bellini-leite, s. fugindo do meio-termo. filosofia (são paulo) n.90, 2014

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A falácia do falso meio-termo é, às vezes, utilizada para argumentarque pode haver um lugar para a Religião junto à Ciência, masesse lugar jamais deverá estar disponível. Reflexões acerca do pensamento de Richard Dawkins e do filósofo Daniel Dennett

comum tentarmos escolher po-sições não extremistas e não ra-dicais para qualquer tópico po-lêmico; elas tendem a unifi car o que há de melhor em vários

pontos de vista. Entretanto, devemos ter cuidado com a falácia do falso meio-termo (argumentum ad temperantiam). Muitas pessoas acreditam ser uma postura radi-cal e, portanto equivocada, se posicionar a favor da Ciência e buscar eliminar a Religião, ou vice-versa. Ambas são vistas como posições extremistas. Apesar disso, a falácia nos lembra que, do simples fato de ser radical, de adotar um extremo e eliminar o outro, não podemos concluir nada. Por exemplo, em épocas em que a escravidão era mais frequente, existiam grupos se posicionando completamente a favor e outros inteiramente contra à ideia. Uma pessoa que se pauta na falácia do fal-so meio-termo teria dito que algo como um servo, ou um escravo com mais di-reitos humanos, seria a melhor opção a se manter. A visão radical nem sempre está

equivocada, às vezes ela pode ser o melhor caminho a ser traçado.

Algumas pessoas apontam que Religião e Ciência falam de objetos diferentes e, por-tanto, não têm relação alguma. Isso é falso. Religiões proliferam opiniões sobre a ori-gem do universo, a origem do nosso planeta, a origem do homem, a origem da bondade, quem é o homem, o que é a mente huma-na e a nossa saúde. Essas mesmas questões são abordadas pela Ciência: Física, Biologia, Primatologia Comparativa, Psicologia, Medicina, Neurociência, entre outras áreas.

Tendo isso em mente, podemos per-guntar: é possível haver colaboração da Ciência e da Religião para uma compre-ensão de mundo mais completa? Vamos investigar. A primeira pergunta que te-mos que responder antes de mais nada é a seguinte: por que devemos confi ar na Ciência ou na Religião?

A Ciência é um método de investigação dos fenômenos utilizados por pesquisado-res de todas as universidades do mundo. Ela tem como base a busca pelo conheci-

FUGINDO do MEIO-TERMO

É Samuel de Castro Bellini-Leite, doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, (UFMG). [email protected]

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mento, para que com esse conhecimento se possa construir tecnologias, promover saúde, educação e gerar novidades de in-teresse para a sociedade. Sua metodologia é baseada na investigação empírica; isso signifi ca que o mundo deve nos mostrar como ele verdadeiramente é. Por exem-plo, para saber se uma bactéria é resis-tente a um antibiótico, não podem ape-nas teorizar que sim, por ter tido muito contato com o antibiótico. Os cientistas precisam fazer testes para verifi car se, de fato, a bactéria é resistente a certo antibi-ótico. Essa busca por verifi cação empírica é a base do sucesso da Ciência. No fi m, a Ciência é confi ável porque podemos mostrar publicamente que ela funciona. Baseados nela, criamos a Medicina atual, carros, aviões, foguetes, computadores, métodos educativos, terapias psicológi-cas. Seu sucesso é evidente.

A Ciência é revisionista, suas teorias mudam de acordo com o surgimento de novas evidências. A Ciência nem sempre consegue mostrar qual teoria é verdadei-

ra, mas ela tem um dom claro: é efi caz para falsear teorias. Para falsear uma teoria, é preciso apenas mostrar que suas teses não representam bem o mundo, o que é muito mais fácil do que construir uma teoria que realmente represente bem o mundo.

A Ciência tem, porém, ao menos um problema. Todo o esforço empírico que os cientistas nos trazem não é o bastante para formar uma visão de mundo completa. É preciso afi rmar mais do que as pesquisas mostram, até mesmo para pensarem sobre o que pesquisar e como pesquisar no futu-ro. A Ciência nos mostra evidências, mas não precisamos de evidências isoladas, e sim de teorias que unifi quem essas evidên-cias formando uma visão de mundo. Essas teorias não são formadas com evidências apenas, temos que ter alguma ideia, concei-tuar, julgar, interpretar, unifi car, para assim formarmos teorias. Nesse ponto, a Ciência não é tão segura e pode precisar de ajuda.

Se há pelo menos um ponto em que a Ciência não é segura e pode precisar de aju-da, qual outro método poderia ajudar? Te-mos, de uma forma resumida, basicamente três candidatos: o senso comum, a Religião e a Filosofi a. O senso comum pode trazer alguns conhecimentos e intuições que ser-vem de inspiração para os cientistas, em virtude de carregarem resultados de inves-tigações de várias gerações sobre o mundo. Esse também serve para nos auxiliar na maior parte de nossas decisões cotidianas que são baseadas em casos em que a Ciência não investigou ou pouco investigou. A Ci-ência pode nos ajudar a criar nossos fi lhos, mas, por enquanto, não há evidências sufi -cientes sobre Educação e criação a ponto de im

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Ser a favor da abolição da escravidão já foi uma

visão radical e extremista, mas nem por isso

equivocada

POR QUE DEVEMOS CONFIAR NA CIÊNCIAOU NA RELIGIÃO? É POSSÍVEL HAVER COLABORAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO PARA UMA COMPREENSÃO DE MUNDO?

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Em vários momentos da História, Ciência e Religião falaram e, muitas vezes, ainda falam sobre os mesmos objetosim

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podermos abandonar todas as estra-tégias do senso comum na Educa-ção. Deixaremos a Filosofia para ser mencionada no fim. Vamos partir agora para a Religião.

As metodologias principais da Religião são a fé e a revelação. Fé sig-nifica acreditar em algo, ou formar teorias,1 sem precisar de evidências para isso. Se fossemos utilizar esse método para descobrir algo comum em nosso dia a dia, por exemplo, se uma pizza no forno está pronta, não deveríamos olhar e verificar, como sugerido pela metodologia empí-rica, simplesmente teríamos de ter fé. Religiosos poderiam dizer que minha descrição foi simplista, que o método da fé trata de questões do ser, de sentir, de transcendência. Entretanto, se esse método não fun-ciona para questões tão simples, isso apenas significa que ele é até menos eficaz para as questões complexas sobre visões de mundo, pois quanto 1 A palavra “teoria” será utilizada em um sentido frouxo, como formar conjecturas

mais complexo o objeto, mais difícil é conhecer e mais rigorosa sua me-todologia precisa ser para abarcá--lo. Apenas sentir não irá fazer você conhecer alguma realidade sobre o mundo, várias pessoas sentem coi-sas contraditórias e nenhuma está justificada apenas por sentir. O fato de um cristão ortodoxo na Rússia sentir que, para ter uma relação com o divino, é preciso batizar crianças afundando seus corpos em lagos congelantes não justifica a crença nem o ato.

Para a Ciência (por sua heran-ça filosófica), também é importan-te investigar as plausibilidades das ideias. Há vários problemas com a definição de Deus, problemas a priori sobre o que é dito, e não so-bre o que é testável. Isso passa pelas contradições de dizer que há livre--arbítrio e que o plano de Deus para as pessoas já está traçado, em falar de bondade e ter como ameaça o inferno. Mas essas questões são bas-tante conhecidas e não são o maior

motivo pelo qual a Religião deve se manter distante da Ciência. Entre-tanto, é interessante propor um ex-perimento de pensamento para ave-riguar a metodologia da revelação: como os religiosos poderiam saber e afirmar que Jesus realmente voltou? Se Jesus, o carpinteiro do Oriente Médio de 2 mil anos atrás, voltasse, como muitos acreditam, ele teria que se materializar repentinamente. Alguns acham que ele virá do céu, mas no céu temos atmosfera, e aci-ma temos espaço, planetas e estre-las. Se ele já chegar do céu, isso ape-nas significa que ele se materializou no céu antes de descer, e por algum milagre sobreviveu à queda. Soa cô-mico, mas são as consequências do que é afirmado por religiosos. Vou supor a possibilidade de reencarna-ção para continuar a investigação. Como o método da revelação não requer evidências, as pessoas teriam apenas que sentir que Jesus voltou. Entretanto, há várias pessoas que já afirmam ser Jesus. Como um reli-gioso poderia conseguir distinguir essas pessoas barbudas comuns do original Jesus caso ele volte? Como o método é apenas sentir (ele não precisa provar seus mila-gres), o que iria acontecer é uma nova separação de crentes, como houve entre judeus e cristãos, e em menor escala entre os cristãos bra-sileiros que acreditam ou não que Inri Cristo seja deus.

Por um lado, a Religião real-mente nos promove uma visão de mundo que a Ciência empírica so-zinha não consegue nos fornecer. Para fornecer uma visão de mun-do completa, a Ciência teria que ir além de suas evidências, dizer mais do que ela poderia dizer. Mas, por outro, há um problema grave nas

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A Ciência é responsável pelos avanços da Medicina,

que é capaz de fazer a expectativa de vida humana

se estender drasticamente

falecido Christopher Hitchens (1949-2011), o fi lósofo e neurocientista Sam Harris (1967) e o físico Lawrence Krauss (1954). No Brasil, essa postura tem sido representada de forma corajosa pela ins-tituição ATEA.

Para verifi car se uma ideia é verdadeira ou falsa, é preciso verifi car suas consequên-cias no mundo e se essas consequências são suportadas pelas evidências. No caso de ideias metafísicas que tenham consequên-cias no mundo, o que precisa ser feito é su-por a existência de uma entidade e o que ela faz no mundo. Se falsearmos o que ela faz no mundo, por modus tollens, falseamos a proposição, mas não a entidade. Consegui-mos falsear a teoria sobre a entidade quan-do não conseguimos mais elaborar pro-posições verdadeiras sobre o que ela pode fazer no mundo.

Vamos focar em alguns aspectos do Cristianismo, investigando algumas de suas afi rmações básicas: se o deus cris-tão existe, ele cura através da oração. Se o deus cristão existe, ele ajuda seus fi éis. Se o deus cristão existe, ele criou o ser humano. Se o deus cristão existe, ele salva, isso signifi ca que nós temos al-mas. Se o deus cristão existe, ele é justo. Não precisamos discutir a ideia abstrata de um deus cristão, ela não precisa nem ser tocada, podemos assumi-la como hi-pótese e apenas falsear suas consequên-cias no mundo. Essas proposições condi-cionais foram formadas a partir do que a maioria dos fi éis acredita e por isso as tomei como exemplo, mas várias outras poderiam ser formadas e também falsea-das. Eventualmente, se falsearmos várias

RICHARD DAWKINS abriu caminho para o Neoateísmo, mostrando que ideias de todas as áreas, Ciência, Religião, Filosofia e senso comum, precisam estar coerentes com as evidências que temos

POR UM LADO, A RELIGIÃO REALMENTENOS PROMOVE UMA VISÃO DE MUNDO QUE A CIÊNCIA EMPÍRICA SOZINHANÃO CONSEGUE NOS FORNECER

visões de mundo que a Religião instaura. Elas são falsas. Como mencionado ante-riormente, a Ciência tem uma difi culdade em construir teorias que sobrevivam às tentativas de falseamento, mas ela tem o dom de falsear ideias e teorias. A Ciência falseia as afi rmações religiosas, os deu-ses pessoais.

COMO FALSEAR UMA TEORIA SOBRE DEUS

É comum escutarmos que a Ciência não pode falsear deuses, por serem ideias metafísicas. Os ateus comumente dizem que o ônus da prova está em quem acre-dita. Entretanto, acredito que a situação é ainda pior para a Religião. Enquanto o ateísmo comum se portava com uma postura apática, uma simples descrença em relação às religiões, o Neoateísmo propõe que devemos agir para distanciar as religiões da Ciência (como também do Estado). Os principais proponentes do Neoateísmo no mundo são o biólogo Richard Dawkins (1941), o fi lósofo Da-niel Dennett, o jornalista recentemente

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dessas proposições, a teoria cristã em si, se torna falsa.

A forma para descobrir se algum mé-todo de saúde funciona é por meio de tes-tes clínicos com grupo controle. É assim que a efi cácia de medicamentos e até mes-mo terapias psicológicas são verifi cadas. Se o medicamento, ou terapia, consegue ter efeito maior do que de um placebo, verifi camos que ele funciona. Se o medi-camento não passa no teste clínico com grupo controle, ele nem chega às farmá-cias. Se a Ciência exige esse rigor para tes-tar suas práticas na saúde, mesmo quando possui boas razões para serem verdadei-ras, podemos, no mínimo, supor que ela deva exigir o mesmo rigor para as teses de cura religiosa. Nenhum método religioso de cura até hoje passou na meta-análise de testes clínicos com grupo controle, lem-brando que até terapias psicológicas pas-sam. Ainda, a metodologia de pesquisa não interfere no tipo de cura, ela verifi ca apenas os resultados de melhora em saú-de, qualquer prática pode ser testada por ela. Logo, oração não cura. Outras evidên-cias são o fato de um amputado nunca ser curado, o “milagre” teria que acontecer apenas com doenças cujo corpo, às ve-zes, consegue combater, como o câncer. Depois de a Ciência descobrir curas para certas doenças, as pessoas começam a atribuir o sucesso a deus, mas, antes das descobertas, Deus não curava essas doen-ças. A melhor conclusão das evidências é que se Deus existir, ele não cura2.

O Deus cristão não benefi cia seus fi -éis, pois não há nenhuma evidência de que os cristãos sejam mais bem-sucedidos do que os ateus ou pessoas de outras religi-ões. Pelo contrário, na realidade, geral-mente, os países com grande qualidade de vida são países com grande número de ateus (Suécia, Noruega, Japão, Inglaterra, Alemanha, França). A existência de ateus

2 MASTERS et al., 2006.

felizes e satisfeitos é o bastante para false-ar a hipótese de que ser fi el tem qualquer validade durante a vida.

O deus cristão não criou o ser hu-mano, as evidências são fortes de que houve evolução por seleção natural e que não houve um propósito fi nal guiando o processo. Órgãos já serviram diversas funções, 99% das espécies que existiram foram extintas, nossos cor-pos não são perfeitos, mesmo sem con-tar problemas com bactérias e vírus, diversos problemas genéticos naturais podem ocorrer, e ainda temos partes do nosso corpo que marcam a nossa his-tória evolutiva e que hoje são inúteis, como o dente do siso, sequências no DNA que não são mais funcionais e o cóccix3. Inclusive algumas pessoas ain-da nascem com rabos. Esse assunto de-manda mais tempo, e Richard Dawkins já cobriu. (Explicações: no livro O relojoeiro cego. Evidências: no livro O maior espetáculo da Terra.)

3 DAO et al., 1984.

Apesar de contribuir com a construção de conhecimento, o senso comum não ajuda a formar teorias, pois suas hipóteses teóricas comumente são equivocadas ou supersticiosas

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Para o deus cristão salvar nossas almas é preciso, em primeiro lugar, que tenha-mos almas. Mas esse não parece ser o caso, uma vez que a Neurociência mostra como as funções que eram atribuídas antiga-mente a almas são efeitos do estado espe-cífi co de nosso cérebro em dado momen-to. Até mesmo nossa personalidade4 pode se transformar se lesarmos a estrutura do cérebro, assim como memórias, identida-de pessoal, pensamento, visão, capacidade de ser bom e qualquer outra caracterís-tica que possa ser atribuída à alma. Não há personalidade, memória, identidade pessoal, pensamento após a morte, por-que mesmo na vida nós podemos perder ou modifi car essas funções apenas lesan-do nosso cérebro, quanto mais na morte, quando ele não estará mais funcionando.

O deus cristão não pode ser justo e bondoso, pois ele teria que privilegiar jogadores de futebol sobre crianças que passam fome ou nascem com doenças e deformações graves, pois é isso que real-mente acontece no mundo. O mundo não é da forma que seria se existisse um deus cristão. Os cristãos podem ter sua visão de mundo própria, mas várias de suas afi r-mações essenciais são falsas, e por isso de-vem ser distanciadas da Ciência.

Algumas pessoas podem querer res-ponder a isso dizendo que esse método de falseamento não é o sufi ciente, ou que sempre há a possibilidade de ele não atin-gir tudo que seria necessário falsear. O que

4 Evidências: Qualquer livro introdutório de Neuropsicologia citará o famoso caso de mudança de personalidade por lesão de Phineas Gage, e atualmente há inúmeros outros exemplos de lesões de outras funções

A fé tem estreita ligação com a esperança de que uma suposta teoria esteja certa. Esse método investigativo não é eficaz

O FILÓSOFO americano Daniel Dennett afirmou, em sua obra A perigosa ideia de Darwin, que o naturalista britânico Charles Darwin conseguiu demonstrar como se pode obter a ilusão da criação, sem ter de postular a existência de um criador

OS CRISTÃOS PODEM TER SUA VISÃO DEMUNDO PRÓPRIA, MAS VÁRIAS DE SUAS AFIRMAÇÕES ESSENCIAIS SÃO FALSAS, E POR ISSO DEVEM SER DISTANCIADAS DA CIÊNCIA

ocorre é que essas são as melhores formas disponíveis, e as mesmas que a Ciência exi-ge para suas teorias. Mesmo assim, alguém poderia ainda não estar satisfeito. Entre-tanto, se perguntarmos a essa pessoa se ela acredita no cupido ou em deuses hindus, ela dirá que são teorias falsas de outras cul-turas. O problema é que ela chega a essas conclusões utilizando do mesmo ou de mé-todos mais frágeis do que esse exemplifi ca-do. Alguns religiosos dizem que possuem teorias racionais, e percebo que são hones-tos. Mas racionalidade não vem de graça, ela nos força a admitir o que não quería-mos que fosse verdade. Logo, deve ser acei-to que o método para falseamento de qual-quer deus deve ser o mesmo, e se um é falso com certo método, o outro deve também ser possível de análise pelo mesmo méto-

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do. Não estou dizendo que religiosos são irracionais por natureza ou em todas suas atividades, as evidências mostram que não são. Estou apenas apontando a ocorrência de uma irracionalidade epistemológica, e todos nós podemos estar sujeitos a outras sem que percebamos.

A teoria de deus que não pode ser false-ada é aquela em que esse não interfere em nada no mundo, não criou o ser humano, não se importa com o ser humano, não faz milagres, não é justo, pode, no máximo, ter criado o universo e ter sumido (mesmo as-sim alguns físicos estariam contra esse últi-mo aspecto). O problema é que ninguém se interessa por esse deus impotente, ele não satisfaz aos religiosos e não incomoda os ateus ou cientistas. Postular ele é meramen-te um acréscimo verbal sem relevância.

A RELIGIÃO DISTANTE DA CIÊNCIA

A Religião é antieducativa. Ensinar às crianças que temos almas, que fomos criados do barro, que houve dilúvio, que Adão e Eva existiram, que oração é um método relevante para a saúde, que há um design inteligente na evolução, e que nossa moralidade e consciência são capacidades unicamente humanas (dadas por deus) é ensinar mentiras. Isso seria equivalente a ensinar que o Brasil foi colonizado por espanhóis; equivalente a ensinar que a água não é composta por H2O; equivalen-te a ensinar que força é igual energia mais gravidade. Muitas pessoas acham que o Cristianismo não deveria estar nas aulas de Ciências por equivalência cultural. É claro, outras religiões também teriam o direito. Mas o problema essencial não é essa equivalência cultural, é simplesmen-te que essas religiões possuem afi rmações falsas, e afi rmações falsas são excluídas da Ciência. Ensinar Ciência signifi ca, entre outras coisas, passar adiante as descober-tas que a humanidade batalhou muito para conquistar. Uma das tarefas importantes

de várias Ciências (Biologia, Psicologia, Economia, Neurociência, Antropologia, entre outras) é apresentar evidências so-bre quem o ser humano é e como ele fun-ciona, e a Religião vem atrapalhando essa tarefa. Nesse sentido, ensinar teses falsas da Religião é antieducativo.

Como Lawrence Krauss aponta, a Ciência, pelo seu próprio método, não pode se aliar a um livro (Bíblia) que foi escrito no Oriente Médio por pessoas que não sabiam que a Terra era redonda, e acrescento, não conheciam antibióticos, não entendiam sobre o cérebro, não sabiam da existên-cia de fósseis de Homo Neanderthalis e Denisovans (outras espécies de hominíde-os com as quais os Homo Sapiens se repro-duziram durante sua história evolutiva), não entendiam que seres humanos não são meramente semelhantes a primatas, e sim que são uma espécie de primata.

Como Christopher Hitchens aponta, a Ciência não pode aceitar que os seres humanos estiveram no mundo por 200 mil anos e apenas há 2 mil anos atrás um deus bondoso resolveu enviar Jesus, um carpinteiro (que não viveu nem quarenta anos), para contar para algumas poucas pessoas no Oriente Médio que realmente existia um deus e, apenas a partir desse

Utilizar a história de Adão e Eva para justificar a origem da humanidade é ingênuo e antieducativo, além de reforçar os ideais do patriarcado

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S DAO, A. H.; NETSKY, M. G. Human tails and pseudotails. Human Pathology, v. 15, 1984.DAWKINS, R. O maior espetáculo da Terra: As evidências da evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009._______. O relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.DENNETT, D. Quebrando o encanto. Rio de Janeiro: Globo, 2006.HARRIS, S. A morte da fé: religião, terror e o futuro da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.MASTERS, K.; SPIELMANS, G.; GOODSON, J. Are there demonstrable effects of distant intercessory prayer? A meta-analytic review. Annals of Behavioral Medicine, v. 32, n. 1, p. 21-6. , 2006.LOW, P.; PANKSEPP, J.; REISS, D.; EDELMAN, D.; VAN SWINDEREN, B.; KOCK, C. The Cambridge Declaration on Consciouness. Cambridge, Francis Crick Memorial Conference on Consciousness. Human and non-Human Animals, 2012.REICH, D.; PATTERSON, N.; KIRCHER, M.; DELFIN, F.; NANDINENI, M.R.; PUGACH, I, et al. Denisova admixture and the first modern human dispersals into Southeast Asia and Oceania. American Journal of Human Genetics, v. 89, 2011.

momento, explicar como as pesso-as deveriam agir e no que deveriam acreditar para se salvar, para espe-rarem a volta de tal carpinteiro. A Ciência precisa se ater às evidências e mostrar que o Cristianismo é só mais um mito dentre todos os ou-tros religiosos que existem.

Como Sam Harris e Daniel Dennett apontam, a Religião se apropria dos valores bons do ser humano como se fossem dela. A compaixão, o altruísmo, a espe-rança são características dos seres humanos e até de outros mamífe-ros, não são características apenas de pessoas religiosas. Essas carac-terísticas não têm relação alguma com a crença em um deus, afi nal, vários ateus também possuem essas qualidades, e também ma-míferos que cuidam do próximo, até mesmo de outra espécie. Essa é só mais uma afi rmação da Re-

ligião sobre as qualidades do ser humano e dos animais, as quais a Primatologia, Neurociência e Psi-cologia Comparativa falseiam.

Se até mesmo as teorias cientí-fi cas que foram mostradas serem falsas são excluídas da Ciência, porque as teorias religiosas falsas não deveriam ser excluídas? Logo, ao contrário do defendido por Everaldo Cescon, não temos motivo algum para pensar em uma via de mão dupla entre Ciência e Religião. A não ser que o método da fé mos-tre algum resultado, vantagem ou proponha alguma teoria verdadei-ra, mas isso ainda não aconteceu. Qualquer difi culdade que a Ciência tenha para acertar não mostra que a Religião pode ser útil, apenas mos-tra que é difícil conhecer o mundo.

Finalmente, se a Ciência fosse se aliar à Religião, por que deveria ser ao Cristianismo? Foquei no tex-to sobre crenças cristãs por serem dominantes no Brasil, mas a Ci-ência precisa buscar ser universal e não cultural. São inúmeras as religiões praticadas no mundo, diversos deuses, diversas teorias de origem, teorias do homem, da mente, cada uma com crenças con-traditórias e na maioria das vezes falsas, pois se baseiam em fé, e não em pesquisa. A Ciência não pode se aliar a um conjunto de contradi-ções ou falsidades.

Como fi ca o problema mencio-nado sobre a Ciência, que ela não pode sozinha fornecer uma visão completa do mundo? Bem, esse é o papel da Filosofi a. A Filosofi a, que também tem como base a mu-dança e o revisionismo, e não a fé, pode nos ajudar a formar visões de mundo provisórias que servem para interpretação das evidências e

Se os seres humanos ocupam a superfície da Terra há mais de 200 mil anos, por que deus só enviou um representante há 2 mil anos?

para motivação de mais pesquisas, apontando problemas a ser resol-vidos e caminhos para resolvê-los. A Filosofi a deve se manter distante das religiões pelos mesmos moti-vos que a Ciência.

Não há motivo convincente para acreditar que a Religião tenha algo a contribuir para a Ciência. Não devemos procurar uma via de mão dupla entre Ciência e Religião, isso seria buscar a falácia do falso meio-termo. Vale ressaltar que não devemos ser submissos a teorias científi cas (estas são provisórias), mas sim às evidências científi cas, que são nossa guia. Qualquer pa-pel de formação de visão de mundo que falte à Ciência pode ser abarca-do perfeitamente pela Filosofi a que aceita mudanças e que não impõe dogmas de fé ou ideias falsas.

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