magia, poesia e realidade: o acaso objetivo em andrÉ breton
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MAGIA, POESIA E REALIDADE: O ACASO OBJETIVO EM ANDRÉ
BRETON1
Claudio Willer
O episódio é relatado por Roberto Piva no vídeo Uma
outra cidade, de Ugo Giorgetti2: a 28 de setembro de 1966, por
volta das 16 h, Piva e Roberto Bicelli caminhavam pela
Avenida Rio Branco no trecho final, próximo ao viaduto
sobre os trilhos, em São Paulo. Viram passar a toda
velocidade um caminhão carregado de móveis e utensílios,
encimados por um armário cuja porta, impelida pelo
sacolejar do veículo, abria e fechava, batendo com força.
Do móvel saía, esvoaçando, conduzido pelo vento, um longo
lençol branco. Apontando para o conjunto insólito, Bicelli
exclamou: É o fantasma de André Breton! Nem Bicelli, ao
identificar desse modo a sacolejante mudança ao
surrealismo, nem Piva, lembraram-se, na hora, desta frase
meio solta no primeiro Manifesto do Surrealismo, em um parágrafo
intitulado “Contra a morte”: “Não vos esqueçais de formular
adequadamente vossas disposições testamentárias: eu, por
exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão
de mudança”.3 No dia seguinte, leram nos jornais a notícia1 Em algumas passagens do texto a seguir – no relato de episódios do surrealismo associados ao sono hipnótico e à consulta à videntes, e nos comentários sobre Nadja e O Amor Louco –retomo minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição 2004.2 Produção da SP Filmes disponível em vídeo, exibido na TV Cultura de São Paulo e TV Educativa.3 André Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio Willer, Editora Brasiliense, 1985; ou André
1
do falecimento de Breton naquela data e hora, às 16 h. de
28 de setembro de 1966. O acaso objetivo assim prestava uma
oblíqua homenagem ao seu formulador.
Tratar do acaso objetivo requer uma reflexão sobre a
relação surrealista, em geral, e bretoniana, em especial,
com o maravilhoso, o esoterismo e os fenômenos da ordem do
oculto, a flânerie ou deambulação urbana; e sobre as conexões
entre a poesia, o poético e a “realidade”, o mundo exterior
ao sujeito.
Conforme examinado em outro ensaio desta publicação,4
surrealistas, herdeiros da fascinação romântica, simbolista
e decadentista pelo oculto, não estiveram afastados do
estudo sistemático das disciplinas herméticas. Há, contudo,
uma vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton,
que o distingue de outras figuras de frente do surrealismo,
como Aragon e Éluard. Isso, pelo modo como a simbologia
comparece de modo recorrente em sua obra, e,
principalmente, por haver realizado uma relação mágica entre
poesia e vida, através do acaso objetivo.
Ocultismo já estava em sua formação. Marguerite Bonnet
e Henri Béhar, em suas biografias de Breton,5 mostram que,
entre suas leituras de adolescência, estava o Sâr Joséphin
Péladan, mago de prestígio, escritor prolífico, freqüentadoBreton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001; esta, mais completa, segue André Breton – Manifestes du Surréalisme, Jean Jacques Pauvert éditeur, Paris,1962, incluindo a Lettre aux Voyantes e Poisson Soluble, ausentes das edições Gallimard e Brasiliense.4 Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia, de Maria Lúcia Dal Farra.5 Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste,Librairie José Corti, Paris, 1988; e Henri Béhar, André Breton, Legrand indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.
2
por simbolistas e decadentistas. Em 1921, procurou René
Guénon (a quem cita em seu último manifesto, Do surrealismo e
suas obras vivas). Na década de 1950, para aprofundar o exame
das analogias entre poesia e alquimia, intensificou o
diálogo com especialistas como Eugène Canseliet e René
Alleau, cujas conferências sobre alquimia ele e outros
integrantes do movimento freqüentaram. Alleau, por sua vez,
colaborou em publicações surrealistas.6
Daí resulta, em sua obra, uma profusão de símbolos:
pentagramas, casas e planetas do zodíaco, operações
alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua própria versão do
baralho do Tarô.7 Antes, conforme relata nas páginas
iniciais de O Amor Louco, fascinara-se por um baralho com a
bandeira da Hamburg-America Linie, com a magnífica divisa: “Mein
Feld ist die Welt” (meu campo é o mundo), por achar que, nele, a
dama de paus é mais bela do que a dama de copas. Conta como
dispunha as cartas para fazer consulta, interpondo um
objeto que se assemelhava a uma raiz de mandrágora.8
Parecia atribuir valor de verdade à astrologia, a ponto de,
no Segundo Manifesto do Surrealismo, colocar o surrealismo sob
influência de uma conjunção de Saturno e Urano, entre 1896
e 1898, coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e
Aragon.9 O mapa dessa conjunção também ilustrou em 1930 a6 Detalhes em Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, de Jean-Louis Bédouin, Éditions Denoël, Paris, 1961, com uma substanciosa discussão sobre poesia, surrealismo e alquimia.7 Conforme a biografia por Henri Béhar, já citada.8 André Breton, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Editorial Estampa, Lisboa, 1971, ou André Breton, Oeuvres complètes, org. de Marguerite Bonnet, Bibliothèque de la Pléiade,Éditions Gallimard, Paris, 1992, vol. II.9 Breton, Manifestos do Surrealismo.
3
capa do primeiro número de Le surréalisme au service de la révolution.
Em O Amor Louco, diria que a conjunção de Vênus e Marte em
seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no
seio do amor. Dataria um acontecimento revelador, que lhe
parecia corresponder à noção de beleza convulsiva, deste modo:
a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua (episódio esse
que só acontecia uma vez por ano).
O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta uma
duplicidade. De um lado, afirma com ênfase a adesão ao
pensamento marxista, a um materialismo dialético. De outro,
propõe a exploração de certas ciências, valorizando o
conhecimento hermético e exigindo que a alquimia do verbo de
Rimbaud fosse tomada ao pé da letra. Mas distanciando-se
igualmente da credulidade ingênua e do reducionismo
cientificista, ... em um espírito que desafia, ao mesmo tempo, o
espírito da barraca de feira e aquele do consultório médico.10 É como se
houvesse dois pólos, o materialista e o esotérico,
instâncias contraditórias a constituírem, nas palavras de
Jean-Louis Bédouin, uma das mais vertiginosas interrogações que
conheceu o surrealismo, e, antes dele, espíritos tão diferentes e tão grandes
quanto Achim von Arnim e Rimbaud.11 A capa já mencionada de Le
surréalisme au service de la révolution é um emblema dessa
interrogação vertiginosa: astrologia na capa da revista que
veiculava uma posição mais militante do surrealismo.
Manifestações do acaso objetivo foram uma resposta a
essa fascinação: como se houvesse reciprocidade, o mágico e
10 O exame do hermetismo e alquimia ocupa uma extensa nota derodapé, de algumas páginas, desse manifesto.11 No já citado Vingt ans de surréalisme.
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o oculto pareciam procurá-lo. O episódio mais expressivo é
aquele da “noite do girassol” narrada em O Amor Louco, o
encontro em 1934 de Breton e Jacqueline Lamba, com quem
viria a casar-se, antecipado por um poema, Tournessol
(Girassol), escrito onze anos antes. Acontecimentos como este
levaram Breton, nessa narrativa, e antes, em Les vases
communicants,12 a apresentar suas reflexões sobre o acaso
objetivo.
Mas, bem antes, sua simpatia por aquilo que rompesse
com noções estabelecidas sobre o real e a causalidade o
havia levado às mais diversas investigações; até mesmo, a
procurar videntes. Conta, em Nadja,13 que freqüentava uma
delas, Madame Sacco. Sua foto, paramentada como cigana,
está nesse livro. Em um texto de 1925, Carta às videntes,
depois agregado aos Manifestos do Surrealismo,14 comenta uma
previsão de Madame Sacco: Ao que parece, devo ir à China por volta de
1931, e lá correr, durante vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas
ocasiões diferentes15 deixei que me dissessem isso, o que é bastante
perturbador.
12 André Breton, Les vases communicants, collection Idées, Gallimard,Paris, 1985; ou André Breton, Oeuvres complètes, vol. II, Bibliothèque de la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1992, organizada por Marguerite Bonnet.13 Nadja, Éditions Gallimard, Collection Folio, Paris, 1964; ouAndré Breton, Oeuvres complètes, vol. I, Bibliothèque de laPléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1988. Nadja foi reeditada noBrasil em 1999 pela Editora Imago, na tradução de Ivo Barroso.14 Na edição brasileira da Nau dos Manifestos do Surrealismo, jácitada acima.15 Em duas consultas: outras visitas a médiuns-videntes, comoHélène Smith, que afirmava comunicar-se com o planeta Marte,deram resultados semelhantes.
5
O que menos importa, argumenta, é o erro das profecias
tomadas ao pé da letra. De certo modo, está na China:
Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria de morrer. Mas eu não
penso que “das duas, uma”. Tenho fé em tudo o que me disseram. Por nada
nesse mundo resistiria à tentação que provocaram em mim, digamos: de
aguardar-me na China. Tanto mais que, graças a vós, já estou lá. Instigado
pela vidente, via uma China de sonho, signo de uma
rebelião, de algo a perturbar o Ocidente, fonte de um sopro
de liberdade capaz de despertar a velha Europa. O interesse
dessa freqüentação não residiria na exatidão e certeza com
que profecias iriam ocorrer, mas em seu valor simbólico e
no conseqüente poder para despertar da inércia e do
conformismo, ao levarem alguém a atribuir sentido ao
remoto, enxergando-se em uma revolução chinesa. Na mesma
medida, argumentou no Segundo Manifesto do Surrealismo, pouco
importava o alquimista Nicolas Flamel não haver enriquecido
com a descoberta da Pedra Filosofal, diante da fortuna
espiritual que edificara.
Os parágrafos da Carta às Videntes em que Breton comenta
sua viagem nunca feita à China reservam uma surpresa. Para
esclarecer o que procura junto às videntes, declara-se
capaz de prever o futuro: O grande véu que tomba sobre a minha
infância não me furta aos olhos senão a metade dos anos estranhos que
precederão minha morte. E eu falarei um dia da minha morte. Dentro de mim,
adianto-me várias horas em relação a mim. Diz que sua meta não é o
aprendizado derivado da experiência já vivida, porém a
experiência do que ainda não foi vivido: ... faço muitíssimo caso
da experiência, visto que tento obter a experiência daquilo que não fiz!
6
Subentende, tomando Rimbaud ao pé da letra, que o
verdadeiro vidente é o poeta. Completa com a seguinte
frase: Há pessoas que pretendem que a guerra lhes ensinou alguma coisa:
no entanto, estão menos avançados do que eu, que sei o que me reserva o ano
de 1939. Assim, em um confronto de profecias, uma espécie de
relação especular, diante das previsões sugestivas, porém
incorretas, das videntes que freqüentava, respondia com uma
profecia vaga, mas cronologicamente exata, antecipando a
catástrofe que sobreviria em 1939.
Estudos sobre surrealismo passam por essa
surpreendente inserção, sem se deterem nela. Quem alertou
sobre seu sentido, mais tarde, foi Benjamin Péret, no
prefácio de 1942 de sua coletânea de mitos, lendas e contos
populares americanos,16 com uma nota de rodapé à seguinte
frase, na seqüência de comentários sobre a “noite do
girassol” de O Amor Louco, qualificada como revelação profética:
A Carta às Videntes, do mesmo autor, oferece outra iluminação da
mesma natureza, na qual provavelmente nem ele reparou ainda.
A observação faz parte dos comentários de Péret sobre
suas próprias visões e alucinações (esse relato é examinado
no capítulo sobre escrita automática, nesta edição). Dentre
elas, o modo como via a cifra 22, refletida nas janelas da
prisão em Rennes, onde estava detido em maio de 1940, em
situação de risco por seus antecedentes como militante de
esquerda e combatente na resistência anti-fascista na
Espanha. Crescia nele a convicção de que esta seria a data
16 Benjamin Péret, Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique, Éditions Albin Michel, Paris, 1960.
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de sua libertação. De fato, soltaram-no a 22 de julho de
1940.
Na busca do além-fronteiras durante a “fase heróica”
do surrealismo, período da formação que precede o primeiro
manifesto, também foram feitas experiências com o “sono
hipnótico”. São comentadas em um capítulo da coletânea Les
pas perdus,17 intitulado Entrée des Médiuns, sobre o desencadear-
se, nas palavras de Breton, de uma conspiração de forças absurdas.
A idéia de imitar sessões espíritas, mas rejeitando a
hipótese da comunicação com os mortos, foi de René Crevel.
É transcrito um diálogo entre Breton e Robert Desnos, em
transe, respondendo por escrito, a 27 de setembro de 1922:
- Desnos, é Breton quem está aí. Diga-lhe o que você vê.
- O equador (desenha um círculo e um diâmetro
horizontal).
- É uma viagem que Breton deve fazer?
- Sim.
- Será uma viagem de negócios?
- (Faz sinal de não com a mão. Escreve:) Nazimova.
- Sua mulher o acompanhará nessa viagem?
- ???
- Irá ele reencontrar Nazimova?
- Não (sublinhado).
- Ele estará com Nazimova?
- ?
- O que mais você sabe sobre Breton? Fale.
17 Les pas perdus, Collection Idées, Gallimard, 1974, ou vol. I dasOeuvres Complètes de Breton.
8
- O barco e a neve – há também a bela torre telégrafo – sobre a bela
torre há um jovem (ilegível).18
Henri Béhar sugere uma interpretação: O leitor que conhece
o triste destino de Nadja é tentado a assimilar esses dois nomes russos, ainda
que Nazimova seja aquele de uma atriz de cinema célebre na época (Alla
Nazimova, atriz russa admirada por Desnos e que atuava no
cinema americano, protagonista de Salomé).19 Mas há outra
interpretação possível, que não consta na bibliografia
examinada: Nazimova podia ser uma recepção distorcida de
nazismo. Isso dá ao episódio um alcance efetivamente
profético, pois não havia como antever, em l922, a ascensão
do nazismo na década seguinte e as conseqüências de mais
uma guerra mundial. Entre outras, a viagem transoceânica de
Breton em maio de 1941, como refugiado, primeiro à
Martinica e depois aos Estados Unidos. Detalhes do diálogo
reforçam essa interpretação: seria impossível “encontrar”
Nazimova, e obter resposta sobre a mulher de Breton (não
estaria mais com Simone Kahn, porém separando-se de
Jacqueline Lamba). Dos presentes à sessão, quem acabou como
vítima do nazismo foi o próprio Desnos. Militante da
resistência francesa, morreria em um campo de concentração
ao final da guerra.
As experiências com o sono hipnótico foram
interrompidas depois de situações constrangedoras e
18 Essa transcrição pode ser encontrada em Les pas perdus, nabiografia de Breton por Béhar, ou em Oeuvres de Robert Desnos,Gallimard, 1999.19 Em Béhar, no já citado André Breton, Le grand indésirable. Em Oeuvres de Desnos foram incluídos comentários sobre cinema, nos quais a atriz Nazimova é mencionada.
9
chocantes, como a insistência de Crevel no suicídio
coletivo (viria a suicidar-se em l935). Desnos ainda as
continuou por conta própria. Não consta, nos estudos sobre
o assunto, a seguinte pergunta: Por quê, do material
disponível sobre sono hipnótico e estados de aparente
mediunidade, resultado de várias reuniões, Breton escolheu
esse trecho para a publicação em Les pas perdus? Qual critério
o levou à seleção do diálogo sobre Nazimova, profecia
impossível de avaliar ou considerar mais que devaneio?
Pode-se falar em dupla premonição. Primeiro de Desnos
adormecido, antevendo tragédias que aconteceriam daí a
décadas. Depois de Breton, selecionando o trecho para
figurar em L’entrée des mediums.
Breton e seus companheiros não foram os únicos a
iniciar experiências através de simulacros de sessões
mediúnicas, interrogando as profundezas do inconsciente ou
a amplidão de outros mundos. A idéia da criação poética
associada a uma voz externa, dizendo algo ao poeta, é bem
antiga, e muito presente desde o primeiro romantismo
alemão, passando por Gérard de Nerval, pela bouche d’ombre de
Victor Hugo e por episódios intrigantes como a “escrita
automática” de Yeats, o procedimento através do qual sua
mulher, Georgina Hide-Lees, escreveu A Vision, e ainda o modo
como Fernando Pessoa, em 1914, criou O Guardador de Rebanhos
de uma enfiada só, como se Alberto Caeiro houvesse
“baixado”.
10
Mas, conforme observou Michel Carrouges,20 o sono
hipnótico dos surrealistas assemelhava-se em demasia a um
sem-número de comunicações com espíritos, elementais,
emanações divinas, etc. Nelas, há uma divisão, uma
separação entre a consciência e essa “outra voz”, ao
contrário da escrita automática, que procura somar,
integrar a consciência e aquilo que lhe é exterior. Sob o
ponto de vista ocultista e esotérico, conforme as críticas
ao espiritismo e mediunidade de Éliphas Lévi, Papus ou René
Guénon, a transmissão de mensagens em transe seria a versão
mais perigosa e equivocada de comunicação com outro nível
ou plano da realidade.21 E, para o budismo e doutrinas
afins, se o mundo fenomênico, do real imediato, é ilusório,
o véu de Maya do bramanismo, tais manifestações pertencem à
mesma ordem da projeção da subjetividade.
Ademais, tais práticas, mesmo laicizadas, conflitam,
no que têm de programado, com a atitude surrealista por
excelência, a disponibilidade. Já em Les pas perdus, de 1924,
Breton sustentava essa atitude ao abrir a coletânea com o
manifesto La Confession Dédaigneuse, onde declarava: Toda noite,
deixava bem aberta a porta do meu quarto, na esperança de finalmente
acordar ao lado de uma companheira que eu não tivesse escolhido.
Disposto a recomeçar a vida a cada dia, proclamou-se
flâneur: A rua, que eu acreditava capaz de entregar a minha vida seus
surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era meu
20 Em André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, collection Idées, Gallimard, Paris, 197121 Mais a respeito em Batache, Eddy, Surréalisme et Tradition, La pensée d’André Breton jugée selon l’oeuvre de René Guénon, Éditions Traditionelles,Paris, 1978.
11
verdadeiro elemento: lá eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do
eventual.
O acaso objetivo é indissociável da disponibilidade, e
de sua conseqüência, a relação mágica com a cidade. A
deambulação urbana do flâneur, transformada em valor, signo
da disposição de recomeçar a vida a cada dia, já é magia
propiciatória. É correta a observação de Michel Carrouges
sobre a espera sem objeto definido: Esse sentimento extraordinário
de espera, que brilha com todos os seus fogos no surrealismo e principalmente
no pensamento de Breton, é a chave de ouro da liberdade. Não é uma vã
impressão subjetiva, é já um ato interior, é uma abertura de nossas ligações
com as correias de transmissão do determinismo.22
Ao adotarem a disponibilidade e a flânerie, surrealistas
foram, também nisso, herdeiros de Baudelaire, poeta das
correspondências e também das cidades, ou, mais
propriamente, de Paris. Na série Quadros Parisienses, que
compõem as Flores do Mal, é a Cidade a fervilhar, cheia de sonhos.
Nela, Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito canal
do colosso possante.23 Em O Spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa,
multiplica-se a captação de aspectos da vida urbana. Em um
ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se
inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole,
simbolizada pelo flâneur, o caminhante desgarrado: Pela
primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica.24 E,
22 No já citado André Breton et les données fondamentales du Surréalisme deCarrouges.23 Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso,Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Floresdo Mal por Ivan Junqueira.24 A Paris do Segundo Império em Baudelaire, em Walter Benjamin - Sociologia,tradução e organização de Flávio R. Kothe, Editora Ática 1985,
12
como crítico de arte, Baudelaire argumentou em favor da
beleza nova e particular presente na cidade: A vida parisiense é fecunda
em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a
atmosfera; mas não o vemos.25
A relação de Baudelaire com Paris vem sendo bastante
comentada, desde os ensaios fundamentais de Walter
Benjamin. Um texto recente de Eric Hazan, Le sombre Paris,26
permite maior clareza na comparação da relação
baudelairiana e surrealista com a capital francesa.
Reconhece o pioneirismo com que As Flores do Mal são parisienses
antes de tudo, como (seguindo Benjamin) primeiro livro a haver
utilizado palavras de proveniência não apenas prosaica, mas urbana, na
poesia lírica. Em outras palavras, Baudelaire fez poesia com os
pés no chão, arrancando-a das nuvens. Mas o ensaísta
observa que não há, nessa obra, um único lugar parisiense que seja
precisamente nomeado ou descrito. Tanto em As Flores do Mal quanto
em O Spleen de Paris, o maravilhoso não tem endereço. Já nos
surrealistas em geral, e em Breton, especialmente, é
possível fazer roteiros com indicações precisas de lugares
da sua manifestação: Torre Saint-Jacques em Arcano 17 e
outras de suas obras, Place Dauphine em Nadja, galerias da
Ópera e o parque das Buttes Chaumont em O Camponês de Paris,
etc.
Faz parte da múltipla herança baudelairiana no
surrealismo – junto com a estética e cosmovisão das
pg. 38; ou na série Walter Benjamin - Obras escolhidas, da EditoraBrasiliense. 25 Em Salão de 1846, na edição citada de Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.26 Publicado em uma edição do Magazine Littéraire com dossiê sobre Baudelaire: nº 418 de março de 2003.
13
correspondências, a flânerie, a errância urbana e o dandismo
– a noção do maravilhoso. Sua adoção é declarada no texto de
Breton Le merveilleux contre le mystère;27 e, de modo mais enfático,
no prefácio de 1962 para Le miroir du merveilleux de Pierre
Mabille: O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor (que
Mabille) por oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais
a suplantá-lo junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase
sempre, pertence à ordem da ficção sem conseqüência, enquanto o
maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital e envolve em si,
inteiramente, toda a afetividade 28
Contudo, flânerie, deambulação, errância através de
Paris, fazem parte de uma tradição que antecede Baudelaire.
A tradutora de O Camponês de Paris, Flávia Nascimento, em um
ensaio que prossegue seu prefácio para a narrativa poética
de Aragon,29 mostra como surrealistas dão prosseguimento a
essa tradição, e em que a modificam. Vê a flânerie como ponto
em comum entre “escritores de Paris”. Referindo-se a Tableau de Paris
de Sébastien Mercier e As noites parisienses de Restif de la
Bretonne, mostra como em tais obras, mesmo associadas ao
iluminismo e enciclopedismo, o acaso, que receberia tamanha
atenção do surrealismo, já está presente, pois ...diferem
essencialmente do projeto dos enciclopedistas, posto que nas duas coletâneas
o acaso é primordial: tanto numa como noutra, o narrador não tenta reduzir a
27 Em La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Lelivre de Poche, 1979.28 Pierre Mabille, Le miroir du merveilleux, Les Éditions du Minuit,1962.29 Flávia Nascimento, Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif aossurrealistas, em Agulha, revista de cultura # 25 – Fortaleza, São Paulo –junho de 2002, emhttp://www.revista.agulha.nom.br/ag25nascimento.htm
14
cidade a um sistema de classificação, ao contrário: em ambas constata-se a
importância da desordem e da descontinuidade. Utilizando o acaso, Restif e
Mercier põem lado a lado coisas que não têm absolutamente nada a ver entre
elas, a não ser o fato de existirem, todas, em Paris. E, reconhecendo um
determinante infra-estrutural, as reformas urbanas, fala em
cidade-corpo, com um poder de sedução tão mais eficaz quanto ela possui
espaços ocultados, exatamente como um corpo feminino velado pelas
vestimentas. Nela, há duas topografias que se fundem: uma real, outra
onírica.
Também nisso, Apollinaire foi precursor imediato, por
sua intensa relação com Paris,30 resultando nos topônimos
em sua poesia: Ponte Mirabeau, Saint-Merry e outros. Em
Zone,31 uma caminhada dessas - Agora andas sozinho na multidão de
Paris... - equivale a percorrer sua própria vida e a
história da humanidade em 24 horas. A metrópole é o lugar
de encontro da biografia pessoal e da história da
humanidade, do macro e microcosmo, em um cruzamento de
coordenadas temporais e espaciais.
Contudo, surrealistas foram além nessa relação. Paris
é inteiramente onírica em La liberté ou l’amour! de Robert
Desnos.32 Em O Camponês de Paris, de Aragon, a passagem da
Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos para suas
iluminações profanas através do “erro” e da errância em lugares
eleitos. Conforme sua tradutora, ... o deslocamento do narrador
30 Bem examinada por Marie-Claire Bancquart em Paris “Belle époque” par sés écrivains, A. Biro, Paris, 1997.31 Edição brasileira em Escritos de Apollinaire, tradução, seleção enotas de Paulo Hecker Filho, L&PM editores, Porto Alegre, 1984.32 Ed. Gallimard, coleção L’Imaginaire, 1986, ou no já citado Oeuvres.
15
pela cidade também apresenta uma estrutura binária que opõe dois espaços
diametralmente opostos: primeiramente [...] a passagem da Ópera, lugar
fechado, quase poderíamos dizer subterrâneo, que se localizava num bairro
central da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, da periferia. Este
lugar aninha, segundo Aragon, “o inconsciente da cidade” e assume na
narrativa os ares de labirinto iniciático dos surrealistas. [...] Errar pelo
jardim em plena noite funciona como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer
aflorar o que há de mais primitivo no homem; e percorrer esta topografia
equivale a percorrer os caminhos sinuosos do inconsciente.33
Essa relação com Paris se intensifica e exacerba em
obras de Breton como Nadja, Les vases communicants, O Amor Louco
e Arcano 17. Em Nadja, a estátua de Étinenne Dolet, Praça
Maubert, o atrai e lhe provoca mal-estar, e a Praça
Dauphine o faz sentir langor e opressão. Em O Amor Louco e
no poema Vigilance,34 a Torre Saint-Jacques, ponto de partida
das peregrinações a Santiago de Compostela,35 é o centro
irradiador do maravilhoso, assim como seu entorno onde, no
século XIV, habitara Nicolas Flamel, culminando, no final
de Arcano 17, na ...exaltação que, de longa data, a torre Saint-Jacques me
causava e que comprovam vários dos meus textos ou conversas anteriores. É
verdade que meu espírito sempre rondou em volta dessa torre, para mim
poderosamente carregada de sentido oculto.36
33 Louis Aragon, O Camponês de Paris, Imago, 1998, tradução eprefácio de Flavia Nascimento.34 Em Le revolver a cheveux blancs, por sua vez na coletânea Clair de terre,coleção Poésie, Gallimard, Paris, 1966.35 Em francês, São Tiago é Saint-Jacques.36 André Breton, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas eRosa Maria Boaventura, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
16
Outro lugar mágico de Paris, para Breton, foi a Ilha
da Cité. Está em Peixe Solúvel,37 e acabou por revelar-se
entrada para o inferno em um episódio dramático de Nadja.
No texto intitulado Pont-Neuf38 (a ponte que une a ilha às
margens do Sena), Breton reconheceria que a lassidão e
imobilidade que o atacavam na Praça Dauphine, ali
localizada, correspondiam a um sentimento de abandono
diante do significado do lugar onde, em 1313, haviam sido
queimados os dirigentes da Ordem dos Templários, acusados
de magia e satanismo. Seu formato triangular o levou a
chamá-la de sexo de Paris, incandescente até hoje, o ponto pivotal de
uma cidade não apenas antropomorfizada, mas erotizada: o
segredo do seu prestígio [...] reside inteiramente na atração erótica que
esse belo corpo oferece, lascivo até na expressão de sua lassidão.
Vale, para essas designações de lugares, o comentário
de Ferdinand Alquié sobre Peixe Solúvel, em Philosophie du
Surréalisme:39 O paraíso reencontrado deve ser aquele da vida cotidiana, da
vida cotidiana transfigurada. É, em Peixe Solúvel, aquele de Paris, e de
uma Paris transformada, incessantemente, na mais maravilhosa, na mais
luminosa das câmaras do amor. [...] Para os surrealistas, a verdadeira
vida está lá. “Eu sempre me proibi de pensar no futuro”, diz Breton: Paris
substitui portanto Veneza e as florestas da América, o presente revela ao
homem a totalidade dos seus poderes.
No verbete Promenade do Dictionnaire Général du Surréalisme et
de ses environs,40 também é comentado um itinerário iniciático realizado
ao nível do cotidiano: através da diversidade do espetáculo urbano, o poeta,37 Na já citada edição Nau dos Manifestos do Surrealismo.38 Publicado na coletânea de ensaios La clé des champs, já citada.39 Ferdinand Alquié, Philosophie du surréalisme, Flammarion Éditeur,Paris, 1977;
17
sob os impulsos complementares do acaso e da sua imaginação, na verdade
procura melhor definir sua própria identidade, interrogando os diversos
“enigmas” encontrados – objetos, situações ou seres – como outros tantos
sinais que lhe faz seu próprio desejo. É nas prosas de Breton que essa
concepção da caminhada encontra sua expressão mais acabada: a realização
última da busca, o encontro da mulher amada, é aqui igualmente uma grande
porta aberta para esses segredos do mundo – suas leis e suas
“correspondências” escondidas – que o caminhante solitário poderia apenas
pressentir e para as quais o amor oferece ao mesmo tempo o acesso e uma
imagem ampliada.41
Nadja, a obra surrealista de maior repercussão ao ser
publicada,42 é inteiramente regida pelo acaso objetivo,
embora a expressão só viesse a ser utilizada por Breton
mais tarde. Tem especial importância pelo modo como funde
gêneros e pela alta voltagem poética. É a transposição para
a escrita da identificação surrealista entre arte e vida,
invertendo a relação entre os dois planos. Logo na
abertura, a pergunta feita por Descartes: Quem sou eu?
Acompanha-a outra: Com quem ando? Breton responde ser um
fantasma, tomando um rumo oposto ao do cartesianismo, e faz
nova pergunta: A quem assombro? O tema do fantasma em Breton
remete ao duplo, o Doppelgänger do romantismo alemão, e da
alteridade, do eu como outro em Nerval e Rimbaud. Mas pode-
se localizar outra resposta em Nadja para as perguntas
40 Dictionnaire Général du Surréalisme de Adam Biro e René Passeron,Office du Livre, Lausanne, 198241 Traduzi promenade por “caminhada”, mais próprio, nestecontexto, que “passeio a pé”.42 Sigo Marguerite Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre, Vol. I de Breton, Oeuvres complètes, e Patrick Née em Lire Nadja, Dunod, Paris,1993.
18
iniciais: consiste em nova indagação, ao final do livro:
Quem vem aí?43 A identidade, a descoberta de si, realiza-se
através do encontro com o outro.
Nadja não é dividida em capítulos, mas se compõe de
três partes. A primeira lembra episódios significativos,
dos quais sua protagonista poderia ter sido participante,
que talvez só precisassem dela como catalisador para se
completarem. Entre outros, o modo como Éluard dirigiu a
palavra a Breton no saguão de um teatro, em um intervalo da
estréia de Couleur du Temps de Apollinaire, antes de serem
apresentados, iniciando a amizade e parceria literária. É
relatada, também, a busca de lojas que vendiam carvão de
lenha, bois-charbon, par de palavras que encerram, símbolo da
destruição ou consumação, isoladas e emolduradas como um
letreiro, o livro de escrita automática de Breton e
Philippe Soupault, Les champs magnétiques: seus autores,
perambulando pela cidade, atingiram o nível de alucinação
que lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de
rua apareceria a loja ostentando o letreiro, bois-charbon.
Há mais sub-enredos, relatos dentro da narrativa, como
o encontro com uma simpática leitora e anotadora de Rimbaud
em um alfarrábio, outro sobre a estranha atriz de uma peça
insólita de teatro, considerações sobre Huysmans e de
Chirico. Mereceria mais estudos a recorrência e reiteração
em Breton. Em Les vases communicants e O Amor Louco, lugares e
personagens podem ser outros, mas essas situações e
encontros irão repetir-se, às vezes em versões mais
43 Traduzi assim o Qui vive? do original, o chamado das sentinelas quando alguém se aproximava, pedindo que se identificasse.
19
complexas. Isso resulta de uma relação sui generis entre vida
e obra em Breton, com sua propensão, mais evidente em O
Amor Louco, mas também presente em outros textos, de
referir-se a acontecimentos, ou sugeri-los, antes de
ocorrerem, ou sincronicamente a eles, assim introduzindo o
que está sendo ou irá ser vivido no escrito e projetando o
escrito na vida.
A parte central de Nadja tem forma de relatório,
anotações diárias do que aconteceu entre 4 e 12 de outubro
de 1926. Três anos depois de haver escrito as frases de
abertura de Les pas perdus sobre disponibilidade, continuava a
caminhar pelas ruas ao sabor do mesmo vento do eventual.
Enquanto percorria a Rua Lafayette, no centro de Paris, em
um fim da tarde, teve seu interesse despertado pela mulher
que caminhava na direção oposta à da multidão na calçada,
de cabeça erguida, ostentando, diz, um sorriso quase
imperceptível. Imediatamente, dirigiu-lhe a palavra. Sua
aversão ao relato realista deixou-nos sem saber muito sobre
a aparência dessa mulher, além dos detalhes que mais
chamaram sua atenção: cabelos claros (cor de aveia, observa) e
despenteados, rosto maquiado pela metade, vestida de um
modo pobre e descuidado, acentuando o aspecto frágil. Do
rosto, conhecemos a fotografia publicada, na qual estão
apenas os olhos. Foi o que mais o atraiu - seus olhos
exageradamente sombreados, que exibiam, ao mesmo tempo, uma
obscura miséria e um luminoso orgulho, levando-o a declarar: Eu
nunca havia visto olhos assim.
20
Breton nunca identificou essa mulher, mesmo referindo-
se a seu modo de vida (ou de problemática sobrevivência) em
Paris. Sabemos, através de Marguerite Bonnet,44 que seu
nome verdadeiro era Leona D, nascida em Lille em 1902,
internada em 1927 ao entrar em surto. Morreria de câncer em
1941, depois de passar o resto da sua vida em instituições
psiquiátricas; e, ainda segundo Bonnet, nunca chegou a ver
o livro que protagonizou.
Nesse primeiro encontro, ambos sentados em um café,
Breton ouviu-a comentar a vida que levava e as dificuldades
que enfrentava. À pergunta sobre seu nome, respondeu que
escolhera chamar-se Nadja por ser esse, em russo, o começo
da palavra esperança, e por ser apenas seu começo.45
Descreveu-se: sou uma alma errante. Ao se despedirem, disse a
Breton que o via caminhar em direção a uma estrela: Você não
pode deixar de alcançar essa estrela, insistiu. Enquanto o ouvia falar,
senti que nada o impedirá - nada, ninguém, nem mesmo eu... Você nunca
poderá ver essa estrela como eu a vejo. Você não compreende: ela é como o
coração de uma flor sem coração.
O estranho da aparência e o enigmático da conversa
bastaram para que quisesse voltar a vê-la. Marcaram para o
dia seguinte. Breton trouxe consigo os já publicados
Manifesto do surrealismo e Les pas perdus. Apresentava-se através
de seus livros; inscrevia aqueles encontros, situações e
diálogos, em sua continuação.
44 Em suas notas para Oeuvres Complètes de Breton, vol. I, pg. 1.509e segs45 Não exatamente, pois esperança, em russo, seria Nadedja.
21
No terceiro encontro – nascido de um desencontro,
pois, tendo marcado para as cinco horas, encontraram-se por
acaso às quatro – Breton observou que Nadja havia cortado
as dobras das páginas de um trecho de Les pas perdus, a breve
crônica intitulada L'Esprit Nouveau (referindo-se ao ensaio de
Apollinaire L'Esprit nouveau et les poètes, sobre a modernidade,
mas contradizendo-o implicitamente), relatando como uma
moça atraíra a atenção dele, de Aragon e do pintor André
Derain, na região de Saint-Germain-des-Près. Os três,
separadamente, haviam passado por ela em diferentes lugares
do bairro, enquanto vinham, cada um, ao encontro do outro.
Adolescente, de uma desconcertante beleza, detinha-se para
perguntar qualquer coisa aos passantes com quem cruzava.
Percorrendo novamente o bairro, não conseguiram achá-la
para descobrir quem era e que perguntas fazia. Admirou-se
por Nadja escolher primeiro, de todas as partes do livro, a
que mais poderia ser entendida como antevendo-a.
Margueritte Bonnet comenta essa passagem: Passante real e
fugitiva, trazida e recolhida pelo remexer-se vivo da rua, a desconhecida da rua
Bonaparte dá uma primeira figura ao enigma extraviado, extraviante, que
aflora no cotidiano. Em sua pessoa, anuncia Nadja, a quem a intuição guiará
em Les pas perdus rumo a esse texto, assim como o caráter da relação
anuncia o diário dos encontros com Nadja pela preocupação de circunstanciar
cuidadosamente os fatos e a neutralidade proposital do tom. A inadequação
aparente do título transforma o relato em manifesto implícito onde o não-dito
se torna ostensivo: não é a exaltação das mudanças introduzidas na vida
corrente pelas descobertas da ciência que pode constituir o espírito novo; há
que procurá-lo do lado das disposições sensíveis que tornarão o homem capaz
22
de espreitar e de captar os sinais singulares da existência, tão subitamente
interrompidos quanto emitidos.46
Nadja captava esses sinais singulares da existência e
adivinhava que seus encontros e diálogos comporiam um livro
futuro. Comentou, no sexto de seus encontros: André? André?...
Você escreverá um romance sobre mim. Eu o garanto. Não negue. Preste
atenção: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que permaneça algo de
nós... Ao dizer isso, talvez soubesse que nesse livro estaria
o episódio da Praça Dauphine, impressionante pelo modo como
nele se confundiram magia e loucura. Breton e Nadja
chegaram à praça triangular de plátanos e antigas fachadas
na Ilha da Cité, lugar de fundação da cidade, da Catedral
de Notre-Dame e outras edificações históricas, conduzidos
por Peixe Solúvel, que ela acabara de ler, onde é mencionado
um hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado.
Pretendiam ir adiante, até a Ilha de Saint-Louis,
adjacente, também mencionada naquele extenso poema em
prosa, e ficaram no caminho, pararam na Praça Dauphine.
Ao chegarem à praça e se instalarem em um café,
iniciou-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-
assombrado, Nadja a ver fantasmas, mortos circulando pela
vizinhança, com o rumor do vento - o vento e o azul, o vento azul,
dizia - transformado em vozes anunciando a morte, enquanto
um bêbado os cobria de impropérios. Apontando para a janela
de uma das casas da praça, negra na escuridão, afirmou que
em um minuto esta se iluminaria e sua cor seria vermelha:
em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se,
46 Marguerite Bonnet em André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, jácitado
23
exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, a rememoração de
cenas de outros séculos: alucinada, Nadja agarra-se à grade
do Palácio da Justiça e insiste em que já havia estado lá,
e que dali saía um túnel secreto que se comunicava com
outro palácio. Segundo Béhar,47 escavações arqueológicas de
1963 revelaram que esse túnel existe; contudo, também
constava em uma das narrativas do Fantômas de Leroux.
Prosseguindo a caminhada, Nadja enxergou uma mão em
chamas pairando no Sena, signo terrível, pois remete à
mortífera main de gloire do conto A mão encantada de Gérard de
Nerval (que persegue quem dela se apoderou e acaba por
estrangulá-lo). A noite culminou com a chegada deles ao
Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz.
Ela observou que suas águas, elevando-se, separando-se em
dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma
força, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos
de ambos. Breton espantou-se com esse comentário, pois
Nadja citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles
dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três
Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda:
Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um
chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções
no livro). A tradução seria, aproximadamente: A força impele as
águas para o alto e ao mesmo tempo move a superfície. Um resumo, diz
Breton, do que Nadja comentava sobre o significado do
chafariz à frente deles.
47 Na já citada biografia de Breton por Béhar, André Breton, -Le grand indésirable.
24
Se Breton, durante a criação de Nadja, estivesse
possuído pelo mesmo furor da interpretação que o acometeria
ao escrever Les vases communicants, teria avançado nos
paralelos entre o episódio da Praça Dauphine e Peixe Solúvel.
O trecho de Peixe Solúvel que os levou à praça é este:
Querermos ouvir mais longe que nós mesmos, mais longe que esta roda da
qual um dos raios, à minha frente, mal toca os sulcos da estrada, que loucura!
Eu passara a noite na companhia de uma mulher frágil e precavida, agachada
na relva alta de uma praça pública, nas imediações da Ponte Nova. Durante
uma hora inteira, ríramos dos juramentos imprevistamente permutados pelos
tardios transeuntes que vinham, uns após os outros, sentar-se nos bancos mais
próximos.48
Pretendiam, portanto, realizar essa passagem. Mas em
Peixe Solúvel, o narrador encontra logo em seguida a mulher dos
seios de arminho; juntos, vão de táxi encontrar o Encontro em
pessoa. Querem sair de Paris (como o fariam Breton e Nadja
no penúltimo de seus encontros). Há uma cena teatral, na
qual um dos personagens é Satanás, que tem o seguinte
diálogo com Helena (com quem Nadja se identificava) e
Lúcia:
Satanás. – Podeis ver, acima desses senhores e dessas senhoras, a Ilha
de São Luís? Lá é que encontrava o quartinho do poeta.
Helena. – É verdade?
Satanás. – Ele recebia diariamente a visita das cascatas, a cascata
púrpura, que estava sempre pronta para dormir, e a cascata branca,
que chegava pelo telhado, como uma sonâmbula.
Lúcia. – A cascata branca era eu.
48 Conforme a edição Nau dos Manifestos do Surrealismo.
25
Henri Béhar observa que Nadja, conhecendo a praça
Dauphine, podia saber que lá havia um quarto com uma
cortina vermelha, no qual se acendia uma luz a uma dada
hora. Mas, como se vê, em Peixe Solúvel consta esse quarto, do
poeta, com uma cascata púrpura. A cena estava prefigurada no
texto; e mais, em uma encenação infernal, regida pelo
diabo, que ainda declararia: A cascata púrpura carregava revólveres
cujas coronhas eram feitas de passarinhos.
A série de alucinações, rememorações e profecias
transforma a noite da Place Dauphine em episódio capital.
Suas janelas acesas, túneis, visões da mão, chafariz,
ventos, compõem um discurso delirante, semelhante ao
suceder-se das imagens no sonho. É como se, em um momento
paroxístico da relação surrealista com a cidade, esta, viva
e animada, provocada e desperta pelo casal que a percorria,
passasse a responder-lhes através de sinais.
Exausto ao final daquela madrugada, Breton decidiu só
voltar a ver Nadja dentro de dois dias, para, no dia
seguinte, dar com ela por acaso no meio da tarde. Deve ter-
se sentido prisioneiro de uma trama, sem escapatória da
condição de seu protagonista.
Três dias depois, no sexto dos seus encontros,
acomodaram-se em outro restaurante, cujo garçom,
inexplicavelmente desastrado, quebrava pratos a cada vez
que se aproximava deles. Depois de onze pratos quebrados,
novamente saíram noite afora, em busca da mão de fogo,
encontrada sob forma de ilustração de um cartaz de rua,
propaganda das lâmpadas Mazda. A mão é um símbolo
26
recorrente em Breton, freqüente em sua obra: mão da
quiromancia, mapa da vida e dos signos planetários, imagem
do pentagrama. Quanto ao cartaz, o primeiro Manifesto do
Surrealismo já sustentava que o mundo acabaria, não com um belo livro
(como sugerira Mallarmé), mas com um belo anúncio do inferno ou do
céu. Nadja devolvia-lhe seus símbolos. Mostrava-lhe imagens
de seus poemas e ensaios, assim como, na mesma época,
Georgiana, a mulher de Yeats, espelhava, em sua escrita
mediúnica, idéias do poeta irlandês sobre a relação entre
tipos humanos e a ordem cósmica.
Por alguns dias, Breton e Nadja avançaram pelas etapas
de uma perseguição sem destino. As idas e vindas à noite
culminaram na viagem a Saint-Germain-en-L'Haie, partindo de
uma estação de trem onde todos os olhavam e observavam,
para chegar a outra estação onde pessoas jogavam beijos
para Nadja.
As visões, trechos de conversas, objetos encontrados,
textos, desenhos, os esboços a traço e colagens feitos por
ela, engrossando a torrente de símbolos citados ou
graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e
vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores,
sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos
de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira,
as cores do ar – levaram Breton a vê-los, nos breves intervalos
que nos deixava nosso maravilhoso estupor, como cúmplices a
contemplar os escombros fumegantes do velho pensar e da sempiterna
vida. E a perguntar-se, utilizando a expressão de Mallarmé
para intitular um poema em prosa: ... em qual latitude poderíamos
27
ficar sossegados, entregues desse modo ao furor dos símbolos, possuídos pelo
demônio da analogia?
Seus encontros se encerraram com uma dolorosa cena de
separação. Houve ocasiões em que voltariam a ver-se e que
Breton não relata, à exceção de uma, mencionada em nota de
rodapé, sobre a fidelidade de Nadja a um princípio de
subversão absoluta: ele dirigindo um automóvel, ela
beijando-o e tapando seus olhos enquanto pisava em seu pé,
premendo-o sobre o acelerador.
Alguns meses depois, a notícia de que Nadja, em pleno
delírio, havia sido internada. Indignado, Breton escreveu
as passagens do livro contra psiquiatras e manicômios,
afirmando que, se fosse internado, mataria alguém, de
preferência um de seus médicos, para que o deixassem em
paz, confinado no isolamento.
A companhia de Nadja pareceu a Breton uma prova da
realidade do surrealismo. Não só pela comprovação do
inconsciente como fonte de imagens, mas por estas
interferirem no presente ou preverem o futuro. Ambos
trafegaram por um território crepuscular onde realidade e
sonho, um mundo sólido, estável, e outro volátil, da
imaginação desencadeada, se confundiam.
Haver rompido com Nadja, deixando-a entregue aos
psiquiatras, valeu reprovações e críticas a Breton. Não
passou incólume pelo episódio: em Les vases communicants, ela
reaparece como fantasmagoria em seus sonhos e na vida real.
Há, sem dúvida, uma questão de responsabilidade, de até que
ponto alguém pode apropriar-se de uma pessoa real e torná-
28
la personagem, estimular seu delírio, para depois deixá-la.
Sua aventura, argumentou Breton, os levou à beira de um
abismo que só poderia ser transposto pelo amor. Mas não a
amava, sentia-se apenas atraído por sua beleza frágil e
fascinado por sua condição de "espírito livre". O final de
Nadja expressa uma dúvida – talvez eu não estivesse à altura do que ela
me propunha – seguida por mais uma interrogação: mas, afinal, o
que ela me propunha?
Em seus trechos finais, Breton percebeu que escrevia
sobre um mundo que se transformava durante o intervalo que
separa essas últimas linhas daquelas que, folheando o livro, pareceriam
encerrá-lo duas páginas atrás, pois a vida e a cidade não param
de mudar. Pouco depois dos acontecimentos que acabara de
relatar, seus cenários já se haviam modificado. O teatro
onde assistira a uma peça insólita estava fechado, em
reformas. A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert, que
lhe provocava mal-estar, cercada de tapumes, em
restauração. A cidade é um organismo mutante, vivo: Não serei
eu quem meditará sobre aquilo que acontece com a "forma de uma cidade",
mesmo da verdadeira cidade afastada e abstraída daquela em que habito pela
força de um elemento que seria, para meu pensamento, o que o ar representa
para minha vida. Sem lamentá-lo, agora a vejo tornar-se outra e até mesmo
fugir. Ela desliza, arde, soçobra no frêmito de relvas loucas de suas barricadas,
no sonho das cortinas de seus quartos, onde um homem e uma mulher
continuarão indiferentes a se amar.
Nesse trecho de poesia em prosa há um intertexto com
Baudelaire e sua visão do efêmero associado à modernidade.
Conforme observa Flávia Nascimento,49 citando o trecho49 Em seu prefácio para O Camponês de Paris de Aragon.
29
correspondente de O Cisne, de As Flores do Mal50 (e subentendendo
o que Walter Benjamin escreveu sobre ruínas da modernidade
em Parque Central), Baudelaire já constatara, antes deles, que a forma de
uma cidade muda mais rapidamente que o coração de um mortal, o que faz
com que tudo transmude incessantemente em amontoados de ruínas, em
alegorias.
Nas páginas finais de Nadja, os acontecimentos
relatados passam a ter o sentido da predição. Breton
dirige-se a uma nova companheira: Sem o fazer de propósito, você
se substituiu às formas que me eram mais familiares, assim como a muitas
figuras do meu pressentimento. O amor é invocado e metaforizado
por uma beleza especial, feita de sobressaltos. É a força
que anima o coração humano, belo como um sismógrafo (em uma
referência aos “belo como” de Lautréamont). Breton encerra
proclamando que a beleza será CONVULSIVA, ou então não será.
Assim, Nadja, história de um encontro antecipado em
textos que falavam de outros encontros, por sua vez anuncia
novos encontros, respostas ao Quem vem aí? Aponta para um
livro futuro sobre o acaso objetivo e a beleza convulsiva,
que viria a ser O Amor Louco. Entre essas obras, como texto
de transição, está Les vases communicants. Breton esclarece o
significado desse título, citando uma passagem de Le
Surréalisme et la Peinture:51 Tudo o que amo, tudo o que penso e sinto, me
inclina a uma filosofia particular da imanência segundo a qual a surrealidade
estaria contida na própria realidade (não lhe sendo nem superior, nem
50 Em tradução livre e literal: De uma cidade a forma muda mais depressaque um coração infiel.51 Em uma prière d’insérer transcrita por Marguerite Bonnet, Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.
30
exterior). E reciprocamente, pois o continente também seria o conteúdo. Tratar-
se-ia quase de um vaso comunicante entre o continente e o conteúdo.
Ensaio e autobiografia, Les vases communicants também
funde os gêneros. Seguindo Freud em A Interpretação dos Sonhos,
Breton analisa dois de seus próprios sonhos. Mas tenta dar
um passo além ao mostrar, através do que chama de psicanálise
da realidade, como esses sonhos não apenas reaproveitam o que
houve, aquilo que Freud denominou de restos do cotidiano, mas
se projetam no mundo da vigília. Trata-se, portanto, não
apenas de interpretação do sonho, mas do real no sentido
mais amplo, compreendendo vigília e sonho, e defendendo a
atribuição do mesmo estatuto para ambos.
Mas essa obra de um novo gênero, como a designa
Marguerite Bonnet,52 livro predileto do próprio Breton,
conforme declararia em Entrétiens, é pesada. Falta-lhe a
elevada prosa poética de Nadja e O Amor Louco, exceto nos
parágrafos finais, dedicados a Paris. É o livro sobre a
perda, de uma intensa racionalização, elaboração do luto,
como diriam os psicanalistas. Conforme observa Béhar,
atravessava um período de extrema depressão. Daí as menções de
poetas-suicidas, Nerval, Maiakovsky e Essenine. Embora isso
não o impedisse de escrever, no mesmo ano, o poema Union
Libre, emblema da lírica surrealista, e a série que comporia
Le revolver aux cheveux blancs, enfrentava, de novo, dificuldades
financeiras, e um drama amoroso. Deixara Simone Kahn, sua
companheira desde o início dos anos 20, atraído por Suzanne
Muzard, a grande paixão anunciada ao final de Nadja. Mas
52 Em suas notas para Les vases communicants, em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.
31
sua relação com Suzanne foi um fracasso, que terminou com
ela voltando ao companheiro anterior, o escritor Emannuel
Berl. Não é gratuito que uma das partes do livro tenha como
epígrafe a frase de Aurélia de Nerval, obra sob o signo da
perda, da impossibilidade de recuperar Jenny Colon: Amei
durante muito tempo uma dama a quem chamarei de Aurélia e que perdi para
sempre.53 Também poderia ter adotado outra frase desse
livro: O sonho é uma segunda vida.
As dificuldades pessoais coincidiram com um período
dramático da história do surrealismo, documentado no
Segundo Manifesto: aquele da adesão, não só ao marxismo, mas
ao PC, à causa da revolução soviética; conseqüentemente, da
ruptura com figuras axiais como Artaud e Desnos. Portanto,
estava em curso uma crise. E mais: um impasse, pela
tentativa de conciliar um pensamento que se pretendia
“científico”, justificando um regime centralizador, e o
misticismo, o triunfo do pensamento mágico, representado
pelo predomínio da analogia e pelo acaso objetivo (embora
atribuísse o termo acaso objetivo a Engels, e Les vases
communicants fosse sua resposta à questão da atividade anti-religiosa
no surrealismo).54
Por isso, em abril de 1931, ano de perspectivas
extremamente sombrias, tornara-se um alucinado em sua
deambulação. Como resume Béhar: A certeza de que Suzanne estava
perdida para ele o arrasta a uma busca de substituição, sem objetivo real. Com
seus amigos, aposta que dirigirá a palavra a dez mulheres, à exclusão das53 Na tradução de Augusto Contador Borges, na edição brasileirada Iluminuras.54 Cf. Marguerite Bonnet, em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II, pg. 1351.
32
prostitutas, entre o Faubourg Poissonière e a Ópera. De oito, cinco aceitam
marcar encontro. Outro dia, assim como Philippe Soupault dez anos antes,
caminha com uma bela rosa vermelha na mão, que oferece às transeuntes.
Nada esperando em troca, teve toda a dificuldade em achar uma que quisesse
aceitá-la.
Nesse livro da busca para não chegar a lugar algum, de
encontros que não se realizam, é como se convertesse o
texto em ritual propiciatório. Diz, de uma das mulheres a
quem abordou: Seus olhos (eu nunca soube dizer a cor dos olhos; aqueles
permaneceram para mim apenas olhos claros), como me fazer entender, eram
daqueles que não se revê jamais. Eram jovens, diretos, ávidos, sem langor, sem
criancice, sem prudência, sem “alma” no sentido poético (religioso) da palavra.
Olhos sobre os quais a noite deveria cair de um só golpe. Multiplica
assim o encontro com Nadja. Até um homem, a quem dera dez
francos, também se torna profeta. À semelhança de Nadja,
diz: Senhor, não sei quem é, mas peço-lhe que faça o que deve fazer e o que
pode fazer: algo de grande. Frase idêntica à de um livro, Le vieux
baron anglais, que Breton estava lendo, assim como Nadja
repetira a frase de Berkeley diante do chafariz, quase em
uma paródia da narrativa anterior. Também reencontra
parceiros de aventuras passadas: relata diálogos com André
Derain, que o acompanhara na busca da moça misteriosa de
L’esprit nouveau.
Contudo, esse ritual tem um sentido e apresenta
conseqüências. Nos sonhos que narra, nas suas
interpretações e nos relatos de como se projetavam na
vigília, Breton é antecipatório sem percebê-lo. Anuncia O
Amor Louco. Um dos episódios, real, reapareceria no primeiro
33
dos sonhos relatados: em um bar de saguão de hotel, uma
moça na mesa ao lado escrevia versos em um papel, assim
como em seu primeiro encontro com Jacqueline Lamba, daí a
quatro anos. Outro foi com girassóis, a flor que
desempenharia um papel central em O amor louco.
Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade,
do mundo da desigualdade e exploração, só havia uma saída:
a equiparação de vigília e sonho. Inverter as relações
entre esses dois mundos foi uma de suas obsessões; daí seu
filme predileto ter sido Peter Ibbetson,55 história de amantes
que só podem encontrar-se em sonhos, o que mantém vivo, por
longos anos, o protagonista encarcerado. E, na primeira
página de Les vases communicants, conta a história do homem
que quis proceder a essa reversão, fazendo da vigília um
prolongamento do sonho: O Marquês de Hervey-Saint-Denys, tradutor de
poesias chinesas da época dos Tang, e autor de uma obra anônima publicada
em 1867 sob o título Os Sonhos e os Meios de dirigi-los -
Observações práticas, obra que se tornou rara a ponto de nem Freud e
nem Havelock Ellis, que a mencionam ambos, terem conseguido tomar
conhecimento dela, parece ter sido o primeiro homem a achar que não era
impossível – sem para isso recorrer à magia, cujos meios, em seu tempo, só
conseguiam se traduzir por algumas receitas impraticáveis - vencer em seu
proveito as resistências da mais amável das mulheres, e obter rapidamente que
esta lhe concedesse seus mais recentes favores. [...] Foi assim que a sucção
de uma simples raiz de íris, que, durante a vigília, teve o cuidado de associar a
um certo número de representações agradáveis cuja origem está na fábula de
55 De Henry Hathaway, estrelado por Gary Cooper, de 1936, com o título traduzido no Brasil como Amor sem fim.
34
Pigmalião, valeu-lhe durante o sono, uma vez deslizada essa raiz entre seus
lábios por uma mão cúmplice, uma aventura tentadora.
Nesta passagem, Breton se aproxima de um autor
metafisicamente (e politicamente) tão oposto a ele quanto
Jorge Luis Borges. Mas com uma diferença fundamental: em
Borges, inversões e projeções do sonho, como em As ruínas
circulares, são o tema de narrativas de ficção. Breton, para
expô-las, foi buscar um personagem histórico. De modo
conseqüente, vê o sonho como crítica do “real”: assim fazendo,
por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, [...] sendo,
penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem
senão um, ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para
constituir-se, que verter-se na “torrente do dado”. Indaga se a
distinção entre “realidade” e sonho é fundamentada em todos os
pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade de
discriminação que permite seu comportamento social normal.
Por isso, critica Freud pelo dualismo, a seu ver
variante do platonismo, ao separar dois mundos que, sob o
ponto de vista materialista, deveriam ser um só: ... mais
desolador ainda é que o monista Freud tenha se permitido chegar finalmente a
essa declaração no mínimo ambígua, a saber que a “realidade psíquica” é uma
forma de existência particular que não se deve confundir56 com a
“realidade material”. E questiona o criador da psicanálise por
considerar o sonho exclusivamente a satisfação de um
desejo. Isso equivaleria à falta quase completa de concepção
dialética, pois o “real” da vigília está submetido à censura,
56 Uso itálicos nas citações; por isso, passagens grifadas por Breton, impressas em itálico nos originais, vão em redondo nas minhas citações.
35
enquanto o sonho, não; por isso, é o território da
liberdade, do possível, da utopia: ...uma parte do sonho,
considerada eminentemente não-sonhável, tem por objeto fazer de uma coisa
que não foi – mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido, em
seguida como podendo e devendo ser - uma coisa que foi, que é portanto em
todos os pontos possível e que deve passar, sem choque, à vida real como
toda-possibilidade.57 Daí que ...Freud ainda se engana, muito
certamente, ao concluir pela não-existência do sonho profético.
Argumenta com fatos. Acontecimentos do dia-a-dia
obedecem aos mecanismos do sonho. Por exemplo, na série de
mulheres que vai encontrando, para depois perdê-las. Trata-
se de deslocamentos: Um personagem, assim que é dado, é abandonado
por um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse
trabalho de expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos
apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! – Como em um sonho.58
Há mais em Les vases communicants: uma interpretação do
Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala
fonética a uma atraente Olga que acabara de conhecer, além
de outros encontros casuais com mulheres, das quais
invariavelmente descreve os olhos.59 O autor da carta com
observações inteligentes sobre o Segundo Manifesto é Sanson,
Sansão (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante
a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o
remete à moça com quem havia marcado encontro aquele dia,
cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave Moureau,
um de seus pintores prediletos. Ainda por associação,57 Grifo de Breton.58 Grifo de Breton.59 Cabe lembrar o chavão os olhos são a janela da alma e sua origem em Platão.
36
lembra o episódio burlesco ocorrido no mesmo dia, no
cabeleireiro. Admite: Que isso possa, para alguns, frisar o delírio de
interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o fiz, sobre
as razões do meu pouco equilíbrio de então. Seria possível até mesmo
ir adiante nessa argumentação desenfreada, paranóico-
crítica: por exemplo, associando as menções a Sansão (e
Dalila, por extensão) e ao cabeleireiro à longa cabeleira,
extravagante para a época, parecendo uma juba, do próprio
Breton.
Mais que delírio interpretativo, preparação do método
paranóico-crítico de Dali, há, nesse e em outros ensaios de
Breton, um primado do pensamento analógico, da associação
de coisas e símbolos distintos por contigüidade ou
afinidade. Escrevia ensaios do mesmo modo como criava
poesia. O mecanismo do sonho pode não ter tomado conta da
realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: Deve ser impossível,
considerando o que precede, não se chocar com a analogia entre o estado que
acabo de descrever como tendo sido o meu naquela época e o estado de sonho,
tal como concebido geralmente.
A carta que havia recebido de Georges Sanson podia ser
um comentário à discussão da noite anterior, sobre o
misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma
religiosidade disfarçada no âmbito do surrealismo: ...repito
que entre nós essa discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se como
os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é
taxado de misticismo em mim. A relação causal, vêm me dizer, não poderia se
estabelecer nesse sentido. Não há nenhuma relação sensível entre aquela carta
que lhe chega da Suíça e tal preocupação que poderia ser a sua nas
37
vizinhanças do momento em que essa carta foi escrita. Mas isso não é,
pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de causalidade?
Não é deixar passar a palavra de Engels: “A causalidade não deve ser
compreendida senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de
manifestação da necessidade”?
É desse modo que aparece na obra bretoniana a
expressão acaso objetivo, associada a um Sansão, seu duplo,
mas atribuída a Engels. No entanto, como bem demonstrou
Marguerite Bonnet, ela não se encontra em lugar algum na
obra de Engels:
Espanta que o problema da fonte dessa “categoria” assim atribuída a
Engels – e por conseqüência do exato alcance dos termos – não tenha sido
levantado na abundante literatura que Breton e o surrealismo já suscitaram.
No pensamento de Engels aparece com freqüência uma representação do
acaso como fenômeno de superfície, ocultando a necessidade escondida.
[...] Mas a palavra “objetivo”, cujo sentido suscita uma interrogação, não
aparece. [...] As obras de doutrina de Plekhanov, de Bukharine, de Fréville,
e tampouco a imprensa revolucionária que examinamos, nada nos revelaram
sobre essa questão. [...] Quanto ao termo objetivo, sublinhemos em
primeiro lugar sua tonalidade marxista. O objetivo é independente da vontade
e da consciência do homem, ele pertence às leis da natureza exterior, mas
ninguém duvida que em Breton ele está carregado das ressonâncias que toma
ao final do Curso de Estética de Hegel, tal como lhe revelou a tradução
Bénard – nessa passagem para ele tão decisiva, onde é definido o humor
objetivo, culminação final da arte romântica, que marca, ele mesmo, o fim da
arte. [...] Se o marxismo, através da caução de Engels, assim dá ao acaso
uma base infinitamente mais sólida do que o poderia fazer para Breton uma
teoria como aquela de Cournot (duas cadeias causais que se encontram
38
acidentalmente), é a leitura pessoal e poética que ele fez das páginas de Hegel
sobre o humor objetivo que projeta sobre a idéia do acaso todo o frêmito da
vitalidade concreta e do sentimento agudo do moderno.60
De fato, em uma palestra de 1935, Situação surrealista do
objeto,61 Breton voltaria a falar do acaso objetivo, mas,
desta vez, sem remetê-lo a Engels, porém apenas ao humor
objetivo de Hegel, exemplificado através de poemas de
Rimbaud, Apollinaire e Jarry: A atenção que, em todas as
oportunidades, me esforcei , de minha parte, por chamar para certos fatos
perturbadores, para certas coincidências desnorteantes, em obras como
Nadja, Os Vasos Comunicantes, e em diversas comunicações ulteriores,
teve como efeito o levantar, com uma acuidade inteiramente nova, o problema
do acaso objetivo, ou, por outras palavras, dessa espécie de acaso através
do qual se manifesta ao homem, de modo ainda muito misterioso, uma
necessidade que lhe escapa, muito embora ele a sinta vitalmente como
necessidade. Esta região do acaso objetivo, ainda quase inexplorada, é, creio
eu, a que mais merece, no momento presente, que nela demos prosseguimento
a nossas investigações. É totalmente limítrofe da região que Dali escolheu para
nela exercer a atividade crítico-paranóica. Ela é, por outro lado, o lugar de
manifestações tão exaltantes para o espírito, nela se infiltra uma luz tão
próxima de passar pela luz da revelação, que o humor objetivo se despedaça,
até segunda ordem, contra suas muralhas abruptas.
Mas o que faz que realidade e consciência se
subordinem ao sonho? Em Les vases communicants, Breton dá a
resposta. É o desejo: Muito mais significativo é observar como a
exigência do desejo em busca do objeto de sua realização dispõe
60 Em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.61 Da edição Nau, já citada, dos Manifestos do Surrealismo, bem como de Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.
39
estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a só reter deles
aquilo que pode servir a sua causa. A vã agitação da rua tornou-se pouco mais
incômoda que o movimento das cortinas. O desejo está lá, cortando o tecido
que não muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e
frágil entre os pedaços. Ele não cederá a nenhum regulador objetivo da
conduta humana.
Se, de um lado, faz crítica marxista à psicanálise
freudiana ao questionar seu dualismo, de outro procede à
freudização do marxismo, ao colocar não só o comportamento
humano mas o mundo todo sob a regência de Eros. Sobrepondo-
se ao estudioso de Hegel e Marx, bem como de Freud, está o
hiper-romântico.
É possível entender marxismo e surrealismo, revolução
e revolta, como sendo complementares. O surrealismo
equivaleria à subversão e à revolução no plano simbólico,
na superestrutura, complementando ou antecipando a
transformação na base da sociedade. Mas isso nada tinha a
ver com a instalação do estado soviético. Era infrutífera a
tentativa bretoniana de dialogar com o PC, como na parte
final de Les vases communicants, ao defender o conhecimento
intuitivo e uma atitude sintética na qual se encontram conciliadas a
necessidade de transformar radicalmente o mundo e aquela de interpretá-lo
do modo mais completo possível. Tanto é que expoentes do marxismo
francês, como Henri Lefebvre e Georges Politzer,
questionaram frontalmente esse livro.62
Por representarem a censura, a restrição à criação e à
expressão, tinham lógica as objeções de ideólogos e
62 Também conforme as notas de Marguerite Bonnet em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.
40
burocratas do PC ao surrealismo, por eles diagnosticado
como expressão e sintoma da decadência burguesa. Imagine-se
o que devem ter pensado militantes mais ortodoxos diante
desta passagem: Há toda espécie de meios de conhecimento, e certamente
a astrologia poderia ser um deles, dos menos negligenciáveis, à condição de
que sejam controladas as premissas e que seja tido por postulado aquilo que é
postulado. Isso, enquanto a ciência soviética adotava uma
psicologia estritamente pavloviana, banindo Freud e a
psicanálise, além de oficializar a biologia de Lisenko,
fraude científica tida por coerente com a doutrina, e
expurgar formalistas.
Temas, enredos, obsessões, revelações através dos
signos da cidade como em Nadja e Les vases communicants, tudo
isso reaparece em O Amor Louco, porém agora na chave
positiva, da realização do desejo. Os acontecimentos nele
descritos novamente invertem a relação habitual entre
narrativa e realidade, levando Breton a sentir o mundo
transformar-se em floresta de indícios, sinais do que viria. O
livro começa onde Nadja termina, comentando a beleza
convulsiva do cristal, dos corais, da vegetação do fundo do
mar, dos “belos como” de Lautréamont, e de um trocadilho,
um desses indícios, ouvido em um restaurante que, a partir
das bijuterias de uma garçonete, torna-se microcosmo de um
acontecimento planetário:
A 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua
(fenômeno esse que só acontecia uma vez por ano), almoçava eu num pequeno
restaurante, situado, bastante desagradavelmente, à entrada de um cemitério.
[...] A criada é muito bonita: ou melhor, poética. Nessa manhã de 10 de
41
abril trazia ela, sobre uma gola branca salpicada de bolas vermelhas, muito a
condizer com o vestido preto, um finíssimo cordão donde estavam suspensas
três límpidas gotas de água como que feitas de pedra lunar, gotas redondas
sobre as quais se destacava, na parte de baixo, um crescente da mesma
matéria, engastado do mesmo modo. Pude apreciar, uma vez mais, a
coincidência entre a jóia e o eclipse. Como tentasse situar a rapariga, tão bem
inspirada para aquela ocasião, ouvi, de repente, a voz do lavador de louça: “Ici
l’Ondine!”, e a resposta estranha, infantil, quase ciciada, perfeita: “Ah,! Oui, on
le fait ici, l’On dîne!”. Que cena poderá haver de mais comovente? [...] A
beleza convulsiva terá que ser erótico-velada, explodente-fixa, mágico-
circunstancial, ou não será beleza.63
Em O Amor Louco há um descompasso e trocas de lugar,
até mesmo inversões, entre o tempo da narrativa e as datas
dos acontecimentos narrados. Foi sendo escrito ao longo de
três anos, de 1933 a 1936, à medida que os acontecimentos
nele relatados se desenrolavam.64 Suas partes foram
publicadas separadamente, depois reunidas em livro, e o
trecho citado é anterior ao encontro com Jacqueline Lamba e
à “noite do girassol”. Mas o jogo de palavras, “aqui, a
Ondina” e “aqui se janta” (ici, l’on dîne), o antecipa, pois
Jacqueline se exibia em um número de mergulho em um
aquário, assim encenando uma ondina, ninfa das águas.
Nesses dias antecipatórios, nos quais, independentemente
do que possa acontecer, a espera é magnífica, Breton descobria
objetos que pareciam apontar além de si mesmos, despertando a
atração do jamais visto, o oposto do mesmo, do lugar comum.63 As citações são da edição da Estampa de O Amor Louco, já mencionada.64 Ver as notas por Marguerite Bonnet, no volume II de OeuvresComplètes de Breton.
42
Assim consagrou o objet trouvé, o objeto achado, como modo de
criação artística. Ao percorrer o Mercado de Pulgas, a
feira parisiense de antiguidades e velharias, em companhia
do escultor Alberto Giacometti, este comprou uma estranha
máscara gradeada. Breton, por sua vez, ficou com uma colher
de madeira com um cabo longo e um suporte, um apoio
semelhante a um salto, dando ao todo uma forma de sapato
alongado.
A máscara acabou servindo a Giacometti como peça de
que precisava para completar uma das suas esculturas. E a
colher, enquanto Breton, já em casa, a examinava,
transformava-se. Como em uma alucinação, ganhava em brilho,
a madeira assemelhando-se aos poucos ao vidro, até
converter-se no sapato de cristal perdido de Cinderela.
Essa imagem vinha-lhe aparecendo em sonhos, e à sua mente
ocorria a aliteração le cendrier de Cendrillon, o cinzeiro da
Cinderela, levando-o a pedir a Giacometti que o modelasse.
Antes que o escultor o atendesse, a imagem do sonho foi
encontrada na realidade. Assim, dois objetos encontrados, a
máscara e a colher-sapato, preencheram desejos de seus
possuidores, sem que estes o percebessem de imediato.
Breton observa que a transformação da colher-cinzeiro
em sapato é sincrônica com relação à metamorfose da abóbora
em carruagem na história da Cinderela. É um duplo objeto: o
instrumento de cozinha que ela usava, e o sapato de
cristal, ligação ou veículo para a transformação em
princesa, revelando sua identidade. Adotando o pensamento
analógico, o sapato existia na colher, assim como a Gata
43
Borralheira era, antes de vir a sê-lo, a mulher eleita,
símbolo da realização do amor único. Essa permuta prefigura
um dos jogos que os surrealistas viriam a praticar, o "um
no outro",65 aplicação do princípio da analogia, pelo qual
cada coisa partilha propriedades de outras. Obedecem,
portanto, ao mesmo princípio que os deslocamentos e
condensações do sonho. Mas, em O Amor Louco, tomam conta da
realidade, ou da surrealidade: O objeto “achado” desempenha aqui,
rigorosamente, a mesma função do sonho, no sentido em que liberta o
indivíduo de escrúpulos afetivos paralisantes, em que o reconforta e lhe faz
compreender que o obstáculo que ele tinha razões para crer insuperável foi,
finalmente, franqueado.
Já a máscara comprada por Giacometti revelou-se um
instrumento de guerra. Outro poeta, Joë Bousquet, contou-
lhes que havia sido usada na Primeira Guerra Mundial,
mostrando-se ineficiente como proteção, causando a morte de
soldados. Vê-se que a colher-sapato e a máscara gradeada
são complementares, ligados à vida e à morte, a cada uma
das dimensões primordiais ou instintos básicos, Eros e
Tanatos.
E, culminância do acaso objetivo, Breton, enquanto
examinava a máscara na feira, sem saber era observado por
ninguém menos que Suzanne Musard, a mulher que o
abandonara, também impressionada com esse objeto, e seu
companheiro Emmanuel Berl. Daí que: A minha perturbação, e talvez,
antes de mim, perante essa máscara – sobre cuja utilização viriam a ser-me
dados, daí a pouco, tão penosos esclarecimentos –, a estranha figura (em
65 Ver, a respeito, o ensaio Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia de Maria Lúcia Dal Farra, já citado.
44
forma de X, meio claro, meio obscuro) formada por esse encontro, por mim,
mas não por ela, ignorado, encontro esse centrado precisamente sobre tal
objeto, levaram-me a pensar que ele, naquele instante, catalisava o “instinto de
morte” (instinto que, após a perda de um ser amado durante muito tempo me
dominou), por oposição ao instinto sexual que, uns passos mais à frente, iria
encontrar satisfação com a descoberta da colher. Assim se confirma, o mais
concretamente possível, a proposição de Freud: “Esses dois instintos, tanto o
sexual como o da morte, comportam-se como instintos de conservação, no
sentido mais estrito da palavra, pois tanto um quanto o outro tendem a
reinstaurar um estado que o aparecimento da vida veio perturbar.” Tratava-se,
porém, de ser de novo capaz de amar, e não só já de continuar a viver!
Portanto, há, nesse episódio, em cuja interpretação se
confundem psicanálise e magia, um complexo jogo de
encontros e desencontros, achados e perdas. Breton
encontrou na realidade o que Cinderela perdera na fábula.
Por sua vez, era observado, encontrado ao acaso, por
Suzanne, a mulher que havia perdido. Uma trama dessas
fortalece a interpretação psicanalítica sugerida por Jean-
Luc Steimetz66 para a associação da colher-sapato à
Cinderela e ao modo como essa lenda povoava as fantasias de
Breton: a perda de Suzanne Muzard fora o avesso da história
da Gata Borralheira. Mas esses encontros cruzados não foram
apenas escritos, sonhados ou imaginados: aconteceram.
Trata-se de psicanálise, não só do texto, do simbólico, mas
da realidade, extrapolando a esfera do psíquico, de modo
conforme ao que Breton propôs em Les vases communicants.
66 Steinmetz, Jean-Luc, André Breton et les surprises de l’amour fou, PressesUniversitaires de France, Paris, 1994
45
O Amor Louco vai além do relato de encontros e
descobertas de objetos e símbolos. Seu tema é o acesso à
revelação: É como se, de repente, fosse desvendada a profunda noite da
existência humana, como se, tendo a necessidade humana aceito formar um só
todo com a necessidade lógica, todas as coisas adquirissem uma total
transparência, tudo se ligasse entre si como uma cadeia de vidro à qual não
faltasse um só anel. Trata de nada menos que a descoberta da lei
de produção do misterioso intercâmbio entre a matéria e o espírito. É,
portanto, um livro sobre magia, embora Breton não use a
palavra ao tratar do modo como o sujeito, movido pelo
desejo, altera, inverte ou subverte a causalidade e a
temporalidade.
No encontro, seja com a colher-sapato ou com a amada,
resolve-se a tensão entre a espera e a descoberta, o desejo
e a realização. Um curto-circuito quando é abolida a sensação do
tempo, com a embriaguez da sorte. Cresce, diz ele, a consciência
de que existe esse homem vivo que, alguma vez, tentou, ou tenta ainda re-
equilibrar-se sobre o traiçoeiro trapézio do tempo. Assim manifesta-se o
acaso objetivo, através de acontecimentos sob o signo da
espontaneidade, da indeterminação, do imprevisível ou até mesmo do
inverossímil. Esta é a forma da necessidade exterior se manifestar, ao abrir
caminho através do inconsciente humano.
Abandonando o tom de relatório, quase diário, das
passagens centrais de Nadja, em favor de longos trechos de
poesia em prosa, Breton quis expressar sentimentos e
emoções, minhas disposições mentais e afetivas. Ao encontrar uma
desconhecida, escandalosamente bela, diz, confunde-a com o
universo e a faz partilhar suas qualidades. Seus cabelos
46
são chuva clara sobre castanheiros em flor, da cor de um sol
extraordinariamente pálido. Aparece rodeada de um vapor - vestida de
labaredas? - Tudo perdia a cor, tudo gelava em presença daquela tez de sonho,
perfeita concordância de tons de ferrugem e de verde. O nome da mulher
a quem Breton conheceu não é dito em O Amor Louco. Sabemos,
através dos biógrafos, tratar-se de Jacqueline Lamba. Sua
foto de corpo inteiro, publicada no livro, é pouco nítida,
embaçada, pois, ondina antecipada, ela foi fotografada
debaixo da água, em seu mergulho visto através do vidro de
um aquário.
Breton pergunta o que ela estaria escrevendo: Aquela
mulher que acabava de entrar escrevia, pois, - já na véspera a vira escrever, e
até me agradou pensar que era para mim que escrevia, e até vim depois a dar
comigo à espera de uma carta sua. Logo saberia que o texto
escrito por Jacqueline à mesa do bar, na primeira ocasião
em que a viu, era de fato uma carta para ele (por
recomendação de um primo, era sua leitora). Mais uma
ocasião, portanto, em que um texto precedeu acontecimentos.
Marcaram de ver-se mais tarde, à meia-noite, no Café des
Oiseaux em Montmartre. Saindo dali, caminharam conduzidos
pelo vento: esse belo vento que nos impele e que decerto não irá amainar.
O vento do eventual, invocado em Les pas perdus, os acompanhou
enquanto desciam a Rua Montmartre, atravessando um bom
pedaço de Paris. Mas Breton não descreve o percurso
completo. Seu relato recomeça em Les Halles, onde passam
pela porta dos bares de fim de noite e observam o movimento
de caminhões descarregando verduras no velho mercado.
Prosseguem pelo quarteirão dos alquimistas e da Torre
47
Saint-Jacques, passam pelo Hôtel de Ville, atravessam o
Sena na altura da Catedral de Notre-Dame. Antes de se
perderem por ruelas do Quartier Latin, detiveram-se no Cais
das Flores, onde floristas descarregavam vasos de plantas e
armavam suas barracas. A cena inspirou-lhe novas passagens
de exaltada poesia em prosa: Límpida fonte, onde vem se refletir e
dessedentar a vontade de arrastar comigo um outro ser, desejo meu de
percorrer a dois - e já que antes não me fora possível fazê-lo - o caminho
perdido ao sair da infância, o caminho que entre prados se insinuava,
rodeando de bálsamos aquela mulher ainda desconhecida, a mulher que um
dia haveria de me aparecer. Será você, finalmente, essa mulher? Só hoje, enfim,
você deveria aparecer?
Desconhecemos o restante da caminhada, por onde
passaram depois de enveredar pelo Quartier Latin, em uma
rota que os conduziu ao casamento, dois meses depois.
Antes, enquanto deixava, como era seu hábito, o espírito
vaguear pela manhã, Breton lembrou-se de um de seus poemas,
escrito em 1923, na época em que procurava cartazes
anunciando carvão de lenha e cruzava com moças misteriosas
fazendo perguntas aos passantes em Saint-Germain-des-Prés.
Escrito no modo automático, publicado em Clair de Terre,
dedicado a Pierre Reverdy, intitula-se Tournesol, girassol,
imagem de sua predileção, a flor que se move acompanhando o
sol. Dúvidas de Breton sobre o poema foram respondidas onze
anos depois, ao perceber que falava do encontro com
Jacqueline.
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Por sua importância como “poema profético”, cabe
reproduzir Tournesol:67
A viajante que atravessou os Halles ao cair do Verão
Caminhava na ponta dos pés
O desespero rolava pelos céus seus grandes arãos tão belos
E na valise de mão escondia-se meu sonho esse frasco de sais
Que só a madrinha de Deus aspirou
Os torpores pairavam como vapor de água
No "Chien qui fume"
Onde o pró e o contra acabavam de entrar
Difícil lhes era ver a moça só de soslaio a viam
Estaria eu diante da embaixatriz do salitre
Ou da curva branca sobre fundo negro a que se chama
pensamento
O baile dos inocentes estava no auge
Nos castanheiros incendiavam-se devagar os lampiões
A dama sem sombra ajoelhou-se no Pont-au-Change
Na Rua Gît-le-Coeur outros eram agora os timbres
As promessas da noite cumpriam-se finalmente
Os pombos-correio os gritos de socorro
Vinham juntar-se aos seios da bela desconhecida
Dardejados sob o crepe dos significados exatos
Uma chácara prosperava em pleno centro de Paris
Com suas janelas viradas para a Via Láctea
Mas ninguém lá morava ainda por causa dos que viriam a
aparecer
Dos que mais dedicados são que as almas do outro mundo67 Utilizo a tradução de Luiza Neto Jorge, na edição citada de O Amor Louco.
49
Alguns como esta mulher mais parecem nadar
E no amor insinua-se algo de sua matéria
Ela os interioriza
Não sou joguete de nenhuma força sensorial
E no entanto o grilo que cantava sobre os cabelos de cinza
Certa noite junto à estátua de Etienne Marcel
Lançou-me um olhar cúmplice
André Breton disse ele está passando
Breton mostra como o poema antecipa sua caminhada com
Jacqueline, pela coincidência das referências urbanas no
texto e lugares por onde haviam passado naquela noite. Na
frase inicial, a travessia de Les Halles pela viajante que,
dançarina, caminha na ponta dos pés. E que, adiante, parece
nadar: a dançarina-mergulhadora. No final, a estátua de
Etienne Marcel na praça ao lado do Hôtel de Ville; o Pont-
au-Change, que leva ao Cais das Flores e ao Quartier; a Rua
Gît-le-Coeur, no caminho do Quartier, vindo pelo Pont-au-
Change. Além das correspondências de trechos do poema com
etapas da caminhada, há outras, como na menção aos pombos-
correio. O primo de Jacqueline que já conhecia Breton e lhe
indicara seus livros era André Delons:68 na época, prestava
serviço militar e estava ligado a um centro columbófilo,
uma criação de pombos-correio. Breton acabara de receber
uma carta dele, em um envelope timbrado com o carimbo desse
centro columbófilo.
Essas são as correspondências mais flagrantes. Mas
Breton vê mais: referências a seus estados de espírito na68 Cf. Marguerite Bonnet nas notas para Oeuvres Complètes, vol. II, e Jean-Luc Steinmetz, já citado.
50
época, o desespero, torpores, a sensação de ser um joguete
de forças desconhecidas. Observa que, caminhando lado a
lado, só podia ver Jacqueline de soslaio, da forma como
está no poema. Relaciona imagens à prática da alquimia à
sombra da Torre Saint-Jacques e à emblemática figura de
Nicolas Flamel. Associa o grilo do poema a outro, figurante
em Os Cantos de Maldoror (no Canto VI, aunciando a chegada de
Maldoror). Destaca a confluência de paixões que recebem
respostas de todo o Universo, das chácaras brotando
inesperadamente em Paris até a Via Láctea. Afirma, de modo
conclusivo, ...que nada existe nesse poema de 1923 que não seja um
prenúncio daquilo que, em 1934, de mais fundamental me viria a acontecer.
Conforme observa Jean-Luc Steinmetz,69 o roteiro
seguido pelos dois e indicado em Girassol é previsível, um
caminho entre a região boêmia de Montmartre e o Quartier
Latin, percorrido por inumeráveis noctâmbulos. Apresenta
uma hipótese: não foi o poema do girassol que antecipou os
acontecimentos, mas, por seu conteúdo simbólico (analisado
em detalhe nesse ensaio, associado a experiências de
infância), por aquilo que suas imagens evocavam, dirigiu os
passos e a atenção de Breton.
De fato, comparar poemas e acontecimentos, do modo
como Breton o fez em O Amor Louco, pode acabar mostrando que
inumeráveis encontros amorosos já foram anunciados por
outras tantas produções do lirismo romântico. Quantos
apaixonados não tiveram experiências semelhantes à
revelação? Quantos não se sentiram retratados em um poema
inesperadamente descoberto ou redescoberto? Não conflita69 No já citado Les surprises de l’amour fou.
51
com o pensamento de Breton identificar o acaso objetivo à
experiência poética em si, atribuindo uma dimensão mágica à
própria poesia; menos ainda, vinculá-lo à realização
amorosa. É a interpretação de Octavio Paz:70 Todos nós fomos
heróis ou testemunhas de acontecimentos inexplicáveis. [...] E em nossa
vida diária, não é o amor, de maneira soberana, a ardente encarnação do
acaso objetivo? As perguntas que faziam Breton e Éluard na revista
Minotaure: “Qual foi o encontro capital de sua vida? Até que ponto esse
encontro lhe deu a impressão do necessário ou fortuito?, podemos todos repeti-
las. E tenho certeza de que a maioria responderia que esse encontro capital,
decisivo, destinado a nos marcar para sempre com sua garra dourada, se
chama: amor, pessoa amada. Para o poeta e ensaísta mexicano,
acompanhando o pensamento bretoniano, o encontro amoroso é
a síntese do acaso e necessidade: Nenhum de nós poderia afirmar
com inteira certeza se esse encontro foi fortuito ou necessário. [...] O
acaso objetivo é uma forma paradoxal da necessidade, a forma por excelência
do amor: conjunção da dupla soberania de liberdade e destino. O amor nos
revela a forma mais alta da liberdade: livre eleição da necessidade.
Se os capítulos iniciais de O Amor Louco são a crônica
da espera – quando, independentemente do que possa ou não acontecer,
a espera é magnífica – e se o trecho seguinte, da caminhada por
Les Halles e da evocação do Girassol, é a celebração do
encontro e o triunfo do acaso objetivo, então a continuação
da narrativa corresponde à realização do desejo, o único
rigor que o homem se deve impor, e à suspensão do tempo: A morte,
cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra
70 Em La búsqueda del comenzo ou André Breton e a busca do início, seu ensaiosobre Breton e surrealismo, já citada aqui.
52
sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para cantar as
horas que não passam.
Como etapa de uma viagem a lugares onde havia
manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline chegam às
Ilhas Canárias em abril de 1935. Lá, em plena natureza
reconciliada, possuído pelo delírio da presença absoluta, vê no Pico
de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim
do Éden, a Idade do Ouro reconquistada (a programação
surrealista à qual compareciam exibia L’Age d’Or de Buñuel).
Tem uma experiência mística – o contato involuntário com um só
ramo de sensitiva é o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de nós, o
prado inteiro – à qual responde com o melhor de sua poesia em
prosa. Transcreve a música sobreposta aos nossos passos sobre
praias de areia branca e de areia negra, passando por
matizes e gradações da água do mar, por uma vegetação de
figueiras de raízes que mergulham na pré-história, sempre-
vivas com folhas refletindo a Unidade, eufórbias e
pitangas, cactos de muitas formas.
É interessante como Breton, nessa passagem, apresenta
um relato detalhado de toda essa vegetação, acidentes
geográficos, a paisagem e natureza do Pico de Teide.
Estaria, aparentemente, abdicando de sua postura anti-
realista, contrária à descrição. Mas Steinmetz, no ensaio
já citado, observa, com agudez, que esse lugar, cenário da
plenitude amorosa de Breton e Jacqueline, é concretização
do sonho, surrealidade realizada. Daí a mudança de foco a
que Breton procede, substituindo imagens, ou
complementando-as, por uma prosa barroca. Faria o mesmo em
53
Arcano 17, ao descrever a paisagem do rochedo de Percé, na
Gaspésia.
As flores de Orotava não são mais aquelas da feira no
cais do Sena, breve irrupção da natureza na cidade. Agora
ocupam tudo, até que os amantes se confundam com elas: A um
sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor
fascinante e fatal. No interior da flor, no seio da oblíqua claridade,
experimenta a plenitude, pois a suficiência total que, naturalmente,
reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o
mínimo obstáculo. Dentro da flor e dentro da nuvem, do puro
informe: quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre
nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a esses
mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma
nuvem.
Nuvens são um lugar do encontro entre desejo e
realidade: levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a
melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos. E mais: é
perceber que toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade
se encontra aqui implicitamente solucionada, pois a surpresa não é mais
que a fusão do natural e do sobrenatural no seio de um mesmo objeto.
Leonardo da Vinci, lembra Breton, pedia a seus alunos que
olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que
viam desenhar-se nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na
parede são as telas em que se projetam imagens do desejo: O
homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor,
aceitar reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada
tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela
existe. Qualquer existência comporta um todo homogêneo de fatos
54
aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos mais
fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.
Breton ainda lembra Baudelaire, que, no poema A Viagem,
final da primeira versão de As Flores do Mal, também associa
nuvens ao desejo e ao acaso: As maiores regiões, a mais pujante
aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com
as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!71
Essa projeção do desejo é magia, invocação do acaso
objetivo: Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso
encontro - se tiver valido a pena interrogá-las - as forças do acaso objetivo,
que nada querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende
saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de
desejo.72 [...] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem,
para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que
o homem deve se impor?
O final do capítulo é uma apoteose: em mais uma das
aproximações bretonianas de opostos, evoca Almani,
personagem da Nouvelle Justine de Sade, masturbando-se no topo
do Etna para misturar seu esperma à lava incandescente; e,
na página seguinte, o Pico de Teide é o diamante, Deria-i-
Noor e Koh-i-Noor, equivalente à pedra filosofal.
O Amor Louco se encerra com uma carta de Breton para sua
filha Aube, a ser lida em 1952, quando ela tivesse
dezesseis anos. Texto para o futuro, exalta o amor único e
declara a esperança de que viesse a ser loucamente amada.
Mas a história dos encontros de Breton com Jacqueline e das
intervenções do acaso objetivo termina, depois da homenagem
71 Conforme a tradução no já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.72 Os negritos são do próprio Breton.
55
ao desejo entre as nuvens de Orotava, com um capítulo
sombrio, onde a tônica dominante é a morte.
A complementaridade de Eros e Tanatos está presente no
início do livro, com a história do par de objetos
encontrados, a máscara militar e a colher-sapato, e em seu
final, com o episódio da "casa das raposas". Mudando de
estilo, ou de registro, passa da fusão de reflexão
filosófica e poesia em prosa a um relato descritivo. Conta
como ele e Jacqueline, já em 1936, passavam alguns dias no
litoral da Bretanha, em Lorient, terra de origem de sua
família e de seu sobrenome. Em uma tarde de mau tempo,
caminham por uma praia deserta e perdem-se na desolação.
Sentem que não conseguirão mais sair dessa extensão
sombria. Tomados por uma crescente depressão e uma sensação
de pânico, são incapazes de falar-se: De nada servia esperarmos
um pelo outro: impossível trocarmos uma palavra que fosse, passar um pelo
outro sem desviar a cabeça e estugar o passo. O mal-estar chega ao
máximo ao passarem por uma casa desabitada. Vê-a cercada de
grades metálicas. Atravessam um riacho que dá em um costão
de praia, um monte de pedras e, logo adiante, uma antiga
fortaleza abandonada. À medida que se afastam da casa e do
desvio com o riacho, a paisagem se abre e passa a sensação
opressiva que os possuíra. Ao refletir sobre o ocorrido,
percebe que o mal-estar e a ruptura eram delirantes. E fica
sabendo que a casa por onde haviam passado fora o local de
um crime famoso. Seu dono, Michel Henriot, a quem pertencia
o trecho até o velho forte, havia assassinado sua mulher,
para ficar com o dinheiro do seguro. Retornando ao lugar,
56
Breton reparou que a casa era rodeada por um muro alto de
cimento, e não, conforme havia visto pela primeira vez, por
uma rede metálica, o cercado das raposas. Subindo no muro,
viu as redes metálicas que guardavam as raposas: Foi, portanto,
como se no dia 20 de julho (quando passou por lá a primeira vez)
esse muro se me tivesse apresentado transparente.73
Como leituras para a temporada no litoral norte
francês, Breton e Jacqueline haviam trazido dois livros
emprestados por um amigo. Um deles, A Raposa de Mary Webb;74
o outro, A Mulher Transformada em Raposa de David Garnett. A
crise no relacionamento deles não se encerrou ao saírem dos
domínios da casa das raposas, como é dado a entender em O
Amor Louco. Logo teriam uma separação prolongada, para
romperem de vez em 1943. E as causas da separação não se
resumiram à passagem pelos arredores de uma casa mal-
assombrada. Esta pode ter precipitado o que estava latente.
Mas, assim como o encontro deles já estava sugerido no
poema do girassol, aquele pesadelo estava antecipado em uma
escolha de livros: É preciso reconhecer, quer se queira, quer não, que
esses dois livros por certo desempenharam, na elaboração do que para nós foi
esse longo pesadelo acordado, um papel mais que determinante e decisivo.
Apresentado inicialmente em Les vases communicants, depois
de O Amor Louco o acaso objetivo vai desaparecendo da obra
bretoniana. Deixa de ser mencionado em seus ensaios,
manifestos e entrevistas posteriores. Fica-se com a
impressão de uma perda de sua importância como categoria ou73 Aqui, e na citação seguinte, os negritos são de Breton.74 Mais tarde, seria filmado, protagonizado por Jeniffer Jones. Éa história de uma mulher que se identifica com raposas e acabamorta pelo marido, um caçador.
57
conceito, apesar dos acontecimentos e textos fascinantes
aos quais está ligado. Talvez isso se relacione com outras
mudanças no pensamento bretoniano.
Em O Amor Louco, Breton reapresentou sua interpretação
materialista e freudiana, já proposta em Les vases
communicants, do que é atribuído por alguns à intervenção do
sobrenatural e negado por outros, que o reduzem à mera
coincidência em nome do bom senso ou do saber científico.
Mas a sua é a voz de um poeta, e não de um psicanalista ou
cientista social. A mobilização do pensamento dialético e
da psicanálise não o impediu de querer chegar, no Segundo
Manifesto do Surrealismo, a um certo ponto do espírito, onde vida e morte,
real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e
o baixo, deixem de ser percebidos como contraditórios. Em outras de
suas obras, inclusive em O Amor Louco, iria referir-se a um
ponto sublime e um ponto ideal, encontrado em Orotava.
Até que ponto o surrealismo é mesmo um materialismo,
como sustentava Breton, ou um misticismo impregnado de
idealismo, suscitou polêmicas, alimentadas por André Breton et
les donnés fondamentales du surréalisme de Michel Carrouges.
Acertadamente, esse ensaísta observou, no capítulo dedicado
ao acaso objetivo, que a idéia de um ponto supremo é
importante no esoterismo. No Zohar dos cabalistas,
corresponde à letra Yod, ao Kéther, coroa da árvore
sefirótica, como ponto central, causa de todas as coisas. Localiza-o
em John Dee, como mônada hieroglífica; em Nicolau de Cusa, como
centro invisível do mundo e do Tempo; no texto atribuído a
Christian Rosenkreutz; e em René Guénon, que o considera
58
equivalente ao centro da cruz, síntese dos contrários.
Carrouges ainda cita Éliphas Lévi para confirmar que o
ponto supremo é, na tradição esotérica, a instância impalpável,
central e ao mesmo tempo presente em todas as partes.
Mesmo contando com a simpatia de Breton, Carrouges,
intelectual católico, teve seu livro questionado quando de
sua publicação em 1950. Com sua argumentação, conforme
observa Jean-Louis Bédouin, promoveu um deslizamento da
transfiguração alquímica à redenção.75 Além disso, na tradição, não
apenas ocidental mas oriental, o ponto supremo é uma
origem. Equivale à unidade primordial, e a cisão dessa
unidade corresponde à queda. A noção de queda, tanto da
teologia cristã quanto do gnosticismo, está fortemente
presente em Baudelaire ou em Huysmans, associada à
compreensão do mundo como emanação degradada a partir da
separação do Todo, e constitui a base ontológica do
decadentismo literário. Mas as circunstâncias em que foi
escrita a passagem do Segundo Manifesto não permitem dúvidas
de que, para Breton, a superação das antinomias
correspondia à solução das contradições fundamentais.
Portanto, é na história, na temporalidade, que se
realizaria, mesmo significando seu fim, e não em outro
plano, dissociado do mundo. Daí que, conforme a frase final
de um dos seus poemas, O hino do futuro é paradisíaco.
É correto afirmar que o surrealismo prossegue uma
tradição hermética e ocultista. Inverte-a, porém, em sua
visão da história, do devir humano. Grupos e seitas de
eleitos e iluminados do século XVIII, liderados ou75 No já citado Vingt ans de surréalisme.
59
inspirados por Louis-Claude de Saint-Martin, Lavater e
Martinez de Pasqually, seguidores de Böhme e Swedenborg, e
que tamanha influência exerceram sobre a poesia romântica,
pretendiam-se, em seu confronto com a Igreja Católica,
avatares ou continuadores do cristianismo esotérico ou
primitivo, uma religião primeira, pura, não-degradada.76
Apresentavam-se como hiper-cristãos, porta-vozes do
Evangelho e dos profetas. No surrealismo há uma negação
frontal, não só do monoteísmo judaico-cristão, mas da
herança greco-romana, acusada (à semelhança da crítica
nietzscheana) de haver inaugurado o racionalismo. O arcaico
e primitivo foram valorizados pelos surrealistas nas
culturas estranhas ao Ocidente, nas sociedades tribais da
África e Oceania e em sua produção artística, nos Maia, nos
Hopi, e nos índios sul-americanos com Benjamin Péret. Mas o
mundo mítico, regido pelo pensamento analógico, é fonte de
contribuições para a realização futura da Idade do Ouro, e
não o illo tempore idealizado, de modo nostálgico e
regressivo. Em acréscimo, o que impulsiona o homem, e, por
extensão, a história, é, para Breton, algo bem material, o
desejo. De modo coerente, politiza sua busca romântica do
amor único. É a sociedade burguesa, regida pela
mercantilização e instrumentalização das relações humanas,
que conspira contra o amor. Encontros que se realizam e
culminam na consagração do amor único, com Jacqueline em O
76 Conforme o substancioso levantamento de Auguste Viatte, Les Sources Occultes du Romantisme; Illuminisme – Théosophie; 1770 – 1820; 2 volumes, Librairie Ancienne Honoré Champion, Paris, 1928
60
amor louco ou Elisa em Arcano 17, são acontecimentos
políticos, vitórias da poesia, amor e liberdade.
Ainda assim, há ambigüidade no poeta que trafega na
zona cinzenta entre misticismo e materialismo, recusa do
transcendentalismo e religiosidade herética. Misticismo da
imanência, sim, e religiosidade sem Deus, mas que permite a
Breton dizer, em O Amor Louco, que enxerga o símbolo da
busca surrealista, a síntese do racional e do real, em uma
folha de sempre-viva. É uma visão semelhante à de Jacob
Böhme enxergando o universo em um prato de estanho, e a
tantos outros vislumbres de iluminados que viram o
macrocosmos no microcosmos, o todo em uma das partes. Claro
que seu misticismo é herético: Nunca houve qualquer fruto
proibido. Só a tentação é divina.77 Mas leva a paradoxos como, no
Segundo Manifesto, sugerir a permanência física de Nicolas
Flamel poucas páginas depois da enérgica profissão de fé no
materialismo dialético, e declarar-se fantasma, entidade
equivalente à sombra na caverna de Platão, no início de
Nadja.
É possível enxergar em Breton uma deriva do marxismo
para o misticismo? A fundamentação enfática em Marx e
Engels de Les Vases Communicants já não está presente em O
Amor Louco. A tensa relação com o PC explodiria de vez em
1935, com as denúncias em Posição política do Surrealismo,
mostrando a equivalência do regime soviético com aquilo que
a sociedade burguesa tinha de mais retrógrado.
Concomitantemente, o apoio a Trotsky, a traduzir-se no
manifesto Por uma arte revolucionária independente, de 1937. Mas em77 Também em O Amor Louco.
61
1942, em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não,78
Breton expressaria restrições ao racionalismo de Trotsky,
ao sustentar idéias como a dos Grandes Transparentes e do
homem não mais como centro do universo, porém como parte de
um todo.
Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel
central, a começar pelo título, referência à carta 17 do
Tarô, a Fortuna. Nesse relato, Breton substitui Marx e
Engels por Gérard de Nerval, seu interlocutor imaginário. E
em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, volta-se
novamente contra o que denomina de pensamento racionalista, e,
frisa, sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei
perdoado, propõe-se a convencer o homem de que ele não é
obrigatoriamente o rei da criação, como se vangloria. Pergunta sobre a
oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes
Transparentes. Observa que o homem não é talvez o centro, o ponto de
mira do Universo, e critica ao antropomorfismo, a crença de
que o mundo encontra no homem o seu acabamento. Dando sua
palavra final em matéria de manifestos, diz, no último
parágrafo de Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953, que, a
esse respeito, sua posição [do Surrealismo] se uniria à de Gérard de
Nerval no famoso soneto Versos Dourados. Nele, o autor de
Aurélia, expressando as idéias de Fabre d’Olivet, duvida de
que sejamos o centro do universo e os detentores exclusivos
da razão: Homem! livre pensador! serás o único que pensa/ Neste mundo
onde a vida cintila em cada ente? Expressando a visão pagã do mundo
78 Também em Manifestos do Surrealismo, ed. Nau, assim como ascitações a seguir.
62
animado, Nerval diz ainda que um mistério de amor no metal reside
dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das pedras.79
Sem que por isso o surrealismo perdesse em
combatividade, ou se afastasse da discussão dos temas
propriamente sociais e políticos, o mesmo movimento, no
sentido da sublimação, está presente em sua poesia da
década de 1940. Por isso, o livro que a reúne recebeu o
título de Signe ascendant,80 signo ascendente. Um de seus
poemas de maior fôlego é a Ode a Charles Fourier, sobre o
precursor do “socialismo utópico” e de uma visão da
sociedade regida pelo pensamento analógico, pelas
correspondências. Em outro poema da série, Les états géneraux,
invoca Fabre d’Olivet e sua idéia de uma linguagem
universal, e Saint-Yves d’Alveydre e seus estados gerais,
reflexo mundano da ordem cósmica. No prefácio, expõe uma
exigência que, em última análise, poderia ser de ordem ética, de que não
há reversibilidade entre os dois termos de uma imagem, pois
esta não equivale a uma equação. Do primeiro de seus dois
termos para o segundo, há uma tensão vital ilustrada pelo
apólogo Zen: Por bondade búdica, Bashô modificou um dia, com
engenhosidade, um haikai cruel composto por seu humorístico discípulo,
Kikakou. Este tendo dito: “Uma libélula vermelha – arrancai-lhe as asas – uma
pimenta”, Bashô susbtituiu: “Uma pimenta- ponham-lhe asas – uma libélula
vermelha.” Em outras palavras, a analogia entre dois termos
tem direção e aponta para o alto. A criação poética é assim
equiparada à sublimação.
79 Na tradução de Contador Borges no prefácio da edição já citadade Aurélia.80 Gallimard, coleção Poésie, 1975.
63
Mas, entre a origem a ser recuperada dos místicos e
esotéricos, ou a utopia que irá acontecer dos políticos,
entre passado e futuro, Breton dá uma terceira resposta: é
o agora, aqui, no presente. As cenas e episódios reais de O
amor louco também pertencem à ordem do onírico, do sonho,
ou, na passagem da casa das raposas, do pesadelo. O paraíso
recuperado está em Orotava, no Pico de Teide, no Cais das
Flores e no restante do percurso entre Montmartre e o
Quartier Latin, na Gaspésia de Arcano 17, e em todos os
lugares e momentos em que acontece o encontro e, através
dele, se realiza o desejo. Então, o mundo se confunde com o
sonhado.
Nessa perspectiva, não se pode propriamente falar em
profecia e antecipação, a propósito de O Amor Louco e de
tantos outros registros na crônica surrealista e em sua
criação literária. Há, isso sim, uma atemporalidade, uma
supressão da série cronológica. O símbolo é recuperado em
sua plenitude, e supera nossas categorias de espaço e
tempo, quando a espera se completa no encontro, quer seja
de objetos mágicos, de signos, da pessoa amada, ou de todas
essas instâncias, interligadas.
A prosa poética de Arcano 17 pode ser lida como
fechando a série de relatos poéticos, anunciada em Les Pas
Perdus, composta por Nadja, Les Vases Communicants e O Amor
louco.
Em outro registro (e outro contexto, pois escrevia
exilado nos Estados Unidos), Breton, em Arcano 17, volta a
celebrar a realização amorosa como grande síntese,
64
superação das antinomias, equivalente ao êxtase, ao estado
de graça, à iluminação. O corpo do livro se encerra com
reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi, ao
proclamar que Osíris é um deus negro. Termina saudando a
publicação do ensaio de Auguste Viatte sobre o diálogo
entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo como
ambos, o mago e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo
rebelde – que, ao nascer, negou-ser a ser escravo, dando à luz duas
irmãs, Poesia e Liberdade – à estrela da manhã, signo da
liberdade e do conhecimento, equivalente à própria revolta, a
única revolta criadora de luz; uma luz que só pode passar por três vias: a
poesia, a liberdade e o amor.
E, no final de Arcano 17, em um apêndice escrito em
1947, os encontros adquirem mais nitidamente o caráter de
uma aventura intelectual. Não são mais as mulheres,
desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, que vêm a
seu encontro movidas pelo acaso, porém obras, informações,
mesmo quando trazidas por pessoas. Já de volta a Paris,
relata a experiência de plenitude ao finalmente entrar na
Torre Saint-Jacques. Um de seus amigos lhe envia uma
mensagem: O maravilhoso. – Atenção, reflexão, lógica não me ajudam em
nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente. Encontra um
desconhecido. Segue-se um enredo através do qual chega a
suas mãos o livro de Jean Richer, Gérard de Nerval et les doctrines
ésotériques. Nele foi publicado, pela primeira vez, o retrato
de Nerval com sua frase, manuscrita, Eu sou um outro,
acompanhada por signos cuja decifração é proposta por
Breton. Os episódios desses dias de abril de 1947 o fazem
65
convencer-se de que estivera de fato em companhia de Gérard
de Nerval e de Nicolas Flamel, nas imediações da torre. Os
mais familiarizados com simbologia hermética reconhecerão o
sentido da subida à torre Saint-Jacques: é a entrada no
castelo iniciático onde está o cálice do Graal, que
equivale à pedra filosofal.
Como interpretar o acaso objetivo, e as idéias e
acontecimentos que o acompanham? O mais produtivo, evitando
campos do conhecimento que não interessam diretamente à
literatura, é tomá-lo em seu valor simbólico. Mais
precisamente, como metáfora da poesia e da sua relação com
o mundo. Isso, dando atenção ao modo como se inverte a
relação entre signos e coisas, textos e acontecimentos, na
obra de Breton. E à universalidade dessas aventuras
intelectuais, buscando superar o abismo entre palavras e
coisas, símbolos e acontecimentos, imaginação e realidade.
Sabe-se que previsões, antecipações e profecias
ocorreram na vida e obra de muitos poetas, surrealistas ou
não, como que realizando o que Rimbaud havia dito na Carta
do Vidente. Pode-se distinguir dois níveis da sua ocorrência.
Um deles é o do macrocosmo, dos grandes acontecimentos
históricos e períodos temporais, como em William Blake e
seus Poemas Proféticos, ou em Baudelaire, antevendo a
modernidade e descrevendo como seria a vida nas metrópoles,
bem como em Walt Whitman, com relação aos Estados Unidos de
hoje, ou no brasileiro Sousândrade vendo de modo
antecipatório Manhattan e uma utopia panamericanista.
Exemplos não faltam, e a constatação de Freud, de que
66
poetas já conheciam o inconsciente, é caso particular de
todo um histórico de previsões e antecipações, no plano dos
acontecimentos ou das idéias.
A imaginação e intuição em poesia e as descobertas em
outros campos do conhecimento são muito mais próximas e
interligadas do que supõe o desprezo cientificista com
relação a poetas. Certamente, relacionam-se com a própria
natureza da linguagem: sendo esta ativa, criadora, e não
apenas um reflexo do mundo das coisas, é capaz de produzir
realidade, conforme admitem estudiosos da linguagem e do
signo que lhe dão precedência com relação à consciência e à
estruturação do real (a exemplo da “tese de Whorf-Sapir”,
entre outras). Textos transgressivos, de ruptura, avançados
para seu tempo, de poetas “malditos” que demoraram a ser
reconhecidos ao se colocarem fora da perspectiva temporal,
também captaram o que viria, iluminaram aspectos
desconhecidos do real, na mesma medida em que criaram
linguagem, revitalizando-a e ampliando seu alcance. Para a
poesia, também vale a noção de toda-possibilidade invocada por
Breton a propósito do sonho em Les vases communicants.
No microcosmo do biográfico, da experiência pessoal,
as mesmas circunstâncias, compulsões e aparentes delírios
acabaram por revelar-se representações da realidade, e não
meras expansões da subjetividade. Se nossa atenção fosse
menos seletiva e a percepção mais aberta, haveria mais a
relatar sobre essas relações de idéias, fatos e símbolos,
onde, nesse limite já sob o comando do demônio da analogia de
Mallarmé, tudo é signo de outra coisa, remetendo a outro
67
plano de realidade. O surrealismo chegou a essas
antecipações pelo fluir da vida passiva da inteligência, conforme
propunha Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: nos
momentos marcados pela disponibilidade, a espera sem
objetivo definido; na escrita automática, liberta de
controles, permitindo que signos se encadeassem e pessoas e
objetos encontrados em caminhadas erráticas se articulassem
de modo espontâneo. Abolida a intencionalidade, a realidade
acaba por revelar sentidos insuspeitos.
Pode-se distinguir dois modos de relação entre criação
poética e o mundo do hermético e oculto. Um deles é o dos
adeptos, a exemplo de Yeats, Robert Graves, Pessoa. No
outro, representado por alguns românticos e simbolistas, e
por surrealistas, ninguém é propriamente discípulo. Em vez
da adesão a doutrinas, há uma apropriação de símbolos e
conteúdos do hermetismo, a exemplo das correspondências em
Baudelaire, ou da alquimia do verbo e iluminação de Rimbaud,
resultado de seu desregramento dos sentidos, metáfora da criação
poética.
Fernando Pessoa, comprovadamente um adepto e iniciado,
associou, em seus apontamentos e escritos íntimos, criação
poética e intuição, mencionando Milton, Goethe, Shakespeare
e Keats: Um poeta é um intuitivo, e faz versos por uma operação intuitiva.
Distinguiu três caminhos para o desenvolvimento da
intuição: No caminho ritual busca-se o desenvolvimento da intuição pela
intuição mesma, ou, se preferir, pelo instinto (base da ação, da ação perfeita).
No caminho místico (?) busca-se a obtenção da intuição pela abdicação da
personalidade. No caminho mercurial busca-se pelo desenvolvimento da
68
inteligência, de que a intuição depois se alimenta.81 Observadas as
diferenças fundamentais entre Pessoa e Breton
(diametralmente opostos nos quesitos amor e sexo, entre
outros), o surrealismo promoveu o desenvolvimento dessa
operação intuitiva, trilhando os caminhos místicos e rituais.
Seus procedimentos, da anotação dos sonhos até a
deambulação, passando pela escrita automática, são um
ritual.
Caracterizar o surrealismo e a contribuição de Breton
como caso particular no universo da criação e da intuição
poética não é desqualificá-lo, ou reduzir sua importância.
Ao contrário, mostra, através das manifestações do acaso
objetivo, que foi tocado algo de essencial na criação
poética. Breton sabia disso. No parágrafo final de seu
último manifesto, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, proclama a
intuição poética como o meio de conhecimento para compreender aquilo que
o rodeia. Esta, desencadeada enfim pelo surrealismo, quer ser, não apenas
assimiladora de todas as formas conhecidas, mas também ousadamente
criadora de novas formas – vale dizer, capaz de abraçar todas as estruturas do
mundo, manifestas ou não. Somente ela nos oferece o fio que nos reconduz ao
caminho da Gnose, enquanto reconhecimento da realidade supra-sensível,
“invisivelmente visível num eterno mistério”. Os relatos sobre acaso
objetivo são a prova da realidade e do alcance da intuição
poética, ou, melhor dizendo, mágico-poética.
81 De O grau de adepto menor, em Fernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciação,de Y. K. Centeno, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1985. A ortografia foi atualizada na citação.
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