memórias revisitadas na gastronomia-a onda rétro
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Memórias Revisitadas na Gastronomia: A Onda Rétro1
Cynthia Arantes Ferreira Luderer 2
UNIMONTE
Resumo
Apoiada no conceito de campo bourdiano, Luderer (2013) nomeia o cenário e os agentes que
fazem parte do espetáculo da gastronomia na contemporaneidade como campo da
gastronomia. Muitos discursos, que excedem as questões nutricionais, convocam os
comensais ao consumo nesse campo e, dentre eles, os que remetem à memória. Assim, o
objetivo deste estudo foi analisar as narrativas difundidas nesse campo que versassem a
memória. A análise, de caráter qualitativo, foi embasada em fontes bibliográficas e em
publicações veiculadas em mídias que tratassem sobre gastronomia. Com este estudo,
verificou-se que o campo da gastronomia é uma fonte de estudo para investigar a memória e,
diante das narrativas investigadas, foi conferido que há uma onda rétro nele instalado.
Palavras-chave: gastronomia; memória; campo da gastronomia; consumo; rétro.
A proposta deste trabalho está amparada na tese apresentada por Luderer
(2013), que, apoiada em Debord (2005), analisou o espetáculo midiático entorno da
gastronomia contemporânea. Muitos agentes, incluindo instituições, contribuem para
movimentar esse espetáculo instaurado, como: chefs, restaurateurs, críticos
gastronômicos, assessores de imprensa, jornalistas, nutricionistas, associações,
coordenadores e alunos de cursos de gastronomia, entre outros. Ao encenarem seus
papeis, esses vários personagens consomem e, consequentemente, divulgam
comportamentos relacionados ao universo da alimentação, porém, suas condutas
excedem aos princípios relacionados à funcionalidade nutricional dos alimentos. Ao
analisar esse cenário gastronômico, a autora (ibidem), apoiada no conceito de campo
bourdiano, defende que se organizou um campo da gastronomia na
contemporaneidade, o qual é mantido por vários atores sociais, como os
exemplificados acima.
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo, Memória: Cenas Culturais e
Midiáticas, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Doutora e mestre em comunicação e semiótica, pela PUC-SP. Graduada em História, Pedagogia,
Gastronomia e especialista em Gestão em Negócios-foco pela qualidade. Professora do curso de
gastronomia da Unimonte. [email protected]
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Assim como um campo cultural é movimentado por um capital cultural (BOURDIEU
& WACQUANT, 2005), Luderer (2013), apoiada pela proposta apresentada por Nacaratto &
LeBesco (2012), afirma que o capital culinário é o capital cultural circulante nesse campo.
A complexidade que abarca a alimentação permite que muitos temas a
tangenciem, porém, neste trabalho, o propósito foi discorrer sobre a memória que
transpassa esse cenário gastronômico contemporâneo. Desse modo, a pergunta que
instigou esta pesquisa foi: como a memória é narrada no campo da gastronomia?
Para respondê-la, o objetivo deste trabalho foi analisar as narrativas desse
campo quando versam sobre memórias. Para atingi-lo, foram estudados os conceitos
de memória e pesquisadas as narrativas contemporâneas expressas no campo da
gastronomia que estivessem relacionadas aos princípios mnêmicos.
Este artigo, de cunho qualitativo, foi metodologicamente amparado em fontes
bibliográficas. As divulgações midiáticas contemporâneas, segmentadas em
gastronomia de luxo, também foram pesquisadas, pois serviram como corpus para as
análises desenvolvidas neste estudo. Como apoio teórico, este trabalho se amparou na
pesquisa apresentada por Luderer (2013), que trata sobre o espetáculo da gastronomia
entorno do consumo da alimentação de luxo. Quanto aos aspectos da memória,
contribuíram os estudos desenvolvidos por Nunes (2001; 2013) entre outros autores.
Sabores da Memória
Para Bakhtin (1987, p. 145), “o encontro do homem com o mundo que se
opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos
e mais marcantes do pensamento humano”. Desse modo, não é de se estranhar que a
gastronomia tenha passado a ser destaque no espetáculo midiático contemporâneo,
pois, além da alimentação ser um exercício inerente à sobrevivência humana, é um
tema que oferece muitas variantes temáticas para serem narradas e divulgadas pelos
meios de comunicação.
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Antes de seguir, é importante esclarecer de quais memórias gastronômicas se
propõe a tratar neste trabalho. Elas se diferem das propostas culinárias que possam
estar relacionadas com as ditadas como bem cultural e imaterial (PRESIDÊNCIA,
2000). Também se esquivam das referentes à arte clássica da memória, como exposta
por Erasmo [de Rotterdan] (YATES, 1966, p. 147), implicadas às questões racionais e
aos métodos de memorização. Esgueira-se ainda sobre a ampliação de memórias
instaladas em suportes artificiais, virtuais e midiáticos (SFEZ,1993, p. 284).
Portanto, neste trabalho discutiremos uma memória, alicerçada na cultura,
movimentada e amparada em seu processo de (re)construção. Desse modo, buscamos
“a memória organizada e formatada no tecido midiático [que] comporta-se como traço
evolutivo expandido na semiosfera, reino dos signos, por intermédio de um intrincado
arranjo de memes3” (NUNES, 2001, p. 23). Uma memória imbricada à cultura,
evolutiva, cujos “artefatos evoluem na semiosfera, paisagem biossimbólica,
submetidos a uma cadeia comunicativa-mutação, variação, seleção, replicação e
transmissão” (ibidem). Posto isso, a afirmação de Halbwachs (2004) nos é cara. Para
ele:
quando um grupo humano vive durante muito tempo em um lugar adaptado a
alguns costumes, não só seus movimentos, mas também seus pensamentos se
regulam segundo o sucesso de imagens materiais que lhes oferecem os
objetos exteriores. (ibidem, p. 137).
Pierre Achard et al (1999) também contribuem para as nossas reflexões, pois:
um texto dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua
estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia seguindo uma
diferenciação das memórias e uma diferenciação das produções de sentido a
partir das restrições de uma forma única (ibidem, p. 17)
Le Goff (1990, p. 411), ao expor que “A memória, [é] onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”
e alenta o aspecto da memória arrolada a um movimento que se volta para o futuro, e
3 Esse termo, que será discutido a seguir, foi apresentado pelo biólogo Richard Dawkins, e alude,
metaforicamente, a um gene, como um princípio genético, porém que se replica na cultura.
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“o futuro, tal como o passado, atrai os homens de hoje, que procuram suas raízes e sua
identidade, e mais que nunca fascina-os” (ibidem, p. 196). No que tange à questão da
identidade, é importante salientar:
[...] que as identidades culturais não estão inscritas no patrimônio genético de
uma sociedade, mas incessantemente se modificam e são redefinidas,
adaptando-se a situações sempre novas, determinadas pelo contato com
culturas e identidades diversas. O confronto com o outro permite não apenas
avaliar, mas criar a própria diversidade. As identidades, portanto, não existem
sem as trocas culturais, e proteger a biodiversidade cultural não significa
enclausurar cada identidade numa concha, mas, sim, conectá-las.
(MONTANARI, 2009, p.12)
Assim, para entender a memória nesses processos de modificações,
redefinições e adaptações identitárias, relacionada ao campo da gastronomia, é caro
conferir o conceito de memes, trabalhado por Nunes (2011; 2013), sob a ótica da
comunicação, e por Dória (2009), especificamente, na gastronomia. Este autor
(ibidem, p. 146) elucida o conceito de meme como “unidades, como se fossem vírus,
[que] ‘pulam’ de cérebro para cérebro”. Para ele “A receita [culinária] é um meme”.
Os meios de propagação dos memes são inúmeros: a palavra escrita, falada, o
exemplo e assim por diante [...]. E do mesmo modo como os genes pulam de
um corpo para outro por intermédio do espermatozoide e do óvulo, o meme
viaja pelo cérebro que conseguiu atingir através das formas indicadas. Desse
ponto de vista, [o chef francês Paul] Bocuse nos ‘passou’ vários memes em
seu livro, e certamente tanto ele como nós fomos usados como hospedeiros
[...]. (ibidem)
Para Nunes (2013, p.48), o meme é “um replicador, uma unidade de
transmissão cultural, uma unidade de imitação” e, além da estabilidade, “é a
fecundidade ou velocidade de replicações que determinará o sucesso do meme, sob a
forma de frequência de circulação” (ibidem, p. 49).
Sfez (1993), quando explica o vocábulo memória, ratifica e amplia a citação
de Nunes. Para ele, os objetos antigos, de acervos, só ganham valor quando são
reconhecidos pelas memórias dos indivíduos, e a mídia introduziu um processo
inovador por “[...] ter a capacidade de manter os vestígios e apresentar dispositivos de
reconhecimento e atualização [desses objetos/acervos]” (SFEZ, 1993, p. 284).
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A singularidade das memórias gustativas
As formas e materiais que compõem e apresentam os objetos são textos
comunicativos (BAUDRILLARD, 1969; LOTMAN, 1996) e, na gastronomia, as
louças e utensílios impregnam complexas mensagens aos alimentos quando são
servidos (LUDERER, 2013; MARCHESI & VERCELLONI, 2010). Assim, além do
olor, da temperatura, da textura, da cor e do sabor, uma iguaria ganha outras
dimensões perceptivas à vista do comensal. Desse modo, afora os vários aspectos
químicos e físicos que interferem para o resultado do sabor de um alimento, é
importante atentar à composição textual na qual a comida está inserida e se apresenta.
Esse arranjo contribui para oferecer diferentes valores a ela.
Além dos objetos, as estratégias de marketing e de publicidade - incluindo-se
as embalagens -, são mensagens importantes que adicionam valor, ou não, aos
alimentos, diante dos olhos de um consumidor comensal. Para Gimenes-Minasse &
Pellerano (2012, p. 135), “as embalagens dos produtos dão pistas das relações que a
indústria alimentar pretende criar para o consumidor”. No espetáculo da gastronomia,
o valor de uma marca é outro quesito relevante. Semprini (2006) afirma que:
o que determina o principal valor de uma marca é o conhecimento que os
consumidores têm, e o fator-chave deste conhecimento é a memória do
consumidor ou, mais precisamente, os resíduos que a marca deixou em sua
memória. (ibidem, p. 132)
Afora as contíguas mensagens relacionadas às comidas proclamadas nos
media, é relevante lembrar das narrativas expressas pelos agentes que fazem parte do
campo da gastronomia. Eles difundem mensagens nos meios virtuais, em cardápios de
restaurantes, em trocas de receitas culinárias, que contribuem para promover ou
dizimar determinadas iguarias no meio cultural.
Para Luderer (2013), a moda opera como um ditame no campo da
gastronomia, mas por trás dos modismos está um abrangente universo de gostos, que
se organizam de modo complexo, e pode ser visto à luz de Morin (2001). Assim, a
gastronomia oferece diferentes textos sobre alimentos, receitas, pratos, produtos
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industrializados, vocábulos específicos, conselhos da ordem da saúde, entre outros.
Essas mensagens, ao se organizarem na cultura, passam por um processo de seleção.
Igualmente se introjetam nesse complexo quadro outras narrativas, histórias e
memórias coletivas e individuais. Quando percebidas por outros, essas textualizações
ganham diferentes valores diante da pluralidade de vivências e memórias dos sujeitos.
Na dança das comidas, elas são selecionadas ou rejeitadas, pois o repertório mnêmico
dos indivíduos se organiza em uma diversidade de questões, que circula pelas
referências econômicas, políticas, religiosas e biológicas. Um conjunto de convicções
contribui para o apreço ou rechaço de alimentos como: insetos ou vermes, cães e
cavalos ou a carne de vaca (HERNÀNDEZ & ARNÀIZ, 2005; DÒRIA, 2009).
Quanto à seleção de iguarias, na contemporaneidade, os onívoros têm ganhado
fichas do capital culinário, e destacam como elite por terem mais experiências
gustativas (LUDERER, 2013, p. 191; NACCARATO & LeBESCO, 2012, p. 9).
Alguns modelos alimentares, antes refutados, ao serem proclamados no espetáculo da
gastronomia, passaram a ter mais aceitação. Bell apresenta suas arguições:
A complexidade dos códigos é tão grande que não conseguimos compreender
devidamente o papel das mercadorias no trabalho de identidade de outros
grupos sociais. Em vez disso, o gosto é usado como marca de
reconhecimento [...] O gosto se voltou para dentro, para definir a associação a
grupos e não para marcar distinções - reconhecemos nossos pares pelo que
comem e onde comem e conseguimos nos sentir em casa toda vez que
entramos em um restaurante e sentimos que este é o nosso lugar. A
comensalidade aqui confere igualdade aos membros da nova tribo, confiança
na nossa capacidade de reconhecer códigos culturais compartilhados - um
porto seguro, como um antídoto à confusão oscilante que nos bombardeia
quando tentamos compreender o outro: diga-me com quem comer e te direi
quem és.
[...] a onivoridade começa a se parecer com uma compulsão, um transtorno
alimentar específico da classe média, compulsão de comer tudo para estar
aberto a tudo, de mastigar tudo, esperando que os ‘melhores pedaços’ possam
construir um novo você [...] (BELL, 2005, p. 55)
Finkelstein (2005, p. 69), infere que “A sociedade de consumo coloca tudo à
venda, a comida não constitui uma exceção [...] [e foi] transformada em símbolo,
ícone, tropo, signo e status”. Para ela (ibidem, p. 70), “A comida tornou-se uma fonte
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de entretenimento, [...] [e] está mais relacionada com diversão e moda do que com
sustento”.
As tendências movimentam o campo da gastronomia e modelos nostálgicos
têm se destacado nesta década. Além de produtos rétro, as mensagens que abonam as
tradições culinárias também circulam no campo. Bell oferece uma explicação:
Atualmente, o mundo inteiro já foi conquistado e explorado, portanto a caça
se volta para dentro; mais precisamente, volta-se para o ‘outro interior’,
redescobrindo (ou reinventando) tradições perdidas (ou inventadas), que vão
desde fazer pães e bolos em casa até comer miúdos de aves. [...] [e] no auge
da dança da distinção, a busca por ‘outro interior’ se volta para hábitos e
gostos rejeitados pelas classes mais baixas durante a sua própria caminhada
ascendente, à medida que procuram seguir os gostos dos que vivem tentando
despistá-los. (BELL, 2005, p. 54)
Tais inferências contribuem para entender os modelos antigos e/ou
tradicionais que tangem no campo da gastronomia, porém, são necessárias outras
pesquisas para verificar a complexidade e o exercício mnêmico que cercam esses
modismos. Hérnandez & Árnaiz (2005, p. 167-168), inclusive, indicam que para
abordar as práticas alimentares é importante aplicar a etnografia, pois os modelos
quantitativos seriam insuficientes para revelar as razões que implicam o consumo de
alimentos, pois as escolhas dos indivíduos podem ser inconscientes.
Narrativas mnêmicas que abrem o apetite
No que se refere à busca por tradições perdidas (BELL, 2005, p. 53),
buscamos exemplos de mensagens que elucidassem propostas alimentares que
valorizassem modelos gastronômicas que remetessem a uma nostalgia e que
estivessem voltadas a uma tradição culinária.
As análises de revistas de gastronomia de luxo apresentadas por Luderer
(2013) ilustram muitos exemplos para serem selecionados e mencionados aqui, como:
a espera de uma hora em filas para se conseguir provar churros que são vendidos,
durante a madrugada, em um estabelecimento bastante simples da Mooca, um bairro
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popular e tradicional paulistano; as filas de três horas, ou mais, para provar os pratos
típicos do sertão do nordeste no restaurante Mocotó, localizado na Vila Medeiros,
periferia da capital paulista; os pratos habituais da tradicional culinária mineira, que
foram produzidos e vendidos por chefs renomados em um grande evento
gastronômico na cidade de Tiradentes, MG; receitas típicas ou ingredientes populares,
que ganham releitura por chefs destacados no campo da gastronomia, como a
sobremesa peruana mazamorra morada, ou o doce de abóbora com coco ou, ainda, a
aplicação do jiló ou quiabos na produção de iguarias refinadas; a divulgação de
receitas e testes dos tradicionais biscoitos bem-casados, por estarem em voga como
lembrancinhas para serem distribuídas em festas matrimoniais; o uso do popular sagu
aplicado na gastronomia, quando o ingrediente fez a vez de modernas cápsulas
moleculares - difundidas por técnicas da cozinha de vanguarda; ou os consecutivos
discursos que destacam os agentes da gastronomia que valorizam produtos regionais,
muitos dos quais deixaram de fazer parte das mesas dos brasileiros há muitos anos.
Outros exemplos estão em sessões nas revistas destinadas a divulgar os novos
artigos comercializados para diversos fins culinários, e alguns se destacam por suas
características rétro4. Um exemplo desse novo mercado foi o lançamento, em 2011,
de uma linha de eletrodomésticos da marca Brastemp que, segundo anunciado pela
revista Exame (GUIMARÃES, 2011), seria “uma nova linha de refrigeradores e
fogões, com design retrô e cores vibrantes”. Uma fala da diretora de marketing da
marca foi divulgada na matéria, e a profissional expunha o seguinte relato: “O nosso
cliente é irreverente, antenado e observamos que o retrô é uma tendência, de revisitar
o passado, mas reciclá-lo” (ibidem).
O blog Gastronomia Contemporânea publicou uma matéria destacando alguns
produtos retró que atendessem ao cenário da alimentação, e dentre eles estavam esses
itens da Brastemp. Intitulado como “seja moderno, seja retrô” (CASTELLI, 2011), o
artigo apresentou vários objetos com as características dos anos de 1950 e 60,
4 Optamos por usar a grafia original da língua francesa para designar o vocábulo. Porém respeitamos o
modo como os meios de comunicação os tem promulgado, como “retrô”.
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comercializados no mercado, exibindo, também, as respectivas empresas que os
comercializavam. Foram postados 25 comentários de seguidores com base no texto
divulgado, e 23 eram reconhecidos como do sexo feminino. Os significantes dessas
mensagens demonstraram o interesse dos participantes pelo consumo dos produtos
retro. Selecionamos alguns deles: “quero comprar [...] onde posso encontrar?”; “meu
sonho é ter uma cozinha retro”; “sempre quis ter uma cozinha como a de detalhes azul
água”; “que sonho essas cozinhas”; “ótima dica, minha avó tem uma geladeira
dessas”; “quero tudo”; “me apaixonei pela torradeira”; “o fogão a lenha é lindo
demais [...] a batedeira parece brinquedo”; “a lareira é muito cool”; “meu sonho é ter
uma cozinha assim bem retrô [...]”.
A Brastemp já havia investido no modelo rétro desde 2007. O blog Comes e
Bebes, de Marcelo Katsuki (KATSUKI, 2007), veiculado em Folha.com, já havia
divulgado um mini-refrigerador dessa marca, que foi enunciado por ele como:
“Objeto de desejo - geladeirinha vintage”. Ao destacar as características do design
rétro do produto, Katsuki salientou: “mas a tecnologia é de ponta!”. Desse modo, ele
esclarecia para o enunciatário que o moderno se mantinha presente. Ou seja, se
resgata um passado, mas ele é reciclado - como disse a diretora da marca Brastemp
para a revista Exame. Além de Katsuki ter destacado o eletrodoméstico com a
chamada “objeto de desejo”, a divulgação do preço do produto aludia que ele seria
uma daquelas peças que se sonha adquirir um dia. Essa mensagem, de idealizar o
objeto junto a um patamar onírico, foi expressa na última frase - do único parágrafo
do texto, que era ilustrado com a foto de uma “geladeirinha” vermelha -: “Mas como
diz aquele samba-enredo: ‘sonhar não custa nada...’(e bem que podiam fazer uma
versão ‘adega’)” (ibidem).
Katsuki é um agente que tem muitas fichas no campo da gastronomia, pois
além desse blog, ele cumpre outros papeis de destaque nesse campo, pois atua como
editor de arte de mídias digitais da Folha.com e como colunista da revista Prazeres da
Mesa - e esta publicação, segundo Luderer (2013), é uma das que se destaca no
campo da gastronomia, pois aplica várias estratégias que promove o espetáculo da
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gastronomia, movimentando e distribuindo as fichas do capital culinário para os
agentes desse campo.
Desse modo, a mensagem desse blogueiro/colunista, quando salientou o
modelo rétro em 2007, pode ter contribuído para fortalecer - e quiçá motivar o
consumo – desses produtos. No mais, é importante atentar aos significantes expressos
em 2011 pelos seguidores do blog Gastronomia Contemporânea, pois estão em
consonância aos expressos por Katsuki em 2007.
Além do resgate de designs de objetos comercializados em décadas anteriores,
a onda mnêmica também tem revisitado a indústria de alimentos. Em 2012, a marca
Nestlé anunciou a volta do chocolate Lollo com base no mote “Ele voltou”:
atendendo aos pedidos dos chocolovers, a Nestlé anuncia a volta de um dos
chocolates mais queridos do Brasil: Lollo, o chocolate fofinho da Nestlé.
Ícone da década de 80 e de toda uma geração de consumidores, Lollo volta ao
mercado com a receita original e mesma identidade visual, para encantar os
saudosistas e conquistas novos fãs. (NESTLÉ, 2012)
O resgate de Lollo foi tratado em Época Negócios, que destacou a matéria
com o seguinte título: “A onda retrô: o consumidor pediu e produtos antigos são
relançados - empresas percebem nostalgia do consumidor e relançam, com cautela,
produtos de décadas atrás” (A ONDA, 2012). Além da divulgação da geladeira
modelo rétro da Brastemp e do chocolate Lollo, o artigo ilustrava o relançamento do
achocolatado Brown Cow e da bolacha Mirabel.
Na mesma tônica dessa moda rétro, a revista divulgou outro texto, o qual
destacava uma lanchonete paulistana que se propôs a oferecer um serviço
diferenciado para agradar seus clientes: “restaurante lança entrega com funcionários
engravatados, em vespas” (ALMEIDA, 2012). Além da diferenciada proposta do
estabelecimento, o texto apresentou outros produtos, “artigos com cara de
‘antiguinhos [que] andam na moda” (ibidem), e, dentre eles, dois eram da área da
indústria alimentícia: a manteiga Aviação e o refrigerante Itubaína.
Nessa onda mnêmica, atenta-se que têm sido embalados modelos alimentares
que antes eram mantidos às bordas do campo da gastronomia, e verifica-se nas
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narrativas a tradição se sobrepondo ao moderno, ingredientes e produtos populares se
destacando, e a periferia passando a ser frequentada por uma elite. Luderer (2014),
apoiada em análises de um caderno segmentado em gastronomia e seu respectivo
blog, constatou como a tradição tem sido valorada como tendência pelos agentes
desse campo, porém se atina que esses resgates estão acoplados às novas tecnologias.
A carne cozida por horas, para lembrar a comida da vovó, é feita em um termomix!
No tocante aos novos modismos voltados para a tradição, Gimenes-Minasse &
Pellerano (2012) investigaram as feijoadas e os barreados que passaram a ser
produzidos industrialmente e, segundo elas:
[...] a indústria alimentar se apropria das tradições para enaltecer suas
criações. Estas estratégias envolvem significados complexos que tentam
atender ao desejo dos consumidores não só por formas mais práticas de
produção e consumo de alimentos, mas também por satisfação de uma perene
nostalgia alimentar. Em síntese: quer-se a comida tradicional, mas com a
praticidade e a rapidez contemporâneas. (GIMENES-MINASSE &
PELLERANO, 2012, 130)
Esses exemplos recaem sobre a afirmação de Finkelstein (2005, p. 75), que as
empresas de alimentos “[...] estão sempre desenvolvendo modismos nos gostos dos
consumidores com o intuito de promover os seus negócios”.
Esses interesses do mercado, que parecem se sobrepor, organiza novas
referências alimentares, e contribui para oferecer novos gostos aos agentes desse
campo. Também contribui para que algumas propostas culinárias sejam revisitadas, as
quais eram voltadas para as bordas e deixavam de ser ditadas ou apreciadas por elites.
Por sua vez, salientamos que esse conceito de bordas está apoiado na máxima
expressa por Jerusa Pires Ferreira, ou seja:
[n]aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros; entre as
culturas tradicionais reconhecidas como folclore a daqueles que detêm maior
atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos
populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas.
(FERREIRA, 1990, p. 10)
Além dessa contribuição, uma fala dessa estudiosa da cultura, apoiada em Iuri
Lotman, também nos é cara, pois nos oferece aproximar-nos de uma compreensão
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dessa instância mnêmica e do interesse pelas bordas que avançam no campo da
gastronomia. Para Ferreira (ADRIANO, 2012), “a cultura é a luta pela memória e pela
longetividade das informações” e, segundo a pesquisadora, “a tradição é o universo
que tem a memória como o suporte para a transmissão de seus repertórios, e mantém
a necessária ativação da memória que implica num funcionamento mais partilhado do
conjunto”.
Considerações Finais
Ainda que o cenário contemporâneo instigue sobre um aparente contrassenso,
as narrativas que versam sobre as memórias que circulam no campo da gastronomia
podem auxiliar a entender a complexidade nele inerente.
Assim, foi possível verificar neste estudo que o espetáculo da gastronomia tem
apresentado narrativas que exaltam o passado e a tradição. Modelos de produtos com
características das décadas entre 1960 e 1980 são destacados e apresentados como
rétros, e o consumo dos mesmos é enunciado como mote para o público transcender
na linha do tempo e encontrar a sua tribo.
Quanto ao resgate da tradição culinária que tem sido exaltada no campo da
gastronomia, pode-se conferir que se trata de uma memória revisitada. Ela é
repaginada e ganha marcas tecnológicas que atendem à rotina urbana contemporânea.
Desse modo, as narrativas que circulam no campo da gastronomia
contribuíram para reafirmar que a memória se reconstrói, se reformula e se
reenquadra a um futuro para circular na organização social. Com elas também
pudemos notar alguns memes que se (re)fortaleceram nesse campo, como o chocolate
Lollo, por exemplo, ou os formatos de eletrodomésticos produzidos na década de
1960. No entanto, sabendo da complexidade que está imbuída nos gostos e no
exercício mnêmico dos indivíduos, reconhecemos que este estudo não seria o bastante
para explicitar tais motivos. Porém, deixa-se aberto esse tema para possíveis
investigações futuras.
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