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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP José Guida Neto Ulpiano e o estoicismo no direito romano do principado DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

José Guida Neto

Ulpiano e o estoicismo no direito romano

do principado

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

José Guida Neto

Ulpiano e o estoicismo no direito romano

do principado

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, como exigência parcial à obtenção do título de Doutor em Direito na Área de Filosofia do Direito e do Estado sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio De Cicco.

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2012

Banca Examinadora __________________________ __________________________ __________________________ __________________________ __________________________

“A filosofia, hoje, não passa de um abuso da palavra. É preciso retornar ao sentimento de Sócrates e ao de Sêneca, quando ao falar dos gramáticos, dos geômatros e dos físicos, diziam: é preciso ver se todos estes homens nos ensinam a virtude ou não; se ensinam, são filósofos.”

Abade Dinouart

“O único meio de se descobrir o que é filosofia é fazer filosofia.”

Bertrand Russell

“Sou um homem: nada do que é humano me é estranho.”

Públio Terêncio Afro

“Preferia fatigar-me lendo o escrito por outros a ter que escrever o que os outros tem de ler [ . . .] Tenho que confessar, no entanto, que, no exercício de escrever para os demais, tenho aprendido muitas coisas que antes ignorava.”

Santo Agostinho de Hipona

AGRADECIMENTO

Agradeço ao meu orientador,

Professor Doutor Cláudio De Cicco,

homem de grande caráter e

extraordinária cultura, que, como

poucos, domina a arte de ser, ao

mesmo tempo, erudito e afável aos

mais simples. Meu muito obrigado

pela atenção, gentileza,

generosidade, paciência e,

sobretudo, compreensão com as

limitações impostas pela vida

atarefada que levo.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho “in memoriam” à Rosmer, minha mui amada mãe, que em vida entregou-se a Deus como um dom e, enquanto viveu, foi para todos que a conheceram um dom de Deus. Sou-lhe grato pelos ensinamentos, incentivos e amor incondicional que me dedicou. Ao meu pai, Matheus, pelos exemplos de dignidade e honra. À minha adorada avó Olympia por tanto carinho, amor e pelas orações “in memoriam”. E também “in memoriam” aos meus avós Filomena, José e João.

RESUMO

A presente tese busca demonstrar de que modo, durante o Principado (Alto-Império Romano - período clássico de 27 a.C. até 284 d.C), a filosofia estóica, absorvida pelos soberanos de Roma, influenciou o Direito Romano. Como fio condutor do trabalho usa-se a obra do jurisconsulto Ulpiano, em particular o título I do livro I do “Digesto” (do Imperador Justiniano I o Grande, Imperador Romano do Oriente) e seu livro de “Regras”. Faz-se um relato da história do Principado, antecedido dos motivos que culminaram com o fim da República e ensejaram esse gênero de monarquia romana. À história do período segue-se uma explanação do pensamento estóico com ênfase na última fase antiga de tal escola filosófica, justamente aquela que coincide com o Principado e representa o auge do pensamento filosófico latino. Posta a história do período, e, sobreposta a história da filosofia de então, procura-se demonstrar como o direito romano clássico absorveu tais ideais que são encontrados nos textos legais do jurisconsulto Ulpiano. Por fim, segue uma explanação de como a jus filosofia de Ulpiano foi transmitida graças à consolidação justinianeia do “Corpus Juris Civilis” e desse modo contribuindo com a formação da civilização ocidental e consequentemente tornando-se a base do Direito brasileiro.

Palavras-chaves: Estoicismo – Principado - Direito Romano Clássico – Direito Natural – Alto-Império Romano.

ABSTRACT

This thesis seeks to demonstrate how, in the Principate (High Roman Empire - the classic period from 27 BC to 284 AD), Stoic philosophy, absorbed by the sovereign of Rome, influenced the Roman law. As a guiding principle, we use the work of the jurist Ulpian in particular its “Liber Singularis Regularum” and the Title I of Book I from the “Digesta” of the Justinian I the Great, emperor of Easten Roman Empire. The history of the Principate is presented, preceded by the reasons that led to the end of the Republic, and gave rise this kind of Roman monarchy. After the presention of the history of the period, there is an explanation of Stoic thought, with emphasis on the last phase of this ancient school of philosophy, precisely the one that coincides with the Principate, and represents the pinnacle of Latin philosophical thought. Once the history of the period is presented together with the history of philosophy, then it is shown how classical Roman law absorbed these ideas that were found in legal texts of the jurist Ulpian. Completing the thesis, there is an explanation on how Ulpian’s philosophy of justice was transmitted by means of the consolidation of Emperor Justinian "Corpus Juris Civilis" , thereby contributing to the formation of the Western civilization and, consequently, becoming the basis of Brazilian law. Key-words: Stoicism - Principate - Classical Roman Law - Natural Law - High Roman Empire.

ULPIANO E O ESTOICISMO NO DIREITO ROMANO DO PRINCIPADO

SUMÁRIO

Introdução

......................................................................................12

1 – HISTÓRIA DE ROMA: DA TRADIÇÃO NACIONAL REPUBLICANA AO UNIVERSALISMO ESTÓICO DA MONARQUIA

............................................................................................... 18 1.1 – A República Romana e sua tradicionalista visão de mundo.

.............................................................................................. 18 1.1.1 - O fim da realeza até a crise republicana do século II a.C.

.............................................................................................. 19 1.1.2 - A Ditadura de Sila

............................................................................................. 23 1.1.3 - O Primeiro Triunvirato: Pompeu, Crasso e César

.............................................................................................. 27 1.1.3.1 - Pompeu e Crasso chegam ao consulado

............................................................................................... 28 1.1.3.2 - O Apogeu de Pompeu

............................................................................................... 30 1.1.3.3 - A ascensão de Júlio César e o Triunvirato

................................................................................................ 32 1.1.4 - A ditadura de César ou o crepúsculo da tradição

................................................................................................ 37 1.1.4.1 - A Guerra Civil - Pompeu versus César

................................................................................................ 37 1.1.4.2 - César e Cleópatra

............................................................................................... 41 1.1.4.3 - Os idos de Março

................................................................................................ 45 1.2 - O Principado Romano e a ascensão do estoicismo

imperial ................................................................................................ 52

1.2.1 - Otaviano - César e Augusto

................................................................................................ 53

1.2.1.1 - O Cesarismo ............................................................................................ 54

1.2.1.2 - Consequências do Magnicídio - Segundo Triunvirato ............................................................................................. 58

1.2.1.3 - Nova Guerra Civil - O Fim da República ............................................................................................. 62

1.2.1.4 - Do Príncipe, o Primeiro Cidadão ............................................................................................. 64

1.2.2 - Os doze Césares ............................................................................................. 68

1.2.2.1 Dinastia Júlio-Claudiana ............................................................................................. 69

1.2.2.1.1 O Governo de Augusto ............................................................................................. 70

1.2.2.1.2 Os Sucessores de Augusto: Tibério, Calígula, Cláudio e Nero

............................................................................................. 73 1.2.2.2 Dinastia Flaviana

............................................................................................... 78

1.2.3 - Os Bons Imperadores e o Século de Ouro do Império ................................................................................................ 80

1.2.4 - Dos Severos ao Dominato .................................................................................................. 86

1.2.4.1 - Dinastia dos Severos .................................................................................................. 87

1.2.4.2 - Crise do terceiro século ................................................................................................. 90

2 - Os Momentos da Filosofia Estóica ............................................................................................... 95

2.1 – O estoicismo antigo (grego)

............................................................................................ 101 2.2 – O estoicismo médio (greco-romano)

............................................................................................. 108 2.3 – O novo estoicismo imperial (romano)

............................................................................................. 111 2.3.1 - O eclético Cícero

............................................................................................. 114 2.3.2 - Sêneca

............................................................................................ 126 2.3.3 - Epiteto

............................................................................................ 135 2.3.4 - Marco Aurélio

............................................................................................. 139

3 – A INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO NO DIREITO ROMANO

CLÁSSICO INVESTIGADO NOS TEXTOS DO JURISCONSLTO ULPIANO

.............................................................................................. 144

3.1 – A Jurisprudência Clássica ............................................................................................... 144

3.2 - Ulpiano ............................................................................................... 151

3.3 - O Direito Natural nos textos de Ulpiano .............................................................................................. 153

3.3.1 - Ulpiano e o direito brasileiro hodierno .......................................................................................................... 165

3.4 - A divulgação do Pensamento Jusfilosófico de Ulpiano por meio da consolidação justinianeia no “Corpus Juris Civilis”.

............................................................................................... 167 CONCLUSÃO

................................................................................................ 173

REFERÊNCIAS ................................................................................................. 178

ANEXO: Fragmentos das Regras de Ulpiano e seus equivalentes na Legislação Civil Brasileira hodierna

................................................................................................ 188

12

INTRODUÇÃO

A influência da moral e da filosofia de uma época é

indubitavelmente relevante para o aperfeiçoamento do Direito do mesmo

período. Portanto, o que se procura investigar, na presente obra, é como a

filosofia estóica adotada por grandes pensadores romanos na era clássica e

em particular no Principado gerou modificações na sociedade romana e, em

consequência disso, sobre o Direito Romano de então e a partir daí no Direito

Ocidental.

Para conduzir o estudo, escolheu-se a obra do jurisconsulto

Ulpiano, sobretudo pela relevância de seus textos ao conceituar o Direito e o

Direito natural logo no título I do livro I um do Digesto do Imperador Justiniano

(JUSTINIANO, 2002), e, também, pela praticidade de seu manuscrito “Regras”

- Ulpiano Liber Singularis Regularum - (ULPIANO, 2002).

Hodiernamente, está em desuso relacionar a genialidade do

Direito Romano de seu paralelo filosófico e da ética daquela sociedade. No

entanto, não parece necessário que se faça tal dissociação e, por isso, serão

aqui traçados seus paralelos.

No ensaio “A Segunda Queda de Roma”1, Michel Lind aponta

que, atualmente, o renome da civilização romana não tem o prestígio e a

estima aos quais faz jus por causa de uma tendência preconceituosa iniciada

por intelectuais pós Renascença, que preferiram enveredar por outra corrente,

repudiando a herança dos romanos. A reputação da civilização romana no mundo ocidental nunca esteve pior do que hoje. O legado cultural e político da República e do Império romanos foram extirpados da memória coletiva dos EUA e de outros países ocidentais em grau notável, não apenas por multiculturalistas críticos do cânone ocidental, mas também por supostos tradicionalistas que afirmavam defendê-lo (LIND, 2000, p. 06).

Apesar do interesse eclético que manifestavam pela tradição grega, além da egípcia e judaica, os humanistas da Renascença se preocupavam principalmente em reviver a cultura da Antiguidade romana. [...] Os estudiosos literários criaram o chamado “latim ciceroniano”, um dialeto artificial que empregava apenas palavras empregadas por Cícero. Sêneca inspirou a tragédia renascentista, e seus colegas romanos Plauto (254-184 a.C.) e Têrencio (195-159?

1 Ensaio de Michel Lind - escritor membro da New Americ Foundation, em Washington

publicado no jornal Folha de São Paulo, em 8 de outubro de 2000, no encarte Caderno Mais.

13

a.C.) serviram de modelos à comédia renascentista (LIND, 2000, p. 06).

Por tudo isso, não se pode ignorar o valor do ideal de Direito

Natural dos filósofos estóicos do classicismo e tampouco se pode deixar de

fazer uma ligação com a ideia de Direito Natural dos textos dos juristas

romanos que lhes foram contemporâneos.

Um dos legados culturais mais significativos dos romanos para o mundo moderno é a noção de pietas, não no sentido de piedade, como vem traduzido freqüentemente para o português, mas no sentido de um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado por natureza - pais, filhos e parentes. Ou seja, uma noção que liga entre si os membros da comunidade familiar, unidos sob a égide da pátria potestas e projectada no pretérito pelo culto dos antepassados. (NERY, 2008, p. 151-152).

O estoicismo, corrente filosófica predominante na Antigüidade Clássica durante mais de cinco séculos (300 a.C. – 200 d. C.), não alcançou as alturas da filosofia de Platão e de Aristóteles, mas foi a ideologia do Império, a base do Direito Romano e a grande preparação para o Cristianismo. Exerceu forte influência nos Padres da Igreja (Santo Ambrósio adaptou o De Officiis de Cícero ao uso dos clérigos). O humanismo e o naturalismo estóicos ressurgiram na Reforma e no Renascimento e estão presentes em Montaigne, Pascal, na moral cartesiana, no monismo de Spinoza e no vitalismo de Leibniz. (POLETTI, texto digital).

Para os estóicos, a divindade que prescreve para a natureza seu comportamento é a própria natureza. Lei é a expressão do próprio ser. O fim do homem é viver conforme a natureza, comum e própria dos homens, vale dizer conforme a razão. A irracionalidade é banida tanto na natureza como na conduta humana. Nem acaso nem desordem. O processo cósmico é dotado de racionalidade. (POLETTI, texto digital).

Para que se possa avaliar a influência do estoicismo no Direito

Romano da época do Principado, é imprescindível que se entendam os

aspectos históricos desse período denominado clássico. Ora, à primeira vista,

poderia parecer tarefa muito simples, no entanto, para analisar esta era e

abordar os pontos de interesse, é preciso, antes de tudo, delimitar exatamente

as datas de início e término dessa fase histórica.

São notórias as dificuldades de se delimitar fases da história. No

caso, existe um consenso entre historiadores, ainda que esteja longe de ser

unanimidade, mas que, por motivos pragmáticos e didáticos, serão adotados.

14

Em conformidade com a maioria dos autores, será convencionado

que o período clássico coincide com o Principado2 - também denominado Alto

Império - e começa com a renúncia de Otávio ao seu lugar no triunvirato (com

Lépido e Marco Antônio) e a sua proclamação como Augusto em 27 a.C.,

e termina com o Dominato3, quando da adoção do título de Dominus por

Diocleciano, em 284 d.C.

No entanto, não basta delimitar o Período Clássico no tempo, é

preciso abordar diferenças e peculiaridades que o tornaram, tão particular, vale

lembrar que, a partir de Otávio Augusto, o Império Romano tornou-se uma

autocracia disfarçada de diarquia4, pois se mantinha, ao menos

aparentemente, a ideia de que o poder era dividido com o senado.

Como já se sublinhou, faz-se coro com a maioria dos

doutrinadores e se considera o Período Clássico como o período que vai das

mudanças políticas introduzidas por Augusto até Diocleciano. Destaca-se aqui

o fato de que, para alguns autores, o final da era republicana também é

considerado Clássico. Como consequência disso, poderia ser arguido o motivo

de não se estender para o século II a.C. o foco deste estudo.

No tocante a essa reflexão, cumpre esclarecer que, mesmo após

a conquista completa da Grécia pelos romanos com o saque de Corinto em 146

a.C. e a vitória definitiva sobre Cartago na terceira guerra púnica no mesmo

ano, as instituições e as fontes do Direito da Roma Republicana diferem em

muito daquelas do Alto-Império. A evolução do Direito Romano levada a cabo

pelos imperadores teve reais e profundas consequências no Direito e, ademais, 2 Principado (do latim Principatus, de princeps, principal, primeiro), regime político de diarquia

(senado/príncipe) adotado por Augusto e seus sucessores (27 a.C. até 284 d.C.), depois dos anos de anarquia militar que se verificou após a morte de Júlio César (CRETELLA, 2003, p.38).

3 Dominato (do latim dominus, senhor da casa - domus), período de monarquia absoluta

implantada pelo imperador Diocleciano, depois dos anos de anarquia militar que se verificou após a morte de Alexandre Severo. Com o Dominato, é abandonada a diarquia (senado/príncipe) do Principado (Augusto e seus sucessores) (CRETELLA, 2003, p.46).

4 Diarquia (do gr. dúo 'dois' e archía 'governo'), forma de governo em que o poder é exercido simultaneamente por dois chefes de Estado. Termo cunhado pelo historiador alemão Theodor Mommsen (LELLO, 1954, p. 748).

15

o que se busca é a relação desses imperadores com o estoicismo da última

fase antiga.

A influência estóica começa a se tornar significativa quando os

príncipes, instruídos filosoficamente pelos estóicos, puderam exercer

livremente o poder, já que vastas atribuições lhes haviam sido transferidas,

afinal eram homens que receberam o título de “Augusto”5, cognome esse

outrora reservado às coisas sacras (MEIRA, 1996, p.106). Com poder absoluto,

esses príncipes transformaram as instituições políticas e legais dos romanos.

Nesse período, graças ao gênio criativo de juristas como Ulpiano,

Gaio e Paulo (GIORDANI, 2000, p.91), criou-se o conceito de Direito Natural

com base nos ensinamentos dos filósofos romanos que adotaram e adpataram

o pensamento dos estóicos gregos.

Alguns doutrinadores pátrios como Moreira Alves, Silvio Meira e

Curtis Giordani, não influenciados pela corrente anti-romana em voga, afirmam

que a moral e o pensamento estóico durante o Principado (27.a.C/284 d.C. -

final da República até o Dominato), influenciaram, de modo significativo, o

Direito Romano da era clássica, principalmente no tocante à ideia do Jus

Naturale (Direito Natural).

Essa influência parece algo que todos conhecem, mas que

ninguém mais lembra onde está, e fala-se dela como algo fabuloso e mítico,

que todos admiram, mas que ninguém vê.

Já é tempo de, mais uma vez, desvelar a visão de mundo dos

estóicos romanos da era clássica6 e deixar claro até que ponto os filósofos

gregos influenciaram seus pares romanos e até que ponto estes influenciaram

os príncipes e os jurisconsultos e, por consequência, contribuíram para que o

contexto legal sofresse alterações.

Vale lembrar, no entanto, que aquilo a que chamamos de moral

estóica surgiu muito antes do Principado Romano, na Grécia, no século IV a.

C., com Zenão de Cício, Cleantes e Crísipo, influenciando fortemente o mundo

romano da era clássica.

5 Augusto (do latim augustus),que inspira veneração. 6 O estocismo da era clássica é a terceira última escola do estoicismo antigo.

16

Podemos citar Cícero (n. 106 a.C., m. 43 a.C.), Séneca (n. 2 d.C.,

m.66 d.C.), Epiteto ( n. 50 d.C., m. 130 d.C. ) e o Imperador Marco Aurélio (n.

121 d.C., m. 181 d.C. – reinou de 161 a 180 d. C.), entre os célebres romanos

fortemente influenciados pelos estóicos. Marco Aurélio enrijeceu a nova moral

pagã, acrescentando a ela seu próprio ódio ao prazer (ARIÈS, 2000, p. 215-

274).

Pode-se dizer que o estoicismo influenciou o Direito Clássico na

mesma medida em que a patrística influiu no Direito Pós-clássico.

Estudar a influência do estoicismo no conceito do Direito Natural

no período clássico, para melhor entendê-lo na atualidade, é o principal motivo

da escolha do tema em questão. Afinal, nos primeiros séculos da nossa era, o

estoicismo mudou o poder imperial, criando uma inevitável integração, ao

mesmo tempo em que gerava concorrência, entre o pensamento filosófico e os

princípios do direito.

O que se pretende com este estudo, é demonstrar como - no

Período Clássico - o pensamento estóico afetou o poder imperial e como essa

influência transformou o Direito e possibilitou a formulação do Direito Natural.

O objetivo desta pesquisa é analisar filosoficamente a origem da

concepção de Jus Naturale por meio de textos filosóficos de Cícero, Sêneca,

Epiteto e Marco Aurélio e textos jurídicos de Ulpiano. Outra meta aqui buscada

é a identificação do estoicismo com a naturalis ratio dos antigos, os direitos que

compunham o Direito Natural e a sua relação com a moral e com a religião.

O estoicismo demonstra como os conceitos de liberdade e justiça

são universais e devem estar em harmonia com a natureza. De acordo com as

leis naturais, tais conceitos chegam a ser confundidos com justiça divina, pois

são atemporais e existem desde sempre, dando a impressão de que foram

criados antes da criação do mundo. Este trabalho contribui originalmente com

a ciência jurídica brasileira, pois, ao buscar as raízes estóicas do Direito

Natural entre os romanos, critica a sociedade moderna positivista, que se

distanciou do objetivo primeiro do Direito, que é a busca pela justiça.

Esta pesquisa considera-se mais que uma retrospectiva científica,

ou um inventário do patrimônio jurídico antigo, ao procurar fazer um balanço

atual das instituições e das técnicas que nos foram legadas e que, em alguns

casos, foram relegadas a segundo plano.

17

“Alguns jurisconsultos modernos creem que essa herança é muito

pesada e gostariam de se livrar de seu jugo. Até hoje é – e ainda por muito tempo será – impossível de se libertar” (IMBERT, 1976, p. 6 - grifos nossos).

Procura-se aqui encontrar a resposta mais abrangente à questão

proposta pelo tema e, tanto a história do Principado, quanto a do Estoicismo,

terão uma abordagem apriorística e dogmática, com objetivos pré-escolhidos e

analisados pela ratio naturalis (razão natural). Essa análise realiza-se,

sobretudo, apoiada na crença de forças transcendentes, afinal o conhecimento

é algo humano e, como tal, não pode escapar do conjunto de crenças e valores

que estão na base de quem faz ciência ou filosofia.

18

1. HISTÓRIA DE ROMA: DA TRADIÇÃO NACIONAL REPUBLICANA AO UNIVERSALISMO ESTÓICO DA MONARQUIA

1.1. A República Romana e sua tradicionalista visão de mundo

A história da República Romana é longa, pois tal instituição teve

quase cinco séculos de existência (509 a.C até 27 a.C) e, mesmo depois de 27

a.C, momento em que o governo romano, de fato, passou a ser monárquico, de

direito, a República ainda seguiu existindo.

Entretanto, de uma maneira sintética, como nota introdutória,

podemos brevemente resumir esses séculos como: um interregno entre dois

tipos de monarquia - a Realeza e o Principado - nos quais a plebe e os

patrícios viveram em ininterrupta tensão. Plebe era uma turba não organizada que formava, em Roma, um mundo a parte. Eles habitavam o solo romano, sem integrarem a cidade. Tinham domicílio, mas não tinham pátria. A princípio, os plebeus não possuíam direitos políticos nem civis (ALVES,2007, p. 10).

O patriciado era formado por membros das gentes romanas que eram um agrupamento de famílias situado num território tendo um chefe (pater, de pai em latim, daí patrícios). Os membros das gentes eram chamados gentiles, tinham instituições e costumes próprios e julgavam descender de um antepassado, lendário e imemorial, do qual recebiam o nome gentilício, que, portanto era comum a todos os gentiles. Na realeza, somente os patrícios gozavam de todos os direitos civis e políticos (ALVES, 2007, p. 09).

Como o foco desta obra é o período da Monarquia Clássica, o

Principado, inicia-se explicando o que foi a República, como surgiu e de que

modo ensejou uma nova monarquia.

Para que se entenda a Roma Imperial e o governo do Príncipe,

mister se faz que se retroceda à história da República Romana, em particular

de suas últimas décadas, e se analisem os fatos que precipitaram o colapso

dessa instituição que então já era quase quinquecentenária, pois fora

proclamada por ocasião da deposição do último rei de Roma Tarquínio, o

Soberbo, que era de uma dinastia etrusca.

19

1.1.1. O fim da realeza até a crise republicana do século II a.C.

“Em 509 a.C., um grupo de aristocratas expulsou Tarquínio e pôs

fim à monarquia. Em seu lugar, instituiu uma magistratura7 colegiada, na qual

dois homens8 compartilhavam o poder supremo” (CORNELL; MATTHEWS,

2005, p.22).

Roma teve os etruscos expulsos graças a uma aliança entre

gregos, das colônias da Magna Grécia (Hespéria era o nome grego para as

terras do oeste em particular a península itálica), e latinos. Tal movimento

viabilizou a queda do último rei e a retirada do poderio estrangeiro.

Desta aliança resultou a derrota dos etruscos em Arícia, fato

explorado pela aristocracia romana, que teria liderado, então, um movimento

de libertação (GIORDANI, 2002, p 32). A partir disso, o poder romano

expandiu-se além da cidade, com a conquista do Lácio e se estendeu pela

península itálica.

Durante o período da primeira expansão no centro da Itália,

formou-se, na sociedade romana, uma classe de pequenos proprietários que,

ao longo de várias décadas, proporcionou uma base muito homogênea ao

exército e ao Estado (BOVO, 2006a, p. 36).

A história de Roma durante os dois primeiros séculos da

República é dominada pelo conflito entre patrícios e plebeus (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p.25). “Essa distinção de classes vinha da religião”

(COULANGES, 2003, p. 222). “A plebe era formada por todos os que, ou por

serem estrangeiros, ou por serem de famílias sem culto doméstico, ficavam à

margem de um ordenamento jurídico baseado na religião dos lares ou

antepassados” (DE CICCO, 2012, p.55). “Como não possuía as crenças sobre

as quais estava embasado, esse direito lhe parecia não ter fundamento.

Achava-o injusto e, desde então, tornou-se impossível que permanecesse em

7 Magistratura - Dignidade, função do magistrado (do latim magistratus, derivado de magister

"mestre"), que era investido de autoridade por exercer cargo público de poder (LELLO, 1954, p. 134). Os magistrados foram chamados pretores (prætores) em tempo de guerra (præ-itor, aquele que vai à frente e guia o exército) e juízes (iudices) em tempo de paz (CANFORA, 2002, p.484). As características fundamentais das magistraturas republicanas são: a temporariedade, a colegialidade, gratuidade e a irresponsabilidade (ALVES, 2007, p. 09).

8 Lúcio Júnio Bruto e Lúcio Tarquínio Colatino (CANFORA, 2002, p. 484).

20

pé” (COULANGES, 2003, p. 282). “Proclamada a República, o elemento plebeu

foi conquistando vantagens e prerrogativas” (LOBO, 2006, p. 32).

Nas Institutas do jurisconsulto Gaio, temos a seguinte definição:

“Plebe, entretanto, difere do povo, porque a denominação povo abrange todos

os cidadãos, incluídos também os patrícios, ao passo que a denominação

plebe significa os demais cidadãos, com exclusão dos patrícios. (Gai. 1.2,3)”

(GAIUS, 2004, p. 37).

O fato é que, desde a vitória e expulsão dos etruscos e a

deposição do rei Tarquínio, o Soberbo, Roma nunca mais fora uma monarquia

e, mesmo com as tensões entre a plebe e a aristocracia, a República

estabeleceu-se e prosperou.

Foi durante a Roma republicana que toda península itálica foi

conquistada e a hegemonia romana no mediterrâneo se firmou com a

destruição de Cartago e conquista da Grécia.

Em pouco tempo, a República tinha deixado de ser um pequeno

Estado para se transformar em uma potência mediterrânea e não conseguiu

solucionar a crescente desigualdade social produzida por essas conquistas

(LIBERATI, 2005, p.30).

Foi assim que surgiram os primeiros conflitos civis que ganharam

corpo, desestabilizando a ordem social e paulatinamente estabelecendo as

bases para uma inevitável e profunda transformação institucional.

Em 493 a.C., a plebe amotinada abandonou Roma, indo estabelecer-se no Monte Sagrado, tencionando vencer os nobres pela omissão. O cônsul9 Menêncio Agripa convenceu a plebe a regressar; e o Senado10

9 Cônsul - em Roma era o magistrado supremo. Tal magistratura foi estabelecida em 509 a.C

por proposta de Lúcio Júnio Bruto (que foi o primeiro cônsul juntamente com Lúcio Tarquínio Colatino). O consulado era uma diarquia sempre exercido por dois cônsules, justamente por ter sido uma reação à monarquia (CANFORA, 2002, p. 484).

10 Senado (do latim senatus, de senior: mais antigo, mais velho, ancião) - durante a realeza era

o conselho do rei composto pelos chefes das famílias mais importantes. A partir de 509 a.C, com a implantação da república, aumenta a importância do Senado. No começo, eram escolhidos pelos reis e, com o advento da república, pelos cônsules e, mais tarde, pelos censores que eram os mais altos dos magistrados (CANFORA, 2002, p. 492). Na república, o Senado se torna o verdadeiro centro do governo (ALVES,2007, p. 18). Os componentes do segundo triunvirato usurparam dos censores essa faculdade (ALVES, 2007, p. 19). Durante o principado, o Senado manteve-se, aparentemente, em posição de destaque. Na realidade, porém, sua atividade foi inspirada e orientada pelo príncipe (ALVES,2007, p. 34).

21

concedeu-lhe um tribuno ou juiz especial: o tribuno da plebe11. [...] Havia então como que duas cidades: a dos patrícios, com os cônsules e o Senado; e a dos plebeus, com o tribuno da plebe e os plebiscitos (DE CICCO, 2012, p.56).

Seguiu-se a luta da plebe para a obtenção de leis escritas, o que

acabaria com a incerteza do Direito e daria mais segurança aos plebeus. O

resultado desse movimento foi a Lei das XII Tábuas, elaborada em 450-449

a.C (ALVES, 2007, p. 16). A Lei das XII Tábuas, primeiro monumento

positivado do Direito Romano, foi oriunda de uma revolução plebeia e, portanto,

consequência de uma reação contra a ordem das coisas até então dominante.

Essa codificação do direito representou uma ruptura com o passado desligando

o direito da religião.

A natureza da lei e seu fundamento não são os mesmos que do

período anterior. Antes, a lei era um decreto da religião; passava por uma

revelação feita pelos deuses aos ancestrais, aos magistrados-sacerdotes.

(COULANGES, 2003, p. 283).

Temos textualmente, na primeira estrofe da Tábua Décima

Primeira, o seguinte fragmento: “Que a última vontade do povo tenha força de

lei” (VIEIRA, 1994, p. 146).

Em 451 a.C., os patrícios entregaram a dez homens (decênviros)

o encargo de fazer leis de equiparação entre patrícios e plebeus (DE CICCO,

2010, p.56). Os decênviros de Roma receberam o poder do povo

(COULLANGES, 2003, p. 283). A igualdade civil foi alcançada pela Lei das XII

tábuas (DE CICCO, 2012, p.56).

A igualdade civil abriu campo para outras reformas estruturais:

em 367 a.C., Licínio Stolon propôs que um cônsul fosse plebeu, e, em 337 a.C,

abriu-se para a plebe a porta de bronze do Senado (DE CICCO, 2012, p.57).

11 Tribuno da Plebe - os tribunos são representantes (chefes) das tribus. O tribunato da plebe

foi criado, segundo a tradição em 493/494 a.C, quando se verificou a primeira secessão da plebe. Na origem, eram em número de cinco, depois dez em (já em 449 a.C); não eram magistrados porque não podiam consultar os auspícios (CANFORA, 2002, p. 493). Entre as atribuições do tribuno estava a cobrança de tributos a que estavam submetidas as tribos romanas. A tribo (do latim tribus) é um aglomerado de famílias sob a autoridade de um chefe que viviam na mesma região e provêm de um tronco ancestral comum, originalmente eram três, chegando a trinta e cinco (LELLO, 1954, p.1.069). O povo romano dividia-se em tribos (chefiadas por um tribuno) e cúrias (chefiadas por um curião). Cada tribo compunha-se de dez cúrias (divisões locais constituídas de certo número de gentes qua aí tinham domicílio)(ALVES,2007, p. 09).

22

Por volta do século II a.C., o Direito de voto estava tão

solidamente implantado entre os plebeus que Roma tinha um vigoroso sistema

político (REID, 2004, p.24).

Ocorre, no entanto, que a organização política e militar do Estado

Romano foi vítima do próprio sucesso, pois a nova prosperidade e poder

geraram cisões e lutas internas introduzindo o caos, que culminou com o

advento do Principado.

A aristocracia concentrava a riqueza, que era compartilhada por

uma minoria. A maior parte das terras produtivas da península itálica era

propriedade de algumas poucas famílias de nobres.

Tibério Graco, eleito tribuno da plebe, procurou ajudar os homens

livres. Ressuscitou duas antigas leis que limitavam a quantidade de terra que

poderia estar sob a posse de um único dono (VAN LOON, 2004, p.111).

Valendo-se da imunidade de tribuno da plebe, Tibério Graco propôs a divisão

de terras dos ricos a partir de quinhentas jeiras12, e o controle dos lotes pelo

Estado (DE CICCO, 2012, p.55).

“A situação ameaçava acabar em completa anarquia, na

dissolução interna e externa do Estado. O movimento político inclinava para o

despotismo: o único ponto ainda duvidoso era saber quem seria o déspota”

(MOMMSEN, 1962, p. 204).

No ano de 133 a.C., o tribuno da plebe Tibério Graco foi

assassinado, junto a muitos de seus seguidores, após uma violenta reação do

Senado (LIBERATI, 2005, p.30). Essa imolação, que se deu em pleno Fórum,

foi o estopim definitivo para uma crise social sem precedentes.

Contornar tal crise tornou-se uma tarefa ingente, pois, devido à

grandeza que o Estado Romano alcançara com as conquistas de outros povos,

havia sempre preocupações vindas de suas colônias e nações subjugadas

distraindo a atenção do Senado e impedindo uma solução rápida àquele estado

de insatisfação que só aumentava e se arrastou desde então por décadas.

12 Jeira, unidade de medida romana, cada jeira equivaleria a cerca de 2.500 m2 (VARRO, texto

digital).

23

1.1.2 - A ditadura de Sila

As tensões entre a plebe e a aristocracia cresceram, acentuando

a sensação geral de ressentimento mútuo.

A morte de Tibério Graco, ao invés sepultar a liderança deste,

teve o efeito contrário, pois, em menos de uma década, o seu irmão mais

jovem, Caio Graco, continuou, com novo ânimo, a luta pelos desafortunados.

Eleito tribuno para o ano de 123 a.C., Caio fez passar uma lei que

determinava a distribuição mensal de trigo ao povo da cidade, pela metade do

preço do mercado (BURNS, 1959, p. 223).

No segundo ano do seu mandato, Caio Graco (que fora eleito

tribuno em 123 a.C e reeleito sem oposição) tentou, entre outras iniciativas,

estender a cidadania romana, a princípio, aos latinos e, mais tarde, a todos os

habitantes da península itálica (JAGUARIBE, 2001, p. 375).

Tal ideia, mesmo não tendo sido aprovada pelo Senado,

evidentemente agradou a plebe, mas gerou uma reação de seus opositores da

aristocracia, que organizaram um massacre contra três mil seguidores do

Graco menor.

O morticínio legalmente sancionado foi praticado pelo cônsul

Opímio, com base num Senatus Consultum13 Ultimum14 do Senado

(JAGUARIBE, 2001, p. 375).

Os conflitos estenderam-se e as tentativas de apaziguamento

tornaram-se infrutíferas. O caos fora instalado e não se vislumbrava uma

solução apropriada. Seguiram-se anos agitados por distúrbios sociopolíticos,

não obstante a crescente riqueza e o desenvolvimento cultural e artístico. Na

aurora do primeiro século a.C, a situação político social seguia precária.

13 Senatos-consultos: senatus consultum est quod senatus jubet atque constituit (senato-

consulto é aquilo que o senado manda e constitui...) (Gai. 1.2,4) (GAIUS, 2004, p. 38). Eram as decisões, resoluções e acordos do Senado romano que regulavam assuntos de direito público (ROLIM, 2000, p. 62). Na república, os senatos-consultos eram deliberações do Senado, dirigidas somente aos magistrados (MARKY, 1995, p. 18).

14 SENATVSCONSVLTVM VLTIMVM: Trata-se de uma medida com a qual o Senado

reconhecia uma situação de maior gravidade na política interna do Estado e decidia confiar aos cônsules a defesa dele, concedendo-lhes o direito de eliminar quem quer que fosse causa da perturbação da ordem (CANFORA, 2002, p.493).

24

Roma ia atravessar uma das mais terríveis crises da sua História:

a revolta dos povos da península itálica, decepcionados com o assassinato do

tribuno Drusso (91 a.C.), que lhes havia prometido o direito de cidadania

(GIORDANI, 2002, p. 53).

O ressentimento contínuo dos habitantes da Itália, devido à sua

situação de cidadãos de segunda classe, finalmente assumiu grande

magnitude e caráter explosivo com a chamada Guerra Social (91-88 a.C.)

(JAGUARIBE, 2001, p. 376).

Observa-se que essa revolta é muito mais uma guerra de

secessão, isto é, uma luta pela separação e independência do domínio de

Roma, do que propriamente uma coligação para vencer e eliminar a capital do

Lácio. (GIORDANI, 2002, p 54).

Essa crise na península itálica ainda não fora resolvida quando

uma assustadora ameaça externa apontou no horizonte. O poderoso rei do

Ponto, Mitrídates VI, durante muito tempo já vinha espantando os romanos com

a fabulosa ascensão de seu reino, e os ventos que sopraram do oeste traziam

a certeza de dias nefastos.

Mitrídates, rei de um país localizado à beira do mar Negro e grego

por parte de mãe, tinha a possibilidade de fundar um segundo império

alexandrino (VAN LOON, 2004, p.111).

“Em contrapartida, Roma, atormentada por suas dissensões civis

e atarefada com males mais prementes, negligenciou as questões da Ásia e

deixou Mitrídates dar continuidade a suas vitórias ou respirar depois das suas

derrotas” (MONTESQUIEU, 2002, p.59).

Mitrídates começou uma campanha pela dominação do mundo

com o assassínio de todos os cidadãos romanos - homens, mulheres e

crianças - que se encontravam na Ásia Menor (VAN LOON, 2004, p.112). Isso

se deu em 88 a.C, com Roma ainda enfraquecida pela guerra social que se

seguira à morte de Drusso.

O Senado teve que tomar uma atitude quando o perigo se tornou

evidente demais, já que o rei do Ponto atacara civis romanos. A única resposta

possível era a guerra, e um exército foi preparado pelo Senado para marchar

para a Ásia com o intuito de vingar o crime do monarca oriental. A única

incógnita era saber quem comandaria o ataque.

25

Quem seria o comandante-chefe? “Sila”, disse o Senado, “pois é

cônsul”. “Mário”, disse o povo, “pois foi cônsul cinco vezes e é defensor dos

nossos direitos” (VAN LOON, 2004, p.112).

“A tarefa de conduzir o exército romano contra Mitrídates foi

encomendada a um dos cônsules de 88 a.C., Sila. Era um homem pouco

escrupuloso e dissoluto de uma antiga família patrícia” (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 63). Sila encaminhou-se para o Oriente a fim de derrotar Mitrídates, e Mário fugiu para a África. Lá esperou até saber que Sila passara da Europa para a Ásia. Voltou então para a Itália, juntou em torno de si um bando heterogêneo de descontentes, marchou sobre Roma, entrou na cidade com seus bandoleiros profissionais, passou cinco dias e cinco noites chacinando seus inimigos do partido senatorial, fez-se eleger cônsul e logo em seguida morreu, cansado pelos excessos de sua última quinzena de vida (VAN LOON, 2004, p.112).

Mesmo com um exército fabuloso, Sila teve a sabedoria de não

se desgastar num embate com Mitrídates, enquanto Mario avançava e tomava

o poder em Roma, portanto, em 85 a.C, celebrou um generoso tratado de paz

com o rei asiático.

Em 83 a.C., ele regressou à Itália onde se uniu a jovens

oportunistas, como Crasso e Metelo Pio e, em particular, ao jovem Pompeu,

que recrutou três legiões por iniciativa própria (CORNELL; MATTHEWS, 2005,

p. 63).

“Quase sem desejá-lo, Sila tornara-se o general mais famoso de

seu tempo e o escudo da oligarquia. Novas e mais formidáveis crises seguiram

a guerra de Mitrídates e a revolução de Cina: a estrela de Sina continuava a

subir” (MOMMSEN, 1962, p. 204).

Inimigo de Sila, Lúcio Cornélio Cina,

http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_I_a.C.foi cônsul por quatro vezes de 87 a 84

a.C15.

Cina era partidário e aliado de Mario e tornou-se seu sucessor

entre os populares depois da morte deste. Cornélia Cinila, filha de Cina, foi a

segunda esposa de Júlio César, sobrinho da esposa de Mário (LELLO, 1954, p.

556)

15 Devido aos quatro consulados consecutivos Cina foi também chamado tirano (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 63). .

26

A oposição era desorganizada e mal dirigida (Cina foi

assassinado num motim no ano de 84 a.C), e o apoio a Sila cresceu quando

começou a ficar cada vez mais claro que ele iria ganhar (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 63).

Indicado em 82 a.C. para ditador16, por um prazo ilimitado, Sila

tratou de exterminar seus opositores e de restaurar os poderes primitivos do

Senado (BURNS, 1959, p. 224).

Sila criou leis muito apropriadas para eliminar a causa dos

distúrbios que se tinham visto: elas aumentaram a autoridade do Senado,

moderavam o poder do povo e regulamentavam o dos tribunos

(MONTESQUIEU, 2002, p.81). Até o veto senatorial sobre os atos da

assembleia foi restabelecido, ao mesmo tempo em que se restringia fortemente

a autoridade dos tribunos (BURNS, 1959, p. 224).

“Depois de três anos de ditadura, Sila resolveu mudar a pompa

do poder pelos prazeres dos sentidos e se retirou para uma vida de luxo e

despreocupações em sua propriedade da Campânia” (BURNS, 1959, p. 224).

“O capricho que o fez abandonar a ditadura pareceu devolver vida

à República; todavia, na exaltação de seus sucessos, ele fez coisas que

puseram Roma na impossibilidade de conservar sua liberdade”

(MONTESQUIEU, 2002, p.81).

“Governou Roma por quatro anos e depois morreu tranquilo em

sua cama, tendo passado os últimos anos de sua vida plantando pacificamente

os seus repolhos” (VAN LOON, 2004, p.112).

A ditadura de Sila fez Roma experimentar o governo despótico, e

sua morte incentivou jovens ambiciosos aventureiros a almejar seu posto e

acalentar a esperança de se tornarem monarcas. Os dias da República

16Ditador: do latim dictador - o que dita a lei, era na república romana um magistrado extraordinário, detentor de plenos poderes, exercendo autoridade absoluta (imperium) durante no máximo seis meses. Tal cargo era preenchido somente em condições excepcionais durante graves crises políticas, militares ou econômicas. Era escolhido por um dos cônsules em exercício durante a noite e, em seguida, aprovado pelo senado, que emitia um senatus consultum para autorizar a nomeação. Tal título, instituído em 501 a.C., era originalmente magister populi - senhor do povo. Acima da hierarquia da política republicana, o ditador, isento de responsabilidade, fazia tudo quanto julgasse contribuir para o bem político. Não era um cargo colegiado, dado ser único e, portanto, sem colega (LELLO, 1954, p. 556).

27

Romana estavam contados e o caminho para o que viria a ser o Principado já

estava aberto e pavimentado.

1.1.3 - O Primeiro Triunvirato: Pompeu, Crasso e César

O vácuo de poder gerado com a morte de Sila e o fim de sua

ditadura permitiram que seus partidários mais jovens tomassem posições

vantajosas no jogo político da República decadente. Esses novos líderes

abraçaram a causa do povo, aproveitando, oportunamente, o abandono das

reformas implantadas pelo falecido ditador.

“Roma tornara-se um lugar perigoso - à intriga política e

corrupção somaram-se assassinatos e a fúria do povo. Começou-se a temer o

surgimento de um ditador, embora não se soubesse de onde ele viria”

(ROBERTS, 2001, p. 222).

Muitos eram aqueles que se projetaram no novo cenário do jogo

pelo poder. Entre eles estavam Marco Lépido, Quinto Sertório, Metelo Pio,

Catilina e os que mais se destacaram Crasso, que era o homem mais rico de

Roma, Pompeu e Júlio César, o mais jovem dentre eles e o que superou a

todos. “Devendo a República necessariamente perecer, a questão já não

era senão saber como e por quem ela seria abatida” (MONTESQUIEU, 2002,

p.81). Crasso, Pompeu e Júlio César foram aqueles que, por virtudes diversas,

tiveram maior sucesso nessa empreitada. Por um tempo, uniram forças,

somando seus recursos e habilidades, estabelecendo alianças, mas essas

alianças foram desgastadas pela ambição individual de cada um deles, fazendo

com que se tornassem rivais. Pompeu foi o primeiro a aparecer e César o seguiu de perto

(MONTESQUIEU, 2002, p.81). Como Pompeu, que era um pouco mais jovem

que ele, Crasso pertencia ao sol da alta aristocracia: havia recebido a

educação média desse tempo e também servira com distinção sob Sila na

guerra da Itália (MOMMSEN, 1962, p. 212). Crasso foi um indivíduo tão rico e

tão encantado com a ostentação de riqueza que seu nome próprio passou a

fazer parte das línguas modernas como adjetivo (REID, 2004, p. 25). Não era

28

escrupuloso na maneira de obter lucros. Fora o homem mais rico dos romanos

e, por isso, tornara-se uma potência política (MOMMSEN, 1962, p. 212). Uma coisa é certa que tinham em comum: os três eram igual e

absolutamente ambiciosos. Trabalharam sinergeticamente por certo tempo

para conseguir controlar o governo, mas concorriam na busca do apoio da

plebe, fazendo promessas extravagantes na tentativa de aniquilarem-se

reciprocamente.

Os vinte anos seguintes (79-59 a.C.) representaram, na história

da República Romana, a última fase de crise antes do surgimento de César

(JAGUARIBE, 2001, p. 380).

1.1.3.1 Pompeu e Crasso chegam ao consulado

Pompeu e Crasso, que eram mais velhos, mais ricos e influentes

que César, oportunamente aproveitavam graves distúrbios para se projetarem.

Naqueles anos, duas graves tentativas de rebelião permitiram que ambos

tivessem sucessos militares e, juntos, fossem eleitos cônsules.

A primeira aconteceu na Espanha, onde os lusitanos se

revoltaram encabeçados por Quinto Sertório (BOVO, 2006b, p. 13). Pompeu,

rico, ambicioso, talentoso, corajoso, mas também inescrupuloso, obtém um

comando na Espanha onde Sertório, antigo partidário de Mário, sustenta uma

revolta contra Roma (GIORDANI, 2002, p. 54). Pompeu aproveitou as

desavenças surgidas entre os rebeldes e se viu favorecido pelo assassinato de

Sertório às mãos de Perpena, outro chefe dos rebeldes (BOVO, 2006b, p. 13).

Então, Pompeu concluiu a guerra com rapidez e regressou com suas tropas

para a Itália (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 66).

A segunda rebelião (guerra servil) foi encabeçada por um grupo

de escravos que treinavam na escola de gladiadores de Cápua, aos quais em

pouco tempo se uniram milhares de escravos fugitivos (BOVO, 2006b, p. 13).

Um gladiador trácio, Espártaco, de grande capacidade de luta e liderança, fomentou uma rebelião bem sucedida na escola de gladiadores de Cápua, reunindo, com escravos e fugitivos, um exército

29

que chegou a ter noventa mil homens, com o qual assolou a Itália meridional, derrotando várias legiões e abrindo caminho para a Gália Cisalpina, onde esperava dispersar seus seguidores, que, no entanto, preferiram continuar saqueando a Itália. Espártaco forçou seu caminho de volta para o Sul, planejando invadir a Sicília. (JAGUARIBE, 2001, p. 380).

Os revoltosos, guiados por Espártaco, durante mais de dois anos,

venceram os exércitos romanos e saquearam a Itália, até que o comando das

operações recaiu em Crasso (BOVO, 2006b, p. 14).

Crasso foi limitando o campo de ação dos rebeldes e conseguiu

derrotá-los em Apúlia (BOVO, 2006b, p. 14). No ano de 71 a.C., Crasso,

comandando um grande exército de dez legiões, derrotou Espártaco duas

vezes, deixando que Pompeu, que retornava da Espanha, aniquilasse os

remanescentes da sua força (JAGUARIBE, 2001, p. 380). Os remanescentes

dos revoltosos tentaram alcançar os Alpes a fim de fugir das legiões, mas

tiveram a pouca sorte de encontrar o exército de Pompeu que regressava da

Espanha (GIORDANI, 2002, p. 55).

Espártaco foi morto na batalha e aproximadamente 6.000 dos

seus companheiros foram crucificados ao longo da via Apia (BOVO, 2006b, p.

14), por uma extensão de cerca de 150 quilômetros (REID, 2004, p. 25).

O bando de rebeldes foi exterminado e o vaidoso Pompeu

aproveitou a oportunidade para diminuir o mérito da vitória de Crasso, seu rival,

atribuindo a si a aniquilação definitiva da perigosa revolta (GIORDANI, 2002, p.

55).

“A República foi capaz, internamente, de superar a mais séria das

suas rebeliões de escravos, conhecida como terceira Guerra dos Escravos”

(JAGUARIBE, 2001, p. 380). Crasso celebrou a vitória, instalando 10 mil mesas

de banquete no Foro, nas quais os cidadãos de Roma puderam comer de

graça durante dias (REID, 2004, p. 25). Os dois chefes vitoriosos, Pompeu e Crasso, compreenderam,

entretanto, que não lhes convinha a luta: fizeram um pacto, segundo o qual

ambos seriam cônsules (70 a.C.) (GIORDANI, 2002, p. 55).

30

1.1.3.2 O Apogeu de Pompeu

Pompeu tornou-se a figura mais destacada da República. Sua

aliança com Crasso para compartilhar o consulado fez de sua eleição um mero

trâmite (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 66).

Após a derrota de Espártaco, o problema da pirataria tornou-se

mais agudo; os piratas levaram a cabo uma série de ataques na costa Italiana,

saqueando vilas e sequestrando viajantes na Via Apia (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 68).

Findo o consulado, Pompeu recebeu a missão de combater os

piratas que constituíam uma verdadeira potência com suas muitas centenas de

navios de guerra, inúmeras bases de operações e arsenais (GIORDANI, 2002,

p. 55). Quando o fornecimento de trigo à cidade começou a escassear, a

opinião pública solicitou que se tomassem medidas17; em consequência, em 67

a.C., deu-se a Pompeu um comando especial sobre os piratas (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 68).

Em poucos meses, Pompeu extirpou a pirataria do Mediterrâneo

e aniquilou esses bandidos que impediam o livre comércio e ameaçavam a

prosperidade de Roma. O sucesso de Pompeu contra esses ladrões do mar,

somado com a bem-sucedida campanha na Espanha contra Sertório e sua

vitória nos Alpes contra os seguidores de Espártaco fez sua popularidade subir.

O povo comparava-o a Alexander Magno e passou a vê-lo como o paladino

infalível que defenderia a pátria de qualquer perigo. Portanto, quando o

inoportuno Mitrídates voltou a incomodar assolando a paz na República,

naturalmente Pompeu fora o escolhido para lutar.

17 É dessa ocasião a imortal frase atribuída a Pompeu: “Navegar é preciso, viver não é preciso”

(NAVIGARE NECESSE EST, VIVERE NON EST NECESSE). Sua origem está em A Vida de Pompeu (50,2), de Plutarco. Pompeu, que precisava levar a Roma o trigo colhido nas províncias, exorta a zarpar num momento de tormenta e vento impetuoso, em que os marinheiros hesitam. Essa sentença, portanto, já em Plutarco, não equivale a uma simples declaração de amor pela navegação, mas uma exortação à coragem e a abnegação pela pátria (TOSI, 2000, p. 558).

31

Com isso, Pompeu põe-se em marcha para o Oriente, como

outrora fizera Sila, na esperança de novas vitórias e, provavelmente,

vislumbrando a ditadura.

Mitrídates, que fora, por muito tempo, para Roma, a principal

ameaça estrangeira, é sumariamente derrotado por Pompeu, que o expulsou

do Ponto, ocasião em que o célebre monarca, que fugira para a Crimeia,

suicidou-se por envenenamento.

As campanhas orientais do general romano foram um total êxito,

entretanto o mantiveram afastado de Roma por longos anos, pois, tendo

vencido no Ponto, Pompeu seguiu em novos embates por todo oriente próximo.

Pompeu restabeleceu a autoridade de Roma sobre a Síria,

destruiu Jerusalém, vagou pela Ásia ocidental procurando revidar o mito de

Alexandre Magno e, por fim (no ano 62 a.C), voltou a Roma (VAN LOON, 2004,

p.112). Pompeu permaneceu no Oriente por mais de quatro anos. Nesse tempo, levou a cabo um curto empreendimento bélico contra Mitrídates; conquistou toda a Anatólia e avançou pelo sul até Jerusalém, conquistando-a no ano de 63 a.C. Anexou a Síria, ampliou a fronteira da Cilícia, uniu o Ponto e a Bitínia e rodeou as novas províncias de um escudo protetor constituído por reinos vassalos tributários de Roma (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 68).

“Em 61 a.C, Pompeu celebra, em Roma, um triunfo18 sobre o

mundo inteiro (de orbe terrarum), pois, no dizer de Cícero, ele estendeu o

império de Roma até os limites do mundo (orbis terrarum terminis)”

(GIORDANI, 2002, p. 55). No final da campanha, Pompeu tinha conseguido

aumentar as rendas públicas em 70%. Apoderou-se de um valioso butim

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 68). Ele trouxera doze navios cheios de

reis, príncipes e generais derrotados, todos obrigados a marchar na procissão

triunfal desse popularíssimo romano que presenteou sua cidade com uma

vultosa soma em espólios de guerra (VAN LOON, 2004, p.112). As campanhas 18 Triunfo (TRIVNPHVS): Entrada solene do general vencedor na cidade, com as maiores

glórias militares. Podiam aspirar ao triunfo apenas os ditadores, os cônsules, os pretores e, de maneira excepcional os legados, com a condição de terem dado cabo de 5.000 inimigos. O triunfo era autorizado pelo Senado; estabelecia-se que as ruas e os edifícios estivessem ornamentados com a maior pompa. Por ocasião do triunfo o general homenageado mantinha em caráter extraordinário o comando de exército. Reunia as tropas no Campo de Marte e era recebido na porta triunfal por todo o Senado, pelos magistrados e pelos cidadãos mais importantes; a seguir, desfilava em carro puxado por quatro cavalos, precedido por litores, tendo a seu lado um escravo que lhe mantinha sobre a cabeça uma coroa e lhe recordava que era um mortal. O cortejo triunfal subia até o templo de Júpiter Capitolino (CANFORA, 2002, p.494).

32

rendem 56 milhões de denários ao fisco e 110 milhões a seu bolso, aos

soldados e a seus amigos (BERNET, 2003, p. 59).

No entanto, enquanto Pompeu estivera fora da cidade, Crasso

teve mais liberdade para articular politicamente com o apoio do jovem Júlio

César, que aproveitou essa oportunidade para preparar estratégias para a sua

futura ascensão ao poder.

1.1.3.3 A ascensão de Júlio César e o Triunvirato

Na obra de Montesquieu Considerações sobre as causas da

grandeza dos Romanos e de sua decadência, quando o autor compara

Pompeu e César, afirma que ambos são igualmente ambiciosos e acrescenta

que: “[...] exceto pelo fato de que um não sabia chegar a seus objetivos tão

diretamente quanto o outro, ofuscaram, por seu mérito, suas façanhas e suas

virtudes, todos os outros cidadãos” (MONTESQUIEU, 2002, p.81).

Definitivamente, é impossível discordar do autor, pois Júlio César, jovem e sem

recursos financeiros, em pouco tempo irá dividir o poder com Pompeu e

Crasso, pois soube aproveitar a ausência do primeiro para influenciar o

segundo.

O apogeu da carreira de Pompeu coincide com o aparecimento

de César no primeiro plano do cenário político (GIORDANI, 2002, p. 56). Ele

viria a se tornar um dos mais ilustres homens de guerra da antiguidade, sempre

confiante na sua própria fortuna, pois pretendia ser descendente da deusa

Vênus19, por Enéas o herói troiano, e, do deus Marte20, por Rômulo co-

fundador e primeiro rei de Roma, (LELLO, p. 525).

19 Júlio César pretendia ser descendente do herói troiano Enéias filho da deusa Vênus. Enéias,

sobrevivente da guerra de Tróia, teria aportado na Itália e seus descendentes fundariam Roma. Tanto Virgílio na Eneida (Æneis), quanto Tito Lívio na História de Roma (Ab Urbe Condita Libri) atestam a origem divina de Enéias. Em Virgílio: “Entretanto o piedoso Enéias [...] avança brandindo na mão duas lanças de largo ferro. Vênus, sua mãe, a ele se apresentou saindo do bosque, [...] (VIRGÍLIO MARÃO, 1994, P. 25); e em Lívio: [...] seu chefe era Enéias, filho de Anquises e de Vênus, que fugiram de sua pátria incendiada e procuravam um local para se estabelecerem e fundar uma cidade [...] (LÍVIO, 1989, v. 1, p. 22).

20 Júlio César igualmente pretendia ser descendente dos primeiros reis de Roma. Rômulo, co-

fundador da cidade e seu primeiro rei, era da linhagem de Enéias por sua mãe, uma virgem sacerdotisa vestal, que teria engravidado do deus Marte. Tanto Virgílio na Eneida (Æneis),

33

A atmosfera política de Roma durante esses anos foi dominada

pela lembrança do ausente Pompeu, pelo temor do que pudesse fazer em seu

regresso e pela memória de Sila (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 68).

Naqueles anos, a carência financeira aumentara e, com ela, o

descontentamento, gerando uma teia de intrigas na qual os concorrentes do

afastado Pompeu ganhavam espaço. Entre os rivais de Pompeu, o mais

importante era evidentemente Crasso, que, secundado por Júlio César,

propunha leis que favoreciam a plebe.

César, que já se caracterizava por seu senso político,

autodomínio, audácia, ambição e inteligência, fizera, até então, uma carreira

política de segundo plano (GIORDANI, 2002, p. 56). Em contrapartida, gozava

de grande prestígio junto às classes militares, por suas notáveis campanhas na

Espanha, onde vencera Viriato, célebre líder dos habitantes de Portucale (DE

CICCO, 2012, p. 59), quando fora questor21 na comitiva do pretor22 Caio

Antístio Véter, em 69 a.C. (CANFORA, 2002, p. 456).

Crasso, apoiado e induzido pelo jovem Júlio César, propôs a

criação de um tribunato que adquirisse terras na Itália e nas províncias para o

assentamento de pobres e de veteranos das campanhas de Pompeu

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 68). Mesmo tal lei não tendo sido

aprovada, cada vez mais César se torna popular e influente, inquietando o

Senado.

As atividades de Crasso e César despertavam profundas

suspeitas nos círculos conservadores; por isso, eram frequentes os rumores de

quanto Tito Lívio na História de Roma (Ab Urbe Condita Libri) atestam a filiação de Rômulo; Em Virgílio: “Lá, durante três vezes cem anos, reinará a raça de Heitor, até que Ília, rainha e sacerdotisa, fecundada por Marte, der à luz os gêmeos. Depois Rômulo, orgulhoso com a fulva pele da loba, sua ama, receberá a nação e construirá os muros de Marte, e dará seu nome aos romanos (VIRGÍLIO MARÃO, 1994, P. 25); e em Lívio: “Vítima de violação a vestal deu à luz dois gêmeos e, fosse por boa-fé, fosse para enobrecer sua falta atribuindo-a a um deus, responsabilizou Marte como autor daquela paternidade suspeita” (LÍVIO, 1989, v. 1, p. 25).

21 QUÆSTOR - durante o período real, os quæstores eram encarregados de algumas causas

criminais. Em 509 a.C, os quæstores tornaram-se magistrados públicos e foram ainda encarregdos da administração do tesouro (CANFORA, 2002, p. 491).

22 PRÆSTOR - nos primeiros tempos da república, o pretor era o cônsul em armas. A partir de

367, ele passou a ser um magistrado encarregado de exercer em Roma exclusivamente a jurisdição civil (prætor urbanus); a esse pretor veio juntar-se, em 241 a.C., o prætor peregrinus, encarregado dos litígios junto aos estrangeiros ou entre estrangeiros e cidadãos (CANFORA, 2002, p. 490).

34

conspirações e ameaças à ordem pública (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p.

68).

César tinha o apoio financeiro de Crasso, que o custeava

saldando suas dívidas na esperança de encontrar nele um aliado forte que

seria agradecido o suficiente para devolver tais favores quando Pompeu

regressasse. César também não perdia tempo. A essa altura, ainda com dinheiro de Crasso, já se fizera eleger edil curul23, uma espécie de “decorador-mor” da Prefeitura. Essa função incluía também a organização de jogos públicos: corridas de cavalos, brigas de gladiadores, lutas com feras. A plebe romana comparecia em peso, entusiasmava-se com os espetáculos. E César dava-lhes circo à vontade, sempre tomando o cuidado de esclarecer que era ele o financiador. Tamanha foi sua generosidade, que em pouco tempo era devedor de uma cifra astronômica. Mas os jogos não absorviam todo o tempo de César. Enquanto Pompeu esteve fora, o “favorito da plebe” e seu financiador Crasso tramaram vários golpes de Estado em diversas alianças com setores radicais (MONDADORI, 1970, p.98).

Em 63 a.C, César é eleito pontífice máximo24 (CANFORA, 2002,

p.456). O cargo não oferecia poder algum, apenas prestígio (MONDADORI,

1970, p.98).

Finalmente, Pompeu volta para Roma. Ao regressar e celebrar

seus triunfos, acreditava ter alcançado uma situação de conforto no jogo

político, tornando-se fácil controlar o Senado, mas se desiludiu, pois, mesmo

tendo trazido enormes riquezas para Roma, uma facção de senadores

conservadores, liderados por Lúculo e Catão, foram reticentes em atender seus

pedidos e de prover terras aos seus soldados veteranos das recentes

campanhas militares.

Esses homens e seus aliados decidiram frustrar os desejos de

Pompeu por longo tempo; ao fazê-lo, provocaram inconscientemente sua

própria ruína e a destruição da República (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p.

69).

23 Os ÆDILES CURALES eram membros do patriciado cujas funções eram exercidas na

vigilância dos mercados, em atividades de política urbana, na cura annonæ (abastecimento da cidade de Roma), na preparação dos jogos, no cuidado dos arquivos (CANFORA, 2002, p.484).

24 Pontífice Maximo (PONTIFEX MAXIMVS) - é o mais alto grau sacerdotal. Representava

todas as divindades reconhecidas pelo Estado, era superior a todos os outros sacerdotes (CANFORA, 2002, p.489).

35

Pompeu, dito Magno, que era comparado a Alexandre Magno,

não se conformou com tamanha afronta e tratou de providenciar apoio para a

sua causa. Deste modo, os senadores inadvertidamente acabaram por

empurrar Pompeu em direção à mais improvável das alianças, ou seja, para

César e Crasso.

César, que também tinha problemas com o Senado, tornara-se

uma figura eminente e popular nos anos em que Pompeu estava na Ásia, e por

ser aliado de Crasso, e patrocinado por este, incluiu-o no pacto que celebrou

com aquele.

A aliança de Pompeu com César é consolidada com o casamento

do primeiro com Julia, filha do segundo, e, mais tarde, reforçada pela inclusão

de Crasso, para formar informalmente o primeiro triunvirato (JAGUARIBE,

2001, p. 382).

A combinação de recursos e da influência dos três homens foi

muito efetiva. César conseguiu a desejada nomeação para cônsul em 59 a.C,

assim como, pela Lei Agrária, a distribuição de terras aos veteranos de

Pompeu (JAGUARIBE, 2001, p. 382).

Ao findar seu consulado, César obtém o governo da Gália

Cisalpina e da Ilíria por cinco anos. (GIORDANI, 2002, p.57). Em 56 a.C.,

César convidou Crasso e Pompeu a se encontrarem em Luca (Gália Cisalpina)

para renovar sua aliança (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 69).

Pompeu e Crasso são eleitos cônsules (55 a.C) e os poderes de

César, na Gália, são prolongados (GIORDANI, 2002, p.57). Depois da morte

súbita de Metelo Celer, que recebera o governo da Gália Transalpina, deu a

César a oportunidade de acrescentar aquela província à sua jurisdição, graças

ao patrocínio de Pompeu no Senado (JAGUARIBE, 2001, p. 382).

Ao deixarem seus cargos, os dois primeiros triúnviros recebem os

governos provinciais da Espanha e da Síria. Crasso parte, então, para o

Oriente; César permanece na Gália e Pompeu faz-se representar na Espanha

(GIORDANI, 2002, p.57).

César era, de longe, o mais hábil dos três. Decidiu que precisava

de um pouco mais de glória militar para se tornar um herói popular (VAN

LOON, 2004, p. 113). “Nesse momento, chegaram notícias alarmantes das

Gálias, onde o líder dos gauleses, Vercingetorix, proclamara-se em rebeldia.

36

Nomeado governador das Gálias pelos senadores, César partiu a fim de

pacificar a região” (DE CICCO, 2012, p. 59). César dedicava seus talentos a

uma série de brilhantes incursões contra os gauleses, adicionando ao Estado

romano os territórios que hoje pertencem à Bélgica e à França (BURNS, 1959,

p. 224).

Plantou, então, uma sólida ponte de madeira sobre o Reno e

invadiu as terras dos selvagens Teutões. Por fim, construiu uma frota e chegou

à hoje denominada Grã-Bretanha (VAN LOON, 2004, p. 113).

Após uma árdua campanha, em que mostrou seu admirável

senso militar, César subjugou os revoltosos e escreveu De Bello Gallico,

comentário das guerras que manteve contra os gauleses (DE CICCO, 2012, p.

59). César era tão competente no manejo das palavras quanto no comando

das legiões, transformou em uma arte a composição de seus despachos

militares (REID, 2004, p. 28).

Entretanto, alguns acontecimentos vêm pôr fim ao triunvirato

(GIORDANI, 2002, p.57). A renovada aliança logo começa a dar sinais de

fraqueza (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 69). A morte de Júlia, filha de

César e esposa de Pompeu, contribui para o arrefecimento das relações entre

os dois políticos (GIORDANI, 2002, p.57).

Um ano depois, o triunvirato deixou de existir pela derrota e morte

de Crasso na batalha de Carras, que pôs um ponto final à sua temerária

tentativa de invadir o império parto (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 69). A

morte de Crasso em mãos dos partos, na batalha de Carras, agudizou a

rivalidade entre César e Pompeu (BOVO, 2006b, p. 14).

Graças ao erro de Crasso, que, mal calculando, esperava a glória

suprema na tentativa de subjugar uma potência rival, o triunvirato desapareceu,

deixando o caminho livre para Pompeu e César, que aspiravam à ditadura, ou,

como se percebeu mais tarde, à realeza.

37

1.1.4 - A Ditadura de César ou o Crepúsculo da Tradição Com o fim do primeiro triunvirato, a estrela de César aumenta seu

brilho ao ponto de ele chegar, depois de derrotar Pompeu, ao poder isolado, à

ditadura perpétua. Sua ascensão, suas aspirações monárquicas, seu romance

com Cleópatra VII farani do Egito, sua popularidade com a plebe e a maneira

como morreu foram, como se procura demonstrar a seguir, a pá de cal que

sepultou a República Romana. Poucos homens viram a flexibilidade de caráter submetida a maiores provas do que César, o único gênio criador que Roma produziu, o último que apareceu no mundo antigo e que, naturalmente, trilhou o sulco por ele mesmo aberto até desaparecer seu astro luminoso. Saído de uma das mais antigas famílias do Lácio que fazia sua origem remontar até os heróis da Ilíada e aos reis de Roma, e até a Vênus Afrodite (MOMMSEN, 1962, p. 294). César foi um homem de Estado, desde a mocidade, no sentido mais profundo da palavra e com o objetivo mais elevado que um homem pudesse propor-se: a regeneração política, militar, intelectual e moral de uma nação em decadência, e do povo helênico, perante o seu, e ainda mais em declínio (MOMMSEN, 1962, p. 297). A personalidade e as atividades de César, desde sua nomeação como cônsul em 59 a.C, e em especial desde a travessia do Rubicão, simbolicamente importante (Alea jacta est), no ano 49 a.C., preencheram os últimos anos da República e provocaram em Roma uma mudança institucional e política irrevogável, criando as condições que levariam ao consulado de Augusto (JAGUARIBE, 2001, p. 380).

César alcança a ditadura depois que morre Crasso, mas não sem

antes enfrentar o outro ex-triunviro Pompeu, dito Magno.

1.1.4.1 - A Guerra Civil - Pompeu versus César

A morte de Crasso e o fim do triunvirato deixaram claro que o

poder em Roma seria de um homem só, ou Pompeu ou César. Era muito

improvável que dois homens já maduros, experientes e poderosos

concordassem em dividir o governo.

38

Com a morte de Crasso frente aos partos na batalha de Carrés (53 a.C.) e com a dissolução do triunvirato, começa a disputa entre César, fortalecido por suas vitórias e apoio popular, e Pompeu, que nessa época se aproximara do grupo senatorial, que tinha entre seus representantes mais ilustres Cícero e Catão. (BOVO, 2006b, p. 14).

Pompeu, que recebera o governo da Espanha, continuava em

Roma, pois se havia feito representar alhures, enquanto César seguia além dos

Alpes, governando as Gálias e administrando as novas terras conquistadas dos

celtas. Pompeu resolveu que era oportuno aproveitar a ausência do rival e

tomar o poder.

O poder pessoal de Pompeu, chamado já em 54 a.C., por Cícero,

princeps, só encontra um obstáculo sério: César (GIORDANI, 2002, p. 57). A

intenção que tinha Pompeu de romper com César era provavelmente tão antiga

em seu embrião quanto a aliança dos próprios ditadores; mas a natureza

dissimulada de Pompeu deixara-a amadurecer até então (MOMMSEN, 1962, p.

262).

Então, Pompeu aliou-se com o Senado, que o nomeou Primeiro

Cônsul (49 a.C.). Tal cargo tornava-o superior a César, que governava as

Gálias. Proibiu-o de voltar a Roma, onde temia que o povo desse a César a

coroa real (DE CICCO, 2012, p. 60). Pompeu conseguiu que o Senado lhe

desse poderes extraordinários, enquanto a situação política de César se tornou

cada vez mais precária (BOVO, 2006b, p. 14).

César foi declarado inimigo do Estado e Pompeu conspirou com a

facção senatorial para despojá-lo de todo o poder político. Disso resultou uma

luta de morte entre os dois (BURNS, 1959, p. 224).

Vendo que toda tentativa de pacto com Pompeu e o Senado era

inútil, César decidiu atravessar o rio Rubicão, fronteira entre a Gália Cisalpina e

a Itália, e marchar para Roma (49 a.C) (BOVO, 2006b, p. 14). “Ele não tinha

absolutamente nenhuma autoridade para trazer tropas além da fronteira, o

significado de sua ação era claro. Ele comprometeu-se à guerra civil.”

(BOATWRIGHT, 2004, p. 246)25. Ao atravessar para a margem Italiana, teria

25 Tradução livre do autor para: […] he had absolutely no authority to bring troops across it, the

significance of his action was plain. He had committed himself to civil war[…].

39

dito a famosa frase “O dado está lançado” (ALEA IACTA EST)26 e, com esse

ato, iniciou a guerra civil que sepultaria a República.

Tal atitude arriscada e inesperada de César surpreendeu a todos

e pegou seus inimigos desprevinidos. Confusos e inseguros, Pompeu e muitos

dos senadores preferiram fugir a enfrentar César de imediato, com ilusória

expectativa de que, ganhando tempo, poderiam estruturar um contra-ataque. O mesmo temor que Aníbal levara a Roma, depois da batalha de Canas, César disseminou ao atravessar o Rubicão. Pompeu, desnorteado, não viu, nos primeiros momentos da guerra, outro partido a tomar senão o que resta nos casos desesperados: soube apenas ceder e fugir; saiu de Roma, ali deixando o tesouro público; não conseguiu retardar o vencedor em lugar nenhum; abandonou uma parte de suas tropas, a Itália inteira, e cruzou o mar (MONTESQUIEU, 2002, p.86).

Pompeu fugiu para o Oriente, na esperança de organizar um

exército suficiente para retomar o domínio da Itália (BURNS, 1959, p. 224),

enquanto César, em toda parte que passava, era recebido como “amigo do

povo” (VAN LOON, 2004, p.114). Os soldados recusaram-se a deter César na

sua marcha triunfal em direção a Roma, então Pompeu fugiu para a Grécia

com vários senadores (DE CICCO, 2012, p. 60). Pompeu preferiu não enfrentar e, em hábil retirada, cruzou o Adriático e começou a mobilizar suas forças nos Balcãs. Assim, César se apoderou com rapidez de toda a Itália, entrou em Roma e se assenhorou do tesouro. Levou então a cabo uma rápida incursão à Espanha, onde derrotou as forças de Pompeu antes de regressar à Itália, onde foi nomeado ditador (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 66).

César tinha tudo o que lhe era necessário: um poder político

ilimitado e um exército de uma solidez inabalável (MOMMSEN, 1962, p. 267).

De volta a Roma, designado ditador e eleito cônsul para o ano de 48 a.C.,

visou imediatamente à busca dos meios para o embate definitivo com Pompeu

(CANFORA, 2002, p. 213).

26 ALEA IACTA EST- O dado está lançado. Essa frase é muito célebre, sendo citada com

frequência - inclusive em suas traduções nas várias línguas europeias - para dizer que, numa situação de grave perigo, já se tomou a decisão sobre o que fazer e não é mais possível voltar atrás. Segundo Suetônio (Vida de César), ela foi realmente pronunciada por Júlio César em 10/11 de janeiro de 49 a.C., no momento em que atravessou o Rubicão, rio da Romanha que marcava as fronteiras da Itália e que, portanto, nenhum comandante poderia atravessar armado sem se tornar, automaticamente, inimigo de Roma: esse ato foi indicado como início da guerra civil contra Pompeu. Essa frase é, na realidade, a tradução de uma expressão proverbial grega, atribuída a César por Plutarco (Vida de César; Vida de Pompeu, Apotegmas de Reis e Comandantes ) (TOSI, 2000, p. 725).

40

“No final de 49 a.C., partiu para o Oriente e finalmente se

encontrou com Pompeu. A batalha decisiva se deu no verão de 48 a.C. na

Farsália (ao norte da Grécia), onde César conseguiu a vitória” (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 66).

Nessa ocasião, o comando de César foi decisivo para a vitória, ou

seja, ferir a elegante elite dos soldados de Pompeu diretamente no rosto para

desfigurá-los27. Em Alexandre e César, de Plutarco28, encontramos a seguinte

narração do episódio: Quando a infantaria dos dois exércitos estava empenhada numa luta bastante encarniçada, a cavalaria da ala esquerda de Pompeu avançou altivamente, estendendo seus esquadrões para envolver a ala direita de César; mas, antes que tivesse tempo de atacar, as seis cortes que César colocara atrás de sua ala correram contra a cavalaria inimiga; e, em vez de atirar de longe seus dardos, conforme o costume, e de ferir a golpe de espada as pernas e as coxas dos inimigos, os soldados alvejavam os olhos, golpeiam os rostos, segundo as instruções recebidas de César. César julgara bem ao pensar que esses cavaleiros, noviços na guerra e pouco acostumados com as feridas, jovens que eram, ostentando sua beleza e a flor da mocidade, ficariam impressionados especialmente com essa espécie de golpes e não sustentariam por muito tempo um ataque no qual se achavam expostos ao perigo fatal e à deformação futura. Foi o que aconteceu: aqueles moços não aturaram os golpes dos dardos atirados para cima; e, não ousando arrostar os ferros que brilhavam tão perto de seus olhos, viraram o rosto e cobriram a cabeça para se preservarem. Romperam, afinal, suas próprias fileiras, fugiram vergonhosamente e foram a causa da perda de todo o exército, pois os soldados de César, vitoriosos, envolveram a infantaria e, carregando-a pelas costas, destroçaram-na (PLUTARCO, 1958, p. 158)

Pompeu, vencido, buscou refúgio no Egito, na corte do muito

jovem Ptolomeu XIII (BOVO, 2006b, p. 14). Pompeu atravessou o Mediterrâneo

e fugiu para o Egito. Quando lá aterrou, foi assassinado por ordem do jovem rei

Ptolomeu (VAN LOON, 2004, p.112).

César chegou pouco tempo depois, recebendo a notícia da morte

de seu rival (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 66). Quando desembarcou,

César não sabia o que havia acontecido com Pompeu. Ao atracar no porto, foi

27 “Miles nocere in facie!” - Soldado, fere no rosto! - tinha gritado Cezar aos seus veteranos,

vendo os brilhantes cavalheiros do exército de Pompeu. Esses jovens patrícios, espantados, puseram-se em fuga para não serem desfigurados pelas lanças dos legionários, e Cezar ficou senhor do campo de batalha (CAMPOS, 1889, p. 35).

28 Plutarco (45 d.C/125 d.C), autor do período greco-romano, foi um filósofo e prosador, historiador e moralista grego nascido na Queroneia. Teria escrito mais de 200 livros, entre biografias e estudos nas mais diversas áreas, muitos dos quais se perderam (LELLO, 1954, p. 570).

41

aclamado pelos habitantes de Alexandria, que lhe mostraram a cabeça de

Pompeu (BENCHLEY, 2007, p. 33).

César ficou chocado com a vilania dos egípcios, pois traíram

Pompeu, que era aliado deles durante anos e, por isso mesmo, lá buscara

abrigo em um momento de dificuldade. Ademais, César, mesmo sendo rival de

Pompeu, fora outrora seu amigo e parente (Pompeu enviuvara da filha de

César) e não desejava uma morte desonrosa para o antigo companheiro. Por

isso, fez com que Pompeu tivesse um funeral romano com toda dignidade.

Depois de garantir que Pompeu fosse sepultado dignamente,

César entrou como um rei em Alexandria e instalou-se no palácio real. O Egito

que César encontrou estava dividido entre dois irmãos governantes

(BENCHLEY, 2007, p. 33). Os irmãos eram Ptolomeu XIII, a mando de quem

Pompeu fora traiçoeiramente executado, e a jovem Cleópatra VII.

César, com todo o seu poder, pretendia permanecer neutro no

conflito civil, mas acabou envolvendo-se. Já conhecendo a índole traiçoeira do

faraó, César apoiou a causa da irmã dele, de quem tornara-se amante. Tal

patrocínio foi decisivo a favor dela e, como veremos a seguir, também

direcionou a vida dele nos seus últimos e gloriosos anos.

1.1.4.2 Cesar e Cleópatra

A notoriedade de Cleópatra e seu lugar na história universal,

provavelmente, jamais teriam sido alcançados caso César não estivesse em

Alexandria do Egito naquele momento, em que ela, então exilada, organizava

um exército com a intenção de depor seu irmão faraó.

Ptolomeu banira a irmã da pátria e obrigara-a a procurar refúgio

na Síria, de onde fez preparativos para voltar ao reino paterno (MOMMSEN,

1962, p. 285).

Existem dúvidas quanto aos atrativos físicos da princesa

ptolomaica, mas é unânime entre os cronistas da época a certeza do seu

encanto e de seus sortilégios, que seduziram César e o fizeram se envolver na

42

guerra civil egípcia, modificando o rumo da história e precipitando o fim da

República Romana.

A chegada de Júlio César a Alexandria foi precedida por sua

reputação não só de guerreiro conquistador, mas também de refinado amante

com uma série de aventuras amorosas na sua existência (BENCHLEY, 2007,

p. 35). O homem que se mudou para o palácio real, a casa dos dois jovens

Ptolomeus, tinha cinquenta e poucos anos. O conquistador de metade do

mundo, o maior soldado desde Alexandre (BRADFORD, 2002, p. 79) era

considerado descendente dos deuses, em especial Vênus, a deusa do amor

(BENCHLEY, 2007, p. 35).

Suetônio29, em A vida dos doze Césares, demonstra a fama de

César como um dos mais notórios sedutores de Roma e transcreve os versos

que seus soldados cantavam sobre ele: Romanos, guardai vossas mulheres: nós conduzimos o calvo adúltero. (SUETÔNIO, 2002, p. 58). 30

No entanto, com todos os atributos, César, quando conhecera

Cleópatra, era um senhor calvo, enquanto a princesa estava no auge de sua

juventude, sendo, portanto, cabível que o conquistador tenha sido conquistado,

tendo se apaixonado por ela.

É muito provável que Cleópatra tenha contado com a

vulnerabilidade de César e aliado isso ao uso calculado de seus consideráveis

atrativos femininos (BENCHLEY, 2007, p. 35).

“Quanto à guerra de Alexandria, dizem alguns que seu amor por

Cleópatra, e não uma necessidade real, foi o que determinou a empresa, tão

vergonhosa para sua reputação, como perigosa para sua pessoa”

(PLUTARCO, 1958, p. 161). Na opinião da maioria dos primeiros historiadores, foi a fascinação de César por Cleópatra que o levou a colocar o pescoço num nó corrediço, e fez com que colocasse a vida em perigo bem no momento

29 Caio Suetônio Tranquilo (69/141 d.C) foi um escritor e historiador escritor latino que viveu na

corte do imperador Adriano. (LELLO, 1954, p. 952). 30 O mesmo cronista romano acrescenta: dos seus amores, constavam também rainhas, entre

as quais Eunoé, da Mauritânia, mulher de Boguda. (SUETÔNIO, 2002, p. 59). Numa outra passagem também de Suetônio o historiador vai mais além dizendo que César era um sedutor inescrupuloso nestes termos: “[...] E porque ninguém duvidava do quanto ele era infame na sodomia e no adultério, Cúrio pai chamou-lhe num de seus discursos, ‘o marido de todas as mulheres e a mulher de todos os homens’.” (SUETÔNIO, 2002, p. 60).

43

em que era o senhor do mundo mediterrâneo (BRADFORD, 2002, p. 91).

Suetônio deixa claro, quando narra os amores de César, que a

jovem ptolomaica o arrebatou: “[...] porém entre todas a que mais amou foi

Cleópatra, ao lado de quem, muitas vezes nos festins, ficava até o amanhecer

[...] (SUETÔNIO, 2002, p. 59). No extraordinário romance entre César e Cleópatra, deve-se sempre lembrar que ambos eram políticos tortuosos e impiedosos. Mas é bem provável que houvesse uma verdadeira afeição entre eles, independentemente de uma paixão sexual. César, com seus cinqüenta e dois anos de idade e sua imensa experiência com mulheres, provavelmente estava lisonjeado e, por assim dizer, rejuvenescido pelo corpo e pelas atenções dessa jovem mulher, que além do mais era uma rainha. Os sentimentos de Cleópatra provavelmente não eram os mesmos. É verdade que César era um homem extremamente bonito, mas pode-se imaginar que o amor dela por ele se devia na maior parte a ele ser divertido, espirituoso e inteligente. Também era o homem mais poderoso do mundo. Esses são motivos o suficiente para qualquer mulher amar um homem (BRADFORD, 2002, p. 91).

Plutarco conta como César, irritado com os cortesãos do Faraó,

mandou chamar secretamente a exilada princesa de volta à cidade, descreve o

primeiro encontro dos dois, explica como se tornaram amantes e em que

circunstâncias a guerra alexandrina foi deflagrada: Cleópatra fez-se acompanhar apenas de um dos seus amigos, Apolodoro de Silícia; embarcou num pequeno navio e chegou à noite ao palácio. Não havendo meio de ali penetrar sem ser reconhecida, envolveu-se num saco de colchão, que Apolodoro amarrou com uma correia, fazendo-a levar até César, pela porta do palácio. Conta-se que foi a astúcia de Cleópatra o primeiro engodo que seduziu César; admirado por seu espírito inventivo e, em seguida, subjugado por sua doçura, pelas graças de sua conversa, reconciliou-a com seu irmão, sob a condição de que partilhasse a soberania real; um grande festim consagrou essa reconciliação. Um dos escravos de César, seu barbeiro, que era o mais tímido e desconfiado dos homens, descobriu percorrendo o palácio, prestando ouvidos a tudo e examinando com atenção tudo que se passava, uma conspiração contra César, tramada por Aquilas, general das tropas do rei, e pelo eunuco Potin. Quando teve provas disso, César colocou guardas em torno da sala e mandou matar Potin. Quanto a Aquilas, recorreu ao exército e desencadeou contra César uma guerra difícil e perigosa, na qual, com poucos soldados, César precisou resistir a uma cidade poderosa e a forças consideráveis (PLUTARCO, 1958, p. 162)

César participou da Guerra Alexandrina, mesmo não estando

preparado para enfrentar uma cidade tão poderosa e tomando o partido do

adversário mais fraco e menos preparado. Mas a fortuna de César brilhou,

conseguiu resistir enquanto estava em desvantagem e isso deu tempo para

44

que chegassem reforços de seus aliados. E César venceu, podendo, então,

desfrutar do romance com a sua rainha. A guerra Alexandrina terminou após cinco meses. César com certa facilidade atingiu um triunfo tanto político quanto militar. Ele derrotara a oposição aos romanos e instalara no trono do Egito uma rainha que era sua amante, e que logo daria a luz a um filho dele (BRADFORD, 2002, p. 98).

Quanto ao filho de Cleópatra tudo indica que era mesmo filho do

ditador romano, nas fontes antigas, mesmo romanas não se refuta tal fato,

Suetônio relata que César [...] permitiu, até, que pusesse no filho que tivera dela o próprio nome. De acordo com alguns historiadores gregos, este filho se parecia com César não só no aspecto, como também no modo de andar. Marco Antonio assegurou ao senado que César havia reconhecido o filho e que Caio Macio, Caio Ópio e outros amigos sabiam que era verdade (SUETÔNIO, 2002, p. 58).

O poder de Cleópatra foi restituído e Roma passou a dominar o

país do rio Nilo. Em vez de voltar para casa, César preferiu fazer um cruzeiro

fluvial com Cleópatra (MORILLON, 2004, p. 93). Na primavera de 47 a.C,

César e Cleópatra embarcaram numa barcaça cerimonial para uma agradável

viagem Nilo acima. César estava ansioso para ver um pouco desse país que

era uma lenda pela sua história antiga (BRADFORD, 2002, p. 98). Entretanto,

precisou interromper esse breve momento de felicidade, pois assuntos

urgentes exigiram sua presença no Oriente (MORILLON, 2004, p. 93). Essa insurreição de Alexandria, embora insignificante por si mesma, teve, no entanto, bastante importância para obrigar o homem todo-poderoso, sem o qual nada podia cumprir-se e nada podia resolver-se a negligenciar seus propósitos [...] as conseqüências do governo pessoal começavam a fazer-se sentir. Vencera a monarquia; porém a mais extrema confusão reinava em toda parte, e o monarca estava ausente (MOMMSEN, 1962, p. 289).

César teve de deixar sua rainha durante a gestação e partiu para

o Oriente onde retoma seus negócios e novamente sai vitorioso de uma série

de batalhas. Na batalha de Zela, trucida seus oponentes, dizimando os

soldados de Fárnaces, soberano do crescente império do Bósforo. Orgulhoso e

encantado com seu próprio e vertiginoso sucesso, alardeia seu êxito numa

carta a um amigo com a célebre frase “Vim, vi e venci”31. Plutarco nos narra

assim tal episódio:

31 VENI, VIDI, VICI - Vim, vi, venci. Esse lema, ainda de uso comum para indicar uma ação

rápida, tempestiva e eficaz, é de Caio Júlio César: Plutarco, de fato, informa-nos que, em 47

45

Chegando à Ásia, César soube que Domício, batido por Fárnaces, filho de Mitrídates, fugira do Ponto com um punhado de soldados; que Fárnaces, continuando vigorosamente seus triunfos, se apodera da Bitínia e da Capadócia e se prepara para invadir a pequena Armênia, na qual provocara a rebelião de todos os reis e dos tetrarcas. César marcha contra Fárnaces com três legiões, travando com ele uma grande batalha, perto da cidade de Zela; destroça todo seu exército e o repele do Ponto. Para fazer notar a rapidez nunca vista de sua vitória, César escreveu a Amâncio, um de seus amigos de Roma, estas três palavras somente: “Vim, vi, venci”. Em latim, as três palavras têm a mesma desinência, o que dá à concisão um caráter ainda mais surpreendente (PLUTARCO, 1958, p. 163)

Após o sucesso de seu inverno egípcio e depois desse novo e

espetacular triunfo, não é nada surpreendente que César tivesse total

autoconfiança (BRADFORD, 2002, p. 105). Ele finalmente volta para Roma

para acertar as contas com seus opositores.

César era, então, o único líder de todo o mundo romano, um

monarca de direito, pois era ditador, mas não era um rei, mesmo tendo

estabelecido uma linhagem real - era o pai de Cesário, filho de Cleópatra, um

faraó presuntivo - ele mesmo não era ainda basileus, pois a agonizante

República Romana ainda existia legalmente. Essa foi a última batalha de

César, e o embate fatal para a República foi igualmente fatal para ele.

1.1.4.3. Os idos de março

A ditadura de César é curta, começa em 49 a.C, quando retorna

da Espanha, e termina com sua morte nos idos de março de 44 a.C (dia 15

daquele mês). Nesse tempo, como foi visto, passou boa parte ausente, nas

guerras contra Pompeu, no descanso egípcio e nas campanhas orientais antes

de voltar a Roma de onde ainda se ausentaria para novas guerras na África e

Espanha. No entanto, mesmo quando não estava presente, cuidou do governo

e implantou mudanças que sobreviveriam a ele.

César voltou para a Itália, chegando a Roma em fins do ano no

qual devia terminar sua segunda ditadura: esse cargo, anteriormente, nunca

a.C, depois da vitória de Zela sobre Fárnaces II, ele comunicou a notícia a Roma, confiando a um mensageiro chamado Mácio uma mensagem lapidar e formalmente cativante. Essa tradição também se reflete em Dion Cássio e em Apiano, enquanto Suetônio informa que, durante o triunfo ocorrido na mesma campanha, o general mandou carregar um cartaz com a inscrição para mostrar como a sua execução era fulminante (TOSI, 2000, p. 436).

46

fora anual. Foi nomeado Cônsul para o ano seguinte (PLUTARCO, 1958, p.

163).

Embora a cidade se encontrasse em completa desordem, não

pode ficar muito tempo, porque alguns homens favoráveis a Pompeu haviam se

refugiado na corte do rei Juba, na Numídia (MORILLON, 2004, p. 93).

Então, César se empreende novas e necessárias campanhas

militares contra os ainda remanescentes partidários de Pompeu, que não viam

com bons olhos sua Monarquia e defendiam a República. Primeiramente na

África, onde a resistência era liderada por Catão, o Jovem, e Metelo Cipião e,

posteriormente, na Espanha contra os filhos de Pompeu.

No final de 47 a.C, partiu para a África, venceu os republicanos

em Tapso e saqueou a província. Os sobreviventes, entre eles os dois filhos de

Pompeu, fugiram para a Espanha (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71).

O novo monarca de Roma, o primeiro chefe de toda a civilização

romano-helênica, César, tinha cinquenta e seis anos “[...] quando a batalha de

Tapso pôs em suas mãos o destino do mundo” (MOMMSEN, 1962, p. 294). Quando voltou a Roma, o vencedor recebeu poderes e honras sem precedentes. Ele foi nomeado ditador por dez anos. O Senado mandou inscrever seu nome no frontão do Templo de Júpiter Capitolino e colocar uma estátua de César em cima de um globo, no santuário, com a inscrição: “Para César, o semideus” (MORILLON, 2004, p. 96)

Para todos os efeitos, a República Romana chegara ao fim.

César a havia aniquiladado e assim foram estabelecidas as fundações para o

futuro império governado por seus monarcas quase divinos e todo-poderosos

(BRADFORD, 2002, p. 106). O Senado caiu de joelhos. Ninguém mais podia

se opor a César (MONDADORI, 1970. p. 105). Durante seus últimos anos,

César governou com atribuições de um rei, ainda que sem o título (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 71).

Desde jovem, César empenhara-se para chegar à ditadura e, nos

anos de sua ditadura, almejava e trabalhava para ser rei e, provavelmente,

estabelecer uma dinastia. Monarca legalmente ele já era na qualidade ditador

e, finalmente, de ditador perpétuo.

Essa foi a evolução do seu status legal: em 69 a.C., foi questor

na Espanha Ulterior na comitiva do pretor Vétere; em 65 a.C., edil curul; em 63

a.C., foi designado como Pontífice Máximo; em 62 a.C., foi eleito pretor urbano;

47

em 59 a.C., foi cônsul pela primera vez; de 58 a.C. a 50 a.C., estabeleceu-se

como próconsul na Gália; em 49 a.C., foi ditador por primeira vez; em 48 a.C.,

cônsul por segunda vez e, em seguida, no mesmo ano, foi ditador pela

segunda vez; em 46 a.C., novamente cônsul e, no mesmo ano, o Senado votou

sua ditadura por mais dez anos; finalmente, em fevereiro de 44 a.C., sua

ditadura se tornou perpétua.32

Antes de partir para a Espanha, a fim de enfrentar os

sobreviventes da batalha de Tapso, principalmente os filhos de Pompeu, César

celebrou os triunfos a que tinha direito por todas as guerras que havia vencido.

Roma preparou-se para celebrar os triunfos de César com um

luxo e uma amplitude nunca apresentados antes. Uma multidão de curiosos

precipitou-se para a cidade para festejar as quatro grandes vitórias

(MORILLON, 2004, p. 96). Foram-lhe votadas quatro cerimônias triunfais: pela

campanha na Gália, pelas vitórias no Egito, o triunfo sobre Farnáces e a última

vitória na África (MONDADORI, 1970, p. 105).

Para o triunfo da guerra de Alexandria, César trouxera do Egito

sua amante Cleópatra e seu filho Ptolomeu XV César (conhecido como Cesário

- pequeno César), na qualidade de reis aliados de uma nação vassala de

Roma. A paternidade de Cesário era um segredo público, e deve ter ficado claro para todos, e horrorizado os antigos republicanos, que César pretendesse ter uma união legítima com a rainha do Egito e estabelecer uma linhagem real. Ele não fez segredo de suas intenções para aqueles que conseguiam perceber os sinais, pois, logo depois dos triunfos, dedicou, no centro do Fórum de Júlio (que ele construiu a sua própria custa), um templo a Vênus Genitrix, Vênus a Mãe de Todos. Isso em si era compreensível, já que os Julianos alegavam ser descendentes da deusa. Mas César foi ainda mais longe e instalou, próxima à estátua da deusa, uma estátua de Cleópatra feita de ouro. A implicação era bastante clara: “Eu sou descendente de Vênus. Cleópatra é a encarnação de Ísis, que é a equivalente egípcia de Vênus. Ergo, ambos temos origens divinas” (BRADFORD, 2002, p. 110).

Cleópatra, em sua condição de rainha do Egito, sempre fora

considerada sinônimo da deusa Ísis; César, igualmente, agora “ingressara na

família real” e se tornara um deus (BRADFORD, 2002, p. 99).

As celebrações dos triunfos foram esplêndidas, e as

inaugurações do novo fórum e do templo, entre outros projetos urbanísticos, 32 Dados extraídos da cronologia da vida de César (CANFORA, 2002) nas páginas 455 e

seguintes e das atividades de César (BOATWRIGHT, 2004) nas páginas 254 e 255.

48

foram igualmente encantadoras; mas, antes de terminar o ano, César teve que

partir para a Espanha, onde os filhos de Pompeu tramavam contra ele. Essa

nova guerra na Espanha foi longa e, durante a ausência de César, entra em

vigor o novo calendário Romano, que ele importara de Alexandria33.

Finalmente, os partidários republicanos fracassaram no campo de

Munda; o jovem Cneu Pompeu morreu (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71).

As cidades da Espanha submeteram-se uma depois da outra, foram obrigadas

a pagar tributos pesados e entregar seus tesouros (MORILLON, 2004, p. 107).

Depois da vitória de Munda, o Senado organizou novas festas em

honra do ditador. César recebeu o título de imperator34, “[...], podendo transmiti-

lo ao seu herdeiro, o direito de cunhar muedas com sua efígie, e o título de Pai

da Pátria”35 (MORILLON, 2004, p. 113). Durante os últimos anos da vida do grande ditador, houve muitas aparentes contradições. Foi dito que não desejava nada quanto ser rei, ainda que tenha recusado esta possibilidade em vários momentos. Marco Antônio, seu partidário incondicional, apresentou-lhe a coroa três vezes e pediu que se tornasse monarca, César recusou a coroação, declarando que “Só Júpiter é rei” (BENCHLEY, 2007, p. 61).

Desse modo, embora tenha recusado o título de rex e rejeitado a coroa real, que Antonio lhe ofereceu nas Lupercais de 44 a.C, adotou, não obstante, muitos dos ornamentos associados à realeza (como a toga púrpura), pôs sua estátua entre a dos reis antigos no Capitólio e emitiu moedas que levavam seu retrato. Também instituiu honras de culto à sua pessoa (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71).

César governou inicialmente com títulos de magistratura, pois homens quase só se deixam impressionar por nomes. E, assim como os povos da Ásia abominavam os títulos de cônsul e procônsul, os povos da Europa detestavam o de rei, de modo que, nessa época, tais títulos

33 A civilização universal deve a Júlio César o calendário de 365 dias, introduzido em 1º. de

janeiro de 45 a.C. (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71). Auxiliado pelos melhores especialistas, especialmente pelo astrônomo Sosígenes, César substituiu o ano lunar de 355 dias pelo ano solar de 365 dias e um quarto. Ao acrescentar um dia extra a cada quatro anos, este calendário estava muito mais de acordo com a realidade do que o anterior (MORILLON, 2004, p. 104).

34 IMPERATOR - título conferido por aclamação dos soldados ao seu chefe general vitorioso

(magistrado dotado de imperium). Além do exército, o Senado também podia aclamar o imperator. IMPERIVM - direito de comando superior, militar e jurisdicional (habitualmente contraposto à potetestas). O imperium reside no povo, mas é exercido pelo magistrado sobre os cidadãos. Os magistrados que têm imperium têm todos os direitos dos que têm potestas e mais: a) o direito de consultar os auspícios; b) o direito de recrutar e comandar exércitos e de nomear oficiais; c) o direito de julgar no âmbito militar e civil; d) o direito de coerção; o direito de convocar o povo para comícios. Os símbolos do imperium são os feixes e os litores (CANFORA, 2002, p.488).

35 Pai da Pátria: título honorífico dado a um cidadão que salvou a pátria de um perigo

(MORILLON, 2004, p.113).

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levavam felicidade ou desespero à Terra inteira. César não deixou de tentar fazer com que lhe colocassem o diadema na cabeça; mas, vendo que o povo suspendia sua aclamação, rejeitou-o (MONTESQUIEU, 2002, p. 89)

Recusar a coroa que Antônio lhe ofereceu em público durante

uma festa popular e licenciosa - Lupercália36 - em 15 de fevereiro de 44 a.C -

um mês antes dos idos de março -, não quer dizer que César não queria ser

rei. Evidentemente, ele sabia que ainda existia uma resistência dos patrícios

republicanos de velha cepa a essa ideia e, portanto, esperou que o Senado o

sagrasse rei.

César, não ocultava seu desprezo pela República e pelas formas

constitucionais. Nomeou magistrados, limitou as funções do Senado e silenciou

os tribunos que tentaram opor-se a ele (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71).

A República não passava de uma palavra vazia. O Senado, que outrora

conduzia a vida política, servia apenas para ratificar suas decisões

(MORILLON, 2004, p.113). Tais fatos ofendiam gravemente homens como

Cícero, que valorizavam as tradições de Estado (CORNELL; MATTHEWS,

2005, p. 71).

“Entretanto, o que fez aumentar o ódio contra César, e que foi a

causa de sua morte, foi sobretudo o desejo que teve de se fazer declarar rei

[...] seus inimigos secretos encontraram nisso o pretexto que podiam servir-se”

(PLUTARCO, 1958, p. 172). César esperava a coroa do Senado, enquanto um

grupo de senadores conservadores esperava eliminar César, e vinham

tramando para isso por semanas. Os conspiradores eram liderados por Cássio

e Bruto, jovens muito próximos ao círculo íntimo de César, pois ambos eram

parentes de Servília, provavelmente seu mais notório caso de amor e adultério.

Cássio era genro de Servília e Bruto era seu. César queria a Bruto como a um

filho e havia rumores de que, efetivamente, era seu pai.

Então, nos idos de março (15 de março) de 44 a.C, César foi ao

Senado, onde foi assassinado a punhaladas pelo grupo de senadores

conjurados.

36 Lupercais - Festas anuais, celebradas a 15 de fevereiro em Roma, em honra a Luperco (Pã);

era uma festa grosseira onde se pedia a fertilidade das jovens. Banhados em sangue de uma cabra ou de um cão imolados, depois lavados em leite, os lupercos nus, com uma pele de bode nos ombros, corriam pela cidade, batendo na multidão com tiras de couro (LELLO, 1954, p. 109).

50

Os que não faziam parte do plano ficaram de pé, enquanto os

traidores sacavam adagas escondidas em suas togas e as enfiavam

repetidamente em seu corpo (BENCHLEY, 2007, p. 62). Seria muito difícil que

César pudesse defender sua vida: a maioria dos conspiradores era de seu

partido ou fora por ele cumulado de benefícios (MONTESQUIEU, 2002, p. 91).

As primeiras punhaladas não foram mortais e César tratou de defender-se de seus atacantes, mas quando viu que também Bruto se aproximava dele com a adaga nas mãos, parou de resistir e, escondendo o rosto com a toga, aceitou seu destino (BENCHLEY, 2007, p. 62).

Ele soltou um gemido e, voltando-se para Bruto, que também

estava prestes a golpeá-lo, murmurou: - Até tu, Bruto, meu filho?37

(MORILLON, 2004, p. 119). O assassinato de César nos idos de março de 44 a.C., por um grupo de senadores nobres, foi um ato cruel e absurdo, capaz de provocar uma nova guerra civil, pior ainda que a que acabava por terminar. Mas o fato era muito compreensível. César o tinha provocado e, provavelmente, o sabia (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 71).

“A ação tinha por objetivo encerrar um processo histórico que, na

realidade, já estava em ação e que não podia ser interrompido com a simples

eliminação física de um homem, ainda que extremamente importante”

(LIBERATI, 2005, p. 32).

Como se verá mais adiante, o gesto dos senadores

conservadores foi mal calculado e, esperando salvar a República, acabaram

com qualquer possibilidade de ela existir. Esperavam, do mesmo modo, matar

César, mas não se deram conta de que eliminá-lo no auge da sua popularidade

significava criar um deus imorredor que até hoje vive. Tal ato, visto mais de

dois mil anos depois, pode parecer incompreensível. Pode-se perguntar como

tais conjuradores não perceberam a temeridade da sua ação e, tampouco,

quais foram os motivos que os fizeram acreditar que aquele magnicídio era

justo. As respostas a essas pergutas talvez estejam no seguinte trecho de

37 TV QVOQVE, BRUTE, FILI MI? - Essa conhecidíssima frase, símbolo de uma traição muito

grave e inesperada, teria sido pronunciada por Júlio César antes de tombar sob os golpes dos conjurados. Com efeito, Suetônio e Dion Cássio afirmam ser falsa a informação dada por alguns de que ele, reconhecendo o filho Brutus entre os conjurados, tivesse bradado: “até tu, filho?” (costuma-se dizer que Brutus era filho adotivo de César, mas talvez Suetônio acredite ter sido ele realmente filho de César, de vez que nessa mesma obra faz digressões sobre os amores deste com Servília, mãe de Brutus) (TOSI, 2000, p. 128).

51

Suetônio, com o qual se encerra este subcapítulo sobre a República, quando

se refere aos motivos da morte de César: [...] atos e palavras suas forçam-nos a crer que tivesse abusado do poder e merecido a morte. Pois, não somente aceitou honras excessivas, mas, ainda, o consulado contínuo, a ditadura perpétua e o exercício da censura, sem contar o prenome de “Imperador”e o sobrenome de “Pai da Pátria”, uma estátua entre os reis e um trono na orquestra. Deixou que lhe fossem concedidos privilégios superiores às grandezas humanas: uma estátua de ouro na Cúria e outra diante do tribunal; um carro e uma liteira para as pompas circenses; templos, altares e estátuas ao lado dos deuses; um coxim e um flâmine no templo, bem como um colegiado de sacerdotes dedicados a ele, como aqueles dedicados a Pã. Emprestou seu nome a um dos meses do ano e tomou e concedeu-se a si mesmo, de acordo com sua vontade, todas as honorificências, sem exceção de uma só (SUETÔNIO, 2002, p. 58).

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1.2 - O Principado Romano e a ascensão do estoicismo imperial

Vrbem Romam a principio reges habuere; libetatem et consulatum L. Brutus instituit. Dictaturæ ad tempus sumebantur; neque decemviralis potestas ultra biennium, neque tribunorum militium consulare ius diu valuit. Non Cinnæ, Non Sullæ longa dominatio; et Pompoei Crassique potentia cito in Cæsarem, Lepidi atque Antonii aema in Augustum cessere, qui cuncta discordis civilibus fessa nomine principis sub imperium accepit (TACITUS, 1906, p. 01). 38

Esse é o trecho inicial dos Anais, de Tácito39, em que, de forma

sucinta, o historiador romano narra a história política de Roma desde a

fundação da cidade até o advento do Principado. Esse parágrafo, que ora é

apresentado no orignal e em duas traduções para o português, resume o que

foi contado anteriormente e serve, portanto, de introdução à história dos

séculos que são objeto do presente estudo, o chamado período clássico, tempo

em que o estoicismo floresceu entre os latinos paralelamente à evolução do

Direito.

Como se viu, a República Romana agonizou por mais de um

século e, com a vida e a obra de Júlio César, suas bases foram

irremediavelmente desfeitas, completando um processo histórico irreversível.

Os assassinos do ditador, na ocasião, não perceberam isso, acreditavam poder

salvar a República, ao eliminar o homem Júlio César. No entanto, a morte física

do homem César gera o que se pode chamar de cesarismo, e as

38 Tradução livre do autor: No princípio Roma foi governada por reis. Lucius Brutus estabeleceu

a liberdade e o consulado. As ditaduras foram mantidas em tempos de crise. O poder dos decênviros não durou mais de dois anos, tampouco a jurisdição consular dos tribunos militares foi de longa duração. Os despotismos de Cina e Sila foram breves; as forças de Pompeu e Crasso logo se renderam perante César; e os exércitos de Lépido e Antônio diante de Augusto; que, com o cansaço pela guerra civil, sujeitou o império sob o título de príncipe.

Tradução de J.L. Freire de Carvalho: Foi monárquico o primeiro governo de Roma. L. Bruto lhe deu depois a liberdade, e os cônsules. A ditadura era temporária: a autoridade decenviral nunca passava de dois anos: e o poder consular dos tribunos militares teve pouca duração. Nem foi longo o domínio de Cina e Sila: e as forças de Pompeu e Crasso brevemente cederam à superioridade de César; bem como as de António e Lépido, à fortuna de Augusto; o qual achando os ânimos cansados com as discórdias civis, tomou posse do império com o título de príncipe (TACITUS, 1950, p. 3).

39 Tácito (Cornelius Tacitus) - Historiador romano. Admite-se que tenha nascido de boa família,

entre 55 e 56 da nossa era. Seu falecimento parece ter ocorrido no ano 120. Autor de várias obras historiográficas sendo as principais Historie (Histórias) e Ab excessu divi Augusti (Desde a morte do divino Augusto), obra inacabada que a tradição chamou de Annales (Anais) (TACITUS, 1950, p. V).

53

consequências do magnicídio levam ao Principado de Augusto, como

descreveu Tácito.

1.2.1 - Otavio - César e Augusto

Os Anais (Annales) do historiador romano Tácito começam

justamente tratando do Principado do divino Imperador César Augusto. Tal

obra, provavelmente, quando fora escrita, era conhecida como Desde a morte

do divino Augusto (Ab excessu divi Augusti), pois conta fatos que se deram

depois do funeral daquele que fora o primeiro dos princeps.

Tácito, que nasceu décadas depois da morte de Otávio, refere se

a ele reverencialmente usando os títulos de Imperador, de Augusto e de César.

No entanto, quando da morte de Júlio César nos idos de março de 44 a.C, o

Augusto Imperador, Caio Júlio César Otaviano, era ainda um adolescente sem

fortuna chamado Caio Otávio Turino.

Caio Otávio era neto da irmã de Júlio César; a família de seu pai

procedia de Velitras e era de origem humilde (CORNELL; MATTHEWS, 2005,

p. 72). “Ainda criança, recebeu o nome de Turino, talvez em memória da

origem de seus ancestrais, ou talvez porque, pouco depois do seu nascimento,

seu pai Otávio tivesse conseguido êxito sobre os fugitivos da região de Túrio”.

(SUETÔNIO, 2002, p. 93).

No início de 45 a.C, Júlio César redigiu seu testamento, no qual

designava Otávio como seu herdeiro, e lhe legava três quartos dos seus bens.

Ele adotaria Otávio como seu filho e lhe transmitiria seu nome (MORILLON,

2004, p. 109). Otávio tinha 19 anos e estava estudando na Grécia, quando

chegou a seus ouvidos a notícia da morte do ditador. Decidiu regressar à Itália

imediatamente para reclamar seus direitos de sucessão (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 72).

A transformação de Caio Otávio Turino em Caio Júlio César

Otaviano, por adoção mortis causa, é apenas uma das consequências da

morte de Júlio César, que levará à criação do Principado. Otávio, desde esse

momento, foi César por direito, sendo seu herdeiro oficial, mas a herança dos

54

feitos de César e de suas glórias será reclamada e usurpada por muitos até a

nossa era. As consequências imediatas foram a guerra civil e o Principado, e

as consequências históricas desdobram-se até hoje.

1.2.1.1 - O Cesarismo

O legado de Júlio César, que aqui se convenciona chamar de

Cesarismo, inspirou, não só seus aliados de então, mas, através dos séculos,

vários outros líderes autocráticos que criaram governos despóticos baseados

no culto da personalidade e mantidos por uma autoridade militar.

O primeiro desses líderes foi Otávio evidentemente, que, como se

demonstrará, ao chegar à Monarquia, conservou as mudanças feitas por seu

“pai” Júlio César. Júlio César, durante seus consulados e ditadura, empreendeu

alterações na sociedade romana e em suas instituições que moldariam os

séculos vindouros e permaneceram para a posteridade.

Vamos anotar algumas realizações de César, as quais atestam

sua capacidade como estadista de grande envergadura (GIORDANI, 2002, p.

59).

O primeiro ato de César como cônsul foi uma medida que tornava

público não só o relatório escrito dos atos do Senado, como as atas que davam

conta dos trabalhos das assembleias populares (CANFORA, 2002, p. 99). Ao

investir-se nas atribuições do seu cargo, estabeleceu, antes de tudo, que se

desse publicidade tanto aos atos do Senado, quanto aos do povo (SUETÔNIO,

2002, p. 30). Daí o termo ata, do latim acta, ou seja, feitos.

Mário Curtis Giordani, na obra História de Roma, antes de falar

das consequências da morte de Júlio César, faz um breve inventário dos seus

empreendimentos que sobreviveram a ele:

1) Promoveu uma legislação benéfica às classes nenos favorecidas, limitando o luxo exagerado dos ricos e favorecendo os devedores; instituiu a distribuição gratuita de trigo; instalou milhares de famílias em terras da Camapânia e da Etrúria; fundou colônias na Sicília, na Espanha, na África, na província narbonense e no Oriente para os soldados desmobilizados; protegeu as famílias numerosas.

55

2) Através das novas colônias e da outorga de certos privilégios a cidades de regiões conquistadas, preparou o terreno para a completa romanização dos povos submetidos. 3) No terreno cultural, César tomou importantes medidas que revelam uma mentalidade arejada, onde o amor pela arte e pela ciência encontrava um campo fértil. Protegeu os mestres e os médicos, concedeu-lhes o direito de cidadania; nomeou o sábio Varrão chefe das bibliotecas; promulgou um plano de reurbanização de Roma, pretendendo embelezá-la com obras artísticas. Umas das realizações de caráter científico mais duráveis e importantes foi a reforma do calendário (GIORDANI, 2002, p. 59).

“César morreu aos 56 anos de idade, considerado como um dos

deuses, tanto pelas declarações dos que lhe conferiam a honra, como pela

convicção do povo” (SUETÔNIO, 2002, p. 86). No lugar da cremação do seu

cadáver, construiu-se um templo dedicado a ele, uma vez que o Senado o

deificou como Divus Julius.

Desde sua imolação, nos idos de março de 44 a.C, o nome César

converteu-se em nome de todos os imperadores posteriores. Como já foi dito,

Caio Otavio, quando se tornou seu filho por testamento, altera seu nome para

Caio Júlio César Otaviano. Os imperadores posteriores, até Nero, foram

sucessivamente adotados e usavam o nome próprio César.

A partir do imperador Vespasiano, soberano de Roma de 69 a 79

d.C, mesmo sem terem sido adotados, os imperadores passaram a ostentar o

nome César como um título. Esse costume foi seguido até o último imperador

do Ocidente, Rômulo Augustúlo, que foi deposto com a queda de Roma em 4

de setembro de 476 pelos hérulos, liderados por Odoacro.

O cognome César amealhou tanta notoriedade que foi usado

pelos imperadores bizantinos do Império Romano do Oriente até a queda de

Constantinopla perante os turcos otomanos em 29 de maio de 1453.

A designação César acumulou tamanho prestígio que evoluiu

para sinônimo de imperador em diversos idiomas modernos, principalmente

nas línguas germânicas, como Cáiser (Kaiser) e nas eslavas como Csar (Tsar

ou Tzar).

Desde Otão I, Kaiser designou os imperadores do Sacro Império

Romano Germânico (962-1806) que pretendiam ser vistos como continuadores

do Império Romano no Ocidente.

56

Por causa de Napoleão Bonaparte (1769 –1821), que também

pretendia estabelecer um cesarismo na França, que se designou Imperador

dos franceses em 1806, e se fez representar em pinturas como um César, o

Sacro Império Romano Germânico chegou ao fim. Napoleão fez Francisco II

renunciar ao título Sacro Imperador no mesmo ano em que ele se auto

proclamava imperador dos franceses. Foi então que em substituição ao Sacro

Império Romano Germânico se instituiu o Império da Áustria (1806-1867) e, em

seguida, Áustria-Hungria (1806-1918), quando os Imperadores da Casa de

Habsburgo também se denominavam Kaiser.

No Império Alemão, os soberanos da Prússia da Casa de

Hohenzollern (1871-1918), os Imperadores, também usavam Kaiser, pois é

título que significa imperador no idioma teutônico.

Tsar passou a título oficial do soberano da Rússia desde 1547

com a proclamação do Grão-Príncipe de Moscou Ivã IV, o Terrível, até 1917,

com a revolução comunista e deposição do último imperador. Desde 1721,

graças a Pedro I, o Grande, o título oficial passou a ser o de imperador, mas

Tsar seguiu em uso até o último soberano.

Na Itália, durante a Renascença, Rodrigo Bórgia, que veio a ser

Papa de 1492 até 1503, sob o nome de Alexandre VI por causa de sua

admiração pelo imperador macedônico Alexandre, o Grande, batizou um dos

seus filhos como César por admiração a Júlio César.

Tal César Bórgia, Duque de Valentinois (1475-1507), foi modelo

de soberano para Maquiavel, no seu tratado político O Príncipe. César Bórgia,

ambicioso como o pai e, igualmente megalomaníaco, tinha seu homônimo

histórico como inspiração e, em um culto egocêntrico à sua própria

personalidade, usava como lema a divisa “AVT CÆSAR AUT NIHIL”, isto é,

César, ou nada40.

O cardeal Juliano della Rovere era um ferrenho inimigo dos

Bórgia, mas compartilhava com eles a mesma megalomania e admiração por

Júlio César. Juliano também foi Papa e ficou conhecido como o Papa

40 AVT CÆSAR AUT NIHIL-Trata-se de um lema de César Bógia, que obviamente tira partido

da igualdade do nome de batismo com a palavra que significa imperador (TOSI, 2000, p. 992).

57

Guerreiro, ou ainda, o Papa Terrível, seu pontificado durou dez anos, de 1503

até 1513 e ele, que já nascera Juliano, como Papa adota o nome Júlio II.

No final do século XVI, William Shakespeare, o maior autor de

língua inglesa, tido por muitos como o mais influente dramaturgo da história,

faz de Júlio César o protagonista de uma de suas peças: A Tragédia de Júlio

César (The Tragedy of Julius Cæsar), mais conhecida simplesmente como

Júlio César (Julius Cæsar).

Como já se pontuou, Júlio César fora Pontifex Maximus e,

posteriormente a ele, todos os imperadores romanos mantiveram esse título

religioso, mesmo os imperadores cristãos desde Constantino Magno. Foi

somente o Imperador Graciano, que, no século IV, não se considerando digno

desse ofício por acreditar que seria uma blasfêmia exercê-lo, recusou-se à

função que entendia como idolatria pagã. A partir de 378, o Papa de então, São

Damaso I, adotou o título de Pontífice, que fora de César. Hodiernamente, na

lista oficial dos títulos do Papa, expressa no Anuário Pontifício publicado pela

Santa Sede em Roma, consta, entre outros títulos papais, Sumo Pontífice da

Igreja Universal.

Após essa breve digressão sobre mais de dois mil anos de

herança cesarista, fica fácil perceber o quão iludidos estavam os republicanos

que acreditaram que bastava assassinar o ditador para restaurar a República.

Como se fosse uma tarefa possível matar um imortal e ressuscitar o cadáver

da República. Esses conservadores não imaginaram nem mesmo a reação

adversa que se seguiu imediatamente. Eles se consideravam heróis e

paladinos da ética romana ancestral. O que eles não puderam perceber, no

calor dos fatos, é o que tão bem o ganhador do prêmio Nobel Theodor

Mommsen41, na obra História de Roma, descreve dois milênios depois: Tal era esse homem único que parece tão fácil e que, no entanto, é tão difícil de descrever. Sua natureza toda é de uma clareza transparente, e a tradição conservou-nos sobre ele pormenores mais abundantes e mais vivos do que sobre qualquer herói do mundo antigo. A idéia que podemos fazer de tal homem pode variar, será talvez mais ou menos oca ou profunda, mas não pode sofrer diferença sensível; para qualquer espírito não totalmente pervertido, sua grande figura apresenta-se com os mesmos traços essenciais, e, no entanto, ninguém conseguiu torná-la viva. O segredo está justamente nessa perfeição. [...] César é o homem inteiro e perfeito (MOMMSEN, 1962, p. 301). Trabalhou e criou como jamais outro mortal o fez, e, como

41 Theodor Mommsen (1817-1903), historiador e filosofo alemão, Renovou, pelos seus estudos

de epigrafia o estudo do mundo latino e de sua antiguidade (LELLO, 1954, p. 270)

58

operário e criador, após vinte séculos, ficou na imaginação dos povos, como o primeiro, o único, o imperador César (MOMMSEN, 1962, p. 324).

1.2.1.2 - Consequências do Magnicídio - Segundo Triunvirato

A morte de César gerou, em um primeiro momento, confusão e

perplexidade e, ao mesmo tempo, uma luta desenfreada pelo poder

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 72). “Era impossível que a República

pudesse restabelecer-se [...] os conspiradores haviam planejado apenas a

conspiração, mas não fizeram plano algum para sustentá-la” (MONTESQUIEU,

2002, p.93).

No dia seguinte ao assassinato, Cássio e Bruto dirigiram-se ao

público no foro e anunciaram a morte da tirania e a recuperação da liberdade,

palavras que não conseguiram entusiasmar os ali presentes (BENCHLEY,

2007, p. 63)

A defesa dos conspiradores baseava-se na ideia de que haviam

salvo a República das mãos de um usurpador, a quem não deram possibilidade

de se defender, pois o crime da tirania era indefensável. Montesquieu, na obra

Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de Sua

Decadência, procurou explicar o magnicídio desta forma: [...] havia um certo direito popular, uma opinião aceita em todas as repúblicas da Grécia e da Itália, que fazia com que se considerasse como homem virtuoso o assassino daquele que houvesse usurpado o poder soberano. Em Roma, sobretudo depois da expulsão dos reis, a lei era precisa e os exemplos eram aceitos: a República armava o braço de cada cidadão, transformava-o provisoriamente em magistrado e o ratificava como seu defensor (MONTESQUIEU, 2002, p.91).

O Senado concedeu uma anistia geral para todo o passado e

decretou que rendessem a César honras divinas, resolvendo, também, que

nada fosse mudado das ordens dadas por César durante a ditadura

(PLUTARCO, 1958, p. 182).

Quando o testamento de César tornou-se público, o povo romano

tomou conhecimento de que ele havia deixado uma soma respeitável para

cada cidadão (BENCHLEY, 2007, p. 63); quando foi levado no Fórum seu

corpo coberto de feridas, a multidão, em violenta agitação, não se conteve

(PLUTARCO, 1958, p. 182); quando o funeral foi realizado, as pessoas

59

sentiram-se verdadeiramente penalizadas com o ocorrido e condenaram os

conspiradores (BENCHLEY, 2007, p. 63).

Os personagens mais importantes entre os antigos aliados de

César eram o cônsul Antônio e o chefe da cavalaria, Lépido. Antônio tinha, na

Itália, o apoio do exército constituído para a planejada expedição de César

contra os partos (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 72).

Antônio compreendeu, imediatamente, que os autores do

atentado não tinham plano algum e que tinham depositado sua confiança no

efeito salvífico do “tiranicídio” e da palavra “liberdade” (CANFORA, 2002, p.

279). O Senado ficou paralisado, abrindo caminho para a intervenção de Marco

Antônio (JAGUARIBE, 2001, p. 388). No dia do funeral, o corpo de César foi envolvido num sudário púrpura e levado à pira em uma carruagem branca. Marco Antônio, em pé diante do cadáver, dirigiu-se à multidão. Não era um bom orador, mas naquelas circunstâncias não precisou de habilidades especiais para despertar emoção dos presentes. Relembrou a carreira de Júlio César, as numerosas e gloriosas vitórias conseguidas para Roma, sua generosidade e humanidade para com o povo. Após exaltar as virtudes do falecido, a oração fúnebre de Marco Antônio continuou com um ataque contra Bruto e Cássio, conseguindo provocar a opinião pública contra eles. Hasteou a toga manchada de sangue de Júlio César, ao mesmo tempo em que acusava os responsáveis de assassinos e vilões. Uma multidão de cidadãos assaltou as casas dos conspiradores (BENCHLEY, 2007, p. 63).

Outros bandos enfurecidos foram às casas dos principais

conspiradores, entre eles Bruto e Cássio, com a intenção de queimá-las. A

ordem só foi restabelecida pelos legionários de Lépido (BRADFORD, 2002, p.

149) Apavorados por esse exemplo, Bruto e seus cúmplices saíram da cidade

poucos dias depois (PLUTARCO, 1958, p. 182). Nenhum dos seus assassinos sobreviveu por mais de três anos após a sua morte e não morreram de morte natural. Condenados todos, pereceram cada qual, de maneira diferente; uns, num naufrágio; outros, em combate; e outros ainda, suicidando-se com o mesmo punhal com que atacaram César (SUETÔNIO, 2002, p. 87).

“Estava bastante claro o que o povo romano sentia quanto à

morte de César. Estavam de luto pelo pai de seu país e, embora

inconscientemente, já estavam procurando um novo pai para assumir o lugar

dele” (BRADFORD, 2002, p. 79) Isto quer dizer que a sociedade romana já

aceitara e se acostumara a ser governado por um monarca não se apegando

às tradições republicanas.

60

Três cidadãos iam recolher, em proveito próprio, a herança de César: Marco Antônio, que presidiu os funerais do ditador, explorando a trágica situação para conquistar as simpatias populares; o jovem Caio Otávio, de dezenove anos, filho adotivo de César; Lépido, procônsul da província narbonense, o qual serviu de intermediário entre os dois primeiros (GIORDANI, 2002, p. 60).

Como ocorrera outrora, no primeiro triunvirato, no qual três

homens ambiciosos e poderosos resolveram unir forças para chegar ao poder -

Crasso, Pompeu e César -, novamente existia, em Roma, três arrivistas, que,

ainda, não podiam enfrentar-se: Antônio, Lépido e Otávio, ou melhor, César.

Antônio obteve uma posição confortável de força após os funerais

de César. Lépido, que já era chefe da cavalaria, torna-se, também, pontífice

máximo, enquanto o novo César (Otávio), na qualidade de herdeiro de seu pai

adotivo, entra em contato e estabelece alianças com os aliados paternos.

Em vista da juventude e inexperiência de Otávio, Antônio inicialmente não o viu como uma ameaça. Mas logo ficou claro que Otávio estava sendo bem sucedido em sua tentativa de substituir Antônio como líder dos amigos e simpatizantes de César, especialmente entre a população da cidade e os veteranos (BOATWRIGHT, 2004, p. 270).42

A aliança dos três nasceu em um encontro organizado por Lépido

na cidade de Bolonha no ano de 43 a.C. Desse colóquio privado é que surgiu o

segundo triunvirato, que diferentemente do anterior, não era informal, os novos

triunviros fizeram sua aliança ser ratificada pelo Senado.

Em Bolonha (43 a.C), os três herdeiros do cesarismo resolveram estabelecer uma ditadura coletiva conhecida como segundo triunvirato. Difere este do primeiro, pois, enquanto o pacto entre César, Pompeu e Crasso foi apenas um acordo verbal entre os conspiradores contra as instituições, a nova entente revestiu-se das aparências legais: a lei Titia criou uma nova magistratura, o triunvirato, com poderes exepcionais, como os poderes consulares, o poder de publicar editos com força de lei e outros (GIORDANI, 2002, p. 60).

Pensava-se que Lépido, um velho amigo de César, atuaria como

um amortecedor entre as ambições conflitantes dos outros dois e evitaria que

eles colidissem. Os três homens governariam a Itália em conjunto

(BRADFORD, 2002, p. 161). As províncias e o exército foram repartidos entre

os novos senhores do mundo: Lépido teria a província narbonense e a 42 Tradução livre do autor para o original: In view of Octavian’s youth and inexperience, Anthony

at first did not view him as a threat. But it soon became clear that Octavian was succeeding in his attempt to displace Anthony as leader of Caesar’s friends and supporters, especially among the city populace and the veterans (BOATWRIGHT, 2004, p. 270).

61

Espanha; Otávio, a África e as ilhas do Mediterrâneo Ocidental; Antônio, a

Gália Cisalpina e Transalpina (GIORDANI, 2002, p. 60).

Um dos primeiros atos do triunvirato foi vingar se dos assassinos

de César (BRADFORD, 2002, p.161). As proscrições e a guerra civil foram os

meios de que se utilizaram os triúnviros para impor o novo regime. Já na

reunião em Bolonha, havia sido combinada a morte dos inimigos dos três

poderosos (GIORDANI, 2002, p. 60).

Em 42 a.C, Otávio e Antônio perseguiram Bruto e Cássio, que

controlavam as províncias orientais e os derrotaram em Filipos. Após a vitória,

levou-se a cabo uma nova distribuição do Império (CORNELL; MATTHEWS,

2005, p. 73). Otávio ficou com a Itália e a Espanha; Lépido, com a África e

Marco Antônio, com a Gália e o Oriente (BOVO, 2006b, p. 14).

Pouco a pouco, porém, Lépido é posto de lado e o triunvirato se

transforma em um duunvirato (ALVES, 2007, p.32). Em 36 a.C., Otávio

consegue a adesão das legiões de Lépido, forçando o antigo companheiro de

triunvirato a abdicar (GIORDANI, 2002, p. 60). Lépido foi reduzido à condição

de prisioneiro de Otávio, embora com permissão de usar pelo resto da vida o

título de Pontífice Máximo (JAGUARIBE, 2001, p. 389). Desde esse momento,

a sorte do mundo romano vai decidir-se entre Antônio, no Oriente, e Otávio, no

Ocidente (GIORDANI, 2002, p. 60).

Aquele já era o momento de um governo de uma só pessoa, a

mais habilidosa, e essa foi Otávio (LIBERATI, 2005, p. 32). Sua aliança com

Marco Antônio sempre foi duvidosa e incerta e diversas reconciliações serviram

apenas para restabelecê-la (SUETÔNIO, 2002, p. 101). Enquanto Antônio

passou a ser, no Oriente, um instrumento da ambiciosa rainha do Egito,

Cleópatra, pela qual se apaixonara, Otávio preparava, hábil e prudentemente,

seu futuro e completo triunfo (GIORDANI, 2002, p. 54).

62

1.2.1.3 - Nova Guerra Civil - O Fim da República

Os inimigos que conjuraram contra César estavam todos mortos;

Lépido deixara de ser útil e fora afastado do tabuleiro do jogo pelo poder. Ora,

é compreensível que os dois rivais que dividiam o mundo Romano se

enfrentassem e buscassem o poder isolado. Otávio César, no entanto, não era

impulsivo e passional como seu rival Marco Antônio, de modo que soube

amealhar aliados, ganhar experiência e esperar pela oportunidade de enfrentá-

lo em paridade de forças com possibilidade de triunfar.

Marco Antônio, na divisão política que celebrara com Otávio,

ficara com a parte oriental do Império. Ser senhor do Oriente significava ser

soberano do quinhão mais rico do território romano, mas também a parte mais

ameaçada. O maior perigo que pairava sobre o Oriente romano era o Império

Parto, que já vencera tropas romanas lideradas por Crasso. César, antes de

morrer, organizara um exército para marchar contra os partos, esse

contingente era fiel a Antônio. Portanto, parecia lógico que Antônio assumisse

tal empreitada e fosse guerrear na Ásia. Lutar no Oriente significava contar

com o apoio dos reinos aliados e vassalos orientais e, entre eles, o mais

importante era o Egito. O Egito era sinônimo de Cleópatra.

Cleópatra adotara com o falecido Júlio César um padrão de

comportamento que já havia sido adotado por seu pai com Pompeu, ou seja,

na qualidade de soberanos do Egito decadente se aproximaram do romano

mais poderoso. Cleópatra teve mais sucesso que seu pai, por razões que já

foram mencionadas, mas a morte de César, nos idos de março, puseram por

terra muitas de suas ambições e, principamente, a de criar um império mais

poderoso que o de Alexandre Magno, de quem seu ancestral fundador da

dinastia Ptolomaica era general e amigo. Não lhe restou outra saída do que

abandonar Roma e retornar ao Egito.

Cleópatra não era nada além de uma rainha estrangeira visitante

e ocupante de um trono inseguro que só era sustentado pela força de armas

romanas (BRADFORD, 2002, p. 149). Algumas punhaladas haviam posto um

fim no sonho de governar o mundo junto a César e destruído o teto protetor de

sua monarquia no Egito (BENCHLEY, 2007, p. 65).

63

O conteúdo do testamento de César, além disso, deve ter-lhe

causado grande surpresa. É quase certo que César teria considerado outro

testamento se tivesse se tornado rei (BRADFORD, 2002, p. 149). Cleópatra

pensou que Cesário, o único filho de sangue de Júlio César, seria considerado

um perigo por seu irmão adotivo (BENCHLEY, 2007, p. 65).

Deste modo, era evidente que Antônio, o rival de Otávio, teria

todo apoio de Cleópatra e, assim, ela repete o padrão ptolomaico de se

associar com o romano mais poderoso. O encontro de ambos, em Tarso, na

Grécia, no ano de 41 a.C, é recontado por todos os historiadores da

antiguidade e faz ecos até hoje.

Antônio rendeu-se diante de sua superioridade mental e pessoal,

apaixonou-se e tornou-se prisioneiro da influência de Cleópatra. Tinha, então,

42 anos, e Cleópatra, 27(BENCHLEY, 2007, p. 65).

Quando do encontro de Tarso com Cleópatra, o triunvirato ainda

existia e Otávio não podia, então, enfrentar Marco Antônio, pois não tinha

meios para isso. Ao invés de enfrentar o rival, quando Antônio volta do Oriente,

Otávio propõe uma aliança e, para selar o acordo, oferece sua irmã Otávia em

casamento. Marco Antônio não teve como recusar. As consequências foram

nefastas para Antônio e tal estratagema de Otávio, por fim, foi um sucesso,

causando a definitiva queda de seu opositor. Embora o casamento com Otávia possa ter dado aos italianos a impressão de conter a promessa de paz e prosperidade, deve ter dado a Cleópatra a impressão de desastre final. Era uma traição particularmente sórdida, pois ocorreu poucas semanas após ela ter dado à luz gêmeos de Antônio, um menino e uma menina, que chamou de Alexandre Hélio e Cleópatra Selene. Não havia nada que ela pudesse fazer, a não ser passar o tempo e esperar que a promiscuidade de Antônio o distanciasse de Otávia e levasse a uma ruptura entre os dois romanos. É possível que Otávio tivesse isso em mente. É provável que tenha previsto que Antônio lhe daria motivos para alegar que a honra de sua irmã tinha sido menosprezada, uma desculpa ideal para levar a uma guerra (BRADFORD, 2002, p. 194).

Como era de se esperar, Antônio repudiou sua esposa romana

Otávia, irmã de Otávio, e este considerou essa afronta intolerével.

Entre 40 e 32 a.C, Otávio e Antônio mantiveram, através de várias vicissitudes, uma relação ambígua, de amizade e inimizade, que se tornou abertamente hostil em 32 a.C, quando Antônio decidiu casar com Cleópatra (JAGUARIBE, 2001, p. 389).

O conflito entre os diuunviros era então inevitável. Entretanto,

Otávio não podia declarar uma guerra a Antônio, pois esse era seu aliado

64

romano e tal guerra seria civil de romanos contra romanos. Faltava-lhe,

portanto, um casus belli, que Otávio encontrou no testamento de Antônio, no

qual estava sua vontade de deixar para Cleópatra VII e seus filhos, inclusive

Cesário, todos os territórios orientais de Roma. Issa fazia de Antônio um traidor

de Roma, um estrangeiro.

Otavio, que se proclamou o único defensor dos antigos costumes

romanos, conseguiu, assim, que o Senado declarasse guerra a Cleópatra em

31 a.C. Nas águas de Ácio, a frota de Otávio venceu Marco Antônio e

Cleópatra (BOVO, 2006b, p. 14).

O passo seguinte foi a conquista de Alexandria por Otávio, que

não teve dificuldades de vencer as forças desmoralizadas de Antônio, que se

matou (JAGUARIBE, 2001, p. 389). Cleópatra suicida-se em seguida (12 de

agosto de 30 a.C.), quando percebe que a única coisa que conseguiria de

Otávio era ser a atração como prisioneira em um desfile triunfal em Roma.

O mundo era de Otávio. Não havia mais ameaças à sua suprema

posição. Alcançara o brilho político, por saber como atrair os melhores homens

para o seu lado (BRADFORD, 2002, p. 358). Assim, Otávio chegava por fim,

no ano 30 a.C., à posição de pretendente sem opositores ao poder de César

(JAGUARIBE, 2001, p. 389).

Quando, décadas depois, Otávio, já Príncipe, e Augusto recebe a

homenagem de ter um mês do ano com seu nome, escolhe Agosto, para

lembrar a conquista do Egito.

1.2.1.4 - Do Príncipe, o Primeiro Cidadão

A transição da República para a Monarquia, como se viu, foi um

processo lento e doloroso, que se completa com a derrota de Marco Antônio e

Cleópatra. O fim da República e sua substituição por um regime monárquico constituem a modificação mais visível. Seria um insustentável paradoxo pretendermos negar ou simplesmente reduzir a importância desse acontecimento. Assim como nos fatos, repercutiu ele também nas almas: um pouco de verdade psicológica sempre se oculta por trás

65

das fórmulas e dos símbolos de uma ideologia oficial (CROUZET, 1994, p. 103).

Não existe unanimidade entre os historiadores para estabelecer o

fim da República. Para alguns, a data de 14 de janeiro de 44 a.C, quando

César se torna cônsul, imperador e ditador pela quinta consecutiva, representa

o sepultamento da República; para outros, o fato da ditadura de César ter se

tornado perpétua, em 14 de fevereiro do mesmo ano, é o início da nova

Monarquia.

Existem os que defendem a tese de que a derrota de Antônio em

Ácio, no dia 02 de setembro de 31 a.C, marca o começo da autocracia de

Otávio; enquanto outros dizem que a morte de Cleópatra em 12 de agosto do

ano 30 a.C é o marco inicial do novo regime político.

Aqui, se concorda com a maior parte dos pesquisadores e críticos

de história, escolhe-se a data de 16 de janeiro de 27 a.C., quando o Senado

confere a Caio Júlio César Otaviano o título de Augusto. Essa data marca a

completa e perfeita metamorfose do outrora Caio Otávio Turino.

O triunfo ruidoso da batalha de Ácio deu a Otávio o nome de

Augusto e Imperador, transformou a República em Império (LOBO, 2006, p.

177). Otávio passou para história como Augusto, termo que vem do verbo

latino augere (para aumentar, prover, crescer) e pode ser traduzido como “o

ilustre”; “aquele que é digno de honrarias”; “o consagrado”; “excelso”;

“venerável”. Otávio, que já era filho de deus, pois César, seu pai adotivo, fora

reconhecido como deus em 42 a.C, torna-se, então, ele próprio divino.

O Capitólio abria, de par em par, as suas portas para dar entrada

ao vencedor de Marco Antônio, que vinha dizer ao mundo, do templo de

Júpiter, que estava iniciando o governo dos Césares (LOBO, 2006, p. 177). Já desde alguns anos antes, vinha Otávio obtendo prerrogativas que lhe preparavam caminho para a implantação do regime pessoal em Roma. Assim, em 36 a.C, foi-lhe conferida a tribunicia potestas, confirmada em 30 a.C, ano, aliás, em que um plebiscito lhe reconhece o direito de administrar a justiça. Em 29 a. C, o Senado lhe confirma o título de Imperador (que lhe dava a posição de herdeiro de César e que se transmitiria aos seus próprios herdeiros. Em 28 a.C., atribuiu-lhe o título de princips-senatus (ALVES, 2007, p. 32).

Otávio recebe o título de princips-senatus (príncipe do Senado,

primeiro dos Senadores). Pretendia ser, também, o primeiro cidadão - princeps-

civitatis (GIORDANI, 2002, p. 61). O título que preferia para designar sua

66

autoridade era princips, Primeiro Cidadão do Estado. Por essa razão, seu

governo e de seus sucessores leva o nome de Principado (BURNS, 1959, p.

224). A palava Príncipe, o primeiro cidadão, possuía um sentido bastante vago

e, assim, não provocava os melindres dos republicanos impertinentes que

ainda sonhavam com a volta dos velhos tempos (GIORDANI, 2002, p. 61).

Segundo Tácito, em Anais (III. LVI): Esse era o título que Augusto imaginara para designar o poder supremo, não querendo tomar o nome de rei ou ditador, mas procurando unicamente, debaixo de qualquer denominação que fosse, apossar-se da autoridade soberana (TACITUS, 1950, p. 140).

id summi fastigii vocabulum Augustus repperit, ne regis aut dictatoris nomen adsumeret ac tamen appellatione aliqua cetera imperia praemineret (TACITUS, 1906, p. 119).

À antiga sociedade sobrepõe-se um príncipe saído das mais altas

classes da sociedade romana ou a elas se dirigindo. Para os autores antigos

como Tácito, Plutarco e Suetônio, esse fato resumia todos os outros

(CROUZET, 1994, p. 129).

Diversamente de seu eminente tio, parece que Otávio não

alimentava ambições despóticas. Estava decidido, em todo caso, a preservar

as formas e não a substância do governo constitucional (BURNS, 1959, p.

231). Em 25 a.C, foi cognominado Pai da Pátria; recebera por dez anos o poder supremo. Em 21 a.C., foram-lhe transferidos os poderes tribunícios perpétuos e proconsular. Em 17 a.C., recebeu o poder consular perpétuo. Em 15 a.C, renovou o Senado os poderes absolutos por mais dez anos. Em 11 a.C., foi elevado a Pontifex Maximus, chefe supremo da religião (MEIRA, 1996, p. 105).

Eleito Pontifex Maximus e mais tarde Pæfectus Morum et Leges, embora já tivesse nas mãos o poder proconsular, que lhe assegurava dispor de forças públicas como entendesse, o poder tribinício, que tornava a pessoa inviolável e dava-lhe o direito de veto sobre todos os magistrads, o poder censorial, que permitia-lhe completar o Senado e proceder a apuração dos eleitos, todavia, não abusou da soberania que se lhe fora outorgada, partilhando, ou fingindo partilhar com o velho Senatus Populusque Romanus as atibuições governamentais (LOBO, 2006, p. 178).

Reúne o Príncipe, em suas mãos, poderes quase ilimitados. Em

virtude do imperium proconsular, que recebe do exército e do Senado, é o

chefe supremo das forças armadas, portanto pode fazer nomeações para

cargos civis e militares (CRETELLA, 2001a, p. 30).

67

O Principado apresenta dupla faceta: em Roma, é ele Monarquia

mitigada, pois o Príncipe é apenas o primeiro cidadão, que respeita as

instituições políticas da República; nas províncias imperiais, é Monarquia

absoluta (ALVES, 2007, p.32).

“Mais hábil político do que César, Otávio não demonstrou

claramente desejar suprimir o Senado e extinguir a República [...] continuavam

as aparências de República Senatorial, mas o verdadeiro regime era ditadura

perpétua” (DE CICCO, 2012, p. 59). Otávio teve que enfrentar um problema que César não chegara a resolver; como conciliar a necessidade de uma estrutura de poder com as características monárquicas exigidas para administrar o Império, nas condições sociais e culturais da época, com a necessidade de um sistema republicano, ditada pelas mesmas condições? A solução dada por Otávio foi criar gradualmente um Principado, configurando um sistema em que um Imperador, com o supremo poder militar, o comando sobre as províncias e a autoridade superior em Roma, na Itália e sobre o Estado romano de modo geral, governaria por delegação do Senado e da Assembléia Popular, preservando todas as formalidades republicanas e agindo estritamente de acordo com as leis. O sistema não foi concebido como um todo por Otávio, mas foi construído em passos sucessivos, à medida que se desenvolviam as relações entre o divi filius, o Senado, a opinião pública e o exército (JAGUARIBE, 2001, p. 30).

Profundas transformações na estrutura político-administrativa de

Roma são notadas a partir desse momento, estabelecendo Augusto uma

diarquia, são duas as autoridades romanas nesse tempo: a de Augusto e a do

Senado (FILLARDI LUIZ, 1999, p. 43). A noção de uma República restaurada

não poderia ocultar o domínio de Augusto, mas indicava, antes, o retorno à

normalidade após vinte anos de caos e o renovado funcionamento da

maquinaria do governo (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 74).

O imperador é um novo órgão que se insere na constituição

republicana, gozando de um prestígio pessoal (auctoritas43) que o coloca primu

inter pares. As instituições antigas vão perdendo sua importância (CORREIA;

SCIASCIA, 1949, p. 15). “Primeiro” dos cidadãos, o Imperador é também o

primeiro dos grandes aristocratas romanos (CROUZET, 1994, p. 129).

43 A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, “aumentar”, e aquilo que a autoridade ou os

da posse dela constantemernte aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores. [...] A autoridade em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado (ARENDT, 2007, p. 163).

68

A transformação do Estado, graças à habilidade de Otávio, foi

implementada em Roma de forma dura e levou a uma época de paz interna

que permitiu o desenvolvimento econômico e cultural de todo o Império

(LIBERATI, 2005, p. 34). Entretanto, o Principado, como regime de transição da

República à Monarquia absoluta, encaminha-se paulatinamente para o

absolutismo (ALVES, 2007, p.32). “Após tantas lutas civis, os romanos

gozavam da pax romana, que lhes dava tranquilidade interna, apesar de

submetê-los ao cetro de ferro dos imperadores” (DE CICCO, 2012, p. 59).

À custa de perder algumas das liberdades individuais, um

governo estável deu à maior parte do mundo ocidental civilizado cerca de dois

séculos e meio de paz e prosperidade (PARKER, 1995, p. 88)

1.2.2 - Os doze Césares

A Vida dos Doze Césares é o título da obra do já citado

historiador Suetônio, que narra a vida de Júlio César e de outros onze homens,

que foram os primeiros imperadores romanos, desde o filho adotivo de César,

Augusto, até a morte do imperador Domiciano no ano de 96 da nossa era.

Desse modo, a obra de Suêtonio percorre quase dois séculos da

história de Roma, pois começa quando Júlio César era um adolescente de 16

anos em 84 a.C, para, em seguida, relatar como a República se tornou um

Império e como esse Império, com ares de diarquia, cresceu e prosperou no

primeiro século da era cristã, não obstante diversas crises, inclusive dinásticas.

Destarte, toma-se emprestado o título da obra de Suetônio como

fio condutor da primeira terça parte do que se convencionou chamar

Principado.

Entre os onze Césares, que se sucederam à frente do Império

depois da morte do proto César, Júlio, temos: aqueles que usavam o nome de

César, pois, de algum modo, estavam ligados genealogicamente a ele, são

eles da dinastia Juliana-Claudiana - Augusto, Tibério, Calígula, Claudio e Nero;

aqueles que não chegaram a estabelecer uma dinastia, pois detiveram o poder

brevemente no chamado ano dos quatro imperadores - Galba, Otão e Vitélio; e,

69

por fim, aqueles que consolidaram o cognome César como um título, pois

jamais foram adotados pelos julianos, são eles da dinastia Flaviana -

Vespasiano, Tito Flávio e Domiciano.

Entre esses imperadores, que governaram Roma no primeiro

século, encontram-se alguns brilhantes e preparados, outros desimportantes,

outros ainda celerados. Todavia, Augusto deixara uma herança robusta e o

Principado se consolidou e, a despeito da falta de lustro de alguns desses

líderes, esse período histórico preparou a era que se segue, quando, depois da

morte de Domiciano no ano de 96, o Império Romano viveu seus dias mais

faustosos.

1.2.2.1 Dinastia Juliana-Claudiana

A dinastia Juliana-Claudiana foi estabelecida por Augusto e inclui

seus descendentes consanguíneos e por adoção. Augusto que, pelo lado

materno, era da gens Júlia, com a morte de Júlio César e sua consequente

adoção, torna-se o herdeiro e paterfamilias deste ramo genealógico. Augusto instituiu a continuidade dinástica que, embora fosse habilmente disfarçada, permitiu que quatro membros da família Júlio-Claudiana ocupassem o comando do império depois dele. Tibério (14-37 d.C) chegou ao poder por determinação de Augusto; Calígula (37-41 d.C) o conseguiu por proposta do prefeito pretoriano; Claúdio (41-45 d.C) por imposição da própria guarda pretoriana e Nero (54-68 d.C) pela vontade de sua mãe, Agripina44, mulher de Cléudio, que também teve o apoio da guarda pretoriana (LIBERATI, 2005, p. 36).

Em terceiras núpcias, Augusto se casara com Lívia, da gens

Cláudia. Lívia tinha dois filhos de um leito anterior, com seu primeiro marido,

também ele um Cláudio. Augusto não teve filhos com Lívia, mas adotara os

filhos dela.

Com a morte Augusto, sem descendentes masculinos, Tibério,

filho de Lívia, torna-se imperador, ele que, de nascimento, era da gens Cláudia,

tanto por parte de pai como de mãe e, por adoção, um Júlio.

44 Agripina Minor ou Agripina a jovem, bisneta de Augusto, irmã de Calígula, Imperatriz

consorte de Cláudio e mãe de Nero (LELLO, 1954, p. 74).

70

Tibério foi sucedido pelo seu sobrinho neto, Calígula, um Cláudio

por parte de pai, mas que, por lado materno, era um Júlio, pois era bisneto de

Augusto, sendo filho de Agripina45, filha de Júlia, que era filha de Augusto de

um leito anterior ao casamento com Lívia.

Claudio e Nero foram os últimos governantes dessa dinastia, o

primeiro era tio de Calígula e o segundo, seu sobrinho e ambos eram, tanto por

consanguinidade, como por adoção, membros da casa Júlia e da casa Cláudia. Os Júlios e os Cláudios receberam as mais gloriosas tradições de suas ilustres famílias. As dinastias subseqüentes, saídas da média burguesia italiana, como os Flávios ou de cidadãos estabelecidos em velhas províncias, como a maioria dos Antoninos, apressam-se em alçar-se à sua categoria, pois a participação no patriciado é de direito para todo novo imperador (CROUZET, 1994, p. 129).

O período Juliano-Claudiano não se caracterizou pela existência

de uma forte oposição à instituição do Principado como tal e foram efêmeras as

possibilidades de restaurar o governo republicano (CORNELL; MATTHEWS,

2005, p. 78).

1.2.2.1.1 O Governo de Augusto

Muito se falou do Augusto como político perspicaz que soube

conduzir com maestria a transição da República para uma autocracia

disfarçada de diarquia. Resta ainda deixar algumas notas sobre seu governo

de sucesso e sobre sua vida pessoal muito menos bem-sucedida que seu

governo.

Sua obra, como estadista, igualou pelo menos em importância a

de seus mais famosos predecessores (BURNS, 1959, p. 231). Internamente,

Augusto realiza grandes reformas de ordem financeira, judiciária,

administrativa, religiosa, social e moral (GIORDANI, 2002, p. 62). Entre as

reformas de Augusto, contam-se o estabelecimento de novas formas de

45 Agripina Maior, mãe de Calígula, era filha de Agripa e Júlia, deste modo neta de Augusto.

Casou com Germânico, neto de Lívia, por Druso, seu filho, irmão de Tibério. Germânico e neto também de Marco Antônio e Otávia, por Antônia, filha destes, esposa de Druso (LELLO, 1954, p. 74).

71

taxação, a criação de um sistema centralizado de tribunais, sob sua

fiscalização direta (BURNS, 1959, p. 231).

Nessa época, o Império continuou a crescer e assistiu à

consolidação econômica e social, além de um aumento notável na atividade

agrícola, na manufatura e no comércio (LIBERATI, 2005, p. 36). Augusto

manejou, com grande habilidade, a situação política, contando com a ajuda de

conselheiros notáveis, como Mecenas46 e Agripa47, além de sua terceira

esposa Lívia (FRÓES, 2004, p. 81).

Escritores e artistas promoveram os ideais do regime alentados

por Mecenas, amigo do imperador (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 66).

Augusto incentivou as Artes e a Literatura. Nas Artes, anotemos,

principalmente, o desenvolvimento da Arquitetura com a construção de

palácios, basílicas, fóruns, aquedutos, teatros, arcos de triunfo, termas e

pontes (GIORDANI, 2002, p. 62). Vitrúvio, o arquiteto romano do século

primeiro, dedicou sua obra Da Arquitetura para Augusto (LELLO, 1954, p. 197).

Tal tratado, quando redescoberto durante o Renascimento, inspirou obras de

artistas e arquitetos, em particular a notória representação gráfica do homem

proporcional, descrito por Vitrúvio, realizada mais de mil e quatrocentos anos

depois por Leonardo da Vinci.

Na Literatura, sob a proteção e incentivos oficiais, floresceram,

sobretudo, a epopeia e o lirismo (GIORDANI, 2002, p. 62). Surgiram, nessa

época, alguns dos melhores expoentes da Literatura latina: Virgílio, Ovídio,

Horácio, Propércio, Tíbulo e Tito Lívio (LIBERATI, 2005, p. 34). Do ponto de

vista cultural, a era de Augusto foi a Idade do Ouro das letras romanas

(JAGUARIBE, 2001, p. 380).

A política externa de Augusto tinha um caráter nitidamente

defensivo; um poderoso exército permanente, a conquista de fronteiras

46 Caio Cilino Mecenas (60 a.C. - 8 d.C.), estadista romano, amigo, ministro e conselheiro de Augusto. Generoso patrocinador das artes, protegeu muitos dos mais célebres expoentes da literatura latina, entre os quais Horácio, Virilio, Propércio, Tito Lívioe Ovídio. Seu nome próprio tornou-se substantivo comum que, na maioria dos idiomas ocidentais modernos,é sinônimo de financiador das artes (LELLO, 1954, p. 197).

47 Marco Vispânio Agripa (63 a.C. - 12 d.C.), general e almirante romano que liderou as vitórias navais de Augusto contra Sexto Pompeu, na Sicília, e Marco Antonio, em Ácio. Era amigo de Otávio e foi seu genro durante o casamento com Júlia, filha deste. Agripina, sua filha, é, portanto, neta de Augusto e foi a mãe de Calígula (LELLO, 1954, p. 74).

72

estratégicas e o emprego de diplomacia são os instrumentos dessa política

(GIORDANI, 2002, p. 63).

Para assegurar o trânsito pelos Alpes e prevendo futuras

campanhas militares para a expansão até a Europa Central, Augusto dominou

vários povos alpinos (BOVO, 2006b, p. 15). A diplomacia romana, mais que o

emprego da força, consegue, no Oriente, estender a fronteira militar do Império

até o Eufrates e submeter a Armênia (GIORDANI, 2002, p. 63). Augusto

conquistou a parte setentrional da Península Ibérica e criou a nova província da

Lusitânia. Ampliou o território da Espanha Citerior, que passou a chamar-se

Terraconense (BOVO, 2006b, p. 15).

No campo moral, Augusto procurou combater um dos grandes

males de que padecia Roma: o decréscimo da população. Para remediá-lo,

procurou auxiliar as famílias numerosas (GIORDANI, 2002, p. 62). Fez

promulgar leis que tinham por fim impedir os males sociais e morais notórios do

tempo: o divórcio, a limitação da prole e o adultério (BURNS, 1959, p. 231).

A ideia tradicional de que todos os cidadãos romanos tinham a

obrigação de casar-se e ter filhos transformou-se em política oficial (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 76).

Lívia foi provavelmente a inspiradora das medidas com que

Augusto buscou ressuscitar a antiga moral romana, reprimindo a libertinagem e

o adultério, aplicação de multa a solteiros, divorciados, viúvos e casais sem

filho (FRÓES, 2004, p. 81); ao lado de facilidades e honras para aqueles que

tinham três filhos ou mais (BOVO, 2006b, p. 15).

“Sua vida familiar foi marcada pela tragédia e pelo fracasso48,

embora ele tenha mantido a confiança de sua terceira esposa, Lívia, ao longo

de seus 53 anos de casamento” (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 77).

48 Escribônia, matrona patrícia, muito mais velha que Otávio foi sua esposa, casou-se com ele

graças a alianças políticas. Escribônia era descendente direta de Sila e de Pompeu (CURCHIN, texto digital). A única filha de Otávio, Júlia, fruto de seu casamento com sua segunda esposa, Escribônia, foi célebre por sua beleza e pelos seus costumes desregrados; casou três vezes sucessivamente com: Marcelo, seu primo (filho de Marco Antônio e Otávia); Agripa (general amigo de seu pai) e Tibério (filho de Lívia e seu irmão adotivo). Sua má conduta moral e seus notórios casos de adultério e orgias causaram-lhe a condenação pelas leis promulgadas pelo próprio pai e, por isso, foi exilada.Júlia teve cinco filhos com Agripa, sendo três homens e duas mulheres. Com Tibério, teve um filho homem. Os filhos varões de Júlia morreram antes de seu avô Augusto

73

Embora sua saúde fosse delicada, Augusto viveu até os 77 anos

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 77). Morreu em Nola, já muito enfermo, em

14 da era cristã (FRÓES, 2004, p. 81). Augusto faleceu tranquilamente em Nola, a 19 de agosto do ano 14 de nossa era. No dia de sua morte, chamou seus amigos e interrogou: “Julgais que desempenhei bem meu papel na vida?”, acrescentando, a seguir, em grego, a tradicional frase com que encerravam as peças teatrais: “Se ficastes satisfeitos, batei palmas e aplaudi o ator[...]” (GIORDANI, 2002, p. 64).

Augusto morreu sem deixar herdeiros, já que todos os seus

sucessores desapareceram um atrás do outro. Tibério, da família dos Claúdios,

filho do primeiro casamento de Lívia, sua terceira esposa, foi seu sucessor

(BOVO, 2006b, p. 15).

Quando Augusto morreu, Roma já tinha se transformado em um

Império e vislumbrava as linhas de ação que determinaram seu curso nos

séculos seguintes (LIBERATI, 2005, p. 34). Com efeito, o edifício institucional

erigido por Augusto provou sua estabilidade, sustentando por mais meio século

a sucessão de quatro Imperadores da família Júlia e Cláudia. (JAGUARIBE,

2001, p. 380).

1.2.2.1.2 Os Sucessores de Augusto: Tibério, Calígula, Cláudio e Nero

Depois da morte de Augusto, em 14 d.C, Roma teve poucos

dirigentes esclarecidos e capazes. Muito de seus sucessores foram tiranos

brutais (BURNS, 1959, p. 231). No entanto, a dinastia Juliana-Claudiana

produziu dois bons Imperadores: Tibério e Cláudio (JAGUARIBE, 2001, p. 380).

Tibério (14-37) era reservado, frio, mas grande conhecedor dos

problemas do Império. Presidiu o funeral de Augusto e leu o elogio ao

Imperador. (FRÓES, 2004, p. 81). Subiu ao trono com 55 anos (GIORDANI,

2002, p. 54). Tem má reputação entre os historiadores, não totalmente

imerecida, devido à longa dependência, entre 21 e 31 d.C, de uma figura

traiçoeira, Sejano, prefeito da guarda pretoriana (JAGUARIBE, 2001, p. 393).

Após a ascensão de Tibério, o Senado revisou, pela primeira vez,

formalmente, a natureza do cargo imperial e sancionou sua sobrevivência. A

74

sucessão foi, desde o princípio, matéria de herança dinástica (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 77).

No início, Tibério seguiu uma trajetória moderada, procurando

conter os gastos e reforçar as fronteiras do Império (BOVO, 2006b, p. 14).

Preferia a paz às glórias militares, embora tivesse sido hábil general. No

Ocidente, seu sobrinho e filho adotivo Germânico, enfrentou os bárbaros. No

oriente, romanos e partos enfrentaram a invasão dos alanos através do

Cáucaso (GIORDANI, 2002, p. 64). Devido a algumas dificuldades na administração do Estado e a reduzida aprovação que encontrou entre seus súditos - foi acusado de ter matado seu sobrinho Germânico -, foi endurecendo sua postura. Vários anos depois, em 27 d.C., talvez devido a atentados contra sua vida, se exilou na ilha de Capri. O afastamento voluntário do imperador aumentou em Roma o poder do cônsul e prefeito pretório Sejano, que em 31 d.C. tentou tomar o poder com um golpe de Estado. Tibério descobriu a conspiração e fez com que Sejano fosse executado (BOVO, 2006b, p. 15).

Tibério era de uma personalidade ressentida, permanentemente

contra todos, e seu governo foi uma verdadeira orgia de crimes, revelando-se

um déspota sanguinário. Morreu em Capri em 37 a.D. (FRÓES, 2004, p. 82). A

morte de Tibério, em 37 d.C., foi recebida com júbilo pelo Senado e pelo povo

romano, como resultado do pouco que tinha feito para tornar-se popular

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 78). Foi aclamado seu sucessor o jovem

filho de Germânico, Caio César, chamado Calígula (BOVO, 2006b, p. 14).

(BRADFORD, 2002, p. 79), contando com 25 anos de idade quando assumiu o

trono imperial (FRÓES, 2004, p. 82).

Calígula (37-41) era, de fato, um apelido. O termo deriva de

caliga, nome que se dava aos calçados dos soldados (FRÓES, 2004, p. 82).

Apelido dado a Caio por ter adotado, na infância, o calçado militar (GIORDANI,

2002, p. 64).

O reinado de Calígula começou com bons augúrios (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 78). A ascensão de Caio César, filho do popular

Germânico, foi uma alegria (GIORDANI, 2002, p. 64). Germânico era

idolatrado pelo povo romano (FRÓES, 2004, p. 82). Ademais, Calígula era

descendente direto do Príncipe Augusto e contava, na sua árvore genealógica,

com praticamente todos os romanos eminentes do último século49.

49 Ver notas 44, 45, 47 e 48.

75

Calígula não correspondeu às esperanças nele depositadas.

Após uma grave enfermidade, passou a sofrer de uma verdadeira doença

mental que o fez cometer os maiores desatinos (GIORDANI, 2002, p. 64). Foi,

de fato, um imperador tresloucado, segundo se descreve, com os piores

instintos, megalomaníaco e excêntrico (FRÓES, 2004, p. 82).

Procurou introduzir em Roma um despotismo teocrático à moda

oriental (sofreu influência de servidores egípcios), considerando-se como um

deus vivo (GIORDANI, 2002, p. 64). Ele se tinha proposto a transformar o

Principado em uma flamejante Monarquia Helenística do tipo familiar. Seu

reinado degenerou em uma caprichosa tirania, que terminou com seu

assassinato (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 78)

Em 41 d.C, depois de somente quatro anos de reinado, encontrou

a morte junto com sua esposa e a única filha, em mão dos pretorianos50, que

proclamaram Cláudio, irmão de Germânico, imperador (BOVO, 2006b, p. 14).

Os republicanos viram na morte de Calígula uma oportunidade para a extinção

do Principado. Os pretorianos, porém, preferiram proclamar Cláudio imperador

(GIORDANI, 2002, p. 64).

Cláudio (41-54), inesperadamente convertido em imperador após

o assassinato de Calígula, demonstrou que era sério, trabalhador e pacífico e

se dedicou a melhorar a administração, as obras públicas e as conquistas

externas (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 78). O reinado de Cláudio foi

marcado por um governo de boa qualidade, e pela expansão do Império, com a

conquista da Grã-Bretanha por Aulo Pláutio, em 43 a.D. (JAGUARIBE, 2001, p.

394). Claúdio, tio de Calígula, era uma personalidade curiosa em que à aparência de imbecil se aliavam inegáveis dotes de honestidade, amor ao trabalho e erudição. Consagrara-se, durante muito tempo, ao estudo. Conhecia bem o grego e escrevera diversas obras, entre as quais uma História dos etruscos e outra de Cartago (GIORDANI, 2002, p. 64).

Cláudio ter se tornado imperador foi uma surpresa para todos,

inclusive para ele, que fora uma criança malsã, pela qual nem a família

devotava carinho e respeito, ou depositava esperanças.

50 Guarda Pretoriana: Criada por Augusto e dissolvida por Constantino, Magno, no século IV,

era um corpo de elite do exército romano cuja função era proteger o imperador (LELLO, 1954, p. 1.170).

76

Suetônio descreve-nos com detalhes tanto seu aspecto, quanto a

reação que inspirava nos seus parentes mais próximos: Aplicou-se, desde os verdes anos, às disciplinas liberais com um zelo fora do comume, repetidas vezes, deu ao público amostras de seu saber, em cada gênero. Mesmo assim, porém, não conseguiu conquistar nenhuma consideração, nem despertar a esperança de futuros maiores proveitos a seu respeito. A sua mãe Antônia afirmava sem cessar que ele era um monstro: não havia sido acabado, mas apenas esboçado pela Natureza. A sua avó Augusta tratava-o com o maior desdém. Só lhe falava muito raramente e não lhe dava conselhos senão por meio de bilhetes ásperos e secos, ou então empregando intermediários (Suetônio, 2002, 296).

Não lhe faltava, em absoluto, um certo ar de grandeza e dignidade, quer estivesse de pé ou em repouso. Seu corpo era delgado e bem-feito, mas não magro. Bela fisionomia e belos cabelos brancos. Pescoço grosso. Quando caminhava, porém, seus joelhos, pouco sólidos, desapareciam sob o seu corpo. Sério ou gracejando, tinha algo de ridículo: riso desagracioso, cólera mais feia ainda. Espumava a ponto de umedecer as narinas. Por outra parte, se trabalhasse em alguma coisa, por pouco que fosse, sentia a língua embaraçar e a cabeça tremer continuamente (Suetônio, 2002, 233).

O governo de Cláudio caracteriza-se pela influência de pessoas

de sua família (Messalina e Agripina) e de seus libertos Narciso, Políbio, Palas

e Calisto (GIORDANI, 2002, p. 64). Durante seu domínio, os verdadeiros

condutores do Império foram sua mulher Messalina, cujo nome personificou o

escândalo, e seus libertos (FRÓES, 2004, p. 82). Era especialmente fraco com

suas esposas, tendo tido quatro casamentos (JAGUARIBE, 2001, p. 394). Em

48 d.C., mandou executar a sua terceira esposa, Messalina, acusada de

adultério e de conspirar contra ele, casou-se com Agripina que o convenceu a

adotar seu filho Nero (BOVO, 2006b, p. 14). Depois disso casou-se com sua sobrinha, Agripina, que o induziu a adotar como sucessor seu filho, Nero, em lugar do seu próprio filho, Britânico. Muitos pensam que Cláudio morreu envenenado pela esposa, para antecipar a sucessão de Nero, que por sua vez usou o mesmo procedimento com o jovem Britânico (JAGUARIBE, 2001, p. 394).

Cláudio morreu repentinamente em 54 d.C., talvez assassinado

por sua mulher, que convenceu os pretorianos a reconhecer Nero como

imperador (BOVO, 2006b, p. 15).

Nero (54-68), aclamado pelos pretorianos, recebeu do Senado os

poderes imperiais aos 17 anos (GIORDANI, 2002, p. 65). Nos primeiros anos

de seu reinado, o jovem imperador foi assistido por sua mãe e prestigiosos

77

conselheiros, como o filósofo Sêneca e o chefe dos pretorianos, Afrânio Burro

(BOVO, 2006b, p. 14).

Nero prometeu restaurar o princípio augustal da divisão de

poderes entre o imperador e o Senado. Enquanto foi influenciado pelo seu

tutor, o filósofo estóico Sêneca, essas promessas foram observadas

(CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 78). Sua política era moderada e

conciliadora com os senadores (BOVO, 2006b, p. 14).

Os maus instintos do novo César revelaram-se pela perseguição

de todos que podiam fazer sombra à sua autoridade despótica: Britânico, seu

irmão; Agripina, sua mãe; Otávia, sua esposa; Burro e Sêneca (GIORDANI,

2002, p. 65). Assassinou a própria mãe porque suspeitava que ela pretendia destroná-lo. Com o intuito de realizar novas núpcias, assassinou a mulher Otávia. Mais tarde, o seu preceptor Sêneca acabou cometendo suicídio, com grande serenidade, dando assim o exemplo dos estóicos. Morre com Sêneca o grande poeta Lucano, autor de Farsalia (FRÓES, 2004, p. 82).

O assassinato de sua mãe, no ano de 59 d.C, coincidiu com

profundas mudanças na política econômica e com a tentativa de instaurar a

monarquia absoluta (BOVO, 2006b, p. 14).

Coube a Nero o triste papel de ser o iniciador das grandes

perseguições aos cristãos em Roma, sob o pretexto de terem incendiado a

cidade. Nessa época, pereceram martirizados os apóstolos São Pedro e São

Paulo (GIORDANI, 2002, p. 65).

Na primavera de 68, um senador gaulês chamado Júlio Vindex,

governador da província Lungdunse da Gália, buscou apoio entre os comandos

provinciais para provocar uma revolta geral (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p.

79). Na Espanha, Galba e Otão, governadores das províncias Terraconense e

Lusitânia, sublevaram-se e marcharam sobre Roma com suas legiões (BOVO,

2006b, p. 15).

Nero, abandonado pelo Senado e pela guarda pretoriana,

suicidou-se e Galba foi aclamado imperador pelo exército da Espanha. Tal fato

teria consequências: ficaria patente que um imperador podia ser feito fora de

Roma (GIORDANI, 2002, p. 65).

O exército manteve a sua lealdade aos herdeiros de Augusto até

a morte de Nero no ano de 68, quando, por pouco tempo, reapareceram as

78

guerras civis (GIORDANI, 2002, p. 77). Em 68 a.D., o exército começou a

participar da escolha de Príncipe, do que resultou ser o chefe do governo em

várias ocasiões nada mais que um ditador militar (BURNS, 1959, p. 231).

A morte de Nero é o fim da dinastia iniciada por Augusto, mas,

diferentemente do que se podia esperar, o Principado teve fôlego para seguir

eficaz por mais de dois séculos. Talvez uma boa explicação para isso esteja no

seguinte texto do cientista social Hélio Jaguaribe: Nero era um bufão irresponsável. Mais ainda, a solidez do sistema montado por Augusto e a sua adequação às necessidades do mundo romano foram confirmadas pelo fato de que a crise do fim da dinastia, após um breve período intermediário, não degenerou em anarquia militar nem trouxe de volta o velho regime republicano, mas levou à sua continuação, com os Flavianos e Antoninos (JAGUARIBE, 2001, p. 380).

1.2.2.2. Dinastia Flaviana

Depois da morte de Nero, o quadro político tornou-se complexo.

Durante o ano de 69, o Império mergulhou numa grave anarquia militar, que

desembocou na guerra civil (LIBERATI, 2005, p. 37).

Quatro imperadores foram proclamados num mesmo ano. Isso

mostrou que, quando um imperador não era capaz de assegurar ao seu

sucessor um domínio tranquilo, o verdadeiro poder ficava com o exército

(ROBERTS, 2001, p. 230). Cada exército nomeia seu imperador, num

verdadeiro caos, buscando recompensas e poder junto ao trono (FRÓES,

2004, p. 83).

No final do chamado “Ano dos Quatro Imperadores”, surgiu um

bom imperador, Vespasiano (ROBERTS, 2001, p. 230). Galba, Oto e Vitélio

apenas passaram. Vespasiano, como eles, foi eleito pelos soldados

(MONTESQUIEU, 2002, p. 121). Não se tratava de um aristocrata romano,

mas de um soldado de destaque (ROBERTS, 2001, p. 230). Vepasiano era

filho de um modesto coletor de impostos (JAGUARIBE, 2001, p. 385).

Vespasiano (69-79) impôs-se com o apoio das legiões do Oriente

e do Danúbio, e sua proclamação foi ratificada pelo Senado. Vespasiano foi o

79

fundador da dinastia Flaviana e demonstrou ser um excelente administrador

(LIBERATI, 2005, p. 37).

“Durante todo o seu reinado, pensou apenas em restabelecer a

autoridade, que fora sucessivamente ocupada por seis tiranos igualmente

cruéis, exaltados, imbecis e absurdamente pródigos” (MONTESQUIEU, 2002,

p. 121). Ele foi sucedido por seus filhos, Tito (79-81) e Domiciano (81-96)

(LIBERATI, 2005, p. 37).

Tito (79-81) superou a bondade de seu pai de tal forma que

passou a ser chamado “delícia do povo romano e do gênero humano”.

Entretanto, não levou muito a sério a dignidade imperial de que estava

investido, não se considerava um deus (FRÓES, 2004, p. 85).

Durante o reinado de Tito, no ano 79, aconteceu a erupção do

Vesúvio, que destruiu as cidades de Pompeia, Estábias e Herculano

(LIBERATI, 2005, p. 37). Em seu breve governo, outras grandes catástrofes se

abateram sobre a Itália: um incêndio devastador destruiu importantes edifícios

em Roma no mesmo ano de 79 e, no ano de 80, uma peste assolou e dizimou

a Itália (GIORDANI, 2002, p. 67).

Morre atacado por febre em 13 de setembro de 81, em Sabina,

onde nascera (FRÓES, 2004, p. 85).

Domiciano (81-96) deu a ser um novo monstro, mais cruel ou,

pelo menos, mais implacável que seus antecessores, porque era mais tímido

(MONTESQUIEU, 2002, p. 121). Inicia seu reinado como um modelo e termina

como um sádico insuportável que submergiu Roma num banho de sangue, só

comparável a Nero (FRÓES, 2004, p. 85).

Domiciano tentou - como já tinha tentado Calígula - implantar uma

verdadeira monarquia absoluta. Nessa época, o Senado perdeu

completamente sua função de órgão deliberativo (LIBERATI, 2005, p. 37).

A partir de 92, o imperador inicia uma era de terror em que a

morte e o desterro ferem a aristocracia e até membros da família imperial.

Domiciano promoveu a segunda perseguição aos cristãos (GIORDANI, 2002,

p. 67). Ele tinha grande afeição pelos estudos e pela poesia. Cuidou da

reconstrução do Capitólio e do restabelecimento da Biblioteca Palatina. Trouxe

copistas de Alexandria, que recompuseram as riquezas literárias (FRÓES,

2004, p. 85).

80

Uma conspiração palaciana, a que aderiu a própria imperatriz

Domícia, eliminou o tirano, em 96, extinguindo-se, assim, a dinastia dos Flávios

(GIORDANI, 2002, p. 67).

Sob o poder dos Flavianos, Roma enriqueceu com novos

monumentos importantes, dos quais o mais famoso é o Coliseu. As fronteiras

foram consolidadas, e o Império viveu uma época bastante tranquila

(LIBERATI, 2005, p. 37).

Desde Vespasiano, Roma viveu um período ininterrupto de paz e

prosperidade, que se prolongaria até a morte de Marco Aurélio em 180. Com a

exceção parcial de Domiciano, bons imperadores retomaram o estilo de

Augusto (JAGUARIBE, 2001, p. 395).

Os Flávios não foram capazes de manter uma longa sucessão

heritária e os imperadores do século II voltaram à solução de Augusto, de

adotar herdeiros.

1.2.3 - Os Bons Imperadores e o Século de Ouro do Império.

Os imperadores Antoninos deram ao Império quase um século de

governo eficiente e tranquilo, que mais tarde pareceria uma época áurea. Três

eram de origem espanhola, portanto o Império não pertencia mais aos Italianos

(ROBERTS, 2001, p. 231). Gibbon51, autor de uma obra clássica sobre o

assunto, cantaria a excelência da era dos Antoninos como o período mais feliz

da história da humanidade: Se fosse mister determinar o período da história do mundo durante o qual a condição da raça humana foi mais ditosa e mais próspera, ter-se-ia sem hesitação de apontar a que se estende da morte de Domiciano até a elevação de Cômodo. A vasta extensão do Império romano era governada pelo poder absoluto sob a inspiração da virtude e da sabedoria. Os exércitos foram contidos pela mão branda mas

51 Edward Gibbon (1737-1794): historiador e membro do parlamento inglês, do espírito do iluminismo autor de A História do Declínio e Queda do Império Romano (The History of the Decline and Fall of the Roman Empire) (GIBBON, 1978, p. V).

81

firme de quatro imperadores sucessivos cujo caráter e autoridade suscitaram respeito involuntário. As formas da administração civil, cuidadosamente preservadas por Nerva, Trajano, Adriano e os Antoninos, justificavam a imagem de liberdade em que eles se compraziam, considerando-se ministros responsáveis perante as leis. Tais príncipes mereceriam a honra de restaurar a república, tivessem os romanos de sua época sido capazes de desfrutar uma liberdade racional (GIBBON, 1989, p. 87)52

Estudando a Dinastia dos Antoninos, o historiador Homo53 anota:

“Um prólogo, Nerva; quatro atos Trajano, Adriano, Antonino e M. Aurélio; um

epílogo, Cômodo, assim aparece aos olhos da história o Século de Ouro do

Império Romano” (GIORDANI, 2002, p. 67). Os imperadores Antoninos que, com exceção dos dois últimos, não estavam ligados entre si por laços de filiação natural procuraram garantir sua sucessão por meio da adoção e da associação ao governo do futuro imperador. Tal sistema, que impediu a ingerência indevida da guarda pretoriana na escolha do soberano, foi facilitada pelo fato de que três grandes imperadores (Trajano, Adriano e Antonino Pio) não possuíam filhos (GIORDANI, 2002, p. 67).

A intriga palaciana que eliminara o último dos Flávios abriria um

vácuo no poder, pois, em mais de um século de Principado, Roma já se

acostumara com uma sucessão hereditária. No entanto, há de se imaginar que

os conjurados tinham um plano sucessório para completar com sucesso o

golpe de Estado, pois a transição, ao contrário do que se poderia supor, foi

pacífica. Essa transição de concórdia provavelmente contava com

concordância do escolhido para o cargo.

Esses conspiradores tinham conseguido a pronta aprovação do

Senado ao sucessor, Nerva, um velho senador, rico e respeitado, que

restaurou a linha flaviana de bom governo (JAGUARIBE, 2001, p. 396). Parte

do atrativo de Nerva como candidato consistia em não ter filhos, o que parecia

52 No original: If a man were called to fix the period in the history of the world, during which the

condition of the human race was most happy and prosperous, he would, without hesitation, name that which elapsed from the death of Domitian to the accession of Commodus. The vast extent of the Roman empire was governed by absolute power, under the guidance of virtue and wisdom. The armies were restrained by the firm but gentle hand of four successive emperors, whose characters and authority commanded involuntary respect. The forms of the civil administration were carefully preserved by Nerva, Trajan, Hadrian, and the Antonines, who delighted in the image of liberty, and were pleased with considering themselves as the accountable ministers of the laws. Such princes deserved the honor of restoring the republic, had the Romans of their days been capable of enjoying a rational freedom (GIBBON, 1978, p. 32).

53 Léon Pol Homo (1872-1957): historiador francês, do espírito do iluminismo autor de O Século

de Ouro do Império Romano (Le siècle d'or de l'empire romain. Les Antonins (96-192 ap. J.C) (GIORDANI, 2002, p. 386).

82

deixar aberta uma possibilidade de manobrar politicamente (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 102).

Nerva (96-98) era um senador venerável, que, por sua idade, não

conseguiu governar muito tempo (FRÓES, 2004, p. 86). Escolhido pelo

Senado com idade já avançada, imadiatamente adotou e incorporou ao

governo Trajano (LIBERATI, 2005, p. 39).

Nerva inaugurou a prática de selecionar um bom sucessor

mediante sua adoção. A adoção do general Trajano em 97 garantiu a

tranquilidade de seu curto reinado, que representou uma ponte entre os

flavianos e os antoninos (JAGUARIBE, 2001, p. 395).

Trajano (98-117), chamado oficialmente pelo Senado em 114 “o

melhor dos príncipes” (optimus princeps), uniu às notáveis qualidades de militar

uma grande capacidade de administrador (GIORDANI, 2002, p. 68).

Trajano tinha nascido em Itálica, na Espanha, e sua origem

provinciana correspondia à equiparação entre as províncias e a Itália, algo que

já era um feito e foi uma das razões da prosperidade e da forte união do

Império (LIBERATI, 2005, p. 3).

Com Trajano, começou, latu senso, a linha dinástica dos

Antoninos, mantendo, por adoção, uma série de imperadores competentes, que

garantiram o mais longo período de bom governo da história de Roma

(JAGUARIBE, 2001, p. 395).

Trajano destacou-se como militar nas campanhas contra os

dácios e os partos. Decidiu pela reconstrução do Império em todos os seus

aspectos: agricultura, artes, letras, filosofia (FRÓES, 2004, p. 86). Trajano foi o

último grande conquistador romano, seu gênio militar é só comparável, na

antiguidade, a César e a Alexandre Magno. A política exterior de Trajano se distingue por uma forte tendência expansionista, devido, sobretudo, à necessidade de fundos. As campanhas militares levam o Império Romano à sua máxima extensão, com a conquista da Dácia (atual Romênia), a Arábia Pétrea, Assíria e Mesopotâmia (que passam a ser províncias), e a ocupação de Ctesifonte, a capital dos partos (BOVO, 2006c, p. 12).

Preocupado com a defesa das fronteiras, construiu fortificações

em lugares estratégicos. Infelizmente, para Roma, morreu antes de consolidar

suas conquistas - o que poderia ter feito em apenas alguns anos mais

(JAGUARIBE, 2001, p. 397).

83

Trajano faleceu em 117, na Cilícia. Segundo Plotina, sua viúva,

este havia manifestado o desejo de que Adriano, seu parente e companheiro

constante, fosse também seu sucessor (GIORDANI, 2002, p. 68). Adotado por

Trajano no seu leito de morte, Adriano tinha prestado importantes serviços

militares ao imperador. Como Trajano pertencia a uma família de Roma que

havia emigrado para a Espanha (JAGUARIBE, 2001, p. 397), afastados os

possíveis adversários, Adriano foi reconhecido pelo Senado e teve um reinado

tranquilo de mais de vinte anos (GIORDANI, 2002, p. 68).

Adriano (117-138) foi um grande consolidador. Tinha um

conhecimento amplo e preciso das condições de cada província e do governo

central, dos seus recursos humanos e financeiros (JAGUARIBE, 2001, p. 397).

A grande preocupação do novo imperador foi a manutenção da paz. Renunciou

às guerras de conquista do antecessor e procurou manter a paz, fortificando as

fronteiras do império (GIORDANI, 2002, p. 68), com um poderoso sistema de

fortificações defensivas, entre as quais a famosa muralha britânica (LIBERATI,

2005, p. 39). A obra de Adriano constituiu essencialmente na consolidação institucional e operacional do Império. Com a ajuda do jurista Sálvio Juliano, ele produziu a codificação definitiva dos decretos do Prætor, conferindo segurança e objetividade ao sistema judicial. A única fonte legal passou a ser os decretos do imperador (JAGUARIBE, 2001, p. 397).

No principado, o pretor, embora não tenha perdido, até o tempo do imperador Adriano, o poder de, indiretamente, criar direitos por meio de elaboração de seu edito (ius edicendi), na prática se limita, geralmente, a copiar os editos de seus antecessores, e isso, por certo, pela posição subalterna a que ficou reduzida, nesse período a pretura. Assim, o edito já se consolidara, de fato, pela ausência de modificações introduzidas pelos pretores que se sucediam. E essa situação de fato se converteu em situação de direito na época de Adriano, imperador que ordenou ao jurisconsulto Sálvio Juliano a fixação definitiva do texto dos editos. A esse trabalho foi dada a denominação de Edictum Perpetuum (Edito Perpétuo) pela imutabilidade do texto. A partir de então o pretor somente pode criar novos meios processuais por solicitação do Príncipe ou do Senado (ALVES, 2007, p.32).

Em 137, ao completar vinte anos de reinado, Adriano recebeu

do Senado elogios e honrarias sem precedentes, mas já estava doente e se

tornara uma figura tristonha e solitária, sujeito a crises de ausência

(JAGUARIBE, 2001, p. 398).

84

Adriano adotara e escolhera como sucessor Antonino Pio, que

unia à capacidade de administração, já provada no exercício de elevados

cargos públicos, um profundo espírito de honestidade e ponderação

(GIORDANI, 2002, p. 69). Em 138, Adriano morreu e Antonino não teve

dificuldade em obter o reconhecimento do Senado como sucessor

(JAGUARIBE, 2001, p. 398).

Antonino Pio (138 - 161) recebeu do Senado o título de Pius, por

sua fidelidade à memória de Adriano. O reinado de Antonino Pio é uma época

de paz e tranquilidade irradiadas pela personalidade bondosa do soberano

(GIORDANI, 2002, p. 69).

Na política externa, reprimiu, sem abandonar a Itália, algumas

rebeliões na Bretanha, Germânia, Dácia, Acaia e Egito (GIORDANI, 2002, p.

70). Antonino Pio manteve, em sua política, a linha de seu antecessor e

construiu, na Bretanha, uma nova muralha ao norte daquela de Adriano

(LIBERATI, 2005, p. 39). Teve um reinado pacífico, gozando as vantagens da

boa administração e da cuidadosa proteção de fronteiras praticadas pelo seu

predecessor (JAGUARIBE, 2001, p. 398).

Nomeou sempre como auxiliares pessoas experientes e justas.

Criou importantes instituições. Socorreu cidades assoladas por calamidades

públicas (FRÓES, 2004, p. 87).

O reinado de Antonino Pio marca, na realidade, uma das épocas

mais felizes do gênero humano. O imperador mereceu o epíteto que lhe deu

Pausânias54: “pai dos homens” (GIORDANI, 2002, p. 70).

Ao sentir a morte, Antonino Pio mandou que se levasse a estátua

de ouro da Vitória para a casa do filho adotivo, Marco Aurélio, chamado “o

filósofo”, que deu continuidade às suas obras (FRÓES, 2004, p. 87).

Marco Aurélio (161-180) foi o derradeiro grande imperador da

dinastia dos Antoninos e, também, uma figura trágica em todos os sentidos

(JAGUARIBE, 2001, p. 399). Filho adotivo de Antonino, esposo da filha deste,

Faustina, e associado, desde cedo, ao governo, era dotado das mais elevadas

qualidades morais (GIORDANI, 2002, p. 70).

54 Pausânias, geógrafo e historiador grego do século II, autor de Itinerário da Grécia (Periegesis

Hellados), obra composta por dez livros, é a melhor fonte em que os arqueólogos podem procurar os locais de monumentos da antiguidade clássica.

85

Quando Antonino adotara Marco Aurélio, fizera-o por

determinação de Adriano, que ainda vivia. Adriano, na ocasião, ordenara que

Antonino adotasse também o jovem Lúcio Vero. No testamento de Adriano,

ficou, portanto, estipulado que os herdeiros de Antonino seriam os dois irmãos

adotivos, na qualidade de coimperadores.

Marco Aurélio cumpriu escrupulosamente o testamento de

Adriano, formando um colegiado com seu incompetente coimperador, o “irmão”

Lúcio Vero. E até a morte deste, em 169, precisou constantemente consertar

suas falhas (JAGUARIBE, 2001, p. 399).

Conhecido pelas suas notórias virtudes, pela sua vida trágica e

pela sua filosofia estóica, Marco Aurélio é objeto de um estudo mais

aprofundado no capítulo seguinte da presente obra. Por ora, para que se

prossiga com a evolução factual e cronológica da história do principado,

interessa salientar que, apesar de tão preparado e virtuoso, Marco Aurélio foi

incapaz de, como seus antecessores, preparar uma sucessão tranquila e

vantajosa para o Império. Marco Aurélio decidiu interromper a seqüência das adoções imperiais que vinham prevalecendo desde Trajano (no caso dos imperadores sem herdeiros do sexo masculino), em favor de seu filho Cômodo, entre outras razões porque não encontrou um candidato para a sucessão que tivesse aceitação geral. Conhecia as limitações de Cômodo, mas esperava, generosamente, que um dia pudesse ser um bom imperador, caso se cercasse de bons conselheiros (JAGUARIBE, 2001, p. 400).

Essa decisão se mostraria um grave erro, pois seu filho Cômodo,

que ascendeu ao trono muito jovem, interrompeu uma série de bons governos

dos imperadores anteriores, destacando-se por sua ambição e crueldade

(LIBERATI, 2005, p. 39).

Cômodo (180-192), filho de Marco Aurélio, paradoxalmente

revelou-se um imperador sanguinário e cruel, dominado por baixas paixões

(FRÓES, 2004, p. 88).

A política interna de Cômodo foi desastrosa: a má administração

provocou a alta de preços e o tesouro foi arruinado com o aumento do soldo

das tropas (GIORDANI, 2002, p. 71). Manteve um grupo que fazia um

policiamento secreto e, graças às informações de delatores, lançou muitas

sentenças de morte contra pessoas importantes, contra parentes e até mesmo

contra o grande jurista Sálvio Juliano (FRÓES, 2004, p. 88).

86

O imperador comportava-se como um louco: julgava-se deus;

descia à arena para lutar com gladiadores, forçando os senadores a assistirem

às suas façanhas. Acabou assassinado em 192 (GIORDANI, 2002, p. 71). Seu

corpo foi jogado no Tibre e declarada desonrosa sua memória (FRÓES, 2004,

p. 88). Pertinax, eleito imperador no seu lugar, é assassinado apenas três meses mais tarde em 193 pelos pretorianos, que nomeiam, em troca de um forte donativo, Dídio Juliano, enquanto as legiões estabelecidas nas várias províncias proclamam imperadores os seus chefes. Na Bretanha é aclamado Décimo Albino, na Síria, Caio Níger, e na Panônia Sétimo Severo (BOVO, 2006c, p. 13).

Por estar mais próximo de Roma, Severo alcançou primeiro a

capital, depôs Juliano - que foi morto -, foi reconhecido pelo Senado

(GIORDANI, 2002, p. 71). Por fim, termina vencedor de uma terrível guerra

civil e, em 197, fica sozinho no poder (BOVO, 2006c, p. 13).

1.2.4 - Dos Severos ao Dominato

“O governo infeliz de Cômodo, que levava uma vida indigna e

debochada, deixando os assuntos de governo nas mãos dos prefeitos

pretorianos, precipitou uma séria crise, que afetou Roma durante o terceiro

século” (JAGUARIBE, 2001, p. 401).

Com o assassinato de Cômodo, inicia-se uma época em que o

trono imperial permanece à mercê dos soldados: pretorianos de Roma ou

legionários nas províncias porfiam na escolha dos imperadores (GIORDANI,

2002, p. 71). Foi um período de luta entre as legiões que buscavam impor

seus chefes no poder supremo, com motins, guerras, desalento. Essa era ficou

conhecida como “época da anarquia militar” (FRÓES, 2004, p. 89).

Foi nessas condições que, contrariamente às exigências da

época, Roma viveu um século de levantes militares e de escassez de

governantes bem-sucedidos (JAGUARIBE, 2001, p. 401).

Sétimo Severo, com o apoio das legiões da Panônia e da

Germânia, tornou-se senhor do Império. Começou, assim, a dinastia dos

87

Severos, sob a qual desabrochou um novo período de bem-estar (LIBERATI,

2005, p. 44).

Nesse breve interregno de estabilidade social do governo marcial

dos Severos, que antecede décadas de anarquia que aniquilariam o

Principado, desenvolve-se a jurisprudência clássica, dando continuidade ao

progresso jurisprudencial que havia evoluído nos governos nos Antoninos,

graças, entre outros, a Gaio, Sálvio Juliano e Celso. O reinado dos Severos é a época dos grandes jurista: Paulo, Ulpiano, Modestino. Estes homens ocuparam altas funções na corte. Ulpiano foi várias vezes prefeito da pretoria. Assim, participaram do conselho do príncipe e contribuíram, juntamente com o imperador, para a criação do direito (DUCOS, 2007, p. 46).

Ulpiano foi uma figura eminente em Roma durante a dinastia dos

Severos, tendo servido e ocupado cargos importantes no governo de todos os

imperadores dessa casa reinante, com exceção de Elagábalo. Sobre ele se

discorrerá no capítulo três da presente obra, uma vez que seu pensamento jus-

humanista é justamente o foco desta tese.

1.2.4.1 - Dinastia dos Severos

Sétimo Severo (193-211) conseguiu restaurar a disciplina e a

eficiência do exército, mas seu governo foi um típico regime militar

(JAGUARIBE, 2001, p. 401).

Como primeira medida, concede importantes benefícios aos

soldados: aumento do salário, direito ao matrimônio durante o alistamento,

concessão de anel de ouro antes reservado aos cavaleiros (BOVO, 2006c, p.

13).

O Principado de Augusto transforma-se, sob Serevo, em uma

verdadeira monarquia militar centralizada (GIORDANI, 2002, p. 74). O Império

assumiu um ar cada vez mais marcial com a concentração de toda a

autoridade nas mãos do imperador (LIBERATI, 2005, p. 44).

Sétimo Severo dispensou a colaboração do Senado. Organizou o

conselho imperial com eminentes jurisconsultos, tais como Papiniano, Paulo e

88

Modestino (GIORDANI, 2002, p. 74). Ulpiano, então, era assessor do jurista

imperial de Papiniano. Esse imperador fez uma boa administração, especialmente na

ordem administrativa e militar, mas nunca conseguiu o pleno domínio sobre as

tropas, estando submetido à vontade delas (FRÓES, 2004, p. 87).

À sua morte em Iorque, em 211, Sétimo Severo deixa a seus dois

filhos, Caracala e Geta, já associados ao poder em anos anteriores, um império

sólido e um exército fiel e bem organizado (BOVO, 2006c, p. 13).

Caracala (211-217) era um apelido que provinha de um manto

gaulês que o imperador, cujo nome era de fato Marco Aurélio, usava com

frequência (FRÓES, 2004, p. 89). Brutal e cruel, Caracala fez assassinar o

irmão e o jurisconsulto Papiniano, que se recusou justificar seu crime. Seguiu-

se um terrível morticínio de suspeitos, tornando odienta a figura do imperador

fratricida (GIORDANI, 2002, p. 74).

Depois de eliminar seu irmão em 212, prossegue a política de seu

pai. Para aumentar a quantidade de dinheiro em circulação, introduz uma nova

moeda, o duplo denário.

Durante seu breve mandato, promulgou um édito de grande

alcance civil, a Constitutio Antoniniana de Civitate, com a qual concedeu a

cidadania romana a todos os homens livres do império (LIBERATI, 2005, p.

44).

A Constituição Antonina, dada em 212, é popularmente conhecida

como Édito de Caracala. O jurisconsulto Ulpiano, cuja obra jurídica foi, em

grande parte, escrita no reinado de Caracala, refere-se ao Édito, em seus

escritos, posteriormente copiados no Digesto do Imperador Justiniano, nestes

termos: “Os que estiverem no Orbe Romano por uma constituição do imperador

Antonino foram feitos cidadãos romanos” (In orbe Romano omnes qui sunt ex

constitutione imperatoris Antonini cives romani effecti sunt) - D.1.5.17-

(JUSTINIANUS, 2000, p. 62).

Desejando repetir as façanhas de Alexandre, Caracala

empreendeu a anexação do reino parta em 217, mas foi morto por ordem do

prefeito do pretório Macrino (GIORDANI, 2002, p. 74). Entretanto, poucos

meses depois, as tropas fiéis aos Severos destituem Macrino na Antioquia em

218, aclamando como imperador Avito Bassiano, de 14 anos, sobrinho de

89

Sétimo Severo (BOVO, 2006c, p. 14). Avito Bassiano preferia ser chamado de

Elagábalo.

Elagábalo (218-222) era sacerdote do deus dos montes (El

Gabal) em Emesa, na Síria (GIORDANI, 2002, p. 74). Ele rejeita as pompas

imperiais e quer ser chamado de Elagábalo, adotando o nome oriental do deus

que venera (BOVO, 2006c, p. 14). Seu período foi marcado pelos maiores

escândalos, o luxo mais insensato, voluptuosidades que envergonhariam o

próprio Nero (FRÓES, 2004, p. 90).

O imperador era um invertido sexual (JAGUARIBE, 2001, p. 401).

Efeminado, costumava vestir-se com roupas femininas e era chamado de

Domina –Senhora - ou Imperatrix - Imperatriz (FRÓES, 2004, p. 90). Durante

seu reinado, Ulpiano foi banido.

Uma das principais preocupações do novo imperador foi impor a

todo o Império o culto de sua divindade. A introdução dos ritos e costumes

orientais provocou forte repulsa em Roma (GIORDANI, 2002, p. 74). Os

próprios soldados passam a odiar esse imperador que entregava a

administração, efetivamente, ao filho de um cozinheiro, ou ao cocheiro de um

circo (FRÓES, 2004, p. 90).

Os soldados sublevaram-se e, em 222, Elagábalo foi morto. Seu

primo Alexandre Severo foi aclamado imperador aos quatorze anos

(GIORDANI, 2002, p. 74).

Alexandre Severo (222-235) foi imperador sob a direção de sua

mãe Júlia Memea e de sua avó Júlia Mesa, que procuravam desenvolver no

príncipe as viurtudes, rodeando-o de hábeis conselheiros, como os

jurisconsultos Paulo e Ulpiano (FRÓES, 2004, p. 90). Nos treze anos de

governo de Alexandre foi preponderante a atuação de sua avó e de sua mãe

(GIORDANI, 2002, p. 74).

Como foi visto, o governo de Elagábalo foi um desastre, e sua

avó Júlia Mesa não podia se permitir falhar novamente ao articular o governo

de seu neto mais jovem Alexandre, sob pena de por em desgraça sua casa

real. Por isso, ela e Júlia Memea mãe do novo imperador, têm o cuidado de

cercar o jovem governante de sábios conselheiros e tutores. As matronas da

dinastia Severa, ao escolherem Ulpiano como conselheiro direto de Alexandre

e alçá-lo a chefe dos pretorianos, repetem a estratégia de Agripina mãe de

90

Nero, que no século I escolhera o estóico Sêneca como mentor e ministro de

seu filho. Destarte, vale dizer, mutatis mutandis, servatis servandis, que

Ulpiano é para o último Severo o que fora Sêneca para o último Júlio-Cláudio.

O governo de Alexandre procurou restabelecer o domínio da

autroridade civil, prestigiando o Senado (GIORDANI, 2002, p. 74). Após um

começo feliz, seu reinado logo degenerou em desordens políticas, com o

assassinato, pouco mais de um ano depois, do prefeito pretoriano, o jurista

Ulpiano (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 105). Sob o ponto de vista religioso, Alexandre Severo foi uma figura bem curiosa. Praticava um sincretismo que se traduzia pela oração, em seu oratório privado, diante das estátuas de Apolônio de Tiana55, Orfeu, Abraão e Jesus. Tinha por máxima o preceito cristão: “Não faças a outro o que não desejas que te façam a ti (GIORDANI, 2002, p. 74).”

Lutas constantes desgastaram sua administração, quando já, aos

treze anos de reinado, com 26 anos de idade, termina seu governo, em março,

com a aclamação de Maximino (FRÓES, 2004, p. 91).

Alexandre e sua mãe morreram, em 235, pelas mãos dos

soldados. A Conspiração foi provocada pela total incapacidade de Alexandre

de fazer frente à crise militar com que se debatia o Império (CORNELL;

MATTHEWS, 2005, p. 106).

O assassinato de Alexandre Severo é o fim da dinastia e também

a morte anunciada do Principado. A obra de Otávio Augusto estava em ruínas,

as décadas seguintes seriam caóticas e preparam um novo tipo de imperador:

o dominus56 (senhor), o líder do regime que se denomina Dominato.

1.2.4.2 - Crise do terceiro século e o fim do Principado

Desde meados do século III, com a ascensão de Maximino, em

235, até a Morte de Carino, em 284, transcorreu um período de distúrbios

políticos (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 168). Entre 235 e 284, dominou a

55 Apolônio, orador, filósofo e taumaturgo grego néo-pitagórico do primeiro século, oriundo de

Tiana na província romana da Capadócia na Ásia Menor. Foi comparado a Jesus Cristo por paleocristãos (LELLO, 1954, p. 183).

56 Ver nota 3.

91

completa anarquia - dos 26 homens que nessa época ocuparam o poder,

somente um escapou da morte violenta (BURNS, 1959, p. 231). No século III d.C., deu-se, depois da morte de Alexandre Severo, crise maior do que a que se verificava nos fins da república. Durante aproximadamente 50 anos, sucederam-se vários imperadores, que não conseguiram impor-se por períodos superiores a cinco e seis anos. Alguns permaneceram no poder apenas meses. (ALVES, 2007, p. 41)

A interpretação mais óbvia, e certamente a mais correta, das usurpações é que foram uma resposta às pressões militares que cada vez mais acossavam o Império. As incursões dos godos na Ásia Menor, de francos na Gália e Espanha, dos hérulos na Ática. [...] No Oriente, deu-se uma mudança significativa no equilíbrio de poder com a ascensão da vigorosa e ambiciosa dinastia do rei Shapur I, que triunfou na tarefa unificadora e revigorante do antigo Império persa, apresentando um desafio efetivo após o longo período de predomínio do prestigio romano (CORNELL; MATTHEWS, 2005, p. 168).

Com a ascensão de Diocleciano, em 284 d.C., terminou essa

crise (ALVES, 2007, p. 41). É inquestionável que, no final do século III, a

ascensão de um imperador capaz, como Diocleciano, alterou o rumo dos

acontecimentos e, em consequência, o destino do Império Romano.

(ROBERTS, 2001, p. 246).

De origem humilde e obscura, Diocleciano tinha uma visão extremamente envaidecida de si e do papel que lhe cabia; portanto, modificou substancialmente a imagem do governante, distanciando-se por completo do modelo adotado pelos príncipes, seus antecessores desde Otávio Augusto até Carino (ROBERTS, 2001, p. 246).

. Diocleciano adotou atributos e o ritual de um déspota oriental. Substituiu o simples traje militar do Princeps por um manto púrpura bordado de ouro. Exigia que todos os súditos, ao serem admitidos em audiência, se prostrassem diante dele. É desnecessário dizer que o senado foi então excluído por completo do governo. (BURNS, 1959, p. 242).

Como se sabe, o maior passo de Diocleciano, sob o ponto de

vista do governo, foi a abertura, talvez involuntária, do caminho de separação

das partes Oriental e Ocidental do Império, que, com o tempo, acabaram

seguindo caminhos distintos e inconciliáveis.

A divisão do Império Romano em parte Ocidental e parte Oriental,

vista hoje em perspectiva, parece inevitável, mas não se acredita que a

intenção de Diocleciano fosse simplesmente separar o mundo Romano e

latinizado da Europa da metade helenizada oriental (fruto do processo

civilizador do império de Alexandre o Grande da Macedônia no século IV a.C.).

92

Mesmo tendo dividido o Império Romano, “na prática, porém, o

Augusto do Oriente, Diocleciano, foi o verdadeiro chefe”. (BRETONE, 1998, p.

264)

Provavelmente, a causa primária da divisão do poder entre dois

imperadores Augustos e dois Césares lugar-tenentes foi prevenir sublevações

e golpes militares, já que desmembrando-se o Império se desmembrava

também o exército. Para prevenir traições contínuas dos soldados, os imperadores associaram-se a pessoas em que depositavam confiança, e Diocleciano, a pretexto da enormidade de assuntos de Estado, determinou que sempre houvesse dois imperadores e dois césares. Julgou que, sendo os quatro exércitos principais ocupados por aqueles que participavam do poder, eles intimidariam uns aos outros; que demais exércitos, não tendo força suficiente para tentar transformar seu líder em imperador, perderiam paulatinamente o hábito de elegê-lo; e por fim, sendo o cargo de césar sempre subalterno, o poder, dividido entre quatro em nome da segurança do governo, ficaria, no entanto, em toda a sua extensão, apenas nas mãos de dois (MONTESQUIEU, 2002, p. 137).

Ao associar um amigo e companheiro de armas aos privilégios do

governo, Diocleciano atendia, em um tempo de perigo público, à defesa, tanto

do Oriente, como do Ocidente (GIBBON, 1989, p. 141). A prudência de Diocleciano descobriu que o império, atacado de todas as partes pelos bárbaros, exigia em toda parte a presença de um grande exército e de um imperador. Tendo isso em vista, resolveu dividir mais uma vez seu poder tão difícil de manejar e, com título inferior de César, conferir a dois generais de reconhecido mérito igual quinhão de autoridade soberana. Galério, cognomado Armentarius devido a sua antiga profissão de pastor, e Constâncio, cuja tez pálida lhe valera a denominação de Chlorus, foram as duas pessoas investidas nas honras segundas da púrpura imperial (GIBBON, 1989, p. 142).

Apesar de o Império Romano prosperar sob Diocleciano e

conseguir relativo sucesso na defesa e apaziguamento das fronteiras, mesmo

nas províncias mais trabalhosas dos vales do Reno do Danúbio, seu sistema

de governo mostrou-se muito dispendioso com o agravante de que cada uma

das tetrarquias (Itália, Oriente, Gália e Ilíria) possuía problemas e arrecadações

fiscais diferenciadas. Com o tempo, ficou mais acentuada a prática de esvaziar

recursos do oriente para defender o ocidente.

Começou a parecer impossível lidar com os problemas do

Ocidente, quando os recursos do Oriente, mais rico, eram necessários contra

os bárbaros e os persas (ROBERTS, 2001, p. 246).

93

Interessante notar que um exército maior e mais bem equipado

implicava a elevação de tributos, o que acabou por empobrecer

demasiadamente as províncias menos afortunadas do império.

Soma-se a isso o fato de que Diocleciano – talvez em decorrência

de sua origem humilde – usava o luxo de um monarca oriental como forma de

propaganda, pois acreditava que, dessa maneira, seria mais respeitado.

A ostentação constituía-se no princípio primeiro do novo sistema

instituído por Diocleciano (GIBBON, 1989, p. 156). Claro que sustentar uma

corte nos modos extravagantes e decadentes dos reis do oriente não era tarefa

fácil e muito menos módica. As togas suntuosas de Diocleciano e dos seus sucessores eram de seda e ouro; e registra-se com indignação que até mesmo seus calçados estavam cravejados das gemas mais preciosas. O acesso à sua sacra pessoa se tornava a cada dia mais difícil devido à instituição de novas formalidades e cerimonias. (GIBBON, 1989, p. 155)

Diziam os cristãos que Diocleciano havia destruído o Império ao se associar a três colegas, pois cada imperador queria fazer despesas tão grandes e manter exércitos tão fortes como se estivesse sozinho; que, com isso, não havendo proporção entre o número dos que recebiam e o número dos que davam, os encargos tornaram-se tão pesados que as terras foram abandonadas pelos lavradores e se transformaram em florestas (MONTESQUIEU, 2002, p. 155).

Diocleciano, no entanto, não percebeu as falhas de seu sistema e

tampouco anteviu ou supôs os desdobramentos futuros da divisão de poder e

da manutenção de seu governo e séquito prodigioso. Ademais, o imperador

acreditava piamente que tinha descoberto a fórmula infalível para garantir uma

sucessão calma, pacífica e sem contratempos. A forma era simples: os

“Augustos” abdicavam e seus lugar-tenentes, os “Césares”, tomavam seus

lugares. Estes, uma vez elevados e investidos do título de Augusto, nomeavam

novos Césares, que seriam treinados para governar e, paulatinamente, seriam

preparados para dar continuidade ao processo sucessório.

Sem sentir o odor de decadência no ar, Diocleciano terminou

seu governo serenamente, com a certeza de que havia salvado o Império de

um colapso. Ele e seu coimperador Maximiniano abdicaram, no ano de 305

d.C., com a alegria do dever cumprido. Retirou-se, então, Diocleciano para um

enorme palácio na costa croata, na cidade de Split, e lá passou os últimos anos

de sua vida, gozando, com prestígio e respeito, o ócio que acreditava merecer.

94

Diocleciano que de uma origem servil se alçara até o trono, passou os nove últimos anos de vida na privacidade. A razão havia ditado e o contentamento parece ter acompanhado o seu retiro, no qual desfrutou por longo tempo o respeito dos príncipes a quem havia deixado a possessão do mundo. [...] todavia, ele havia conservado, ou pelo menos logo recobrou, o gosto pelos prazeres mais inocentes e mais naturais, e suas horas de lazer eram satisfatoriamente empregadas em construção, plantio e jardinagem (MONTESQUIEU, 2002, p. 1550).

Diocleciano, entretanto, não previu que seu sistema sucessório só

funcionaria uma única vez, no momento de sua abdicação, e que poucos anos

mais tarde, o Império Romano já estaria novamente mergulhado no caos em

razão de guerras civis de caráter sucessório.

O Colégio Imperial de Diocleciano terminava assim em um

fracasso (RUNCIMAN, 1977, p. 20).

95

2 - Os Momentos da Filosofia Estoica

Mostre-me alguém que esteja doente, mas feliz; em perigo, agonizando, no exílio ou na desgraça, mas feliz. Por todos os deuses, eu estaria diante de um estoico! Atribuído a Epíteto (ARMESTO, 2004, p. 142)

O estoicismo (do grego: Στωικισμός) é uma corrente filosófica da

Grécia Antiga, fundada por volta de 310 a.C por Zenão de Cício em Atenas.

Com acentuada preocupação com a ética, o estoicismo, é uma escola da

época helenística57. O mais influente movimento filosófico que floresceu nos tempos helênicos foi o estoicismo. Menos rigidamente ligado ao solo da Grécia metropolitana do que às grandes escolas de Atenas, alguns dos seus mais célebres representantes vieram do Oriente e depois do Ocidente Romano (RUSSELL, 2001, p. 152).

Zenão ensinava suas ideias em público, e não em uma escola

fechada e privada, na ágora58 da acrópole59 de Atenas, em um pórtico colorido

(em grego στο� ποικίλη - stoa poikíle: pórtico pintado). O termo estoicismo,

pelo qual sua filosofia é conhecida, provém de stoa (MANNION, 2004, p. 48).

Zenão não era cidadão ateniense e, como tal, não tinha direito de adquirir um edifício; por este motivo dava suas lições num pórtico que fora pintado pelo célebre Polignoto60. Em grego, pórtico se diz stoa, e por esta razão a nova escola teve, justamente, o nome de stoa ou

57 A época helenística é nome dado ao período que se segue às conquistas de Alexandre

Magno das terras do Mediterrâneo oriental e da Ásia até a Índia. A era do helenismo estende-se até a expansão imperial romana e é frequentemente considerada um período de transição, declínio e decadência entre o brilho da Grécia Clássica e o poder do Império Romano (LELLO, 1954, p. 1200).

58 Ágora (do grego �γορ, assembleia) é um termo que, na Antiga Grécia, designava a principal

praça pública das cidades (LELLO, 1954, p. 44). 59 Acrópole (do grego �κρόπολις, cidade alta) era uma cidadela, na parte central das cidades

gregas, localizada na região mais elevada do relevo (LELLO, 1954, p. 70).

60 Polignoto é um renomado pintor grego do século V a.C. Nascido na ilha de Tasos, foi levado para Atenas graças ao seu excelente trabalho. Em Atenas, teve seu valor reconhecido e lhe foi concedida a cidadania ateniense. É citado por inúmeros autores da antiguidade, inclusive por Aristóteles, que elogiava o valor moral de sua obra (LELLO, 1954, p. 579).

96

pórtico, e seus discípulos foram chamados “os da Stoa” ou “os do Pórtico”. (REALE, 2011, p. 14).

Como teoria ética, o estoicismo é uma disciplina austera e, se

comparada com as teorias das escolas da era clássica, pode parecer insossa.

Não obstante, conquistou mais adeptos do que as doutrinas de Platão ou de

Aristóteles (RUSSELL, 2001, p. 153).

A ética estoica sempre foi considerada impressionante e admirável, mesmo por gente que não concorda integralmente com ela. Não é fácil praticá-la - mas a dificuldade de ser posta em prática talvez esteja fadada a ser uma característica de qualquer ética digna desse nome (MAGEE, 2001, p. 46).

O estoicismo surge após as campanhas de Alexandre Magno na

Ásia e, por isso, tem grande influência oriental. Com a morte de Alexandre e a

consequente decadência grega, o espírito resignado dos orientais encontrou

seara fértil entre os gregos.

Alexandre Magno, discípulo de Aristóteles, mudou a história do mundo que afetou o desenvolvimento da filosofia. Num prazo surpreendentemente curto, ele conquistou mais ou menos todo o mundo conhecido pelos gregos antigos, da Itália à Índia, incluindo boa parte do que hoje é chamado Oriente Médio, junto com vastas áreas do norte da África (MAGEE, 2001, p.40). Como estado, o império de Alexandre foi efêmero. Depois de sua morte, os seus generais dividiram o território em três partes. O império europeu, ou antigônida, sucumbiu aos romanos em pouco mais de cem anos. O reino asiático, selêucida, se desintegrou e foi tomado pelos romanos, a oeste, e pelos partos e outros, a leste. O Egito, sob o domínio dos Ptolomeus, tornou-se romano sob o domínio de Augusto (RUSSELL, 2001, p. 144). A introdução da filosofia estoica em Atenas, pelo mercador fenício Zenão (cerca de 310 a.C), foi apenas uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o epicurismo - a apática aceitação da derrota e o esforço para esquecer a derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduo ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado (DURANT, 2000, p. 110). A permanente sensação de insegurança provocou um desinteresse pelos assuntos públicos e uma decadência geral da têmpora moral e intelectual. Os gregos da antiguidade falharam no enfrentamento dos problemas políticos do seu tempo e igualmente os homens do período helenístico. Afinal, coube ao gênio organizador de Roma dar ordem ao caos e transmitir aos tempos posteriores a civilização dos gregos (RUSSELL, 2001, p. 146).

97

“O modelo da polis implica na substituição do padrão. O padrão-

polis é substituído pelo padrão-natureza, um padrão adequado aos grandes

impérios que ampliam suas fronteiras territoriais, políticas e culturais” (ASSIS,

2002, p. 21).

Os estóicos pregavam a condução da vidano equilíbrio e na sabedoria, portanto, a polis, ao contrário do que se verifica em Platão e Aristóteles, não é pressuposto para o alcance da virtude, pois essa filosofia se desenvolve numa comunidade universal, em que a verdade prepondera e é ocupada por sábios (não apenas governada por eles, como propõe Platão). Assim ao tirar a força da ideia de polis, os estóicos elaboram um pensamento com fundamentos universais... (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA, 2009, p. 56)

Os estoicos sustentavam as virtudes do autocontrole e do

desapego das coisas materiais como modos de se alcançar a sabedoria e a

integridade moral. O homem virtuoso é aquele que consegue controlar suas

paixões e somente deste modo, desprezando as glórias mundanas, está apto

para alcançar a perfeição moral.

A relação entre o controle da vontade e o refreamento das

paixões, para os estoicos, assumia as feições de um modo de vida, que só era

possível graças à ideia de que as ações humanas devem ser guiadas pela

razão. O mundo da razão é o mundo da Natureza, é o mundo que

experimentamos pelos sentidos, e, portanto, é realidade.

O núcleo da filosofia estoica está na concepção de que não pode haver nenhuma autoridade superior a razão. Desdobrando as concepções dessa crença, chegamos aos mais importantes princípios da filosofia estoica. Primeiro, o mundo tal como nossa razão o apresenta a nós, isto é, o mundo da Natureza, é toda a realidade que existe. Não existe nada de “superior”. E a própria Natureza é governada por princípios racionalmente inteligíveis. Nós mesmos somos parte da Natureza. O espírito de racionalidade que impregna os homens e a Natureza (vale dizer, tudo) é o que se entende por Deus. Assim concebido, Deus não está fora do mundo e separado dele, mas totalmente impregnado no mundo - Ele é, digamos, a mente do mundo, a autoconsciência do mundo (MAGEE, 2001, p.46).

Essa filosofia exortava à prática de meditação para tornar

possível se alcançar uma vida de acordo com a Natureza graças à razão.

Desse modo se chegaria à sabedoria e à felicidade, só cabíveis na ausência de

paixões, que conduziria, igualmente, à ausência de qualquer sofrimento.

98

Na construção filosófica dos estoicos há uma tendência acentuada por orientar a razão a um uso prático. Tal razão, que há de guiar as atitudes do homem à harmonia, desdobra-se em um liame muito próximo à Natureza. A universalidade da razão corresponde à universalidade da natureza e mesmo da condição humana (MASCARO, 2012, p. 93). A escola estoica [...] dizia que o Universo era um continuum governado por uma “alma do mundo”, conformava-se a princípios racionais que a razão humana podia descobrir. Como somos parte dessa ordem natural, não há realidade transcendente. Não deveríamos tentar resistir à ordem natural, e sim aceitar calmamente o que nos acontece (LAW, 2008, p.28). Os estoicos acreditavam em uma Divindade que determinava o nosso fim. Todavia, essa Divindade, da mesma forma que os próprios estoicos, não era do tipo cordial. Ela era denominada logos, ou mente, e o caminho para a felicidade era tornar-se consciente do programa do logos61 e concordar com a mente Divina. Os estoicos também usavam a palavra pneuma, ou sopro, que é a alma do Universo. Todas as almas individuais derivam da Superalma. Essa é uma forma primária de monoteísmo com uma pitada de monismo Pré-Socrático (MANNION, 2004, p.49).

O estoicismo foi seguido por numerosos filósofos e homens de

Estado primeiramente na Grécia e, em seguida, por todo o mundo helenizado.

Posteriormente, em Roma, fundiu-se com as ideias romanas de dignidade e

virtude. Enfatizou-se, então, que a virtude é o meio de alcançar a felicidade e a

sabedoria, e é ela que nos torna indiferentes aos infortúnios e vicissitudes. A

escola do Pórtico “teve influência indiscutível sobre a ética cristã, que

começava a se difundir na época em que Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio

escreveram” (MAGEE, 2001, p. 46).

A filosofia grega tardia enfatiza sistemas referentes às melhores escolhas práticas para a felicidade pessoal ou para o bem da sociedade. Por exemplo, o estoicismo, que realçava o altruísmo, a moderação e a autodisciplina como ingredientes da felicidade pessoal, teve grande influência sobre o cristianismo. As outras prescrições estoicas - o fatalismo e a indiferença como remédio contra a dor - conquanto mais difíceis de serem assimiladas pelo cristianismo, assemelham-se às doutrinas preconizadas na extrema Eurásia, mais ou menos no mesmo período, por Buda e seus adeptos (ARMESTO, 2004, p. 143).

61 Logos (palavra; discurso, gr.) - Na filosofia de Platão, Deus como fonte das ideias. Por

extensão, para os estoicos, significa também razão. Para a escola dos neoplatônicos, um dos aspectos da Divindade. Na teologia cristã, o Verbo de Deus, segunda pessoa da Trindade (LELLO, 1954, p. 90).

99

No estoicismo, a virtude consiste em viver conforme a Natureza,

sob o princípio de autoconservação. Os animais irracionais obedecem aos

impulsos de sobrevivência para a preservação da espécie. No entanto, o ser

humano, como ente racional, deve conduzir a sua vida escolhendo o caminho

da virtude de acordo com a Natureza.

O maior bem é a virtude, que consiste em viver em uníssono com o mundo. No entanto, não se deve interpretar isto como mera tautologia, baseado em que tudo o que é está em completa unissonância com o mundo. Trata-se, antes, de que a vontade de uma pessoa seja dirigida de tal forma que se misture com a Natureza, em vez de se opor a ela. Os bens materiais têm pouco valor. Um tirano pode privar um homem de todas as coisas externas que ele possui, até mesmo da vida, mas não lhe pode tirar a virtude, que é uma posse interna e inalienável. E assim chegamos à conclusão de que, ao rejeitar os falsos atrativos dos bens externos, um homem se torna perfeitamente livre, pois sua virtude, a única que importa, não pode ser atingida por pressões exteriores (RUSSELL, 2001, p. 154). Para os estoicos, qualquer sentimento, seja o prazer ou a dor, deveria ser combatido e dominado pelo homem. Dessa forma, aquele que conseguisse viver em um estado de imperturbabilidade emocional era considerado um ser superior. E havia um motivo para se tentar viver sem grandes emoções: o homem deveria buscar na Natureza o seu ser universal, que seria somente atingido pela racionalidade. Os outros animais, considerados irracionais, agiriam somente com instinto. E o homem deveria agir somente pela razão, negando qualquer tipo de sentimento que pudesse interferir na racionalidade. Agindo somente com a racionalidade, usurpando qualquer sentimento, o homem atingiria o seu ser absoluto (ALBEGARIA, 2012, p. 67)

No estoicismo, são as paixões que impedem uma conduta

adequada, sábia e virtuosa, pois desviam os homens da razão. Para o homem

livre das paixões, pleno de autocontrole, senhor de si, aquilo que poderia

parecer um mal se revela como algo positivo dentro de um plano maior e

natural, ou seja, mais que suportar a dor é acolher o que o destino nos reserva

com serenidade.

Os estoicos entendiam a sabedoria como a maior das virtudes e da sabedoria surgia a coragem, o autocontrole e a justiça. Não havia meio-termo na filosofia estoica. Os indivíduos eram ou totalmente bons ou totalmente maus, completamente sábios ou perfeitamente tolos. Aqueles que condenam o declínio da civilização podem identificar-se com os estoicos, que afirmavam a mesma teoria há mais de dois mil anos (MANNION, 2004, p.49). O sábio não erra nunca, porque não possui opinião, mas ciência. O sábio faz tudo bem o que faz, porque o faz com reto logos, com justo espírito. O sábio é grande, robusto, altivo e forte. Grande enquanto pode conseguir coisas que escolhe e se propõe; robusto, enquanto se

100

engrandeceu espiritualmente em tudo; altivo, enquanto participa da altura que compete a um homem egrégio e sábio; forte, enquanto munido de força que lhe compete, sendo invicto e invencível. Ademais, o sábio é rico, nobre e belo: rico, ainda que mendigo, nobre, mesmo que servo, belo embora fisicamente feio, porque possui a sua riqueza, nobreza no logos. O sábio é livre, porque quer tudo o que é necessário; suporta e aceita tudo o que é querido pelo destino. O sábio basta a si mesmo, porque no logos possui tudo de que necessita (REALE, 2008, p. 105).

A sabedoria estoica reside na capacidade de se alcançar a

felicidade graças a um ânimo imperturbável do homem senhor de si. “Esta é a

célebre apatia62 estoica, isto é, a anulação e a ausência de qualquer paixão,

que é sempre e somente perturbação da alma. A felicidade é, pois, apatia,

impassibilidade” (REALE, 2011, p. 104).

Assim, a sabedoria e a virtude tornam o homem livre e feliz. Sabedoria e virtude significam erradicar e eliminar todas as paixões tornar-se sereno e indiferente aos sofrimentos impostos pelo destino. Trata-se da apatia estóica - elimina-se toda a piedade, compaixão e misericórdia, pois estes são defeitos e vícios da alma. O sábio não se comove em favor de quem quer que seja; não é próprio do homem forte deixar-se vencer pela piedade e afastar-se da justa severidade (GONZAGA; ROQUE, 2011, p. 272).

O sábio estoico conserva a fleuma, pois sua vontade adere

perfeitamente ao seu dever em obediência a uma ordem cósmica maior e

natural, que não lhe é imposta do exterior, mas que floresce no seu íntimo.

Destarte, ele, pacificamente, quer aquilo que deve em comunhão com o que a

sua razão lhe impõe, vivendo calma e dignamente. Como pressuposto básico da ação humana, o estoicismo apresenta a eudaimonia63; que não consiste na busca do prazer, mas no constante exercício da virtude. Viver conforme a Natureza: esse passou a ser o imperativo ético por excelência dos estoicos (BOMBASSARO; PAVIANI; ZUGNO, 2003, p. 159). Por parte dos estoicos, a negação do prazer como quase sinônimo de eudaimonia nunca foi, de fato, uma verdade. Eles jamais desconsideraram o mundo sensível. Fizeram justamente o oposto.

62 Apatia [Do gr. apatheia] - estado de insensibilidade, de quem não é suscetível a nenhuma

emoção. Filosoficamente, estado em que a alma se torna insensível às paixões e à dor; para os estoicos, estado de insensibilidade emocional ou esmaecimento de todos os sentimentos, alcançado mediante o alargamento da compreensão filosófica. Etimologicamente: gr. apátheia 'insensibilidade, calma estoica, apatia', através do lat. apathía; composto de a(n) dito privativo, negativo, do grego, + patia do grego páthé, és estado passivo, sofrimento, mal, doença, dor, aflição (HOUAISS, texto digital).

63 Eudaimonia (gr. eudaimon, feliz composta de (eu) bem disposto e (daimon) que tem um

poder divino) - Teoria moral fundada na ideia da felicidade concebida como bem supremo (LELLO, 1954, p. 936).

101

Valorizaram demais o sensível e, então, tentaram encontrar um modo de não “cair de joelhos” diante das frustrações da vida, de que raramente alguém escapa. O autocontrole racional não era algo imposto, mas adquirido na compreensão que temos ao perceber que o logos comanda o cosmos, e que isso independe de nós. O controle racional significa harmonizar-se com o cosmos, pois somos parte dele e esse todo segue um plano racional (GHIRALDELLI Jr., 2010, p.63).

“O estoicismo como filosofia permaneceu um movimento

organizado por cerca de quinhentos anos. Com ele e por meio dele, a filosofia

ocidental deixou de ser especificamente grega e tornou-se internacional”

(MAGEE, 2001, p. 46). As mais vívidas e admiráveis exposições do estoicismo se encontram nos escritos dos últimos estoicos, todas em latim. As figuras de relevo aqui são Sêneca (c. 2 a.C - 65 d,C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Não foram pensadores originais no sentido de aprofundar significativamente as doutrinas estoicas já existentes, mas eram escritores tão bons que suas obras são lidas até hoje, inclusive fora dos meios acadêmicos (MAGEE, 2001, p.47).

A escola filosófica fundada por Zenão sobreviveu por toda a

antiguidade e, para fins didáticos, costuma-se estudá-la em três fases de sua

evolução: o estoicismo antigo do século III a.C., na Grécia; o estoicismo médio

do século II a.C., já sendo assimilado por Roma; e o novo estoicismo, também

chamado de estoicismo imperial, pois floresceu junto com o advento do Império

Romano e teve seu auge durante o Principado.

2.1 – O Estoicismo Antigo (grego)

Como já foi dito, o estoicismo surgiu em Atenas, na Grécia, e foi

uma corrente filosófica fortemente ativa por séculos, atravessando fronteiras e

alcançando grande adesão dos pensadores romanos. Durante esse longo

espaço de tempo e com sua consequente absorção por outras culturas, é

compreensível que o pensamento estoico tenha se adaptado, evoluído e se

modificado.

Para melhor entender essa evolução, os doutrinadores costumam

estudar o estoicismo em três fases distintas, como já se mencionou,

denominando a primeira delas como estoicismo antigo grego - desenvolvido no

século III a.C. É chamado grego, pois surgiu na Grécia, mas, a bem da

102

verdade, ele já nasce com uma vocação cosmopolita, pois seus primeiros

filósofos, apesar de ensinarem em Atenas, são estrangeiros. Os estudiosos já esclareceram suficientemente que na história do Pórtico é necessário distinguir três períodos: o período do antigo pórtico, que vai do final do século IV a todo século III a.C, no qual a filosofia do Pórtico é gradativamente desenvolvida e sistematizada por obra da grande tríade de escolarcas64: Zenão, Cleanto e, sobretudo, Crísipo. (REALE, 2011, p. 15).

Zenão de Cício (c. 332 a.C. - 262 a.C.), que foi o fundador da

escola estoica, era de origem fenícia, nasceu em Chipre, na cidade de Cício -

atual Lanarca (BOMBASSARO; PAVIANI; ZUGNO, 2003, p. 160). A ilha de

Chipre, naqueles tempos, era um importante entreposto comercial que ligava o

Mediterrâneo ocidental e oriental (LELLO, 1954, p.1215). Em 312/311 a.C., chegou em Atenas, proveniente da ilha de Chipre, um jovem de raça semítica, com intenção de tomar contato direto com as fontes da cultura helênica e dedicar-se inteiramente à filosofia. Era Zenão, o homem que deveria fundar a que, talvez, tenha sido a maior das escolas da era helenística (REALE, 2011, p. 261).

Acredita-se que, enquanto estava ainda no Chipre, Zenão, que

era de uma próspera família de comerciantes, teve oportunidade de estudar

textos de filósofos socráticos. “O pai, Mnasea, que viajava entre Chipre e

Atenas como comerciante, levou-lhe, ao retornar de uma de suas viagens,

alguns escritos socráticos” (REALE, 2006, p. 261). Demétrio de Magnésia65, nos Homônimos, refere que seu pai, Mnasea, sendo comerciante, vinha frequentemente a Atenas e daí levava muitos livros socráticos a Zenão ainda criança. Por isso mesmo antes mesmo de deixar a sua pátria, já tinha uma preparação filosófica (REALE, 2006, p. 262).

Quando Zenão se transfere para Atenas, torna-se discípulo de

Crátes de Tebas66, filósofo da escola cínica. Depois de ter estudado com

Crátes, Zenão adere à Academia de Platão, onde recebe lições de seu

escolarca Pólemon de Atenas67.

64 Escolarca (gr. σχολάρχης, skholárkhês) - Diretor superintendente de escolas de filosofia na

Grécia Antiga (LELLO, 1954, p. 570). 65 Demétrio de Magnésia - escritor grego contemporâneo a Cícero (SMITH, 2005, p. 704). 66 Crátes de Tebas (c.368 a.C. - c. 288 a.C.) - filósofo grego helenístico da escola cínica. Ele

era originário de Tebas, foi discípulo de Diógenes de Sínope (LELLO, 1954, p. 655). 67 Pólemon de Atenas (c.340 a.C. - c. 273 a.C.) - filósofo grego helenístico, sucedeu Xenócrates

na direção da Academia de Platão (LELLO, 1954, p. 577).

103

Na capital da cultura helênica, não foram os homens das grandes escolas da Academia e do Perípato68 que determinaram a orientação de Zenão, mas foi em primeiro lugar um representante das escolas socráticas menores. Crátes, discípulo de Diógenes69, o Cínico, [...] Mas o cínico Crátes ofereceu a Zenão sobretudo um exemplo prático da vida filosófica (REALE, 2006, p. 262) Além da voz dos socráticos, Zenão quis escutar a dos acadêmicos. As nossas fontes relatam-nos, de fato, que Zenão foi um discípulo também dos filósofos platônicos Xenócrates70 e Pólemon. Ora, por mais que esse contato com a academia o tenha influenciado e ajudado a amadurecer e a resolver problemas particulares, e dar consistência e espessura especulativa ao seu filosofar, fato este que diferencia o Pórtico de todos os outros sistemas da era helenística, todavia não o impediu de tomar posição diante do problema metafísico em clara antítese a Platão (REALE, 2006, p. 263)

Por volta de 310 a.C., fundou sua escola filosófica no já

mencionado Stoà Poikìle (pórtico pintado) da ágora da acrópole de Atenas e,

assim, o estoicismo também é chamado de escola do Pórtico.

No campo da ética, encontramos as mais relevantes

contribuições de Zenão à filosofia ocidental e suas ideias chegaram até nós

muito embora todos os seus textos tenham sido perdidos. “Pouco resta da obra

dos primeiros estoicos, exceto fragmentos, mas é possível reunir um razoável

conjunto das doutrinas. As próprias preocupações de Zenão parecem ter sido

fundamentalmente de caráter ético” (RUSSELL, 2001, p. 153).

No livro VII da obra “Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres”,

Diógenes Laércio71 escreve sobre Zenão e é graças a isso que os

ensinamentos do fundador da escola do pórtico podem ser estudados até hoje.

Diógenes atribui-lhe a célebre máxima “viver em harmonia com a natureza”

(LELLO, 1954, p.1215). 68 Perípato, que em grego quer dizer passeio, refere-se ao sistema de Aristóteles, pois, em seu

Liceu, ensinava e refletia enquanto caminhava (LELLO, 1954, p. 518). 69 Diógenes de Sínope, também chamado Diógenes, o Cínico (Sinope c. 413 a.C. - Corinto c.

327 a.C.) - filósofo grego e o mais célebre representante da escola cínica (LELLO, 1954, p. 758).

70 Xenócrates (c.406 a.C. - c. 314 a.C.) - filósofo grego nascido na Calcedônia; discípulo de

Platão, cujas doutrinas se esforçou por conciliar com o pitagorismo. Foi escolarca da Academia de Platão (LELLO, 1954, p. 1205).

71 Diógenes Laércio (180-240) foi um historiador grego que viveu no Império Romano na época do Principado. Autor de uma biografia dos filósofos antigos “Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres”, que é uma composição sem crítica, mas na qual se fornecem preciosos ensinamentos e citações úteis sobre as principais doutrinas da Antiguidade, sendo assim essencial para o estudo da filosofia grega. (LELLO, 1954, p. 758).

104

Para Zenão, a filosofia deve se ocupar de três matérias: a lógica,

a física e a ética. A lógica ocupa-se do ato de conhecer, a física do objeto que

se conhece e a ética é que busca uma conduta racional de acordo com a

natureza do objeto. Zenão e os do Pórtico também aceitam a tripartição da filosofia estabelecida pela Academia; mais ainda, acentuam-na e não se cansam de criar novas imagens para ilustrar, de modo mais eficaz, a relação que liga entre si as três partes. O todo da filosofia é comparado por eles a um pomar no qual a lógica corresponde ao muro que delimita seu âmbito e serve, ao mesmo tempo, de baluarte de defesa; as árvores representam a física, porque são como estrutura fundamental, ou aquilo sem o qual não existiria pomar; enfim os frutos, o que é visado por todo o conjunto, representam a ética (REALE, 2011, p. 17).

Zenão concebia o Universo como sendo composto de dois

elementos: matéria - o elemento passivo - e razão - o elemento ativo. A razão

é o logos, um princípio divino e vital que providencialmente anima e guia a

matéria. O sopro vital do logos é divino, perfeito e conduz, inevitavelmente, a

evolução de mundo. O homem livre é aquele que segue a razão e, portanto,

reconhece a perfeição dos desígnios do logos. “Segundo Zenão, a natureza é

estritamente regida por leis. Sua teoria cosmológica parece ter sido inspirada,

no essencial, nas ideias pré-socráticas” (RUSSELL, 2001, p. 153).

“Por vezes, é chamado Zenão Aphatea, pois ensinava que a

aphatea (apatia) - isto é, a indiferença - é o caminho para a felicidade” (LAW,

2008, p. 252). Zenão ergueu sua filosofia da aphatea sobre um determinismo

que um estoico posterior, Crísipo, achou difícil distinguir do fatalismo oriental

(DURANT, 2000, p. 110). “A palavra estoico permaneceu na linguagem e

define um indivíduo que aceita os percalços sem reclamar” (MANNION, 2004,

p. 48). A coragem diante do perigo e do sofrimento, a indiferença e as circunstâncias materiais, eram virtudes que os estoicos valorizavam. Essa ênfase no desprendimento e na resignação deu à palavra “estoico” o seu significado moderno (RUSSELL, 2001, p. 153) E, é claro, até o dia de hoje os termos “estoico” e “estoicismo” estão no uso familiar de nossa língua, talvez com um tom de admiração contrafeita, que significa “enfrentar a adversidade sem se queixar”. Deve haver muitas pessoas hoje - mesmo que talvez nunca tenham formulado esse fato para si mesmas - cujo ideal de ética é essencialmente o mesmo dos estoicos (MAGEE, 1999, P. 46).

“Zenão admirava Sócrates por sua equanimidade diante da

morte, sua renomada capacidade de suportar o sofrimento físico e a falta de

105

interesse pelos prazeres mundanos” (LAW, 2008, p. 252). Estando enfermo e

tendo julgado já ter terminado sua obra, Zenão suicidou-se de acordo com os

ditames de sua doutrina de aceitação da vontade natural universal (LELLO,

1954, p.1215).

Após a morte de Zenão, seu discípulo Cleantes o sucedeu como

escolarca na direção da escola do pórtico.

Cleantes de Assos (c. 330 a.C. - 232 a.C.) nasceu em Assos na

região da Trôade na Ásia menor - hodierna Behram na Turquia (LELLO, 1954,

p.567).

De origem muito humilde, Cleantes era pugilista em sua terra

natal e, já em Atenas, sustentava-se com trabalhos braçais e noturnos para

poder seguir as lições de seu mestre Zenão (REALE, 2006, p. 270). Mesmo

quando assumiu a direção da escola do pórtico, seguiu trabalhando para o seu

sustento até a idade avançada, morreu quase centenário (REALE, 2011, p. 14).

“A liberdade de discussão que Zenão deixou aos discípulos [...]

produziu na escola notáveis abalos e uma crise que Cleantes não conseguiu

dominar perfeitamente, faltando-lhe a genialidade do fundador.” (REALE, 2006,

p. 270).

Cleantes acreditava na alma imortal dos homens e no fato de que

a sobrevivência das almas teria intensidades diferentes de acordo com a força

ou a fraqueza de cada uma, até o momento da derradeira conflagração,

ocasião em que todas as almas se fundiriam com a alma do mundo (VOLKE,

1973, p. 97).

Muitos dos escritos de Cleantes foram perdidos e deles temos

notícia graças às referências de Diógenes Laércio. Cleantes compôs em versos

um hino a Zeus, o soberano dos deuses gregos, e é o único texto um pouco

longo que foi conservado da primeira fase do estoicismo (PENA, 1989, p.23).

Alguns versos desse hino não se perderam e neles se lê a exaltação de Zeus

como o logos, ou seja, como o princípio divino regente do cosmos (ASSIS,

2002, p. 106). Ó tu, o mais glorioso dos imortais, Ó suma potência, Deus dos muitos nomes, Ó Zeus, Princípio e Senhor da Natureza, que tudo governa conforme a lei, Eu te saúdo [...]

106

Obra alguma se realiza sem ti na terra, na região etérea da abóboda divina, no mar, Exceto aquela realizada pelos maus em sua loucura. Mas tu sabes diminuir o desmedido, Ordenar a desordem. Em ti, a discórdia é concórdia. Ajustastes em um todo harmonioso os bens e os males Para que haja para sempre uma razão de todas as coisas, Essa razão de que fogem e negligenciam aqueles dentre os mortais que são os maus, Infelizes, que desejam sempre a aquisição dos bens E não discernem a lei comum dos deuses nem a compreendem [...] Uns disputam pela glória, Outros, por ganhos vergonhosos, Outros se lançam no deboche e nas volúpias corporais [...] Mas tu, Zeus, de quem procedem todos os bens, Salva os homens da ignorância maléfica [...] Deixa-nos participar dessa sabedoria com que governas as coisas com justiça [...] Para os deuses e para os homens, Não há honra maior do que cantar para sempre e como se deve, a lei universal. (CHAUÍ, 2010, p. 112-113).

Este é o “Hino a Zeus” do estoico Cleantes72. Nele estão concentradas algumas das teses fundamentais do estoicismo: a divindade como lei natural imanente ao Universo, razão universal ou fogo vivente de que todas as coisas são parcelas; Universo como harmonia dos contrários e medida de justiça; os males como fruto da loucura humana, isto é, como ignorância e desmedida; a sabedoria como conhecimento da lei universal, que governa as coisas e os próprios deuses (CHAUÍ, 2010, p. 113).

Cleantes dirigiu o pórtico por mais de 30 anos, até a sua morte

com quase cem anos. Como sofria de uma enfermidade na gengiva, tivera que

jejuar por um tempo e, depois desse período de abstinência, concluiu que já

havia percorrido boa parte do caminho para a morte; deste modo,

serenamente, completou o percurso continuando a se abster de alimentação

até morrer de inanição (CHAUÍ, 2010, p. 121). Seu pupilo Crísipo sucedeu-o no

comando da escola estoica.

Crísipo de Solis (c.281 a.C.- c.205 a.C.) era de origem semita e

nasceu em Solis, uma cidade portuária da Cilícia, próxima de onde se localiza

hoje a cidade de Mersin, na Turquia. A costa da Cilícia formava um estreito

com o norte da ilha de Chipre (LELLO, 1954, p. 662). Já adulto, mudou-se para

Atenas, onde, tocado pela fidelidade de Cleantes em relação a Zenão, adere

ao estoicismo.

72 O Hino a Zeus não chegou completo até nós, como já se pontuou, no entanto o trecho aqui

transcrito - extraído de CHAUÍ (2010, p. 112-113) - não contém todos os versos conhecidos, mas somente aqueles que enfatizam e sintetizam os dogmas estoicos.

107

Crísipo era um escritor prolífico (CHAUÍ, 2010, p. 121), escrevia

cotidianamente e, assim, sistematizou o pensamento estoico em cerca de 700

obras escritas, fixando, de modo definitivo, a doutrina da primeira fase do

estoicismo (REALE, 2011, p. 15). A maior parte de suas obras se perdeu, no

entanto, numerosos fragmentos delas são conhecidos por citações de outros

autores gregos e latinos, entre os quais Cícero, Sêneca e Plutarco. “Era um

trabalhador incansável: a crermos em Diógenes Laércio, escrevia quinhentas

linhas por dia e deixou setecentos e cinco tratados, dos quais restam os títulos

de cento e dezenove sobre lógica e quarenta e três sobre ética” (CHAUÍ, 2010,

p. 122).

Mesmo sendo um discípulo fiel a Cleantes, discordava deste no

tocante à imortalidade da alma. Crísipo também acreditava na imortalidade, no

entanto pensava que somente as almas dos homens virtuosos sobreviveriam à

morte do corpo.

“Numa época em que os reis costumavam recorrer aos chefes de

escola como conselheiros, Crísipo manifestava desprezo pelos grandes e

recusou um convite do rei Ptolomeu” (CHAUÍ, 2010, p.122).

“Sob a guia de Crísipo, o Pórtico superou todas as crises internas

e se impôs externamente de maneira decisiva, tanto que dele logo se disse:

sem Crísipo, não teria existido o Pórtico” (REALE, 2006, p. 271).

Crísipo foi o mais sábio e mais fecundo dos estoicos. Ele deu a doutrina desta escola a sua forma histórica. Depois dele, o estoicismo se espalhou por todo Hélade73. Foi provavelmente Crísipo que dividiu o sistema estoico em três partes: a lógica, a física ou ciências naturais, a moralidade ou ética74 (PENA, 1989, p. 23).

Crísipo evitava a vida mundana, não frequentava festins,

alegando que, se o fizesse, não seria um filósofo. Morreu aos setenta e três

anos, em 210 a.C., segundo se conta, de tanto rir (CHAUÍ, 2010, p.122). “O

Pórtico, depois de Crísipo, limitou-se substancialmente à conservação e defesa

73 Hélade - nome primitivo e original da Grécia (LELLO, 1954, p. 1200). 74 Tradução livre do autor para o original em francês: “Chrysippe fut lui le plus savant et le plus

fécond des stoïciens. Il a donné à la doctrine de cette école sa forme historique. Áprès lui, le stoïcisme se propagea à travers l'Hellade. C'est probablement Chrysippe qui a divisé le système stoïcien en trois parties: la Logique, la Physique ou la Science Naturelle, la Morale ou Ethique”.

108

dos dogmas, perdendo notavelmente em vigor e eficácia” (REALE, 2006, p.

365).

2.2 - O Estoicismo Médio (greco-romano)

O segundo momento do estoicismo, denominado médio, foi um

momento de transição, em que o pensamento dos primeiros estoicos foi

conservado e semeado por todo o mundo helenizado. “O período chamado

médio Pórtico, que se desenvolve entre os séculos I e II a.C. caracteriza-se

por infiltrações ecléticas na doutrina original (REALE, 2006, p. 271).

É durante o estoicismo médio que o pensamento do Pórtico

chega a Roma, onde se esposa facilmente com os ideais de virtude romana e,

não por acaso, os principais filósofos dessa fase viviam em estreito contato

com a orbe romana. Foram eles Panécio de Rodes e Posidônio de Apameia. O estoicismo médio é representado, sobretudo, por Panécio de Rodes (185 a.C. - 112 a.C.) e Posidônio (135 a.C. - 51 a.C.). Nesse período a filosofia estoica se expande pela Babilônia, Alexandria e finalmente Roma, onde finca raízes e influencia um círculo destacado de políticos, juristas e filósofos por quase quatro séculos. Os principais representantes do estoicismo se deslocam da Grécia para Roma já a partir do estoicismo médio. Panécio e Posidônio, por exemplo, vivem em Roma e só retornam a Atenas para assumir a direção da escola (ASSIS, 2002, p. 106).

Panécio de Rodes (185 a.C. - 112 a.C.) nasceu em Rodes, ilha

grega situada no leste do mar Egeu. Era de família nobre e se transferiu para

Atenas, onde, por volta da década de 160/150 a.C., ouviu lições do filósofo

Diógenes da Babilônia75, então dirigente do Pórtico. Nessa época, tornou-se

seguidor convicto do discurso estoico (REALE, 2006, p. 365).

Panécio visitou Roma algumas vezes e foi recebido no círculo dos

poderosos, reunidos à volta de Cipião76, com quem viajou ao oriente, em 140-

75 Diógenes da Babilônia (c. 240 a.C. - c. 150 a.C.), também conhecido como Diógenes de

Selêucia, nasceu em Selêucia do Tigre, na Mesopotâmia, então Babilônia. Foi escolarca do Pórtico sucedendo Crísipo. Preferivelmente chamado de Diógenes da Babilônia, para que não se confunda com os homônimos, os já citados Diógenes de Sínope e Diógenes Laércio, e ainda com o seu contemporâneo e conterrâneo o filósofo epicurista igualmente denominado Diógenes de Selêucia (SMITH, 2005, p. 722).

76 Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, dito o Jovem, ou o Africano Menor (Publius

Cornelius Scipio Æmilianus Africanus) nasceu em 185 a.C e morreu em 129 a.C.; era neto de

109

139 a.C. (REALE, 2011, p. 109). O contato de Panécio com Cipião e seu grupo

é um momento intenso e catártico para ambos. A partir de então, Panécio,

admirado e entusiasmado com a cultura romana, retoma questões relativas à

ética e à política, guiando o estoicismo por um caminho que leva à comunhão

com a moral romana (CHAUÍ, 2010, p. 178).

Em contrapartida, graças a Cipião e seus convivas, o pensamente

estoico floresce na sociedade romana. Em torno de Cipião se reunia um grupo

de amigos da política e das artes para promover atividades de interesses

literários, filosóficos e culturais, em geral com orientação helenística. Esse

grupo exerceu uma influência notável no desenvolvimento da filosofia e da

cultura latina.

O grêmio de amigos, conhecido como Círculo de Cipião77, jamais

foi uma organização formal. Seus integrantes tinham uma visão cultural comum

que se caracterizava por uma grande abertura aos valores do mundo grego. A

influência inovadora do grupo causou impacto na cultura romana, então ainda

fortemente conservadora e ligada aos rígidos ditames da arcaica e

tradicionalista moral dos seus ancestrais. Destaca-se, nesse âmbito, a

afirmação no mundo romano do conceito dos humanistas gregos, ou seja, a

Cipião o Africano (militar que liderara o exército Romano na Batalha de Zama em 202 a.C, derrotando o general cartaginês Aníbal). Cipião Emiliano recebeu uma educação esmerada e jamais perdeu uma oportunidade de aumentar sua vasta cultura grega. Além de culto, ele também era reconhecido por suas nobres virtudes tipicamente romanas, como a coragem em combate, a eloquência retórica e o talento político. Foi um general competente e entre outros êxitos militares se sublinha a destruição de Cartago na Terceira Guerra Púnica (LELLO, 1954, p.558).

77 O termo Círculo dos Cipiões, aceito pelos historiadores modernos, já era adotado por

Cícero e corresponde à expressão “grex scipionis”, utilizada por ele no fragmento 69 do seu texto “Laelius de Amicitia” (Da Amizade) para indicar um grupo de pessoas com inclinações culturais afins que frequentavam e conviviam com a família Cipião (GUIDA NT, texto digital). Em duas traduções do fragmento 69, temos: “Mas, na amizade, é de suma importância que nos coloquemos no nível dos inferiores. Existem, contudo, personalidades eminentes, como acontecia com Cipião em meio ao que eu poderia chamar de nosso rebanho. Mas ele nunca se julgou superior a Filo, Rúpilio, Múmio ou outros amigos de condição inferior, diante de seu irmão Quinto Máximo, homem notável mas que não se igualava a si e era mais velho, demonstrava o respeito que se tem por um superior. Além disso, queria dar a todos os seus, meios de aumentar o próprio prestígio.” (CÍCERO, 2001, p. 83); “É no entanto da maior importância em amizade apagar a diferença de nível social com um inferior. Pois às vezes há personalidades excepcionais, como era Cipião dentro, digamos, de nosso círculo. Ora, jamais, seja com Filo, com Rúpilio, ou com Múmio, ele se colocou acima, nem com nenhum de seus amigos de uma condição social inferior. Assim, com seu irmão Quinto Máximo, personagem notável mas que não se lhe equiparava, e que lhe era mais avançado em idade, Cipião comportava-se como diante de um superior, e queria que através dele pudesse realçar a imagem de todos os familiares.” (CÍCERO, 1997, p. 122) grifos nossos.

110

valorização do homem como indivíduo e não apenas como parte de um Estado

(GUIDA NT, texto digital).

Deste modo, graças a Cipião e a Panécio, o preconceito e a

desconfiança dos romanos em relação à cultura grega são abalados, o Pórtico

acaba por conquistar Roma e, nos séculos seguintes, o estoicismo torna-se a

filosofia romana por excelência, considerando-se que os estoicos latinos

produziram abundantemente e deixaram um vasto legado.

Depois do sojorno romano, Panécio volta para Atenas, onde se

torna o dirigente do Pórtico, de 129 a.C. até sua morte, em 110 a.C. (REALE,

2006, p. 365). Como escolarca, introduziu modificações importantes na

doutrina estoica para corrigir fragilidades apontadas pelos membros da

Academia (CHAUÍ, 2010, p. 178); deste modo, acolhe “teses da Academia e do

Perípato, que, no fundo, a seu ver, podiam considerar-se escolas derivadas,

como o Pórtico, da mesma matriz, isto é, Sócrates. Panécio, portanto, inaugura

no Pórtico uma tendência eclética” (REALE, 2006, p. 366-367).

Com a morte de Panécio, a direção do Pórtico é assumida por

Posidônio, o outro grande filósofo do estoicismo médio, que seguiu o viés

eclético de seu predecessor, favorecendo o sincretismo de escolas filosóficas

e, mais tarde, transmitindo esse ecletismo aos seus discípulos, dentre os quais

se destaca Cícero.

Posidônio de Apameia (135 a.C. - 51 a.C.), nascido em

Apameia, cidade às margens do Rio Orontes na Síria, foi, além de filósofo,

geógrafo, cientista e historiador renomado na antiguidade pela sua cultura

enciclopédica (CHAUÍ, 2010, p.181).

Na juventude, deixa a Síria e se instala em Atenas, onde se torna

pupilo de Panécio, a quem sucede no comando do Pórtico sendo o sexto

escolarca estoico (REALE, 2006, p. 376).

Em 95 a.C., funda, na ilha de Rhodes, uma escola de filosofia

estoica e lá se torna cidadão ativamente atuante na política. A escola por ele

fundada alcança reputação internacional, atraindo ouvintes célebres, como

Cícero e Pompeu Magno (REALE, 2011, p. 120).

Dirige-se a Roma em missão diplomática por volta de 87 a.C. e

lá cria estreitos laços com a elite governante, o que lhe permitiu viajar e ensinar

em todo o mundo romano. Depois dessas viagens, volta à Roma para uma

111

segunda embaixada e lá, já octogenário, morre por volta de 51 a.C. (REALE,

2006, p. 376).

Como se pode perceber, ainda que o estoicismo médio tenha se

enveredado por outros caminhos em relação ao período anterior, essa fase de

transição serviu para aprimorá-lo e difundi-lo, sobretudo entre a elite

governante e a intelligentsia romana.

Essa romanização do Pórtico e a assimilação da doutrina estoica

pelas vanguardas políticas, artísticas e intelectuais de Roma, vão ao encontro

da tese que ora se defende, ou seja, de como o estoicismo influenciou o Direito

Romano e, consequentemente, todo o Direito Ocidental, inclusive o brasileiro.

Em seguida se discorrerá sobre a fase latina do Pórtico, que

coincide justamente com o fim da República e com o Principado cuja história

política já foi abordada no capítulo anterior deste estudo.

2.3 – O novo Estoicismo Imperial (romano)

O terceiro período da escola do Pórtico, também chamado de

estoicismo imperial ou novo estoicismo,desenvolveu-se durante o Principado e

já na era cristã. Seus principais representantes foram Sêneca (c. 2 d.C - 65

d.C.) Epiteto (c.50 d.C. - 130 d.C.) e o Imperador Marco Aurélio (121 d.C. - 180

d.C.). Como elo entre o estoicismo médio e o estoicismo imperial está o

eclético Cícero (n. 106 a.C., m. 43 a.C.), que viveu nos últimos anos da

República e fora discípulo do escolarca estoico Posidônio. Para compreender a fundo as peculiaridades do neoestoicismo, é necessário, preliminarmente, considerar o fato de que ele nasceu em Roma. Já os pensadores do médio-estoicismo (Panécio e Posidônio) tinham se beneficiado, pelo menos em certa medida, do influxo do espírito da romanidade; mas o novo Pórtico alimentou-se quase completamente do espírito da romanidade (REALE, 2008, p. 64).

O Império Romano havia se estendido para o Oriente e concluiu a

conquista da Grécia em 146 a.C., com o saque de Corinto. Entre os despojos

de guerras trazidos dessa campanha, além de toda a riqueza material

saqueada, vem no bojo do butim uma enorme riqueza intelectual, a filosofia,

que os romanos, com seu espírito prático, até então negligenciavam.

112

As filosofias helenísticas, portanto, estavam conformes ao espírito do mundo romano, que produziu um patriotismo formal e um sistema do Direito, mas foi incapaz de produzir uma filosofia especulativa, oferecendo ao mundo apenas moralistas e advogados (CHAUÍ, 2010, p. 213). Os romanos, quando foram saquear Hélade em 146 a.C., encontraram escolas rivais dividindo o campo filosófico; e, sem terem tempo nem sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas filosofias, juntamente com outros produtos de seu saque. Os grandes organizadores, tanto quanto os escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito estoicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for sensível. Por isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de Zenão, seja em Marco Aurélio, o Imperador, ou em Epiteto, o escravo (DURANT, 2000, p. 111).

A vitória militar definitiva dos romanos sobre os gregos e a recém-

importada filosofia despertam na elite romana um interesse profundo sobre

essa visão de mundo ainda pouco explorada por eles. A aristocracia romana do

fim da República estudava os filósofos gregos, principalmente os do Pórtico,

pois a doutrina estoica continha muitos pontos de contato com o ideal moral

romano. “O encontro da austera virtude romana com o rigor moral estoico

propiciou o sucesso do estoicismo em Roma” (CHAUÍ, 2010, p. 289).

No último século da República, como já se disse, personalidades

romanas eminentes cingiram estreitos laços com destacados representantes do

estoicismo médio: o general Pompeu, em Rhodes, ouviu lições estoicas

diretamente do escolarca Posidônio; o nobre patrício Cipião reunia um séquito

de homens da elite interessados pela cultura grega, tendo se tornado amigo de

Panécio; o senador e cônsul Cícero atendeu as lições de Posidônio e se tornou

seu discípulo. O estoicismo teve maior influência entre os romanos. Sua proposta de uma vida sóbria e austera, como cumprimento de todos os deveres públicos e pessoais, acentuando a correspondência entre razão universal e a razão humana, e com sugestão de uma existência feliz depois da morte para a alma imortal dos sábios e virtuosos, tinha uma forte atração para a elite romana. Introduzia em Roma por Panécio, do Círculo Cipiônico, e desenvolvida por seu discípulo Posidônio, homem de grande cultura, tornou-se a filosofia dominante entre as melhores mentes do Principado. Cícero sofreu forte influência do estoicismo, cujo expoente mais famoso na época de Nero foi Sêneca (JAGUARIBE, 2001 p. 427). Mas as figuras mais importantes do estoicismo romano foram Epiteto e Marco Aurélio, que curiosamente ocupavam posições sociais contratantes - o primeiro em ex-escravo, o segundo um grande imperador. Os ensinamentos de Epiteto, expressos em grego, foram reunidos pelo seu discípulo Flávio Ariano, que escreveu também uma esplêndida síntese das suas ideias no famoso Manual. Influenciado por Epiteto, Marco Aurélio produziu nas Meditações uma das reflexões

113

morais mais elevadas já escritas, legitimadas pelo fato de que sua vida pessoal concordava inteiramente com suas ideias e ideais (JAGUARIBE, 2001 p. 427-428).

Entretanto, não se pode esquecer que, apesar de a filosofia do

Pórtico ter conquistado Roma e da significativa obra dos estoicos romanos, o

espírito latino, mais pragmático do que o grego e menos resignado do que o

oriental, continuou se expressando melhor no Direito do que na Filosofia.

Durante o Principado, contemporaneamente com a consolidação do estoicismo

romano, Roma produziu seus mais inspirados jurisconsultos, como Gaio, Paulo

e Ulpinano, entre outros, os quais se desincumbiram com sucesso da tarefa de

aplicar a ética estoica ao Direito.

Discorre-se, a seguir, sobre as obras do eclético Cícero e da

tríade estoica - Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio -, para, no capítulo seguinte,

abordarmos a ética estoica em Ulpiano.

114

2.3.1 - O eclético Cícero

Não se pode negar que isso seja ser feliz: viver sem medo, sem tristeza, sem desejo, sem tresloucada alegria. (Cícero -“Tusculanorum Disputationum,- líber quintus” (A virtude e a felicidade)(CÍCERO, 2005, p. 20).

Marco Túlio Cícero - em latim Marcus Tullius Cicero (Arpino, 03

de janeiro de 106 a.C - Formia 07 de dezembro de 43 a.C) nasceu em uma

família abastada, porém provinciana, da ordem equestre do exército romano

(FERACINE, 2011, p. 36).

Foi advogado e político atuante. Participou intensamente da vida

pública nos últimos anos da República Romana, tendo ocupado cargos de

importância, foi senador e cônsul. Contemporâneo de Pompeu, César e

Crasso, Cícero foi uma das figuras mais ativas em prol da conservação da

República e da restauração dos ideais republicanos. Ele é, acima de tudo, um homem de ação, comprometido pela luta política. A arma que utiliza é a palavra. É um orador, não um nobre, um financista ou um soldado, “homem novo”, cuja família jamais entrara no Senado antes, ele precisou ao mesmo tempo defender uma tradição na qual ingressara e procurar o seu sentido moderno. E o mais importante é que essa tradição se chama liberdade (HUISMAN, 2004, p.210).

Com o apoio de oligarcas conservadores, Cícero torna-se cônsul,

em de 63 a.C, derrotando o patrício Catilina na eleição para o Consulado.

Catilina, líder de um grupo de aristocratas arruinados financeiramente, prepara

então um golpe de Estado do qual Cícero é informado. Cícero defende-se

usando sua eloquência para conseguir maior apoio contra Catilina e seu bando

de conjurados (JAGUARIBI, 2001, p. 380).

Em sessão aberta do Senado, Cícero discursa violentamente

contra Catilina e seus facciosos. A primeira de suas orações contra Catilina

inicia-se com a imorredoura frase - Até quando então, Catilina, abusarás da

nossa paciência? (Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?)78

78 Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? - Esse dramático e expressivo início

da primeira Catilinária de Cícero ainda é famoso, sendo comumente citado como referência a pessoas - ou coisas - que submeteram a paciência alheia a duras provas. Foi grande sua fama já na Antiguidade sendo usada por outros autores latinos (TOSI, 2000, p.756).

115

(CÍCERO, 2000, p. 83), e na mesma passagem usa outra frase emblemática -

Oh tempos, oh costumes! (O tempora, O mores !)79 (CÍCERO, 2000, p. 84).

Essa exclamação, de surpresa e espanto com a moral permissiva de seu

tempo decadente, aparece em outros manuscritos ciceronianos. Denominou-se

de “In Catilinam” (As Catilinárias) o conjunto das orações contra Catilina.

O político e escritor romano Salústio, que presenciou as orações

de Cícero contra Catilina, escreve a “Conjuração de Catilina”, dando sua

versão dos fatos. Salústio80, partidário de César, era antagonista político de

Cícero, que por sua vez era ligado a Pompeu. Não obstante a rivalidade de

ambos, em sua obra, Salústio deixa transparecer as qualidades retóricas de

seu oponente, inclusive fazendo referência à supracitada frase inicial do

primeiro discurso contra Catilina. Na parte XX da obra salustiana, a frase é

posta na boca de Catilina em forma de pergunta retórica: Valentes, até quando

suportareis esta situação? (Quæ quosque tandem patiemini, o fortissimi viri?)

(SALÚSTIO, 1997, p. 49).

Contra Catilina, Cícero teve uma vitória completa, obteve dos

senadores um Senatus Consultum Ultimun81 conseguindo executar os

intrigantes. A Conjuração de Catilina marca o ápice da vida política de Cícero,

ocasião em que recebe o título de pater patriae82 (pai da pátria).

Entretanto, o escândalo da tentativa de golpe dos conjurados só

aumenta a crise republicana e a coragem e a habilidade de Cícero não

impediram a decadência da República. No capítulo anterior, já se discorreu de

como Pompeu, descontente com o Senado, alia-se a César e Crasso e, assim,

criou-se um governo cada vez mais distante do ideal republicano.

79 (O tempora, O mores !) O sucesso dessa exclamação, ainda usada para expressar as

espantosas depravações de uma época decadente em que se esteja vivendo, deve-se ao fato de ser usada com frequência por Cícero para enfatizar sua indignação com a situação escandalosa. Outros autores já na Antiguidade a usaram com referência explícita a Cícero (TOSI, 2000, p.362).

80 Caio Salústio Crispo (86 a.C - 34 a.C) - refinado e metódico historiador romano. Na política,

era partidário de César e fez uma carreira pública muito inferior às suas obras literárias (LELLO, 1954, p. 821).

81 Ver nota 14. 82 Ver nota 35.

116

Cícero conseguiu evitar o golpe de Estado de Catilina com tanta firmeza que entrou para a história, embora isso não tenha impedido que aqueles que realmente exerciam o poder, já com apoio do partido popular ou dos exércitos que controlavam, se aliassem contra o Senado (LIBERATI, 2005, p. 30).

Mesmo após a criação do primeiro triunvirato, Cícero manteve um

papel relevante na política romana e também durante toda guerra civil, entre

Pompeu e César. Ele sobreviveu a Pompeu, Crasso e César, e defendeu a

República até sua morte.

Cícero era um orador notável e escritor diligente. Sua vasta obra

publicada, da qual a maior parte se conservou, é até hoje considerada modelo

da expressão latina. Pleno de verve, sua eloquência83 foi notória desde a

Antiguidade. “Não se lhe pode recusar uma posição eminente nos fastos da

eloquência” (BEVILAQUA, 1897, p. 33)

A profusa obra literária ciceroniana abrange diversos gêneros

como orações políticas, epístolas morais, obras filosóficas e tratados de

retórica. Graças ao estilo preciso, seus textos serviram de inspiração para os

autores latinos durante todo o Principado e são admirados como exemplos

perfeitos da literatura da Roma clássica.

Graças à obra de Cícero, grande admirador de cultura helênica,

Roma conheceu a filosofia. O gosto por especulações filosóficas sem fins

pragmáticos era estranho aos romanos. “Em Roma, as doutrinas estoicas

progrediram através das atividades literárias de Cícero, que estudara com o

estoico Posidônio” (RUSSEL, 2001, p. 155). Cícero é o primeiro autor romano a

compor obras filosóficas em latim. Ele encontrou termos específicos em latim

que correspondessem à linguagem filosófica grega, criando, assim, um

vocabulário latino de filosofia. “Depois de Cícero ter iniciado a história da

filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de

ideias mais importante dentro do pensamento romano foi desenvolvido das

doutrinas estoicas” (CUNHA, 2005, p.40).

83 O substantivo masculino cicerone, atualmente no vernáculo de boa parte dos idiomas

ocidentais, e que quer dizer: pessoa que guia, mostra e explica a visitantes ou a turistas os aspectos importantes ou curiosos de determinado lugar, foi cunhado dada a célebre eloquência de Cícero, estabelecendo-se uma comparação desse com os guias turísticos romanos, graças à efusividade dos últimos (HOUAISS, texto digital).

117

Desde a juventude, Cícero estudara filosofia, mas, como qualquer

jovem romano, considerava-a um complemento da educação que favoreceria a

retórica. Com a maturidade, seu gosto pela filosofia acentuou-se.

Além do estoicismo, ele se interessou pelo epicurismo e pelo

platonismo. Escreveu obras filosóficas, principalmente no final de sua vida,

quando já em desgraça, talvez como um fármaco para seu ânimo abatido pela

idade e pelas derrotas políticas, ou, com a esperança de legar às gerações

futuras um instrumento de restauração republicana. “A originalidade de Cícero

está sobretudo no papel que a filosofia desempenha em sua vida” (HUISMAN,

2004, p. 210), ou seja, pragmaticamente e em consonância com o momento

que vivia. Cícero considerava-se um eclético, no entanto sua filosofia é

fortemente ligada ao Pórtico. Cícero adota o método da discussão do pró e do contra sobre qualquer questão. Esse método oferece-lhe grandes vantagens: em primeiro lugar, oferece-lhe a possibilidade de dar a conhecer as várias posições dos filósofos a respeito do problema, fazendo grande exibição de sua erudição; em segundo lugar, oferece-lhe a possibilidade de avaliar a consistência das teses opostas; em terceiro lugar, o confronto oferece-lhe a possibilidade de escolher a solução mais provável; e, enfim, como bom orador e advogado, vê que esse método constitui um perfeito exercício de eloquência. (REALE, 2011, p. 199-200) Posto que Cícero confessasse ser um seguidor do sincretismo filosófico, que supunha ser uma fusão do platonismo, aristotelismo e o estoicismo, na verdade as suas ideias derivavam-se muito mais do estoicismo, do que de qualquer outra fonte. Suas principais obras éticas refletem de modo manifesto as doutrinas de Zenão e da escola deste. A base filosófica ética de Cícero era a premissa de que basta a virtude para a felicidade e de que o mais alto bem é a tranquilidade do espírito. Concebia como homem ideal aquele que, orientado pela razão, chegou à indiferença em relação à tristeza e a dor. (BURNS, 1959, p. 226-227).

“No ponto de partida do estoicismo como no das outras morais

gregas, como talvez da reflexão filosófica em geral, há uma interrogação sobre

a felicidade. Onde procurá-la? Como encontrá-la?” (VALENTE, 1984, p.43).

“De todos os assuntos de que trata a filosofia, as preferências de Cícero vão,

incontestavelmente, para a moral. Com efeito, a sua concepção peculiar de

filosofia tem mais relações com a moral do que com a metafísica” (VALENTE,

1984, p. 19).

Em seus tratados, Cícero aborda os temas recorrentes dos

filósofos gregos, como a finalidade da vida, o supremo bem, e o faz sempre

buscando uma moral prática que guie a existência para a plenitude e felicidade.

118

Exaltava a virtude chegando a considerá-la como a única maneira de se

alcançar a felicidade. Defende uma virtude estoica, ou seja, ilustrada, que se

atinge pela razão e pela vontade, e não está ao alcance do estulto.

No tratado “De fato” (Sobre o Destino), Cícero ocupa-se do

destino justamente para demonstrar a força de vontade reta e sã, o fado

interessa à moral justamente porque o homem é responsável pelas suas

ações. Ele afirma que “para a nossa vontade não há causas externas e

antecedentes” (CÍCERO, 2001b, p. 21).

Posto isso, a virtude é uma conquista humana. Cícero versou

sobre esse tema na obra “Tusculanrarum disputationum” (Debates em Túsculo,

ou Tusculanas), na qual escreveu: “a virtude não é apanágio dos medíocres”

(CÍCERO, 2005, p. 64).

Na mesma obra, demonstra como a sabedoria virtuosa,

conquistada pela vontade, leva à felicidade. Escreveu; “Dê-se à loucura tudo

quanto ela deseje, e ela julgará que ainda não tem o bastante. A sabedoria, ao

contrário, sempre satisfeita com o que possui, jamais se lastima da sua sorte”

(CÍCERO, 2005, p. 51). Xerxes84 [...] tão cumulado que era dos favores da fortuna, mas não satisfeito sequer com os exércitos prodigiosos e com a multidão de navios que estavam sob suas ordens, não satisfeito sequer com os seus tesouros inesgotáveis, chegou a prometer uma recompensa a quem lhe pudesse ensinar um novo gênero de voluptuosidade; após tantas volúpias, no entanto, não pode encontrar o segredo de satisfazer-se, precisamente porque a sede do prazer é inesgotável (CÍCERO, 2005, p. 22-23).

Cícero acreditava, como estoico, na validade de uma lei natural.

Segundo ele, essa lei natural é fruto da razão divina que governa o mundo e,

destarte, é universal e comum a toda a humanidade independente de qualquer

barreira civilizatória. A base da filosofia ciceroniana, como já se disse, é a Stoa. [...]. Desse modo constituída sua filosofia, Cícero não poderia negligenciar o principal contributo do estoicismo, a saber, a ligação do homem com a natureza, ou seja, a formação da ética a partir da intuição natural. Aliado a esse contributo está outro: a ética não se afirmar na contemplação, mas na ação, e é esta que deverá ser julgada boa ou má. Não se pode chegar a outra medida senão à que diz que a justiça não é inata, mas se trata de uma conquista prática da ação humana (BITTAR; ALMEIDA, 2002, p. 178).

84 Xerxes I, filho de Dario I, rei da Pérsia de 485 a 465 a.C., submeteu a Babilônia e o Egito

revoltados, invadiu a Ática e assolou Atenas. Acabou, porém, por ser vencido em Salamica e teve de fugir para a Ásia. Morreu em Sussa, no Elão, assassinado por um dignatário da sua corte(CÍCERO, 2005, p. 22-23).

119

Para viver conforme os ditames da Natureza, de acordo com

Cícero, o homem deve entendê-la, assim anotou: [...]aquele que há de viver conforme a natureza deve neces sariamente entender a ordem do mundo e seu regime. E não pode verdadeiramente julgar os bens e os males se não conhece a razão da natureza e da vida dos deuses e da harmonia que a natureza humana tem com a natureza universal. Sem o estudo da física, ninguém pode compreender a grande força daqueles antigos preceitos dos sábios que te mandam acomodar-te ao tempo, tomar a Deus por modelo, conhecer-te a ti mesmo e guardar em tudo a temperança. Só esta ciência nos ensina o que pode a natureza para a conservação da justiça, da amizade e das virtudes. E sem a explicação da natureza não se pode entender a razão do agradecimento que se deve aos deuses (CÍCERO, 2005b, p. 118).

Cícero, nessa passagem do seu tratado “De finibus bonorum et

malorum” (Do sumo bem e do sumo mal), além de concordar com os filósofos

estoicos do Pórtico grego, assimilando e aprofundando as ideias do Hino a

Zeus, de Cleantes, antecipa o ideal cristão décadas antes de Jesus Cristo

nascer e séculos antes que os filósofos da patrística e depois destes os

filósofos da escolástica viessem a elaborar filosoficamente o mesmo ideal.

Nessa mesma obra “De finibus bonorum et malorum” (Do sumo

bem e do sumo mal), Cícero demonstra a sabedoria da resignação a da

abnegação, instruindo que abrir mão dos prazer dá ao homem prazeres

maiores e suportar as dores evita dores superiores: “Mas sempre terá o sábio

esta regra: se abandona os deleites, será para conseguir outros, maiores; se

sofre as dores, será para livrar-se de outras mais duras”( CÍCERO, 2005b, p.

15).

Tendo sido advogado e estadista, Cícero ocupou-se

filosoficamente do Direito. “De re publica” (Da República), “De legibus” (Tratado

das Leis), “De officiis” (Dos Deveres), “eis dentre o avultado número de obras

que nos deixou Cícero, as que podem oferecer, de um modo completo, sua

teoria sobre o direito” (BEVILAQUA, 1897, p. 33). Cícero foi um filósofo que deixou marcas profundas no pensamento político ocidental, pois, se comparado, por exemplo, a Sêneca - preceptor, conselheiro e ministro de Nero - e a Marco Aurélio - imperador -, foi o único que refletiu filosoficamente sobre a política republicana, escrevendo “Da republica” e “Trado das Leis”. A maneira como, em “Dos deveres”, concebeu a articulação entre a ética e a política por intermédio do conceito e da prática da virtude irá desaguar na construção da figura do Bom Governo quando, destruída a República, os filósofos romanos deixarão de colocar nas leis a origem

120

das qualidades do regime político para fixá-la na pessoa do príncipe virtuoso (CHAUÍ, 2010, p. 221).

No tratado “De Legibus” (Tratado das Leis), Cícero defende as

velhas leis, pois acredita no Direito Natural e, em vista disso, advoga a favor

dos costumes antigos como fontes do Direito. “A lei natural e eterna é fonte

desse Direito. Não reside na convenção nem na inteligência do legislador a

formação das leis, mas em uma razão natural, insubmissa às corruptelas do

pensamento humano” (BITTAR; ALMEIDA, 2002, p. 181). Essas ideias

buscam demonstrar que a validade do Direito Natural exorta os cidadãos a

entender a afinidade entre a justiça, a Natureza e a vontade divina, para, a

partir disso, conceituar a lei como um direito superior e universal. “Cícero

ressalta ainda que o Direito positivo que conflita com a lei natural é carente de

validade” (FERACINE, 2011, p.92). Portanto, desde o início devemos convencer os cidadãos de que os deuses são senhores e guias do Universo, que nada é criado sem o concurso do juízo e vontade divinos, que são eles os grandes benfeitores do gênero humano, que observam o caráter e a responsabilidade de cada um, os seus propósitos e a fidelidade no cumprimento dos deveres religiosos, julgando ímpios e piedosos (CÍCERO, 2004b, p. 67). A Lei não é produto da natureza humana, nem da vontade popular, mas é algo eterno que rege o Universo por meio de sábios mandamentos e de sábias proibições; essa Lei, como se costumava dizer, é tanto a primeira como a última, identifica-se com a mente divina quanto racionalmente, proibindo ou permitindo, dá impulso a todas as coisas. Portanto, é lícito louvar a Lei que é presente dos deuses ao gênero humano, porque é a razão e o pensamento de um ente sábio, apropriada a dar ordens permissivas ou proibitivas (CÍCERO, 2004b, p. 71). Na verdade, o maior absurdo é supor justas todas as instituições e todas as leis dos povos. Justas serão as leis dos tiranos? Se aqueles Trinta de Antenas85 resolvessem impor leis a cidade e se todos os atenienses suas leis tirânicas aprovassem, teríamos que considerá-las justas? [...] Na verdade existe um só direito, aquele que une a sociedade humana e que nasce de uma só Lei; e essa Lei é a reta razão, quando ordena e proíbe. Quem a ignorar é injusto, esteja ou não escrita em algum lugar (CÍCERO, 2004b, p. 57).

A reta razão de Cícero é a consciência de uma lei superior que

está acima da lei posta pelo homem, a sua busca é pela justiça, pois, se assim

não fosse, cumprir ou não a lei seria relativizado pela conveniência pessoal do

indivíduo em relação ao que poderia vir a perder ou a ganhar agindo de acordo 85 Os Trinta Tiranos que o espartano Lisandro impôs à vencida Atenas em 404 a.C. Seu chefe

foi Crítias, discípulo dos sofistas e de Sócrates. Permaneceram, ao longo dos séculos, como símbolo do regime oligárquico e cruel (CÍCERO, 2004b, p. 57).

121

com as prescrições legais, seria um utilitarismo e não justiça. Portanto, conclui

que a Natureza é a base do Direito. Se a Justiça consistisse em obedecer às leis escritas e agir conforme as instituições dos povos, tudo seria medido pelo padrão de utilidade e qualquer um, quando lhe fosse proveitoso, poderia ignorar ou violar as leis. Resulta daí que não existe justiça se não assentada na Natureza, e que a Justiça fundada na utilidade acaba com qualquer justiça. Se a Natureza não for a base do Direito, acabam todas as virtudes. Realmente, onde ficariam a generosidade, o amor à pátria, o respeito e a vontade de servir os outros ou de ser grato pela ajuda recebida? Tais virtudes nascem de uma inclinação natural que nos leva a amar os homens, e nela reside o Direito. Não seria apenas o dever com os demais homens que ruiria, também ruiriam os deveres com os deuses, porque, a meu juízo, estes devem conservar-se pelo temor, tendo em vista a união que existe entre o homem e a divindade, e não pelo medo (CÍCERO, 2004b, p. 57).

No mesmo “Tratado das Leis”, Cícero ocupou-se, também, da

religião, mas, mesmo nessa parte da obra, o foco não se perde e aponta

sempre para a razão natural. Por exemplo, quando comenta os ritos funerários,

demonstra como é apropriado unir-se à mãe Natureza, viver e morrer em

harmonia com ela, criticando quem por algum motivo desobedece a essa lei

ditada pela razão, nestes termos: Porém, a meu juízo, o tipo mais antigo de sepultura é o que, segundo Xenofonte86, foi constituído por Ciro87: devolve-se o corpo à terra e é ajeitado de tal modo que parece coberto pelo manto de sua mãe. Diz a tradição que, sob esse ritual, em uma sepultura que está há pouca distância do altar da Fonte88, foi sepultado o rei Numa89, e sabemos que ainda o clã dos Cornélios90 adota esse procedimento. Sila, depois da vitória, fez jogar no rio Ânio os exumados restos de Caio Mário. No episódio deixou-se conduzir pelo ódio, demonstrando que sua sabedoria estava aquém de seu ódio (CÍCERO, 2004b, p. 93-94).

Cícero não abandona a filosofia do Pórtico nem mesmo quando

escreve sobre política. Em “De re publica” (Da republica), obra escrita por volta

de 55 a.C., na qual ele expõe o modelo de governo de Roma, não se abstém

de fazer o nexo entre a moral, a virtude e a política. A última parte de “Da re

86 Xenofonte (c.430 a.C. - 355 a.C.), historiador grego nascido na Ática, foi discípulo de

Sócrates. (CÍCERO, 2004b, p. 93). 87 Ciro II, o Grande, fundador do Império Persa no século VI a.C. (LELLO, 1954, p. 560). 88 Fonte era a deusa da água (CÍCERO, 2004b, p. 94). 89 Numa Pompílio, segundo rei lendário de Roma, que teria reinado de 714 a.C. a 671 a.C. Era

de origem sabina e presidiu a organização da cidade romana, à qual deu as primeiras leis (LELLO, 1954, p. 366).

90 Cornélios - antiga família do patriciado romano da qual Cina era membro. Ver nota 15.

122

publica”, livro VI, ficou conhecida desde a antiguidade como “Somnium

Scipionis” (Sonho de Cipião) graças ao escritor e filósofo Macróbio91. No

Sonho de Cipião, Cícero faz uma alegoria descrevendo um sonho no qual

Cipião Emiliano92 encontra os seus falecidos avô e pai na vida post mortem e,

conversando com eles, aprende que a imortalidade da alma é destinada aos

homens virtuosos. A alma do homem bom, depois de se libertar do corpo, volta

para a plenitude de onde veio, enquanto a alma do homem ímpio permanecerá

errante por séculos. No trecho que encerra a obra, lê-se: Uma vez afirmada e demonstrada a eternidade do ser que se move por si mesmo, quem pode negar que a imortalidade é atributo da alma humana! Tudo o que recebe impulso externo é inanimado; todo ser animado deve ter, pelo contrário, um movimento interior e próprio; esta é, pois, a natureza e a força da alma. Com efeito, se somente ela, em todo o Universo, se move por si só, é certo que não teve nascimento e que é eterna. Exercita-a, pois, nas coisas melhores, e fica sabendo que nada há de melhor do que o que tende a assegurar o bem-estar da pátria; agitado e exercitado o espírito nessas coisas, voará veloz para este santuário, que deve ser e foi sua residência, e ainda virá mais depressa se, em sublimes meditações, contemplando o bom e o belo, romper a prisão material que o prende. As almas dos que, abandonados aos prazeres voluptuosos e corporais, foram, na vida, servos de suas paixões e obedientes ao impulso de sua voluptuosidade libidinosa, violaram as leis divinas e humanas, vagam errantes, uma vez quebrada a prisão dos seus corpos, ao redor da terra, e, só depois da agitação de muitos séculos, tornam a entrar nestes lugares (CÍCERO, 2012, p. 141-142).

A concepção de que a vida de acordo com a Natureza é feliz

porque obedece aos desígnios divinos perpassa toda a obra filosófica de

Cícero e, com a idade, reafirma-se, sendo expressa novamente em um de seus

últimos textos “Cato Maior93, de senectute” (Saber envelhecer). Esse texto foi

escrito pouco antes de sua morte. Nessa sua penúltima obra filosófica, Cícero,

já idoso, discorre justamente sobre a velhice e mostra como esta pode ser

serena, se aquele que envelhece vive até o fim da vida em consonância com a

razão e com a vontade que provêm do divino. Assim escreveu: 91 Macróbio é um escritor e filósofo pagão de Roma, que viveu no século V. É autor das

Saturnais e do Comentário ao Sonho de Cipião (LELLO, 1954, p. 126). 92 Ver 76.

93 Marco Pórcio Catão (Marcus Porcius Cato) dito Catão, o Velho (Cato, Maior) (c. 234 a.C.- 149 a.C.), escritor, militar e político romano, muito atuante durante a segunda guerra púnica, tornou célebre a frase “Ceterum censeo Carthaginem esse delendam” - Por outro lado, acho que Caratago deve ser destruída.- que usava para concluir seus discursos no Senado qualquer que fosse o assunto em discussão. Essa anedota é lembrada por diversos autores da antiguidade, inclusive Cícero (TOSI, 2000, p. 426).

123

Eu poderia igualmente vos citar camponeses romanos do país Sabino, vizinhos e amigos meus que, por nada deste mundo, quereriam se abster dos principais trabalhos agrícolas: semear, colher ou enceleirar as colheitas. Também entre eles isso não é muito espantoso: ninguém é bastante velho para não esperar viver um ano mais. E é sem esperança precisa de se beneficiarem que eles se entregam a esses trabalhos: Ele planta árvores que crescerão para os outros [...]. Não, não há nenhuma hesitação nesse camponês, por mais velho que seja, se lhe perguntassem para quem semeia: Para os deuses imortais que querem que eu, tendo recebido esses bens de meus ancestrais, os transmita a meus descendentes (CÍCERO, 1997, p. 22).

A última obra de Cícero é “De officiis” (Dos deveres), em que

defende o patriotismo e demonstra que o homem como cidadão de um Estado

deve, para levar uma vida patriótica, viver de acordo com a Natureza, guiado

pela razão. Afinal, o homem é um ser gregário, agrupa-se em sociedade

naturalmente, como muitos animais, com o diferencial de que o ser humano

tem consciência do passado e do futuro; assim, diferentemente das bestas,

tem o dever de zelar pela sociedade em que vive.

A princípio, foi atribuído pela Natureza a todo tipo de seres animados que se protejam a si mesmos, sua vida e seu corpo, evitando as coisas aparentemente nocivas, e procurando e preparando aquelas que são necessárias para viver - como o alimento, abrigo e semelhantes. É comum aos seres animados o apetite da união com finalidade de procriar e certos cuidados para com aqueles que foram procriados. Isso, porém, difere muito no homem e no animal, pois este se sente motivado apenas pelo que está próximo e presente; acomoda-se, percebendo muito pouco o passado e o futuro. O homem, por outro lado, sendo partícipe da razão e por ela discernindo as consequências, vê as causas e não ignora os progressos e os antecedentes; compara semelhanças, liga-as, une as coisas futuras às presentes, percebe facilmente o curso da vida e prepara o necessário para passá-la. (CÍCERO, 1999, p. 9).

“O ser humano distingue-se dos animais precisamente porque é

racional e livre. Bem por isso denomina-se ato humano o agir do homem que

manifesta vontade livre em vista de um fim conhecido e almejado”

(FERRACINE, 2011, p.18). A ética estoica é ainda uma ética que determina o cumprimento de mandamentos éticos pelo simples dever. Não é com vistas a um fim outro qualquer que da ação deve decorrer um bem qualquer para si ou para a comunidade. Não é visando ao enriquecimento, à honra social, ao elogio, à elevação de seu conceito entre as pessoas, que se deve distinguir o agir ético. A ética deve ser cumprida porque se trata de mandamentos certos e incontornáveis da ação. Eis aí uma ética do dever (BITTAR, 2010, p. 267).

124

“Essa obediência aos mandamentos éticos se deve ao fato de

esses mandamentos decorrerem de leis naturais” (BITTAR, 2010, p. 267). É

justamente essa ética do dever que se encontra em “De officiis” (Dos deveres): A própria Natureza, pela força da razão, concilia o homem com o homem no caminho de uma comunidade de língua e vida; antes de tudo, engendra nele um certo amor singular para com aqueles que foram procriados e impele-o a frequentar reuniões e celebrações. Por esse motivo, esforce-se o homem para preparar o que seja necessário ao cultivo, à alimentação, não apenas para si mesmo, mas para a esposa, os filhos e os outros entes queridos, a quem deve proteger. Tal preocupação também excita os ânimos e o faz maiores para o cumprimento da tarefa (CÍCERO, 1999, p. 9 -10).

Com a morte de César, Cícero, apoiou Otávio em detrimento de

Marco Antônio e, contra este, compôs orações como as que compusera contra

Catilina. A essas orações Cícero deu o nome de “Philippicæ”(Filípicas),

tomando o nome das orações que Demóstenes94 escrevera três séculos antes

contra o tirano macedônico Felipe II, pai de Alexandre Magno. Nessas orações,

Cícero defende a República contra Antônio a quem considera uma ameaça.

Bravamente, Cícero não se furta a se expor ao perigo de abertamente atacar

Antônio em prol da República, escrevendo: “Olha, te peço, Antônio, para a

República, considera de quem nascestes, não com quem vives; a mim trata-me

como quiseres[...]” (CÍCERO, 2004, p. 136).

Antonio atendeu Cícero. Não no tocante a lembrar-se de sua

origem patrícia de família republicana de velha cepa, da gens Júlia e Antônia,

mas sim no que concerne a fazer do filósofo o que quisesse. De modo que, tão

logo Antônio formou o segundo triunvirato, com Lépido e Otávio, ordenou o

assassinato de Cícero. Cícero, estoicamente, aceitou a morte e dirigiu suas

últimas palavras à Providência, exclamando: “Ó Causa das causas, lembra-te

de mim!” (CÍCERO, 2005, p. VI).

Com Cícero, testemunhamos a síntese de dois momentos finais:

o da filosofia grega, que passará a falar latim, e o da cultura republicana

romana, que se manterá apenas como discurso de justificação do cesarismo.

(CHAUÍ, 2010, p. 222).

Encerra-se esta parte do estudo, com uma citação de Carlos

Heitor Cony, que, no prefácio de “A Vida dos Doze Césares”, de Suetônio,

94 Demóstenes (c. 384 a.C. - 322 a.C.) foi um político e orador grego, antagonista de Felipe II

da Macedônia (LELLO, 1954, p. 709).

125

apresenta, de forma clara e sucinta, a importância basilar de Cícero para a

moral e o Direito Romano e, em consequência, para toda a civilização

Ocidental: Cícero, tradutor da filosofia grega, tribuno, orador, político, advogado [...], ergueu as bases jurídicas e morais daquele mundo em transição. Mundo que vivia sem saber a sua grande passagem, a sua grande metamorfose: a Antiguidade clássica penetrou pelo apertado funil da península itálica e, tanto geográfica quanto cronologicamente, venceu este funil. Logo se espraiou no imenso território conquistado ou consolidado por César firmando-se, através dos tempos, como a principal base da cultura do Ocidente. (SUETÔNIO, 2002, p. 11).

126

2.3.2 - Sêneca

O que eu procuro através da virtude? Ela própria. A virtude nada tem de melhor, é a recompensa de si mesma. Isso acaso não é o bastante? Sêneca; “De Vita Beata”- (Da vida feliz) (SÊNECA, 2001, p. 24).

Lúcio Aneu Sêneca (Lucius Annæus Seneca), nascido por volta

de 2 a.C., em Córdoba, na Espanha, e morto em 12 de abril do ano 65 da

nossa era, é filósofo, dramaturgo, historiador e estadista latino,denominado

igualmente Sêneca, o Jovem (Seneca, Minor), para diferenciá-lo de seu pai, o

retórico Sêneca, o Velho (Seneca, Maior); e ainda Sêneca, o Filósofo, ou,

Sêneca, o Trágico, já que era filósofo e dramaturgo. Nascido na região da

Bética (atual Andaluzia), sua família não era espanhola, mas de origem italiana.

Ainda criança, foi trazido para Roma, onde estudou retórica e filosofia

(HUISMAN, 2004, p. 912).

Jovem, bem nascido e bem instruído, tem sucesso na carreira

pública, chegando a ser conselheiro do Imperador Calígula. Com a morte

desse imperador e a elevação de seu tio Cláudio ao trono, a situação de

Sêneca na corte imperial torna-se precária e, por uma intriga da Imperatriz

Messalina, ele é exilado na ilha de Córsega (REALE, 2008, p. 68).

Como se disse na primeira parte deste trabalho, Messalina é

executada em decorrência de escândalos morais. A nova imperatriz, Agripina,

a Jovem (Minor), reabilita o filósofo, chamando-o de volta à corte para educar

seu filho Nero (RUSSELL, 2001, p. 156).

Sendo mentor de Nero, Sêneca buscou incutir no pupilo o gosto

pelo conhecimento e a felicidade de uma vida virtuosa e ética. O futuro

imperador era um bom aprendiz, e Sêneca o acompanhou até depois da

ascensão ao trono, tornando-se conselheiro do imaturo governante durante os

anos de bom governo de Nero (PESSANHA, 1980, p. XIX). Nesses anos de

bonança, Nero deu a Sêneca o título de “amigo de César” (CHAUÍ, 2012, p.

298). Sêneca produziu abundantemente e, tanto como filósofo quanto

como dramaturgo, ocupa-se da política e da moral, pois seu trabalho é paralelo

127

à sua carreira pública. “Pode-se mesmo dizer que ao, menos grande, parte de

seus escritos, de sua filosofia e de sua ética são frutos de suas reflexões sobre

sua existência como atuante da vida política de seu tempo” (BITTAR, 2010, p.

264-265). A filosofia de Sêneca é a do Pórtico por excelência. Mesmo

conhecendo outras escolas filosóficas, não é eclético como Cícero e, com ele,

o estoicismo afirma-se como a filosofia de Roma durante o Principado.

À parte da reconhecida notoriedade do pensador Cícero, cujo estoicismo possuiu um caráter muito mais eclético, fundindo sincreticamente diversas tendências filosóficas e opiniões de seu tempo, o estoicismo romano parece ganhar corpo com Sêneca. Em seus escritos, o filósofo romano reconhece a matriz de suas ideias e também sua proximidade e sua admiração pelas ideias estoicas, além de possuir princípios caracteristicamente influenciados pelas tendências estoicas (BITTAR, 2010, p. 268).

Sêneca, embora tenha escrito doze ensaios morais, é tratado por

alguns historiadores, entre os quais Jean Brun e Hélio Jaguaribe, como figura

apagada do estoicismo romano, enquanto, para outros, entre eles Dante e

Montaigne, é admirado não só como filósofo, mas também como estadista e

literato. (ASSIS, 2002, p. 107).

Como estadista, Sêneca exercitava-se no governo e, mesmo

ordenando os trabalhos na corte e orientando o imperador, encontrava tempo

para escrever tanto dramaturgia quanto filosofia. Como dramaturgo, Sêneca

escreveu várias tragédias. “Já houve quem considerasse as tragédias de

Sêneca simplesmente como veículo para a propaganda da doutrina estoica ou

para a crítica política” (CARDOSO, 2005, p. 08)

A despeito da vigilância e do cuidado de Sêneca, Nero entra em

conflito com Agripina, sua mãe e, a partir de então, começa a demonstrar sinais

de desequilíbrio. Acaba por ordenar a morte de Agripina. A partir do matricídio,

o jovem imperador desestabiliza-se totalmente, começa a levar uma vida

desregrada, comportando-se histrionicamente como um bufão que se julga

artista e se considera um deus. Com esse cenário desolador, Sêneca retira-se

da vida pública (FERACINE, 2011b, p.21).

Nero considerou uma afronta Sêneca ter se afastado do poder,

acreditava que o filósofo não podia deixar de ser “amigo de César” sem o seu

consentimento. Sêneca quis devolver a Nero toda a riqueza que fora

acumulada por ele, mas Nero recusou. O imperador nunca o perdoou e,

128

finalmente, no ano 65, condenou Sêneca à morte, mais especificamente ao

suicídio, para pôr à prova seu estoicismo. Sêneca, serenamente, cumpriu o seu

destino e se matou (CHAUÍ, 2012, p. 298-299).

Tácito, no fragmento LXII do livro XV de seus “Annales” (Anais),

descreve o resignado suicídio duplo de Sêneca e sua esposa. Tal como Cícero,

Sêneca morreu confiante nas suas crenças e fiel à sua filosofia, abraça

fleumaticamente sua sina, cortando as veias do pulso junto à sua esposa que o

acompanha nesse fado: Assim [...] abraçou sua mulher; e procurando animá-la pelo doloroso estado em que a via, encarecidamente lhe rogou moderasse a intensidade da sua dor, e que na contemplação de quantas belas ações tinham ilustrado a sua vida suportasse as saudades do marido com o socorro de consolações virtuosas. Ela, porém, lhe respondeu que estava igualmente determinada a morrer, e logo perguntou por quem lhe havia abrir as feridas. Sêneca, então, sem querer roubar-lhe esta glória, e muito mais por não lhe consentir o amor deixar exposto às afrontas este único objeto da sua predileção e ternura, replicou-lhe desta maneira: “Até aqui eu te havia figurado todas as doçuras e delícias da vida, mas já que lhes preferes as honras da morte não me oponho à tua resolução; pois ainda que no mesmo lance fatal mostramos ambos a mesma coragem, o teu motivo é mais nobre”. Acabado isto o mesmo ferro cortou as veias dos braços de ambos consortes. Sêneca, por velho, e definhado com a demasiada abstinência, vertendo pouco sangue, mandou também abrir as veias das pernas e das curvas. Fatigado, porém com dores horríveis, e para não desanimar sua mulher com o espetáculo do seu sofrimento, nem mesmo dar-lhe os mais leves indícios de alguma impaciência, vendo-a tão cruelmente sofrer, fez com que se retirasse para outro quarto. Então, sentindo-se ainda nos últimos momentos com bastante força de espírito, chamou seus amanuenses, e lhes ditou várias coisas[...] (TACITUS, 1950, p. 420).

O texto de Tácito narra um fato histórico e é útil para este estudo,

pois demonstra o quanto os estoicos romanos e, em particular Sêneca, eram

comprometidos com a virtude e a dignidade, literalmente até o último suspiro.

Tal desapego em relação à vida corpórea e confiança na

Providência e na vida além do corpo é uma constante na obra de Sêneca, pois

acreditava que o mal a se evitar é aquele que atinge a alma. O cuidado e a

cura devem visar à saúde dos bens espirituais. Sêneca foi, sobretudo, um

moralista. A filosofia é para ele uma arte da ação humana, uma medicina dos

males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da

virtude (CUNHA, 2005, p. 44).

Na sua medicina da alma, transforma a razão Universal dos

gregos Cleantes e Zenão em um Deus pessoal, que é sabedoria, previsão e

129

vigilância, sempre em ação para governar o mundo, para assim realizar a

ordem, a perfeição (CUNHA, 2005, p. 44).

Um bom exemplo da medicina da alma é exposto por Sêneca na

obra “De Vita Beata” (Da Vida Feliz), na qual o filósofo afirma que, para ser

feliz, deve-se viver de acordo com a Natureza, sem descuidar do corpo, mas

visando à saúde espiritual: Portanto, a vida feliz é a que concorda com a natureza. Ora, isso não poderá ocorrer se, em primeiro lugar, a mente não for sã e não estiver em perpétua posse da própria saúde e, em seguida, corajosa e enérgica, nobre, paciente e acomodada às várias situações. Ela deverá cuidar sem ansiedade do corpo e do que se refere a ele, das coisas que adornam a vida, sem se deixar deslumbrar por nenhuma, e estar pronta a utilizar os dons da fortuna, sem ser escrava deles (SÊNECA, 2001, p. 09).

O sumo bem é a alma que, contente com a virtude, despreza os azares da sorte, ou, a força invencível da alma, experimentada e tranquila na ação, unida a uma grande bondade e atenção para os que vivem com ela. Pode-se também definir o homem feliz como aquele para o qual não há nenhum bem ou mal senão a alma boa ou má, aquele que pratica o bem, que se contenta com a virtude, que não se eleva nem se abate com as vicissitudes da fortuna, que não conhece maior bem do que o bem que ele mesmo pode dar, para quem o maior prazer consiste no desprezo dos prazeres (SÊNECA, 2001, p. 11). Portanto, a vida feliz está fundada de modo inamovível num juízo reto e certo. Assim a alma é pura e desembaraçada de todos os males, apta a evitar não só as dilacerações mas também as picadas da adversidade. Sempre se manterá de pé no lugar em que se deteve e defenderá o seu posto, a despeito das iras e dos ataques da sorte. No tocante ao prazer, ele envolve o homem por todos os lados, insinuando-se na alma para amolecê-la com sucessivas carícias, e seduzi-la inteira ou parcialmente: mas quem dentre os mortais com algum resto de dignidade humana, quereria ser lisonjeado dia e noite, abandonar a alma e dedicar-se ao cuidado do corpo? (SÊNECA, 2001, p. 14-15).

O bem supremo é imortal, não sabe o que é perecer, não fica saciado nem se arrepende. Uma alma reta nunca se transforma nem é odiosa a si mesma, em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém, extingue-se justamente quando mais deleita, o seu campo não é muito amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do primeiro impulso. Não pode ser firme aquilo cuja natureza consiste na mudança. E assim não pode ter substância definida aquilo que vem e passa com maior velocidade, e perecerá com o uso de si mesmo; chega onde cessa e, ao começar, já tende para o fim (SÊNECA, 2001, p. 18-19).

A leitura de “De Vita Beata” (Da vida feliz) e sua mensagem de

felicidade ligada à Natureza e desapegada das coisas corpóreas explica em

parte a mansidão com a qual Sêneca suportou a sentença capital de Nero. Fica

ainda mais compreensível seu suicídio tranquilo quando se lê “De

130

Donsolatione” (Cartas Consolatórias). Numa dessas cartas, “Consolatio ad

Marciam” (Consolação a Márcia), cumprindo o que acredita ser seu dever como

médico de almas, Sêneca consola uma mãe pela morte do filho e, tal como

Cícero no “Sonho de Cipião”, ele também confirma sua crença na vida além da

morte para a alma dos virtuosos.

Na carta na qual consola Márcia, Sêneca aborda a imortalidade

da alma de maneira muito análoga ao cristianismo, chegando a descrever a

conflagração Universal nos fins dos tempos, a ventura dos bem-aventurados

no mundo que há de vir, semelhantemente ao Apocalipse de João, o

Evangelista nestes termos: E quando chegar o tempo em que o mundo perecerá para se renovar, essas coisas se destruirão com suas próprias forças, e os astros se chocarão com os astros e, inflamada toda a matéria, tudo que agora brilha com tanta ordem se abrasará em um só fogo. Do mesmo modo nós. Almas felizes e premiadas com a eternidade, quando parecer oportuno a um deus reconstituir estas coisas, nós próprios, na destruição universal, pequena parte da imensa ruína, retornaremos aos antigos elementos (SÊNECA, 1992, p. 66).

Sêneca chegou a essas conclusões filosoficamente, pela razão, e

não teologicamente por revelação. Vale lembrar que, por volta do ano 40 da

nossa era, quando Sêneca consolou Márcia, o Apocalipse ainda nem havia

sido escrito, o cristianismo ainda não era uma religião organizada e não havia

chegado a Roma. Por esse motivo, mais tarde os filósofos cristãos da patrística

farão referência a Sêneca como "sæpe noster", ou seja, muitas vezes um dos

nossos.

A vida, para Sêneca, é uma caminhada de aprendizado, o

caminho está traçado, o final é indiferente e, para o homem sábio, o caminhar

bem é a meta, aprendendo a viver e vivendo bem. Essa é a maneira estoica de

Sêneca guiar sua existência, sem se opor à natureza das coisas, sem se

importar com o tempo cronológico da vida corpórea, mas com a qualidade

espiritual durante essa vida. Por isso, em “Ad Paulinum de Brevitatæ Vitæ”

(Sobre a Brevidade da Vida), escreve: A maior parte dos mortais [...] queixa-se da malevolência da Natureza, porque estamos destinados a um momento da eternidade, e, segundo eles, o espaço de tempo que nos foi dado corre tão veloz e rápido, de forma que, à exceção de muitos poucos, a vida abandonaria a todos em meio aos preparativos mesmos para a vida (SÊNECA, 1993, p. 25). Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer. Muitos dos maiores

131

homens, tendo afastado os obstáculos e renunciado às riquezas, a seus negócios e aos prazeres, empregam até o último de seus dias para aprender a viver, contudo muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo (SÊNECA, 1993, p. 34).

Para quem vive bem, não importa o quanto tempo se vive. Aquele

que vive bem alcançará a paz no além. Quem vive bem é o sábio que cultiva a

virtude - isso é posto de maneira didática na maioria dos seus escritos. Não

existe redenção, mas desprendimento. Em “Epistulæ Morales ad Lucilium”

(Aprendendo a Viver), ensina: “A vida é como um drama: não importa quanto

durou, mas como se representou. Não tem a mínima importância a altura em

que a acabes. Acaba-se quando quiseres; mas cuida de lhe dar um bom

desfecho” (SÊNECA, 2002, p. 34).

Contudo, mesmo confiante na paz eterna para a alma do justo,

Sêneca não descuida de pensar em um modo de tornar a vida humana na terra

também feliz. A solução que encontra é que o homem, sabiamente, almeje uma

felicidade possível, de ordem prática. Para conviver com as inevitáveis

adversidades, o homem deve se adaptar às suas capacidades, as

oportunidades que de fato estão ao seu alcance, evitando desejar o impossível,

o inatingível. O homem que conhece a efemeridade das coisas é

desinteressado e abnegado, é feliz porque tem uma alma tranquila, não vive

atormentado ou frustrado. A obra “De Tranquillitate Animi” (Da Tranqüilidade

da Alma) versa sobre isso.Um exemplo é o seguinte trecho: Abandonando essas coisas que não podem ser feitas ou apenas podem ser feitas de modo muito difícil, sigamos as coisas próximas e que alimentam nossa esperança. Saibamos que todas as coisas são igualmente volúveis; embora exteriormente possam ter diversas faces, por dentro são iguais e vãs. Não invejamos a sorte dos que estão em posição privilegiada. O que parece ser altura é, na verdade, um precipício. (SÊNECA, 2009, p. 66).

Como filósofo do Pórtico, Sêneca despreza as glórias mundanas

e abomina o vício, justifica isso demonstrando que a meta da vida é o repouso,

ora, impossível é repousar em meio à turba, a mundanidade fatiga os ânimos,

desgasta-os e, por isso, o filósofo recomenda o ócio. Não qualquer ócio, não o

desfrute ou o deboche, mas o ócio reservado, útil e iluminado. Sêneca

escreveu um tratado sobre o ócio, “De Otio” (Da Vida Retirada), que se inicia

com as seguintes recomendações: Os vícios nos acompanham constantemente. Mesmo que não buscássemos nenhuma outra coisa saudável, retirar-se, por si só,

132

ainda poderia ser proveitoso, pois nos tornaria melhores do que somos. Que pensar então da utilidade de se retirar para perto de homens qualificados e escolher um exemplo para orientar a nossa vida? Isso, a não ser em uma vida retirada, não pode ser conseguido. Somente assim pode ser alcançado aquilo com que sonhamos, em um lugar onde ninguém interfere em nossas ações, para não deixarmos de lado nossos propósitos. Somente dessa forma pode-se conduzir a vida segundo um único princípio, em lugar de fragmentá-la com projetos diversificados (SÊNECA, 2009, p. 19).

Por toda a obra filosófica de Sêneca, são afirmados os ideais

propostos pelos estoicos gregos, confirmados pelos escolarcas de médio

Pórtico, adaptados por Cícero à cultura latina e assimilados pela sociedade

romana desde Cipião Emiliano. É importante notar que os temas são

recorrentes e expostos didaticamente para doutrinar. Entretanto, cabe ressaltar

que Sêneca não escreveu só obras filosóficas, chegaram até a modernidade

dez tragédias escritas por ele, muitas outras se perderam.

A abundante produção dramatúrgica de Sêneca leva à inevitável

questão: por que um filósofo e estadista escreveria para o teatro desperdiçando

um tempo que poderia ser utilitariamente ocupado com especulações

filosóficas e políticas mais profundas?

Antes de responder, deve-se relembrar que a moral proposta por

Sêneca é uma moral de ordem prática e realizável. Assim, a dramaturgia dá-lhe

a vantagem de expor suas ideias morais e colocá-las em ação, emprestando

aos seus personagens atitudes que julgava convenientes para a vida de

qualquer ser humano digno. Dessa maneira, a ação dramática serve de

exemplo de vida.

Ademais, a maioria das peças de Sêneca são tragédias gregas,

releituras inspiradas em obras da dramaturgia clássica, como Medeia, Fedra ou

Édipo. Desse modo, seus personagens são heróicos no sentido clássico do

termo, isto é, têm a coragem de resignadamente abraçar o destino seja ele

qual for. A sabedoria distingue o herói do vulgo, pois não lhe falta firmeza de

espírito, retidão moral e rigor de caráter. Em outras palavras, o herói de Sêneca

é estoico e faz o que deve ser feito, pois cumpre o seu dever atendendo à

razão reta da Natureza.

Assim, as desventuras de Medeia, Édipo, Hécuba, Agamenom,

Fedra ou Hipólito, entre outros, são, nos versos de Sêneca, exemplos da sua

ética estoica.

133

Desse modo, é quando em “Troades” (As Troianas), Hécuba, a

rainha viúva da derrotada Tróia, ordena que se proclame a felicidade de

Príamo, seu esposo morto e, portanto, livre: Derramai vossas lágrimas por outro! A morte de meu Príamo não deve ser chorada, Ó mulheres de Ílio. “Feliz Príamo”, dizei juntas. Livre ele se dirige às profundezas dos manes e não trará jamais o jugo helênico sobre a vencida cerviz. (SÊNECA, 1997, p. 41).

É também estoico o discurso de Hipólito, em “Phædra” (Fedra),

ao exaltar as virtudes de uma vida retirada, distante da cidade, no campo,

indiferente às glórias do mundo: Não há vida mais livre, isenta de vícios, Nem que respeite mais os costumes antigos, Do que a de quem, longe dos muros, ama as selvas. O furor do desejo voraz não inflama Quem, inocente, consagrou-se aos altos cumes, Nem os favores do povo infiel aos bons, nem a pestífera inveja, o aplauso inconstante. Ele não serve a reinos nem sonha com eles, Buscando honras vãs, poderes transitórios - sem medo ou esperança. A sôfrega e sombria inveja não o ataca com o dente infame nem os crimes gerados nas turbas urbanas ele conhece. Não tendo culpas, não teme todo e qualquer ruído, nem forja mentiras[...] (SÊNECA, 2007, p. 271).

Em “Agamemnom” (Agamêmnom), os gregos, vitoriosos na

guerra de Tróia, voltam para casa com seus navios quando são aniquilados por

uma apocalíptica tempestade. Essa alegoria demonstra que não existe glória

humana que perdure, o fim dos vencedores e dos vencidos é o mesmo e,

desse modo, são irrelevantes as honrarias mundanas.

Tão logo a esquadra esparsa expôs-se ao mar tumente, Um navio aliado não pôde ver o outro. E até o Átrida95, errando pelo mar imenso, Sofreu no mar mais graves danos que na guerra E volta qual vencido, de tão grande esquadra, Poucas naus trazendo, vencedor. (SÊNECA, 1978, p. 57).

Igualmente interessante é a passagem da tragédia “Medea”

(Medeia), na qual Jasão, o esposo da protagonista, abandona-a à própria sorte,

95 Átrida refere-se aos descendentes do mítico rei Atreu, entre eles Agamemnom e Menelau

(LELLO, 1954, p. 248). Nessa passagem, alude, especificamente, a Agamêmnom.

134

sendo conivente com o exílio a ela imposto pelo rei Creonte, por crimes que ela

teria cometido para beneficiar seu cônjuge. Nesse diálogo, Jasão, que livre da

esposa se casará com a filha do rei, informa Medeia do exílio, sem remorso ou

culpa, pois tem vergonha de ter tido a vida salva pelos crimes dela. Medeia

lembra a ele que quem colhe vantagens de um crime é criminoso, e quem se

envergonha de viver deve abandonar a vida: JASÃO: - Só resta imputares-me teus próprios crimes. MEDEIA: - Sim, são teus, teus: quem aproveita um crime, desse crime é autor. Todos podem afirmar que tua esposa é infame: somente tu tens o dever de defendê-la, de proclamar sua inocência. A teus olhos deve ser inocente quem é culpado por te favorecer. JASÃO: - Como é odiosa a vida quando temos vergonha de tê-la recebido. MEDEIA: - Não devemos conservá-la, quando temos vergonha de tê-la recebido. (SÊNECA apud PESSANHA, 1980, p. 233).

Poderiam ser citados trechos de todas as tragédias de Sêneca,

igualmente de todos os diálogos e epístolas filosóficas e, sem exceção, seria

possível encontrar demonstrações do ideal do Pórtico em todas elas. Todavia,

com este trabalho, não se pretende exaurir a obra de Sêneca, mas demonstrar

o quanto ele foi importante para sedimentação e semeadura do estoicismo no

Principado. Tendo em vista a notoriedade de Sêneca como estadista

estreitamente ligado ao poder, sua abundante obra literária, seu exemplo de

vida e de resignação perante a desgraça e a morte, pode-se concluir que,

depois dele, o estoicismo será a moral guia dos pensadores, políticos e juristas

romanos.

A relevância do pensamento estoico de Sêneca para a filosofia

Ocidental está sinteticamente descrita no livro de ética jurídica de Eduado

Bittar, síntese essa com a qual se fecha esta parte de nosso estudo: O estoicismo de Sêneca consagra para a história da filosofia e da ética a preocupação com a serenidade humana ao enfrentar as tribulações da vida, as injustiças do mundo, sabendo dividir-se em atitudes éticas mesmo estando consciente de que se está a viver em um covil de lobos. Seja a política desonesta, seja a inconstância das paixões humanas, seja a tentação das ofertas mundanas[...] nada deve ser capaz de perturbar a serenidade e a certeza ética que moram no coração do homem sábio. Nesse sentido, saber-se diferenciar pela ética dos demais é próprio do sábio, é próprio do homo ethicus (BITTAR, 2010, p. 282).

135

2.2.3 - Epiteto Não peça que as coisas cheguem como você as deseje, mas as deseje tal como chegam, e assim terá paz. Epiteto; ““Enchiridion” - (Manual ou Máximas) (EPITETO , 2009, p. 22).

Têm-se poucos dados biográficos confiáveis sobre a vida de

Epiteto de Hierápolis. Teria nascido por volta de 50 d.C. em Hierápolis, na

Frígia, país situado na planície central da Anatólia (na Turquia atual); e falecido

em torno de 130 d.C., em Nicópolis, cidade fundada por Augusto em Epiro. Ele

foi escravo boa parte de sua vida e, talvez por isso, tenha passado para a

posteridade como Epiteto (do grego epiktetos), que quer dizer “adquirido”,

“extraído de fora”, “comprado” (HUISMAN, 2004, p. 333).

Epíteto, ainda criança, foi comprado por Epafrodito e serviu na

sua casa durante a infância. Epafrodito era um liberto que se tornara secretário

de Nero e, segundo os autores antigos, era um senhor brutal e cruel com seus

escravos. “A acreditar-se em Orígenes96 (Contra Celsum97, VII, 53), certo dia,

em que seu amo lhe torturava a perna, Epíteto disse sorrindo: ‘Vais quebrá-la’;

quando a perna foi quebrada ele acrescentou simplesmente: ‘Eu bem que

avisei!’” (HUISMAN, 2004, p. 333).

As circunstâncias da educação de Epiteto são desconhecidas,

exceto o fato de que foi aluno de Musônio Rufo, na época senador romano

como Sêneca (CHAUÍ, 2012, p. 311). “Caio Musônio Rufo, cavaleiro romano

que ensinava um estoicismo rigoroso, foi exilado em 65 por Nero” (HUISMAN,

2004, p. 333). O paralelismo entre Rufo e Sêneca é enorme, ambos eram

filósofos estoicos, estadistas próximos a Nero, que os fez cair em desgraça

contemporaneamente no ano de 65, o primeiro por exílio e o segundo por

morte.

96 Orígenes (Alexandria do Egito 185 - Tiro 254) era teólogo e exegeta, filósofo da patrística,

apologista de grande fecundidade, tentou uma fusão entre o cristianismo e o platonismo. Escreveu a obra “Contra Celso”, defendendo o cristianismo (LELLO, 1954, p. 906). Celso, o filósofo neoplatônico do século II (não o jurisconsulto do século I), atacava o cristianismo frontalmente (LELLO, 1954, p. 516).

97 Celso, o filósofo neoplatônico do século II (não o jurisconsulto do século I), atacava o

cristianismo frontalmente (LELLO, 1954, p. 516).

136

Em data e por motivos igualmente obscuros, Epafrodito concedeu

a liberdade para Epiteto. “Mas a verdadeira liberdade não lhe veio da alforria do

estado de escravo [...], mas sim de Musônio, que lhe desvelou a mensagem da

filosofia do Pórtico; de Sócrates e de Antístenes98, que lhe revelaram a

liberdade de espírito” (REALE, 2008, p. 91).

Como liberto, Epiteto abriu uma escola de filosofia, mas foi

forçado a abandonar a cidade em 89, pelo édito de Domiciano, que baniu todos

os filósofos da península italiana, por considerá-los perturbadores da ordem e

inimigos do Estado (CHAUÍ, 2012, p. 311). Epiteto “deixou a Itália e retirou-se à

cidade de Nicóplolis, no Epiro, onde fundou uma escola que teve grande

sucesso e atraiu ouvintes de toda a parte” (REALE, 2008, p. 91).

A boa fama da escola de Epiteto se espalhou e “além dos

ouvintes habituais recebia com frequência viajantes que vinham da capital ou

para lá se dirigiam; assim foi visitado pelo imperador Adriano” (HUISMAN,

2004, p. 333). “A forte personalidade de Epiteto, a sua vocação de educador, a

humanidade de sua doutrina e o caráter essencial de sua mensagem foram as

causas da excepcional acolhida que sua escola recebeu” (REALE, 2008, p. 91).

“Epiteto viveu a vida toda na pobreza e não se casou, segundo

Simplício, porém teria acolhido uma mulher, já tardiamente, para criar um órfão

que adotara. Morreu provavelmente idoso no ano 130, no reinado de Adriano”

(HUISMAN, 2004, p. 333).

“A exemplo de Sócrates, Epiteto não escreveu nada” (HUISMAN,

2004, p. 333). “Felizmente, frequentou suas lições o historiador Flávio Arriano,

o qual teve a ideia de escrevê-las. Nasceram assim as “Diatribes”

(Conversações), ao qual parecem em oito livros, dos quais quatro nos

chegaram” (REALE, 2008, p. 91). “Além destas, há ainda o “Enchiridion”

(Manual), coleção de textos que resumem os principais pensamentos de

Epiteto, em tom de lição e conselho, pequena obra lida, comentada e citada

com fervor durante quase vinte séculos” (CHAUÍ, 2012, p. 311 - 312).

“Epiteto acreditava que a meta principal da filosofia é ajudar as

pessoas comuns a enfrentarem positivamente os desafios habituais da vida

98 Antístenes (c.445 a.C - c. 365 a.C) era ardente discípulo de Sócrates, defendia uma vida

virtuosa e ascética (LELLO, 1954, p. 170).

137

diária e lidar com inevitáveis grandes perdas, decepções e mágoas da vida”

(LEBELL, 2009, p.12).

As características da filosofia de Epiteto são em grande parte as mesmas que se encontram em Sêneca, Musônio e Marco Aurélio: o acentuado e quase exclusivo interesse pela ética, um marcado sentido da interioridade, um forte sentimento da ligação do homem com Deus, um notável espírito religioso. Epíteto destaca-se, ao invés, dos outros por uma sentida insistência em voltar às origens do Pórtico, sobretudo a Crísipo, a quem ele apreciava mais que todos os outros expoentes da escola (REALE, 2008, p. 92).

“Seu estilo é revelado pelos ensinamentos morais despojados de

sentimentalismo ou falsa devoção religiosa. O que resulta é o primeiro e mais

admirável manual escrito no Ocidente para viver a melhor vida possível”

(LEBELL, 2000, p.12). O grande princípio da ética estoica consistia na nítida distinção entre bens, males e indiferentes: bens são unicamente os morais, males são os contrários, indiferentes são todas as outras coisas relativas ao corpo e às coisas externas. Epiteto reformula o princípio, mantendo o seu espírito, mas dando-lhe um corte mais eficaz. As coisas dividem-se em duas grandes classes: a) as que estão em nosso poder e b) as que não estão em nosso poder; o bem e o mal situam-se exclusivamente na classe das coisas que estão em nosso poder, justamente porque dependem da nossa vontade, e não na outra, justamente porque as coisas que não estão em nosso poder não dependem da nossa vontade (REALE, 2008, p. 93).

A primeira lição contida no “Manual” de Epíteto, que também

recebe o nome de “Máximas”, traz justamente essa divisão. O título dessa

primeira máxima é “Depender” e seus termos são os seguintes: Quanto a todas as coisas que existem no mundo, umas dependem de nós outras não dependem de nós. De nós dependem: nossas opiniões, nossos movimentos, nossos desejos, nossas inclinações, nossas aversões; em outras palavras, todas nossas ações. As coisas que não dependem de nós são: o corpo, os bens, a reputação, a honra; em uma palavra, tudo que não é a nossa própria ação. As coisas que dependem de nós são por natureza livres, nada pode as deter, nem as obstaculizar; as que não dependem de nós são débeis, presas, dependentes, sujeitas a mil obstáculos e a mil inconvenientes e inteiramente alheias (EPITETO, 2009, p. 13).

A simplicidade e eficácia da doutrina de Epiteto consistem

justamente nessa posição, pois o homem que se resigna e entende não ter

poder sobre as coisas que não dependem de si não se frustrará e tampouco

lamentará a sua má sorte. Aquele que só considera como seu as que

efetivamente o são jamais se desiludirá. A primeira máxima segue assim:

138

Lembre-se, se você acredita que são livres as coisas por natureza escravas, suas propriedades e aquilo que pertence a outra pessoa, então você encontrará obstáculos a cada passo, sentir-se-á aflito e culpará os deuses e os homens. Em troca, se você tiver o que lhe pertence como próprio, e o alheio como de outro, nunca ninguém irá força-lo a fazer o que não quer, nem o impedirá de fazer o que quer. Você não culpará ninguém, nem acusará a pessoa alguma; não fará nem a menor coisa que não deseje. Ninguém, então, irá fazer-lhe mal algum, e você não terá inimigos, pois nada aceitará que lhe seja prejudicial (EPITETO, 2009, p. 13).

Com Epiteto, o estoicismo retoma o curso inicial da sua primeira

fase, livrando-se dos excessos ecléticos do sincretismo filosófico dos últimos

séculos. Contudo, a importância dele para o estoicismo e para esta tese não se

resume a isso, pois seu maior mérito, mesmo sendo um liberto que vivia fora

da capital do império, foi influenciar a elite romana, que aderiu ao seu

estoicismo restaurado. Como se disse, o imperador Adriano ouviu suas lições

e, depois da morte de Epiteto, o imperador Marco Aurélio meditou e escreveu

inspirado por ele.

O Manual de Epiteto é um livro claro e sucinto, cuja notoriedade

está aquém dos seus ensinamentos. Escolhe-se a máxima final do Manual

para encerrar este trecho do trabalho em que se discorre sobre ele: Comece todas as ações e empreendimentos por esta oração: “Guia-me, Meu Deus, ali, aonde Você destinou que eu deva ir! Irei segui-Lo com todo o meu coração e sem dúvida alguma. E quando queira resistir às suas ordens, volte- malvado e ímpio, pois quero, apesar de mim, segui-lo”. Digo em seguida: “Aquele que se acomoda, como é preciso, à necessidade, é sábio e hábil no conhecimento das coisas divinas”. Em terceiro lugar: “Passemos com coragem por aí, pois é por aí que Deus nos conduz e nos chama. Os malvados podem me matar, mas não me prejudicar”.

139

2.2.4 - Marco Aurélio

A melhor vingança é não fazer como eles fazem. Marco Aurélio; - (Meditações ou Solilóquios) (ANTONINO, 2007, p. 168).

Sobre o Imperador Marco Aurélio (n. 121 d.C., m. 181 d.C. –

reinou de 161 a 180 d. C.) já se escreveu na primeira parte do presente

trabalho. Resta falar do filósofo Marco Aurélio, que, inspirado por Epiteto, levou

uma vida estoica e deixou suas meditações por escrito.

“Aos onze anos de idade, ele conheceu o estoicismo e adotou

hábitos de vida austera, recomendados pela escola filosófica” (CUNHA, 2005,

p. 45).

A família de Marco Aurélio era de cortesãos do séquito do

imperador Adriano. Desde criança, ele demonstrou ser dotado de grande

retidão moral e, por isso, o imperador Adriano muito o estimava.

Adriano, que adotara Antonino Pio, fizera com que este adotasse

o jovem Aurélio. Desse modo, depois dos anos de formação, o jovem fora

associado ao governo imperial. Casou-se com a filha de Antonino, Faustina, no

ano de 145, o que faz dele filho e genro do novo imperador Antonino Pio, que

sucedera Adriano no trono. Com a morte de Antonino Pio, em 161, Marco

Aurélio torna-se imperador (HUISMAN, 2004, p. 664).

“Nos poucos momentos que os encargos de governo permitiam,

recolhia-se à meditação filosófica e escrevia seus pensamentos em língua

grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietações intelectuais mais

profundas” (CUNHA, 2005, p. 45).

“Em Marco Aurélio - como também na Máximas de Epiteto - a

questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para

que se possa viver bem” (CUNHA, 2005, p. 46). “Com ele o estoicismo sobe ao

trono do maior império: e com ele, também, termina. Marco Aurélio é a última

figura de relevo produzida pelo movimento espiritual do Pórtico”. (REALE,

2008, p. 109).

As reflexões do imperador Marco Aurélio não foram escritas para

serem publicadas, não são um tratado doutrinário, nem um diário, nem

140

confissões, eram impressões íntimas que ele decidira expressar por escrito e

que, afortunadamente, não se perderam. “Isso deu à obra uma singularidade

inovadora, não pertencendo a nenhum dos gêneros literários conhecidos pela

filosofia” (CHAUÍ, 2012, p. 316). São comumente denominadas “Meditações”,

mas também há quem se refira a elas por outros nomes, como “Pensamentos”,

“Solilóquios” e “ O Guia do Imperador”, ou ainda “O imperador Marco Aurélio

para si mesmo”.

“Entre os expoentes do novo Pórtico, ele é o que mais restringe a

filosofia à problemática moral, colorindo-a não menos do que Sêneca e Epiteto

com fortes tintas religiosas” (REALE, 2008, p. 110).

“Nas “Meditações”, muitas reflexões concernem à sociedade.

Primeiro, porque o homem é um animal social; depois, porque o problema da

vida política colocava-se diretamente para o imperador” (HUISMAN, 2004, p.

665). Uma das características do pensamento de Marco Aurélio, que mais impressiona o leitor dos “Solilóquios”, é a insistência com a qual é tematizada e afirmada a caducidade das coisas e a inexorável passagem, a sua monotonia, a sua insignificância e substancial nulidade (REALE, 2008, p. 110).

Nos doze livros das meditações, encontramos diversos trechos

sobre a Natureza, a reta razão e sua ligação com a justiça. Marco Aurélio,

como líder do Império, entende o homem como um animal social e, como seus

antecessores estoicos latinos, acredita que os vínculos sociais decorrem da

solidariedade. A seguir, cita-se como exemplo um trecho da meditação número

1 do livro XI: Próprios da alma racional são também o amor do próximo, a verdade e o pudor, bem como dar a nada mais valor que a si mesma - o que é próprio também da lei. Assim, pois, nenhuma diferença há entre a razão reta e a razão da justiça (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 311).

Posto que a comunhão humana é fruto do amor, e que o amor é

entendido pela razão, é concebível que aquele que erra o faz porque não é

sábio. Cabe ao sábio apiedar-se da falta do estulto e perdoá-lo. Tal princípio

pode ser resumido no dito popular muito conhecido na França: “Tout

comprendre c’est tout pardonner” (Tudo compreender é tudo perdoar). No

pensamento 20 do livro IX de Marco Aurélio, encontra-se assim: “O pecado de

outrem cumpre deixá-lo onde está” (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA,

141

1980, p. 303); e na meditação 38 do mesmo livro IX, deste modo: “Se ele

pratica o mal, causa dano a si mesmo. Mas e se ele não fez o mal?”

(ANTONINO, 2007, p. 160);

O imperador esclarece por que perdoar na seguinte citação Livro

VII, pensamento 26: Quando alguém falta para contigo, pensa imediatamente que a ideia do bem ou do mal o levou a cometer a falta; quando o tiveres verificado, passarás a ter pena dele e não sentirás surpresa nem cólera. Com efeito, ou tu mesmo continuarás pensando sobre o bem de maneira igual ou semelhante e, portanto, deves perdoar-lhe, ou já não formas ideias iguais sobre o bem e o mal e mais fácil te será a complacência para com o engano (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 291).

Na qualidade de imperador, Marco Aurélio teve a possibilidade de

viajar e entrar em contato com outras culturas. Observou a sociabilidade do

homem de qualquer grupo cultural e também sua solidariedade e aptidão para

amar. Percebeu que, em qualquer ambiente, o homem é igualmente dotado e

lhe pareceu que, sendo assim, é natural que todo o gênero humano

compartilhe da mesma razão universal. Por isso, meditou (Livro IV,

pensamento 4): Se a inteligência nos é comum, também é comum a razão, em virtude da qual somos racionais; posto isso, a razão determinadora do que devemos ou não devemos fazer é comum; posto isso, a lei também é comum; posto isso, somos cidadãos; posto isso, o mundo é como uma cidade. Com efeito, de que outro organismo político se dirá que todo o gênero humano participa? Daí, dessa cidade comum, deriva nossa mesma inteligência, nossa razão, nossa lei. Senão, de onde? Assim como de alguma terra foi tirado o que há de terreno em mim, de outro elemento o líquido, de alguma fonte o alento e de alguma fonte especial o quente e o ígneo - pois nada procede do nada e tampouco para o nada se vai - , assim também de algum lugar veio a inteligência (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 273).

O fatalismo oriental dos estoicos ganha fôlego com o imperador

filósofo. Nas suas “Meditações”, esse tema é desenvolvido algumas vezes.

Vale lembrar que o destino interessa aos filósofos do Pórtico, pois consideram

o Universo harmônico - uma boa demonstração é o pensamento 8 do livro V: Em suma, há uma harmonia e como o mundo se inteira de todos os corpos num tão grande corpo, assim também o destino se inteira de todas as causas numa tão grande causa. Mesmo os completamente ignaros entendem isso que assevero, pois dizem: Estava-lhe destinado. Logo, isto estava destinado a este e isto estava prescrito àquele. Aceitamos, portanto, os fatos como os tratamentos que Asclépio99 prescrevia; nestes há sem dúvida muito de desagradável, mas acatamo-los pela esperança de cura. Considera algo como tua

99 Asclépio o Esculápio - Deus da medicina entre os gregos (LELLO, 1954, p. 229).

142

saúde o acabamento e perfeição dos decretos da natureza comum e saúda como tal todo acontecimento, ainda quanto pareça um tanto árduo, porque conduz à saúde do mundo, ao bom andamento e bom êxito de Zeus. Ele não teria trazido a tal pessoa tal sucesso, se não conviesse ao todo; nem traz qualquer natureza nada que não seja correspondente ao ser por ela regido. Portanto, deves conformar-te com o que te acontece, por duas razões; primeira, porque foi feito para ti, prescrito para ti e, de certo modo, se relaciona contigo desde o alto, na urdidura das causas mais veneráveis; segunda, porque o que acontece a cada um em particular assegura a quem rege o conjunto o bom andamento, a perfeição e, por Zeus!, a própria coexistência. Com efeito, é mutilar o todo amputar-lhe seja o que for do complexo e coesão tanto das causas como das partes e, quando não te conformas, tu, no que ti depende, estás amputando e, de certo modo destruindo. (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 279).

Vale lembrar que Marco Aurélio, mesmo tendo vivido no século II,

não se converteu ao cristianismo, que ainda era uma religião de escravos cujo

culto nem era permitido. No entanto, tal qual Sêneca, insiste na transitoriedade

das coisas deste mundo e espera a conflagração universal.

“Eis alguns pensamentos muito eloquentes, que dizem respeito

ao vorticoso devir, que, segundo Marco Aurélio, arrasta e devora todas as

coisas” (REALE, 2008, p.210): Livro IV, pensamento 5 - Tal qual o nascimento, a morte é um mistério; nos mesmos elementos de que ele nos compõe, ela nos dissolve. Em suma, não é motivo de vergonha; não é incompatível com a condição de ser inteligente, nem com o plano da estrutura (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 273). Livro IX, pensamento 19 - Tudo está em transformação. Tu próprio estás numa alteração contínua e, em um certo sentido, perecendo; todo o Universo também. pensamento 29 - A causa universal é uma torrente, tudo ela carrega. pensamento 33- Cedo estará destruído tudo que vês; as testemunhas da destruição, por sua vez, serão destruídas; quem morre em extrema velhice e o morto prematuro se acharão em situação idêntica. (MARCO AURÉLIO apud PESSANHA, 1980, p. 303-304).

Os trechos das meditações de Marco Aurélio aqui descritos têm o

condão de demonstrar que, mesmo escrevendo em grego como Epiteto, e

sendo por ele inspirado, o imperador filósofo teve as mesmas preocupações de

Cícero e Sêneca, e a sua visão do Pórtico lhes é próxima.

Dos quase cinco séculos que separam a chegada de Zenão à

Atenas da morte do Imperador Marco Aurélio, os frutos do estoicismo não

caíram distantes da árvore, ou seja, os temas são os mesmos e as abordagens

similares. No tocante ao estoicismo imperial, isso ainda é mais marcante, pois,

143

desde Cícero, a virtude romana e a preocupação com a justiça prática

incorporaram as reflexões filosóficas.

Mesmo que Marco Aurélio tenha sido o último filósofo estoico de

relevo, o estoicismo sobreviveu a ele, inspirando filósofos até hoje. O que, no

entanto, interessa para a construção desta tese é quanto o estoicismo

transformou a mentalidade romana a ponto de influenciar a obra dos

jurisconsultos do século seguinte. Tal investigação se faz particularmente na

obra de Ulpiano.

144

3 – A INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO NO DIREITO ROMANO CLÁSSICO INVESTIGADO NOS TEXTOS DO JURISCONSLTO ULPIANO

3.1 – A Jurisprudência Clássica Romana

Neste trabalho, escolheu-se tratar do Direito Romano no período

clássico, especificamente durante o Principado. Justifica-se tal escolha pelo

fato de que não se pode falar de Direito Romano como um conjunto normativo

estanque e imutável, afinal é natural que tenha sofrido modificações durante o

lapso temporal de mais de dois milênios que esteve em vigor. Direito Romano é o conjunto de normas jurídicas que regeram o povo romano desde o período da fundação da cidade, verificada, segundo a tradição, no século VIII, até a morte do imperador Justiniano, imperador do Oriente, em 565 d.C. O Direito, que vigorou no Império Romano do Oriente a partir desse evento até a queda de Constantinopla em 1453, denomina-se Direito bizantino ou romano-helênico (CHAMONN, 1977, p. 15).

Desde a fundação da cidade de Roma, em 21 de abril de 753 a.C,

até a morte do Imperador Justiniano, em 14 de novembro de 565 d.C, e daí até

a queda de Constantinopla na mão dos turcos otomanos em 29 de maio de

1453 d.C., podemos contar vinte e dois séculos.

O Direito, criado em uma cidadela no século VIII antes de Cristo

no final da idade do bronze, não é o mesmo daquele que vigorava na magnífica

Constantinopla, capital do Império Romano Oriental, no século VI, em plena

alta Idade Média, e muito menos o Direito helenizado do Império Bizantino às

vésperas da Idade Moderna.

A análise histórica e filosófica apresentada nos capítulos

anteriores deste trabalho serve justamente para especificar o que tem de

particular o Direito Romano Clássico em relação a outros períodos da sua

evolução. E dentro do período Clássico, buscam-se apontar as peculiaridades

inerentes ao Principado, ocasião em que Roma abandona seu nacionalismo

tradicionalista e adota um imperialismo cosmopolita embasado em correntes

filosóficas helenísticas, em particular o estoicismo. A partir do século II a.C. assistimos a uma evolução e renovação constante do Direito Romano, que vai até o século III d.C., durante todo o período Clássico. Essa evolução e

145

renovação se fez, porém, por meios indiretos, característicos dos romanos e diferentes dos métodos modernamente usados. A maior parte das inovações e aperfeiçoamentos do direito, no período Clássico, foi fruto da atividade dos magistrados e dos jurisconsultos que, em princípio, não podiam modificar as regras antigas, mas que, de fato, introduziram as mais revolucionárias modificações para atender as exigências práticas de seu tempo (MARKY, 2012, p. 6 - 7). O Direito Clássico é o período áureo da história do Direito Romano. Decaiu o formalismo e atenua-se sobremaneira a influência religiosa. A precisão e o raciocínio aliados à consideração oportuna da equidade ensejaram o aparecimento da ciência do direito, cujos princípios os primeiros jurisconsultos generalizaram e sistematizaram (CHAMONN, 1977, p. 15).

Nas últimas décadas da República e, principalmente durante o

Principado, coube aos jurisconsultos dar um caráter científico ao Direito para se

adaptar à nova realidade decorrente da enorme expansão territorial do Império

e ao afluxo de riquezas, que alteraram as relações culturais e econômicas da

sociedade romana. Clássico é o “período em que apareceram os maiores

jurisconsultos de toda a história do Direito Romano” (MOURA, 1998, p. 24). A interpretação de regras do Direito antigo era tarefa importante dos juristas. [...] Essa interpretação não consistia somente na adaptação das regras jurídicas às novas exigências, mas importava também na criação de novas normas.Tal atividade jurisprudencial contribui grandemente para o desenvolvimento do Direito Romano, especificamente pela importância social que os juristas tinham em Roma. Eles eram considerados como pertencentes a uma aristocracia intelectual, distinção essa devida aos seus dotes e aos seus conhecimentos técnicos. Suas atividades consistiam em emitir pareceres jurídicos sobre questões práticas a eles apresentadas (respondere; responder), instruir as partes sobre como agirem em juízo (ager; agir), e orientar os leigos na realização de negócios jurídicos (cavere; cuidar). Exerciam essa atividade gratuitamente, pela fama e, evidentemente, para obter destaque social, que os ajudava a galgar cargos públicos da magistratura (MARKY, 2012, p. 8).

“Durante o Principado, nos primeiros séculos de nossa era, uma

plêiade de ilustres juristas deu sua contribuição grandiosa à elaboração do

Direito em Roma” (MARKY, 2012, p. 20). No início do Principado, vamos encontrar os jurisconsultos romanos divididos em duas escolas: a dos Proculeianos e a dos Sabinianos. A primeira fundada por Antísteo Lábeo, mas cujo nome veio de um de seus seguidores: Próculo; a segunda, por Ateio Cápito, advindo sua denominação do jurisconsulto Masúrio Sabino. Entre os principais juristas pertencentes à primeira escola, temos os dois Nervas (pai e filho), os dois Celsos (pai e filho), Pégaso e Nerácio Prisco; já em relação à segunda escola, destacam-se entre outros,

146

Cássio, Célio Sabino, Javoleno e Sálvio Juliano. [...] Gaio viveu posteriormente à essa época. [...] Depois da época de Adriano, em que se destacou o jurista Sálvio Juliano, elaborador do Edictum Perpetuum, e modernamente considerado o maior jurisconsulto romano clássico, surgiram três notáveis juristas: Papiniano (o imperador Justiniano e os romanistas antigos o julgavam o maior que Roma tivera), Paulo e Ulpiano. A série de jurisconsultos clássicos se encerra, pouco depois, com Modestino, que também viveu no século III d.C. (ALVES, 2007, p. 40).

A atividade desses juristas na elaboração de pareceres era

chamada responsa prudentium (resposta dos prudentes) ou interpretatio

prudentium (interpretação dos prudentes) e, por isso, eles eram chamados

jurisconsultos (aqueles que dão conselhos, deliberam sobre o Direito). Foi Augusto que, procurando utilizar na nova forma de governo por ele instalada, os préstimos desses juristas, instituiu um privilégio consistente no direito de dar pareceres em nome dele, príncipe: ius respondendi ex auctoritate principis100. Esse Direito era concedido a certos juristas chamados jurisconsultos (Inst. 1.2.8). Seus pareceres tinham força obrigatória em juízo. Havendo pareceres contrastantes, o juiz estava livre para decidir (MARKY, 2012, p. 8). (Inst. 1.2.8) Respostas dos prudentes são as sentenças e opiniões daqueles a quem era permitido criar direito, porque antigamente se permitiu que algumas pessoas interpretassem publicamente o direito, aos quais foi dado pelo imperador o direito de responder, chamando-os, por isso, de jurisconsultos. Tais sentenças e opiniões tinham tal autoridade, que não era permitido ao juiz afastar-se dessas respostas, segundo está disposto em lei (JUSTINIANUS, 2000, p. 25-26). (Gai. 1.2,7) Respostas dos prudentes são as sentenças e as opiniões a quem é permitido constituir o Direito. E, se todos forem da mesma opinião, essas respostas terão força de lei; se, entretanto, houver discordância, o juiz poderá seguir a que melhor lhe parecer, conforme dispõe um rescrito do divino Adriano (GAIUS, 2004, p. 38).

“Nesse estágio do desenvolvimento de Roma, a práxis jurídica

cada vez mais se especializava” (PALMA, 2012, p. 196). “A interpretatio

prudentium vai aos poucos constituindo um novo Direito consuetudinário que

orienta os magistrados na redação dos editos e os jurados nas soluções que

devem dar aos processos que têm de resolver” (KLABIN, 2004, p. 205). As

respostas desses jurisconsultos, portanto, eram fontes do Direito, pois, como

obrigavam e vinculavam as decisões do juiz, eram equivalentes ao disposto em

lei, ou seja, eram uma norma jurídica decorrente da interpretação, desta

100 Tradução livre do autor: Direito de resposta graças à autoridade e conforme e orientação do

príncipe.

147

maneira peculiar é que os prudentes enriquecessem o Direito Romano

Clássico. A interpretação dos prudentes é o que se chama, hoje em dia, de doutrina. Considerado, à época, como uma das principais fontes do Direito, a interpretação dos prudentes são manifestações doutrinárias dos jurisprudentes (doutores pesquisadores do Direito) que eram encarregados de preencher as lacunas deixadas pelas leis, interpretando os textos legais à medida que a sociedade se modificava. A interpretação dos prudentes era chamada jurisprudência (ALBEGARIA, 2012, p. 85).

“Os juristas, além de escreverem livros, deveriam ler; e é natural

que não se limitassem a ler textos dos seus colegas de trabalho” (BRETONE,

1998, p.124). “A jurisprudência delineia-se, portanto, como uma profissão

aristocrática. Qualquer diletantismo é excluído” (BRETONE, 1998, p.120). Os

pareceres dos jurisconsultos eram colecionados em livros, e essas obras

serviam para instruir aqueles que tinham que distribuir e aplicar o Direito. Os jurisconsultos que viveram nesse período escreveram numerosas obras jurídicas, a que davam variadas denominações. As didáticas geralmente se intitulavam Institutiones (Institutas ou Instituições), como as de Gaio e Florentino; Regulæ (Regras), como as de Ulpiano; Enchiridia, palavra de origem grega que significava “manual”, como a de Pompônio. As respostas a perguntas e pareceres dos jurisconsultos, quando reunidos em livros, recebiam a denominação de Responsa (Respostas), do que são exemplos as de Papiniano ou Quæstiones (Perguntas), do mesmo autor. Os comentários ao edito denominavam-se Libri ad Edictum (Livro sobre o Edito101). Quando os comentários se referiam à obra de um antigo jurisconsulto, o seu título fazia alusão ao mesmo, havendo, como exemplo, os Libri ad Sabinum (Livro sobra Sabiniano102). Outras obras jurídicas se intitulavam Digesta (Resumo) como as de Celso e Juliano, ou Sententiæ (Sentenças), como as de Paulo (MEIRA, 1996, p. 121).

“No mundo helênico-romano, o conselho, qualquer conselho

oportuno, era um “bem divino” para quem recebia e um “sinal de distinção” para

quem estava em condições de prestá-lo” (BRETONE, 1998, p. 123). A

produção dos jurisconsultos desse período denomina-se Jurisprudência

101 Aqui Edito se refere ao Edito Perpétuo (Edictum Perpetuum), obra empreendida pelo

jurisconsulto Sálvio Juliano por ordem do imperador Adriano para fixar os editos dos magistrados definitivamente, por isso denominou-se perpétuo (ALVES, 2007, p. 36).

102 Massuris Sabinu: Sabiniano, jurisconsulto do século I descendente de um dos assassinos de

César, Casio, tinha ascendentes jurisconsultos ilustres (MEIRA, 1996, p.121).

148

Clássica, ela decorre da sabedoria daqueles que têm autoridade103 e tal

autoridade decorre da virtude - uma virtude à maneira estoica, a virtude

conquistada pelo homem que busca viver de acordo com a reta razão e, por

isso, é considerado digno e apto para aconselhar.

Mas o do jurisconsulto é um conselho técnico; distingue-se do conselho político ou simplesmente prático, ou pessoal, porque se baseia num saber especializado; por ventura aproxima-se do conselho do médico. [...] Na base do conselho jurídico não há apenas a competência; há também a auctoritas de quem o formula. A auctoritas é um dado importante. Pode até dizer-se que ela na prática do veredicto, vale mais que o engenho necessário para adquiri-la. Um prestígio sem talento não parece concebível; mas, para além do talento, outras coisas contribuem para determinar o prestígio: a origem e a posição social, os méritos militares e civis, a idade avançada (BRETONE, 1998, p.123). A palavra jurisprudência - juiris + prudentia, uma das expressões usadas pelos romanos, ao lado de disciplina, scientia, ars, notitia, para designar o saber jurídico - liga-se, nesse sentido, ao que a filosofia grega chamava de fronesis (discernimento). Tal palavra era entendida, entre os gregos, como uma virtude. Fronesis, uma espécie se sabedoria e capacidade de julgar, na verdade consistia numa virtude desenvolvida pelo homem prudente, capaz, então, de sopesar soluções, apreciar situações e tomar decisões. Para que a fronesis se exercesse, era necessário o desenvolvimento de uma arte (ars, techne) no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapondo-se, permitiam uma explanação das situações (FERRAZ JR., 2003, p. 33-34).

É precisamente discorrendo sobre essa técnica, arte, prudência e

virtude do homem sábio, também jurista, que o Digesto do Imperador

Justiniano se inicia. O primeiro parágrafo do Livro I da obra justinianeia começa

com uma citação do jurisconsulto Ulpinano, extraída do Livro Primeiro das suas

Institutas. Nesse trecho, Ulpinano, citando Celso, explica o que é o “Direito”,

dizendo que é “a arte do bom e do équo” (Ius est ars boni et æqui), nestes

termos: (D.1.1.1pr. - Ulpianus libro primo institutionum) - É preciso que aquele que há de se dedicar ao Direito primeiramente saiba de onde descende o nomo “Direito” (ius). Vem, pois, de “justiça” chamado. De fato como Celso elegante define, direito é a arte do bom e do équo (JUSTINIANUS, 2002, p. 17).

A mais famosa definição de Direito é atribuída a Celso

(DIMOULIS, 2003, p. 24). Os romanos, organizadores do Direito, definindo-o

sob a influência da filosofia grega, consideram-no como “ars boni et æqui” 103 Ver nota n. 43.

149

(GUSMÃO, 1999, p. 67). A definição é de cunho filosófico e eticista (NADER,

2000, p. 75). Anote-se o conteúdo ético da definição do jurista Celso: o bom e o equitativo; bem como a denominação “arte” dada ao Direito. Celso não distingue, portanto, o Direito da Moral, o que é característica do Direito Romano, além de realçar o aspecto do Direito como técnica, como ofício, como prática enfim dirigida à vida (POLETTI, 1996, p. 29). Com efeito a definição de Celso indica que o Direito se vincula à busca pela justiça, aos princípios que permitem ordenar a sociedade de forma correta. Indica também que o Direito não oferece respostas claras e definitivas. O Direito é uma “arte” que permite dar diferentes soluções, dependendo do momento, das pessoas envolvidas, da situação social e política e das opiniões dos juízes. Considerar o Direito como arte significa introduzir em sua definição a ideia da política, da ponderação de interesses e da contínua mudança. Podemos dizer que em sua visão a finalidade do Direito é a realização da justiça, mas para tanto existem muitos caminhos. O Direito é uma arte em constante movimento (DIMOULIS, 2003, p. 24).

Essa ótica do Direito como instrumento para se alcançar a justiça

encaixa-se perfeitamente na noção ciceroniana externada em “De Officisiis”

(Dos Deveres). Na obra de Cícero, é explicado que o Direito levado ao pé da

letra pode gerar injustiça e não justiça, daí a necessidade da interpretação

desprovida de malícia e de astúcia. Em De Officisiis” I, 10, 33, tem-se: “Daí o

provérbio “Summum ius, summa iniuria” (Sumo Dirteito, suma injustiça) ter se

tornado um provérbio muito repisado na conversação comum” (CÍCERO, 1999,

p.19). “Esse famoso adágio adverte que aplicar rigidamente a lei, sem

necessária flexibilidade e sem prestar atenção às situações concretas, leva a

cometer graves injustiças” (TOSI, 2000, 508). A essência e o fim do Direito se indicam com a palavra æquitas; mas se pela evolução da consciência social ou por circunstâncias de fato o preceito jurídico já não corresponde à sua finalidade, manifesta-se uma antítese entre ius e æquitas, entre lei e justiça. Neste sentido é que a æquitas corrige o ius, pois, como afirma Cícero, repetindo Terêncio104, numa época de grande progresso social, Summum ius, summa iniuria105. (CORREIA; SCIASCIA, 1949, p. 18).

104 Publio Terêncio Afro (Publius Terentius Afer - Cartago c. 195 a.C. - c. 159 a.C.) poeta e

dramaturgo romano. Fazia parte do Círculo de Cipião. Autor do adágio humanista por excelência: “Homo sum ; humani nihil a me alienum puto” ( Sou um homem: nada do que é humano me é estranho (LELLO, 1954, p. 1009).

105 Em Terêncio o mote é similar não igual Summum ius, summa malitia (Sumo Dirteito, suma malícia) (TOSI, 2000, 508).

150

“Registre-se que Cícero, imbuído da mentalidade grega,

preconiza fazer do Direito uma “arte”, isto é, um corpo de doutrina estruturado”

(GIORDANI, 2000, p.15). Segundo Monier106, “com os escritos de Cícero, são

os princípios da filosofia estoica, de uma grande elevação moral, que exercem

sua influência benfazeja dobre o Direito” (GIORDANI, 2000, p.15).

Os próprios jurisconsultos romanos, não obstante o seu pragmatismo essencial, ao invocarem os ensinamentos estoicos sobre a ratio naturalis, a liberdade e a igualdade naturais dos seres humanos, demonstram ter sentido a necessidade de uma visão menos “política” ou “coletiva”do Direito, penetrando nas razões universais e humanas da liberdade (REALE, 1956, p.35).

No parágrafo seguinte do Digesto, Ulpiano segue explicando a

definição de Celso, mas vai mais além, deixando claro que o fim do Direito é a

realização da justiça, e que seus artífices são sacerdotes. Nesse trecho,

Ulpiano esclarece qual é a tarefa dos juristas e, por fim, conclui exortando

estoicamente que se aspire à verdadeira filosofia. Verbis:

(D.1.1.1.1. - Ulpianus libro primo institutionum) - Com base neste Direito Celso nos denomina sacerdotes: pois cultuamos a justiça e professamos o conhecimento do bom e do justo, separando o équo do iníquo, discernindo o lícito do ilícito, desejando que os homens bons se façam não só pelo medo das penas mas também pela motivação dos prêmios, aspirando não à simulada filosofia, se não me engano, mas à verdadeira (JUSTINIANUS, 2002, p. 17).

Esse trecho é muito sugestivo, pois implica uma certa religião,

culto ao direito e ao justo, além da firme intenção, por meio do direito, de

reformar os homens. (POLETTI, 1996, p. 29). Ao dizer qual o trabalho daquele

que opera o Direito, Ulpiano, citando Celso, de uma forma sintética, explica o

papel do jurisconsulto clássico e o alia à filosofia. “As preocupações práticas

não impedem os juristas de se elevarem aos princípios morais que dominam o

Direito”107 (GAUDEMET, 1967, 594).

106 MONIER, Raymond. Manuel élémentaire de droit romain. Paris, Domat Montchrestien, 1947,

p. 48; apud (GIORDANI, 2000, p.15). 107 Tradução livre do autor para o original em francês: Les préoccupations pratiques

n’empêchent pás les juristes de s’elever aux principes maraux qui dominent le droit.

151

O gosto pela justificação racional, não apenas tradicional, dos instrumentos e das soluções, assim como a classificação em gêneros é bem grega. Algumas linhas de pensamento dos juristas mostram grande proximidade com tendências da filosofia grega ou helenista, como o estoicismo. Quando se leem no Digesto os textos alinhados no Livro I, Título I, (sobre a justiça e o Direito), impossível não ouvir o pano de fundo dos temas gregos de caráter estoico: a familiaridade de todos os homens, o cosmopolitismo, o Direito Natural e o direito dos povos como instrumentos capazes de lançar luz sobre a própria experiência romana (LOPES, 2008, 46).

“Não devemos esquecer que o Digesto ou as Pandectas108

consistem em uma reunião da doutrina, não de decisões judiciais, nem de leis”

(POLETTI, 1996, p. 29). Vale pontuar que a obra de Ulpiano ocupa um terço do

Digesto (LOPES, 2008, p. 45), razão esta pela qual este trabalho se debruça

sobre seus textos para provar a tese aqui aventada da influência da filosofia do

Pórtico no Direito Romano do Principado e sua herança civilizatória.

Discorre-se, a seguir, sobre a vida e a obra de Ulpiano.

3.2 - Ulpiano

Ulpiano de Tiro (Eneus Domitius Ulpianus - Tiro c. 170 - Roma

228), é originário de Tiro, na Fenícia, na província romana da Síria. Os dados

biográficos sobre Ulpiano são escassos, mas provavelmente ele descendia de

uma família de cidadãos romanos de boa cepa (LELLO, 1954, p. 1101).

Não se sabe ao certo quando foi para Roma e nem como

começou sua carreira pública. É fato, no entanto, que, durante os reinados de

Sétimo Severo e de Caracala, Ulpiano era assessor do prefeito pretoriano

(præfectus prætorio)109 Papiano, este também jurisconsulto (AZEVEDO, 2005,

p. 81).

Com a morte de Caracala, em 217, e a entronização de

Elagábalo, Ulpiano é banido da corte imperial. O reinado de Elagábalo é curto

108 Digesto, do latim dirigere, que significa pôr em ordem, Pandectas, do grego pandékoma,

que significa recolho tudo(ROLIM, 2000, p. 92) 109 Prefeito pretoriano ou prefeito do pretório, chefe da guarda pretoriana (LELLO, 1954, p. 626

e 633); Ver também notas: 22 (pretor) e 50 (guarda pretoriana).

152

e, com sua morte, seu primo Alexandre Severo ascende ao trono imperial em

222 (AZEVEDO, 2005, p. 81).

Alexandre, amparado pelas matronas dos Severos - sua mãe

Júlia Memea e sua avó Júlia Mesa -, reabilita Ulpiano, que é chamado de volta

à corte. O jurisconsulto torna-se conselheiro do novo imperador, que faz dele

præfectus annonæs (prefeito das provisões, que se ocupava do abastecimento

dos grãos e vegetais na cidade de Roma).

Ulpiano torna-se preceptor do jovem Imperador Alexandre e

estabelece com ele laços estreitos de amizade, ocupando o cargo de chefe do

conselho de regência. Como se mencionou na primeira parte deste trabalho,

Ulpiano foi para o jovem Severo o que fora Sêneca para Nero. As matronas

Severo, tal qual Agripina Minor, quiseram preparar o soberano, confiando sua

educação a um mentor capaz e de reputação ilibada.

Por ser o principal conselheiro do novo imperador, Ulpiano é logo

alçado à dignidade de prefeito do pretório no ano de 222. Na prefeitura

pretoriana, era extremamente impopular entre os seus subordinados, pois lhes

havia diminuídos os exorbitantes privilégios concedidos no reinado de

Elagábalo. Havia um clima de descontentamento generalizado no corpo da

guarda pretoriana graças à severidade e continência instauradas por Ulpiano. A

tensão entre o prefeito e seus subordinados culminou em uma conjuração

contra Ulpiano. A guarda pretoriana amotinada o assassinou em 228

(AZEVEDO, 2005, p. 81).

Ulpiano, “escritor fecundo e excelente vulgarizador” (GIORDANI,

2000, p.183), é o autor mais citado no Digesto do imperador Justiniano; foi um

dos maiores expoentes da Jurisprudência Clássica e suas formulações e

sistematizações do direito civil sobrevivem até hoje.

A maioria dos textos de Ulpiano se perdeu, mas são conhecidos

justamente pelas abundantes citações contidas no Digesto. A versão das

Regras de Ulpiano (Ulpiani Líber Sigularis Regularum), que hoje se tem notícia,

é provavelmente um resumo da original, e deve ter sido redigida no final do

século III.

153

3.3 - O Direito Natural nos textos de Ulpiano

No que concerne ao Direito Natural, todos os homens são iguais. Ulpiano; (D. 50.17.32 - Ulpianus libro quadragensimo secundum ad Sabinum) ...quod ad ius naturale attinent omnes homines æquales sunt. (JUSTINUANUS, 1888, p. 869).

“A pesquisa de um fundamento do Direito da Natureza - uma

Natureza racionalmente ordenada e benéfica, ora entendida como

intrinsecamente divina ora como desejada por Deus - segue muitos trajetos”

(BRETONE, 1998, p.241). “Antes de Cristo, na Grécia, filósofos e dramaturgos

cogitaram um Direito acima da lei, independente da vontade do legislador

confundido com a justiça” (GUSMÃO, 1999, p. 35).

A personagem Medeia, na peça de mesmo nome, do dramaturgo

Eurípedes110, demonstra essa crença em um direito sobre-humano ditado pelos

deuses. A protagonista, que séculos depois - não por acaso -, foi retomada por

Sêneca, insurge-se contra a decisão de seu esposo Jasão de abandoná-la e

permitir seu exílio. Medeia deixa claro que aceitaria o banimento se ao menos

não tivesse dado filhos a Jasão, mas, sendo mãe dos filhos dele, não se

conforma que ele a abandone por outro leito, descumprindo, assim, seus votos

e juramentos para com ela. Medeia - Ó mais covarde dos Homens! E tu me atraiçoas! Precisas de outro leito, quando tens filhos de mim! Pois se não os tivesses ainda, ser-te-ia perdoado desejar essa mulher. Mas a fé os juramentos nada mais representa. A mim mesma porquanto se crês que os deuses de então já não reinam hoje, ou que novas leis têm agora curso entre os homens, porque tens decerto consciência de teu perjúrio para comigo (EURÍPEDES apud CIVITA, 1982, p. 180).

Do mesmo modo, a heroína Antígone, na peça homônima de

autoria de Sófocles111, demonstra a fé em um Direito divino e natural superior

às leis humanas. A personagem não permitiu que o cadáver do seu irmão

110 Eurípides (Salamina c. 480 a.C. - Macedônia c. 406 a.C), notável poeta trágico grego. 111 Sófocles (c. 495 a.C. - c. 405 a.C), célebre dramaturgo grego (LELLO , 1954, p. 924)

154

jazesse insepulto e, contrariando um edito do rei Creonte, que proibia o

sepultamento, enterra-o. O rei, indignado, condena-a à morte e pergunta se

ela desconhecia seu decreto e ela explica por que, mesmo sabendo da

proibição, contraria a lei e sepulta o corpo do seu falecido irmão. Sim, porque não foi Zeus que a promulgou; e Dikê112, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu edito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte? Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura! (SÓFOCLES apud SOUZA, 1979, p. 86).

“A distinção conceitual entre Direito Natural e Direito Positivo já

se encontra em Platão e Aristóteles. Este último inicia deste modo o capítulo

VII do livro V de sua Ética a Nicômaco:” (BOBBIO, 2006, p. 16). A justiça política é em parte natural, em parte convencional. Uma regra de justiça natural é aquela que apresenta idêntica validade em todos os lugares e não depende de nossa aceitação ou inaceitação. Uma regra convencional é aquela que, em primeira instância, pode ser estabelecida de uma forma ou outra indiferentemente, ainda que uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente (ARISTÓTELES, 2002, p. 151).

Aristóteles estabelece dois critérios pelos quais o Direito Natural

difere do Direito Positivo: primeiramente, o Direito Natural é aquele que tem em

toda parte a mesma eficácia, enquanto o Direito Positivo tem eficácia apenas

nas comunidades políticas em que é posto; finalmente, o Direito Natural

prescreve ações, cujo valor não depende do fato de parecerem boas a alguns

ou más a outros, são ações cuja bondade é objetiva; em contrapartida, o

Direito Positivo é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas,

112 Dikê - Deusa da justiça, equivalente à deusa romana Justiça (SOUZA, 1979, p. 108).

.

155

podem ser cumpridas ou não, mas, uma vez reguladas pela lei, importa que

sejam desempenhadas (BOBBIO, 2006, p. 16-17).

A noção de Direito Natural expressa na dramaturgia da Grécia

Clássica e estudada pelos seus filósofos é transmitida e reexaminada no

período helenístico, sobretudo pelos adeptos da filosofia do Pórtico. “Mais tarde

os estoicos equiparam-no à reta razão. Os Romanos desenvolveram a noção

estoica. Ulpiano curva-se perante esse código, resultante dos ensinamentos da

Natureza” (GUSMÃO, 1999, p. 35). O estoicismo esculpiu outros conceitos dos quais se vale, hoje, a ciência jurídica. O conceito de homem político, trabalhado por Aristóteles, passa a ter dimensão ampla de homem sociável ou comunitário. Essa abertura conceitual aponta para a dimensão de cosmopolitismo. A lei humana ganha o respaldo da lei divina porque ela é fruto do logos supremo. Assim a lei positiva não é mera convenção. Ela participa da consistência da lei eterna que se manifesta na lei natural (FERACINE, 2011b, p. 88).

O mote “no que concerne ao Direito Natural, todos os homens

são iguais”, usada como epígrafe deste título da presente tese, é de autoria de

Ulpiano e pode ser lida no livro L do Digesto. Tal adágio de Ulpiano demonstra

à maneira da filosofia do Pórtico que, compartilhando da mesma natureza, a

humanidade é una, o homem é cosmopolita e está inserido em um plano

universal. “A concepção jusnaturalista dos estoicos reassume o conceito de

logos113. A razão universal está em cada indivíduo, pressupondo um Direito

Natural universalmente válido e baseado na razão, que diverge do Direito

posto” (CARNIO; GONZAGA, 2011, p. 73).

O estoicismo é bastante aproveitado para a formulação do pensamento jurídico romano e para a filosofia do Direito. Há uma razão que se estende universalmente, e que orienta os deveres e as ações também para todos os indivíduos. Essa razão está em conformidade com a condição humana e com a Natureza, já que estas são universais também. Se o homem é universal e se universal é a razão que o deve guiar, o justo não tem fronteiras. Todos os povos, nações, se guiarem-se pelo justo e pela razão, hão de seguir as mesmas regras, o mesmo direito da Natureza e da razão (MASCARO, 2012, p. 94).

Esse Direito Natural Corresponde a uma concepção ética dominada pela teoria das virtudes, em que o primeiro lugar é ocupado pela prudentia, isto é, pela virtude que habilita (habitua) a pessoa a decidir, julgar, discernir conhecendo não apenas o certo e o errado de modo universal e abstrato, mas

113 Ver nota 61.

156

as circunstancias de cada caso. É um julgamento não por imputação pura e simples, mas um julgamento por ponderação, em que conforme o peso das circunstancias pode-se decidir. A justiça, nesta concepção ética, não é a primeira virtude moral - embora seja proeminente como virtude cívica -, mas é guiada pela prudência, lembrando que a prudência não significa aqui cuidado ou cautela (LOPES, 2008, p. 115-116).

A ideia de igualdade entre homens, principalmente perante a lei,

hoje considerada elementar para qualquer jurista ou até mesmo para o vulgo,

na Antiguidade estava distante de ser considerada um princípio. “O texto de

Ulpiano referente ao Direito Natural reflete a influência da filosofia grega. A

ideia de que todos os homens são iguais só vingou graças à influência e vitória

do cristianismo” (GIORDANI, 2005, p. 03). Para a escola estoica que, em certo sentido prepara o terreno para o cristianismo, o primeiro princípio da ética é o que manda viver segundo a Natureza. Acima das leis de cada país existe uma lei natural, universalmente válida. O homem é livre quando vence suas paixões e delas se liberta e nisso não há diferença entre homens livres e escravos. Existe uma sociedade do gênero humano que transcende os limites traçados pelos Estados (CRETELLA JÚNIOR, 2001, p.97). A razão, como força universal, era considerada pelos estoicos a base do Direito e da Justiça. De acordo com essa escola, existe um Direito Natural comum, baseado na razão, universalmente válido, e seus postulados são indistintamente obrigatórios (CARNIO; GONZAGA, 2011, p. 73).

No início de capítulo, quando foi abordada a Jurisprudência

Clássica, demonstrou-se que, no título I do livro I do Digesto, Ulpiano explica o

que é o Direito, qual a sua finalidade e, igualmente, qual é o papel daquele que

o opera. Após essas explicações, no parágrafo seguinte aos textos sobre a

essência, finalidade e operação do Direito, Ulpiano divide o Direito em Público

e Privado e informa a existência de três tipos de Direito privado, dentre os

quais o Direito Natural. (D.1.1.1.2. - Ulpianus libro primo institutionum) São dois os temas deste estudo: o público e o privado. Direito público é o que se volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos indivíduos, enquanto tais. Pois alguns são úteis publicamente, outros particularmente. O direito público se constitui nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado é tripartido: foi, pois, selecionado ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes (JUSTINIANO, 2002, p.17-18).

Para fazer compreender o que é o Direito Natural, Ulpiano

prossegue elucidando que a Natureza ensinou esse Direito a todos os animais.

157

(D.1.1.1.3. - Ulpianus libro primo institutionum) O Direito Natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Pois este Direito não é próprio do gênero humano, mas de todos os animais que nascem na terra ou no mar, comum também das aves. Daí deriva a união do macho e da fêmea, a qual denominamos matrimônio; daí a procriação dos filhos, daí a educação. Percebemos, pois, que também os outros animais, mesmo as feras, são guiados pela experiência deste direito. (JUSTINIANO, 2002, p.18).

Da leitura dessa sentença de Ulpiano se depreendem três

posições muito estoicas; primeira, se a Natureza ensina, é porque ela é um

ente, dotado de razão, ou como querem os estoicos a Natureza é a própria

razão que tudo guia, comanda e ordena; em segundo lugar, se até os animais

aprendem esse Direito, ele é algo inerente a toda a vida na terra; e, finalmente,

a Natureza e sua Razão é um todo orgânico em conjunto com o mundo

tangível, pois cria e ensina as bestas que fazem parte da própria criação, a

Natureza guia e é a sua própria criação.

Mas como Ulpiano diz ser tripartido o Direito privado, o Digesto

elenca as definições também do Direito das Gentes e do Direito Civil. Outros

jurisconsultos clássicos são citados no título I - Da Justiça e do Direito -, do

livro I, do Digesto, entre estes prudentes estão Pomponio, Florentino,

Hermogeniano, Marciano, Papiniano e Gaio. Todos eles concordam com a

existência do Direito Natural e com a tripartição do Direito. No entanto, para a

construção da presente tese, menciona-se somente os textos de Ulpiano.

Assim, depois de informar o que é Direito Natural, Ulpiano ilustra o que é

Direito das Gentes:

(D.1.1.1.4. - Ulpianus libro primo institutionum) O Direito das Gentes é aquele do qual os povos humanos se utilizam. O que permite facilmente entender que ele se distancia do Natural, porque este é comum a todos os animais e aquele é comum somente aos homens entre si. (JUSTINIANO, 2002, p.18).

Admitir que existe um Direito, comum a todos os povos, é admitir,

à maneira estoica, que todos os homens estão irmanados, fazendo parte de

uma sociedade universal, e que o Direito que decorre da reta razão é o mesmo

para todo o gênero humano. Os romanos, deste modo, utilizavam, na prática,

um conceito elaborado filosoficamente. Concebendo o homem cosmopolita,

justifica-se o Direito das Gentes, pois “as normas consuetudinárias romanas,

158

consideradas comuns a todos os povos, são por isso aplicáveis não só aos

cidadãos romanos, como também aos estrangeiros” (MARKY, 2012, p.15).

É preciso notar que também o ius gentium é incluído no Direito

Natural (BOBBIO, 2006, p. 15). Décadas antes de Ulpiano, o jurisconsulto

Gaio, nas suas Institutas, já afirma que o Direito das Gentes (ius gentium) é

comum a todos os povos porque decorre da reta razão e o denomina Direito

Natural no parágrafo inaugural de sua obra. “O ius gentium foi assim concebido

como um ius naturale. Os dois termos eram sinônimos (CHAMOUN, 1977, p.

29). (Gai. 1.1.) Do Direito Civil e Natural. 1. Todos os povos que são regidos por leis e costumes usam um Direito que, em parte, lhes é próprio e, em parte, é comum a todos os homens, pois o Direito que cada povo promulga para si mesmo esse lhe é próprio e se chama Direito Civil, Direito inerente à própria cidade. Mas o direito que a razão natural constituiu entre todos os homens e entre todos os povos que o observam, chama-se Direito das Gentes, como se disséssemos o direito que todos os povos usam. Assim, também, o povo romano usa um Direito que, em parte, lhe é próprio e, em parte, comum a todos os homens (GAIUS, 2004, p. 37).

A idealização e enunciação de um Direito supranacional

demonstra que, na orbe romana, existia ao menos uma noção embrionária da

autonomia jurídica da pessoa humana (REALE, 1956, p. 35). Aplicar as ideias filosóficas da Grécia ao serviço do Direito foi, em Roma, obra de um momento. O conceito de jus gentium já era acanhado, teve de alargar-se, perder o caráter político internacional, para assumir o de regra aplicável a todos os animais que nascem no ar, na terra e no mar e daqui a criação do jus naturale [...]. A partir deste novo conceito filosófico do Direito, assombrosa foi a cooperação de homens notáveis no trabalho hercúleo da formação definitivamente científica do belo monumento [...] o pensamento jurídico de Roma tomou proporções gigantescas e pode dizer-se que não há em toda história da humanidade maior grandeza intelectual de um povo do que à que chegaram os romanos durante esse período (LOBO, 2006, p. 29). Afigura-se-nos de difícil explicação o desenvolvimento decisivo do jus gentium, - que era um ordenamento jurídico garantidor das relações entre pessoas não integradas na comunidade política romana e, por conseguinte, não tuteladas pelo jus civile, - sem se admitir que ao menos um esboço ou rudimento de consciência jurídica da personalidade chegou a existir entre os habitantes do Lácio (REALE, 1956, p. 34).

Segundo os estoicos, o homem sábio e virtuoso entende os

desígnios da Natureza e os acolhe, portanto Ulpiano demonstra que a

escravidão não é natural, pois que todos os homens nascem naturalmente

159

livres. Assim, conclui que foram as sociedades humanas que criaram a

servidão, afastando-se do ideal da Natureza.

“A escravidão não está de acordo com a lei natural, porque por

natureza todos os homens são livres. Isto é emprestado da doutrina

estoica”114(GAUDEMET, 1967, p. 605). “A filosofia distingue nitidamente os

deveres impostos ao escravo por sua própria situação e aqueles que ele pode

escolher realizar enquanto ser humano: (DUCOS, 2007, p. 130). Deste modo,

explica que, tendo-se criado a escravidão, criou-se a manumissão, corrigindo-

se pelo próprio Direito a distorção antinatural que o Direito instituiu.

“Manumissão ou alforria é a dação em liberdade. É o fato jurídico pelo qual o

dominus115 liberta alguém de sua domicia potestas (poder senhorial). Pela

manumissão o senhor outorga liberdade ao seu escravo” (CRETELLA JR.,

2003, p. 68).

(D.1.1.4. - Ulpianus libro primo institutionum) Também as manumissões são do direito das gentes. Vem, pois, a manumissão de “demissão pela mão”, isto é, a concessão da liberdade: pois enquanto o manumitido se libera da potestas, o que estiver em servidão se submete à manus e à potestas; Isto toma origem no direito das gentes, visto que por direito natural todos nasceriam livres e não se conheceria a manumissão, bem como se desconheceria a servidão. Mas depois que a servidão se iniciou pelo direito das gentes, seguiu-se o beneficio da manumissão. E como por um único nome natural seríamos chamados ‘homens’, por direito das gentes começamos a ser três gêneros: os livres, os servos (em oposição àqueles) e, como terceiro gênero, os libertos, isto é, os que deixaram de ser servos (JUSTINIANO, 2002, p.19).

Mesmo, se considerado o Direito Civil como o Direito que hoje

chamamos de Positivo, Ulpiano não o afasta da Natureza e tampouco o

restringe ao direito escrito, sendo assim fiel ao ideal estoico de que o Direito é

um meio de se alcançar a Justiça, da qual ele, como jurisconsulto, considera-

se sacerdote. Isso se verifica nas seguintes citações de sua autoria: (D.1.1.6pr.

- Ulpianus libro primo institutionum) “Ius civile é o que não se afasta no todo do

direito natural ou do direito das gentes, bem como não serve a este em todas

as coisas. Assim, quando acrescentamos ou subtraímos algo do direito comum,

114 Tradução livre do autor para o original em francês: “L'esclavage n'est pas conforme au droit

naturel car, par nature, tous les hommes sont libres. Il s'agit là d'emprunts à la doctrine stoïcienne”.

115 Ver nota 3.

160

tornamo-lo um direito próprio, isto é, um direito civil” (JUSTINIANO, 2002,

p.20); e: (D.1.1.6.1. - Ulpianus libro primo institutionum). “Este nosso direito,

portanto se estabelece ou por escrito ou não, como entre os gregos se diz: das

normas, umas são escritas outras não escritas” (JUSTINIANO, 2002, p.20).

Provavelmente, os trechos das obras de Ulpiano mais conhecidos

são aqueles que se referem à Justiça e ao Direito e estão no título I, do livro I,

do Digesto. Particularmente populares são as três sentenças que se seguem,

cuja notoriedade os transformou em bordões populares, muitas vezes

proclamados sem que aqueles que os repetem reflitam na profundidade

filosófica deles.

1) Em D.1.1.10pr. - Ulpianus libro primo regularum, tem-se:

“Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”

(JUSTINIANO, 2002, p.21). Ora, se é uma vontade constante e perpétua, é

inata, é universal e é comum a todo o gênero humano. É, pois, natural, não

pode ser ensinada ou apreendida, só pode ser entendida, percebida através da

razão do homem sábio e virtuoso, à maneira estoica.

2) Em D.1.1.10.1 - Ulpianus libro primo regularum), tem-se:

“os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a

cada um o que é seu” (JUSTINIANO, 2002, p.21). O que fica implícito nessa

passagem é que, se todo homem fosse sábio e virtuoso, a humanidade poderia

prescindir do Direito que seria dispensável, pois reinaria a justiça. O Direito,

portanto, é a arte de reconduzir o homem ao bom caminho, do qual se desviou

pela sua ignorância ou loucura. “Os princípios básicos fundamentais do direito,

tais como formulados por Ulpiano, ilustram essa preocupação de equidade e os

laços estreitos, que para os romanos, uniam a moral e o direito”116

(GAUDEMET, 1967, p. 594).

Os estoicos, como foi visto, apiedam-se daqueles que erram ou

pecam, porque o fazem por serem incapazes de discernir a verdade. E como

também se falou, o Direito é uma técnica para se chegar à justiça. À justiça se

chega corrigindo as falhas humanas e retornando as coisas ao estado natural,

116 Tradução livre do autor para o original em francês: “Les préceptes fondamentaux du droit,

tels qu'ils sont formules par Ulpian, illustrent ce souci d'équité et les liens étroits qui, pour les romains, unissaient la morale et le droit.”.

161

à harmonia primitiva e original, ao status quo ante pré-caos, àquela plenitude

ordenada do Universo.

3) Em D.1.1.10.2 - Ulpianus libro primo regularum, tem-se:

“Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do

justo e do injusto” (JUSTINIANO, 2002, p.21). Concluindo a tríade dos três

mais populares enunciados de Ulpiano - quiçá de todo o Corpus Juris Civilis -,

temos essa explicação do que consiste o conhecimento, a prudência do Direito.

E mais uma vez Ulpiano é fiel ao Pórtico, pois afirma ser o Direito compreensão

das coisas humanas, inspirada pela consciência das coisas divinas, que levam

a desvendar e discernir o justo do injusto. O sábio estoico é justamente o

homem virtuoso e capaz de desvelar os mistérios da Natureza e, portanto, da

Divindade. Como se viu, a sabedoria estoica é conquistada por aquele que

medita e, graças a isso, comunga com o Divino.

Ademais, Ulpiano deixa entender que existe um justo maior que o

justo convencionado pelo homem em sociedade. “Sim, além desse justo

convencional, há um justo que não depende das leis, nem dos contratos, nem

das arbitragens, nem dos costumes. É o justo que independe de quaisquer

convenções; é o justo pela simples natureza das coisas” (TELLES JR., 2001, p.

362).

Ulpiano, tendo farta obra jurídica teórica e doutrinária e estando

imbuído pelo espírito do helenismo, transmitiu uma ampla visão do

ordenamento jurídico romano com clareza, objetividade e perfeição poucas

vezes encontradas em outros autores (AZEVEDO, 2001, p. 82), como na

seguinte passagem: (D.1.3.41 - Ulpianus libro II institutionum) “Todo direito,

pois, consiste ou em adquirir, ou em conservar ou em diminuir, de fato, ou se

trata do modo como algo se torna de alguém conserva uma coisa sua ou um

direito seu, ou de como aliená-lo ou deixá-los” (JUSTINIANO, 2002, p. 54).

“A cada momento, suas sentenças soam como paradigmas de

conduta, que se estendem a toda a coletividade” (AZEVEDO, 2001, p. 82),

como se tem em (D.1.3.8 - Ulpianus III ad Sabinum): “Os direitos não se

estabelecem em razão de pessoas específicas, mas genericamente.”

(JUSTINIANO, 2002, p. 47).

Como intérprete da lei, Ulpiano não desconhecia as armadilhas

que uma interpretação maliciosa pode acarretar; deste modo, prescreve um

162

comando em que declara que agir dentro da lei para obter vantagem ilícita é o

mesmo que burlar a lei. Isso evidente é uma demonstração de crença em um

Direito que advém da Natureza e, portanto, está acima dos textos da lei, assim

declarou (D.1.3.30 - Ulpianus III ad edictum): “Pois se dá fraude à lei quando se

faz aquilo que a lei não quer que se faça mas não proíbe que se faça. E a

mesma distância que existe da fraude ao que se faz contra legem”

(JUSTINIANO, 2002, p. 51).

Ulpiano também se ocupou do costume como fonte do Direito

(D.1.3.33 - Ulpianus libro primo de officio proconsullis): “o costume diuturno sói

observar-se como direito e lei em relação àquelas coisas que não decorrem do

direito escrito” (JUSTINIANO, 2002, p.52); e sobre o mesmo tema: (D.1.4.2 -

Ulpianus fideicomissorum libro quarto) Nas novas coisas a serem estabelecidas

deve ser evidente a utilidade para que se deixe de lado um direito que por

muito tempo foi tido como justo (JUSTINIANO, 2002, p. 56).

O costume ao qual ele se refere é o costume dos antepassados

que os romanos chamavam de mores maiorum (costume dos antepassados),

antiqui mores (antigos costumes), mores civitates (costumes civis dos

fundadores da cidade). Na visão romana, os costumes transmitidos pela

tradição conservam uma verdade essencial, daqueles que fundaram a cidade e

que, por tradição, legaram bons hábitos. Esses costumes, adquiridos em uma

comunidade rústica e despojada, em contato íntimo com a natureza, foram

transmitidos desde tempos imemoriais.

Aceitar o costume dos antepassados é uma forma de

reconhecimento ao trabalho, à virtude e à autoridade daquelas gerações

precedentes. Para os romanos, aqueles que sucedem os patres (pais da pátria)

têm o dever de engrandecer um projeto civilizatório. O conteúdo dos mores é:

pudor, pudicitia, religio, pietas, gratia, reverentia, fides, parcimonia, verecundia,

existimatio, officium117 (CORREIA; SCIASCIA, 1949, p. 22).

Nesse sentido, a antiquitas, antiguidade, é a autoridade: o passado fundador responde pelo presente e o garante, vinculando-o ao ato da fundação. Esta, realizada pelos fundadores ou os antepassados, os majores (nossos maiores)

117 Pudor, pudicícia, religião, piedade, gratidão, reverência, fé, parcimônia, respeito, reputação,

dever (tradução livre do autor).

163

ou o numem (a vontade e o conhecimento dos deuses que orientam os antepassados cujo espírito vela pelos descendentes), detém a legitimidade do presente porque é capaz de re-ligare, ligar o que é ao que foi. O presente só tem valor e sentido enquanto religio, religião, isto é, como ligação com o tremendo esforço do passado fundador para criar a lei e a urbs romana, a cidade romana. Essa ideia preside todo o funcionamento do Direito Romano no qual nenhuma nova lei pode ser apresentada e aprovada se não encontrar no passado um fundamentum, um fundamento (CHAUÍ, 2012, p. 215). A fundação de Roma é o fato originário de sua cultura, motivo pelo qual a religião romana tem um sentido que a própria palavra revela: religião vem de religare ou seja, estar ligado ao passado, estar a ele obrigado no sentido não de conservá-lo estaticamente, mas de mantê-lo sempre presente, isto é, de aumentá-lo. Nesse contexto, aparece a palavra auctoritas, a qual provém de augere, que significa aumentar: aumentar a fundação. Nesse sentido, a autoridade dos vivos decorria daqueles que haviam fundado a cidade e que transmitiam aos dirigentes esse domínio por intermédio da tradição. Daí o culto aos antepassados chamados de maiores, e vistos como base legitimante do domínio político. (FERRAZ JR., 2003, p. 37).

Tal ideia se esposa com o ideal estoico no sentido de que a

cidade fundada por Rômulo e Remo era ainda uma cidadela rudimentar que

criava suas leis de origem religiosa baseadas na disposição divina de acordo

com o que observava da Natureza.

O casamento monogâmico e o cuidado da prole que dele decorre

podem ser citados como exemplos de costume ancestral que foram natural e

espontaneamente observados pela sociedade romana muito antes de serem

positivados. Tito Lívio118, na obra História de Roma (Ab Urbe Condita Libri),

narra que, logo após o rapto das Sabinas119, Rômulo, para consolar as vítimas,

ia de uma a uma explicar que seriam tomadas por esposas, teriam o afeto dos

maridos e a proteção deles para elas e seus futuros filhos.

O pânico tomou conta do espetáculo. Os pais das donzelas partiram desesperados, clamando contra aquela violação do direito de hospitalidade, invocando o deus cuja festa e jogos os

118 Tito Lívio (Titus Livius - Pádua c. 59 a.C - 19 d.C), historiador romano, autor da História de

Roma (Ab Urbe Condita Libri), contando desde a legendária fundação da cidade em 753 a.C. até seu tempo (LELLO, 1954, p. 1033).

119 Rapto das Sabinas é o episódio mítico dos primórdios da história de Roma no qual os

fundadores da cidade, para conseguir esposas ardilosamente, raptam as donzelas da cidadela Sabina próxima a Roma (LELLO, 1954, p. 804).

164

haviam atraído sob aparências enganosas de religião e lealdade. Do mesmo desespero e vergonha participavam as vítimas do rapto. Mas Rômulo em pessoa ia de uma a outra, e explicava que os culpados foram seus pais cujo orgulho havia impedido qualquer possibilidade de união com seus vizinhos. Elas, porém, iriam tornar-se suas esposas, compartilhar de todos os seus bens, de sua pátria e daquele vínculo que é o mais caro à espécie humana: a afeição de seus filhos. Deveriam acalmar a cólera e, uma vez que o destino as forçara a entregar o corpo a um esposo, procurar também dar-lhes o coração. Muitas vezes o ressentimento da injúria cede lugar à afeição. Além do mais, teriam bons maridos, preocupados apenas em cumprir seus deveres o papel dos pais e da pátria que haviam perdido. A essas palavras somava-se a ternura dos homens, que invocavam como desculpa o ardor de sua paixão, recurso sempre eficaz junto às mulheres (LÍVIO, 1989, v. 1 p.33).

Posto que existisse, graças à tradição, uma aliança natural entre

a cidade de Roma com a sua fundação legendária, colocava-se o problema de

integrar o orbis à urbs, o mundo romano imperial à cidade.

A solução desse dilema foi encontrada por Ulpiano graças ao seu

raciocínio estoico que acreditava no ser humano cosmopolita. Ao se falar do

imperador Caracala no primeiro capítulo da presente pesquisa, já se assinalou

que, aconselhado por Ulpiano, promulgou a Constitutio Antoniniana de Civitate,

pela qual a cidadania romana foi estendida a todo habitante livre do orbe

romano.

Nos séculos que precederam a helenização de Roma, como

também já se destacou nesta tese, a concessão da cidadania romana era

muito difícil de ser conquistada pelos não romanos, até pelos habitantes da

península itálica ou mesmo pelos habitantes do Lácio.

O Édito de Caracala, como passou para a história a Constituição

Antonina do ano 212, teve um resultado civilizatório sem precedentes ao incluir

e dar os mesmos direitos a qualquer homem livre de qualquer região do

império. Essa medida foi determinante para a unidade imperial nos séculos

seguintes e a sobrevida do espírito da romanidade até hoje. No Digesto, temos

uma citação de Ulpiano referindo-se a esse fato (D.1.5.17 - Ulpianus libro

vicensimo secudo ad edictum). Os que estiverem no orbe Romano por uma

constituição do imperador Antonino foram feitos cidadãos romanos

(JUSTINIANO, 2002, p.62). A romanização nunca era imposta à força aos povos conquistados; pelo contrário, era solicitada por quase todos, e só gradualmente Roma concedia o desejado privilégio da

165

cidadania romana. O fato de que a cidadania foi finalmente estendida a todo o Império - [...] - foi uma condição decisiva para a longa sobrevivência e Império e para sua continuação milenar até hoje (JAGUARIBE, 2001, 446).

Conclui-se o presente tópico com uma sentença de Ulpinano, no

Digesto, que sumariza simbolicamente a concepção de direito em harmonia

com a Natureza. Fiel ao espírito pragmático romano e coerente com sua crença

filosófica estoica de Direito Natural, Ulpiano responde a um problema prático

com o seguinte epítome (D.1.5.10 - Ulpianus libro primo ad Sabinum)

“Pergunta-se: A quem equiparamos o hermafrodita? E eu julgo que deve ser

estimado mais pelo sexo que nele prevalece” (JUSTINIANO, 2002, p.60). Não

há nada mais natural do que considerar as coisas da Natureza pelo que de fato

são, conforme foram naturalmente geradas, e não como uma aberração ou

aborto.

3.3.1 - Ulpiano e o direito brasileiro hodierno

Como, portanto, todo direito foi constituído por causa dos homens... - D.1.5.2: Cum igitur hominum causa omne ius constitutum si t... (JUSTINIANUS, 2002, p. 57) .... pouco vale conhecer o direito se as pessoas, por cuja causa foi constituído são ignoradas. - Inst.1.2.12: Nam parum est ius nosse, si personæ quorum causa atatutum est, ignorentur. (JUSTINIANUS, 2002, p. 57)

Na passagem anterior desta pesquisa, discorreu-se sobre a

existência de ideias estoicas nos fragmentos do jurisconsulto Ulpiano

colecionados no Digesto. Procurou-se demonstrar que seus textos são

jusfilosóficos, não apenas jurídicos, e que estão imbuídos dos ideais do Pórtico,

particularmente no que tange ao Direito Natural.

A seguir se buscará, no Liber Singularis Regularum - Regras -,

de Ulpiano, a comprovação de que o Direito por ele idealizado é ainda hoje

ultrapassado. Afinal, “mais de quatro quintos dos 1.807 artigos do Código Civil

de 1916 [...] são partes da cultura romana, ou diretamente apreendidos nas

166

fontes da organização justinianeia, ou indiretamente das legislações que aí

foram nutrir-se” (GIORDANI, 2005, p. XIII).

“A elaboração dos Códigos Civis não pôs fim a influência do

Direito Romano nas legislações dos povos ocidentais. A estrutura continua a

ser romana, embora adaptada à época” (MEIRA, 1996, p. 8).

“Como é possível explicar com clareza e esperança de resultados

institutos de Direito Civil sem ir procurar-lhes a origem no Direito Romano,

donde derivam quase todos? E explicá-los a quem ouve falar a primeira vez em

Pandectas?” (LOBO, 2006, p. LI).

“Encontramos, muitas vezes, impressionante semelhança ou até

mesmo identidade entre os institutos e os princípios jurídicos encontrados

respectivamente nos artigos do Código Civil e nos textos romanos”

(GIORDANI, 2005, p. XV).

A influência do Direito Romano é mais explícita no Direito de

Família. A começar pelo próprio termo Família, sobre o qual Ulpiano discorre

longamente no livro L do Digesto, no fragmento 195, do título 16 De verborum

significatione (A respeito do significado das palavras).

Na abertura da obra Direito de Família, Clóvis Bevilaqua cita,

prontamente, na primeira frase, a definição de família formulada por Ulpiano. “A

palavra família, como já notara Ulpiano (D.50.16.195), tem várias acepções

jurídicas, que se desprendem do vocábulo, em gradações cromáticas, segundo

a situação em que se acha o observador” (BEVILAQUA, 1976, p. 15).

Do mesmo modo quando se lê o Tratado de Direito de Família, de

Pontes de Miranda, amiúde encontra-se citações de textos romanos para

explicar o direito contemporâneo. Explanando, por exemplo, sobre a formação

da família, Pontes de Miranda afirma que: “A pompa nupcial do nosso círculo

civilizatório é de origem romana” (MIRANDA, 2001, p. 86).

Assim, serão mostrados fragmentos Liber Singularis Regularum -

Regras - de Ulpiano, fazendo o paralelismo com artigos do Código Civil

Brasileiro de 2002.

É oportuno dizer, novamente, que se usa, nesta parte da

pesquisa, só o texto das Regras de Ulpiano. Cabe, também, relembrar que o

livro das Regras hoje conhecido é, provavelmente, um resumo do original.

167

Em contrapartida, se fossem usados aqui todos seus fragmentos

de Ulpiano compilados no Digesto, este estudo se estenderia e alcançaria

dimensões ingentes, o que não é o objetivo da presente tese.

Mesmo assim, não são poucos os fragmentos das Regras que

estão espelhados na legislação atual. Destarte, para facilitar a consulta, o rol

de citações das Regras de Ulpiano e seus equivalentes modernos estão

anexos e não no corpo da tese. 3.4 - A divulgação do Pensamento Jusfilosófico de Ulpiano por

meio da consolidação justinianeia no “Corpus Juris Civilis”

Como se demonstrou no primeiro capítulo desta tese, a

civilização romana, que surgiu em uma cidadela do século VIII a.C,

transformou-se em um império internacional. A transição da Realeza para a

República e, posteriormente, para o Principado é acompanhada de uma

evolução na mentalidade romana.

Passou-se de uma concepção tradicionalista da cidade para uma

visão cosmopolita de mundo a partir da expansão territorial do império e da

assimilação dos ideais da filosofia estoica, como se viu no capítulo segundo

desta pesquisa.

No presente capítulo, foi evidenciado como os ideais do Pórtico

influenciaram a Jurisprudência Clássica, em particular nos textos do

jurisconsulto Ulpiano.

Contudo, antes de concluir a presente tese, deve-se, ainda que

brevemente, esclarecer como o pensamento jusfilosófico de Ulpiano

atravessou séculos e continua a inspirar aqueles que operam o Direito.

Nos capítulos antecedentes, citaram-se, diversas vezes, Digesto,

Pandectas e Institutas, todas estas obras foram elaboradas durante o reinado

168

de Justiniano120, Imperador Romano do Oriente, e fazem parte do Corpus Iuris

Civilis.

As compilações do imperador Justiniano tiveram inestimável valor

na formação do mundo ocidental, pois são fruto de quase dez séculos de

evolução do Direito Romano. “Justiniano era monarca tipicamente absoluto.

No campo político, reunificou o Império; no terreno jurídico, acercou-se de

jurisconsultos e empreendeu a grande reforma do Direito” (MOURA, 1998, p.

41).

Devido à sua origem humilde, Justiniano não era um homem

culto, e muito menos letrado. Percebeu, porém, que vivia em uma época de

decadência do direito e, para preservar as conquistas intelectuais desse ramo

do conhecimento, resolveu reunir os melhores juristas do século VI, para

empreender uma imensa obra legislativa. Posteriormente “a esse conjunto, o

romancista francês Dionísio Godofredo, em 1538, na edição que dele fez,

denominou Corpus Juris Civilis (Corpo do Direito Civil), designação essa que

hoje é universalmente adotada” (ALVES, 2007, p. 48). Corpus Iuris Civilis foi

empregado por Godofredo, em sua edição genebrina de 1583, por oposição à

legislação canônica, que havia tomado o nome de Corpus Iuris Canonici (Corpo

do Direito Canônico). Apesar da ausência de melhor cultura, ordena que uma equipe composta dos mais notáveis juristas da época, dirigidos por Triboniano, faça uma compilação dos escritos dos jurisconsultos romanos e, assim, surge o Corpus Juris Civilis do qual deriva diretamente a maioria das legislações atuais. Compõe-se o Corpus Juris do Código (Codex) Antigo (ano de 529), do Digesto (533), das Institutas (533), do Código novo (534) e das Novelas. (LUIZ, 1999, p. 48).

A primeira parte do Corpus Juris Civilis foi promulgada em 529

d.C. e era uma reunião de constituições imperiais, teve o nome de Novus

Codex Iustinianus (Novo Código de Justiniano), mas, por se tornar logo

obsoleta, passou a se chamar, na década subsequente, Codex Vetus (Código

120 JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius, Imperador do Oriente (483-565) – Passou para

história como Justiniano I, foi imperador bizantino de 527 até sua morte em 565. De origem humilde, casado com a dançarina Teodora, foi nomeado cônsul ligado ao trono por seu tio Justino I, a quem sucedeu. Considerado um dos mais importantes soberanos da antiguidade tardia, tanto no plano político, quanto no legislativo e religioso. Seu maior legado é a compilação normativa posteriormente conhecida como CORPVS IVRIS CIVILIS, que, ainda hoje, é a base do ordenamento jurídico mais difundido no mundo. (GUIDA NT, texto digital b).

169

Velho). No ano seguinte, Justiniano manda reunir e sistematizar, em uma única

obra, vários escritos de jurisconsultos clássicos que estavam dispersos. Depois de haver editado o Codex Iustinianus (529 d.C.), reunião das leges, concebida por Justiniano desde a época de seu tio Justino (518-527), adaptando-as à realidade da sua época, o Imperador convocou os homens da maior competência para uma missão muito mais hercúlea, através da Constituição Deo Auctore, de 15 de dezembro de 530 [...] Tratava-se de recolher, nos escritos dos juristas antigos providos do ius respondendi, os fragmentos necessários para levar a cabo um tratado completo daquela parte do direito ainda vigente que, por pertencer à época clássica, somente podia ser conhecida pela obra dos prudentes. Os fragmentos deveriam ser organizados. A compilação resultou no Digesta ou Pandectae, a parte mais importante do esforço justinianeu, uma vez que reunia a doutrina que haveria de influenciar todo o mundo futuro, na criação e aprimoramento do Direito (POLETTI, 1996, p. 54).

“Foram consultados 1.265 livros e o trabalho foi concluído com

grande rapidez, pois três anos depois estava pronto” (POLETTI, 1996, p. 54),

mas Justiniano considerou que, antes de publicar essa obra extraordinária (o

Digesto, ou Pandectas em grego, é integrado por 50 livros), deveria preparar os

estudantes da escola de Direito de Constantinopla para recebê-la e

compreendê-la, portanto ordenou que se elaborasse, também, um manual para

ser publicado simultaneamente ao compêndio.

Terminada a elaboração do Digesto, mas antes de sua promulgação, Justiniano escolheu três dos compiladores – Triboniano, Doroteu e Teófilo – para a organização de um manual escolar que servisse aos estudantes como introdução ao direito compendiado no Digesto. Seguindo as Institutas de Gaio, essa comissão elaborou as Institutiones (institutas). Ambos (Digesto e Institutas) entraram em vigor na mesma data: 30 de dezembro de 533 d.C. (ALVES, 2007, p. 47).

Durante a elaboração do Digesto e das Institutas, Justiniano

sancionou 50 novas constituições imperiais reunidas em uma coleção

designada Quinquaginta Decisiones. (ROLIM, 2000, p. 92). Também enquanto

os membros da comissão compilavam o Digesto, perceberam que o código de

529 d.C (Novus Codex Iustinianus) estava desatualizado (ROLIM, 2000, p. 94)

e Justiniano determinou, então, que se elaborasse o Codex Iustinianus

Repetitæ Prælectionis, promulgado em 29 de dezembro de 534 d.C.

Depois de elaboradas as Institutas, o Digesto e os Códigos, essas

obras tiveram algumas modificações introduzidas por meio de constituições

170

imperiais promulgadas por Justiniano, denominadas Novellæ Constitutiones –

Novelas (ALVES, 2007, p. 47).

O imperador julgava completo o Corpus Juris, capaz de oferecer solução pronta para todos os litígios possíveis no presente e no futuro; por isso não admitia os Comentários, nem outros quaisquer trabalhos elucidativos. Se acaso surgissem dúvidas na prática, deveriam os juízes dirigir-se ao soberano para que ditasse a exegese competente; as regras de Hermenêutica, espalhadas pelo Digesto, deveriam apenas guiar o intérprete oficial e legislador, e não o aplicador, ou expositor, do Direito. (MAXIMILIANO, 2000, p. 55).

“A recolha legislativa de Justiniano encontrou o caminho para

Itália, apenas poucos anos depois da sua emanação” (BRETONE, 1998, p. 21)

e, mesmo que a soberania do Oriente sobre as regiões reconquistadas tenha

sido breve, a influência das obras jurídicas para lá enviadas não o foi.

Com a reconquista da Itália, Justiniano enviou para aí, oficialmente, exemplares das suas compilações e das novelas até então publicadas. A hegemonia bizantina foi efêmera. Três anos após a morte de Justiniano, os lombardos foram, pouco e pouco, conquistando aos bizantinos quase toda a península itálica (ALVES, 2007, p. 57).

De imediato, obrigou a observância do Direito Romano em toda aquela região reconquistada, proibindo terminantemente a vigência de qualquer outro ordenamento jurídico estrangeiro. Esse domínio bizantino no ocidente, no entanto, durou pouco. Três anos após a morte de Justiniano a Itália foi novamente invadida, desta feita pelos Longobardos(sic). A partir de então, diversos pequenos países foram se formando no que restara do antigo Império Romano do ocidente (ROLIM, 2000, p. 101-102).

A compilação do Corpus Juris Civilis foi realizada entre os anos

528 e 535. A redação de um corpo legal que unificava o direito vigente,

executada por ordem do imperador Justiniano I Magno, imortalizou o Direito

Romano.

Com a morte do Imperador Justiniano, em 565 d. C., considera-se

o termo final do Direito Romano, já que, no Oriente, desenvolve-se o direito

bizantino, com acentuadas influências orientais. No Ocidente, o Direito Romano

foi assimilado paulatinamente, combinando-se com o direito germânico dos

povos bárbaros, que, aos poucos, foram se cristianizando e latinizando.

Durante a Alta Idade Média, enquanto era assimilado pelos povos

germânicos, o Direito Romano se corrompeu, ressurgindo no século XI com a

171

fundação do trabalho dos legistas da Escola dos Glosadores na Universidade

de Bolonha, dentre os quais Inério, autor da Littera Bononiensis.

À Inério se atribui uma nova edição do Corpus Juris Civilis, a Littera Bononiensis: assim, ele não o descobriu, mas o consolidou. Inério não foi apenas o editor da nova cópia do Corpus, foi também o autor de um formulário notorial e de um ensaio sobre as ações (LOPES, 2008, p. 118). A Inério vieram juntar-se outros estudiosos formando-se, então, um grupo de estudos denominado Escola dos Glosadores, porque as notas que eles inseriam às margens dos textos eram chamadas glosas, palavra originária do grego que significa “uma breve explicação de uma palavra difícil” (ROLIM, 2000, p. 111).

Surgem, depois dos glosadores, outras escolas de hermeneutas

que se dedicam à exegese do direito antigo, como os pós-glosadores,

comentadores e humanistas.

No século XIII surgiu na Itália o movimento dos Bartolistas, também conhecidos por Comentadores ou Pós-glosadores. Liderados por Bártolo de Saxoferrato, era formado por estudiosos do Direito que reagiram contra o método dos glosadores, que eles consideravam demasiadamente analítico, e defendiam uma nova forma de interpretação do Direito Romano; para eles, deveria ser estudado não através de pequenas notas explicativas (glosas) mas sim, através de longos comentários comparativos entre o Direito Romano Clássico, o direito canônico e os direitos de cada região. Desse estudo comparativo deveriam ser retirados os princípios gerais que deveriam ser aplicados na solução do problema real. Surgiram, desta forma, os princípios da dialética escolástica, método utilizado na teologia por influência de São Tomás de Aquino (ROLIM, 2000, p. 112).

Enquanto a cena medieval esteve dominada por preocupações

relativas a Deus, os pensadores do Renascimento se interessaram mais pelo

homem. Dessa circunstâ extai o seu nome o novo movimento cultural, o

humanismo (RUSSELL, 2001, 240), Foram os estudiosos da Escola Culta dos

humanistas, que, no crepúsculo medieval, século XV, dedica-se a encontrar a

verdadeira jurisprudência para renovar o direito vigente.

Desde então, não se parou jamais de se estudar o Direito Romano. São notórias as contribuições de outras correntes de exegetas, tais como a Escola Histórica nascida no âmbito iluminista, com Savigny, na Alemanha, no século XVIII, da qual decorre a também alemã Escola Pandectística, fundada por seu discípulo Putcha. Os povos germânicos não destruíram o Direito Romano, ao contrário, adotaram-no, conservaram e adaptaram. Os seus

172

herdeiros, nações germânicas latinizadas e cristianizadas, estudam as compilações antigas desde então e, disto tudo, originou-se o que se convencionou chamar Direito Romano Germânico, que é o direito vigente na maioria dos Estados do Ocidente hodierno (GUIDA NT, texto digital c).

Sinteticamente, pode-se afirmar que as ideias do Pórtico foram

assimiladas pela Roma imperial, época na qual influenciaram a Jurisprudência

Clássica e, consequentemente, Ulpiano. A Jurisprudência Clássica sobreviveu

à queda de Roma e à helenização Bizantina, graças à compilação justinianeia

posteriormente chamada de Corpus Juris Civilis.

Com a latinização e cristianização dos bárbaros germânicos, o

Direito Romano sobreviveu à Alta Idade Média e, com o trabalho dos legistas

das universidades da Baixa Idade Média, Ulpiano e a Jurisprudência Clássica

foram redescobertos e, desde esse momento, inspiram os legisladores

ocidentais.

Todavia, não se pode negar um lugar a Justiniano na posteridade,

pois a obra jurídica que ele fez compilar tornou-se um dos pilares da civilização

ocidental. Não é, portanto, sem razão que, séculos mais tarde, o mais genial

poeta italiano Dante Alighieri, no seu poema épico A Divina Comédia, coloca o

Imperador Justiniano no Paraíso entre os bem-aventurados:

Sou Justiniano, e César fui então; que por querer do Deus que eu acalento, o supérfluo das leis tirei, e o vão. E antes de estar nesse trabalho intento, só uma Natura ter Cristo, não mais supondo, me encontrava a meu contento. (ALIGHIERI, 1998, p. 44)

173

CONCLUSÃO

O princípio de igualdade jurídica contido atualmente no Direito

Romano Germânico, dos Estados ocidentais, era inexistente no Direito

Romano nos primeiros séculos da história de Roma.

Como se viu, Roma, fundada no século VIII a.C., no final da idade

do bronze, era uma cidadela provinciana, distante geográfica e culturalmente

das civilizações que floresciam a leste.

O Direito que se desenvolveu naquele ambiente arcaico, na

pequena vila submetida a um governo monárquico e muitas vezes despótico,

era fruto dos costumes e da tradição do povo romano, o que excluía a plebe e,

igualmente, qualquer forasteiro, da vida política e da religião.

A evolução do Direito para que se alcançasse a igualdade jurídica

perante a lei perpassa toda a história de Roma e a gradativa transformação da

mentalidade romana.

A instigante pergunta que aqui se enfrenta é, justamente, como a

ideologia romana evoluiu da tradição nacionalista, na qual não existia espaço

para a ideia de igualdade, para uma visão de mundo mais arejada, com

crenças em forças transcendentes, e a concepção do ser humano como ente

cosmopolita.

Para responder como se deu a evolução do pensamento romano,

resgataram-se os momentos históricos que ensejaram tão significativa

mudança.

Apontou-se aqui o modo pelo qual a plebe romana lutou para ter

um tribuno próprio e se insurgiu para conseguir a cidadania romana. Como se

disse, desde o fim da Realeza, os habitantes do Lácio e, depois, de toda a

península itálica envolveram-se em batalhas sangrentas para obter a cidadania

romana. Entende-se que a conquista da cidadania é essencial - e foi decisiva -

para se alcançar a igualdade jurídica.

Todavia, a cidadania só foi estendida aos cidadãos livres do

império no ano de 212, séculos depois do fim da República e no ocaso do

Principado.

174

Mesmo com o fim da Realeza e com advento da República, ainda

era modesta a ideia de igualdade jurídica, não obstante a criação do tribunato

da plebe e da promulgação das leis das XII Tábuas. Tal ideal de igualdade só

amadurece plenamente no Direito Romano do Alto-Império, no Principado.

Mesmo que, no século II a.C., Roma, ainda republicana, já fosse

senhora do Mediterrâneo, tendo subjugado os gregos e os púnicos, seu

patrimônio cultural e seu sistema de crenças ainda estavam muitos ligados à

tradição nacional.

Já sendo um império internacional, faltava, todavia, para Roma

se tornar um império cosmopolita. A ancestral ideia de Urbs (Roma, a “Cidade”

por excelência) era acanhada para aquele novo Orbis (mundo, no caso o

mundo romano).

A transição da República para o Principado é precedida por

décadas de guerras civis, inevitáveis para que se acomodasse a sociedade e a

política ainda tradicionalistas e arcaicas à nova ordem que se impunha no

imenso território romano.

É precisamente durante a árdua acomodação política que

transformou a República em Principado que a concepção tradicionalista da

Urbs se transfigurou ganhando contornos de uma ótica cosmopolita mais

harmônica com o novo Orbis.

A conversão ideológica havida a partir da expansão territorial do

império deu-se contemporaneamente à assimilação dos ideais da filosofia

estoica importados da Grécia recém-integrada na órbita de influência romana.

O estoicismo, que inspirou a elite romana, notadamente do

Círculo de Cipião, assim preparou o terreno para a assimilação das ideias de

igualdade jurídica, graças à sua bem elaborada teoria sobre o Direito Natural

desenvolvida pelos filósofos latinos como os aqui citados Cícero, Sêneca,

Epiteto e Marco Aurélio.

O Direito Natural estoico decorrente da reta razão é baseado na

observação de aspectos universais e imutáveis da natureza humana. O homem

sábio e virtuoso, à maneira do Pórtico, acredita em uma justiça possível.

A influência do estoicismo fez-se sentir na prática jurídica e social

do mundo romano. Os jurisconsultos da época do Principado, na era Clássica,

175

incutiram na jurisprudência romana a síntese de tudo que aspiravam, ou seja,

noções de virtudes propriamente estoicas, como humanidade e caridade.

Foi evidenciado, neste trabalho, como os ideais do Pórtico

influenciaram a Jurisprudência Clássica, em particular nos textos do

jurisconsulto Ulpiano.

A filosofia estoica decorre da compreensão do mistério da

Natureza, que é autora e parte da criação. Viver virtuosamente é entender a

Natureza, procurar perceber seus desígnios e integrar-se a ela.

O sábio estoico deve incorporar-se à Natureza, o que o faz

comungar com o divino, que é o sopro criador. Nessa comunhão, encontra-se o

cerne da igualdade jurídica proposta na Jurisprudência Clássica.

Tudo que foi dito, e espera-se que tenha sido suficiente, foi para

mostrar que o espírito da doutrina jurídica clássica (que tinha força de

legislação), elaborada durante o Principado, recebeu impulso imenso do

estoicismo.

A moral romana foi enriquecida com a influência estoica e,

excluindo os posicionamentos pessoais e a educação filosófica, o autor

aventura-se a demonstrar cientificamente e de forma indiscutível que

Justiniano, ao compilar o Corpus Juris Civilis, estava, de fato, compendiando

uma doutrina e legislação bem adaptada à filosofia do Pórtico.

Importante voltar a dizer que o jurisconsulto Ulpiano é o mais

citado no Digesto (um terço dos fragmentos são citações de seus textos).

Considerando-se que o Digesto é a maior e principal parte da totalidade do

Corpus Juris Civilis, não é leviano dizer que, é em grande parte graças a

Ulpiano que o pensamento jusfilosófico estoico foi legado à civilização

Ocidental e incorporado nos ordenamentos jurídicos modernos.

A influência que o estoicismo teve sobre o Direito Romano

Clássico refletiu, nos séculos subsequentes, na absorção desse Direito pelos

bárbaros germânicos, ao serem latinizados e cristianizados e, portanto, moldou

a civilização europeia.

No começo da Idade Média, observamos uma mistura do direito

germânico com o Direito Romano, acrescido ainda das decisões do Direito

Canônico, que igualmente tem inspiração romana.

176

Quando no século XI, na Universidade de Bolonha, a escola dos

glosadores começa a estudar o Digesto como se fosse o Direito Romano no

seu estado puro, que teria vigorado durante toda a história romana, não

percebe que estão estudando um Direito Romano com considerável substrato

estoico que carrega em seu bojo um apurado e elevado ideal filosófico.

Provavelmente por isso, até os dias atuais, tende-se a subestimar a influência

do estoicismo sobre a consolidação legislativa imperial.

Outra hipótese que deve ser considerada para se entender o

motivo da dissociação entre o estudo do Direito Romano e da filosofia do

Pórtico é que, a partir do Iluminismo, muitos filósofos passaram a se preocupar

em estudar e conhecer seus pares da antiguidade clássica, desdenhando a

clara e simples filosofia estoica.

Ademais, como também se disse, a filosofia estoica preparou o

terreno para a difusão e aceitação do cristianismo, religião que guarda

paralelos consideráveis com os ideais do Pórtico e é uma das bases da

sociedade ocidental.

Fica evidente que o estoicismo nutriu a transformação da tradição

nacionalista da República Romana para um universalismo cosmopolita a partir

do Principado.

Esse universalismo cosmopolita moldou o Direito Romano

Clássico graças aos textos dos jurisconsultos, como Ulpiano e seus pares. O

Direito Clássico foi consolidado no período pós-clássico durante a era de

codificação justinianeia e, graças a isso, foi conservado e transmitido.

Desconhecer a influência estoica e seu legado civilizatório priva o

homem moderno da realização plena de suas capacidades para enfrentar

situações adversas, comuns a todas as épocas da história.

Em contrapartida, a consciência do legado do Pórtico

proporcionaria a possibilidade para os operadores do Direito, e igualmente para

o leigo, de encontrar soluções para os desafios que a vida contemporânea

apresenta.

As ideias de homem cosmopolita, de vida em harmonia com a

Natureza e de Direito Natural esposar-se-iam convenientemente e seriam um

fármaco para problemas que estão na ordem do dia, como as migrações em

massa de populações de miseráveis, as nações sem território, o aquecimento

177

global e outros problemas ecológicos, o terrorismo internacional e assim por

diante.

Para concluir, pode-se dizer, sem medo de comprometimento,

que a influência do estoicismo no Direito Romano Clássico é incontestável,

pois, a partir do século I, os senhores de Roma trabalharam na criação de um

ideal jurídico que é homocêntrico ao ideal moral do Pórtico. Esse ideal presente

no pensamento, e nos textos de Ulpiano, sobreviveu e continua a inspirar

muitos daqueles que operam o Direito. Ter plena consciência da influência e da

inspiração estoica é benfazejo e isso se afirma denodada e intrepidamente.

178

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ANEXO Fragmentos das Regras de Ulpiano e seus equivalentes da Legislação Civil Brasileira hodierna

Sobre a capacidade e a celebração do casamento, nas Regras de

Ulpiano está prescrito: (Ulp. 5. 2.) - Há Justas núpcias se os que contraem casamento têm conúbio, atingiram a puberdade e desde que sui iuris121, consentem; é necessário também o consentimento dos pais, se os contraentes estiverem sob seu poder (ULPIANO, 2002, p.39).

E no atual Código Civil tem-se:

Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados. Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingirem a maioridade civil.

Sobre os impedimentos matrimoniais, as Regras de Ulpiano trazem:

(Ulp. 5.6.) - Entre ascendentes e descendentes ao infinito não há conúbio. Entre colaterais até o quarto grau, outrora não se podia contrair casamento; hoje, porém, podem-se casar mesmo os de terceiro grau; mas somente a filha do irmão, não a filha da irmã, a irmã do pai ou da mãe, embora estejam no mesmo grau de parentesco. Não podemos nos casar com quem foi nossa madrasta, enteada, nora ou sogra (ULPIANO, 2002, p. 40). (Ulp. 13.2.) - Aos outros ingênuos é proibido casarem-se com a alcoviteira ou com a alforriada por rufião ou por alcoviteira, com a adúltera e a condenada criminalmente, e com a atriz; Mauriciano acrescenta o mesmo com relação à condenada pelo senado (ULPIANO, 2002, p. 63).

Tratando do mesmo assunto, o Código Civil determina

Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

121 “Os Sui Juris exercem por si só os seus direitos, representam a unidade da família e, por

isso, podem ter outras pessoas sob o seu poder. São donos de sua pessoa física e do seu patrimônio, não estão sujeitos a ninguém.”(CRETELL JR., 2001b, p. 75).

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V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

No tocante aos direitos do nascituro, Ulpiano assim instruiu:

(Ulp. 5.10.) - Em relação aos nascidos de casamento contraído segundo o direito, considera-se o momento da concepção; em relação aos não legitimamente concebidos, o do nascimento. Por exemplo, se uma escrava concebeu e depois de alforriada der à luz, seu parto será livre; pois, desde que não concebeu legitimamente, sendo livre no momento de dar à luz, seu parto também será livre (ULPIANO, 2002, p. 41).

No Código Civil brasileiro se fixou:

Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

No que concerne à adoção, preceituou Ulpiano:

(Ulp. 8.5.) - Por intermédio do pretor ou do governador da província podem ser adotados tantos os varões quanto as mulheres, tanto os púberes quanto os impúberes. Entretanto, por intermédio do povo romano, não pode efetuar-se ad-rogação122 de uma mulher. Anteriormente, também os pupilos não podiam ser ad-rogados; mas hoje podem, por força de uma constituição do divino Antonino Pio (ULPIANO, 2002, p. 49). (Ulp. 8.6.) - Os que não podem gerar, como o impotente, tanto podem adotar como ad-rogar; o mesmo se dando com relação aos solteiros (ULPIANO, 2002, p. 49). (Ulp. 8.7.) Quem não tem filho, pode adotar alguém como neto (ULPIANO, 2002, p. 49).

O hodierno Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069 de

13 de julho de 1990 - dá os seguintes comandos: Art. 40. O adotando deve contar com, no máximo, dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes. Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.

Sobre a tutela dos órfãos, igualmente se nota a sintonia entre

Ulpiano e a contemporaneidade, visto que, nas Regras, o tema é abordado da

seguinte forma: (Ulp. 11.14.) A Lei das XII Tábuas assim reconheceu os tutores dados nominalmente em testamento: “Assim seja o direito, como dispôs quanto a seu patrimônio e à tutela”. E estes se

122 Ad-rogação é o ato pelo qual o paterfamilias (pai de família Sui Juris) faz entrar para sua

família um outro paterfamilias, na qualidade de filius (filho).(CRETELL JR., 2001b, p. 87).

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chamam tutores dativos. (ULPIANO, 2002, p. 56).

E no Código Civil, a abordagem é: Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela: I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes; II - em caso de os pais decaírem do poder familiar.

Sobre a curatela nas Regras:

(Ulp. Reg. 12.2.) - A Lei das XII Tábuas determina que o louco, como o pródigo, sofram interdição de seus bens e fiquem sob a curatela dos ágnatos. (ULPIANO, 2002, P. 60). (Ulp. 12.3.) - O pretor nomeia quem ele quiser como curador aos pródigos, libertos ou ingênuos que, instituídos herdeiros pelo ascendente, dissipam os bens; pois não se podia dar curador a estes: nem ao ingênuo, por ser herdeiro testamentário e não poder ser seu herdeiro, desde que se julga não ter pai, em vista da inexistência de parentesco servil. (ULPIANO, 2002, P. 62).

A curatela no Código Civil: Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela: I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os pródigos. Art. 1.768. A interdição deve ser promovida: I - pelos pais ou tutores; II - pelo cônjuge, ou por qualquer parente; III - pelo Ministério Público. Art. 1.782. A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, os atos que não sejam de mera administração. Art. 1.769. O Ministério Público só promoverá interdição: I - em caso de doença mental grave; II - se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo antecedente; III - se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente. Art. 1.770. Nos casos em que a interdição for promovida pelo Ministério Público, o juiz nomeará defensor ao suposto incapaz; nos demais casos o Ministério Público será o defensor. Art. 1.771. Antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especialistas, examinará pessoalmente o arguido de incapacidade.

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Art. 1.772. Pronunciada a interdição das pessoas a que se referem os incisos III e IV do art. 1.767, o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do interdito, os limites da curatela, que poderão circunscrever-se às restrições constantes do art. 1.782.

Sobre as fundações se dispôs nas Regras:

(Ulp. 22.6.) - Não podemos instituir herdeiros os deuses, exceto aqueles que algum senatusconsulto ou constituição imperial permitiu, como Júpiter Tarpeio, Apólo Didimeo em Mileto, Marte na Gália, Minerva de Ílio, Hércules de Gades, Diana de Éfeso, a Mãe dos deuses Sipylene, Nemese, que se cultua em Smirna, e Celeste Salinense em Cartago. (ULPIANO, 2002, p. 84).

E no Código Civil: Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.

As benfeitorias estão delineadas nas Regras dessa forma: Ulp. 6. 14) Três são as espécies de despesas: necessárias, as

úteis e as voluptuárias. (Ulp. 6.15) Chamam-se necessárias as benfeitorias que, se não sendo feitas, acarretam a deterioração do dote, por exemplo, o conserto de uma casa que ameaça ruir. (Ulp. 6.16) Úteis as que não sendo feitas não acarretam deterioração, mas se se fizerem, aumentam o rendimento do dote, por exemplo, a plantação de videiras e oliveiras. (Ulp. 6.17) Voluptuárias são as que, omitidas, não acarretam nem deterioração nem aumento do rendimento, o que se dá com canteiros, pinturas e coisas semelhantes. (ULPIANO, 2002 p. 45)

No Código Civil, as benfeitorias se classificam assim: Art. 96. As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias. § 1o São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou seja de elevado valor. § 2o São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem. § 3o São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriorem.

No que diz respeito ao costume, as Regras trazem:

(Ulp. 1.4.) - Os costumes são o tácito consentimento do povo inveterado pela longa repetição. (ULPIANO, 2002, p. 24).

E o Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

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Sobre o implemento da condição, nas Regras:

(Ulp. 2.5) - Se o herdeiro fizer com que não se cumpra a condição de que depende a liberdade, por isso mesmo o escravo se torna livre como se a condição tivesse sido cumprida. (ULPIANO, 2002, p.33)

Sobre o implemento da condição, no Código Civil: Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.