conferência sobre Ética

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CONFERÊNCIA SOBRE ÉTICA

Tradução da Lecture on Ethics de L. Wittgenstein, feita a partir da versão normalizada do ManuscritO 139b (MS 139b) apresentado na edição de Edoardo Zamuner, Ermelinda Valentina Di Lascio e D. K.

Levy, da Wiley Blackwell, Oxford, 2014.

© 2014 John Wiley & Sons, lnc.

Reservados rodos os direitos de acordo com a lei Edição da

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna I Lisboa

Depósito Legal N .0 423925117 ISBN: 978-972-31-1595-6

201 7

LUDWIG WITTGENSTEIN

CONFERÊNCIA SOBRE ÉTICA

Tradução de António Marques

~FUNDAÇÃO ~ CALOUSTE GULBENKIAN

SINOPSE DA OBRA

A Conferência Sobre Ética é o único texto escrito por Wittgenstein preparado para ser lido a uma audiência. Em toda a sua vasta obra Wittgenstein escreveu muito pouco sobre ética e, no seu único livro publicado em vida, o Tra­tado Lógico-Filosófico, são escassas as proposições dedicadas ao tema. É provavelmente nos diários, quer os de 1914-16, quer de 1931-37, que se podem encontrar reflexões sobre ética, mas com uma forma não sistemática e frequentemen­te intimista. O presente texto é importante a vários títulos, desde logo porque revela um Wittgenstein ocupado com uma temática que lhe merece a maior consideração, mas que não faz parte do núcleo de problemas filosóficos que caracteriza a sua obra. Na verdade, a filosofia crítica da lin­guagem possui, nos seus próprios termos, um objectivo terapêutico relativamente aos problemas sem solução da filosofia. É numa nova concepção do uso multiforme da linguagem que assenta em grande parte esse objectivo que tanto influenciou a história da filosofia, desde a segunda metade do século passado até aos nossos dias. A Conferência Sobre Ética insere-se nesse propósito e apresenta uma nova imagem da relação do homem com os problemas da ética que o filósofo descreve como um permanente «correr contra os limites da linguagem».

CRITÉRIOS EDITORIAIS DA PRESENTE TRADUÇÃODACONFERÊNCM

SOBRE ÉTICA

A presente tradução é da \·ersão normalizada de um dos dois manuscritos da Conferência Sobre Ética, o MS 139b, pelas razões que seguidamente se explicam. Da conferência que Wittgenstein fez no clube "The Heretics", em 17 de Nm·embro de 1929, em Cambridge, existem três versões, dois manuscritos e um escrito dactilografado, referenciadas na lista de escritos de Wittgenstein elaborada pelo seu discí­pulo, amigo e executor literário, Georg Henrik von Wright: os manuscritos 139a e 139b e o escrito dactilografado 207. Este catálogo, ainda hoje utilizado para as referências e citações de textos do filósofo, diYide o espólio em três grandes categorias: manuscritos (com a sigla ~-..IS) , escritos dactilografados (TS) e escritos ditados por Wittgenstein (D). A versão que escolhemos traduzir é o ?\'IS 139b, conforme os critérios expostos nesta nota introdutória.

A informação mais completa e rigorosa sobre a cro­nologia das versões, e sobre qual das três corresponde ao texto efectivamente lido por Wittgenstein na conferência nesse dia 17 de l m·embro de 1929, assim como os critérios que devem hoje orientar uma edição da mesma, é fornecida pelo recente trabalho editorial de Edoardo Zamuner, Er­melinda Valentina Di Lascio e D. K. Levy. Uma primeira novidade desta edição consiste em incluir uma prato-redac­ção ou primeiro rascunho que será um esboço inicial e se

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encontra no Yerso de algumas páginas do MS 139a. Os edi­tores apresentam novas transcrições diplomáticas das três versões mencionadas e acrescentam aquilo que designam como uma prato-redacção. É desse trabalho de identifica­ção dos critérios editoriais, que se afiguram mais credh·eis à luz da investigação actual, que damos conta nesta nota. Desde logo, é com base na non informação aí aduzida que se justifica a nossa opção pela ,-ersão normalizada do 1\IS 139b, considerada pelos editores como «o texto da confe­rência de \'V'ittgenstein aos Heréticos». Na sua perspecti,·a, os editores responderam à pergunta: que versão de entre as três incluídas no catálogo de von Wright foi efectinmente lida por Wittgenstein, ou se ja, qual é o ,-erdadeiro texto da Conferência?

Na ,-erdade, as edições da Conferência, em diferentes línguas, têm sido ao longo dos anos baseadas no escrito dactilografado, publicado em 1965 na Philosophical Revie1v, com o título ''A Lecture on Ethics" (TS 207), assumindo-se que esse seria o texto que \'V'ittgenstein leu naquela oca­sião. Ora este pressuposto é colocado em causa pela im·es­tigação le,·ada a cabo na edição da BlackweU aqui utilizada. O resultado dessa inves tigação significa rejeitar a ideia de que a disposição pela qual se o rdenam geralmente as três versões da conferência constantes do catálogo de ,-on \~·ri­ght- ou seja a primeira versão, o !\IS 139a, seguida do ;\IS 139b e finalmente o TS 207 - seja correcta. Porém não terá sido esta última ,-ersão dactilografada que Wittgenstein leu na sua conferência. Segundo os editores do ,-olume men­cionado, essa perspectiva é incorrecta desde logo, porque esse escrito aparece sem as usuais correcções ortográficas que o filósofo introduzia nos seus escritos. Apresenta-se antes como um texto dactilografado limpo que terá sido produzido para presen ·ar o conteúdo do !\IS 139b, mas sem

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participação do próprio filósofo. Deve ainda acrescentar­-se que, nas poucas exposições públicas (sem ser em aula) de Wittgenstein, este nunca utilizou textos dactilografados. Sendo assim, a dactilografia teYe lugar algures no tempo entre a conferência e a sua publicação na Philosophical Revim;.

Rejeitada a ideia de que o texto dactilografado, TS 207, foi a versão lida na conferência, resta verificar qual dos ma­nuscritos- o MS 139a ou o 139b- foi então utilizado. Uma comparação dos documentos eYidencia que o 1\IS 139b é mais elaborado, com a gramática melhorada, exemplos mais adequados e remoção de algumas frases. Sabe-se, por outro lado, que uma das características da forma de traba­lhar de Wittgenstein consistia em ,-oltar a corrigir, quer ma­nuscritos, quer escritos dactilografados, numa sucessão que evidenciava uma persistente insatisfação com o modo de expressar o seu pensamento. O i\IS 139b, que se encontra­,-a perdido na altura em que von \.'Vright fez o seu catálogo (embora se soubesse da sua existência), apresenta as me­lhorias referidas e um aspecto muito mais legível. É, pois, plausível que tenha sido esse o texto efectivamente lido por \.'Vittgenstein naquele domingo de Novembro de 1929 em Cambridge. Estas são razões suficientes para termos esco­lhido para a presente edição da Conferência Sobre Ética a transcrição normalizada do i\ IS 139b.

Optou-se por uma ,-ersão bilingue, encontrando-se à esquerda o texto inglês do 1\IS 139b e à direita a tradução portuguesa. A numeração das páginas da tradução portu­guesa indicada entre parêntesis rectos corresponde à nume­ração do manuscrito original inglês.

WITTGENSTEIN E A PROCURA DE UMA LINGUAGEM PARA A ÉTICA

Estudo Introdutório sobre a Conferência Sobre Ética

A Conferência Sobre Ética (CE) de Wittgenstein, pro­ferida a 17 de Novembro de 1929, em Cambridge, é re­conhecidamente a sua única peça filosófica directamente relacionada com a temática da ética. O seu interesse pro­vém também do facto de ser geralmente reconhecido que, na sua \·asta obra, a ética não encontra um espaço signi­ficati\·o. Trata-se de facto de um texto autónomo com uma forma acabada, exposto numa determinada ocasião a um certo público. O convite para a conferência partiu de C. K. Ogden, o editor do Tractatus Logico-Philosophicus1 (1922) e a associação promotora da conferência, The H eretics, não era constituída, na sua maioria, por filósofos académicos. Anteriores conferencistas incluíam, por exemplo, os nomes

Publicado na editora Routledge & Kegan Paul, em 1922, em edi­ção bilingue e com uma in trodução de Bertrand Russell , o Tractatus ha,·ia sido editado no ano anterio r co m o título Logiscb-P!Jilosopbisc!Je A/;/;andlung 0iteralmente, Tratado Lógico -Filosófico), como número do periódico ale­mão A nna/en der .\:aturpbilosopbie. A relação com o editar da edição alemã, \XIilhelm Osrwald, foi de tal fo rma cheia ck equí,·ocos que Wittgenstein acabou po r considerar a edição do Tratactus de 1922 como a ,·erdadeira. Para mais po rmeno res sobre o turbulento processo da edição des ta obra (a única publicada pelo próprio fi lóso fo ao longo da sua ,·ida), confrontar entre o utros os impo rtantes trabalhos biográficos de Ray \lonk, Ll1dwig Wittgenstein - Tbe Du(J• of Gmius, pp. 202-212 e de Brian \kGuinness, Yõm~ L.11d1vig: u;o'ittgemtein 's L .fe - 1889-192 1.

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de Virgínia Woolf ou H. G. Wells. É por isso diferente de múltiplos outros textos, fragmentos, observações e notas, dispersos ao longo da sua carreira, em que a temática da ética está presente, mas sem uma audiência reconhecível e destinatária desse tipo de reflexões. No âmbito daquilo a que tradicionalmente se designa como a temática ética, devemos considerar especialmente significativas as lições transcritas por Yorick Smythies sobre o problema do livre arbítrio2

, assim como os diários de 1931-36, publicados por lisa Sumaville3

. Não é certo, todavia, que Wittgenstein considerasse aquele conceito como parte de uma específica discussão sobre ética. Deste modo a CE possui um interes­se intrínseco, numa fase da sua carreira do filósofo vulgar­mente considerada como o período de transição entre uma forma de pensamento assente nos pressupostos do Tracta­

tus e um outro método, estilo e problemas, que caracteri­zam a filosofia do segundo \'{!ittgenstein. Porém, convém tornar claro que dificilmente a CE poderá ser integrada na tradição da filosofia ética, tal como a podemos identificar a partir das grandes obras de Aristóteles e de Kant, autores que sem dúvida fixaram a natureza e. a singularidade da re­flexão filosó fica ética até aos nossos dias. Esta consideração é releYante, já que visa precisamente encontrar um lugar próprio para o conjunto de observações que Wittgenstein Yai produzindo sobre temas éticos, quer no período ante­rior ao Tractatus, quer na fase posterior. Porém, o estatuto, por assim dizer, exterior da CE relativamente ao conceito de ética, desem·oh-ido pelos mais rele\·antes filósofos da história da filosofia prática, coloca-nos certamente peran-

1 L. \\ 'i ttgenstein, " Lectures on Freedom of \Xiill" , Philosophical Oc­

cmions - 19 21-19 51. É de referir a tradução francesa, em edição bilingue com um ensaio introdutório de :\nronia Soulez, Leçons sur la liberté de la l'olonté,

Paris: PC!·; 1998.

; L \\ 'ittgenstein, D enkbell'egungm- Tagebiicher 1930-32/ 1936-37.

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te o problema de saber se em Wittgenstein (considerando qualquer das fases da sua evolução) existe verdadeiramente um pensamento ético. Fiquemos desde já com esta interro­gação e exploremos as principais linhas de argumentação da CP.

A preocupação inicial de Wittgenstein consiste em se­parar o domínio da ética do domínio do conhecimento dos factos, no sentido preciso em que a linguagem no seu uso corrente (e não existe outro uso quando pretendemos tratar de temas da ética) não pode definir nada do que se passa naquele domínio e apenas descre,-e factos naturais. Esta posição, que reitera as principais teses da filosofia crítica da linguagem natural já desenvoh·ida no Tractatus, regressa agora à CE, embora com algumas novidades de que da­remos seguidamente conta. De,·emos começar por subli­nhar que, a descrição daquilo que é bom, no sentido ético, exige a formulação de juízos absolutos de valor, num plano completamente diferente dos juízos relativos, como aque­les que formulamos quando qualificamos uma cadeira ou um Yestido como boa ou bonito respecti,·amente: «Se, por exemplo, eu disser que esta é uma boa cadeira, isso significa que a ca­deira serve um certo objectivo pré-determinado, e que a palavra "boa'~ aqui, tem apenas sentzdo na medida em que a finalidade terá sido previamente fix ada. / De facto, a palavra "bom'~ no sentz"do relatz"vo,

Por exemplo, Ra,· :--.lonk é da opinião que: «aquilo que talrez mais impressione ne.rla ronferénáa i que ela !l(io i ele todo .robre itim, tal como mtmclemos usualmente o lermo. Quer dizer que aí não ..-ào mencionados problemm morais, ou a forma como esses problema.r cln·em .rer analisados e compremcliclo.i.>> Op. cit. , p. 278.

Também para Hans-Joachim Glock, embo ra \Vitrgenstein atribua a máxima importância à ,·ida ética, << OJ .rei/S tratamentos em itos ela ética Jào brere.r e ob.rmro.r. mquanlo a J sum pn:;pectirm Jobre a linguagem tém tido uma Jórte influincia. ainda que intermitmle. na filosofia moral analitir(l>>, in A !F ittgm.rtein DictionarJ, pp. I 07.

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significa simplesmente satisfazer um certo padrão pré-determinado.»5

Pelo contrário, o uso dos termos "bem" ou "bom" num

sentido ético não permite qualquer tipo de relativização ou

de funcionalização, com o quando afirmamos que essa ca­

deira é boa, mas podia ser melho r ou que é boa em função

deste ou daquele fim (uma cadeira ortopédica tem um fim

específico, etc.). Dir-se-á que, quando o juízo de valor é ab­

soluto, desaparecem características como a contingência, a funcio nalidade ou a relatividade. Como é que então formu­

lo um juízo absoluto de valor? Po r outras palavras, com o

reconheço um juízo desse tipo? Uma resposta poderá ser:

quando variando o contexto do meu juízo, verifico que o

valor nele presente não pode ser relativizado ou funciona­lizado. A verdade é que, intuitiYamente, admitimos que, ao

ajuizarmos sobre a qualidade ética de uma acção, podemos dizer que ela foi boa nesta situação, mas que noutro contex­

to a mesma acção pode ser m á. Um acto de generosidade

poderá ser bo m num contexto e mau noutro. Uma expe­riência de variação co ntextua! para ensaiar a qualidade ética

de uma acção pode, na verdade, testar a possibilidade de juízos éticos absolutos, mas na CE Wittgenstein terá que introduzir um elemento que retire o juízo m oral da relativi­

zação do contexto. Contudo esse elemento não poderá ser uma qualidade de um determinado es tado mental, já que não temos meios para descrever esse es tad o. Poderíamos

também imaginar alguém omnisciente e que essa pessoa te­ria o co nhecimento to tal de acontecimentos que ela poderia descreYer num g rande livro. Po rém esse livro não iria con­ter nada de ético. O facto é que \X!ittgenstein continua fi el

' r\ s referências ao texto da CE são feitas co m a indicação do nú­mero da página do o riginal , entre parênteses rectos, e da presente tradução; [4[ p. 53 (tradução).

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à ideia já exposta no Tratactus que: <<A Ética, se for alguma coisa, é sobrenatural.»6

Notemos que esta distinção introduzida por Wittgens­tein no inicio da sua exposição, entre juízos de valor relativo e de valor absoluto, não representa só por si uma novidade, pois ela estará sempre presente em qualquer ética que se apresente com alguma sistematicidade e coerência interna. É um facto que qualquer sistema ético pretende identificar ou mesmo descrever o summum bonum ou Bom Absoluto e mesmo aquelas éticas de base naturalista, como é o caso do utilitarismo de Stuart Nlill e de sistemas utilitaristas afins, não deixam de colocar essa tarefa no centro das respectivas filosofias. Por outras palavras, nem só as éticas metafísicas se dirigem para um ponto que relativiza todos os outros considerados eticamente relevantes. No caso do naturalis­mo antimetafísico (sendo o de Stuart Mill exemplar a este respeito) esse absoluto pode ter a designação de felicidade e exprimir claramente o fim último de um movimento teleo­lógico-. A este respeito, David Hume é a excepção notável e coerente de um naturalismo moral, em que não encontra­mos a exigência de um bem absoluto do tipo anteriormen­te referido8

. As com·enções e \·irtudes que eYentualmente poderiam preencher essa função, como a justiça, os deveres e direitos, têm a sua origem em sentimentos naturais ou pai-

6 CE 19] p. 59 (tradução).

- :'-ia doutrina moral de John Sruart l\lill, que é um sistema de utili­dades sociais, rodas as \·irrudes e de\·eres morais possuem um fundamento mais profundo, o qual: <<não é 11111 mero corolán'o lógico de doutrinas semndárias ou derimdas; eJtá implicado 'no próprio úgniftcado da 11tilidade 011 do Prindpio da Maior Felicidadl'>>, in L'tilitarismo, p. I 02.

> Ver por exemplo Knud Hakko nsen: <J-111111e re;eito11 a concepção seglln­do a qllal o:istem significados fixos e essenciais para instit11ições sociais como aproprie­dade e o contrato. Tais instituirões não são mais do que práticaS>>, in .\"atura/ Law and .\foral Pbilosoplfy, p. I 06.

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xões (simpatia e auto-interesse) e estão sujeitos às mutações do interesse público9

.

Por outro lado, aquela distinção entre juízos relati\-os e absolutos repete coerentemente a posição do Tractatus sobre as condições em que uma proposição tem sentido, assim como a reafirmação de que ética é da ordem do sem sentido. 1 o entanto, se é mantida a mesma concepção dos limites do sentido, enquanto uso da linguagem destinada a representar os factos do mundo, é possível afirmar que a CE se diferencia do Tractatus na contenção que este impõe relativamente à descrição do absoluto, ou pelo menos no respeitante à nossa capacidade de o expnmir. O que quer dizer que, se por um lado, aquilo que a CE faz, na linha da filosofia do Tractactus, é afastar a possibilidade de descrever com sentido o absoluto ético, por outro lado não descu­ra possibilidades de o expnmir. O que parece um jogo de palavras prefigura de forma muito interessante uma dupla forma do uso da linguagem, isto é o uso descriti\-o oposto

ao uso expressivo, duplicidade que passa a ter uma função decisin na filosofia da linguagem a partir do início da déca­da de 3010

. Este tópico será esclarecido mais à frente, mas

O argumento de D a\·id Hume - no Tratado da _'\-atureza Humana

- é que, ainda que, no plano da reflexão abstracta, possamos aderir à exis­tência de regras absolutas e incapazes de qualquer graduação, no plano da acção torna-se imprescindh·el assumir (muitas yezes inconfessadamente) a sua relati\-idade. As regras por que os homens se regem, por mais próximas do absoluto que se encontrem, de\·em admitir roda a espécie de \·ariações, de acordo com a incessante mutação dos negócios humanos. Ver a este respeita Parte II , Lino III , sec. VII.

10 Aprofundámos a importância do par expressão/ descrição, na fi­losofia da linguagem de \\'ittgenstein, em trabalhos anteriores: Ll/'ittgellJtein

011 Dissimulation and tbe Constitution C!f tbe lnner, Predicti!Jf Knon!/edge in !Vit­

tgenstein, "Vi\·ência e Significado", imrod. a \\'ittgenstein. (ltimos Esctitos

Sobre Filosofia da Psicologia, " La Ps\-chologie selon !e dernier \\ 'i ttgen~tein" e O lntnior.

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convém antes recordar as principais teses sobre o estatuto da ética, expostas no Tractatus.

O Tractatus expõe a relação entre linguagem, enquan­

to totalidade de proposições (4.001 ) e a realidade, en­

quanto conjunto de factos (1.1) 11• O que define essa relação

é a capacidade de a linguagem, assim entendida, representar qualquer facto. Talvez o passo decisivo na impressionan­

te e ,-ertiginosa argumentação do Tratactus corresponda

à afirmação da capacidade representativa da proposição.

<<A proposição é uma imagem da realidade>> (4.01 ) pelo que mos­

tra como as coisas se passam se é verdadeira (4.022). D aqui

decorre que, a cada proposição, seja ela simples ou comple­xa, pode ser atribuído o valor da verdade ou da falsidade.

Também resulta dessa função representacional que o sen­tido da linguagem, no seu uso, esteja dependente do valor de verdade das proposições; por outras palavras, qualquer

proposição que não possamos considerar nem verdadei­

ra, nem falsa, é destituída de sentido. Deve acrescentar-se que Wittgenstein justifica essa relação representativa com

a introdução do conceito de uma "forma lógica" comum

à linguagem proposicional e à realidade. A lógica é vista como verdadeiramente "transcendental" (6.13), na medida

precisa em que é condição de possibilidade do mundo e da

sua representação. Neste quadro, aquilo que se entende por "facto" (Tatsache) deve ser compreendido como aquilo que

11 .-\ numeração indicada é a do Tractatus que se desem·olve em sete p roposições, as quai s, po r sua ,·ez, se subdi,·idem (excepto a sétima) em proposições secundárias numa rede assaz complexa. As citações são da rra­dução de .\L S. Lourenço na edição conjunta do Tractatus e de Investigações Filosóficas, Lisboa: Gulbenkian, 1995 (2.' ed.).

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acontece no mundo e que é a sua substância 12. Poderá então

afirmar-se que a função primordial de qualquer proposição será a descrição de factos do mundo. <A p roposição é a des­crição de um estado de coúaS» (4.023), no espaço e no tempo, tal é uma afirmação recorrente em diferentes fo rmulações. Pelo menos essa qualidade descriti\·a é a que interessa ao filósofo do Tractatus, qualidade associada a uma filosofia

crítica da linguagem que remonta pelo menos ao progra­ma crítico kantiano. Neste, a razão teórica é suj eita a uma atitude crítica que corresponde a uma \·erdadeira re\·olução que a tradição não tinha assumido: apenas há conhecimen­to quando os nossos conceitos são usados ou aplicados a coisas no espaço e no tempo. E assim, como o programa crítico de K ant traça o s limites do uso dos conceitos do entendimento, o \X1ittgenstein do Tractatus estabelece distin­tamente a diferença entre o uso com sentido da linguagem e o seu uso

sem sentido. Será que essa separação entre usos da linguagem, com sentido e sem sentido, afecta outros campos fund a­mentais da experiência e da comunicação humanas, como os da ética ou da es tética? E se fo r o caso, qual o es tatuto a atribuir à ética? Repetimos a pergunta: se a CE es tiYer dependente da fi loso fia representacionista ou descritiYista do Tractatus representará mesmo assim a sua exposição de 29 aos H eréticos algo de novo? Consideremos o primeiro toplCo, ou seja, de que modo a concepção descriti\·ista da linguagem do Tractatus se repercute no es tatuto da ética.

12 Considerem-se as seguintes p roposições do Tractat/lj~ «0 1111111do é

tudo o que é o t"aSO>> (1.), << Ü mundo decompõe-se em f actoS>> (1.2), << 0 que é o mso, o f acto. é a existência de estados de coisaS>> (2), <<Cada coisa está como num e.rparo de possí­reis estados de coisas. Pos.ro pensar neste e.rparo razio. mas 11âo poSJo pensar a coisa sem o espa(O>> (2.0 13) . O s primeiros dois con juntos de proposições do ?i"tJtartu.r tra tam de definir as co ndições necessárias e suficientes para que o mundo seja representáYel enqua11to substancia no espaço e tempo infinitos.

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É fácil inferir dessa concepção que as proposições da ética não fazem sentido, já que não descrevem nenhum facto do mundo. O que é ético não pode deixar de incluir um valor e tudo aquilo que tem valo r está fora daquilo que acontece, tem que estar fora do mundo (6.41 ). "Por isso não pode ha­ver proposições da Ética." \Xfittgenstein deixa claro que <v4s

proposições não podem exprimir nada do que é mais elevado» (6.42), pois tal seria pretender que a linguagem pudesse exercer funções para além da representação dos factos mundanos. Não se pode sequer dizer que a ética tenha algo comum com a realidade, uma qualquer estrutura que permita re­presentar qualquer coisa no mundo e, desse modo, ser pos­sh·el qualificar uma proposição da ética como verdadeira ou falsa. Essa estrutura existe no caso da relação entre a linguagem e o mundo, isto é, os factos: a lógica, ou, melhor, a forma lógica (4.12).

Na ,-erdade, a lógica permite que a linguagem, sob a forma proposicional, represente o mundo, embora por sua yez tal forma não possa ser ela própria representada, por­que para isso teríamos de nos situar fora da lógica ou, acres­centa Wittgenstein, fora do mundo (4.12). No Tratactus é em 4.121 que encontramos as teses fundamentais sobre o par representar/ mostrar: <v4 proposição não pode representar a forma lógica, esta espelha-se nela. O que se espelha na linguagem, nós não podemos exprimir atra,·és dela. A proposição mostra a fo rma lógica da realidade. Aponta para e/cm. Por isso, no caso da forma lógica da linguagem dos factos, a impossibilidade de representar essa forma corresponde à impossibilidade de sair da lógica. A este respeito w ·ittgens tein afirma mesmo que: «0 meu pensamento fundamental é que as 'constantes lógicas'

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não são mandatárias, que a lógica dos factos não é delegável por man­datO>> ( 4.0312) 13

.

Wittgenstein repete na CE a doutrina já exposta no Tractatus: a linguagem proposicional descreve factos qua substância do mundo, por sua vez a linguagem ética não descreve, de modo nenhum, factos. Porém, talvez exprima algo absoluto e, se for o caso, deve fazê-lo através de uma forma específica, já não lógica. Existe essa forma? Embora Wittgenstein seja muito parco na referência a uma forma das proposições éticas (frequentemente oculta na nossa lin­guagem corrente), já no Tractatus é possível encontrar a afir­mação clara da sua existência, por exemplo, na proposição 6.422: «0 primeiro pensamento que ocorre quando se institui uma lei ética da forma 'D eves ... ' é: E o que é acontece se eu não o fizer?>>.

Assumindo, pois, que Wittgenstein reconhece a exis­tência de uma forma das proposições da ética, manifestada no uso de verbos como sollen ou ought, o problema da forma da linguagem ética, e da forma lógica da linguagem propo­sicional (as proposições que representam os factos), pos­sui dois aspectos diferentes. Em ambos os casos falamos de formas que não se deixam elas próprias representar, ou seja, tanto a forma da expressão ética como a forma lógica da linguagem dos factos apenas se mostram e não podem ser descritas. Por outro lado, a razão por que ambas não podem ser descritas é diferente, pois que no caso da linguagem da ética eu não posso descrever uma expressão na primeira pessoa do tipo "deves ... , ou devo ... ": no juízo ético não é possível colocar-me "fora" da primeira pessoa para o expri-

13 Outra tradução possí,·el da mesma frase será: <<0 meu pen.ramento f undamental é que as 'constantes lógicas' não representam (nicbt rertreten). Q ue a lógica dos f actos não se deixa representar (!licbt rertreten laerrt).»

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mir 14• Nos seus diários (1931) Wittgenstein \·olta a referir-se

à forma da proposição ética, e deixa claro o seu estatuto expressi\·o: «Uma proposição ética diz 'tu deves fazer!' ou, 'isto é, o

bem!: mas não 'Estas pessoas dizem que isto é o bem '. Uma proposi­ção ética, contudo, é uma acção pessoal e nenhuma constatação de um facto. Assim como uma exclamarão de admirarão.»15

No caso da forma lógica da linguagem dos factos, a impossibilidade de representar essa forma corresponde à

impossibilidade de sair da lógica.

Deste modo, a impossibilidade de descrever o que se espelha na linguagem, que se encontra como tese principal do Tractatus, continua a ser parte integrante da filos o fia da CE. Acresce que, no caso de proposirões éticas aquilo que não po­demos descrever é a ma Jórma e>..pressiva, típica da primeira pessoa, que caracteriza estas proposições. No uso de termos éticos

1' ~uma com·ersa com o Círculo de Viena, cerca de um ano após a

CE, \\.'irrgemrein nora que: <<Aquilo que é ético não pode ser eminado. Se pudesse e."\plicar a essénáa do ético .ró por 111eio de uma teo1ia, então aquilo que é ético não lena qualquer mlor .. \:o fim da lllinba conferência .robre ética )alei na p1itmira pessoa. Penso que isto é algo ej·sencial. Aqui nada 111ais bá a constatar; tudo o que posso .fazer é continuar como indiriduo e .falar na pn!mira pe.rso{l>>, in L!tdlllig 11/"ittgenstein and tbe I /ienna Circle, p. 117.

15 Lud\\·ig \X .irrgensrein, Denklmregungen - Tagebiicber 1930-32/1936--37, pp. 43-4. O termo <<exclamaçãO>> (em alemão A usmjj reforça o sentido expressi,·o do juízo ético e ,·incula a forma expressi,·a com uma vivência particular. ~os seus últimos escri tos, dedicados ao que se costuma designar fil osofia da psicologia, \Virrgensrein dá uma atenção especial à diferença crucial entre os usos expressi,·o e descritiYO da linguagem, sendo que apenas aquele se encontra ,·inculado a uma Yivência. :'-!uma passagem das Inrestiga­rões Filosóficas, 11 , deparamos com um bom exemplo do singular poder ex­pressi,·o da exclamação, com o objectiYo de salientar a importante diferença entre os usos atrás referidos: <<Oibo para 11111 ani111a/,· pergun/a/11-llle: 'O q11e é que 111 ds.' E 11 respondo: 'u111 coelbo '. - Olbo para uma paisagem; de repmte um coelbo ocor­re à distáncia. E 11 excla111o ~! : A111bos. o relato e a exclamarão, são e"'pressào da percepçâo e da expenincia rimai ( \"eberlebnjrrer) .. \fa.r a e.wla111acào é-o num .rentido dijerente do relato. Escapa-se de nós. - Relaciona-se com a e,,pniência do mesmo 111odo que o g1ito co111 a dom, in Im·estigações FilosóficaJ·, op. cit .. II , xi.

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como "bom", "bem", etc., a sua gramática é determinada

pelo uso da linguagem na primeira pessoa e apenas nesse uso é possível o juízo absoluto de valor. Essa circunstância é bem ilustrada num exemplo que aparece na CE. Se al­

guém me disser que jogo mal ténis, poderei responder, sem qualquer censura moral daqueles que assim opinam, que isso é verdade, mas que também não quero jogar melhor. No entanto, se depois de uma determinada acção, for nota­do por outros que o meu comportamento é inaceitável, não me é permitido (eticamente) responder que isso me é indi­ferente e que não quero portar-me melhor. Acontece que o meu interlocutor não iria agora re,-elar, como no caso do jogo de ténis, uma certa compreensão pela minha respos­ta e sem dúvida responderia, «Bem, devias querer comportar-te melhom16

• Wittgenstein nota então que: <<A essência desta dife­rença parece-me ser obviamente esta: Todo o juízo de valor relativo é

uma mera afirmação de factos e pode por isso ser emitido de tal forma que perde qualquer aparência de um juízo de valor.»17 1 -este caso a minha resposta não poderá consistir na relativização do valor de um acto ou atitude determinados por um "dever fazer isto ou aquilo". Apesar da consciência de jogar mal, poderei sempre afirmar que não me importo de jogar as­sim, mas a consciência de me comportar mal, ou a corres­pondente consciência e dever de me comportar bem, nesta ou naquela circunstância, não permite, ao mesmo tempo exprimir indiferença. Não apenas eu próprio, consciente dessa acção ou comportamento, mas também o interlocu­tor, não podemos ser indiferentes ou sequer relativizar a sua qualidade negativa. A verdade é que a expressão dessa consciência (moral) "toca" no absoluto. Essa consciência de um valor ético, que não permite a minha indiferença, só

16 CE [6) p. 55 (tradução).

,- Ibid.

25

pode ser experimentada em expressões da primeira pessoa, bastando pensar como a descrição na terceira pessoa dessa minha atitude de indiferença perde a sua qualidade ética. A linguagem da ética não pode deixar de ter a dimensão expressiva como sua marca essencial. N este sentido, e tendo em conta o que já vimos das posições de Wittgenstein sobre o es tatuto das proposições éticas, é possível incluir o seu pensamento sobre ética nas o rientações expressi,·istas 18 da filosofia mo­ral actual. Estas retiram à linguagem da ética qualquer quali­dade cognitivista e realista, ou seja, distinguem radicalmen­te a ética de uma linguagem proposicional sujeita a con­dições de verdade. Pelo contrário, o filósofo expressivista defende que as proposições éticas exprimem antes desejos, emoções ou prato-atitudes de diferente teor. O enunciado de uma norma moral é para o expressi,·ismo a manifesta­ção de uma adesão emocional, que não põe de qualquer modo em causa a capacidade de deliberar em situações par­ticulares. No entanto, se é Yerdade que a posição de Wit­tgenstein é claramente anticogniti,·ista e não realista, o seu tipo de expressivismo reconduz-se em grande parte a uma forma gramatical do uso de um ought ou de um sollen. Pensa­mos que este aspecto o aproxima de certo modo das éticas deontológicas, ainda que mantenha o seu vínculo expres­sivista. No entanto, uma teoria deontológica ou do de,·er

'" Representantes contemporâneos des ta o rientação em filoso fia mo ral são .\llan Gibard, lVi.re Choices, Apt Feelings, A Theoo· of .'\"ormatire

Judgemm t (1992). e Simo n Blackburn, Spreading the lVord (1984) . . \lguns au­tores preferem a designação "emotiYismo", já que os juízos mo rais expri­mem e manifestam emoções e não crenças. Com uma ou o utra designação, o fundamental é que co nco rdam na separação e~ trita entre j uízo~ facruai s e juízos com Yalo r ético : os primeiros podem ser ,·erdadeiros o u fa lsos, os segundos são a mera expressão de atitudes ou sentimentos, e não podem ser nem ,·erdadeiros, nem fal sos. A proximidade de \X"ittgemtein a es ta co ncepção é e,·idente, mas a sua co mpreensão da ética na sua relação com o absoluto é de uma o rdem co mpletamente diferente.

26

está geralmente interessada em universalizar ou objectivar os juízos ou proposições da ética, do tipo "devo (p)", por exemplo, "devo dizer a verdade" e esta é uma regra tão universal como uma lei da natureza.

Torna-se, então, importante verificar se, por definição, a linguagem ética é sempre expressiva, quais as consequên­cias, para além da manifesta impossibilidade de descrever a

forma dessa expressão. Já verificámos como esta se produz na primeira pessoa, e perde a sua qualidade ética se usarmos a linguagem da terceira pessoa. Por exemplo, se "eu de,-o fazer p" for substituído por uma descrição do tipo, "aquela pessoa diz que deve fazer p". Sendo assim as expressões éticas talvez espelhem (embora não representem) e apon­tem para um elemento especificamente ético. Esta carac­terização da expressão ética implica também um aspecto decisivo que reside na impossibilidade de encontrar uma fundamentação última que se encontre, por assim dizer, fora da própria expressão. Expressões como "de,-es fazer isto porque existe uma norma externa que te obriga", ou "não deves lançar a bola para trás do último defesa da equi­pa adversária porque as regras do futebol não o permitem", não se posicionam no domínio da ética, embora se possam colocar no domínio jurídico ou do comportamento social em geral, determinado pelo costume.

Porém se é ,-erdade que a linguagem não pode des­cre,-er o ,-alor ético, e se o sujeito tem que reconhecer que o mundo, tal como ele se nos apresenta representa­do nas nossas proposições, não tem qualquer ,-alor, deve igualmente reconhecer-se que uma coisa é a forma como o mundo é, outra coisa é que o mundo pura e simplesmen­te é. A este pensamento corresponde aquilo que podemos designar e>..pen'éncia mística, a qual respeita a um domínio do absoluto que \'\iittgenstein funde com o absoluto ético, no sen-

27

tido atrás referido 19• Na CE o absoluto ético e o absoluto

rnistico coexistem, mas enquanto o primeiro não é descrito, porque, como vimos, o juízo na primeira pessoa com a for­ma "devo actuar assim" é uma expressão cuja característica ética consiste precisamente em não poder ser objecto de descrição na terceira pessoa, o absoluto rnistico pode de al­guma forma ser descrito. A referência a certas vivências no plano do místico serve a Wittgenstein para exemplificar a natureza absoluta da ética, o que à primeira vista não deixa de ser estranho, reconhecendo ele que existe uma forma da proposição ética manifesta num dever (ought, sollen). No en­tanto é lícito afirmar que na CE a ,-ivência e a identificação do absoluto se encontram sobretudo associadas à lingua­gem místico-religiosa, e não tanto à forma da linguagem ética. Esta toca antes o absoluto. O exemplo proYavelmen­te mais marcante dessa associação da ética àquele tipo de viYência é aquele em que, na CE, nos assombramos com a existência do mundo: <<Acredito que a melhor maneira de a des­crever é dizer que, quando a tenho, fico assombrado com a exzstência do mundo. / Tenho então tendência para usar frases como "Como é

extraordinán·o que alguma coúa possa existir" ou "Como é extraor­dinán'o que o mundo possa exzstir.»20 Todas estas são vivências expressas numa linguagem sem sentido: <<E a este respeito, a pn!mira cozsa que tenho a dizer é que a expressão verbal que damos a estas expen'ências não tem sentido.~>21 Também aqui a fidelida­de à filosofia do Tractatus é total, mesmo que nessa obra o uso do símile como instrumento de descrição de vivências quase não tenha lugar. Porém, a continuidade com a filoso­fia daquela obra é evidente, pois mesmo que empreguemos

19 Também neste pomo a CE segue o Tractat11s: <<0 q11e é mútico é (/l1f

o llllllldo exista, não f!L!!l.Q o 1111111do é>> (6.44). 2" CE [11], p. 63 (tradução). 21 Ibid. III] , p. 65 (tradução).

28

símiles adequados para exprimir certas ,-i,-ências do domínio

mencionado, a Yerdade é que: «assim que tentamos deixar cair o símile, e simplesmente enunciar os factos que estão por detrás dele, descobnmos que tais factos não existem»22

.

Um outro aspecto da CE que deve merecer a nossa atenção é a relação das reflexões nela presentes com a filo­sofia ética de G. E . Moore. Ainda que Wittgenstein adopte a acepção de Moore sobre o objecto principal da ética, não segue este no aspecto crucial em que se recusa a atribuir sentido aos juízos éticos por definição fora dos limites do uso extra factual da linguagem. Por outro lado, é ,-erdade que coincide com o autor dos Pn.nczpia Ethica na recusa de

fazer depender qualquer juízo ético de um facto natural. Com-ém, pois, explorar alguns aspectos da relação entre os dois filósofos no domínio da ética, quer no que respeita ao que os distancia, quer no que os aproxima.

A única referência a um autor e a uma obra sobre éti­

ca que aparece na exposição é a :--Ioore e aos seus Principia Ethica, obra publicada em 1903, que se distingue pela sua crítica ao que designou "falácia naturalista" na tradição do pensamento ético. Embora Moore não seja considerado pelo próprio Wittgenstein uma figura cimeira da filoso­fia, a sua presença ao longo da carreira de \Vittgenstein, sobretudo após o Tratactus, é assinalável. Sobre os Princi­pia, Wittgenstein terá afirmado que a falta de clareza sobre muitos pontos não desaparecia pelo facto de os repetir3

.

Porém, em primeiro lugar, é digno de nota que :--Ioore te­nha sido talvez o filósofo com quem durante mais tempo Wittgenstein com-i,-eu, desde os seus primeiros tempos em Cambridge, antes da Primeira Guerra Mundial, até aos seus

n Ibid. !15) , p. -1 (tradução).

2·; \'er de Brian :\IcGuiness, !r'ittgen.rtein in Cambtidge, p. 4.

29

últimos dias. Bas ta pensar que pouco tempo antes da sua morte Wittgenstein habitou na casa dos l\Ioore, onde dei­xou algum espólio com derradeiras re fl exões. Com Moore conseguiu manter um relacionamento sem rupturas, ainda que com mal-entendidos, tão frequentes no conjunto das suas relações pessoais ou académicas. Bertrand Russell é tah-ez o caso mais referido e exemplificativo desse tipo de ligação tumultuosa que caracterizou a vida afecti,·a do fi ­lósofo24. É de des tacar o conjunto de obsen ·ações que, no último ano e meio da sua vida, \X1i ttgenstein escre, ·eu sobre a filoso fia de i\Ioore, em particular acerca do conhecimento do senso comum e do mundo externo. O interesse que nele despertaram os ensaios de Moore sobre es tes temas está na génese de refl exões que G. E. Anscombe, e G. H. Von Wright, editaram com o título On Cettainry (1969). Também te,·e significativo impacto, na e\·olução do seu pensamento mais tardio, aquilo a que se chama o "paradoxo de i\ foore" , um tópico cujo interesse se es tende para além da literatu­ra sobre \X.ittgenstein. Moore terá chamado pela primeira ,·ez a atenção para a importância filosó fica da contradição entre frases como "está a chover" e "não acredito que está a chm·er" , pro feridas na primeira pessoa do indicati,·o pre­

sente, e a ausência de contradição desses mesmos conteú­dos, quando proferidos na terceira pessoa: "ele diz que es tá a cho,·er e não chm·e" ou quando proferidos na primeira pessoa, mas num tempo passado. Tendo achado da maior importância es ta descoberta, \Vittgenstein chega a escrever a i'-. foore, em carta de Outubro de 1944, que: «Isto mostra precisamente que a lógica não é tão siiJ!plf.r como os lógicos pensam

que é. Concretamente que a contradirão não é a coisa única que as pessoas pensam que é. 1Yão é a única fo rma logicamente inadmissível

' ' :\ relação com Russe ll é tratada com bastante pormenor por Brian \!cGuiness. ibid. , especialmente o período correspondente à chegada a Cambridge até à publicação do 'li'actatus.

30

e é, em certas circunstâncias, admissível. E mostrar isto parece-me ser o mén'to princzpal do teu texto. l'\-uma palavra parece-me que fizeste uma descobe1ta e que a devias publicar.»25 De realçar ainda que Moore foi, para além dos mais importantes dos seus cor­

respondentes, o autor de exemplares transcrições de lições de Wittgenstein.

Para fixar o tema da sua refl exão, \Vittgenstein usa a

mesm a definição de Moore, ou se ja: <V'i Ética é a investiga­ção geral sobre o que é bom.» A falácia que 1\·foore introduz, e critica como tópico fundamental na literatura filosófica

ética, consis te essencialmente em reduzir a noção de bom ético a outros elementos da realidade, retirando-lhe assim

um valor intrínseco. Como se, por analogia, explicássemos

a nossa percepção de am arelo mediante a referência ao pro ­cesso físico e neurológico que origina em nós uma sen sação

que designamos com esse nom e de cor. Nas palavras de

Moore: «a falácia naturalista implica sempre que quando pensamos 'isto é bom: aquilo em que estamos a pensar é que a coisa em ques­tão sustenta uma relação determinada com qualquer outra coisa.»26

O propósito de Moore é a demonstração de que existem \-alores como o bem (ou o belo) que possuem um \-alor

intrínseco e que não podem ser definidos com recurso a

qualidades ou factos doutra esfera. Tal com o acontece com

o bom ético, uma coisa bela, por exemplo, uma sonata de Mozart, possui o \-alo r da beleza, no sentido em que é intrin­

secamente bela e não porque, por exemplo, os sons se jam

articulados segundo uma lógica que desperta certo tipo de emoções. Esse estatuto intrínseco que caracteriza singular­

m ente o bom e o belo torna, aos olhos de Moore, a estética

particularmente próxim a da ética. Ambas têm como o bjec­

to \-alores intrínsecos e ambas são igualmente su jeitas ao

2; Lud\\·ig \\ 'i rrgensrein, Camlmdge Letters, pp. 315-31"'. 26 G. E . :'doure, Principia Etbica, p. 38.

31

perigo da falácia naturalistar . É possh-el que a proposição de \XIittgenstein no Tractatus, segundo a qual a ética e a esté­tica são uma mesma coisa (6.421 ) e depois repetida na CE­«num sentido ligeiramente mais vasto, de jacto num sentido que inclui o que acredito ser a parte mais essencial daquilo a que geralmente se chama ((Estética "»28 - tenha ainda a marca de discussões dos

Principia, em que ele participou, já como membro daque­la parte da elite intelectual de Cambridge das duas primei­ras décadas dos anos 20, elite que inclui Bertrand Russell, G. E. i\Ioore ou J. i\'L Keynes. ~Ias mesmo num contexto intelectual e académico, em que os Princzpia E.thica apareciam como uma Bíblia (muito mais do que os Principia Mathema­tica de Russell), o jovem Wittgenstein sempre se distanciou criticamente da obra ética de Moore. Como observa Brian J\IcGuiness: <<Ele era crítico dos Principia de Moore, desde logo pelo seu estilo [ ... ], mas também pelo conteúdo: a tentativa de descrever a natureza do bom.»29 Não é certo, porém, que seja essa a inten­ção primordial de .Moore, pois a leitura da obra mostra um Moore sobretudo preocupado em sah-ar a ética da falácia naturalista, ou do que ele pensa,-a serem os reducionismos diversos que tradicionalmente ameaçam a ética. Essa tarefa só poderia ser levada a cabo se conseguisse demonstrar que os conceitos éticos possuíam um ,-alor intrínseco. O belo e o bom são, nos termos de l\Ioore «valuable wholeS>>, tota­lidades de valor. Mais concretamente: «são estas totalidades complexas, elas próprias- e não qualquer outro elemento constituinte ou suas caractedsticas - que formam o fim raàonal último da acção humana e o único CJitério do progresso soàa/»30

.,- Ibid .. em Prinapia Etbica, \·er particularmente cap. \ '1, "The ldeal".

18 CE [3], pp. 49-51 (tradução).

~9 Brian ;\IcGuiness, op. cit. , p. 4.

;., G. E. \Ioore, op. cit. p. 189.

32

De facto, na história da filosofia, como já referimos, g rande parte dos grandes sistemas de filosofia moral e res­pecti,-os autores identificaram um Bom Supremo que funcio­nava como o último fim da vida ética. Os mais decisivos do ponto de vista da importância da história da ética, assim como da influência que exerceram na evolução da inves ti­gação ética, foram sem dúvida os sistemas de Aristóteles na antiguidade clássica e de Kant, na modernidade. O pri­meiro identifica o bem supremo com a felicidade enquanto actividade teórica exercida de acordo com a virtude31

• Por seu lado, Kant apresenta o summum bonum como a completa subordinação do homem à lei moral, de tal forma que a vir­tude da obediência passa ao plano da santidade. Qualquer das formulações, por mais diferentes que sejam na substân­cia e nas influências que historicamente exerceram, pratica aquilo que \Xlittgenstein recusa, ou seja, o uso da linguagem na definição de conceitos metafísicas. Na sua perspectiva o summum bonum não poderá ser definido ou descrito por

qualquer linguagem.

A radical desconfiança de Wittgenstein relativamen­te à noção de progresso na metafísica deve-se, em primei­ro lugar, à sua nunca abandonada posição face aos limites do uso da linguagem . Ao longo da sua carreira, desde a elaboração do Tractatus até aos seus últimos escritos sobre filosofia da psicologia, ele permanece fiel ao princípio me­todológico segundo o qual a linguagem não pode represen­tar nada fo ra do mundo, seja na acepção daquela primeira obra como conjunto de factos, seja, numa perspectiva mais tardia, como totalidade de significados produzidos nesta ou

·; 1 Ver po r exemplo Aristóteles, Ética a .\ .icólllano, Lino X, VI-VIII. :\ felicidade arisro télica (mdai111onia) separa-se claramente de qualquer tipo de praze r. I~ antes associada por :\ristó teles à ati,·idade teórica (frequente­mente traduzida por co ntemplação), a qual não tem outro fim que não seja ela própria.

33

naquela forma de vida, em jogos de linguagem e práticas associadas. O que sofreu uma mudança importante foi o espaço daquilo que pode ser dito com sentido. Efectiva­mente, na fase da sua carreira geralmente referida como a do segundo Wittgenstein ou do Wittgenstein após Tractatus, desaparecem as restrições impostas ao uso da linguagem, as quais não permitiam qualquer incursão em domínios como a ética ou estética32

, no sentido em que o uso de termos éti­cos, "bom", "mau", "bem", "mal", "certo" "errado", etc., deYem a sua existência a jogos de linguagem cujo sentido deixa de estar determinado pelo relacionamento com os factos.

Não sera Incorrecto afirmar que, como seres huma­nos, nascemos e evoluímos num mundo estruturado por valores que determinam o meu comportamento e o daque­les que aí vivem comigo. A minha relação com esses valo­res não é apenas exterior como quando obedeço, ou não, a uma regra de um clube de que sou membro, ou mesmo quando não cumpro uma norma jurídica. A razão é que, por assim dizer, a minha exposição aos ,-alores no decurso da ,-ida real é indissociável do nascimento de disposições internas que são qualificadas como excelências de carácter ou , -irtude. I este sentido, tais ,-alores associados, são antes determinações internas, ou disposições segundo a formu­lação de Bernard \Villiams que, por sua vez se inspira em Aristóteles. Diz este autor que: «uma disposição ética não é sim­plesmente um padrão pessoal de conduta, ao qual pode ser adicionado de modo contingente uma tendência para deplorar ou lamentar a sua

32 O início dessa mudança para "um no\·o modo de pensar", segun­do a informação do próprio \\ 'ittgensrein no Prefácio de 1945 às Im·estigações

Filo>·ójicas, de\·e situar-se precisamente no ano do seu regresso a Cambridge, em 1929, o mesmo ano em que profere a conferencia sobre ética. <<Desde que

há 16 anos comecei de noro a ompar-me de Filosofia, tire que reconbecer erros grares 110

que eJcrni n& meu pn!miro lirrO>>, in Im·estigações rlloJójicas, op. cit. p. 16 7 .

34

ausência noutras pessoas. É uma espécie de disposição que, ela pró­pria, estrutura as nossas própn·as reacções a outroS>>33

Problemas éticos como saber se existe algo que seja bom em si mesmo, se uma acção que em si parece ser in­trinsecamente boa, mas que produz maus efeitos, continua a poder ser julgada boa em si. Por exemplo, dou a alguém, aparentemente necessitado, uma esmola (acção que será avaliada como intrinsecamente boa) e depois verifico que essa pessoa gastou de forma pen-ersa esse dinheiro. Poder­-se-á argumentar que não sou responsável pela forma como o outro gastou o dinheiro que lhe dei com boa intenção, e por isso a minha acção foi, em si mesma, boa. ~o entan­to, o argumento contrário defenderá que o valor ético de uma acção se mede, não apenas pela intenção que está na sua origem, mas também pelas consequências que produz. O que conduz de imediato a outro problema associado, e que pode ser formulado nos seguintes termos: do ponto de vista ético, uma acção é mais do que a intenção que a gera, e se tal for o caso, pode ter um valor ético separá,-el da

subjectividade ou, por outras palanas, do sujeito da acção. Podemos concluir que a discussão esbarra num paradoxo que, afinal, há muito se encontra identificado na filosofia da ética como uma fundamental oposição entre posições deontológicas e consequencialistas. As primeiras baseiam o valor ético da acção num "deYer-fazer" que pressupõe a subjectividade ou perspectiva da primeira pessoa. Por sua vez, as posições consequencialistas situam o ,-alor ético de uma acção nas consequências ou efeitos da acção, de modo que, em princípio, maus efeitos anularão boas intenções. I -o caso de Wittgenstein, como ,-imos, a identificação de uma forma da proposição ética do tipo, "tu deves .. . " é iso­lada de qualquer característica consequencialista: não me

.u Bernard \'iiilliams, Etbics and tbe Limits of Pbilosopi?J', p. 3-.

35

devo perguntar pelas consequências da acção. Se esta admi­te recompensa, tem que existir na própria acção.

Porém, neste âmbito, a discussão complexifica-se pra­ticamente sem limite, à medida que os exemplos se multi­plicam e são aprofundados no quadro dos dois tipos re­feridos de argumentação. É admitido, em grande parte da im-estigação filosófica contemporânea, que os problemas da ética podem ser resolvidos, quer no quadro de uma po­sição deontológica, quer consequencialista, o que equivale a admitir a existência de dois pontos de vista principais, com metodologias diferentes e mesmo contraditórias. O filósofo Thomas 1 agel foi dos que mais influenciou a investigação recente sobre a tensão entre uma perspectiva objectivante, associada ao consequencialismo, e outro pon­to de vis ta relativo particular, do agente, própria da deon­tologia. Nas suas palanas: «ver o problema a esta luz significa ver simultaneamente o apelo consequencialista de uma ética de agente neutro e a força contrán·a de uma ética deontológica relativa ao agente. Uma perspectiva oijectiva, separada, apanha tudo e fornece um ponto de vista sobre a escolha, a partir do qual todos os decisores podem concordar sobre aquilo que deve acontecer. Mas cada um de nós não é apenas um si mesmo (f.f/1) oijectivo, mas uma pessoa particular com uma perspectiva particular; actuamos no mundo a partir dessa perspectiva e não apenas do ponto de vista de uma vontade separada, que selecciona e rqeita situações do mundo. É por isso que as nossas escolhas não são meramente escolhas acerca de estados do mundo, mas escolhas de acções»34

.

Também referimos que não é possível falar de um pensamento ético em Wittgenstein sem um elemento mís-

3' Thomas ~age!, in The Vieu; Fro111 .':ou;here, p. 183.

36

tico-religioso associado35. Este tem origem nos autores que

verdadeiramente o influenciaram e dos quais nunca se afas­tou. Precisamente o contrário do que aconteceu nas outras áreas da filosofia a que dedicou toda a sua carreira, nomea­damente no que se refere a Frege ou a Bertrand Russell, cuja crítica é o outro lado da gestação de um novo pensar filosó fico. 1 o domínio da ética são K.ierkegaard e Tolstoi as referências fundamentais de uma Yida espiritual apenas a si próprio confessada. É a textos como os diários, exercí­cios de autoconhecimento, que se deve recorrer para me­lhor compreender a posição expressa por \Vittgenstein na conferência sobre ética de 29 acerca do religioso e do mís­tico nas respectivas conexões com a ética. É também aí que melhor se capta o seu diálogo com o cristianismo, sempre sincero e tenso. Afinal, aqueles são autores para quem os clássicos temas da ética têm implícito o elemento religioso, a tal ponto que não existe juízo ético que não seja prm·e­niente desse outro indizível dizh·el que é a viYência religio­sa. A estes autores acrescenta-se a Bíblia, em particular o h -ovo Testamento. Ilsa Soma,·illa lembra, nas suas notas ao diário publicado com o título Denkbewegungen>6 (Movimentos do Pensar), que o interesse pela Bíblia terá sido despertado, por altura da Primeira Guerra :Mundial, pela leitura do lino de Tolstoi, Curta Apresentação do Evangelho, que o acompa­nhou ao longo dos anos. Nos diários dos anos 1930-32 e 1936-37, encontram-se as mais genuínas expressões de uma voz interior que são, afinal, a fonte do que é transmitido publicamente sobre o tema da ética.

35 No seu lino The .V[ptical in W"ittgenstein 's Ear!J LVniil~s, James R. Atkinson, aprofunda o significado e papel do elemento místico na filosofia do primeiro \\'ittgenstein.

36 L. \Vittgenstein, Denkbeu;egungen - Tagebiicber 19 30-19 32/ 19 36-

-1937, op. cit.

37

De qualquer forma, a CE, ao acolher a coexistência de todos esses elementos, não deixa de ser uma brilhante tentativa de encontrar uma linguagem para aquela tendên­cia do espírito humano, a ética, que deve merecer o mais profundo respeito.

António Marques

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LECTURE ON ETHICS

CONFERÊNCIA SOBRE ÉTICA

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LECTURE ON ETHICS

LUDWIG WITTGENSTEIN

Established text of the Lecture- Ms 139B Normalized

[x] página real do manuscrito (no lino indica a página seguinte).

Texto fixado/normalizado- original sem parágrafos.

Zamuner, Edoardo et ai. (ed.) Lecture on Ethics. Malden, l\IA../ Chichester: \Xlilley Blackwell, pp. 42-51.

Ladies and Gentlemen.

Before I begin to speak about my subject proper let me make a few introductory remarks.

I feel I shall have great difficulties in communicating my thoughts to you and I think some of them may be di­minished be mentioning them to you beforehand.

The first one, which almost I need not to mention, is, that English is not my native tongue and my expres­sion therefore often lacks that precision and subtlety which would be desirable if one talks about a difficult subject.

Ali I can do is to ask you to make my task easier by trying to ge t at my meaning in spite of the faults which I will constantly be committing against the E nglish grammar.

CONFERÊNCIA SOBRE ÉTICA

LUDWIG WITTGENSTEIN

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Texto fixado da Conferência- Ms 139B Normalizado

[x] página real do manuscrito (no lino indica a página seguinte).

Texto fixado / normalizado- original sem parágrafos.

Zamuner, Edoardo et a/. (ed.) Lecture on Ethics. Malden, !VIA./ Chichester: Wille~· Blackwell, pp. 42-51.

i\1inhas senhoras e meus senhores.

Antes de começar a falar sobre o meu tema propria­mente dito, deixai que faça algumas observações introdu­tórias.

Sinto que \"OU ter grandes dificuldades em \·os comu­

nicar os meus pensamentos e penso que algumas delas po­dem ser atenuadas se as mencionar desde já.

A primeira, que quase não preciso mencionar, é que o inglês não é a minha língua materna, e por isso à minha expressão falta-lhe frequentemente o rigor e a subtileza que seriam desejá\·eis se falamos sobre um tema difícil.

Tudo o que posso fazer é pedir-Yos que torneis a mi­nha tarefa mais fácil, procurando captar o sentido do que vos quero dizer, apesar dos erros em que irei continuamen­te incorrendo contra a gramática inglesa.

46

The second difficulty I will mention is this, that prob­ably many of you come up to this lecture of mine with slightly wrong expectations.

And to set you right in this point I will say a few words about the reason for choosing the subject I ha,-e chosen: when your former secretary honoured me by asking me to read a paper to your sociery·, my first thought was that I would certainly do it and my second [1]

thought was that if I was to have the opportunity· to speak to you I should speak about something which I am keen on communicating to you and that I should no t misuse this opportunity' to give you a lecture about, say, logic.

I call this a misuse for to explain a scientific matter to you it would need a course of lectures and not an hour's

paper.

Another alternative \vould have been to give vou what is called a popular-scientific lecture, that is a lecture

intended to make you believe that you understand a thing which actually you do not understand, and to g ratify what I belie,-e to be one of the lowest desires o f modem people,

namely the superficial curiosity' about the latest discoveries of science.

I rejected these alternatives and decided to talk to you about a subject which seems to me to be of general impor­

rance, hoping that it may help to clear up your thoughts about this subject (even if you should entirely disagree whit what I \.Vill say about it).

47

A segunda dificuldade que quero mencionar é esta, que prm·ayelmente muitos de vós viestes a esta minha confe­rência ' com expectativas algo erradas.

E para vos colocar na perspectiva certa quanto a este ponto, direi algumas palavras sobre a razão da escolha do tema designado: quando o vosso anterior secretário me honrou pedindo-me que apresentasse um texto na vossa sociedade, pensei em primeiro lugar que decerto o faria e, em segundo lugar, [1]

que se ia ter uma oportunidade de vos falar, deveria fazê-lo sobre alguma coisa que me entusiasmasse comunicar­-vos e que não devia desaproveitar esta oportunidade, pro­ferindo uma lição sobre, digamos, lógica.

Chamo a isso desaproveitar porque, para vos explicar uma matéria científica, seria necessário um curso e não um texto de uma hora.

Uma outra alternativa teria sido ter-vos apresenta­do aquilo a que se chama uma conferência de din1lgação científica, ou seja, uma conferência destinada a fazer-\·os crer que compreendeis uma coisa que na verdade não com­preendeis e, dessa forma, satisfazer o que acredito ser um dos mais rasteiros desejos das pessoas modernas, nomea­damente a curiosidade superficial acerca das últimas desco­bertas da ciência.

Rejeitei es tas alternati\·as e decidi falar-vos sobre um

tema que me parece ser de importância generalizada, espe­rando que possa ajudar a esclarecer os vossos pensamentos sobre este assunto (mesmo que \·enhais a discordar com­

pletamente com o que Y O U dizer sobre a matéria).

~.T.: Traduzimos " lecrure" por "conferência" e não por "lição", o que está de acordo com o termo alemão "Vonrag" usado pelo próprio \\ .irrgenstein ao referir-se à exposição aos Heréticos - proferida na Herecic

Society, Cambridge CniYersitY, :\!m·embro ele 1929.

48

i\Iy third and last difficulty is one which, in fact, ad­heres to most lengthy philosophicallectures and is this, that the hearer is incapable of seeing both the road he is led and the [2]

goal which it leads to.

That is to say: he either thinks 'I understand ali he says, but what on earth is he dri\·ing at' or else he thinks 'I see what he is driving at, but how on earth is he going to get there?'

Ali I can do is, again, to ask you to be patient and to hope that in the end you may see both the way and where it leads to.

- I will now begin.

My subject, as you know, is ethics and I will adopt the explanation of that term which Professor ~'doore has given in his book Principia Ethica.

He says: 'Ethics is the general enquiry into \vhat is good.'

l ow I am going to use the term 'ethics' in a slightly wider sense, in a sense in fact which includes what I believe to be the most essencial part of what is generally called

'aesthetics'.

49

A minha terceira e última dificuldade é uma das que se associam a g rande parte das conferências filosóficas mais extensas e é isto que o ouvinte é incapaz de ver em simultâ­neo na estrada por onde é encaminhado [2]

e a meta para onde ela conduz.

Com isto quero dizer o seguinte: ou pensa, "com­preendo tudo o que ele diz, mas, co'os diabos, aonde quer ele chegar" , ou então pensa, "estou a ver qual é o objectivo, mas, co'os diabos, como vai conseguir lá chegar?"

Tudo o que posso fazer, repito, é pedir-vos que sejais pacientes e esperar que no fim sejais capazes de ver ao mes­mo tempo o caminho e a meta aonde ele conduz.

-Vou então começar.

Como sabeis o meu tema é a Ética e adoptarei a ex­plicação desse termo que o Prof. l\'loore deu no seu livro Principia Ethica.

Diz ele: ''A Ética é a investigação geral sobre o que é o bem."2

Agora vou usar o termo "Ética" num sentido ligeira­mente mais vasto, de facto num sentido que inclui o que

1 N.T.: No original inglês: <<Etbics is tbe general enqNÚ]" into wbat is good.>> De facto, a formulação é ipJis m-bis a de G. E . ;\Ioore (1873-1958) em Pn"nci­

pia Ethica (Cambridge: CU Press, 1903, reimpressão, 1922, p. 2.). i--Iais pre­cisamente aquilo que ;\foore explora no seu lino é o problema de saber o que é intrinsecamente bom. O bom (poder-se-ia dizer, a bondade) é simples e não analish·el e diz-se não apenas acerca de condutas, mas também de ,-alo res, nomeadamente de ,-alo res estéticos como o belo. A noção de "in­trinsecamente bom" rem lugar no pensamento ético de \X .irrgensrein, se o identificarmos com a noção de juízo de valor absoluto.

50

And to make you see as clearly as possible what I take to be the subject matter of ethics I wili put before you a number of more or less synonymous expressions each of which could be substituted for the above definition, and by enumerating them I want to produce the sarne sort of effect which Galton produced when he took a number of photos of different [3]

faces on the sarne photographic plate in order to get the picture of the typical features they ali had in common.

And as by showing to you such a coliective photo I could make you see what is the typical - say - Chinese face so if you look through the row of synonyms which I will put before you, you wili, I hope, be able to see the charac­teristic features they ali have in common and these are the characteristic features of ethics.

Now instead of saying 'Ethics is the enquiry into what is good' I could have said Ethics is the enquiry into what is valuable, or, into what is realiy important', or I could have said 'Ethics is the enquiry into the meaning of life, or into what makes life worth living, or into the right way of living'.

I believe if you look at ali these phrases you will get a rough idea as to what it is that ethics is concerned with.

51

acredito ser a parte mais essencial daquilo a que geralmente se chama "Estética" 3

.

E, para ,-os fazer compreender o mais claramente pos­sível o que considero ser a matéria da Ética, vou apresentar­-vos um certo número de expressões mais ou menos sinó­nimas, cada uma das quais pode ser substituída pela defi­nição anterior e, ao enumerá-las, quero produzir a mesma espécie de efeito que Galton4 produziu quando captou um certo número de fotografias de diferentes [3]

rostos na mesma placa fotográfica, a fim de obter a ima­gem das características típicas que todos têm em comum.

E assim, como ao mostrar-vos uma tal fotografia co­lectiva, eu pudesse fazer-vos ver aquilo que é típico, diga­mos, de um rosto chinês, espero que do mesmo modo, se olhardes através da série de sinónimos que vos vou apre­sentar, podereis, assim o espero, ser capazes de ver as ca­racterísticas que todos têm em comum, e que estas são as feições típicas da Ética.

Ora em vez de dizer que "a Ética é a investigação geral daquilo que é bom", eu poderia ter dito que "a Ética é a investigação acerca daquilo que é valioso, ou acerca daquilo que é realmente importante", ou podia ter dito que "a Ética é a investigação sobre o sentido da vida, ou sobre o que faz valer a pena viver, ou sobre o modo certo de viver".

Acredito que, se olhardes para todas estas frases, ireis obter uma ideia aproximada acerca daquilo de que se ocupa a Ética.

~.T.: No Tractatus, \Vittgenstein também considera a Ética e a E sté­tica como uma só coisa (6.421 ). Essa junção não é fácil de interpretar, mas é

possh·el que resulte, em parte, da leitura de .\!oore, que inclui a im·estigaçào das coisas belas na im·estigação do que é o bom.

" ~.T.: Francis Galton (1822-1911 ).

52

Now the first thing that strikes one about ali these expressions is that each of them is actualiy used in two , -ery different senses.

I will cali them the trivial or relative sense on the one hand and the ethical or absolute sense on the other.

If for instance [4]

I say that this is a good chair this means that the chair serves a certain predetermined purpose and the word 'good' here has only meaning so far as this purpose has been previously fixed upon.

ln fact, the word 'good' in the relative sense simply means coming up to a certain predetermined standard.

Thus when we say that this man is a good pianist we mean that he can play pieces of a certain degree of diffi­culty with a certain degree of dexterity.

And similarly if I say that it is importem! for me not to catch cold I mean that catching a cold produces certain describable disturbances in my life and if I say that this is the ng,ht road I mean that it's the right road relative to a certain goal.

U sed in this way these expressions do not present any difficult or deep problems.

But this is not how E thics uses them.

Supposing that I could play tennis and one o f you saw me playing and said 'Weli, you play pretty badly' and suppose I answered 'I know, I am playing badly but I don't want to play any better' ali, the other man could say would be 'Ah then that's ali right'.

But suppose I had told one of you [5]

53

Ora a primeira coisa que sobressai em todas estas ex­pressões é que cada uma delas é, na realidade, usada em dois sentidos muito diferentes.

Chamar-lhes-ei o sentido triYial ou relativo por um lado, e o sentido ético ou absoluto, por outro. Se, por exem­plo, [4]

eu disser que esta é uma boa cadeira, isso significa que a cadeira serve um certo objectivo predeterminado, e que a palavra "boa", aqui, tem apenas sentido na medida em que a finalidade terá sido previamente fixada.

De facto, a palavra "bom", no sentido relativo, significa simplesmente satisfazer um certo padrão predeterminado.

Então, quando dizemos que este homem é um bom pianista, queremos dizer que ele consegue tocar peças de um certo nÍYel de dificuldade com um certo grau de des­treza.

E de modo semelhante, se disser que é importante para mim não apanhar uma constipação, quero dizer que uma constipação produz determinados distúrbios na minha vida; e se digo que este é o caminho certo, quero dizer que é o caminho certo relativamente a um determinado objectivo.

Usadas desta forma, estas expressões não apresentam quaisquer dificuldades ou problemas profundos.

Mas não é assim que a Ética as emprega.

Suponhamos que eu sabia jogar ténis, e que um de vós me via jogar e dizia, "Olha que jogas bastante mal" ao que eu responderia, "Eu sei, jogo mal, mas também não quero jogar melhor", tudo o que a outra pessoa me poderia dizer seria, ''Ah, então está bem".

Mas suponhamos que tinha dito a um de YÓS [5]

54

a preposterous lie and he carne up to me and said, 'You're behaving like a beast' and then I were to say 'I know I beha,~e badly, but then I do no t want to behave any bet­ter', could he then say 'Ah, then that's all right'?

Certainly not; he would say 'Well, you ought to want to behave better'.

Here you have an absolute judgment of value, where­as the first instance was one of relative judgment.

The essence of this difference seems to be obviously this: every judgment of relative value is a mere statement of facts and can therefore be put in such a form that it loses all the appearance of a judgment of value: instead of saying 'This is the right way to Granchester, I could equally well have said 'This is the way you have to go if you want to get to Granchester in the shortest time'; 'This man is a good runner' simply means that he runs a certain number of miles in a certain number of minutes, and so forth .

1 ow what I wish to contend is, that although all judg­ments of relative value can be shown to be mere statement

of facts, no statement of fact can ever be, or imply, a judg­ment of absolute value.

Let me explain this: [6]

suppose one of you were an omniscient person and therefore knew all the movements of all the bodies in the world dead or alive and that he also knew all the states of mind of all human beings that e,~er lived.

And suppose this man wrote all he knew in a big book.

55

uma mentira escandalosa e que essa pessoa se virava para mim e me dizia, "Estás a comportar-te como um ani­mal", e então eu respondesse, "Sei que me estou a compor­tar mal, mas também não quero comportar-me melhor", será que essa pessoa me diria, ''Ah, então está bem"?

Com certeza que não; diria: "Bem, devias querer com­portar-te melhor".

Aqui tendes um juízo de valor absoluto, enquanto que o primeiro exemplo era de um juízo relativo.

A essência desta diferença parece-me ser obviamente esta: todo o juízo de valor relativo é uma mera afirmação de factos e pode por isso ser emitido de tal forma que perde qualquer aparência de um juízo de valor: em vez de dizer, "Este é o caminho certo para Granchester, eu poderia igual­mente ter dito, "Este é o caminho que deves tomar se que­res chegar a Granchester no mais curto espaço de tempo"; "Este homem é um bom corredor" significa apenas que ele corre um certo número de milhas num certo número de minutos, e aí por diante.

Ora o que pretendo sustentar é que, embora todos os juízos de Yalo r relativo possam ser mostrados como me­ras afirmações de factos, nenhuma afirmação de um facto pode alguma vez ser, ou implicar, um juízo de , -alo r absoluto.

Deixem-me explicar isto: [6]

suponhamos que um de vós era uma pessoa omnis­ciente e, portanto, conhecia todos os mO\·imentos de todos os corpos no mundo, mortos ou vivos, e que também co­nhecia todos os estados mentais de todos os seres humanos

que viveram desde sempre.

Suponhamos ainda que este homem escre,·eu tudo o

que conhecia num grande lino.

56

Then this book would contain the whole description of the world; and what I want to say is, that this book would co ntain nothing that we would cali an ethical judgment or anything that would logicaliy imply such a judgment.

It would of course contain ali relative judgments of value and ali true scientific propositions and in fact ali true propositions that can be made.

But ali the facts described would, as it were, stand on the sarne level and in the sarne way ali propositions stand on the sarne level.

There are no propositions which, 1n any absolute sense, are sublime, important, or trivial.

Now perhaps some of you wili agree to that and be reminded of Hamlet's words: 'Nothing is either good or bad, but thinking makes it so'.

But this again could lead to a misunderstanding.

What Hamlet says seems to imply that good [7]

and bad, though not qualities o f the world outside us, are attributes to our states of mind.

But what I mean is that a state of mind, so far as we mean by that a fact which we can describe, is in no ethical sense good or bad.

If for instance in our world-book we read the descrip­tion of a murder with ali its details physical and psychologi­cal the mere description of these facts will contain nothing which we could cali an ethical proposition.

57

Então esse livro deveria conter a descrição total do mundo; e o que quero dizer é que este livro não conteria nada que pudéssemos chamar um juízo ético ou qualquer coisa que logicamente implicasse um tal juízo.

Claro que conteria todos os juízos relativos de valor, e todas as proposições científicas verdadeiras e, de facto, todas as proposições Yerdadeiras que podem ser concebidas.

Porém, por assim dizer, todos os factos descritos si­tuar-se-iam ao mesmo nível, da mesma forma que todas as proposições se encontram no mesmo plano.

Não existem proposições que, num sentido absoluto, possam ser sublimes, importantes ou triviais.

Ora tah-ez alguns de vós concordem com isso e se lem­brem das palavras de Hamlet: «Nenhuma coisa é boa ou má, mas é o pensar que a torna assim.»

Mas também isto poderia levar a um equívoco.

O que Hamlet diz, parece implicar que bom [7]

e mau, embora não sendo propriedades do mundo ex­terior a nós, são atributos dos nossos estados mentais.

Mas o que quero dizer é que um estado mental, na medida em que significamos com esse termo um facto que podemos descreYer, não é bom ou mau em qualquer sen­tido ético.

Se, por exemplo, no nosso livro-do-mundo lêssemos a descrição de um assassínio com todos os seus pormenores físicos e psicológicos, a mera descrição destes factos não conterá nada a que pudéssemos chamar uma proposição

ética.

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The murder will be on exactly the sarne level as any other event, for instance the falling of a stone.

Certainly the reading of description might cause us pain or rage or any other emotion, or we might read about the pain or rage caused by this murder in other people when they heard of it, but there will simply be facts, facts, and facts but no ethics.

- And now I must say that if I contemplate what eth­ics really would have to be if there were such a science, this result seems to me quite obvious.

It seems to me obvious that nothing we could ever think or say should be the thing.

That we cannot write a scientific book, the subject matter of which could be intrinsicaliy sublime and above ali other subject matters. [8)

I can only describe my feeling by the metaphor, that, if a man could write a book on ethics which realiy was a book on ethics, this book would, with an explosion, destroy ali the other books in the world.

- Our words, used as we use them in science, are ves­sels capable only of containing and conveying meaning and sense, natural meaning and sense.

Ethics, if it is anything, is supernatural and our words will only express facts; as a teacup wili only hold a teacup fuli of water and if I were to pour out a galion over it.

- I said that so far as facts and propositions are con­cerned there is only relative value and relative good, right, etc.

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O assass1ruo estará exactamente no mesmo plano de qualquer outro acontecimento, por exemplo, da queda de uma pedra.

É certo que a leitura desta descrição poderia causar­-nos dor ou raiva, ou qualquer outra emoção; ou podería­mos ler sobre a dor ou raiva causadas por este assassínio noutras pessoas quando ouviram falar dele, mas serão sim­plesmente factos, factos e mais factos, mas nada de Ética.

- Agora tenho que dizer que, se considerar o que a Ética realmente deveria ser, se existisse uma tal ciência, o que daí resulta parece-me bastante óbvio.

Parece-me ób,-io que nada que alguma vez conseguís­semos pensar ou dizer poderia ser a coisa.

Que não podemos escrever um livro científico, cuja matéria pudesse ser intrinsecamente sublime, e acima de todas as outras matérias. [8]

Posso apenas descrever o meu sentimento com a metá­fora que, se alguém pudesse escrever um livro sobre Ética, que fosse realmente um livro sobre Ética, com uma explo­são este li\-ro destruiria todos os outros livros no mundo.

- As nossas palavras, usadas tal como as usamos na ciência, são apenas recipientes capazes de conter e trans­portar significado e sentido, significado e sentido naturais.

A Ética, se for alguma coisa, é sobrenatural, e as nossas palavras exprimem somente factos; como uma chá\-ena só pode conter uma chávena cheia de água mesmo que eu lhe queira deitar um galão5 em cima.

- Eu disse que, na medida em que se considerem fac­tos e proposições, só existe Yalor relativo e bem relativo,

justiça, etc.

~.T.: :-.!edida de líquido equi,·alenre a 3,78 litros.

60

And let me, before I go on, illustrate this by a rather obvious example.

The right road is the road which leads to an arbitrarily predetermined end and it is quite clear to us ali that there is no sense in talking about the right road apart from such a

predetermined goal.

Now let us see what '\Ve could possibly mean by the expression, 'The absolutely right road'.

I think it would be the road which everyboc!J on seeing it would, with logical necessi(y, ha,-e to go, or be ashamed for not going.

And similarly the absolute good, if it 1s a describable state of affairs, would be one which

everybody, [9]

independent of his tastes and inclinations, would, necessari!J, bring about or feel guilty for not bringing about.

And I want to say that such a state of affairs is a chi­mera.

No state of affairs has in itself, what I would like to cali the coercive power of an absolute judge.

- Then what have ali of us who, like myself, are still tempted to use such expressions as 'absolute good,' 'abso­lute Yalue,' etc., \vhat have we in mind and what do we try to express?

Now wheneYer I try to make this clear to myself it is natural that I should recali cases in which I would cer­tainly use these expressions and I am then in the situation in which you would be if, for instance, I were to give you a lecture on the psychology of pleasure.

61

E, antes de continuar, perm1t1-me ilustrar esta ideia com um exemplo bastante óbvio.

A estrada certa é aquela que conduz a um destino arbi­trariamente predeterminado, e é bastante claro para todos nós que não faz sentido falar sobre a estrada certa indepen­dentemente de tal objectivo predeterminado.

Vejamos agora o que poderíamos possivelmente que­rer dizer com a expressão "A estrada absolutamente certa".

Penso que seria a estrada pela qual, ao vê-la, toda a gente teria que seguir com necessidade lógica, ou ficar envergonhada por não o fazer.

De forma semelhante o bom absoluto, caso fosse um es­tado de coisas susceptível de ser descrito, seria algo que toda a gente, [9]

independentemente dos seus gostos ou inclinações, iria necessariamente efectivar ou sentir-se culpado por não o fazer.

E quero dizer que um tal estado de coisas é uma quimera.

Nenhum estado de coisas contém, em si mesmo, aqui­lo a que gostaria de chamar o poder coercivo de um juiz absoluto.

- O que se passa, então, com todos nós que, como eu próprio, nos sentimos ainda tentados a usar tais expressões como "bom absoluto", "valor absoluto", etc., e o que é que temos em mente quando o tentamos exprimir?

Ora, sempre que tento esclarecer isso para mim mes­mo, é natural que de,-esse relembrar casos em que eu usa­ria certamente estas expressões, e me encontro dentro da situação em que YÓS , -os encontraríeis se, por exemplo, vos esti,-esse a fazer uma conferência sobre a psicologia do pra­zer.

62

What you would do then would be to try and recall some typical situation in which you always felt pleasure.

For, bearing this situation in mind, ali I should say to you would become concrete and, as it were, controllable.

One man would perhaps choose as stock example the sensation when taking a walk on a fine summer's day.

Now in this situation Iam if I want to fix my mind on what I mean by absolute o r ethical value.

And there, in my case, it always happens that the idea of one particular [1 O]

experience presents itself to me which therefore is, in a sense, my experience par excellence and this is the reason why, in talking to you now, I will use this experience as my first and foremost example.

(As I have said before, this is an entirely personal mat­ter and others would find other examples more striking) I will describe this experience in order, if possible, to make you recall the sarne or similar experiences, so that we may have a common ground for our im·estigation.

I believe the best way o f describing it is to say that when I have it I wonder at the existence o/ the world.

And I am then inclined to use such phrases as 'How extraordinary that anything should exist' or 'How extraor­dinary that the world should exist'.

63

O que faríeis então seria experimentar evocar alguma situação típica em que sempre sentistes prazer.

A razão é que, tendo esta situação em mente, tudo o que vos diria tornar-se-ia concreto e, por assim dizer, con­trolável.

Uma pessoa poderia talvez escolher do seu armazém de exemplos a sensação de passear num belo dia de Verão.

Ora é nesta situação que me encontro se pretendo fixar a minha mente naquilo que quero dizer com valor absoluto ou ético.

E então, no meu caso, acontece sempre que a ideia de uma experiência particular se me apresenta [1 O]

o que a torna por isso, num certo sentido, a minha ex­periência par excellence, e é por esta razão que, ao dirigir-me agora a vós, vou usar esta experiência como o meu primeiro e prioritário exemplo.

(Como disse antes, este é um assunto inteiramente pes­soal e outras pessoas encontrariam outros exemplos mais marcantes) vou descrever esta experiência de modo a, se possível, vos fazer relembrar experiências idênticas ou se­melhantes, a fim de que possamos ter uma base comum para a nossa im-estigação.

Acredito que a melhor maneira de a descrever é dizer que, quando a tenho, fico assombradé com a existência do mundo.

Tenho então tendência para usar frases como "Co­mo é extraordinário que alguma coisa possa existir" ou "Como é extraordinário que o mundo possa existir".

6 N.T.: "wonder" no original.

64

I will mention another experience straight away which I also know and which o thers of you might be acquainted with: it is, what one might call, the experience o f feeling

absolute!J safe.

I mean the state of mind in which one is inclined to say 'I am safe, no thing can injure me whatever happens'.

Now let me consider these experiences, for, I believe, they exhibit the , -ery characteristics we try to get clear about.

And there the first thing I have to say is, that the , -er­bal expression which we gi,-e to these experiences [11]

is nonsense!

If I say 'I wonder at the existence of the world' I am misusing language.

Let me explain this: I t h as a perfectly good and ele ar sense to say that I wonder at something being the case, we all understand what it means to say that I wonder at the size of a dog which is bigger than any one I have ever seen before, or at any thing \vhich, in the common sense of the word, is extraordinary.

ln every such case I wonder at something being the case which I could conceive no! to be the case.

I wonder at the size of this dog because I could con­ceive o f a dog of another, namely the o rdinary, s1ze, at which I should not wonder.

To say 'I wonder at such and such being the case' has only sense if I can imagine it no t to be the case.

65

Vou referir imediatamente uma outra experiência que também conheço, e com a qual alguns de vós deveis estar familiarizados: é o que se pode chamar a experiência de nos

sentirmos em absoluta segurança.

Quero dizer, o estado mental no qual nos sentimos inclinados a dizer: "encontro-me em absoluta segurança, nada me pode ferir aconteça o que acontecer".

Ora deixai-me tomar em consideração estas experiên­cias, porque creio que exibem exactamente as característi­cas do que estamos a tentar esclarecer.

E a este respeito, a primeira coisa que tenho a dizer é que a expressão verbal que damos a estas experiências [11]

não tem sentido!

Se eu disser, "fico assombrado com a existência do mundo" estou a usar mal a linguagem.

Deixai-me explicar: tem um sentido perfeito e claro di­zer que me assombro com alguma coisa se for o caso; todos compreendemos o que significa dizer que me assombro com o tamanho de um cão que é maior do que qualquer outro que alguma vez tenha visto, ou com alguma coisa que, para o senso comum da palavra, seja extraordinária.

Em cada um desses casos, assombro-me por alguma coisa ser aquilo que eu podia conceber não ser o caso.

Assombro-me com o tamanho deste cão porque eu podia conceber um cão com outro tamanho, digamos, o normal, com o qual não me deveria assombrar.

Dizer "fico assombrado que isto ou aquilo aconteça", sendo o caso, só tem sentido se conseguir imaginar que isso não seja o caso.

66

ln this sense one can wonder at the existence of, say, a house when one sees it and has not visited it for a long time and has imagined that it had been pulled down in the meantime.

But it is nonsense to say that I wonder at the existence of the world, because I cannot imagine it not existing.

I could, of course, wonder at the world round me be­ing as it is.

If for instance I had this experience while look.ing into the blue sky, I could wonder at the sky being blue as opposed to the case when it's clouded.

But [12]

that's not what I mean.

I am wondering at the sky being whatever it is.

One might be tempted to say that what I am wonder­ing at is a tautology, namely at the sky being blue or not blue.

But then it is just nonsense to say that one is wonder­

ing at a tautology.

Now the sarne applies to the other experience which I have mentioned, the experience of absolute safety.

We ali know what it means in ordinary life to be safe.

I am safe in my room, when I cannot be run over by

an omnibus.

I am safe if I have had whooping cough and cannot

therefore get it again.

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Neste sentido, podemos assombrar-nos com a existên­cia de, por exemplo, uma casa, quando a vemos e não a visi­távamos há muito tempo, e imaginávamos que, entretanto, tivesse sido demolida.

Mas não tem sentido dizer que me assombro com a existência do mundo, porque não consigo imaginar que ele não exista.

Poderia, é claro, ficar assombrado por o mundo à mi­nha volta ser tal e qual ele é.

Se, por exemplo, tivesse esta expenencia enquanto olhasse para o céu azul, poderia assombrar-me por o céu estar azul por contraste com o caso em que estivesse nu­blado.

Porém [12]

não é isso que quero dizer.

Fico assombrado por o céu ser, o que quer que ele sqa.

Poderíamos ficar tentados a dizer que aquilo que me causa assombro é uma tautologia, nomeadamente que o céu seja azul ou não azul.

Mas então não tem sentido dizer que ficamos assom­

brados com uma tautologia.

Ora o mesmo se aplica à outra experiência que acabei de mencionar, a experiência de segurança absoluta.

Todos nós sabemos o que, na vida comum, significa

estar em segurança.

Estou em segurança no meu quarto, quando não posso

ser atropelado por um autocarro.

Estou em segurança se já tiver tido tosse convulsa, por­

que não posso tê-la outra vez.

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'To be safe' essentialiy means that it is physicaliy im­

possible that certain things should happen to me and there­fore it is nonsense to say that I am safe whatever happens.

Again this is a misuse of the word 'safe' as the other example was of a misuse of the word 'existence' or 'won­dering.'

Now I want to impress on you that a certain charac­

teristic misuse of our language runs through ali ethical and religious expressions.

Ali these expressions seem, prima facie, to be just simi-les.

Thus it seems that when we are using the word 'nght' in an ethical sense, although, what we mean, is not 'right' in

its trivial sense, it's something similar, and when [13]

we say 'This is a good feliow', although the word 'good' here doesn't mean what it means in the sentence

'This is a good football player' there seems to be some simi­

larity.

And when we say 'This man's life was valuable' we do

not mean it in the sarne sense in which we would speak of

some valuable jewellery but there seems to be some sort

of analogy.

Now ali religious terms seem in this sense to be used

as similes, or allegorically.

For when we speak of God and that he sees e\·ery­

thing and when we kneel and pray to him ali our terms and

actions seem to be parts of a great and elaborate allegory

which represents him as a human being of great power

whose grace we try to win etc. etc.

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Essencialmente, "Estar em segurança" significa que é fisicamente impossível que certas coisas me \-enham a acontecer e, portanto, não tem sentido dizer que estou em segurança aconteça o que acontecer.

Repito que este é um mau uso da palavra "segurança", assim como o outro exemplo era um mau uso da palavra "existência" ou "assombramento".

Agora quero que fiqueis conscientes de que um certo e característico mau uso da nossa linguagem percorre todas as expressões éticas e religiosas.

Prima facie, todas estas expressões parecem ser só símiles.

Assim parece que, algo de semelhante acontece quan­do estamos a usar a palavra "correcto" num sentido ético embora o que queremos dizer não seja 'correcto' no seu sentido trivial, e se quando [13]

dizemos "Este é um bom tipo", embora a palavra "bom" não signifique aqui o mesmo que significa na frase "Este é um bom jogador de futebol", parece existir alguma similaridade.

E quando dizemos "A vida deste homem foi valiosa" não o dizemos com o mesmo sentido em que falaríamos de uma qualquer jóia valiosa, mas parece existir aqui alguma

espécie de analogia.

Ora, nesta perspectiva, todos os termos religiosos pa­recem ser usados como símiles, ou alegoricamente.

Porque, quando falamos de Deus e que Ele \-ê tudo, e quando nos ajoelhamos para lhe rezar, todos os nossos termos e acções parecem ser partes de uma grande e elabo­rada alegoria que O representa como um ser humano com grande poder, cuja graça tentamos conquistar, etc., etc.

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But this allegory also describes the experiences which I have just referred to.

For the first of them is, I believe, exactly what peo­ple were referring to when they said that God had created the world; and the experience of absolute safety has been described by saying that we feel safe in the hands of God.

A third experience of the sarne kind is that of feeling

guilty and again this was described by the phrase that God disapproves of our conduct.

Thus in ethical and religious language we seem [14]

constantly to be using similes.

But a simile must be the simile for something.

And if I can describe a fact by means of a simile I must also be able to drop the simile and to describe the facts without it.

N ow in our case as soo o as we try to drop the simile and simply to state the facts which stand behind it, we find that there are no such facts.

And so, what at first appeared to be simile, now seems to be mere nonsense.

- Now the three experiences which I have mentioned to you (and I could have added others) seem to those who have experienced them, for instance to me, to ha,-e in some sense ao intrinsic, absolute value.

But when I say they are experiences, surely, they are facts; they have taken place then and there, lasted a certain definite time and consequently are describable.

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Mas esta alegoria também descreve as experiências a que me acabei de referir.

Porque a primeira delas é, segundo creio, exactamente aquilo a que as pessoas se referiam quando disseram que Deus tinha criado o mundo; e a experiência de segurança absoluta tem sido descrita dizendo-se que nos sentimos se­guros nas mãos de Deus.

Uma terceira experiência do mesmo tipo é a de nos sentirmos culpados e, de novo, isto foi descrito com a frase que Deus condena a nossa conduta.

Assim na linguagem ética e religiosa parecemos [14]

estar constantemente a usar sírniles.

1\Ias um símile tem que ser o sírnile de alguma coisa.

E se posso descreYer um facto por meio de um símile, também tenho que ser capaz de deixar cair o sírnile e des­crever os factos sem ele.

Ora neste nosso caso, assim que tentamos deixar cair o símile, e simplesmente enunciar os factos que estão por detrás dele, descobrimos que tais factos não existem.

E assim, aquilo que de início parecia ser um símile, agora parece ser um mero sem sentido.

- Então as três experiências que vos mencionei (e po­deria ter acrescentado outras) parecem àqueles que as expe­rimentaram, por exemplo a mim próprio, de alguma forma, possuir um valor intrínseco, absoluto .

.i\Ias quando digo que são experiências, são certamente factos; elas ocorreram num tempo e num lugar, duraram um certo tempo definido e, por consequência, são passíveis de descrição.

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And so from what I have said some minutes ago I must admit it is nonsense to say that they have absolute value.

And here I have arrived at the main point of this pa­per: it is the paradox that an experience, a fact, should seem to have absolute value.

And I will make my point still more acute by saying 'it is the paradox that an experience, a fact, [15]

should seem to have supernatural value'.

Now there is a way in which I would be tempted to meet this paradox: let me first consider again our first ex­perience of wondering at the existence of the world and let me describe it in a slightly different way: we ali know, what in ordinary life would be called a miracle.

It obviously is simply an event the like of which we have never yet seen.

Now suppose such an event happened.

Take the case that one of you suddenly grew a lion's head and began to roar.

Certainly that would be as extraordinary a thing as I can imagine.

Now whenever we should have recovered from our surprise, what I would suggest would be to fetch a doctor

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E assim, a partir do que disse há alguns minutos, tenho que admitir que não tem sentido dizer que elas possuem valor absoluto.

E aqui cheguei ao ponto principal deste texto: é o para­doxo que uma experiência, um facto, deva parecer ter ,·alor absoluto.

E serei ainda mais incisivo ao dizer que "é paradoxal que uma experiência, um facto, [15]

de,·a parecer ter um ,·alor sobrenatural"-.

Ora há uma forma pela qual eu seria tentado a enfren­tar este paradoxo: deixai-me primeiro considerar de novo a nossa primeira experiência de assombramento pela existên­cia do mundo, e deixai-me descre,·ê-la de um modo ligeira­mente diferente: todos conhecemos o que, na ;-ida comum, poderia ser chamado um milagre.

Trata-se, ob,·ia e simplesmente de um acontecimento semelhante ao qual nunca ainda vimos outro.

Suponhamos agora que tal e\·ento ocorreu.

Tomemos o caso em que, num de vós, subitamente nascesse uma cabeça de leão e começasse a rugir.

Decerto que isso seria a coisa mais extraordinária que posso 1magmar.

Ora, quando uvessemos recuperado da nossa surpre­sa, o que eu sugeriria seria que se fosse buscar um médico e que o caso fosse cientificamente investigado, e não fora

N.T.: Curiosamente, tanto no ~ IS 139a, como no TS 207 não apare· ce esta frase: <<And bere I bare anired a/ tbe main point of t/;i.r paper: it ú tbe pam­do.>..· tbat an e.'\perimce, a fac/ sbould seem to /;are absolute mlue.>> Que \\ 'ittgcnstein renha considerado este paradoxo como o ponto central ela sua conferência é de g rande significado para a interpretação do rexro.

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and have the case scientifically im·estigated and if it were not for hurting him I would have him vivisected.

And where would the miracle have got to?

For it is clear that when we look at it in this way every­thing rniraculous has disappeared; unless what we mean by this term is merely that a fact has not yet been explained by science, which again means that we have hitherto failed to group this fact with others in a scientific sys tem.

This shows that it is absurd to say 'Science has proved that [16]

there are no rniracles.'

The truth is that the scientific way of looking at a fact is no t the way to look at it as a miracle.

For, imagine whatever fact you may, it is no t in itself rniraculous in the absolute sense of that term.

For we see now that we have been using the word 'miracle' in a relative and absolute sense of that term.

And I will now describe the experience o f wondering at the exis tence o f the world by saying: it is the experience

of seeing the world as a miracle.

ow I am tempted to say that the right expression in language for the miracle of the existence o f the world, though it is not any proposition in language, is the exis tence

of language itself.

But what then does it mean to be aware o f this mira­

ele at some times and not at other times.

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a circunstância de fazer sofrer essa pessoa, procederia à sua VlVlSSecção.

E então para onde teria que ir o milagre?

Porque é claro que, quando olhamos para ele deste modo, tudo o que é milagroso desapareceu; a não ser que, aquilo que significamos com este termo seja meramente que um facto ainda não foi explicado pela ciência, o que, de novo, significa que até agora não conseguimos enquadrar este facto com outros num sistema científico.

Isto mostra que é absurdo dizer «A ciência provou que [16)

não existem milagres».

A verdade é que o modo científico de olhar para um facto não é a mesma forma de olhar para ele como se fosse um milagre.

Porque, qualquer que seja o facto que se possa imagi­nar, por si só, ele não é milagroso no sentido absoluto deste termo.

Porque vemos agora que temos vindo a usar a palavra "milagre" tanto num sentido absoluto, como num sentido relativo do termo.

E descreverei agora a experiência de assombramento com a existência do mundo dizendo: é a experiência de ver o mundo como um milagre.

Agora fico tentado a dizer que a expressão correcta na linguagem para o milagre da existência do mundo, embora não seja uma proposição na linguagem, é a existência da

própria linguagem.

l\Ias então o que significa ter consciência deste milagre nalgumas circunstâncias e não noutras?

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For ali I have said by shifting the expression of the

miraculous from an expression 0' means if language to

the expression 0' the existence of language, ali I have said is again that we cannot express what we want to express and that ali we sqy about the absolute miraculous remains nonsense.

- Now the answer to ali this wili seem perfectly clear to many of you.

You will say: weli, if certam experiences constantly tempt us to attribute a quality to them which we cali abso­lute or ethical value and importance, this simply [1 7]

shows that by these \vords we do not mean nonsense, that after all what we mean by saying that an experience has absolute value is j ust a fact like other facts and that all it comes to is, that we have no t yet succeeded in finding the correct logical analysis of what we mean by our ethical and

religious expressions.

- Now when this is urged against me I at once see clearly, as it were in a fl ash o f light, not only that no de­scription that I can think o f would do to describe what I mean by 'absolute ,-alue', but that I would reject every sig-

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Porque tudo o que eu disse, ao transferir a expressão do miraculoso de uma expressão por meio da linguagem para a sua expressão pela existéncia da linguagem, tudo o que eu disse é, de novo, que não podemos exprimir o que quere­mos exprimir, e que tudo o que dizemos sobre o miraculoso absoluto permanece sem sentido.

- Ora a resposta a tudo isto parecerá perfeitamente clara a muitos de vós.

Direis: Bom, se algumas experiências nos tentam cons­tantemente a que lhes atribuamos uma qualidade, à qual chamamos valor e importância absolutos ou éticos, isto [1 7]

mostra simplesmente que, por estas palavras, nós não significamos coisas sem sentido, que apesar de tudo o que significamos dizendo que uma experiência tem ,·alor abso­

luto é apenas um facto como outros factos, e tudo a que se resume é que ainda não conseguimos encontrar a análise logicamente correcta daquilo que queremos significar com as nossas expressões éticas e religiosas.

- Agora, quando isto é usado contra mim vejo Ime­diatamente com clareza, como se fosse um relâmpago de luz, não apenas que nenhuma descrição em que possa pen­sar sen·iria para descrever o que quero significar com "valor absoluto", mas que rejeitaria todas as descrições significan-

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nificant description that anybody could possibly suggest, ab initio, on the ground of its significance.

That is to say: I see now that these nonsensical expres­sions were not nonsensical because I had not yet found the correct expressions, but that their nonsensicality was their very essence.

For ali I wanted to do with them was just to go bryond the world and that is to say beyond significant language.

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tes que qualquer outra pessoa pudesse eventualmente suge­rir, ab initio com base na sua significação8

.

Ou seja: vejo agora que estas expressões sem sentido não eram sem sentido porque eu não tinha ainda encontra­do a expressão correcta, mas que o seu não-sentido era a sua verdadeira essência.

Porque tudo o que eu queria fazer com elas era apenas ir para além do mundo, e isto quer dizer para além da lingua­gem significante.

N.T.: Passagem com alguma dificuldade de interpretação. Chegado a este ponto da conferência, Wittgenstein reforça a sua posição quanto ao "sem sentido" da linguagem da ética. Ele próprio formula a objecção que consiste em dizer que afinal a nossa tendência irreprimí\·el para falar natu­ralmente de temas da ética ou formular juízos éticos, mostra que podemos exprimir com todo o sentido as nossas experiências éticas. Afinal talvez o pro­blema consista simplesmente em não se ter ainda encontrado uma análise lógica correcta para as proposições da ética, em contraste com o que acon­tece com a lógica. A isto \'(ittgenstein opõe firmemente a concepção do uso da linguagem exposta no Tractatus, istO é, apenas na sua relação repre­sentati\·a com o mundo (conjunto de factos) a linguagem cobra um sentido. A ética é sobrenatural, já que se encontra para lá dos limites do mundo e o que fazemos quando transmitimos viYências éticas, religiosas ou místicas, é "correr contra os limites da linguagem". Esta fidelidade à doutrina do Tractatus é, no entanto, posta em causa nos anos imediatamente seguintes à CE e roda a incursão pelos tópicos da \'i\·éncia mística e religiosa le\·ada a cabo neste texto indicia afi nal um Wittgenstein dispostO a alargar os limites do sentido mediante uma outra concepção do uso da linguagem. Por exem­plo, nas com·ersas com Bouwsma (1949-51 ) encontramos uma referência à temática ética que reflecte bem o que pode ser a sua posição na fase após Tractatus, ou seja, do segundo Wittgenstein: <<Aquilo que podemos fazer é des­crer;er certos aspectos dos usos da palavra 'bom' (good). 5 e começamos com X é bom ', tal significa 'eu aprovo X'. ,\·a verdade, isto é um elemento comum a muitos usos da

palarra>> (\Vittgenstein, Conversations 111ith K. Bowvsma, ed. J. L. Craft & Ronald E . Husn\·it, Indianápolis: Hackett, 1986, pp. 40-1 ). De qualquer forma, Wit­tgenstein nunca deixa de reconhecer o pri\·ilégio da perspectin da primeira pessoa nas expressões de natureza ética (Yer nossa Introdurào).

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l'vh· whole tendenc\· and I believe the tendencv of all . . .'

men who ever tried to write or talk ethics or religion was to run against the boundaries of language.

This running against the walls of our cage (18]

is perfectly, absolutely hopeless.

- Ethics, so far as it springs from the desire to say something about the ultimate meaning of life, the absolute good, the absolute valuable, can be no science.

\'(fhat it says does not add to our knowledge in any

sense.

But it is a document of a tendency in the human mind -...vhich I personally cannot help respecting deeply and I would not for my life ridicule it (19].

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A minha tendência natural, e acredito que seja a ten­dência de todos os homens que alguma vez tentaram es­crever ou falar sobre Ética ou Religião, foi correr contra os limites da linguagem. Este correr contra as paredes da nossa prisão [18]

é perfeita e absolutamente sem esperança.

- A Ética, na medida em que nasce do desejo de dizer alguma coisa sobre o significado último da vida, do bom absoluto, do que tem valor absoluto, não pode ser uma ciência.

Aquilo que ela diz nada acrescenta ao nosso conheci­mento, em qualquer sentido.

Mas é o testemunho de uma tendência da mente hu­mana que eu pessoalmente não posso deixar de respeitar profundamente e que nunca me ocorreria ridicularizar [19].

ÍNDICE

Sinopse de obra 7

Critérios editoriais da presente tradução da Conferência sobre Ética 9

Wittgenstein e a procura de uma linguagem para a Ética- Estudo Introdutório sobre a Conferência sobre Ética 13

Bibliografia 39

Lecture On Ethics - Ludwig Wittgenstein 44

Conferência Sobre Ética- Ludwig Wittgenstein 45

Esta edição de Conferência Sobre Ética, de Ludwig Wittgenstein, foi

composta e impressa na Gráfica Vicentina Unipessoal Lda, para a

Fundação Calouste Gulbenkian.

A tiragem é de 750 exemplares encadernados

Mês de Maio de 201 7

Depósito Legal n.0 423925/ 17

ISBN: 978-972-31-1595-6