design e sociedade, algumas considerações

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João de Souza Leite | TEXTOS ESCOLHIDOS, 2013 2012 Artigo apresentado no congresso de Pesquisa e Desenvolvimento em Design – P&D Design 2012, realizado em outubro de 2012 na cidade de São Luís, Maranhão. Ainda que reconheça uma talvez impropriedade teórica, por utilizar um pensador social do século 17 para refletir sobre atitudes adotadas pelo design alemão no século 20, acredito que essa utilização possa ser apreciada em seu sentido metafórico, procedimento comum às ciências sociais. Por tratar aqui dos significados de certos procedimentos da vida em sociedade, alguns conceitos podem permanecer válidos, desde que sua fundamentação ultrapasse as circunstâncias específicas de seu tempo de origem. Acho que isto acontece aqui. Referência Souza Leite, João de. “Design e sociedade: algumas considerações”. In Anais do P&D Design 2012. São Luís: 2012.

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João de Souza Leite | TEXTOS ESCOLHIDOS, 2013

2012 Artigo apresentado no congresso de Pesquisa e Desenvolvimento em Design – P&D Design 2012, realizado em outubro de 2012 na cidade de São Luís, Maranhão. Ainda que reconheça uma talvez impropriedade teórica, por utilizar um pensador social do século 17 para refletir sobre atitudes adotadas pelo design alemão no século 20, acredito que essa utilização possa ser apreciada em seu sentido metafórico, procedimento comum às ciências sociais. Por tratar aqui dos significados de certos procedimentos da vida em sociedade, alguns conceitos podem permanecer válidos, desde que sua fundamentação ultrapasse as circunstâncias específicas de seu tempo de origem. Acho que isto acontece aqui. Referência Souza Leite, João de. “Design e sociedade: algumas considerações”. In Anais do P&D Design 2012. São Luís: 2012.

Design e Sociedade, algumas considerações

Some notes on design and society Souza Leite, João de. Dr.Sc. ESDI/Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Resumo No campo específico da construção das coisas materiais e concretas, conceitos de design sempre existem em relação à sua procedência de formulação. Assim se deu com o design suí-ço-alemão dos anos 1950, com o design inglês e americano, com o design dos países nórdicos europeus, entre outros modelos. Essa diversidade de origem permite investigação complexa, vinculada às posições e às relações que o homem estabelece ao viver em sociedade. Aqui, um instrumental teórico próprio à interpretação da vida social é relacionado a usuais concepções de design, com o sentido de esclarecer como certas atitudes em design vieram a se originar. Palavras Chave: Design; Teoria; Conceitos Abstract In the specific field of the construction of material and concrete things, design concepts always exist in relation to its formulation origin. That is the way it happened with Swiss-German design, with English and American design, with Nordic European countries design, among other models. This origin diversity allows a complex investigation, linked to the posi-tions and relations that man establishes while living in society. Here, a theoretical interpre-tation of social life is related to usual concepts of design, in order to clarify how certain atti-tudes in design came to originate. Keywords: Design; Theory; Concepts

10º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, São Luís (MA).

O ato de conceber artefatos, o ato intencional de ordenar atividades de modo a conduzir à feitura artesanal ou industrial seja de um objeto ou seja de um abrigo para moradia, essas ações encontram seu denominador comum no ato de projetar, qualidade intrínseca ao design. Por consistir em ação movida em direção a algo a ter existência em um tempo futuro, portanto ação intencional, projetar revela um conceito que não se limita a um determinado território de ação e que tende a um certo grau de abstração devido a essa imprecisão de objeto.

Naturalmente devemos conceber a noção de projeto sob várias formas e modelos, de acordo com o objeto específico da sua ação. Assim, tanto existem características de projeto próprias às engenharias como existem características de projeto próprias às intervenções cirúrgicas, somente para exemplificar campos muito distantes entre si que exigem esse tipo de atitude, e por aí adiante.

Mas no campo específico dos objetos, ou seja, das construções materiais e concretas, a noção de projeto existe também quanto ao procedimento e metodologia adotados e à sua procedência de formulação: o design suíço-alemão do pós-guerra, dos anos 1950, relacionado ao design alemão desenvolvido na Bauhaus e sistematizado na cidade de Ulm, em sua Hoch-schule für Gestaltung (Escola Superior da Forma); o design inglês, originado nas questões impostas pelo advento das então novas tecnologias e da nova organização do trabalho e da produção durante a revolução industrial do século 18; ainda o design americano, em parte derivado do inglês, comprometido com a ampliação da escala da produção e do consumo, de olho no consumidor, com o inequívoco compromisso com o lucro; o design dos países nór-dicos, da Escandinávia, fruto do cruzamento de ofícios artesanais e produção em escalas mais contidas; ou o design italiano, também originado no âmbito dos ofícios ali mais praticados, entre outros tantos modelos.

Esse quadro nos permite uma investigação razoavelmente complexa, intimamente vinculada às posições e às relações que o homem estabelece ao viver em sociedade. Esta, por-tanto, por mais heterodoxa que seja, é também uma tentativa de relacionar um instrumental teórico próprio à interpretação da vida social e política às usuais concepções do design.

Neste trabalho estão reunidas algumas observações iniciais, fruto de uma abordagem em curso que carece de maior investigação, mas que no entanto não pretendem, em momento algum, a explicação absoluta dos fenômenos tratados.

O pensamento político, a investigação social e o reconhecimento da existência de qua-dros totêmicos, ou seja, de sistemas de simbolização e representação em culturas diferentes, há muito tempo são conclamados como possibilidades de entendimento das ações de design. À medida que pode-se identificar no design modernista, internacionalista por princípio, a configuração de uma política comprometida com a ideia de mudança social associada às ideias de progresso e de modernização, em via inversa, a identificação dos sistemas de poder e de condução da vida humana na sociedade implicam no reconhecimento de determinadas relações que se estabelecem entre os diferentes níveis de controle e normatização do projeto e da realização material da vida social.

Embora distantes do cenário dos acontecimentos, seja no tempo, seja no espaço, alguns textos clássicos das ciências sociais serão portadores de algumas ideias aqui articuladas. No caso, Hobbes, Locke, Hume e Adam Smith1, que serão citados e incorporados ao texto por vezes em uma dimensão metafórica. A utilização desses autores, sobretudo o primeiro, pode soar estranha por ser aposta sobre contexto muito diverso do seu enunciado. No entanto, artífices que são do pensamento político ocidental, suas formulações organizam linhas genealógicas fundamentais ao entendimento das relações aqui propostas.

Por esta razão, cabe a advertência: essas considerações não são mero exercício inte-lectual, pensamento estéril. São instrumentos possíveis para a análise de questões que afetam

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a condução tanto da prática profissional entre nós, como da educação e do cultivo de certas atitudes no campo do design.

Diferentes matrizes do design Embora o termo seja mais constantemente associado ao modernismo de origem germânica em função da Bauhaus, a conceituação de design não tem ali a sua única procedência. Sua ori-gem, enquanto campo de saber, ou seja, do conhecimento projetivo ensaiado em toda inter-secção entre fazer e resultado, sua história se confunde com a história das civilizações. En-quanto campo profissional dotado com distinção própria, se encontra nos primeiros momentos da industrialização inglêsa, quando passou a existir uma defasagem temporal entre projeto e produção. Naquela ocasião, pela primeira vez, fez-se necessário desenvolver o processo de ideação de um objeto – detalhá-lo, dispor as informações sobre materiais e processos, de certo modo a organizar a maneira de vir a produzí-lo – separadamente da sua feitura. É com essa dimensão conceitual, de projeto desassociado da execução, passível de uma ampla aplicação ao cenário do cotidiano urbano, que passamos a investigar a sua genealogia.

Este artigo, por integrar uma série – sobre o design modernista alemão, sobre o design inglês, e por fim sobre o design americano – pretende se fixar no primeiro tópico.

O design alemão sob a ótica de Hobbes A convocação de artistas, artesãos e arquitetos, formulada por Gropius em 1919 no intenso e provocativo manifesto de fundação da Bauhaus, para atuarem em conjunto na construção de uma nova sociedade é a síntese mais evidente dos anseios de mudança social que percorreram os corredores da fria arquitetura da escola então sediada em Weimar, palco de intensas contradições e paradoxos.2

Aquilo que se produziu no discurso do seu primeiro momento cedeu lugar a um voca-bulário formal, desprezando outras possibilidades de linguagem e tendendo à exacerbação de uma não-forma, pelo uso restrito de elementos geométricos mínimos articulados entre si com uma precisão elaborada em um lugar fora do lugar – do mesmo modo como Mumford critica Platão (Mumford 1998: 197) – em um tempo fora do tempo cronológico. Na verdade, estabe-leceu-se um compromisso maior com a forma ideal do que com a forma possível condicio-nada pelas circunstâncias reais da operação de projeto.

Esta equação veio a se repetir no modelo que ganhou verdadeiramente o alcance internacional, modelo este elaborado na Hochschule für Gestaltung na pequena cidade de Ulm, a partir de 1953.3 Mas o fato que nos interessa aqui é o traçado lógico, sobretudo asser-tivo, por atribuir aos projetistas poderes de enunciação acima de qualquer circunstância a partir de uma racionalidade que se pretendia absoluta, definido pela filosofia professada pelo modelo de Ulm.

Em sua proposição ideal, design consistia em uma prática de projeto pautada por uma avaliação racionalizada em todas as suas etapas, sendo ressaltados os fatores da produção, da função, da exequibilidade, da economia. Entretanto, em processo assemelhado ao ocorrido com a Bauhaus, mesmo sabendo incorrer aqui em uma perspectiva reducionista, é possível afirmar que sua maior caracterização se deu por suas opções formais, que se sobrepuseram a qualquer processo de análise das situações em foco, que considerasse as circunstâncias dos indivíduos a serem atendidos por suas ações.4 Desse modo, uma espécie de decálogo norma-tizador foi estabelecido com o auxílio das escolas suíças derivadas em parte da escola de Ulm, consolidando o padrão reconhecido mundialmente como o design moderno.5

Este design, por algum tempo a mais forte linhagem originada na Europa continental, na verdade se desenvolveu à parte de qualquer entendimento sobre a diversidade dos indivíduos que compunham a sociedade. Desenvolvendo uma espécie de ojeriza pelos padrões

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de gosto instituídos socialmente, os designers modernistas se atribuíram um papel localizado em um lugar diferenciado, auto-outorgado, no tecido social. Isso se torna muito claro pelo comportamento adotado na escola sediada em Ulm, onde existiu uma forte tendência monás-tica, fato reconhecido por muitos dos autores que se debruçaram sobre aquela experiência.4

Independentemente de algumas formulações extremamente interessantes – sobretudo a formulação de uma ciência do design, que hoje cede lugar a um a filosofia do design – sobretudo por expressarem um elevado grau de contradição entre ideia e prática, enunciadas por alguns de seus professores, a condução das soluções formais tendia sempre ao atendimen-to e cumprimento das regras absolutamente geometrizadas de uma linguagem formal que se pretendia pura, acima dos eventos corriqueiros, afastada da efemeridade da vida cotidiana, estabelecendo-se no plano do absoluto, perene, livre dos naturais constrangimentos da vida terrena.

Assim, aqueles designers elevavam-se à categoria de uma espécie de semi-deuses, mitos prepotentes, lançando um olhar desdenhoso sobre a prática social. Detentores da chave de uma estética deificada, o que nos resta pensar, e admitir um tanto pesarosamente, é que o sentimento ali alimentado era um sentimento permeado por uma profunda desconfiança em relação a seus pares concitadinos. Paradoxal sim, por ter se originado de uma iniciativa que tinha por base a educação para a vida democrática.

O padrão do design suíço-alemão, ao desejar criar no terreno do absoluto, almeja o mesmo estatuto da criação divina relatada por Platão em seu Timeu:

“O trabalho do Criador, quando êle observa o imutável e concebe a forma e a natureza do seu trabalho a partir de um padrão imutável, será necessariamente perfeito e correto; mas ao se utilizar de um padrão criado, não será nem correto nem perfeito”.

Esta, uma resposta de Timeu a seu próprio questionamento a respeito da natureza das coisas, “O que é aquilo que sempre existe e não se transforma; e o que é aquilo que sempre se transforma e nunca existe [é]?” Pela seguinte resposta, a beleza é associada à razão, desauto-rizando as paixões e os sentidos:

“O que é apreendido pela inteligência e razão está sempre no mesmo estado; mas aquilo que é concebido pela opinião com o auxílio dos sentidos (sensação) e sem razão, está sempre em processo de transformação e morte e nunca realmente será.”

Desse modo, os modernistas alemães desejavam transformar seus indivíduos designers em portadores da voz divina, diretos (e diletos) representantes da divindade máxima, atribuí-dos por ela da incumbência de transformar o mundo segundo um padrão destituído da marca das paixões humanas. Nessa medida é que se torna possível estabelecer uma associação, natu-ralmente em uma imagem metafórica, com a ideia de um poder estatal investido em um único indivíduo, instituído por Deus, à cuja ordem a sociedade simultaneamente respeita, venera e teme pelo reconhecimento de sua própria incapacidade de gerir os conflitos da convivência e que, portanto, se submete ao conjunto de regras acordadas. Foi assim que Thomas Hobbes concebeu sua noção de poder absoluto no século 17, desvendando e reforçando simul-taneamente o absolutismo como modo único viável a superar o estado de beligerância que se estabelece naturalmente, a seu ver, entre os homens.

Em última análise, é possível afirmar uma equação simples: os designers modernistas, sobretudo agrupados ou formados nas instituições citadas, propunham um discurso radicalmente diferenciado do restante da sociedade. Cabe afirmar, entretanto, que esta carac-terística não resulta exclusivamente dessa raiz. Existem raízes comuns de pensamento autocrático entre design, arquitetura, e urbanismo, inclusive. Essa característica veio a se manter hegemônica até fins de 1960. E é aquela que serviu de referência para os primeiros anos de implantação formal do design no Brasil.

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Se me é franqueado o direito de estabelecer transversalidades entre assuntos tão diversos como teoria política e design, é possível indicar alguma relação entre o estabeleci-mento de um código formal tão rígido por parte da Bauhaus e de sua dileta filha, a HfG de Ulm, e a ideia síntese proclamada por Hobbes, a saber – na ausência de denominador comum, razoavelmente genérico e apaziguador sobre as naturezas expressivas de cada indivíduo, há que se impor uma regra absoluta como modo de aplacar os ânimos e controlar as expressões apaixonadas dos indivíduos que só enxergam a si e a seu desejo intrínseco por conforto e segurança. Seria possível de fato relacionar essa origem racional, arbitrária, àquela raiz do design?

Prosseguindo nessa hipótese: em Hobbes, o homem é compreendido como um ser em total e intensa fragilidade diante do outro, frente ao qual a força surge como o único recurso de que poderá se fazer valer em defesa de seus próprios interesses. Nesses interesses entenda-se o seu anseio por conforto, o resguardo do seu patrimônio e a garantia do seu trabalho pela sobrevivência. O ser humano é, para Hobbes, antes de tudo um egoísta, cujo relacionamento com outros homens em sociedade somente se torna possível sob um padrão ordenador estabe-lecido arbitrariamente. A instituição desse padrão se dá através de uma exacerbada inten-sificação do uso da razão no campo do convívio humano. Para que tal possa ocorrer, a razão se estabelece como entidade abstrata, elaborada fora das circunstâncias, por isso mesmo em um tempo que pretende se fazer referencial para todos.

Portanto, para Hobbes, o homem se encontra em constante litígio com seus pares, sendo daí necessária uma regra superior, acordada entre certos membros da comunidade para que venha a condicionar a obediência. Esta é a sua leitura da evolução da humanidade e dos poderes políticos. E não se adapta diretamente ao espaço e ao tempo a que nos referimos aqui. Há que se fazer ajustes nessa análise. Nem o homem nem a sociedade são mais aqueles a que se referia Hobbes. No momento histórico a que nos referimos, o período entre as duas guerras mundiais e o imediato pós-guerra, já haviam ocorrido a revolução burguesa e liberal, a revo-lução industrial e os meios de comunicação haviam se multiplicado gerando novas possibi-lidades de intervenção sobre a realidade social. Ainda não se tratava de uma sociedade de massas, mas sem dúvida de uma sociedade afeita à farta circulação de informações e comu-nicações por diferentes meios. Daí a repercussão e propagação das normas modernistas atra-vés de duas comunidades, uma integrando a outra: a comunidade dos designers (compreen-didos aqui outros projetadores do habitat humano, como arquitetos e engenheiros) e a socie-dade em si.

Ainda assim, se imaginamos a cidade como a extensão das necessidades básicas de conforto e de pertencimento dos seus moradores, podemos relacionar sua concepção e seu desenvolvimento às ideias descritas no trecho seguinte:

“… tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes é oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo da morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.” (Hobbes 1999:109)

Me parece ser este um quadro semelhante àquele pretendido a ser enfrentado tanto pelos integrantes da Bauhaus, em seu primeiro momento em Weimar e Dessau, como pela

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comunidade de Ulm. Os designers, apartados do todo da sociedade, conhecedores e manipu-ladores de uma ordem física e estética capaz de dirimir todas as questões de conflito na cidade, não aceitando serem simplesmente os portadores de uma abordagem estilística mas sim da linguagem do absoluto e do que é perene no tempo, desenvolveriam um olhar à sociedade curiosamente assemelhado ao descrito por Hobbes.

Esse estabelecimento de paralelos se dá sobretudo com a segunda experiência, a de Ulm, e a necessidade de apaziguar a possibilidade de emergência dos traços individualizados de cada habitante da cidade.

Obviamente se faz necessário desenvolver e resgatar estudos sobre a natureza do gosto, da psicologização da percepção das formas, da experiência de significação segundo as práticas culturais, e ainda outros, para buscar um entendimento mais ampliado sobre esses curiosos processos de identificação. Mas foi justamente na mão inversa de questões que se colocam como próprias da natureza social, tratadas pelas disciplinas humanas como possibilidades de individuação no coletivo, que se armaram os discursos homogeneizantes do design modernista.

Retornando mais uma vez ao paralelo com Hobbes, nele, o que mais implicava rompimento com a situação anteriormente existente – de constante litígio entre indivíduos – era o fato de se atribuir a uma instância não mais divina mas a uma instância delegada por meio de acordo mútuo entre os membros da comunidade – o poder absoluto – a função de legislar, de dirimir questões, de regular a vida, o espaço da vida, assim, a cidade.

É do mesmo modo que no design modernista suíço-alemão a escolha de uma espécie de decálogo de normas supostamente patrocinadoras de um bem-estar comum procede de um acordo mútuo entre os participantes da Hochschule für Gestaltung.

Este é, em última análise, o tópico central de que trata essa reflexão. Liberdade indivi-dual, equidade entre seres de uma mesma coletividade, graus de empatia, simpatia e gosto que constituem a expressão material de uma sociedade, é isto o que se deve discutir. As dimensões política e econômica se fundem à concepção antropológica de cultura elaborada no início do século 20 com o sentido de traçar uma perspectiva de entendimento do sistema de forças que atuam sobre a cidade, permitindo uma avaliação, digamos, mais democratizada de seus espaços e dos artefatos de uso individual e coletivo.

Assim, construir paralelos entre uma cultura primitiva, com outro nível de complexidade, coesa em sua experiência comunal, e uma sociedade complexa, que admite culturas interagentes em uma cultura maior, pode constituir um referencial no mínimo interessante ao entendimento desses fenômenos.

A natureza do projeto político O projeto político – porque havia, assim como há, um projeto político em toda proposta sistematizadora de design: seja na Alemanha, na Inglaterra ou nos Estados Unidos – diz respeito às relações entre produção e consumo, entre trabalhador e patrão, entre mecanicismo e humanismo. Em cada um desses ambientes nacionais, os projetos políticos do design obedeceram a estratégias que me parecem extremamente vinculadas a características da vida política. Em cada espaço diferente, estabeleceram-se diferentes estratégias de lidar com a concentração de poder sobre a vida dos indivíduos. O projeto do design alemão é a busca de hegemonia internacional. Explicitamente.

De acordo com Hobbes, cabe aos homens cumprir os pactos que celebram. É assim que, ao transferir a outros os direitos que lhe cabiam exercer, estabelece-se um grau de com-promisso ao qual o homem não poderá se furtar, na medida em que trata-se de um pacto acordado, um pacto de confiança mútua provocado exatamente pela falta de confiança de uns contra os outros:

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“… para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente aos homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como recompensa universal a que renunciaram.” (Hobbes 1999:123)

O homem, para Hobbes, não é feliz na convivência junto a outros homens. Sua visão, ou melhor, sua construção do ser humano privilegia todos os aspectos negativos da sua natu-reza: sua competitividade, a desconfiança que rege a avaliação e a defesa do seu patrimônio, a glória e o orgulho de sua reputação. Tudo se dá em torno das avaliações entre humanos, em que pese uma profunda, dolorosa e contínua tensão perpassando toda sorte de sentimentos. Das consequentes e constantes questões resultantes dessa visão da vida do homem em sociedade decorre a constatação da impossibilidade de justiça, ou mesmo de injustiça, na me-dida em que essas noções não encontram seu lugar nesse ambiente acriterioso onde tudo depende da força física e da capacidade de fraudar. As noções de bem e de mal, de virtude ou de perfídia, todas essas pertencem a um sistema onde possa ser disposto um poder comum, compartilhado, que possa reger a lei. Assim, a razão surge como o elemento de ordenação, capaz de gerenciar normas adequadas para o exercício da vida em paz, já que “as paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de conseguí-las através do trabalho.” E a paz se imbui do papel de ser o elemento vetorial do estabelecimento de normas que deverão reger a vida em sociedade. Portanto, a ideia é de que haja “um poder comum situado acima dos contratantes”, dos compactuadores, “com direito e força suficiente para impor seu cum-primento.” Portanto, “a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é uma lei de natureza.” (Hobbes 1999:117)

Pois foi assim, naturalizando suas soluções reduzidas a uma formalidade geometri-camente minimalizada, que o design modernista suíço-alemão conquistou sua hegemonia sobre o mundo ocidental. Por algumas boas décadas, ao menos.

Hoje, o que deve nortear uma agenda política para o design implica a incorporação de elementos a serem avaliados sobretudo por uma capacidade analítica que conjugue uma razão equânime mitigada pela sensibilidade aos aspectos sociais, considerando indivíduo e coleti-vidade em patamares assemelhados.

Notas

1 Thomas Hobbes, intérprete das relações sociais ainda no século 17, foi responsável, entre outros feitos notáveis, pela identificação do poder absoluto exercido pelos reinantes. Assim como o foram John Locke, por sua assertividade face ao que a experiência possibilita como modo de gerar conhecimento, David Hume, o grande empirista inglês, que reafirmou princí-pios que se tornariam a base da cultura liberal inglesa, e escocesa, naturalmente, e, por fim, Adam Smith, o escocês que primeiramente analisou o funcionamento da economia industrial. 2 Ver Argán 1998, Maldonado 1993. 3 Na Hochschule für Gestaltung, as aulas tiveram início em 1953, embora a data oficial de inauguração, coincidente com a inauguração dos edifícios definitivos da escola em Ulm, seja 1955. 4 No livro de Martin Krampen, assim como no de Herbert Lindinger, alguns depoimentos tra–duzem bem essa contradição.

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5 Essas regras têm seu pano de fundo ideológico bem traçado nas palavras de Müller-Brockmann, professor visitante na Escola de Ulm, ao reafirmar a posição do designer como de um ‘grande regente’ aliado às forças universais, declarando que o uso de uma malha diagramática significa “submeter-se a leis de validade universal”, implica na “vontade de penetrar no essencial, na vontade de cultivar a objetividade ao invés da subjetividade”. Ao declarar que esse princípio universal de se fazer design obedece às necessidades de uma sociedade democrática, de algum modo Brockmann propõe o entendimento de que nesta sua democracia, entretanto, os indivíduos não teriam liberdade de expressão pessoal (Müller-Brockmann 1981:10). No mínimo, ambivalente. Referências

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