autoria, narratividade e inclusão no ciberespaço

13
1 AUTORIA, NARRATIVIDADE E INCLUSÃO NO CIBERESPAÇO Márcio Henrique Melo de Andrade [email protected] Maria Auxiliadora Soares Padilha Resumo Este artigo tem como objetivo primordial identificar os aspectos da narratividade e da autoria que podem contribuir para uma inclusão digital considerando sua dimensão comunicativa. Para isso, emprega-se referências sobre a evolução e importância do ato narrativo desde os primícias do desenvolvimento humano até a contemporaneidade, focando nas características e possibilidades autorais e narrativas dentro do espaço cibernético e a relevância dessa narratividade como forma de conceber e recriar a realidade pelo sujeito. Além disso, resgata-se referências sobre as ações dos sujeitos na Sociedade da Informação e os projetos de inclusão digital, suas dimensões e as concepções que existem a seu respeito. Palavras-chave: autoria; inclusão digital; narratividade. Abstract This article aims to identify the primary aspects of the narrative and authorship that can contribute to digital inclusion considering its communicative dimension. For this, one employs references to evolution and importance of the act narrative from the first fruits of human development up to contemporary times, focusing on features and photos and narrative possibilities within cyberspace and the importance of storytelling as a way of designing and re-create reality by subject. In addition, references to rescues on the actions of individuals in the information society and digital inclusion projects, its dimensions and perceptions that exist about them.

Upload: ufpe

Post on 20-Jan-2023

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

AUTORIA, NARRATIVIDADE E INCLUSÃO NO CIBERESPAÇO

Márcio Henrique Melo de Andrade – [email protected]

Maria Auxiliadora Soares Padilha

Resumo

Este artigo tem como objetivo primordial identificar os aspectos da narratividade e da autoria que podem

contribuir para uma inclusão digital considerando sua dimensão comunicativa. Para isso, emprega-se referências

sobre a evolução e importância do ato narrativo desde os primícias do desenvolvimento humano até a

contemporaneidade, focando nas características e possibilidades autorais e narrativas dentro do espaço

cibernético e a relevância dessa narratividade como forma de conceber e recriar a realidade pelo sujeito. Além

disso, resgata-se referências sobre as ações dos sujeitos na Sociedade da Informação e os projetos de inclusão

digital, suas dimensões e as concepções que existem a seu respeito.

Palavras-chave: autoria; inclusão digital; narratividade.

Abstract

This article aims to identify the primary aspects of the narrative and authorship that can contribute to digital

inclusion considering its communicative dimension. For this, one employs references to evolution and

importance of the act narrative from the first fruits of human development up to contemporary times, focusing on

features and photos and narrative possibilities within cyberspace and the importance of storytelling as a way of

designing and re-create reality by subject. In addition, references to rescues on the actions of individuals in the

information society and digital inclusion projects, its dimensions and perceptions that exist about them.

2

Keywords: authoring, digital inclusion; narrative.

Introdução

Costuma-se afirmar que na sociedade contemporânea estabelece-se num contexto permeado pela

intitulada Cibercultura (LÉVY, 2000), cujo principal espaço comunicativo reside no ciberespaço – caracterizado

a partir da concepção, construção e difusão das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação. Bratin

(2006) considera esse este ciberespaço uma “biblioteca eletrônica” que possui como uma de suas maiores

finalidades promover a recomposição de uma memória unificada de todas as mídias – textual, visual e sonora –,

reunindo diversos arquivos e instrumentos de diversas épocas e contribuindo para a representação do sensório e

do conhecimento em suportes digitais.

Diante desta evolução e revolução tecnológica, social, cultural e política, a sociedade ganha novos

moldes e modos de existência, ganhando a alcunha de Sociedade da Informação (CASTELLS, 1999). Segundo o

autor, esta sociedade se caracteriza por uma influência cada vez maior das tecnologias digitais de informação e

comunicação para a construção e manutenção das relações dos sujeitos com o mundo em volta. Através destas

redes digitais, obtém-se acesso em tempo real a coleções abundantes de objetos digitalizados, que permitem ao

usuário o ingresso a uma grande variedade e quantidade de possibilidades de imersão nas tecnologias midiáticas.

Dentro desta nova instância, pode-se considerar como essencial ao indivíduo contemporâneo a possibilidade de

conhecer um maior número de textos e discursos em diversas linguagens publicados na rede, assim como de

criar e publicar seus próprios discursos, signos ou mensagens. Ou seja, pode-se afirmar que esta Sociedade da

Informação concebe um indivíduo que necessita aprender a trabalhar imerso nesta vastidão de informações,

selecionando-as, criticando-as e, se desejável, recriando-as de acordo com sua própria vontade.

No entanto, na mesma medida em que se propagam estes novos usos da tecnologia na sociedade, cresce a

diferença entre aqueles que a dominam e aqueles que não possuem meios de fazê-lo, gerando novas categorias

3

de exclusão social, neste caso, a chamada Exclusão Digital (SORJ e GUEDES, 2005; BRANDÃO, 2010). Em

consequência a este fato, organizações não-governamentais e o governo percebem a importância de que todos os

indivíduos tenham acesso a estas informações e promovem projetos de Inclusão Digital (ID), para que estas

pessoas desprovidas de acesso a computadores possuam condições de se sentir incluídas. Costa (2006) entende

este tipo de inclusão como uma “forma de apoio aos cidadãos numa nova perspectiva, a do cidadão na sociedade

da informação” (p. 4), enquanto Sorj e Guedes (2005) contribuem afirmando que os fenômenos de

inclusão/exclusão digital não podem ser tomados como acontecimentos levianos, pois lidam com diversos

aspectos além do simples acesso ao computador: o tempo e a qualidade deste acesso, a frequência de atualização

do hardware e do software, a capacidade de leitura e interpretação das informações disponíveis na internet e nas

trocas em redes sociais.

O foco deste trabalho reside na narratividade – escrita, visual ou sonora - como forma de contribuir para

que se ampliem as concepções e perspectivas de inclusão digital dos participantes destes projetos. Aqui,

desenvolvem-se algumas questões relacionadas à compreensão da dimensão comunicativa (BRANDÃO, 2010)

da Inclusão Digital no que se refere à criação narrativa. Dentro da minha formação profissional como roteirista,

percebo o ato narrativo como forma de construir a identidade do ser humano – individual ou coletiva –, pois,

através das histórias reais ou ficcionais que contamos, passamos a significar e nos relacionar com o ambiente

material e social à nossa volta de modo distinto das ações cotidianas. Conforme Oliveira (2006), ao parafrasear

os estudos de Wortham (2000) na área de Psicologia do Desenvolvimento, as

histórias contadas por uma pessoa são simultaneamente uma prática social (dirigidas a

uma audiência, estruturadas com base numa língua pela qual a pessoa torna pública a

experiência privada, e contendo crenças, valores e ideologias provenientes do contexto

sociocultural) e uma atividade auto-epistêmica [...], por meio da qual o sujeito se

reconhece e se transforma, ao engendrar novos significados e comportamentos e ao

tornar posição frente a eles, numa perspectiva ética (p. 431)

Ou ainda como afirma Volpe (2007),

4

a narrativa se tornaria ao longo do tempo uma possibilidade estruturante da vida, uma

múltipla busca identitária, individual e coletiva, de orientação e de sentido. Pois, se a

vida acontece como um saber surpreendido nos entremeios da linguagem e nas

possibilidades do cotidiano, ela é sempre narrativa em construção, uma tentativa

fragmentária de capturar o mundo e seus instantes decisivos, dando-lhes um sentido (p.

19, grifo do autor)

Ao escolher como objeto de estudo as possibilidades expressivas da construção de narrativas digitais por

participantes de projetos de inclusão digital, almeja-se traçar um painel dos processos de criação e

relacionamento destes sujeitos com as possíveis demandas de uma inclusão digital numa dimensão

comunicativa.

Os Sujeitos da Sociedade da Informação e da Inclusão Digital

No ciberespaço, o sujeito encontra-se em um meio que se atualiza constantemente com informações

novas, o que demanda dele atitudes para recriar sua forma e objetivos de trabalho. Segundo Bratin (2006), o

advento desta nova forma de pesquisa e produção de informação proporciona novas práticas na sociedade, na

mesma medida que terminam por conceber novas necessidades para os indivíduos.

Dessa forma, a ênfase na leitura e produção escrita, visual e sonora por meio das tecnologias digitais

passa a exigir do sujeito um espírito crítico e criativo que lhe impulsione a dominar a chamada ‘multimídia

multidimensional’. Esta plataforma caracteriza-se pela capacidade de multiplicar as diversas mídias em múltiplas

interfaces e suportes, ampliando as possibilidades comunicativas e informacionais dos atores que se permitem

envolver pela atmosfera produtiva do ciberespaço. Se os comportamentos se modificam através da alimentação

de novos paradigmas que, por sua vez, alimentam esses novos comportamentos, cabe ao sujeito definir seus

objetivos para que suas tarefas sejam concluídas de maneira plena.

5

Isso significa que, para fazer parte desse desenvolvimento tecnológico, social, cultural econômico etc., os

sujeitos precisam aderir a novas práticas: conscientizar-se de suas metas e de sua trajetória, das ferramentas e

materiais adequados e disponíveis para a realização do seu trabalho, seja ele cultural, artístico, profissional,

informacional, educativo, espiritual etc. Pensar o sujeito diante nessas circunstâncias implica pensá-lo diante de

processos de subjetivação que participem da concepção de sua individualidade ou, como afirma Tedesco (2006),

“um processo de produção dirigido à geração de modos de existências, ou seja, modos de agir, de sentir, de dizer

o mundo” (p. 358).

Atravessando estes processos com uma mediação mais concreta e diversificada das Tecnologias de

Informação e Comunicação, os sujeitos da Sociedade da Informação (CASTELLS, 1999) podem empregar estas

tecnologias como meio de se conscientizar das possibilidades e limitações de seus comportamentos, o que,

entretanto, não acontece à maioria dos indivíduos, caracterizando um processo de exclusão. Compreendendo as

consequências do processo de exclusão que compõe a partir da difusão massiva das tecnologias e práticas

advindas deste processo de tecnologização e midiatização da sociedade, vários projetos vêm sendo concebidos a

fim de ampliar as condições de acesso destes sujeitos chamados excluídos.

O processo de Inclusão Digital (ID) consiste em oferecer a estas pessoas condições de se inserir na

sociedade através do conhecimento e dos usos das Tecnologias de Informação e Comunicação. Trabalhando com

ênfase no aprendizado tecnológico, na empregabilidade e na capacidade de produzir dos sujeitos, ela pode ser

melhor compreendida através de suas dimensões. Brandão (2010), por exemplo, apresenta quatro dimensões de

ID que podem ser definidas como:

Dimensão Técnica - que abrange aspectos de estrutura física, materiais e recursos técnicos

capazes de garantir o acesso às tecnologias e suas possibilidades de informação e formação;

Dimensão educacional - definida como a habilidade de codificar/decodificar a palavra escrita

dentro do espaço cibernético;

Dimensão comunicativa - caracterizada como formas de produção e transmissão de mensagens

utilizando as múltiplas linguagens que compõem o universo multimídia;

6

Dimensão de Competência Informacional - que lida com a capacidade do usuário conduzir sua

apreensão e ação sobre a escrita no ciberespaço.

Cada dimensão possui sua relevância em determinadas etapas e projetos de ID, contudo, almeja-se

enfatizar neste estudo a dimensão comunicativa, que enfatiza as experiências de autoria e criação no ciberespaço,

utilizando as diversas linguagens que podem estar dispostas nesse meio – visual, sonora, oral, escrita, táctil-

motora.

Autoria e Narratividade para Inclusão Digital

Diante destas possibilidades de Inclusão Digital, como, então, potencializar os aspectos autorais dos

sujeitos – descritos na dimensão comunicativa - no ciberespaço? Para saber como catalisar esse tipo de ação, os

participantes precisam conhecer os aspectos da “matéria-prima” em que se vai atuar (aspectos formais), que

tipos de trabalho podem ser desenvolvidos (resultados e objetivos possíveis) e, finalmente, serem estimulados a

perceber / imaginar os tipos de conteúdo que podem criar (os temas e narrativas).

Sobre as características formais do ciberespaço como meio de comunicação, Benkler apud Silveira

(2008) defende que ele apresenta dois grandes diferenciais em relação à convencional produção em broadcasting

(de “um emissor para muitos receptores”): a arquitetura da rede – distribuída, com conexões multidirecionais que

formam um ambiente de elevada interatividade – e os custos de produção de mensagens – praticamente

eliminados quando os produtores potenciais possuem computador e conexões com rede digital. Estes diferenciais

proporcionam a nós, usuários comuns, a condição de novos “protagonistas” da comunicação, aqueles que “não

encontravam espaço adequado em outros contextos, como nas mídias tradicionais (imprensa e TV), onde se

entrelaçam aspectos da comunicação midiática com outros das relações interpessoais” (PERRECINI, 2010, p.

13), mas podem, hoje, alternar-se entre a recepção e a produção de conteúdos como forma de contribuir para esta

esfera comunicacional com sua perspectiva a respeito de si e do outro.

7

Quanto aos trabalhos que podem ser desenvolvidos no ciberespaço, Bratin (2006) compreende que a

internet, ou biblioteca eletrônica, constitui-se como uma comunidade aberta fundamentada na autoria

compartilhada ou criação coletiva. Essa comunidade, os criadores de documentos e obras das mais diversas

vertentes oferecerão aos usuários a possibilidade de participar com a finalidade de complementar não somente o

sentido do texto, mas também a forma como foi concebido. Os trabalhos que se pretende enfatizar neste artigo

pertencem à ordem das artes e narrativas digitais ou, mais especificamente, do ato narrativo por meio das

tecnologias digitais. Se o homem, desde o início de seu processo evolutivo, caracteriza-se por criar linguagens

para interagir com seu entorno - pinturas, peças teatrais, danças, filmes, livros, músicas, dentre outras –

naturalmente o meio digital torna-se uma nova “matéria-prima” para o desenvolvimento de novas formas de

criação.

A narrativa pode ser definida como uma “forma de comunicação humana que, estimulando a imaginação

e o devaneio, propõe uma experiência intersubjetiva na qual a realidade que a circunda se apresenta de forma

indireta” (COSTA, 2002, p. 12). Sejam reais ou ficcionais, as narrativas possibilitam ao seu autor a produção de

enunciados subjetivos a respeito de uma realidade objetiva, mitos e discursos que constroem identidades

individuais ou coletivas, promovem e perpetuam cosmovisões. As maneiras de se construir a narrativa evoluíram

desde as primícias da humanidade até as mais avançadas técnicas de produção de narrativas interativas,

construindo, atualmente, um período concebido como “Era Midiática”. Nesta “era”, a construção narrativa

passou da ação de compartilhar memórias e comentar acontecimentos e sentimentos para se perpetuar como bem

de consumo na indústria cultural, além de estratégia de construção, proliferação e manutenção de ideologias e

símbolos. Em síntese, Barthes (1993) afirma que a narrativa

está presente no mito, lenda, fábula, conto, novela, epopéia, história, tragédia, drama,

comédia, mímica, pintura [...], vitrais de janelas, cinema, histórias em quadrinho, notícias,

conversação. (apud JOVCHELOVITCH E BAUER, 2008, grifo nosso, p. 91).

8

O ser humano convive diária e diretamente com processos e produtos narrativos que podem ser

disponibilizados de diversos formatos e suportes - músicas, filmes, seriados, contos, depoimentos, dentre outras.

Diante dessa variedade, Gaudreault e Jost (2009), parafraseando Metz (1968), distinguem cinco critérios para

definir os aspectos primordiais do ato narrativo. São eles:

a) Uma narrativa possui um começo, meio e fim, ou seja, por mais que se baseie em fatos reais ou

imaginários que tenham conteúdos anteriores e posteriores aos que foram incluídos na obra, uma

narrativa seleciona um “recorte” desse universo específico para compor seu enredo.

b) Uma narrativa é uma sequência de duas temporalidades: uma, a sequência cronológica dos

eventos do conteúdo que está sendo narrado; outra, da “leitura” dos significantes dispostos na

narrativa pelo usuário. Esses significantes, unidos ao conteúdo, formam o ato narrativo, pois

envolvem as ações de dois interlocutores.

c) Toda narrativa se concebe como um discurso, isto é, ela se compõe de enunciados que

pressupõem um subtexto que o autor orquestra a partir do seu repertório sígnico.

d) A consciência da narrativa “desrealiza” a coisa contada, ou seja, observar a narrativa como um

ponto de vista sobre um acontecimento faz com que o indivíduo que a lê compreenda o ponto de

vista do autor sobre esse fato.

e) A narrativa se configura como um conjunto de acontecimentos, formado por enunciados que

podem ser as palavras, as imagens e sons.

As artes digitais – e também as narrativas digitais - carregam tanto os aspectos supracitados como são

descritas por Lévy (2000) como “novas modalidades de produção e de recepção de obras do espírito” (p.135),

multiplicando os conceitos e possibilidades de construção estética de sentidos para autores e espectadores e

empregando as tecnologias digitais visando provocar experiências que as mídias anteriores não possibilitavam.

As principais características das narrativas digitais são a participação – em que se “convida” o usuário /

experimentador / explorador para completar / intervir diretamente na execução da obra -, a criação coletiva –

como a colaboração entre os artistas e os participantes, registros de interação que podem compor uma obra,

9

dentre outras possibilidades – e a criação contínua – a “abertura” de uma obra para interações e eventualidades

imprevisíveis diante do participante, proporcionando sempre eventos diferentes para quem “participa” da obra,

como um happening1 (LÉVY, 2000). Segundo Holanda (2010), podem ser considerados exemplos de narrativas

digitais a twitteratura2, a wikiliteratura

3, o romance hipermídia

4 e tantos outros exemplos que mesclam as

linguagens textuais, visuais e sonoras a fim de criar tantas interseções possíveis entre estas. Se, com a imprensa e

o cinema, o papel da audiência restringia-se somente à recepção do produto no seu sentido mais limitado – isto é,

sem possibilidade de interferência na sua concepção ou execução -, nas narrativas digitais, essas perspectivas se

ampliam ao permitir ao usuário comum não somente ter contato com a obra ou comentar sobre ela, mas,

principalmente, criar e publicar suas próprias obras.

Retomando os processos de subjetivação (TEDESCO, 2006), este trabalho visa enfatizar “como” os atos

narrativos podem se desenvolver a partir desse tipo de processo (ou seja, partindo da individualidade dos

sujeitos) e funcionar também como processo por si, que promova a ampliação das concepções e perspectivas de

inclusão digital dos participantes. Não se trata somente de alcançar resultados concretos – a criação da narrativa

em si – ou de seus resultados abstratos – desenvolvimento da capacidade de se comunicar e expressar –, mas de

criar as condições necessárias para que os sujeitos desenvolvam a “vontade” de se expressar. Faz-se necessário

que os idealizadores deste tipo de projeto possam motivar uma autoria que, ao mesmo tempo, permita que os

integrantes olhem para si mesmos e criem histórias que sejam relevantes às suas crenças, sonhos e

1 Obra de arte que, utilizando técnicas de “colagem”, mescla poesia, música, artes visuais, visando a participação do

espectador e a imprevisibilidade que esta interação pode trazer.

2 Criação literária utilizando a rede social Twitter.

3 Criação colaborativa de textos em rede, utilizando as wikis.

4 Romance que inclui imagens, sons e animações

10

comportamentos e, dessa forma, contribuam no seu processo de inclusão digital e social. Na leitura e na escrita

de uma narrativa, autores e leitores estabelecem relações de comunicação e, principalmente, de

compartilhamento de sua humanidade e capacidade de ver, ouvir, conhecer o outro. Se, como afirma Tedesco

(2006), a subjetividade se constrói também a partir das relações de força e das trocas que são estabelecidas entre

homem e sociedade, o ato autoral e narrativo pode ser considerado um desses modos, proporcionando a

capacidade de se comunicar pela rede.

Em suma, a autoria para inclusão digital torna-se um processo dialógico, em que, na mesma medida em

que se cria um novo tipo de leitor, as narrativas digitais possibilitam a concepção de um novo tipo de autoria,

aquela em que o criador concebe sua obra de forma aberta, ampliando as possibilidades de interferência pelo

público. A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que o ato narrativo por meio das tecnologias digitais pode

empregar a autoria como estratégia de desenvolvimento da autonomia crítica e criativa dos sujeitos diante das

circunstâncias, propondo pontos de vistas alternativos aos hegemônicos por alcançar uma sensibilidade por vezes

relegada a um incômodo segundo plano no cotidiano. Criar narrativas multiplica as possibilidades de o sujeito

tomar consciência de sua própria condição – social, econômica, cultural etc. – e conceber alternativas que sejam

convenientes e adequadas aos seus objetivos.

Considerações

O desenvolvimento da sociedade tecnologizada com que lidamos nesta era contemporânea nos conduz

para uma nova lógica de compreensão de papéis do sujeito: a da fluidez ao invés da estagnação. Esta lógica

fluida da distribuição e atuação dos sujeitos na sociedade se fortalece através das tecnologias digitais de

informação e comunicação, que possibilitam uma maior interferência nos meios de produção de informação. A

partir dos conceitos discutidos neste artigo, pode-se compreender não somente o papel de um novo tipo de leitor

dentro desta Sociedade da Informação, mas principalmente o novo papel do autor.

11

Aprender a ler criticamente os produtos midiáticos torna-se primordial para uma participação incisiva na

comunidade, compreendendo como papel do indivíduo construir sua identidade e reconhecê-la dentro dos

processos de interação na sociedade. Num equilíbrio entre as obras da mente e do espírito, o indivíduo demanda

participações críticas e criativas que permitam uma percepção do sujeito, de fato, incluído socialmente.

Concebendo uma dimensão comunicativa desta inclusão através das tecnologias digitais, a construção narrativa

possibilita ao sujeito descrever sentimentos, fatos, pensamentos que transcendam a realidade objetiva e alcancem

percepções subjetivas sobre os acontecimentos que o cercam. A partir dessa capacidade de leitura, desenvolvem-

se autores que se aventuram a permitir que os ‘leitores’ também se tornem autores, concebendo uma autoria de

fato compartilhada entre sujeitos que se alternam na fluidez e seus papéis.

A partir da compreensão das possibilidades inclusivas deste novo tipo de autoria dentro do ciberespaço,

pode-se favorecer a constituição de sujeitos conscientes e críticos na Sociedade da Informação, não

simplesmente imersos na infinidade de informações e hiperlinks distribuídos na rede. Lidar com a biblioteca

eletrônica requer doses de ousadia e criatividade na experimentação de novos modos de conhecer e produzir, a

fim de se construir informação com solidez e coerência. O ato narrativo dentro do meio digital proporciona ao

indivíduo a publicação do seu ‘eu’ a uma gama maior de pessoas de uma maneira mais criativa e expressiva,

ampliando também as possibilidades de participação de outros sujeitos em sua própria narrativa, tornando-se, de

fato, um participante da Sociedade da Informação que se constrói em seu redor.

Diante dessa contextualização, considera-se possível que a produção de narrativas digitais amplie as

concepções e perspectivas de inclusão digital vinculada às perspectivas autorais dos sujeitos. Uma resposta

provisória seria a de que esta inclusão digital numa dimensão comunicativa acontece por meio da autoria desde

estimulada por meio de processos de subjetivação que permitam a esses sujeitos esse “olhar interior” que lhes

possibilite conhecer o que deseja narrar, as causas que o conduzem a esse ato e que objetivos almeja alcançar

com ele. Com as mudanças na construção e recepção narrativa por conta da difusão dos meios digitais, é

necessário que se formem novos “receptores” com a capacidade de produzir novas narrativas, novos

protagonistas, como afirma Costa (2002):

12

alcançar o outro no universo da cultura é expandir nossa vivência para além dos limites

estabelecidos por nossa individualidade, acrescentando a ela a visão e a experiência

alheias, de um ponto de vista novo, de outro modo intangível” (p. 11)

Bratin (2006), ao conjeturar novas dinâmicas necessárias para um cotidiano mediado pelas novas

tecnologias de informação e comunicação, permite a visualização da internet de forma mais abrangente e

conectada aos movimentos tecnológicos anteriores – e praticamente – que demandas de práxis esta nova

conjuntura propõe, assim como que ações impõem mudanças nessa conjuntura. Num ourobouros de mútuas

influências, a sociedade, os sujeitos e as tecnologias complementam-se numa dialética que conecta reflexão e

prática para a inclusão digital e social de todos.

Referências

BRANDÃO, Marco. Dimensões da inclusão digital. São Paulo: All Print Editora, 2010.

BRATIN, Marc. Novas tecnologias, novos problemas. In: BRATIN, Marc. O poder das bibliotecas. Rio de

Janeiro: UFRJ Editora, 2006. Cap. 6.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.1. São

Paulo: Paz e Terra, 1999.

CAZELOTO, Edilson. A inclusão digital e o capitalismo contemporâneo. PUC. São Paulo, 2007.

COSTA, Cristina. Ficção, Comunicação e Mídias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

GAUDREAULT, André. JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 2009.

13

HOLANDA, Heloísa Buarque de. A literatura na era digital. 2010. Disponível online via URL:

http://rumositaucultural.files.wordpress.com/2010/06/heloisa-buarque-de-hollanda-a-literatura-da-era-digital.pdf.

Acesso: 21.04.2012

JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin. Entrevista Narrativa. In: BAUER, Martin; GASKELL, George

(org). Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 7.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2000.

OLIVEIRA, Maria Claudia S. L. Identidade, Narrativa e Desenvolvimento na Adolescência: Uma Revisão

Crítica. In: Psicologia em Estudo, v. 11, n. 2, p. 427-436, mai./ago. 2006.

PERRECINI, Mirco. As Narrativas Digitais: Questões Estéticas e Relatos de Patologias nas comunidades

Virtuais. Educativa, Goiânia, v.13, n. 1, p. 11-44, jan/jun. 2010.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Convergência Digital, diversidade cultural e esfera pública. In: PRETTO,

Nelson De Luca; SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. (orgs). Além das redes de colaboração: internet, diversidade

cultural e tecnologias do poder. Salvador: EDUFBA, 2008.

SORJ, B. e GUEDES, L.E. Exclusão Digital: problemas conceituais, evidências empíricas e políticas públicas.

Novos Estudos. CEBRAP. N.72. junho de 2005

TEDESCO, Sílvia. As práticas do dizer e os processos de subjetivação. Interação em Psicologia, 2006, 10(2),

p.357-362.

VOLPE, Altivir. Fotografia, narrativa e grupo: Lugares onde pôr o que vivemos. 2007. 197 f. Tese

(Doutorado em Psicologia). Universidade de São Paulo. 2007.