\"itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói!\" - estudo das imagens...

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Dedico esse livro aos meus pais, Lucas e Marilene, meus pilares

nesse mundo.

Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto são próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sensíveis dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer (a palavra aparência não faria sentido) se não existissem receptores de aparências, criaturas vivas capazes de conhecer, reconhecer e reagir (em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer) não apenas ao que está aí, mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável depende, em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida em que aparece, existe no singular. Tudo o que é é próprio para ser percebido por alguém. Não o homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.

(Heidegger, 1972)

APRESENTAÇÃO

Este livro é resultado dos estudos realizados no programa de mestrado em

Geografia e Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais (PUC/Minas), sob orientação do Professor Doutor Oswaldo Bueno

Amorim Filho.

Privilegiamos como tema de estudo as representações e as “imagens urbanas”

numa tentativa de ultrapassar a investigação geográfica ligada estritamente a aspectos

visuais das paisagens, para que se alcancem os seus significados e os seus valores por

meio de instrumentos que possibilitem a captura da percepção dos que habitam o

espaço da cidade. Embora a paisagem seja um dado da realidade, a forma como ela é

percebida e significada é não só singular, como também criadora de sentido. Captar

as imagens percebidas pela população é desse modo, uma forma de apreender a

realidade vivida pelos indivíduos e pela coletividade, pois essas imagens constituem-

se em fontes privilegiadas de informações sobre a cidade.

No presente estudo, a análise dessas imagens objetiva a compreensão do

movimento constitutivo das práticas sociais ou de parte delas, sobretudo, no que se

refere à captação da dinâmica de investimentos e interesses envolvidos na produção

do espaço da cidade.

Adotamos a perspectiva geral da geografia humanista-cultural para estudar as

imagens urbanas e duas fontes de conhecimento foram tomadas como ponto de

partida: a fenomenologia e a percepção ambiental. Estas duas fontes, ou concepções,

trazem implícitas a ideia do sujeito inserido no ambiente, enquanto corpo e

totalidade, dotado de cognição e inteligência. Além disso, permitem descrever,

compreender e interpretar os significados das experiências humanas no mundo e se

concentrar em questões de investigação, por exemplo, como um indivíduo ou uma

coletividade se comporta em uma situação particular.

A pormenorização da aplicação e do tratamento fenomenológicos – uma das

principais bases filosóficas da geografia humanista – evidencia, primeiramente, nossa

profunda admiração pelo “andar incoativo” desse modo de pensar, pois, assim,

inacabado, é o nosso mundo, esse onde estamos inegavelmente inseridos, antes de

qualquer racionalização possível. Em segundo lugar, exprime uma necessidade

pessoal de aprofundamento e imersão em conceitos que são tão caros à geografia

humanista, tais como experiência, mundo vivido, valor, entre tantos outros.

Ademais, a geografia por ser uma ciência “plural” tanto no pensamento quanto

na prática, abarca uma quase infinidade de temas e enormes conjuntos de olhares

sobre esses temas. Por isso, acreditamos que a Geografia é uma atividade intelectual

extraordinária e de imenso alcance porque nos “[...] permite ver e sentir; descrever,

representar e explicar, desmembrar e integrar; admirar e amar a natureza e a

sociedade...” (AMORIM FILHO, 2007, p. 31).

É justamente a busca por compreensões mais plurais que promove a interseção

da geografia com outros campos do saber, tais como a biologia, a sociologia, a

filosofia, a literatura e as artes. No entanto, esse trabalho não é simples para o

geógrafo, nem para os outros profissionais, pois, sob esse ponto de vista, reconhece-

se que a incompletude tácita das formas de pensar “compartimentadas” traz imensos

prejuízos ao desenvolvimento das pesquisas de viés humanista (TUAN, 1982).

Como observa Ítalo Calvino (1996) no prefácio de sua alegoria O visconde

partido ao meio, o pesquisador contemporâneo está em eterna dívida, em sua

irremediável incompletude, pois toda pesquisa tem um quê de arte, um quê de

imaginação e necessita, inevitavelmente, trafegar por campos do conhecimento onde,

na maioria das vezes, a ciência tradicional não trafega.

Esperamos que a presente publicação contribua com o desafio de ultrapassar

os limites impostos pelo saber compartimentado e para pensar o mundo de maneira

holística. Além disso, é preciso ter a consciência de que a incerteza é o que nos move

na busca do sentido e do significado das coisas, e é o que possibilita a aventura do

saber, do conhecer, enfim, do pensar.

Fernanda Braga

Delft, Dezembro de 2014.

7

1 A FENOMENOLOGIA COMO APORTE TEÓRICO E

METODOLÓGICO PARA A GEOGRAFIA HUMANISTA

O atributo essencial do mundo é o fato dele ser percebido por todos nós.

(ARENDT, 1997)

O interesse pelo estudo do urbano e das cidades, em geografia humanista-

cultural, se dá com a revitalização deste campo, a partir das décadas de 1960 e 1970,

momento no qual passou-se a considerar as formas de apreensão da cidade e de sua

percepção pelos indivíduos.1

Uma das críticas empreendidas à abordagem humanista da geografia se

relacionou, como veremos, à sua suposta “ingenuidade” no tratamento da realidade, e

que poderia revelar um olhar impregnado de um cientificismo acrítico derivado, em

grande medida, do racionalismo positivista. No entanto, a perspectiva humanista

mostra justamente o contrário desta afirmação, visto que considera que a experiência

individual carrega significados do particular, do vivido e do cotidiano, cheios de

simbolismos das mais variadas fontes. Destes significados, potencialmente, emanam

percepções individuais e coletivas, tidas como expressões da constituição dos espaços

das cidades e, com efeito, das imagens e representações pelas quais essas são

captadas e traduzidas.2

Por conseguinte, tem-se que os espaços das cidades se produzem por meio de

processos complexos (sociais, políticos e econômicos) que não suprimem as

experiências individuais e, ainda, que esses processos criam diferentes paisagens e

territórios com características peculiares.

Pode-se considerar, também, que, em uma escala maior, esses processos se

refletem na construção dos lugares, criando espaços de vivência. Em virtude disso,

1 É necessário que se ressalte, no entanto, que os estudos da temática urbana, em outras correntes da geografia

nascem, praticamente, em concomitância com o fenômeno urbano em sua fase mais dinâmica, ou seja, a

partir do final do século XIX. 2 Yi Fu Tuan (1980; 1983) acredita que a cidade é a paisagem cultural por primazia, pois apresenta-se como

um ambiente artificial, um ecossistema construído, com grande densidade populacional e intensa divisão

social do trabalho sendo, por excelência, locus da produção, do consumo e da reprodução da vida.

8

esses espaços de vivência refletem a tensão entre os modos ou práticas impostos, de

certa forma, pelas escalas globais (em alguma medida, homogeneizadoras) e as

tradições culturais, hábitos e costumes, profundamente arraigados em sua

constituição. Disso decorrem as possibilidades de se gerarem infinitas

(re)significações pela imbricação e substituição de características e elementos que os

compõem e os marcam.

Dinâmica e concomitantemente, essas relações se dão de forma mais evidente

nas cidades e envolvem, obviamente, as pessoas residentes e produzem arranjos

espaciais específicos que se manifestam ou se corporificam na paisagem de forma

visível, ou não visível, e produzem imagens de cidade carregadas de simbolismos,

significados subjetivos, imaginação e memórias que têm potencialidades para serem

apropriadas por seus moradores e agentes intervenientes. Para Ferrara,

O ambiente urbano decorre dos impactos produzidos por aquelas relações

que, conquanto eficientes para a explicação do fenômeno urbano, não são

auto-evidentes, ou seja, não podem ser apreendidas senão pelas marcas e

sinais que deixam impressas no cotidiano dos lugares, ou nos hábitos, nas

crenças, valores e ações de uma coletividade. (FERRARA, 1999, p. 63-64).

Desse modo, determinados grupos sociais em interação com as paisagens e

lugares urbanos podem criar “modelos de cidades” (SÁNCHES, 2003), que estão em

constante construção/desconstrução, em todo o mundo, e prontos a serem utilizados

de acordo com determinados interesses de promoção e inserção em roteiros

comerciais, turísticos, industriais, entre outros.

Assim, por considerar que a apropriação dessas imagens urbanas se dá, em boa

parte, por determinados interesses que se projetam sobre o espaço da cidade e pela

inserção dos indivíduos nos seus espaços vividos e apropriados na cidade – onde se

dão as relações mais imediatas do cotidiano –, o estudo das imagens urbanas, ainda

que derivem, em grande medida, dos estudos de paisagem e de lugar, tem,

atualmente, renovado o fôlego destes últimos, principalmente, após a inclusão das

contribuições da fenomenologia no contexto dos estudos de geografia humanista-

cultural.

9

1.1 A evolução do pensamento geográfico e o contexto para o desenvolvimento

da geografia humanista

A utilização do conceito de cultura é marcada por inúmeras controvérsias. Isso

se deve, em grande medida, às aproximações com o conceito de civilização

convenientemente promovidas por análises originalmente propostas, a partir do

século XIX, em distintos campos de conhecimento, sobre a nascente sociedade

capitalista. Dessas aproximações se desprendem algumas confusões não

negligenciáveis, que se devem ao fato de que todo o aparato material e, portanto,

cultural, construído por uma sociedade era visto como a garantia para que esta fosse

considerada civilizada e, comprovadamente, de acordo com determinados parâmetros

fortemente carregados de preconceitos, superior. Nesses termos, a imagem de

civilização era profundamente solidária aos ideais de progresso e de evolução, que,

nela, constituiriam aqueles ingredientes fundadores da própria modernidade

(GOMES, 1999).

Para os geógrafos, essa ideia de cultura era também muito presente. Por isso,

pode-se afirmar que, em seu aspecto tradicional, os estudos culturais em geografia

humana, nascidos no século XIX, privilegiavam o tratamento da adaptação das

sociedades ao meio físico e das técnicas elaborados pelos homens para dominar o

espaço.

Derivados dessa ideia de cultura foram desenvolvidos, inicialmente, na

geografia alemã, os estudos de Carl Ritter. Posteriormente, trilhando os caminhos

abertos por Ritter, Friedrich Ratzel desenvolveu, em 1882, a sua “Antropogeografia”,

propondo a análise dos fundamentos culturais da diversidade dos homens e das

civilizações, com uma abordagem ora etnográfica, ora política em sua interpretação

geográfica. Ratzel (1844-1904) cunhou uma das mais interessantes teorias da

geografia desse período, que bebia nas fontes, à época, em evidência: o darwinismo,

o hegelianismo e o colonialismo.3

3 Ratzel tinha interesses nacionalistas, ligados ao partido alemão, desenvolvendo uma visão muito própria do

papel do Estado. Ele pensava o mundo e a história como a realização de um plano no qual a grandeza das

sociedades só poderia se exprimir pela grandeza do Estado, subentendendo-se aí, principalmente, o Estado

10

Para Ratzel, as sociedades também passariam pelo processo de “seleção

natural”, como na teoria darwinista, e seriam “classificadas” de acordo com seu grau

de evolução.4 Não se deve perder de vista, no entanto, o fato de que ele foi um

homem de seu tempo. Como observa Martins (2004, p. 2), “Em linhas gerais, a obra

de Ratzel é uma tentativa de superar uma geografia puramente descritiva e de avançar

na formulação de grandes construções explicativas, onde o ‘sentido de espaço’

(Raumsinn) ocupa lugar primordial.” 5

Ao final do século XIX, contribuições advindas de outros campos de estudos

concorreram com aquelas propostas, inicialmente, por Ratzel. Não obstante o fato de

que as teorias mais utilizadas em geografia ainda relacionavam a cultura com

elementos fortemente influenciados por aspectos físico-ambientais, verifica-se, nesta

época, o seu questionamento, tanto na geografia quanto por outras disciplinas,

sobretudo, pela antropologia. Por sua vez, Alfred Hettner, a partir de 1910, aponta

que a geografia é uma ciência que investiga tanto as dimensões da vida espiritual

como da vida natural, reunidas na chamada “corologia”, o que permite a esse autor

posicionar a cultura como dimensão formadora do espaço e, além disso, considerar

que a geografia poderia ser tanto uma geografia da materialidade como da

significância (SAHR, 2007).

germânico do final do século XIX. (LOPRENO; PASTEUR; TORRICELLI, 1994). Atualmente, apesar de

algumas de suas ideias serem consideradas preconceituosas, Ratzel é reconhecido, por muitos, como um

dos fundadores da moderna geografia humana, sendo um dos responsáveis pela inclusão de aspectos

culturais nos estudos geográficos e também pelo estabelecimento da geografia política como disciplina. 4 A colonização, segundo essa teoria, seria o momento de entrada em contato de dois povos, quando um seria

suprimido pelo outro, graças à sua menor vitalidade. Ou seja, para desenvolver-se, a Alemanha teria que

vencer os povos culturalmente “inferiores” ou “povos naturais” da África, por exemplo. O império alemão

colonizou os atuais Camarões, Namíbia e Tanzânia, pois os ingleses, os franceses e os portugueses já

haviam colonizado a maior parte dos territórios africanos. Ratzel cunhou o conceito de espaço vital, que se

refere ao território ocupado por um dado povo e à noção de movimento de expansão; ou seja, quanto mais

dinâmica fosse uma nação mais ela teria que se expandir territorialmente – graças à sua crescente

necessidade de extração de matérias-primas e de alimentos. A ligação entre o Estado e o solo era, para

Ratzel, a coisa mais importante para uma sociedade. O espaço seria o suporte para o seu desenvolvimento,

portanto, vital para a sua sobrevivência. (Cf.: LOPRENO; PASTEUR; TORRICELLI, 1994). 5 Martins (2004, p.1) observa ainda: “A abrangente produção ratzeliana deixa transparecer a integração de

fatos da modernidade e do rápido desenvolvimento da sociedade no contexto da Alemanha que se

unificava. Reflexões sobre o Estado, a história, as raças humanas, o ensino da geografia e a descrição de

paisagens perpassam a obra do geógrafo, que se preocupava em auferir uma identidade comum à nação em

formação. No Brasil, é o Ratzel determinista que se destacou na produção historiográfica da geografia,

resultado da leitura da obra ratzeliana através da literatura francesa, sobretudo da obra de Lucien Febvre –

La Terre et L’Évolution Humaine (1922) – que estigmatizou a pecha de determinista para Ratzel [...] termo

cunhado pelo próprio Febvre.”

11

Entre os geógrafos franceses, onde mais se desenvolveu uma geografia

humana “regional”, o que interessava era, principalmente, definir o gênero de vida

das populações. Nesse sentido, é importante ressaltar os estudos de Élisée Reclus,

pois o espírito de sua obra é efetivamente o da “geografia humana”, tornada

grandiosa justamente pela “[...] eleição do humano como fio condutor da reflexão

dos geógrafos (humanismo possibilista) e a valorização suprema das conexões entre

elementos complexos (físicos e humanos) da realidade como fator explicativo das

divisões e das entidades regionais.” (AMORIM FILHO, 1988, p. 22). Desse modo,

Reclus, como humanista e como anarquista que era, inaugura, sem alarde, uma

tendência possibilista e coloca-se como um de seus precursores, criando alternativas

ao determinismo.

No tocante à antropologia, Roque de Barros Laraia (2006) observa que o

determinismo geográfico e o determinismo biológico também foram refutados,

demonstrando que existe uma limitação destas influências sobre o desenvolvimento

das sociedades, bem como, a possibilidade de existência de uma grande diversidade

cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente.

Complementarmente, é importante ressaltar que a geografia cultural não era

tratada como um segmento específico ou uma corrente epistemológica autônoma,

mas como parte integrante da geografia humana.

Entre os geógrafos franceses, responsáveis pelo desenvolvimento de uma

corrente da geografia cultural, Vidal de La Blache cunhou o conceito de gênero de

vida, que exprime uma síntese descritiva das técnicas, dos utensílios, dos modos de

fazer, dos hábitos e costumes e dos modos de habitar das populações em suas

relações com a paisagem, privilegiando a temática rural em seus estudos, postura que

permaneceu influente ainda por algumas décadas. Segundo Paul Claval (2007, p. 35),

para Vidal de La Blache, a cultura é “[...] aquilo que se interpõe entre o homem e o

meio e humaniza as paisagens. Mas é também uma estrutura geralmente estável de

comportamentos que interessa descrever e explicar.”

Essa concepção permite a inclusão da estrutura comportamental dos grupos no

entendimento da cultura e marca a constituição da geografia cultural como um ramo

12

derivado da geografia humana, por sua visão peculiar e suas preocupações

específicas.

Em 1925, o conceito de paisagem cultural foi introduzido, nos Estados

Unidos, por Carl Sauer, por meio de seu texto “A morfologia das paisagens”.

Membro da Escola de Berkeley, Sauer também vê a cultura como conjunto de

instrumentos que permitem ao homem agir sobre o mundo exterior, se sobrepondo a

ele. Como observa Claval (2007), a geografia deve a Sauer o destaque ao impacto

das culturas sobre o componente vivo – vegetal e animal – das paisagens, além de

apresentar de forma perspicaz, já nos anos 1930, uma preocupação com os impactos

provocados pela sociedade industrial, embora hesitasse em questionar a lógica dos

comportamentos humanos na construção do espaço, mesmo não acreditando que as

transformações sociais e ambientais se dão de forma inocente.6

Nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, outros geógrafos tais como

Max Sorre e Pierre George – ainda que pertençam a gerações distintas de geógrafos –

apontaram para algumas limitações da geografia humana, de viés cultural e

propuseram a análise do papel das instituições como parte dos instrumentos que

asseguram a coesão social. Isso se dá, contudo, sem que o foco nos estudos rurais

perdesse sua proeminência.

Ainda segundo Claval, para Sorre, George e outros autores, a “mecanização e

a modernização introduzem um arsenal de máquinas e de tipos de construções tão

padronizados que o objeto de estudo é esvaziado de interesse.” (CLAVAL, 2007, p.

48). Isto porque os impactos da modernidade na constituição do espaço tornam a

realidade muito mais complexa. Logo, a relevância em se realizar sínteses descritivas

do gênero de vida das sociedades, que ainda não haviam sido atingidas pela

industrialização, tem seu sentido minimizado.7

6 Sauer e toda a escola de Berkeley sofreram inúmeras críticas, principalmente, no que se relaciona à

concepção de cultura como entidade “superorgânica” que paira acima da construção social. 7 Ainda assim, sustentava-se a possibilidade da aplicação dos métodos concernentes ao gênero de vida

naqueles países onde a paisagem rural ainda não havia sido modificada, o que constitui um forte indício de

que estes autores não superaram o conceito de cultura até então utilizado pela geografia. Vale também

observar que essa geografia passou a concorrer diretamente com a etnografia, embora com uma abordagem

diferente, mas acabou por perder lugar e prestígio no campo de estudos culturais.

13

Entre os anos de 1940 e 1970, tentando dar conta da complexidade manifesta

nos contextos urbanos, ganham força dentro da geografia, estudos baseados em

outras correntes epistemológico-metodológicas, como a teorético-quantitativa e a

autodenominada “crítica” radical marxista – sendo estas enlevadas pelo teor

pretensamente científico e objetivo dos paradigmas que propunham e consideradas,

aparentemente, mais adequadas aos estudos de geografia física e de constituição

socioespacial (AMORIM FILHO, 2007a).

Ocorre, porém, que, neste contexto, uma terceira corrente epistemológico-

metodológica se abre como possibilidade de estudo relacionada à geografia cultural,

convencionalmente reconhecida como abordagem humanística ou humanista. Essa

corrente propunha o estudo das significações, valores, percepções e mais tarde,

representações, acreditando, pois, que para cada indivíduo e para cada grupo humano

existe uma visão do mundo que se expressa por intermédio das suas atitudes e de seus

valores para com o ambiente. Dessa forma, as pessoas organizam o seu espaço e nele

se relacionam.

Tem-se, então, que a geografia humanista surgiu, inicialmente, como um

contraponto ao positivismo clássico e à sua pretensa objetividade e neutralidade

científicas, propondo a retomada da “humanização” da ciência e outra compreensão

da relação entre sujeito e objeto, homem e mundo, além de valorizar a experiência, o

comportamento e as maneiras de sentir das pessoas em relação aos seus lugares,

territórios e paisagens.8

8 Em seus primeiros desenvolvimentos, a geografia humanista se alinhou à geografia radical, mas a partir da

tomada de consciência das diferenças filosóficas inerentes às duas abordagens – marxismo como base

filosófica da corrente radical e a fenomenologia como a base filosófica da geografia humanista – houve

uma cisão entre elas. Segundo Amorim Filho (1987), as principais críticas por parte da geografia radical

em relação à geografia humanista passaram a se referir à sua tendência e adesão ao psicologismo, à

apresentação de explicações para obscurecer as condições reais da sociedade, que não dependem do

indivíduo, à negação de soluções de caráter mais global e, sobretudo, ao reforço do status quo das classes

dominantes. Por sua vez, as críticas da geografia humanista em relação à geografia radical se davam em

torno, principalmente, da anulação dos indivíduos, do reducionismo por meio de mecanismos próprios às

estruturas econômicas e da desconsideração do espaço como fator social, o que poderia levar muitos

radicais a realizar “heresias teóricas”. Mais que isso, ainda segundo Amorim Filho (2007a), a geografia

radical/crítica alcançou dimensões totalitárias, podendo ser consideradas como “tiranias paradigmáticas”

em determinadas fases do seu desenvolvimento, mas que não resistiram à explicitação de valores

subjacentes à modernidade, pois não se transmutaram em “dogmas” e tiveram obrigatoriamente, para sua

própria sobrevivência, que se renovar.

14

Nesse contexto, ocorre, então, uma aproximação, quase inevitável, ao

pensamento fenomenológico, que despontava como um modo diferente de se

entender a ciência e de se encarar a existência humana no mundo. Pode-se afirmar,

em síntese, que a geografia humanista alcança uma diferente compreensão do mundo

graças à inclusão de elementos tais como sentimentos, ideias, relações subjetivas e

intersubjetivas que se realizam nos espaços, levando-se em consideração as

percepções e representações que se constroem acerca deles.

Da inclusão das dimensões não-materiais propostas pela análise humanista, no

universo da geografia, resulta o enriquecimento da corrente cultural. Some-se a isso

o fato de que, a partir da década de 1970, ocorre a renovação das abordagens

culturais graças à ampliação dos grupos de pesquisa e ao trabalho de reflexão

epistemológica empreendido pelas ciências sociais e pela geografia, iniciados nas

décadas anteriores.9 Essa aproximação significou, como nota Margarida Corrêa

(2000), uma verdadeira “revolução epistemológica”, que pode ser entendida como

uma lufada de ar fresco, uma profunda revitalização na geografia do período e que se

estende até os dias atuais. Começa-se a falar então em “Nova geografia cultural”.

Ainda para Corrêa,

[...] a geografia cultural revitalizada aprofundou suas investigações no

sentido de compreender a cultura como matéria-prima, mediante a qual os

indivíduos e os grupos definem-se e consolidam laços de solidariedade e

identidade, mas também torna manifestos os conflitos e rivalidades.

(CORRÊA, 2000, p. 51).

Diante da influência do viés humanista, o próprio conceito de cultura na

geografia é, de certo modo, resignificado e o indivíduo passa a ter um papel mais

central nas análises, incluindo, além do inventário das técnicas, os valores e as

relações expressos pelas representações individuais e coletivas. Como observa Paul

Claval (2007), a cultura só existe por meio dos indivíduos aos quais é transmitida, e

que, por sua vez, a utilizam, a enriquecem, a transformam e a difundem. Assim, a

cultura não seria constituída por meio de atitudes e de gestos que se repetiriam

9 Destacam-se, nesse contexto, as contribuições de Clifford Geertz. (Cf:. GEERTZ, C. A interpretação das

culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989).

15

indefinidamente, sem serem questionados. Deste modo, cada cultura caracteriza-se

por um sistema original de representações e de construções intelectuais e isto não

ocorre sem influência sobre a afetividade e sobre a atividade humana, dado que estas

se retroalimentam.

Nesse sentido, é possível concluir que cada indivíduo recebe de seu entorno um

sistema hierarquizado de preferências e de valores que, de certo modo, orienta suas

atitudes e suas escolhas. Por conseguinte, o bem e o mal, o bonito e o feio, o

permitido e o proibido, o sábio e o tolo seriam variáveis relativas que obedecem a

preceitos culturais. No entanto, a cultura não condena à reprodução indefinida de

enunciados já estabelecidos, de atitudes recebidas, pois o essencial do que os homens

recebem como herança tem como função primeira permitir-lhes subsistir num meio

dinâmico e mutável e não desempenha o mesmo papel nos diversos momentos da

vida. A cultura “funciona” por meio das pessoas e estas estão mais ou menos

conscientes desse fato. Não é somente o indivíduo, mas tudo aquilo pelo qual a

sociedade o condiciona e vai além dele, pois situa os indivíduos no seio de uma

cultura, dando, com isso, um sentido à sua relação com o mundo (BERQUE, 2004b).

Por intermédio da cultura são criados os referenciais para que se compreenda o

mundo e, nele, a inserção individual. Mas esta construção é complexa e dinâmica,

uma vez que, no interior de cada sociedade, os referenciais culturais são lidos e

recriados por diferentes grupos, bem como, por todo o tempo, as sociedades estão em

contato, também complexo e dinâmico, com outras sociedades.

De modo sintético Claval define a cultura como

[...] a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos

conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas

vidas e, em uma outra escala, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte.

A cultura é herança transmitida de uma geração a outra. Ela tem suas raízes

num passado longínquo, que mergulha no território onde seus mortos são

enterrados e onde seus deuses se manifestaram. Não é, portanto, um

conjunto fechado e imutável de técnicas e de comportamentos. Os contatos

entre povos de diferentes culturas são algumas vezes conflitantes, mas

constituem uma fonte de enriquecimento mútuo. A cultura transforma-se,

também, sob o efeito das iniciativas ou das inovações que florescem no seu

seio. (CLAVAL, 2007, p. 63).

16

Mais ainda, a cultura se liga ao indivíduo no plano de sua existência, pois “Ela

permite sua inserção no tecido social. Dá uma significação à sua existência e à dos

seres que o circundam e formam a sociedade da qual se sente membro.” (CLAVAL,

2007, p. 89).

Ressalte-se também que a Geografia Cultural refere-se aos grupos e à

sociedade, buscando na noção de cultura o sentido, a partir do qual, os indivíduos

definem-se, criam uma memória coletiva e dão conta de sua existência, mediante

construções compartilhadas e expressas temporalmente e espacialmente. Isto porque

as pessoas são herdeiras do meio cultural em que foram socializadas, são expressão

de um longo processo acumulativo, que reflete os desenvolvimentos de todas as

gerações predecessoras, tomados de formas diferentes por cada indivíduo e por eles

reinventados, recriados, atualizados, no contexto em que eles vivem. A cultura,

entendida como sistema de valores ou como conjunto de referências específicas de

um grupo social, é a principal fonte para a compreensão de comportamentos e hábitos

relacionados às práticas espaciais.

É por meio da cultura na qual se está inserido que se criam referenciais

objetivos e simbólicos para compreender o ser no mundo e o próprio mundo. Nesse

sentido, o imaginário e as representações são entendidos como elementos

constitutivos das interrelações sociais, manifestando-se por meio de um sistema de

ideias-imagens, que consistem na representação do real. Por isso, é necessário

salientar que, ao lado das lógicas econômicas, políticas e sociais presentes na vida

cotidiana existem outras que se ligam às particularidades dos sistemas de

representação, de símbolos e de signos que integram as pessoas ao mundo e que se

comunicam entre si.

Dessa maneira, a percepção e a representação – assim como todos os modos de

relação do indivíduo com o mundo, como a imaginação e a experiência – têm um

papel importante para a compreensão do arranjo cultural de determinado espaço.

Longe de encerrar a discussão sobre o conceito de cultura, salienta-se, uma vez

mais, com Claval, que

17

[...] o enfoque cultural se recusa a considerar a natureza, a sociedade, a

cultura, o espaço como realidades prontas, dados que se imporiam aos

homens como do exterior. Julga que o mundo é mais complexo. Para

mostrá-lo, parte dos indivíduos e se debruça nas suas experiências.

(CLAVAL, 2002, p. 37).

Diante do exposto, pode-se considerar que os estudos culturais foram uma

“porta” para que a geografia humanista se desenvolvesse. Por isso, compreende-se

que o objetivo da geografia humanista, como parte integrante da manifestação da

geografia cultural, é compreender a existência humana, de forma integral, apontando

como chaves para essa compreensão a experiência, os sentimentos, o imaginário e as

representações individuais e coletivas, do ponto de vista do vivido e do contexto

cultural onde se insere. Em síntese, se afirma que a dimensão experiencial coloca-se

como base da abordagem humanista e, em consonância com Cosgrove (2004b), que a

cultura ocupa uma centralidade nessa abordagem devido ao seu objetivo mais amplo:

compreender o mundo vivido de grupos humanos.

1.2 A fenomenologia como aporte teórico e epistemológico da Geografia

Humanista-Cultural

Para que se inicie a compreensão do pensar fenomenológico em relação à

geografia humanista, é necessário considerar, pelo menos, três premissas essenciais.

A primeira delas é que o Ser, o Ente e a Aparência coincidem. Ente é tudo o que é, o

manifesto; e o ser é o que faz com que um ente seja ele mesmo e, não, outro ente

qualquer.10 O ser manifesta-se ou apresenta-se no ente, mas não no ente apreendido

10 A metafísica, diferentemente da fenomenologia, considera a aparência como algo enganoso ou ilegítimo

“atrás” da qual o ser sempre se esconde e, portanto, não se deve dele se ocupar. Para a metafísica, do ser,

“[...] o pensamento não se encarrega porque é [ele] inaparente, intangível, impermanente, portanto, não

patenciável. Com isto, caímos no que Descartes mesmo diz nas Meditações, que o que cabe ao Cogito é a

busca da certeza sobre o ente e não seu ser. [...] Portanto, sobre o descarte que Descartes realiza do ser

como tarefa para o pensar, nossa civilização ocidental conquistou a chance de seu desenvolvimento

técnico, cientifico, industrial, comercial, ideológico. Todo modo de produção material/econômica do

mundo apóia-se numa noção de ser e, portanto, de todas as noções dela derivadas, como as questões do

tempo, do espaço do homem, do mundo, da história.” (CRITELLI, 1996, p. 35). A postura metafísica

busca a verdade, a certeza, e tem orientado todo o pensamento ocidental, sobre o qual todo o conhecimento

técnico e científico se erige além da compreensão do ser, por meio das questões ontológicas mais

fundamentais, mas também do senso comum, que se desdobram da compreensão do ser, como as

18

como coisa em si, e, sim, no ente visto enquanto presença no mundo. Assim, o ser

pode ser perquirido, manifesto e expresso no horizonte existencial, isto é, o ser

expressa sua existência no mundo e, a partir daí, torna-se fenômeno. Contudo, o fato

de “aparecer” ou de ser “descoberto” no mundo não muda a sua essência. Por

exemplo,

[...] O fato da descoberta de que a água é composta por hidrogênio e

oxigênio não muda a materialidade nem aparência da água. O mesmo

argumento podemos ampliar para todos os fenômenos possíveis, concretos e

imaginários. (CRITELLI,1996, p. 41).

Para a fenomenologia, a essência das coisas está encarnada nas coisas mesmas

e não oculta atrás de uma misteriosa aparência que engana os desavisados. Desse

modo, o ser manifesta sua essência na aparência.

Segundo Marcondes,

[...] todo ente está presente no ser. Os entes são bimórficos, caracterizam-se

pelo mostrar-se, pelo aparecer, pela manifestação, mas também pelo

dissimular, pelo desaparecer, sendo ausentes, errantes. Os entes estão,

portanto, sempre no ser (verdade) e no não-ser (não-verdade), a

dissimulação, a ausência. (MARCONDES, 2005, p. 266).

Em síntese,

Para a fenomenologia, por não haver uma dicotomia prévia entre ser e ente,

o ser não está por trás das aparências, mas nelas mesmas. O ente carrega em

si seu ser, seu aparecer e desaparecer, seu estar à luz e estar no escuro. O ser

não está na sombra do que está à luz, mas está no ente. Portanto, está

naquilo que se mostra. Assim a aparência, para a fenomenologia, é legítima.

(CRITELLI, 1996, p. 29)

O ser torna-se patente através do aparecer e é impermanente, é sempre um “vir-

a-ser”, e sua essência permanece. Esse preceito parece se aplicar a quaisquer objetos,

ações ou sentimentos, que, tendo sido criados, construídos, sentidos ou imaginados

manifestam sua essência quando aparecem no mundo enquanto fenômenos.

Assim, como nota Critelli,

concepções de tempo e de espaço; segundo Critelli (1996), a partir delas são fundados desde aspectos

políticos e religiosos das sociedades, até a elaboração de técnicas de cultivo.

19

[...] uma cadeira, uma lâmpada, uma saudade, uma lembrança, uma

emoção... só podem ser se se manifestarem. O ser é esta manifestação. O ser

é diferente do que seja uma idéia, porque o ser é mais um poder que os entes

têm de se manifestarem. [...] para que as coisas sejam, elas dependem de

manifestação. Não se pode falar das coisas se elas não se manifestarem,

ainda que esta manifestação seja expressão da fantasia, da loucura, da

imaginação. (CRITELLI, 1996, p. 42).

A partir daí, chega-se à segunda premissa, que se refere ao lugar de

acontecimento/manifestação do ser. Este lugar é o próprio mundo, por isso, diz-se

que a fenomenologia considera “o ser-no-mundo” ou os “modos-de-se-ser-no-

mundo”. Dessa maneira, tem-se que o “horizonte de explicitação” do ser é a própria

existência humana, entendida como coexistência em seus modos de ser no mundo:

“[...] o ser se faz aparente no ser-no-mundo; é aí que ele se expõe em sua plenitude, e

é aí mesmo que ele desaparece.” (CRITELLI, 1996, p. 40).

Chega-se, então, à terceira premissa, absolutamente fundamental para as

ciências humanas: o aparecer das coisas está condicionado a que elas apareçam para

alguém, individual ou coletivamente.

Nesse sentido, o recurso a um autor eminente confrontado por Critelli (1996) –

Martin Heidegger – se mostra bastante esclarecedor.

Martin Heidegger (1889-1976) – inicialmente discípulo de Husserl e,

posteriormente, um dos grandes pensadores autônomos da fenomenologia – considera

que aparecer no mundo

[...] significa sempre aparecer para outros e este aparecer varia de acordo

com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras

palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua fenomenalidade,

uma espécie de disfarce que pode de fato, embora não necessariamente,

ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda

aparência, independente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade

de espectadores. (HIDEGGER, 1966 apud CRITELLI, 1996, p. 40).

Hannah Arendt (1906-1975), por sua vez, assevera que “O atributo essencial

do mundo é o fato dele ser percebido por todos nós.” (ARENDT, 1981 apud

CRITELLI, 1996, p. 42).

Tais considerações permitem a Critelli afirmar que

20

O que aparece não apenas mostra, mas oculta e/ou desfigura. Essa

possibilidade de ocultar e desfigurar, que o ente que se mostra tem, denota

seu aspecto fenomênico. [...] o mostrar-se é fenomênico porque ao mesmo

tempo que algo se mostra está, também, ocultando algo de si mesmo. Esta

ambigüidade do manifestar não indica que algo do ente não foi visto, mas

que o ocultamento pertence ao mostrar-se da própria coisa. (CRITELLI,

1996, p. 40-41).

Complementarmente, a fenomenologia certifica, após os desenvolvimentos

iniciais de Husserl e Heidegger, chegando a Merleau-Ponty, que a consciência é

intencional e o que existe no mundo passa a existir para o sujeito, inclusive

sentimentos e emoções, a partir da percepção (e também sensação – ainda que esta

seja igualmente considerada percepção) da existência destas coisas. Nesse sentido,

perceber algo é também conceber algo. Além disso, a fenomenologia admite que

diferentes pontos de vista sejam produtos de diferentes percepções do mundo e que

essas percepções são construções realizadas a partir do que é apresentado a cada

indivíduo durante toda a sua vida.

Não obstante a inevitável simplificação da complexa teoria fenomenológica, as

três premissas apresentadas inicialmente, ainda que se desdobrem em conceitos e

métodos, consolidam, minimamente, algo capaz de nos auxiliar na compreensão do

como e do por que o pensar fenomenológico se colocou, a partir de Husserl, ao final

do século XIX e início do século XX, como um contraponto ao modo científico de se

entender o mundo e, além disso, as razões pelas quais, a partir dos anos 1960, a

geografia humanista se apropriou de alguns dos desenvolvimentos propostos pela

fenomenologia.

Note-se que, a partir daí, o que foi anteriormente dito sobre a cultura ganha

outra dimensão. Senão vejamos: o indivíduo se insere no mundo, aparece para os

outros indivíduos na manifestação do seu ser, assim como todas as coisas que existem

– que, decerto, envolvem todos os fatos de cultura. Essas coisas são por ele

apropriadas ou não – mas existem no mundo, independentemente de sua apreensão. A

compreensão desse mundo, para cada indivíduo, resulta das operações que este

realiza por meio da percepção. Por isso, a cultura não “condiciona” os indivíduos a

21

um eterno reproduzir, mas possibilita atos contínuos de criação e recriação,

reforçando o que fora dito por Claval (2007).

Essa compreensão alargada do mundo e da realidade, proposta pela

fenomenologia, parte de uma insatisfação com o modo de se fazer ciência ou de se

buscar conhecimento, tal como se propunha, quase exclusivamente, até meados do

século XIX. Em parte, esse descontentamento se deu pelo modo como os estudos da

realidade ou do mundo se desenvolviam e, em parte, pelas antinomias que aí haviam

se implantado, tais como sujeito-objeto, homem-mundo. Nesse contexto, a

fenomenologia apareceu como uma forma de pensamento que se opunha ao modo

“científico” de entender o mundo, significando uma mudança expressiva na busca do

conhecimento.

Sobre a perspectiva científica a que a fenomenologia é refratária é suficiente

dizer que, sobretudo a partir de Descartes, o conceito de sujeito e de objeto, como

entes separados, se reafirmou e o ser dos entes continuou como algo misterioso.

Descartes “empodera” o homem no sentido de afirmar que o mundo existe a partir da

consciência que o homem tem deste mundo – de forma extensiva à ideia de Deus, de

tempo etc.

Neste sentido, como salienta Critelli,

Aquilo que se quer saber de algo depende, portanto e sempre, de uma prévia

noção do que é e como é, ou seja, do ser daquilo que se está buscando

compreender e que se tem por questão mais imediata. O que está sendo

buscado à frente, e de que se tem um saber prévio que vem de trás, é que vai

definir o próprio buscado. Assim, se pela orientação epistemológica da

metafísica iremos atrás da substância, pela fenomenologia iremos atrás

desse movimento de vir-a-ser do existir. Esse é um marco diferencial básico

entre metafísica e fenomenologia. (CRITELLI, 1996, p. 30).

Diversos autores entendem que, graças a essas formulações, a ciência estava

em crise neste período, mas não no que concerne à sua validade, rigor e fecundidade,

mas com relação à significação global da prática científica (Cf.: CAPALBO, 1987;

CRITELLI 1996; MOREIRA, 2002; DARTIGUES, 2003, MARCONDES, 2005).

De forma geral, no domínio das ciências, particularmente na matemática, na

física e na psicologia, houve um afastamento cada vez maior dos dados da intuição e

22

procurou-se construir sistemas formais que permitiriam conhecer empiricamente e

eliminar todo o subjetivismo.

Não se trata de renunciar à objetividade da ciência, mas de restabelecer o

mundo da ciência ao mundo da vida.

Dartigues (2003) afirma que Husserl critica a objetividade quando a construção

ideal é tomada tal como o mundo verdadeiro, realmente existente. E evidencia que,

neste contexto,

[...] cumpre atacar menos a ciência que a filosofia que lhe é subjacente.

Pois, desde Platão, é uma tendência geral de a filosofia tradicional buscar

sob as aparências, sob o mundo da experiência cotidiana, mundo da opinião

ou doxa, uma realidade oculta acessível apenas ao pensamento. De onde a

tentação de considerar a verdade científica, no sentido rigoroso da física

matemática, como a realidade substancial em face da qual os modos de

apreensão subjetivos parecem ilusórios. (DARTIGUES, 2003, p. 77).

Embora a fenomenologia remonte a Kant e a Hegel, os seus significados

contemporâneos são atribuídos à filosofia de Edmund Husserl (1859-1939).

Considerado unanimemente como o precursor moderno deste modo de entender o

mundo, ele fundou e aprimorou boa parte dos conceitos relativos à fenomenologia

durante toda a sua vida.11 Em suas últimas obras, Husserl introduziu a ideia de

Lebenswelt – mundo da vida ou mundo vivido –, “tentando dar conta da realidade

social e da relação entre a subjetividade e o mundo, inclusive as ‘outras consciências’

e a questão da intersubjetividade” (MARCONDES, 2005, p. 258), buscando a

superação da dicotomia existente entre o racionalismo e o empirismo, o sujeito e o

objeto, a consciência e o mundo, tendo como lema fundamental: “retornar às coisas

mesmas”. Esse último é proposto como uma terceira via além do discurso

especulativo da metafísica e do raciocínio lógico das ciências positivas

(DARTIGUES, 2003). É nesse sentido que a fenomenologia volta-se ao mundo da

11 Segundo Moreira (2002) Husserl, apesar de ter publicado poucos livros (oito ou nove, no total) deixou

milhares de notas de aulas e manuscritos. Alguns deles foram publicados post mortem.

23

vida, ao existir no mundo – e de onde derivarão, mais tarde, outras

“fenomenologias”.12

Desse modo, seria possível restabelecer a ligação da ciência com o mundo da

vida, isto é, com o mundo cotidiano, neste em que transitamos, em que agimos, em

que fazemos planos, em que sentimos.13

Segundo Husserl,

Essa mudança de apreciação não concerne ao caráter científico das ciências,

mas ao que as ciências, ao que a ciência tomada absolutamente significou e

pode significar para a existência humana. A maneira exclusiva pela qual a

concepção do mundo do homem moderno na segunda metade do século

XIX foi determinada pelas ciências positivas e falseada pela ‘prosperity’

que a elas se devia significava o abandono cheio de indiferença dos

problemas que são decisivos para um humanismo autêntico. As ciências dos

fatos puros e simples produzem homens que só vêem puros e simples fatos.

[...] Na angústia de nossa vida... essa ciência nada significa para nós. Ela

exclui por princípio justamente os problemas que são os mais pungentes

para os homens de nossa desventurada época, expostos sem defesa aos

transtornos que colocam em questão seu destino: os problemas do sentido

ou do não sentido de toda essa existência humana... O que tem a ciência a

dizer sobre a Razão e a Des-Razão, sobre nós homens enquanto sujeitos

dessa liberdade? (HUSSERL, 1949 apud DARTIGUES, 2003, p. 73).14

12 Jean-Paul-Sartre (1905-1980), “herdeiro da modernidade” tem um papel fundamental para a

fenomenologia, pois reelabora e insere questões relativas ao existencialismo. Sartre afirma que o homem se

define por sua autoconsciência e que o ideal desta é atingir a plena identidade consigo mesma. Afirma

ainda, que a existência humana precede a essência, o homem, portanto, não teria uma essência

predeterminada, mas ele se faz em sua existência e, por isso, só o que resta ao homem é assumir a sua

condição, a sua liberdade. “Nós somos o que fazemos com o que fazem de nós” é um dos lemas centrais do

pensamento de Sartre. Mais tarde, em sua obra há uma tentativa de conciliação do existencialismo com o

marxismo, uma vez que a questão da inserção do homem na realidade social e da alienação da consciência

são temas comuns a essas duas correntes. Sartre passa a se questionar sobre a possibilidade de um método

que combinasse o existencialismo e o marxismo e que permitisse uma análise complementar entre o

indivíduo e a sociedade (MARCONDES, 2005, p. 259-260, passim). Dartigues (2003) considera que, após

as primeiras obras de Husserl, a questão “o que é fenomenologia?” podia receber múltiplas respostas sem,

no entanto, se separar da inspiração inicial, que estaria ligada a um sentimento da crise cultural do final do

século XIX. Segundo este autor, a fenomenologia se tornou um “rio de múltiplos braços que se cruzam

sem se reunir e sem desembocar no mesmo estuário.” (Dartigues, 2003, p.5). 13 A ligação da ciência ao mundo da vida pode ser desnudada ao menos de duas maneiras na fenomenologia.

A primeira se refere à que todo tipo de experiência é anterior a toda formulação em conceitos e em juízos.

A segunda maneira é compreender que o próprio cientista está imerso neste mundo, não só trata deste

mundo, ele só tem acesso aos aparelhos e aos seus resultados através de uma apreensão perceptiva que é a

do comum dos homens. Com efeito, a ciência não começa quando ela se sedimenta em seus resultados,

mas nas operações que a constituem, logo, com a atividade intelectual do cientista. 14 Não se pode, no entanto, desconsiderar que a principal motivação a que Husserl se ligava era auxiliar as

ciências eidéticas a aperfeiçoar sua operacionalização e determinar as condições a priori de possibilidade

da filosofia como ciência rigorosa (Cf.: CAPALBO, 1987; MOREIRA, 2002; DARTIGUES, 2003). Se,

segundo Chauí (2005), o mérito inicial de Husserl foi reunir os dois principais significados da palavra

fenômeno, tais como aparecem em Kant e em Hegel, o que o conduziu ao questionamento do modo

científico de entender o mundo foi o dilema entre o inatismo e o empirismo, a partir das discussões sobre

24

Para Dartigues (2003, p. 18), “[...] as essências não têm existência alguma fora

do ato de consciência que as visa e do modo sob o qual ela os apreende na intuição.”

Por isso, a fenomenologia não é contemplação das “essências eternas”. É, sim, a

análise do dinamismo do espírito que dá sentido aos objetos do mundo e, também por

isso, o princípio da intencionalidade pode ser sintetizado como a consciência que é

sempre consciência de alguma coisa.

Para Critelli, considerando-se a intencionalidade da consciência,

Tudo o que se mostra está sob a contingência efetiva do encobrimento. A

realização de algo não depende apenas da presença da coisa (seja

sentimento, pessoa, idéia, fantasia, elemento da natureza, artefato...), mas do

olhar, do lugar iluminado e iluminante em que a coisa ganha a possibilidade

de mostrar-se. Este olhar por sua própria condição não é ininterrupto, ou

seja, um olhar que nunca pára de ver. Há um acontecimento em que a coisa

e o olhar se entretecem e, então, manifestam-se mutuamente. O olhar torna-

se olhar desde a possibilidade de manifestação da coisa, assim como a coisa

torna-se presente pela possibilidade do olhar que a vê. O olhar só é olhar

quando vê alguma coisa e a coisa só é uma coisa quando é vista por um

olhar. Ambos ganham existência em seu mútuo acontecer. Cada um se

manifesta segundo o que e como é pela manifestação conjunta do outro.

(CRITELLI, 1996, p. 105-106, grifos originais).

De modo complementar, o reconhecimento da relatividade da perspectiva,

empreendida pela fenomenologia é, simultaneamente, o reconhecimento da

relatividade da verdade. Assim,

A fenomenologia fala do limite de uma perspectiva epistêmica sem fazer sua

equivalência à noção tradicional de erro, nem formular uma condenação. A

interpretação fenomenológica não expressa senão o que, sob seu ponto de

os fundamentos da lógica e da matemática. Pode-se afirmar que, de Kant, Husserl conservou em sua

fenomenologia a afirmação de que não conhecemos uma realidade em si, mas a realidade tal como aparece

ao ser estruturada e organizada, como condição de possibilidade, pela razão. De Hegel, Husserl conservou

a afirmação de que uma fenomenologia é a descrição do que aparece à consciência e a descrição do

aparecer da consciência para si mesma. É a partir de Husserl e de seus seguidores, que o real passa a ser

interpretado como fenômeno. E, diferentemente da metafísica, o fenômeno está em si mesmo, não por

detrás de uma cortina mística, envolta em mistérios que só aos iniciados seria permitido penetrar. De modo

complementar, importa considerar que a exploração do campo da consciência e dos seus modos de relação

com o objeto – inspirado na psicologia de Franz Brentano –, delimita o que se tornará, mais tarde, o campo

de análise da fenomenologia de Husserl. As principais contribuições de Franz Brentano para a

fenomenologia consistem, em dois aspectos: distinguir os fatos psíquicos, que comportam uma

intencionalidade – a visada de um objeto –, dos fatos físicos e, em seguida, a afirmação de que esses

fenômenos podem ser percebidos e que o modo de percepção original que deles tem-se constitui o seu

conhecimento fundamental. A propósito das considerações de Brentano, veja-se: DARTIGUES, 2003.

25

vista, não é mais que o óbvio, no caso: um ponto de vista é apenas um ponto

de vista; uma perspectiva relativa é apenas uma perspectiva entre outras. E é

como uma perspectiva relativa e provisória que a fenomenologia mesma se

autocompreende.

No entanto, o que pode parecer óbvio para o pensar fenomenológico

certamente não o é para a concepção geral, sobretudo se rememorarmos a

problemática histórica da estruturação e desenvolvimento do pensamento

ocidental. Parece que, ao longo e depois de dois mil e quatrocentos anos em

que a questão do conhecimento se instaurou para nossa civilização,

permanecemos ainda na discussão a respeito dos critérios pelos quais uma

perspectiva pode ser considerada verdadeira. Mantemo-nos, assim, na

incessante retomada do original embate entre a verdade e a opinião, mais

peculiarmente expresso desde a modernidade, por exemplo, pela distinção

entre saber científico e senso comum. (CRITELLI, 1996, p. 12)

A fenomenologia configura-se, dessa forma, como um entendimento das

limitações de um certo modo de pensar e, portanto, de existir, cuja necessidade

sentida e à qual responde é a de uma superação deste mesmo limite. Logo, enquanto

caminho epistemológico, a fenomenologia não é nem mesmo uma oposição à

metafísica; ela apenas é a busca de tornar acessível ao pensar aquilo que, por meio da

metafísica, se manteve em ocultamento.

Por isso, do ponto de vista fenomenológico,

[...] a relatividade da perspectiva do saber e da verdade do ser abre-se como

ponto inseguro, mas próprio do existir (ser). Contrariamente, a tentativa

empreendida para a superação desta insegurança é o que instaura o modo do

pensar (metafísico) ocidental. (CRITELLI, 1996, p. 13).

A fenomenologia aceita a relatividade da verdade e afirma que, a partir de sua

aceitação, o conhecimento é possível.15

Com efeito,

Para a metafísica, o conhecimento é resultado de uma superação da

insegurança do existir. Para a fenomenologia, é exatamente a aceitação

dessa insegurança que permite o conhecimento. [...] Desta maneira, a

relatividade não é vista pela fenomenologia como um problema a ser

superado, mas como uma condição que os entes têm de se manifestarem: no

horizonte do tempo e não do intelecto, e em seu incessante movimento de

mostrar-se e ocultar-se. A relatividade diz respeito à provisoriedade das

15 Dartigues (2003) considera que a presença do objeto “em si” que se mostra à consciência é o ponto de

surgimento da verdade. Essa experiência vivida coloca o objeto e a consciência na presença um do outro

sem que se possa mais recuar a essa presença. Desse modo, a consciência é sempre “para fora” de si

mesma, em direção ao mundo. Ela está, em virtude de sua intencionalidade, junto às coisas do mundo.

26

condições em que tudo o que é vem a ser e permanece sendo. [...] Viver

como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (CRITELLI, 1996, p. 15-

16, grifos originais).

Heidegger realiza um desdobramento do pensar fenomenológico e considera

que a questão do sentido do ser é uma questão crucial não só da fenomenologia, mas

de toda a constituição das ciências. Esse sentido se estabelece como um dos

deslocamentos em relação à fenomenologia de Husserl, sendo essa uma das razões

pelas quais se pode qualificar de existencial a fenomenologia empreendida por ele,

mas talvez, mais que isso, de ontológica, pois compreende uma profunda e verdadeira

liberdade humana de existir (Cf.: CRITELLI, 1996).

Segundo Marcondes (2005), para Heidegger, o homem é o único ente que

busca o ser. Para ele, o “[...] Dasein [o ser-aí] deve substituir ‘sujeito’, ou ‘eu’,

devido ao sentido que estes termos adquiriram na filosofia da consciência e da

subjetividade do período moderno.” (MARCONDES, 2005, p. 267). De forma

complementar, Heidegger considera que o tempo tem um lugar central na sua análise,

pois a essência do ser-aí ou ser-no-mundo reside em sua existência temporal no

mundo.16

Ainda como nota Marcondes (2005), em seus textos dos anos 1950, Heidegger

analisa a sociedade industrial contemporânea, em que predominam a ciência e a

técnica, questionando os valores e os pressupostos da modernidade, como o progresso

visto em um sentido técnico e científico. Segundo essa perspectiva, a “ciência e sua

aplicação técnica seriam incapazes de pensar o ser, de pensá-lo fora da problemática

do conhecimento e da consideração instrumental e operacional da realidade típicos do

mundo técnico.” (MARCONDES, 2005, p. 267). Esses desenvolvimentos derivariam

da questão do “esquecimento do ser” na cultura ocidental. E, como dito

anteriormente, todo o conhecimento técnico e científico se erige por meio das

questões ontológicas mais fundamentais, que se desdobram da compreensão do ser,

como as concepções de tempo e espaço.

16 Posteriormente, Heidegger alcançará o conceito de “cuidado” (Sorge), que se refere ao caráter de existência

no qual se articulam as três dimensões do ser-aí ou ser-no-mundo (Dasein): sentimento de situar-se,

compreensão e decaimento, captados em sua unidade. Veja-se, a esse respeito, DARTIGUES (2003).

27

Para Heidegger, toda a confusão do modo metafísico de entender o mundo se

funda sobre a ideia de verdade identificada com a visão “correta” das coisas, como se

existisse um só modo correto de ver e, esse, fosse o único verdadeiro. Diante disso,

pode-se concluir, como faz Critelli (1996), adotando a compreensão alcançada por

Heidegger, que a possibilidade do conhecimento, na fenomenologia, se instaura sobre

a angústia. Esta angústia derivaria da consciência de que não existe certeza absoluta e

de que o tempo é o da duração da pessoa e, esta última, resulta das escolhas

realizadas durante o seu tempo vivido em um mundo que lhe é inospitaleiro.17

A isso Dartigues (2003, p. 134) acrescenta que a “[...] angústia é o recurso pelo

qual a existência pode se compreender a si própria, o revelador de seu sentido e, com

isso, também o do sentido do Ser.”

Desse modo, como observa Marcondes (2005), Heidegger rompe com a

tradição moderna da filosofia e instaura um pensar fenomenológico mais livre –

descomprometido com a rigorosidade científica –, que concebe o homem como dono

de seu destino. A fenomenologia heideggeriana considera que o “problema do ser”

seria mais adequadamente colocado como o “problema de ser”, ou seja, existencial, o

que permitiria encontrar o ser na trama existencial do ser-no-mundo, na sua trama de

significações que se tece no jogo do mundo (CRITELLI, 1996).

Essa compreensão tem o sentido do livre arbítrio motivado pela angústia do

saber e do existir no mundo. Para Heidegger, a ontológica inospitabilidade do mundo

e a ontológica liberdade humana são elementos coestruturais do existir e são regentes

de toda forma do homem conhecer o mundo e, portanto, da questão do conhecimento

e do método. Os homens não se dirigem direta e simplesmente às coisas em sua mera

presença, mas mediados por uma trama de significados em que as coisas vão podendo

aparecer (CRITELLI, 1996).

De maneira complementar, quando as coisas mudam é porque mudaram nossas

ideias a seu respeito, a serventia que tinham para nós, nosso interesse por elas, bem

como nossos modos de nos referirmos a nós mesmos e uns aos outros.

17A noção de “dwelling” desenvolvida por Heidegger se refere à “sentir-se em casa”, viver harmoniosamente,

tanto social, ecológica, quanto espiritualmente. (Veja-se: MELLO, 2005)

28

É nesse sentido que Dartigues (2003) considera que esse processo na

fenomenologia se refere à percepção. Segundo este autor,

[...] essa experiência é a da percepção sensível, percepção do mundo no qual

vivemos e dos objetos individuais que ele contém, sobre o ‘fundamento’ da

qual se constituem conceitos e juízos. As próprias categorias lógicas e

matemáticas como relação, número, pluralidade, todo e parte, etc. derivam

da idéia de ‘alguma coisa em geral’, que remete por sua vez à percepção da

coisa singular despojada de suas determinações singulares e específicas.

(DARTIGUES, 2003, p. 79).

Deste modo, a fenomenologia não trata da questão cognitiva senão sob o

prisma existencial, ou melhor, subordina a possibilidade do conhecimento às

possibilidades existenciais, posto que o pensar se estabelece sobre o ser,

evidenciando-o (Cf.: CRITELLI, 1996).

No que se refere à percepção, Maurice Merleau-Ponty foi quem mais

acrescentou à atual fenomenologia. Ele desenvolveu uma análise do sujeito no

mundo, elegendo o Lebenswelt como o ponto de partida de sua filosofia,

reconhecendo-o como a contribuição mais importante da filosofia husserliana,

considerando o sujeito como corpo e a consciência como encarnada nesse corpo. A

este “corpo-sujeito” irão unir-se, em um movimento dinâmico, muitos outros

elementos, tais como a ação, a afeição e a percepção de um mundo anterior a

qualquer tipo de racionalização. Com esta concepção do corpo-sujeito, Merleau-

Ponty recusa e, além disso, ultrapassa o rígido dualismo cartesiano, da res cogitans e

res extensa, que ele julgava ainda presente em Husserl (MARCONDES, 2005).18

O mundo da percepção se desvela como a fonte de todas as significações, de

todos os sentidos e base para todos os pensamentos. O sentido, neste caso, surgiria de

nossa relação com o mundo e com os outros. “Desse ponto de vista, a consciência é

vista como engajada (ou comprometida) no mundo, o que pode ser comprovado pelo

estudo da percepção e do comportamento, além do espaço vivido.” (AMORIM

FILHO, 1999a, p. 75, grifos originais).

18 Descartes propôs que o homem era separado em espírito (res cogitans) e corpo (res extensa). O primeiro

seria o domínio do pensamento, da mente e o segundo seria a extensão do mundo, da materialidade.

(MARCONDES, 2005)

29

“Retornar às coisas mesmas”, lema da fenomenologia de Husserl, seria, para

Merleau-Ponty, a desaprovação da ciência, mas também um voltar-se ao mundo

anterior ao entendimento, à reflexão, voltar-se ao mundo vivido sobre o qual o

universo da ciência é construído. “Retornar às coisas mesmas” difere, neste caso, do

voltar-se ao objeto da ciência, e do voltar-se para o interior da consciência, a um

subjetivismo.

Desse modo,

[...] Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de

uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos

da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído

sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor,

apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente

despertar essa experiência do mundo da qual é a expressão segunda. A

ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo

percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma

explicação dele. [...] Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo

anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação

ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente,

como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o

que é uma floresta, um prado ou um riacho. (MERLEAU-PONTY, 1999,

Prefácio, p. 3-4).

Segundo Moreira (2004), a percepção, para Merleau-Ponty, é o campo de

revelação do mundo – campo de experiência – não é um ato psíquico. A percepção é

o campo onde se fundem sujeito e objeto. Para Merleau-Ponty, um mal-entendido de

Husserl foi pensar que para ver o mundo, e captá-lo como paradoxo, é preciso romper

nossa familiaridade com ele, reduzindo-o, colocando-o entre parênteses. Esta

familiaridade nunca poderá ser totalmente rompida e é por isso que se deve sempre

partir do princípio de que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade da

redução completa” (Merleau-Ponty, 1999, Prefácio, p. 10).19 Ou seja, a prática da

19 A redução fenomenológica se refere ao deslocamento da consciência natural, imediata, colocando-a entre

parênteses. “Esta redução se faz em níveis diversos, na medida em que aquilo que é colocado entre

parênteses, em suspensão, pela Epoche, é de maneira diversa. Temos assim a redução eidética que nos

permite distinguir fatos e essências. Eu coloco entre parênteses o fato, deixando surgir a ideia, o sentido. O

eidos do fato, a sua essência, a sua significação, se revela em situação. Para compreender a facticidade a

consciência necessita dos conceitos, das essências, que devem, entretanto, trazer-nos todas as suas relações

com o vivido. Por isto não se pode pensar que pela redução eidética eu reduzo o mundo a uma idéia. Ao

contrário, ela deve deixar transparecer o mundo tal qual ele é. Pela redução transcendental ou

fenomenológica o mundo é visto como correlato da consciência. Não se deve compreender transcendental

30

redução fenomenológica será sempre uma tentativa, nunca inteiramente realizada,

exatamente pela mundaneidade intrínseca ao homem.

Merleau-Ponty (1999, Prefácio, p. 18) considera que a “aquisição mais

importante da fenomenologia foi, sem dúvida, ter unido o extremo subjetivismo e o

extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade.” A noção de

realidade tal como foi retomada por este pensador – associada à relatividade da

percepção individual – se tornou, inegavelmente, uma das principais contribuições da

fenomenologia para o pensamento contemporâneo.

Disto decorre a observação de que o mundo fenomenológico,

[...] é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de

minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas

do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da

subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada

de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da

experiência do outro na minha. [...] O mundo fenomenológico não é a

explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o

reflexo de uma verdade prévia, mas, assim com a arte, é a realização de uma

verdade. (MERLEAU-PONTY, 1999, Prefácio, p. 18-19).

Com efeito, esta perspectiva possibilita que se penetre no contexto do mundo

vivido, sem eliminar a familiaridade com ele construída a partir das experiências e da

percepção.

É importante ressaltar ainda que muitas coisas só se tornam passíveis de

conhecimento por meio das ideias e da imaginação (por exemplo, o sistema de

circulação sanguínea, do indivíduo, em funcionamento). Por isso, como afirma

Merleau-Ponty (2006, p. 331), “Existem entidades que sempre permanecerão para

mim, sob alguns de seus aspectos, significados puros, e nunca se oferecerão mais do

que a uma percepção lacunar.” Pertencerão desse modo, ao “teatro do imaginário”,

no sentido kantiano, que faz com que o mundo seja imanente ao sujeito. Para Husserl, transcendental

significa a possibilidade de entrever o mundo na sua transparência, significa conhecer o sujeito como

situado ao nível da intencionalidade noética e de seus correlatos noemáticos. Ela se inicia pela colocação

entre parênteses na crença de um mundo em si, de um mundo pré-existente ao meu nascimento e sobre-

vivente após a minha morte. Esta redução deve incluir também os enunciados científicos que pressupõem a

certeza do mundo. Pela redução fenomenológica nós iremos considerar o mundo como correlato de nossa

consciência, e tentar explicitar as estruturas dessa correlação noético-noemática.” (CAPALBO, 1987, p.

16-17). De modo sintético, Dartigues (2003, p. 20) afirma que a redução fenomenológica é “[...] coloração

[sic] entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, isto é, como existindo em si,

independentemente de todo o ato de consciência.”

31

para utilizar a feliz expressão de Merleau-Ponty. Assim, como salienta Dartigues

(2003), a imaginação dá à consciência o poder de negar e de conhecer o mundo .

Diante dos desenvolvimentos expostos acima, torna-se comezinho

compreender porque a fenomenologia foi adotada como uma das principais bases

filosóficas e epistemológicas da geografia humanista.

Sua influência pode ser observada na compreensão do espaço como “[...] um

conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um

significado. É um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são

percebidas e valorizadas.” (SILVEIRA; UEDA, 1995, p. 50-51).

Para a fenomenologia, o espaço é um ente único e, com esse enfoque,

singularidade e pluralidade são dimensões correlativas que a ele pertencem, porque

este carrega em si, a um só tempo, o “exatamente igual” a todos os outros espaços,

pois pertencente a um só mundo, e o “totalmente diferente”, pois resulta de histórias

diferentes e peculiares acumuladas ao longo do tempo.

Também na abordagem, observa-se que a sua influência consiste em descrever

os fenômenos – reais e imaginários –, valorizando a observação destituída de

mediações, isto é, aquilo que se dá imediatamente, o objeto revelado em si. A partir

desse conceito de descrição dos fenômenos, foi possível a criação de abordagens que

possibilitam que se penetre no contexto do mundo vivido, a partir do qual a

experiência é construída e percebida como, por exemplo, os mapeamentos mentais.20

Além disso, uma das principais contribuições da fenomenologia, sobretudo a

merleaupontyana – a percepção do mundo e do ser no mundo –, à geografia

humanista se refere à relatividade das perspectivas derivadas da percepção.21 É a

20 Neste sentido, não se pode desconsiderar a contribuição de escolas ligadas à psicologia e ao

comportamento humano, tais como a behaviorista e a piagetiana. Para Bailly (2001, p. 174), “Mobilizada

por enriquecer as possibilidades de explicação geográfica, a problemática comportamental procurou evitar

a sobredeterminação das variáveis econômicas, para dar importância à decisão humana em toda a sua

subjetividade. São agregadas à análise geográfica as dimensões sociais e psicológicas.” (tradução nossa;

grifos originais). 21 Não podemos desconsiderar como Niel (2009), que desvela uma interessante crítica no tocante à

fenomenologia contemporânea, que esta está passando por uma saturação da informação, ou seja, os

marcos bibliográficos são imensos, mas sua repetição à exaustão e os tímidos desenvolvimentos

posteriores aos textos considerados clássicos, ou fontes, são algumas das razões pelas quais a

fenomenologia tem sofrido divisões e subdivisões (fenomenologia – husserliana, fenomenologia –

hermeneuta, fenomenologia – levinasiana etc.) e se estendendo ao nível das microespecializações

32

partir da percepção que se constroem imagens mentais associadas também ao

conhecimento e à bagagem cultural (experiências, valores, informações,

conhecimento formal, entre outros), que moldam o olhar dos indivíduos ao longo de

sua existência (OLIVEIRA, 1999). Destaque-se que

Não posso identificar pura e simplesmente o que percebo e a própria coisa.

A cor vermelha do objeto que eu olho é e sempre permanecerá conhecida

apenas por mim mesmo. Não tenho nenhum meio de saber se a impressão

colorida que ele dá a outros é idêntica à minha. Nossas confrontações

intersubjetivas só se referem à estrutura inteligível do mundo percebido:

posso ter certeza de que um outro espectador emprega a mesma palavra que

eu para designar a cor desse objeto, e a mesma palavra, por outro lado, para

qualificar uma série de outros objetos que eu também chamo de objetos

vermelhos. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 326-327)

Note-se que, se os conceitos relativos ao espaço vivido e à percepção desse

espaço já são hoje bem aceitos também por “outras geografias”, a apropriação desses

e de outros conceitos significou para a abordagem humanista, como dito

anteriormente, uma “revolução epistemológica” (CORRÊA, 2000), que teve

rebatimentos em todas as categorias trabalhadas pela geografia – de espaço

geográfico a lugar, passando por região e paisagem.

Anne Buttimer (1982) acredita que a vertente humanista – não por acaso, e

principalmente com o aporte fenomenológico, mas também com subsídios da

(fenomenologia – husserliana-especialista – em – intersubjetividade, fenomenologia – husserliana –

especialista – em –temporalidade ou historicidade etc.) dentro das mais diferentes disciplinas, como é o

caso da geografia. Para esse autor, embora o apego aos textos não se restrinja, exclusivamente, à

fenomenologia, acaba por inibir a criatividade e o olhar verdadeiramente fenomenológico dos autores que

insistem em não ousar utilizando-se dos textos “canonizados”. Não que as interpretações dos textos

clássicos sejam dispensáveis ou estejam esgotadas, mas não são, de certo modo, apropriadas e aplicadas de

forma independente ou livre pelos pesquisadores. É como se houvessem limites imaginários por onde não

conseguimos passar. Interessante ressaltar também a diferença fundamental empreendida por Niel (2009)

entre pensar o pensamento de... e pensar a partir do pensamento de... . O primeiro se referiria a poder

pensar a partir das rupturas, das aberturas, a partir dos aportes positivos de um pensador, donde se

realizaria a eventual expansão e aprofundamento de certas problemáticas e, o segundo, se referiria a

interpretação e citação de um pensador e um mero comentário subseqüente. “Cuando el texto se torna algo

absoluto, es la cosa misma lo que se retira, y la no-responsividad de contestar a su llamado a su invitación,

se transforma en la no-responsabilidad de no de-escribir en nombre propio, del ampararse en la autoridad

del texto.” (Niel, 2009, p. 330). Para ele, uma coisa é render-se ante a evidência de reconhecer nexos

inevitáveis com respeito às tradições filosóficas, outra é ancorar-se nelas como se não houvessem outros

mares a serem navegados e transformá-los em nossa única referência. Para que os pensadores se tornem

verdadeiras referências não é necessário repeti-los ad eternum, é preciso alcançá-los e ir além deles.

Por outro lado, Niel encontra o valor do texto, colocando-o num lugar onde é possível exprimir as ideias e

tornar públicos novos olhares e pensamentos e onde o “fenomenologizar” encontra sua dimensão

intersubjetiva.

33

microgeografia comportamental e a semiologia – é dotada de uma tarefa

revolucionária também por ser uma opção em relação à ciência dita objetiva, mas

acrescenta que ainda que o espaço descrito somente por meio de suas formas

geométricas seja uma abordagem limitada ao entendimento da experiência humana,

as abordagens humanista e científica “[...] não são inevitavelmente opostas;

necessitamos encontrar seus papéis apropriados na exploração da experiência

humana.” (BUTTIMER, 1982, p. 190). Complementarmente, observa Mello (2005)

que o viés humanista da geografia é transgressor por excelência, pois adota uma

postura incomum no âmbito do saber acadêmico, quando valoriza o homem, seu

cotidiano e suas experiências.

Pode-se afirmar que as maiores contribuições empreendidas pela interseção da

geografia humanista com a fenomenologia, a partir da década de 1960, no mundo

anglo-saxão vieram dos trabalhos realizados, principalmente, por Yi-Fu Tuan, Anne

Buttimer, Edward Relph, Mercer e Powell, David Lowenthal, entre outros

(AMORIM FILHO, 1999a).22 De modo complementar, Marandola Júnior (2005), em

consonância com as contribuições de Holzer, sustenta que esses primeiros geógrafos,

essencialmente humanistas, adotaram a abordagem fenomenológica, mas de forma

implícita na argumentação, sem adotá-lo stricto sensu, sendo essa uma característica

comum a vários daqueles trabalhos, ou à maioria deles. Esta postura parece, no geral,

manter-se até hoje, mesmo com tentativas mais numerosas e explícitas de uso das

abordagens fenomenológicas.

No Brasil, vários grupos, de diferentes universidades, desenvolvem,

atualmente, estudos de geografia humanista e, na maior parte das vezes, com

interface na geografia cultural – como exemplo, tem-se o grupo da Universidade

Estadual do Rio de Janeiro, coordenado por Zeny Rosendahl e Roberto Lobato

Corrêa; o grupo da Universidade Federal do Paraná, em Londrina, coordenado por

Yoshiya Nagakawara; o de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista, coordenado

22 Destaca-se, entre essas, a produção teórica de Yi-Fu Tuan, que contribuiu, sobretudo, para a popularização

de alguns dos conceitos e categorias, de inspiração fenomenológica, por ele formulados, tais como os de

“topofilia” – definido como elo afetivo entre a pessoa e o lugar –, paisagem valorizada, lugar e espaço

simbólico, o que permite uma maior sistematização e clareza na análise do complexo processo da

experiência do homem com o ambiente.

34

por Lívia de Oliveira; e, de maneira especial, três núcleos muito dinâmicos:

Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, com Salete Kozel e Sylvio Fausto Gil;

da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, com Maria Geralda de Almeida; e o

da Universidade Estadual de Campinas, com Eduardo Marandola Júnior. Além disso,

vários outros grupos estão em formação, a exemplo o da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, com o professor Oswaldo Bueno Amorim Filho.

Desse modo, acredita-se, com Amorim Filho, que,

Por tudo isso, a presença de abordagens humanistas/culturais na Geografia

não se torna desejável e necessária apenas pela riqueza em pluralidade que

elas representam, mas, sobretudo, pela humanização e beleza que elas

trazem às atividades geográficas. (AMORIM FILHO, 2007a, p. 16).

No que se refere ao “ir além” das fronteiras entre as disciplinas e ao

enriquecimento da plural ciência geográfica como um todo, as abordagens

humanistas da geografia guardam em si uma contemporaneidade. Um caminho de

uma geografia “relevante” para a humanidade, prenha de significados e movimentos

que, pelas palavras de Anne Buttimer, podem “inspirar os praticantes da Geografia

física, econômica, cultural ou social, e deveria deixar de investir muita energia na

afirmação do seu direito de ser um ramo especial do campo do conhecimento.”

(BUTTIMER, 1990 apud MELLO, 2005, p. 39).

1.3 As percepções das imagens urbanas

No contexto do desenvolvimento da geografia humanista-cultural, sob

influência da fenomenologia, os estudos de percepção urbana passaram a abarcar uma

variada gama de temas e, embora as categorias “paisagem” e “lugar” tenham sido

privilegiadas em boa parte das análises – talvez por possibilitarem uma ligação mais

direta e mais facilmente identificável com os significados do espaço vivido e do

cotidiano –, as pesquisas que se voltam para a imagem urbana também têm merecido

considerável atenção por parte dos geógrafos.

35

Ao se considerar que as possibilidades de interpretação da expressão “imagem

urbana” são variadas e que estas são decorrentes de olhares ligados a diferentes

orientações teórico-metodológicas, pode-se argumentar que a dificuldade em

delimitar o seu conceito, principalmente na geografia, se dá pelo fato de que há,

ainda, uma dificuldade em reconhecer as diferenças e distinções em relação ao

conceito clássico de paisagem.23 Acredita-se, de modo complementar a essa ideia,

que os estudos relativos à imagem urbana derivem, em grande parte, de estudos da

paisagem urbana, sobretudo aqueles realizados pelos arquitetos e urbanistas, mas

também por semiologistas, comunicadores e cientistas sociais.

Deste modo, pode-se afirmar que a imagem urbana apresenta diferentes

dimensões que foram sendo acrescentadas ao longo dos desenvolvimentos da

disciplina geográfica e de acordo com as matrizes epistemológicas e informações

metodológicas subjacentes e, por isso, é também um conceito considerado plural.

O conceito de imagem urbana remete a, pelo menos, duas linhas, que são

também complementares: a imagem mental, que parte da percepção, das

representações e da cognição, próprias dos seres humanos, e a imagem que compõe o

imaginário coletivo, orientada, muitas vezes, pelas mídias e pelas decisões políticas e

econômicas tomadas em instâncias que, embora os considere, vão além dos

indivíduos. Neste sentido, ainda que sua análise seja mais voltada para a geografia

comportamental, Kohlsdorf (1996) salienta que existem diversas formas de apreensão

da realidade, dentre elas, as sensações, as percepções, as intuições, a formação da

imagem mental e a formação da noção de espaço.

23 O conceito clássico de paisagem se refere a um espaço de terreno que se alcança com um só lance de vista.

Esse conceito deriva fortemente das interpretações da geografia alemã do século XVIII e XIX. Contudo,

tal definição não se estabelece unanimemente. Por exemplo, o francês Eric Dardel, já na década de 1940,

afirmava que a paisagem sempre pressupunha a presença humana, mesmo em forma de ausência. Para ele,

a paisagem era a “[...] inserção do homem no mundo [...] a manifestação de seu ser para com os outros,

base de seu ser social.” (Dardel, 1990, p.41). A propósito do que fora dito, para Holzer (1999), o conceito

clássico de paisagem se referia a uma forma europeia de apreciação do mundo, por meio do qual os

europeus se representariam a si mesmos e aos outros. Freitas (2007), por sua vez, observa que o conceito

de paisagem foi “resgatado” pelo viés humanista da geografia e ganhou novo fôlego no sentido de

aprofundar a “geografia das paisagens”, ao menos em três direções: na reflexão conceitual explícita, na

reflexão epistemológica e na reflexão metodológica. Essa autora acrescenta que a importância da inclusão

dos estudos de paisagem sob a perspectiva humanista se estabelece por inaugurar o emprego desta

categoria de modo conceitualmente refletido na geografia.

36

Os estudos sobre a percepção urbana se iniciaram, segundo Gould e White

(1992) citados por Freitas (2007), a partir do interesse em analisar como as pessoas

percebiam as áreas onde viviam e como se orientavam na cidade. No entanto, as

discussões relativas à percepção da imagem da cidade só parecem ter sido inseridas

na geografia, por meio das contribuições do arquiteto e urbanista Kevin Lynch, na

década de 1960.

Freitas (2007) afirma que os estudos de percepção urbana podiam ser

agrupados em três tipos, estreitamente relacionados com a escala considerada:

[...] ao nível da proximidade visível, os estudos valorizavam os detalhes

imediatos percebidos, especialmente através de deslocamentos selecionados;

ao nível intermediário, os estudos abordavam a cidade ou partes da mesma

como uma estrutura de espaços já explorados e que auxiliavam na

orientação individual, através da construção de imagens mentais; e ao nível

regional ou nacional, os estudos lidavam com as imagens coletivas

associadas a variados grupos sócio-espaciais, muitas vezes geradas por

outras informações não provenientes da experiência vivida, dando origem às

imagens estereotipadas. (FREITAS, 2007, p.128).

As imagens, de forma geral, têm o poder de colocar em relação toda uma

sociedade, pois seus elementos são captados, ainda que de forma diferenciada, por

todos ou pela maioria, possibilitando, dessa maneira, a leitura dos diversos processos

espaciais consolidados ou em formação nos diferentes lugares e territórios

compreendidos na cidade ou em outros espaços. As imagens, neste sentido, não são

somente um substrato, um meio, pois elas se expandem em significações e

incorporam os sentidos estabelecidos nas relações profundas da existência do homem

com o seu espaço vivido.

Obviamente, essa apreensão não se dá para todos do mesmo modo. De forma

específica, o processo de construção ou representação da imagem urbana é sempre

mediado por um processo de apropriação cultural desta imagem. Assim, a imagem

não é uma realidade em si mesma, separada do olhar de quem a contempla; ela é, em

grande parte, uma medida do espaço geográfico subjetivado.

Na construção das imagens urbanas, é possível que se faça referência,

primeiramente, a aspectos físicos de um determinado lugar, mas, constantemente,

37

observa-se a utilização das emoções e aspectos subliminares para esta construção,

pois, assim, torna-se mais fácil a sua assimilação. Disso conclui-se que, na apreciação

destas imagens urbanas, estão implícitos aspectos subjetivos de caráter cultural,

perceptivos e emocionais. Logo, a imagem urbana é também uma construção mental

que se elabora a partir do que se experiencia em relação ao espaço e essa percepção é

um aspecto fundamental tanto para o conhecimento do espaço quanto para a sua

valorização.

A opção pelo estudo das imagens urbanas, tendo como base epistemológica a

geografia humanista-cultural, admite que as cidades sejam dotadas de características

próprias e que, embora seja possível hierarquizá-las, ordená-las e sistematizá-las é

também necessário respeitar as suas singularidades, como espaços formados por

traços não tangíveis, representacionais, que são socialmente construídos e recriados

de forma dinâmica. Uma das formas de se estudar estas imagens é por meio da

apreensão das percepções que os indivíduos têm sobre a cidade em que se inserem,

pois se torna possível captar os sentimentos que eles nutrem, bem como os diferentes

pontos de vista percebidos.

Quando se afirma que o espaço construído não é somente uma produção

material acredita-se que, por si mesmo, o espaço, assim representado, não é suficiente

para explicar o contexto urbano, pois a produção da materialidade está inserida na

produção de sentidos e significados e vice-versa. Desta maneira, os espaços urbanos

guardam as referências culturais da sociedade que os originaram e, por isso, não

podem ser concebidos senão no quadro de signos de que se fazem portadores e do

sentido do qual eles são investidos (CLAVAL, 1999).

A cultura, sendo uma das estruturas sociais responsáveis pela produção da

imagem urbana, faz com que esta seja prolífera em elementos que são significados e

compartilhados entre os indivíduos, nos seus grupos e entre grupos, oferecendo,

assim, a possibilidade de leitura, a partir dessas referências intersubjetivas e, muitas

vezes, ensejando a busca por consenso acerca desta imagem.

De forma macro-analítica, a estrutura espacial das cidades é organizada por

intermédio das práticas que põem em movimento as funções urbanas – o comércio, os

38

serviços, as indústrias, o transporte, os entrepostos, os equipamentos voltados para o

turismo, entre outros.

Com diferentes usos, os espaços têm expressão nas tendências de cada época,

contribuindo, dessa forma, para a constituição de significados e de valores simbólicos

distintos. Acontece, contudo, que as atividades urbanas se modificam intensamente

ao longo do tempo e, com elas, as imagens que os agentes sociais criam,

propositadamente ou não, para as cidades. Consequentemente, os significados

potencialmente apreendidos pelos indivíduos em interface com suas memórias e sua

dimensão simbólica também são alterados. Essas atividades vão sendo substituídas ou

abandonadas, mediante a introdução e a incorporação de outros elementos e

características na vida cotidiana das cidades e contribuem para a criação de diferentes

espacialidades e territorialidades, que se refletem nas paisagens objetivas e

subjetivas. Mais que isso, as imagens que as representam são, concomitantemente,

produzidas, percebidas, significadas para, em seguida, serem resignificadas,

reapropriadas e reproduzidas pelos indivíduos e, sobretudo, pelos diferentes

agentes/sujeitos que nas cidades convivem ou que por ela têm algum interesse. Em

síntese, as funções urbanas vão se modificando ao longo dos anos e as imagens

urbanas a eles associadas também se modificam.

Neste sentido, Paulo César da Costa Gomes afirma que,

[...] as práticas espaciais só podem ser reconhecidas dentro do contexto na

qual elas se produzem e sua compreensão depende da capacidade que temos

em relacioná-las a um conjunto específico no qual estas práticas possuem

sentido e coerência. Este conjunto específico é uma totalidade singular, uma

síntese original. Neste caso, vista como sistema de valores ou como

conjunto de referências específico de um grupo social, a cultura é a principal

fonte para a compreensão de comportamentos e hábitos espaciais, da

organização espacial das coisas e das divisões simbólicas do espaço.

(GOMES, 1999, p. 120-121).

Por isso, cada contexto urbano se torna único e transmite, em certo sentido,

informações a respeito da sua constituição dinâmica. A partir daí, são criadas e

recriadas imagens ou representações das ações tradicionais e das atividades

contemporâneas, que são comunicadas por meio da sua reprodução e apropriadas

39

pelos indivíduos, grupos ou por toda uma sociedade, tendo em vista os usos e os

hábitos que, consequentemente, a informam e a caracterizam em cada época.

Cabe dizer, no que concerne à produção do espaço, que os grupos sociais mais

“proeminentes”, em determinado período de tempo, orientam, em grande medida, a

alocação de recursos em atendimento a seus próprios valores e interesses e acabam

por influenciar a produção da paisagem e, como consequência, das representações e

das imagens urbanas percebidas.24 Assim, o poder dos grupos culturais dominantes

[...] é mantido e reproduzido, até um ponto consideravelmente importante, por sua

capacidade de projetar e comunicar, por quaisquer meios disponíveis e através de

todos os outros níveis e divisões sociais, uma imagem do mundo consoante com

sua própria experiência e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da

realidade de cada um. (COSGROVE, 2004b, p. 111).

Assim sendo, as representações do mundo são influenciadas, em grande

medida, pelos interesses dos grupos que as forjam e, por isso, as lutas simbólicas

pela imposição de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas

para compreender os mecanismos pelos quais os grupos impõem, ou tentam impor, a

sua concepção do mundo e os seus valores.

Segundo Fernanda Sánchez, a luta simbólica se dá por intermédio de embates

políticos e sucede-se

[...] pela imposição, mediada sempre por conflito e tentativa de construção

de hegemonia, de uma leitura frente às muitas outras que estão em

permanente disputa neste campo. Esta luta simbólica para impor

determinada visão de mundo parece tratar-se de um dos processos políticos

relevantes na compreensão daqueles mobilizados para a reconstrução de

lugares, em relação dialética com os processos materiais de modernização

urbana. (SÁNCHEZ, 2003, p. 113).

Mais que isso, observa a autora que as “[...] lutas simbólicas não são mera

expressão das relações de poder, elas atuam sobre o campo das práticas, elas

reelaboram as práticas.” (SÁNCHEZ, 2003, p. 114). A partir dessa afirmação,

24 Para Sharon Zukin (2000a), “Certamente, a construção social de qualquer paisagem urbana combina poder

político e econômico com legitimação cultural; isso varia de cidade para cidade e através das sociedades

nacionais.” (ZUKIN, 2000a, p. 86). Neste sentido, a construção de representações ou imagens urbanas

percebidas se apresenta como uma estratégia para a criação de consensos em nome de uma suposta

identificação.

40

considera-se relevante ressaltar que a imagem vai exprimir, não só visualmente, mas

também estruturalmente, as mudanças ocorridas no espaço.

Na vida social, as lutas simbólicas acabam por construir imagens que são

“lidas”, “interpretadas” e “sintetizadas”, tornando-se representações do real, que,

como referências para a ação espacial, se dão a partir de uma dada posição social e se

orientam para determinados fins. Assim, “[...] a construção de imagens opera

necessariamente com sínteses, seletivas e parciais, que dão relevância a alguns

aspectos e omitem outros, respondendo ao universo especial de interesses dos sujeitos

que as constroem e aos objetivos que se pretende atingir.” (SÁNCHEZ, 2003, p.

117). Isto não significa dizer que são somente as imagens ou representações que

produzem os sentidos da cidade, mas que essas são criadas por meio das ideologias

inscritas nos discursos e nas práticas espaciais, pois, carregadas de intencionalidade,

visam a produção de efeitos na realidade social, tornando-se, portanto, referenciais

para as práticas espaciais de indivíduos ou grupos.25

É necessário, no entanto, que se faça uma distinção entre, pelo menos, dois

níveis de representação. Um deles, como já dito, opera de acordo com determinados

interesses e visa a produção e/ou a imposição de referenciais para a ação. Esses

referenciais, ao serem lidos por indivíduos e grupos, constituem outra forma de

representação que, a partir da percepção, das experiências e das motivações

individuais e coletivas, vão produzir uma imagem a respeito da realidade e se

apropriar, ou não, dela.

No primeiro nível, as representações são criadas por agentes ou grupos sociais

públicos ou privados (prefeituras, empresas, personalidades públicas, mobilizadores,

grupos proeminentes, famílias tradicionais etc.), que se orientam por determinados

interesses. Como exemplo da produção deste tipo de representação, pode-se citar os

planejamentos urbanos, projetos de requalificação/reabilitação/ revitalização de

lugares, territórios e paisagens e as práticas de intervenção urbanística, de construção

de monumentos, de reprodução de certas datas comemorativas, entre outros que

25 Para Kozel (2007, p. 120), “A representação não substitui o objeto, mas seleciona determinados detalhes do

objeto e se fazem a partir de uma concepção ou escala de valores que o emissor da representação tem do

objeto representado.”

41

simbolizam determinados ideais de sociedade e de cidade.26 Esse nível se articula

mais claramente a uma movimentação global, voltada ao mercado, com a pretensão

de um maior ordenamento, planejamento e controle do espaço. O habitar, neste

sentido, é afetado, assim como o uso dos espaços que traduzem a vida no lugar (ruas,

praças etc.) – visto que serão criados outros significados que vão se refletir ou

condicionar a sua leitura em um segundo nível. Pode-se pensar também que estas

representações vão se refletir na construção das esferas públicas e privadas no

cotidiano.

O segundo nível é aquele que se relaciona à cognição e à percepção e – no

presente trabalho, mais especificamente, à construção das imagens mentais –, seria

um tipo de representação não “visível”. Neste nível, as imagens/representações vão

compor o imaginário dos indivíduos e se referem, ainda mais que no primeiro nível,

às leituras e interpretações subjetivas das paisagens e da realidade. Pode-se citar as

representações que as pessoas fazem de seus espaços, das suas memórias de cidade

ou das intervenções citadas como exemplos do primeiro nível. Aqui, as

representações partem da percepção e cognição do indivíduo para tornarem-se

concretas, e assim compor o imaginário coletivo, sendo sempre descritas pelos seus

efeitos.27

26 Para Zukin (2000a), os agentes ou grupos sociais mais economicamente “privilegiados” gozam de um

“poder assimétrico” na construção do sentido visual da paisagem, pois projetam a partir de um repertório

potencial de imagens e desenvolvem uma sucessão de paisagens reais e simbólicas que definem cada

período histórico, incluindo a pós-modernidade. Segundo essa autora, a paisagem “dos poderosos” convive

com a paisagem “vernacular” – formada por meio das atividades diárias e os rituais sociais vinculados,

indiscutivelmente, ao “lugar”. De modo complementar, Ferrara (1993, p. 252) afirma que “A imagem da

cidade não é, portanto, espontânea, mas, ao contrário, coercitiva e autoritária. Essa imagem codificada

opera como uma norma, lei ou símbolo de como a cidade deve ser vista, atua como signo suporte da noção

urbana que quer transmitir; na realidade, trata-se, não só da imagem da cidade, mas de uma imagem

cultural que utiliza a primeira como um suporte.” 27 Alguns autores defendem que o imaginário não se reduz à cultura, mantendo certa liberdade, mas, nele,

“[...] entram partes de cultura, pois, embora o imaginário tenha autonomia, como se trata de algo

imponderável e só existe no coletivo, ou seja, imaginário coletivo, estabelece vínculos e é um cimento

social.” (MAFFESOLI, 2001 apud FERREIRA, 2006, p. 288). De forma complementar, vale considerar

que: “Cada um está vinculado aos outros por uma rede complexa de relações. Diferentes arquiteturas

sociais são possíveis. Elas são capazes, mas não com a mesma eficiência e o mesmo estilo, de assegurar o

funcionamento e a dinâmica do conjunto.” (CLAVAL, 2007, p. 109). Para Kohlsdorf (1996) “A

imaginação é entendida como uma atividade composta pela coordenação de imagens mentais, e que

aparece quando o indivíduo adquiriu certo desenvolvimento cognitivo que lhe permite simbolizar.”

42

Ainda que, necessariamente, a imagem mental se forme a partir da percepção,

uma primeira diferença entre o espaço percebido e a imagem construída a seu

respeito é que essa última não pressupõe a presença e a proximidade física do objeto,

diferentemente da primeira (KOHLSDORF, 1996).

O processo de formação dessas imagens se relaciona ao plano do vivido, o que

coloca em relevo o ponto de vista do indivíduo, para quem o espaço se constitui

enquanto lugar – fundamentalmente simbólico, com sentidos próprios tanto do

indivíduo quanto de uma coletividade –, onde se desenrola a vida em todas as suas

dimensões, o habitar e as relações que ele implica e revela. As articulações locais se

configuram por intermédio das relações travadas na vida cotidiana (relações entre

vizinhos, de solidariedade etc.) e o tempo é o tempo do vivido.

As articulações entre o primeiro e o segundo níveis de representação

pressupõem também o reconhecimento de diferenciais de modernização econômica e

cultural assim como a identificação dos processos de acentuação das diferenças:

exclusão e segregação intra-urbana. Estas articulações se dão por meio do movimento

de constituição das sociedades ao longo da história, principalmente, com o

desenvolvimento das técnicas e o aprimoramento das redes, pois este movimento gera

novas espacialidades que se refletem localmente na vida dos indivíduos. O que se

afirma, de certo modo, é que as paisagens não são dependentes ou constituídas

somente de histórias introvertidas, mas são arranjos particulares em situações

específicas de uma realidade, materializada em determinado recorte espacial. Ambos

os níveis guardam a potencialidade de produzir paisagens materiais e/ou simbólicas.

Nesse sentido, poder-se-ia deduzir que as imagens se constituem de forma

dialética e têm como função “[...] a produção da comunhão, da coesão social,

produzindo intensos sentimentos coletivos, pela partilha das imagens, possibilitada

pelos diversos meios de comunicação em ação nas sociedades [...]” (FERREIRA,

2006, p. 286).28

28 Note-se que a reprodução das imagens se dá por meio das mídias, mas também das relações interpessoais.

A esse respeito, analogamente, podemos citar a ideia de nação e todas as suas representações, por meio de

objetos, tais como a bandeira, o hino, os monumentos, entre outros. Como se sabe, essa ideia tem, enfim, a

intenção de criar vínculos dos indivíduos com um determinado recorte espacial. Para Zukin (2000a, p. 96),

43

Diante disso, afirma-se que uma forma de entendimento da imagem urbana, de

acordo com as opções realizadas, se refere à percepção que dela têm os moradores,

pois são profundamente relacionadas com as práticas e com as experiências desses

indivíduos. De modo complementar,

O espaço urbano é apreensível a partir de suas manifestações externas, em

etapas de sucessão cognitiva onde se desenvolve um movimento de

objetivação de informações. [...] As características sensíveis dos lugares são

manifestações externas do fenômeno urbano, ocasionadas por certas

determinações geralmente não explícitas. Para identificá-las, é preciso

definir o espaço urbano como fenômeno social específico que se vincula, de

maneira dialética e equânime, às demais esferas analíticas da sociedade.

(KOHLSDORF, 1996, p. 50-51).

O ser humano percebe o espaço simultaneamente por meio de todos os

sentidos. Segundo Rodrigues (2001), ao considerar as contribuições de Bartley

(1978) e de Tuan (1980), o organismo humano apresenta dez modalidades sensoriais

por meio das quais contata o mundo externo. São elas: a visão, a audição, o tato, a

temperatura, a sinestesia, a dor, o gosto, o olfato, o sentido vestibular e o sentido

químico.29 Tem-se, então, que cada sentido se especializa em captar parte da

realidade e se combina com os demais para formar a percepção.

“A circulação de imagens para consumo visual é inseparável das estruturas centralizadas do poder

econômico. [...] com os meios de produção tão concentrados e os meios de consumo tão difusos, a

comunicação dessas imagens torna-se um meio de controle tanto do conhecimento quanto da imaginação:

uma forma de controle social.” 29 Rodrigues (2001) citando Bartley (1978) e Tuan (1980) assim explica cada uma das modalidades sensoriais

dos seres humanos: “[...] Com a visão enxerga todos os objetos. A visão binocular auxilia o homem a ver

as coisas nitidamente como corpos tridimensionais. Distingue a forma dos objetos, a ordem em que se

sucedem na paisagem, suas cores, seus brilhos e movimentos. Através do deslocamento do observador,

usando o sentido sinestésico, modificam-se as fronteiras do campo visual, os objetos mudam de direção,

um eclipsa o outro, certos detalhes são perdidos, ao passo que outros são realçados. A visão é seletiva e

reflete a experiência. Assim cada pessoa vê diferentemente de outra, dependendo do direcionamento da sua

observação, subordinada aos seus interesses individuais. Nesse sentido a visão ultrapassa o aspecto

puramente sensorial. O olfato, captando o odor da paisagem, é importante na formação da imagem e na sua

memorização. A recordação de imagens da infância não raro vem acompanhada dos seus cheiros. Da

mesma forma, os sons são muito importantes para a evocação de uma paisagem. Segundo Yi Fu Tuan

(1980, p. 10) somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos. O som da chuva

batendo contra as folhas, o estrondo do trovão, o assobio do vento, um grito angustiado excitam tão

intensamente quanto uma imagem. Por intermédio do tato, se pode perceber a textura das coisas que vemos

ao tomar contato com elas. Há dois sentidos de tato – um ativo (tocar) e outro passivo (ser tocado), ambos

igualmente importantes para completar a imagem da paisagem. Por exemplo, ao caminhar por uma trilha,

pisar no solo, tocar as árvores, roçar as folhas, o caminhante, movido pelo sentido sinestésico, amplia suas

sensações, enriquecendo sua experiência com a paisagem. O sentido vestibular que se localiza na parte

auditiva do ouvido interno, captando a sensação de equilíbrio, é responsável pela vertigem das alturas

44

[...] é apenas na percepção que se iniciam os processos cognitivos, porque a

partir de então ocorre a reprodução intelectual da realidade. [...]

A peculiaridade do processo perceptivo pode ser definida por sua ligação

estrutural à consciência e à memória, mas, principalmente, ao grau de

desenvolvimento da inteligência dos indivíduos. Esse fato configura a ação

perceptiva como uma síntese entre sensações e o complexo inteligente,

conferindo-lhe caráter de globalidade. [...] Nos apropriamos dos fenômenos

quando a percepção nos oferece um espetáculo tão variado quanto

claramente articulado, e quando suas intenções motrizes recebem e

desenvolvem as respostas que esperam do meio ambiente. Essas

considerações esclarecem que a percepção do espaço físico se apóia na

unidade entre sujeito e objeto. Trata-se de uma relação com um meio, real

ou lógico, que não se caracteriza por ser o lugar onde as coisas estão

colocadas, mas o meio pelo qual sua disposição se torna possível. Passa-se,

portanto, da noção idealista de espaço passivo e neutro para um conceito de

espaço ativo, que se consubstancia na referida unidade sujeito-objeto, na

medida em que é a presença do corpo humano no mundo que o mantém

vivo, animado, visível e passível de conhecimento. (KOHLSDORF, 1996,

p. 56-58).

As experiências, em conjunto com as habilidades sensoriais e a imaginação,

desempenham, assim, importante papel no desenvolvimento da visão de mundo, pois

o contato direto com o ambiente permite ao indivíduo constituir seu espaço

perceptivo.

Para Kozel (2007), a imagem de algo reflete uma construção simbólica e o

espaço percebido pela imaginação não pode ser um espaço indiferente, sendo este,

um espaço vivido, com todas as parcialidades que ele possui. Nesse sentido, para

Tuan (1980), experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir

dele.30 De forma complementar, Jordana (1992) citado por Pires (1999) ressalta que a

percepção se dá a partir dos estímulos recebidos do ambiente, é um ato de criação que

está condicionado a três fatores:

quando se observa um precipício. A sensação térmica dada pelo contato do corpo com o sol, com a água,

com o ar, é muito importante na percepção da paisagem. Completam a percepção a dor, o gosto e o sentido

químico. A dor funciona como proteção do indivíduo; o gosto, quando ocorre provar o sabor de uma fruta

ou a sensibilidade da água; o sentido químico, ao ter reações alérgicas mediante o contato com alguns

vegetais ou animais [...]. (RODRIGUES, 2001, p. 46-47). 30 Como dito anteriormente, o espaço vivido ou experienciado, empregado pela fenomenologia, é um espaço

construído material e simbolicamente e, por isso, comunica intenções, ideias, pensamentos que são

apreendidos e percebidos pelas pessoas que interagem de formas diferentes a determinados aspectos desse

espaço. Segundo Xavier (2004, p. 88), o mundo vivido é “sempre um espaço rico e complexo, que é

ordenado com referência às intenções e experiências humanas, porque nele o ser humano está imerso e

nele se prolonga através de suas ações, percepções e sonhos.”

45

- fatores inerentes ao próprio indivíduo (forma de ser, capacidade

imaginativa, mecanismos de associação etc.);

- fatores educativos e culturais imprimidos pela sociedade, condicionantes

da sensibilidade e atitudes do observador; e

- fatores emotivos, afetivos e sensitivos, derivados das relações do

observador com o ambiente. (JORDANA, 1992 apud PIRES, 1999, p.

163-164).

Desse modo, a visão de mundo é construída a partir do repertório cultural do

indivíduo, permeada pelo imaginário, por seus pensamentos e por seus sentimentos,

envolvendo também a experiência individual, consciente e inconsciente. Há que se

considerar, enfim, que essa experiência é mediada por todo o referencial pré-

concebido do indivíduo e, por isso, ele apreende a realidade a partir de seus próprios

valores e construções. Deste modo, segundo o princípio da intencionalidade da

consciência, sustenta-se que perceber é conceber, à medida que o indivíduo projeta

uma imagem própria a respeito da realidade captada desde o exterior.

Segundo Kozel,

[...] o processo de desenvolvimento mental passa por etapas que se realizam,

mais cedo ou mais tarde, em função das experiências e do meio onde o

indivíduo adquire mais informações que se refletem diretamente na

percepção. (KOZEL, 2007, p.117).

Mais que isso, completa a autora que o espaço não é somente apreendido

através dos sentidos, ele referenda uma relação estabelecida pelo ser humano

emocionalmente, de acordo com as suas experiências espaciais. Assim, o espaço não

é somente sentido, percebido ou representado, no acréscimo de todas essas dimensões

ele se torna vivido, desse modo, as “imagens que as pessoas constroem estão

impregnadas de recordações, significados e experiências.” (KOZEL, 2007, p.117). 31

31 De forma extensiva, a percepção de tempo é motivada pelo contexto de cada época e pelo ambiente em que

cada indivíduo se insere. A esse respeito, vale ressaltar que várias pesquisas publicadas nas últimas duas

décadas apontam para uma mudança na percepção da passagem do tempo relacionada com a idade e com a

época em que a pergunta foi formulada. Os resultados da pesquisa de James Tien e James Burnes (2002)

salientam que hoje se percebe o tempo passar muito mais rápido do que alguém da mesma idade percebia

no passado. Acredita-se que o “estado de espírito” das pessoas, bem como, o nível de complexidade das

tarefas desenvolvidas, e até mesmo o contexto socioeconômico global e/ou local influencie na percepção

da passagem do tempo. Algo similar parece ocorrer, mas não com a mesma frequência e intensidade, em

relação aos espaços, ainda que a noção de distância seja relativizada, pois parte de um dado concreto,

46

A partir da experiência acumulada em sua biografia, o indivíduo procura

vivenciar e compreender o espaço em que se insere, aprender formas de ação para seu

uso, sua valorização e, quando necessário, para tomar atitudes em relação a ele. A

capacidade de assumir uma atitude frente ao mundo é formada por uma longa

sucessão de percepções e de experiências associadas, ou seja, as atitudes adotadas

pelas pessoas espelham os seus interesses e os seus valores e refletem a sua visão de

mundo. (TUAN, 1980). 32 Acredita-se, desse modo, que

Um ser humano percebe o mundo simultaneamente através de todos os seus

sentidos. A informação potencialmente disponível é imensa. No entanto, no

dia a dia do homem, é utilizada somente uma pequena porção do seu poder

inato de experienciar. Que órgão do sentido seja mais exercitado varia com

o indivíduo e sua cultura. Na sociedade moderna, o homem tem que confiar

mais e mais na visão. Para ele, o espaço é limitado e estático, um quadro ou

matriz para os objetos. Sem objetos e sem fronteiras, o espaço é vazio. É

vazio porque não há nada para ver, embora possa estar cheio de vento.

(TUAN, 1980, p. 12-13).

A percepção, ao se constituir, além de permitir a interação do indivíduo com o

espaço, permite também que se elaborem respostas apropriadas às mudanças e às

incertezas que o meio oferece, respostas essas, que se evidenciam pela cognição e

pela inteligência e que se devem, em parte, às representações e às imagens subjetivas

que se tem do espaço. Sobre essas últimas, Kevin Lynch (1988) afirma que são

produtos da percepção imediata, da memória e da experiência passada habituada a

interpretar informações e a comandar ações. A necessidade de conhecer e estruturar o

menos abstrato que o tempo. Chama-se a atenção, ainda que de forma superficial, para a noção da física

quântica sobre o passar do tempo. Para a física quântica, não existem passado, presente e futuro – pois

estes diferem, sobremaneira, do tempo da natureza –, mas, sim, lembranças e memórias parciais de

acontecimentos, o instante vivido e perspectivas de potenciais acontecimentos. Ressalte-se também que o

tempo “psicológico” difere do tempo “natural” e do tempo “quântico”, pois se relaciona às experiências

vividas e ao tempo biológico/fisiológico do corpo humano. A fenomenologia parece corroborar a ideia de

que os tempos seriam tantos quanto os espaços, uma vez que declara que cada indivíduo percebe o seu

espaço vivido de forma diferenciada. Como observa Amorim Filho (1999b), o novo modo de encarar e

valorizar o ambiente no qual vivemos é um dos fenômenos mais significativos da história humana

contemporânea. 32 A respeito da constituição de valores referentes ao espaço, Anne Buttimer (1982) afirma que são múltiplos

e relativos ao olhar individual e que se relacionam às construções simbólicas e apropriações culturais. Para

Claval (2007) os valores estruturam-se em conjuntos de crenças e de normas abstratas de comportamento

que são do domínio da religião ou da metafísica.

47

nosso meio é tão importante e tão enraizada no passado que esta imagem tem uma

grande relevância prática e emocional na vivência do presente do indivíduo. Para ele,

As imagens do meio ambiente são o resultado de um processo bilateral entre

o observador e o meio. O meio ambiente sugere distinções e relações, e o

observador – com grande adaptação e à luz dos seus objectivos próprios –

seleciona, organiza e dota de sentido aquilo que vê. A imagem, agora assim

desenvolvida, limita e dá ênfase ao que é visto, enquanto a própria imagem

é posta à prova contra a capacidade de registro perceptual, num processo de

constante interacção. Assim, a imagem de uma dada realidade pode variar

significativamente entre diferentes observadores. (LYNCH, 1988, p.16-17). 33

Kohlsdorf (1999, p. 43) acredita que a percepção é “[...] parte integrante de

qualquer processo de conhecimento. No caso da cidade, ela é abordada segundo sua

componente visual (apesar de ocorrer pela síntese de todos os sistemas sensoriais)”.

Destarte é relevante ressaltar, que as coisas percebidas só compõem um

significado se estiverem no contexto cultural dos indivíduos. Do ponto de vista

fenomenológico, as coisas, em si mesmas, não significam coisa alguma. Elas só são o

que são porque podem acoplar múltiplos significados que não lhes são

intrinsecamente inerentes, mas lhes vêm desde o mundo, dos relacionamentos

interpessoais, das construções coletivas. Critelli sustenta que

[...] é à existência que a significação pertence. Nunca às coisas nelas

mesmas. Em si mesmas as coisas não passam de meros troços. Os

significados das coisas apenas são, à medida que mantêm e estabelecem a

ligação dos homens entre si e com o mundo. (CRITELLI, 1996, p. 45).

De modo complementar, Critelli (1996) afirma que não se deve se referir aos

objetos como meras coisas que estão disponíveis no mundo, mas entes que reúnem,

que conservam, que guardam em si e no que são, os modos humanos de se habitar o

mundo e de se cuidar da vida.

33 Lynch (1988) divide as imagens da cidade entre aquelas de topo e aquelas de base. As primeiras são

relacionadas aos grandes volumes construídos, obras de engenharia que colocam as técnicas a serviço das

construções magnificentes, que se impõe à vista de qualquer um. As imagens de base seriam aquelas mais

sutis, que servem para ensinar aos indivíduos as regras de se portarem nos espaços públicos, sobretudo.

Andar nas passagens adequadas, não pisar na grama, apreciar as esculturas, entre outros. Afirma ainda que

as imagens da cidade são funcionais, pois apresentam-se também como pontos de referência que marcam

os indivíduos e, a partir de seus esquemas mentais, impedem que eles se percam ou se desorientem na

cidade.

48

Os gestos, desencadeando outros, vão, então, construindo uma teia de

relações humanas, uma trama que vai, ao longo do tempo, se consolidando

ou pela habitualidade, por exemplo, ou pela tradição... Mas esta teia, por

mais desejada ou idealizada em sua forma final, é sempre imprevisível. Esta

trama é tão fugaz quanto a vida humana, igualmente insólita. Sua chance de

solidez está fora dela mesma, no registro das leis, documentos, monumentos

e, mais imediatamente, nos objetos de uso, bens de consumo, obras-de-arte.

[...] Os gestos e os discursos (cada um deles), através dos quais o quem

alguém é pretende alguma objetivação, mesmo se registrados devidamente,

findam quando finda seu testemunho. Enquanto os objetos de uso, de

consumo e as obras-de-arte permanecem como corpos tangíveis, cada gesto

e cada discurso acabam tão logo termina seu pronunciamento.

Simultaneamente, não sobram (salvo se devidamente registrados) como

coisas tangíveis em si mesmas para o testemunho, como um pacote de

farinha ou uma espátula. Só a rememoração desses feitos e discursos

registrados, em que se reaviva o sentido que tiveram, pode retirar esses

feitos e falas registrados da condição de meras coisas. [...] Objetos de uso,

bens de consumo, obras-de-arte revelam através de si modos dos homens

habitarem seu mundo: mundanizando, preservando a vida e atendendo às

necessidades vitais, coexistindo, cuidando de ser quem singularmente são.

Eles são as possibilidades de segurar, neles mesmos, a objetividade

pretendida, mas impossível ao ente homem em sua existência. (CRITELLI,

1996, p. 115-117).

Sem serem significadas pelo ser humano, as coisas são vazias, embora latentes

de significações. As coisas são aquilo que elas significam e como elas realizam esta

significação, pois os objetos, em sua “coisidade”, sem seus significados construídos e

que se tornam a eles subjacentes, são absolutamente incompreensíveis aos homens.

Ruiz afirma que

Qualquer conhecimento do mundo implica uma construção de sentido. As

coisas não se apresentam para ele [indivíduo] de forma imediata, natural ou

objetiva. Ele as recria por meio do sentido, transformando-as de elementos

insignificantes em objetos carregados de significado cultural. O mundo do

ser humano é sempre um sentido do mundo. Desse modo, o sentido reflete o

mundo como se fosse uma rede de significados culturais por meio dos quais

se compreende e transforma a realidade. Ele não conhece as coisas de forma

imediata; para aceder a elas, precisa sempre de uma mediação ou

hermeneusis. Essa mediação é constituída pelo sentido que a pessoa cria

para tudo o que a rodeia. (RUIZ, 2004, p. 59).

A possibilidade do conhecimento é um processo de aproximação à realidade

objetiva, que se propõe a reproduzi-la em pensamento e admite formas diversas e

49

não-excludentes, tais como senso comum, conhecimento científico e ideologia

existindo elos fortes entre eles (KOHLSDORF, 1999). Ainda que algum desses

modos de conhecimento leve vantagem sobre os outros, a percepção parece conter a

possibilidade mais efetiva de ligação.

O nível de percepção apresenta larga viabilidade de entendimento da

realidade por ser papel de base genética do aprendizado, que a

responsabiliza pela seleção de informações a serem posteriormente

elaboradas e pela capacidade de produção de conhecimento abrigada por seu

mecanismo. Integra, com o nível de formação da imagem mental, o modo de

apreensão sensível do espaço urbano (KOHLSDORF, 1989). É nela que

ocorre o encontro entre informações captadas e a inteligência, construindo-

se o espaço da cidade em seus atributos qualitativos de forma. Aprendizado

e conhecimento exigem certas qualidades cognitivas dos indivíduos e

condições para a sua realização por parte do meio ambiente (por exemplo,

iluminação adequada). Entretanto, baseiam-se na dinâmica entre assimilação

e adaptação, que fundamentam seu mecanismo. Ela tanto estimula o

observador a aceitar informações, saindo de seu repertório, quanto lhe

garante a permanência de vínculos consigo, pela acomodação do que foi

recebido às suas condições. A explicação dos fenômenos dá-se, portanto, de

modo a assegurar afirmação e segurança emocionais ao observador, em

resposta à angústia frente ao desconhecido. (KOHLSDORF, 1999, p. 44-

45).

Para Machado (1999, p. 104) “[...] a atividade perceptiva enriquece

continuamente a experiência individual e por meio dela nos apegamos, cada vez

mais, ao lugar e à sua paisagem, desenvolvendo sentimentos topofílicos.” Paul Claval

(2007) afirma, ainda, que o que se lê no mundo e na sociedade é o que se aprende a

ler e, por isso, as sensações não são jamais puras, pois os indivíduos vivem numa

sociedade, utilizam um vocabulário de formas e de cores que predeterminam o que

percebem do mundo através dos parâmetros de leitura que receberam. O olhar

procura sempre apreender os recortes que evocam as palavras que lhes foram

transmitidas e as construções mentais que as complementam.

A apreensão do real reveste-se sempre de uma dimensão simbólica, na qual os

significados e imagens que vêm da coletividade ajudam os homens a estruturar e a

pensar seu meio e a lhe dar um sentido, mas os impedem, com frequência, de ver

alguns de seus traços – às vezes os mais óbvios, para o observador “outsider”. Das

50

representações, passa-se a conjuntos de ideias que organizam o mundo, a conceitos

abstratos, a teorias, que estariam na base do saber (CLAVAL, 2007).

De modo complementar, Anne Buttimer (1980), chama a atenção para a visão

do insider e do outsider em relação à construção de significados para os lugares.

Enquanto o primeiro encontra na vida cotidiana o significado do lugar, por meio do

fazer mais que do pensar, o segundo descreve o lugar por meio do uso da terra, do

fluxo de atividade, da fronteira política, entre outros substantivos. Neste último caso,

existe um distanciamento da realidade vivida pelo insider, este que “[...] incorpora a

experiência de alcance em sua existência cotidiana” (BUTTIMER, 1980 apud

FERREIRA, 2002, p. 58). Nesse sentido, a armadilha do outsider está, muitas vezes,

em que ele procura compreender a realidade através das imagens, mapas e modelos

formados anteriormente, o que o leva a encontrar nos lugares aquilo que,

previamente, pretendia encontrar.

Na definição de Relph (1980) citado por Ferreira (2002), o outsider teria uma

atitude “inautêntica” em relação ao lugar, o que se manifestaria na ausência de

sentido do lugar, não na preocupação com as expressões simbólicas dos lugares, com

suas identidades, sendo esta atitude não-autoconsciente, representando uma aceitação

acrítica dos valores de massa, ou Kitsch.34 O insider, por sua vez, acaba “pecando”

por imergir intensamente nas particularidades do cotidiano e, muitas vezes, não

perceber a necessidade de questionamento mais amplo da realidade do lugar. O

grande desafio dos planejadores, neste caso, seria buscar um diálogo entre estas duas

visões de mundo. 35

34 O Kitsch, para Relph, abordaria o lugar como coisa da qual o homem é alienado e onde os lugares são

recriados, perdendo sua autenticidade e ganhando qualidades artificiais e/ou superficiais e sendo medidos,

quase sempre, pelo seu valor econômico. O processo de “perda de valor de autenticidade” é definido por

Relph (1980) apud Ferreira (2002) como “deslugaridade” (placelessness). Esse processo é transmitido,

segundo ele, pela comunicação de massa, pela cultura de massa, pelos grandes negócios, pela “autoridade

central” ou o Estado e pelo sistema econômico. Seria a perda do “sentido de lugar” e a consequente

aniquilação da diversidade e singularidade das paisagens associadas a esses lugares. 35 A propósito disso, Jane Jacobs discorre, em Morte e Vida de Grandes Cidades, a respeito de um grande

gramado instalado em um conjunto habitacional de Nova York pelo qual os moradores nutriam particular

repulsa: “[...] há um aspecto ainda mais vil que a feiúra ou a desordem patentes, que é a máscara ignóbil da

pretensa ordem, estabelecida por meio do menosprezo ou da supressão da ordem verdadeira que luta para

existir e ser atendida”. Neste caso, a ordem que predominava no lugar era muito diversa daquela imposta

aos moradores, o que pôde ser captado por Jane Jacobs (2000) na fala de uma moradora: “Ninguém se

51

Dito isso, importa considerar que, por apresentarem peculiaridades em relação

à construção de suas práticas espaciais, as cidades oferecem referenciais

diferenciados de paisagens de outras naturezas para o seu entendimento. Por isso, a

sua percepção também se opera de forma peculiar, o que caracterizaria a percepção

urbana.

A percepção urbana, segundo Ferrara

[...] é uma prática cultural que concretiza certa compreensão da cidade e se

apóia, de um lado, no uso urbano e, de outro, na imagem física da cidade, da

praça, do quarteirão, da rua, entendidos como fragmentos habituais da

cidade. Uso e hábito, reunidos, criam uma imagem perceptiva que se

sobrepõe ao projeto urbano e constitui o elemento de manifestação concreta

do espaço. (FERRARA, 1988, p. 3)

Podemos dizer, deste modo, que a percepção informa sobre o espaço urbano e

que, por meio de sua leitura, é possível decodificar as imagens ou representações que

predominam junto à população local ou aos seus agentes externos, bem como, os

interesses e ideologias que os orientam. As informações perceptivas, tomadas em

conjunto com a contextualização do espaço, permitem interpretar o que dizem as

imagens urbanas e se colocam como uma exigência metodológica no estudo da

constituição das paisagens urbanas. A imagem urbana, neste caso, tem papel de

mediação entre a realidade estudada, vivida pelo indivíduo pesquisado e o

pesquisador. Assim, toda imagem representada “[...] é uma codificação do mundo,

um simulacro do universo e, portanto, uma informação cultural diferenciada.”

(FERRARA, 1988, p. 8).

Com a contribuição dos estudos da semiologia, da arquitetura, da filosofia, da

própria geografia cultural e humanista, entre outros tantos campos disciplinares

fronteiriços nas ciências sociais, parece haver-se elucidado pelo menos parte do

tratamento das imagens no que se refere ao urbano, o que inclui tanto as

representações da paisagem “física” da cidade, quanto o que se relaciona ao

importou com o que precisávamos! Mas os poderosos vêm aqui, olham para esse gramado e dizem ‘Que

maravilha! Agora os pobres têm de tudo!’” (JACOBS, 2000, p. 14).

52

imaginário que se constitui a despeito delas, incluindo, neste caso, a consciência

implícita ao homem.36

Para Ferrara

[...] decodificar esse urbano, entender sua lógica, supõe o reconhecimento

da sintaxe, do modo de formar que o identifica, das faixas de linguagem que

se combinam na sua constituição, da possibilidade de romper aquela

homogeneidade a fim de projetar elementos de predicação, de qualificação.

(FERRARA, 1988, p. 3).

Assim, tomando-se a percepção individual ou coletiva como uma fonte de

“leitura” das imagens urbanas, afirma-se que existe a escrita de um texto “não-

verbal”, que se dá na imbricação daqueles dois níveis de representação tratados

anteriormente. 37 A especificidade deste texto consistiria na não-linearidade dos

36 A semiologia remete, primeiramente, à filosofia empirista do século XVII, com John Locke – semiótica,

para uma citação mais fiel – mas tem seus maiores desenvolvimentos com Charles Sanders Peirce, no

início do século XX, sendo o termo “semiologia”, sugerido por Saussure no mesmo período, neste caso,

englobando a linguística (Santaella, 1980). “A semiologia se desenvolveu como teoria, instrumento e

metodologia de análise aplicável enquanto sistema de descrição, de diferenciação, de classificação, de

comunicação” (FERRARA, 1988, p. 42). A semiologia peirciana enraíza suas definições (e classificações)

de signos em categorias cognoscitivas que partem de uma minuciosa pesquisa sobre as operações da

representação e que são comprovadas logicamente pela sua teoria dos grafos. Pecando pela inevitável

simplificação da complexa teoria peirciana, destaca-se no presente trabalho, a relação dialética entre a

tríade objeto, signo e interpretante. O signo seria uma representação do objeto e do significado enquanto

elemento essencial do conhecimento, mas incluiria uma terceira dimensão: o interpretante. O

relacionamento entre esses três elementos produziria uma sintaxe. Para Ferrara (1988; 1993), decodificar

quaisquer sistemas significa reconhecer o signo e a sintaxe que os identificam. Signo e sintaxe, nessa

acepção, remetem, respectivamente, a algo que representa alguma coisa, seu objeto e, à apreensão do

signo. A semiologia se aproxima da fenomenologia no que se refere à consciência que, segundo Peirce,

está no homem. Esta afirmação que pode parecer simples aos desavisados, guarda uma proposta inovadora:

“o homem só conhece o mundo porque de alguma forma o representa e só interpreta essa representação

numa outra representação que Peirce chama interpretante da primeira. Daí que um signo seja uma coisa de

cujo conhecimento depende o conhecimento de uma coisa outra – que chamamos mundo ou realidade, ou

seja lá o que for.” (Santaella,1980, p. 14). A semiologia guarda outras aproximações explícitas com a

fenomenologia, quando Peirce, citado por Santaella, propõe que “[...] antes de qualquer ciência normativa

deve haver uma ciência que não trace distinção entre bom e mau em qualquer sentido; mas que contemple

os fenômenos como tais, abra os olhos e simplesmente descreva o que se vê, nem mesmo distinguindo o

real da ficção, mas descrevendo apenas o objeto como fenômeno e enunciando aquilo que é semelhante em

todos os fenômenos. Peirce concorda com Hegel em chamar a esta ciência fenomenologia, embora não a

restrinja, como faz Hegel, à observação e análise da experiência, mas estende-a à descrição de todos os

traços comuns ao efetivamente experienciado e ao que pode pensar-se como tendo essa possibilidade.”

(SANTAELLA, 1980, p 15). No caso específico da semiologia aplicada aos estudos urbanos, procurou-se

pesquisar a relação entre três operações básicas e interdependentes: a percepção, a leitura e a interpretação

das paisagens. Nesta abordagem, a percepção é a primeira etapa de um processo complexo que toma a

imagem urbana como fonte de informação sobre a cidade (FERRARA, 1988). 37 A esse respeito, consulte-se os estudos recentes de Kozel (2007); MACHADO (1999) e trabalhos de

FERRARA (1988, 1993) entre outros.

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signos, em um aglomerado de signos, em diferentes faixas de linguagem. Nesse

sentido, ruas, praças, casas, parques, rios, equipamentos urbanos, fazem parte de um

texto pronto a ser lido por meio de suas imagens e de suas representações.38

No sentido de texto utilizado por Ferrara (1988) – também uma metáfora da

produção urbana do espaço – e em concomitância com o tratado anteriormente, as

cidades são “escritas” o tempo todo pelos sujeitos que as habitam e, além deles, pelos

diversos agentes que nela atuam, internamente ou externamente. O interesse nessa

metáfora, convém frizar, se justifica à medida que ela permite levar em consideração

a “leitura” da dimensão dos sentidos impressos na cidade, uma vez que apresenta a

sua paisagem como um documento aberto às múltiplas interpretações (MONDADA;

SÖDERSTRÖM, 2004a). Essa “escrita” do espaço é feita pelos seus usuários e,

muitas vezes, imposta pelos seus planejadores – poderes público e privado – e acaba

por produzir, de forma simultânea, representações que tomam forma e sentido com o

uso e com o não-uso, com a apropriação ou com o estranhamento/rejeição do espaço.

De modo complementar, os usos e os hábitos são os responsáveis por

reproduzir a vida simbólica das coisas e dar sentido aos lugares na escrita do urbano.

Pelo exposto até aqui, é possível concluir que a “escrita” da cidade não se dá de

forma simples, mas, como dito anteriormente, por meio de lutas simbólicas, que se

estabelecem a partir do conflito entre objetivos distintos: o de fixar novos valores e

novas visões de mundo e o de manter os anteriormente adotados, de acordo com os

interesses então vigentes.

38 Essa concepção do urbano se aproxima, em alguma medida, da proposta de Duncan (2004), um dos

pioneiros no tratamento da paisagem como texto. Para este autor, a interpretação da realidade, por meio do

texto escrito, depende da construção intelectual e opções epistemológicas do pesquisador/autor. Quando

este constrói seu texto verbal sobre a cidade, por exemplo, utiliza-se de figuras de linguagem que

expressam, por fim, essas construções intelectuais e opções epistemológicas, além de sua visão de mundo.

Duncan (2004) relaciona as interpretações do urbano, mais especificamente da cidade, elaboradas pelos

autores, com as figuras de linguagem. Como exemplo, cita os textos positivistas que estariam impregnados

de metáforas das ciências naturais (cidade como organismo vivo), os textos marxistas revelariam

sinédoques (cidade como parte de um todo: o capitalismo) e a crítica pós-estruturalista revelaria ironia

(cidade interpretada como impossibilidade de interpretação). Afirmando, portanto, que a cidade tem sido

descrita, por meio de textos verbais ou escritos, carregados de figuras de pensamento e de linguagem.

Nesse sentido, Corrêa (2006) observa que os estudos de Hayden White argumentam que um texto

geográfico pode apresentar-se de modo ficcional tal como romance, comédia, tragédia e ironia ou por

figuras de linguagem tais como metáforas, metonímias e sinédoques.

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Para que esse sentido criado e vivido pelos indivíduos seja apreendido pelo

pesquisador é necessário que sejam utilizadas mediações, tais como as falas e os

discursos, que figuram como forças que emergem de um contexto histórico específico

e efetivam mudanças que são ao mesmo tempo simbólicas e muito concretas. Assim,

os discursos moldam o nosso sentido mais profundo de ser e, ao mesmo tempo, dão

origem a regimes específicos de tratamento e de estilo de vida, tornam-se parte

integrante do imaginário da mídia popular e, consequentemente, do senso comum, e

estão mobilizados, ainda que de forma patente, para modificar ou apoiar uma

variedade de construções sociais e políticas.

Cosgrove (2004b) considera que a produção e a reprodução das imagens

urbanas não se dá de forma consciente para todos os indivíduos e grupos sociais, mas

são potencialmente capazes de serem trazidas a um nível de consciência que permite

refletir sobre elas. De forma complementar, Lynch (1988, p. 17) afirma que “Cada

indivíduo cria e sustenta a sua própria imagem, mas parece haver uma concórdia

substancial entre membros [do mesmo grupo]”, o que nos leva a considerar relevante

que, ao se percorrer as imagens urbanas e representações que foram constituídas ao

longo da construção/escrita da paisagem urbana, por meio da percepção que se tem

dessas paisagens, seja possível conhecer a sua linguagem e reconhecer elementos

comuns e captar os modos de sua reprodução.

Diante do exposto, a seguir, optamos por contextualizar o recorte espacial

selecionado, com vistas a facilitar e subsidiar a compreensão das representações e

imagens urbanas captadas durante as entrevistas com os sujeitos conhecedores

daquela realidade.

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