magia, poesia e realidade: o acaso objetivo em andrÉ breton

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MAGIA, POESIA E REALIDADE: O ACASO OBJETIVO EM ANDRÉ BRETON 1 Claudio Willer O episódio é relatado por Roberto Piva no vídeo Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti 2 : a 28 de setembro de 1966, por volta das 16 h, Piva e Roberto Bicelli caminhavam pela Avenida Rio Branco no trecho final, próximo ao viaduto sobre os trilhos, em São Paulo. Viram passar a toda velocidade um caminhão carregado de móveis e utensílios, encimados por um armário cuja porta, impelida pelo sacolejar do veículo, abria e fechava, batendo com força. Do móvel saía, esvoaçando, conduzido pelo vento, um longo lençol branco. Apontando para o conjunto insólito, Bicelli exclamou: É o fantasma de André Breton! Nem Bicelli, ao identificar desse modo a sacolejante mudança ao surrealismo, nem Piva, lembraram-se, na hora, desta frase meio solta no primeiro Manifesto do Surrealismo, em um parágrafo intitulado “Contra a morte”: “Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas disposições testamentárias: eu, por exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão de mudança”. 3 No dia seguinte, leram nos jornais a notícia 1 Em algumas passagens do texto a seguir – no relato de episódios do surrealismo associados ao sono hipnótico e à consulta à videntes, e nos comentários sobre Nadja e O Amor Louco –retomo minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição 2004. 2 Produção da SP Filmes disponível em vídeo, exibido na TV Cultura de São Paulo e TV Educativa. 3 André Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio Willer, Editora Brasiliense, 1985; ou André 1

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MAGIA, POESIA E REALIDADE: O ACASO OBJETIVO EM ANDRÉ

BRETON1

Claudio Willer

O episódio é relatado por Roberto Piva no vídeo Uma

outra cidade, de Ugo Giorgetti2: a 28 de setembro de 1966, por

volta das 16 h, Piva e Roberto Bicelli caminhavam pela

Avenida Rio Branco no trecho final, próximo ao viaduto

sobre os trilhos, em São Paulo. Viram passar a toda

velocidade um caminhão carregado de móveis e utensílios,

encimados por um armário cuja porta, impelida pelo

sacolejar do veículo, abria e fechava, batendo com força.

Do móvel saía, esvoaçando, conduzido pelo vento, um longo

lençol branco. Apontando para o conjunto insólito, Bicelli

exclamou: É o fantasma de André Breton! Nem Bicelli, ao

identificar desse modo a sacolejante mudança ao

surrealismo, nem Piva, lembraram-se, na hora, desta frase

meio solta no primeiro Manifesto do Surrealismo, em um parágrafo

intitulado “Contra a morte”: “Não vos esqueçais de formular

adequadamente vossas disposições testamentárias: eu, por

exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão

de mudança”.3 No dia seguinte, leram nos jornais a notícia1 Em algumas passagens do texto a seguir – no relato de episódios do surrealismo associados ao sono hipnótico e à consulta à videntes, e nos comentários sobre Nadja e O Amor Louco –retomo minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição 2004.2 Produção da SP Filmes disponível em vídeo, exibido na TV Cultura de São Paulo e TV Educativa.3 André Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio Willer, Editora Brasiliense, 1985; ou André

1

do falecimento de Breton naquela data e hora, às 16 h. de

28 de setembro de 1966. O acaso objetivo assim prestava uma

oblíqua homenagem ao seu formulador.

Tratar do acaso objetivo requer uma reflexão sobre a

relação surrealista, em geral, e bretoniana, em especial,

com o maravilhoso, o esoterismo e os fenômenos da ordem do

oculto, a flânerie ou deambulação urbana; e sobre as conexões

entre a poesia, o poético e a “realidade”, o mundo exterior

ao sujeito.

Conforme examinado em outro ensaio desta publicação,4

surrealistas, herdeiros da fascinação romântica, simbolista

e decadentista pelo oculto, não estiveram afastados do

estudo sistemático das disciplinas herméticas. Há, contudo,

uma vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton,

que o distingue de outras figuras de frente do surrealismo,

como Aragon e Éluard. Isso, pelo modo como a simbologia

comparece de modo recorrente em sua obra, e,

principalmente, por haver realizado uma relação mágica entre

poesia e vida, através do acaso objetivo.

Ocultismo já estava em sua formação. Marguerite Bonnet

e Henri Béhar, em suas biografias de Breton,5 mostram que,

entre suas leituras de adolescência, estava o Sâr Joséphin

Péladan, mago de prestígio, escritor prolífico, freqüentadoBreton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001; esta, mais completa, segue André Breton – Manifestes du Surréalisme, Jean Jacques Pauvert éditeur, Paris,1962, incluindo a Lettre aux Voyantes e Poisson Soluble, ausentes das edições Gallimard e Brasiliense.4 Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia, de Maria Lúcia Dal Farra.5 Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste,Librairie José Corti, Paris, 1988; e Henri Béhar, André Breton, Legrand indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.

2

por simbolistas e decadentistas. Em 1921, procurou René

Guénon (a quem cita em seu último manifesto, Do surrealismo e

suas obras vivas). Na década de 1950, para aprofundar o exame

das analogias entre poesia e alquimia, intensificou o

diálogo com especialistas como Eugène Canseliet e René

Alleau, cujas conferências sobre alquimia ele e outros

integrantes do movimento freqüentaram. Alleau, por sua vez,

colaborou em publicações surrealistas.6

Daí resulta, em sua obra, uma profusão de símbolos:

pentagramas, casas e planetas do zodíaco, operações

alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua própria versão do

baralho do Tarô.7 Antes, conforme relata nas páginas

iniciais de O Amor Louco, fascinara-se por um baralho com a

bandeira da Hamburg-America Linie, com a magnífica divisa: “Mein

Feld ist die Welt” (meu campo é o mundo), por achar que, nele, a

dama de paus é mais bela do que a dama de copas. Conta como

dispunha as cartas para fazer consulta, interpondo um

objeto que se assemelhava a uma raiz de mandrágora.8

Parecia atribuir valor de verdade à astrologia, a ponto de,

no Segundo Manifesto do Surrealismo, colocar o surrealismo sob

influência de uma conjunção de Saturno e Urano, entre 1896

e 1898, coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e

Aragon.9 O mapa dessa conjunção também ilustrou em 1930 a6 Detalhes em Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, de Jean-Louis Bédouin, Éditions Denoël, Paris, 1961, com uma substanciosa discussão sobre poesia, surrealismo e alquimia.7 Conforme a biografia por Henri Béhar, já citada.8 André Breton, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Editorial Estampa, Lisboa, 1971, ou André Breton, Oeuvres complètes, org. de Marguerite Bonnet, Bibliothèque de la Pléiade,Éditions Gallimard, Paris, 1992, vol. II.9 Breton, Manifestos do Surrealismo.

3

capa do primeiro número de Le surréalisme au service de la révolution.

Em O Amor Louco, diria que a conjunção de Vênus e Marte em

seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no

seio do amor. Dataria um acontecimento revelador, que lhe

parecia corresponder à noção de beleza convulsiva, deste modo:

a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua (episódio esse

que só acontecia uma vez por ano).

O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta uma

duplicidade. De um lado, afirma com ênfase a adesão ao

pensamento marxista, a um materialismo dialético. De outro,

propõe a exploração de certas ciências, valorizando o

conhecimento hermético e exigindo que a alquimia do verbo de

Rimbaud fosse tomada ao pé da letra. Mas distanciando-se

igualmente da credulidade ingênua e do reducionismo

cientificista, ... em um espírito que desafia, ao mesmo tempo, o

espírito da barraca de feira e aquele do consultório médico.10 É como se

houvesse dois pólos, o materialista e o esotérico,

instâncias contraditórias a constituírem, nas palavras de

Jean-Louis Bédouin, uma das mais vertiginosas interrogações que

conheceu o surrealismo, e, antes dele, espíritos tão diferentes e tão grandes

quanto Achim von Arnim e Rimbaud.11 A capa já mencionada de Le

surréalisme au service de la révolution é um emblema dessa

interrogação vertiginosa: astrologia na capa da revista que

veiculava uma posição mais militante do surrealismo.

Manifestações do acaso objetivo foram uma resposta a

essa fascinação: como se houvesse reciprocidade, o mágico e

10 O exame do hermetismo e alquimia ocupa uma extensa nota derodapé, de algumas páginas, desse manifesto.11 No já citado Vingt ans de surréalisme.

4

o oculto pareciam procurá-lo. O episódio mais expressivo é

aquele da “noite do girassol” narrada em O Amor Louco, o

encontro em 1934 de Breton e Jacqueline Lamba, com quem

viria a casar-se, antecipado por um poema, Tournessol

(Girassol), escrito onze anos antes. Acontecimentos como este

levaram Breton, nessa narrativa, e antes, em Les vases

communicants,12 a apresentar suas reflexões sobre o acaso

objetivo.

Mas, bem antes, sua simpatia por aquilo que rompesse

com noções estabelecidas sobre o real e a causalidade o

havia levado às mais diversas investigações; até mesmo, a

procurar videntes. Conta, em Nadja,13 que freqüentava uma

delas, Madame Sacco. Sua foto, paramentada como cigana,

está nesse livro. Em um texto de 1925, Carta às videntes,

depois agregado aos Manifestos do Surrealismo,14 comenta uma

previsão de Madame Sacco: Ao que parece, devo ir à China por volta de

1931, e lá correr, durante vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas

ocasiões diferentes15 deixei que me dissessem isso, o que é bastante

perturbador.

12 André Breton, Les vases communicants, collection Idées, Gallimard,Paris, 1985; ou André Breton, Oeuvres complètes, vol. II, Bibliothèque de la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1992, organizada por Marguerite Bonnet.13 Nadja, Éditions Gallimard, Collection Folio, Paris, 1964; ouAndré Breton, Oeuvres complètes, vol. I, Bibliothèque de laPléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1988. Nadja foi reeditada noBrasil em 1999 pela Editora Imago, na tradução de Ivo Barroso.14 Na edição brasileira da Nau dos Manifestos do Surrealismo, jácitada acima.15 Em duas consultas: outras visitas a médiuns-videntes, comoHélène Smith, que afirmava comunicar-se com o planeta Marte,deram resultados semelhantes.

5

O que menos importa, argumenta, é o erro das profecias

tomadas ao pé da letra. De certo modo, está na China:

Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria de morrer. Mas eu não

penso que “das duas, uma”. Tenho fé em tudo o que me disseram. Por nada

nesse mundo resistiria à tentação que provocaram em mim, digamos: de

aguardar-me na China. Tanto mais que, graças a vós, já estou lá. Instigado

pela vidente, via uma China de sonho, signo de uma

rebelião, de algo a perturbar o Ocidente, fonte de um sopro

de liberdade capaz de despertar a velha Europa. O interesse

dessa freqüentação não residiria na exatidão e certeza com

que profecias iriam ocorrer, mas em seu valor simbólico e

no conseqüente poder para despertar da inércia e do

conformismo, ao levarem alguém a atribuir sentido ao

remoto, enxergando-se em uma revolução chinesa. Na mesma

medida, argumentou no Segundo Manifesto do Surrealismo, pouco

importava o alquimista Nicolas Flamel não haver enriquecido

com a descoberta da Pedra Filosofal, diante da fortuna

espiritual que edificara.

Os parágrafos da Carta às Videntes em que Breton comenta

sua viagem nunca feita à China reservam uma surpresa. Para

esclarecer o que procura junto às videntes, declara-se

capaz de prever o futuro: O grande véu que tomba sobre a minha

infância não me furta aos olhos senão a metade dos anos estranhos que

precederão minha morte. E eu falarei um dia da minha morte. Dentro de mim,

adianto-me várias horas em relação a mim. Diz que sua meta não é o

aprendizado derivado da experiência já vivida, porém a

experiência do que ainda não foi vivido: ... faço muitíssimo caso

da experiência, visto que tento obter a experiência daquilo que não fiz!

6

Subentende, tomando Rimbaud ao pé da letra, que o

verdadeiro vidente é o poeta. Completa com a seguinte

frase: Há pessoas que pretendem que a guerra lhes ensinou alguma coisa:

no entanto, estão menos avançados do que eu, que sei o que me reserva o ano

de 1939. Assim, em um confronto de profecias, uma espécie de

relação especular, diante das previsões sugestivas, porém

incorretas, das videntes que freqüentava, respondia com uma

profecia vaga, mas cronologicamente exata, antecipando a

catástrofe que sobreviria em 1939.

Estudos sobre surrealismo passam por essa

surpreendente inserção, sem se deterem nela. Quem alertou

sobre seu sentido, mais tarde, foi Benjamin Péret, no

prefácio de 1942 de sua coletânea de mitos, lendas e contos

populares americanos,16 com uma nota de rodapé à seguinte

frase, na seqüência de comentários sobre a “noite do

girassol” de O Amor Louco, qualificada como revelação profética:

A Carta às Videntes, do mesmo autor, oferece outra iluminação da

mesma natureza, na qual provavelmente nem ele reparou ainda.

A observação faz parte dos comentários de Péret sobre

suas próprias visões e alucinações (esse relato é examinado

no capítulo sobre escrita automática, nesta edição). Dentre

elas, o modo como via a cifra 22, refletida nas janelas da

prisão em Rennes, onde estava detido em maio de 1940, em

situação de risco por seus antecedentes como militante de

esquerda e combatente na resistência anti-fascista na

Espanha. Crescia nele a convicção de que esta seria a data

16 Benjamin Péret, Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique, Éditions Albin Michel, Paris, 1960.

7

de sua libertação. De fato, soltaram-no a 22 de julho de

1940.

Na busca do além-fronteiras durante a “fase heróica”

do surrealismo, período da formação que precede o primeiro

manifesto, também foram feitas experiências com o “sono

hipnótico”. São comentadas em um capítulo da coletânea Les

pas perdus,17 intitulado Entrée des Médiuns, sobre o desencadear-

se, nas palavras de Breton, de uma conspiração de forças absurdas.

A idéia de imitar sessões espíritas, mas rejeitando a

hipótese da comunicação com os mortos, foi de René Crevel.

É transcrito um diálogo entre Breton e Robert Desnos, em

transe, respondendo por escrito, a 27 de setembro de 1922:

- Desnos, é Breton quem está aí. Diga-lhe o que você vê.

- O equador (desenha um círculo e um diâmetro

horizontal).

- É uma viagem que Breton deve fazer?

- Sim.

- Será uma viagem de negócios?

- (Faz sinal de não com a mão. Escreve:) Nazimova.

- Sua mulher o acompanhará nessa viagem?

- ???

- Irá ele reencontrar Nazimova?

- Não (sublinhado).

- Ele estará com Nazimova?

- ?

- O que mais você sabe sobre Breton? Fale.

17 Les pas perdus, Collection Idées, Gallimard, 1974, ou vol. I dasOeuvres Complètes de Breton.

8

- O barco e a neve – há também a bela torre telégrafo – sobre a bela

torre há um jovem (ilegível).18

Henri Béhar sugere uma interpretação: O leitor que conhece

o triste destino de Nadja é tentado a assimilar esses dois nomes russos, ainda

que Nazimova seja aquele de uma atriz de cinema célebre na época (Alla

Nazimova, atriz russa admirada por Desnos e que atuava no

cinema americano, protagonista de Salomé).19 Mas há outra

interpretação possível, que não consta na bibliografia

examinada: Nazimova podia ser uma recepção distorcida de

nazismo. Isso dá ao episódio um alcance efetivamente

profético, pois não havia como antever, em l922, a ascensão

do nazismo na década seguinte e as conseqüências de mais

uma guerra mundial. Entre outras, a viagem transoceânica de

Breton em maio de 1941, como refugiado, primeiro à

Martinica e depois aos Estados Unidos. Detalhes do diálogo

reforçam essa interpretação: seria impossível “encontrar”

Nazimova, e obter resposta sobre a mulher de Breton (não

estaria mais com Simone Kahn, porém separando-se de

Jacqueline Lamba). Dos presentes à sessão, quem acabou como

vítima do nazismo foi o próprio Desnos. Militante da

resistência francesa, morreria em um campo de concentração

ao final da guerra.

As experiências com o sono hipnótico foram

interrompidas depois de situações constrangedoras e

18 Essa transcrição pode ser encontrada em Les pas perdus, nabiografia de Breton por Béhar, ou em Oeuvres de Robert Desnos,Gallimard, 1999.19 Em Béhar, no já citado André Breton, Le grand indésirable. Em Oeuvres de Desnos foram incluídos comentários sobre cinema, nos quais a atriz Nazimova é mencionada.

9

chocantes, como a insistência de Crevel no suicídio

coletivo (viria a suicidar-se em l935). Desnos ainda as

continuou por conta própria. Não consta, nos estudos sobre

o assunto, a seguinte pergunta: Por quê, do material

disponível sobre sono hipnótico e estados de aparente

mediunidade, resultado de várias reuniões, Breton escolheu

esse trecho para a publicação em Les pas perdus? Qual critério

o levou à seleção do diálogo sobre Nazimova, profecia

impossível de avaliar ou considerar mais que devaneio?

Pode-se falar em dupla premonição. Primeiro de Desnos

adormecido, antevendo tragédias que aconteceriam daí a

décadas. Depois de Breton, selecionando o trecho para

figurar em L’entrée des mediums.

Breton e seus companheiros não foram os únicos a

iniciar experiências através de simulacros de sessões

mediúnicas, interrogando as profundezas do inconsciente ou

a amplidão de outros mundos. A idéia da criação poética

associada a uma voz externa, dizendo algo ao poeta, é bem

antiga, e muito presente desde o primeiro romantismo

alemão, passando por Gérard de Nerval, pela bouche d’ombre de

Victor Hugo e por episódios intrigantes como a “escrita

automática” de Yeats, o procedimento através do qual sua

mulher, Georgina Hide-Lees, escreveu A Vision, e ainda o modo

como Fernando Pessoa, em 1914, criou O Guardador de Rebanhos

de uma enfiada só, como se Alberto Caeiro houvesse

“baixado”.

10

Mas, conforme observou Michel Carrouges,20 o sono

hipnótico dos surrealistas assemelhava-se em demasia a um

sem-número de comunicações com espíritos, elementais,

emanações divinas, etc. Nelas, há uma divisão, uma

separação entre a consciência e essa “outra voz”, ao

contrário da escrita automática, que procura somar,

integrar a consciência e aquilo que lhe é exterior. Sob o

ponto de vista ocultista e esotérico, conforme as críticas

ao espiritismo e mediunidade de Éliphas Lévi, Papus ou René

Guénon, a transmissão de mensagens em transe seria a versão

mais perigosa e equivocada de comunicação com outro nível

ou plano da realidade.21 E, para o budismo e doutrinas

afins, se o mundo fenomênico, do real imediato, é ilusório,

o véu de Maya do bramanismo, tais manifestações pertencem à

mesma ordem da projeção da subjetividade.

Ademais, tais práticas, mesmo laicizadas, conflitam,

no que têm de programado, com a atitude surrealista por

excelência, a disponibilidade. Já em Les pas perdus, de 1924,

Breton sustentava essa atitude ao abrir a coletânea com o

manifesto La Confession Dédaigneuse, onde declarava: Toda noite,

deixava bem aberta a porta do meu quarto, na esperança de finalmente

acordar ao lado de uma companheira que eu não tivesse escolhido.

Disposto a recomeçar a vida a cada dia, proclamou-se

flâneur: A rua, que eu acreditava capaz de entregar a minha vida seus

surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era meu

20 Em André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, collection Idées, Gallimard, Paris, 197121 Mais a respeito em Batache, Eddy, Surréalisme et Tradition, La pensée d’André Breton jugée selon l’oeuvre de René Guénon, Éditions Traditionelles,Paris, 1978.

11

verdadeiro elemento: lá eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do

eventual.

O acaso objetivo é indissociável da disponibilidade, e

de sua conseqüência, a relação mágica com a cidade. A

deambulação urbana do flâneur, transformada em valor, signo

da disposição de recomeçar a vida a cada dia, já é magia

propiciatória. É correta a observação de Michel Carrouges

sobre a espera sem objeto definido: Esse sentimento extraordinário

de espera, que brilha com todos os seus fogos no surrealismo e principalmente

no pensamento de Breton, é a chave de ouro da liberdade. Não é uma vã

impressão subjetiva, é já um ato interior, é uma abertura de nossas ligações

com as correias de transmissão do determinismo.22

Ao adotarem a disponibilidade e a flânerie, surrealistas

foram, também nisso, herdeiros de Baudelaire, poeta das

correspondências e também das cidades, ou, mais

propriamente, de Paris. Na série Quadros Parisienses, que

compõem as Flores do Mal, é a Cidade a fervilhar, cheia de sonhos.

Nela, Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito canal

do colosso possante.23 Em O Spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa,

multiplica-se a captação de aspectos da vida urbana. Em um

ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se

inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole,

simbolizada pelo flâneur, o caminhante desgarrado: Pela

primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica.24 E,

22 No já citado André Breton et les données fondamentales du Surréalisme deCarrouges.23 Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso,Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Floresdo Mal por Ivan Junqueira.24 A Paris do Segundo Império em Baudelaire, em Walter Benjamin - Sociologia,tradução e organização de Flávio R. Kothe, Editora Ática 1985,

12

como crítico de arte, Baudelaire argumentou em favor da

beleza nova e particular presente na cidade: A vida parisiense é fecunda

em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a

atmosfera; mas não o vemos.25

A relação de Baudelaire com Paris vem sendo bastante

comentada, desde os ensaios fundamentais de Walter

Benjamin. Um texto recente de Eric Hazan, Le sombre Paris,26

permite maior clareza na comparação da relação

baudelairiana e surrealista com a capital francesa.

Reconhece o pioneirismo com que As Flores do Mal são parisienses

antes de tudo, como (seguindo Benjamin) primeiro livro a haver

utilizado palavras de proveniência não apenas prosaica, mas urbana, na

poesia lírica. Em outras palavras, Baudelaire fez poesia com os

pés no chão, arrancando-a das nuvens. Mas o ensaísta

observa que não há, nessa obra, um único lugar parisiense que seja

precisamente nomeado ou descrito. Tanto em As Flores do Mal quanto

em O Spleen de Paris, o maravilhoso não tem endereço. Já nos

surrealistas em geral, e em Breton, especialmente, é

possível fazer roteiros com indicações precisas de lugares

da sua manifestação: Torre Saint-Jacques em Arcano 17 e

outras de suas obras, Place Dauphine em Nadja, galerias da

Ópera e o parque das Buttes Chaumont em O Camponês de Paris,

etc.

Faz parte da múltipla herança baudelairiana no

surrealismo – junto com a estética e cosmovisão das

pg. 38; ou na série Walter Benjamin - Obras escolhidas, da EditoraBrasiliense. 25 Em Salão de 1846, na edição citada de Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.26 Publicado em uma edição do Magazine Littéraire com dossiê sobre Baudelaire: nº 418 de março de 2003.

13

correspondências, a flânerie, a errância urbana e o dandismo

– a noção do maravilhoso. Sua adoção é declarada no texto de

Breton Le merveilleux contre le mystère;27 e, de modo mais enfático,

no prefácio de 1962 para Le miroir du merveilleux de Pierre

Mabille: O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor (que

Mabille) por oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais

a suplantá-lo junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase

sempre, pertence à ordem da ficção sem conseqüência, enquanto o

maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital e envolve em si,

inteiramente, toda a afetividade 28

Contudo, flânerie, deambulação, errância através de

Paris, fazem parte de uma tradição que antecede Baudelaire.

A tradutora de O Camponês de Paris, Flávia Nascimento, em um

ensaio que prossegue seu prefácio para a narrativa poética

de Aragon,29 mostra como surrealistas dão prosseguimento a

essa tradição, e em que a modificam. Vê a flânerie como ponto

em comum entre “escritores de Paris”. Referindo-se a Tableau de Paris

de Sébastien Mercier e As noites parisienses de Restif de la

Bretonne, mostra como em tais obras, mesmo associadas ao

iluminismo e enciclopedismo, o acaso, que receberia tamanha

atenção do surrealismo, já está presente, pois ...diferem

essencialmente do projeto dos enciclopedistas, posto que nas duas coletâneas

o acaso é primordial: tanto numa como noutra, o narrador não tenta reduzir a

27 Em La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Lelivre de Poche, 1979.28 Pierre Mabille, Le miroir du merveilleux, Les Éditions du Minuit,1962.29 Flávia Nascimento, Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif aossurrealistas, em Agulha, revista de cultura # 25 – Fortaleza, São Paulo –junho de 2002, emhttp://www.revista.agulha.nom.br/ag25nascimento.htm

14

cidade a um sistema de classificação, ao contrário: em ambas constata-se a

importância da desordem e da descontinuidade. Utilizando o acaso, Restif e

Mercier põem lado a lado coisas que não têm absolutamente nada a ver entre

elas, a não ser o fato de existirem, todas, em Paris. E, reconhecendo um

determinante infra-estrutural, as reformas urbanas, fala em

cidade-corpo, com um poder de sedução tão mais eficaz quanto ela possui

espaços ocultados, exatamente como um corpo feminino velado pelas

vestimentas. Nela, há duas topografias que se fundem: uma real, outra

onírica.

Também nisso, Apollinaire foi precursor imediato, por

sua intensa relação com Paris,30 resultando nos topônimos

em sua poesia: Ponte Mirabeau, Saint-Merry e outros. Em

Zone,31 uma caminhada dessas - Agora andas sozinho na multidão de

Paris... - equivale a percorrer sua própria vida e a

história da humanidade em 24 horas. A metrópole é o lugar

de encontro da biografia pessoal e da história da

humanidade, do macro e microcosmo, em um cruzamento de

coordenadas temporais e espaciais.

Contudo, surrealistas foram além nessa relação. Paris

é inteiramente onírica em La liberté ou l’amour! de Robert

Desnos.32 Em O Camponês de Paris, de Aragon, a passagem da

Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos para suas

iluminações profanas através do “erro” e da errância em lugares

eleitos. Conforme sua tradutora, ... o deslocamento do narrador

30 Bem examinada por Marie-Claire Bancquart em Paris “Belle époque” par sés écrivains, A. Biro, Paris, 1997.31 Edição brasileira em Escritos de Apollinaire, tradução, seleção enotas de Paulo Hecker Filho, L&PM editores, Porto Alegre, 1984.32 Ed. Gallimard, coleção L’Imaginaire, 1986, ou no já citado Oeuvres.

15

pela cidade também apresenta uma estrutura binária que opõe dois espaços

diametralmente opostos: primeiramente [...] a passagem da Ópera, lugar

fechado, quase poderíamos dizer subterrâneo, que se localizava num bairro

central da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, da periferia. Este

lugar aninha, segundo Aragon, “o inconsciente da cidade” e assume na

narrativa os ares de labirinto iniciático dos surrealistas. [...] Errar pelo

jardim em plena noite funciona como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer

aflorar o que há de mais primitivo no homem; e percorrer esta topografia

equivale a percorrer os caminhos sinuosos do inconsciente.33

Essa relação com Paris se intensifica e exacerba em

obras de Breton como Nadja, Les vases communicants, O Amor Louco

e Arcano 17. Em Nadja, a estátua de Étinenne Dolet, Praça

Maubert, o atrai e lhe provoca mal-estar, e a Praça

Dauphine o faz sentir langor e opressão. Em O Amor Louco e

no poema Vigilance,34 a Torre Saint-Jacques, ponto de partida

das peregrinações a Santiago de Compostela,35 é o centro

irradiador do maravilhoso, assim como seu entorno onde, no

século XIV, habitara Nicolas Flamel, culminando, no final

de Arcano 17, na ...exaltação que, de longa data, a torre Saint-Jacques me

causava e que comprovam vários dos meus textos ou conversas anteriores. É

verdade que meu espírito sempre rondou em volta dessa torre, para mim

poderosamente carregada de sentido oculto.36

33 Louis Aragon, O Camponês de Paris, Imago, 1998, tradução eprefácio de Flavia Nascimento.34 Em Le revolver a cheveux blancs, por sua vez na coletânea Clair de terre,coleção Poésie, Gallimard, Paris, 1966.35 Em francês, São Tiago é Saint-Jacques.36 André Breton, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas eRosa Maria Boaventura, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.

16

Outro lugar mágico de Paris, para Breton, foi a Ilha

da Cité. Está em Peixe Solúvel,37 e acabou por revelar-se

entrada para o inferno em um episódio dramático de Nadja.

No texto intitulado Pont-Neuf38 (a ponte que une a ilha às

margens do Sena), Breton reconheceria que a lassidão e

imobilidade que o atacavam na Praça Dauphine, ali

localizada, correspondiam a um sentimento de abandono

diante do significado do lugar onde, em 1313, haviam sido

queimados os dirigentes da Ordem dos Templários, acusados

de magia e satanismo. Seu formato triangular o levou a

chamá-la de sexo de Paris, incandescente até hoje, o ponto pivotal de

uma cidade não apenas antropomorfizada, mas erotizada: o

segredo do seu prestígio [...] reside inteiramente na atração erótica que

esse belo corpo oferece, lascivo até na expressão de sua lassidão.

Vale, para essas designações de lugares, o comentário

de Ferdinand Alquié sobre Peixe Solúvel, em Philosophie du

Surréalisme:39 O paraíso reencontrado deve ser aquele da vida cotidiana, da

vida cotidiana transfigurada. É, em Peixe Solúvel, aquele de Paris, e de

uma Paris transformada, incessantemente, na mais maravilhosa, na mais

luminosa das câmaras do amor. [...] Para os surrealistas, a verdadeira

vida está lá. “Eu sempre me proibi de pensar no futuro”, diz Breton: Paris

substitui portanto Veneza e as florestas da América, o presente revela ao

homem a totalidade dos seus poderes.

No verbete Promenade do Dictionnaire Général du Surréalisme et

de ses environs,40 também é comentado um itinerário iniciático realizado

ao nível do cotidiano: através da diversidade do espetáculo urbano, o poeta,37 Na já citada edição Nau dos Manifestos do Surrealismo.38 Publicado na coletânea de ensaios La clé des champs, já citada.39 Ferdinand Alquié, Philosophie du surréalisme, Flammarion Éditeur,Paris, 1977;

17

sob os impulsos complementares do acaso e da sua imaginação, na verdade

procura melhor definir sua própria identidade, interrogando os diversos

“enigmas” encontrados – objetos, situações ou seres – como outros tantos

sinais que lhe faz seu próprio desejo. É nas prosas de Breton que essa

concepção da caminhada encontra sua expressão mais acabada: a realização

última da busca, o encontro da mulher amada, é aqui igualmente uma grande

porta aberta para esses segredos do mundo – suas leis e suas

“correspondências” escondidas – que o caminhante solitário poderia apenas

pressentir e para as quais o amor oferece ao mesmo tempo o acesso e uma

imagem ampliada.41

Nadja, a obra surrealista de maior repercussão ao ser

publicada,42 é inteiramente regida pelo acaso objetivo,

embora a expressão só viesse a ser utilizada por Breton

mais tarde. Tem especial importância pelo modo como funde

gêneros e pela alta voltagem poética. É a transposição para

a escrita da identificação surrealista entre arte e vida,

invertendo a relação entre os dois planos. Logo na

abertura, a pergunta feita por Descartes: Quem sou eu?

Acompanha-a outra: Com quem ando? Breton responde ser um

fantasma, tomando um rumo oposto ao do cartesianismo, e faz

nova pergunta: A quem assombro? O tema do fantasma em Breton

remete ao duplo, o Doppelgänger do romantismo alemão, e da

alteridade, do eu como outro em Nerval e Rimbaud. Mas pode-

se localizar outra resposta em Nadja para as perguntas

40 Dictionnaire Général du Surréalisme de Adam Biro e René Passeron,Office du Livre, Lausanne, 198241 Traduzi promenade por “caminhada”, mais próprio, nestecontexto, que “passeio a pé”.42 Sigo Marguerite Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre, Vol. I de Breton, Oeuvres complètes, e Patrick Née em Lire Nadja, Dunod, Paris,1993.

18

iniciais: consiste em nova indagação, ao final do livro:

Quem vem aí?43 A identidade, a descoberta de si, realiza-se

através do encontro com o outro.

Nadja não é dividida em capítulos, mas se compõe de

três partes. A primeira lembra episódios significativos,

dos quais sua protagonista poderia ter sido participante,

que talvez só precisassem dela como catalisador para se

completarem. Entre outros, o modo como Éluard dirigiu a

palavra a Breton no saguão de um teatro, em um intervalo da

estréia de Couleur du Temps de Apollinaire, antes de serem

apresentados, iniciando a amizade e parceria literária. É

relatada, também, a busca de lojas que vendiam carvão de

lenha, bois-charbon, par de palavras que encerram, símbolo da

destruição ou consumação, isoladas e emolduradas como um

letreiro, o livro de escrita automática de Breton e

Philippe Soupault, Les champs magnétiques: seus autores,

perambulando pela cidade, atingiram o nível de alucinação

que lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de

rua apareceria a loja ostentando o letreiro, bois-charbon.

Há mais sub-enredos, relatos dentro da narrativa, como

o encontro com uma simpática leitora e anotadora de Rimbaud

em um alfarrábio, outro sobre a estranha atriz de uma peça

insólita de teatro, considerações sobre Huysmans e de

Chirico. Mereceria mais estudos a recorrência e reiteração

em Breton. Em Les vases communicants e O Amor Louco, lugares e

personagens podem ser outros, mas essas situações e

encontros irão repetir-se, às vezes em versões mais

43 Traduzi assim o Qui vive? do original, o chamado das sentinelas quando alguém se aproximava, pedindo que se identificasse.

19

complexas. Isso resulta de uma relação sui generis entre vida

e obra em Breton, com sua propensão, mais evidente em O

Amor Louco, mas também presente em outros textos, de

referir-se a acontecimentos, ou sugeri-los, antes de

ocorrerem, ou sincronicamente a eles, assim introduzindo o

que está sendo ou irá ser vivido no escrito e projetando o

escrito na vida.

A parte central de Nadja tem forma de relatório,

anotações diárias do que aconteceu entre 4 e 12 de outubro

de 1926. Três anos depois de haver escrito as frases de

abertura de Les pas perdus sobre disponibilidade, continuava a

caminhar pelas ruas ao sabor do mesmo vento do eventual.

Enquanto percorria a Rua Lafayette, no centro de Paris, em

um fim da tarde, teve seu interesse despertado pela mulher

que caminhava na direção oposta à da multidão na calçada,

de cabeça erguida, ostentando, diz, um sorriso quase

imperceptível. Imediatamente, dirigiu-lhe a palavra. Sua

aversão ao relato realista deixou-nos sem saber muito sobre

a aparência dessa mulher, além dos detalhes que mais

chamaram sua atenção: cabelos claros (cor de aveia, observa) e

despenteados, rosto maquiado pela metade, vestida de um

modo pobre e descuidado, acentuando o aspecto frágil. Do

rosto, conhecemos a fotografia publicada, na qual estão

apenas os olhos. Foi o que mais o atraiu - seus olhos

exageradamente sombreados, que exibiam, ao mesmo tempo, uma

obscura miséria e um luminoso orgulho, levando-o a declarar: Eu

nunca havia visto olhos assim.

20

Breton nunca identificou essa mulher, mesmo referindo-

se a seu modo de vida (ou de problemática sobrevivência) em

Paris. Sabemos, através de Marguerite Bonnet,44 que seu

nome verdadeiro era Leona D, nascida em Lille em 1902,

internada em 1927 ao entrar em surto. Morreria de câncer em

1941, depois de passar o resto da sua vida em instituições

psiquiátricas; e, ainda segundo Bonnet, nunca chegou a ver

o livro que protagonizou.

Nesse primeiro encontro, ambos sentados em um café,

Breton ouviu-a comentar a vida que levava e as dificuldades

que enfrentava. À pergunta sobre seu nome, respondeu que

escolhera chamar-se Nadja por ser esse, em russo, o começo

da palavra esperança, e por ser apenas seu começo.45

Descreveu-se: sou uma alma errante. Ao se despedirem, disse a

Breton que o via caminhar em direção a uma estrela: Você não

pode deixar de alcançar essa estrela, insistiu. Enquanto o ouvia falar,

senti que nada o impedirá - nada, ninguém, nem mesmo eu... Você nunca

poderá ver essa estrela como eu a vejo. Você não compreende: ela é como o

coração de uma flor sem coração.

O estranho da aparência e o enigmático da conversa

bastaram para que quisesse voltar a vê-la. Marcaram para o

dia seguinte. Breton trouxe consigo os já publicados

Manifesto do surrealismo e Les pas perdus. Apresentava-se através

de seus livros; inscrevia aqueles encontros, situações e

diálogos, em sua continuação.

44 Em suas notas para Oeuvres Complètes de Breton, vol. I, pg. 1.509e segs45 Não exatamente, pois esperança, em russo, seria Nadedja.

21

No terceiro encontro – nascido de um desencontro,

pois, tendo marcado para as cinco horas, encontraram-se por

acaso às quatro – Breton observou que Nadja havia cortado

as dobras das páginas de um trecho de Les pas perdus, a breve

crônica intitulada L'Esprit Nouveau (referindo-se ao ensaio de

Apollinaire L'Esprit nouveau et les poètes, sobre a modernidade,

mas contradizendo-o implicitamente), relatando como uma

moça atraíra a atenção dele, de Aragon e do pintor André

Derain, na região de Saint-Germain-des-Près. Os três,

separadamente, haviam passado por ela em diferentes lugares

do bairro, enquanto vinham, cada um, ao encontro do outro.

Adolescente, de uma desconcertante beleza, detinha-se para

perguntar qualquer coisa aos passantes com quem cruzava.

Percorrendo novamente o bairro, não conseguiram achá-la

para descobrir quem era e que perguntas fazia. Admirou-se

por Nadja escolher primeiro, de todas as partes do livro, a

que mais poderia ser entendida como antevendo-a.

Margueritte Bonnet comenta essa passagem: Passante real e

fugitiva, trazida e recolhida pelo remexer-se vivo da rua, a desconhecida da rua

Bonaparte dá uma primeira figura ao enigma extraviado, extraviante, que

aflora no cotidiano. Em sua pessoa, anuncia Nadja, a quem a intuição guiará

em Les pas perdus rumo a esse texto, assim como o caráter da relação

anuncia o diário dos encontros com Nadja pela preocupação de circunstanciar

cuidadosamente os fatos e a neutralidade proposital do tom. A inadequação

aparente do título transforma o relato em manifesto implícito onde o não-dito

se torna ostensivo: não é a exaltação das mudanças introduzidas na vida

corrente pelas descobertas da ciência que pode constituir o espírito novo; há

que procurá-lo do lado das disposições sensíveis que tornarão o homem capaz

22

de espreitar e de captar os sinais singulares da existência, tão subitamente

interrompidos quanto emitidos.46

Nadja captava esses sinais singulares da existência e

adivinhava que seus encontros e diálogos comporiam um livro

futuro. Comentou, no sexto de seus encontros: André? André?...

Você escreverá um romance sobre mim. Eu o garanto. Não negue. Preste

atenção: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que permaneça algo de

nós... Ao dizer isso, talvez soubesse que nesse livro estaria

o episódio da Praça Dauphine, impressionante pelo modo como

nele se confundiram magia e loucura. Breton e Nadja

chegaram à praça triangular de plátanos e antigas fachadas

na Ilha da Cité, lugar de fundação da cidade, da Catedral

de Notre-Dame e outras edificações históricas, conduzidos

por Peixe Solúvel, que ela acabara de ler, onde é mencionado

um hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado.

Pretendiam ir adiante, até a Ilha de Saint-Louis,

adjacente, também mencionada naquele extenso poema em

prosa, e ficaram no caminho, pararam na Praça Dauphine.

Ao chegarem à praça e se instalarem em um café,

iniciou-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-

assombrado, Nadja a ver fantasmas, mortos circulando pela

vizinhança, com o rumor do vento - o vento e o azul, o vento azul,

dizia - transformado em vozes anunciando a morte, enquanto

um bêbado os cobria de impropérios. Apontando para a janela

de uma das casas da praça, negra na escuridão, afirmou que

em um minuto esta se iluminaria e sua cor seria vermelha:

em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se,

46 Marguerite Bonnet em André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, jácitado

23

exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, a rememoração de

cenas de outros séculos: alucinada, Nadja agarra-se à grade

do Palácio da Justiça e insiste em que já havia estado lá,

e que dali saía um túnel secreto que se comunicava com

outro palácio. Segundo Béhar,47 escavações arqueológicas de

1963 revelaram que esse túnel existe; contudo, também

constava em uma das narrativas do Fantômas de Leroux.

Prosseguindo a caminhada, Nadja enxergou uma mão em

chamas pairando no Sena, signo terrível, pois remete à

mortífera main de gloire do conto A mão encantada de Gérard de

Nerval (que persegue quem dela se apoderou e acaba por

estrangulá-lo). A noite culminou com a chegada deles ao

Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz.

Ela observou que suas águas, elevando-se, separando-se em

dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma

força, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos

de ambos. Breton espantou-se com esse comentário, pois

Nadja citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles

dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três

Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda:

Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um

chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções

no livro). A tradução seria, aproximadamente: A força impele as

águas para o alto e ao mesmo tempo move a superfície. Um resumo, diz

Breton, do que Nadja comentava sobre o significado do

chafariz à frente deles.

47 Na já citada biografia de Breton por Béhar, André Breton, -Le grand indésirable.

24

Se Breton, durante a criação de Nadja, estivesse

possuído pelo mesmo furor da interpretação que o acometeria

ao escrever Les vases communicants, teria avançado nos

paralelos entre o episódio da Praça Dauphine e Peixe Solúvel.

O trecho de Peixe Solúvel que os levou à praça é este:

Querermos ouvir mais longe que nós mesmos, mais longe que esta roda da

qual um dos raios, à minha frente, mal toca os sulcos da estrada, que loucura!

Eu passara a noite na companhia de uma mulher frágil e precavida, agachada

na relva alta de uma praça pública, nas imediações da Ponte Nova. Durante

uma hora inteira, ríramos dos juramentos imprevistamente permutados pelos

tardios transeuntes que vinham, uns após os outros, sentar-se nos bancos mais

próximos.48

Pretendiam, portanto, realizar essa passagem. Mas em

Peixe Solúvel, o narrador encontra logo em seguida a mulher dos

seios de arminho; juntos, vão de táxi encontrar o Encontro em

pessoa. Querem sair de Paris (como o fariam Breton e Nadja

no penúltimo de seus encontros). Há uma cena teatral, na

qual um dos personagens é Satanás, que tem o seguinte

diálogo com Helena (com quem Nadja se identificava) e

Lúcia:

Satanás. – Podeis ver, acima desses senhores e dessas senhoras, a Ilha

de São Luís? Lá é que encontrava o quartinho do poeta.

Helena. – É verdade?

Satanás. – Ele recebia diariamente a visita das cascatas, a cascata

púrpura, que estava sempre pronta para dormir, e a cascata branca,

que chegava pelo telhado, como uma sonâmbula.

Lúcia. – A cascata branca era eu.

48 Conforme a edição Nau dos Manifestos do Surrealismo.

25

Henri Béhar observa que Nadja, conhecendo a praça

Dauphine, podia saber que lá havia um quarto com uma

cortina vermelha, no qual se acendia uma luz a uma dada

hora. Mas, como se vê, em Peixe Solúvel consta esse quarto, do

poeta, com uma cascata púrpura. A cena estava prefigurada no

texto; e mais, em uma encenação infernal, regida pelo

diabo, que ainda declararia: A cascata púrpura carregava revólveres

cujas coronhas eram feitas de passarinhos.

A série de alucinações, rememorações e profecias

transforma a noite da Place Dauphine em episódio capital.

Suas janelas acesas, túneis, visões da mão, chafariz,

ventos, compõem um discurso delirante, semelhante ao

suceder-se das imagens no sonho. É como se, em um momento

paroxístico da relação surrealista com a cidade, esta, viva

e animada, provocada e desperta pelo casal que a percorria,

passasse a responder-lhes através de sinais.

Exausto ao final daquela madrugada, Breton decidiu só

voltar a ver Nadja dentro de dois dias, para, no dia

seguinte, dar com ela por acaso no meio da tarde. Deve ter-

se sentido prisioneiro de uma trama, sem escapatória da

condição de seu protagonista.

Três dias depois, no sexto dos seus encontros,

acomodaram-se em outro restaurante, cujo garçom,

inexplicavelmente desastrado, quebrava pratos a cada vez

que se aproximava deles. Depois de onze pratos quebrados,

novamente saíram noite afora, em busca da mão de fogo,

encontrada sob forma de ilustração de um cartaz de rua,

propaganda das lâmpadas Mazda. A mão é um símbolo

26

recorrente em Breton, freqüente em sua obra: mão da

quiromancia, mapa da vida e dos signos planetários, imagem

do pentagrama. Quanto ao cartaz, o primeiro Manifesto do

Surrealismo já sustentava que o mundo acabaria, não com um belo livro

(como sugerira Mallarmé), mas com um belo anúncio do inferno ou do

céu. Nadja devolvia-lhe seus símbolos. Mostrava-lhe imagens

de seus poemas e ensaios, assim como, na mesma época,

Georgiana, a mulher de Yeats, espelhava, em sua escrita

mediúnica, idéias do poeta irlandês sobre a relação entre

tipos humanos e a ordem cósmica.

Por alguns dias, Breton e Nadja avançaram pelas etapas

de uma perseguição sem destino. As idas e vindas à noite

culminaram na viagem a Saint-Germain-en-L'Haie, partindo de

uma estação de trem onde todos os olhavam e observavam,

para chegar a outra estação onde pessoas jogavam beijos

para Nadja.

As visões, trechos de conversas, objetos encontrados,

textos, desenhos, os esboços a traço e colagens feitos por

ela, engrossando a torrente de símbolos citados ou

graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e

vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores,

sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos

de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira,

as cores do ar – levaram Breton a vê-los, nos breves intervalos

que nos deixava nosso maravilhoso estupor, como cúmplices a

contemplar os escombros fumegantes do velho pensar e da sempiterna

vida. E a perguntar-se, utilizando a expressão de Mallarmé

para intitular um poema em prosa: ... em qual latitude poderíamos

27

ficar sossegados, entregues desse modo ao furor dos símbolos, possuídos pelo

demônio da analogia?

Seus encontros se encerraram com uma dolorosa cena de

separação. Houve ocasiões em que voltariam a ver-se e que

Breton não relata, à exceção de uma, mencionada em nota de

rodapé, sobre a fidelidade de Nadja a um princípio de

subversão absoluta: ele dirigindo um automóvel, ela

beijando-o e tapando seus olhos enquanto pisava em seu pé,

premendo-o sobre o acelerador.

Alguns meses depois, a notícia de que Nadja, em pleno

delírio, havia sido internada. Indignado, Breton escreveu

as passagens do livro contra psiquiatras e manicômios,

afirmando que, se fosse internado, mataria alguém, de

preferência um de seus médicos, para que o deixassem em

paz, confinado no isolamento.

A companhia de Nadja pareceu a Breton uma prova da

realidade do surrealismo. Não só pela comprovação do

inconsciente como fonte de imagens, mas por estas

interferirem no presente ou preverem o futuro. Ambos

trafegaram por um território crepuscular onde realidade e

sonho, um mundo sólido, estável, e outro volátil, da

imaginação desencadeada, se confundiam.

Haver rompido com Nadja, deixando-a entregue aos

psiquiatras, valeu reprovações e críticas a Breton. Não

passou incólume pelo episódio: em Les vases communicants, ela

reaparece como fantasmagoria em seus sonhos e na vida real.

Há, sem dúvida, uma questão de responsabilidade, de até que

ponto alguém pode apropriar-se de uma pessoa real e torná-

28

la personagem, estimular seu delírio, para depois deixá-la.

Sua aventura, argumentou Breton, os levou à beira de um

abismo que só poderia ser transposto pelo amor. Mas não a

amava, sentia-se apenas atraído por sua beleza frágil e

fascinado por sua condição de "espírito livre". O final de

Nadja expressa uma dúvida – talvez eu não estivesse à altura do que ela

me propunha – seguida por mais uma interrogação: mas, afinal, o

que ela me propunha?

Em seus trechos finais, Breton percebeu que escrevia

sobre um mundo que se transformava durante o intervalo que

separa essas últimas linhas daquelas que, folheando o livro, pareceriam

encerrá-lo duas páginas atrás, pois a vida e a cidade não param

de mudar. Pouco depois dos acontecimentos que acabara de

relatar, seus cenários já se haviam modificado. O teatro

onde assistira a uma peça insólita estava fechado, em

reformas. A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert, que

lhe provocava mal-estar, cercada de tapumes, em

restauração. A cidade é um organismo mutante, vivo: Não serei

eu quem meditará sobre aquilo que acontece com a "forma de uma cidade",

mesmo da verdadeira cidade afastada e abstraída daquela em que habito pela

força de um elemento que seria, para meu pensamento, o que o ar representa

para minha vida. Sem lamentá-lo, agora a vejo tornar-se outra e até mesmo

fugir. Ela desliza, arde, soçobra no frêmito de relvas loucas de suas barricadas,

no sonho das cortinas de seus quartos, onde um homem e uma mulher

continuarão indiferentes a se amar.

Nesse trecho de poesia em prosa há um intertexto com

Baudelaire e sua visão do efêmero associado à modernidade.

Conforme observa Flávia Nascimento,49 citando o trecho49 Em seu prefácio para O Camponês de Paris de Aragon.

29

correspondente de O Cisne, de As Flores do Mal50 (e subentendendo

o que Walter Benjamin escreveu sobre ruínas da modernidade

em Parque Central), Baudelaire já constatara, antes deles, que a forma de

uma cidade muda mais rapidamente que o coração de um mortal, o que faz

com que tudo transmude incessantemente em amontoados de ruínas, em

alegorias.

Nas páginas finais de Nadja, os acontecimentos

relatados passam a ter o sentido da predição. Breton

dirige-se a uma nova companheira: Sem o fazer de propósito, você

se substituiu às formas que me eram mais familiares, assim como a muitas

figuras do meu pressentimento. O amor é invocado e metaforizado

por uma beleza especial, feita de sobressaltos. É a força

que anima o coração humano, belo como um sismógrafo (em uma

referência aos “belo como” de Lautréamont). Breton encerra

proclamando que a beleza será CONVULSIVA, ou então não será.

Assim, Nadja, história de um encontro antecipado em

textos que falavam de outros encontros, por sua vez anuncia

novos encontros, respostas ao Quem vem aí? Aponta para um

livro futuro sobre o acaso objetivo e a beleza convulsiva,

que viria a ser O Amor Louco. Entre essas obras, como texto

de transição, está Les vases communicants. Breton esclarece o

significado desse título, citando uma passagem de Le

Surréalisme et la Peinture:51 Tudo o que amo, tudo o que penso e sinto, me

inclina a uma filosofia particular da imanência segundo a qual a surrealidade

estaria contida na própria realidade (não lhe sendo nem superior, nem

50 Em tradução livre e literal: De uma cidade a forma muda mais depressaque um coração infiel.51 Em uma prière d’insérer transcrita por Marguerite Bonnet, Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.

30

exterior). E reciprocamente, pois o continente também seria o conteúdo. Tratar-

se-ia quase de um vaso comunicante entre o continente e o conteúdo.

Ensaio e autobiografia, Les vases communicants também

funde os gêneros. Seguindo Freud em A Interpretação dos Sonhos,

Breton analisa dois de seus próprios sonhos. Mas tenta dar

um passo além ao mostrar, através do que chama de psicanálise

da realidade, como esses sonhos não apenas reaproveitam o que

houve, aquilo que Freud denominou de restos do cotidiano, mas

se projetam no mundo da vigília. Trata-se, portanto, não

apenas de interpretação do sonho, mas do real no sentido

mais amplo, compreendendo vigília e sonho, e defendendo a

atribuição do mesmo estatuto para ambos.

Mas essa obra de um novo gênero, como a designa

Marguerite Bonnet,52 livro predileto do próprio Breton,

conforme declararia em Entrétiens, é pesada. Falta-lhe a

elevada prosa poética de Nadja e O Amor Louco, exceto nos

parágrafos finais, dedicados a Paris. É o livro sobre a

perda, de uma intensa racionalização, elaboração do luto,

como diriam os psicanalistas. Conforme observa Béhar,

atravessava um período de extrema depressão. Daí as menções de

poetas-suicidas, Nerval, Maiakovsky e Essenine. Embora isso

não o impedisse de escrever, no mesmo ano, o poema Union

Libre, emblema da lírica surrealista, e a série que comporia

Le revolver aux cheveux blancs, enfrentava, de novo, dificuldades

financeiras, e um drama amoroso. Deixara Simone Kahn, sua

companheira desde o início dos anos 20, atraído por Suzanne

Muzard, a grande paixão anunciada ao final de Nadja. Mas

52 Em suas notas para Les vases communicants, em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.

31

sua relação com Suzanne foi um fracasso, que terminou com

ela voltando ao companheiro anterior, o escritor Emannuel

Berl. Não é gratuito que uma das partes do livro tenha como

epígrafe a frase de Aurélia de Nerval, obra sob o signo da

perda, da impossibilidade de recuperar Jenny Colon: Amei

durante muito tempo uma dama a quem chamarei de Aurélia e que perdi para

sempre.53 Também poderia ter adotado outra frase desse

livro: O sonho é uma segunda vida.

As dificuldades pessoais coincidiram com um período

dramático da história do surrealismo, documentado no

Segundo Manifesto: aquele da adesão, não só ao marxismo, mas

ao PC, à causa da revolução soviética; conseqüentemente, da

ruptura com figuras axiais como Artaud e Desnos. Portanto,

estava em curso uma crise. E mais: um impasse, pela

tentativa de conciliar um pensamento que se pretendia

“científico”, justificando um regime centralizador, e o

misticismo, o triunfo do pensamento mágico, representado

pelo predomínio da analogia e pelo acaso objetivo (embora

atribuísse o termo acaso objetivo a Engels, e Les vases

communicants fosse sua resposta à questão da atividade anti-religiosa

no surrealismo).54

Por isso, em abril de 1931, ano de perspectivas

extremamente sombrias, tornara-se um alucinado em sua

deambulação. Como resume Béhar: A certeza de que Suzanne estava

perdida para ele o arrasta a uma busca de substituição, sem objetivo real. Com

seus amigos, aposta que dirigirá a palavra a dez mulheres, à exclusão das53 Na tradução de Augusto Contador Borges, na edição brasileirada Iluminuras.54 Cf. Marguerite Bonnet, em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II, pg. 1351.

32

prostitutas, entre o Faubourg Poissonière e a Ópera. De oito, cinco aceitam

marcar encontro. Outro dia, assim como Philippe Soupault dez anos antes,

caminha com uma bela rosa vermelha na mão, que oferece às transeuntes.

Nada esperando em troca, teve toda a dificuldade em achar uma que quisesse

aceitá-la.

Nesse livro da busca para não chegar a lugar algum, de

encontros que não se realizam, é como se convertesse o

texto em ritual propiciatório. Diz, de uma das mulheres a

quem abordou: Seus olhos (eu nunca soube dizer a cor dos olhos; aqueles

permaneceram para mim apenas olhos claros), como me fazer entender, eram

daqueles que não se revê jamais. Eram jovens, diretos, ávidos, sem langor, sem

criancice, sem prudência, sem “alma” no sentido poético (religioso) da palavra.

Olhos sobre os quais a noite deveria cair de um só golpe. Multiplica

assim o encontro com Nadja. Até um homem, a quem dera dez

francos, também se torna profeta. À semelhança de Nadja,

diz: Senhor, não sei quem é, mas peço-lhe que faça o que deve fazer e o que

pode fazer: algo de grande. Frase idêntica à de um livro, Le vieux

baron anglais, que Breton estava lendo, assim como Nadja

repetira a frase de Berkeley diante do chafariz, quase em

uma paródia da narrativa anterior. Também reencontra

parceiros de aventuras passadas: relata diálogos com André

Derain, que o acompanhara na busca da moça misteriosa de

L’esprit nouveau.

Contudo, esse ritual tem um sentido e apresenta

conseqüências. Nos sonhos que narra, nas suas

interpretações e nos relatos de como se projetavam na

vigília, Breton é antecipatório sem percebê-lo. Anuncia O

Amor Louco. Um dos episódios, real, reapareceria no primeiro

33

dos sonhos relatados: em um bar de saguão de hotel, uma

moça na mesa ao lado escrevia versos em um papel, assim

como em seu primeiro encontro com Jacqueline Lamba, daí a

quatro anos. Outro foi com girassóis, a flor que

desempenharia um papel central em O amor louco.

Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade,

do mundo da desigualdade e exploração, só havia uma saída:

a equiparação de vigília e sonho. Inverter as relações

entre esses dois mundos foi uma de suas obsessões; daí seu

filme predileto ter sido Peter Ibbetson,55 história de amantes

que só podem encontrar-se em sonhos, o que mantém vivo, por

longos anos, o protagonista encarcerado. E, na primeira

página de Les vases communicants, conta a história do homem

que quis proceder a essa reversão, fazendo da vigília um

prolongamento do sonho: O Marquês de Hervey-Saint-Denys, tradutor de

poesias chinesas da época dos Tang, e autor de uma obra anônima publicada

em 1867 sob o título Os Sonhos e os Meios de dirigi-los -

Observações práticas, obra que se tornou rara a ponto de nem Freud e

nem Havelock Ellis, que a mencionam ambos, terem conseguido tomar

conhecimento dela, parece ter sido o primeiro homem a achar que não era

impossível – sem para isso recorrer à magia, cujos meios, em seu tempo, só

conseguiam se traduzir por algumas receitas impraticáveis - vencer em seu

proveito as resistências da mais amável das mulheres, e obter rapidamente que

esta lhe concedesse seus mais recentes favores. [...] Foi assim que a sucção

de uma simples raiz de íris, que, durante a vigília, teve o cuidado de associar a

um certo número de representações agradáveis cuja origem está na fábula de

55 De Henry Hathaway, estrelado por Gary Cooper, de 1936, com o título traduzido no Brasil como Amor sem fim.

34

Pigmalião, valeu-lhe durante o sono, uma vez deslizada essa raiz entre seus

lábios por uma mão cúmplice, uma aventura tentadora.

Nesta passagem, Breton se aproxima de um autor

metafisicamente (e politicamente) tão oposto a ele quanto

Jorge Luis Borges. Mas com uma diferença fundamental: em

Borges, inversões e projeções do sonho, como em As ruínas

circulares, são o tema de narrativas de ficção. Breton, para

expô-las, foi buscar um personagem histórico. De modo

conseqüente, vê o sonho como crítica do “real”: assim fazendo,

por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, [...] sendo,

penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem

senão um, ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para

constituir-se, que verter-se na “torrente do dado”. Indaga se a

distinção entre “realidade” e sonho é fundamentada em todos os

pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade de

discriminação que permite seu comportamento social normal.

Por isso, critica Freud pelo dualismo, a seu ver

variante do platonismo, ao separar dois mundos que, sob o

ponto de vista materialista, deveriam ser um só: ... mais

desolador ainda é que o monista Freud tenha se permitido chegar finalmente a

essa declaração no mínimo ambígua, a saber que a “realidade psíquica” é uma

forma de existência particular que não se deve confundir56 com a

“realidade material”. E questiona o criador da psicanálise por

considerar o sonho exclusivamente a satisfação de um

desejo. Isso equivaleria à falta quase completa de concepção

dialética, pois o “real” da vigília está submetido à censura,

56 Uso itálicos nas citações; por isso, passagens grifadas por Breton, impressas em itálico nos originais, vão em redondo nas minhas citações.

35

enquanto o sonho, não; por isso, é o território da

liberdade, do possível, da utopia: ...uma parte do sonho,

considerada eminentemente não-sonhável, tem por objeto fazer de uma coisa

que não foi – mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido, em

seguida como podendo e devendo ser - uma coisa que foi, que é portanto em

todos os pontos possível e que deve passar, sem choque, à vida real como

toda-possibilidade.57 Daí que ...Freud ainda se engana, muito

certamente, ao concluir pela não-existência do sonho profético.

Argumenta com fatos. Acontecimentos do dia-a-dia

obedecem aos mecanismos do sonho. Por exemplo, na série de

mulheres que vai encontrando, para depois perdê-las. Trata-

se de deslocamentos: Um personagem, assim que é dado, é abandonado

por um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse

trabalho de expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos

apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! – Como em um sonho.58

Há mais em Les vases communicants: uma interpretação do

Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala

fonética a uma atraente Olga que acabara de conhecer, além

de outros encontros casuais com mulheres, das quais

invariavelmente descreve os olhos.59 O autor da carta com

observações inteligentes sobre o Segundo Manifesto é Sanson,

Sansão (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante

a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o

remete à moça com quem havia marcado encontro aquele dia,

cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave Moureau,

um de seus pintores prediletos. Ainda por associação,57 Grifo de Breton.58 Grifo de Breton.59 Cabe lembrar o chavão os olhos são a janela da alma e sua origem em Platão.

36

lembra o episódio burlesco ocorrido no mesmo dia, no

cabeleireiro. Admite: Que isso possa, para alguns, frisar o delírio de

interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o fiz, sobre

as razões do meu pouco equilíbrio de então. Seria possível até mesmo

ir adiante nessa argumentação desenfreada, paranóico-

crítica: por exemplo, associando as menções a Sansão (e

Dalila, por extensão) e ao cabeleireiro à longa cabeleira,

extravagante para a época, parecendo uma juba, do próprio

Breton.

Mais que delírio interpretativo, preparação do método

paranóico-crítico de Dali, há, nesse e em outros ensaios de

Breton, um primado do pensamento analógico, da associação

de coisas e símbolos distintos por contigüidade ou

afinidade. Escrevia ensaios do mesmo modo como criava

poesia. O mecanismo do sonho pode não ter tomado conta da

realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: Deve ser impossível,

considerando o que precede, não se chocar com a analogia entre o estado que

acabo de descrever como tendo sido o meu naquela época e o estado de sonho,

tal como concebido geralmente.

A carta que havia recebido de Georges Sanson podia ser

um comentário à discussão da noite anterior, sobre o

misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma

religiosidade disfarçada no âmbito do surrealismo: ...repito

que entre nós essa discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se como

os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é

taxado de misticismo em mim. A relação causal, vêm me dizer, não poderia se

estabelecer nesse sentido. Não há nenhuma relação sensível entre aquela carta

que lhe chega da Suíça e tal preocupação que poderia ser a sua nas

37

vizinhanças do momento em que essa carta foi escrita. Mas isso não é,

pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de causalidade?

Não é deixar passar a palavra de Engels: “A causalidade não deve ser

compreendida senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de

manifestação da necessidade”?

É desse modo que aparece na obra bretoniana a

expressão acaso objetivo, associada a um Sansão, seu duplo,

mas atribuída a Engels. No entanto, como bem demonstrou

Marguerite Bonnet, ela não se encontra em lugar algum na

obra de Engels:

Espanta que o problema da fonte dessa “categoria” assim atribuída a

Engels – e por conseqüência do exato alcance dos termos – não tenha sido

levantado na abundante literatura que Breton e o surrealismo já suscitaram.

No pensamento de Engels aparece com freqüência uma representação do

acaso como fenômeno de superfície, ocultando a necessidade escondida.

[...] Mas a palavra “objetivo”, cujo sentido suscita uma interrogação, não

aparece. [...] As obras de doutrina de Plekhanov, de Bukharine, de Fréville,

e tampouco a imprensa revolucionária que examinamos, nada nos revelaram

sobre essa questão. [...] Quanto ao termo objetivo, sublinhemos em

primeiro lugar sua tonalidade marxista. O objetivo é independente da vontade

e da consciência do homem, ele pertence às leis da natureza exterior, mas

ninguém duvida que em Breton ele está carregado das ressonâncias que toma

ao final do Curso de Estética de Hegel, tal como lhe revelou a tradução

Bénard – nessa passagem para ele tão decisiva, onde é definido o humor

objetivo, culminação final da arte romântica, que marca, ele mesmo, o fim da

arte. [...] Se o marxismo, através da caução de Engels, assim dá ao acaso

uma base infinitamente mais sólida do que o poderia fazer para Breton uma

teoria como aquela de Cournot (duas cadeias causais que se encontram

38

acidentalmente), é a leitura pessoal e poética que ele fez das páginas de Hegel

sobre o humor objetivo que projeta sobre a idéia do acaso todo o frêmito da

vitalidade concreta e do sentimento agudo do moderno.60

De fato, em uma palestra de 1935, Situação surrealista do

objeto,61 Breton voltaria a falar do acaso objetivo, mas,

desta vez, sem remetê-lo a Engels, porém apenas ao humor

objetivo de Hegel, exemplificado através de poemas de

Rimbaud, Apollinaire e Jarry: A atenção que, em todas as

oportunidades, me esforcei , de minha parte, por chamar para certos fatos

perturbadores, para certas coincidências desnorteantes, em obras como

Nadja, Os Vasos Comunicantes, e em diversas comunicações ulteriores,

teve como efeito o levantar, com uma acuidade inteiramente nova, o problema

do acaso objetivo, ou, por outras palavras, dessa espécie de acaso através

do qual se manifesta ao homem, de modo ainda muito misterioso, uma

necessidade que lhe escapa, muito embora ele a sinta vitalmente como

necessidade. Esta região do acaso objetivo, ainda quase inexplorada, é, creio

eu, a que mais merece, no momento presente, que nela demos prosseguimento

a nossas investigações. É totalmente limítrofe da região que Dali escolheu para

nela exercer a atividade crítico-paranóica. Ela é, por outro lado, o lugar de

manifestações tão exaltantes para o espírito, nela se infiltra uma luz tão

próxima de passar pela luz da revelação, que o humor objetivo se despedaça,

até segunda ordem, contra suas muralhas abruptas.

Mas o que faz que realidade e consciência se

subordinem ao sonho? Em Les vases communicants, Breton dá a

resposta. É o desejo: Muito mais significativo é observar como a

exigência do desejo em busca do objeto de sua realização dispõe

60 Em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.61 Da edição Nau, já citada, dos Manifestos do Surrealismo, bem como de Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.

39

estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a só reter deles

aquilo que pode servir a sua causa. A vã agitação da rua tornou-se pouco mais

incômoda que o movimento das cortinas. O desejo está lá, cortando o tecido

que não muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e

frágil entre os pedaços. Ele não cederá a nenhum regulador objetivo da

conduta humana.

Se, de um lado, faz crítica marxista à psicanálise

freudiana ao questionar seu dualismo, de outro procede à

freudização do marxismo, ao colocar não só o comportamento

humano mas o mundo todo sob a regência de Eros. Sobrepondo-

se ao estudioso de Hegel e Marx, bem como de Freud, está o

hiper-romântico.

É possível entender marxismo e surrealismo, revolução

e revolta, como sendo complementares. O surrealismo

equivaleria à subversão e à revolução no plano simbólico,

na superestrutura, complementando ou antecipando a

transformação na base da sociedade. Mas isso nada tinha a

ver com a instalação do estado soviético. Era infrutífera a

tentativa bretoniana de dialogar com o PC, como na parte

final de Les vases communicants, ao defender o conhecimento

intuitivo e uma atitude sintética na qual se encontram conciliadas a

necessidade de transformar radicalmente o mundo e aquela de interpretá-lo

do modo mais completo possível. Tanto é que expoentes do marxismo

francês, como Henri Lefebvre e Georges Politzer,

questionaram frontalmente esse livro.62

Por representarem a censura, a restrição à criação e à

expressão, tinham lógica as objeções de ideólogos e

62 Também conforme as notas de Marguerite Bonnet em Breton, Oeuvres Complètes, vol. II.

40

burocratas do PC ao surrealismo, por eles diagnosticado

como expressão e sintoma da decadência burguesa. Imagine-se

o que devem ter pensado militantes mais ortodoxos diante

desta passagem: Há toda espécie de meios de conhecimento, e certamente

a astrologia poderia ser um deles, dos menos negligenciáveis, à condição de

que sejam controladas as premissas e que seja tido por postulado aquilo que é

postulado. Isso, enquanto a ciência soviética adotava uma

psicologia estritamente pavloviana, banindo Freud e a

psicanálise, além de oficializar a biologia de Lisenko,

fraude científica tida por coerente com a doutrina, e

expurgar formalistas.

Temas, enredos, obsessões, revelações através dos

signos da cidade como em Nadja e Les vases communicants, tudo

isso reaparece em O Amor Louco, porém agora na chave

positiva, da realização do desejo. Os acontecimentos nele

descritos novamente invertem a relação habitual entre

narrativa e realidade, levando Breton a sentir o mundo

transformar-se em floresta de indícios, sinais do que viria. O

livro começa onde Nadja termina, comentando a beleza

convulsiva do cristal, dos corais, da vegetação do fundo do

mar, dos “belos como” de Lautréamont, e de um trocadilho,

um desses indícios, ouvido em um restaurante que, a partir

das bijuterias de uma garçonete, torna-se microcosmo de um

acontecimento planetário:

A 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua

(fenômeno esse que só acontecia uma vez por ano), almoçava eu num pequeno

restaurante, situado, bastante desagradavelmente, à entrada de um cemitério.

[...] A criada é muito bonita: ou melhor, poética. Nessa manhã de 10 de

41

abril trazia ela, sobre uma gola branca salpicada de bolas vermelhas, muito a

condizer com o vestido preto, um finíssimo cordão donde estavam suspensas

três límpidas gotas de água como que feitas de pedra lunar, gotas redondas

sobre as quais se destacava, na parte de baixo, um crescente da mesma

matéria, engastado do mesmo modo. Pude apreciar, uma vez mais, a

coincidência entre a jóia e o eclipse. Como tentasse situar a rapariga, tão bem

inspirada para aquela ocasião, ouvi, de repente, a voz do lavador de louça: “Ici

l’Ondine!”, e a resposta estranha, infantil, quase ciciada, perfeita: “Ah,! Oui, on

le fait ici, l’On dîne!”. Que cena poderá haver de mais comovente? [...] A

beleza convulsiva terá que ser erótico-velada, explodente-fixa, mágico-

circunstancial, ou não será beleza.63

Em O Amor Louco há um descompasso e trocas de lugar,

até mesmo inversões, entre o tempo da narrativa e as datas

dos acontecimentos narrados. Foi sendo escrito ao longo de

três anos, de 1933 a 1936, à medida que os acontecimentos

nele relatados se desenrolavam.64 Suas partes foram

publicadas separadamente, depois reunidas em livro, e o

trecho citado é anterior ao encontro com Jacqueline Lamba e

à “noite do girassol”. Mas o jogo de palavras, “aqui, a

Ondina” e “aqui se janta” (ici, l’on dîne), o antecipa, pois

Jacqueline se exibia em um número de mergulho em um

aquário, assim encenando uma ondina, ninfa das águas.

Nesses dias antecipatórios, nos quais, independentemente

do que possa acontecer, a espera é magnífica, Breton descobria

objetos que pareciam apontar além de si mesmos, despertando a

atração do jamais visto, o oposto do mesmo, do lugar comum.63 As citações são da edição da Estampa de O Amor Louco, já mencionada.64 Ver as notas por Marguerite Bonnet, no volume II de OeuvresComplètes de Breton.

42

Assim consagrou o objet trouvé, o objeto achado, como modo de

criação artística. Ao percorrer o Mercado de Pulgas, a

feira parisiense de antiguidades e velharias, em companhia

do escultor Alberto Giacometti, este comprou uma estranha

máscara gradeada. Breton, por sua vez, ficou com uma colher

de madeira com um cabo longo e um suporte, um apoio

semelhante a um salto, dando ao todo uma forma de sapato

alongado.

A máscara acabou servindo a Giacometti como peça de

que precisava para completar uma das suas esculturas. E a

colher, enquanto Breton, já em casa, a examinava,

transformava-se. Como em uma alucinação, ganhava em brilho,

a madeira assemelhando-se aos poucos ao vidro, até

converter-se no sapato de cristal perdido de Cinderela.

Essa imagem vinha-lhe aparecendo em sonhos, e à sua mente

ocorria a aliteração le cendrier de Cendrillon, o cinzeiro da

Cinderela, levando-o a pedir a Giacometti que o modelasse.

Antes que o escultor o atendesse, a imagem do sonho foi

encontrada na realidade. Assim, dois objetos encontrados, a

máscara e a colher-sapato, preencheram desejos de seus

possuidores, sem que estes o percebessem de imediato.

Breton observa que a transformação da colher-cinzeiro

em sapato é sincrônica com relação à metamorfose da abóbora

em carruagem na história da Cinderela. É um duplo objeto: o

instrumento de cozinha que ela usava, e o sapato de

cristal, ligação ou veículo para a transformação em

princesa, revelando sua identidade. Adotando o pensamento

analógico, o sapato existia na colher, assim como a Gata

43

Borralheira era, antes de vir a sê-lo, a mulher eleita,

símbolo da realização do amor único. Essa permuta prefigura

um dos jogos que os surrealistas viriam a praticar, o "um

no outro",65 aplicação do princípio da analogia, pelo qual

cada coisa partilha propriedades de outras. Obedecem,

portanto, ao mesmo princípio que os deslocamentos e

condensações do sonho. Mas, em O Amor Louco, tomam conta da

realidade, ou da surrealidade: O objeto “achado” desempenha aqui,

rigorosamente, a mesma função do sonho, no sentido em que liberta o

indivíduo de escrúpulos afetivos paralisantes, em que o reconforta e lhe faz

compreender que o obstáculo que ele tinha razões para crer insuperável foi,

finalmente, franqueado.

Já a máscara comprada por Giacometti revelou-se um

instrumento de guerra. Outro poeta, Joë Bousquet, contou-

lhes que havia sido usada na Primeira Guerra Mundial,

mostrando-se ineficiente como proteção, causando a morte de

soldados. Vê-se que a colher-sapato e a máscara gradeada

são complementares, ligados à vida e à morte, a cada uma

das dimensões primordiais ou instintos básicos, Eros e

Tanatos.

E, culminância do acaso objetivo, Breton, enquanto

examinava a máscara na feira, sem saber era observado por

ninguém menos que Suzanne Musard, a mulher que o

abandonara, também impressionada com esse objeto, e seu

companheiro Emmanuel Berl. Daí que: A minha perturbação, e talvez,

antes de mim, perante essa máscara – sobre cuja utilização viriam a ser-me

dados, daí a pouco, tão penosos esclarecimentos –, a estranha figura (em

65 Ver, a respeito, o ensaio Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia de Maria Lúcia Dal Farra, já citado.

44

forma de X, meio claro, meio obscuro) formada por esse encontro, por mim,

mas não por ela, ignorado, encontro esse centrado precisamente sobre tal

objeto, levaram-me a pensar que ele, naquele instante, catalisava o “instinto de

morte” (instinto que, após a perda de um ser amado durante muito tempo me

dominou), por oposição ao instinto sexual que, uns passos mais à frente, iria

encontrar satisfação com a descoberta da colher. Assim se confirma, o mais

concretamente possível, a proposição de Freud: “Esses dois instintos, tanto o

sexual como o da morte, comportam-se como instintos de conservação, no

sentido mais estrito da palavra, pois tanto um quanto o outro tendem a

reinstaurar um estado que o aparecimento da vida veio perturbar.” Tratava-se,

porém, de ser de novo capaz de amar, e não só já de continuar a viver!

Portanto, há, nesse episódio, em cuja interpretação se

confundem psicanálise e magia, um complexo jogo de

encontros e desencontros, achados e perdas. Breton

encontrou na realidade o que Cinderela perdera na fábula.

Por sua vez, era observado, encontrado ao acaso, por

Suzanne, a mulher que havia perdido. Uma trama dessas

fortalece a interpretação psicanalítica sugerida por Jean-

Luc Steimetz66 para a associação da colher-sapato à

Cinderela e ao modo como essa lenda povoava as fantasias de

Breton: a perda de Suzanne Muzard fora o avesso da história

da Gata Borralheira. Mas esses encontros cruzados não foram

apenas escritos, sonhados ou imaginados: aconteceram.

Trata-se de psicanálise, não só do texto, do simbólico, mas

da realidade, extrapolando a esfera do psíquico, de modo

conforme ao que Breton propôs em Les vases communicants.

66 Steinmetz, Jean-Luc, André Breton et les surprises de l’amour fou, PressesUniversitaires de France, Paris, 1994

45

O Amor Louco vai além do relato de encontros e

descobertas de objetos e símbolos. Seu tema é o acesso à

revelação: É como se, de repente, fosse desvendada a profunda noite da

existência humana, como se, tendo a necessidade humana aceito formar um só

todo com a necessidade lógica, todas as coisas adquirissem uma total

transparência, tudo se ligasse entre si como uma cadeia de vidro à qual não

faltasse um só anel. Trata de nada menos que a descoberta da lei

de produção do misterioso intercâmbio entre a matéria e o espírito. É,

portanto, um livro sobre magia, embora Breton não use a

palavra ao tratar do modo como o sujeito, movido pelo

desejo, altera, inverte ou subverte a causalidade e a

temporalidade.

No encontro, seja com a colher-sapato ou com a amada,

resolve-se a tensão entre a espera e a descoberta, o desejo

e a realização. Um curto-circuito quando é abolida a sensação do

tempo, com a embriaguez da sorte. Cresce, diz ele, a consciência

de que existe esse homem vivo que, alguma vez, tentou, ou tenta ainda re-

equilibrar-se sobre o traiçoeiro trapézio do tempo. Assim manifesta-se o

acaso objetivo, através de acontecimentos sob o signo da

espontaneidade, da indeterminação, do imprevisível ou até mesmo do

inverossímil. Esta é a forma da necessidade exterior se manifestar, ao abrir

caminho através do inconsciente humano.

Abandonando o tom de relatório, quase diário, das

passagens centrais de Nadja, em favor de longos trechos de

poesia em prosa, Breton quis expressar sentimentos e

emoções, minhas disposições mentais e afetivas. Ao encontrar uma

desconhecida, escandalosamente bela, diz, confunde-a com o

universo e a faz partilhar suas qualidades. Seus cabelos

46

são chuva clara sobre castanheiros em flor, da cor de um sol

extraordinariamente pálido. Aparece rodeada de um vapor - vestida de

labaredas? - Tudo perdia a cor, tudo gelava em presença daquela tez de sonho,

perfeita concordância de tons de ferrugem e de verde. O nome da mulher

a quem Breton conheceu não é dito em O Amor Louco. Sabemos,

através dos biógrafos, tratar-se de Jacqueline Lamba. Sua

foto de corpo inteiro, publicada no livro, é pouco nítida,

embaçada, pois, ondina antecipada, ela foi fotografada

debaixo da água, em seu mergulho visto através do vidro de

um aquário.

Breton pergunta o que ela estaria escrevendo: Aquela

mulher que acabava de entrar escrevia, pois, - já na véspera a vira escrever, e

até me agradou pensar que era para mim que escrevia, e até vim depois a dar

comigo à espera de uma carta sua. Logo saberia que o texto

escrito por Jacqueline à mesa do bar, na primeira ocasião

em que a viu, era de fato uma carta para ele (por

recomendação de um primo, era sua leitora). Mais uma

ocasião, portanto, em que um texto precedeu acontecimentos.

Marcaram de ver-se mais tarde, à meia-noite, no Café des

Oiseaux em Montmartre. Saindo dali, caminharam conduzidos

pelo vento: esse belo vento que nos impele e que decerto não irá amainar.

O vento do eventual, invocado em Les pas perdus, os acompanhou

enquanto desciam a Rua Montmartre, atravessando um bom

pedaço de Paris. Mas Breton não descreve o percurso

completo. Seu relato recomeça em Les Halles, onde passam

pela porta dos bares de fim de noite e observam o movimento

de caminhões descarregando verduras no velho mercado.

Prosseguem pelo quarteirão dos alquimistas e da Torre

47

Saint-Jacques, passam pelo Hôtel de Ville, atravessam o

Sena na altura da Catedral de Notre-Dame. Antes de se

perderem por ruelas do Quartier Latin, detiveram-se no Cais

das Flores, onde floristas descarregavam vasos de plantas e

armavam suas barracas. A cena inspirou-lhe novas passagens

de exaltada poesia em prosa: Límpida fonte, onde vem se refletir e

dessedentar a vontade de arrastar comigo um outro ser, desejo meu de

percorrer a dois - e já que antes não me fora possível fazê-lo - o caminho

perdido ao sair da infância, o caminho que entre prados se insinuava,

rodeando de bálsamos aquela mulher ainda desconhecida, a mulher que um

dia haveria de me aparecer. Será você, finalmente, essa mulher? Só hoje, enfim,

você deveria aparecer?

Desconhecemos o restante da caminhada, por onde

passaram depois de enveredar pelo Quartier Latin, em uma

rota que os conduziu ao casamento, dois meses depois.

Antes, enquanto deixava, como era seu hábito, o espírito

vaguear pela manhã, Breton lembrou-se de um de seus poemas,

escrito em 1923, na época em que procurava cartazes

anunciando carvão de lenha e cruzava com moças misteriosas

fazendo perguntas aos passantes em Saint-Germain-des-Prés.

Escrito no modo automático, publicado em Clair de Terre,

dedicado a Pierre Reverdy, intitula-se Tournesol, girassol,

imagem de sua predileção, a flor que se move acompanhando o

sol. Dúvidas de Breton sobre o poema foram respondidas onze

anos depois, ao perceber que falava do encontro com

Jacqueline.

48

Por sua importância como “poema profético”, cabe

reproduzir Tournesol:67

A viajante que atravessou os Halles ao cair do Verão

Caminhava na ponta dos pés

O desespero rolava pelos céus seus grandes arãos tão belos

E na valise de mão escondia-se meu sonho esse frasco de sais

Que só a madrinha de Deus aspirou

Os torpores pairavam como vapor de água

No "Chien qui fume"

Onde o pró e o contra acabavam de entrar

Difícil lhes era ver a moça só de soslaio a viam

Estaria eu diante da embaixatriz do salitre

Ou da curva branca sobre fundo negro a que se chama

pensamento

O baile dos inocentes estava no auge

Nos castanheiros incendiavam-se devagar os lampiões

A dama sem sombra ajoelhou-se no Pont-au-Change

Na Rua Gît-le-Coeur outros eram agora os timbres

As promessas da noite cumpriam-se finalmente

Os pombos-correio os gritos de socorro

Vinham juntar-se aos seios da bela desconhecida

Dardejados sob o crepe dos significados exatos

Uma chácara prosperava em pleno centro de Paris

Com suas janelas viradas para a Via Láctea

Mas ninguém lá morava ainda por causa dos que viriam a

aparecer

Dos que mais dedicados são que as almas do outro mundo67 Utilizo a tradução de Luiza Neto Jorge, na edição citada de O Amor Louco.

49

Alguns como esta mulher mais parecem nadar

E no amor insinua-se algo de sua matéria

Ela os interioriza

Não sou joguete de nenhuma força sensorial

E no entanto o grilo que cantava sobre os cabelos de cinza

Certa noite junto à estátua de Etienne Marcel

Lançou-me um olhar cúmplice

André Breton disse ele está passando

Breton mostra como o poema antecipa sua caminhada com

Jacqueline, pela coincidência das referências urbanas no

texto e lugares por onde haviam passado naquela noite. Na

frase inicial, a travessia de Les Halles pela viajante que,

dançarina, caminha na ponta dos pés. E que, adiante, parece

nadar: a dançarina-mergulhadora. No final, a estátua de

Etienne Marcel na praça ao lado do Hôtel de Ville; o Pont-

au-Change, que leva ao Cais das Flores e ao Quartier; a Rua

Gît-le-Coeur, no caminho do Quartier, vindo pelo Pont-au-

Change. Além das correspondências de trechos do poema com

etapas da caminhada, há outras, como na menção aos pombos-

correio. O primo de Jacqueline que já conhecia Breton e lhe

indicara seus livros era André Delons:68 na época, prestava

serviço militar e estava ligado a um centro columbófilo,

uma criação de pombos-correio. Breton acabara de receber

uma carta dele, em um envelope timbrado com o carimbo desse

centro columbófilo.

Essas são as correspondências mais flagrantes. Mas

Breton vê mais: referências a seus estados de espírito na68 Cf. Marguerite Bonnet nas notas para Oeuvres Complètes, vol. II, e Jean-Luc Steinmetz, já citado.

50

época, o desespero, torpores, a sensação de ser um joguete

de forças desconhecidas. Observa que, caminhando lado a

lado, só podia ver Jacqueline de soslaio, da forma como

está no poema. Relaciona imagens à prática da alquimia à

sombra da Torre Saint-Jacques e à emblemática figura de

Nicolas Flamel. Associa o grilo do poema a outro, figurante

em Os Cantos de Maldoror (no Canto VI, aunciando a chegada de

Maldoror). Destaca a confluência de paixões que recebem

respostas de todo o Universo, das chácaras brotando

inesperadamente em Paris até a Via Láctea. Afirma, de modo

conclusivo, ...que nada existe nesse poema de 1923 que não seja um

prenúncio daquilo que, em 1934, de mais fundamental me viria a acontecer.

Conforme observa Jean-Luc Steinmetz,69 o roteiro

seguido pelos dois e indicado em Girassol é previsível, um

caminho entre a região boêmia de Montmartre e o Quartier

Latin, percorrido por inumeráveis noctâmbulos. Apresenta

uma hipótese: não foi o poema do girassol que antecipou os

acontecimentos, mas, por seu conteúdo simbólico (analisado

em detalhe nesse ensaio, associado a experiências de

infância), por aquilo que suas imagens evocavam, dirigiu os

passos e a atenção de Breton.

De fato, comparar poemas e acontecimentos, do modo

como Breton o fez em O Amor Louco, pode acabar mostrando que

inumeráveis encontros amorosos já foram anunciados por

outras tantas produções do lirismo romântico. Quantos

apaixonados não tiveram experiências semelhantes à

revelação? Quantos não se sentiram retratados em um poema

inesperadamente descoberto ou redescoberto? Não conflita69 No já citado Les surprises de l’amour fou.

51

com o pensamento de Breton identificar o acaso objetivo à

experiência poética em si, atribuindo uma dimensão mágica à

própria poesia; menos ainda, vinculá-lo à realização

amorosa. É a interpretação de Octavio Paz:70 Todos nós fomos

heróis ou testemunhas de acontecimentos inexplicáveis. [...] E em nossa

vida diária, não é o amor, de maneira soberana, a ardente encarnação do

acaso objetivo? As perguntas que faziam Breton e Éluard na revista

Minotaure: “Qual foi o encontro capital de sua vida? Até que ponto esse

encontro lhe deu a impressão do necessário ou fortuito?, podemos todos repeti-

las. E tenho certeza de que a maioria responderia que esse encontro capital,

decisivo, destinado a nos marcar para sempre com sua garra dourada, se

chama: amor, pessoa amada. Para o poeta e ensaísta mexicano,

acompanhando o pensamento bretoniano, o encontro amoroso é

a síntese do acaso e necessidade: Nenhum de nós poderia afirmar

com inteira certeza se esse encontro foi fortuito ou necessário. [...] O

acaso objetivo é uma forma paradoxal da necessidade, a forma por excelência

do amor: conjunção da dupla soberania de liberdade e destino. O amor nos

revela a forma mais alta da liberdade: livre eleição da necessidade.

Se os capítulos iniciais de O Amor Louco são a crônica

da espera – quando, independentemente do que possa ou não acontecer,

a espera é magnífica – e se o trecho seguinte, da caminhada por

Les Halles e da evocação do Girassol, é a celebração do

encontro e o triunfo do acaso objetivo, então a continuação

da narrativa corresponde à realização do desejo, o único

rigor que o homem se deve impor, e à suspensão do tempo: A morte,

cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra

70 Em La búsqueda del comenzo ou André Breton e a busca do início, seu ensaiosobre Breton e surrealismo, já citada aqui.

52

sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para cantar as

horas que não passam.

Como etapa de uma viagem a lugares onde havia

manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline chegam às

Ilhas Canárias em abril de 1935. Lá, em plena natureza

reconciliada, possuído pelo delírio da presença absoluta, vê no Pico

de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim

do Éden, a Idade do Ouro reconquistada (a programação

surrealista à qual compareciam exibia L’Age d’Or de Buñuel).

Tem uma experiência mística – o contato involuntário com um só

ramo de sensitiva é o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de nós, o

prado inteiro – à qual responde com o melhor de sua poesia em

prosa. Transcreve a música sobreposta aos nossos passos sobre

praias de areia branca e de areia negra, passando por

matizes e gradações da água do mar, por uma vegetação de

figueiras de raízes que mergulham na pré-história, sempre-

vivas com folhas refletindo a Unidade, eufórbias e

pitangas, cactos de muitas formas.

É interessante como Breton, nessa passagem, apresenta

um relato detalhado de toda essa vegetação, acidentes

geográficos, a paisagem e natureza do Pico de Teide.

Estaria, aparentemente, abdicando de sua postura anti-

realista, contrária à descrição. Mas Steinmetz, no ensaio

já citado, observa, com agudez, que esse lugar, cenário da

plenitude amorosa de Breton e Jacqueline, é concretização

do sonho, surrealidade realizada. Daí a mudança de foco a

que Breton procede, substituindo imagens, ou

complementando-as, por uma prosa barroca. Faria o mesmo em

53

Arcano 17, ao descrever a paisagem do rochedo de Percé, na

Gaspésia.

As flores de Orotava não são mais aquelas da feira no

cais do Sena, breve irrupção da natureza na cidade. Agora

ocupam tudo, até que os amantes se confundam com elas: A um

sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor

fascinante e fatal. No interior da flor, no seio da oblíqua claridade,

experimenta a plenitude, pois a suficiência total que, naturalmente,

reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o

mínimo obstáculo. Dentro da flor e dentro da nuvem, do puro

informe: quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre

nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a esses

mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma

nuvem.

Nuvens são um lugar do encontro entre desejo e

realidade: levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a

melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos. E mais: é

perceber que toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade

se encontra aqui implicitamente solucionada, pois a surpresa não é mais

que a fusão do natural e do sobrenatural no seio de um mesmo objeto.

Leonardo da Vinci, lembra Breton, pedia a seus alunos que

olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que

viam desenhar-se nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na

parede são as telas em que se projetam imagens do desejo: O

homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor,

aceitar reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada

tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela

existe. Qualquer existência comporta um todo homogêneo de fatos

54

aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos mais

fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.

Breton ainda lembra Baudelaire, que, no poema A Viagem,

final da primeira versão de As Flores do Mal, também associa

nuvens ao desejo e ao acaso: As maiores regiões, a mais pujante

aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com

as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!71

Essa projeção do desejo é magia, invocação do acaso

objetivo: Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso

encontro - se tiver valido a pena interrogá-las - as forças do acaso objetivo,

que nada querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende

saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de

desejo.72 [...] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem,

para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que

o homem deve se impor?

O final do capítulo é uma apoteose: em mais uma das

aproximações bretonianas de opostos, evoca Almani,

personagem da Nouvelle Justine de Sade, masturbando-se no topo

do Etna para misturar seu esperma à lava incandescente; e,

na página seguinte, o Pico de Teide é o diamante, Deria-i-

Noor e Koh-i-Noor, equivalente à pedra filosofal.

O Amor Louco se encerra com uma carta de Breton para sua

filha Aube, a ser lida em 1952, quando ela tivesse

dezesseis anos. Texto para o futuro, exalta o amor único e

declara a esperança de que viesse a ser loucamente amada.

Mas a história dos encontros de Breton com Jacqueline e das

intervenções do acaso objetivo termina, depois da homenagem

71 Conforme a tradução no já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.72 Os negritos são do próprio Breton.

55

ao desejo entre as nuvens de Orotava, com um capítulo

sombrio, onde a tônica dominante é a morte.

A complementaridade de Eros e Tanatos está presente no

início do livro, com a história do par de objetos

encontrados, a máscara militar e a colher-sapato, e em seu

final, com o episódio da "casa das raposas". Mudando de

estilo, ou de registro, passa da fusão de reflexão

filosófica e poesia em prosa a um relato descritivo. Conta

como ele e Jacqueline, já em 1936, passavam alguns dias no

litoral da Bretanha, em Lorient, terra de origem de sua

família e de seu sobrenome. Em uma tarde de mau tempo,

caminham por uma praia deserta e perdem-se na desolação.

Sentem que não conseguirão mais sair dessa extensão

sombria. Tomados por uma crescente depressão e uma sensação

de pânico, são incapazes de falar-se: De nada servia esperarmos

um pelo outro: impossível trocarmos uma palavra que fosse, passar um pelo

outro sem desviar a cabeça e estugar o passo. O mal-estar chega ao

máximo ao passarem por uma casa desabitada. Vê-a cercada de

grades metálicas. Atravessam um riacho que dá em um costão

de praia, um monte de pedras e, logo adiante, uma antiga

fortaleza abandonada. À medida que se afastam da casa e do

desvio com o riacho, a paisagem se abre e passa a sensação

opressiva que os possuíra. Ao refletir sobre o ocorrido,

percebe que o mal-estar e a ruptura eram delirantes. E fica

sabendo que a casa por onde haviam passado fora o local de

um crime famoso. Seu dono, Michel Henriot, a quem pertencia

o trecho até o velho forte, havia assassinado sua mulher,

para ficar com o dinheiro do seguro. Retornando ao lugar,

56

Breton reparou que a casa era rodeada por um muro alto de

cimento, e não, conforme havia visto pela primeira vez, por

uma rede metálica, o cercado das raposas. Subindo no muro,

viu as redes metálicas que guardavam as raposas: Foi, portanto,

como se no dia 20 de julho (quando passou por lá a primeira vez)

esse muro se me tivesse apresentado transparente.73

Como leituras para a temporada no litoral norte

francês, Breton e Jacqueline haviam trazido dois livros

emprestados por um amigo. Um deles, A Raposa de Mary Webb;74

o outro, A Mulher Transformada em Raposa de David Garnett. A

crise no relacionamento deles não se encerrou ao saírem dos

domínios da casa das raposas, como é dado a entender em O

Amor Louco. Logo teriam uma separação prolongada, para

romperem de vez em 1943. E as causas da separação não se

resumiram à passagem pelos arredores de uma casa mal-

assombrada. Esta pode ter precipitado o que estava latente.

Mas, assim como o encontro deles já estava sugerido no

poema do girassol, aquele pesadelo estava antecipado em uma

escolha de livros: É preciso reconhecer, quer se queira, quer não, que

esses dois livros por certo desempenharam, na elaboração do que para nós foi

esse longo pesadelo acordado, um papel mais que determinante e decisivo.

Apresentado inicialmente em Les vases communicants, depois

de O Amor Louco o acaso objetivo vai desaparecendo da obra

bretoniana. Deixa de ser mencionado em seus ensaios,

manifestos e entrevistas posteriores. Fica-se com a

impressão de uma perda de sua importância como categoria ou73 Aqui, e na citação seguinte, os negritos são de Breton.74 Mais tarde, seria filmado, protagonizado por Jeniffer Jones. Éa história de uma mulher que se identifica com raposas e acabamorta pelo marido, um caçador.

57

conceito, apesar dos acontecimentos e textos fascinantes

aos quais está ligado. Talvez isso se relacione com outras

mudanças no pensamento bretoniano.

Em O Amor Louco, Breton reapresentou sua interpretação

materialista e freudiana, já proposta em Les vases

communicants, do que é atribuído por alguns à intervenção do

sobrenatural e negado por outros, que o reduzem à mera

coincidência em nome do bom senso ou do saber científico.

Mas a sua é a voz de um poeta, e não de um psicanalista ou

cientista social. A mobilização do pensamento dialético e

da psicanálise não o impediu de querer chegar, no Segundo

Manifesto do Surrealismo, a um certo ponto do espírito, onde vida e morte,

real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e

o baixo, deixem de ser percebidos como contraditórios. Em outras de

suas obras, inclusive em O Amor Louco, iria referir-se a um

ponto sublime e um ponto ideal, encontrado em Orotava.

Até que ponto o surrealismo é mesmo um materialismo,

como sustentava Breton, ou um misticismo impregnado de

idealismo, suscitou polêmicas, alimentadas por André Breton et

les donnés fondamentales du surréalisme de Michel Carrouges.

Acertadamente, esse ensaísta observou, no capítulo dedicado

ao acaso objetivo, que a idéia de um ponto supremo é

importante no esoterismo. No Zohar dos cabalistas,

corresponde à letra Yod, ao Kéther, coroa da árvore

sefirótica, como ponto central, causa de todas as coisas. Localiza-o

em John Dee, como mônada hieroglífica; em Nicolau de Cusa, como

centro invisível do mundo e do Tempo; no texto atribuído a

Christian Rosenkreutz; e em René Guénon, que o considera

58

equivalente ao centro da cruz, síntese dos contrários.

Carrouges ainda cita Éliphas Lévi para confirmar que o

ponto supremo é, na tradição esotérica, a instância impalpável,

central e ao mesmo tempo presente em todas as partes.

Mesmo contando com a simpatia de Breton, Carrouges,

intelectual católico, teve seu livro questionado quando de

sua publicação em 1950. Com sua argumentação, conforme

observa Jean-Louis Bédouin, promoveu um deslizamento da

transfiguração alquímica à redenção.75 Além disso, na tradição, não

apenas ocidental mas oriental, o ponto supremo é uma

origem. Equivale à unidade primordial, e a cisão dessa

unidade corresponde à queda. A noção de queda, tanto da

teologia cristã quanto do gnosticismo, está fortemente

presente em Baudelaire ou em Huysmans, associada à

compreensão do mundo como emanação degradada a partir da

separação do Todo, e constitui a base ontológica do

decadentismo literário. Mas as circunstâncias em que foi

escrita a passagem do Segundo Manifesto não permitem dúvidas

de que, para Breton, a superação das antinomias

correspondia à solução das contradições fundamentais.

Portanto, é na história, na temporalidade, que se

realizaria, mesmo significando seu fim, e não em outro

plano, dissociado do mundo. Daí que, conforme a frase final

de um dos seus poemas, O hino do futuro é paradisíaco.

É correto afirmar que o surrealismo prossegue uma

tradição hermética e ocultista. Inverte-a, porém, em sua

visão da história, do devir humano. Grupos e seitas de

eleitos e iluminados do século XVIII, liderados ou75 No já citado Vingt ans de surréalisme.

59

inspirados por Louis-Claude de Saint-Martin, Lavater e

Martinez de Pasqually, seguidores de Böhme e Swedenborg, e

que tamanha influência exerceram sobre a poesia romântica,

pretendiam-se, em seu confronto com a Igreja Católica,

avatares ou continuadores do cristianismo esotérico ou

primitivo, uma religião primeira, pura, não-degradada.76

Apresentavam-se como hiper-cristãos, porta-vozes do

Evangelho e dos profetas. No surrealismo há uma negação

frontal, não só do monoteísmo judaico-cristão, mas da

herança greco-romana, acusada (à semelhança da crítica

nietzscheana) de haver inaugurado o racionalismo. O arcaico

e primitivo foram valorizados pelos surrealistas nas

culturas estranhas ao Ocidente, nas sociedades tribais da

África e Oceania e em sua produção artística, nos Maia, nos

Hopi, e nos índios sul-americanos com Benjamin Péret. Mas o

mundo mítico, regido pelo pensamento analógico, é fonte de

contribuições para a realização futura da Idade do Ouro, e

não o illo tempore idealizado, de modo nostálgico e

regressivo. Em acréscimo, o que impulsiona o homem, e, por

extensão, a história, é, para Breton, algo bem material, o

desejo. De modo coerente, politiza sua busca romântica do

amor único. É a sociedade burguesa, regida pela

mercantilização e instrumentalização das relações humanas,

que conspira contra o amor. Encontros que se realizam e

culminam na consagração do amor único, com Jacqueline em O

76 Conforme o substancioso levantamento de Auguste Viatte, Les Sources Occultes du Romantisme; Illuminisme – Théosophie; 1770 – 1820; 2 volumes, Librairie Ancienne Honoré Champion, Paris, 1928

60

amor louco ou Elisa em Arcano 17, são acontecimentos

políticos, vitórias da poesia, amor e liberdade.

Ainda assim, há ambigüidade no poeta que trafega na

zona cinzenta entre misticismo e materialismo, recusa do

transcendentalismo e religiosidade herética. Misticismo da

imanência, sim, e religiosidade sem Deus, mas que permite a

Breton dizer, em O Amor Louco, que enxerga o símbolo da

busca surrealista, a síntese do racional e do real, em uma

folha de sempre-viva. É uma visão semelhante à de Jacob

Böhme enxergando o universo em um prato de estanho, e a

tantos outros vislumbres de iluminados que viram o

macrocosmos no microcosmos, o todo em uma das partes. Claro

que seu misticismo é herético: Nunca houve qualquer fruto

proibido. Só a tentação é divina.77 Mas leva a paradoxos como, no

Segundo Manifesto, sugerir a permanência física de Nicolas

Flamel poucas páginas depois da enérgica profissão de fé no

materialismo dialético, e declarar-se fantasma, entidade

equivalente à sombra na caverna de Platão, no início de

Nadja.

É possível enxergar em Breton uma deriva do marxismo

para o misticismo? A fundamentação enfática em Marx e

Engels de Les Vases Communicants já não está presente em O

Amor Louco. A tensa relação com o PC explodiria de vez em

1935, com as denúncias em Posição política do Surrealismo,

mostrando a equivalência do regime soviético com aquilo que

a sociedade burguesa tinha de mais retrógrado.

Concomitantemente, o apoio a Trotsky, a traduzir-se no

manifesto Por uma arte revolucionária independente, de 1937. Mas em77 Também em O Amor Louco.

61

1942, em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não,78

Breton expressaria restrições ao racionalismo de Trotsky,

ao sustentar idéias como a dos Grandes Transparentes e do

homem não mais como centro do universo, porém como parte de

um todo.

Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel

central, a começar pelo título, referência à carta 17 do

Tarô, a Fortuna. Nesse relato, Breton substitui Marx e

Engels por Gérard de Nerval, seu interlocutor imaginário. E

em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, volta-se

novamente contra o que denomina de pensamento racionalista, e,

frisa, sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei

perdoado, propõe-se a convencer o homem de que ele não é

obrigatoriamente o rei da criação, como se vangloria. Pergunta sobre a

oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes

Transparentes. Observa que o homem não é talvez o centro, o ponto de

mira do Universo, e critica ao antropomorfismo, a crença de

que o mundo encontra no homem o seu acabamento. Dando sua

palavra final em matéria de manifestos, diz, no último

parágrafo de Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953, que, a

esse respeito, sua posição [do Surrealismo] se uniria à de Gérard de

Nerval no famoso soneto Versos Dourados. Nele, o autor de

Aurélia, expressando as idéias de Fabre d’Olivet, duvida de

que sejamos o centro do universo e os detentores exclusivos

da razão: Homem! livre pensador! serás o único que pensa/ Neste mundo

onde a vida cintila em cada ente? Expressando a visão pagã do mundo

78 Também em Manifestos do Surrealismo, ed. Nau, assim como ascitações a seguir.

62

animado, Nerval diz ainda que um mistério de amor no metal reside

dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das pedras.79

Sem que por isso o surrealismo perdesse em

combatividade, ou se afastasse da discussão dos temas

propriamente sociais e políticos, o mesmo movimento, no

sentido da sublimação, está presente em sua poesia da

década de 1940. Por isso, o livro que a reúne recebeu o

título de Signe ascendant,80 signo ascendente. Um de seus

poemas de maior fôlego é a Ode a Charles Fourier, sobre o

precursor do “socialismo utópico” e de uma visão da

sociedade regida pelo pensamento analógico, pelas

correspondências. Em outro poema da série, Les états géneraux,

invoca Fabre d’Olivet e sua idéia de uma linguagem

universal, e Saint-Yves d’Alveydre e seus estados gerais,

reflexo mundano da ordem cósmica. No prefácio, expõe uma

exigência que, em última análise, poderia ser de ordem ética, de que não

há reversibilidade entre os dois termos de uma imagem, pois

esta não equivale a uma equação. Do primeiro de seus dois

termos para o segundo, há uma tensão vital ilustrada pelo

apólogo Zen: Por bondade búdica, Bashô modificou um dia, com

engenhosidade, um haikai cruel composto por seu humorístico discípulo,

Kikakou. Este tendo dito: “Uma libélula vermelha – arrancai-lhe as asas – uma

pimenta”, Bashô susbtituiu: “Uma pimenta- ponham-lhe asas – uma libélula

vermelha.” Em outras palavras, a analogia entre dois termos

tem direção e aponta para o alto. A criação poética é assim

equiparada à sublimação.

79 Na tradução de Contador Borges no prefácio da edição já citadade Aurélia.80 Gallimard, coleção Poésie, 1975.

63

Mas, entre a origem a ser recuperada dos místicos e

esotéricos, ou a utopia que irá acontecer dos políticos,

entre passado e futuro, Breton dá uma terceira resposta: é

o agora, aqui, no presente. As cenas e episódios reais de O

amor louco também pertencem à ordem do onírico, do sonho,

ou, na passagem da casa das raposas, do pesadelo. O paraíso

recuperado está em Orotava, no Pico de Teide, no Cais das

Flores e no restante do percurso entre Montmartre e o

Quartier Latin, na Gaspésia de Arcano 17, e em todos os

lugares e momentos em que acontece o encontro e, através

dele, se realiza o desejo. Então, o mundo se confunde com o

sonhado.

Nessa perspectiva, não se pode propriamente falar em

profecia e antecipação, a propósito de O Amor Louco e de

tantos outros registros na crônica surrealista e em sua

criação literária. Há, isso sim, uma atemporalidade, uma

supressão da série cronológica. O símbolo é recuperado em

sua plenitude, e supera nossas categorias de espaço e

tempo, quando a espera se completa no encontro, quer seja

de objetos mágicos, de signos, da pessoa amada, ou de todas

essas instâncias, interligadas.

A prosa poética de Arcano 17 pode ser lida como

fechando a série de relatos poéticos, anunciada em Les Pas

Perdus, composta por Nadja, Les Vases Communicants e O Amor

louco.

Em outro registro (e outro contexto, pois escrevia

exilado nos Estados Unidos), Breton, em Arcano 17, volta a

celebrar a realização amorosa como grande síntese,

64

superação das antinomias, equivalente ao êxtase, ao estado

de graça, à iluminação. O corpo do livro se encerra com

reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi, ao

proclamar que Osíris é um deus negro. Termina saudando a

publicação do ensaio de Auguste Viatte sobre o diálogo

entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo como

ambos, o mago e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo

rebelde – que, ao nascer, negou-ser a ser escravo, dando à luz duas

irmãs, Poesia e Liberdade – à estrela da manhã, signo da

liberdade e do conhecimento, equivalente à própria revolta, a

única revolta criadora de luz; uma luz que só pode passar por três vias: a

poesia, a liberdade e o amor.

E, no final de Arcano 17, em um apêndice escrito em

1947, os encontros adquirem mais nitidamente o caráter de

uma aventura intelectual. Não são mais as mulheres,

desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, que vêm a

seu encontro movidas pelo acaso, porém obras, informações,

mesmo quando trazidas por pessoas. Já de volta a Paris,

relata a experiência de plenitude ao finalmente entrar na

Torre Saint-Jacques. Um de seus amigos lhe envia uma

mensagem: O maravilhoso. – Atenção, reflexão, lógica não me ajudam em

nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente. Encontra um

desconhecido. Segue-se um enredo através do qual chega a

suas mãos o livro de Jean Richer, Gérard de Nerval et les doctrines

ésotériques. Nele foi publicado, pela primeira vez, o retrato

de Nerval com sua frase, manuscrita, Eu sou um outro,

acompanhada por signos cuja decifração é proposta por

Breton. Os episódios desses dias de abril de 1947 o fazem

65

convencer-se de que estivera de fato em companhia de Gérard

de Nerval e de Nicolas Flamel, nas imediações da torre. Os

mais familiarizados com simbologia hermética reconhecerão o

sentido da subida à torre Saint-Jacques: é a entrada no

castelo iniciático onde está o cálice do Graal, que

equivale à pedra filosofal.

Como interpretar o acaso objetivo, e as idéias e

acontecimentos que o acompanham? O mais produtivo, evitando

campos do conhecimento que não interessam diretamente à

literatura, é tomá-lo em seu valor simbólico. Mais

precisamente, como metáfora da poesia e da sua relação com

o mundo. Isso, dando atenção ao modo como se inverte a

relação entre signos e coisas, textos e acontecimentos, na

obra de Breton. E à universalidade dessas aventuras

intelectuais, buscando superar o abismo entre palavras e

coisas, símbolos e acontecimentos, imaginação e realidade.

Sabe-se que previsões, antecipações e profecias

ocorreram na vida e obra de muitos poetas, surrealistas ou

não, como que realizando o que Rimbaud havia dito na Carta

do Vidente. Pode-se distinguir dois níveis da sua ocorrência.

Um deles é o do macrocosmo, dos grandes acontecimentos

históricos e períodos temporais, como em William Blake e

seus Poemas Proféticos, ou em Baudelaire, antevendo a

modernidade e descrevendo como seria a vida nas metrópoles,

bem como em Walt Whitman, com relação aos Estados Unidos de

hoje, ou no brasileiro Sousândrade vendo de modo

antecipatório Manhattan e uma utopia panamericanista.

Exemplos não faltam, e a constatação de Freud, de que

66

poetas já conheciam o inconsciente, é caso particular de

todo um histórico de previsões e antecipações, no plano dos

acontecimentos ou das idéias.

A imaginação e intuição em poesia e as descobertas em

outros campos do conhecimento são muito mais próximas e

interligadas do que supõe o desprezo cientificista com

relação a poetas. Certamente, relacionam-se com a própria

natureza da linguagem: sendo esta ativa, criadora, e não

apenas um reflexo do mundo das coisas, é capaz de produzir

realidade, conforme admitem estudiosos da linguagem e do

signo que lhe dão precedência com relação à consciência e à

estruturação do real (a exemplo da “tese de Whorf-Sapir”,

entre outras). Textos transgressivos, de ruptura, avançados

para seu tempo, de poetas “malditos” que demoraram a ser

reconhecidos ao se colocarem fora da perspectiva temporal,

também captaram o que viria, iluminaram aspectos

desconhecidos do real, na mesma medida em que criaram

linguagem, revitalizando-a e ampliando seu alcance. Para a

poesia, também vale a noção de toda-possibilidade invocada por

Breton a propósito do sonho em Les vases communicants.

No microcosmo do biográfico, da experiência pessoal,

as mesmas circunstâncias, compulsões e aparentes delírios

acabaram por revelar-se representações da realidade, e não

meras expansões da subjetividade. Se nossa atenção fosse

menos seletiva e a percepção mais aberta, haveria mais a

relatar sobre essas relações de idéias, fatos e símbolos,

onde, nesse limite já sob o comando do demônio da analogia de

Mallarmé, tudo é signo de outra coisa, remetendo a outro

67

plano de realidade. O surrealismo chegou a essas

antecipações pelo fluir da vida passiva da inteligência, conforme

propunha Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: nos

momentos marcados pela disponibilidade, a espera sem

objetivo definido; na escrita automática, liberta de

controles, permitindo que signos se encadeassem e pessoas e

objetos encontrados em caminhadas erráticas se articulassem

de modo espontâneo. Abolida a intencionalidade, a realidade

acaba por revelar sentidos insuspeitos.

Pode-se distinguir dois modos de relação entre criação

poética e o mundo do hermético e oculto. Um deles é o dos

adeptos, a exemplo de Yeats, Robert Graves, Pessoa. No

outro, representado por alguns românticos e simbolistas, e

por surrealistas, ninguém é propriamente discípulo. Em vez

da adesão a doutrinas, há uma apropriação de símbolos e

conteúdos do hermetismo, a exemplo das correspondências em

Baudelaire, ou da alquimia do verbo e iluminação de Rimbaud,

resultado de seu desregramento dos sentidos, metáfora da criação

poética.

Fernando Pessoa, comprovadamente um adepto e iniciado,

associou, em seus apontamentos e escritos íntimos, criação

poética e intuição, mencionando Milton, Goethe, Shakespeare

e Keats: Um poeta é um intuitivo, e faz versos por uma operação intuitiva.

Distinguiu três caminhos para o desenvolvimento da

intuição: No caminho ritual busca-se o desenvolvimento da intuição pela

intuição mesma, ou, se preferir, pelo instinto (base da ação, da ação perfeita).

No caminho místico (?) busca-se a obtenção da intuição pela abdicação da

personalidade. No caminho mercurial busca-se pelo desenvolvimento da

68

inteligência, de que a intuição depois se alimenta.81 Observadas as

diferenças fundamentais entre Pessoa e Breton

(diametralmente opostos nos quesitos amor e sexo, entre

outros), o surrealismo promoveu o desenvolvimento dessa

operação intuitiva, trilhando os caminhos místicos e rituais.

Seus procedimentos, da anotação dos sonhos até a

deambulação, passando pela escrita automática, são um

ritual.

Caracterizar o surrealismo e a contribuição de Breton

como caso particular no universo da criação e da intuição

poética não é desqualificá-lo, ou reduzir sua importância.

Ao contrário, mostra, através das manifestações do acaso

objetivo, que foi tocado algo de essencial na criação

poética. Breton sabia disso. No parágrafo final de seu

último manifesto, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, proclama a

intuição poética como o meio de conhecimento para compreender aquilo que

o rodeia. Esta, desencadeada enfim pelo surrealismo, quer ser, não apenas

assimiladora de todas as formas conhecidas, mas também ousadamente

criadora de novas formas – vale dizer, capaz de abraçar todas as estruturas do

mundo, manifestas ou não. Somente ela nos oferece o fio que nos reconduz ao

caminho da Gnose, enquanto reconhecimento da realidade supra-sensível,

“invisivelmente visível num eterno mistério”. Os relatos sobre acaso

objetivo são a prova da realidade e do alcance da intuição

poética, ou, melhor dizendo, mágico-poética.

81 De O grau de adepto menor, em Fernando Pessoa: O amor, a morte, a iniciação,de Y. K. Centeno, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1985. A ortografia foi atualizada na citação.

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