nietzsche - a arte

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Sumário

5

Introdução.................................................................................................................................05

1 - Subsídios para compreensão da filosofianietzschiana........................................................08

1.1 - A escritaaforismática.......................................................................................................08

1.2 - A conceito de vontade depotência...................................................................................11

1.3 - A investigaçãogenealógica..............................................................................................16

2 - A fisiologia e os tipospsicofisiológicos...............................................................................19

2.1 - Afisiologia.......................................................................................................................19

2.2-Os tipospsicofisiológicos..................................................................................................25

Conclusão..................................................................................................................................32

6

Introdução

O filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, é reconhecido por

sua crítica a moral e, principalmente, ao cristianismo.

Contudo, o que marca todos os momentos de sua produção é a

preocupação com a arte. Seu primeiro livro é a respeito deste

tema, mas ele perde o lugar central durante seu

desenvolvimento intelectual para retornar com ênfase em sua

última fase de produção. A compreensão de seu projeto estético

só é possível fazendo referência ao caminho conceitual que

leva a ele, assim, a intenção deste texto é apresentar os

7

questionamentos a respeito da arte e ver em que sentido eles

perfazem uma teoria de análise da arte. Ernani Chaves nos

elucida o projeto estético de Nietzsche em suas últimas fases

(1886-1888), através dos escritos póstumos do pensador, que

indicariam seu projeto de fisiologia da arte (CHAVES, 2007,

p.52). Esse conceito é a expressão de sua nova visão sobre os

limites dos homens, que acabam produzindo juízos

preconcebidos. A impossibilidade de escapar dessa produção

leva o filósofo a considerar essas ideias humanas como

sintomas daqueles que as geram.

Não será a intenção deste texto abordar a diversidade

entre interpretes do autor alemão, pois essas diferenças podem

ser colocadas de maneira clara como sendo da ordem da

preocupação específica de cada especialista ao tratar da

problemática. Assim, a pesquisa se aterá, nas questões dúbias,

à linha de interpretação de Wolfgang Müller-Lauter.1 Sem

procurar passar por essa problemática exterior ao texto a

intenção deste trabalho é colocar apenas os termos da questão.

As dificuldades específicas do texto nietzschiano são o

primeiro tema importante na compreensão desse problema, por

ser um pensador que não tenta construir um pensamento

sistemático, mas sim critica essa característica presente na

tradição. Abordar a especificidade do texto surge como

prescrição ao procurarmos entender seus conceitos; Sem

procurar unidades indivisíveis, sistema, clareza didática ou

somente literatura. Sobre esse último problema é necessário

1 Editor dos Nietzsche-Studien e autor de Nietzsche, seine Philosophie der Gegensätze und Gegensätze seiner Philosophie.

8

distanciar a reflexão de inferências superficiais, que podem

surgir pela forma de expressão típica do pensador. Além disso,

também para afirmar a necessidade de apreender seu modo de

expressão labiríntico.

Portando tais ferramentas é possível evitar erros óbvios

de interpretação, mas ainda é necessário pensar no conteúdo

de seus escritos e quais os conceitos que se ligam a sua

estética tardia. A vontade de potência, a fisiologia, as

tipologias e a moral são imprescindíveis para que seja

possível falar em um projeto estético.

Em sua busca por um conceito que desse conta da causação

universal2, mas que não tirasse da existência sua

característica de mudança, o pensador chega a formulação do

conceito de vontade de potência. É através dele que é

apresentada a perspectiva nietzschiana a respeito do mundo,

contudo ela é indissociável de sua afirmação de que a produção

do homem é sintoma da forma de vida que ele é. O que nos leva

a sua ideia de fisiologia, que se constitui pela organização

das diversas lutas de forças.

O fisiológico não é abordado como estado irredutível, mas

visto como articulação de forças, que expostas nesse conflito

resultam no corpo. A maneira que este processo ocorre gera

diferenças entre os homens, que se encontram expressas nas

figuras tipológicas. O nobre enquanto tipo bem constituído, a

simplicidade do plebeu e o distanciamento do artista são2 Causação universal: Conceito filosófico discutido largamente pela tradição. Segundo Abbagnano: “Em seu significado mais geral, a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente prevísivel apartir da primeira. (ABBAGNANO, 2000, p.124)

9

algumas destas relações entre luta de forças e os tipos

psicofisiológicos. Esboçar essas relações nos levam a questão

da moral como sendo sempre expressão de uma maneira de ser,

mas que apenas através da arte pode atingir outros homens.

A apresentação desses conceitos visa mostrar os elementos

que formam os diversos problemas nietzschianos acerca da arte,

e relacioná-los buscando ver o conteúdo de seu projeto

estético. São eles que possibilitam pensar na vida como

fenômeno estético, pois eles refletem as impossibilidades do

pensamento racional sobre a existência, problematizando o

existir como luta de forças (vontade de potência) e como isso

impossibilita pensar o real de maneira desinteressada.

No primeiro capítulo o foco será sobre as dificuldades de

interpretação, que são parte do trabalho para entender seu

modo de expressão. Na intenção de buscar uma maneira de

entender a construção nietzschiana, que mostra uma crítica a

tradição filosófica. Esta sempre se mostrou presa a esquemas

sistemáticos em sua história. Assim, a intenção é procurar

tornar mais clara sua noção de perspectivismo, isto é, a noção

de que são possíveis múltiplos ângulos de visão acerca da

realidade. Sem ter essa compreensão não é possível tomar algum

caminho na interpretação da estética do pensador, pois sua

escrita é expressão primeira desta noção.

Em seguida, no segundo capítulo, serão pontuadas algumas

características do conceito de vontade de potência. Sendo esta

ideia central para o autor alemão iremos colocar suas

características e sua relação com os valores humanos e a

10

moral.

O terceiro capítulo tem como objetivo trazer o contexto

histórico investigado na obra A genealogia da moral. Sobre o tema

apresentado como guerra moral. As diferenças entre os homens,

as sociedades, entre várias formas de organização resultam em

um conflito universal. Esse conflito que dará a tônica da obra

de arte em sua função descritiva, mas também em sua capacidade

de imprimir valores.

No capítulo subsequente será abordado o tema da

fisiologia, que tem uma relação intrínseca com a estética

desta fase de sua obra. A concepção de estéticas diferentes,

que postulam posições e visões de mundo diversas. A expressão

do homem como sendo indicador desta fisiologia. E a relação

entre diferentes tipos de homem na sociedade. A diferença se

mostra assim além de uma limitação biológica, contudo é

necessário apreender seu conceito de fisiologia para que

consigamos ter sua noção de biologia.

O objetivo deste trabalho é levantar as questões sobre o

problema nietzschiano da arte como expressão fisiológica.

Levando em consideração sua construção da doutrina da vontade

de potência, que se configura como visão de um mundo do

conflito de forças. Tomando essa visão Nietzsche constrói sua

concepção de moral como ideia provinda de um tipo fisiológico,

que através da arte traz à tona sua maneira de valorar o

mundo.

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1 - Subsídios para compreensão da filosofia nietzschiana

1.1 - A escrita aforismática

Não é possível encontrar no pensamento de Nietzsche uma

colocação precisa sobre a natureza, a vida e o mundo, mas se

consegue isso a partir da importância deles em relação a seus

questionamentos. A começar por sua forma de escrita, que se

constitui principalmente pela aforismática, isto é, texto com

forte caráter de aforismo, forma de escrita cuja gênese

remonta à tradição médica do pensador Hipócrates,

posteriormente seu uso se expressa nas máximas dos moralistas

franceses dos séculos XVI-XVIII, que compõem a noção

nietzschiana de texto. Seus escritos não são formados apenas

por aforismos, mas por uma multiplicidade de formas que

12

privilegiam a facilidade de memorização e a dificuldade de

compreensão, “quem com sangue e em máximas escreve não quer

ser lido, mas guardado de memória” (NIETZSCHE, 2008, p.59). É

clara a relação entre a visão do pensador sobre o mundo e sua

forma de escrita, que expressa a distância entre pensamentos e

a necessidade de digestão dos conteúdos, pois o sentindo não

se apresenta de forma clara a não ser para aqueles nos quais

ele remete a uma prática, a exemplo quando descreve a natureza

como possuindo um caráter violento está sendo claro apenas

para aqueles que de alguma forma vivenciaram essa

característica.

Nessas máximas temos a incompletude do conceito como

regra, o que também nos leva a questionar quanto a

possibilidade de um todo na obra do autor. Contudo, devemos

levar em conta que há uma crítica tanto aos pensadores

sistemáticos quanto a alguns textos demasiado claros. A

importância da incompletude não se restringe a apenas um

esmero formal, mas remete a sua crítica ao sistematismo, qual

seja, a tradição de construir um pensamento rigoroso de

maneira sistemática, pois visa dar o cenário, mas não o

caminho da interpretação. Importa apenas sublinhar tal relação

neste momento, pois este tema será tratado com algum cuidado a

diante.

Assim, sua forma demanda um trabalho de interpretação a

ser feito pouco a pouco perante o texto, pois a primeira vista

a tarefa se mostra simples, contudo as máximas e ensaios não

são apresentados de forma conclusiva, por não terem finalidade

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dogmática, e acabam possuindo uma gama ampla de sentidos. “O

aforismo, a sentença, nos quais, sendo o primeiro, sou o

mestre entre os alemães, são as formas da 'eternidade'; minha

ambição é dizer em dez frases aquilo que qualquer outro diz em

um livro, - aquilo que qualquer outro não diz em um

livro...”(NIETZSCHE, 2007, p. 100). Neste trecho aparece sua

intenção de comprimir ao máximo suas ideias, que apenas sob um

olhar atento podem indicar explicações para diversos

conceitos expondo muitas camadas de texto, entretanto na

possibilidade de ser lido com base em uma moral sua obra

resulta em aforismos obscuros. “[...]tudo o que é verdadeiro

se move com pés delicados”(NIETZSCHE, 2002a, p.11). Eis sua

máxima em termos de escrita, pois há leveza em sua maneira de

abordar, mas há muito movimento a ser levado em conta na

interpretação de uma miscelânea de considerações, que nem

sempre se encaixam e muitas vezes buscam essa compreensão

cifrada.

À diversidade do tempo de produção dos textos também se

acrescenta a dificuldade de compreensão, e é feita uma divisão

em períodos de tempo. Isso está corroborado pelas obras

(principalmente Ecce Homo), pois é explícita sua mudança mesmo

no campo formal, que passa a ser dominada pelo modo

aforismático, que nos primeiros escritos, A Filosofia na Idade Trágica

dos Gregos e O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, é mostrada no

conteúdo.

A temática nietzschiana também apresenta uma crítica a

unidade, pois ela seria um preconceito fundamental do homem,

14

que “[...] apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros

fundamentais da razão que nela se petrificaram).” (NIETZSCHE,

2010, p. 36) passa a entender “[...]que todo atuar é

determinado por um atuante, um "sujeito".” (NIETZSCHE, 2010,

p. 36). Assim como a crítica expressa em:Na realidade, nada, até o presente, teve uma forçade persuasão mais ingênua do que o erro do Ser -tal como foi formulado pelos eleatas, por exemplo:afinal, ele tem a seu favor cada palavra, cadafrase que falamos! — Também os opositores doseleatas estavam sujeitos à sedução de seu conceitode ser: Demócrito, entre outros, quando inventouseu átomo... (NIETZSCHE, 2007, p.28).

Sua crítica se estende a construção de conceitos, pois a

maneira tradicional constitui unidades e um sistema é uma

proposta de todo uno. Sua crítica à sistematicidade se estende

a outros textos principalmente em Além do bem e do mal, em sua

caracterização do espírito livre. […] mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais;já o “isso” contém uma interpretação do processo,não é parte do processo mesmo. Aqui se concluisegundo o hábito gramatical: “pensar é umaatividade, toda atividade requer um agente, logo —”. Mais ou menos segundo esse esquema o velhoatomismo buscou, além da “força” que atua, opedacinho de matéria onde ela fica e a partir doqual atua, o átomo; (Nietzsche, 2006, p.21).

Tais expressões mostram esse distanciamento da unidade

formal e o problema da linguagem que perpassa toda sua

reflexão. Sua proposta vista no início do primeiro capítulo de

Humano, demasiado humano é uma química dos conceitos, pois

considera como não sendo óbvia a relação entre esses, isto é,

15

o esperado na conjunção entre conceitos e\ou sentimentos não é

o mais previsível, pois cada combinação tem elementos diversos

e específicos.

Esta é uma breve exposição da dificuldade que apresenta o

texto nietzschiano, assim como as peculiaridades a serem

levadas em conta em uma reflexão sobre seus conceitos e

problemas. Isso condensa sua proposta e abre caminho para uma

melhor compreensão de seu perspectivismo. Para isso é

necessário o entendimento desta proposta, pois a falta de

unidade, a dificuldade de interpretação e sua relação direta

com as vivências são essenciais para compreender o caminho

traçado em suas obras, que é construído de maneira singular

por não existirem igualdades em interpretação e pelo conhecer

lento e ruminante, que tem como objetivo não aqueles conceitos

verdadeiros da tradição anterior, mas sim aqueles, até

formalmente, que afirmem a vida.

Não é a intenção deste texto fazer um extenso trabalho

exegético, mas pontuar as características do pensamento do

autor que contribuem para seu projeto estético maduro. Para

isso, é importante esclarecer a preferência por referencias

presentes na última fase de seu pensamento principalmente a

obra O caso Wagner.

16

1.2 - A conceito de vontade de potência

A conceituação do mundo pelo filósofo é a busca de

questionamentos acerca do caráter do real experimentado,

contudo essas reflexões não se afirmam da maneira tradicional,

que seria a conceituação do mundo. O autor investe no

questionamento desse modo de fazer filosofia, o que faz brotar

seus conceitos. Eles são todos imprescindíveis, mas seu

conteúdo se encontra espalhado em obras e aforismos, dos quais

podemos perfazer o sentido ou sentidos que tomam. Destes

alguns são de valor para uma análise mais profunda e outros se

apresentam como tendo significado bastante localizado, isto é,

que tem seu sentido ligado apenas a afirmação em que estão

inseridos. Isso é possível pensando que alguns sentidos se

mantém nas obras e se legitimam por sua importância, ao menos

na relação com sua obra da maturidade.

São elementos relacionados, mas que são formulados em

momentos diferentes e que visam trabalhar problemáticas

diversas. O sentido de vida se acomoda, apesar da crítica do

pensador, de que não é possível julgar valorativamente a vida,

pois o julgamento é feito por quem é interessado em seu

17

resultado, isto é, ele se apresenta mais como um resultado de

características de quem o promove, pois rigorosamente não é

possível cunhar um valor sobre a vida.(NIETZSCHE, 2007, p.22)

Entretanto, não é essa negação que Nietzsche busca, mas sim a

aceitação do caráter ativo que a vida possui, e não apenas

aceitação, pois em seu Zaratustra3 clarifica essa posição como

amor ao fato que é a vida. Assim, expressa-se em um caminho

diverso daqueles que buscam formular prós e contras sobre esse

fato. Para isso toma como passo fundamental a composição de

uma interpretação que possa dar conta do existente sem

atribuir valores positivos ou negativos. “Aqui devemos pensar

radicalmente até o fundo, e guardamo-nos de toda fraqueza

sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação,

ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão,

dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no

mínimo e mais comedido, exploração[...]”(NIETZSCHE, 2006, p.

154-155). O caráter terrível da existência se torna explícito,

porem fazendo parte de tal conjunto não podemos nos evadir a

esse processo, mas podemos negar essas características tomando

assim o caminho do niilismo4.

Qual seria a natureza de um tal existir? Que qualidade

possui que impele sempre ao conflito? A vontade de potência.

3 Zaratustra é o personagem principal da obra de mesmo nome, que seria o personagem sob o qual Nietzsche é capaz de expor sua filosofia inteira. Ele representa a encarnação da busca proposta pelo filósofo alemão: a transvaloração de todos os valores.4 Niilismo: “Termo usado na maioria das vezes com intuito polêmico, para designar doutrinas que se recusam a reconhecer realidades ou valores cuja admissão é considerada importante.[...] Em outros casos, é empregada para indicar as atitudes dos que negam determinados valores morais ou políticos.” (ABBAGNANO, 2000, p. 712)

18

Ela é responsável pelos três conceitos questionados no início

(natureza, vida e mundo), pois o “mundo é vontade de poder e

nada mais” (NIETZSCHE, 2006, p. 40), porque a interpretação do

autor sobre o mundo indica a imposição de reivindicações de

poder como a natureza material, isto é, apenas como vontade de

potência é possível qualificar a existência. Contudo, a que

corresponde exatamente esse conceito?

Nietzsche trabalha esse conceito, tratando-o como tal, no

aforismo 36 de Além do Bem e do Mal. Este é o texto que busca

tornar clara esta questão da vontade de potência, no qual ele

interpreta a realidade da perspectiva de que não podemos fugir

aos limites humanos e estando limitados só podemos encarar a

realidade como sendo da ordem de nossos desejos e paixões,

pois seria possível considerar todo acontecer na realidade

como expressão da força de um tipo de vontade, não uma, mas

muitas formando o existente. A unidade só se manifesta como

expressão de uma hierarquia que se configura pela busca de

força, e isso acontece a todo instante, pois a vontade só é em

ato. Não há poupança ou reserva de forças, pois toda força se

efetiva imediatamente.

A cada momento um quantum5 de força entra em contato, em

tentativa de dominar, não sendo dominado, com outros quanta.

Sendo que dentro daquele existem outras destas relações. A

sobrevivência a este processo aumenta a força deste quantum,

no caso do que domina tornando o dominado parte de si; no caso

do dominado fazendo parte de uma construção maior que ele, da5 Termo empregado para designar uma quantidade, uma quantia indeterminada. Sendo quantum o singular e quanta plural.

19

qual este é apenas um dos quanta formador da força total deste

“organismo”. Aí também fica sublinhado outro pensamento da

filosofia nietzschiana quando em O Crepúsculo dos Ídolos fala:

“Da Escola de Guerra da Vida — o que não me mata torna-me mais

forte”.(NIETZSCHE, 2007, p.10) Este processo, juntamente com

todo o funcionamento do conceito, coloca-o como sendo o

princípio de toda a ação, pois “essa vontade é sempre o que há

de mais íntimo e profundo: a mecânica é uma simples semiótica

das consequências”(ABBAGNANO, 2000,p. 1008). Ou seja, todo

acontecer é apenas um resultado da relação de forças, ao mesmo

tempo em que também está nesta numa destas relações.

Em outros aforismos também fica explícita sua crítica a

todo tipo de unidade, inclusive quanto à filosofia de

Schopenhauer6. Nela o múltiplo mostra-se na representação e o

uno ou a Vontade é o fundamento desta. Já a filosofia de

Nietzsche parece inverter essa perspectiva e colocar a

multiplicidade como profunda e a unidade como sendo “apenas

organização, sob a ascendência, curto prazo, de vontades de

poder dominantes.”(MÜLLER-LAUTER, 1999, p.75) Assim não há

como colocar a vontade de potência como una, ela é a

qualidade, cada quantum de poder é formado de múltiplos quanta

que se diferenciam pela especificidade de cada conflito. Só

nesta organização é que se formam o sujeito e o átomo, e são

tomados em função do que neles comanda, neste caso, o sujeito

é geralmente colocado em função da razão. No aforismo citado

6 Arthur Schopenhauer(1788-1860): filósofo alemão, autor de O mundo comovontade e representação. Influenciou as ideais de Nietzsche cujos primeiros textos trabalham conceitos schopenhauerianos.

20

antes também se manifesta a crítica ás limitações da

linguagem, que sempre necessita da construção de unidades, por

sua constituição de sujeito-predicado, o que não deve ser, na

proposta nietzschiana, colocado como validador de verdade e

sim como limitador do pensamento.

A segunda questão se coloca na base do conceito, pois a

Vontade em Schopenhauer é essencialmente “querer viver”, que

gera sofrimento, já a vontade de potência pode vir a tomar

este caráter, entretanto, não necessariamente. Ela pode

manifestar-se em muitos sentidos, que podem ou não

relacionarem-se com vida, no sentido de existência orgânica.

Ela se apresenta também no inorgânico, como no já comentado

aforismo 36, Além do Bem e do Mal:

“Supondo que nada seja “dado” como real, excetonosso mundo de desejos e paixões, e que nãopossamos descer ou subir a nenhuma outra“realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos— pois pensar é apenas a relação desses impulsosentre si —: não é lícito fazer a tentativa ecolocar a questão de se isso que é dado nãobastaria para compreender, a partir do que lhe éigual, também o chamado mundo mecânico (ou“material”)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma“aparência”, uma “representação” (no sentido deBerkeley e Schopenhauer), mas como da mesma ordemde realidade que têm nossos afetos, — como umaforma mais primitiva do mundo dos afetos, na qualainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo oque então se ramifica e se configura no processoorgânico (e também se atenua e se debilita, como érazoável), como uma espécie de vida instintiva, emque todas as funções orgânicas, com auto-regulação,assimilação, nutrição, eliminação, metabolismo, seacham sinteticamente ligadas umas ás outras — comouma forma prévia da vida?

21

É deste modo que em sua filosofia o pensador alemão

fundamenta igual qualidade para o orgânico e para o

inorgânico. Nesta visão conseguimos até mesmo entender seu

cuidado com os “princípios teleológicos supérfluos! – tais

como o impulso de autoconservação”(NIETZSCHE, 2006, p.19),

pois este abrange apenas parte de algo mais amplo que abarca

não apenas os seres vivos. Para Nietzsche tomar este princípio

seria uma antropomorfização do mundo, isto é, encontram um

conceito para a vida que tem em conta apenas nossa apreciação

da vida. Além disso, considera os afetos como sendo um

desenvolvimento do conflito que já existe no mundo material,

que tem por meio a vida, isto é, o ser orgânico não possui um

papel central, mas é uma articulação de vontade de potência.

Uma outra problemática acerca da vontade de potência

encontra-se no questionamento sobre ela possuir ou não um

caráter metafísico. Ela mostra-se como uma construção

cosmológica, que podemos aparentar com a filosofia pré-

socrática (principalmente a de Mileto) e com as construções da

ciência contemporânea (mesmo tal comparação sendo um

anacronismo), entretanto é possível dizer que a cosmologia é

parte da metafísica. Ela é, contudo, muitas vezes tida tal

qual uma ciência e é assim que Nietzsche tenta se posicionar

ao construir sua "teoria das forças", e não como uma

construção metafísica. Não cai em sua denominação desta, que

seria transformar algo condicionado em algo incondicionado. E

também não nega que possa haver condicionamento na vontade de

potência, mas a observa agir no mundo e não encontra outro

22

fundamento que não ela própria. Reiteramos que ele o faz assim

como os filósofos da natureza e os cientistas da renascença

substituindo "o improvável pelo mais provável, e

ocasionalmente um erro por outro"(NIETZSCHE, 2010, p.3).

Destas problemáticas podemos observar a abrangência do

conceito, que é colocado frente à vivência humana, que faz com

que esta não seja fundada em uma metafísica, mas sim baseada

em relações observáveis na natureza “aparente”. É partindo

disto que ele fundamenta sua investida contra a moral,

pensando em tudo como tendo uma mesma qualidade de ação. Assim

sendo, tanto o “bem” quanto o “mal”, feitos a alguém acabam

por visar ao mesmo fim: dominação. Ao infligir uma dor estamos

tentando exercer nossa potência sobre aquele que não se

prostra frente a nós, contra aquele que não está com sua força

associada a nossa. Isto porque a dor sempre leva a

investigação de sua causa, e é nesta procura que tomamos

conhecimento do que tenta nos dominar. A partir daí buscamos a

melhor forma de fazê-la parar e esta solução muitas vezes é

nos deixarmos dominar. Esse é o funcionamento mais

corriqueiro, tido moralmente como fazer mal, sendo por vezes o

mais sincero manifestar dos afetos de dominação.

Contudo, existe também a dominação pelo prazer, ela se

mostra mais lenta, porem é sempre certa e segura. Ela exprime-

se na dominação daquele que já não oferece perigo (que está

associado a nós), que não precisa remeter ao dominador a

sensação de desprazer, mas ao contrário relaciona muitas

23

sensações de prazer a este.

Com certeza o estado em que fazemos mal raramente étão agradável, tão limpidamente agradável, quantoaquele em que fazemos bem – é um signo de que aindanos falta potência ou denuncia o despeito por essapobreza, traz consigo nossos perigos e insegurançaspara nossa atual posse de potência e cerca denuvens nosso horizonte, pela perspectiva devingança, escárnio, castigo, insucesso.(NIETZSCHE,2005, p.177)

A reflexão acerca desta passagem nos leva a vislumbrar as

diferenciações hierárquicas presentes nos tipos que ele nos

mostra, a diferença entre a vontade ativa, que se manifesta

integralmente no sentido de adquirir mais força, e a reativa

que pode vir a constituir o ressentimento. Nesse a vontade

fica delegada às tentativas de dominação através da compaixão

ou de pregar ao outro o amor ao próximo. O que, para

Nietzsche, teria como objetivo acabar com as ações tônicas que

a eles não são permitidas.

Deste modo ligam-se os conceitos e formam parte do

conceito de vida presente nas obras do filósofo que procurava

concretizar um pensamento afirmativo perante esta.

“E sabeis sequer o que é para mim o “mundo”? Devomostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: umamonstruosidade de força, sem início, sem fim, umafirme, brônzea grandeza de força, que não se tornamaior, nem menor, que não se consome, mas apenas setransmuta, inalteravelmente grande em seu todo, umaeconomia sem despesas e perdas, mas também semacréscimo, ou rendimentos, cercada de “nada” comoseu limite, nada de evanescente, de desperdiçado,nada de infinitamente extenso, mas como forçadeterminada posta em um determinado espaço, e não

24

em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”,mas antes como força por toda parte, como jogo deforças e ondas de força... esse meu mundodionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, doeternamente-destruir-a-si-próprio,esse mundosecreto da dupla volúpia, esse meu “para além debem e mal”, sem alvo, se na felicidade do círculonão há alvo... Esse mundo é vontade de potência – enada além disso! E também vós próprios sois essavontade de potência – e nada alémdisso!”(NIETZSCHE, 2005, p. 251)

1.3 - A investigação genealógica

Uma tal consideração do mundo não é feita à revelia da

realidade ou da história, mas ao contrário, seus argumentos

são a articulação de um trabalho filológico, que procura

desmistificar a história. Seu pensamento busca as causas da

civilização não no civilizado, mas procura ver qual a função

dos mecanismos culturais que resultam na civilização europeia.

O interesse de Nietzsche pela moral é dito no prólogo da

Genealogia da Moral: Por um escrúpulo que me é peculiar, e queconfesso a contragosto – diz respeito à moral, atudo o que até agora foi celebrado na terra como

25

moral –, escrúpulo que surgiu tão cedo em minhavida, tão insolicitado, tão incontido, tão emcontradição com ambiente, idade, exemplo,procedência, que eu quase poderia denominá-lo meu“a priori” – tanto minha curiosidade quanto minhasuspeita deveriam logo deter-se na questão de ondese originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal.

Essa preocupação se apresenta como desenlace conceitual

desde Humano, demasiado humano da problemática exposta

anteriormente da doutrina da vontade de potência. Em seu livro

sobre esse tema, Wolfgang Müller-Lauter, destaca o papel de

qualidade de ação do ente desta vontade (1997, p.85), então

todos os entes (mesmo a matéria) seriam expressões de quanta

de potência. Esse será o instrumento de Nietzsche para a

crítica a moral, que apresenta como pautada em tipos ideais,

que se se desenvolvem durante um processo de moralização.Durante a era mais longa da história humana – achamada era pré-histórica – o valor ou não-valor deuma ação era deduzido de suas consequências: não seconsiderava ação em si nem a sua origem, mas, demaneira semelhante ao que ainda hoje ocorre naChina, onde uma distinção ou uma desgraça do filhorecai sobre os pais, era a força retroativa dosucesso ou do fracasso que levava os homens apensar bem ou mal de uma ação. Chamemos esseperíodo de período pré-moral da humanidade: oimperativo “conhece-te a ti mesmo!” ainda não eraconhecido.(...)

Esse trecho introduz sua problemática acerca da moral,

que descreve a transformação do valor do resultado da ação

para o valor da intenção de quem opera o ato. Assim, tira de

cena o efeito causado na realidade para acrescer valor ao

sujeito, que passa a ser a noção central da moral. É

26

importante ressaltar que essa crítica não tem um caráter

moral, mas se apresenta como descrição de um processo

histórico, que ao se realizar aprofunda uma forma de moral de

cunho nobre e aristocrático. Como exposto no mesmo aforismo:(...) Nos últimos dez milênios, em largas regiõesda Terra chegou-se gradualmente ao ponto em que é aorigem da ação, e não mais as consequências, quedetermina o seu valor: um grande acontecimento noseu todo, um considerável refinamento do olhar e damedida, a repercussão inconsciente do predomínio devalores aristocráticos e da crença na "origem", amarca de um período que se pode denominar moral nosenso estrito: com isso fez-se a primeira tentativade autoconhecimento.(NIETZSCHE, 2006, p. 36)

Nesse trecho está expressa a intensa ligação entre a

moral, que se mostra na troca do valor do resultado pelo valor

da intenção, e o projeto de ciência da antiguidade, que se

legitima a partir da crença na ação do sujeito. Esse evento é

importante ao pensarmos a crítica ao ressentimento, que se

insere nesse aprofundamento do valor da intenção desde a

Grécia. Esse desenvolvimento passa pela Idade Média e culmina

na modernidade, assim o olhar do autor pretende argumentar

sobre os valores de seu tempo, e o faz através da retomada do

passado, um processo genealógico em busca do desenvolvimento

daquilo que lhe é presente, isto é, procura as causas

históricas dos valores. Tal pesquisa pode ser vista na obra A

genealogia da moral: “A indicação do caminho certo me foi dada

pela seguinte questão: que significam exatamente, do ponto de

vista etimológico, as designações para "bom" cunhadas pelas

diversas línguas?”(NIETZSCHE, 2010, p. 18) Assim, busca

através de análise filológica os sentidos que formaram as

27

valorações herdadas através da tradição culta europeia. Essa

sua crítica culmina nas três dissertações do livro

supracitado, que se concentra na conceituação de dois tipos de

moral, que tem seus desenvolvimentos históricos analisados.

Nessa investigação procura situar a importância de um

processo de criação da memória, de um “querer lembrar-se de”,

que se impõe frente a uma forma de pensar ligada ao instante,

pois o esquecimento também é visto como atividade:“Criar um animal que pode fazer promessas – não éesta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs,com relação ao homem? (…) Esquecer não é umasimples vis inertiae (força inercial), como creemos superficiais, mas uma força inibidora ativa...”A história da memória é a história de uma memóriada vontade. (NIETZSCHE, 2010, p.43)

No mesmo aforismo o filósofo compara esse processo a

digestão, que bem realizada levaria a assimilação psíquica do

conteúdo, mas que em certas fisiologias há indigestão, ou

seja, a incapacidade de esquecer. Esta é a base para o

ressentimento. [...]o homem do ressentimento não é franco, nemingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olhade través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, oscaminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada comoseu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entendedo silêncio, do não-esquecimento, da espera, domomentâneo apequenamento e da humilhação própria.(NIETZSCHE, 2010, p.27.)

Outro ponto que esclarece o conceito de memória é a

necessidade de ação moral frequente e árdua, pois para tornar

fixar a regra é preciso que algo seja sacrificado a ela.

Aquele que possui a capacidade para lembrar das normas se

28

concebe como indivíduo soberano, que age pela moralidade do

costume. Assim, se estabelecia uma promessa entre os membros

da sociedade, e para isso se valia de uma terrível

mnemotécnica:“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória:apenas o que não cessa de causar dor fica namemória.” Essa mnemotécnica pode ser vista nastorturas e outras penas perpetradas por autoridadesalemãs e européias. “...os mais horrendossacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dosprimogênitos), as mais repugnantes mutilações (ascastrações, por exemplo), os mais cruéis rituais detodos os cultos religiosos.(...)(NIETZSCHE, 2010,p.46)

Essa era a maneira de impor aos homens a necessidade de

manter as tradições e assim se concebe o homem nobre:“O homem "livre", o possuidor de uma duradoura einquebrantável vontade, tem nesta posse a suamedida de valor: olhando para os outros a partir de si,ele honra ou despreza; e tão necessariamente quantohonra os seus iguais, os fortes e confiáveis (osque podem prometer) – ou seja, todo aquele quepromete como Um soberano, de modo raro, com peso elentidão, e que é avaro com sua confiança, quedistingue quando confia, que dá sua palavra como algoseguro, porque sabe que é forte o bastante paramantê-la contra o que for adverso, mesmo "Contra odestino" –; do mesmo modo ele reservará seu pontapépara os débeis doidivanas que prometem quando nãopodiam fazê-lo, e o seu chicote para o mentirosoque quebra a palavra já no instante em que apronuncia.” (NIETZSCHE, 2005a, p. 49).

No trecho, há a questão do dano que representava na

sociedade arcaica a quebra da palavra. Este deveria ser

compensado trocando dano pela satisfação da crueldade.Nesse primeiro estágio, justiça é a boa

29

vontade, entre homens de poder aproximadamente

igual, de acomodar-se entre si, de “entender-se”

mediante a um compromisso – e, com relação aos de

menor poder, forçá-los a um compromisso entre si.

(NIETZSCHE, 2010, p.55)

A moralidade do costume força a regra pela regra, para o

seu fortalecimento, e assim cria memória.

Essa alma humana se constrói através de processos

dolorosos que afirmam contratos buscando tornar o homem algo

seguro, pois o valor moral do homem passa a residir em sua

capacidade de ação intencional. É nesse ponto que o autor

reconhece a formação de um tipo de homem, que está ligado a

estes surgimentos:[...] o juízo "bom" não provém daqueles aos quaisse fez o "bem"! Foram os "bons" mesmos, isto é, osnobres, poderosos, superiores em posição epensamento, que sentiram e estabeleceram a si e aseus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, emoposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo,e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é queeles tomaram para si o direito de criar valores,cunhar nomes para os valores [...](O direitosenhorial de dar nomes vai tão longe, que nospermitiríamos conceber a própria origem dalinguagem como expressão de poder dos senhores:eles dizem "isto é isto", marcam cada coisa eacontecimento com um som, como que se apropriandoassim das coisas.) (NIETZSCHE, 2010, p. 19).

Esse problema se apresenta na pré-história humana e

imprime uma hierarquia que começa a se desenhar: os nobres se

concebem como os capazes de prometer. Por outro lado existem

aqueles que não possuem tal possibilidade e que assim fazem

30

parte do papel desempenhado pelo outro, como expresso pela

vontade de potência: Com a luta, estabelecem-se hierarquias: a cadamomento, determinam-se vencedores e vencidos,senhores e escravos, os que mandam e os queobedecem. A célula, ao tornar-se função de outramais forte, está a obedecê-la; o pensamento, aosobrepujar os demais, passa a mandar neles; oimpulso, ao queixar-se de outros, recusa aobediência e busca o mando (MARTON, 1990, p. 48).

A narrativa genealógica pensa a transformação desse homem

simples, que não possui a capacidade para a memória, e que

posteriormente passa a ser vinculado a uma moral e considerado

escravo.Descobri então que todas elas remetem à mesma

transformação conceitual – que, em toda parte,"nobre", "aristocrático", no sentido social, é oconceito básico a partir do qual necessariamente sedesenvolveu "bom", no sentido de "espiritualmentebem-nascido", "espiritualmente privilegiado": umdesenvolvimento que sempre corre paralelo àqueleoutro que faz "plebeu", "comum", baixo" transmutar-se finalmente em "ruim". O exemplo mais eloquentedeste último é o próprio termo alemão schlecht[ruim]. o qual é idêntico a schlicht [simples] –confira-se schlechtweg, schlechterdings[ambos"simplesmente"] – e originalmente designava o homemsimples, comum, ainda sem olhar depreciativo,apenas em oposição ao nobre. (NIETZSCHE, 2010,p.18).

A moral surge na pré-história como mudança de uma

perspectiva “pragmática” (com olhos para o resultado) para uma

perspectiva intencional, que instala como valor principal a

capacidade para cumprir promessas. No caso de uma promessa não

cumprida o dano é remediado através do castigo, e esse seria o

31

responsável por internalizar normas e tornar o homem mais

seguro. Essa é a incapacidade do tipo plebeu, pois não é capaz

de levar suas palavras as últimas consequências, mas por outro

lado também não possui a força de esquecimento para

metabolizar as mazelas. Esses dois problemas esboçam a questão

principal do tipo fisiológico plebeu, ou melhor, o homem

ressentido. A concepção culpada será fruto do ressentimento,

diferentemente da justiça que se configura como pagamento por

um dano real, que é compensado através da tortura. Suas

manifestações tônicas se darão apenas no campo do

ressentimento, pois a eles será negada a atividade. Este

conceito se explica pela impotência perante a realidade que se

forma na negação da possibilidade mesmo de vingança, e disso

se forma uma vingança imaginária: um momento a se concretizar,

no qual essa submissão será recompensada. Isso fica visível,

segundo o autor, no consenso dos sábios, mas também no

cristianismo e no budismo. Como no trecho de A Genealogia da Moral

sobre a fabricação de ideais ascéticos, isto é, que não

celebram a vida :eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É umcochichar e sussurrar cauteloso, sonso, manso,vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me quementem; uma suavidade visguenta escorre de cadasom. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito,não há dúvida. E a impotência que não acerta contasé mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em'obediência'. (NIETZSCHE, 2010,p. 34).

É desta maneira que o pensador vê a criação de uma nova

distinção moral diversa daquela bom/ruim já exposta. Através

32

do cristianismo e dos sábios da Europa passam a vigorar o

valor bom/mau. Essa inversão ocorre através da guerra moral, a

qual cria através do ascetismo “uma tentativa de ver-se como

“bons demais” para este mundo” (NIETZSCHE, 2010, p.80).

Desvalorizam o nobre e assim valorizam a si mesmos.

os miseráveis somente são os bons, apenas ospobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores,necessitados, feios, doentes são os únicos beatos,os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança [...] com os judeus principia a revoltados escravos na moral: aquela rebelião que tematrás de si dois mil anos de história, e que hojeperdemos de vista, porque foi vitoriosa...(NIETZSCHE, 2010, p. 26).

Com a ascensão do pensamento judaico-cristão, assim como

do platonismo, Nietzsche vê a vitória dos ideais plebeus se

legitimar e internalizar no homem a culpa.

“A convicção prevalece de que a comunidade subsisteapenas graças aos sacrifícios e às realizações dosantepassados – e de que é preciso lhes pagar issocom sacrifícios e realizações: reconhece-se umadívida [Schuld], que cresce permanentemente, pelofato de que os antepassados não cessam, em suasobrevida como espíritos poderosos, de conceder àestirpe novas vantagens e adiantamentos a partir desua força.”(NIETZSCHE,p.71).

É esse peso que o ideal do ressentimento passa a imputar

a humanidade. Em contraposição ao ressentimento a

interpretação do nobre é muito mais leve a respeito dessa

“distância entre almas”, sobre essa diferença e sobre o

problema dos ideais escravos/plebeus:

33

Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves derapina não surpreende: mas não é motivo paracensurar às aves de rapina o fato de pegarem asovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: "essasaves de rapina são más; e quem for o menos possívelave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – estenão deveria ser bom?", não há o que objetar a essemodo de erigir um ideal, exceto talvez que as avesde rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, edirão para si mesmas: "nós nada temos contra essasboas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nadamais delicioso do que uma tenra ovelhinha". –Exigir da força que não se expresse como força, quenão seja um querer-dominar, um querer-vencer, umquerer-subjugar, uma sede de inimigos, resistênciase triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraquezaque se expresse como força. (NIETZSCHE, 2010, p.36-37).

O último trecho apresenta a ideia de que a gênese do

pensamento escravo se pauta na vingança imaginária, que vem à

tona apenas como expressão taxativa: ele é mau. Em

contrariedade a ela existe a formação do nobre, que vê a

dificuldade como um chamariz à vida, pois sente a superação do

obstáculo como aumento de força.

34

2 - A fisiologia e os tipos psicofisiológicos

2.1 - A fisiologia.

Exposta a concepção de mundo sobre a qual o autor forma

sua crítica podemos focar na questão humana, que se relaciona

diretamente com a investigação sobre a arte, pois como já

visto a apreensão do mundo tem em relevo um caráter estético.

Contudo, ao pensar a estética Nietzsche desloca o tema do

espectador para o autor, pois importa descobrir como vem à

tona uma obra de arte. Para que possamos fazer essa análise do

artista, é preciso entendermos sob qual denominação ele se

encontra nesses jogos de poder, e para tal é preciso levantar

o sentido que possui para o autor o conceito de fisiologia.

Wolfgang Müller-Lauter, em seu artigo Décadence artística enquanto

décadence fisiológica, indica três sentidos para o termo:

35

Em primeiro lugar, Nietzsche segue o uso da palavra“fisiologia” feito pelas ciências de sua época. Elefamiliarizou-se bastante com a literatura, dediferentes níveis, a esse respeito. Embora lhefaltassem conhecimentos especializados das ciênciasda natureza, procurou, com ajuda de sua consciênciados diferentes problemas metodológicos, responderde algum modo questões básicas relevantes do pontode vista teórico-científico, cuja importância atéagora não se apreciou o bastante. Em segundo lugar,para Nietzsche o fisiológico é o que determina demodo somático (e por isso fundamental) os homens.Está na base, em sua respectiva auto-compreensão,dos ocultamentos “ideais” taticamente já dados. Oconceito remete, com freqüência, às funçõesorgânicas ou ao afetivo no sentido do imediatocorpóreo. Posso observar apenas que as própriasexperiências de Nietzsche relativas ao corpo trazemesta compreensão de “fisiologia” e que, levado porelas, tanto acolheu muitos de seus estudos dasciências da natureza quanto elaborou algunsconceitos filosóficos fundamentais. Estes últimoslevam à terceira determinação de “fisiologia” emNietzsche. Ele chega a interpretar os processosfisiológicos como a luta de quanta de potência que“interpretam”. (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 21-22)

No primeiro sentido vemos a discussão articulada do autor

com um tema de intenso debate em sua época, mas no segundo e

terceiro sentidos vemos uma interpretação que caminha sobre a

formulação da doutrina da vontade de potência. Resta sublinhar

o caráter múltiplo presente nessa noção, pois é esse o ponto

que remete a questão moral e a problemática desta. Quanto a

essas diferenças fisiológicas o pensador sublinha:A diversidade dos homens se mostra não apenas nadiversidade das suas tábuas de bens, isto é, nofato de que tomem bens diversos como desejáveis eque estejam em desacordo quanto ao valor maior oumenor, quanto à hierarquia dos bens reconhecidospor todos - ela se mostra mais no que consideram

36

que é ter e possuir verdadeiramente um bem.(NIETZSCHE, 2006, p.82)

A desigualdade, a “injustiça”, dessa vontade dão a tônica

para as diferenças dos homens, que são analisados pelo autor a

partir da noção de tipos fisiológicos. Importa agora afirmar

essa noção de diferença, pathos da distância (ressaltada na última

expressão do trecho supracitado) na linguagem do autor, para

refletir a respeito da noção de fisiologia e arte, porém mais

a frente essa questão moral será retomada.

Em O Crepúsculo dos Ídolos, que manifesta as principais ideias

de Nietzsche, “uma grande declaração de guerra” (NIETZSCHE,

2007, p. 8), vemos a caracterização de um tipo fisiológico: O

sábio. “Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o

mesmo julgamento da vida: ela não vale nada...[...]” ( NIETZSCHE,

2007, p. 17) Essa avaliação não deve ser tomada como tal, mas

devemos observar o solo de onde ela surge. O consenso dos

sábios como uma morbidez incurável, que a todo momento nega a

vida. “Até mesmo Sócrates falou, ao morrer: “viver –

significa há muito estar doente...” [...]” (NIETZSCHE, 2007,

p.18) Essa caracterização se mostra como diminuição da

vontade, que como visto antes tem tendência ao crescimento,

esse abatimento seria resultado de uma forma de vida

declinante. É uma investigação que procura encontrar os

sintomas de um processo de décadence, que tem uma de suas

gêneses no fim da Grécia clássica, assim os elementos que

formam a fisiologia socrática são decadentes pois o momento se

articula assim: Mas Sócrates intuiu algo mais. Ele enxergou

37

por trás de seus nobres atenienses; entendeu queseu próprio caso, sua idiossincrasia de caso já nãoera exceção. A mesma espécie de degenerescência jáse preparava silenciosamente em toda parte: a velhaAtenas caminhava para o fim.[...] Em toda parte osinstintos estavam em anarquia. (NIETZSCHE, 2007, p.21).

À título de explicação e reiterando o que foi dito

anteriormente, quanto aos problemas de interpretação: “Juízos,

juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem

ser verdadeiros, afinal; eles tem valor apenas como sintomas,

são considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos

são bobagens” (NIETZSCHE, 2007, p. 18) Como compreender essa

afirmação sem voltar esse mecanismo contra o autor, isto é,

como não aplicar essa sintomatologia também a Nietzsche, ou

seja, considerando sua doutrina da vontade de potência também

apenas como sintoma? Ele fez essa aplicação e em seus textos

podemos observar o interesse do autor em constituir uma auto-

análise. Além de ser filho de um tempo de decadência, um homem

moderno, “Nietzsche compreende-se ao mesmo tempo como “oposto de

um décadent”, como “sadio no fundamento”. Por ser ambos, pode

“transtrocar perspectivas”; pode “a partir da ótica de doente” olhar

para o mais sadio e, inversamente, a partir da riqueza da vida

“olhar para baixo” e ver o secreto trabalho do “instinto de

décadence”.” (MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 6) Nesse ponto é preciso

entender a análise como uma forma de psicologia e devemos

“Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade

de potência” (NIETZSCHE, 2006, p.27).

Mas o que quer dizer isto?

38

Essa investigação, que no mesmo texto o filósofoalemão chama de fisiopsicologia, pode ser entendidacomo a análise da relação que as produções humanasestabelecem com a vida. Livre de concepções morais,ou seja, da noção de bem e mal absolutos, ainvestigação nietzschiana não considera asproduções humanas boas ou más, mas sintomas dadinâmica de impulsos do organismo que as produz.(FREZZATTI, 2008, p. 304)

O sintoma não é um correspondente direto, isto é, um

indivíduo muito preocupado com a busca pela verdade não é

alguém sábio, e sim há aí um sintoma que é expressão de uma

busca por mais potência, isto é, nele há um desejo de saber,

que não poupa esforços para descobrir o que está encoberto

(como visto na ideia de química dos conceitos). Esse será seu

diagnóstico a respeito do sábio, e de sua vontade de verdade

em relação à vida: “Antes de Sócrates se rejeitava, na boa

sociedade, as maneiras dialéticas: eram tidas como más

maneiras, eram comprometedoras.” (NIETZSCHE, 2007, p.19) Esse

caso de análise fisiopsíquica é na realidade bastante complexo

e não será possível dar conta dele, contudo fica clara a

relação da sociedade com o corpo. A degeneração fisiológica

não é causada pela décadence, mas sim o contrário, um sintoma

desta.(NIETZSCHE, 2007, p. 40) E o que vem a ser este estado,

isto é, o que quer dizer décadence? Expresso sob a

conceituação da vontade de potência seria a desorganização: o

quantum de potência na relação com os demais quanta não tem

como resultado uma organização.

Antes de concluir esta questão sobre os sintomas da

décadence é necessário compreendermos seu estudo sobre a

39

moral, pois a décadence tem relação com um processo que o

autor descreve remontando a pré-história.

2.2-Os tipos psicofisiológicos

Entre os tipos descritos pelo pensador dois são centrais:

o nobre e o plebeu. “O homem nobre afasta de si os seres nos

quais se exprime o contrário desses estados de elevação e

orgulho.” (NIETZSCHE, 2006, p. 156) Estados vindos de sua

força e autoconfiança. Como à frente no mesmo aforismo: “O

homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si

mesmo, que entende de falar e de calar, que com prazer exerce

rigor e dureza consigo e venera tudo o que seja rigoroso e

duro.” Tais são as características do tipo nobre, marcadas

pela moral da origem, e em contraposição o tipo plebeu, que

tem sua moral pautada no ressentimento, na culpa e nos ideais

ascéticos.

O ressentimento “dos seres aos quais é negada a

verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por vingança

imaginária obtêm reparação.” (NIETZSCHE, 2010, p. 26) A culpa

ou má consciência que é reflexo da ação que não alcança o

40

resultado buscado pelo homem. Já o ideal ascético está

relacionado a fuga da realidade que se apresenta brutal e sem

sentido, que se expressa na forma de crença, pois mesmo um

ceticismo radical se pautaria na fuga de uma dúvida

angustiante. É esse o caso do niilismo. Que se explica, de uma

forma simples, pela negação da realidade através de algum

artifício teórico. Essas são as expressões do tipo fisiológico

plebeu ou escravo.

Entretanto, o texto abre a interpretação para a

possibilidade de uma gama de tipologias. É importante esboçar

mais duas delas para o entendimento do projeto estético, o

artista e o comediante. A caracterização dessas tipologias, as

centrais já foram esboçadas, é o cerne para conseguirmos

pensar numa perspectiva sobre a arte que leve em conta o homem

como participante da realidade e se oriente pela doutrina da

vontade de potência.

No início de A genealogia da Moral o pensador alemão inicia

uma definição para os ideais ascéticos, apontando a relação

intrínseca entre esta ideia e o artista. Ele não pode ter no

trabalho com esse conceito uma concepção, pra ele os ideais

ascéticos “não significam nada” ou “coisas demais”. Essas

posições estão relacionadas com a maneira de ver própria deste

tipo. No mesmo livro atesta esse modo de compreensão que age

no artista: eles estão longe de se colocar independentemente nomundo, e contra o mundo, para que as suasavaliações, e a mudança delas, mereçam em siinteresse! Eles sempre foram os criados de quartode uma religião, uma filosofia, uma moral; […] Os

41

artistas não se sustentam por si sós... (NIETZSCHE,2010, p. 80).

O artista, sob esta aspecto, sempre está sob a guarda de

uma teoria. Será essa a perspectiva que se revelará na obra.

Afinal, “o que faz toda arte? Não louva? Não glorifica? Não

escolhe? Não enfatiza? Com tudo isso ela fortalece ou

enfraquece determinadas valorações...” A sua posição não é a

criação dos valores, mas a representação da realidade pautada

em valores já existentes. O ideal ascético nesse contexto

encontra espaço, pois busca valores distantes daqueles tônicos

ao privilegiar abstrações em detrimento da realidade. Sua

expressão é da ordem dos valores do ressentimento.

O problema socrático acima apresentado se configura na

mesma via, pois o filósofo grego expressa a negação da

realidade em razão de um plano ideal. “É a ironia de Sócrates

uma expressão de revolta? de ressentimento plebeu? Goza ele,

como oprimido, de sua própria ferocidade nas estocadas do

silogismo?”(NIETZSCHE, 2007, p. 20) A desorganização dos

instintos leva a uma superfetação lógica, isto é, a expansão

do racional a todas as instâncias da vida. Ao ponto de negar a

expressão de vida que foge deste padrão. Entretanto, no

artista nem sempre se consagram estes ideais. Isto é, a

representação artística nem sempre é tomada como expressão da

verdade. Quando isso acontece a arte é expressão de vida

empobrecida, que revela apenas a falta de organização das

forças do artista. Este não visa mais representar através da

obra, mas sim se legitimar.

42

O diagnóstico nietzschiano sobre esse problema se

configura a partir de duas críticas que podemos unificar sob o

nome, dado pelo autor em Gaia ciência, como o problema do ator.

As criticas são a Richard Wagner e a cultura moderna. Vimos

que no desenvolvimento de duas formas de moral opostas houve a

preponderância dos valores escravos sobre os valores nobres,

entretanto isso não foi o desaparecimento da ultima maneira de

avaliar. Ambas morais foram internalizadas na modernidade. Nos

aproximando destes valores podemos ver algumas destas

características. “A alma nobre tem reverência por si mesma”

(NIETZSCHE, 2006, p. 174).” Sua consciência se forma a partir

de um formidável dizer sim a vida, a partir de seu orgulho. Ao

contrário, o plebeu forma sua consciência como resposta ao

perigo vizinho, que é a expressão do modo de ser nobre. O

ressentimento e a culpa são expressões de sua autopreservação,

enquanto que a nobreza é uma demonstração de liberdade e

soberania. Ao caracterizar a modernidade, Nietzsche considera

que são esses valores juntos que passam a habitar o homem, o

que leva ao caráter do homem moderno ser o de um comediante

(um bufão), que sempre necessita de uma máscara. O moderno é

aquele que nega e afirma a vida com o mesmo fôlego. É a

expressão da decadência na moral da crença na origem.

O homem de uma era de dissolução e de mestiçagemconfusa, que leva no corpo uma herança deascendência múltipla, isto é, impulsos e escalas devalor mais que contraditórios, que lutam entre si eraramente se dão trégua — esse homem das culturastardias e das luzes veladas será, por via de regra,um homem bem fraco: sua aspiração mais profunda é

43

que um dia tenha fim a guerra que ele é;(NIETZSCHE, 2006, p. 86)

Esse homem não tendo uma referência para sua realização

tenta inventá-la servindo-se da imitação tal como faz um ator,

ou em outra referência o bruxo: “Aquele que quer possuir um

povo: e todas as superiores artes de um Cagliostro7 ou

Catilina8 lhe parecem boas para este fim” (NIETZSCHE,

2006,p.82). O movimento desse homem será também na direção de

buscar mais força, mas a perturbação de uma guerra em seu

interior só possibilita que essa força escoe de maneira

inautêntica.

A respeito deste tema Ernani Chaves sublinha: “É no Caso

Wagner que podemos encontrar os esboços de uma tal fisiologia”

(CHAVES,) de ator. No início deste livro, Nietzsche, nos leva

a sua proposta de, mostrando a incapacidade de Wagner em

realizar uma obra de arte, fazer um elogio ao compositor

francês Georges Bizet9. “Tomemos que um filósofo exige de si

superar seu tempo.” (NIETZSCHE, 2002a, p.11) Na modernidade

ser filho de seu tempo é sinal de decadência, mas Nietzsche se

defende disso ao se reconhecer. Ele olha para os sinais de sua

época e vê na moral sinais de uma vida empobrecida, de um

grande cansaço. Realizar a tarefa deste olhar tem a

necessidade de voltar-se contra tudo que, no pensador, era

sinal de declínio da vida. Tais ele situa em Schopenhauer, nos

7 Alessandro Cagliostro: pseudônimo de Giuseppe Balsamo (1743 – 1795), aventureiro italiano praticante do ocultismo.8 Lúcio Sérgio Catilina(c.108-62 a.C.): político romano; chefiou conspiração fracassada contra o Senado.9 Georges Bizet (1838-75): compositor francês, autor da ópera Carmen.

44

sentimentos modernos de humanidade e em Wagner. “Wagner resume

a modernidade”(NIETZSCHE, 2002a, p.10). Nestes temas do

prólogo ele aponta algumas das questões que irão permear o

livro, mas antes ressalta tanto a decadência de seu tempo como

a necessidade de, tendo possibilidade de transtrocar

perspectivas, avaliar esse processo de enfraquecimento.

Em seguida passa a nomear as diferenças entre uma boa

música, Bizet, e uma ruim, Wagner:Esta música me parece perfeita. Aproxima-se leve,sutil, com polidez. É amável, não transpira. “O queé bom é leve, tudo divino se move com pésdelicados”: primeira sentença da minha estética.Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: noentanto permanece popular – ela tem o refinamentode uma raça, não de um indivíduo. É rica. Éprecisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é ocontrário do pólipo na música, a “melodiainfinita”. Alguém já ouviu num palco entonaçõesmais dolorosamente trágicas? E a maneira como sãoobtidas! Sem caretas! Sem falsificação! Sem amentira do grande estilo! – Por fim: esta músicatrata o ouvinte como pessoa inteligente e até comomúsico.” Que se diferencia da hipnose porrepetição. “Tudo o que é bom me faz fecundo . Nãotenho outra gratidão, nem tenho outra prova paraaquilo que é bom. (NIETZSCHE, 2002a, p. 12)

A construção do compositor francês possui passos

calculados, pois apreende o necessário sabendo podar e impedir

o peso, isto é, unidades soltas que o todo se esforça em

relacionar. Além dos pés delicados ela mede quem irá atingir,

possui noção de peripécia10 e contraponto, sabe escolher seus

10 Peripécia: Segundo Aristóteles, é um dos elementos fundamentais da tragédia, mais precisamente do enredo trágico. Consiste na mudança súbita de condições ou destino, que deve ocorrer de modo verossímil e necessário. (ABBAGNANO, 2000, p. 758)

45

elementos e dispor de maneira a serem uns consequência dos

outros. Assim, cria os conflitos, os hierarquiza e conclui.

Também dá a percepção do ouvinte as noções a respeito dessa

arte, por sua clareza enquanto músico, que por esse meio torna

a mente fecunda não apenas para a música. Em contraposição há

Wagner: As caretas, a falsificação e a mentira do grande

estilo. Seriam estas características que dão a tônica desse

tipo fisiológico. A careta que é o exagero da expressão, a

falsificação que é esconder aquilo que está realmente sendo

feito e a mentira do grande estilo que é um conceito mais

complexo, pois a música de Wagner tenta desfazer o conflito

para afirmar seu poder.

O mais alto sentimento de poder e segurança adquireexpressão naquilo que tem grande estilo. O poderque já não tem necessidade de demonstração; quedesdenha agradar; que dificilmente responde; quenão sente testemunha ao seu redor; que vive semconsciência de que há oposição a ele; que repousaem si mesmo, fatalista, como uma lei entre as leis:isso fala de si na forma do grande estilo.(NIETZSCHE, 2007, p.70).

Assim, no compositor alemão o que marca é a necessidade

de, como um pólipo, se apoiar em algo, em uma melodia

inovadora, para assim conseguir sobreviver. O resultado é o

vazio de uma “melodia infinita”.

Wagner inicia sua carreira se perguntando sobre a origem

do mal e como resposta obtêm, idealista, “dos contratos da

velha sociedade”(NIETZSCHE, 2002a, p.17) Siegfried11 é aí o

11 Siegfried: Herói da mitologia nórdica e protagonista de duas óperas de Richard Wagner.

46

revolucionário típico, mas quando Wagner se converte ao

pessimismo também retira todo o caráter transgressor presente

na obra. Brunilde12 não canta o amor livre, mas a vida como

busca pelo nada. E aí podemos diferenciar numa perspectiva que

compara o artista e o ator, pois o primeiro elege um ideal com

consciência de sua parcialidade, ou seja, de sua

impossibilidade de olhar neutro (Brunilde canta o amor livre).

Ele faz uma escolha do que será cantado, enquanto aquele que

“rende graças ao ideal ascético” procura cantar o mundo, e não

tendo a capacidade para compreender a realidade como

impossível de ser valorada, acaba cantando o desejo pelo nada.

Esses temas se desenvolvem até o aforismo 5 da obra e

todos eles expressam de modo pouco explícito a relação entre a

modernidade como expressão de décadence e os homens como

atores. É da metade para o fim que o livro se consagra como

critica ao ator, enquanto artista da prestidigitação e

Cagliostro. No aforismo 6 leva sua observação ao ponto de

vista daqueles que admiram Wagner: “Logo, para que a beleza?

Por que não o grandioso, o elevado, o gigantesco, o que move

as massas? – Repito: é mais fácil ser gigantesco do que belo;

nós o sabemos...” (NIETZSCHE, 2002a, p. 20-21) Aqui é possível

observar a mentira do grande estilo ao mesmo tempo que vemos a

admiração pela ascese na rejeição da beleza por algo mais

elevado e que convença (mova as massas). “Quanto ao fazer

intuir: eis o ponto de partida do nosso conceito de “estilo”.

Sobretudo nenhum pensamento! Nada mais comprometedor que um

12 Brunilde: Valquíria da mitologia nórdica e personagem de duas óperasde Richard Wagner.

47

pensamento!” A necessidade de confiar não no pensamento

organizador, mas em alguma intuição divina. “Paixão – ou a

ginástica do feio na corda da enarmonia.” A paixão como

arrebatamento fácil, que não cria conflito, pois se legitima

sem barreiras. O enfraquecimento do conflito sonoro entre

linhas que contrapõem-se formando a harmonia, pois a

construção dessa contraposição é trabalhosa, já a paixão

sempre se entende. “Um último conselho, que talvez resuma

tudo. – Sejamos idealistas! […] Vaguemos por entre nuvens,

aliciemos o infinito, disponhamos ao redor os grandes

símbolos!”(NIETZSCHE, 2002a, p. 21-22) Tal é o que o autor, em

tom jocoso de denuncia, considera a expressão do modo de ser

do tipo ator. Wagner apenas interpreta um músico, pois busca

aumentar a “capacidade de expressão [elemento dramático] da

música. […] Quando um músico não consegue mais contar até

três, torna-se “dramático”, torna-se “wagneriano”[...]Wagner

praticamente descobriu que magia se pode exercer ainda com uma

música decomposta e, por assim dizer, tornada elementar. […]

Wagner não calcula jamais como músico […] ele quer o efeito,

nada senão o efeito.”(NIETZSCHE, 2002a, p. 25) A incapacidade

para a organização leva a busca pela solução mais fácil. Os

nós do enredo de Wagner são relacionados sempre ao efeito, e

não mede as consequências dos efeitos. (NIETZSCHE, 2002a, p.

25) Quando se é hospede ingênuo um anfitrião sagaz agrada sem

muito custo,assim o compositor alemão conseguiria agradar sem

esforço por ter espectadores ingênuos, isto é, o público

moderno. “Nós, porém, que dos livros e da música exigimos

48

sobretudo substância, estamos mal servidos em mesas apenas

“representadas”, e nos vemos em situação pior.”(NIETZSCHE,

2002a, p. 25) Esse é o diagnóstico do ator em relação ao

artista, pois o artista cria algo com substância por seu

distanciamento da realidade, enquanto o ator apenas sobrevive

representando. “Um novo espírito vigora no teatro, desde que oespírito de Wagner o governa: exige-se o maisdifícil, repreende-se duramente, raramente se louva– o bom, o excelente é tido como regra. Gosto não émais necessário; nem mesmo voz. Canta-se Wagnerapenas com voz arruinada: o efeito disso é“dramático”. Mesmo o talento é excluído. Oexpressivo a todo custo, tal como exige o idealwagneriano, o ideal da décadence, combina mal com otalento. Pede apenas virtude – isto é, treino,automatismo, “abnegação”.”(NIETZSCHE, 2002a, p. 32)

Enfim, para Nietzsche, o compositor alemão é a ascensão

do ator na música, tal como “em culturas em declínio, onde

quer que as massas tenham a decisão, a autenticidade se torna

supérflua, desvantajosa, inconveniente. Apenas o ator ainda

desperta o grande entusiasmo.” Afirmação que se coaduna com

sua interpretação da modernidade, tal como:Todo mal que depende de uma vontade forte – etalvez não haja mal sem a força da vontade –degenera em virtude, neste nosso ar tépido... Ospoucos hipócritas que conheci estavam imitando ahipocrisia: eram atores, como uma em cada dezpessoas nos dias de hoje. –”(NIETZSCHE, 2007, p.74)

E também em:Só o que é pequeno pode hoje ser feito bem, serfeito magistralmente. Apenas nisso é ainda possívela retidão. – mas nada pode, no principal, curar amúsica do principal, da fatalidade de ser expressão

49

da contradição fisiológica – de ser moderna.(NIETZSCHE, 2002a, p. 40)

No epílogo de O caso Wagner há um intenso movimento entre

a questão de duas morais e como elas se apresentam como tipos

fisiológicos e expressões artísticas, que são apresentadas

através de seu método:“Darei minha concepção do que é moderno. – Todaépoca tem na sua medida de força, também uma medidade quais virtudes lhe são permitidas, quaisproibidas. Ou tem as virtudes da vida acendente:resiste profundamente às virtudes da vidadeclinante. Ou é ela mesma uma vida declinante –então necessita também das virtudes do declínio,então odeia tudo o que se justifica apenas a partirda abundância, da sobre-riqueza de forças. Aestética se acha indissoluvelmente ligada a essespressupostos biológicos: há uma estética dadécadence, há uma estética clássica .[...] Naesfera mais estreita dos chamados valores moraisnão se encontra oposição maior do que aquela entreuma moral dos senhores e a dos conceitos de valorcristãos: esta, aparecida num solo inteiramentemórbido(– os Evangelhos nos mostram exatamente osmesmos tipos fisiológicos descritos nos romances deDostoiévski); a moral dos senhores (“romana”,“pagã, “clássica”, “Renascença”), ao contrário,sendo a linguagem simbólica da vida que vingou, queascende, da vontade de poder como princípio davida. A moral dos senhores afirma tãoinstintivamente como a cristã nega (“Deus”, “além”,“abnegação”, puras negações). A primeira partilha asua abundância com as coisas – transfigura,embeleza, traz razão ao mundo – , a segundaempobrece, empalidece, enfeia o valor das coisas,nega o mundo. “Mundo é um xingamento cristão”.(NIETZSCHE, 2002a, p.43-44)

Conclusão

50

Sob o aspecto de seu perspectivismo fica clara a

necessidade do autor tomar para si uma concepção de mundo,

pois mesmo que a avaliação estética da realidade seja a que

mais se aproxima da experiencia de vida humana, não é possível

deixar de fazer um julgamento sobre a vida. Fadado a falhar

Nietzsche constitui uma doutrina, que procura dar conta do

problema das causas. É a partir dessa que inaugura uma nova

perspectiva.

A vontade de potência se inscreve no óbvio, pois a

procura aqui não é pela verdade, mas por um caminho.

Importante frisar que sua intenção é tomar um único princípio

como qualidade para todo e cada existente, isto é, um conceito

capaz de fornecer uma qualidade para todo acontecer. E esta

seria vontade de potência e nada mais. Qualquer expressão

humana passa a ser interpretada como expressão dessa vontade,

que se legitima na figura mais forte que ao entrar em conflito

domina outra e assim constitui um novo formato para esta

guerra. O mais importante nessa configuração não está na

vitória ou derrota, mas a forma de organização que será

imposta, pois é através da hierarquia que se constroem as

diferenças entre vontades.

Essa ideia transposta para o homem é colocada como

análise de tipos fisiológicos. Numa tal situação de múltiplos

conflitos não é possível fazer uma referência a biologia ou a

cultura, pois não há possibilidade de dissocia-las. O trabalho

tipológico é fértil nessa questão, pois há tanto o indivíduo,

quanto o grupo a qual ele está ligado, mas também em relação a

51

todo existente. Os tipos apresentados são diversos, mas o foco

de nossa investigação será a alusão a dois responsáveis pelas

maiores expressões morais na história: o nobre e o escravo.

A expressão nobre está ligada a vida, é expressão da

vida. “Ter de combater os instintos – eis a fórmula da

décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a

instinto.” (NIETZSCHE, 2007, p. 22). Nesse caso não são

necessárias regras externas, pois internamente tudo é bem

coordenado, e isso é o que caracteriza a forma de vida que

ascende. O nobre louva a vida em cada acontecimento, então uma

arte que fale de valores nobres será afirmadora da vida. Suas

características são a leveza, que expressa fatalismo. É a

aceitação do devir, ou melhor, o amor ao devir. Também a

felicidade, a qual é causa da ação do nobre e não um efeito.

Outra característica é o pudor. A arte visa revelar apenas o

necessário, mas ao fazer isso procura também esconder. É tal

como na escrita de Nietzsche, que ao dar margem a má

interpretação faz uma crítica a tendência do homem de julgar

de antemão. Podemos ver essa noção na maneira nobre de nomear,

mencionada na Genealogia da Moral, pois nela não há a tentativa de

clareza, mas a de organização resultado da dominação. A função

de comunicação não é a mais importante aqui. É ela o caminho

que, segundo o filósofo alemão, leva a alguns enganos.

A música de Wagner se mostra como o alvo da crítica do

filósofo alemão. A função de comunicação desta é o principal

na investigação, pois a arte esta é em grande parte um teatro

exagerado:

52

“Um novo espírito vigora no teatro, desde que oespírito de Wagner o governa: exige-se o maisdifícil, repreende-se duramente, raramente se louva– o bom, o excelente é tido como regra. Gosto não émais necessário; nem mesmo voz. Canta-se Wagnerapenas com voz arruinada: o efeito disso é“dramático”.(NIETZSCHE, 2005a, p.32)

E mentiroso:“A diminuição da força organizadora; o mau uso dosmeios tradicionais, sem a capacidade justificadora,o “a-fim-de”; a falsificação ao imitar grandesformas, para as quais ninguém hoje é bastanteforte, orgulhoso, seguro de si, saudável; avivacidade excessiva no que é ínfimo; o afeto atodo custo; o refinamento como expressão da vidaempobrecida; cada vez mais, nervos no lugar dacarne.”(NIETZSCHE, 2005a, p.40)

Fica clara a incapacidade para formas próprias e a

necessidade de copiar aquilo que já encontrou grande efeito. A

capacidade apenas para reproduzir o efeito, o que só encontra

sua arte no teatro:

“Em Wagner se encontra no início a alucinação:não de sons, mas de gestos. Ele busca então asemiótica de sons para os gestos. Querendo admirá-lo, observemo-lo a trabalhar nisso: como separa,como obtém pequenas unidades, como as anima, lhesdá relevo e as torna visíveis.”

“Em sua arte [de Wagner] se encontra, misturado da

maneira mais sedutora, aquilo de que o mundo hoje tem mais

necessidade – os três grandes estimulantes dos exaustos: o

elemento brutal, o artificial e o inocente

(idiota).”(NIETZSCHE, 2005a, p. 19) O elemento brutal, tal

qual a careta, é o exagero gerado pela falta de força. Mostra

53

a falta de instinto agressivo, isto é, o brutal surge quando o

impulso não é capaz de organizar a agressividade. O artificial

é a incapacidade para formas próprias já citada. E o inocente

como ausência de capacidade para avaliar. Seriam estes os

tipos exaltados por Wagner. Elementos esses que ficam claro em

sua relação com uma música “apenas para os nervos”, que

exprime uma negação do corpo, um elogio a castidade e a

superexcitação da mente. Esta última dá o caráter de hipnose

da música wagneriana, que ao renegar a hierarquização na

construção se vale de uma aglutinação (a melodia infinita). Se

colocarmos como contraponto a obra de Bizet fica perceptível o

elogio a mente em detrimento do corpo: Os personagens do

compositor alemão estão sempre em busca da redenção (de uma

cura para o que são, de uma salvação ou algum outro ideal

ascético), enquanto em Carmen13 vemos uma concepção mais nobre

na qual o desenrolar é resultado dos instintos e ações, que

vão se sobrepondo e construindo hierarquia. A solução simples

se encontra apenas na expressão décadent ou moderna:

“Como se caracteriza toda décadence literária?Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. Apalavra se torna soberana e pula fora da frase, afrase transborda e obscurece o sentido da página, apágina ganha vida em detrimento do todo – o todo jánão é um todo. [...] O todo já não viveabsolutamente: é justaposto, calculado, postiço, umartefato.”(NIETZSCHE, 2005a, p. 21)

Sem a organização não é possível que “a arte, na qual

precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa

13 Famosa ópera de Bizet.

54

consciência a seu favor […]” consiga se expressar como

representação de uma perspectiva do mundo. (NIETZSCHE, 2010,

p.132)Como dito anteriormente o artista é para quem os ideais

ascéticos não tem um sentido explícito, pois para eles só

importa ter uma visão de mundo para expressar. A guarda de um

ideal deste tipo vai contra o desejo do artista de mentira e

em alguns casos se expressa como desejo de impor sua

representação na realidade. Reafirma-se assim a fuga da

seriedade do sistema em função da embriaguez da máscara.

No aforismo 8 das Incursões de um extemporâneo do Crepúsculo dos

ídolos chama a atenção o papel da embriaguez como tônico para a

energia, isto é, como afirmadora da vida. Já afirmando a

necessidade de superar a dura seriedade, e ao mesmo tempo

colocando esse estado lúdico como fundamental para atingir a

abstração para produzir uma obra de arte que “ressalte

enormemente os traços principais, de modo que os outros

desapareçam.” (NIETZSCHE, 2007, p.). É essa a capacidade que a

racionalização proposta na tradição filosófica frustra,

revelando o que deveria aparecer apenas em suas formas

fundamentais. Essa aspiração (à razão), como qualquer outro

ideal, estaria privando a produção humana de se expressar como

falsa e parcial.

A concepção de uma estética que concebe o mundo em seu

aspecto falso, que é o único que podemos constituir, lança mão

da construção de uma doutrina (vontade de potência) como

ferramenta de investigação para delinear uma genealogia da

cultura, procurando as forças humanas como sintomas de formas

55

de ser em luta pela auto-legitimação, as quais abrem a

possibilidade de uma análise de tipos psicofisiológicos. Este

é o contexto proposto por Nietzsche para um fisiologia da

arte, que seja a expressão de um amor ao fato. Os pés leves, o

prazer na crueldade, a felicidade que justifica a vida, a

fatalidade e a aproximação da sensibilidade são manifestações

de boa organização, de uma arte nobre, e cuja expressão cria

como sombra os imitadores de seu grande estilo.

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