lucio colletti - marx, dialética, capital (entrevista com perry anderson)
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[-] Sumário # 10
EDITORIAL 4
ENTREVISTA MARX, DIALÉTICA, CAPITAL 8 Com Lucio Colletti, por Perry Anderson ARTIGOS DA METAFÍSICA DO CAPITAL 28 Revisitando Lucio Colletti Nuno Miguel Cardoso Machado DOIS ROSTOS OU UM VASO 69 A paralaxe marxista como um problema em Zizek Joelton Nascimento ESCRAVOS E SERVOS DO CAPITAL 85 Uma análise sócio-histórica de duas formações periféricas Rodrigo Campos Castro NOS 50 ANOS DE ONE-DIMENSIONAL MAN 120 Marcuse e o espectro da recusa intempestiva Cláudio R. Duarte DÉFICIT SOCIOLÓGICO OU NEGAÇÃO DETERMINADA? 130 Diferença entre as Teorias Críticas de ontem e hoje Raphael F. Alvarenga EM BUSCA DO SUJEITO PERDIDO 162 A superação do trabalho no novo livro de John Holloway Daniel Cunha
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AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DA LUTA DE CLASSES 172 Sobre as premissas tácitas de um estranho discurso nostálgico Norbert Trenkle CRISE DO CAPITALISMO E “MUNDO DO 190 TRABALHO” EM DAVID HARVEY Notas críticas à “restauração do poder de classe” Maurílio Lima Botelho A FORMA E O FIM 215 Comentários sobre um livro de Anselm Jappe Pedro Eduardo Zini Davoglio SOBRE A CRÍTICA DO CAPITALISMO EM DECOMPOSIÇÃO 224 Joelton Nascimento O OVO DA SERPENTE NACIONAL 232 Alexandre Vasilenskas UMA “CLASSE MÉDIA” BIFRONTE? 235 Sobre as “utopias do agora” de Chris Carlsson Daniel Cunha “OS VÂNDALOS AO PODER” 239 Violência política e poder popular nos protestos de 2012/2013 em Porto Alegre. Reflexões estratégicas à luz de Benjamin e Lukács. Alex Martins Moraes UM PARTIDO É UMA PARTE DO QUÊ? 266 Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia THE TURN OF THE SCREW 275 O duplo como fantasmagoria social Cláudio R. Duarte SARTRE EM BUSCA DE FLAUBERT 290 Fredric Jameson EXPEDIENTE 297
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Marx, dialética, capital
Entrevista de Lucio Colletti a Perry Anderson
Nota editorial. A entrevista a seguir foi concedida em 1974. Lucio Colletti (1924-2001)
foi um importante teórico marxista italiano que investigou a “metafísica do capital”, e as
relações entre as obras de Marx, Hegel e Kant. Ele pode ser considerado um dos
precursores da teoria crítica do valor. Aqui a entrevista foi resumida, com ênfase nos
seus aspectos teóricos. A obra de Colletti é discutida no texto de Nuno Machado nesta
edição da Sinal de Menos.1
Perry Anderson >> Você poderia fazer um breve resumo de suas origens
intelectuais, e de sua entrada na vida política?
Lucio Colletti >> Minhas origens intelectuais são muito parecidas com aquelas de
quase todos os intelectuais italianos de minha geração. O seu ponto de partida durante
os últimos anos do fascismo foi a filosofia neo-idealista de Benedetto Croce e Giovanni
Gentile. Escrevi o meu doutorado em 1949 sobre a lógica de Croce, mas já então eu era
crítico do crocismo. Então, entre 1949 e 1950, minha decisão de entrar no Partido
Comunista Italiano gradualmente amadureceu. Devo acrescentar que essa decisão foi
sob vários aspectos muito difícil, e que – ainda que isso talvez soe inacreditável hoje – o
estudo de Gramsci não foi uma influência significativa. Pelo contrário, foi a minha
leitura de certos textos de Lênin que foram determinantes para a minha adesão ao PCI:
em particular, e apesar de todas as reservas que isso possa inspirar e que eu compartilho
hoje, o seu Materialismo e empiriocriticismo. Ao mesmo tempo, a minha entrada no
Partido Comunista foi precipitada pelo estouro da Guerra da Coreia, ainda que isso
tenha sido acompanhado pela firme convicção de que foi a Coreia do Norte que lançou
um ataque contra o Sul. Não digo isso para adornar-me de virgindade política a
posteriori, mas porque é a verdade. As minhas atitudes mesmo naquele período eram de
profunda aversão ao estalinismo: mas naquele momento o mundo estava dividido em
dois, e era necessário escolher um lado ou outro. Então, ainda que isso tenha resultado
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em uma violência contra mim mesmo, optei pela filiação ao PCI – com todas as
profundas resistências de formação [formation] e cultura que um intelectual pequeno-
burguês daquela época na Itália poderia sentir em relação ao estalinismo. Você deve
lembrar que passamos pela experiência do fascismo, de maneira que toda a parafernália
de unanimidade orquestrada, aplausos ritmados e liderança carismática do movimento
internacional dos trabalhadores eram espontaneamente repugnantes para qualquer um
com a minha experiência [background]. Não obstante, apesar disso, por causa do
conflito na Coreia e da cisão do mundo em dois blocos, optei pela entrada no PCI. A
esquerda do PSI não fornecia nenhuma alternativa real, porque naquele tempo ela era
essencialmente uma forma subordinada da militância comunista, ligada organicamente
às políticas do PCI. É importante enfatizar o relativo atraso da minha entrada no Partido
– eu tinha 25 ou 26 anos – e a ausência das ilusões mais tradicionais a esse respeito.
Pois a morte de Stalin em 1953 teve em mim um efeito diametralmente oposto àquele
que teve na maior parte dos intelectuais comunistas ou pró-comunistas. Eles a sentiram
como um desastre, o desaparecimento de uma espécie de divindade, enquanto para mim
aquilo foi uma emancipação. Isso também explica a minha atitude em relação ao
Vigésimo Congresso do CPSU em 1956, e em particular em relação ao Discurso Secreto
de Krushev. Enquanto a maior parte de meus contemporâneos reagiu à crise do
estalinismo como uma catástrofe pessoal, o colapso de suas próprias convicções e
certezas, eu experimentei a denúncia de Krushev contra Stalin como uma autêntica
liberação. Parecia-me que finalmente o comunismo poderia tornar-se o que eu sempre
acreditei que ele deveria tornar-se – um movimento histórico cuja aceitação não
envolvesse o sacrifício da própria razão.
PA >> Qual foi a sua experiência pessoal no PCI, como um jovem militante e filósofo,
de 1950 a 1956?
LC >> Minha filiação ao Partido foi uma experiência extremamente importante e
positiva para mim. Posso dizer que se eu vivesse novamente, eu repetiria a experiência
tanto da minha entrada quanto da minha saída. Não me arrependo nem da decisão de
me filiar e nem de abandonar o Partido. Ambas foram decisivas para o meu
desenvolvimento. A primeira importância da militância no PCI repousa essencialmente
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nisso: o Partido era o lugar no qual um homem como eu, de formação [background]
completamente intelectual, tomou contato real, pela primeira vez, com pessoas de
outros grupos sociais, que de outra maneira eu nunca teria encontrado, exceto em
bondes ou trens. Em segundo lugar, a atividade política no Partido me permitiu superar
certas formas de intelectualismo, e através disso entender melhor os problemas da
relação entre teoria e prática em um movimento político. O meu próprio papel foi o de
um simples militante da base [rank-and-file militant]. A partir de 1955, porém, me
envolvi em disputas internas sobre política cultural no PCI. Naquele tempo, a orientação
oficial do Partido era centrada na interpretação do marxismo como um “historicismo
absoluto”, uma fórmula que tinha um sentido muito preciso – ela significava tratar o
marxismo como se ele fosse a continuação e o desenvolvimento do historicismo do
próprio Benedetto Croce. Foi com esse enfoque que o Partido também buscou
apresentar a obra de Gramsci. A versão de Togliatti do pensamento de Gramsci não era,
é claro, acurada. Mas o fato é que os escritos de Gramsci foram utilizados pelo marxismo
de então como a realização e conclusão da tradição do idealismo hegeliano italiano,
particularmente o de Croce. O objetivo das disputas internas nas quais me engajei era,
em contraste, dar prioridade ao conhecimento e estudo da obra do próprio Marx. Foi
nesse contexto que a minha relação com Galvano Della Volpe, que naquele tempo estava
efetivamente no ostracismo no PCI, tornou-se muito importante para mim.2 (...)
(...)
PA >> A maior influência inicial em sua obra filosófica foi Galvano Della Volpe, com a
sua preocupação com a natureza das leis científicas, a sua noção do papel das
abstrações específico-determinadas na cognição, e a sua ênfase na precisão filológica
no estudo de Marx. Qual é a sua avaliação de Della Volpe hoje?
LC >> A lição essencial que aprendi do contato com os escritos de Della Volpe foi a
necessidade de uma relação absolutamente séria com a obra de Marx – baseada no
conhecimento direto e no estudo real de seus textos originais. Isso pode parecer
paradoxal, mas é importante lembrar que a penetração do marxismo na Itália na
2 Para uma introdução à obra de Della Volpe, ver New Left Review 59, Janeiro-Fevereiro 1970, pp. 97-
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primeira década do pós-guerra, de 1945 a 1955, foi intelectual e teoricamente muito
superficial e exígua. Deixe-me explicar. O marxismo oficial daquela época, que
permanece hoje, era o materialismo dialético ao estilo soviético. Bem, Togliatti era culto
e inteligente o suficiente para ter consciência de que esse compêndio estalinista era
flagrantemente cru e dogmático para exercer muita atração sobre os intelectuais
italianos cuja adesão ao PCI ele ansiava obter. Consequentemente, havia poucos
materialistas dialéticos ortodoxos na Itália: a caridade compatriota me proíbe de
mencionar nomes. Togliatti procurou em sua política cultural trocar a ortodoxia
soviética por uma interpretação do marxismo como o herdeiro nacional do historicismo
italiano de Vico e Croce – em outras palavras, uma versão do marxismo que não exigia
nenhuma ruptura real desses intelectuais com as suas posições anteriores. A maior parte
delas era croceana por formação. O Partido simplesmente pediu que eles dessem um
pequeno passo, adotar um historicismo que integrava os elementos básicos da filosofia
de Croce, repudiando apenas as proposições mais patentemente idealistas do crocismo.
O resultado foi que até 1955-6 a obra do próprio Marx, sobretudo O capital, tinha
difusão mínima no ambiente cultural da esquerda italiana. Foi nessas condições que
Della Volpe veio a simbolizar um compromisso com o estudo rigoroso do marxismo, lá
onde ele se encontra realmente, ou seja, nos próprios escritos de Marx. Para Della
Volpe, a Crítica da filosofia do direito de Hegel do jovem Marx era um ponto de partida
central. Mas isso, naturalmente, representava apenas o início de um conhecimento
direto da obra de Marx, que necessariamente teve como sua conclusão o estudo e análise
intensivos do próprio O capital.
(...)
PA >> Voltando a atenção para os seus escritos filosóficos mais tardios, neles você
expressou um respeito e admiração cada vez mais marcantes por Kant – uma
preferência incomum entre os marxistas contemporâneos. A sua proposição básica
para Kant é que ele afirmou com a máxima força a primazia e irredutibilidade da
realidade em relação ao pensamento conceitual, e a divisão absoluta entre o que ele
chamou de “oposições reais” e “oposições lógicas”. Você argumenta, a partir dessas
teses, que Kant estava muito mais próximo do materialismo do que Hegel, cujo
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objetivo filosófico básico você interpreta como a absorção do real pelo conceitual, e
com isso a aniquilação do finito e da própria matéria. A sua reavaliação de Kant é
portanto complementada pela desvalorização de Hegel, a quem você critica
implacavelmente como um filósofo essencialmente cristão e religioso – ao contrário de
posteriores concepções marxistas equivocadas de seu pensamento. A questão óbvia
que surge aqui é: por que você atribui tal privilégio a Kant? Afinal de contas, se o
critério da proximidade com o materialismo é o reconhecimento da irredutibilidade da
realidade ao pensamento, a maior parte dos filósofos franceses do Iluminismo, La
Mettrie ou Holbach, por exemplo, ou mesmo, antes disso, Locke, na Inglaterra, foram
muito mais inequivocamente “materialistas” do que Kant. Ao mesmo tempo, você
denuncia as implicações religiosas de Hegel – mas Kant também foi um filósofo
profundamente religioso (para não falar de Rousseau, a quem você admira em outro
contexto), mas você parece manter um silêncio obsequioso em relação à sua
religiosidade. Como você justifica a sua excepcional estima por Kant?
LC >> As críticas que você acaba de fazer foram levantadas contra mim muitas vezes na
Itália. O primeiro ponto a estabelecer é a diferença entre o Kant da Crítica da razão
pura e o Kant da Crítica da razão prática...
PA >> Esse não é o mesmo tipo de distinção que comumente se faz entre Hegel em
Jena e Hegel após Jena? Qual deles você rejeita?
LC >> Não, porque a diferença entre conhecimento e moralidade é essencial para o
próprio Kant. Ele teoriza explicitamente a diferença entre a esfera ética e a esfera
cognitivo-científica. Não sei dizer se Kant é importante para o Marxismo. Mas não há
nenhuma dúvida quanto à sua importância para a epistemologia da ciência. Você
destacou que La Mettrie, Holbach ou Helvetius eram materialistas, enquanto Kant
fundamentalmente não o era. Isso é perfeitamente verdadeiro. Mas de um ponto de
vista estritamente epistemológico, há apenas um grande pensador moderno que pode
nos ajudar a construir uma teoria materialista do conhecimento – Immanuel Kant.
Claro, estou perfeitamente consciente de que Kant era um cristão piedoso. Mas,
enquanto na filosofia de Hegel não há separação entre o domínio da ética e da política e
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o domínio da lógica, porque os dois estão integralmente unidos em um sistema único,
em Kant há uma distinção radical entre o domínio do conhecimento e o domínio da
moralidade, que o próprio Kant enfatizava. Portanto, podemos deixar a moralidade
kantiana de lado aqui. O que importa é ver que a Crítica da razão pura é uma tentativa
de Kant de chegar a uma compreensão e justificação filosófica da física de Newton: a
obra é essencialmente uma investigação sobre as condições que tornam possível o
conhecimento verdadeiro – que para Kant era representado pela ciência newtoniana.
Naturalmente, há muitas sombras e contradições na obra epistemológica de Kant, com
as quais estou perfeitamente familiarizado: usei apenas alguns aspectos dela. Mas há
um ponto básico que deve ser sempre lembrado, não obstante. Enquanto Hegel morreu
em Berlim ministrando uma série de palestras sobre as provas da existência de Deus, e
reafirmando a validade do argumento ontológico (que um século mais tarde ainda era
sustentado por Croce), Kant – apesar de suas contradições – desde o seu texto de 1763
sobre o Beweisgrund3 até a Crítica da razão pura, nunca deixou de criticar o
argumento ontológico. A sua rejeição era fundada no abismo qualitativo (ou, como diz
Kant, “transcendental”) entre as condições do ser e as condições do pensamento – ratio
essendi e ratio cognoscendi. É essa posição que fornece um ponto de partida
fundamental para qualquer gnosiologia materialista, e para qualquer defesa da ciência
contra a metafísica. O problema de uma interpretação integral de Kant é muito
complexo, e não podemos resolvê-lo em uma entrevista. Destaquei e enfatizei um
aspecto particular de sua obra – o Kant que foi crítico de Leibniz, e o ataque [scourge] à
prova ontológica. A esse respeito, ainda que Kant não seja um materialista, a sua
contribuição para a teoria do conhecimento não pode ser comparada àquela de La
Mettrie ou Helvetius.
Portanto, meu interesse em Kant não tem nada em comum com aquele dos revisionistas
alemães da Segunda Internacional, Eduard Bernstein ou Conrad Schmidt, que foram
atraídos pela ética de Kant. Eu tento, pelo contrário, revalorizar a contribuição de Kant
para a epistemologia, contra o legado de Hegel. De fato, a minha interpretação de Kant é
precisamente aquela do próprio Hegel, exceto que enquanto Hegel rejeitou a posição de
Kant, eu a defendi. Para Hegel, Kant era essencialmente um empirista. Na sua
3 Colletti se refere à obra de Kant A única base possível para uma prova da existência de Deus.
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introdução à Encyclopaedia, Hegel classifica Kant junto com Hume como exemplos da
“segunda relação do pensamento com a objetividade”. Não é necessário lembrar a
estatura de David Hume na história da filosofia da ciência. Pode-se dizer, de fato, que há
duas tradições principais na filosofia ocidental a esse respeito: uma que descende de
Spinoza e Hegel, e outra de Hume e Kant. Essas duas linhas de desenvolvimento são
profundamente divergentes. Para qualquer teoria que tome a ciência como a única
forma de conhecimento real – que é falsificável, como diria Popper – não pode haver
dúvida de que a tradição de Hume-Kant deve ter prioridade e preferência sobre a de
Spinoza-Hegel.
Finalmente, acredito que a minha tentativa de separar o Kant da Crítica da razão pura
do Kant da Crítica da razão prática tem uma base real na história. Pois o pensamento e
a civilização burgueses tiveram sucesso na fundação das ciências da natureza; enquanto
a cultura burguesa foi incapaz de gerar conhecimento científico da sociedade e da
moralidade. É claro que as ciências naturais foram condicionadas pelo contexto
histórico burguês no qual elas se desenvolveram – um processo que em si levanta
muitos problemas intrincados. Mas a não ser que aceitemos o materialismo dialético e
as suas fantasias de uma biologia ou física “proletária”, temos que, não obstante,
reconhecer a validade das ciências da natureza produzidas pela civilização burguesa
desde a Renascença. Mas os discursos burgueses nas ciências sociais não impõe essa
validade: nós obviamente os rejeitamos. É essa discrepância entre os dois campos que se
reflete objetivamente na divisão interna da filosofia kantiana entre a sua epistemologia e
a sua ética, a sua crítica da razão pura e da razão prática.
PA >> Mas há tal separação total entre os dois? Os marxistas tradicionalmente
consideram a noção kantiana da coisa-em-si – Ding-an-sich – como o signo de uma
infiltração religiosa diretamente em sua teoria epistemológica, certamente?
LC >> Há um subtexto religioso na noção de coisa-em-si, mas esta é a sua dimensão
mais superficial. Na realidade, o conceito tem um significado na obra de Kant que os
marxistas nunca quiseram ver, mas que Cassirer – cuja interpretação geral de Kant,
baseada em cuidadosos estudos textuais, tem a minha considerável simpatia –
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corretamente enfatizou. Quando Kant declara que a coisa-em-si é incognoscível, um
sentido (se não o único) do seu argumento é que a coisa-em-si não é de forma alguma
um verdadeiro de cognição, mas um objeto fictício, que não é nada mais do que uma
substanciação ou hipostasiação de funções lógicas, transformada em essências reais. Em
outras palavras, a coisa-em-si é incognoscível porque ela representa o conhecimento
falso da velha metafísica. Esse não é o único sentido do conceito na obra de Kant, mas é
um dos principais, e é precisamente isso que nunca foi percebido pela leitura
completamente absurda de Kant que prevaleceu entre marxistas, que sempre reduziram
a noção de coisa-em-si a um mero agnosticismo. Mas quando Kant afirma que ela é um
objeto que não pode ser conhecido, ele quer dizer que ela é o falso objeto “absoluto” da
velha metafísica racionalista de Descartes, Spinoza e Leibniz; e quando Hegel anuncia
que a coisa-em-si pode ser conhecida, o que ele está de fato fazendo é restaurar a velha
metafísica pré-kantiana.
PA >> A sua obra frequentemente parece definir o materialismo essencialmente como
um reconhecimento da existência real do mundo externo, independente do sujeito
cognoscente [knowing subject]. Mas o materialismo não significou tradicionalmente
mais do que isso, tanto para o marxismo como para a filosofia clássica – uma
concepção específica do próprio sujeito do conhecimento? Na Itália, por exemplo, você
foi censurado por Sebastiano Timpanaro por ignorar a “fisicalidade” do sujeito
cognoscente e os seus conceitos: ele o acusou, de fato, de reduzir o materialismo a
realismo, devido ao seu silêncio sobre esse último ponto.4 Você aceitaria essa crítica?
LC >> Não, em minha opinião o argumento de Timpanaro é completamente
equivocado. Por várias razões. Em primeiro lugar, a minha preocupação com o
materialismo era acima de tudo apenas na gnosiologia. Bem, por um lado, não é
verdade que um materialismo gnosiológico pode ser reduzido meramente ao
reconhecimento da realidade e da independência do mundo externo. Essa é,
evidentemente, uma tese fundamental, mas ela por sua vez fornece a base para a
4 A crítica de Timpanaro a Colletti foi desenvolvida em um ensaio chamado Materialismo, libero arbitrio,
incluído no volume Sul Materialismo, Pisa. Para as posições filosóficas gerais de Timpanaro, ver o seu ensaio Considerations on Materialism, New Left Review 85, Maio-Junho 1974.
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construção da lógica experimental, e a explicação do conhecimento científico. Os
experimentos científicos significam que as ideias são apenas hipóteses. Tais hipóteses
devem ser testadas, verificadas ou falsificadas, confrontando-as com dados da
observação, que têm natureza diferente de qualquer noção lógica. Se essa diversidade
dos conteúdos materiais do conhecimento é negada, as hipóteses se tornam hipóstases
ou essências ideais, e os dados sensíveis e empíricos se tornam mais uma vez resíduos
puramente negativos, como em Leibniz ou Hegel. Por outro lado, os escritos de
Timpanaro revelam um tipo de naturalismo que permanece um tanto ingênuo, com a
sua insistência unilateral [single-minded] na pura fisicalidade do homem como a base
principal para um materialismo filosófico. Evidentemente, quando se reconhece a
existência do mundo natural, não pode haver discordância de que o homem também é
um ente natural. O homem como um ser físico-natural é um animal. Mas essa espécie
natural particular se distingue de todas as outras pela sua criação de relações sociais.
Para usar a fórmula de Aristóteles: o homem é um zoon politikon, um animal político.
Os homens vivem em sociedade e têm uma história, e é esse nível de sua existência que é
essencial para o materialismo histórico. A especificidade do homem como ser natural se
refere à natureza na medida em que ele se refere a outros homens, e se refere a outros
homens na medida em que se refere à natureza. Essa relação dupla é precisamente o que
se apreende no conceito de Marx de “relações sociais de produção”. Para Marx, não
pode haver produção – ou seja, relações entre os homens e a natureza – fora ou
apartada das relações sociais, ou seja, relações com outros homens; e não pode haver
relações entre homens que não sejam função de relações entre os homens e a natureza,
na produção. A peculiaridade da “natureza” no homem é encontrar a sua expressão em
“sociedade”. Do contrário, qualquer discurso sobre o homem poderia igualmente ser
aplicado às formigas ou às abelhas. A característica distintiva do homem como uma
espécie físico-natural é a sua geração de relações sociais de produção, ao invés de
colméias ou teias de aranha. Está na natureza do homem ser um sujeito histórico-social.
PA >> No campo do materialismo histórico foi, é claro, Engels que classicamente
insistiu mais sobre a estrutura física do homem, e sobre as relações entre o homem e a
natureza, em seus escritos tardios. Você tendeu a contrapor Marx contra Engels de
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uma maneira muito radical em sua obra. Por exemplo, você atribui toda a
responsabilidade pela noção de “materialismo dialético” a Engels. Em outro lugar,
você sugere que foi Engels que introduziu os primeiros elementos perniciosos de
fatalismo político no marxismo, na Segunda Internacional. Contrastando com isso,
você absolve Marx de todo erro em qualquer dessas direções. De fato, em uma
passagem você chegou a falar sobre “o abismo entre o rigor e a complexidade que
caracteriza cada página de Marx e a vulgarização popular e às vezes diletantismo das
obras de Engels”.5 Você realmente manteria uma formulação como essa hoje? Marx,
afinal de contas, não apenas leu e aprovou, mas colaborou com o Anti-Dühring; e em
suas introduções de O capital, há certamente colocações que implicam um fatalismo e
mecanicismo pelo menos tão equivocados quanto qualquer coisa no Engels tardio.
Acima de tudo, uma polarização desse tipo, excessivamente dramática, entre Marx e
Engels, não contém o grave perigo de não apenas às vezes criticar Engels
injustamente, mas também de criar, por contraste, uma espécie de zona sagrada em
torno de Marx, que de forma correspondente se torna à prova de crítica?
LC >> Concordo absolutamente com o seu último comentário sobre a criação de uma
zona sagrada em torno de Marx. Você não deve esquecer que a passagem citada foi
escrita há 17 anos. A minha visão sobre a relação entre Marx e Engels é agora muito
menos rígida e com mais nuances, no sentido de que percebi que também em Marx há
áreas críticas de incerteza e confusão sobre a dialética. Estou no momento preparando
um estudo que lidará com essa questão. Portanto, eu aceito integralmente a sua objeção:
é vergonhoso conferir uma aura sagrada a qualquer pensador, inclusive Marx. Hoje eu
rejeito totalmente esse tipo de atitude, mas admito que posso tê-la encorajado no
passado. Isso é uma autocrítica. Dito isso, porém, continuo mantendo que a imagem
tradicional dos gêmeos teóricos que presidem o nascimento do movimento operário é
infantil e absurda. Os fatos, afinal de contas, falam por si mesmos. Todos sabem que
Marx passou grande parte de sua vida estudando no Museu Britânico, enquanto Engels
estava trabalhando em uma tecelagem em Manchester. Almas gêmeas são milagres que
5 Essa passagem está na longa introdução que Colletti escreveu para uma edição dos Cadernos filosóficos
de Lênin em 1958. A Introdução foi então reimpressa uma década mais tarde como a primeira parte do volume italiano Il Marxismo e Hegel, Bari, 1969. A edição inglesa de Marxism and Hegel (NLB 1973) é uma tradução da segunda parte do volume italiano, que foi escrita como um livro à parte por Colletti em 1969. A passagem acima se encontra em Il Marxismo e Hegel, p. 97.
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não existem no mundo real; duas mentes nunca pensamente exatamente da mesma
maneira. As diferenças intelectuais entre Marx e Engels são evidentes, e foram
discutidas por muitos autores além de mim: Alfred Schmidt, George Lichtheim ou
Sidney Hook quando ainda era marxista, entre outros. Então, também, não há malícia
histórica ao lembrar as cartas que Marx escreveu contra Engels em seu tempo de vida, e
que foram destruídas pela sua família após a sua morte. No que concerne à dialética da
natureza, ainda que reconheça um certo exagero em meus escritos, eu ainda insistiria
que, ao fim, toda a obra de Marx é essencialmente uma análise da sociedade capitalista
moderna. Os seus escritos básicos são As teorias da mais-valia, os Grundrisse e O
capital: todo o resto é secundário. Enquanto no caso de Engels, um de seus maiores
escritos é indubitavelmente A dialética da natureza – 90 por cento dessa obra é
irremediavelmente comprometida com uma Naturphilosophie ingênua e romântica,
contaminada por temas cruamente positivistas e evolucionistas.
(...)
PA >> Na sua Introdução aos Cadernos Filosóficos de Lênin, escrita em 1958, você
conclui dizendo que o jovem Lênin de 1894 não havia lido Hegel quando escreveu
Quem são os amigos do povo?, mas apesar disso conseguiu entendê-lo melhor do que o
Lênin tardio dos Cadernos, que o estudou em 1916, mas o compreendeu mal. Então, em
uma conclusão enigmática, você complementa que esse paradoxo indica “duas
diferentes ‘vocações’ que ainda hoje estão em disputa no interior da alma do próprio
marxismo. Explicar como e por quê essas duas ‘vocações’ se tornaram historicamente
conjugadas e superpostas seria uma tarefa formidável: mas, não obstante, ela deve
ser enfrentada”6. O que você quis dizer com isso?
LC >> Você deve ter em mente que eu era jovem e entusiasta quando escrevi essas
linhas. Era propenso ao exagero. É verdade que Lênin não conhecia Hegel em primeira
mão quando escreveu Quem são os amigos do povo?. Mas esse texto é marcado pela
6 Il Marxismo e Hegel, pp. 169-70.
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cultura positivista da época: os significados esotéricos que eu atribuía a ele, hoje eu
repudiaria firmemente. Os subtextos ocasionalmente positivistas da minha Introdução
de 1958 são, eu penso, corrigidas e superadas em meu estudo de 1969 sobre Marxismo e
Hegel. Porém, através dessas sucessivas divagações e oscilações, eu estava tateando em
direção a um problema sério e real, que tem me preocupado diretamente por vários
anos. Há duas possíveis linhas de desenvolvimento no discurso do próprio Marx,
expressas respectivamente no título e no subtítulo de O capital. A primeira é aquela que
o próprio Marx adianta no seu prefácio da primeira edição, e no posfácio da segunda
edição, na qual ele apresenta a si mesmo simplesmente como um cientista. Marx, de
acordo o seu próprio relato aqui, está desempenhando no campo das ciências históricas
e sociais uma tarefa que já havia sido desempenhada nas ciências naturais. Essa foi
também a interpretação de Lênin sobre Marx em Quem são os amigos do povo?, e a
minha própria Introdução de 1958 foi na mesma direção. O próprio título de O capital
indica essa direção. Ele promete que a economia política, que começou com as obras de
Smith e Ricardo, mas que com eles permaneceu incompleta e contraditória, agora se
tornará uma ciência verdadeira no sentido profundo do termo. O subtítulo do livro,
porém, sugere outra direção: uma “crítica da economia política”. Essa noção teve pouco
eco na Segunda e na Terceira Internacional. Lênin certamente rejeitaria a ideia de que o
marxismo fosse uma crítica da economia política: para ele, trata-se de uma crítica da
economia política burguesa apenas, que finalmente tornou a própria economia política
uma ciência real. Mas o subtítulo de O capital indica algo mais – ele sugere que a
economia política como tal é burguesa e deve ser criticada tout court. Essa segunda
dimensão da obra de Marx é precisamente aquela que culmina em sua teoria da
alienação e do fetichismo. O grande problema para nós é saber se e como essas duas
direções divergentes da obra de Marx podem ser mantidas juntas em um sistema único.
Pode uma teoria puramente científica conter em si um discurso sobre a alienação? O
problema ainda não foi resolvido.
PA >> A escola dellavolpeana original interpretava a obra de Marx de maneira
semelhante a uma analogia estrita com a de Galileu. Há dificuldades óbvias, porém,
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ao transferir os procedimentos experimentais das ciências naturais para as ciências
sociais. Notoriamente, a história não é um laboratório no qual os fenômenos podem
ser artificialmente isolados e repetidos, como na física. Lênin dizia com frequência:
“Esse momento é único: ele pode passar, e a chance que ele representa pode nunca
mais retornar...” – o exato oposto da repetibilidade. Há uma passagem marcante na
sua Introdução aos Cadernos filosóficos, porém, na qual você diz: “A lógica e a
sociologia são constituídas simultaneamente, na mesma relação de unidade-distinção
como a obtida entre a consciência que elas representam e o ser social: portanto, a
lógica está contida na ciência da história, mas a ciência da história está contida por
sua vez na história. Ou seja, a sociologia informa as técnicas da política, e se torna
uma luta pela transformação do mundo. A prática é funcional à produção da teoria;
mas a teoria é por sua vez uma função da prática. A ciência é verificada na e como
sociedade, mas a vida associada por sua vez é um experimento em curso no
laboratório do mundo. A história é, portanto, uma historia rerum gestarum, teoria
prática; mas é também uma ciência como as próprias res gestae, prática teórica; ou,
nas palavras de uma grande máxima de Engels, “história é experimento e indústria”.
Podemos com isso entender o nexo profundo entre o “profeta” ou político, e o cientista,
na estrutura da obra do próprio Marx”.7 Você ainda pensa que essa solução é
satisfatória?
LC >> Você selecionou a melhor página daquele texto – aquela na qual me esforcei mais
para calcular a quadratura do círculo! Não concordo mais com essa posição, porque o
que então parecia ser uma solução, hoje percebo que ainda é um problema sem
resposta. Estou atualmente em uma fase de repensar radicalmente muitas dessas
questões – processo cujo resultado ainda não posso antever completamente.
Provavelmente publicarei uma pequena obra em breve, sobre a teoria das contradições
capitalistas em Marx.8 Para isso, tomarei uma distância ainda maior da obra de Della
Volpe, e tentarei mostrar através do estudo de Kant Ensaio para introduzir a noção de
grandezas negativas na filosofia, de 1763, que o conceito marxiano de uma contradição
capitalista não é a mesma que a noção kantiana de “oposição real”. Estou confiante
7 Il Marxismo e Hegel, pp. 126–7. 8 O texto foi publicado no ano seguinte: “Marxism and the Dialectic”, New Left Review I/93, 1975, p.3. (N.
do T.)
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quanto a esse ponto, mas ele permanece limitado, e ainda não estou certo de suas
implicações. Porém, em resposta à sua questão, minha resposta seria que o sentido do
meu argumento nesse estudo futuro é que Marx não pode ser simplesmente igualado a
Galileu; ele somente o seria se as contradições capitalistas fossem oposições reais no
sentido kantiano do termo.
PA >> Um de seus temas centrais em Marxism and Hegel é que as contradições
existem entre proposições, mas não entre coisas. A confusão entre as duas é para você
a marca distintiva do materialismo dialético, que o define como uma pseudociência.
Mas no último ensaio do seu From Rousseau to Lenin, escrito um ano após, você
repetidamente fala da própria realidade capitalista como “invertida”, um sistema que
“se apóia sobre a própria cabeça”.9 Isso não é simplesmente uma maneira metafórica
de reintroduzir a noção de “contradição entre coisas” – por uma imagem literária, ao
invés de um axioma conceitual? Como pode a ideia de uma “realidade invertida” ser
reconciliada com o princípio da não-contradição, que você insiste que é central para
toda ciência?
LC >> É exatamente com esse problema que estou trabalhando: você está
absolutamente correto ao destacar a dificuldade. Pois mantenho firmemente a tese
fundamental de que o materialismo pressupõe a não-contradição – que a realidade é
não-contraditória. A esse respeito, concordo com Adjukiewicz e Linke, e reitero
totalmente a minha crítica do materialismo dialético. Ao mesmo tempo, relendo Marx,
percebi que para ele as contradições capitalistas são inegavelmente contradições
dialéticas. Della Volpe tentou salvar o dia interpretando a oposição entre capital e
trabalho assalariado como uma oposição real – Realrepugnanz – no sentido kantiano:
ou seja, uma oposição sem contradição, ohne widerspruch. Se a relação entre capital e
trabalho fosse uma oposição real de tipo kantiano, ela não seria dialética, e o princípio
básico do materialismo estaria resguardado. Mas o problema é na verdade muito mais
complexo. Eu ainda acredito que o materialismo exclui a noção de uma realidade
contraditória: mas não há dúvida de que para Marx a relação entre capital/trabalho
9 Ver From Rousseau to Lenin, pp. 232–5.
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assalariado é uma contradição dialética. O capitalismo é uma realidade contraditória
para Marx, não porque, sendo realidade, ele deve portanto ser contraditório – como
sustentaria o materialismo dialético, mas porque ele é uma realidade emborcada,
invertida, de cabeça para baixo. Tenho perfeita consciência de que a noção de uma
realidade invertida parece colidir com os preceitos de qualquer ciência. Marx estava
convencido da validade dessa noção. Não digo que ele estava necessariamente correto.
Ainda não posso estabelecer se a ideia de uma realidade invertida é compatível com a
ciência social.
Mas gostaria de comentar sobre o problema da relação entre a ciência social e a ciência
natural, que você levantou antes. Não mantenho mais a posição otimista de minha
Introdução de 1958, que era muito simples em seu pressuposto de uma homogeneidade
básica entre as ciências da natureza e as ciências da sociedade. Por outro lado, posso ver
que as duas grandes posições que são geralmente adotadas sobre esse problema, ambas
acarretam graves problemas. A primeira posição é aquela que eu tomei em minha
Introdução, e que deriva de Della Volpe: ela efetivamente identificou as ciências social e
natural – Marx foi “o Galileu do mundo moral” para nós, naquele momento. Hoje, essa
fórmula me chama a atenção como altamente sujeita a debates: antes de qualquer outra
questão, ela pressupunha que a relação capital-trabalho em Marx era uma oposição não-
contraditória, o que não é o caso. Por outro lado, há uma segunda posição, que insiste
na heterogeneidade entre a ciência social e a ciência natural. O perigo dessa alternativa é
que as ciências sociais então tendem a se tornar uma forma qualitativamente distinta de
conhecimento em relação às ciências naturais, e tendem a ocupar a mesma relação no
que se refere a elas que a filosofia ocupava em relação à ciência como tal. Não é por
acaso que essa foi a solução dos historicistas alemães – Dilthey, Windelband e Rickert.
Ela foi então herdada por Croce, Bergson, Lukács e a Escola de Frankfurt.
Invariavelmente, a conclusão dessa tradição é que o conhecimento verdadeiro é a
ciência social, que, já que não pode ser assimilada pela ciência natural, não é de maneira
alguma ciência, mas filosofia. Portanto, ou há uma forma única de conhecimento, que é
ciência (a posição que eu ainda gostaria de defender) – mas então seria possível
construir as ciências sociais em bases análogas às das ciências naturais – ou as ciências
sociais são realmente diferentes das ciências naturais, e há duas formas de
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conhecimento – mas uma vez que duas formas de conhecimento não são possíveis, as
ciências naturais se tornam pseudoconhecimento. A alternativa ideologicamente
dominante é a última. A filosofia continental europeia nesse século esteve virtualmente
coesa em seu ataque às ciências naturais – de Husserl a Heidegger, de Croce a Gentile,
de Bergson a Sartre. Contra os perigos desse idealismo espiritualista, pessoalmente
prefiro incorrer no risco oposto do neopositivismo. Mas estou dividido sobre essa
questão, e não tenha solução pronta para o problema.
(...)
PA >> Em um texto recente, você parece aceitar que há uma teoria do “colapso” em O
capital, ainda que a sua análise seja prudente, sugerindo a presença de contra-
elementos na obra marxiana. Você identifica a principal variante da teoria do
“colapso” como o postulado da tendência decrescente da taxa de lucro em O capital.10
Você a considera uma lei científica que foi “conclusivamente verificada pelo ulterior
desenvolvimento da própria história”?
LC >> De forma alguma. De fato, acredito que há algo muito mais grave a ser dito sobre
as previsões contidas em O capital. Não somente a taxa decrescente de lucro não foi
verificada empiricamente, mas o teste central do próprio O capital ainda não foi
realizado: uma revolução socialista no Ocidente avançado. O resultado é que o
marxismo está em crise hoje, e pode superar essa crise apenas se reconhecê-la. Mas
precisamente esse reconhecimento é conscientemente evitado por virtualmente todos os
marxistas, grandes ou menores. Isso é perfeitamente compreensível no caso dos
numerosos intelectuais apolíticos e apologéticos nos partidos comunistas ocidentais,
cuja função é meramente conferir um lustro marxista para uma prática política
absolutamente não-marxista desses partidos. O que é muito mais sério é o exemplo
dado por intelectuais de grande estatura, que sistematicamente escondem a crise do
marxismo em suas obras, e com isso contribuem para prolongar a sua paralisia como
ciência social. Deixe-me citar dois exemplos, para ser claro. Baran e Sweezy, na sua
10 Ver a Introdução de Colletti a L. Colletti e C. Napoleoni, Il Futuro del Capitalismo: Crollo o Sviluppo?,
Bari 1970, p. c-cv ff.
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introdução de Capital monopolista, informam seus leitores em uma breve nota que não
utilizarão os conceitos de mais-valia, mas a de excedente, nem a de trabalho assalariado,
mas a de trabalho dependente. O que isso realmente significa? Significa que Baran e
Sweezy decidiram que eles foram incapazes de usar a teoria do valor e da mais-valia em
suas análises do capitalismo do pós-guerra estadunidense. Eles tinham todo o direito de
fazê-lo; eles podem até mesmo estar corretos ao fazê-lo – não precisamos entrar nessa
questão aqui. Mas o que é significativo é a sua maneira de fazê-lo. Eles efetivamente
explodem a base da construção marxiana: sem a teoria do valor e da mais-valia, O
capital é estraçalhado. Mas eles meramente mencionam a sua eliminação em uma nota,
e então prosseguem despreocupadamente como se nada houvesse acontecido – como se,
uma vez que essa correção menor fosse feita, a obra de Marx permanecesse mais robusta
e sólida do que nunca.
Tomemos outro caso, de um grande intelectual e acadêmico por quem tenho o maior
respeito, Maurice Dobb. Ao apresentar uma edição de O capital um século mais tarde,
Dobb escreveu um prefácio no qual expressa que tudo nele está em ordem, exceto um
pequeno defeito, uma pequena falha no original. Esse pequeno erro, diz Dobb, é a
maneira pela qual Marx opera a transformação de valores em preços no Volume III de O
capital: felizmente, porém, o erro havia sido corrigido por Sraffa, e tudo está bem
novamente. Dobb pode estar certo ao não contentar-se com a solução de Marx para o
problema da transformação, assim como é possível que Sweezy tenha boas razões para
rejeitar a teoria do valor. Para o momento, podemos suspender o julgamento sobre essas
questões. Mas onde eles certamente estão errados, é em acreditar ou fingir acreditar que
os pilares centrais sobre os quais o edifício teórico marxiano se assenta podem ser
removidos, e que a construção ainda pode permanecer em pé. Esse tipo de
comportamento não é apenas uma ilusão. A recusa de admitir que o que se rejeita na
obra de Marx não é secundário, mas essencial, oculta, e com isso agrava, a crise do
marxismo como um todo. A evasão intelectual desse tipo somente aprofunda a
estagnação do pensamento socialista evidente em qualquer lugar do Ocidente hoje. O
mesmo se aplica aos jovens economistas marxistas na Itália que adotaram a maior parte
das ideias de Sraffa. Não digo que Sraffa está errado; estou disposto a admitir como uma
hipótese que ele pode estar certo. Mas o que é absolutamente absurdo é aceitar Sraffa,
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cuja obra implica a demolição de toda a fundamentação da análise marxiana, e ao
mesmo tempo fingir que essa é a melhor maneira de sustentar Marx.
(...)
PA >> Como você vê o seu desenvolvimento pessoal como filósofo hoje? E o que você vê
como problemas centrais para o futuro geral do marxismo?
LC >> Discutimos a escola de Della Volpe na Itália, na qual tive minha primeira
formação. O que eu gostaria de finalmente enfatizar é algo muito mais profundo do que
todas as críticas que fiz dela até aqui. O fenômeno do dellavolpeanismo – como o do
althusserianismo hoje – sempre esteve ligado aos problemas da interpretação do
marxismo: ele nasceu e permaneceu confinado em um espaço puramente teórico. O tipo
de contato que ele estabeleceu com o marxismo foi sempre marcado por uma
dissociação e divisão básicas entre a teoria e a atividade política. Essa separação
caracterizou o marxismo em todo o mundo desde o início dos anos 20. Contra esse pano
de fundo, a escola de Della Volpe na Itália é necessariamente reduzida a dimensões
muito modestas: não devemos ter nenhuma ilusão sobre isso, nem exagerar as
diferenças políticas entre os dellavolpeanos e os historicistas naquele tempo. O fato real,
fundamental, era a separação entre o marxismo teórico e o movimento operário real. Se
você examina obras como A questão agrária de Kautsky, A acumulação de capital de
Luxemburgo, ou O desenvolvimento do capitalismo na Rússia de Lênin – três das
grandes obras do período que sucederam imediatamente as de Marx e Engels – você
imediatamente registra que a sua análise teórica contém ao mesmo tempo os elementos
de uma estratégia política. São obras que têm tanto um verdadeiro valor cognitivo,
quanto um propósito operativo estratégico. Tais obras, quaisquer que sejam os seus
limites, mantiveram o essencial do marxismo. Pois o marxismo não é um fenômeno
comparável ao existencialismo, à fenomenologia ou ao neopositivismo. Uma vez que ele
se torna isso, está acabado. Mas após a Revolução de Outubro, a partir do início dos
anos 20, o que aconteceu? No Ocidente, onde a revolução falhou e o proletariado foi
derrotado, o marxismo viveu meramente como uma corrente acadêmica nas
universidades, produzindo obras de escopo puramente teórico ou pura reflexão cultural.
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A carreira de Lukács é a demonstração mais clara desse processo. História e consciência
de classe, com todos os seus defeitos, estava equipado para ser um livro de teoria
política, orientado a uma prática real. Posteriormente, Lukács passou a escrever obras
de natureza totalmente diferente. O jovem Hegel ou A destruição da razão são produtos
típicos de um professor universitário. Culturalmente, eles podem ter um valor muito
positivo: mas não possuem mais nenhuma conexão com a vida do movimento operário.
Eles representam tentativas de alcançar um avanço cognitivo no plano da teoria, que ao
mesmo tempo são completamente vazios de toda implicação estratégica ou política. Esse
foi o destino do Ocidente. Enquanto isso, o que aconteceu no Leste? Lá ocorreram
revoluções, mas em países cujo nível de desenvolvimento capitalista era tão atrasado
que não havia chance de construção de uma sociedade socialista. Nesses países, as
categorias clássicas do marxismo não tinham sistema objetivo de correspondências na
realidade. Havia prática política revolucionária, que às vezes gerava experiências de
massa muito importantes e criativas, mas elas ocorreram em um contexto histórico que
era alheio às categorias centrais da própria teoria de Marx. Essa prática, portanto, nunca
conseguiu traduzir-se em um avanço teórico dentro do próprio marxismo: o caso mais
óbvio é o de Mao. Portanto, simplificando muito, podemos dizer que, no Ocidente, o
marxismo se tornou um fenômeno puramente cultural e acadêmico; enquanto no Leste,
os processos revolucionários se desenvolveram em um ambiente muito atrasado para
permitir a realização do socialismo, e assim, inevitavelmente, encontrou expressão em
ideias e tradições não-marxistas.
Essa separação entre Ocidente e Leste mergulhou o marxismo em uma longa crise.
Infelizmente, o reconhecimento dessa crise é sistematicamente obstruído e reprimido
entre os próprios marxistas, mesmo os melhores deles, como vimos nos casos de Sweezy
e Dobb. Minha própria visão, ao contrário, é que a única chance para o marxismo de
sobreviver e superar essa prova é cavucar esses mesmos problemas. Naturalmente, o
que um indivíduo pode fazer sozinho nessa direção, ou mesmo com alguns colegas, é
muito pouco. Mas essa, de qualquer maneira, é a direção na qual estou tentando
trabalhar agora: e é nessa perspectiva que devo expressar minha mais profunda
insatisfação com o que fiz até aqui. Sinto-me imensamente distante das coisas que
escrevi, porque no melhor dos casos elas não me parecem mais do que um apelo a
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princípios, contra fatos. Mas de um ponto de vista marxista, a história não pode nunca
estar errada – em outras palavras, meros axiomas a priori nunca podem se opor à
evidência do seu desenvolvimento real. A tarefa real é estudar por que a história tomou
um curso diferente daquele previsto por O capital. É provável que qualquer estudo
honesto disso terá que questionar alguns dos dogmas centrais do pensamento do
próprio Marx. Portanto, eu agora renuncio completamente ao triunfalismo dogmático
com o qual endossei cada linha em Marx – o tom das passagens da minha Introdução de
1958, que você citou. Deixe-me colocar isso de maneira ainda mais forte. Se os marxistas
continuarem presos na epistemologia e na gnosiologia, o marxismo efetivamente
perecerá. A única maneira pela qual o marxismo pode ser reanimado é se livros como
Marxism and Hegel deixarem de ser publicados, e em vez disso livros como O capital
financeiro de Hilferding e Acumulação de capital de Luxemburgo – ou mesmo O
imperialismo de Lênin, que era uma brochura popular – forem novamente escritos.
Resumidamente, ou o marxismo tem a capacidade – eu certamente não tenho – de
produzir naquele nível, ou sobreviverá meramente como uma excentricidade de alguns
professores universitários. Mas nesse caso, ele estará verdadeiramente morto, e os
professores poderão muito bem inventar um novo nome para a sua intelligentsia.
Traduzido por Daniel Cunha
Título original: A political and philosophical interview. Publicada originalmente em
New Left Review I/86, Julho-Agosto 1974