direito humanos

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capítulo v liberalismo e socialismo: a declaração universal de direitos humanos da ONU de 1948 A Declaração universal juntamente com outras normas onusianas faz parte da Carta internacional de direitos humanos da ONU onde surgem enunciados, pela primeira vez, em nível mundial, o conjunto das chamadas liberdades individuais e direitos humanos fundamentais 1 . Esse documento integra, por sua vez, o chamado direito internacional dos direitos humanos no qual é possível distinguir três fases 2 . A primeira, a etapa de definição ou de codificação dos mesmos, sendo essa que mais interessa para nosso trabalho, uma vez que nela aparecem cristalizadas duas visões contrapostas: a visão restrita e a visão ampla dos direitos humanos que traduzem o conflito ideológico dominante na época entre países do bloco ocidental e do bloco comunista: liberalismo versus socialismo. Mas antes de entar-mos nesse debate ideológico no âmbito da ONU, faz-se necessário teçer algumas considerações sobre o tratamento dado aos direitos humanos pelos criadores da organização - depois de finalizada a Segunda Guerra Mundial (1939-45); bem como mostrar algumas característas sobre l´état du monde do pós-guerra: a Guerra Fria, dominada, por sua vez, pelo embate ideológico em questão. 1 A Carta internacional de direitos humanos da ONU é composta também pelo Pacto internacional dos direitos civis e políticos (PIDCP) e o Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC) de 1966 - em vigor desde 1976. 2 As distintas etapas do direito internacional dos direitos humanos podem ser relacionadas às diferentes atividades desenvolvidas pela Comissão de direitos humanos (CDH) da ONU. A etapa legislativa que corresponde ao período “abstencionista” da comissão (1947-54), consagrada à elaboração do projeto de declaração universal até 1948 e, à elaboração dos projetos dos dois pactos internacionais até 1954. A etapa de “promoção” dos direitos humanos (1955-66), fase orientada para o futuro: os direitos humanos podem comportar certas lacunas, pelo fato de que as legislações nacionais ou o direito internacional não os garante ou o faz de forma incompleta, ou porque os direitos humanos não são conhecidos pelos seus titulares ou Estados. Nesse contexto, um órgão de promoção, a CDH, procura conhecer as insuficiências e mesmo as violações não tanto para sancioná-las, mas sobretudo para evitar que elas se repitam no futuro. Finalmente, a etapa de “proteção”, que corresponde ao período “intervencionista” da comisssão (a partir de 1967), consagrada ao efetivo respeito e/ou cumprimento dos direitos humanos tal qual existem no direito internacional em vigor. Essa atividade recorre à técnica jurisdicional, diferente da atividade de promoção, que faz uso de outras técnicas: estudos, pesquisas, relatórios, redação de textos, etc. A fase de promoção constituindo, dessa maneira, um passo prévio, a etapa necessária, que leva à proteção dos direitos humanos (MARIE, 1975: 133-134).

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capítulo v

liberalismo e socialismo: a declaração universal de direitos humanos da ONU de 1948

A Declaração universal juntamente com outras normas onusianas faz parte da Carta

internacional de direitos humanos da ONU onde surgem enunciados, pela primeira vez,

em nível mundial, o conjunto das chamadas liberdades individuais e direitos humanos

fundamentais1. Esse documento integra, por sua vez, o chamado direito internacional

dos direitos humanos no qual é possível distinguir três fases2. A primeira, a etapa de

definição ou de codificação dos mesmos, sendo essa que mais interessa para nosso

trabalho, uma vez que nela aparecem cristalizadas duas visões contrapostas: a visão

restrita e a visão ampla dos direitos humanos que traduzem o conflito ideológico

dominante na época entre países do bloco ocidental e do bloco comunista: liberalismo

versus socialismo.

Mas antes de entar-mos nesse debate ideológico no âmbito da ONU, faz-se necessário

teçer algumas considerações sobre o tratamento dado aos direitos humanos pelos

criadores da organização - depois de finalizada a Segunda Guerra Mundial (1939-45);

bem como mostrar algumas característas sobre l´état du monde do pós-guerra: a Guerra

Fria, dominada, por sua vez, pelo embate ideológico em questão.

1 A Carta internacional de direitos humanos da ONU é composta também pelo Pacto internacional dos direitos civis e políticos (PIDCP) e o Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC) de 1966 - em vigor desde 1976.2 As distintas etapas do direito internacional dos direitos humanos podem ser relacionadas às diferentes atividades desenvolvidas pela Comissão de direitos humanos (CDH) da ONU. A etapa legislativa que corresponde ao período “abstencionista” da comissão (1947-54), consagrada à elaboração do projeto de declaração universal até 1948 e, à elaboração dos projetos dos dois pactos internacionais até 1954. A etapa de “promoção” dos direitos humanos (1955-66), fase orientada para o futuro: os direitos humanos podem comportar certas lacunas, pelo fato de que as legislações nacionais ou o direito internacional não os garante ou o faz de forma incompleta, ou porque os direitos humanos não são conhecidos pelos seus titulares ou Estados. Nesse contexto, um órgão de promoção, a CDH, procura conhecer as insuficiências e mesmo as violações não tanto para sancioná-las, mas sobretudo para evitar que elas se repitam no futuro. Finalmente, a etapa de “proteção”, que corresponde ao período “intervencionista” da comisssão (a partir de 1967), consagrada ao efetivo respeito e/ou cumprimento dos direitos humanos tal qual existem no direito internacional em vigor. Essa atividade recorre à técnica jurisdicional, diferente da atividade de promoção, que faz uso de outras técnicas: estudos, pesquisas, relatórios, redação de textos, etc. A fase de promoção constituindo, dessa maneira, um passo prévio, a etapa necessária, que leva à proteção dos direitos humanos (MARIE, 1975: 133-134).

1. criação da ONU no pós-segunda guerra

O grand tournant du siécle, 1945, é marcado por uma série de eventos, dentre os quais

vale citar o fim do maior conflito armado da história representado pela Segunda Guerra,

as grandes conferências dos Aliados (Ialta, Potsdam), o desaparecimento dos três

principais protagonistas do drama com a morte de Franklin Roosevelt, Adolf Hitler e

Benedito Mussolini, o emprego pela primeira vez da arma nuclear com as bombas

lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, a ocupação e repartição da Alemanha, a queda

dos três grandes impérios coloniais: francês, britânico e holandês, etc.

O fim da Segunda Grande Guerra com sua sequela de sofrimento e horror serviu para

corroborar que os homens também são bárbaros, que existe dentro de nós a propensão à

nossa natureza primitiva3, uma situação, em definitivo, em que somente os ingênuos

acreditavam na bondade essencial do homem. Porém, e diante desse panorama sombrio,

ele foi acompanho de uma esperanza trazida pela criação da Organização das Nações

Unidas (1945) conseguindo assim atenuar tal panorama: pensava-se no estabelecimento

de uma paz duradoura para compensar os anos de dor que a humanidade havia passado

nos 2.194 dias de guerra, o organismo pensado para coordenar as diretrizes para a

manutenção da paz foi a ONU (TOTA, 2008: 387).

Com respeito à criação da ONU e ao papel que cumprem os direitos humanos em tal

oportunidade importa registrar alguns antecedentes: declarações, conferências, etc, não

sem antes fazer o seguinte comentário sobre os principais objetivos que perseguiam os

artífices da organização:

As Nações Unidas foram concebidas desde a sua origem para servir como um instrumento de cinco países [China, França, Grã-Bretanha, União Soviética e Estados Unidos] e seus aliados, no esforço de manutenção do status quo estabelecido em conseqüência da vitória desses países na Segunda Guerra Mundial. Contudo, já nos primeiros anos após a conclusão desse conflito, verificou-se que tal status quo tinha apenas um caráter passageiro e estava sujeito a interpretações e reivindicações contraditórias por diversas nações. A ideologia das Nações Unidas estava sendo, portanto, utilizada por essas várias nações com o propósito de justificar as suas interpretações específicas e disfarçar reivindicações particulares. Todas as nações se proclamaram defensoras das Nações Unidas e citam sua Carta, para fundamentar as políticas

3 O número de vítimas oscila entre 50 e 60 milhões, na sua maioria civis. URSS: 26.600.000; Alemanha: 6.000.000; Polônia: 6.000.000; Japão: 2.630.000; França: 580.000; Reino Unido: 365.000; EUA: 340.000, etc. Sem contar, ainda, o genocídio dos judeus, perpetrado pelo regime nazista, que acarretou vários milhões de mortos: 5 a 6 milhões, tido por Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, como exemplo da “banalização do mal”.

especiais que estejam adotando. Uma vez que essas políticas são contraditórias, a referência às Nações Unidas e a sua Carta se tornam um disfarce ideológico empregado para justificar a política de cada um, à luz de princípios mais ou menos aceitos e, ao mesmo tempo, para encobrir a sua verdadeira natureza. Sua ambigüidade faz dessa ideologia uma arma da qual se valem para confundir seus inimigos e reforçar a posição de seus amigos (MORGENTHAU, 2003: 192-193).

Em primeiro lugar, cabe citar o famoso discurso do presidente norte-americano Franklin

Roosevelt, apresentado em janeiro de 1941, diante do congresso dos Estados Unidos,

em que exorta a necessidade de construir um mundo fundado em quatro liberdades

essenciais: liberdade de palavra e expressão, liberdade de adorar Deus do modo o mais

apropriado, libertação da necessidade (penúria/miséria) (freedom from want) e

libertação do medo - em todas as partes do mundo. O enunciado dessas (quatro)

“grandes liberdades” traduzindo a preocupação de um homem de “horizontes políticos

amplos”, que deseja uma vida melhor para a humanidade, assentada sobre certos

alicerces:

O exemplo de Roosevelt reforçou a democracia em toda parte, isto é, a visão de que a promoção da justiça social e da liberdade individual não significa necessariamente o fim de um governo eficiente; que o poder e a ordem não são uma camisa-de-força de doutrina seja econômica, seja política; que é possível reconciliar liberdade individual [...] com o mínimo necessário de organização e autoridade (BERLIN, 2002: 641).

A mensagem do presidente norte-americano é relevante, porque marca o tom de vários

documentos internacionais que precedem o nascimento da ONU. Assim, por exemplo, a

Carta do Atlântico, assinada por Roosevelt e pelo primeiro-ministro inglês Winston

Churchill, em agosto de 1941, em que ambos os mandatários, reunidos no mar,

estabelecem certos princípios relativos aos objetivos da guerra e os fundamentos da paz,

dentre os quais figuram, parcialmente, duas das liberdades rooseveltianas:

Depois da destruição final da tirania nazista, esperamos estabelecer uma paz que permitirá a todas as nações permanecer em segurança no interior de suas próprias fronteiras, e que garantirá a todos os homens de todos os países uma existência liberada do medo e da necessidade (grifo nosso) (COLLIARD; MANIN, 1971: 83) 4.

A ampla acolhida dessas declarações pode ser constatada em várias ocasiões, como

acontece, por exemplo, no momento da aprovação da DUDH pela Assembléia geral da

4 Em igual sentido, o preâmbulo da DUDH, que faz referência explícita às quatro liberdades do Presidente norte-americano; e os preâmbulos de ambos os PIDH, que mencionam duas das liberdades rooseveltianas: a libertação do temor e da miséria.

ONU, em dezembro de 1948, quando um dos membros destacou que, ao proclamar que

todos os homens devem gozar da liberdade de consciência e de expressão e estar

protegidos da necessidade e livres do temor, o presidente Roosevelt teve razão, já que

seu pedido traduz sincera e nitidamente as aspirações do homem do século XX. Tal

elogio estendia-se a outras delegações que viam o dirigente norte-americano como o

principal precursor e inspirador da Declaração universal; já no tocante ao documento

assinado por ambos os mandatários, outro membro, na mesma sessão da Assembléia

geral, declarou:

[...] a doutrina clássica dos direitos naturais, surgida da escola estóica e traduzida no direito positivo pela Declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, e pela Declaração de direitos dos Estados Unidos; e, por outro lado, a contribuição do pensamento socialista que pemitiu inscrever na maioria das constituições modernas a garantia dos direitos sociais do indivíduo. A Carta do Atlântico, que proclamou as liberdades fundamentais, serve para testemunhar que essa é a grande preocupação universal do momento5.

Mas os elogios não acabaram por aí, como mostra a intervenção do representante da

Iugoslávia, que, na mesma oportunidade, ressaltou que a declaração de Roosevelt era

importante, porque traduz a idéia de que sem direitos econômicos e sociais não pode

existir sociedade livre e, em relação à Carta do Atlântico, o delegado da Austrália se

posicionou ao destacar que a sua importância se deve ao fato de ter reconhecido como

um direito fundamental o direito de viver livre da miséria ou necessidade. Esses

primeiros antecedentes são relevantes na medida em que contribuíram para formar a

opinião de que a noção de direitos humanos comporta não apenas as liberdades

individuais, os direitos civis e políticos, mas também os direitos econômicos e sociais -

o que acabará acontecendo com a aprovação dos documentos que compõem a Carta

internacional de direitos humanos.

Dentre outros antecedentes vale mencionar, também, a Declaração das Nações Unidas,

Washington, janeiro de 1942, assinada por 26 nações em guerra que se convertem nos

membros originários da ONU. Esse documento, além de aderir aos princípios da Carta

do Atlântico, estipula que a vitória completa sobre os países do Eixo vem a ser essencial

para preservar os direitos fundamentais, o direito à vida, à liberdade e à independência,

assim como a justiça. Importa acrescentar que essa declaração contará com a adesão de

outros 21 países (47 no total), dentre os quais as quatro grandes potências (EUA, URSS,

5 Troisième commission. Comptes rendus des séances, 21 setembro-8dezembros, Lakes Succes, Nova Iorque, 1948, p.67.

Reino Unido e China), que se reuniram mais tarde, em São Francisco, para redigir a

Carta das Nações Unidas, a qual dá origem à organização.

Igualmente a Conferência de Dumbarton Oaks, EUA, em outubro de 1944, que resulta

do acordo a que chegam os Aliados, em Moscou, um ano antes, quando decidem criar as

Nações Unidas por iniciativa de Roosevelt. Reunidos os representantes da China, EUA,

Reino Unido e URSS, em Dumbarton, elaboram um Plano detalhado visando

estabelecer os fundamentos, as metas e a estrutura da futura instituição - que deveria ser

submetido, por sua vez, à aprovação de todos os países que tinham aderido à declaração

de 1942.

Vale notar que, em tal oportunidade, os Estados Unidos defendem a idéia de que uma

declaração de direitos devia preceder o documento que daria origem à ONU, e não

simplesmente acompanhá-lo, alegando para isso que os bills dos Estados, no seu país,

tinham precedido as constituições. Essa proposta, no entanto, foi rejeitada por outros

participantes do encontro, Reino Unido e URSS, por considerá-la demasiado ambiciosa.

Ambos os países preferindo aprovar o plano de Dumbarton, que, importa assinalar, é

bem limitado no tocante ao conteúdo ou definição dos direitos humanos. Porém, os

EUA conseguem que seja incluída no texto em discussão uma menção explícita à

promoção dos direitos humanos. Essa proposta se erigiu em importante precedente de

um dos objetivos da organização - juntamente com a manutenção da paz e segurança

internacional. A esse propósito, o plano de Dumbarton Oaks dispõe:

Visando criar as condições de estabilidade e de bem-estar necessárias para a manutenção de relações amigáveis e pacíficas entre as nações, a [futura] Organização deverá facilitar a solução dos problemas humanitários internacionais de ordem econômica, social e outros, e promover o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (grifo nosso)6.

Apesar de a conferência de Dumbarton não ter sido generosa no que diz respeito ao

enunciado dos direitos humanos, cabe frisar, contudo, que ela assenta um importante

precedente, ao determinar, quando trata da competência de um dos principais órgãos da

futura organização, o Conselho econômico e social (Ecosoc), que ele deverá estabelecer

as “comissões que julgar pertinentes para dar cumprimento a sua função”; tal medida

está na base da criação da Comissão de direitos humanos (CDH), a qual cumprirá, como 6 Documents des Nations Unies. Journal du droit international: 1940-45, v. 72-76, n. 1, Paris, 1945, p. 160.

veremos, papel decisivo na etapa legislativa da elaboração das normas de direitos

humanos.

Também a Conferência anglo-americano-soviética de Ialta, Criméia (URSS), em

fevereiro de 1945, à qual se junta depois China. Em tal oportunidade, depois de ser

discutido o destino da Alemanha e da Polônia, os Três Grandes7 elaboram um

documento em que convocam outros países para a realização de uma conferência a ser

realizada em São Francisco com vistas à criação - definitiva - da ONU. No mesmo

documento fica estabelecido que a futura instituição, fundada em princípios liberais e

democráticos, deve ter como finalidade garantir a segurança coletiva e a evolução

harmoniosa da sociedade internacional. E isso, uma vez que Reino Unido e os EUA

recebem do dirigente soviético o compromisso de participar da regulamentação da paz e

criação da instituição8. Esse compromisso sendo acompanhado pela desconfiança de

Stálin de que a futura organização não se converta em instrumento de mobilização

mundial contra seu país. Por outro lado, os soviéticos conseguem, dos outros

representantes do encontro, que, pelo menos, duas ou três repúblicas soviéticas (Bielo

Rússia, Ucrânia) participem na qualidade de membros da futura Assembléia geral.9

Além disso a Conferência de Ialta foi importante, porque determina, em relação aos

países libertados, a necessidade e compromisso deles estabelecerem instituições

democráticas que sejam a expressão da vontade dos povos. A referência um tanto vaga

ao termo democracia devia-se ao fato de evitar toda discussão dos Aliados, ocidentais e

soviéticos, sobre a interpretação a ser dada à palavra: democracia liberal versus

democracia popular. No entanto, a remissão ao termo, no documento de Ialta, veio a

7 “No encontro de Ialta, todos eles estavam velhos e cansados. Churchill, que atravessara os anos trinta em frustração constante, estava com 71 anos. Stálin, aos 66, já governara seu país por 17 anos extenuantes. Roosevelt, que completara 63 na semana anterior à conferência de Ialta, liderara os Estados Unidos durante a pior depressão econômica e o pior conflito externo da história do país” (SCHLESINGER JR, 2008: 7). 8 À diferença de Churchill, que considerava inevitável negociar com o “demônio”, como ele considerava o dirigente soviético e seu regime, Roosevelt almejava algo mais abrangente: “domesticar o tirano” e “civilizar o monstro” soviético; ele enxergava do outro lado da mesa um homem com quem achava que teria de construir, de maneira cooperativa, o mundo do pós-guerra. O presidente norte-americano estava empenhado em conseguir a total cooperação soviética para a fundação das Nações Unidas (WAACK: 2008: 272 e 277). Já Stálin tratava com “grande apreço” Roosevelt: ele reconhecia que seu New Deal promovia uma reforma que levava o capitalismo ao encontro das necessidades da classe trabalhadora (SCHLESINGER JR., 2008: 8-9). 9 Voltando a Dumbarton, URSS tinha apresentado uma “antiga proposta”: a exigência de que todas as 16 repúblicas soviéticas integrassem a organização. Quando Roosevelt toma conhecimento da mesma, responde: “Meu Deus!” e, em seguida, manda dizer que não concordaria com isso. Do próprio punho do presidente, a proposta foi retirada da declaração e da pauta de discussão (BUTLER, 2008: 305).

favorecer a delegação soviética, que defenderá a sua inclusão na Declaração universal -

o que não acaba acontecendo finalmente pela razão exposta10.

Finalmente, a Conferência de São Francisco, EUA, 25 de abril-26 de junho de 1945,

que cria as Nações Unidas. O tratado que constitui seu estatuto, a Carta das Nações

Unidas, foi assinada em 26 de junho e entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo

ano, depois de ratificada pelas cinco potências vencedoras da guerra e pela maioria dos

membros fundadores da organização (51 no total). No que tange aos direitos humanos,

importa dizer que os dispositivos estabelecidos no documento permanecem distantes da

esperança e expectativa trazida pelo discurso do presidente Roosevelt em 1941. Um dos

motivos da pouca pressa das principais potências em incluir uma definição ou

enumeração expressa dos direitos humanos na carta residia no fato de que cada uma

delas conhecia sérios problemas na matéria: URSS, os gulags, EUA, a discriminação

racial, França e Reino Unido, que recorrem à violência nas colônias contra movimentos

de libertação (Argélia, Índia).

Contudo, e apesar da “falta de entusiasmo” dos principais fundadores da ONU em

incluir os direitos humanos em tal oportunidade, pode-se afirmar que a Carta Magna de

1945 contribuí fortemente para estabelecer as bases conceituais, institucionais e

procedimentais para o ulterior desenvolvimento de atividades relativas à codificação,

promoção e proteção dos direitos humanos em nível internacional.

Duas importantes idéias, que decorrem do preâmbulo e do Artigo 1° da carta, merecem

ser destacadas, ambas, vale notar, tendo como pano de fundo o recente conflito armado

da Segunda Guerra11. A primeira traduz a preocupação central dos estados-fundadores

da ONU: a manutenção da paz e segurança internacional; a segunda corresponde à

necessidade do respeito e promoção dos direitos humanos. Assim, à primeira vista,

resulta que para a realização da primeira meta, a manutenção da paz internacional,

10 A propósito das eleições que aconteceriam na Polônia, cedida à União Soviética em Ialta, cabe registrar a seguinte troca de palavras: “As eleições deveriam ser, disse Roosevelt a Stalin, ‘como a mulher de César, que era pura’. ‘Era o que se dizia dela’, retrucando Stalin, ‘mas ela não era sem seus pecados’ ” (WAACK, 2008: 278). 11 O preâmbulo da carta estipula: “Nós, os povos das Nações Unidas resolvemos a preservar às gerações vindouras do flagelo da guerra [...] e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem [...] resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos”. Já o Artigo 1º estabelece: “Os propósitos das Nações Unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais. 3. promover e estimular o respeito aos direitos humanos ”.

torna-se necessária à salvaguarda dos direitos humanos12. Ambos os objetivos sendo

defendidos pela maioria dos membros fundadores, alguns deles indo mais longe ao

proporem que o documento, para não ser apenas um simples instrumento destinado a

prevenir a guerra, incluísse uma declaração de direitos. Essa proposta, que retoma a de

Roosevelt em Dumbarton, dando a entender que a luta travada pelos Aliados foi

realizada também com a finalidade de afirmar e promover os direitos humanos.

Para os mais otimistas, a Carta das Nações Unidas foi importante, porque encerra a idéia

de que a comunidade internacional era capaz de constituir uma humanidade pacífica

baseada na cooperação e no respeito dos direitos humanos. A partir desse entendimento,

o documento parece inscrever-se na tradição de origem grociana da ordem

internacional, segundo a qual existe um potencial de sociabilidade e solidaridade que

torna possível conceber a política internacional não como um jogo de soma-zero. Para

essa tradição, sem negar contudo o conflito, a vida internacional é marcada pela

cooperação, que comporta a interação entre Estados nacionais, num abrangente processo

baseado na racionalidade e na funcionalidade da reciprocidade de interesses. Mas o

documento em questão, numa visão ainda mais otimista, parecia inscrever-se

igualmente na tradição de origem kantiana da ordem internacional, segundo a qual

existe algo mais do que a soma e o jogo dos interesses dos Estados. De acordo com essa

visão a ordem internacional é regida por uma razão abrangente no campo dos valores,

uma vez que detecta a inserção operativa de uma razão da humanidade através da

inclusão, na agenda internacional, de temas globais como a paz, os direitos humanos,

etc (LAFER, 1999: 185-186). Sob tal leitura, o pactum societatis de 1945 que coloca

como vis directiva a possibilidade de um futuro de paz lastreado nos direitos humanos,

seria tributário dessa tradição, cosmopolita/kantiana, do possível na vida internacional

(LAFER, 2008: 300).

12 Vale notar que ambas as metas da ONU só apareceram diretamente relacionadas no Artígo 55 da carta, relativo à cooperação internacional, quando afirma que a organização deverá criar as condições de estabilidade e bem-estar necessárias para as relações pacíficas e amistosas entre as nações fundadas no princípio da igualdade de direitos. Na mesma direção inscrevem-se vários dispositivos das Nações Unidas, assim, por exemplo, a resolução de 10 de dezembro de 1948 da Assembléia geral, que estabelece que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis constituem o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. E, também, o preâmbulo dos documentos da Carta internacional de direitos humanos (redigidos em idênticos termos aos da referida resolução).

Porém, pode-se afirmar, em contraste com essas visões mais otimistas no nascimento

das Nações Unidas, que elas serão desmentidas pelos fatos, ou seja, pelo clima de

Guerra Fria de que a organização se torna vítima. Com base nesse entendimento, mais

realista/pessimista, o documento que cria a organização inscreve-se-ia na tradição

maquiaveliano-hobbesiano da ordem internacional, em que o comportamento dos

atores, principalmtente as duas potências EUA e URSS, é pautado pelo conflito, e,

enquanto aos interesses ou valores a serem compartilhados na sociedade mundial, eles

são condicionados às variações de poder: vence a idéia que promete mais ganhos com

menor custo. Sob tal perspectiva, a racionalidade que predomina é estratégica ou

instrumental, não de fins, a paz, os direitos humanos, mas de meios, cada uma das duas

potências acumulando recursos de poder para expandir seu domínio em suas respectivas

áreas de influência13. Em reforço a esse argumento, cabe a seguinte observação sobre o

papel da ONU no relativo à manutenção da paz no período que seguiu a seu nascimento

- a Guerra Fria:

A ONU foi vítima desse clima de “guerra fria”, tornada “quente” ocasionalmente em alguns pontos do planeta, sem que o Conselho de Segurança, seu órgão supremo em matéria de paz e de segurança internacional, pudesse atuar de maneira satisfatória para cumprir seu mandato estatutário de peace making. Na verdade, a ONU conseguiu “fazer a paz” em raríssimas ocasiões nos quase 50 anos de Guerra Fria [...] contentando-se a organização, no mais das vezes, com um mero papel de peace keeping [...] quando não foi virtualmente paralisada em sua ação de prevenção ou de eliminação de focos de conflito armado entre países (ALMEIDA, 2004: 633)14.

A continuação apresentamos algumas caraterísticas da Guerra Fria, com especial ênfase

no debate ideológico das duas principais potências nela envolvidas: os Estados Unidos

da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

2. guerra fria e conflito ideológico

13 Para um aprofundamento das diferentes visões da ordem mundial na época: G.Fonseca Jr., A legitimidade e outras questões internacionais. 14 Como exemplo disso, a “primeira luta” travada na ONU (1945-47) entre as grandes potências, que quebra a presunção da unanimidade sobre a qual estava baseada a carta, como resultado do uso do veto, no Conselho de Segurança, por parte da URSS para fins de obstrução (WIGHT, 2002: 240).

No tocante à Guerra Fria15 que, vale lembrar, figura como pano de fundo da declaração

de 1948 e dos dois pactos internacionais de dirietos humanos de 1966 da ONU, pode-se

dizer, em grandes linhas, que ela implica a emergência de novos blocos hegemônicos

em torno de duas potências, EUA e URSS, que se envolvem em um conflito, não aberto

nem generalizado da guerra, mas o suficiente para fazer prevalecer o modo de

organização política e econômica que acreditam reprodutíveis em outros países:

Após a guerra, restaram apenas duas nações - os Estados Unidos e a União Soviética - com o dinamismo necessário para ocupar esse vácuo. Os dois Estados foram construídos sobre princípios opostos e antagônicos [...]. Ninguém deveria se deixar surpreender pelo que se sucedeu. A verdadeira surpresa teria sido se não tivesse uma Guerra Fria (SCHLESINGER JR., 2008: 14).

Dentre outros aspectos do mundo bipolar, dominado por Waschington e Moscou, vale

destacar que cada uma das potências acumula gigantescos sistemas de massacre e

destruição potenciais visando deter seu adversário - que busca dominar o mundo.

Ademais, cada uma das potências, com seus interesses espalhados pelo mundo, fecha o

caminho da resolução dos conflitos pela negociação, daí a ausência de paz: o temor

compartilhado da confrontação armada afasta a via da guerra como solução para os

impasses - nem paz, nem guerra, Guerra Fria. O período em que dura o conflito, para

retomar uma definição clássica da guerra, não consistiu em batalhas ou no ato de lutar,

mas num lapso de tempo em que a vontade de travar batalhas é suficientemente

conhecida. Trata-se, contudo, de uma situação que fica sujeita:

[...] ao espetáculo primitivo de dois gigantes que se observam com uma suspeita vigilante. Em que eles fazem tudo o que podem no sentido de acrescentar ao máximo o respectivo poder militar, pois já não podem contar com qualquer outra coisa. Ambos se preparam para desfechar o primeiro golpe de modo decisivo, uma vez que, se não o fizer, o outro poderá consegui-lo. E, assim, conter ou ser contido, conquistar ou ser conquistado, destruir ou ser destruído passa a ser a divisa da diplomacia da Guerra Fria (MORGENTHAU, 2003: 655).

15 O termo Guerra Fria foi cunhado, ao que parece, por Bernard Baruch no seu discurso proferido em 16 de abril de 1947 diante da Câmara dos Representantes do Estado da Carolina do Sul (EUA), sendo definido por ele como uma “aguda relação de competição e hostilidade entre facções opostas” (URSS e EUA). Raymond Aron data o começo da Guerra Fria com base no seguinte argumento: “Tenho para mim que o ato mais simbólico foi o rompimento das negociações entre ocidentais e soviéticos sobre a questão da Alemanha. Ele aconteceu no final de 1947. Constatou-se a impossibilidade de um acordo, e os ocidentais decidiram reconstruir a Alemanha Ocidental [...]. A Alemanha parecia ao mesmo tempo o símbolo, a origem, a causa e a realidade mesma dessa divisão. Guardando a União Soviética para si uma parte da Alemanha, era evidente que o conjunto da Europa se dividiria em duas zonas: uma governada ao modo soviético, a outra governada pelo que chamamos de modo democrático” (ARON, 1982: 164). Quanto à finalização da Guerra Fria, existem várias datas: 1989 - a queda do Muro de Berlim, 1990 - os satélites soviéticos abandonam a URSS, ou 1991 - a própria Rússia “sai” da URSS.

Quanto à possibilidade de ter havido conflito direto entre as duas potências existem

“dúvidas”, como mostra, por exemplo, o título do primeiro capítulo de O grande sisma

de Raymond Aron: Paz Impossível. Guerra Improvável. Ou seja, a forte rivalidade

tornava improvável um acordo, mas, por outro lado, nem os Estados Unidos nem a

União Soviética tinham interesse em recorrer à guerra - diante do imenso perigo nuclear

que isso acarretaria. A dissuasão nuclear foi então o fiel da balança da Guerra Fria, que

impede uma guerra em larga escala ou mesmo uma guerra total entre as duas potências

com consequências para todo o mundo - a despeito das várias escaramuças ocorridas.

A Guerra Fria foi uma confrontação múltipla em que ambas as potências questionam a

distribuição mundial dos fluxos de influência e poder que excluem, ao menos

hipoteticamente, a “alta temperatura” que podia alcançar um confronto bélico direto

entre os dois países16. Já na opinião de outros estudiosos, a Guerra Fria implicou que

cada uma das potências tinha condições de poder nitidamente superiores aos demais,

uma enorme capacidade de destruição assegurada pelos arsenais nucleares, tornando-os

invulneráveis a ameaças militares externas. A capacidade nascia não só de uma

capacidade militar superior, mas também do uso deliberado de recursos econômicos e

tecnológicos para fins estratégicos.

Desde uma perspectiva realistas das relações internacionais, a distribuição do poder em

tal contexto ou, melhor a balança de poder (fundada na idéia de que só o poder limita o

poder) foi necessária para garantir a estabilidade do sistema internacional. Ou, para

àqueles que entendem a balança de poder como algo inerente a qualquer sistema

internacional, tal distribuição, na época, correpondeu a uma distribuição bipolar -

quando apenas duas grandes potências dominam o sistema internacional, e seguindo a

mesma perspectiva chegam até defender de que tal distribuição foi estável devido ao

congelamento do poder que resulta dela:

Em uma distribuição bipolar das capacidades, cada pólo tende controlar seus aliados, ao passo que as potências menores procuram se colocar sob proteção de uma das grandes potências. Elas passam, então, a ter uma influência e uma capcidade de controle muito grandes, e isso resulta em maior estabilidade do sistema como um todo (NOGUEIRA; MESSARI: 2005, 30-31).

16 Dentre os meios empregados de distribuição de poder cabe lembrar os confrontos armados indiretos, em circunstâncias e lugares específicos, registrados na Coréia (1950-53), Vietnã (1965-73), etc.

Finalizada a Segunda Guerra, os EUA saem triunfantes no plano militar e econômico e

seu modelo cultural conhece espetacular difusão através da expansão da “democracia

liberal”; já no Leste, Stálin saboreia a vitória e faz da URSS uma potência mundial: o

regime soviético não pára de se expandir a outros países que giram sob sua órbita de

influência que se convertem em “democracias populares”. A olimpíada ideológica que

travam ambas as potências faz com que se apresentem, por sua vez, como portadoras de

uma mensagem universal. Ou seja, de um lado, o socialismo, que, se implantado,

permitiria a eliminação das desigualdades sociais e ao mesmo tempo estabeleceria as

condições para a paz universal, pois, afinal, países socialistas não guerreiam entre si; de

outro lado, a democracia liberal, que, se fortalecida, garantiria as liberdades e direitos

fundamentais e a mais completa realização dos indivíduos no plano econômico e

político e ao mesmo tempo traria a paz universal, pois, afinal, países democráticos não

guerreiam entre si (FONSECA, 1995:131).

A rivalidade ideológica que prevalece pode ser observada, ainda, na retórica do

prestígio - usada pelas duas potências para assentar seu domínio frente a suas

respectivas zonas de influência. O prestígio, observam estudiosos, tornou-se uma arma

política particularmente importante num período em que a luta pelo poder é travada não

somente mediante o recurso aos métodos tradicionais de pressão política e força militar,

mas também em larga medida como um combate pela conquista das mentes dos

homens. A Guerra Fria, acrescentam, foi travada sobretudo em termos de competição

entre duas filosofias políticas, sistemas econômicos e modos de vida rivais; a reputação

de desempenho e de poder tornou-se assim a principal aposta a ser ganha por meio da

guerra político-ideológica: o principal instrumento dessa batalha passou a ser a

propaganda na medida em que buscou ampliar o prestígio de um dos lados e esvaziar o

do inimigo (MORGENTHAU, 2003: 164).

A competição ideológica pode ser ilustrada com a seguinte indagação: o que queriam

Stálin e os norte-americanos após a Segunda Guerra? O objetivo do primeiro era

segurança para si mesmo, para seu regime, para seu país e para sua ideologia - nessa

ordem. Por sua vez, o objetivo dos segundos era não apenas ter segurança, mas também

sair do isolamento:

[...] no período 1943-45, Roosevelt se empenhou em lançar as bases para a paz com a mesma habilidade e circunspecção com que afastara a nação do isolacionismo [...]. O desafio de empreender uma transição suave do unilateralismo para o internacionalismo moldou a estratégia diplomática de Roosevelt. Com calma, buscou preparar o povo norte-americano para um papel internacional mais amplo. No final de 1944, uma série de conferências internacionais, organizadas primordialmente por iniciativa dos Estados Unidos, [...] estabelecera uma agenda para o pós-guerra, abordando temas como a organização internacional (SCHLESINGER JR., 2008:11).

Nessa ordem de coisas, cumpre citar o Plano Marshall (1947), através do qual os EUA

procuram opor uma barreira à expansão soviética no continente europeu. A idéia básica

era que os países europeus fossem capazes de resistir à propaganda do partido

comunista soviético e para isso tornava-se necessária à reconstrução econômica dos

mesmos. Das premissas básicas do Plano pode-se destacar o seguinte: a ameaça mais

séria aos interesses ocidentais na Europa não era a perspectiva de uma intervenção

militar soviética, mas o perigo de fome, pobreza e desespero levarem os europeus a

porem no governo seus próprios comunistas, que atenderiam obedientemente os desejos

de Moscou; a ajuda econômica norte-americana produziria benefícios psicológicos

imediatos e, mais adiante, benefícios materiais que reverteriam aquela tendência; a

União Soviética não aceitaria essa ajuda e não deixaria seus satélites aceitarem,

provocando tensões nas relações com eles; e, finalmente, os EUA poderiam assumir a

iniciativa tanto geopolítica quanto moral na Guerra Fria - que vinha à tona (GADDIS,

2006: 30-31).

Também a Doutrina Truman do mesmo ano, através da qual os EUA, seguindo a

diretivas do Plano, se comprometem a fornecer auxílio militar a todos os países

ameaçados pela expansão soviética. Dessa primeira manifestação da “política de

contenção” interessa registrar o violento discurso do presidente Harry Truman diante do

congresso norte-americano, em particular, quando exalta as profundas divergências que

separam ambas as potências. De um lado, declarou, temos um modo de vida que se

funda na vontade da maioria, no governo representativo, em instituições livres, nas

garantias das liberdades individuais, na ausência de opressão política; de outro lado, um

modo de vida que se funda na vontade de uma minoria imposta pela força à maioria, na

supressão da liberdade pessoal, em eleições forjadas e no terror de uma imprensa

controlada. A política dos Estados Unidos, acrescentou, deve ser de apoio total aos

povos livres que lutam e resistem às tentativas de submissão de povos pela força das

armas ou não.

Em resposta, a União Soviética cria, em setembro do mesmo ano, o Cominform, uma

organização constituída também pelos partidos comunistas europeus, cujo objetivo era

provavelmente insuflar ações perturbadoras da ordem na Europa Ocidental, por

intermédio dos poderosos partidos comunistas existentes no continente, em particular,

na França e na Itália. A esse respeito, o porta-voz de Stalin na organização, Andrei

Zhanov, afirma em 1947:

Quanto mais nos afastamos do final da guerra, mais claramente aparecem as duas direções principais da política internacional do pós-guerra, correspondendo à disposição em dois campos principais das forças políticas que operam na arena mundial: o campo anitiimperialista e democrático e o campo imperialista [do primeiro] a URSS e os países da nova democracia são seus alicerces. O campo antiimperialista é apoiado em todos os países pelo movimento operário e democrático, pelos partidos comunistas irmãos da França, Inglaterra, Itália e outros países. Eles devem tomar nas mãos a bandeira da defesa nacional e da soberania de seus próprios países (ENDERS; MORAES; FRANCO, 2008: 337).

No contexto do Cominform, o de levar a ortodoxia comunista baseada no modelo

soviético, cabe lembrar o exemplo tcheco, único Estado europeu oriental que seguia

com governo democrático, quando Stalin aprova, em 1948, um plano dos comunistas

desse país para derrubar o governo e trazê-lo para sua esfera de influência. Sem igual

sorte, contudo, na Iugoslávia, onde o marechal Tito, que chegara ao poder por conta

própria e vencera as forças alemãs sem os soviéticos, resiste à organização com apoio

norte-americano. Além disso, no mesmo ano, o bloqueio de Berlim pelos soviéticos

com o intuito de consolidar sua influência do “lado oriental” e evitar que os ocidentais

façam o mesmo do “lado ocidental” - o que não aconteceu com a proclamada República

Federal da Alemanha em Bonn (1949). O golpe em Praga, o bloqueio de Berlim são

relevantes, na opinião de John Gaddis, porque os beneficiários europeus da ajuda

econômica norte-americana precisavam também de proteção militar.

De fato, em complemento da Doutrina Truman, é criada em 1949 a Organização do

Atlântico Norte (OTAN) - aliança militar multilateral composta por EUA, Canadá e

quase todos os países europeu-ocidentais com o objetivo de conter o crescente

fortalecimento soviético na Europa e garantir a continuidade das sociedades capitalistas

européias dentro da esfera de influência norte-americana. O tratado estipula que uma

agressão armada contra um dos signatários, na Europa ou na América do Norte, será

considerada uma agressão contra todos; por sua vez, o preâmbulo afirma a necessidade

de salvaguardar a liberdade e a civilização de seus povos fundados nos princípios da

democracia, da liberdade individual e do império da lei. Em contrapartida, os soviéticos

criam, mais tarde, em 1955, juntamente com outros países do Leste europeu, uma

aliança militar multilateral, o Pacto de Varsóvia, com o intuito de manter esses países

sob a influência e proteção da URSS. Sem desconsiderar, na nova frente da Guerra Fria,

aberta pela vitória da República Popular da China em 1949, o Tratado Sino-Soviético do

mesmo ano, firmado por Stalin e Mao, no qual os dois países comunistas se

comprometiam com auxílio mútuo em caso de ataque.

No conflito ideológico em exame, importa destacar por sua força retórica o Memorando

NSC 68, abril de 1950, tido como um dos principais documentos norte-americanos da

Guerra Fria. Dada a visão ortodoxa que o anima - de um lado um “pesadelo” (URSS),

do outro o “defensor da liberdade” (EUA) -, cabe reproduzir algumas passagens, cuja

estrutura argumentativa, na opinião de Noam Chomsky, mostra a simplicidade pueril de

um conto de fadas:

Existem no mundo duas forças, em “pólos opostos”. Num extremo temos o mal absoluto; no outro, a sublimidade. Entre eles não pode haver transigência. A força diabólica, por sua própria natureza, tem que buscar a dominação completa do mundo. Por conseguinte, tem que ser suplantada, desarraigada e eliminada, a fim de que o virtuoso defensor de tudo o que existe de bom possa sobreviver para executar suas obras elevadas [...]. O “projeto fundamental do Kremlin” [...] “O propósito implacável do Estado escravagista [é] eliminar o desafio da liberdade” por toda parte. A “compulsão” do Kremlin “exige um poder total sobre todos os homens” no próprio Estado escravagista [...] Em contraste, o “propósito fundamental dos Estados Unidos” é “garantir a integridade e a vitalidade de nossa sociedade livre, que se alicerça na dignidade e no valor do indivíduo” e salvaguardar esses valores pelo mundo afora. Nossa sociedade livre é marcada por uma “diversidade maravilhosa”, pela “profunda tolerância”, pela “conformidade à lei” e pelo compromisso de “criar e manter um ambiente em que todo indivíduo tenha a oportunidade de pôr em prática suas forças criadoras” [...] O “sistema de valores que anima nossa sociedade” inclui os “princípios da liberdade, da tolerância, da importância do indivíduo e da supremacia da razão sobre a vontade” [...] Devemos “favorecer um ambiente mundial em que o sistema norte-americano possa viver e florescer” [...]. “Dado o propósito da URSS de dominar o mundo” não podíamos aceitar a existência do inimigo, mas deveríamos “fomentar as sementes de destruição dentro do sistema soviético” e “acelarar [sua] decadência” por todos os meios, com exceção da guerra [que é perigosa demais para nós] (CHOMSKY, 2003: 24-27).

Essa interpretação maniqueísta do mundo, as “forças da luz contra as trevas”, era

sustentada por especialistas da diplomacia norte-americana, que, desde o triunfo da

revolução bolchevique, defendiam uma reação defensiva por parte de Ocidente ao

Estado soviético. A esse respeito destaca o mesmo autor, citando estudiosos norte-

americanos da Guerra Fria, a intervenção aliada imediatamente posterior à revolução

bolchevique, de natureza defensiva, deu-se em resposta a uma intervenção, por parte do

governo soviético, nos assuntos internos não apenas do Ocidente, mas de praticamente

todos os países do mundo, ou seja, em resposta ao desafio da revolução bolchevique e

da própria sobrevivência da ordem capitalista. E acrescenta: a segurança dos EUA já

estava em perigo em 1917, de modo que a intervenção era justificável contra a mudança

da ordem social na Rússia e o anúncio de intenções revolucionárias. Essa avaliação de

Chomsky sendo endossada por outros estudiosos segundo a qual a Guerra Fria foi mais

uma etapa do conflito doutrinário entre a Rússia bolchevique e o resto do mundo que

durava desde 1917.

Para nosso objetivo, cumpre finalmente realizar o seguinte comentário sobre a Guerra

Fria do ponto de vista ideológico: trata-se de uma rivalidade que se manifesta em

diversos domínios, mas que se exacerba na medida em que as potências prolongam uma

distância ideológica em domínios sujeitos a suas áreas de influência. A rivalidade entre

ambas as potências é também ideológica uma vez que buscam influenciar os Estados a

aderir a seus credos ideológicos. Quando se soma o elemento ideológico, além do

militar e econômico, articula-se a forma privilegiada de exercício hegemônico com a

formação de alianças ou blocos.

Essa última observação de Gelson Fonseca Jr. é relevante, porque permite dar conta dos

debates e opiniões dispares dos países encarregados de elaborar os documentos que

compõem a Carta internacional de direitos humanos, a DUDH e os dois PIDH, em

particular, entre os países do bloco soviético e os países do bloco ocidental.

3. trabalhos preliminares na elaboração da declaração universal

A criação da Comissão de direitos humanos (CDH) para redigir uma declaração de

direitos resultou, originariamente, do acordo a que chegaram as potências em

Dumbarton quando decidem que o Conselho econômico e social (Ecosoc) 17 devia

estabeleçer as comissões que julgar pertinentes para dar cumprimento a suas funções.

Assim, seguindo o artigo 68 da Carta das Nações Unidas, o conselho cria, em fevereiro

de 1946, um grupo composto de membros designados a título individual encarregada de

realizar os primeiros estudos na matéria.

Criado o grupo, ele recomenda que a Comissão de direitos humanos seja composta de

18 membros escolhidos na qualidade de representantes não-governamentais, designados

pelo Ecosoc, com base numa lista preparada pela Assembléia geral, levando em conta

uma repartição geográfica equitativa e as capacidades pessoais dos integrantes18. No que

tange à declaração de direitos, o grupo sugere, ademais, que cabe à CDH determinar a

natureza, a forma e o conteúdo do documento, e, também, que a Secretaria geral da

ONU elabore um anuário com todas as declarações de direitos em vigor nos países.

Porém, o Conselho económico e social, contrariando parte dessa recomendação,

determina que a CDH seja composta de representantes governamentais com base numa

repartição geográfica equitativa.

Formada a Comissão de direitos humanos, em fevereiro de 1947, ela nomeia, ainda, um

grupo de trabalho composto pelo Presidente, Vice-presidente e o Relator da mesma para

elaborar um projeto preliminar de declaração com a ajuda da Secretaria geral. No

entanto, essa medida foi questionada mais uma vez pelo Ecosoc por não ter adotado, na

eleição dos membros do grupo, uma apropriada repartição geográfica. Dessa maneira,

decidiu-se criar um comitê de redação composto de 8 membros representando os países.

Presidente: Eleonor Roosevelt - EUA, Relator: Chang - China, Vice-presidente: Malik -

Líbano, e também Harry - Austrália, Santa Cruz - Chile, Cassin - França, Wilson -

17 O Conselho econômico e social, órgão principal e intergovernamental da ONU, tem, sob a autoridade da Assembléia geral (AG), a tarefa de fazer estudos, informes e recomendações em assuntos bem amplos, não só de caráter econômico, social, cultural, educativo e sanitário, e outros temas conexos (Art. 62, alínea 1 da carta); mas também no tocante à promoção e respeito dos direitos humanos (Art. 62, alínea 2). O órgão está composto por membros, escolhidos pela AG (Art. 61), cada membro tem um voto e, como acontece com outros órgãos principais, a Assembléia geral, as decisões são tomadas pela maioria dos membros presentes e votantes (Art. 67, alínea 2).18 O número de membros da CDH, escolhidos pelo Ecosoc por blocos geográficos, tem variado, conforme a ampliação dos Estados-membros da ONU. Na origem 18 membros, 22 até 1966, 32 até 1979, 43 a partir de 1979, 53 até 1992. Devido ao descrédito da comissão por causa da participação de países acusados de sérias violações de direitos humanos, bem como pela “abordagem seletiva e politizada que caracterizava sua atuação [...] em que somente alguns países eram selecionados para exame, segundo critérios sujeitos à conveniência e à oportunidade política de outros poucos” (AMORIN, 2009: 68-69), ela foi substituída, em 2006, pelo Conselho de direitos humanos composto de 47 membros distribuídos entre grupos regionais.

Reino Unido e Koretsky - URSS. O segundo e terceiro, além de exímios diplomatas, os

filósofos da comissão, Santa Cruz, o grande articulador dos direitos humanos dos países

em desenvolvimento (LAFER, 2008: 300-301).

As discussões que surgiram em torno da composição da Comissão de direitos humanos,

que tinha a enorme responsabilidade de redigir o projeto de declaração, com

representantes governamentais ou a título individual, em virtude da capacidade notória

das pessoas, com base numa repartição geográfica equitativa, etc, eram indícios apenas

embrionários de outros embates que aconteceram mais tarde - em nível normativo. A

posição defendida pelo Ecosoc era, sem dúvida, a mais democrática na medida em que

traduzia a opinião da maioria dos membros da organização no sentido de que a CDH

seja composta de representantes governamentais com base numa repartição geográfica

equitativa.

Criado o comitê de redação, ele adota como material de trabalho inicial o anteprojeto de

declaração da Divisão de direitos humanos da Secretaria geral, dirigida pelo jurista

canadense John Humphrey - composto de um preâmbulo e 48 artigos. O documento, um

notável trabalho de recompilação e sistematização, incluía cinquenta constituições

nacionais em vigor, assim como as Propostas dos EUA relativas a uma declaração de

direitos e um anteprojeto do Reino Unido/Índia acompanhado de um outro documento

que previa medidas de aplicação dos direitos humanos.

Em relação ao anteprojeto da Divisão de direitos humanos cabe destacar que tinha a

vantagem, à diferença de outros documentos preparados por países que pertencem a

uma mesma cultura e compartilham dos mesmos valores (EUA, Reino Unido), de

apresentar uma concepção comum dos direitos humanos. O material reunido e

sistematizado sob a direção do jurista canadense contribuindo para fortalecer a idéia de

que era possível se chegar a um texto universal na matéria.

As primeiras discussões, no comitê de redação, giram em torno da forma do texto, e isso

pelo fato de que o projeto apresentado pelo Reino Unido/Índia previa medidas concretas

de aplicação dos direitos humanos. Ou seja, a questão, em primeiro lugar, consistia em

saber se o projeto devia adotar a forma de uma declaração ou de um pacto/convenção ou

tratado:

Existem duas posições extremas: a) preparar um texto que impressionaria a opinião pública e serviria para orientar a futura política dos Estados, ou seja, uma declaração ou manifesto, que poderia não prever nenhum texto de aplicação; b) redigir, sob a forma de convenção internacional obrigatória para todos os Estados [signatários], uma enumeração dos direitos humanos (grifo nosso)19.

Em virtude disso, o comitê decide preparar provisoriamente dois documentos em

separado: o primeiro, sob a forma de uma declaração onde seriam definidos os

princípios gerais, o segundo, sob a forma de uma convenção onde seriam enunciados

direitos específicos, assim como limites ou restrições a seu exercício e, também, as

obrigações do Estado no cumprimento dos mesmos.

A tarefa de redigir a declaração ficou a cargo, ainda, de um grupo de trabalho ad hoc -

mais reduzido que o comitê de redação. De fato, por iniciativa do delegado da URSS, o

grupo ficou composto, além de Koretsky representando esse país, por Cassin, Wilson,

Malik e pelo presidente da CDH: Eleonor Roosevelt. No entanto, por iniciativa do

Reino Unido foi decidido que a redação preliminar do projeto de declaração fosse

confiada a uma só pessoa, sob alegação de assim se assegurar maior unidade ao texto.

Seguindo essa iniciativa, e com apoio unânime de todos os membros do grupo,

Roosevelt nomeia o jurista René Cassin para redigir o esboço de uma declaração

internacional de direitos humanos.

Adotando como material de trabalho o documento elaborado pela Divisão de direitos

humanos da SG, o delegado francês redige um anteprojeto composto de um preâmbulo e

43 artigos. E, no que diz respeito ao segundo documento, o pacto ou convenção, a tarefa

fica confiada a membros do um outro grupo ad hoc, que adota como material de

consulta o projeto elaborado pelo Reino Unido/Índia.

A Comissão de direitos humanos, em dezembro de 1947, decide denominar o primeiro

documento declaração, e o segundo pacto (convenant), bem como reservar a expressão

Carta internacional de direitos humanos para todos os documentos em estudo. Para

Cassin, a carta representava um tríptico: um dos panéis, o central, a declaração, os dois

outros panéis, laterais, formados, de um lado, pelo pacto e, de outro lado, pelas medidas

de aplicação.

19 DOC. N.U. E/CN.4/AC.1/SR.5, p.2.

O comitê de redação, em maio de 1948, revisa ambos os documentos, a declaração e o

pacto, e, em tal oportunidade, Roosevelt alega que a declaração não deve ser

considerada um ato legislativo, mas um documento que enuncia princípios gerais, sem

força obrigatória ou jurídica para os Estados, e isso, acrescentou, à diferença do pacto,

que deve conter uma definição precisa dos direitos humanos e força obrigatória para as

partes signatárias. Na mesma sessão foi decidido, ademais, começar os trabalhos pelo

exame do pacto e, depois, dar continuidade à análise da declaração. No entanto, essa

medida não teve o apoio da URSS e Líbano, que preferiam examinar em primeiro lugar

o projeto da declaração e, depois, o pacto.

Essa divergência refletia a oposição da maioria dos membros do comitê em relação à

posição soviética, segundo a qual era necessário dar à declaração um caráter mais

concreto, ou seja, estabelecer, junto aos princípios, obrigações para os Estados no

cumprimento dos direitos humanos, enquanto outros integrantes do comitê, encabeçados

pelo Reino Unido, defendiam a tese de que a declaração não devia incluir nenhum

dispositivo de caráter obrigatório, reservando essa possibilidade apenas para o pacto.

Seguindo essa opinião majoritária, a CDH, em junho de 1948, revisa unicamente o

projeto de declaração e, alegando falta de tempo, propõe que o projeto do pacto e as

medidas de aplicação sejam analisados na sua quarta sessão (1949). Assim, a Comissão

de direitos humanos dava por terminado seu trabalho relativo à elaboração da

documento - que tinha começado no início de 1947.

O projeto de declaração foi submetido ao Ecosoc, que, alegando falta de tempo, o envia

para a Assembléia geral. Através de sua Terceira comissão20 adota sem modificações a

estrutura geral do texto como a maioria dos dispositivos - tal como tinha sido aprovado

pela CDH: um preâmbulo e 28 artigos. Ademais, por iniciativa de Cassin, decide-se

chamar o documento declaração universal - até então internacional, e isso em razão de

que estava destinado a ser a “expressão dos direitos de todos os povos do mundo”, e não

só das 58 nações que na época compunham a organização. A nova denominação 20 Geralmente questões relativas aos direitos humanos são previamente submetidas pela Assembléia geral a sua “Terceira comissão” encarregada de assuntos sociais, humanitários e culturais. Cada membro da AG encontra-se representado na comissão por uma pessoa e, como ocorre em outros órgãos da ONU, cada representante, na comissão, tem um voto, suas decisões sendo adotadas pela maioria dos membros presentes e votantes.

sugerindo a existência de um jus cosmopoliticum lastreado na presença operativa de

uma razão abrangente da humanidade - no estilo kantiano.

A Assembléia geral, em sua terceira reunião, conhecida como a sessão dos direitos

humanos21, Paris, Palais de Chaillot, aprova, através da Resolução 217-A (III) de 10 de

dezembro, a Declaração universal composta de um preâmbulo e 30 artigos. O

documento conta com o voto favorável de 48 países, nenhum voto contra e 8

abstenções, dentre as quais seis países comunistas: Bielo Rússia, Tchecoslováquia,

Polônia, Ucrânia, URSS e Iugoslávia (além de África do Sul e Arábia Saudita). A

abstenção dos países do Leste obedeceu principalmente aos seguintes motivos: a)

desproporção entre os direitos individuais, civis e políticos e direitos econômicos e

sociais (só cinco artigos); b) ausência de condenação ao fascismo e ao nazismo; d)

ausência do termo democracia22; e) falta de referência explícita do Estado no

cumprimento dos direitos humanos; f) pouca ênfase aos deveres dos indivíduos e g) não

obrigatoriedade do texto.

A votação da declaração na Assembléia geral foi acompanhada de transações

subterrâneas na medida em que obteve votos que não respondiam à convicção dos

governos que os exprimiam, mas a interesses ou vantagens que podiam obtêr dos

mesmos; sem contar as ameaças que países menores podiam sofrer caso não votassem

na direção indicada pelos grandes - EUA e URSS. Mas, apesar das disputas e transações

interesseiras, pode-se dizer que a aprovação do documento representou o mínimo

denominador comum ao qual humanidade podia chegar na época. De fato, trata-se de

um texto progressista e cheio de novidades, que reflete as expectativas da comunidade

internacional, sobretudo no que diz respeito à interdependência entre direitos

individuais, civis e políticos e direitos econômicos e sociais - como resulta do

21 A Assembléia geral se reúne anualmente, em período ordinário de sessões, a partir da terceira terça-feira do mês de setembro na sua sede em Nova Iorque. Ela escolhe seu presidente para cada período de sessões. Ela é composta por todos os membros da organização; cada um deles tem direito a um voto, e suas decisões, com algumas exceções, são tomadas pela maioria dos membros presentes e votantes (como foi o caso da DUDH e dos PIDH). 22 O termo democracia não figura na declaração; contudo, o texto limita-se a assinalar, Artigo 21, num enunciado amplo, o seguinte: “Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país”, que “a vontade do povo é a base da autoridade do governo”, que “será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”. A ausência da palavra obedecia à distinta concepção da mesma entre países ocidentais e comunistas: democracia liberal versus democracia popular. Assim, os chamados direitos humanos “no Estado” ou de “controle do Estado”, ou seja, os direitos políticos ficaram relegados a um segundo plano também devido ao principal embate manifestado pela contraposição entre direitos humanos “contra o Estado” (países ocidentais) e direitos humanos “através do Estado” (países comunistas).

depoimento do presidente da Assembléia geral na reunião plenária que aprova o

documento:

A adoção da Declaração universal de direitos humanos por uma ampla maioria e sem nenhum voto contra constitui um fato notável. Ela representa uma primeira etapa, uma vez que não é uma convenção em virtude da qual os diferentes Estados estariam obrigados a observar e aplicar os direitos fundamentais do homem; ela não prevê tampouco a efetivação ou execução [dos mesmos], porém representa um progresso importante no longo processo de evolução. Pela primeira vez uma comunidade organizada de nações elabora uma declaração de direitos humanos e liberdades fundamentais. Esse documento, reforçado pela autoridade que lhe dá a opinião do conjunto das Nações Unidas, e de milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças de todas as partes do mundo, que encontraram nele uma ajuda, um anelo e uma inspiração23.

Por sua vez, Cassin, em tal oportunidade, manifestou o seguinte: a declaração concebida

na origem como um simples anexo da Carta das Nações Unidas e o prefácio da Carta

internacional de direitos humanos revela-se rapidamente um monumento durável para as

instituições internacionais e os Estados. Alguma coisa de novo entra no mundo, é o

primeiro documento com valor ético adotado pelo conjunto da humanidade organizada

na finalização de uma guerra sem precedentes. Apesar de algumas imperfeições, lacunas

e sobretudo dificuldades na sua aplicação, acrescentou, tenho a impressão de que se

apresenta diante do mundo como as descobertas atômicas, que, na ordem científica,

abriram uma nova era para a humanidade. E concluiu: diante do despontar de novas

forças, que mudam profundamente as condições materiais da existência humana, a

declaração já entrou no patrimônio da humanidade, ela forma a base de um direito

mínimo comum e oferece um código moral a cada uma das pessoas que compõem a

sociedade humana e que querem guardar, em sua individualidade, a indestrutível

vocação à sua liberdade de pensamento e consciência24.

23 Séances plenières de l’Assemblée générale. Comptes rendus des séances, 21 setembro-12 dezembro, Paris, 1948, p.934. 24 Em relação aos outros documentos que compõem a Carta internacional de direitos humanos, o PIDESC e o PIDCP, eles foram redigidos pela Comissão de direitos humanos nas sessões de 1952-53-54. Com essa última reunião, a comissão deu por encerrados seus trabalhos relativos aos pactos, que começaram a partir de 1949 depois de aprovada a declaração. Importa acrescentar que a Assembléia geral decidiu, em fevereiro de 1952, que a CDH devia redigir dois documentos em separado, e isso em virtude da distinta natureza dos direitos neles consagrados, isto é, os direitos civis e políticos de aplicação imediata, os direitos econômicos e sociais de aplicação progressiva (Art. 2 do PIDESC). Em 1954, a Assembléia revisa os dois projetos de pacto elaborados pela CDH e recomenda à sua Terceira comissão que realize um estudo de artígo por artígo de ambos os documentos, que dura 12 anos. Ademais, seguindo resoluções da AG e acompanhando igualmente a declaração, os dois pactos estabelecem no terceiro parágrafo do preâmbulo o caráter indivisível ou interdependente de ambas as categorias de direitos. Na sua 21ª sessão plenária, a Assembléia geral aprova, em 16 de dezembro de 1966, as duas convenções de direitos humanos. O PIDESC, composto de um preâmbulo e 31 artigos, contou com o voto favorável de 105 países e nenhum voto contra, e o PIDCP, composto de um preâmbulo e 53 artigos, contou com o voto favorável de 106 países e nenhum voto contra - ambos os textos entraram em vigor em 1976, conforme dispõem, respectivamente, os Artigos 27 e 49.

No que tange à natureza jurídica da Declaração universal, cabe dizer que, ao ser adotada

na forma de uma recomendação, ela não cria obrigações para os estados-signatários,

fazendo assim com que seu alcance jurídico/concreto fique limitado. Seguindo a opinião

de vários especialistas, é possível afirmar que se trata de um texto de conteúdo especial

dotado de alcance sobretudo moral e, mesmo que represente um fato sem precedentes,

com alcance psicológico extraordinário, lhe falta uma qualidade essencial: a força

obrigatória, e isso se dá diferentemente dos pactos, que, ao serem adotados na forma de

uma convenção, tém caráter vinculante/obrigatório para os Estados signatários:

A Declaração universal emanou de uma Resolução da Assembléia Geral da ONU. Não tinha, portanto, em 1948, a força de uma lei internacional. Era uma recomendação, ou seja, um convite para que os Estados-membros da ONU observassem o que nela estava previsto. Tecnicamente não tinha a característica de um comando, mas o da vis directiva de um conselho a ser seguido em função da força persuasiva dos seus enunciados (LAFER, 2008: 318).

Outros estudiosos, como o próprio Celso Lafer, consideram, contudo, que a força da

declaração provém do fato de ser uma referência constante: mencionada inúmeras vezes

como fonte de tratados internacionais, assim como em nível doméstico na prática

legislativa e judicial dos Estados. Dessa maneira, o documento é um fator poderoso do

desenvolvimento do direito internacional consuetudinário e, portanto, dotado de força

obrigatória25. Um outro argumento na mesma direção salienta que a força jurídica da

declaração reside no fato dela estar associada a dispositivos da ONU, que são

obrigatórios para os Estados-signatários, como, por exemplo, aqueles artigos da Carta

das Nações Unidas que explicitam compromissos dos governos em matéria de direitos

humanos26:

[...] à hora atual, a Declaração é considerada como constituindo a interpretação autêntica da Carta das Nações Unidas, ao explicitar em detalhe o sentido dos termos “direitos humanos e liberdades fundamentais” que os Estados-membros da ONU aceitaram promover e respeitar quando aderiram à Carta [...] como um dos elementos da estrutura institucional da comunidade universal. Enquanto enumeração dos direitos humanos que emanam de uma autoridade, a Declaração se converteu num dos componentes essenciais do direito internacional consuetudinário, obrigatório para todos os Estados e não só para aqueles que fazem parte das Nações Unidas (SOHN, 1982 apud BUERGENTHAL; KISS, 1991: 22).

25 Em reforço a essa opinião o parágrafo 91 da sentença da Corte Internacional de Justiça de 24 de maio de 1980, que confirma, no plano judicial, esse entendimento doutrinário. 26 Importa lembrar que os Artigos 55 e 56 da carta, relativos à cooperação internacional, determinam que a organização deve “promover o respeito universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos” e “a efetividade de tais direitos e liberdades”.

Seguindo essa opinião, a declaração teria permitido atenuar a distinção acerca do caráter

obrigatório ou não de um documento - que não está dado pela forma, no caso, a

resolução da assembléia que aprova a declaração em forma de recomendação. É o que

entendem especialistas como Karel Vasak: a distinção clássica entre soft-law e hard-

law, droit-vert e droit-mûr não é pertinente no domínio do direito internacional dos

direitos humanos, que não sugere como determinante a forma de um instrumento

internacional (CASSIN, 1947: 347).

Já no entendimento de outros estudiosos o processo que leva a declaração de simples

recomendação a instrumento obrigatório para os Estados prende-se ao fato de que a

elaboração dos pactos internacionais progrediu lentamente (quase vinte anos), e durante

esse tempo a comunidade internacional teve necessidade de contar com princípios

relativos aos direitos humanos a serem exigidos pelos Estados-membros da ONU:

[...] a necessidade de contar com normas obrigatórias que definissem exigências para os Estados-membros da ONU no domínio dos direitos humanos tornava-se cada vez mais exigente. À medida que os anos transcorriam, a Declaração foi utilizada como texto de referência. No momento em que os governos, e mesmo a ONU ou outras organizações internacionais, pretendiam invocar princípios protegendo os direitos humanos ou para estigmatizar a violação desses direitos, citavam a Declaração universal como o instrumento que os tinha definido. Dessa maneira, esse texto converteu-se em símbolo do que a comunidade internacional entende por “direitos humanos”, criando a convicção de que todos os governos têm a “obrigação” de garantir a cada um o gozo dos direitos que ela proclama (BUERGENTHAL; KISS, 1991: 21).

As diferentes opiniões acerca da natureza jurídica da declaração traduzem, em grande

parte, as posições das delegações governamentais no momento da elaboração do texto.

Assim, o Reino Unido que preferia aprovar a declaração na forma de recomendação

acompanhada de um outro instrumento, o pacto, com força jurídica/obligatória; também

os EUA, que preferiam também aprovar a declaração na forma de recomendação,

porque assim se conseguiria respeitar a soberania dos Estados. França, por sua vez,

insistia no alcance principalmente moral da declaração e julgava oportuno redigir outros

instrumentos com força jurídica: os pactos. Por seu turno, Bélgica, além de destacar o

caráter moral da declaração, entendia que isso não impedia reconhecer a obrigação da

mesma nas diferentes legislações nacionais.

Para concluir sobre esse ponto, pode-se dizer que a Declaração universal de direitos

humanos conseguiu ter um alcance moral e psicológico extraordinário, contribuindo,

dessa maneira, para despertar a consciência e o compromisso formal da humanidade em

favor dos mesmos; já a importância dos pactos internacionais reside no fato de terem

judicializado a declaração, transformando os princípios gerais da mesma em normas

jurídicas obrigatórias para os Estados, ou seja, de terem permitido a passagem da soft

law de uma resolução-recomendação para a hard law dos pactos.

Com base nos diferentes níveis de atividade desenvolvidos pela ONU na matéria,

conscientização, proclamação e proteção dos direitos humanos, cabe dizer que a

resolução adotada pela Assembléia geral, em 1948, a declaração, e aquelas adotadas, em

1966, os pactos, a primeira cobre o primeiro e segundo nível, enquanto a segunda o

terceiro nível. Dessa maneira, até chegar aos pactos, a organização teria conseguido

elaborar declarações ou convenções parciais que não prevêem mecanismos de proteção

internacional dos direitos. A partir dos pactos, pelo contrário, ela consegue superar os

textos convencionais anteriores ao contemplar mecanismos de proteção que, mesmo

revelando-se às vezes ilusórios na sua eficácia, constituem um notável esforço de

aperfeiçoamento (MOURGEON, 1967: 330).

Pode-se acrescentar, ademais, que os pactos enquanto convenções ou tratados

internacionais não têm como fonte o costume, mas a lei: não existe dúvida, alegam

especialistas, que, dessas duas fontes, são as convenções as que representam obrigações

legais de cuja execução ou não é responsável o Estado. Os pactos são partes integrantes

do direito internacional positivo na medida em que sua votação pela Assembléia geral,

acompanhada pela assinatura dos Estados, é ratificada legalmente no marco de cada

Estado, observando-se que a ratificação da convenção, como tratado multilateral, está

destinada a ter força obrigatória para os Estados (SZABO, 1984: 62-64), ou seja, que os

Estados-signatários de uma convenção internacional se comprometem a garantir, em sua

legislação nacional, os direitos nela enunciados ou, em outras palavras, assegurar a

todos os habitantes do Estado o gozo efetivo dos direitos nela contemplado.

4. declaração universal: visão restrita e ampla dos direitos humanos

Um dos principais motivos da disputa que se verificou no momento da elaboração da

Declaração universal diz respeito à posição daqueles países que defendiam

principalmente as liberdades individuais e os direitos civis e políticos: visão/restrita

minimalista ou compartimentalizada; por seu turno, outros países que priorizavam

sobretudo os direitos econômicos e sociais e entendiam, ademais, que ambas as

categorias de direitos têm igual peso ou relevância: visión ampla/maximalista ou

integrada dos direitos humanos. A tradução dessas posições contrapostas trazendo à

baila a idéia de que sua história não foi a de uma marcha triunfal nem a de uma causa

perdida de antemano, mas a história de um combate (LOCHAK, 1981 apud LAFER,

2008: 314).

Essa controvérsia, vale insistir, traduz o ambiente ideológico dominante da época, a

polarização entre países liberais e “marxistas”. De fato, a pesar de a declaração ser a

expressão de uma razão abrangente da humanidade, de ter consagrado os direitos

humanos como tema global, ela inseriu-se na realidade política de um mundo em

conflito marcado pela bipolaridade: a consequência disso foi que na confrontação

ideológica do período um grupo de países dava ênfase aos direitos civis e políticos

(EUA, etc), que são parte da herança liberal, enquanto outro grupo de países conferia

importância aos direitos econômicos e sociais (URSS, etc), que são parte da herança

socialista.

Ou, ainda, a Declaração universal ocorre na vigência da bipolaridade e, portanto, das

relações de conflito e competição entre duas potências com poder suficiente para definir

o parâmetro de funcionamento do sistema internacional. No campo dos valores, isso fez

dos Estado Unidos, na batalha ideológica em função do papel da herança liberal na

afirmação dos direitos humanos de primeira geração, um propugnador seletivo de seu

reconhecimento na organização da vida coletiva. Da mesma maneira, a União Soviética,

levando em conta o papel da herança socialista na elaboração dos direitos humanos da

segunda geração, colocou-se como um articulador seletivo de sua relevância nos

modelos de organização social (LAFER, 1944: xxix).

O principal contraste ideológico que domina a elaboração da declaração pode ser

observado nos debates e discussões mantidas pelas delegações do front liberal e do

front socialista, mas específicamente em torno da inclusão ou não dos direitos

econômicos e sociais no documento, assim como da interpretação ou relevância a ser

dada aos mesmos - em relação às liberdades individuais e aos direitos civis e políticos.

Dentre os projetos em exame, cabe lembrar o documento da Divisão de direitos

humanos, que previa oito artigos relativos aos direitos econômicos e sociais e, além

disso, descatava os deveres dos homens para com a sociedade; o projeto do Reino

Unido/Índia, que passava completamente por alto tais direitos, limitando-se a enunciar

certas liberdades individuais e a proibição da escravidão; as Propostas dos EUA, que

incluíam as liberdades individuais, os direitos civis e políticos e alguns direitos sociais;

o projeto de declaração de Cassin, que, além de enumerar direitos civis e políticos,

previa oito dispositivos relativos aos direitos econômicos e sociais; e, finalmente, o

projeto do comitê de redação, que contemplava a totalidade dos direitos civis e políticos

previstos nos projetos preparatórios e seis artigos relativos aos direitos econômicos e

sociais.

No transcurso dos debates27 Reino Unido propôs uma série de emendas com a finalidade

de restringir os direitos econômicos e sociais: supressão do direito à saúde e à

seguridade social, bem como limitações ao direito do trabalho e à educação - ao retirar

do texto a responsabilidade que cabe ao Estado no seu cumprimento. Por sua vez, o

representante da Austrália achava mais adequado inserir no texto apenas dois ou três

princípios gerais, argumentando que esses direitos eram de difícil definição.

Entrementes, o delegado do Líbano entendia que os direitos econômicos e sociais não

têm a mesma validade nos países, e que, por tratar-se de um documento universal, era

preciso estabelecer apenas alguns princípios gerais na matéria como, por exemplo, o de

que “o trabalho não é uma mercadoria”.

Em reação ao Reino Unido, URSS propõe que o direito ao trabalho não apenas figure de

forma detalhada, determinando responsabilidades do Estado, mas também apareça no

início da declaração - depois do direito à vida. Tal entendimento era compartilhado por

vários países que estimavam que a omissão dos direitos econômicos e sociais mostraria

ao mundo que o documento não é realista, e seguindo o delegado soviético, insistiam

que esses direitos deviam figurar no começo do documento. Única maneira, no entender

deles, de evidenciar que a declaração está em harmonia com o mundo presente.

Os EUA estavam de acordo com URSS no sentido de que a declaração não podia omitir

os direitos econômicos e sociais, porém concordavam com aqueles países num

determinado ponto: estes deviam ser contemplados apenas como princípios gerais - não

de maneira detalhada e retirando a responsabilidade que cabe ao Estado. Ademais,

criticam o dispositivo que fazia referência ao “dever de cumprir um trabalho útil”,

previsto no projeto de Cassin, ao entenderem que esse enunciado implicava um direito-

dever - o que pode levar certos países a aceitar o trabalho forçado e atentar contra a

liberdade individual.

27 As fontes das posições dos países no seio da ONU foram extraídas do livro da minha autoria: La ONU y la exégesis de los derechos humanos: una discusión teórica de la noción. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

Com sua visão restrita dos direitos humanos, Reino Unido destacava que um dos

principais valores de seu país é a tolerância, considerada a essência da democracia,

juntamente com a liberdade de expressão e pensamento. Insistia, ademais, que na

declaração deviam figurar apenas as liberdades individuais e direitos fundamentais, sem

necessidade de mencionar, por exemplo, a “proteção do homem contra a miséria” como

outras delegações encabeçadas pela URSS defendiam. Para o delegado britânico, os

direitos econômicos e sociais se assentam na liberdade de palavra, pensamento e

associação, que, efetivadas, contribuem para o estabelecimento gradual de outros

direitos. É necessário, dizia, haver homens livres e não escravos bem alimentados. Para

desenvolver os direitos humanos, insistia, cumpre começar por proclamar as liberdades

individuais e direitos fundamentais sem os quais nenhum outro direito progride.

O delegado da Ucrânia se opõe veementemente a esse argumento, ao sustentar que os

direitos econômicos e sociais se encontram na base de todos os direitos, destacando,

ademais, que a posição do Reino Unido podia implicar a idéia errônea de que os

homens, mesmo livres, podem morrer de fome. Para o representante desse país,

comunista, o homem comum pode preocupar-se com a liberdade de palavra, imprensa,

etc, mas sempre e quando não se encontra na miséria. Diante dessa intervenção, Reino

Unido reage, trazendo à baila um argumento iluminista/kantiano: o reconhecimento e o

gozo das liberdades individuais fazem com que os homens não sejam tratados como

menores, e isso, acrescentou, à diferença de regimes que, em nome dos direitos

econômicos e sociais, impõem regras aos indivíduos dizendo como devem agir28.

Diante do acirramento da discussão, ciente de seu isolamento, o delegado britânico

muda de opinião e, seguindo os EUA, passa a admitir que certos direitos econômicos e

sociais figurem na declaração, porém como princípios gerais. E o faz argumentando de

28 Esse argumento encontra eco em muitos estudiosos que, com base nas revoluções e regimes baseados no marxismo, criticavam uma dada perspectiva de compreensão dos direitos humanos: “É em nome da obtenção dos direitos econômicos e sociais que se rejeitam hoje em dia os direitos dos indivíduos [...]. As liberdades reais - direito à vida, ao trabalho, à saúde - são primordiais e a expressão direitos civis e políticos, por certo desejáveis, não poderia existir se essas liberdades elementares não forem satisfeitas. Em outros termos: é mais urgente nutrir um faminto que lhe outorgar o direito de voto. Esse argumento, na sua aparente evidência, é um argumento de peso. Que seja mais importante saciar os ventres que dar a liberdade de espírito parece lógico [contudo] a realidade demonstra que esse argumento está errado; todas as mudanças de regimes em nome de tal argumento têm levado, por um lado, à perda das liberdades formais existentes [que não são tão simplesmente “formais”], e, por outro lado, a uma catastrófica regressão econômica e social exatamente na direção contrária das aspirações às liberdades chamadas reais” (MALHUERT, 1989: 14-15).

que o uso de uma fórmula rígida, detalhada, mencionando a responsabilidade do Estado

na matéria, teria o grave inconveniente de não levar em conta os distintos sistemas

econômicos. Para consolidar sua posição, sublinhou, ainda, que o projeto de declaração

enumera uma série de direitos individuais que cabe ao Estado garantir e que nem por

isso foi necessário fazer referência a ele. E, em tom provocador, questionou: por que

fazer com os direitos econômicos e sociais alusão expressa ao Estado se apenas uma

parcela de responsabilidade lhe cabe - na matéria? Essa posição contrariava obviamente

URSS, que entendia que a declaração devia fazer menção explícita ao Estado como o

responsável pelo cumprimento desses direitos: não se trata apenas de declarar um

direito, aponta o delegado soviético, mas também de estabelecer a garantia efetiva do

mesmo.

Essa controvérsia ficou provisoriamente superada na CDH com a proposta de Cassin de

incluir, na declaração, um article chapeau fazendo menção expressa à responsabilidade

do Estado pelo cumprimento dos direitos econômicos e sociais; em contrapartida,

Líbano sugeria, em relação a esse dispositivo introdutório - relativo aos direitos

econômicos e sociais -, de incluir a expressão que eles “dependem das possibilidades

sociais e econômicas de cada país” 29.

Contrário à proposta da França, Reino Unido questionava a pertinência de fazer

referência ao modo de aplicação dos direitos econômicos e sociais, voltando mais uma

vez ao argumento de que para os outros direitos não foi necessário fazê-lo. Para o

delegado britânico, se se seguia a proposta de Cassin, estar-se-ia dando prioridade a um

grupo de direitos em detrimento de outros. E, em apoio a essa tese, assevera: a

declaração de direitos será difundida no mundo inteiro e servirá de base ao ensino, seria

ruim que um texto tão importante desse tratamento privilegiado a um grupo de direitos.

É preciso agir com prudência, acrescentou, e evitar a impressão de que os direitos

econômicos e sociais são mais importantes. Porém, faz uma concessão ao admitir que,

no final do documento, figure um princípio geral de que os “Estados devem esforçar-se

no cumprimento de todos os direitos humanos”, e, no tocante às medidas de aplicação

desses direitos, admitiu que só apareçam na convenção ou pacto - jamais na declaração.29 Seguindo a posição da França e do Líbano, o Artigo 22 da DUDH (introdutório dos direitos econômicos e sociais: Art. 23 a 26) ficou redigido da seguinte maneira: “Todo homem, como membro da sociedade, tem o direito à seguridade social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos e sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”.

França não compartilhava do argumento do Reino Unido de que a inclusão, na

declaração, de um artigo introdutório, chapeau, fazendo referência aos direitos

econômicos e sociais e às medidas de aplicação, desse maior relevância a esses direitos.

Para o delegado francês, sua proposta tinha como finalidade mostrar a diferença de

ordem prática que existe entre ambas as categorias de direitos, ou seja, que à diferença

dos direitos individuais, civis e políticos, a satisfação dos direitos econômicos e sociais

requer prestações positivas a cargo do Estado.

Com base no projeto de declaração da CDH, que previa quatro dispositivos relativos aos

direitos econômicos e sociais sem referência alguma às medidas de aplicação, o

delegado soviético se opôs energicamente, dizendo que a maioria dos artigos da

declaração não estabelece garantias para o gozo efetivo dos direitos, que a declaração

tem um caráter meramente teórico, formal.

Assim, propôs, para o futuro, na Terceira comissão da Assembléia geral, uma série de

emendas para cobrir tais lacunas, ademais de encaminhar outras propostas como, por

exemplo, de que o exercício da liberdade de pensamento, consciência e religião deve

estar em conformidade com a moralidade pública, de que os direitos de opinião,

expressão e informação devem ser exercidos sempre e quando não fomentem a

propaganda nazista ou fascista e sejam compatíveis com a segurança nacional. Além

disso, acompanhando constituições de seu país (1918, 1937), propõe que, para tornar

efetivos esses direitos, o Estado deve contribuir com os meios necessários: local,

material de imprensa, etc. E, finalmente, no que diz respeito aos direitos de reunião e

associação, propôs que eles devem estar condicionados ao interesse da democracia e

proibidos se têm caráter nazista ou fascista.

Na Terceira comissão da Assembléia geral, os EUA manifestam sua satisfação pelo fato

de que o projeto de declaração tinha conseguido estabelecer alguns princípios gerais

relativos a ambas categorias de direitos. Essa atitude era compartilhada por vários países

ocidentais, que entendiam que o documento representava um passo adiante ao ter

incorporado novas demandas exigidas depois de meio século - os direitos econômicos e

sociais. Argumentavam ainda que era em virtude desses direitos essenciais que os

homens podem desenvolver-se espiritualmente e viver juntos em harmonia e concórdia.

Por sua vez, outras delegações, apesar de admitirem de que ambos os tipos de direitos

são fundamentais, insistiam no fato de que as liberdades individuais e os direitos civis

podem ser exigidos imediatamente diante dos tribunais, em contraste com os outros

direitos, que, em tanto princípios diretores, não podem sê-lo. Ou seja, que os direitos

econômicos e sociais requerem medidas concretas a cargo do Estado e dependem

também das condições de desenvolvimento material e da riqueza dos países30.

Elevando o tom do debate, URSS fazia uma distinção entre países reacionários - que

não estão dispostos a reconhecer os direitos econômicos e sociais, nem o princípio de

não discriminação (África do Sul) - e os países conformistas, que acham que o projeto

conseguiu o máximo possível: estabelecer alguns princípios gerais sem fazer referência

ao Estado (Reino Unido). Em relação a esse último grupo de países, o delegado

soviético afirmou: eles não querem fazer nenhuma concessão aos ideais progressistas

dos tempos presentes, o máximo que aceitam reflete a situação em que se encontram

suas sociedades burguesas. E, finalmente, refere-se aos países progressistas, os quais

consideram o projeto de declaração incompleto, puramente formal, abstrato, por carecer

de garantias e medidas concretas para a efetivação dos direitos, principalmente, os

econômicos e sociais (URSS).

Diante da intervenção do orador comunista, Reino Unido alerta as demais delegações

contra aqueles países que procuram erigir-se na avant garde dos novos direitos e

querem colocar outros países na situação de exploradores ou conformistas. Em

contrapartida, Ucrânia, replicando Reino Unido, afirmava que a constituição de Lenin

(em referência à constituição soviética de 1918) não era um documento teórico, mas um

texto que consagra direitos reais/concretos para todo o povo trabalhador. Por sua vez,

Tchecoslováquia achava que o projeto de declaração não faz outra coisa senão retomar

os princípios de 1789 (em referência à declaração francesa), ao estabelecer direitos

humanos abstratos/formais que não permitem ao homem o gozo efetivo da liberdade. E

mais: fortalecendo a posição dos países comunistas, Polônia propõe uma emenda com a

seguinte redação: de nada serve outorgar direitos civis e políticos, se não se garantem

ao mesmo tempo os direitos econômicos e sociais.30 Essa opinião é seguida por vários constitucionalistas brasileiros, que entendem em relação a esses direitos que as medidas previstas na constituição, tais como mandado de injunção (Art.5, LXXI) e inconstitucionalidade por omissão (Art.103, § 2º), têm sido “letra morta” ou “pouco servido” para efetivar esses direitos visto que dependem de “inúmeros fatores” e não de uma determinação judicial (FERREIRA FILHO, 2007: 52).

As divergências se intensificam na Terceira comissão da AG, quando passa a examinar

“artigo por artigo” o projeto de declaração da CDH, em particular, o dispositivo relativo

ao postulado filosófico do texto, assim como outros artigos concernentes ao direito à

vida, à propriedade, à seguridade social, ao trabalho e o direito à saúde.

Quanto ao postulado filosófico da declaração, várias delegações opuseram-se à redação

atual31, alegando que era incompleta, e decidem apoiar a proposta do México: “Todos os

seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Os direitos à

subsistência, à saúde, à educação e ao trabalho são considerados essenciais para garantir

a justiça social e permitir o pleno desenvolvimento do ser humano”32. O representante

desse país justificava sua emenda com base no argumento de que ela traduz as

aspirações da revolução mexicana, os princípios da revolução francesa, os ideais do

século XIX e os princípios que animaram os Aliados nas duas guerras mundiais, e,

sobretudo, porque ela se inspira na freedom from want rooseveltiana, que, segundo o

delegado mexicano, constitui uma fórmula preciosa: o ponto culminante no

desenvolvimento das idéias sobre os direitos e as liberdades dos homens.

Em oposição à proposta mexicana, vários países ocidentais alegaram que se tratava de

uma redação não realista e que o dispositivo “filosófico” em questão devia limitar-se,

apenas, a enunciar os princípios fundamentais do homem - em clara alusão ao direito da

igualdade e da liberdade individuais inatas. Por seu turno, outras delegações achavam

que a emenda mexicana não devia ser mantida porque os direitos nela enunciados

(saúde, educação, etc,) figuravam em outros dispositivos do texto.

No tocante ao direito à vida33, URSS propôs uma emenda que visava medidas concretas

relativas ao cumprimento do mesmo: “Todo indivíduo tem o direito à vida. O Estado

deve dar proteção a todo indivíduo contra tentativas criminais a sua pessoa. Deve

também garantir as condições que permitam evitar os riscos de morte pela fome e pelo

cansaço”. No entendimento da Bielo Rússia e da Ucrânia essa redação tinha o mérito de

31 Artigo 1° da DUDH: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São todos dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade”. 32 Cabe destacar, em relação à proposta mexicana de incluir o direito ao trabalho nos “postulados filosóficos” da declaração, que a Constituição Política dos Estados Unidos de México de 1917 já previa direitos trabalhistas desde os seus primeiros dispositivos (Art. 5). 33 Artigo 3 da DUDH: “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

ser realista: a expressão concreta de um ideal. Para outros países, que seguiam também a

emenda soviética, ela tinha a vantagem de estabelecer uma definição mais ampla do

direito à vida, uma vez que faz referência à proteção do Estado desse direito, bem como

a responsabilidade que lhe cabe para que os homens tenham um nível digno e

conveniente de vida.

França, pelo contrário, achava correta a redação original do artigo e entendia que

qualquer acréscimo, incorporando outros direitos, enfraqueceria o alcance e/ou

importância do mesmo. O simples enunciado do direito à vida, declarou o delegado

francês, reforça o conteúdo do documento, que tem que ser redigido de maneira rigorosa

e sóbria, visto que seus princípios influenciaram a humanidade. Em tal oportunidade,

criticou também a emenda do México pelo fato de não conter nenhuma referência ao

direito à liberdade e à segurança individuais - tidos pela França como indispensáveis

para o direito à vida. Assim, e com o apoio de outras delegações, EUA, Brasil, etc, que

tinham aderido ao argumento do Reino Unido de que os direitos sociais já figuram em

outra parte do texto, a proposta mexicana perdeu força e foi rejeitada.

Contudo, Uruguai e Cuba insistem e propõem uma outra redação: “Todo indivíduo tem

o direito à vida, à liberdade, à segurança jurídica, econômica e social, e à integridade

física da pessoa”. Para esses países, a vantagem desse enunciado é que ele permitiria

levar em consideração não só os ideais do século XVIII, mas também do século XX,

que viu nascer uma nova concepção da liberdade fundada nas quatro liberdades

rooseveltianas. Na mesma direção, outras delegações achavam que a declaração não

podia ser uma repetição servil da declaração de 1789, mas devia ir mais longe e exibir

os mais altos ideais do tempo presente - o que implicava relacionar o direito à vida com

a segurança econômica e social. Líbano, acompanhando a emenda daqueles países,

entendia que o artigo relativo ao direito à vida constituía um enunciado-base e que,

sendo assim, ambas as categorias de direitos deveriam ser contempladas no dispositivo.

A esse respeito, o delegado desse país apontava:

O conceito de liberdade depois do século XVIII tem-se ampliado consideravelmente. Tem-se passado da idéia de liberdade pura à garantia de certos direitos sociais. De tal modo que, hoje em dia, o direito fundamental é o direito que tem o indivíduo de desenvolver plenamente sua personalidade, o que implica o gozo de “todos” os direitos necessários para esse desenvolvimento34.

34 Troisième Commission de l’Assemblée Générale. Comptes rendus des séances, 21 setembro-8 dezembro, 1948, Lakes Succes, Nova Iorque, p.168.

No que tange ao direito de propriedade, as delegações tinham chegado, na CDH, a um

texto de compromisso ou transacional que contemplava tanto a dimensão individual

quanto coletiva do mesmo35; contudo, na Terceira comissão da AG surgem novamente

disputas sobre o alcance a ser dado à propriedade. De um lado, os países que defendiam

uma definição ampla da mesma seguindo a proposta do Chile: “Toda pessoa tem o

direito de possuir bens, tanto individual como coletivamente, para as necessidades

essenciais de uma vida decente que contribuam para garantir a dignidade da pessoa

humana e do lar”. Etendiam que essa redação tinha o mérito de definir a parte da

propriedade cuja posse deve ser considerada como direito fundamental da pessoa

humana. De outro lado, EUA, Reino Unido, França, que se opõem à emenda por

entenderem que os termos empregados, tais como vida decente, etc, eram demasiado

vagos, subjetivos, suscetíveis de interpretações divergentes.

Bélgica, procurando superar o impasse, propôs a seguinte redação: “O direito de

propriedade é reconhecido a toda pessoa, individual e coletivamente, nos límites do

interesse geral”. A partir dessa emenda, duas posições surgiram novamente. De um

lado, França, favorável à mesma porque reforçava a dimensão social da propriedade e

evitava uma interpretação estritamente individual da mesma. De outro lado, Reino

Unido, contrário ao enunciado porque era detalhado demais e porque alterava o sentido

dos direitos fundamentais - ao deixar em aberto a possibilidade de o Estado restringir

arbitrariamente o direito à propriedade ao submetê-lo ao interesse geral.

URSS, de sua parte, estava de acordo com a fórmula empregada pela CDH, já que

contemplava também a dimensão social ou coletiva da propriedade; e, na Terceira

comissão da AG, chegou até a ameaçar: jamais meu país aceitará um enunciado que

garanta unicamente o direito à propriedade privada. Para o delegado soviético, a

vantagem da redação original residia no fato de que deixava em aberto a possibilidade

para cada país adotar seu próprio regime de propriedade em conformidade com a

legislação nacional - sem favorecer uma ou outra dimensão da mesma. Entendia,

ademais, que a única propriedade privada admissível era aquela fundada no trabalho, em

35 Artigo 17 da DUDH: “Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”.

oposição àquela baseada na exploração do trabalho alheio, tida pela URSS como

contrária à realização de uma vida decente. A esse respeito dizia o delegado russo:

O indivíduo, na União Soviética, pode possuir sua própria casa e negócios, mais a título de propriedade pessoal que privado. Isso lhe permite, juntamente com a posse pessoal dos bens que têm sua origem nos ganhos provenientes do trabalho coletivo, participar enquanto pessoa da vida da comunidade. Mas, na União Soviética, não se aceita a expressão propriedade privada porque implica a exploração das massas36 .

Diante da nova controvérsia que surge sobre o alcance a ser dado ao direito de

propriedade individual ou pessoal, satisfação de uma vida decente, etc, optou-se por não

se fazer alusão na declaração: o entendimento implícito que prevaleceu foi que seu

alcance depende do regime econômico em vigor em cada país (VERDOODT, 1964:

175)37.

Com respeito ao direito à seguridade social 38a discussão repetiu-se mais uma vez, na

Terceira comissão da AG, sobre se devia ou não se fazer referência ao Estado e às

medidas de aplicação. A redação atual que tem como antecedente o artigo chapeau,

introdutório, de Cassin foi elogiada em tal oportunidade pelo delegado soviético: o

dispositivo, afirmou, constitui a parte mais importante da declaração porque serve de

preâmbulo a outros direitos que não aparecem em nenhuma das precedentes declarações

- se os reconhecemos hoje em dia, alegou, isso se deve aos progressos sociais

alcançados no século XIX e XX. Porém, lamentava-se, mais uma vez, que o artigo não

estipulasse de forma rigorosa o dever do Estado na realização de tais direitos (os direitos

econômicos e sociais). Já o representante francês, seguindo essa opinião, declarou:

A França não discute de nenhuma maneira as idéias contidas na emenda soviética, em particular no que diz respeito a garantir através do Estado e da sociedade o respeito dos direitos econômicos, sociais e culturais; esses direitos são diferentes de todos os outros no sentido de que, se se quer que os indivíduos os usufruam, é necessário que o Estado tome todas as medidas positivas a esse respeito; seria conveniente, assim, impor ao Estado nítidas obrigações a esse respeito39.

36 Troisième Commission de l’Assemblée Générale. Comptes rendus des séances, 21 setembro-8 dezembro, 1948, Lakes Succes, Nova Iorque, p.387.37 A esse propósito, vale destacar, ademais, a completa omissão do direito de propriedade privada nos dois PIDH, e isso se verificou, em grande parte, pela resistência do bloco soviético em reconhecer a propriedade como um direito humano, em contradição com um princípio fundamental do comunismo: a apropriação coletiva dos meios de produção. 38 Artigo 22 da DUDH (supra).39 Troisième Commission de l’Assemblée Générale. Comptes rendus des séances, 21 setembro-8 dezembro, 1948, Lakes Succes, Nova Iorque, p.499.

Os EUA entendiam que a fórmula empregada no dispositivo em questão “pelo esforço

nacional, cooperação internacional, de acordo com a organização e recursos de cada

Estado” representava um texto de compromisso entre aqueles países que defendiam o

Estado como responsável pelo cumprimento dos direitos econômicos e sociais (URSS,

etc) e aqueles países que achavam que essa referência não devia aparecer na declaração

(Reino Unido, etc). O argumento dos EUA, repetindo-se mais uma vez, enfatizava: se se

aprova a emenda soviética prevendo obrigações dos Estados, dar-se-ia mais importância

a esses direitos.

Em réplica aos EUA, Tchecoslováquia entendia que, se não se seguia a emenda

soviética, o documento se limitaria a consagrar direitos meramente teóricos, abstratos, e

que para evitar toda noção de caridade na realização dos direitos econômicos e sociais

era necessário estabelecer nítida e claramente que é o Estado o responsável pelos

mesmos. Por sua vez, Reino Unido voltava a insistir que as garantias e medidas de

aplicação referentes aos direitos econômicos e sociais deviam figurar só no pacto de

direitos humanos. Já Bélgica considerava que a redação adotada era correta porque

constitui o prefácio de novas idéias - diferentemente de outras declarações de direitos -

em alusão à norte-americana e à francesa. É feliz, apontou o delegado belga, a inclusão

dos direitos econômicos e sociais no projeto de declaração, a Comissão de direitos

humanos conseguiu superar as concepções do século XVIII ao acrescentar às idéias

clássicas novos direitos.

Em relação ao direito ao trabalho40, importa dizer que o texto preparado pela CDH

contava com dois dispositivos41, ambos objeto de fortes críticas. De fato, contra o

enunciado detalhado desses artigos, EUA entendiam que a efetivação do direito ao

trabalho varia de país em país, e que, sendo assim, seria melhor fazer uma referência a

40 Artigo 23 da DUDH: “Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. Todo homem tem o direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus interesses”.41 Os Artigos 23 e 24 do texto do comitê de redação dispunham: “Toda pessoa tem direito ao trabalho. O Estado tem o dever de tomar todas as medidas que estão em seu poder para assegurar a todas as pessoas que habitem seu território a possibilidade de cumprir um trabalho útil. O Estado deve tomar todas as medidas necessárias para prevenir o desemprego; e que toda pessoa que trabalha tem o direito de receber uma remuneração em relação com sua capacidade e habilidade, trabalhar em condições justas e satisfatórias, e afiliar-se a sindicatos para proteger seus interesses e permitir um nível de vida conveniente para ela e sua família”. DOC. N.U. E/CN.4/95, p.9-10.

esse direito enquanto princípio geral; atitude essa que irritou Ucrânia: não acredito,

manifestou o representante desse país, como certos países podem se opor a mencionar o

Estado como responsável pelo direito ao trabalho e à prevenção do desemprego.

Reino Unido, seguindo os EUA, salientava também que o uso de uma fórmula rígida,

detalhada, que mencione a responsabilidade do Estado pela efetivação do direito ao

trabalho teria o grave inconveniente de não levar em conta os diferentes sistemas

econômicos. URSS, apoiada pela Bielo Rússia, opinava, ao contrário, que a redação

estava correta, porque contempla expressamente essa responsabilidade e as medidas que

cabe ao Estado tomar para garantir esse direito. Ambas as delegações insistiam no

argumento de que não se tratava apenas de declarar um direito, mas também de torná-lo

efetivo.

No que diz respeito ao direito à saúde42, que tinha como antecedente um texto

preparado pela Organização Internacional do Trabalho43, também se registraram

controvérsias. De um lado, Reino Unido, favorável à redação proposta pela OIT, uma

vez que se tratava de um texto completo e que a expressão “nível de vida elevado, saúde

e bem-estar” era suficiente para não incluir no documento outros direitos. Ademais, para

o delegado britânico a ausência do “direito a uma habitação digna e gratuita” (como

estipulava a emenda soviética) evitaria consagrar esse direito como um dever do Estado;

já para URSS, ao contrário, as expressões usadas no texto da OIT não eram suficientes

porque deixavam de precisar o direito fundamental que tem a população a uma

habitação digna e gratuita.

Diante desse embate, os EUA alertavam sobre a dificuldade de se chegar a um

entendimento sobre a expressão “habitação digna”, visto que cada país tem uma

concepção distinta da mesma. Consciente dessa dificuldade, o representante soviético

42 Artigo 25 da DUDH: “Todo homem tem o direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e asssistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”. 43 O texto da OIT estipulava: “Toda pessoa tem direito, sem importar sua condição econômica ou social, a que sua saúde seja preservada graças a uma alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos em níveis os mais elevados, que permitam os recursos do Estado ou da comunidade. O Estado ou a comunidade não podem deixar de responsabilizar-se pela saúde e pela seguridade dos cidadãos e devem adotar medidas sanitárias e sociais apropriadas”. DOC.N.U. E/CN.4/95, p.11.

defendia sua emenda, afirmando que ela era suficientemente clara: ela sublinha a idéia

de que o homem não pode viver como animal. O direito a uma habitação digna,

acrescentou, serve para indicar que o desrespeito a esse direito - a ser garantido através

de medidas concretas - não pode constituir uma ameaça à saúde da pessoa e de sua

família.

Em relação à outra emenda soviética ao texto da OIT, o direito à “alimentação e

vestimenta suficientes”, Reino Unido, mais uma vez, se opôs, alegando que tais

expressões não eram claras. Porém, países que acompanharam a ementa insistiam na

necessidade de inserir explicitamente esses direitos porque diziam: existem no mundo

milhões de pessoas que se encontram sem comida e sem vestimenta. No entanto,

entendiam que a expressão “direito a um nível de vida adequado” era um tanto vaga,

porque não precisava se o direito à alimentação e à vestimenta é um problema

quantitativo e/ou qualitativo.

Na “sessão dos direitos humanos” da Assembléia geral (10/12/1948), no extremo da

visão restrita ou minimalista dos direitos humanos, África do Sul justifica seu voto44

com base no argumento de que o projeto de declaração tinha ido além da intenção dos

legisladores que criaram a ONU e assevera:

A Carta das Nações Unidas estabelece uma nítida distinção entre essas duas ordens de idéias [...]. São os chamados direitos fundamentais e elementares que a Carta quer consagrar para garantir o respeito da dignidade humana. De nenhum modo ela coloca como pertencendo à categoria de direitos essenciais certos direitos que a África do Sul se nega a subscrever, como o direito ao trabalho e à remuneração, etc45

.

Reino Unido, por sua vez, saudava o projeto de declaração, porque este conseguiu

consagrar as liberdades individuais e direitos humanos fundamentais, e sobretudo pelo

fato de que a maioria das delegações não acompanharam as emendas soviéticas. Para o

delegado britânico, a adoção dessas propostas teria levado a limitar o alcance universal

da declaração e preparado o caminho a idéias contrárias à liberdade individual - que

estão, segundo ele, na base, dos regimes totalitários.

44 Um dos motivos pelo qual esse país absteve-se de votar em favor da declaração deveu-se ao fato, também, de ela ter consagrado direitos econômicos e sociais, além de ter disposto sobre o fim da discriminação racial (Art. 7 da DUDH). 45 Troisième session de l’Assembée Génerale. Comptes rendus des séances, 10 dezembro, 1948, Paris, p.910-911.

Dentre os países que defendem uma visão ampla ou maximalista dos direitos humanos,

em particular Iugoslávia, lamentavam-se, outra vez, dos resultados obtidos com o

documento, ou seja, do fato de o texto não ter consagrado na parte relativa aos direitos

econômicos e sociais uma referência explícita ao Estado e a medidas concretas de

aplicação e, ainda, de não ter conferido a devida relevância a esses direitos. A esse

respeito declarou o delegado desse país - diante da Assembléia geral:

As mudanças radicais que se sucedem na atualidade mostram a necessidade de ampliar as categorias tradicionais dos direitos humanos, que incluem geralmente os direitos civis e políticos, e estabelecer um sistema de direitos sociais [...] o projeto de declaração não dá importância suficiente às novas necessidades da sociedade moderna e à necessidade de reconhecer esses direitos. De maneira geral, esse documento constitui uma declaração de direitos civis e políticos do homem. De um total de 30 artigos, 20 têm relação com eles. Encontra-se fora de discussão que a categoria de direitos civis e políticos tem uma enorme importância para o indivíduo uma vez que sua proteção seria impossível sem seu reconhecimento [...] Mas o projeto de declaração em votação não dá a suficiente segurança social da qual os indivíduos têm necessidade para exercer os direitos civis e políticos46.

França, Dinamarca e Suécia elogiaram o documento por ter incluído a quase totalidade

dos direitos humanos e por ter chegado a um equilíbrio entre ambas as categorias. Já

René Cassin, que tomava por base a sua distinção dos quatro pilares da declaração -

direitos pessoais, liberdades públicas, direitos políticos e direitos econômicos e sociais,

sublinhava que o texto teve o mérito de estabelecer uma igual hierarquia entre todos

eles.

Mas as posições em contraste, entre o front liberal e o front socialista não terminam por

aí; elas se intensificam ainda no momento da elaboração dos - dois - Pactos

internacionais de direitos humanos. Em relação a essa “nova” disputa importa tão só

nos determos no exame de certos pontos críticos tais como se o pacto ou convenção

devia contemplar todos os direitos enunciados na declaração, e se se devia realizar ou

não dois documentos em separado: um para os direitos civis e políticos, outro para os

direitos econômicos e sociais.

Iugoslávia e URSS, favoráveis à inclusão da totalidade dos direitos humanos no pacto,

criticaram duramente os projetos em andamento, confeccionados pelo Reino Unido/

Índia e pelo grupo ad hoc da CDH por se omitirem ou serem incompletos em relação

46 Troisième session de l’Assemblée Générale. Comptes rendus des séances, 10 dezembro, 1948, París, p.867-868.

aos direitos econômicos e sociais. Esses documentos, declarava o representante

soviético, não podem ser aceitos, eles são mais limitados que a declaração, são um

retrocesso. Reino Unido, por sua vez, defendia seu projeto insistindo em que o

documento do pacto devia contemplar apenas os direitos civis e políticos. Tal contraste,

na verdade, refletia a ordem de prioridade a ser dada aos direitos humanos. Para URSS:

o acesso ao bem-estar e o gozo efetivo dos direitos econômicos e sociais sendo pré-

requisito do exercício dos direitos individuais, civis e políticos ou, como argumentou o

delegado da Polônia, de nada serve outorgar direitos civis e políticos se não se

garantem ao mesmo tempo os direitos econômicos e sociais. Do outro lado, defendendo

-se ainda a conhecida tese britânica nenhum direito progride sem os direitos civis e

políticos.

Dinamarca, por sua vez, adota uma posição intermediária ao propor que devia elaborar-

se um texto completo - incluindo a totalidade dos direitos humanos da declaração e,

sobretudo, ao defender que os Estados podem estabelecer restrições no momento de

ratificar o pacto - que agradou vários países que não queriam incorporar os direitos

econômicos e sociais no documento47. O acirramento do debate acabou levando o Reino

Unido, cada vez mais isolado, a mudar de opinião e a aceitar que o pacto ou convenção

contemplasse o conjunto dos direitos humanos - enunciados na declaração.

A partir dessa mudança e da aceitação da maioria dos países em se elaborar um texto

completo dos direitos humanos, a discussão girou em torno do outro ponto: redigir um

só documento ou dois pactos. Nessa controvérsia pode-se distinguir três grupos de

países.

Os países favoráveis à realização de dois pactos argumentam o seguinte: os direitos

civis e políticos requerem para sua proteção medidas legislativas e administrativas, à

diferença dos outros direitos que só podem ser garantidos progressivamente de acordo

com a riqueza e desenvolvimento de cada país; as obrigações dos Estados são por

47 Esse argumento deve ser apreciado em função de que a CDH tinha criado em 1950 um comitê de direitos humanos que seria encarregado de receber “comunicações” (denúncias) de um Estado -parte sobre outro Estado-parte que não cumprisse com as obrigações decorrentes do documento em elaboração (o projeto de pacto de direitos humanos). Tal situação fazendo com que muitos países não concordassem em aprovar um só documento (incluindo todos os direitos humanos), porque podiam ser objeto, eventualmente, de alguma “denúncia”. A realização de dois documentos em separado, pelo contrário, evitava esse “embaraço” - resolvido ulteriormente quando essa possibilidade, a de realizar comunicações, fica restrita apenas aos direitos do PIDCP (Art. 41).

natureza diferentes: a garantia dos direitos civis e políticos não requer sua intervenção,

os outros a exigem; os direitos econômicos e sociais são de dificil definição; a

elaboração de dois textos evitará que o reconhecimento dos direitos econômicos e

sociais atrase o reconhecimento dos outros direitos - tornando possível (pela razão

precedentemente exposta) que um importante número de países manifeste sua adesão

rapidamente a um deles: o PIDCP; e, ainda, as duas categorias de direitos não são de

igual importância: os direitos civis e políticos são absolutos, os outros direitos relativos.

Essa distinção pode ser resumida na posição de um dos membros do grupo - o delegado

do Chile:

Admite-se, depois de muito tempo, que o indivíduo tem certos direitos, como, por exemplo, a liberdade de expressão, de pensamento e de consciência, e a proteção contra a detenção arbitrária. As obrigações dos governos a esse respeito são mais passivas que ativas, seu dever é evitar que se crie obstáculo à liberdade de seus habitantes. No domínio dos direitos econômicos e sociais, a relação entre obrigações e direitos é totalmente diferente, pelo fato de que seu exercício requer uma ação concreta, positiva do governo, como, por exemplo, medidas destinadas a permitir o pleno emprego48.

A posição desse país encontrando forte respaldo na literatura especializada: o

importante para os direitos civis e políticos é o sistema das garantias jurídicas

individuais; o importante para os direitos econômicos sociais é a política geral dos

Estados - que tem como meta criar e ampliar continuamente as condições materiais para

a efetivação desses direitos (SZABO, 1968: 35). Por sua vez, outros estudiosos rejeitam

tal distinção com base na falsa oposição direitos negativos-positivos:

O ‘dever de abstenção’ não é atributo de determinados direitos civis e políticos como o mostra, por exemplo, o direito à greve no âmbito dos direitos sociais. As medidas “positivas” tampouco se limitam aos direitos econômicos, sociais e culturais, como o mostra a mobilização de recursos públicos para, por exemplo, assegurar as garantias do devido processo legal ou o direito de participação na vida pública (TRINDADE, 1994: xviii).

Os países favoráveis à realização de um só documento sustentavam o seguinte: não é

possível ir contra a decisão da Assembléia geral - em alusão à resolução de 1950 49; a

divisão dos direitos em duas categorias é artificial, ambos mantêm relação estreita; os

direitos econômicos e sociais encontram-se na base de todos os direitos; o exercício dos 48 DOC.N.U. E/CN.4/SR.207, p.10-11.49 A posição desse grupo de países fundava-se, principalmente, numa resolução da Assembléia geral, que estabelece: “ A declaração concebe o homem como uma pessoa à qual pertencem as liberdades civis e políticas, bem como os direitos econômicos, sociais e culturais; [...] o gozo das liberdades civis e políticas e o dos direitos econômicos, sociais e culturais estão ligados e se condicionam mutuamente; [...] o homem privado dos direitos econômicos e sociais e culturais não representa essa pessoa que a Declaração Universal considera como ideal de homem livre”.

direitos civis e políticos corre o risco de ser apenas teórico/formal, tornar-se letra morta,

em condições econômicas adversas; o livre desenvolvimento da personalidade humana

não se dá sem o desfrute dos direitos econômicos e sociais; e, finalmente, a inclusão de

todos os direitos humanos - num único documento - dilui a separação entre direitos de

aplicação imediata, in actu, direitos civis e políticos, e direitos de aplicação progressiva,

direitos econômicos e sociais.

Por último, os países que adotam uma posição intermediária diziam o seguinte: redigir

um ou dois textos é de importância secundária: não se deve exagerar a diferença entre

ambos os tipos de direitos50, nem dividir os membros da organização entre os que

garantem os direitos econômicos e sociais e os que não o fazem; se se decide pela

realização de dois instrumentos, eles devem ter o maior número de dispositivos

comuns51; e, ainda, a separação entre ambas as categorias de direitos não corresponde à

distinção entre direitos humanos-legais, de aplicação imediata, e direitos humanos-

programas, de aplicação progressiva 52.

Essa última posição foi reforzada pelo argumento de que a inclusão de todos os direitos

humanos num mesmo e único documento evitaria colocar à parte a garantia dos direitos

civis e políticos e implicaria dar aos outros direitos garantias jurídicas suficientes, mais

sólidas. Dessa maneira, continuava o raciocínio, o direito internacional cumpriria um

papel exemplar: indicar o caminho a ser seguido na formação dos direitos nacionais, ou

seja, exercer uma influência sobre a evolução geral das legislações dos Estados para

incluir todos os direitos humanos.

50 A necessidade de diluir a diferença entre ambas as categorias de direitos encontra respaldo também em vários estudiosos quando se referem ao exercício de determinados direitos: “A natureza dupla ou mista de alguns direitos pode ser ilustrada com o exemplo dos direitos sindicais. Esses direitos têm evidentes aspectos econômicos e sociais uma vez que são fundamentais para a promoção e proteção de interesses sociais e econômicos, e como tais estão reconhecidos em instrumentos ordenados à consecução desses direitos, como o Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais [Artigo 8]. Por outro lado, os direitos sindicais são uma parte integrante do direito à liberdade de reunião e associação pacíficas, e nesse sentido estão reconhecidos entre os direitos civis e políticos, como o Pacto dos direitos civis e políticos [Art. 20]” (VAN BOVEN, 1984:92). 51 A esse respeito, vale citar o parágrafo do preâmbulo dos dois PIDH, redigido em idênticos termos, uma vez que mostra a interdependência entre ambos os grupos de direitos: “o ideal do ser humano não pode ser realizado a menos que se criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos e sociais”. 52 Em apoio a esse argumento diziam que para tornar efetivos os direitos econômicos e sociais era necessário ocorrer mudanças significativas (estruturais e institucionais) que permitam que esses direitos fossem contemplados também em instrumentos legais, adquirindo forma concreta e, assim, à semelhança dos demais direitos (civis e políticos), se convertessem em direitos sujetivos/exigíveis.

O contraste ideológico que permeia a Declaração universal e se prolonga nos pactos

internacionais, liberalismo versus socialismo, assenta-se, de acordó com algumas

conhecidas, em dois tipos de argumentos: ex parte populi e ex parte principis. O

primeiro tipo de argumento dá-se de baixo para cima, do indivíduo para o Estado, e

adota uma visão ascendente do poder: o importante, nesse tipo, é o indivíduo e seus

direitos individuais, subjetivos, contra o Estado; pelo contrário, o segundo tipo de

argumento dá-se de cima para baixo, do Estado para o indivíduo, e adota uma visão

descendente do poder: o importante, nesse tipo, é a unidade do Estado, bem como os

deveres dos indivíduos para com a comunidade.

A esse respeito, vale relembrar também a distinção individualismo-holismo. A primeira

valoriza o indivíduo e seus direitos; a segunda a totalidade social e o papel de cada

indivíduo na mesma. O primeiro justifica os valores independentemente da sociedade, e

o segundo a partir dos valores existentes na mesma. Igualmente, a diferenciação entre

sociedade (Gesselshaft)-comunidade (Gemeinschaft). A primeira indica o predomínio

do indivíduo e sua posterior associação com outros: ela se refere a um grupo de

indivíduos que não estão ligados entre si, mas separados; ela se apresenta como uma

soma de indivíduos naturais cuja vontade e interesses encontram-se em numerosas

associações, mas permanecem independentes e sem ação mútua entre si. A segunda

indica o predomínio da coletividade, do Estado sobre o indivíduo: ela se refere à relação

que liga aqueles que vivem juntos, que organizam suas vidas em comum e constroem

uma solidariedade. Por último, a distinção sociedade fechada-sociedade aberta. Ou

seja, a primeira, a sociedade coletivista, que, comparada a um organismo, mantém seus

membros juntos através da participação no esforço comum; a segunda, a sociedade

democrática em que os indivíduos se deparam com decisões pessoais e competem para

tomar o lugar de outros membros: a competição sendo a característica mais importante

desse tipo de sociedade - em oposição à visão orgânica do Estado, que estabelece uma

falsa analogia.

Pois bem! Dessas conhecidas distinções do pensamento social e político, caberia

lembrar que os países “marxistas” argumentavam que para o gozo das liberdades

individuais e dos direitos civis era necessário entender o indivíduo como parte

integrante da comunidade; que os direitos humanos devem ser compreendidos no marco

das necessidades da sociedade e do Estado - daí a crítica aos países ocidentais que

concebiam as liberdades individuais como estando fora de todo laço social.

O argumento dos países do Leste, ex parte principis, pode ser observado também no

momento de eles defenderem que cabe ao Estado, enquanto representante da sociedade,

a garantia e o respeito de todos os direitos humanos. Posição essa contrária à dos países

ocidentais que, com base em argumentos individualistas, ex parte populi, entendiam que

a intervenção do Estado no cumprimento de todos os direitos podia ensejar uma ameaça

à liberdade individual.

Os (dois) tipos de argumentos (Bobbio), ideologias (Dumont, Tönnies) ou sociedades

(Popper) expostos podem ser constatados, mais especificamente, por ocasião da redação

do Artigo 29 e por tabela do Artigo 1° da Declaração universal53. A esse respeito,

cumpre assinalar rapidamente o depoimento preocupante de Cassin (depois de aprovada

a declaração): ficamos surpresos em constatar que o preâmbulo onde são afirmadas as

metas fundamentais do documento não contém nenhuma menção à palavra “dever” É

necessário, acrescenta, aguardar o penúltimo artigo para encontrar, pela primeira vez,

uma referência explícita à palavra e, também ao termo “comunidade” - tido como o

lugar do desenvolvimento da personalidade humana.

De fato, em relação ao penúltimo artigo da declaração, os países comunistas criticaram

o documento por não ter dado a devida importância aos deveres dos indivíduos e

insistiam em que o texto deveria ter estabelecido um equilíbrio entre ambos: os direitos

e os deveres. A esse respeito, um dos representantes desses países dizia: não se deve

opor o indivíduo à sociedade, citando como exemplo a constituição de Estados

comunistas em que os direitos são abordados no marco dos deveres dos cidadãos para a

sociedade54. Já para o delegado norte-americano a idéia de incluir a palavra “dever” no

início da declaração, como defendiam os países do Leste, não fazia sentido, enquanto

França, procurando aproximar as posições, entendia que a palavra, mesmo que não

figure no começo da declaração devia aparecer em alguma parte do texto.

53 Artigo 29, alínea 1, da DUDH: “Todo homem tem deveres para a comunidade na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível”. Por sua vez, o Artigo 1° estabelece que os “homens devem agir com espírito de fraternidade”. 54 A maioria das constituições dos países comunistas da época enfatizavam os deveres dos cidadãos: “Todo cidadão da União das repúblicas socialistas soviéticas está obrigado a cumprir honestamente seu dever social”. “A fidelidade à república polonesa constitui o primeiro dever de todo cidadão”, etc.

Acompanhando os EUA, Líbano ponderava, em referência ao texto da Divisão de

direitos humanos da AG, que contemplava a palavra “dever” no início, que o termo não

podia ser incluído porque implicaria sérias limitações à liberdade individual. Achava

estranho, ademais, que nesse texto a palavra “Estado” figure no começo da declaração e,

sobretudo, que o dispositivo estabeleça deveres para os homens: se a proposta é

adotada, afirmou, estaremos fazendo uma declaração dos deveres, não uma declaração

de direitos. E, com base no argumento de que o equilíbrio se teria rompido entre os

direitos e os deveres, entre estatismo e direitos individuais - em alusão clara aos países

comunistas -, arrematou:

Hoje em dia não existe mais necessidade de estar protegido contra reis ou ditadores, mas contra uma nova forma de tirania: aquela exercida pelo Estado que decide sobre todas as relações humanas e todas as idéias, eliminando deste modo todas as fontes donde o homem pode tirar suas convicções. O Estado insiste nos deveres e nas obrigações do indivíduo. Isso constitui um sério perigo, pelo fato de que o homem não é escravo do Estado, e não pode existir somente para servir-lhe55.

A delegação da Iugoslávia, contrariamente, defendia que a palavra “dever”, bem como o

termo “comunidade” deviam aparecer no início da declaração, e isso em oposição à

delegação libanesa, que insistia na tese de que o indivíduo existe com anterioridade a

todo grupo social. Diante das posições contrárias, França volta à idéia de que o termo

“dever”, mesmo que na forma de princípio, devia figurar no começo da declaração,

sugerindo a seguinte fórmula “os homens são irmãos”; já a URSS propôs a expressão

“dever de fraternidade”.

França compartilhava a posição do delegado soviético de que a documento devia

encontrar um equilíbrio (que não tinha até então) entre deveres e direitos. Ambos

defendiam que a referência aos deveres não podia figurar no final da declaração (como

aconteceu: o penúltimo), mas, pelo contrário, aparecer logo depois de enunciados os

direitos individuais. Tal ordenação, acreditavam, permitiria mostrar a igual relevância

ou equilíbrio entre ambos. A posição desses países fundava-se na forte convicção: que o

homem é por natureza social, que não pode separar-se o indivíduo da coletividade. A

concepção da URSS e da França, afirmava Cassin, mostra claramente que não existe

55 DOC.N.U.E/CN.4/AC.1/SR.21 p.7-8.

incompatibilidade entre direitos humanos no marco do Estado e a possibilidade do

homem afirmar sua personalidade fora dele.

No entanto, os dois países se afastam diante do uso da palavra “só” no artigo em

questão56. França seguida de várias delegações achou incorreto a expressão, porque não

é apenas a comunidade o lugar do desenvolvimento da personalidade. URSS, pelo

contrário, considerou a emenda australiana excelente, visto que ela mostra de forma

clara que o indivíduo não pode desenvolver-se plenamente fora da comunidade57. Para o

delegado desse país, se a declaração omitisse o termo “só”, seria um documento

incompleto, ainda mais por não fazer alusão aos deveres dos indivíduos no início e ter

passado por alto qualquer referência à natureza social do homem.

Apesar da crítica posterior de Cassin à declaração (supra), na terceira reunião plenária

da Assembléia geral, elogia o documento por ter conseguido justamente uma harmonia/

equilíbrio entre os direitos e os deveres. Entendia, ademais, que a declaração era um

texto de conformidade à época, que, à diferença de outras declarações, se afasta do

individualismo e, voltando ao argumento dos quatro pilares em que se assenta o

documento, dizia, em clara alusão ao penúltimo artigo, “os deveres dos indivíduos para

a comunidade”, que ele constitui a base ou cimento de todos os outros dispositivos

porque estabelece o laço que existe entre indivíduo e comunidade, direitos e deveres.

Argumento, esse último, criticado pela Iugoslávia ao entender que o texto não

enfatizava devidamente a palavra “Estado” e tomava o indivíduo fora de todo grupo

social. Para o representante desse país o documento funda-se num espírito nitidamente

individualista: ela concebe o indivíduo de forma totalmente isolada, possuidor de

56 A proposta da Austrália, Artigo 29, 1. dizia: “Todo homem tem deveres para a comunidade, pelo fato de que só nela pode desenvolver livre e plenamente sua personalidade”. Troisième Commission. Comptes rendus des séances, 21 setembro-8 dezembro, 1948, Lakes Succes, Nova Iorque, p. 657-658. 57 Em relação aos “deveres” dos cidadãos soviéticos, a constituição da URSS de 1918 exigia que cumprissem dois: respeitar a constituição, observar as leis e respeitar as regras do intercâmbio socialista, assim como salvaguardar e fortalecer a propriedade socialista. As constituições posteriores aumentaram a lista: respeitar a dignidade nacional de outras pessoas e fortalecer a amizade dos povos da URSS; respeitar os direitos e interesses legais de outras pessoas e ajudar a manter a ordem pública; ocupar-se da educação dos filhos - os filhos, por sua vez, ficam obrigados a cuidar dos pais; preservar os monumentos históricos e outros valores culturais; promover o desenvolvimento da amizade e cooperação entre os povos e ajudar à manutenção e fortalecimento da paz mundial. A inclusão desses deveres levando seus adeptos a afirmar que: “a concepção socialista dos direitos humanos assenta-se no princípio de que os direitos humanos têm como finalidade capacitar o indivíduo para que desempenhe um papel ativo e criador na solução dos problemas do Estado e da sociedade e na determinação do destino da nação, o país e sua própria vida” (KUDRYAVTSEV, 1985: 98).

direitos individuais e negligencia por completo o fato de que ele faz parte da

comunidade.

Também o representante da URSS achou inadmissível que a declaração coloque os

direitos humanos fora do Estado; e, contra aquelas delegações que criticavam seu país

por subordinar o indivíduo à sociedade, procurava frisar que essa atitude corresponde a

um produto da história e da sociedade de classes que faz que os interesses do indivíduo

sejam opostos aos da coletividade. Pelo contrário, salientava o delgado soviético, o

jurista Viscinsky, numa sociedade sem classes antagônicas é natural que não exista

oposição entre ambos, uma vez que o Estado representa a própria coletividade dos

indivíduos. A propósito dessa intervenção, fundada numa concepção supra-individual,

holista, da sociedade e do Estado, vale mencionar a seguinte metáfora para ilustrar a

posição dos países comunistas:

Não se pode compreender uma melodia examinando cada uma de suas notas separadamente, sem relação com as demais. Sua estrutura não é outra coisa que as relações entre as diferentes notas. Algo parecido ocorre com a casa. Aquilo que chamamos sua estrutura não é a estrutura das pedras isoladas, senão as relações entre as diferentes pedras com a qual foi construída; é o complexo das funções que as pedras têm em relação umas com as outras na unidade da casa. Essas funções, como a estrutura da casa, não podem ser explicadas tendo em conta a forma de cada pedra, independentemente de suas relações mútuas; pelo contrário, a forma das pedras só pode ser explicada em termos da sua função em todo o complexo funcional, a estrutura da casa. Há que começar pensando na estrutura do todo para compreender a forma das partes individuais. Esses e muitos outros fenômenos têm uma coisa em comum, por mais diferentes que sejam em outros aspectos: para compreendê-los é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar em termos de relações e funções (grifo do autor) (ELIAS. 1994: 25).

5. debate intelectual liberalismo versus socialismo

O embate ideológico que opôs, de um lado, os países ocidentais, partidários da

Liberdade e, de outro lado, os países comunistas, partidários da Igualdade58, é marcado

pari passu por um intenso debate intelectual, que pode ser resumido, grosso modo, na

diferente visão dos dois valores fundamentais da modernidade: a liberdade como um

problema qualitativo de que não se pode abrir mão; a igualdade como um problema

quantitativo, de bem-estar material, que deve predominar ou acompanhar o primeiro.

Em outros termos: liberdade e igualdade como potencialidades, pontos de partida para o

indivíduo, bem como para a vida social; e liberdade e igualdade como objetivos finais -

porque só quando a transformação socialista é realizada o homem é livre e torna-se

efetivamente igual.

Apesar de que ambas ideologias como forças emnacipadores tenham contribuido ao

fortalecimento de movimentos sociais e políticos e, que em termos teóricos não tenham

renunciado de um valor em favor de outro valor (a liberdade e a igualdade), exemplos

da realidade mostram, contudo, delas terem ficado prisioneiras do poder estatal que as

monopoliza. Ou seja, de terem experimentado a seguinte contradição: um Estado

socialista totalitário que, em nome da igualdade material, restringe ou suprime direitos

individuais ou, um Estado liberal autoritário que, em mome da liberdade ou 58 O confronto ideológico em estudo relaciona-se com uma série de distinções sobre direitos humanos que se tornaram clássicas na literatura especializada. Em termos cronológicos: direitos humanos da primeira geração (liberdades individuais, direitos civis e políticos): século XVIII e XIX; direitos humanos da segunda geração (econômicos e sociais): século XX. E, também, respectivamente, direitos formais e direitos materiais; direitos e liberdades contra o Estado e direitos através do Estado; liberdades en relação ao Estado e direitos/dependência do Estado; liberdade/independência individual e direitos/poderes de exigir; direitos/liberdades e direitos de igualdade; liberdade e direitos fundamentais e normas-programas ou princípios de governo; direitos contra Estado e pelo Estado; direitos negativos e direitos positivos, freedoms from e freedoms to; droits-libertés e droits/devoirs/créances/obligations;etc.

independência econômica, restringe ou suprime direitos e liberdades individuais.

Ademais, do contraste ideológico em exame, que se traduziu, de fato, no tratamento

inverso dado a esses dois valores, alguns pensam em termos de indivíduo,

atomisticamente, outros em termos de coletividade - a cidadania:

O cidadão liberal é um indivíduo, um dinâmico poço de energia na ordem social; e os objetivos cívicos correspondentes são defender a vida, a liberdade e a propriedade do indivíduo. O esforço cívico comum, portanto, será no empenho para defender e conservar estes valores, principalmente através de debates parlamentares. O cidadão liberal é político. Para o socialista, a cidadania é conquistada principalmente pela eliminação de conflitos e antagonismos da sociedade, pela colocação da produção [...] nas mãos de todo o povo. O liberal vive individualmente o mundo que o rodeia. A cidadania socialista é integral quando alcançada [...] o homem, no sentido socialista, entra na sociedade como cidadão, como um administrador, participando integral e ativamente de todos os campos da existência (grifo nosso) (LINDBOM, 2006: 49-50).

A dispusta liberalismo versus socialismo não é tão nova: trata-se de duas poderosas

correntes ideológicas que, antes da sua radicalização no século XX, atravessam o século

XIX, num ambiente intelectual marcado pelo confronto de opiniões e debates de

importantes pensadores, como ilustra o seguinte comentário:

O liberalismo, com Fichte e Constatnt, Tocqueville e Mill, entende 1789 como o momento em que é instituída a liberdade: na relação de exterioridade que se estabelece entre o Estado e a esfera privada, eles vêem, com algumas variantes, a condição de realização plena da existência humana. A confrontação com o sofrimento operário faz nascer, nos anos 1830-1840, a corrente socialista, cuja estratégia é o depassement (a superação). Tomando a Revolução pelo que lhe falta na sua própria ambição, Owen e Proudhon, Luis Blanc e Karl Marx entendem que não há que rejeitar os direitos do homem, mas dar-lhes um conteúdo concreto: definindo o sujeito como “ser-com-os-outros”, eles defendem que a liberdade individual não é concebível sem um direito social que a sustente (grifo do autor) (PORTIER, 1994: 50).

Nesse ambiente intelectual, o do século XIX, cabe citar um importante precedente do

conflito ideológico em questão, isto é, o famoso debate entre o deputado socialista

Philippe Mathieu e o deputado liberal Aléxis de Tocqueville, na assembléia constituinte

da França, em setembro de 1848, a propósito da inclusão ou não do direito ao trabalho59,

59 A previsão acha-se no Artigo 13 pelo qual “a constituição garante aos cidadãos a liberdade do trabalho e indústria. A sociedade favorece e estimula o desenvolvimento do trabalho através do ensino primário gratuito, a educação profissional, a igualdade de relações entre patrão e operário, as instituições de previdência”. Cabe lembrar que a elaboração dessa constituição aconteceu logo depois das “jornadas revolucionárias” de junho em Paris: uma revolta da classe operária contra a pobreza e pela redistribuição da propriedade e da riqueza. Os aristocratas, a burguesia e os camponeses temiam que nenhuma propriedade estivesse a salvo, caso ocorresse uma revolução. Após três dias de terríveis lutas de rua e atrocidades de ambos os lados, o exército sufoca a revolta com um saldo de mais de 1.600 mortos. Em relação a esse importante evento assinalam outros estudiosos: “A rua deu razão à teoria. ‘Vive la sociale’ foi o grito de 1848. A organização do trabalho tornou-se o objeto da revolução e o direito ao trabalho a partir daí fez seu ingresso nos preâmbulos constitucionais. A República foi burguesa [...], mas reconheceu os direitos econômicos e sociais que fazem, hoje em dia, parte integrante dos direitos do homem” (SOULIER: 1981: 63).

e isso principalmente com o intuito de mostrar o tratatamento dado por este último autor

a esse direito que reaparece, posteriormente, na DUDH, ou seja, de que o trabalho não é

um direito, não é uma obrigação a cargo do Estado, mas, no máximo, um dever moral,

um ato de caridade a cargo da sociedade. Ir além disso, fazer do trabalho uma

obrigação, a seu ver, trairia sérias consequências:

[...] a emenda que atribui a cada homem em particular o direito geral, absoluto, irresistível, ao trabalho, esta emenda leva necessariamente a uma das seguintes consequências: ou o Estado se determinará a dar a todos os trabalhadores que a ele se apresentarem o emprego que lhes falta e, então, será levado gradativamente a se tornar industrial, e como o empresário industrial, que se encontra por toda parte, é o único que não pode recusar o trabalho [...], o Estado é inevitavelmente levado a se converter no principal e em breve, de alguma forma, no único empresário industrial. Uma vez que isso aconteça [...] acumulando em suas mãos todos os capitais industriais particulares, o Estado se torna, enfim, o único proprietário de todas as coisas. Ora, isto é o comunismo. Se, ao contrário, o Estado deseja escapar à necessidade fatal à qual acabo de me referir, se deseja não apenas por si mesmo e por seus próprios recursos oferecer trabalho a todos os operários que se apresentem, mas cuidar para que estes o encontrem sempre entre os particulares, será fatalmente levado a tentar esta regulamentação da indústria [e] obrigado a proceder de forma a não haver desemprego; isto forçosamente o leva a distribuir os trabalhadores de modo a que não façam concorrência entre si, a regular os salários, ora para moderar a produção, ora para acelerá-la, em uma palavra, a se converter no grande e único organizador do trabalho [Ora, isto é] o socialismo (TOCQUEVILLE, 1964 apud QUIRINO GALVÃO, 1989: 185).

Fazer do trabalho, então, algo mais que uma extensão da caridade: uma obrigação do

Estado constitui um perigo, porque leva à perda ou diminuição da liberdade, da escolha

individual. Em oposição a essa tese, o sacrifício da liberdade à igualdade, pode-se aludir

a conhecida máxima toqcueveliana segundo a qual quem procura na liberdade alguma

coisa fora dela é feito para servir. Com base nessa premissa, o autor opunha-se a todo

tipo de socialismo e, seguindo argumentos de filósofos iluministas do século XVIII

contra o Antigo Regime, acreditava que o socialismo já existia antes da Revolução

Francesa. O Antigo Regime, afirmou na constituinte, professa a opinião de que a

verdade está no Estado, que as pessoas são incapazes e fracas (menores de idade: dizia

Kant), que é preciso conduzi-las com a mão, que é sempre bom contrariar ou comprimir

as liberdades individuais. Pois bem, com os socialistas do século XIX aconteceria algo

semelhante - segundo Tocqueville:

[o que caracteriza] sobretudo a meus olhos os socialistas de todas as cores, de todas as escolas é uma desconfiança profunda da liberdade e da razão humana; é um profundo desprezo pelo indivíduo considerado em si mesmo, na condição de homem; o que caracteriza a todos é uma tentativa contínua, variada, incessante, de mutilar, de encurtar, de constranger por todos os meios a liberdade humana: é a idéia de que o Estado não somente deve ser o condutor da sociedade, mas deve ser, por assim dizer, o mestre de cada homem; que digo! Seu mestre, seu professor, seu pedagogo; que, por medo de deixá-lo falhar, ele deve se colocar constantemente ao seu lado, acima dele, ao redor dele, para guiá-lo, garanti-lo, mantê-lo, contê-lo; em uma

palavra, como o disse há pouco, é a confiscação, num maior ou menor grau, da liberdade humana [...] o socialismo me parece em seu conjunto uma nova fórmula de servidão (TOCQUEVILLE, 1964 apaud QUIRINO GALVÃO, 1989: 186-187).

Esse argumento, ex parte populi, centrado na liberdade do indivíduo, opunha-se ao

argumento, ex parte principis, desenvolvido pelo socialista Mathieu em relação ao

movimento revolucionário da época - as jornadas insurrecionais da França de 1848. O

coletivismo, declara em tal oportunidade, expressa o fato de que o verdadeiro autor da

revolução é o Todo. É por isso, acrescenta o deputado, que o revolucionário é alheio, de

um lado, ao conceito de responsabilidade pessoal e, de outro lado, à idéia de uma

proteção jurídica enquanto simples indivíduo; a humanidade não será salva pelos

indivíduos, mas pelo Todo, ao qual os indivíduos pertencem e só no qual podem atingir

sua verdadeira salvação (MASSINI CORREAS, 1994: 42).

Nesse contexto, Tocqueville formula uma importante distinção entre democracia e

socialismo ou para empregarmos a teminologia da época da DUDH, democracia liberal

versus democracia popular. A primeira funda-se na ampla esfera de independência do

indivíduo, a segunda limita essa independência; a primeira atribui ao indivíduo todo

valor possível, a segunda faz de cada homem um agente, um instrumento, um número.

Ambas não se vinculam senão por uma palavra: a igualdade, mas, acrescenta, é

necessário observar que a primeira quer a igualdade na liberdade, enquanto a segunda

quer a igualdade na servidão.

Apelando diante dos constituintes de 1848 quanto à necessidade de se retornar à

tradição liberal francesa de 1789, bem como à chamada liberdade dos modernos

(Constant)60, Tocqueville defende que a única função do Estado é garantir as liberdades

individuais e direitos civis. Dessa perspectiva, liberal, pode-se dizer que esses

“autênticos” direitos humanos representam um limite a partir do qual se dá a fronteira

entre o que é do Estado e o que deve ser deixado ao livre jogo das vontades individuais.

Ademais, quando levado ao plano econômico, este “liberalismo da regra” defende a

delimitação de dois domínios em que um tem a precedência sobre o outro. Ou seja,

entre o domínio público, construído/artificial - o governo -; e o domínio privado, 60 Já esse outro arauto do liberalismo político, na época, Benjamin Constant, expressava-se nos seguintes termos: “Tenho defendido quarenta anos o mesmo princípio, liberdade em tudo, em religião, em literatura, em filosofia, em indústria, em política, e por liberdade entendo o triunfo da individualidade tanto sobre a autoridade que busca governar pelo despotismo quanto sobre as massas que exigem o direito de submeter a minoria” (SOULIER, 1981: 61).

espontâneo/natural - o mercado -; o primeiro não deve interferir no segundo, já que os

interesses dos indivíduos são satisfeitos a partir do livre funcionamento do mercado.

Logo da breve referência a esse importante embate ideológico no século XIX, convém,

a continuação, mostrar as diversas posições teóricas, mais elaboradas, de cunho liberal e

socialista sobre os direitos humanos que se estendem no decorrer do pós-1945 . A esse

respeito, vale esclarecer que algumas dessas posições vão além do documento de 1948.

Essa ampliação pode ser justificada, cronologicamente, se lembramos que a elaboração

dos três documentos que compõem a Carta internacional de direitos humanos da ONU

só termina em 1966 e que durante esse período (21 años em total) o debate intelectual

dá-se pari psssu à confecção dos pactos ou o ultrapassa, contudo, no contexto de uma

época marcada ainda pelo sistema mundial bipolar.

Com base nesse esclarecimento preliminar, vale comentar, no front liberal, a posição de

daquele autor tido como “paladino do liberalismo”: Karl Popper. O que interessa

desstacar, em A sociedade aberta e seus inimigos (1945), é a virulenta crítica do

filósofo austríaco à concepção marxista dos direitos humanos. De fato, ela radica,

principalmente, na distinção levantada por algumas delegações governamentais dos

países comunistas entre liberdade formal/legal e liberdade real/material e o predomínio

dessa última sobre à primeira. Ou, para citar o próprio autor: o fato da liberdade formal

ser inteiramente insuficiente para assegurar a liberdade real/efetiva, equiparada, por sua

vez, à liberdade econômica (à emancipação social). Para Popper, o problema dessa

distinção é que os marxistas enxergam pejorativamente, como simples liberdade formal,

uma liberdade que se encontra “na base de tudo”:

[...] isto é, a democracia, o direito do povo a julgar e a despedir seu governo, [que] é o único instrumento conhecido por meio do qual podemos tentar proteger-nos contra o mau uso do poder político; [que] é controle dos governantes pelos governados. E como o poder político pode controlar o poder econômico, a democracia política é também o único meio para controle do poder econômico pelos governados. Sem controle democrático, não há qualquer razão terrena para que qualquer governo não use poder político e econômico para fins muito diferentes da proteção à liberdade e seus cidadãos (POPPER, 1987: 133-134)

Ou seja, o problema da conquista da liberdade real, tal como defendida pelo marxismo,

é que ela ignora a liberdade formal com seus importantes desdobramentos (democracia,

controle do governo, etc) como incapaz de evitar o abuso do poder seja físico, político

ou econômico. Para Popper é necessário refutar a doutrina dogmática - marxista - de

que o poder econômico, a democracia econômica, é mais fundamental de que os outros

poderes. Assim, a conquista da liberdade econômica, a “emancipação da servidão” não

implica, necessariamente, uma completa revolução social em que a política torna-se

impotente. Pelo contrário, segundo o autor, trata-se, paradoxalmente, de “limitar a

liberdade ilimitada”, bem como o abuso dos três poderes mencionados, sendo que para

isso é imprescindível, como vimos, o exercício da liberdade formal.

O problema dessa crítica radica no fato de que ela, simplesmente, inverte a proposta

marxista. Em outros termos: ela substitui os atributos extraordinários dados pelos

marxistas à liberdade econômica (o fim da exploração social) pela liberdade formal,

capaz, com seu remédio político (a democracia) e econômico (a intervenção do estado

no mercado), controlar os execessos que eventualmente podem surgir do exercício

ilimitado da liberdade. A diferença fundamental, porém, radica no fato de que o projeto

liberal popperiano, contrariamente ao projeto profético/utópico e holista do marxismo, é

mais realista e respeituoso da liberdade individual. Além do mais, contrariamente à

sociedade fechada (o totalitarismo soviético) em que o indivíduo “não significa nada

sem a coletividade”, tal projeto liberal assenta-se numa sociedade aberta em que o

indivíduo pode progredir defendendo e fortalecendo as instituições democráticas das

quais dependem, como afirma o filósofo austríaco, a liberdade e, com ela o progresso.

Continunado com a crítica liberal dos direitos humanos, importa trazer ao debate,

também, a posição do cientista inglês Maurice Cranston que, tomando expressamente

como base a Declaração universal, não admite que os chamados direitos econômicos e

sociais fazam parte da noção. De fato, partindo de premissas ius-naturalistas, acredita

que os verdadeiros e autênticos direitos humanos são aqueles direitos morais de todas as

pessoas em todas as situações (the moral rights of all people in all situations). Aqui,

afirma, entram os direitos humanos: um direito humano é algo que todo ser humano

tem, não é um direito que o homem adquire por realizar um determinado trabalho,

cumprir uma determinada função, lhe pertencem simplesmente por ser humano.

Assim, o direito à vida, à liberdade e à propriedade são para o autor os únicos autênticos

e verdadeiros direitos humanos, e isso se justificaria porque podem ser atribuídos a

todas as pessoas em todas as épocas e lugares: eles correspondem ao homem pelo

simples fato de ser homem, à diferença de outros direitos (em alusão aos econômicos e

sociais), que são adquiridos pelo desempenho de uma função ou pelo lugar que ocupa

uma determinada classe de pessoa (the moral rights of specific groups of people), e

exigidos unicamente para essa classe de pessoas (positive legal rights of specific classes

of persons) - o que faz com que não integrem a noção direitos humanos.

Ademais, os direitos econômicos e sociais apresentam um problema: o da sua definição.

Tal postura lembrando àquela de alguns países que, durante a redação da DUDH,

levantavam a questão relativa de saber se esses direitos são um problema “quantitaivo”

ou “qualitativo”. A esse respeito, vale retomar, rapidamente, o comentário de autores da

mesma tradição ideológica, o liberalismo, que bem antes da declaração apontavam:

Pergunte: “O que é [o direito] à subsistência?” Ela é ‘batatas e sal, além de alguns trapos e uma choupana de barro? Ou, é pão e bacon, em uma cabana de duas peças? [...] chá, café e tabaco que devem ser esperados? E se sim, quantas onças de cada? [...] Os sapatos são considerados essenciais? Ou se aprovará o costume [de andar descalço]? A roupa deve ser feita de algodão e linho crus? Se não, de que qualidade de tecido deve ser feita? Em resumo, tente especificar, entre os extremos da inaxão e do luxo, se encontra essa coisa denominada [direito à] “subsistência” (SPENCER 1851 apud FLEISCHACKER, 2006: 128-129).

Voltando a Cranston, cabe notar que ele critica a inclusão dos direitos econômicos e

sociais nos documentos da Carta internacional de direitos humanos da ONU porque

diferentemente das liberdades individuais e dos direitos civis não são direitos positivos/

exigíveis em todas as circunstâncias (general positive rights of people in all situations):

Não resulta difícil transformar direitos civis e políticos em direitos positivos. O único que se precisa é de uma corte internacional com poderes reais de imposição. Pelo contrário, os chamados direitos econômicos e sociais não podem ser transformados em direitos positivos de maneira análoga. Um direito é como uma obrigação, na medida em que tem que passar pelo test da praticabilidade [...] Se é impossível que uma coisa seja cumprida, é, então, absurdo reivindicá-la como direito (CRANSTON, 1979: 66).

Assim, os verdadeiros direitos humanos são aqueles que conseguem passar pelo test da

universality e da practicability, ambas as características fazendo com que eles sejam de

importância capital (paramount importance). Cranston pretende justificar (em oposição

ao utilitarismo) a existência de alguns direitos humanos mais relevantes ou

fundamentais que outros. Para o autor, constitui um dever moral e uma obrigação

jurídica o direito à liberdade de expressão ou o direito de igualdade diante da lei, mas

não aquele “direito” destinado a proporcionar prazer como, por exemplo, o direito a

férias pagas, etc. Desse ponto de vista, os direitos econômicos e sociais seriam no

máximo nobres ideais (lofty ideals); contudo, eles carecem de um atributo essencial: o

da praticabilidade ou exigibilidade. Na mesma direção, posiciona-se o cientista britânico

Ralph Dahrendorf:

Não creio que existam coisas como direitos sociais e econômicos, acho que é um abuso da palavra “direito” aplicá-la por exemplo ao trabalho, ou à igualdade. Direitos são coisas que você pode pleitear numa corte. Não se pode ir a uma corte de Justiça e exigir renda mais alta. É uma idéia totalmente equivocada. No entanto é correto dizer que há condições econômicas e sociais que têm de ser satisfeitas para tornar esses direitos reais para todas as pessoas. Satisfazer essas condições é muito importante, mas isso é matéria de políticas, não de direitos. É um programa de ação que nada tem a ver com um conceito estrito de direito, eu sou defensor de conceitos estritos (s.n/1998: 6).

O tratamento dado a certos direitos humanos pela corrente do pensamento liberal

contemporânea mostra aspectos similares àqueles revelados por autores da mesma

tradição ideológica no século XIX (Tocqueville). Essa “coincidência” pode ser

exemplificada, retomando a Declaração Universal, na crítica da Tchecoslováquia aos

países ocidentais no sentido de que os direitos econômicos e sociais eram tratados por

eles no horizonte da caridade - que cabe à sociedade no cumprimento dos mesmos.

A esse propósito, vale examinar o argumento de um dos principais expoentes

contemporâneos da visão restrita ou minimalista dos direitos humanos - não sem antes

fazer uma breve alusão ao entendimento do autor sobre o conceito de liberdade. O

filósofo austríaco Friedrich Hayek defende, apenas, um tipo de liberdade, a liberdade

individual, cuja acepção original se encontra nos escritos de Hobbes (De cive e Leviatã),

ou seja, a liberdade e a right nature de escolher de acordo com os planos/ desejos de

cada um sem sofrer obstáculos de terceiros. Para Hayek, esse tipo de liberdade,

empírica, exteriori hominis, que não se confunde com a liberdade metafísica, interiori

hominis61, indica uma situação na qual o indivíduo pode decidir livremente sem estar

sujeito à vontade de um terceiro. A coação, segundo esse ponto de vista, sendo o

contrário da liberdade: que alguém decide por outrem, que alguém exerce um controle

sobre outrem.

A liberdade liberal defendida por Hayek é, por um lado, negativa no sentido de que se

relaciona com a área em que cada indivíduo pode atuar sem sofrer obstrução,

ingerências de outros, mas também é protetora ou defensiva porque requer a presença

61 Ou seja, com a capacidade de cada pessoa dar-se leis boas de acordo com sua convicção moral (Rousseau/Kant).

do Estado, que, detendo o monopólio da coação física, possibilita que o indivíduo, em

segurança, escolha ou decida livremente - através do respeito a normas abstratas e

impessoais62.

A liberdade hayekiana, além de não se confundir com a liberdade interior ou metafísica,

pode-se ter, diz o autor, a capacidade de elaborar normas boas e agir moralmente, mas

não a liberdade de escolher, nem tampouco a liberdade participação-política: pode-se

ter, acrescenta, a liberdade de eleger governante, mas não a liberdade de escolher. O

autor procura sobretudo tomar distância em relação a outro tipo de liberdade,

onipotente, a liberdade-poder, ou seja, à liberdade de fazer ou de ter coisas,

identificada, por sua vez, à riqueza, ao bem-estar material. Para o filósofo, essa

liberdade, além de trazer equívocos63, tem o grave inconveniente, quando ligada ao

ideário socialista, à segurança econômica de todos, de levar à perda da liberdade - de

escolha individual.

A nítida separação entre ambos os tipos de liberdade - a liberdade como ausência de

coerção (freedoms from), a liberdade liberal, e a liberdade segurança material ou

econômica, liberdade de fazer ou de ter coisas (freedoms doms to), a liberdade socialista

- leva Hayek a criticar virulentamente os direitos sociais - essa nova tendência, segundo

o autor, que ganhou força num determinado contexto:

[...] seu mais importante estímulo [foi] a proclamação, pelo presidente Franklin Roosevelt, de suas “Quatro Liberdades”, que incluíam “o estar livre da necessidade” e “o estar livre do medo”, juntamente com as tradicionais “liberdade de expressão” e “liberdade de culto”. Mas ela só encontrou sua corporificação definitiva na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948. Esse documento é, como se sabe, uma tentativa de fundir os direitos da tradição liberal com a concepção completamente diversa oriunda da revolução marxista russa (grifo do autor) (HAYEK, 1989: 125-126).

Para o autor os “novos direitos” são incompatíveis com os direitos civis, e isso porque

os indivíduos com a garantia plena dos primeiros não poderiam ser livres para usar seu

62 Essa “ambiguidade”, presente no pensamento liberal, em relação à atuação do Estado - não interferir na esfera privada do indivíduo e intervir para dar segurança aos mesmos - foi, como vimos, um dos argumentos usados pelos países socialistas, na ONU, quando se opunham à distinção liberdades individuais /direitos civis “negativos”, e direitos econômicos e sociais “positivos”. 63 “A distinção entre bem-estar e liberdade sucumbe totalmente, pois a liberdade efetiva do homem é proporcional a seus recursos. Isso tem levado muitos a afirmar [equivocadamente] que, se mais pessoas estão comprando automóveis e saindo de férias, existe mais liberdade” (PERRY 1940 apud HAYEK: 1983: 13).

conhecimento com vistas a seus próprios fins, devendo, antes, executar o plano

formulado por seus governantes para atender às necessidades. Os direitos sociais,

aponta, não podem ser aplicados sem que se destrua, ao mesmo tempo, a ordem liberal -

que visa aos consagrados direitos civis. Assim, e o que merece ser retido dessa crítica, é

que a realização dos direitos sociais fica, no máximo, em mãos da iniciativa privada, da

sociedade. Em outras palavras: a caridade.

Nesse ponto Hayek aproxima-se de Tocqueville para quem os direitos sociais fazem

parte também do campo moral, mas não do campo político nem tampouco do jurídico;

assim como do autor francês conservador François Guizot quando na assembléia

constituinte de 1848 afirmava: nos assuntos sociais é suficiente despertar as virtudes

cristãs, a fé, a esperança, a caridade.

A realização da segurança material ou econômica, segundo Hayek é ruim porque leva à

efetivação de medidas por parte do governo que acabam com a liberdade de escolha

individual. A esse propósito escreve: o planejamento é nocivo para a liberdade porque

visa a uma segurança de outra espécie, ele procura proteger indivíduos ou grupos contra

a redução de suas rendas, contra perdas que impõem duras privações, sem justificação

moral, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência. A reivindicação

desse tipo de segurança, sublinha, é outro aspecto da exigência de uma justa

remuneração, proporcional à situação ou mérito subjetivo de cada um, mas não ao

resultado objetivo trazido do esforço individual. Essa espécie de exigência, segurança

ou justiça econômica, conclui, não parece conciliável com a livre escolha de ocupação

(HAYEK, 1990: 125).

Em outras palavras: essa reivindicação, o direito a uma remuneração justa, por exemplo,

não deve resultar da situação em que se encontra cada um, mas do resultado objetivo da

utilidade trazida pelo esforço individual. Sob tal aspecto, o da realização da segurança

econômica ou material para todos, qualquer decisão governamental - uma renda ou

remuneração justa para determinada pessoa ou grupo de pessoas - acaba por restringir a

liberdade de escolha:

[...] para que a escolha de ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser concedida a todos. E, se for concedida a alguns privilegiados, haverá prejuízo para outros, cuja segurança será ipso facto diminuída. É fácil demonstrar que a garantia de uma renda

invariável só poderá ser concedida a todos pela abolição total da liberdade de escolha da profissão (HAYEK, 1990: 126).

Para justificar os “autênticos” direitos humanos, em particular a liberdade de escolha

individual, Hayek ataca todo tipo de filosofia construtivista por assentar-se numa

concepção voluntarista ou racionalista da ordem social e política: o voluntarismo

construtivista é perigoso, a seu ver, porque procura modelar a sociedade e as instituições

em conformidade com um plano ou modelo (design) cuja realização permitiria uma

sociedade mais justa. A ilusão construtivista é politicamente perversa, porque procura

estabelecer desde a soberania ilimitada de uma razão igualitária as regras de uma justa

organização da ordem social e, ademais, é teoricamente incorreta, a ilusão sinóptica,

porque acredita num sujeito onisciente com conhecimento geral de todos os dados da

ordem social - para o autor sendo isso impossível porque o sujeito encontra-se inserido

na ordem social e não pode de fora, do exterior, ter um conhecimento dos processos

sociais na sua totalidade (FERRY; RENAUT, 1985: 140).

Diante do construtivismo igualitarista que pretende desenhar a ordem social a partir da

razão ou vontade humana (taxis) e a partir de leis instituídas (thesis), Hayek defende a

ordem natural (kosmos), não criada nem construída, mas descoberta, bem como a lei

inscrita na natureza (nomos/physis), em oposição à lei instituída. Porém, a susbstituição

da dupla: taxis/thesis por kosmos/nomos não implica uma volta ao naturalismo da

Antiguidade. A lei e a ordem natural hayekianas, pelo contrário, dizem respeito a uma

sociedade liberal, de mercado, entendido este último como uma ordem espontânea de

intercâmbios, isto é, uma ordem catalática64.

64 “Enquanto uma economia propriamente dita é uma organização no sentido técnico [...], isto é, uma ordenação intencional dos meios conhecidos feito por alguma vontade individual ou órgão dirigente, o kosmos do mercado não é nem poderia ser governado por tal escala única de fins; ele serve à multiplicidade de fins distintos e incomensuráveis de todos os seus membros individuais. A confusão gerada pela ambigüidade da palavra economia é tão séria que, para nossos objetivos presentes, parece necessário restringir seu uso estritamente ao significado original em que ela designa um complexo de ações deliberadamente coordenadas a serviço de uma escala única de fins, e adotar outro termo para designar o sistema de numerosas economias inter-relacionadas que constituem a ordem do mercado. Uma vez que o nome “catalática” (“catallactis”) foi há muito tempo sugerido para definir a ciência que trata da ordem do mercado e, mais recentemente ressuscitado, parece apropriado adotar um termo correspondente para a própria ordem de mercado. O termo “catalática” foi derivado do verbo grego katalletein (ou katallesein), que significava, vale a pena lembrar, não só “trocar”, mas também “admitir na comunidade” e “converter-se de inimigo em amigo”. Dele derivou-se o adjetivo catalático (“catallatic”), para substituir “econômico” na designação da classe de fenômenos de que trata a ciência da cataláctica. Os gregos antigos nem conheciam esse termo, nem possuíam um substantivo correspondente; se tivessem formado um, teria sido catalaxia (“catallaxy”), que empregamos para designar a ordem ocasionada pelo mútuo ajustamento de muitas economias individuais num mercado. Uma catalaxia é, pois, o tipo especial de ordem espontânea produzida pelo mercado, mediante a ação de pessoas dentro de normas jurídicas da propriedade, da responsabilidade civil e do contrato” (HAYEK, 1985: 130-131).

Contrário à idéia de um mercado em que consumidores e produtores adaptam demandas

e ofertas a partir de um conhecimento dos produtos disponíveis e necessidades

existentes, o autor propõe sua substituição pela ordem natural - catalática. O jogo da

catalaxia consiste num intercâmbio de informações por meio do qual os indivíduos,

produtores e consumidores, ajustam suas pretensões espontaneamente. Ou seja, no

mercado, eles recebem sinais: o ganho obtido com a venda do produto indica (sinaliza)

ao produtor que seus esforços na produção do mesmo contribuíram para satisfazer

necessidades que desconhece; do mesmo modo, o preço pago pelo consumidor indica

(sinaliza) que seu desejo foi compatível ou não com a ordem do mercado, isto é, com os

dados de um processo de produção que o consumidor também desconhece.

A ordem cósmica do mercado, baseado na difusão codificada de informações, não

precisa, portanto, de uma vontade ou racionalidade planificadora65. Qualquer

intervenção do Estado na ordem natural traz como conseqüência uma desordem que

perturba o jogo catalático criador de riqueza, responsável pela satisfação de uma ampla

gama de necessidades. Dessa maneira, a função do Estado deve ficar limitada, como

aponta o autor, ao estrito marco jurídico de normas abstratas ou impessoais que

garantem a propriedade, a segurança jurídica e o cumprimento dos contratos -

deteminando, se for o caso, o dano e responsabilidade que deles resultem. Para Hayek,

exigir do Estado algo mais que a proteção de direitos humanos negativos (as liberdades

individuais e os direitos civis) é moralmente condenável pelo fato de que o governo, que

busca garantir a segurança ou igualdade econômica, acaba tratando as pessoas de forma

desigual. Dessa perspectiva, o único Estado ou governo justo é aquele que, através de

poucas normas, favorece o funcionamento catalático ou espontâneo do mercado.

65 A planificação econômica vai ser criticada por outros representantes do liberalismo de pós-Guerra. Assim, por exemplo, os ensaios de Michael Polany, reunidos em A lógica da liberdade (1951), em que critica a “planificação científica” (o modelo soviético) porque ameaça a liberdade pública. Ou seja, contra uma visão instrumentalista, materialista e pragmática da ciência defende uma visão teórica da mesma que se assenta em postulados transcendentes tais como a verdade, a justiça, a caridade e a tolerância. Sua oposição à planificação - científica - não está centrada, como é o caso de Hayek, na defesa da liberdade individual, mas sobretudo na defesa desses valores em que repousa a “liberdade pública” numa sociedade livre. Como afirma o comentador do ensaio, a rejeição dessas liberdades ou valores conduz à concepção da ciência como instrumental a ser utilizada para finalidades materiais. Nas mãos daqueles que subscrevem as “virtudes” da ciência planejada, as atividades dos cientistas devem ser diretamente prescritas pelo Estado (a propósito: o affaire Lysenko na URSS). A ciência, então, como uma liberdade pública, é subvertida: o Estado controla todos os caminhos públicos da vida. O poder do Estado se transforma na única fonte da ordem e no adjudicador de todos os conflitos e desacordos, inclusive os intelectuais (WARNER, 2003: 14-15).

Contudo, há que ter cuidado com a crítica moralista dirigida a Hayek no sentido de que

este não se preocupa pela situação daqueles que se encontram na extrema pobreza ou

indigência. De fato, o autor defende a necessidade de uma segurança econômica ou

material limitada (não total), como, por exemplo, uma “renda mínima” que assegure

alimentação, roupa e moradia suficientes para conservar a saúde e a capacidade de

trabalho; porém, essa segurança econômica tem que ser procurada fora do mercado: não

existe, afirma Hayek, razão para que uma sociedade livre se abstenha de assegurar a

todos uma proteção contra sérias privações.

Mas a realização desse mínimo, entende o autor, não é uma obrigação jurídica, mas um

dever moral da sociedade que deve ajudar a todos aqueles que se encontram em tal

situação (a pobreza extrema). Porém, essa ajuda aos hipossuficientes, o “direito” a uma

renda mínima, coloca o seguinte problema: como fazer uma distribuição de recursos que

não perturbe o funcionamento natural, catalático, do mercado e que seja vantajoso a

todos? Resposta: a ajuda deve dar-se fora do mercado. O contrário, a adoção de medidas

planificadoras por parte do governo introduziria desordem no mercado, além de impedir

o autodesenvolvimento dos indivíduos, que traz, na sua opinião, benefício para todos.

Diante do impasse, o modelo hayekiano sugere que os “direitos” sociais (renda mínima)

permaneçam em mãos da iniciativa privada, da sociedade. Ou seja, mais uma vez o

mesmo argumento: o problema da efetivação dos direitos positivos não é uma questão

jurídica, uma obrigação do Estado, porém um problema moral - deixado à caridade ou

boa vontade da sociedade66.

Nesta releitura de autores sobre a visão restrita ou ampla dos direitos humanos, convém

trazer, igualmente, a contribuição do sociólogo francês Raymond Aron. Tal posição

resulta relevante, se temos em consideração o esforço do autor em aproximar ambas as

visões dos direitos humanos. Aron parte da distinção: direitos humanos universais,

imperativos categóricos/jurídicos, e objetivos desejáveis que deve perseguir a ordem

66 A defesa irrestrita da liberdade e da propriedade individual é sustentada por outros autores vinculados ao chamado libertarismo ou neoliberalismo radical, ideologia em voga nos dias de hoje. Diante do questionamento clássico: quanto espaço consentem os direitos individuais ao Estado? Respondem que é o Estado mínimo ou ultramínimo, cuja função deve limitar-se à “proteção contra o roubo, a fraude, a execução dos contratos e outras similares”. Prevendo para isso que essa função possa ficar até em mãos de agências protetoras privadas/pagas: “Alguns serão contratados para realizar funções de proteção e alguns empresários entrarão no negócio de vender serviços de proteção, por diferentes preços, àqueles que poderiam desejar uma proteção mais ampla ou mais elaborada” (NOZIK, 1988: 26).

social. Essa distinção, que o autor a situa a partir da inclusão dos “novos direitos” na

Declaração universal, funda-se no seguinte argumento. No século XVIII, escreve, os

direitos confundiam-se com direitos do cidadão, pessoais e políticos, que exprimem

uma concepção liberal e universal da ordem social; no século XX, os direitos se

enriquecem com os direitos econômicos e sociais67. E pergunta: será que se trata de uma

nova etapa, ajustada à lógica da filosofia iluminista? Será que os redatores da

Declaração universal sob pretexto de completar as declarações burguesas incluíram

direitos legitimamente reivindicados pelos socialistas e confundiram noções

incompatíveis? Ou seja, juntaram objetivos desejáveis com imperativos categóricos/

jurídicos esvaziando, assim, o conteúdo do conceito direito do homem, atribuindo-lhe

uma extensão ilimitada, indefinida? A partir desses questionamentos e na mesma linha

de Cranston, o autor acredita que os direitos econômicos e sociais carecem de um

requisito fundamental - o da praticabilidade:

Para que alguém tenha um direito, é necessário que outra pessoa tenha o dever - de respeitar ou realizar aquele direito. Normalmente, qualquer Estado pode garantir o direito à vida, à liberdade de expressão, a um julgamento de seus cidadãos por meio de um júri; o mesmo não acontece com o direito ao trabalho, à seguridade social, às férias pagas, a um nível de vida decente, à educação primária gratuita e obrigatória (ARON, 1980: 212-213).

67 Os direitos econômicos e sociais são um típico produto do século XX. É assim que a grande maioria das delegações governamentais defendeu sua incorporação nos documentos da Carta internacional de direitos humanos da ONU, para que “estivesse em harmonia com as exigências dos tempos presentes”. Em relação à afirmação desses direitos podem-se assinalar alguns antecedentes normativos importantes. Em primeiro lugar, a constituição francesa de 1791 (será criado um estabelecimento de secours publics para educar os menores abandonados); a declaração francesa de 1793 (a assistência pública e a instrução é uma dívida sagrada); a constituição francesa de 1848 (a república deve proteger os cidadãos no seu trabalho); e, principalmente, documentos do século XX em que aparecem clara e especificamente enunciados cada um desses direitos: a constituição mexicana (1917); soviética (1937-77); a de Weimar (1919); espanhola (1931); brasileira (1934); irlandesa (1937); argentina (1949), etc. A irrupção da chamada questão social é destacada, também, como traço característico do século XX no excelente trabalho do sociólogo inglêsT.H.Marshall, Citizenship and social class, ao retraçar o desenvolvimento ou ampliação da cidadania na Inglaterra. Assim, o século XVIII presenciou a cidadania civil (liberdade de expressão, pensamento, ir e vir; direito de propriedade), observando que a principal instituição encarregada de tornar esses direitos efetivos foram os tribunais de justiça; o século XIX conheceu a cidadania política (as Reforms Acts da Inglaterra de 1832-67-84), que ampliam o sufrágio, sendo a principal instituição o parlamento. Por último, o século XX, assistiu ao surgimento da cidadania social, ligada à emergência do Welfare State, que estende a cidadania à esfera econômica e social, cujas principais instituições são o sistema de ensino e a seguridade social. Vale destacar, ademais, que, no âmbito do direito internacional, a OIT a partir de 1919 aprova uma série de convenções sobre aspectos relativos às relações laborais e às condições de trabalho que se tornam poderosos precedentes de alguns direitos sociais - que aparecem posteriormente em certas declarações e constituições nacionais mencionadas (como o direito de associação; a um salário suficiente e à seguridade social; proibição do trabalho escravo e abolição do trabalho infantil; jornada laboral de oito horas diárias; salário igual por trabalho igual para homens e mulheres) A consagração desses direitos pela OIT levou vários especialistas do direito internacional (Trindade Cançado; Lingren Alves) a questionar a idéia comumente aceita da sequência cronológica ou por gerações dos direitos humanos, uma vez que no plano internacional os direitos da segunda geração (econômicos e sociais) precederam os da primeira geração (direitos civis).

Porém, o sociólogo afasta-se do autor ius-naturalista no tocante à “importância capital”

de certos direitos. Para Aron esse argumento perde força se os direitos econômicos e

sociais fossem enunciados de forma precisa/detalhada68, por exemplo, que o direito a

férias, ao trabalho, à seguridade social fossem garantidos de acordo com os recursos

disponíveis de cada Estado ou sociedade. Assim, acredita, se acabaria com o argumento

da maior relevância de certos direitos sobre outros. Aron, diferentemente de Cranston,

não está preocupado com as limitações do Estado para preservar o indivíduo, mas em

reforçar seu papel a fim de que todos possam exercer seus direitos. A posição do autor

sustenta-se numa visão conciliadora dos direitos humanos: nem a superioridade dos

direitos tradicionais, baseada na diferente natureza dos direitos; nem a igualdade

meramente teórica de ambas as categorias, baseada numa estratégia política liberal, que

de fato privilegia as liberdades individuais e os direitos civis em detrimento dos direitos

econômicos e sociais. Outros, afirma, e me situo entre eles, rejeitamos essas duas

soluções, embora demos mais ênfase aos direitos tradicionais e pensemos que os

regimes de democracia política oferecem, no momento, uma síntese, a menos ruim, das

idéias do liberalismo burguês e do socialismo.

A posição de Aron, refletindo a opinião de muitos intelectuais liberais da época, é a de

um modelo que aceita a necessidade de uma dialética entre liberalismo clássico e crítica

socialista. A visão ampla do autor em relação aos direitos humanos funda-se num

componente decisivo dos regimes pluralistas ocidentais que se caracterizam, segundo

ele, não por uma definição da liberdade, mas por um diálogo permanente, no qual os

interlocutores guardam definições diversas da liberdade ou liberdades. Ademais, vale

notar um outro aspecto: a importância conferida por Aron aos deveres dos cidadãos,

chegando até a propor, em seu país, um “curso” sobre eles, porém com uma

advertência:

[Cumpre] lembrar que nossa civilização, na medida em que é liberal, é também uma civilização do cidadão [...]. Hoje em dia, os cidadãos são essencialmente consumidores e produtores. Está perfeito, não há o que discutir. Mas é uma representação marxista desviada. O paradoxo é que no país que se declara marxista fica-se o tempo todo lembrando aos indivíduos que eles são, antes de mais nada, não cidadãos, mas servidores do Estado soviético (ARON, 1982: 343-344)

68 Nesse ponto, a posição de Aron aproxima-se daqueles países comunistas que, no momento da elaboração da DUDH, defendiam que devia adotar-se uma redação rígida (detalhada, precisa) em relação ao enunciado dos direitos econômicos e sociais - o que acontece com o PIDESC.

Do exposto parece, então, que Aron visa reduzir a distância entre direitos individuais e

sociais, liberalismo e socialismo, em consonância com a situação alcançada, na época,

pelos países da Europa Ocidental. O progresso econômico, declara o autor, permitiu

satisfazer as reivindicações legítimas de liberdades reais: melhora do nível de vida e

integração progressiva dos trabalhadores à coletividade. Tal é o conteúdo concreto e

prosaico que as reformas no marco das democracias liberais dão à liberdade efetiva. E

acrescenta: as economias capitalistas têm absorvido uma dose suficiente de intervenção

e de propriedade estatal e feito com que o socialismo apareça pelo menos em parte

como real, não como um projeto transcendental no qual uma revolução violenta

permitiria realizá-lo (URSS); o regime misto tal como funciona, em nossos países,

consegue assegurar à maioria da população européia bastantes benefícios que diminuem

ou podem eliminar a atitude de revolta incondicional (ARON, 1976: 76-77).

Disso resulta que os regimes democráticos ocidentais da época, nos quais se inspira

Aron, implicam uma redefinição tanto da lei quanto da democracia. De fato, se se

admite que certos direitos econômicos e sociais mínimos enquanto “objetivos

desejáveis” podem ser cumpridos, a lei passa a ter uma função positiva, cuja finalidade

está dada por uma melhor distribuição da riqueza e correção da desigualdade,

participando, dessa maneira, da chamada democracia social, e isso contrariamente ao

que acontece quando a lei e a democracia são vistas sob a ótica restrita dos autênticos e

tradicionais direitos humanos (Cranston) em que a lei é tomada de forma negativa/

defensiva ou protetora, e a democracia como o regime que permite, no máximo, a

igualdade política, o direito igual de escolher e/ou de ser escolhido, mas não um regime

que contribui para se igualarem melhor as condições materiais - das pessoas.

A idéia de que a democracia liberal, nos países avançados, teria conseguido encurtar a

distância entre ambas as categorias de direitos humanos pode ser encontrada também

em escritos de Hannah Arendt. Com o intuito de conciliar os direitos humanos e os

direitos do cidadão, distingue dois conceitos: pessoa e homem. O primeiro, person, diz

respeito ao vínculo do cidadão com a ordem política e sua personalidade jurídica - no

sistema normativo; o segundo termo, homo, diz respeito ao universo infrapolítico ou

infra jurídico. Para a autora, a pessoa indica a máscara que utilizam os atores em cena,

que cumpre duas funções: esconder ou melhor substituir o rosto do ator e fazer também

com que sua voz seja ouvída. Essa expressão quando levada ao campo jurídico/político

implica que a lei atribui à pessoa o papel (ou função) necessário para atuar na cena

pública - que sua voz seja ouvida. Como diz Lafer, comentando Arendt, a “persona” - a

máscara que cobria, no teatro romano, o rosto pessoal do ator - tinha uma abertura larga

na altura da boca pela qual podia soar a voz própria do ator. “Persona”, de “personare”,

soar por.

Desse modo, o termo pessoa não se relaciona com o homem: não é o eu natural, diz

Arendt, que ingresa no “tribunal”, mas a pessoa possuidora de direitos e deveres,

criados pela lei, quem ingressa. E acrescenta: sem pessoa não há outra coisa que um

indivíduo sem direitos nem deveres, ou seja, o homem natural, um ser sem significação

política nem jurídica. Assim, só o cidadão, a pessoa, com personalidade jurídica é titular

e pode desfrutar dos direitos civis e políticos. Ou, citando uma conhecida frase da

autora, só a pessoa, o cidadão tem direito a ter direitos69. Ademais, Arendt acredita que

sem uma referência à idéia - abstrata - de direitos humanos, os direitos do cidadão não

seriam de aplicação universal:

[...] quem será cidadão? Que significa ser cidadão? Das duas uma: ou qualquer homem deverá fazer-se cidadão e desfrutar desses direitos, ou então os direitos humanos poderão prevalecer sobre os simples direitos do cidadão. Esta dialética das duas ordens jurídicas - a de uma humanidade abstrata e a de uma cidadania concreta - deve entender-se também como o ato que engendra uma aspiração à superação das nações pelo reconhecimento de uma humanidade cosmopolita. Numa ordem internacional pacífica, direitos humanos [homo] e direitos do cidadão [person] coincidem: tal é a exigência que a filosofia apresenta na história (ARENDT, 1967: 153-154).

Seguidores dessa concepção jurídico-política dos direitos humanos entendem que o

ideal abstrato, que veicula a noção, é fundamental para a ação política e para a

construção de um regime, a democracia, que se apresenta como sendo o melhor, o mais

eficaz, na realização dos direitos civis e políticos do cidadão:

Existe um estreito vínculo entre o regime político e a efetividade dos direitos humanos. Estes não são uma pura essência transcendente a todas as categorias de constituição política: fora da democracia, os direitos humanos são inconciliáveis. O ideal democrático [...] tem o significado

69 A respeito dessa famosa frase de Arendt um importante estudioso de sua obra entende que ela deve ser inscrita no contexto no qual se dá a reflexão da autora: a situação dos apátridas, párias ou refugiados (pessoas sem Estado ou sem direitos: displaced people), que, antes da Segunda Guerra Mundial, representavam 10% do total da população (LAFER, 1988: 149). É o que mostra a autora em The origins of totalitarism: a privação da nacionalidade que faz das vítimas pessoas excluídas de toda proteção jurídica no mundo. A esse respeito, cabe destacar o Artigo 6 da DUDH, que dá combate ao aniquilamento jurídico da pessoa humana: “Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa diante da lei”.

de conduzir a idéia do homem a seu máximo ponto de acabamento. Por construção, um regime não democrático é contrário aos direitos humanos pelo fato de que é hostil ao direito de participar e este é inerente à natureza social do homem (TENZER, 1990: 93-94).

Porém, sob tal perspectiva é difícil conciliar as duas categorias de direitos em disputa:

direitos individuais-direitos sociais. Essa limitação provém do fato de que essa

abordagem se funda na tradição ius-naturalista e contratualista clássica que não concebe

os direitos econômicos e sociais como estando na origem ou fazendo parte da ordem

social. Dessa maneira, os direitos que “contam” são os direitos do homem e do cidadão,

os primeiros servindo de fundamento aos segundos. Sendo assim, os direitos

econômicos e sociais ficam fora da noção direitos humanos, porque que não se originam

no homo (natural) nem na person (cidadão)70. Tal prisma de compreensão confirma a

opinião de que esses direitos são, no máximo, regras políticas de organização de uma

sociedade ou aspirações a serem conquistadas pelos cidadãos num regime

democrático.

A dificuldade em se incluir como parte integrante da noção direitos humanos os direitos

econômicos e sociais pode ser mehor entendida à luz da distinção mais recente proposta

por Ronald Dworkin entre princípio e diretrizes políticas. O primeiro indica que um

padrão tem que ser observado não porque favoreça ou assegure uma situação

econômica, política ou social que se considere desejável, mas porque é uma exigência

da justiça, eqüidade ou de alguma outra dimensão da moralidade. As segundas, pelo

contrário, dizem respeito ao tipo de padrão que propõe um objetivo a ser alcançado,

alguma melhoria no âmbito econômico, político ou social. Os princípios servem para

descobrir direitos fundamentais (background) que dão consistência à ordem política; já

as diretrizes servem para descobrir direitos particulares. De acordo com essa distinção

pode-se exigir, por exemplo, o direito de sobreviver, mas não uma abolição da

propriedade para satisfazer esse direito.

Com base no entendimento de estudiosos contemporâneos de que os “novos direitos”

econômicos e sociais enunciados na Declaração universal não podem ser reduzidos à

idéia de perda ou impotência, a uma denúncia indignada diante do não cumprimento dos

mesmos (SILVA TELLES, 1999: 173-174) ou, ainda para aqueles que vêem o “novo 70 Essa interpretação de Arendt não exime, contudo, dela considerar a importância ou dimensão transgressora dos direitos sociais na medida em que reativam o sentido político - dos mesmos. Ou seja, a conquista dos direitos sociais como resultado da ação, da práxis social, dos cidadãos.

pacote dos direitos humanos” formalizado em 1948 como algo indefensável

(MACPHERSON, 1991: 37), torna-se necessário comentar a posição daqueles autores,

no front socialista, que refletem, sob novas bases teóricas, sobre a promessa igualitária

que esses direitos abrem.

A conquista progressiva de “todos” os direitos humanos encontra respaldo teórico ou

filosófico em autores que os concebem como o resultado da práxis social. É o que

acontece, por exemplo, com o neomarxista Ernest Bloch, que, na década de setenta,

argumenta em tom desafiador: os grandes princípios consagrados nas declarações

modernas, em particular, na declaração de direitos da França, Liberdade, Igualdade e

Fraternidade não devem ser considerados como conquistas abstratas, mas como

compromissos não realizados que indicam o caminho da libertação (BLOCH, 1976:

158)71.

Com base nessa premissa e numa leitura crítica do materialismo ortodoxo, o pensador

alemão opõe, sob o ponto de vista ontológico, o ser como possibilidade ao ser como

necessidade, e sob o ponto de vista antropológico, a liberdade não apenas como

pensamento e vontade, mas também como ação ou práxis. De fato, em contraste com

uma concepção ontolológica que vê o ser humano determinado ou condicionado a partir

de uma visão metafísica causalista-cientificista da sociedade e, igualmente, em oposição

a uma ontologia baseada na experiência, que dissolve o ser na realidade, a ontologia

blochiana concebe o ser humano como possibilidade: ainda não sendo. O problema das

primeiras perspectivas ontológicas radica no fato de que elas absolutizam a teoria ou

então a realidade. Em ambos os casos toma-se o ser (Sein) como algo dado/ acabado

(mas não como algo que ainda não é).

A concepção do ser como possibilidade, processualidade, procura, na verdade, restituir

o papel decisivo do elemento subjetivo, isto é, a atividade ou práxis humana inserida no

mundo - no topos concreto72 . Em outros termos: são os homens que fazem a história (e

71 Bloch descreve a história ocidental através do diálogo ou conflito que se dá entre a corrente do direito natural que afirma a dignidade que o homem tem de sua liberdade, e a utopia socialista que busca promover a felicidade do homem a partir da construção de uma sociedade pacífica. A primeira teria culminado na Revolução de 1789 (França), a segunda na Revolução de 1917, (Rússia). Para ele, a tarefa de um marxismo autêntico reside, justamente, em conciliar ambas as heranças. 72 A utopia blochiana, à diferença de utopias abstratas/idealistas como as de Platão, Morus, Campanella, etc, diz respeito a um topos inserido na atividade humana orientada para um futuro, um topos da consciência antecipadora de uma realidade humana em forma de amanhã, de um mundo que não é um

não as leis da natureza) ou, para empregarmos a terminologia aristotélica, não é a vida

contemplativa ou teórica (bios theoretikós) destinada a conhecer a realidade, mas a vida

ativa (bios praktikós) destinada a intervir na realidade a que importa.

A ontologia blochiana é dialética porque parte da realidade, da necessidade - única

maneira de não cair em contradição73. Porém, ao fazê-lo, a realidade (positiva) e a

necessidade (metafísica) são envolvidas num universo mais amplo: o da possibilidade.

Assim, para o autor, a possibilidade (dynamis) é realidade parcial, porque o possível

nunca pode ser reduzido totalmente aos fatos e, também, porque o possível nunca pode

dar-se totalmente determinado nem realizado - na históra - de forma completa.

O ser como possibilidade, ao não ser absorvido nas leis da natureza (causalista/

metafísica), nem na realidade (positiva), faz com que a liberdade seja entendida antes de

mais nada como práxis social contínua. A partir dessa nova visão ontológica vislumbra-

se uma antropologia da liberdade não só na dimensão interna, subjetiva, a liberdade

individual de escolher ou decidir, mas sobretudo na dimensão externa, objetiva, como

atividade prático-social. A esse respeito, cabe sublinhar a posição de Bloch:

[...] a força da decisão indicada não permanece mais na camada mais ou mesmo privada da liberdade da vontade individual. Ela passa para a verdadeira, a pública liberdade de ação, que é, mais ou menos, liberdade política. Nela, o fator subjetivo, afinal, surge como evidentemente social, e não está mais meio encoberto, como nas liberdades, por assim dizer, mais psicológicas (grifo do autor) (BICCA, 1987: 89).

A liberdade blochiana propõe a junção do individual e do social: a liberdade de

(Freiheit von) e a liberdade para (Freiheit zu) - a liberdade negativa e positiva. Ou seja,

por um lado, a libertação da coação ou determinação dada pela natureza e pela

sociedade, e, por outro lado, a emancipação social e prática para atingir através de

mediações políticas e jurídicas apropriadas o desenvolvimento das capacidades

humanas.

sistema fechado ou um processo acabado, mas que se apresenta como um horizonte aberto, de possibilidades ainda não realizadas (MÜNSTER, 1993: 25 e 27).73 “[...] para refutar o determinismo, nega-se a existência de um setor ontológico da necessidade no real, o que nada mais é que a realização de uma metafísica da pura contingência, consequentemente, um determinismo ao avesso” (BICCA, 1987:25).

Essa redefinição do ser e da liberdade é relevante na medida em que indica estratégias

para as mudanças ou transformações. Sob tal aspecto, cabe dizer que a filosofia da

práxis blochiana afasta-se da lógica da revolução, que, fundada na ontologia da

necessidade, não se preocupa com as mudanças a serem realizadas no âmbito das

mediações jurídico-políticas, mas em reduzi-las ou extingui-las em nome da realidade:

os fatos (a revolução).

Sob a lógica da emancipação defendida pelo autor, com base na ontologia da

possibilidade, tratar-se-ia portanto de adequar os fatos ao direito ou, para usar uma

terminologia na moda, aproximar o país real do país legal, o que implica uma

revalorização ou adequação das instâncias jurídico-políticas, não sua extinção ou

supressão. Pois bem, do prisma do o marxismo heterodoxo blochiano a função dos

princípios enunciados na Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade, Fraternidade seria

justamente a de corrigir ou criticar o que existe. Como a esse respeito opinam

estudiosos contemporâneos, Werneck Vianna, etc, longe de superar o direito positivo

numa futura sociedade, este aparece como o lugar da práxis através do qual pode-se ter

acesso ao terreno da utopia.

A proposta trazida por Bloch tem a vantagem, em relação a outras abordagens, de

conceber “todos” os direitos humanos como consubstanciais à ordem social, e sua

realização como resultado da práxis social. Ao proceder dessa maneira, evita qualquer

hierarquia ou supremacia de um grupo de direitos sobre outros. Em outras palavras:

supera a recorrente distinção entre - verdadeiros - direitos que são inerentes à ordem

social e política (as liberdades individuais, os direitos civis e políticos) e aqueles que

não o seriam (os direitos econômicos e sociais). A importância do filósofo alemão, com

sua posição heterodoxa, é a de ter feito do marxismo um “direito natural radical”.

Assim, os direitos humanos enquanto legado valioso do direito natural, expressado

profeticamente nas declarações de direitos, em particular na declaração francesa,

constituem, juntamente com os princípios nela enunciados, uma bandeira de luta na

realização da dignidade humana74. A posição de Bloch lembra a concepção de vários

socialistas que, em perspectiva histórica, consideram, de maneira otimista, os direitos

humanos em constante desenvolvimento/enriquecimento:

74 Aliás, é o título de uma de suas principais obras: Direito natural e dignidade humana (1961).

[...] ela sublinha a importância da continuidade dos valores humanos relativos aos direitos humanos e às liberdades, ela aceita tudo o que é admissível, que foi realizado pela massa do povo na sua luta no transcurso dos séculos, em favor da liberdade e da igualdade social, a felicidade e a paz. A concepção socialista considera que as idéias dos direitos e liberdades humanas constituem a regra de ouro do desenvolvimento político e moral da humanidade e dos imensos valores da cultura humana (CHKHIKVADZE, 1999:255).

A tese de que todos os direitos humanos são parte integrante da noção é defendida por

outros autores de extração socialista, que, na linha inaugurada pela Declaração

universal, entendem que eles se reforçam mutuamente:

Os direitos civis são principalmente direitos contra o Estado, isto é, reivindicam liberdades individuais que o Estado não pode invadir. Os direitos políticos são direitos de participar do controle do Estado. Os direitos econômicos e sociais reclamam benefícios a serem garantidos pelo Estado [...]. Nenhuma das três categorias é necessariamente, em todas as circunstâncias, incompatível com uma das demais, ou com ambas (MACPHERSON, 1991: 40).

Apesar de admitir, como “observador imparcial”, variações na realização dos direitos

com base no mundo capitalista liberal e no mundo comunista, é possível chegar a

algumas inferências: nas liberdades individuais, os Estados comunistas adiantados estão

bem atrás, nos direitos políticos, um pouco atrás, e nos direitos econômicos e sociais,

um pouco à frente dos Estados ocidentais. Macpherson procura principalmente ir contra

o argumento iusnaturalista/liberal de Cranston no sentido de que a inclusão dos direitos

econômicos e sociais na declaração de 1948 teria obscurecido a noção, etc, por tratar-se

de uma categoria de direitos de “lógica diversa”. De fato, confirmando em parte esse

diagnóstico, a existência de direitos “contra o Estado”, os tradicionais direitos civis, e

direitos conferidos “pelo Estado”, os novos direitos econômicos e sociais, entende,

contudo, que essa discrepância lógica desaparece: quando se nota que um dos direitos

civis tradicionais básicos foi e continua sendo o direito à propriedade, apresentado como

um direito natural indispensável ao direito à vida ou ao direito a uma vida livre e

genuinamente humana. Assim, com o intuito de superar o contraste, acredita que é

necessário uma redefinição da propriedade:

O que mudou [nos países avançados] foi a opinião a respeito das maneiras possíveis de garantir o direito individual aos meios materiais necessários a uma vida plenamente humana. Nos séculos XVII e XVIII, em geral considerava-se que era preciso haver um direito individual à propriedade da terra e do capital, a fim de que pudesse trabalhar para produzir os meios de vida. Tal noção imediatamente incorporou [...] um direito à posse individual de valores ilimitados, e mais tarde ampliou-se de modo a incluir a liberdade de contrato [e de legado] e todas as liberdades de mercado, bem como o direito de pessoas físicas [a moderna empresa]. Os direitos de propriedade ampliados tornaram-se parte do direito positivo dos países capitalistas do Ocidente. Mas esses direitos, feito os direitos econômicos e sociais [a

Declaração Universal], devem ser garantidos pelo Estado, assim como os direitos que são hoje reivindicados: não existe discrepância lógica entre eles (MACPHERSON, 1991: 42-43).

Em reforço a essa tese, a de ampliar o alcance do direito de propriedade (artigo 17 da

DUDH), o autor marxista argumenta que ele se encontra profundamente arraigado na

tradição liberal do Ocidente, e que, sendo assim, a batalha em favor dos direitos

humanos - de todos eles - seria mais eficaz, se todos fossem considerados “direitos

individuais de propriedade” em vez de vê-los como antagônicos - direitos individuais

versus direitos sociais. Na verdade, diz Macpherson, falar de direitos humanos como

direitos de propriedade é simplesmente resgatar o antigo sentido liberal de propriedade,

como quando Locke, por exemplo, fala da posse que se tem da própria pessoa, da

própria vida e da própria liberdade, bem como dos bens materiais deste mundo75.

Ademais, e procurando “redimensionar o individualismo” que é tão caro a essa tradição

ideológica, afirma, em clara alusão à concepção socialista, coletivista, da sociedade e do

direito, o seguinte:

Resgatar esse conceito liberal de propriedade certamente não resolveria todos os nossos problemas. A curto prazo serviria no máximo para que mudássemos o nosso modo de pensar ultrapassado, pois ainda conservamos a antiga noção liberal de que o indivíduo tem precedência sobre a sociedade e é legitimamente independente dela. A longo prazo necessitaremos de um conceito mais realista sobre o que é humano. Teremos de reconhecer que o indivíduo só pode ser totalmente humano enquanto membro da comunidade (MACPHERSON, 1991: 51)76.

Após este “inventário” de autores que justificam, de diversas maneiras, os direitos

humanos dando, respectivamente, preeminência a um grupo de direitos sobre outros ou

igual tratamento a ambas as categorias, convém trazer ao debate uma teoria - da justiça -

que tem o mérito de conciliar as duas ideologias em exame: liberalsimo e socialismo. A

escolha dessa teoria se justifica porque nela aparece o princípio da dignidade humana de

forma indissociável do conjunto dos direitos humanos - trazendo à baila o disposto no

preâmbulo (supra) dos documentos que integram a Carta internacional de direitos

humanos da ONU. A “volta” à mesma atende também à possibilidade, pelo menos no

75 A possibilidade de uma “síntese teórica” liberalismo-socialismo é defendida por outros autores com base também numa redefinição do “terrível direito” de propriedade (César Beccaria). Trata-se, mais especificamente, de ir além do direito de propriedade assimilado, como direito fundamental, à livre iniciativa econômica para o “compêndio simbólico” do mesmo inaugurado por John Locke (BOVERO, 1993: 151). 76

plano teórico, de se passar da oposição à complementaridade de ambos os dois tipos de

direitos (individuais e econômicos e sociais):

Depois de quase dois séculos, a discussão sobre os direitos do homem foi reduzida deliberadamente a uma oposição caricatural de assimilações grosseiras. Se se pergunta a um defensor da União Soviética sobre os direitos do homem na “parte do socialismo”, mencionará rapidamente os serviços coletivos, a gratuidade da medicina, em resumo, os direitos econômicos e sociais. Seu oponente lhe oporá a ausência de liberdades civis e políticas tais como existem no mundo ocidental. Esse diálogo de surdos é também um diálogo de cúmplices em que cada um encontra, no discurso sem nuance do outro, de que alimentar o seu, ambos tirando vantagem no fato do debate ficar restrito a essa alternativa brutal entre dois absolutismos, e assim em acordo para excluir qualquer posição intermediária ou diferente [...]. O debate ideológico e político dominante mantém assim uma oposição caricatural entre os direitos civis e políticos, “liberdades formais de inspiração burguesa”, e os direitos econômicos e sociais, “direitos reais de inspiração socialista”; aqueles implicam a intervenção do Estado e estes sua abstenção, de maneira que a melhora de uns paga-se-ia inelutavelmente pela degradação dos outros. Como se haveria que escolher entre a liberdade na miséria e o bem-estar na opressão! Se a miséria suprime de fato a liberdade, jamais a ditadura consegue o bem-estar [...] Há que rejeitar essa escolha e romper com esse falacioso debate (SOULIER, 1981: 65-66).

6. aprofundamento teórico da visão ampla dos direitos humanos

Segundo se depreende do preâmbulo dos documentos da Carta internacional de direitos

humanos, a dignidade da pessoa e os direitos humanos se reforçam mutuamente, são

indissociáveis. Tal assertiva trazendo à tona duas idéias, a de que os direitos humanos se

originam na dignidade ou de que para se ter uma vida digna é necessário o respeito de -

todos - os direitos. A partir dessa premissa normativa, A theory of justice (1971) de John

Rawls é importante, porque parte justamente do princípio da dignidade humana com o

intuito de fundar “todos” os direitos humanos. Trata-se, ademais, de uma obra que teve

o mérito de responder a uma lacuna:

[...] havia um tácito consenso entre os pensadores da filosofia política de que nenhuma obra monumental nesta área tinha sido publicada desde o início da chamada Guerra Fria. Além das importantes contribuições de neomarxistas [...] e dos expoentes da primeira geração da Escola de Frankfurt, na primeira metade do século passado, não fora registrado nenhum marco teórico decisivo antes da publicação da obra-prima de Rawls, até então um ilustre desconhecido (OLIVEIRA, 2003: 7).

Com base nessa observação, cumpre esclarecer que a Teoria da Justiça opera em um

plano estritamente abstrato/genereralizante. De fato, enquanto teoria política tout court

não contem nenhuma refexão histórica, é uma “teoria política anhistórica” 77, uma

variedade de teoria mais próxima da filosofia, que não se conecta à prática concreta

(FERES JÚNIOR; POGREBINSCHI, 2010: 4-5). Contudo e apesar do alto nível de

generalidade, essa teoria teve o mérito de colocar sobre bases conceituais sólidas -

metafísicas - a possibilidade de se pensar os direitos humanos, bem como os direitos

fundamentais a partir do príncipio da dignidade humana (retomando assim a relação que

figura nos documentos da Carta internacional).

Nesse escrito Rawls procura encontrar uma adequada conciliação entre duas correntes

clássicas do pensamento político, social e moral: a corrente liberal e a corrente

democrática. Uma posição intermediária capaz de superar (Aufheben) o impasse entre

uma tradição intelectual que prioriza as liberdades individuais e os direitos civis, e outra

que acentua a relevância das liberdades políticas iguais e os valores da vida pública em

geral. Ou seja, um equilíbrio entre a dimensão individual e a dimensão política da

liberdade. Porém, sua Teoria incorpora também a dimensão substantiva dos direitos

humanos, uma vez que visa à criação de uma ordem social mais igualitária; sem

esquecer, ademais, a referência a outra tradição do pensamento moderno, o humanismo,

77 Nesta exposição deixamos de lado escritos tardios do autor como Justice as fairness: political, not metaphysical e Overlapping consensus, que, à diferença da concepção abstrata/metafísica da Teoria da justiça, mostram uma guinada política (political turn), mais pragmática e concreta da mesma e com alcance mais limitado: nem todos os países, declara Rawls, são terrenos férteis para que a Teoria frutifique. Assim, reconhecendo a especificidade do contexto social e cultural em que a nova abordagem da justiça se inscreve, nem por isso abandona a pretensão de erigir um modelo válido da mesma, reservado, dessa vez, às sociedades democráticas pluralistas avançadas do Ocidente, nem abandona tampouco um ponto importante e polêmico, presente na Teoria, que diz respeito à ordem de prioridade de certos direitos sobre outros.

em que o valor da dignidade ou auto-respeito (self-respect), a auto-estima (self-esteem),

é tido pelo autor como o bem primário (primary good) por excelência: destinado a

ocupar, como aponta, um lugar central na obra.

Nesse sentido, a concepção rawlsiana da justiça pode ser vista como o intento de se

estabelecer um parentesco, uma afinidade eletiva (Wahlverwandtschaft), entre diferentes

famílias ou tradições teóricas do pensamento político, social e moral da modernidade: o

que tentei fazer, diz o autor, é levar a teoria tradicional representada por Locke,

Rousseau e Kant a um nível mais elevado de abstração (RAWLS, 1993:10).

Sendo assim, ela constitui um decisivo passo no tratamento dado aos direitos humanos

seja como postulados morais que permitem a realização de um acordo justo/imparcial e

cooperativo da justiça, seja como direitos fundamentais, positivados, a serem usufruídos

por todos os membros de uma sociedade bem ordenada através das estruturas básicas da

sociedade. Ou seja, neste último caso, trata-se da efetivação de instituições e medidas

adequadas que permitem a realização dos direitos em suas três dimensões: a social, no

sentido de igualdade de bem-estar-material; a política, no sentido de igualdade de

participação; e a individual, no sentido de igualdade de liberdades.

Com o intuito de examinar a liberdade e a igualdade como postulados morais, na parte

inicial da Teoria78, seria conveniente precisar certos aspectos do modelo contratualista

proposto pelo autor. O acordo defendido por Rawls diz respeito à necessidade de se

chegar a um consenso sobre certos princípios de justiça que devem nortear uma

sociedade bem ordenada (well-ordered society), assim como as instituições que

determinam o modo em que se organiza a vida econômica, social, jurídica e política da

sociedade: as instituições básicas da sociedade (basic structures of society).

A exigência de que esse consenso se dê de forma eqüitativa (fair) compreende uma série

de requisitos formais. Desse modo, as partes, no momento de escolher os princípios da

justiça, que haverão de regê-las, deverão encontrar-se numa situação fictícia, ideal e/ou

hipotética, a original position, a partir da qual seja possível chegar a um acordo justo,

não apenas no sentido de sua imparcialidade, mas também no sentido de sua recíproca e

desinteressada cooperação. Os indivíduos encontrar-se-iam, idealmente, numa situação 78 Ou seja, a Justiça como eqüidade e/ou imparcialidade (título, aliás, de um artigo seu de 1957: Justice as fairness).

imaginária, a posição inicial, na qual todos são reputados agentes autônomos, livres,

racionais e iguais - para se darem princípios de justiça. Além disso, os indivíduos

agiriam, em tal situação, sob um véu de ignorância (veil of ignorance), eles

desconhecem as circunstâncias naturais, sociais, contingenciais, relativas às suas

existências concretas (gênero, inteligência, geração, grau de riqueza, status social, bens

específicos que perseguem, etc). A justiça apresenta-se, dessa maneira, com os olhos

cobertos: o véu que os cobre é a garantia de sua imparcialidade.

Para justificar o acordo, Rawls toma emprestado de Kant algumas de suas premissas

centrais: a justiça como imparcialidade, o conceito de autonomia e, principalmente a

concepção metafísica da pessoa como agente livre e racional. Os princípios de justiça a

que as partes deverão chegar resultam de um ato voluntário de autolegislação, efetuado

por indivíduos que desejam orientar suas condutas com base em princípios públicos e

morais. Essa concepção da pessoa como agente livre e racional implica abdicar por

completo do conhecimento da situação social e das circunstâncias concretas em que se

encontram os indivíduos no momento do acordo. Em termos kantianos, os indivíduos aí

se apresentam como agentes numênicos (não fenomênicos), isto é, em condições ideais

de eqüidade para a realização de suas escolhas. Segundo Rawls, atribuir às partes a

condição de agentes fenomênicos, isto é, sujeitos às contingências naturais e históricas,

com conhecimento de suas circunstâncias concretas, poderia encorajá-los a agir em

benefício próprio, subvertendo a justiça ou imparcialidade do acordo - tornando-o

benéfico não para todos.

No acordo equitativo ou imparcial sobre os princípios de justiça, a liberdade a que se

refere Rawls é de tipo negativa no sentido kantiano da expressão: ela se dá quando o

homem pauta sua conduta sem depender de qualquer objetivo particular, motivações

e/ou inclinações subjetivas, ou seja, quando age em favor da lei moral, recusando

atender a seus interesses e/ou fins particulares. Na justiça como imparcialidade, Rawls

parece entender a liberdade em termos semelhantes, quando afirma que, no momento da

escolha, os indivíduos não atuam movidos pelo desejo de realizar algum interesse

particular, e sim no intuito exclusivo de agir em conformidade com os princípios da

justiça. A adoção desse tipo de liberdade - moral, negativa (Kant), numa situação ideal -

a posição original - tornaria possível que o consenso sobre a justiça se dê de forma

imparcial/equitativa.

Mas a liberdade a que se refere Rawls, no momento do acordo, é também de tipo

positivo no sentido kantiano da expressão: ela se dá quando o homem é capaz de dar-se

boas leis morais submetendo-se voluntariamente a elas, consentindo em sua vigência.

Assim, a escolha sobre os princípios da justiça pode ser entendida como um ato

voluntário de autodeterminação ou autolegislação através do qual indivíduos livres não

aceitam ser governados por outras leis ou princípios a não ser aqueles a que eles

mesmos deram seu consentimento. O termo liberdade não se refere, portanto, à idéia

invocada pelo contratualismo clássico: um direito natural, subjetivo, compreendido

como o poder de fazer, escolher e/ou agir com vistas à obtenção de algum benefício ou

interesse particular. Ou seja, ele não aparece associado à obtenção de algum bem

próprio. Na justiça como fairness ou acordo imparcial, a liberdade aparece como

postulado moral, metafísico, a pessoa humana enquanto agente livre e racional é capaz

de dar-se leis boas. Ou seja, a liberdade é acolhida na sua dimensão estritamente formal,

e não empírica.

Tratamento semelhante recebe a igualdade na justiça como acordo imparcial/

eqüitativo. Efetivamente, ela não está associada a um direito subjetivo, de exigência de

uma igualdade jurídica ou de uma igualdade material, etc, e sim a uma igualdade

puramente formal/metafísica que acene com a possibilidade de que o acordo se opere,

também, de forma “desinteressada” e/ou “cooperativa”. Sob esse aspecto, Rawls recorre

novamente à concepção kantiana da pessoa humana ao sustentar que os indivíduos,

além de agentes livres e racionais (rational) com capacidade para dizer o que é justo de

forma imparcial, são também iguais e razoáveis (reasonable), dotados de um senso de

justiça (a “boa vontade” kantiana). O termo igualdade refere-se assim à capacidade de

todo indivíduo de ter um senso público de justiça (sense of justice) e cooperar

socialmente com a realização desse ideal. Supor que os indivíduos se comportaram de

forma razoável, baseados no cumprimento do dever (da justiça), implica considerar

todos os indivíduos como moralmente iguais, capazes de agir pelo interesse ético de

contribuir para a consecução de um projeto comum de justiça. Trata-se do intuicionismo

moral rawlsiano, que admite que o senso público de justiça possa se fundar na

sensibilidade, nos sentidos, nas emoções dos indivíduos.

Examinados os direitos humanos (liberdade e igualdade) como postulados morais nesse

estágio introdutório da teoria, a justiça como fairness, que, como vimos, viabiliza a

realização de um acordo ou consenso imparcial e também cooperativo ou desinteressado

sobre a justiça, convém, a seguir, enunciar os princípios de justiça, mostrando a ordem

serial, lexicográfica, de prioridade entre os mesmos; assim como o conjunto dos direitos

fundamentais/positivados que eles englobam:

Primeiro princípio: cada pessoa tem igual direito a um esquema completamente

adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de

liberdades para os demais - Princípio da igual liberdade (equal liberty principle).

Segundo princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois

requisitos: a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos - Princípio da

igualdade de oportunidades (equality of oportunity principle); b) devem beneficiar os

membros menos privilegiados da sociedade - Princípio da diferença (difference

principle). O segundo princípio pode ser reformulado da seguinte maneira: as

desigualdades ligadas a cargos e funções de autoridade, rendimento e riqueza (income

and wealth) são justas sempre e quando consigam promover benefícios para todos, em

particular, para aqueles que se encontram em situação mais desfavorável.

Esses - dois - princípios de justiça, desdobrados na realidade em três, são acompanhados

por regras estritas de prioridade, que por pouco não constituem um outro princípio: o da

prioridade preferencial, isto é, uma ordem lexicográfica em que as liberdades básicas

têm primazia sobre a igualdade de oportunidades, que, por sua vez, precede o princípio

da diferença. Como se vê, nenhum princípio pode intervir, a menos que os colocados

previamente não tenham sido completamente satisfeitos, tendo pois um valor absoluto

frente aos que lhe seguem. A partir dessa ordenação seqüencial, fica claramente

estabelecida a opção - preferencial - de Rawls por certos bens primários (primary

goods) em relação a outros bens, no sentido de que não se pode renunciar a nenhuma

das liberdades básicas (primeiro princípio da justiça), em favor de uma distribuição

mais justa de cargos e funções de autoridade (segundo princípio - primeira parte), nem

tampouco em favor de um nivelamento mais igualitário das condições materiais, sócio-

econômicas (segundo princípio - in fine). Essa seqüência implica, então, uma hierarquia

entre exigências: uma sociedade é mais justa que outra, se as liberdades básicas são

mais amplas e mais igualmente distribuídas, seja qual for a distribuição dos outros bens

(que englobam os demais princípios de justiça). No mesmo sentido, entre duas

sociedades parecidas no plano das liberdades básicas, aquela que melhor proporciona

oportunidades iguais para todos é a mais justa - seja qual for o grau de realização do

princípio da diferença.

Essa ordem lexicográfica traduz, decerto, a primazia do dever (right), do justo (fair)

sobre o bem (good), uma vez que a escolha dos princípios de justiça se faz, como

vimos, independentemente dos projetos pessoais ou das concepções do bem de cada um

(o ser numenal kantiano). Essa postura permite qualificar seu modelo da justiça como

deontológico, apresentando-se como uma alternativa a modelos de cunho utilitarista que

definem a justiça através do seguinte princípio: é justa a sociedade que maximiza a

soma (ou média) de níveis de bem-estar (ou de utilidade) do maior número de seus

membros. Esse princípio do utilitarismo alicerça um modelo teleológico, que concebe o

bem independentemente do justo. Essa possibilidade é descartada pelo modelo -

deontológico - rawlsiano, que não admite que a concepção da pessoa humana se resuma

à maximização racional da utilidade.

Diferentemente do modelo rawlsiano, o utilitarismo defende a primazia ou

independência do bem (good) em relação ao justo (fair). A justiça seria compreendida

como resultado de uma escolha racional e individual que, mediante o emprego de meios

adequados, torna possível a consecução de determinados fins. À luz dessa perspectiva

utilitária, as decisões se apóiam no cálculo das perdas e ganhos de bem-estar

experimentados pelos indivíduos. A decisão tida como racional será aquela que

conseguir maximizar o bem-estar total ou o bem-estar médio do grupo sobre o qual

incidirá. O objetivo de um bom governo consistiria, assim, segundo célebre fórmula do

filósofo escocês Francis Hutcheson, na busca da maior utilidade, da maior felicidade

para o maior número de pessoas.

Contrariamente, a Teoria da justiça está fundada na primazia do dever, que há de ser

ontologicamente anterior a qualquer concepção empírica do bem. A inviolabilidade das

liberdades individuais básicas (primeiro princípio de justiça) constitui um dever (right)

moral que permanece assegurado acima de todos os ajustes envolvendo questões de

oportunidades e de desigualdades de maneira a evitar o sacrifício dos indivíduos. Essa

última possibilidade, a do sacrifício de algum direito fundamental individual, dentro de

uma lógica ou racionalidade “sacrificial”, é contudo admissível numa concepção

utilitarista de justiça. É precisamente essa lógica que o modelo rawlsiano procura evitar.

O contraste com o utilitarismo e a prioridade atribuída ao primeiro princípio de justiça

podem ser melhor apreciados quando examinamos o alcance a ser dado ao princípio da

diferença. Para Rawls, esse princípio exige, como vimos, que a sociedade maximize a

oportunidade de seus membros menos favorecidos, isto é, a quantidade de bens a serem

postos à sua disposição. Ao contrário, o princípio da utilidade exige a maximização das

condições do conjunto dos membros da sociedade, entendida como a soma (ou média)

de níveis de utilidade a serem por eles usufruídos. O contraste entre ambas as teorias

seria evidenciado, então, pelo fato de que o utilitarismo não se preocupa com a

repartição do bem-estar entre os membros da sociedade: o que lhe interessa é a soma ou

a média desse bem-estar, qualquer que seja a maneira como ele será repartido. Para a

Teoria da justiça, diferentemente, a maneira como os bens primários são repartidos é

fundamental, já que a questão de saber se uma sociedade é justa não depende, de

nenhuma maneira, da quantidade de bens primários (cobertos pelo princípio da

diferença) de que podem dispor os que se encontram em situação mais favorável, mas

sim da quantidade deles a ser atribuída aos menos afortunados da sociedade.

O risco do utilitarismo, preocupado com a maximização do bem-estar médio, é que ele

pode levar à restrição ou violação de alguma liberdade básica (primeiro princípio de

justiça), ao “sacrifício” de algum direito fundamental, calcado no imperativo moral

superior que constitui a maximização da soma ou média das utilidades. Pelo contrário,

para Rawls, o respeito ao “princípio” da prioridade (aplicado ao conjunto dos bens

primários dos dois princípios de justiça) não permite que nenhum aumento da condição

global ou média dos membros da sociedade possa justificar uma restrição aos direitos e

liberdades fundamentais ou ao princípio da igualdade de oportunidades.

Estabelecidos o conteúdo e a ordem prioritária dos dois princípios de justiça e

identificado o “perigo” de teorias que conferem prioridade à obtenção do bem em

relação ao dever (utilitarismo), convém mostrar, em seguida, o tratamento dado aos

direitos humanos enquanto direitos fundamentais ou positivados, isto é, como direitos a

serem exigíveis e usufruídos juridicamente na sociedade bem ordenada através das

instituições básicas jurídicas, políticas, econômicas da sociedade.

O que importa agora é compreender como as pessoas deixam de ser vistas apenas como

agentes morais, livres e iguais, com capacidade para definir o justo de forma imparcial e

cooperativa, e passam a ser consideradas como sujeitos de direitos, que podem

reivindicar determinados bens primários - certos direitos fundamentais individuais e

sociais que englobam os princípios de justiça.

No que diz respeito à liberdade, ou melhor, o “esquema de liberdades básicas iguais”

(primeiro princípio de justiça), Rawls evita retornar às definições clássicas,

contentando-se em enunciar o conjunto de direitos fundamentais que compõem tal

esquema: a liberdade política entendida como direito ao voto e ao exercício de funções

públicas; a liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e

pensamento; a liberdade da pessoa, que inclui a liberdade frente à opressão psicológica

e à agressão física; a liberdade ante o arresto e a detenção arbitrária - tal como definida

pelo Estado de Direito ou rule of law; e o direito à propriedade privada.

Como se depreende da lista, essas liberdades e direitos fundamentais constituem uma

reformulação detalhada dos ideais da liberdade e da segurança individual, de extração

liberal, bem como dos ideais de igualdade política, de extração democrática. Em

resumo: uma junção de Locke e Rousseau.

Apesar de o autor evitar as definições clássicas da liberdade, alguns direitos que

compõem esse esquema básico, como a liberdade política, recorda, sem dúvida, aquela

tradição do pensamento democrática para a qual ser livre consiste em cada um participar

- ativamente - de uma parte da soberania, de elaborar leis (direta ou indiretamente) por

meio das quais serão governados. Ela diz respeito àquela dimensão da liberdade que

ficou conhecida como liberté des anciens (Constant) e, mais recentemente, como

liberdade positiva (Berlin) - que procura responder à seguinte questão: por quem somos

governados? A esse respeito, Rawls responderia: só uma pequena fração de pessoas

pode dedicar uma parte de seu tempo à política, a tomada de decisões portanto deve

ficar a cargo de pessoas escolhidas para isso.

A liberdade política rawlsiana se afasta de qualquer visão idealista ou radical da

mesma, ou seja, de um tipo de cidadania ativa, em que todos tomariam parte nos

negócios públicos. O direito a igual participação é utilizado, então, para definir quem e

como deverão ser governadas as instituições políticas de uma sociedade bem ordenada.

Nesse sentido, a constituição deverá consagrar normas destinadas a tornar efetivo este

direito, tais como: que cada voto tenha o mesmo valor na determinação do resultado das

eleições; que todos os cidadãos tenham, ao menos formal ou legalmente, igual acesso ao

poder público, que todos os cidadãos possam candidatar-se em eleições e ocupar postos

de autoridade e, enfim, que todos os cidadãos se encontrem devidamente informados

sobre a marcha dos assuntos públicos. Mas semelhante direito vai requerer também

medidas constitucionais que permitam garantir o uso de certos procedimentos: a

aplicação da regra da maioria para a decisão de políticas importantes, etc.

Por último, e sempre no que tange à liberdade política, ela vai implicar, da parte do

governo, medidas compensatórias que contribuam para a concretização e a

transparência do exercício desse direito, como o financiamento público dos partidos

políticos, para que tenham suficientes recursos e se tornem, assim, independentes em

relação a grupos ou interesses econômicos privados. O princípio de igual participação -

política - implicará, ademais, a responsabilidade das autoridades pelos interesses do

eleitorado, uma vez que deverão aprovar uma legislação no interesse de todos,

fomentando, nos eleitores, aqueles interesses que sejam consistentes com a justiça, etc.

No que toca aos outros direitos que compõem o esquema básico das liberdades, como o

direito de opinião e de expressão, Rawls entende que sua prioridade não se deve

exclusivamente à precedência do primeiro princípio de justiça, mas também ao fato de

que esse direito é inerente às instituições democráticas e às proteções legais

constitucionais. Esse direito, o de publicar as opiniões, etc, encontra em John Stuart

Mill uma forte inspiração, ao declarar Rawls que a política mais razoável tem que estar

influenciada ou modificada pela presença de interesses e de opiniões em conflito. A

oposição ou diversidade de opiniões supõe uma discussão razoável, continuamente

retificadora e pública sobre os programas e projetos políticos que dizem respeito à

promoção de fins sociais e do bem público. As associações políticas, os partidos, têm

como tarefa justamente buscar, junto ao eleitorado, a aprovação de tais projetos e

programas.

No que diz respeito à segurança jurídica, associada por Rawls ao rótulo Estado de

Direito ou rule of law, ela supõe um sistema de normas públicas, bem como um

conjunto de preceitos e de princípios legais sem os quais esse direito se torna ineficaz.

Assim, as normas devem prescrever condutas possíveis: as ações que as normas legais

exigem ou proíbem, afirma o autor, têm que ser de tal sorte que os homens possam

cumpri-las e evitá-las de modo razoável. Ademais, as normas legais devem contribuir

para que os juízes, legisladores e demais funcionários públicos atuem de boa fé, e que

esta possa ser reconhecida pelos destinatários. O preceito “casos similares devem ser

tratados de maneira igual” significa que os indivíduos podem regular suas ações por

meio de normas, bem como uma limitação à discricionaridade dos juízes e das

autoridades. Tal limitação pode ser obtida, também, pela aplicação de um outro

preceito: nullum crimen sine lege, e as exigências que dele resultam: promulgação,

conhecimento, generalidade, irretroatividade das leis; imparcialidade e independência

dos juízes; normas para preservar a integralidade do processo; provas judiciais, etc.

As normas e preceitos ligados ao rule of law têm como finalidade estabelecer limites

legais precisos ao princípio de liberdade igual e tornar possível que os homens regulem

suas condutas por meio de normas públicas. Do contrário, os cidadãos não saberiam

como se comportar em sociedade, nem como regular sua conduta livre, nem exercer

seus direitos e deveres.

No que tange à liberdade individual Rawls a define do seguinte modo: as pessoas se

encontram em liberdade de fazer algo quando estão livres de certas restrições para fazê-

lo ou não fazê-lo, e não o estão quando indefesas frente às interferências de outras

pessoas. Assim, os indivíduos são livres quando podem promover seus interesses

religiosos, morais ou filosóficos sem sofrer restrições de terceiros (governo, sociedade).

As únicas restrições previstas pelo autor são aquelas em que a prática da liberdade

implique uma invasão na igual liberdade de outrem. Assim, por exemplo, a prática de

consciência religiosa pode sofrer limitações, desde que, in casu, seja razoável esperar

que dela advenha o bem comum (ou seja, o igual exercício de outrem a tal direito) ou,

como diria Kant, sempre que e quando prejudique a fruição do livre arbítrio de outrem.

As liberdades individuais e os direitos civis também podem estar sujeitos a restrições,

por exemplo, quando o seu exercício perturbe a ordem pública que o governo está

encarregado de manter. Em outras palavras, a limitação se justifica, apenas, quando é

necessária ao exercício da mesma e/ou igual liberdade e direitos dos demais e não

comprometa a segurança de todos.

O exercício dos direitos individuais fundamentais não significa, então, impedir

limitações, mas somente autorizá-los em benefício de outras liberdades, também

fundamentais. Exemplo claro é a privação do direito de liberdade de determinada

pessoa, com vistas a assegurar a integridade física ou o direito à vida dos demais. Outro

é a aceitação de certas restrições ao exercício da liberdade de imprensa, tendo-se em

vista as garantias que definem o devido processo legal, por exemplo, proibindo-se que

se publique o nome de pessoas sem antecedentes nas primeiras etapas da investigação

judicial, etc.

Esses direitos fundamentais que compõem o esquema básico de liberdades recorda, sem

duvida, aquela tradição do pensamento liberal para a qual ser livre se confunde com a

independência individual e a segurança legal. Ela diz respeito àquela dimensão da

liberdade que ficou conhecida como liberté des modernes (Constant) e, mais

recentemente, como liberdade negativa (Berlin) - que procura responder à seguinte

questão: até que ponto o governo não deve intervir nos meus assuntos privados? A esse

respeito, Rawls responderia: o Estado não deve ocupar-se de doutrinas morais,

filosóficas ou religiosas, o governo não tem o direito nem o dever de fazer o que ele

deseja nesse domínio.

Identificados alguns direitos e liberdades fundamentais que compõem o primeiro

princípio de justiça, convém examinar, os que fazem parte do “segundo princípio” que

tendem, como vimos, à promoção de uma ordem social mais justa, no sentido material

ou substantivo da palavra. Se o primeiro princípio de justiça aponta para o conjunto dos

direitos fundamentais “tradicionais” (individuais, civis e políticos), o segundo princípio

de justiça se relaciona com os “novos” direitos (econômicos e sociais). Porém, à

diferença do primeiro princípio, Rawls não traz uma lista taxativa desses direitos,

limitando-se a afirmar, no segundo princípio, a igualdade de oportunidades e o princípio

da diferença.

Esse princípio, sobretudo, o da diferença, está na base do chamado Estado de bem-estar

social, que, seguindo à tradição do pensamento socialista, se relaciona com um tipo de

igualdade tida como substantiva/real na medida em que procura um melhor e efetivo

nivelamento das condições materiais ou sócio-econômicas na sociedade.

Vale lembrar que a igualdade de oportunidades (primeira parte do segundo princípio)

tem prioridade sobre o princípio da diferença (segunda parte de segundo princípio), o

que significa que os cargos ou funções, abertos para todos, não podem sofrer limitações

em compensação da aplicação de uma distribuição mais igualitária de bens - direitos

sociais - que visam reduzir as desigualdades sócio-econômicas. Nesse sentido, importa

saber o que entende o autor pelo princípio da igualdade de oportunidades. Este pode ser

resumido na seguinte proposição: aqueles com capacidades e habilidades similares

devem ter perspectivas de vida similares, independentemente de suas posições iniciais

no sistema social. Porém, esse princípio não se reduz à possibilidade puramente formal

de qualquer um aceder a não importa que função na sociedade. Para Rawls, a igualdade

de oportunidades exige que a origem social não afete, de nenhuma maneira, as

oportunidades de acesso às diversas funções, cargos, etc, e, portanto requer instituições

ou medidas apropriadas que consigam impedir uma concentração excessiva da riqueza;

e, também, que os talentos e capacidades iguais assegurem aos indivíduos de todos os

grupos ou classes sociais as mesmas oportunidades de acesso aos diversos níveis de

educação.

Com base nessa observação, a ordem prioritária em relação ao segundo princípio da

justiça pode ser matizada, uma vez que a igualdade de oportunidades só pode realizar-

se, segundo Rawls, imperfeitamente, enquanto exista alguma forma de família e de

classe social: a boa disposição para realizar um esforço e, portanto, ser merecedor de

êxito depende da felicidade na família e das condições sociais. Visto os obstáculos -

família, classe social que impedem a implementação direta do princípio de igualdade

das oportunidades -, pode-se pensar que a intenção do autor é a de incluir a primeira

parte do segundo princípio, a igualdade de oportunidades, num contexto mais amplo, ou

seja, numa reformulação global do segundo princípio de justiça. A esse propósito Rawls

sustenta que os arranjos do livre mercado devem dar-se dentro do marco de instituições

políticas, jurídicas e sociais que regulam as tendências gerais dos sucessos sociais

necessários para uma justa igualdade de oportunidades. Dessa maneira, se conseguiria

reduzir as diferenças de oportunidades - oriundas da família ou da classe social.

Tal solução, vale insistir, coloca o problema da aplicação imediata do princípio da

diferença (na distribuição dos talentos naturais) sobre a primeira parte do segundo

princípio, o da igualdade de oportunidades, o que levaria à quebra da ordem serial ou

lexicográfica - insistentemente defendida por Rawls. A pergunta que cabe então fazer é

a seguinte: como dar prioridade ao princípio da igualdade de oportunidades se este

depende, para sua aplicação, do princípio da diferença? Uma resposta plausível

consistiria, como afirmamos, em fazer uma leitura “global” do segundo princípio de

justiça, ou seja, que o princípio da diferença se aplique simultaneamente ao conjunto

dos bens que ele engloba, ou seja, aos cargos, às funções de autoridade, à riqueza, ao

ingresso. Assim, poder-se-ia justificar medidas compensatórias, distributivas (segunda

parte do segundo princípio: o princípio da diferença) que ajudem a diminuir a

desigualdade de oportunidades (primeira parte do segundo princípio) (VALLESPÍN

OÑA, 1985: 108-109).

Vale ressaltar, ademais, que a adoção do princípio da diferença, orientado para um

nivelamento mais igualitário das condições sócio-econômicas, não pretende de modo

algum acabar por completo com as desigualdades na sociedade (menos ainda com as

classes sociais). Pelo contrário, para Rawls, a desigualdade social é algo positivo, uma

vez que ela pode trazer benefícios para todos. A esse respeito declara: se existem

desigualdades de rendimentos e de riqueza, bem como diferenças na autoridade e no

grau de responsabilidade, e estas fazem o possível para que todos melhorem, em

comparação com a situação de igualdade inicial, por que não permiti-las?

Apesar de aceitar as conseqüências positivas das desigualdades, sabemos que elas não

devem ser de tal sorte que aumentem a distância entre os menos e os mais afortunados

da sociedade. Ou seja, o critério que justifica a desigualdade é a vantagem que ela venha

a trazer à camada que ocupa a posição inferior na sociedade. Se não for assim, a

desigualdade é inadmissível. Nessa ordem de coisas, Rawls desenvolve um outro

argumento em favor da justiça social (substantiva), a regra de maximin, que consiste em

empenhar-se ao máximo em melhorar a condição dos que possuem o mínimo - critério

esse que deve se estender à segunda parte do segundo princípio: o da diferença. Essa

regra de justiça social, segundo Vallespín Oña, encontra seu fundamento último,

metafísico, na original position.

De fato, é o que se depreende da afirmativa rawlsiana segundo a qual, em tal situação,

as partes que intervêm no acordo sobre a justiça devem hierarquizar as alternativas

conforme os piores resultados possíveis, devendo maximizar o mínimo, ou seja, optar

pelo menor dos piores resultados possíveis (the least-worst possible outcome). Assim,

Rawls supõe que os indivíduos, na posição original, se caracterizam por uma aversão ao

risco, porque temem saírem prejudicados da eleição realizada. Por isso, no momento da

eleição sobre os princípios de justiça, escolhem, também, esta regra de maximin, que

consiste em maximizar as situações de pobreza, marginalização e desamparo, e não as

de riqueza e poder.

Para justificar a adoção desse critério ou regra é preciso retornar, no entendimento do

comentador citado, à situação inicial, original, quer dizer, a uma situação

ideal/hipotética, dominada pela incerteza, pelo risco, na qual cada indivíduo, refletindo

que a situação real poderá ser determinada, como diz Rawls, pelo seu pior inimigo, o

“oponente maléfico”, optará por aquela alternativa cujo resultado seja superior ao pior

dos resultados das outras. Isso acontece porque os indivíduos, quando do acordo,

ignoram por completo sua condição futura e dão prova de uma total rejeição ao risco.

Dessa maneira, os indivíduos seriam levados, enquanto agentes racionais, a adotar esse

critério - de maximin -, que permite a maximização de um mínimo de vantagens na

distribuição de bens. Sob tal ótica, o que legitima as diferenças em poder ou riqueza

será não só o consentimento, mas também o bem-estar de quem fica abaixo na

hierarquia.

No segundo princípio de justiça caberia analisar alguns direitos fundamentais, sociais,

aos quais faz alusão o autor - embora evite, como destacamos, uma lista taxativa dos

mesmos. Assim, por exemplo, o direito a um mínimo social já que, para Rawls, ao

contrário de outros direitos sociais (direito ao trabalho, etc), o sistema de livre

concorrência, de mercado, não pode por si só garantir uma distribuição de bens sociais

eficaz. Daí a importância do governo em adotar medidas compensatórias, reguladoras,

sendo a de transferência a que permite levar mais em conta as necessidades sociais.

No que diz respeito ao “mínimo social”, pareceria, à primeira vista, que ele deveria ser

fixado num nível alto. Entretanto, tal possibilidade é descartada pelo autor: as

expectativas dos mais desafortunados da sociedade devem ser vistas a longo prazo, para

as gerações futuras, não devendo ter por base expectativas mais imediatas. Assim, o

capital produtivo deve ser preservado, através de uma poupança suficiente para garantir

a justiça às sucessivas gerações, e não, por exemplo, por meio de uma taxa impositiva -

exorbitante - que freie a iniciativa econômica (imposto sobre as fortunas, etc). A

pergunta que então emerge é: como fixar esse mínimo social? Rawls sugere que se,

aumentados os tributos, das duas, uma: ou se obterá uma poupança suficiente, ou esses

impostos interferirão de tal modo na eficácia econômica que não permitirão uma

melhora das expectativas dos menos favorecidos - que acabarão piorando. Nesse caso,

embora satisfeito o princípio da diferença, não seria atingido o resultado, isto é, um

crescimento suficiente do mínimo social.

Com base nisso, Rawls contempla uma outra possibilidade para determinar a amplitude

desse mínimo: o “princípio da justa poupança” que, por seu turno, se origina, mais uma

vez, na original position. De fato, as restrições formais, dadas pelo véu da ignorância,

impedem às partes contratantes de conhecer a geração à qual pertencem, bem como o

nível de desenvolvimento da sociedade. Assim, e em tal circunstância, ideal, torna-se

lógico que se pergunte, a cada uma delas, quanto estariam dispostas a poupar para cada

nível de riqueza por elas produzida (e isso, supondo que as demais gerações poupariam

seguindo o mesmo critério). Para Rawls, faz-se plausível esperar que seja escolhido o

princípio da justa poupança, uma regra que permita estabelecer, por antecipação,

porcentagens suficientes para cada nível de riqueza produzida. Se for seguido o

princípio da justa poupança, cada geração dá uma contribuição aos seus pósteros, que a

receberão de seus antecessores.

O princípio da justa poupança é visto, pois, do ponto de vista dos menos afortunados de

cada geração. Nesse sentido, seria oportuno saber, também, quem são as pessoas com

menor quantidade de bens primários? Uma possibilidade seria a de escolher uma

posição social particular, a dos trabalhadores não qualificados, e a partir daí contar

como menos favorecidos todos aqueles que tenham ingresso ou riqueza aproximada aos

que se encontram em tal situação, ou ainda pior.

Analisado o lugar dos direitos humanos na Teoria da justiça como postulados morais

que permitem a realização de um acordo eqüitativo, imparcial e cooperativo da mesma

e, também, como direitos fundamentais ou positivados a serem usufruídos pelos

membros da sociedade bem ordenada, convém, a título de conclusão, realizar o seguinte

comentário crítico.

Os direitos humanos sejam como postulados morais ou direitos fundamentais são tidos,

segundo a abordagem metafísica da justiça, como universais, abstratos (etéreos). Em

outras palavras: trata-se de direitos erga omnis homines, para todos os homens,

independentemente das contingências históricas. Em ambos os casos, os direitos

humanos guardam íntima relação com a dignidade - humana - tida, por sua vez, como

princípio a priori a partir do qual agentes livres e iguais são capazes de estabelecer

princípios de justiça; e, também, como princípio a posteriori, ou seja, como resultado da

efetivação de todos os direitos - que integram os dois princípios de justiça.

Porém, nesta Teoria tudo se passa, para usar uma terminologia humeana, como relações

de idéias (relations of ideas) sem ter em conta os fatos (of matters fact). Ou, lembrando

o Discurso sobre a desigualdade de Rousseau, afastemos todos os fatos que não se

prendem à questão, não devemos considerar as pesquisas como verdades históricas, mas

como raciocínios. A esse propósito, vale lembrar, também, as palavras de Rawls quando

se refere à ficção da posição original: ela nos obriga a contemplar a situação humana,

não só de todos os pontos de vista sociais, mas também de todos os pontos de vista

temporais - o que não significa senão admitir o seu caráter metafísico. Nesta ordem de

coisas pode-se afirmar que a Teoria da justiça, com seu viés universalista/abstrato,

apresenta-se como continuação do pensamento kantiano mais ortodoxo - que visa

fundar uma ordem justa em base com base em uma “geometria moral”.

O universalismo abstrato da Teoria deve-se sobretudo ao fato dela partir do pressuposto

da igualdade e da liberdade de todos os homens em dar-se normas ou princípios de

justiça. Dessa maneira, esse universalismo apresenta-se como “vazio” na medida em

que se limita a consagrar uma igualdade de natureza idêntica - racional/moral - de todos

os homens, ignorando, portanto, as diferenças reais criadas pela história, pela sociedade,

etc. Como acontece com toda teoria que pretende explicar o idêntico, o imutável, ela

corre o risco de apagar ou banalizar as diferenças, na medida em que a humanidade

considerada de forma abstrata. É o que acontece com a teoria em estudo ao partir de

certos atributos ou capacidades racionais/morais a priori, a dignidade humana, da qual

resultam direitos humanos fundamentais que fazem da dignidade um valor efetivo - a

posteriori.

O universalismo abstrato que domina a Teoria ao tomar como étalon, medida certa e/ou

verdadeira, ou, como diria Rawls, ao seguir uma determinada doutrina abrangente,

filosófica ou epistemológica, da justiça - a concepção metafísica da pessoa humana -,

deixa, implicitamente, em aberto a tentação, a nosso entender, preconceituosa, de julgar

outros indivíduos ou sociedades como inferiores por carecerem de tais atributos

apriorísticos, necessários, que determinam o que é justo. Ou seja, sem a presença do

indivíduo racional, moral, como Rawls o entende, as sociedades que não teriam entre

seus membros tais aptidões não seriam legítimas, não teriam a possibilidade de serem

justas. Pois bem, ao universalizar esses pressupostos caberia perguntar o seguinte: como

fica a Teoria diante daqueles modelos teóricos diferentes, o socialismo, que não

admitem essa visão idealista/abstrata da pessoa, porque o verdadeiramente real é a

sociedade, a coletividade; que não concebem os direitos humanos senão no horizonte

das condições materiais da sociedade, que portanto variam conforme o grau de

desenvolvimento da sociedade e da história.

A concepção metafísica da justiça e dos direitos humanos obedece ao fato de que a

teoria rawlsiana, baseada no “construtivismo kantiano”79, apóia-se, de fato, numa

racionalidade de tipo teorética ou solipsista, capaz portanto de estabelecer

objetivamente, cientificamente, o que é o justo; e, também, deontológica, capaz

portanto de colocar o dever moral do respeito irrestrito a certos bens primários ou

básicos dados pelos dois princípios de justiça, na ordenação serial ou conseqüencial,

como inviolável/intocável. Pois bem, o solipsismo, enquanto hiper-racionalismo, parte

do pressuposto de que o eu, o sujeito cognoscente, é a única realidade absoluta, daí a

impossibilidade de reconhecer a existência simultânea de outros egos. A esse respeito, e

seguindo a crítica de alguns estudiosos, caberia formular uma outra indagação: o

próprio fundamento da razão não seria igualmente um modelo cultural, histórico, entre

muitos outros?

79 Aliás, é o título que leva uma de suas conferências realizada em 1980.

Tal possibilidade parece descartada pelo modelo - metafísico - da justiça. Assim, por

exemplo, quando o autor, em várias oportunidades, reitera que não se pode abrir mão do

princípio, universal, humanista do igual valor da dignidade e/ou auto-respeito da pessoa,

tido, como vimos, como um dos bens primários mais significativos, por excelência, na

sua Teoria. Mas tal preferência pelo valor irrestrito do igual respeito não leva,

justamente, a uma afirmativa, também, questionável: a obrigação de respeitar todos os

homens não obriga, também, a considerar as idéias que levam a esse postulado como

sendo igualmente verdadeiras, isto é, dogmáticas do ponto de vista epistemológico?

O individualismo metodológico seguido por Rawls parece inspirar-se no modelo do

“espectador imparcial”, que defende a idéia de que todos os seres humanos, enquanto

agentes racionais e razoáveis, livres e iguais, agindo em condições fictícias/ideais

(posição original, véu da ignorância), chegam a uma “conclusão”, os princípios da

justiça, igual para todos. Ou seja, a Teoria da justiça procura apresentar-se como válida

para todo agente racional e moral. Mas quem é esse agente racional? Quais os limites

dessa racionalidade? Tais questionamentos parecem ficar no “ar” ao se colocar a

racionalidade como ponto de partida, e não como um produto, social, histórico.

O néocontratualista Rawls na postura de “codificador universal” adota um ponto de

vista sub specie aeternitatis que procura responder à questão: qual concepção da justiça,

idealmente, deve ser preferível a todas as outras? Resposta: aquela que permita extrair

certos princípios necessários que resultam de uma exigência inamovível: a capacidade

de todas as pessoas estabelecerem a idéia do justo (fair) dado pelo conjunto dos direitos

fundamentais que resultam dos princípios de justiça: os direitos civis, políticos e sociais.

Trata-se, portanto, de estabelecer princípios de justiça que se erigem como absolutos,

desligados de todo contexto histórico, fundados em convicções morais e racionais que

permanecem invariáveis, comuns a todas as sociedades e, portanto, impermeáveis às

especificidades concretas e variáveis das mesmas.

O universalismo abstrato adotado em Teoria da Justiça implica partir do postulado

universalista de uma natureza humana idêntica e imutável. De fato, ele toma como

referência um sujeito radicalmente desencarnado (a radically disembodied subject), um

eu desimpedido/isolado (encumbered self), puramente inteligível ou, parafraseando

Kant, o ser numênico ou verdadeiramente humano. Isso pode ser observado, por

exemplo, quando Rawls coloca a vontade por trás do véu da ignorância fazendo assim

com que ela apareça sob o domínio absoluto da razão - enquanto os desejos individuais

desaparecem do panorama, assim como a comunidade e as idéias correlatas acerca do

bem comum que precedem ou são concomitantes ao indivíduo.

O que interessa a Rawls é descobrir no ser abstrato, livre e igual, racional e razoável, a

capacidade de dar-se princípios de justiça certos e verdadeiros e de contribuir - de forma

cooperativa - para a consecução dos mesmos. Essa abordagem metafísica da justiça, que

se pretende neutra, inquestionável, acaba por negar toda possibilidade concreta na qual

os indivíduos se encontram inseridos e através da qual são descobertos e desvelados

seus fins. A adoção desse modelo conduz, também, a desconsiderar ou deixar em

segundo plano a necessidade de se pensar mais rigorosamente as mediações entre as

normas e sua aplicação. Dessa maneira, sua abordagem da justiça aparece bem distante

da experiência, a qual não parece oferecer exemplos dessa racionalidade nem

desinteresse cooperativo pela justiça, o que leva a dizer, mais uma vez, que a Teoria faz

total abstração das sociedades tais quais existem: imperfeitas, desordenadas. Tal atitude,

seguida pelo autor, pode ser reforçada no seguinte comentário crítico - reiterado por

vários comentaristas da obra: o que aparece, em primeiro lugar, como pressuposto

teórico e, portanto dogmático - sem provas possíveis - é a concepção metafísica da

pessoa humana. Essa concepção, por certo, se estende aos direitos humanos seja como

postulados morais, seja como direitos fundamentais. Em ambos os casos, tais direitos

(morais ou positivados) aparecem como uma instância transcendente,

descontextualizados de todo tempo e lugar.

Ademais, cabe sublinhar que a concepção da pessoa como agente razoável está ligada

ao senso comum, ao que é aceitável numa comunidade determinada. Ou seja, que as

condições de co-existência numa sociedade justa dependem de nossa idéia de justiça,

que contém exigências múltiplas e muitas vezes incompatíveis entre si. Disso resulta

que não se pode pretender necessariamente a realização de um acordo sobre a

elaboração razoável de uma estrutura justa da sociedade, uma vez que muitas soluções

podem ser igualmente razoáveis. Em outras palavras: levantado o véu da ignorância, os

cidadãos, portadores de um sentido ou sentimento cooperativo pela realização do ideal

da justiça, não vão escolher necessariamente aqueles bens primários, direitos

fundamentais, que compõem os princípios de justiça. E, admitindo que o façam, não vão

seguir necessariamente a ordem sequencial, proposta por Rawls, nem tampouco adotar

necessariamente as estruturas de base - próprias dos regimes liberal-democráticos

ocidentais - os mais aptos, segundo o autor, para tornar efetivos os bens primários da

justiça.

Prova disso, a posição dos países socialistas durante a elaboração da Declaração

Universal de 1948 da ONU, que entendiam que os “novos” direitos (os direitos

econômicos e sociais) são de igual ou maior hierarquia que as liberdades e os direitos

individuais. Sem contar, ademais, a “desconfiança” desses países em relação à prática

desses direitos, liberdade de expressão, etc, e a necessidade de sua restrição ou limitação

em determinados casos; ou, ainda, a diferente concepção, mesmo que não explicitada no

debate da declaração, acerca das instituições e modo de funcionamento do regime

político responsável dos direitos humanos: democracia popular versus democracia

liberal. Por último, cabe lembrar que, considerando-se a concepção coletivista desses

países, dificilmente se pode falar de justiça sem ela passar, em primeiro lugar, pelos

interesses do Estado, que se confundem, aliás, com os interesses do indivíduo, e não

com a neutralidade do Estado - como acredita Rawls.

Além disso, a “justiça marxista” (dos países de leste), em contraste com a “justiça

rawlsiana” (dos países ocidentais) jamais aceitaria o pressuposto que está na base do

“princípio da igualdade de oportunidades” do filósofo norte-americano: uma

democracia possuidora de propriedades. De fato, existe uma diferença fundamental

entre ambas - em torno à propriedade:

Rawls acredita que a igualdade de recursos [para tornar efetivo tal princípio] deve assumir a forma de igualar a quantidade de propriedade privada disponível para cada pessoa. Para Marx, por outro lado, ‘a teoria dos comunistas pode ser resumida em única expressão: abolição da propriedade privada’. A posse privada é permissível em áreas de ‘propriedade pessoal’, como as roupas, móveis e bens de lazer que usamos em casa e no divertimento. Contudo, é ‘fundamental’ para o marxismo que ‘não haja nenhum direito moral à posse e ao controle privado dos recursos produtivos’. A igualação dos recursos produtivos deve assumir a forma de socialização dos meios de produção, de modo que cada pessoa tenha participação igual nas decisões coletivas quanto à disposição dos bens produtivos, efetuada no nível de firmas individuais ou de planejamento econômico nacional (KYMLICKA, 2006: 217).

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