universal e
109
imutável. A negação de Yajñavalkya é, portanto, uma negação inicial, que ainda possui um
contraponto positivo, ainda se firma num conceito (o Todo, o Absoluto, a Unidade, o
Permanente), numa afirmação absolutista. Em seguida, a filosofia theravada irá transformar
esta afirmação em negação, com o conceito de Maya, não há ser, só o que existe são as
manifestações da Maya, tudo é ilusão. E, da mesma forma que esses ensinamentos, a via do
meio de Nagarjuna também vai se tornar uma etapa inicial, um veículo daquilo que culminará,
e que vigora até hoje, no Budismo Zen.
A busca pelo Isto é empreendida sempre que o homem se depara com a transitoriedade; a
transitoriedade para o Budismo é a infinita transitoriedade dos seres nas diferentes
encarnações. Nagarjuna vai ser aquele que percebe que não existe tal transitoriedade. Nada de
fato passa, tudo é uma infinita permanência, não há escapatória. Assim, o que pode buscar o
Mahayana, já que não é atingido pela consciência da transitoriedade, se o que o atinge é a
consciência da permanência?
110
Entrecaminhos: I Ching
Há uma obra que aparece ter permanecido incólume em meio ao princípio da mutação: e,
curiosamente, é a obra que se intitula "Mutações".
Já nos referimos a ela com relação à questão da busca. Deter-nos-emos agora sobre seu
papel na história do Budismo. Como se sabe, o I Ching é, mesmo tardiamente escrito, o
clássico mais antigo da China, remontando às suas origem como civilização. Usado em
práticas divinatórias, impulsiona-se, como o próprio nome – I – já diz, para a questão das
mutações. Diz-se que a simplicidade da composição dos seus signos foi baseada nos desenhos
do casco de uma tartaruga, o próprio casco de tartaruga teria servido nos rituais mágicos57.
Curiosamente é a tartaruga um símbolo de longevidade, é a própria permanência, ou a
permanência por mais tempo. Nos símbolos do I-Ching conjugam-se, portanto, as duas
maiores inquietações humanas: a transitoriedade e a morte.
Este conjugar traduz-se pela permanência da transitoriedade. As mutações, e somente elas,
são o que permanece no infinito movimento da impermanência. Como as mutações são tudo o
que permanece no eterno ciclo, os signos que compõem o livro conseguiram também
permanecer e ser (não tão facilmente) compreendidos entre diversas e opostas escolas de
pensamento em diferentes partes do mundo. Isto pode ser mais bem evidenciado no lugar
onde teve origem, no que hoje é a China.
57 No Hino Homérico a Hermes há também a presença marcante de uma tartaruga, cujo casco é transformado pelo deus na lira primordial. Antes de criá-la, porém, menciona uma estranha função mágica que teria sido desempenhada pela tartaruga: “Viva, serás uma fórmula contra feitiçaria, e, morta, um muito doce instrumento musical.” (In: TRZASKOMA, SMITH e BRUNET: 2004,188.)
111
Lá, este clássico serviu e até hoje serve aos estudos confucionistas, taoístas e budistas.
Atribui-se a Confúcio, ou aos seus primeiros seguidores, a eleição do livro como clássico e
comentários esclarecedores. Taoístas e budistas escreveram novas versões do livro e novos
comentários e interpretações. Assim, existem o I-Ching confucionista, o taoísta e o budista.
Estes, sim, especificamente, não conseguem transcender sua espaço-temporalidade, como o
fez e vem fazendo aquilo que originalmente se denominava somente por I: os símbolos
sozinhos, sem qualquer comentário, divididos em trigramas (as formas mais simples) e
hexagramas (formas mais complexas). Eles captam a eternidade do princípio da mudança de
que trata o hexagrama 54 – Kuei Mei, "a jovem que está se casando"– sobre o qual um
comentário, que integra o grupo de comentários chamado "Imagem", diz: "Assim o homem
superior compreende a transitoriedade à luz da eternidade do fim".
Todos estes nomes, estes atributos (os títulos dos trigramas e hexagramas, os próprios
nomes "trigrama" e "hexagrama", e, principalmente, seus comentários, do mais antigo ao mais
recente, de qualquer escola) tornam a leitura desta obra bastante difícil, quase impossível para
nós. Entretanto, seus elementos de harmonia simples, que lidam basicamente com o que se
convencionou pelos princípios do Yin e Yang – princípio receptivo e criativo – despertam
uma curiosidade e estudo permanentes e ainda continuam servindo àquele mesmo propósito
por que foram criados: o uso oracular.
Isso se deve ao fato de que, mesmo sendo linguagem, constituem um mínimo de
linguagem, seu discurso é praticamente inexistente e pode ser perigosamente confundido com
o discurso dos comentários que não são propriamente I. Esses comentários nasceram, como
todos os discursos, num período de decadência, de esquecimento, de deturpação. Servem para
esclarecer os signos do I-Ching ou interpretá-los à luz de uma determinada filosofia e, assim,
112
acabam por torná-lo de difícil acesso, sendo necessários sempre novos comentários e
interpretações dando continuidade assim ao ciclo de todos os discursos.
O comentário budista à obra deu-se desta mesma maneira, mesmo sendo o Budismo uma
filosofia que busca a cessação dos discursos. O I-Ching budista foi escrito durante a Dinastia
Ming, no século XVII da nossa era, por Chih-hsu Ou-i (1599-1655). Sobre este período da
história da China conta-nos Thomas Cleary que foi conturbado, de revoltas e dissidências
dentro da doutrina budista na China e que se fazia necessária a escrita de compêndios e
tratados filosóficos. A vida daquele autor é tão conturbada quanto a sua época e passa por
diversas transformações que, por outro lado, ilustram muito bem e se coadunam com o
próprio percurso das três filosofias chinesas: Confucionismo, Taoísmo e Budismo.
Conta-se que, como todo jovem letrado que almejasse ser bem sucedido nos concursos
públicos, Ou-i inicia seus estudos no pensamento confucionista e escreve inúmeros ensaios
antibudistas de que mais tarde se arrependeria. Entretanto, como seguisse uma escola taoísta
de influência budista – e daí se percebe a profunda ligação que têm na China estas filosofias –
aos vinte anos passa a adotar práticas budistas de meditação e de recitação de mantras. Ao
longo de sua vida, sempre abalada por períodos de graves doenças, discute e questiona essas
práticas e perfaz um caminho cada vez mais de volta à tradição budista, aos textos canônicos,
principalmente quando passa a questionar a validade dos discursos dos Koans.
Todos esses questionamentos levaram-no à conclusão de que todas as diferenças
doutrinárias entre Budismo, Confucionismo e Taoísmo devem-se ao fato de que todos esses
ensinamentos não são nada mais do que meios temporários. Novamente a questão da mutação
113
que assola todos os homens. E ela é ainda mais aterradora quando prova ameaçar a própria
verdade ou as verdades em que se apóiam os homens ao longo de toda uma vida.
A vida de cada um pode acabar; mesmo que isso traga dor, isso é compreensível, esperado.
O que nos pega de surpresa e causa uma dor muito difícil de ser superada é a transitoriedade
dos discursos, é a sua não transcendência da finitude da existência humana. Assim, é possível
ao longo de uma curta existência como foi a de Ou-i perceber a finitude da linguagem. É esta
finitude, é esta fragilidade que aproxima todos os discursos, conclusão a que já havia chegado
também o fundador de uma escola taoísta que propõe a união das três doutrinas, visto que são
o mesmo: discurso.
114
Entrecaminhos: o supremo caminho do não caminho
O que é o Caminho? Como se aproximar do Caminho? Como abandonar o Caminho? Estas
questões fazem parte até mesmo do discurso mais reticente a qualquer forma de discurso.
Neste koan, chamado "O normal é o caminho" fala-se do Caminho, onde os caminhantes que
até aqui chegaram reconhecerão os passos percorridos.
Zhaozhou perguntou a Nanquan, "O que é o Caminho?" Nanquan disse, "A mente normal é o Caminho." Zhaozhou perguntou, "Pode-se dele aproximar deliberadamente?" Nanquan disse, "Se você tenta se dirigir a ele, você se desvia dele." Zhaozhou disse, "Se não se tenta, como saber que é o Caminho?" Nanquan disse, "O Caminho não fica na província do conhecimento,
tampouco na do desconhecimento. O conhecimento é uma falsa consciência, desconhecimento é indiferença. Quando realmente se chega ao Caminho inimitável, é como num espaço, vazio e aberto; como insistir em afirmação e negação?"
Com essas palavras, Zhaozhou de repente se iluminou. (In: CLEARY: 2005, 316)
Mas não é o Caminho também um princípio? Não é ele o princípio do Taoísmo? Tao não é
caminho?
Atribui-se ao taoísta conhecido por Ancestral Li, que teria vivido durante a Dinastia Tang,
no final do século VII d.C., a fundação da escola taoísta Completa Realidade. Em seus
inúmeros ensinamentos, recolhidos em posteriores coletâneas de dizeres, volta-se para os
obstáculos do caminho. Um desses obstáculos é o obstáculo dos princípios.
Mesmo quando o obstáculo da dúvida é removido, há ainda o obstáculo do princípio, que é ainda mais danoso ao Caminho. O obstáculo causado pelo individual apego à parcialidade impede a compreensiva percepção. O obstáculo dos confucionistas está na reificação, o obstáculo dos taoístas está no nada, e o obstáculo dos budistas está no vazio. (In: CLEARY: 2003, 103)
115
Não deveria haver princípio no caminho. Mas os caminhos são geralmente princípios, ou
param no princípio, ou o princípio se constitui em caminho. É isto que leva ao sectarismo que
só promove ad infinitum a sucessão dos discursos. Por isso, Li propõe a integração:
O obstáculo da reificação conduz à ilusão, que torna difícil o despertar. O obstáculo do nada conduz à rigidez, na qual não há realismo. O obstáculo do vazio leva à quiescência, que se reverte em niilismo. Os antigos sábios eram realistas, mas abertos, vazios ainda que realistas. Eles viram que vazio não é vazio, que vazio não é destituído de nada. Este é o supremo Caminho. É atingido através da integração. É somente por sucumbir ao obstáculo do princípio que ninguém sabe isso. (In: IDEM: ibdem, 105)
116
Entrecaminhos: Tao dito tao não é tao
Tao dito tao não é tao. Nome nenhum nome duradouro nomeia. Inominada: a origem do céu e da terra. Nomeada: mãe de dez mil coisas. Vazio de desejo, busque o mistério. Pleno de desejo, busque manifestações. Ambos têm mesma fonte, diferentes nomes. Cale-os ambos bem fundo – Em funda profundidade: Caminho de todo mistério
Tao dito tao não é tao. Isto diz o poema que abre o Tao Te Ching, obra situada
controvertidamente entre os séculos VI e IV a.C. (mesmo período suposto para a vida de
Buda), atribuída a Lao Tse, lendário fundador do Taoísmo. Vê-se desde a sua origem como
pensamento a recusa dos discursos, que é a mesma recusa que vê as transformações como
“instrumentos verbais, nomes”.
A semelhança de princípios, ou melhor, de “fonte”, com o Budismo, não fica só aí.
Considerada uma filosofia autóctone da China, o Taoísmo é responsável pelo surgimento da
mais popular e conhecida escola do Budismo Mahayana: o Chan Budismo (jap. Zen), que por
sua vez, subdivide-se em inúmeras escolas.
Chan é a palavra chinesa para dhyana do sânscrito. Dhyana significa o calmo sentar. Mas,
antes do Zen, ou Chan, o Taoísmo já se orientava para a meditação que se opera através da
quietude do sentar. Nesta quietude encontra-se a quietude dos discursos e do agir. Mas há, de
outra parte, um agir e um fazer que complementam esta busca: é o vagar pelo caminho, na
viagem.
117
Entretanto, é muito difícil estabelecer até que ponto Taoísmo é de fato originário da China.
É possível que haja mesmo dois percursos para esta filosofia. Um que vem seguindo, desde os
primórdios, práticas concernentes à magia, à alquimia, aproximando-se assim dos
fundamentos e inquirições do I-Ching. Neste aspecto está o Taoísmo particularmente voltado
às práticas das três metas da realização humana: energia, vitalidade e espírito. E mesmo aqui
se pode estabelecer uma relação bastante forte com as metas hindus de artha, kama e
dharma/moksha58, respectivamente. É, portanto, provável que mesmo nesta vertente partilhe
com o Budismo da mesma origem.
Mas há o Taoísmo puramente filosófico, que se volta para a linguagem, seus obstáculos,
sua transmissão e mesmo para o problema da escrita. Estas foram as preocupações que se
instalaram nesta filosofia principalmente a partir do Ancestral Li. Estas preocupações
aproximam-no como uma ponte no entrecaminho de Hinduísmo e Budismo. Assim, se o
Hinduísmo upanishádico contém em si a conexão secreta que liga diversas escolas de
pensamento, o Taoísmo é esta mesma conexão, mas visível, sensível, fundamentada em
conhecimentos alquímicos milenares da China, unindo-se a todas as doutrinas originadas
pelas Upanishads.
A importância do Taoísmo, mais precisamente da escola da Completa Realidade, para o
Budismo é a mesma que, muitos séculos antes, teve a escola fundada por Nagarjuna,
originando a vertente Mahayana, do grande veículo, que possibilitou a entrada da filosofia
budista na China. A escola Madhyamika de Nagarjuna, o Taoísmo e o Zen possuem, pois,
uma grande integração com relação à linguagem.
58 Estas são as quatro metas na vida de um hindu (que mais ou menos correspondem aos seus quatro estágios): prosperidade, poder (artha); prazeres sensuais de qualquer tipo (kama); retidão no cumprimento das obrigações (dharma) e liberação final (moksha)
118
Por isso, por sua grande e visível conexão com a filosofia upanishádica e com o Budismo,
o caminho do não caminho do Tao foi brevemente percorrido aqui.
119
v) O caminho indescritível
O que busca o Mahayana é a tranquilidade. Mais do que isso, é a cessação. A cessação de
todos os discursos. Nada há para ser ensinado. Buda nunca haveria pronunciado uma palavra
de ensinamento. Entretanto, o cânone mahayana é extenso e se expande pelo mundo
fundando, através do seu contato com o Taoísmo, uma das mais populares escolas budistas: o
Zen. A doutrina que busca a cessação sabe que, sendo apenas mais uma doutrina, não possui,
nunca possuirá, muito menos transmitirá, alguma verdade. Esses fundamentos e essa
percepção são transmitidos de preferência de "mente para mente" numa crescente
desconfiança com a linguagem, principalmente com o texto escrito.
A mudança radical operada pelo Mahayana e principalmente por Nagarjuna opera-se
verdadeiramente na linguagem. O Budismo Mahayana, ao livrar-se da característica
institucional da escola Hinayana, livra-se também da ilusão do discurso lógico, da tentativa de
sistematização dos manuais (shastra) e também dos sutras.
A literatura Zen quebra com a tradição dos gêneros literários herdados do Budismo indiano – o tratado formal ou científico (sastra) e o comentário sistemático (bhasya, vrtti, etc.) – convertendo-se a gêneros nativos, mas mantendo-se fiel ao conteúdo do Budismo indiano. A biografia e os registros são fundamentalmente budistas em crença, mas fundamentalmente chineses em gênero, estilo e linguagem. (BROUGHTON: 1999, 107)
No entanto, já desde o início, antes da escola Zen, é o Budismo desconfiado com a eficácia
da linguagem. Nascido como uma escola heterodoxa de pensamento indiano, não podia
desvencilhar-se desta que é uma das grandes preocupações de toda a filosofia hindu: a
linguagem. A característica dialógica de todo o cânone budista tem suas raízes fundadas desde
as Upanishads que, como já foi visto, têm, entre outros, o sentido de "sentar-se próximo". Os
120
textos do Budismo referem-se sempre ao contexto do ensinamento por meio de uma audiência
atenta. Uma audiência constituída por pessoas das mais variadas castas, culturas e
escolaridade. Sua linguagem, portanto, deveria atingir ao maior número possível de pessoas.
Já dissemos que a diferença fundamental no caminho seguido rumo ao Isto no Ocidente e
no Oriente está na linguagem. Mas, um importante ponto em especial deve ser considerado. A
ilusão, que existe no Ocidente com relação ao discurso filosófico, de que ele caminha sempre
num processo de desenvolvimento evolutivo. Mesmo quando retoma o caminho, quando volta
atrás, dá-nos testemunho de seu avanço. No Oriente, a profícua e precoce discussão acerca da
linguagem pressupõe que ela sempre representa um embargo a qualquer possibilidade de
avanço. E que, enquanto fundamentado na linguagem, ou melhor, enquanto linguagem, os
discursos, de qualquer espécie, tendem sempre a degenerar.
O Budismo talvez seja o único sistema filosófico que tem consciência disso. E que tem
consciência de que não há Verdade. Todos os seus ensinamentos são tentativas de evidenciar
isto. A lógica de seus discursos é para atingir a falta de lógica de qualquer discurso, a falta de
lógica de seus discursos é para evidenciar a falta de lógica de qualquer discurso.
O capítulo 21 do Sutra do Diamante chama-se, de modo bastante apropriado, "Palavras
não podem dizer verdade, o que é dizer palavras não dizem verdade":
"Subhuti, não diga que o Tathagata concebe a ideia: 'eu devo pronunciar um ensinamento'. Pois qualquer um que diga que o Tathagata pronuncia um ensinamento, difama o Buddha e é incapaz de explicar o que ensino. Para qualquer sistema de declaração de verdades, a verdade é indeclarável; então 'a enunciação da verdade' é apenas o nome dado a isto."
Assim, Subhuti disse estas palavras ao Buddha: "Honorável, nas eras futuras haverá homens que escutarão a declaração destes ensinamentos e serão inspirados por ela?"
121
E o Buddha respondeu: "Subhuti, estes aos quais se refere não são nem seres viventes nem seres não-viventes. E por quê? Pois, Subhuti, estes seres viventes não são tais, eles são apenas chamados por este nome."
Alguns assumem que o Prajñaparamita é todo da autoria de Nagarjuna; outros, que parte
desse cânone era-lhe pré-existente e parte surgiu após a sua revelação da doutrina mahayana.
Seja como for, no Sutra do Diamante concentra-se o germe de um discurso que teria como
proposta a anulação de todos os discursos. Por isso mesmo a imagem do diamante, material
de maior dureza, capaz de riscar qualquer superfície e único capaz de riscar a si mesmo. O
riscar a si mesmo é a empresa do Budismo inaugurado por Nagarjuna.
Diamante em Sânscrito é a mesma palavra para trovão (vajra), a arma do deus Indra, rei
dos deuses. É a indestrutibilidade que a tudo destrói. O alvo dessa destruição devastadora é o
próprio discurso. Neste fragmento encontramos vários conceitos a serem postos por terra:
ideia, ensinamento, verdade. E, o maior deles: a palavra. De modo bastante inusitado refere-se
às filosofias como "sistemas de declaração de verdades", mais ou menos como a ciência hoje
faz em relação às doutrinas religiosas. O Budismo é o sistema filosófico que reconhece o
cunho "religioso" de todas as filosofias, inclusive do próprio Budismo, se dele for tirado
qualquer ensinamento59.
Tathagata é a maneira como Buda refere-se a si mesmo em seus discursos. Tathagata é
uma palavra de etimologia duvidosa. Pode tanto significar "o que assim, dessa forma" (tatha),
"se foi" (gata), como aquele que "assim, dessa forma" (tatha), "veio" (a-gata)60. Em qualquer
59 “Se considerarmos que, em quase todos os povos, o filósofo é apenas o prolongamento do tipo sacerdotal...” De repente, percebe Nietzsche no Anticristo (p. 29 de nossa edição), mesma obra em que reconhece que o Budismo “surgiu após séculos de atividade filosófica” (p.39). 60 Há, ainda, uma outra tentativa etimológica em que o sentido seria "aquele que canta (de gatha) o indescritível (tatha)".
122
uma das duas, a situação de Buda é indescritível. Tatha é o impronunciável, é o indescritível
caminho. Sobre o seu próprio epíteto nos diz Buda ainda nesse mesmo sutra:
"Subhuti, se alguém disser que o Tathagata vem ou vai, se senta ou se reclina, ele falha em compreender meus ensinamentos. Por quê? Pois o Tathagata não possui de onde nem para onde, por isso ele é chamado Tathagata."
Aqui se nota a descrença em qualquer aventura etimológica como base para compreensão
de algum discurso. "Subhuti, palavras não podem explicar a natureza do cosmo. Apenas
pessoas atraídas pelos méritos fazem uso deste método arbitrário".
Alguns afirmarão com toda razão e pleno de méritos: palavras não são linguagem. Palavras
não dão conta da linguagem. A linguagem transcende o âmbito das palavras. Sim, mas
igualmente verdadeiro é o risco traçado pelo diamante: linguagem é a palavra linguagem, é
um nome a que se atribui o status de guardiã da verdade da condição humana. Numa visão de
mundo onde o humano é apenas e igualmente um nome, não pode existir a condição humana.
Pois onde manifestações fenomênicas são apenas os nomes que lhes são atribuídos, o que são
as suas características senão um discurso terceirizado? Toda característica, condição, atributo
é apenas discurso sobre mais discurso.
Seguindo esse caminho indescritível, assim, desse modo, o Budismo que se inaugura com o
aprendizado de Nagarjuna aponta o vazio de todos os conceitos, principalmente o da
transitoriedade. Algo que sempre fora tormento maior do que o temor da morte passa a ser
destituído de existência. Transitoriedade não existe nem não existe. É uma palavra, um nome
com o qual se designa um determinado conceito. Assim o Budismo retira do homem a
possibilidade do tormento, a possibilidade da busca. O que buscar se não há morte, nem
123
eternidade, nem transitoriedade? Retirar do homem os tormentos é retirar dele sua
humanidade, visto que são todos eles apenas atributos.
Nada move o homem que não seja tormento, nada lhe confere mais humanidade. Despi-lo
de sua própria humanidade é o que intenta o Budismo.
No homem, humanidade é linguagem. Já disse uma vez um filósofo ocidental: "O homem
não seria homem se não pudesse dizer 'Isto é'". A linguagem quer dar conta do ser. O Isto
trazido sempre por toda linguagem é a ideia do ser. O Budismo Madhyamika vai negar o ser a
todas as coisas ao apontar a inconsistência da linguagem.
124
TODOS OS CAMINHOS DA LINGUAGEM
Diante de toda existência transitória, a única coisa permanente neste mundo é a impermanência.
(Kathasaritsagara, "Oceano dos Rios de História")
Tudo é mais complexo do que aparenta ser através da simplicidade superficial. Tudo é
mais simples do que aparenta ser através da complexidade superficial. A complexa
transitoriedade do mundo desdobra-se na simplicidade de uma permanência – a mudança.
Não se perguntar em tempo oportuno pelo Isto tem sido o grande erro de nossa demanda
como pensadores, ilustrado muito bem pelo episódio de Percival.
Pois o espelho, de águas ou de aço, mostra ao homem, desde sempre e todos os dias, um
testemunho da transitoriedade bem mais vigoroso, eficiente e cruel, porque veloz: a velhice.
Esta é uma mudança de estado à qual nenhum estado se conforma.
Desde então, busca o homem um princípio que reja todas as transformações, um princípio
com o qual possa identificar-se numa busca pela reunião a ele, um princípio imutável e
indivisível. A este princípio ligam-se vários nomes, vários conceitos, em diferentes culturas e
em diferentes campos do saber. É o Tao, da filosofia chinesa, o Tat do Hinduísmo védico, o
Isto. A partir destes princípios, o homem em sua busca constrói sistemas filosóficos que se
querem permanentes. Em busca da conquista do imutável, que é a própria mudança, o homem
não consegue se dar conta de que até a linguagem em que se quer firmar é mutante, só serve a
um determinado momento.
125
No entanto, as conceitualizações também são mutáveis e só podem servir àquele momento
que é na verdade um átimo na história do mundo. Esta é uma grande verdade que precisa ser
conhecida dos homens. Sua vida é um total desamparo, não há princípios capazes de sustentar
eternamente uma configuração cuja única constante é sua própria inconstância.
A busca do Isto tem sido apenas a busca pelo ser do Isto, ou mesmo, como propõe
Heidegger, o deliberado esquecimento do ser do Isto. Heidegger que, no século XX, retoma o
caminho do ser, abandonado no ocidente logo após os pressocráticos, confere novamente a
todas as coisas o ser de todas as coisas. Todas as coisas são. Mas não existem. Apenas o
homem é ao modo da existência.
Estudando diversos textos budistas, percebemos que o caminho retomado por Heidegger já
havia sido conscientemente abandonado pelos filósofos do Budismo Mahayana. A ausência
de ser de todas as coisas é a base para se compreender a noção de vazio, que leva a um
consequente estado de iluminação. Esta postura parece contradizer, muitos séculos antes,
todos os postulados heideggerianos. Nenhuma coisa é, de nenhuma coisa pode-se dizer que
seja. Entretanto, todas as coisas existem. Mesmo ao homem é conferida a existência.
Esta diferença fundamental está, mais uma vez e sempre na linguagem. É a linguagem que
confere existência a todas as coisas, inclusive a si mesma, inclusive ao homem. Linguagem é
o que se denomina linguagem, linguagem é a palavra linguagem. É o exercício da linguagem
– a nomeação, o conhecimento, o logos – que confere a ilusória existência às coisas, inclusive
ao homem, que, sem isso, não existiria.
126
Mas o homem existe porque a linguagem existe. O que parece ser um ponto de
convergência entre o pensamento budista e o de Heidegger (e o pensamento ocidental como
um todo) anula-se no momento em que o Budismo busca a cessação da linguagem e a
inexistência do ser de todas as coisas. As coisas não são, nem não são, não fazem parte do ser
nem do não-ser; isto porque sobre elas nada pode ser dito, não possuem características. Se as
possuíssem, seria lícito distingui-las umas das outras ou aproximá-las.
Isso não se pode fazer. O movimento de diferenciação ou identificação das coisas não pode
dar conta de seu ser, visto que ele não existe. Tal movimento dá conta apenas da perpetuação
dos discursos e da ineficaz investigação acerca do Isto. Sobre o ser, acredita-se que seria o
concreto subjacente a todas as relações não-concretas, aquelas que superficialmente carregam
as características, os adjetivos, os atributos e filiações de todo e qualquer ser. Mas sem dar
conta do concreto que é o próprio ser, porque habitam a esfera das relações superficiais de
oposição e identificação. Por participarem no jogo de pares e de contrários, os atributos não
podem dizer da unidade própria de todo ser.
No entanto, ser é a palavra ser, e a partir de toda palavra pode-se ou de nenhuma palavra
pode-se estabelecer um par ou um contrário. Aqui se reafirma o que anteriormente já se
afirmou: substantivos não são mais ou menos concretos que os adjetivos. Substantivos e
adjetivos são nomes, são categorias da linguagem, ou melhor, pertencem a uma categoria
mais específica de linguagem: a língua. Estabelecer o contrário de "claro" ou "doce" é tão
legítimo quanto se chegar ao oposto de "amarelo" ou "pedra". Mas, neste movimento, não
estamos querendo elevar a categoria dos adjetivos à concretude da categoria dos substantivos.
Não. Ambos são atributos, ambos são adjacentes na mesma medida, nenhum dos dois poderia
alcançar o ser do Isto se tal houvesse.
127
Quando o que se quer encontrar é o nome do isto, a cor do isto, suas características, afasta-
se consideravelmente do isto. Não existe isto em si como coisa sendo algo. O isto só existe
enquanto nome isto. Não possuindo ser, não há o que se investigar. Esse não-ser das coisas é
o princípio fundamental da filosofia budista: o vazio.
O vazio, entretanto, não significa a não-existência da coisa; significa apenas que não há o
ser de todas as coisas nem de cada coisa em si, simplesmente por não ser possível, nem
distinguir as coisas umas das outras, nem igualá-las. É impossível conferir características às
coisas porque, sendo determinada característica diferente da coisa, não pode, dessa forma, ser
associada a ela; sendo inerente à coisa, não pode vigorar numa relação adjetiva, sendo ela e a
coisa um todo. O vazio como impossibilidade de ser é a cessação de todos os dizeres.
Muito se tem falado sobre o vazio desde o seu surgimento como princípio. Tanto entre as
escolas do oriente quanto entre as do ocidente. Mas falar sobre o vazio não é compreendê-lo.
Falar sobre o vazio é apenas conferir-lhe existência. Sobre o vazio, assim como sobre todas as
coisas nada se pode dizer, não há nada a ser investigado. Então o que é o Isto para a filosofia
budista?
É o indescritível vazio, e ele se diz na cessação de todos os dizeres. Na tentativa de dizer o
vazio, o Budismo em suas diferentes vertentes vai silenciar sobre ele, vai desconstruí-lo
apontando para a falha das construções lógicas de todos os dizeres.
Em qualquer compêndio filosófico sobre o qual nos debruçamos, sempre em leitura
silenciosa, não percebemos o dizer que ali fala. É quase como se fosse um pronunciar-se por
si só da própria filosofia enquanto ser em si mesma. A filosofia geralmente parte desse
128
princípio: a de que é um ser em si mesma, baseada, obviamente, na segurança do ser da
linguagem. A linguagem, contudo, não é. Ela diz. Os textos filosóficos tendem a escamotear
os dizeres da linguagem, fazendo-a reinar absoluta, abstrata, intocável.
A escrita tem um papel fundamental neste processo de deificação da linguagem. A
transformação de questionamentos filosóficos orais de discípulo e mestre – em meio a uma
plateia ouvinte – em livro, elege este, o livro, como o pronunciador de determinada verdade
por meio de uma linguagem revelada. Sacraliza-se o livro e seu conteúdo e se esquece que o
seu conteúdo é um dizer que teve lugar num determinado espaço-tempo.
O existir é sempre pontual, pois é sempre da palavra; a palavra é o apontar que
dimensionaliza todas as coisas para a proximidade. É sempre de um dígito, pois é sempre do
gesto.
Sobre isso dirão que tempo e espaço são apenas duas categorias que se confundem, criadas
pela linguagem e que, portanto, são também existências vazias de vigor, de ser, não tendo a
menor importância para a leitura de qualquer obra filosófica. Mas a obra trabalha sempre com
as categorias da linguagem e está a elas sujeita. Esquecer-se de que o dizer de cada tratado
filosófico se deu num tempo e num lugar, abre uma via, inaugurada pela escrita, de duplo
sentido: primeiro, aquele dizer corre o risco de ser considerado uma verdade universal, e,
portanto, atemporal, somente pelo fato de que sua representação escrita resistiu ao tempo e
pode ser copiada em qualquer suporte e transportada para qualquer lugar; segundo, como
consequência disso, considera-se todo dizer como passível de ser utilizado em qualquer
sistema filosófico.
129
Ao resgatar a oralidade e temporalidade do diálogo, o Budismo resgata a transitoriedade de
qualquer discurso e sua localização. Fazendo isto, podemos então compreender qualquer
discurso filosófico como um diálogo travado entre uma verdade postulada e uma refutada. A
não percepção desta estrutura é o que faz com que muitos discursos pareçam herméticos. A
mistura de conceitos num jogo de afirmação e negação torna o texto filosófico carregado de
dicotomias irrecuperáveis, dificultando o acesso. Ainda mais porque, sendo o texto escrito, no
gênero prosa, não deixa transparecer a oralidade e temporalidade do diálogo, que, no fundo,
está sendo travado entre um filósofo e outro.
Quando se percebe isso, percebe-se que todo o discurso filosófico do Ocidente é um
diálogo travado entre Platão e seus seguidores, que o acusam sempre de alguma falha, ou
entre Platão e seus refutadores, entre Platão e os pressocráticos, entre os pressocráticos e
aqueles que tentam resgatar os seus discursos pela afirmação.
Neste imenso diálogo, nunca se calam as vozes que se tenta calar. Ressuscitam-se vozes
que não mais ecoam, apenas deixaram gravados seus sons num pedaço de papel, muitas vezes
por uma via já terceirizada, já de ouvir falar. Esquecendo que os questionamentos platônicos
se deram num tempo e lugar específico, perpetua-se a inquietação platônica, e, quem lê as
obras filosóficas contemporâneas não consegue entender a conveniência de determinada
questão.
Pois não tem o menor sentido a discussão entre esses diferentes posicionamentos nos dias
de hoje. As questões ou não são mais as mesmas, ou não podem ser ditas da mesma forma.
Este é o princípio da mutação, da transitoriedade que, permanentemente, arrebata todas as
coisas. Logicamente não pouparia nem mesmo as obras filosóficas, nem mesmo as suas
130
verdades, nem mesmo aquelas que foram cuidadosamente escritas, nem mesmo aquelas que
foram cuidadosamente preservadas ou sobreviveram por uma simples casualidade.
Com as filosofias originadas na Índia isso não se verifica de modo tão acentuado. É claro
que, no início, durante a convivência e a ainda convergência de diferentes modos de pensar
numa determinada localidade e por um determinado tempo, pululam os mútuos
questionamentos e confrontações. Após isso, não há mais necessidade desse diálogo, de dar
voz ao discurso do oponente, visto que o próprio ato de fazê-lo calar-se já é mostrá-lo através
de outro discurso. Tudo o que não apontamos aparece da mesma forma. Por que então
deliberadamente dizê-lo? Se, mesmo que apontemos para determinado fenômeno este escapa
às dimensões de nosso indicador, se é sempre, ou com uma intenção de hipertrofiá-lo ou
minimizá-lo a menos de uma polegada...
Um dedo Sempre que Mestre Judi era questionado, somente levantava o dedo. Mais tarde um jovem criado passou também a levantar o dedo quando
gente de fora perguntava-lhe o que o mestre ensinava. Quando ouviu sobre isso, Judi decepou com uma faca o dedo do rapaz. O jovem correu gritando de dor, mas Judi chamou-o de volta. Quando ele
se virou, Judi levantou o dedo. Imediatamente, o rapaz atingiu a iluminação. Quando Judi estava para morrer, disse a um grupo, "Eu obtive, de meu
mestre Tianlong, o Zen do Um-Dedo, utilizando-o durante toda a minha vida sem o exaustar." Assim dizendo, faleceu. (In: CLEARY: 2005 Vol. 4, 257)
131
APÊNDICE A
CHANDOGYA UPANISHAD
Capítulo VI 61
1 Havia um Shvetaketu, filho de Aruni. Um dia seu pai lhe disse: 'Shvetaketu, adota a vida
celibatária de um estudante, pois não há, meu filho, ninguém em nossa família que não tenha estudado,
sendo brâmane apenas de nascimento.'
Então ele partiu, com doze anos de idade, para se tornar estudante, e, depois de aprender todos os
Vedas, voltou aos vinte e quatro anos, vaidoso, arrogante e se julgando instruído. Disse-lhe seu pai:
'Shvetaketu, aqui estás, meu filho, arrogante e vaidosamente julgando-te instruído; pediste então
aquele conhecimento através do qual se chega a ouvir o que não se tinha antes ouvido, a pensar o antes
não pensado e a perceber o que não tinha sido percebido antes?'
'Como se dá este conhecimento, senhor?'
'Isto é assim, filho. Através de apenas um pedaço de argila, compreende-se tudo feito de argila – a
transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é argila".
'Isto é assim, filho. Através de apenas um jarro de cobre, compreende-se tudo feito de cobre – a
transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é cobre".
'Isto é assim, filho. Através de apenas uma tesoura de unha, compreende-se tudo feito de ferro – a
transformação é um instrumento verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas essa: "Isto é ferro".
'Isto é, filho, como esse conhecimento se dá'.
'Certamente aqueles ilustres homens não o sabiam, senão, como poderiam tê-lo escondido de mim?
Então, por que não mo ensina o senhor mesmo?'
'Tudo bem, meu filho', ele respondeu.
2 'No princípio, meu filho, este mundo era simplesmente o que é existente – um somente, sem
nenhum outro. Agora, sobre isso, há quem diga: "No princípio este mundo era simplesmente o que não
é existente – um somente, sem nenhum outro. E do não-existente nasceu o existente".
'Entretanto, filho, como isso pode ser possível?' ele continuou. 'Como pode do não-existente nascer
o existente? Ao contrário, filho, no princípio este mundo era simplesmente o que é existente – um
somente, sem nenhum outro.
61 Traduzido a partir da tradução de OLIVELLE (1996) do sânscrito para o inglês.
132
'Então pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu calor. O calor
pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu umidade. Dessa forma,
fazendo calor, um homem certamente transpira; e, assim, é pelo calor que a água é produzida. A água
pensou consigo: "Que eu me torne muitos. Que eu me propague". E emitiu comida. Sempre que chove,
portanto, a comida torna-se abundante; e, assim, é da água que os alimentos são produzidos.
3 'Há, como podes ver, somente três fontes de onde as criaturas se originam: elas nascem de ovos,
de indivíduos vivos, ou de brotos.
'Então, aquela mesma divindade62 [o existente] pensou consigo: "E agora, por que eu não
estabeleço as distinções de nome e de aparência adentrando estas três divindades aqui com este
princípio individual (atman), e torno cada uma delas trivalentes". Então, a divindade estabeleceu as
distinções de nome e aparência adentrando estas três divindades aqui com este princípio individual
(atman), e tornou cada uma delas trivalentes.
'Aprenda comigo, meu filho, como cada uma destas três divindades tornou-se trivalente.'
4 'A aparência vermelha do fogo é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra,
a da comida. Assim, se desfaz do fogo o caráter de fogo – a transformação é um instrumento verbal,
um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências".
'A aparência vermelha do sol é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, a
da comida. Assim se desfaz do sol o caráter de sol – a transformação é apenas um instrumento verbal,
um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências".
'A aparência vermelha da lua é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra, a
da comida. Assim se desfaz da lua o caráter de lua – a transformação é apenas um instrumento verbal,
um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências".
'A aparência vermelha do trovão é, na verdade, a aparência do calor, a branca, a da água, e a negra,
da comida. Assim se desfaz do trovão o caráter de trovão – a transformação é apenas um instrumento
verbal, um nome – enquanto a realidade é apenas, "Isto é as três aparências".
'De fato, isto era o que eles sabiam, aqueles homens extremamente prósperos e imensamente
instruídos de outrora, quando diziam: "Ninguém será capaz de produzir diante nós algo que já não
tivéssemos ouvido, ou pensado, ou compreendido antes"63. Pois obtiveram tal conhecimento destes
três – quando notavam qualquer coisa que fosse avermelhada, sabiam: "Esta é a aparência do calor";
quando notavam qualquer coisa que fosse esbranquiçada, sabiam: "Esta é a aparência da água";
quando notavam qualquer coisa que fosse escura, sabiam: "Esta é a aparência da comida"; quando
62 "O termo devata ( e também deva: lit. "deus"ou "divindade") é usado nesses textos com uma ampla conotação (...). Não raro (...), refere-se às várias funções vitais do corpo. Em outros casos, é usado com referência a realidades cósmicas, como sol, lua, e fogo." (IDEM: Ibdem, 264 – 3.9n) 63 Isto pode indicar aquele processo de empobrecimento cultural encontrado no Kali Yuga, visto que tais homens, de outrora, dominavam o "conhecimento secreto" antes de ele ser sistematizado.
133
notavam qualquer coisa que fosse, de alguma forma, indistinta, sabiam: "Esta é uma combinação
dessas mesmas três divindades".
'Aprenda comigo, meu filho, como, quando adentram um homem, cada uma dessas três divindades
torna-se trivalente.
5 'Quando alguém come comida ela se divide em três partes. A mais densa torna-se fezes, a
intermediária torna-se carne, e a mais sutil torna-se mente. Quando alguém bebe água ela se divide em
três partes. A mais densa torna-se urina, a intermediária torna-se sangue, e a mais sutil torna-se alento.
Quando alguém come calor ele se divide em três partes. A mais densa torna-se ossos, a intermediária
torna-se medula, e a mais sutil torna-se fala. Pois a mente é feita de comida, filho; o alento, de água; e
a fala, de calor'.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
6 'Quando se bate a nata do leite, sua parte mais sutil eleva-se até o topo e se transforma em
manteiga. Do mesmo modo, filho, quando se come comida, sua parte mais sutil eleva-se até o topo
transformando-se em mente; quando se bebe água sua parte mais sutil eleva-se até o topo
transformando-se em alento; quando se come calor sua parte mais sutil eleva-se até o topo
transformando-se em fala.
Pois a mente é feita de comida, filho; o alento, de água; e a fala, de calor'.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
7 'Um homem, meu filho, consiste em dezesseis partes. Não comas por quinze dias, mas bebe água
à vontade. Alento é feito de água; então não será extinto enquanto alguém beber.'
Shvetaketu não comeu por quinze dias. Após o que retornou ao seu pai dizendo: 'O que devo
recitar, senhor?'
'Os versos do Rg, as fórmulas Yajus, e os cantos Saman.'
'Senhor, simplesmente não consigo me lembrar deles', ele respondeu. E o seu pai lhe disse:
'Isto é assim, filho. Como se de uma enorme fogueira que alguém produziu só tivesse restado uma
única brasa do tamanho de um vaga-lume – motivo pelo qual o fogo não queimasse mais daquela
maneira. Da mesma forma, filho, só te restou uma das tuas dezesseis partes; motivo pelo qual não
consegues, no momento, lembrar-te dos Vedas.
'Come, e, então, vem aprender comigo.'
Ele comeu e retornou ao seu pai. Então conseguiu responder a tudo que seu pai perguntou. E o pai
lhe disse:
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'Isto é assim, filho. Como se de uma enorme fogueira que alguém produziu só tivesse restado uma
única brasa do tamanho de um vaga-lume – motivo pelo qual o fogo não queimasse mais daquela
maneira. Da mesma forma, filho, só te restou uma das tuas dezesseis partes, e, quando a cobriste com
comida, ela se incendiou – motivo pelo qual agora consegues lembrar-te dos Vedas, pois a mente é
feita de comida, filho; o alento, de água; e a fala, de calor'.
O que, verdadeiramente, aprendeu com ele.
8 Uddalaka Aruni disse ao seu filho, Shvetaketu: 'Filho, aprende comigo a natureza do sono.
Quando se diz: "O homem está dormindo", meu filho, é quando ele está unido ao existente; dentro de
si mesmo (sva) ele entrou (apita). É por isso que as pessoas dizem, referindo-se a ele: "Ele está
dormindo" (svapiti)64, pois então ele adentrou a si mesmo.
'Isto é assim. Toma [como exemplo] um pássaro amarrado por uma corda. Ele voará em todas as
direções e, quando não conseguir encontrar abrigo em nenhum outro lugar, pousará de volta à mesma
coisa à qual está amarrado. De modo semelhante, filho, a mente voa em todas as direções65 e, quando
não consegue encontrar abrigo em nenhum outro lugar, repousa novamente no alento em si; pois a
mente, meu filho, está atada ao alento.
'Filho, aprende comigo sobre a fome e a sede. Quando se diz: "O homem está com fome", é porque
a água levou embora o que ele comeu. Por isso, assim como alguém é denominado "condutor de
gado", ou "condutor de cavalo", ou "condutor de homens", similarmente denomina-se a água "fome"66
– a "condutora de comida".
'Com relação a isto, filho, deves considerá-lo como um botão de flor que surgiu. Ele não é nada
sem raiz, e o que poderia ser a sua raiz se não, comida? Igualmente, filho, a comida sendo o botão, vê
a água como raiz; a água sendo o botão, vê o calor como raiz; e o calor sendo o botão, vê o existente
64 Sobre passagens como esta, que lembra muito uma escrita heideggeriana, comenta Roebuck em sua introdução: "Uma parte essencial das habilidades argumentativas dos sábios era o jogo de palavras, geralmente na forma de trocadilhos ou etimologias ambíguas." (ROEBUCK: 2003, xxxv) 65 A ideia da mente inquieta, muitas vezes comparada ao macaco (que pula de galho em galho), é constante tanto no Budismo quanto no Taoísmo, que estabelecem como meta principal do discípulo o calmo sentar da mente, mais do que o do corpo. É este princípio que está por trás também deste trecho da Brhadaranyaka Upanishad, de modo espantoso, já se adianta à doutrina mahayana budista: 'Qual destes é o Isto próprio a todas as coisas, Yajñavalkya?' 'É o que se encontra além da fome e da sede, arrependimento e desilusão, velhice e morte. É quando vêm a conhecer isto que os brâmanes abdicam do desejo de filhos, do desejo de riqueza, e do desejo de mundos, e levam uma vida mendicante. O desejo por filhos, no fundo, é o mesmo que o desejo por riqueza, e o desejo por riqueza é o mesmo que o desejo por mundos – todos são simplesmente desejos. Portanto, um brâmane deveria deixar de ser pandit e procurar viver como uma criança. Quando deixa de viver como uma criança ou um pandit, torna-se um sábio. E quando deixa de viver como um sábio ou do modo que vivia antes de se tornar sábio, torna-se um brâmane. E assim permanece, um brâmane, independente de seu modo de vida. Tudo que não seja isto é dor.' Após isto, Kahola Kaushitakeya calou-se. (In: OLIVELLE: 1996, 39-40) 66 Mais um exemplo de jogo de palavras, pois, segundo Olivelle, "aqui as correspondências baseiam-se na palavra "fome" ashana ou ashanaya. As duas sílabas finais, naya, podem ser relacionadas ao verbo nayati ("conduzir" ou "guiar"). Assim, um tocador de gado é um gonaya. Portanto, "fome" pode ser interpretada como "condutora de comida" (asha). Assim, a água é ao mesmo tempo condutora de comida e fome, e o calor é tanto condutor de água e sede. (IDEM: Ibdem, 348 – 8.3n)
135
como a raiz. O existente, meu filho, é a raiz de todas essas criaturas – o existente é o seu abrigo, o
existente é o seu fundamento.
'Quando, além do mais, se diz: "O homem está com sede", é porque o calor levou embora o que ele
bebeu. Por isso, assim como alguém é denominado "condutor de gado", ou "condutor de cavalo", ou
"condutor de homens", similarmente denomina-se o calor "sede" – a "condutora de água".
'Com relação a isto, filho, deves considerá-lo como um botão de flor que surgiu. Ele não é nada
sem raiz, e o que poderia ser a sua raiz se não, água? Igualmente, filho, a água sendo o botão, vê o
calor como raiz; o calor sendo o botão, vê o existente como raiz. O existente, meu filho, é a raiz de
todas essas criaturas – o existente é o seu abrigo, o existente é o seu fundamento.
'Eu acabo de te explicar, filho, como, quando adentram um homem, cada uma dessas três
divindades torna-se trivalente.
'Quando um homem está morrendo, meu filho, sua fala submerge dentro de sua mente; sua mente,
no seu alento; seu alento, no calor; e o calor, na mais alta divindade [o existente].
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.67
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
9 'Agora toma as abelhas, filho. Elas preparam o mel recolhendo néctar de uma variedade de
plantas, reduzindo-o a um todo homogêneo. Nesse estado, o néctar de cada planta diferente não é mais
capaz de diferenciar: "Eu sou o néctar daquela planta", e "Eu sou o néctar desta planta". Exatamente
do mesmo modo, filho, quando todas as criaturas mergulham no existente, não têm tal consciência:
"Estamos mergulhando no existente." Não importa o que sejam neste mundo – um tigre, um leão, um
lobo, um javali, um verme, uma traça, um pernilongo, ou um mosquito – todas mergulham nisto.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
10 'Agora, toma esses rios, filho. Os orientais fluem para o leste e os ocidentais para o oeste. Do
oceano, todos mergulham deveras no oceano; tornam-se apenas oceano. Neste estado não têm tal
consciência: "Eu sou aquele rio". "Eu sou este rio". Exatamente do mesmo modo, filho, quando todas
as criaturas alcançam o existente, não têm tal consciência: "Nós estamos alcançando o existente". Não
67 Olivelle nota: "Agora e finalmente, Uddalaka personaliza seu ensinamento. Shvetaketu deve olhar para si mesmo [como em Heráclito, Fragmento 101: "eu busquei a mim mesmo"] do mesmo modo. (IDEM: Ibdem, 349 – 8.7 – 16.3n)
136
importa o que sejam neste mundo – seja tigre, leão, lobo, javali, minhoca ou mosquito – todos eles
mergulham dentro disto.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
11 'Agora, toma esta enorme árvore aqui, filho. Se alguém a cortasse pela base, sua seiva vital
jorraria. Da mesma forma, se alguém a cortasse ao meio, sua seiva vital jorraria. Da mesma forma, se
alguém a cortasse no topo, sua seiva vital jorraria. Permeada pela essência (atman) vital (jiva), esta
árvore está fincada aqui bebendo água e florescendo sem cessar. Quando, entretanto, a vida (jiva)
abandona um de seus galhos, esse galho apodrece. Quando abandona um segundo galho, ele
igualmente apodrece, e quando abandona um terceiro galho, ele também apodrece.
'Exatamente do mesmo modo,' ele continuou, 'saiba que isto68, é claro, morre quando desprovido de
vida (jiva); mas a vida em si não morre.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
12 'Traz um fruto de uma árvore banyan.'
'Aqui está, senhor.'
'Divide-o'.
'Dividi, senhor'.
'O que vês aí?'
'Estas sementes bem pequenas, senhor.'
'Agora, pega uma delas e a divide.'
'Dividi-a, senhor.'
'O que vês aí?'
'Nada, senhor.'
Então ele lhe disse: 'Isto que é a essência mais sutil, filho, que nem consegues ver – observa como
desta mais sutil essência esta enorme árvore banyan se sustenta.
'Crê em mim, meu filho: 'Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo
inteiro. Isto é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
68 Aqui, notadamente, há um irrecuperável gesto.
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13 'Põe este grão de sal numa tigela de água e volta amanhã.' O filho fez como lhe foi pedido, e o
pai disse a ele: 'O grão de sal que colocaste na água noite passada – traze-o aqui.' Ele procurou, mas
não consegui encontrar, pois se dissolvera completamente.
'Agora, toma um gole por esta ponta,' disse o pai. 'Que gosto tem?'
'Salgado.'
'Toma um gole pelo meio,' disse o pai. – Que gosto tem?'
'Salgado.'
'Toma um gole por aquela ponta,' disse o pai. – Que gosto tem?'
'Salgado.'
'Deita a água fora e retorna mais tarde.' Ele fez conforme pedido e descobriu que o sal sempre
estivera ali. O pai lhe disse: 'Tu, é claro, não o viste, filho; no entanto, ele esteve sempre bem aí.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
14 'Toma, por exemplo, filho, um homem que tivesse sido trazido aqui com os olhos vendados
desde a região de Gandhara e fosse abandonado numa região deserta. Como tivesse sido trazido
vendado e deixado aí vendado, ele erraria em direção ao leste, ou norte, ou sul. Agora, se alguém o
livrasse de sua venda e lhe dissesse, "Siga naquela direção; a região de Gandhara é naquela direção"69,
sendo um homem sábio e instruído, ele iria de vila em vila procurando orientação e, finalmente,
chegaria na região de Gandhara. Exatamente do mesmo modo, nesse mundo, quando um homem tem
um mestre, ele sabe: "Eu me demoro por aqui somente até que seja liberto; então eu chegarei lá!"
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
15 'Toma, por exemplo, filho, um homem gravemente doente. Seus familiares agrupam-se à sua
volta e perguntam: "Você me reconhece?" "Você me reconhece?" Enquanto a sua voz não submergir
na sua mente; sua mente, no seu alento; seu alento, no seu calor; seu calor, na mais alta divindade, ele
os reconhece. Quando, entretanto, sua voz submerge na sua mente; sua mente, no seu alento; seu
alento, no seu calor; seu calor, na mais alta divindade, ele não mais os reconhece.
Isto que é a essência mais sutil – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto é a verdade. Isto
é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
69 Mais uma vez o gesto, que, agora, se possa talvez recuperar pela própria direção de Gandhara, a oeste, a única direção não tomada pelo homem ainda vendado: a correta.
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'Senhor, ensine-me mais.'
'Muito bem, meu filho'.
16 'Toma, por exemplo, filho, um homem algemado trazido aqui por pessoas gritando: "Ele é um
ladrão! Ele praticou um roubo! Aqueçam-lhe um machado!" Se ele for culpado do crime, então se
mune de uma mentira; proferindo uma mentira e se protegendo com a mentira, ele segura o machado e
se queima, após o que é executado. Se, por outro lado, ele é inocente do crime, então se volta para a
verdade; proferindo a verdade e se protegendo com a verdade, segura o machado e não é queimado,
após o que ele é libertado.70
'Isto que nessa ocasião protege-o de se queimar – isto constitui o próprio a este mundo inteiro. Isto
é a verdade. Isto é atman. Isto é como tu és (tat tvam asi), Shvetaketu.
E ele, verdadeiramente, aprendeu-o com ele.
70 Nesta passagem encontra-se algo relacionado diretamente com o Ato de Verdade (ver supra), é um ordalho, uma "prova de fogo", pela qual também teve que passar Sita, esposa de Rama, para provar a integridade de sua honra durante o período em que esteve cativa do rakshasa (espécie de demônio) Ravana, no Sri Lanka. Prática muito comum, pode ser encontrada em fontes cristãs, como o atesta o Romance de Tristão e Isolda, onde esta deve provar que não traiu seu marido, o rei Marc da Cornualha, com o sobrinho deste, Tristão. Entretanto, ao contrário de Sita, ela não era inocente e, por isso, genialmente usou a verdade como um artifício para escapar: disse só ter tido entre as suas pernas dois homens – seu marido, e o leproso que a carregou nas costas na travessia do rio. O leproso era, evidentemente, Tristão disfarçado. E, assim, falando a verdade, ela não se queimou.
139
APÊNDICE B
O SUTRA DO DIAMANTE71
(Vajrachchedika-Prajñaparamita-Sutra)
1 A convocação da assembleia
Assim eu ouvi: Certa vez o Buddha permanecia em Anathapindika próximo a Shravasti com uma
grande companhia de mendicantes (bhikshus), aproximadamente uns 1250.
Certo dia, na hora do desjejum, o Grande Honorável, com seu manto e carregando sua tigela, fez
seu caminho até a cidade de Shravasti para pedir sua comida. No meio da cidade ele pediu de porta em
porta de acordo com a lei. Isto feito, retornou para o seu retiro e tomou sua refeição. Quando terminou,
retirou seu manto e se afastou de sua tigela, lavou seus pés, arrumou seu assento e se sentou.
2 Subhuti faz um pedido
Agora, no meio da assembleia estava o venerável Subhuti. À frente ele se levantou, descobrindo
seu ombro direito, ajoelhou-se sobre seu joelho direito, e, respeitosamente levantando suas mãos com
as palmas unidas, dirigiu-se ao Buddha desta maneira: Ó, Grande Honorável, quão valioso é o cuidado
do Tathagata com todos os bodhisattvas72, protegendo-os e instruindo-os tão bem! Se os bons homens
e as boas mulheres buscam a consumação da incomparável iluminação, de que maneira eles devem
habitar e como eles devem controlar seus pensamentos.
Buddha disse: Muito bem, Subhuti! Assim como diz, ainda maior é o cuidado do Tathagata com
todos os bodhisattvas, protegendo-os e instruindo-os bem. Agora ouça e tome no coração minhas
palavras: Irei declarar de que maneira os bons homens e as boas mulheres buscando a consumação da
incomparável iluminação, devem habitar, e como devem controlar seus pensamentos.
Disse Subhuti: Conte-nos, Honorável. Com alegre ansiedade ansiamos por ouvir.
71 Traduzido a partir da tradução inglesa de A. F. PRICE (PRICE e WONG: 2005) com a providencial colaboração do querido companheiro e colega Diogo dos Santos Silva. 72 Devoto em processo avançado no caminho da iluminação. Sua etimologia, diz Price, é mais comumente ligada aos nomes bodhi (“iluminação”) e sattva (“ser”).
140
3 O verdadeiro ensinamento do Mahayana
Buddha disse: Subhuti, todos os bodhisattvas-mahasattvas devem disciplinar seus pensamentos da
seguinte maneira: toda criatura viva de qualquer espécie, nascida de ovos, de útero ou da água, ou pela
transformação73, com forma ou sem forma, no estado de pensamento ou carente desta necessidade, ou
além de todos estes reinos – todos estes são motivados por mim a alcançar a desapegada liberdade do
Nirvana. Mesmo que um vasto, incontável, incomensurável número de seres tenha sido desta forma
liberto, verdadeiramente nenhum ser foi liberto. Por que isto é assim, Subhuti? Pois nenhum
bodhisattva que é um verdadeiro bodhisattva cultiva a ideia de um ego, uma personalidade, um ser ou
de uma individualidade separada.74
4 Até mesmo as práticas mais beneficentes são relativas
Além disso, Subhuti, na prática da caridade o bodhisattva deve ser desapegado. Isto é dizer, ele
deve praticar a caridade com cuidado às aparências, com cuidado ao som, odor, toque, sabor, ou
qualquer qualidade. Subhuti, assim o bodhisattva deve praticar a caridade sem apegos. Para quê?
Desta maneira seu mérito é incalculável.
Subhuti, o que pensa? Pode você medir todo o espaço que se estende ao oriente?
Não, Honorável, eu não posso.
Então pode você, Subhuti, medir o espaço que se estende ao sul, ao ocidente, ao norte ou a
qualquer outra direção, incluindo as profundidades e o zênite?
Não, Honorável, eu não posso.
Bem, Subhuti, igualmente incalculável é o mérito do bodhisattva que pratica a caridade sem
nenhum apego às aparências. Subhuti, bodhisattvas devem perseverar em apenas uma direção nesta
instrução.
5 Compreendendo o princípio último de realidade
Subhuti, o que pensa? O Tathagata é para ser reconhecido por alguma característica material?
73 Comparar com Chandogya Upanishad, VI.3. 74 Isto é interpretado no Hinduísmo como fruto da Maya ("ilusão", "mágica", "magia", ou seja, as manifestações aparentes do Existente brahman/atman) de Vishnu, através da qual, como de repente (mas não por muito tempo) percebe Yashoda, mãe de Krishna, "surgem ignorantes noções como: 'Eu sou eu; aquele ali é o meu marido; e este é meu filho; eu sou a esposa virtuosa protetora dos bens do senhor de Vraj; e todas as vaqueiras e vaqueiros, assim como o produto do gado, são meus.'" (Krishna: The Beautiful Legend of God)
141
Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser reconhecido por nenhuma característica. Por
quê? Pois o Tathagata disse que as características materiais não são, de fato, características materiais.
Buddha disse: Subhuti, onde quer que haja características materiais há desilusão, pois aquele que
percebe que todas as características são, de fato, não-características, percebe o Tathagata.
6 Rara é a verdadeira fé
Subhuti disse ao Buddha: Grande Honorável, haverá sempre homens que verdadeiramente
acreditarão após ouvirem estes ensinamentos?
Buddha respondeu: Subhuti, não pronuncie tais palavras! Ao final do período dos últimos 500 anos
após a morte do Tathagata, haverá homens que controlarão seu ego, enraizados em méritos, que
ouvirão estes ensinamentos, que serão inspirados pela crença. Mas você deve perceber que estes
homens não fortaleceram suas raízes de mérito sob apenas um buddha, ou dois buddhas, ou três, ou
quatro, ou cinco buddhas, mas sob incontáveis buddhas; e seus méritos são de todos os tipos. Tais
homens, ao ouvirem estes ensinamentos, terão uma imediata ascensão de pura fé, Subhuti; e o
Tathagata os reconhecerá. Sim, eles de coração puro, claramente perceberão isto, e a magnitude de
suas excelências morais. E por quê? Isto é porque tais homens não cairão na ideia do cultivo da
entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Eles, muito menos,
cairão na ideia de cultivar a ideia de as coisas terem qualidades intrínsecas, nem mesmo de as coisas
serem desprovidas de qualidades intrínsecas.
E, por quê? Pois, se tais homens permitirem a suas mentes compreender e se segurar a qualquer
coisa, eles estarão cultivando a ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma
individualidade separada, e se eles perceberem ou se segurarem na noção de coisas como tendo
qualidades intrínsecas eles estariam cultivando a ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um
ser, ou de uma individualidade separada. Desta forma, se eles percebessem ou sustentassem a visão
das coisas como sendo desprovidas de qualidades intrínsecas, estariam cultivando a ideia de uma
entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma individualidade separada. Assim, você não
deveria se prender às coisas como seres providos ou desprovidos de qualidades intrínsecas.
Esta é a razão pela qual o Tathagata sempre pronuncia seu ensinamento: meu ensinamento da boa
lei (dharma) é assemelhado a uma canoa. O ensinamento do Buddha deve ser abandonado; quanto
mais, tanto maior o engano!75
75 Comparar com o trecho do Majjhima-nikaya supracitado.
142
7 Os maiores, perfeitos além do aprendizado, não pronunciem palavras de ensinamento
Subhuti, o que pensa? O Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação? O
Tathagata tem algum ensinamento a ser enunciado?
Subhuti respondeu: Como eu compreendo o significado de Buddha, não há nenhuma formulação de
verdade na consumação da incomparável iluminação. Acrescentando que o Tathagata não tem
nenhuma formulação de ensinamentos a enunciar. Por quê? Pois o Tathagata disse que a verdade não
pode ser contida nem expressa. Ela não é ser nem não ser.
E tanto é assim que este princípio não-formulado é o fundamento dos diferentes sistemas de todos
os sábios.
8 Os frutos da ação meritória
Subhuti, o que pensa? Se alguém preenchesse 3.000 galáxias de mundos com os sete tesouros76 e
distribuísse tudo em dádivas, ele ganharia grande mérito?"
Subhuti disse: Certamente sim, Grande Honorável? E por quê? Pois que os méritos participam do
caráter do não-mérito, o Tathagata caracterizou o mérito como grandioso77.
Então o Buddha disse: Por outro lado, se alguém recebesse e retivesse apenas quatro linhas deste
discurso e o ensinasse e explicasse para os demais, seu mérito seria ainda maior. E por quê? Pois,
Subhuti, deste discurso partem todos os buddhas e a consumação do ensinamento da incomparável
iluminação de todos os buddhas.
Subhuti, o que é chamado “a religião dada por Buddha” não é, de fato, a religião de Buddha.
9 A real designação é indesignada
Subhuti, o que pensa? Um discípulo que entrou para a senda da vida de santidade diz consigo
mesmo: “Eu obtive o fruto do que adentra a senda”?
Subhuti disse: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois a “senda” é meramente um nome. Não há
como adentrar a senda. O discípulo que não presta reverências à forma, ao som, ao odor, ao sabor, ao
toque, ou qualquer outra qualidade é chamado aquele que adentra a senda.
Subhuti, o que pensa? Um adepto que está sujeito a apenas mais um renascimento diz a si mesmo,
“Eu obtive o fruto daquele que renascerá apenas uma vez”? 76 Ouro, prata, cristal, lápis-lazúli, cristal, ágata, pérolas vermelhas e cornalina. 77 Esta e outras passagens semelhantes explicam-se pela noção de que “a verdadeira grandiosidade transcende o âmbito das condições e qualidades. O estudo das relações de proporção não oferece nenhuma pista à essência substancial do fenômeno.”(PIERCE, 159; 41n)
143
Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois “o que renascerá apenas uma vez” é
meramente um nome. Não há nem morte nem o vir a ser em uma existência. O adepto que percebe isto
é chamado “o que renascerá apenas uma vez”.
Subhuti, o que pensa? Um homem venerável que nunca mais renascerá como um mortal diz a si
mesmo “Eu obtive o fruto do que não retorna”?
Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois “o que não retorna” é meramente um nome.
Não há não retorno; daí a designação “o que não retorna”.
Subhuti, o que pensa? Um homem santo (arhat) diz a si mesmo: “Eu obtive a iluminação perfeita”?
Subhuti diz: Não, Grande Honorável. E por quê? Pois não há tal condição chamada “iluminação
perfeita”. Grande Honorável, se um homem santo de iluminação perfeita diz a si mesmo “assim sou
eu” ele necessariamente partilharia da ideia de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de
uma individualidade separada. Grande Venerável, quando o Buddha declara que eu me sobressaio
entre os homens santos na yoga de perfeita quiescência, habitando na reclusão, e livre das paixões, eu
não digo a mim mesmo “eu sou um homem santo de perfeita iluminação, livre das paixões”. Grande
Honorável, se eu disser a mim mesmo “assim sou eu”, você não declararia “Subhuti encontra a
felicidade morando em paz, na reclusão da floresta”. Isto é porque Subhuti mora em nenhum lugar:
assim ele é chamado: “Subhuti, alegre morador na paz, recluso habitante da floresta”.
10 Partida para as terras puras
Buddha disse: Subhuti, o que pensa? No passado remoto quando o Tathagata estava com
Dipamkara Buddha78, ele se elevou de alguma maneira em seu dharma?
Não, Grande Honorável. Quando o Tathagata estava com Dipamkara Buddha, ele não se elevou em
seu dharma.
Subhuti, o que pensa? O bodhisattva parte para alguma terra búdica?
Não, Grande Honorável. E por quê? Pois partir para alguma terra búdica não é um partir; isto é
apenas um nome.
Assim, Subhuti, todos os bodhisattvas, pequenos ou grandes, deveriam desenvolver uma mente
pura e lúcida, não se apegando a sons, sabores, tatos, odores, ou qualquer outra qualidade. O
bodhisattva deve desenvolver uma mente que se desprenda de qualquer coisa; e assim ele deve se
firmar.
Subhuti, isto pode se assemelhar a uma composição física tão grandiosa quanto o poderoso Monte
Sumeru. O que pensa? Poderia tal corpo ser grandioso?
Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável. Isto porque Buddha explicou que nenhum
corpo é chamado um grandioso corpo79.
78 Uma das encarnações anteriores de Buda.
144
11 A superioridade da verdade não formulada
Subhuti, se houvesse tantos Ganges como há grãos de areia no Ganges, os seus grãos de areia
seriam muitos?
Subhuti disse: Sim, realmente, Grande Honorável! Até mesmo os ganges seriam inumeráveis;
quanto maior seria o número de grãos de areia!
Subhuti, eu revelarei uma verdade a você. Se um bom homem ou uma boa mulher preenchesse três
mil galáxias de mundos com os sete tesouros para cada grão de areia de todos estes ganges, e
distribuísse em dons, ele ganharia grande mérito?
Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável!
Então Buddha disse: De qualquer forma, Subhuti, se um bom homem ou uma boa mulher estudasse
este discurso de tal maneira que apenas retivesse quatro linhas, e explicasse aos demais, seu mérito
seria muito maior.
12 Veneração da verdadeira doutrina
Desta maneira, Subhuti, você deve saber que onde quer que este discurso seja recitado, mesmo
apenas quatro linhas, este lugar deverá ser reverenciado por todo o reino dos deuses, homens e
ashuras80, como se este fosse um templo de Buddha. Quanto maior será ainda aquele que é capaz de
receber e reter e assim recitá-lo inteiramente!
Subhuti, você deve saber que este alcança a maior e mais venerável verdade. Onde quer que este
discurso seja encontrado, aí você deverá se comportar como na presença do próprio Buddha e seus
discípulos dignos de honra.
13 Como estes ensinamentos devem ser recebidos e retidos
Neste momento, Subhuti dirigiu-se ao Buddha dizendo: Grande Honorável, por qual nome este
discurso deverá ser conhecido, e como devemos recebê-lo e retê-lo?
Buddha respondeu: Subhuti, este discurso deverá ser conhecido como o Diamante da Perfeição da
Sabedoria Transcendental – assim você o deveria receber e reter. Subhuti, qual é a razão disto? De
acordo com o ensinamento de Buddha, a perfeição da sabedoria transcendental não é tal. “Perfeição da
Sabedoria Transcendentalӎ apenas um nome. Subhuti, o que pensa? Tem o Tathagata um
ensinamento a enunciar?
Subhuti respondeu ao Buddha: Grande Honorável, o Tathagata nada tem a ensinar.
79 Ver nota 71. 80 Demônios gigantescos, são como os titãs, em constante guerra com os deuses.
145
Subhuti, o que pensa? Haveria muitos átomos na composição das três mil galáxias de mundos?
Subhuti disse: Muitos, com certeza, Honorável!
Subhuti, o Tathagata revela que todos estes átomos, não são tais, eles são chamados átomos. O
Tathagata revela que o mundo não é realmente um mundo; ele é chamado mundo.
Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido pelas trinta e duas marcas peculiares
[inerentes ao sábio]?81
Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido pelas trinta e duas marcas de
peculiares. E por quê? Pois o Tathagata explicou que as trinta e duas marcas não são tais, elas são
apenas chamadas trinta e duas marcas.
Subhuti, se por um lado um homem ou uma mulher sacrificasse tantas vidas quanto as areias do
Ganges, e, por outro lado, alguém recebesse e retivesse apenas quatro linhas deste discurso, e
ensinasse e explicasse aos demais, o mérito do último seria muito maior.
14 A paz perfeita está na libertação das distinções das características
Quando escutou este discurso, Subhuti percebeu seu significado e verteu lágrimas, e desta maneira
se dirigiu ao Buddha: Nunca ouvira eu tal exposição desde o tempo em que meu olho de sabedoria
primeiro se abriu. Grande Honorável, esta concepção de realidade fundamental não é, de fato, uma
concepção distintiva; assim diz o Tathagata: “a concepção de realidade fundamental é meramente um
nome”.
Grande Honorável, tendo escutado este discurso, eu o recebo e o retenho com fé e entendimento.
Isto não é difícil para mim; no entanto, em eras futuras, nos derradeiros 500 anos, se houver homens
que ouvirem este discurso e o receberem e o retiverem com fé e entendimento, estes serão seres de
grande compreensão. E por quê? Pois eles serão livres de uma concepção de uma entidade do ego,
livres da concepção de uma personalidade, livres da concepção de um ser, e livres da concepção de
uma identidade. E por quê? Pois a distinção de um ego é errônea. Assim como a distinção de uma
personalidade, de um ser ou de uma identidade é errônea. Consequentemente, todos aqueles que
abandonaram todas as distinções fenomenológicas são buddhas.
Buddha disse a Subhuti: Assim é como diz. Todos aqueles que escutarem este discurso sem alarde,
sem medo e sem receio, que saibam que são seres de grande compreensão. E por quê? Pois, Subhuti, o
Tathagata diz que a primeira perfeição não é, de fato, a primeira perfeição, este é apenas um nome.
Subhuti, o Tathagata diz da mesma maneira que a perfeição da paciência não é a perfeição da
paciência, este é apenas um nome. E por quê? Quando o Raja de Kalinga mutilou meu corpo, eu
81 “As trinta e duas marcas do sábio são pré-budistas em origem, derivadas das escrituras hindus. Os itens na lista dos sinais atribuídos à pessoa de Gautama Buddha são, provavelmente, em parte simbólicos e em parte ideiais estéticos.” (PRICE, 160; 46n.)
146
estava, naquele tempo, livre de uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser,
ou de uma individualidade separada. E por quê? Pois quando meus membros foram cortados pedaço
por pedaço, se estivesse acorrentado às distinções, sentimentos de ódio e raiva surgiriam em mim.
Subhuti, lembro que, há muitas eras, em algum tempo, durante minhas últimas cinco mil vidas
mortais, eu era um asceta (rishi). Desde então eu era livre das distinções de um ego. Por isso os
bodhisattvas devem abandonar todas as distinções fenomenológicas e despertar o pensamento para a
consumação da incomparável iluminação, não permitindo que a mente dependa de noções evocadas
pelo mundo sensível. A mente deve permanecer independente de qualquer pensamento que surja nela.
Se a mente depende de algo, ela não tem a iluminação. Este é o porquê do Buddha ensinar que a mente
de um bodhisattva não deve aceitar as aparências como fundamento para o seu exercício. Subhuti,
como bodhisattvas estão no empenho do bem-estar de todos os seres vivos, eles devem agir desta
forma. Assim como o Tathagata diz que características são não características, assim ele diz que todos
os seres vivos não são, de fato, seres vivos.
Subhuti, o Tathagata é aquele que aponta o que é verdade, o que é fundamental e o que é
derradeiro. Ele não aponta aquilo que é enganador ou aquilo que é monstruoso. Subhuti, a verdade que
o Tathagata alcançou não é real nem irreal.
Subhuti, se um bodhisattva pratica a caridade com a mente atada a noções formais, é como um
homem tateando cegamente na penumbra; mas um bodhisattva que pratica caridade com a mente
desprendida de noções formais é como um homem de olhos abertos à radiante glória da manhã, para
quem todos os objetos estão claramente visíveis.
Subhuti, se houver bons homens e boas mulheres em eras futuras prontos para receber, ler e recitar
este discurso integralmente, o Tathagata claramente os perceberá e reconhecerá através de seu
conhecimento búdico; e cada um deles irá trazer incomensurável e incalculável mérito.
15 O incomparável valor deste ensinamento
Subhuti, se, por um lado, um bom homem ou uma boa mulher realiza pela manhã um número de
atos de caridade e abnegação de igual número aos grãos de areia do Ganges, e realiza o mesmo
número à tarde, e o mesmo número novamente à noite, e continua da mesma maneira por incontáveis
eras, e, se, por um outro lado, alguém escuta este discurso com o coração e sem discórdia, o segundo
destes será muito mais valoroso. Mas quão impossível seria compará-lo com aquele que o escreve, o
recebe, o retém e o explica aos demais.
Subhuti, nós podemos resumir o assunto dizendo que o valor deste discurso não pode ser concebido
nem estimado, nem tampouco qualquer limite imposto a ele. O Tathagata pronunciou estes
ensinamentos para os iniciados no grande caminho. Todo aquele que puder receber e retiver este
ensinamento, estudá-lo, recitá-lo, e divulgá-lo, será claramente reconhecido pelo Tathagata e alcançará
147
uma perfeição de mérito além do cálculo ou da medida. Ou seja, este irá exemplificar a consumação
da incomparável iluminação. E por quê? Pois, Subhuti, todos aqueles que encontram consolação em
doutrinas limitadas envolvendo uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser,
ou de uma individualidade separada são incapazes de aceitar, receber, reter e explicar aos demais este
discurso.
Subhuti, a qualquer lugar em que este discurso for encontrado, todos os reinos de deuses, homens, e
ashuras devem prestar reverência; pois você deve saber que tal lugar é sagrado como um templo e
deverá ser venerado com todos os preceitos cerimoniais e circunambulações, e com ofertas de flores e
incenso.
16 Purgação pela retribuição de pecados passados
Subhuti, se este bom homem ou boa mulher que recebe e retém este discurso é tiranizado, seu
destino é a inevitável retribuição pelos pecados cometidos em suas outras vidas.
Subhuti, eu me recordo do passado remoto antes mesmo de Dipamkara Buddha. Havia oito mil
miríades de milhões de buddhas, e a todos estes realizei oferendas; sim, a todos estes eu servi sem a
menor falta. De qualquer maneira, se alguém for capaz de receber e retiver este ensinamento, estudá-
lo, recitá-lo, e divulgá-lo pelos próximos aeons, este ganhará tal mérito, que o meu, a serviço de todos
estes buddhas, não pode ser reconhecido como uma centésima ou milionésima parte deste –
certamente, nenhuma comparação é possível.
Subhuti, se eu detalhasse o mérito ganho pelos bons homens ou boas mulheres que receberem e
retiverem este ensinamento, estudarem-no, recitarem-no, e divulgarem-no pelos próximos aeons, meus
ouvintes estariam imersos em dúvidas e ficariam desorientados. Você deve saber, Subhuti, que o
sentido deste discurso está além da concepção; assim como os frutos de seus méritos estão além da
concepção.
17 Ninguém alcança a sabedoria transcendental
Neste momento, Subhuti voltou-se ao Buddha, dizendo: Grande Honorável, se um bom homem ou
uma boa mulher procurar a consumação da incomparável iluminação, por que critério eles devem
habitar e como eles devem controlar seus pensamentos?
Buddha respondeu a Subhuti: Bons homens ou boas mulheres que buscam a consumação da
incomparável iluminação devem criar esta resoluta atitude mental: “devo me liberar de todos os seres
vivos; mesmo assim, quando tudo está liberto, nada está liberto”. E por quê? Pois um bodhisattva que
cultiva uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma
148
individualidade separada, não será, consequentemente, um bodhisattva, Subhuti. Isto se deve ao fato
de não existir nenhum caminho que leve à consumação da incomparável iluminação.
Subhuti, o que pensa? Quando o Tathagata estava com Dipamkara Buddha, havia algum caminho
que levasse à consumação da incomparável iluminação?
Não, Grande Honorável, como eu compreendo os ensinamentos de Buddha, não há nenhum
caminho pelo qual o Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação.
Buddha disse: Está certo, Subhuti. Não há nenhum caminho pelo qual o Tathagata alcançou a
consumação da incomparável iluminação. Subhuti, se houvesse tal caminho, Dipamkara Buddha não
haveria predito a mim: “nas eras futuras você virá a ser um buddha chamado Shakyamuni”; no
entanto, Dipamkara Buddha fez esta predição pois não há nenhum caminho que leva à consumação da
incomparável iluminação. A razão aqui é que o Tathagata é o sentido englobando todos os caminhos;
na possibilidade de alguém dizer que o Tathagata alcançou a consumação da incomparável
iluminação, eu direi a verdade, Subhuti, que não há caminho pelo qual o Buddha a tenha alcançado.
Subhuti, a base pela qual Tathagata alcançou a consumação da incomparável iluminação está
totalmente além; ela não é real nem irreal. Por isso eu digo, todo o reino das formulações não é tal,
este é apenas chamado “reino das formulações”.
Então Subhuti disse: O Grande Honorável declarou que tal não é um magnífico corpo; “magnífico
corpo” é apenas o nome dado a isto.
Subhuti, o mesmo é o que concerne aos bodhisattvas, se um bodhisattva anuncia: “eu liberarei
todas as criaturas viventes” este não é chamado um bodhisattva. E por quê? Pois, Subhuti, o Buddha
ensina que todas as coisas são desprovidas de um ego, desprovidas de uma personalidade, desprovidas
de uma entidade, e desprovidas de uma individualidade. Subhuti, se um bodhisattva anuncia: 'eu
partirei paras as majestosas terras búdicas', este não é chamado um bodhisattva, pois o Tathagata
declarou que partir para as majestosas terras búdicas não é tal, pois partir para as majestosas terras
búdicas é apenas um nome.
Subhuti, bodhisattvas que são totalmente desprovidos de qualquer concepção de um ego distinto
são realmente chamados bodhisattvas.
18 Todas as modalidades mentais são apenas uma mente
Subhuti, o que pensa? O Tathagata possui o olho humano?
Sim, Honorável, ele possui.
Bem, você acha que o Tathagata possui o olho divino?
Sim, Honorável, ele possui.
Bem, você acha que o Tathagata possui o olho gnóstico?
Sim, Honorável, ele possui.
149
Bem, você acha que o Tathagata possui o olho da verdade transcendental?
Sim, Honorável, ele possui.
Bem, você acha que o Tathagata possui o olho búdico da onisciência?
Sim, Honorável, ele possui.
Subhuti, o que pensa? Sobre os grãos de areia do Ganges, o Buddha lecionou sobre eles?
Sim, Honorável, o Tathagata lecionou sobre esses grãos.
Bem, Subhuti, se houvesse tantos rios ganges como grãos de areia do Ganges e houvesse uma terra
búdica para cada grão de areia em todos esses rios ganges, muitas seriam estas terras búdicas?
Sim, realmente, Grande Honorável!
Então o Buddha disse: Subhuti, tal seja o número de seres que habitem nestas terras búdicas, apesar
de eles possuírem diversos modos mentais, o Tathagata compreende todos. E por quê? Pois o
Tathagata ensina que todas estas não são mentes, elas são apenas chamadas mentes. Subhuti, é
impossível reter a mente passada, impossível reter a mente presente, e impossível tatear a mente
futura.
19 Realidade absoluta é a única fundamentação
Subhuti, o que pensa? Se alguém preenchesse as três mil galáxias de mundos com os sete tesouros
e os distribuísse em esmolas, ele ganharia grande mérito?
Sim, realmente, ele ganharia grande mérito!
Subhuti, se tal mérito fosse real, o Tathagata não o declararia como grande, pois é sem
fundamentação a declaração caracterizada pelo Tathagata como “grande”.
20 A não realidade das distinções fenomenológicas
Subhuti, o que pensa? O Buddha pode ser percebido pelo seu corpo perfeitamente formado?
Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido pelo seu corpo perfeitamente
formado, porque o Tathagata ensina que um corpo perfeitamente formado não é tal, ele é apenas
chamado um “corpo perfeitamente formado”.
Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido por qualquer característica fenomenológica?
Não, Grande Honorável, o Tathagata não pode ser percebido por qualquer característica
fenomenológica, porque o Tathagata ensina que as características fenomenológicas não são tais, elas
são apenas chamadas características fenomenológicas.
150
21 Palavras não podem expressar verdade; o que expressam não é verdade
Subhuti, não diga que o Tathagata concebe a ideia: “Eu devo pronunciar um ensinamento”. Pois
qualquer um que diga que o Tathagata pronuncia um ensinamento, difama o Buddha e é incapaz de
explicar o que ensino. Para qualquer sistema de declaração de verdades, a verdade é indeclarável;
então “a enunciação da verdade” é apenas o nome dado a isto.
Assim, Subhuti disse estas palavras ao Buddha: Grande Honorável, nas eras futuras haverá homens
que escutarão a declaração destes ensinamentos e serão inspirados por ela?
E o Buddha respondeu: Subhuti, estes aos quais se refere não são nem seres viventes nem seres
não-viventes. E por quê? Pois, Subhuti, estes seres viventes não são tais, eles são apenas chamados por
este nome.
22 Não é possível dizer que qualquer coisa é alcançável
Então Subhuti perguntou ao Buddha: Grande Honorável, na consumação da incomparável
iluminação o Buddha não realizou qualquer tipo de aquisição?
Buddha respondeu: Subhuti, através da consumação da incomparável iluminação eu não adquiri
nem a última das coisas; por isso isto é assim chamado “consumação da incomparável iluminação”.
23 A prática dos bons trabalhos purifica a mente
Além disso, Subhuti, Isto é em tudo, sem diferenciação ou grau, por isso é chamada consumação
da incomparável iluminação”. É imediatamente alcançada pela liberação de um ego distintivo e pelo
cultivo de toda forma de compaixão.
Subhuti, apesar de dizermos “compaixão”, o Tathagata diz que não há compaixão, isto é apenas um
nome.
24 O incomparável mérito deste ensinamento
Subhuti, se alguém se desfizesse em dádivas de esmolas de uma quantidade de tesouros na mesma
proporção de Monte Sumerus existentes em três mil galáxias de mundos, e se houvesse um outro que
selecionasse apenas quatro linhas deste discurso sobre a perfeição da verdade transcendental,
recebendo-as e guardando-as, e claramente expondo-as aos demais, o mérito do segundo seria muito
maior.
151
25 A ilusão do ego
Subhuti, o que pensa? Não permita que alguém diga que o Tathagata cultiva a ideia “eu devo
libertar todos os seres viventes”. Não permita tais pensamentos, Subhuti. E por quê? Pois não há
nenhum ser vivente a ser libertado pelo Tathagata. Se houvesse ser vivente a ser libertado pelo
Tathagata, ele compactuaria com a concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou
uma individualidade separada. Subhuti, apesar de o homem comum aceitar o eu como real, o
Tathagata declara que o eu não é diferente do não-eu. Subhuti, aqueles a quem o Tathagata se refere
como “homem comum” não são homens comuns; isto é apenas um nome.
26 O corpo da verdade não possui marcas
Subhuti, o que pensa? Pode o Tathagata ser percebido pelas suas trinta e duas marcas?"
Subhuti respondeu: Sim, realmente pode o Tathagata ser percebido desta forma.
Então o Buddha disse: Subhuti, se o Tathagata pudesse ser percebido por estas trinta e duas marcas,
qualquer grande monarca seria o mesmo que o Tathagata.
Subhuti então disse ao Buddha: Grande Honorável, como eu compreendo o sentido das palavras de
Buddha, o Tathagata não pode ser percebido pelas suas trinta e duas marcas.
Assim o Grande Honorável pronunciou estes versos:
Aquele que me vê pela forma
Aquele que me ouve pelo som,
Pervertidos são seus passos no caminho;
Pois não pode perceber o Tathagata.
27 É errôneo afirmar que todas as coisas extinguem-se
Subhuti, você não deve cultivar a ideia de que o Tathagata alcançou a consumação da incomparável
iluminação através de sua forma perfeita. Subhuti, se você cultivar a ideia de que qualquer um que
declare que todos os meios para a consumação da incomparável iluminação se finalizaram e se
extinguiram, não se prenda a estes pensamentos. E por quê? Pois o homem no despertar da
consumação da incomparável iluminação não afirma, concernente a qualquer fórmula, que ela
finalmente se extinguiu.
152
28 Apego às recompensas do mérito
Subhuti, se um bodhisattva fizer uso da caridade com uma quantidade dos tesouros suficiente para
encher tantos mundos quanto grãos de areia do Ganges, e outro, percebendo que tudo é desprovido de
um ego, ativer-se à perfeição através da paciência perseverante, o mérito do segundo em muito
ultrapassa o do primeiro. A que isto se deve, Subhuti? Pois todos os bodhisattvas são insensíveis às
recompensas do mérito.
Então Subhuti disse ao Buddha: O que é este discurso, Grande Honorável, que os bodhisattvas são
insensíveis às recompensas do mérito?
Subhuti, os bodhisattvas que alçam méritos não podem se agrilhoar aos desejos de recompensas.
Isto é dizer que as recompensas do mérito nunca são recebidas.
29 A perfeita tranquilidade
Subhuti, se alguém disser que o Tathagata vem ou vai, se senta ou se reclina, ele falha em
compreender meus ensinamentos. Por quê? Pois o Tathagata mão possui de onde nem para onde, por
isso ele é chamado Tathagata.
30 O princípio integral
Subhuti, se um bom homem ou uma boa mulher reduzisse uma infinidade de galáxias dos mundos
ao pó, as partículas resultantes seriam muitas?
Subhuti respondeu: Sim, realmente, Grande Honorável! E por quê? Pois se realmente existissem
partículas, o Buddha não haveria se referido a elas como partículas. O Buddha teria dito que não
existem “partículas”, isto é apenas um nome. Da mesma forma, quando o Tathagata fala em “galáxias
dos mundos” tal não existe, pois se a realidade pudesse ser predicada como um mundo, este seria um
cosmo autoexistente, e o Tathagata ensina que tal não existe. “Cosmo” é meramente uma figura de
discurso.
Subhuti, palavras não podem explicar a natureza do cosmo. Apenas pessoas atraídas pelos méritos
fazem uso deste método arbitrário.
153
31 A verdade convencional deve ser extirpada
Subhuti, se alguém disser que o Buddha declara qualquer concepção de uma entidade do ego, você
considera que ele compreendeu de alguma forma meu ensinamento?
Não, Grande Honorável, este não compreendeu nenhum som do ensinamento de Buddha, pois o
Tathagata diz que uma concepção de uma entidade do ego, uma personalidade, um ser, ou de uma
individualidade separada, é um erro – estes termos são apenas figuras de discurso.
Subhuti, aqueles que aspiram à consumação da incomparável iluminação devem reconhecer e
compreender todas as variedades de coisas e extirpar a concepção de aspectos. Subhuti, no que se
refere aos aspectos, o Tathagata diz que estes não existem. Eles são apenas chamados “aspectos”.
32 A desilusão das aparências
Subhuti, se alguém preenchesse os mundos com os sete tesouros e os distribuísse em dádivas de
esmola, e se um bom homem ou uma boa mulher despertasse o pensamento para a iluminação e
retivesse apenas quatro linhas deste discurso, recitando, usando, recebendo, retendo e espalhando e
explicando para o benefício dos demais, isto seria muito mais meritório. Agora, de que maneira ele
poderá explicar aos demais? Pelo desprendimento às aparências – habitando na absoluta realidade.
Assim eu lhe digo:
Assim você deve pensar deste mundo fugaz:
Uma estrela no alvorecer, uma bolha na correnteza;
Um lampejo de um raio na nuvem de verão,
Uma lâmpada vacilante, um vulto, e um sonho.
Quando o Buddha encerrou seu discurso o venerável Subhuti, juntamente com os bhikshus e
bhikshunis, e todo o reino de deuses, homens, e ashuras, encheram-se de regozijo com estes
ensinamentos, e, tomando-o sinceramente, eles partiram em seus caminhos.
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