ficha técnica título: as habitações interrompidas

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Ficha Técnica

Título: As Habitações Interrompidas

2011-2012

www.facebook.com/ashabitacoesinterrompidas

Autor: Francisco Duarte Azevedo

Capa: Francisco Duarte Azevedo

Acrílico s/ tela - 2009

Edição: Edições Esgotadas | 1ª Edição | 2012

www.edicoesesgotadas.com

[email protected]

Coleção: Versus

ISBN: 978-989-8514-32-5

Depósito Legal: ...

Impressão: ...

Execução Gráfica: Nitah® Produções para Edições Esgotadas

© 2012, Francisco Duarte Azevedo

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

AS

HABITAÇÕES

INTERROMPIDAS

Francisco Duarte Azevedo

© 2012

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PrefácioUma morada de sal e luz

é da palavra errante que devemos falar,

da distância das coisas ou da cor do mar.

João Miguel Fernandes Jorge

Diplomata de carreira, com a condição de errante pelo mundo, Francisco Duarte Azevedo busca na palavra literária uma habitação na habitação interrompida. O pequeno livro de poemas Os Ícones, de 1998, uma edição búlgara com o patrocínio e apoio da Associação dos Luso-Falantes na Bulgária, iniciava a catedral dessa demanda; o seu romance de estreia, O Trompete

de Miles Davis, de 2011, talhava excertos de prosa poética fulgurante; neste Habitações Interrompidas, Francisco Duarte Azevedo regressa «à intempestiva forma caótica do silêncio», à água, «às linhas que atam / (como a chuva) / o corpo às algas do mar», ancora-se no sal da deriva e encontra refúgio na luz grande do mar.

«O espírito do pintor deve assemelhar-se a um espelho que adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem diante de si», defende Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura. Francisco Duarte Azevedo cruza a estética da poesia com a estética da pintura num canto que urde a existência interior do sujeito que «interpreta o mundo» e «luta contra as sombras / dos fantasmas, por uma habitação / não interrompida». A arte poética de Habitações Interrompidas carrega um trabalho apurado sobre a emoção e a memória, acto de buscar e conhecer, recorrendo a uma voz simbólica que interroga interrogando-se, a um olhar dinâmico que, como janela da alma e espelho do mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matéria no corpo do poema, para que a memória sobreviva.

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Como com a palavra, um quadro é feito de «pequenos nadas», pinta-se «com a argamassa / dos detalhes que preenchem / a vida», um quadro «Intervém», nele está o grito de liberdade dos emparedados, «os muros das habitações / transitórias», «os séculos da memória / e as histórias das aldeias / dizimadas», um quadro «denuncia o tempo / traz a memória nas mãos», «um quadro é ternura / banhada pelas manhãs / de luz», «É espaço rendido à leitura». Sobretudo, e sendo espaço de liberdade e de busca, «Um quadro é espaço vedado à morte» ou, dito ainda assim: «Procuro o meu ninho / no aconchego / da brancura de uma tela.// […] uma simples cor pousada / como a pegada de ave / no reflexo das águas, / rasgam os sulcos por onde / seguirás na direcção do mar // Eis a claridade / que segue os meus passos / no percurso / entre a vida possível / e a morte provável».

Contra a morte, está este canto lírico de um «Ser feito de mar» que lança ao mar todos os seus textos poéticos, para que o «sal e a luz» temperem as palavras. Também as razões são claras e assim enunciadas: «Nunca possuí um lugar a que chamasse / habitação permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque o mar é o berço / desta habitação, o lugar onde voo / sem asas e onde escuto a tua voz». E «Tudo voa» nesta poesia que se problematiza a si mesma, cônscia até da fugacidade do traço na página: o «poeta é amador das palavras corroídas pelo tempo», a poesia «é simples passatempo», «Uma voz vazia, a da poesia» ou, ainda: «trago nada nas mãos / a não ser um livro de símbolos, /um manual de preces / e a voz sagrada do tempo / beijando-me as faces». É da voz do silêncio que aqui se fala e da capacidade do sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silêncio que é a casa do ser e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio é, afinal, o lugar do pleno. É esse silêncio iluminado que encontramos neste livro de poemas «como uma janela / voltada para o sol» que inunda o mar, donde o sujeito «Invoca a terra, as aves e todos os animais perdidos na floresta», à sua semelhança, «embebe de

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sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos / na espuma do tempo», escuta e dá-nos a escutar a voz vigilante da memória na «zoada dos búzios», nas janelas que «desvelam / os segredos na água» e o corpo da palavra, janelas que, na ânsia de horizonte, se rasgam em varandas que dão para o mar adejado de gaivotas, varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam «a luz e toda a poalha» do «azul profundo» e infinito.

«Entre um quadro e o infinito» há, pois, a luz que, ávida, traça as rotas de uma viagem vital, espargindo na brancura, da tela ou da página, cores incandescentes com que se pressentem silêncios: «As minhas cores / sobre a tela transpiram / as insónias dos pássaros». Na «senda dos limites», o sujeito detém-se na voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: «porque é afinal para ti que corro / no limite da solidão», lê-se, solidão que se vai fundando em metáforas e hipálages. É preciso fixar a luz efémera das manhãs efémeras, a «luz deslumbrante / da claridade do mar», «luz estonteante» onde «aporta / o sussurro do mundo / e a navegação silente», a luz que «madruga» os lábios, que «amornece» o corpo «absorvido no calor / de um imbondeiro», a luz que testemunha «o abraço à luz do dia / a uma almofada vazia», a luz que esclarece os contornos do corpo da palavra, a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de toda a ternura estão as mãos. Elas retêm a febre e a luz, levedam o silêncio, «A polpa dos dedos / tacteia a pele da poesia», as palmeiras lêem e dedilham com facilidade a líquida e secreta mensagem, num grito de vida: «Sinto as fibras do meu corpo / a latejarem de poesia e / já não posso parar. Deixei / de comandar a minha mão. / Ela move-se por um impulso / azul que escorre, líquido, / nas páginas de um caderno / de notas.». A recolha da luz na página surge magnificentemente nos poemas narrativos dos pescadores na sua faina: «os pescadores lançaram as redes e recolheram / o mar dentro de um círculo amarelo. Nele escutei tua voz / que um pássaro inquieto / me trouxe até ao varandim

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/ onde poisou num breve aceno / de asas e ternura. Entre ele / e o mar ficou apenas / a distância de um sopro.», e, ainda, «Os pescadores regressaram / com os seus círculos amarelos / e cercaram o mar. Depois, / puxaram as redes e – com / elas – o mar para dentro dos / seus barcos. E o mar, na sua / tranquilidade líquida, / deixou-se levar. As palmeiras / afagaram o suspiro / da ave que se aquietou / no topo de uma habitação. / O mar reconheceu-te / e prometeu enviar-te /a chuva na próxima estação.».

Na solidão desta poesia, reina o tu secreto – cuja ausência configura o vazio do sujeito, dá plasticidade e luminosidade à composição poética – que é voz, confidente, interlocutor, cúmplice e espelho do eu. A construção do tu é o resultado da «obsessão pela luz». Um tu que é sal, azul ou verde rutilante das esmeraldas, «zoada dos búzios», «razão de respirar» do sujeito. Ao tu, o sujeito pergunta «Escutas?», «Sentes?», e roga: «Espera serenamente a mensagem / do silêncio […] / deixa que a chuva / se torne a flor de sal / que alimentará a minha voz.»; um tu que ouve as perguntas e, em murmúrio sensual, impulsiona o canto inquieto e fortifica a morada almejada: «Entre um muro / branco rodeando a colina / sobre o mar e o caminho / das palmeiras e baobás / que envolvem as areias / na maresia, estás aí. / E é tudo o que preciso saber.».

Poesia corpórea, táctil, sensorial, com necessidade de ver, cheirar as flores e sentir-lhes a respiração – por isso «as flores pintadas numa tela» deixam de ser flores – , tem de questionar a relação com o divino: chama-se por um Deus «que chora como a humanidade», «hirto e humílimo, / como se fosse homem enjeitado / na sua própria mátria», um Deus cuja mão deveria ser de «humana matéria».

No «exercício implacável» da criação, as mãos desta poesia de experiências acumuladas pintam a paisagem, escrevem a temporalidade com o estilete da memória, preenchem a

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habitação transitória; «a ausência é contemplar, / à luz das manhãs / os muros brancos rasantes / ao mar onde a voz do Profeta / se expande dos minaretes», e «o instante de contemplar / desnuda a poesia». Munido de hipálages – «Neste mar senegalês / revejo a luz do mar / de Lisboa, ancorada / à solidão / no cais das colunas» –, o sujeito navega pelas próprias artérias navegando pelo mar interior da cidade de Lisboa, a «cidade das mil colinas», de «telhados / pintalgados de gatos e pombos», com «varandins / de manjericos e lençóis / esvoaçando como bandeiras», «avenidas percorridas / à luz mortiça das tardes de chuva», «colinas onde as aves habitam», «perfil das gaivotas atiladas / no cais das colunas», acusa a incapacidade das palavras, dos símbolos não desenharem «o vento e as mãos / tecendo a lua / numa rua de Lisboa», e reage num gesto de evasão para o futuro: «tocaremos a poesia nos / miradouros» ou, ainda, «pela madrugada, voarei / na direcção do mar em busca da solidão.».

«voltarei um dia / para te buscar / entre os búzios», lê-se neste Habitações Interrompidas em versos que atingem o futuro deixando rastos do presente naqueles dias que virão. Resta-me dizer que o leitor da melhor poesia sempre aguarda o regresso da palavra desassossegadamente iluminada, como é esta de Francisco Duarte Azevedo.

Teresa Sá Couto

Lisboa, Julho de 2012

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CRIAR

Criar é um exercício implacável. Reparemos na criação do mundo, o delírio com que deus se exercitou a fazer e refazer o silêncio, gota a gota, perante o espanto da sua própria criação. Reparemos na forma como os jardins suspensos de fogo e as construções poliédricas estabeleceram o princípio da harmonia e modelaram o caos. Reparemos como à água ele chamou água, como separou os rios e os oceanos, a luz e a sombra, a noite e o dia e ao cálice do teu sangue ele chamou vinho oriundo das colinas da nossa crispação universal e à terra ele chamou a seiva e a mãe de todos os retornos.

Reparemos em Picasso, na destreza do traço amadurecido sobre os corpos das mulheres triangulares e tridimensionais, desatentas em suas delicadezas assombradas, em seus peitos esgotados pela maquinação de Guernica, em gritos arqueados pelo sofrimento congénito gerador do mel que amamenta estranhas paixões. E reparemos em Dali, ali onde o fogo fode e a carne é devorada pelo clímax da criação. Voltemos a reparar em deus e na sua criação. Fatalmente, Picasso ocupou-lhe o trono.

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VOO

Quem não quebrouas asas do desejonum voo alado e sonhador?Quem não foi ave ou pássarobuscando o seu ninhono coração recônditode um regaço?

E, no entanto, o meu voodói, dói-me no corpo,na alma, nas asas do mardesta habitação interrompida.

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CLARIDADE

O azul no horizontedesta habitação interrompida é uma página ao acasodo livro abertosobre os teus joelhos.A luz do mundo esbate-senas linhas de um caderno adormecido. Uma folha de papel voa na corrente da brisa matinal. Procuro o meu ninhono aconchego e na brancura de uma tela.

Um traço de pincel, uma cor, uma simples cor pousada como a pegada de uma ave no reflexo das águas,rasgam os sulcos queseguirás em direcção ao mar.

Eis a claridadeque persegue os meus passos. Um percurso entre a vida possível e a morte certeiramente provável.

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O QUE EXISTE NUM QUADRO

Ampliados ou diminuídos, num quadro gravam-se os muros das habitaçõestransitórias, os detalhesda imperturbável serenidade das almas, as bandeiras de fogo e o grito inconformado dos inocentes. Num quadrovivem-se os séculos da memóriae as estórias das aldeias dizimadas pelo fogo das armase pelo ódio do sangue.

Num quadro revive-se Guernica ou Wiryamu, por exemplo, My Laie muitos outros lugares onde apenas sobram cinzas. Escuta-se atéo choro dos escravos da antigaBabilónia, o grito das almas mortasnas masmorras de Toledo e de Lisboa,as vidas roubadas no mar de Gorée, onde o azul é maldito e uiva nos muros duma casa transitória...

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Um quadro denuncia o tempotraz a lembrança nas mãos que as minhas mãos prendem num gesto reconfortante de remorsos.Relata as estórias de ternura e violência e a dos assassinos de Abel. Juro que não foi Caim quemo matou. Caim viveu acossadonas habitações interrompidas.Foi o destino. Um fado que não sobrevivenum espaço vedado à morte.

Repito, para gravares no teu peito, um quadro é ternura banhada pela luz das manhãs que afagam os teus cabelos. É espaço rendido ao olhar que só o teucapta nas minhas cores.

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A MATÉRIA DE UM QUADRO

Um quadro é feito de pequenos nadasoriundos do fogo íntimoe não se desgasta na correntezados rios. Absorvea seiva e o húmusdos leitos. Intervém. Fala dos nossos diálogos amoráveis, desvela nas cores o princípio imanente da belezae devora amoras,como se fosses tu,magnífico corpo marinho, feito de água e espuma lavando o meu rosto inquieto.

Vi quadros revoltados com o silêncio dos chouposque ergueram os braçosperante a lucidez das serpentese não esconderam o assombropelo sangue vertidonos campos de batalha.

Um quadro é sarça ardentegerada nas tuas entranhasmodelando as cores num reboliçocriativo e genesíaco. Um quadro grita, não se cala.

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QUADRO I

Um quadro é espaço vedado à morteé a minha e a tua casanão precisas de bússola para nele te indicar o sul e o norte e saber onde pousar o teu sopro, a tua mão forte sobre a minha pendente na linha de uma cor. Um quadro é espaçovedado à morte.

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QUADRO II

E porque à morte é vedado, nele respirareia pele desta habitaçãogerada nas ravinasdos teus rios interiores.Nele fixarei a cora liberdade que és tu, miríadedos meus olhos inquietos,buscando-te na linha imperceptívelque fere o meu corpo. Um quadroé espaço vedado à morte.

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OLHAR UM QUADRO

Olhar um quadroé como te olhar no silênciodos pincéis. Os ruídos subtisdas tessituras de sedasó as telas os escutam. Sento-me na cadeira e escutode braços abertos o ruído das cores vogando até onde o engenhoe o infinito o permitem.

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COMO SE PINTA UM QUADRO

Se eu soubesse como se pinta um quadro seria um génio igual a Picasso, Dali, Modigliani ou atéAmadeo de Sousa Cardozo...

Não seria engenhoso mas artista concebido com o meu nome gravadona pedra da glória.

Mas já diziam as gajinhas lá na terra dos meus avós, quando lhes dedicavaversos por sedução, que eu tinha jeito para a prosa, mais do que para a dança por sentirem meu pé pesado nos peitos de seus pézinhos de aves de acasalação.

E nem sabia entãocomo se pintava um quadro.No dia em que o soube, foi na caruma, sob os pinheiros,à luz do sol ardente.Aí soube que um quadro se pinta com a argamassados detalhes que preenchema vida.

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O TEU OLHAR SOBRE UM QUADRO

O teu olhar sobre um quadronão surpreende. Seduz. Mas não tem o impacto da notícia de jornal. Não é passageiro. Dele brotam as raízes que se prendem no meu corpo. Um quadro é vida, pó do teu olhar maduro e doce.

Por isso não morre. Nem por tentativas nem por coisa nenhuma. Tem fronteiras firmes de vida definidas pela luz e a liberdade. A luz da tua habitação, e da minha habitação interrompida, dos nossos silêncios na sumptuosa sala donde a morte foge. Morte por ali não há.

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UM ESPAÇO VEDADO À MORTE

Um quadro é um tremendo desafio. Interpreta o mundo,(vejam como o desafioenfrenta o medo e arrogância dos que ousam dizer que te dispensamdo lugar em que habitas, que te dispensam na tua própriapátria e que podes morrer em terra alheia).

Um quadro é um grito num campo de batalha,o grito de quem não morree luta contra as sombrasdos fantasmas por uma habitaçãonão interrompida, um lugar onde poisarás de novo a tua sobre a minha mão, apelando ao silêncio nesseespaço vedado à morte.

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ENTRE UM QUADRO E O INFINITO

Entre um quadro e o infinitopairas tu, alada figurados meus sonhos que o tempoacolhe numa pétala de rosa.

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A LUZ ENTRE UM QUADRO E O INFINITO

Como um romanceaberto sobre a mesaonde a luz coada pelas vidraças se acomoda, transpareces de partículas ávidasaspergidas com as cores da minha tela.

Na raizdas palavras floresce uma eternidade que entusiasma a terra e recusa-se a morrer no silencio imposto ao mundo. Vives.

É impossível, por isso, suspender a viagem entre um quadro e o infinito.

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AS FLORES NA TELA

As flores poisam sobre a natureza morta. Olham para nós no meio de crianças debruadas de gritos e fazem do amor um assunto inquietante. As flores são a sinalética da natureza não se pode escondê-las em lugares de silêncios ou confiná-las às cores dispersas num quadro. Aí passam a ter vidas imaginadas. Eu gosto muito dos girassóis de Van Gogh e, se pudesse, até lhes dava cinco estrelinhas num modelo de avaliação de gostos e comentários próprios de redes sociais. Mas as flores pintadas numa tela, oh, essas não as posso cheirar. Não exalam perfumes, não respiram nem as posso cultivar num jardim. Não adornam mesas, embora possam refletir-se em espelhos. Num quadro, eu sei que as flores adquirem uma vida quase eterna, a vida dos nossos sonhos, dos meus e dos teus sonhos. Mas deixaram de ser flores.

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COR

As minhas cores

sobre a tela transpiram

as insónias dos pássaros

desencontrados nas cantarias

dos telhados de Lisboa.

Os traços, indeléveis traços

das cores absorvidas

nesse espaço vedado à morte

são linhas de liberdade.

(Summit, 05 de Janeiro de 2009)

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AS CORES INCANDESCENTES

Se nada mais houverentre as janelas do teu corpoe um fogo sem fronteiras,há-de permanecer o pressentimentodos silêncios com os quais adivinhareia tua presença na aventuradas cores que habitam estapaisagem incandescente.

Todas as artérias ardem devorando imagens, tempo e circunstância.

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AMANHECER I

Não encontro no vão dos céus outro olhar ao amanhecer senão o do teu sorriso que se ilumina com a claridade e o crepitar do fogo.

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AMANHECER II

Que luz resplandecepela manhã ao acordar? Que maresia invade a janela e transborda a cor do mar sobre o teu peito? Que pétalas flutuam no arcobrindo-nos de rosas e frutos?

Que verde, que azul, que claridade se apodera de nós embriagada pelas águas?

Não encontrarei outro lugarpara aquietar os diasnem chama pararesplandecer a noitesenão nesta habitação transitória.

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LUZ I

A cidade despertou banhada de azul. O vento amainou. E à luz da manhã intensa, as palmeiras leram-me a tua mensagem. Um burburinho de aves soltou-se dos beirais mas não me disseram se a chuva regressará depressa. Falaram-me do mar e das areias que acolheram o teu corpo coberto pelo lençol de espuma onde gravaste a tua mensagem.

Fácil para as palmeiras terem-na lido e dedilhado na correnteza de um arabesco. Inshalah.

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LUZ II

Tenho a obsessão da luz.O estremecimento da tua vozna folhagem da palmeira.O silêncio que colhe de surpresaa quietude das águas ondehabitas como um sermarinho suave e vigilante.

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A LUZ III

A luz deslumbranteda claridade do mar.A luz estonteante aportao sussurro do mundoe a navegação silente.

A luz que esclareceos contornos do corpoabsorvido no calordum imbondeiro.O abraço à luz do diaa uma almofada vazia.

A luz nos minaretes quecontemplam os murosbrancos onde a voz do Profetaecoa. A luz que amanhecenos meu lábios, desvendaos meus cabelos e amorneceo meu corpo. A luz.

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AS MANHÃS

As manhãs são radiantes.Mesmo as que despertam sobo ciclo das brumas e pulverizam a vida a preto e branco.

A luz.A luz que clareia as nossas ruas, o voo das aves, a vizinhança perturbadapor uma serenidadeinesperada,a luz que iluminaos rostos matinais,os passos à luz,afagam o meu dia.

Difícil extorquiro prazer íntimodas manhãs do mundo.Efémeras, cruzamo-lasdiariamente sob o ciclofrenético da bondade humana.

Eu gosto muito das manhãs.

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AS MANHÃS AZUIS CHEIAS DE MAR

Transbordantes são as manhãsazuis cheias de mar que abordamos nossos corpos indecisospregados ao chão de uma energia incalculável.

Transbordante o olhar que,sobre as colinas verdes do meu país,rasga as areias e os desertosde pó para se aquietar noalinhamento das palmeirasaspergidas pelo vento.

A voz das almas sussurrano cemitério dos crentesaninhado pelo braço da enseada.Alah é grande e aos mortosconcederá a sua paz e eternidade.

As manhãs banhamos corpos duma chuva incessante e suave. A água lava os nossos rostosem abluções transitóriascomo a paisagem amarelecidapelas inconstâncias do tempo.

Transbordantes estas manhãsonde palpita o meu coração em África.

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A DÁDIVA DAS MANHÃS

As manhã oferecem-meo mar na sua plenitude azul.Ainda não regressei das estrelase a batida das vagas desperta-mecomo se fosses tu, tocandoos meus cabelos, afagandoa minha nuca e deixando nosilêncio sublime da naturezaa constancia dos elementos e a luz do dia.

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MAR I

A minha varandadá para o mar. Uma nesga de azul, uma frincha de horizonteuma fresta de frescura.

O zumbido do ventoespraia o silêncio fustiga os temporais.

O mar sem roupagem.Nú e azul em sua líquida mensagem banhando-me as mãose empurrando a memórianum voo de gaivotas.

Noutros lugares haveriade aguardar pela pegada das garçasa caminho do mar.

Mas aqui bem perto,digo à minha varandaque se debruce sobre o mar, sem hesitações e me devolva a luz e toda a poalha de azul profundo.

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MAR II

A luz transcende a paisagem. A serra diminui a sua presença alada,e o mar recebe, azul, as linhas de um imenso eco. A zoada dos búzios é um esboço do vento em fim de tarde. A batida das águas nos rochedos reanima as vozes marinhas. Renova o tempo. Amacia os alicerces da espuma de sal sobre as areias e o estremecimento dos búzios anuncia a maré das algas verdes com os braços entrelaçadosnas vestes da ondulação.

Há mar e mar e um olhar distendidosobre o horizonte de uma ave certeira.

Recolhe-se a luz, a transcendente luz da paisagem. Tudo é poalha coada no filtro do areal onde repousa uma barca e a cega do mar onde se lavra o pão com a juntade bois que vence o silêncio.O resto é paisagem líquidae um casario perdido na estreita faixaentre os homens e a claridade.

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MAR III

Sou feito de mar. E não seipor que sou feito de mar.Pergunto às ondas que lavamos meus pés perdidos na areiasobre as circunstancias em que fuifeito de mar e duvido quesaibam responder-me. Sob o olhar mudo das suas vozes batidas nos rochedos, elasdizem apenas que sou feitode mar. Os búzios sussurrame utilizam vozes longínquas, mas não contam os segredos genesíacos da minha gestação porque sou feito de mar e tambémnão sabem quebrar um segredo.

Resta-me pedir que regresses à praia e perguntes ao mar de que sou feito e ele talvezte responda através de umasucessiva e forte ondulação. Então, entre a espuma e o corpohá-de gerar-se um calafrioque é a espinha do ventoa enfurecer-se por não ter,de uma forma tão certeira,a resposta directa à pergunta sem ruídos e ameaça de comoções.

Apenas uma gaivota, que estaráa teu lado, no areal, to segredará.

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MAR IV

Lancei os meus versos ao mar. Uma pen-drive bastou.Liberto-me da tentação de continuar a escrevinhar coisas que, enfim, deixaramde ter sentido.

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MAR V

Escutas as ondas do mar?Sentes o vento de poeiraesbraseando o teu olhar?Cobre o teu corpo com a poalhadas águas e aguarda. Esperaserenamente a mensagemdo silêncio, abraçao meu ombro no teu regaço,deixa que a chuvase torne a flor de salque alimentará a minha voz.

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MAR VI

Impossível viver sem o azuldo mar. A sua ausênciahaveria de causar-me a securada alma. É como se de repentedeixasses de existir ou eudeixasse de escutar a tua voz,minha razão de respirar.Recuperei as palavras do fundomarinho para onde as havialançado. O sal e a luztemperaram-nas e por issoa ternura que me enviasno voo das aves, dá-me a energiapara sobreviver.

Impossível viver sem o azuldo mar. Eu, que sou feito de mar.

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O MAR EM DAKAR

As manhãs azuis e leitosasencantam-mecomo as aguarelasde Paulo Ossião.

Neste mar senegalêsrevejo a luz do marde Lisboa, ancoradaà solidãono cais das colunas.

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UMA ESTADIA NA PRAIA

As estadias na praia são feitasde areia e mar. De sol e núvens.E neblinas. As toalhasencharcam-se de areiae sacudimo-las como bandeirasesvoaçando ao vento. A brancura da espuma marinha sobrevem das águas azuis.Ali se extinguem os cristaisque amaciarão o teu corpo.

Sento-me a teu lado repletoda inquietação juvenil de te desvendar.Tenho os ossos trespassadosde frio. Trouxe um aquecedor para a praia. Uma salamandra.Ainda pensei num garrafão de vinhopara nos aquecer as entranhase um cesto com pão de milho e chouriços.Mas disseste-me que era um exageroe as pessoas haveriam de invejar-nos.Não lhes diríamos que é por causa de não repousarmos as nossas nucas no leito desta habitação interrompida que nos acolhemos sob a frescura das areias humedecidas pelo bamboleio das águas e a irritação do vento.

Entre os rochedos mergulhando no abismoe o voo das gaivotas atarantadas pelo rugidodos leões marinhos, farei desta estadiana praia um momento de júbilo.

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O AREAL E DEUS

Aquietou-se no areal a terra dos homens enfeitiçados pelo vento. Charcos de vento e lama, uma fina lama de areia e pó ganha luz e amplidão. A água, num gesto de sede, sufoca todas as gotas disponíveis. Voltemos então à limipdez, à claridade dos moinhos atiçados entre a paisagem marinha e a atmosfera amarela dos campos.Mar e campo. Areia no coraçãodas águas e um vulto acenandosorrisos onde as telas prosseguema criação do mundo. Areias polidas, movem-se como cristais mínimos e imperceptíveis. Areias presas aos pés de um deus hirto e humílimo,como se fosse um homem enjeitadona sua mátria. Um deus que não cessa de chorar, como nós, humanidade. Um deus-criança brincando com o mar, vestido de algas e sargaço. Um deus alivanhadoentre presente e passado, vagamente pressentido no sabor a sal de pálpebras cintilantes. Um deus de esplendorà hora do sol pôr. Um deus de areia regressando ao mar, como Neptuno solitário, sentando-se em seu trono líquido.

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O ROSTO DE DEUS

O vento amainou e uma aveabriu as suas asas sobre o oceano.Não temeu a frescura das águas nem a inocência do corpo.

À pele dos vagalhões, os dedosdum ser perdido na florestatacteiam a face de deus. E deus espera sentado pela genial belezade uma roseira brava.Aguarda que floresça paraa colher nos dias da irae com ela acalmar a forçade seu braço vingador.

Não haverá por aí alguémque nos dê alegrias sumptuosas?E os dedos e as mãos tacteiam a face de deus. Tocam as suas longas barbas.Está cada vez mais humano.Digo eu, cada vez mais pecador. Está a tornar-se igual a si próprio.Deus e as mãos sobre o seu rosto.

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A MÃO DE DEUS

Gostava de pintar a mão de deus e o seu dedo indicadorcomo princípio e fim de todasas coisas. Terei de pedir conselho a Miguel Angelo, analisar os finos traços que se suspendementre a mão do homeme a mão de deus. A mais perfeita mão (de deus)encharcada de humanamatéria, delegando no homem o seu próprio corpo. Mas também a mais imperfeitae corrupta das metamorfoses.

Fixemo-nos na imagemda mão. Eis o que resta damatéria de deus. As suas barbasolímpicas poderiam empenhar-secomo João de Castroempenhou as suas paramanter a nossa honra índica.

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HUMANIDADE

Deus seria muito maior se fosse homem. Haveríamosde bisturizar no seu corpo as veias e o sangue a ferver, compor a seu lado uma orquestra de anjos querubins e aguardar na água do tempo a cristalina frescura dos rios da terra.

Haveríamos de voar sem asas na orla de nossos voos metálicos. Haveríamos de ser leves e anunciaríamos a chegada dos seres varadospela macieza das paisagens,flutuando sobre a nudez dos campos e amando-se sob os lençóis de nuvensque deus absorve para sobreviver.Seria muito maior se fosse homem, assim, de carne e osso, como nós.

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GÉNESIS

Regresso ao livro do génesise à sua música celestialao princípio gerador do verboa palavra, a cronologia da criação.Regresso permanente-mente à gensíaca habitaçãode um útero, criador de solidões, ao magmada palavra verdadeiraao sortilégio de deus.Regresso à intempestivaforma caótica do silêncio,à pergunta exacta constantedas gramáticas universaisproduzidas em Babel.Ao nu de Adão e Eva, à singeleza da inocência cruelmente perdida. Perdida por nada.Por um gosto a maçãe ao seu aroma oriunda daárvore plantada no jardimdos avós. Pudera. “An apple a day

keeps the doctor away”.

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AS DIVINDADES

Reclamo das divindades as suas presenças em carne e osso. Fui enganado com a treta das divindades existirem sob a forma de fluídos invisíveis sem lhes podermos tocar. Tenho de as ver e cheirar.

Reclamo por isso a substancia e o imperativo de cumprirem promessas adiadas, tocarem o presente com as suas longas mãos – se é que as têm – acomodarem o futuro datando-o especificamente para não termos de andar por aqui a vaguear, à espera de quem nunca chega, nunca aparece, nunca se vê. Não pago conversa fiada nem previsões dos números da sorte. Não me contemestórias.

Das lendas que se fazem e desfazem, acredito no tear de Penélope – a mulher deveria ser gira para caramba – e no castigo de Sísifo – ainda assim, pergunto-me como é que o tipo não haveria de ter ficado com hérnias discais e artroses por carregar ou empurrar até ao fim da vida um calhau gigante ? – e acredito ainda nos heróis do nosso descontentamento nacional.

Por isso, proclamo que as divindades conquistadoras, castigadoras de vencidos e pecadores, são uma absoluta desnecessidade e de todo espúrias por se manterem imunes à humanidade dos nossos rostos, dos nossos beijos, dos nossos sexos. Divindades assim não servem para nada, não prestam.

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A SACERDOTISA

Apelamos para que se procedaao ungido divino entre as colunasdos templos onde florescem as mulheres envoltas de véus trans-parentes. As mulheres de Ulissipo e as mulheres de Atenas.As de Alexandria e as mulherescom a macieza arrancadaà carne dos deuses perturbadospela sua beleza. A consagraçãohá-de fazer-se com os óleos perfumados que encerram o destino dos séculos. E a sacerdotisa há-de banhar os seios nas águas de oceanos violetase os seus guerreiros hão-de pararo sol como há muito já não acontecia.

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OS SÍMBOLOS

Trago nada nas mãosa não ser um pássaro silenciosoque deixou as memóriasgravadas nas árvores do bosquena cidade vizinha.

Um duende curiosodesvendao elixir da alegria. A musa, arrebatada, traz-me nada.Apenas mãos vaziascrepitando no fogo das palavras.

Por isso, trago nada nas mãosa não ser um livro de símbolos,um manual de precese a voz sagrada do tempobeijando-me as faces. Trago o nada.

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OS SÍMBOLOS DE LISBOA

Os símbolos que encontrámosna cidadetinham o formato das estrelas cintilantes.Iluminaram caminhos,conduziram deuses e gravaram na pedraos seus oráculos,amaram as sacerdotisasviolaram sagradamente a poesiae apoderaram-se da casa rutilantecom vista sobre o rio.

Na areia, na espuma pousada da barra,havia uma pegada passageira.Os homens desenharam os seres marinhosque aí desvendaramsobre as pedras .Só não desenharam o vento e as mãostecendo a lua numa rua de Lisboa.

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ORATÓRIA À TERRA DE LISBOA

Na terra tocaremos a polpa dos nossos dedos livres, ó cidade das mil colinas encantadas onde germinam os dias e as tardes cálidasde um verão anunciado.

Tocaremos a poesia nos miradouros onde guardasa crosta dos castelos e escutaremos a voz do fado chorando por ti, ó cidade de Ulisses desencantado.

Na cidade dos telhados pintalgados de gatos e pombos,nos telhados vermelhos e nos varandins de manjericos e lençóis esvoaçando como bandeiras, teceremos arabescos no basalto das avenidas à luz mortiça da tarde.

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Na cidade das vozesáticas repartidas nessas colinasonde as aves habitam encontrar-te-ei no pão e nos frutos da primavera,aguardarei a tua partida a caminho do poentepara escapar, ao crepúsculo,das gaivotas atiladas no cais das colunas.

De madrugada, voarei para o mar em busca da solidão.

(Oeiras, 1998)

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AS FONTES DA CIDADE

A maioria das fontes secou.A boca dos deuses de pedrasecou. Os homens e o tempo praticaram o exercíciodo desgaste e os graffittirecomendam violênciasque impelem a cidade a esconder-se na folhagem. Os animais de trazer por casa e os míticos seres da florestajá não vão à fonte porqueos cântaros também não.O silêncio das efígies bordadascomo os memoriais noscemitérios é interrompidoapenas pela esplêndidaressonância do vinho à mesa dos contadores de estórias e dos guardadores de sonhos. A cidade dormita

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no ar, no linho decomposto pelo fogo, na palavra livre dos argonautas em rota contra as sombras repartidas e ausentes. A cidade degolou as antigas fontes de mármore, trocou-aspela companhia das águasgastas pelo ócio onde respira ainda a líquida, cristalina matéria da memória.Das fontes restam as pedras de outrora com as quais engalanamos agora nossos roteiros turísticos.

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PALÁCIO DA PENA

As aves, o sonho e a ligeireza do andar. Não haveria maisdo que o soprode um fantasma atribuladovagueando nas florestasadormecidas do céu.Como um rumor de caminhar suave entre nuvens.

Voltarei ao sonho do príncipe desencantado, enclausurado no seu palácio como um animal suspenso no universo da poesia.

Digo eu, apenas por um rumor de caminhar suave entre as nuvens.

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SERRA DE SINTRA

O castelo assombra a noite,e o choro de um vizir clamando pelos seus mortos. Alah enviou-lhe o anjo que o libertaráda lei da vida e amaciará os seus ódios. As palavras amainarão o vento agresteda montanha. Não se daráconta do palácio ondebrilham as cores e os espelhos,os nichos e um pátioonde brincam os sonhosdespedaçados de um rei espantado.As lajes são a memóriade pedra entre o frio da madrugadae o zumbido dos pinheiros.

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UM DIA DE SOL

A via láctea mudou-se para o mundo.Fez-se nuvem e o sol penetra-a.Acolhem-se nos braços um do outroaninhados num salão do paláciosuspenso na aurora. Os dedos entrelaçam-se o sol rasga o horizonte.

Longe, nas colinas da cidade, os homens espreitama união dos elementos cósmicos. Os homens queremsaber da comunhãode um corpo no dorso do mundo.

Sol e via láctea.

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A ROTA MARÍTIMA DO TEU CORPO

A espuma do mar habitaa rota marítima do teu corpo.A zoada dos búziosé um segredo preso no tempo. Se eu soubesse como cantamdeixar-me-ia levar no voodas gaivotas até às balizas da barra.

Aí saberia do trânsito de amigos impacientes, da pátina das rochas descobertas em tua navegação silente e alcançaria o mar,esse segredo de espuma que afaga o teu corpo e traça o meu destino.

O frio e a chuva seriam recordações abandonadas. No mar, a chuva é o corpo e a alma da tua voz. E na poalha do céue a das águas azuis, regurgitará dos teus lábios o nome desta lírica inquieta.

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O QUE O MAR ME TROUXE

Esta manhã, os pescadoreslançaram as redes e recolheramo mar dentro de um círculoamarelo. Nele escutei a vozque uma ave inquietame trouxe até ao varandimonde poisou num breve acenode asas e ternura. Entre elae o mar ficou apenasa distância de um sopro.

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O REGRESSO DOS PESCADORES

Os pescadores regressaram com os seus círculos amarelos e cercaram o mar. Puxaram as redes e - com elas – as águas para dentro dos seus barcos. E o mar, na sua tranquilidade líquida, deixou-se levar. As palmeirasafagaram o suspiro da ave que se aquietou no topo da habitação. O mar reconheceu-tee prometeu-te a chuva na próxima estação.

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O APELO À CHUVA

O teu sopro é a minha razãode vida e a minha exaltação nãoreflectida. Como todas as coisassedentas de água, aguardoà janela do teu cenáculoque a chuva regresse depressa.O teu sopro depende da chuva e a vida nesta habitação transitória depende de ti. Saberás que o cordãoumbilical é tão antigocomo os livros sagradosonde repousa a tua serenidade.

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CHUVA

Gritos de prata retumbam na noite entrecortadapela luz mortiça dos candeeiros.Gritos líquidos de prataque as luzes fugazes iluminam.A chuva asperge as estrelase enche de carpas um lago de estanho.

Acomodam-se as folhasna berma dos caminhose as combustões poluentes provocam um aquecimento artificial das raízes da terra.Nada como a chuva para refrescar os nossos rostos.

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OS DIAS DA CHUVA

Ferroadas de frio rasgamcomo lâminas afiadas as manhãs aninhadas por detrás dos muros escorregadios.

As libelinhas já não saltitam,os seres da terra aquietam-se nos beiraisaconchegados ao calorestiado dos joelhos,os corpos embebem-seda suavidade dos musgos,e as árvores suspendemo tempo e anunciam a estação das chuvas. Tudo se conjuga nas águasfustigando as nossas janelasatarantadas. A cinza do tempoinvade as manhãs. As tardesadormecem pela noite dentroe a chuva repassa a mão dos dias.

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A AUSÊNCIA DA CHUVA

Imagina a ausência da chuvae todos os animais perdidosna floresta haveriamde desconhecer a esperança.Por isso, as janelas desta habitação transitória desvelamos segredos na águae os elementos do teu corpo.

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OS DIAS CINZENTOS

Há dias cinzentos nos quais pressinto o teu júbilo pelo regresso da chuva.

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A ENERGIA DA CHUVA

Tivesse a minha voza energia do teu corpoe sentir-me-iacomo a luz, o mar,as aves, as palmeiras e...a chuva.

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REGAÇO DE CHUVA

Sob a frescura da manhã leitosaque moveu a poeira do deserto para os fundos marinhos, aquieta-se uma avena ramagem da palmeirae saúda a terra perdida na bruma. Láse prescrutam os passosde uma voz sublimeque me traz a ternuranum regaço de chuva.

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SOB UM CÉU GRISALHO

Céus grisalhos ameaçam a terra do lado do mar oceano. Não se enxerga a poalha marinha, não sevislumbra a linha que separa o céu e as águas. No meio, uma pradaria, desvanece-se como uma tapeçaria verde que o azul cobalto envolve.Há seres alados com os quaisnos habituámos a conviver.Os sonhos povoam-nos de multidões de esperança. E uma lagoa rejuvenesce. É tempo de pousar a palavra e entorpecer o silêncio.

Tal como a cantaria rasgada nos muros, aguarda-se agorauma enorme chuvada.

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AS CHUVAS SURPREENDENTES DE MAIO

Tiritas sobre a terra fresca e húmida das chuvas de Maio.Não há degelo nestes lugares, existem apenas as tempestades eléctricas que percorrem o céu e não se dão conta das aves pousadas nas árvoresna outra margem em frente de ti.

Os cristais líquidos deslizam nos arroios, estalam nos leitos como massa folhada entre os dentes, retêm os sons da natureza e aguardam as mudanças do tempo. A tua voz deslizará no meio da chuva.

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CHOVENDO SOBRE UM QUADRO

A chuva tem o rosto nubladoleitoso e jorra sobre os seres adormecidos nas habitações interrompidas pela voracidade do tempo.

Na cauda da chuva há um rasto de solidão,uma suave embriaguez, um gosto liquefeito, uma chama ateada, que a minha mão arqueiano espaço de uma tela.

Um quadro feito de chuva não é o mesmo que um quadro à chuva. Um quadro feito de chuva une a matéria das cores ao cinzento divino, propagado pelo incenso que a mirra conservará. A chuva asperge as mãos, as humanas mãos que ousam recriar o mundo.

Eu gosto muito da chuva. Se não houvesse chuva seríamos secos e feitos de poeira como a lua. A lua parece brilhar por si mesmamas rouba a luz na casa dos outros. E a chuva é uma dádiva.

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SERIGRAFIA DE MOLINA

Molina enche de poesia um espaço soturno e incongruente. Na parede esfareladasustem-se a serigrafia que pende entre o desafio do olhar preso à rotina e o azul do rio, onde o casario flutua. Brancos,azuis, rosas e vermelhosinvadem a serena agitaçãodas palmeiras aguardandoo instante de contemplar desnuda, a poesia.

Assim é Lisboa na regra, na serigrafia de Molina, cheia de luz, prenhe de alegria.

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AS MÃOS

Tão pequenas as mãosque lá não cabem sequermínimas porções de céu.Tão pequenas as memóriascom tão escassas linhasque sobram tantasimensas palavraspintalgadas de solà luz das manhãsdespegadas. Tão subtisas mutações que nãose distinguem nem árvoresnem ramos, folhas,flores ou frutossem o recurso à magiados daguerreótipossuspensos numa caixade surpresas. Tudo voa.As habitações interrompidastambém.

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REFLEXÕES SOBRE A POESIA I

A poesia não conta o tempo.Refere-se a ele.Não vive obcecadacomo nósa contar o tempo.Nos relógios,nos autocarros,nos carros,no comboio,no metropolitano,no emprego,nos cafésnem a justificara falta de tempoaos amigos. A poesia não tem pressa.E graceja com essa correriadesenfreada dos homensatrás do tempo.

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REFLEXÕES SOBRE A POESIA II

A poesia é arte menorpara a maioria dos mortais.Mas ouve-se muitas vezes o seguinte:“Olha o querido (a querida)com muito jeitinho para a poesia”.Na escola, havia professoresque obrigavam os alunosa esse exercício enfadonhode escreverem uma poesia.Não esperavam que se manifestassemespontaneamente. E já escuteimuitas vezes: “Aquela pessoa –- quando o dizem – é poeta.Escreve poemas”. Como umsortilégio ou um sacrilégio.

Ainda por cima, a poesianão enche as livrarias. As livrarias que conheciadedicadas apenas à poesiafecharam as portas ou aindaresistem como sarcófagos egípcios.

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REFLEXÕES SOBRE A POESIA III

Os críticos, os sábios,os génios, as pessoas normaistêm ideias distintas e diferentessobre a poesia. Mas podemmuito bem viver sem ela.O que se escreve na poesia não importa para nada.Não enche barrigas, não enche cofresnem armas vende. A poesiapoderia até ser uma arma.Mas já não é. Um graffittitem muito mais força. Depreende-sealguma poesia das escritasnas paredes. Não importa.E a quem não importa mesmo nada é aos nossos animais de estimação. Eles não sabem ler nem escrever poesia. Percepcionam sons de palavras que se usam na poesia. Abanam a cauda, movem as orelhas quando escutam as palavras rua, comida, pipi, púpú,essas merdas biológicasque todos fazem e os nossos animaisde estimação também.Mas não entendem nada de poesia.

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REFLEXÕES SOBRE A POESIA IV

De todos os seres vivoso homem é o únicoque escreve poesia.E nesta habitação transítóriaas palavras estalamna tua voz como uma súplicae como o zumbido de abelha.

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A MISSÃO DA POESIA I

A poesia é estranha às falsas invocações, decifra segredos e acolhe-seno teu regaço. É o seu ninho.Tem por missãodespertar vozes e ser bandeira. Porque não há segredo como tu, na transparência da invocação no momento em que as sensações se agitam sem emoções por aí além.

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A MISSÃO DA POESIA II

A missão da poesiaé mostrar como lutamospela igualdade das palavras.

Pela fraternidade de cada sílabacada letra cada consoantecada contorno rítmico,para que a dor se ausentequando me citas à tua cabeceira.

A missão da poesiaé juntos lutarmos pela liberdadea tua, a minha, a de todos nóse a do poeta sentado no cimo de cada frase, cada parapeitoonde poisam as avesrefrescando-se com o ventoe a água cristalina e com elascantarmos a fraternidade neste recanto de finisterra.

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A CAPACIDADE DA POESIA

Gostava de ter a capacidadede interpretação da poesia,embrenhar-me nos corredoresda palavra, empunhar nos dedosa agitação das bandeirase macerar o mundo,essa coisa redonda rolando na sucessão dos dias e das noites.

Gostava de ir ao mercadode Bagdad antigae descobrir os labirintos, os rendilhados dourados das janelas ondepermanece clara a vozdo tempo pela voz zublimeda poesia. Simplesmente gostava.

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A MINHA ZANGA COM A POESIA

A poesia não tem de sera voz da alma. Nem dasua sombra. Se “o poeta é um fingidor”, a poesia não refletenada nem pena nem dornem um cabelo do poetasequer, amador de palavras,das palavras corroídas pelo tempo, a voz de todos os fingidores.

A poesia não é arma de combate, já não vai à guerra, quem vai à guerradá e leva e a poesia nem dánem leva, nem sequer éarma de arremesso,é simples passatempo e entretém, não dá de comer a ninguém e a maior partedos poetas que conheçomorreram sem ter um vintem.

Uma voz vazia, a da poesia.

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AS FIBRAS DA POESIA

Sinto as fibras do meu corpoa latejarem de poesia ejá não posso parar. Deixeide comandar a minha mão. Ela move-se por um impulsoazul que escorre, líquido,nas páginas de um cadernode notas. A caneta, o lápis,a esferográfica, um instrumentoadequado à escrita são apenaso sintoma visível dessainquietação. Na presençaelementar do universosabe-se apenas que a muitas milhasmarítimas de distânciauma voz permanece vigilantee viva ao mínimo arrebatamentodos meus passos. A da poesia.

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A POESIA DO SENHOR DOUTOR

A poesia do senhor doutoré um desassossego. O senhordoutor não dorme nem deixadormir e tem um apegodo caraças à mania de escreverpalavras com que somenteas velhas carcaças se preo-pam. Palavras que despertamsentidos. Os zombies não fariammelhor. Mesmo no país doszombies há quem não consigaescrever poesia como a escreve o senhor doutor que só tem vida para a poesia, muitas vidas como os gatos, sim senhor,(mais até do que os gatos, cheiosde sete vidas, mais do queessas sete) contando aindacom a vida que se leva nesta terra que não está para poesias nem derrames sanguíneos de poemas,estirados nas bandas dos casacos como os louvores ou algemas de honras mutuamente consentidascelebradas apenas entre gatos e com arranhadelas nas costas onde naturalmente, não faltará a poesia da ordem do senhor doutor.

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AS GRAMÁTICAS

A gramática dos sorrisos tem surpresas coloridas. Pulula na sala dos espelhos,joga ao esconde-escondee esconde-se do mundoassim que a luz se apaga.

A complexa gramáticados espelhos reflete sorrisos e lágrimas que não podemos tocar.

A gramática dos sorrisos traz-nos a madureza do tempo. O sorriso que fenece envelhecendo, o sorriso verdadeiro, de sentimento,como a memória escritaem páginas de alumbramento.

A gramática de uma telatransluz os sorrisos da gente, autênticos,consistentes e acarreta o princípio de todasas coisas, embaladas pela vozdas cores. As cores e a sua gramática.As cores tristes, alegres, suaves,carrregadas, brilhantes, quentes,mordazes, frias, cínicas e sorridentes.

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As cores que choram e dançam, se movem no coração das formase fixam os detalhes de um retrato.

Como falar com uma cor sorrindo?Perguntaremos aos criadoresque dominam as técnicas da alma.Perguntaremos como fazemquando a água jorra de livros e significados gastospela voracidade do tempo.Perguntaremos aos oficiantesdas palavras como fazem paradar cor às letras, às simplestessituras de complexos arabescospostos ao alto no mosaico doslugares sagrados. Não perguntaremos às gramáticas.

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LIVRO DE POESIA I

Livro de poesia, aberto como a ramagem das acácias, suspensa a escrita nos braços da folhagem. Livro em versículos de ouro como os livros sagrados de qualquer religião, a Tora, a Bíblia e o Corão. Espontâneo, como a beleza do verso ao estilo de uma sura.

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LIVRO DE POESIA II

Lê-se nas entrelinhas sem constrangimentos dispensa os textos dos críticos e fuínhas e a tradução das aparências. Sem grilhetas onde imperam os vícios que entorpecem os caminhos da liberdade.

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LIVRO DE POESIA III

Livro de poesia sobre a mesa do salão aberto de par em par como uma janela voltada para o sol. Livro onde se escreve a memória de cada linha e na tua voz segura a minha como uma âncora de abrigo. Como o porto tranquilo e sem perigo, sem tempestades,ondulando suave sobre a tua pele em busca da palavra, do fogo da tua escrita ardente.

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LIVRO DE POESIA IV

Livro aberto de poesia invocando a terra e os bosques onde nos aguardam as aves e todosos animais perdidos na floresta.

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LIVRO DE POESIA V

A poesia dos livrostem o poder das antigaspoções universaisembebe de sonhosa fragilidade dos seres,comete os sentidosna espuma do tempo.Se aí houvesse um mar,abriríamos uma página paracaminhar sobre as águas.

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AS ESTANTES

As estantes não dormem.Postas ao alto, abrem-se como sacrários velhos dessacralizados da obrigação de guardarem os símbolos dum tempo de cristos imperfeitose oferecem a leitura aos cegos e o pão ázimo às folhas.As estantes não inquietam.

Os recheios das estantes sim. São o alvo da cobiça. Da mesquinhez, da inveja, da ausência luminosade cabeçorras que adorammandar queimar os livros,censurá-los, amarfanhá-losno âmago da pequenez letalde “dinossauros excelentíssimos”.

Os recheios das estantes desafiamas ideias pequeninas dum país pequenino, e há quem se lancecontra as estantescomo os soldados ao inimigonum campo de batalha.

O recheio das estantesassusta muita gente.

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Nas prateleiras repousam palavras que recobram fôlegopara uma nova aventura.E os sábiosque adoram aprender,a cada dedadados “colóquios dos simples”,reinventam a ciêncianos livros de poesia.(Uma enorme heresia para quem mandou matare queimar num campo deflores um homem que ofereceuao mundo toda a luz infinitada nossa liberdade.

As estantes são a minhavida. A tua vida a nossavida e feitas de vidroou apenas com o pódos livros. E as mãosdeixam tactear os dedoscom vigor, vibraçãocomo um diapasãomusical nas folhasdos livros que estremecem.Neles se escutam vozes,as dos mortos e vivos,ausentes e presentesou apenas furtivosseres imagináriosdas estórias de ilusão.

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As estantes conservamhumanas derrotas e vitóriasdemasiadas ou escassas. Ali estão à nossa esperae, gota a gota, comoa chuva deslizandonas vidraças se acumulam nas cantarias do tempoe dos séculos dos séculos.

As estantes não dormem.Merda. Mas também conservama traça que as há-de roercomo aos livros os autos da fé.

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MEMÓRIAS QUE A POESIA TECE

Emprestamos o silêncio ao frio. Sobre os nossos ossos aninha-se a mornada terna de vozes, trepidações e aconchegos.

Lentamente Libertamo-nos da lei dos deuses, e damos lugar às humanas estações amadurecidas no ocaso onde os teus cabelos reflectem a esperança sob o ritual do amor.

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MEMÓRIA

Lamento não ter adormecido emteu regaço, não ter conquistadoa tua serenidade, não ter composto o sopro de todas as coisascom o ar que transpiras e respiras.

Porque o silêncio foi crescer mesmodentro da palavra. E no momentoem que as pedras sangraram, perdi-meno mar e de ti apenas sobraramas tépidas mãos com que te desem-baraçaste da memória. Havia pétalasturquesas calcorreando as vagase não me recordo de muito mais.Foi há tanto tempo que já não fixosequer o teu rosto. Retenho a febre. A febredos teus lábios e o teu estremecimento.

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AUSÊNCIA

Se estranho a tua ausênciaé porque sinto nas palavrasa presença cíclica dos frutos e a madureza do olhar.

Bem perto avizinha-sesobre o meu leito o sabor amendoado da pele e a concepção do fogo entre os gemidos que resvalamdas tuas entranhas marinhas.

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NO TEU REGRESSO

No teu regresso sobrevém a surpresa de ver-te a noite inteira diferente da chuvae da alvura no frio da madrugada.

Respiro o aroma dos caminhos que entontecemo meu corpo ao pressentiros teus passos.

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ABRAÇO

Por vezes, só precisamosde abraçar alguém. Deixaras palavras numa gavetae ter um gesto subtilde ternura que preenchaa dimensão desta habitaçãointerrompida. Excluiros excessivos porquês,as linhagens e dar a mão.

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AS MÃOS II

No instante em que as manhãsbeijam de luz os muros interioresdesta habitação transitória,projecto-me nas mãoscujos dedos se tocam simétricosem forma de abóbada. Sob os seusarcos desenha-se uma catedral.

Podiam ser as tuas, essas mãos de dádivaque os deuses invejam. Mas ao olhá-las sob a timidez de as ver sem ter visto, saberei que nos caminhos do póencontrarei mulheres afagandoa ternura e oferecendo o leite e o vinho com que amamentarão os seres perdidosna floresta. Porque para mimsão as tuas, essas mãos que eu adoro.

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INFÂNCIA

Como os barcos em visitaà enseada onde todas as manhãso mar se enreda, assim os teus cabelosenvolvem a nuca onde depositeium único beijo sem estremecimentos.

De ti, conservo o sorriso quedespertou a luz nesta habitaçãotransitória. Tocarei ainda as tuastranças onde balouçámos nos jardins da infância.

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CANÇÃO DE EMBALAR I

Quisera ser flornos dias da primaverae deslizar no teu peitocomo um cravo de abril,ser malmequer entre estevas e viajar como o pólen no silêncio do teu arfar.

Quisera ser lua brilhando na noite, resgatar a luz, ser ave no voo sazonalter o mar a chuva e o sabor tropicaldas palmeiras que adormecemno teu regaço para escutara tua voz na canção de embalar.

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CANÇÃO DE EMBALAR II

Abordemos a noite num copo de água. Numa formadescontínua e absorventeda melancolia atendidanuma voz tranquilacomo a das fontes. Um ténuefio lilás de pétalas deslizana corrente, embrenha-seno bosque. Despe-se soba frescura dos caules,amacia os musgos,deleita-se com o som dos dias e a sombra dos plátanos sussurra.

É tão triste aquela cançãoe tão suave como a noite.Abordemos a noite.

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ENCANTAMENTOS

Gostava de encantar como a poesia e a sua nudez infinita. Percorrera palavra no trilho dos livros,emboscar as emoçõesas luzes agoniadas do crepúsculono poema, na casa, na solidão.

Gostava de aninhar-me num círculo fechadoalcançado apenaspelas raízes da tua nudez singular. Gostava.

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GOSTAVA DE SER COMO A NATUREZA

E também gostava de ser como a natureza, reinventar os diasrecriar as estações do ano, regressar a todos os começosseguir o voo das aves migratórias, agarrar o frio nos dedos e tactear a mansidãoe o tumulto, o tremor de terra que se gera dentro de ti e alcançar a penumbra das madrugadas que clareiam mais cedo e despertam o teu olhar.

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HÚMUS I

Regresso à natureza, aos elementos do húmus, à raiz, ao caule da árvore douradaonde poisa o universo. A árvore é, no entanto, estéril e não dá maçãs.A sua macieza metálicanão deixa que germinecomo simples macieira.Não fulgurana nossa pulsação ardente,não dá a beber do cálicee do vinho gerado no lugar onde o sol se une à terra.Tenta possuir-noscom uma estória bravade lendas e magia.

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HÚMUS II

A árvore não procria.Cercou-se de serpentes de fogo e confia apenas na decisãodos deuses sentadosno alinhamento das estrelas.

Quem poderá assimviver ausente da esperança?

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HÚMUS III

Já não há luas que abordem o mármore onde se estabelece o amor em mudança e a água se esvanece nas torrentes do teu olhar.

Por isso, regresso à natureza e aos seus elementos.

Acolherei nos braçosa ansiedade da árvoredourada exumando-a da esterilidade vingadora. Regressarei às artesde talhar um banco de jardim,a minha habitação residente,onde me sentarei a ler os últimos poemasde amor de Paul Éluarde os vinte poemas de amor de Pablo Neruda.

Saberás porquê.

Esse é o único lugar onde seivas a serena delicadeza de um lírio.

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OS PÁSSAROS E A POESIA I

A poesia é o lugar onde os pássaros desenvolvem as suas actividades lúdicas. Saltitam de folha em folha abanando as asas numa cantarolada alegre e sedutora. Tocam os seus bicos, beijam as suas pequeninas nucas com gestos de ternura inigualáveis. Ao pisarem o chão de carumas, escolhem as vigas com que hão-de construir os seus ninhos.

Nos dias de sol encantam a terra de melodias que uma partitura barroca imita muito bem. Nos dias de chuva, aninhados e melancólicos, aguardam por um regaço que os acolha. Os ninhos encharcaram-se e nas árvores não há mais espaço para novas habitações. Eles sabem das palavras recolhidas pelos poetas e das suas entoações rítmicas.

Os pássaros habitam a poesia…

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OS PÁSSAROS E A POESIA II

A poesia é o ninho dos pássaros. Vejam como volteiam e chilreiam num apego desprendido de cantares. Cruzam cânticos pelos ares onde o vento acalmou a aspereza das palavras. Os pássaros pedem que se lhes escrevam as cartas como num tempo antigo as escreviam os fazedores das cartas de amor. Os pássaros pedem aos poetas palavras sábias. Versículos que reflitam a compaixão e a alegria na ondulação da tua voz sagrada.

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AS AMORAS

Os silvados são as habitaçõesinterrompidas da infância.Os picos tangentes das silvasagrestes marcam os corposcom linhas tracejadas a sangue.

(Há um sabor de punição entreas rosas feito perfumeno momento dos beijos).

Nas silvas escondem-se os bagos vermelhos e roxos da terradebruados em teu lábiossedentos do aromacom que uma amora invadeteus braços.

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Uma infinita ousadia leva-me a perseguiresse deus inquieto que, para defender seu fruto,não precisou de uma serpentedourada, não camuflou a sabedoria, nem desdenhouo arrojo das infancias.

Se houvesse paraíso na terra, enchê-lo-ia de silvas parate proteger e aspergir. E aguardaria na seiva de tua boca o suor das amoras e a estonteante sedução do teu aroma.

Como não haveriam de coroaro teu arroz doce?

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TOALHA DE MESA

Já vi toalhas de uma brancuraestonteante. É como eu gostodas toalhas de mesa. Na tua,porém, acomoda-se uma toalhabordada, de branco intensoe os rendilhados são as linhastecidas de ternura pousadasno instante em que me olhase reténs o meu gesto de levaro garfo à boca com um montículode arroz branco.Nada como saborear essespequenos grãos tão tenroscomo os teus lábios.Sobre a toalha de mesarendilhada de arabescos.

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CHÁ DE MENTA

O chá de menta que me aquece as entranhas, traz-me as recordaçõesdas montanhas azuisonde imperavam os granitose as escarpas condoídaspela solidão dos seres trespassados de melancolia.

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LÍRICA I

Ainda não vi acáciasque se tivessem assustadopor lavarem as suas raízesde azul e espuma.

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LÍRICA II

Amanhã saberei de silênciosespectacularesabsorvidos pela constantemutação das geografias.

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TERRA I

No princípio era o verbo e o verbo fez-se terra, lugar informe e vazio.O verbo sem forma esem sintonia, ao fazer-se luz deu ao caos a luz do diae a harmonia aos sons.

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TERRA II

Terra, íntimo desejolugar hereditário do pó,dos rios de fogoregressados à íntima biologia e às transições elementares.

Terra das estações do ano da humana quimera do desejo surpreendidoda visão das estrelas,das altas montanhas,dos mananciais do vento do gelo do pão da seivado sagrado selo e do trovão.

Terra, lugar azulda infinitude dos mundos,da pedra sob o fogo ocultodo mistério do sol do nascente e do poentedas talmúdicas paisagens,bola redondagirando sobre si mesmaem torno da resplandecente estrela.

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PARQUE I

O parque é uma habitaçãotransitória e frágil.A natureza convergeem sua nudez tranquilarenovada pelas estações do ano. Um vasto silêncio verde onde paira o canto das avessobrevive oriundode um tempo antigo.As raizes, os caules,os ramos, a folhagemsão o lar de muitos dos seres– digo eu – perdidos na floresta.

A relva espraia-secomo as ondas do marsobre a qual reclinaso teu dorso magníficoe eu me deito a teu lado e nos rebolamos.

O parque acolhe-nos comonos recebem os lençóis de linho,tecidos pela ternura dos teus gestos.

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PARQUE II

No parque alcanço o rostodas aves migratórias, frenéticascom o voo do pólen.A passagem do tempoé como o zumbido dos moscardos e as mãos que o digam, vistas à luzdas linhas cartomantes no colode uma feiticeira voraz.

No parque procuro as colmeiasonde depositas pensamentosde mel. Encontrarei nas suas fontesos segredos cristalinos do granito.

A energia redentora das floresque adornam o parquehão-de implodir na nossa habitaçãoe humedecer os teus beijos.

No parque, reencarnarei de novo.

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NA SENDA DOS LIMITES I

Limites do céu e da terra. Do corpo restringido à composição elementar. Pertencerei à palavra colhida nas torrentes das fontes que transpiram o rosto fresco das mulheres bíblicas.A elas também pertencerei limitado pela emanência dos seus ventres. A terra-mãe, mulher como qualqueremanação feminina nos limites da cidade, nos jardins limitados pela cartografia urbana, por cada cruzamentode hesitações e estremecimentospermanece oculta no interior das mastabas.

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NA SENDA DOS LIMITES II

As cantarias denunciam o limitedo aconchego interior, curvadasperante a indecisão de pequenosnadas, as junções esquematizadasda planta de uma casa, os limitesda sombra nos varandins onde serendilham as estrofes da noite.As cantarias curvadas sobre o corpo. Num domínio de limites. Sob o sangueda intimidade, a lava do vulcãoaspergida nas quilhas das rochasmarinhas, define o limite de umanova ilha onde se tornarão delicadose quentes a seiva e os musgos.

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NA SENDA DOS LIMITES III

São delicadas as linhasque separam uma vida ardente da paixão avassaladora dos amantes. Delicados os limites das mulheres camponesas silenciadas no húmus da terra fértil. Metamorfoses gerando novos limites. O de criar recriando num regresso ao mesmo, sem parar, num imparável ciclo de fêmeas no centro da terra, íntimo limite dos reprodutores que se acolhem nos sonhos empolgantes.

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NA SENDA DOS LIMITES IV

Ilimitada, porém, é a voz da poesia. E, no entanto, absorvêmo-la no canto do vento, das águas e do sangue.Ilimitada nos limites possíveis da palavra, sua conjugação essencial,sua força jugular. Ilimitada nos limites das mãos que percebem o golpear dos girassóis. Vede comose estabelecem os limites ao fogo e ao crepitar das estrelas cadentes.Tudo terá princípio e fim, ao mesmo tempo que uma revolução celeste ecoará na chuva e da chuvanascerão as gotículas da primavera. No seio da poesia, na senda dos limites...... porque é afinal para ti que corrono limite da solidão.

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NOVAS DO MAR AZUL

Um dia saberemos muito maissobre o mar e o vento que o fustiga.E saberei de ti, cantadorados cantares de amigo e achareina poalha aspergida nos rochedosas palavras que não disseste,os silêncios que retivestee a aura que envolve a tua nucade fêmea frágil e cintilante.Saberei como tudo se transformana vastidão líquida e azule agradecerei a chegada dos seresmarinhos que me trarão novasde ti... ai deus! Saberei aindacomo voltarão a repetir-seos dias antigos nas mensagensarrastadas pelo vento. As ondas –saberei que são correntesprofundas do teu peito – hão-detrazer-me novas de ti... ai deus!

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AS NOITES FEBRIS DE TI

As noites tornaram-se febris.A água desliza ao longo dos teusbraços e agarra o vento que sobena correnteza das árvores.Uma única e intensa luz persegue-nos.Entre a claridade das estrelase os flocos de sombra nas colinas,habita o grito dos animaisespantados pelos astros e o reflexode prata na poeira do mar.Quantas luas faltam para queregresses? Quanta poesia perdidanos limites da tua febre...

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PERSPECTIVA

Da próxima vez que abriresas janelas dos casulos verdessuspensos sobre o mar,verás na ilha de prataadormecida sob um azulintenso o ponto exatodesta habitação interrompida.Ali se detêm as garçase o sol. O vento é apenasuma névoa de pó esvoaçante.

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SILÊNCIOS

Sei nada de ti. Sei do teu ventre restolhando no interior de líquidas paisagens. Seida tua febre. Para lá disso, sei muito pouco. Diria não saber absolutamente nada sobre a tua pele,a tua nudez desamparada.

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UM SÚBITO SILÊNCIO I

Nesta presença súbita do silêncio, um esgar luminoso corta o vento.Tudo se aquieta. Os seres não falam. Respiram suavementee um eco fere os tímpanos.Junto do teu olharadormecemas palmeiras. Entreroupagens de sonhossabem apenasque o silêncio te absorve.

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UM SÚBITO SILÊNCIO II

Como uma estátua de sal, a memória fixa-se num gestode silêncios. Falarei por isso da raiz das árvores secularesque lançam seus braçosna nervura das pedras.Não sei os nomes.Saberei apenas que ficarão gravados nas lajes dum campo santo.

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UM SÚBITO SILÊNCIO III

Uma súbita presença do silêncio traz de novo os teus olhos para o mundoinquieto da poesia. Sei os nomes que decompuseste em partículasonde as migalhassão constelaçõesimpolutas e avassaladoras.

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UM SÚBITO SILÊNCIO IV

Um silêncio de súbita presença apaga a voz e o queixume das tuas raízes ancestrais. Arfante,exala, por fim, o ruído dos pássarosque a noite acolheno seu golpe de asa.Colada ao muro de um outro rostodepositas a parte vivente, súbitosilêncio de puro amor.

E nesta presença súbitae última do silêncioretenho partículas de tique o meu corpo devorae, como um livro – que asfixio página a página –sorvo os rios, as lagunas,as pequenas enseadasos íntimos oceanosonde a minha navegação persiste em busca da margem na qualpossa morrer todos os diasum pouco mais. Até ao silênciofinal, o segredo foi ter-te e não te ter movido pelo sangueque corre nos arroios destas veias.

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A CASA

Construirei esta casapedra a pedralaço a laçoe em cada traçodos seus recantosver-te-ei de abraçodado ao mundoabrindo o teu corpoà luz que a janelaacolhe como um portode chegadae de partida.

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VOLTEMOS À ÁGUA

Voltemos à água,às linhas que atam(como a chuva)o corpo às algas do mar.Entre ondulaçõese luz retem-se a voz,a sublime vozde um ser magníficotocado pela mansidãodo tempo.

Se soubesse ondeparam os teus sussurrosmergulharia no ventoem busca do teu olhar verde.

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MADRIGAL I

Não sei verdadeiramente onde inicias e acabas, porventura, nada saberei de ti.

Apenas saberei que ainda existes nas águas deste mar reinventadono sal da tua boca.Saber-te-ei onda,frescura dos frutosque me acolhem.

Afinal, fomos rei e rainha de todos os mundos inventadose navegámos à distância de costa para que os ventosnão perturbassem a calmaria.

Voltarei um diapara te buscar entre os búzios.

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MADRIGAL II

Na floresta, as sombras azuis liquefazem a alegria. A tua voz ecoa nas escarpasque respiram o ecodos rios. Na margemverde, do lado de cá,confundo os teus olhoscom os das garçasque pressentirama tua presença.

No teu peito, os guisosdas montanhas despertamantigos fantasmas,perdidos no regresso ao paraíso. As fontesaspergem a poalha dospresságios e é entre lianasque balanceio o vento.Os teus cabelos voam.E a tua voz? Onde estás?

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AS CIDADES QUE HABITAMOS

As cidades decrescem na memória. São mera recordação projectada no ecrán gigante que domina a infancia. Os edifícios, os lugares que habitamos, diminuem em altura perante a imposição do corpo amadurecido do olhar saltitante dos telhados de Lisboa e estremecem. Aí fenecem nas claras cores dos muros e paredes cercados pelos “graffittis” ousados, fuorescentes e prenhes de gritos de revolta.

Troco os nomes aos detalhes das cidades. E às cidades. Nesta terra troco os nomes a tudo e a todos os lugares. Porque me apetece. A quinta avenida de Lisboa não é a Avenida da Liberdade em Manhattan. Nem a Rotunda do Columbus a Plaza Marquês com seu Leão sentado no mirante de Alcântara ou o Central Park o parque de Monsanto. Nem ainda a crepuscular Praça de Espanha é a Washington Square onde se derrama a voz de uma mulher presa nos recantos dos varandins de manjericos, de Alfama até Chinatown e Litlle Italy ou no Pão, restaurante do meu país que devolve entre o parque de recolha da UPS e a Greenwich Street o sabor secreto de Lisboa. Nem as vinhas de Napa Valley são rigorosamente uma coincidência das uvas soalheiras do Douro ou das lezírias secas do Tejo sangradas nos sabores das mesas portuguesas de Nova Iorque e Newark.

A liberdade é misturar os lugares, atear a chama íntima e sagrada rasgar as certidões lógicas e inquebrantáveis da matemática, da geografia, da incongruência política e da razão.

Esta casa é da poesia, uma habitação interrompida que devolve a neve e o inverno ao tremor sazonal, é a casa das transições dos nossos corpos, nossas secretas biologias, nossos íntimos desejos do retorno a uma natureza que o homem deifica.

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AS HABITAÇÕES INTERROMPIDAS I

Habitamos as luzes amarelasda noite azul. O exercício diário das estrelas, o silênciodum coração antigo. Habitamoslugares estranhos onde as serpentes se enroscam na ironia das palavras. Habitamos o mundo das melancolias. Interrompidamente.Habitamos secretamente nas veiasum do outro com um mar de fogoa unir as nossas entranhas.Habitamos o ciclo interrompidoda poesia. Os meses que nos escaparamdas mãos, a dolorosa luz da eternidade.Mas não habitamos a eternidade.

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AS HABITAÇÕES INTERROMPIDAS II

Habitamos as veias e a memória. E as ruas onde registamos o tempo que escorre.Nos passeios. As viaturas extorquiram o espaço à democracia das habitações eimpomos mecanicamente o direito de habitar à porta dos edifícios. Imolamo-nosnuma luta feroz de vizinhanças proprietárias.

Entre nós e os motores, os cães passeiam alegremente os seus donos na solidãoocupada dos lugares que habitamos.

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AS HABITAÇÕES INTERROMPIDAS III

Habitamos o sonho.e as colinas da cidade. Habitamos o interior das cidades como se habitássemos sob a pele de um casulo.Habitamos um insistentesilêncio perceptívelnos olhos das mulheres concebidas no dorso dos animais pastoris. Elas adoram o ruído das palavras e a linguagemda remissão, o princípio básico de todos os inícios. Elas habitam a costela de adão. Mas nós, ah, nóshabitamos o lugar dos deuses,simples e único lugar disponívelna abstracção dos céus. Habitamos o céu.

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AS HABITALÇOES INTERROMPIDAS IV

Interrompo o curso dos diaspara mudar de habitação. O tempoconjuga as inconstânciashumanas e faz delas a seivacom que afagas a chuva.

Procurarei uma habitação.Onde o silêncio me escutee o casulo de tua presençanão se pressinta. “Até uma ave buscao seu ninho”. Com o retomardos dias verei o haloda primavera. Não sei o queme vai trazer. Não tu, porém.Não mais.

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AS HABITAÇÕES INTERROMPIDAS V

Onde habito permanentementeé num quadro. Quando a luzdas manhãs se difunde nas coresque invadem a tela e o teu corporóseo respira ainda o sabordos frutos de outono, o vinhodecomposto na seiva líquidados arrozais onde debicam as aves.

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AS HABITAÇÕES INTERROMPIDAS VI

A polpa dos dedos tacteia a pele da poesia. Serás como a luzcoada pela janelaque aguarda o tempona rotação dos dias e se move na pulsaçãodo sangue e no sopro da tua voz no interior desta habitação interrompida.

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REPOUSAR

Repousar...Por vezes, é preciso repousarProfundamente...

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AS VOZES I

As vozes que ressoam na minha portajá não são as mesmas. As que por aqui cruzam tornaram-se estranhas e velozes. Não reconheço os rostos nem os adjectivos que os revestem. Há réstias de expressões azuis e de sedução, compostas por antigas memórias redescobertas no coração de cristais eternos.

Mas as vozes já não são as mesmas.Perderam o timbre dos frutosa esperança do olhar. Nas linhas devoradoras do silêncio, inscreve-se um sentimento de ausência.Restam as do rostoque contraem as palavrase o sangue a ferver que exprime a revolta.

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AS VOZES II

Há indícios, vestígios antigos, minúsculos fragmentosonde se reflecte uma arqueológica ansiedade, uma tristeza de vozes abafadas, reprimidas, despidas na folhagemdos desenganos, aromasde incompletas primaveras e novos silêncios aguardandoo rumor das palavras na corrente do tempo.Mas o tempo não dá de comer às vozesE é preciso que elas se revoltem.

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AS VOZES III

Disfarçadas ou não, as vozesescondem-se debaixo da ervados caminhos. Nos prados e bosques onde as palavras se cobrem de desejos, há recordações antigas, suspensas dos ramos verdesda esperança. Quem disseque a esperança é verdee não esconde emoções?

Por agora, nada mais resta.As vozes é que já não são as mesmas.

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PRENÚNCIOS I

Não há nenhum corpo de destino preso ao meu.A voz entrelaçada que existia em meus lábiossilenciou na maresia.O vento arrastou as algas na corrente,que prenderam o leme verde e o astrolábio tornou-se um intrumento inútil.A maresia e o corpofundiram-se no areal.As tuas palavras ficaramno porto de chegada.A tua voz deixou de sera fonte cristalina do meu pulsar,deixou de matar a minha sede,e o meu corpo desprendeu-se da amurada azul no teu cais amanhecido.

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PRENÚNCIOS II

Não me perguntes o que quero fazer. Já o disse.Tenho as mãos vazias. Deixeide ouvir o canto do galo.Algures na terra, amanhecee não sei onde estou.Devo estar morto. Aindabem. Não faço falta.

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PRENÚNCIOS III

Gostava de me desfazercomo a poalha das ondaspara não ter de sentir maiso desgaste da solidão…

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FINISTERRA

As casas na dianteirada terra. A franja degranito alongando-seno azul. O paredãocinzento, o corpo adaptando-seà alma voraz da luz. Eisos silêncios escritosna areia onde adormecemos poveiros. Os tecedoresdo mar.

As casas crescem na fileira do vento. A lânguacresce em igual espessura.As portadas do casarioborratam-se de azule vermelho e depoislavam-se de mar.

Nem sempre a serra éum empecilho. Aqui,na rasante de finisterra,a costa não acaba. Voa.

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ESPERANÇA SEM DATA

Deixei de datar os pincéis e as telas. Os detalhes e as formas.A poesia e o romance.Os heróis e os anónimos.A garça e o anjo.A música e a palavra.De tua boca quero apenasas lendas, os mitos. As tran-ças douradas das lianas,o absorvente ritmo com queemprenhas o meu corpoe as mãos trespassadasde claridade beijandoos meus lábios, tocandoos meus olhos sem data, sem lugares,infinitamente verdes,postos no alto da esperança.A esperança, essa primeiraabstracção sem data.

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A ESPERANÇA ESVAÍDA

Já não há sílabas que descrevam a máscara do tempo. Nem vidros que reflitam a luz e o sol em campânulas. Na sombra, o resquício das nossas vidas esvai-se cro-nometrado por silêncios, e indecisões. A ansiedade partiu de tanto querer mudar e reconstruir. Quando se reestrutura um país, uns perdem e outros ganham. Uns sorriem e outros choram. Uns gozam connosco e com o silêncio das nossas vidas e amassam-nas como a argamassa nos cilindros gigantescos onde sepultam a esperança. Afinal, já pouco resta para o final da festa. Resgataremos o futuro das mãos dos agiotas. E no entanto, amanhece. Ninguém me traz novas da primavera.

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AS HABITAÇÕES DEFINITIVAMENTE INTERROMPIDAS

Vejo esta habitação que se arrumae desarruma como a nau de todos os dias.Constrói-se e refaz-se num estaleiroantigo enquanto a espuma das vagasespalha na poalha as tuas mensagens.Vejo esta habitação interrompidacom as janelas escancaradas por ondecorre o vento e entra a luz. Como semprevi outras habitações onde repousar o rostofoi apenas um sabor transitório e deslizantecomo o fluxo das águas de um rio bíblicoou até um riacho insignificante e peregrino.

Nunca possuí um lugar a que chamassehabitação permanente e onde o marme surpreendesse. Porque o mar é o berçodesta habitação, o lugar onde voosem asas e onde escuto a tua voz. Sobraagora o espaço que guardo numa malae um casaco sobre a pele da camaem sinal de abandono. Sobram os cheirosda maresia e do pó. E ainda o aromados sorrisos e das gargalhadas que sobrevêm do jardim rasante ao mar.Não há ali lugar para mim e todas as coisasem meu redor têm uma função transitória.Também os seres perdidos na florestame olham com ternura, talvez uma compaixãodesmedida que transforma os seus olhosem favos de mel. As portas e os corredorestêm agora e definitivamente um outro rosto.

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MORADA

Entre um murobranco rodeando a colinasobre o mar e o caminhodas palmeiras e baobásque envolvem as areiasna maresia, estás aí.E é tudo o que preciso de saber.

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ÚLTIMO MOMENTO DE TERNURA

O lugar desta habitaçãointerrompida foi conservadoem tuas mãoscomo o centro de toda a ternura.

Chegou o momentode te olhar.Proferiste as palavras,trouxeste para o varandimdos festejos os livrossagrados, percorresteo trilho dos salmose das suras e,como a chuva que cai,inclinaste-te sobreo silêncio. Não poderiater havido melhorinstante para a comoção.

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O FIM DA VIAGEM

A minha voz feneceunum cais abandonadono meio da solidão...As aves não a escutarão mais.Os animais perdidosna floresta hão-de soltaro grito desesperadodo Nguni no instanteem que a terra devoraráo sol. A luz abraçouos meus passos e o silêncioselou os meus lábios.Até sempre...