autoria, narratividade e inclusão no ciberespaço
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AUTORIA, NARRATIVIDADE E INCLUSÃO NO CIBERESPAÇO
Márcio Henrique Melo de Andrade – [email protected]
Maria Auxiliadora Soares Padilha
Resumo
Este artigo tem como objetivo primordial identificar os aspectos da narratividade e da autoria que podem
contribuir para uma inclusão digital considerando sua dimensão comunicativa. Para isso, emprega-se referências
sobre a evolução e importância do ato narrativo desde os primícias do desenvolvimento humano até a
contemporaneidade, focando nas características e possibilidades autorais e narrativas dentro do espaço
cibernético e a relevância dessa narratividade como forma de conceber e recriar a realidade pelo sujeito. Além
disso, resgata-se referências sobre as ações dos sujeitos na Sociedade da Informação e os projetos de inclusão
digital, suas dimensões e as concepções que existem a seu respeito.
Palavras-chave: autoria; inclusão digital; narratividade.
Abstract
This article aims to identify the primary aspects of the narrative and authorship that can contribute to digital
inclusion considering its communicative dimension. For this, one employs references to evolution and
importance of the act narrative from the first fruits of human development up to contemporary times, focusing on
features and photos and narrative possibilities within cyberspace and the importance of storytelling as a way of
designing and re-create reality by subject. In addition, references to rescues on the actions of individuals in the
information society and digital inclusion projects, its dimensions and perceptions that exist about them.
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Keywords: authoring, digital inclusion; narrative.
Introdução
Costuma-se afirmar que na sociedade contemporânea estabelece-se num contexto permeado pela
intitulada Cibercultura (LÉVY, 2000), cujo principal espaço comunicativo reside no ciberespaço – caracterizado
a partir da concepção, construção e difusão das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação. Bratin
(2006) considera esse este ciberespaço uma “biblioteca eletrônica” que possui como uma de suas maiores
finalidades promover a recomposição de uma memória unificada de todas as mídias – textual, visual e sonora –,
reunindo diversos arquivos e instrumentos de diversas épocas e contribuindo para a representação do sensório e
do conhecimento em suportes digitais.
Diante desta evolução e revolução tecnológica, social, cultural e política, a sociedade ganha novos
moldes e modos de existência, ganhando a alcunha de Sociedade da Informação (CASTELLS, 1999). Segundo o
autor, esta sociedade se caracteriza por uma influência cada vez maior das tecnologias digitais de informação e
comunicação para a construção e manutenção das relações dos sujeitos com o mundo em volta. Através destas
redes digitais, obtém-se acesso em tempo real a coleções abundantes de objetos digitalizados, que permitem ao
usuário o ingresso a uma grande variedade e quantidade de possibilidades de imersão nas tecnologias midiáticas.
Dentro desta nova instância, pode-se considerar como essencial ao indivíduo contemporâneo a possibilidade de
conhecer um maior número de textos e discursos em diversas linguagens publicados na rede, assim como de
criar e publicar seus próprios discursos, signos ou mensagens. Ou seja, pode-se afirmar que esta Sociedade da
Informação concebe um indivíduo que necessita aprender a trabalhar imerso nesta vastidão de informações,
selecionando-as, criticando-as e, se desejável, recriando-as de acordo com sua própria vontade.
No entanto, na mesma medida em que se propagam estes novos usos da tecnologia na sociedade, cresce a
diferença entre aqueles que a dominam e aqueles que não possuem meios de fazê-lo, gerando novas categorias
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de exclusão social, neste caso, a chamada Exclusão Digital (SORJ e GUEDES, 2005; BRANDÃO, 2010). Em
consequência a este fato, organizações não-governamentais e o governo percebem a importância de que todos os
indivíduos tenham acesso a estas informações e promovem projetos de Inclusão Digital (ID), para que estas
pessoas desprovidas de acesso a computadores possuam condições de se sentir incluídas. Costa (2006) entende
este tipo de inclusão como uma “forma de apoio aos cidadãos numa nova perspectiva, a do cidadão na sociedade
da informação” (p. 4), enquanto Sorj e Guedes (2005) contribuem afirmando que os fenômenos de
inclusão/exclusão digital não podem ser tomados como acontecimentos levianos, pois lidam com diversos
aspectos além do simples acesso ao computador: o tempo e a qualidade deste acesso, a frequência de atualização
do hardware e do software, a capacidade de leitura e interpretação das informações disponíveis na internet e nas
trocas em redes sociais.
O foco deste trabalho reside na narratividade – escrita, visual ou sonora - como forma de contribuir para
que se ampliem as concepções e perspectivas de inclusão digital dos participantes destes projetos. Aqui,
desenvolvem-se algumas questões relacionadas à compreensão da dimensão comunicativa (BRANDÃO, 2010)
da Inclusão Digital no que se refere à criação narrativa. Dentro da minha formação profissional como roteirista,
percebo o ato narrativo como forma de construir a identidade do ser humano – individual ou coletiva –, pois,
através das histórias reais ou ficcionais que contamos, passamos a significar e nos relacionar com o ambiente
material e social à nossa volta de modo distinto das ações cotidianas. Conforme Oliveira (2006), ao parafrasear
os estudos de Wortham (2000) na área de Psicologia do Desenvolvimento, as
histórias contadas por uma pessoa são simultaneamente uma prática social (dirigidas a
uma audiência, estruturadas com base numa língua pela qual a pessoa torna pública a
experiência privada, e contendo crenças, valores e ideologias provenientes do contexto
sociocultural) e uma atividade auto-epistêmica [...], por meio da qual o sujeito se
reconhece e se transforma, ao engendrar novos significados e comportamentos e ao
tornar posição frente a eles, numa perspectiva ética (p. 431)
Ou ainda como afirma Volpe (2007),
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a narrativa se tornaria ao longo do tempo uma possibilidade estruturante da vida, uma
múltipla busca identitária, individual e coletiva, de orientação e de sentido. Pois, se a
vida acontece como um saber surpreendido nos entremeios da linguagem e nas
possibilidades do cotidiano, ela é sempre narrativa em construção, uma tentativa
fragmentária de capturar o mundo e seus instantes decisivos, dando-lhes um sentido (p.
19, grifo do autor)
Ao escolher como objeto de estudo as possibilidades expressivas da construção de narrativas digitais por
participantes de projetos de inclusão digital, almeja-se traçar um painel dos processos de criação e
relacionamento destes sujeitos com as possíveis demandas de uma inclusão digital numa dimensão
comunicativa.
Os Sujeitos da Sociedade da Informação e da Inclusão Digital
No ciberespaço, o sujeito encontra-se em um meio que se atualiza constantemente com informações
novas, o que demanda dele atitudes para recriar sua forma e objetivos de trabalho. Segundo Bratin (2006), o
advento desta nova forma de pesquisa e produção de informação proporciona novas práticas na sociedade, na
mesma medida que terminam por conceber novas necessidades para os indivíduos.
Dessa forma, a ênfase na leitura e produção escrita, visual e sonora por meio das tecnologias digitais
passa a exigir do sujeito um espírito crítico e criativo que lhe impulsione a dominar a chamada ‘multimídia
multidimensional’. Esta plataforma caracteriza-se pela capacidade de multiplicar as diversas mídias em múltiplas
interfaces e suportes, ampliando as possibilidades comunicativas e informacionais dos atores que se permitem
envolver pela atmosfera produtiva do ciberespaço. Se os comportamentos se modificam através da alimentação
de novos paradigmas que, por sua vez, alimentam esses novos comportamentos, cabe ao sujeito definir seus
objetivos para que suas tarefas sejam concluídas de maneira plena.
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Isso significa que, para fazer parte desse desenvolvimento tecnológico, social, cultural econômico etc., os
sujeitos precisam aderir a novas práticas: conscientizar-se de suas metas e de sua trajetória, das ferramentas e
materiais adequados e disponíveis para a realização do seu trabalho, seja ele cultural, artístico, profissional,
informacional, educativo, espiritual etc. Pensar o sujeito diante nessas circunstâncias implica pensá-lo diante de
processos de subjetivação que participem da concepção de sua individualidade ou, como afirma Tedesco (2006),
“um processo de produção dirigido à geração de modos de existências, ou seja, modos de agir, de sentir, de dizer
o mundo” (p. 358).
Atravessando estes processos com uma mediação mais concreta e diversificada das Tecnologias de
Informação e Comunicação, os sujeitos da Sociedade da Informação (CASTELLS, 1999) podem empregar estas
tecnologias como meio de se conscientizar das possibilidades e limitações de seus comportamentos, o que,
entretanto, não acontece à maioria dos indivíduos, caracterizando um processo de exclusão. Compreendendo as
consequências do processo de exclusão que compõe a partir da difusão massiva das tecnologias e práticas
advindas deste processo de tecnologização e midiatização da sociedade, vários projetos vêm sendo concebidos a
fim de ampliar as condições de acesso destes sujeitos chamados excluídos.
O processo de Inclusão Digital (ID) consiste em oferecer a estas pessoas condições de se inserir na
sociedade através do conhecimento e dos usos das Tecnologias de Informação e Comunicação. Trabalhando com
ênfase no aprendizado tecnológico, na empregabilidade e na capacidade de produzir dos sujeitos, ela pode ser
melhor compreendida através de suas dimensões. Brandão (2010), por exemplo, apresenta quatro dimensões de
ID que podem ser definidas como:
Dimensão Técnica - que abrange aspectos de estrutura física, materiais e recursos técnicos
capazes de garantir o acesso às tecnologias e suas possibilidades de informação e formação;
Dimensão educacional - definida como a habilidade de codificar/decodificar a palavra escrita
dentro do espaço cibernético;
Dimensão comunicativa - caracterizada como formas de produção e transmissão de mensagens
utilizando as múltiplas linguagens que compõem o universo multimídia;
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Dimensão de Competência Informacional - que lida com a capacidade do usuário conduzir sua
apreensão e ação sobre a escrita no ciberespaço.
Cada dimensão possui sua relevância em determinadas etapas e projetos de ID, contudo, almeja-se
enfatizar neste estudo a dimensão comunicativa, que enfatiza as experiências de autoria e criação no ciberespaço,
utilizando as diversas linguagens que podem estar dispostas nesse meio – visual, sonora, oral, escrita, táctil-
motora.
Autoria e Narratividade para Inclusão Digital
Diante destas possibilidades de Inclusão Digital, como, então, potencializar os aspectos autorais dos
sujeitos – descritos na dimensão comunicativa - no ciberespaço? Para saber como catalisar esse tipo de ação, os
participantes precisam conhecer os aspectos da “matéria-prima” em que se vai atuar (aspectos formais), que
tipos de trabalho podem ser desenvolvidos (resultados e objetivos possíveis) e, finalmente, serem estimulados a
perceber / imaginar os tipos de conteúdo que podem criar (os temas e narrativas).
Sobre as características formais do ciberespaço como meio de comunicação, Benkler apud Silveira
(2008) defende que ele apresenta dois grandes diferenciais em relação à convencional produção em broadcasting
(de “um emissor para muitos receptores”): a arquitetura da rede – distribuída, com conexões multidirecionais que
formam um ambiente de elevada interatividade – e os custos de produção de mensagens – praticamente
eliminados quando os produtores potenciais possuem computador e conexões com rede digital. Estes diferenciais
proporcionam a nós, usuários comuns, a condição de novos “protagonistas” da comunicação, aqueles que “não
encontravam espaço adequado em outros contextos, como nas mídias tradicionais (imprensa e TV), onde se
entrelaçam aspectos da comunicação midiática com outros das relações interpessoais” (PERRECINI, 2010, p.
13), mas podem, hoje, alternar-se entre a recepção e a produção de conteúdos como forma de contribuir para esta
esfera comunicacional com sua perspectiva a respeito de si e do outro.
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Quanto aos trabalhos que podem ser desenvolvidos no ciberespaço, Bratin (2006) compreende que a
internet, ou biblioteca eletrônica, constitui-se como uma comunidade aberta fundamentada na autoria
compartilhada ou criação coletiva. Essa comunidade, os criadores de documentos e obras das mais diversas
vertentes oferecerão aos usuários a possibilidade de participar com a finalidade de complementar não somente o
sentido do texto, mas também a forma como foi concebido. Os trabalhos que se pretende enfatizar neste artigo
pertencem à ordem das artes e narrativas digitais ou, mais especificamente, do ato narrativo por meio das
tecnologias digitais. Se o homem, desde o início de seu processo evolutivo, caracteriza-se por criar linguagens
para interagir com seu entorno - pinturas, peças teatrais, danças, filmes, livros, músicas, dentre outras –
naturalmente o meio digital torna-se uma nova “matéria-prima” para o desenvolvimento de novas formas de
criação.
A narrativa pode ser definida como uma “forma de comunicação humana que, estimulando a imaginação
e o devaneio, propõe uma experiência intersubjetiva na qual a realidade que a circunda se apresenta de forma
indireta” (COSTA, 2002, p. 12). Sejam reais ou ficcionais, as narrativas possibilitam ao seu autor a produção de
enunciados subjetivos a respeito de uma realidade objetiva, mitos e discursos que constroem identidades
individuais ou coletivas, promovem e perpetuam cosmovisões. As maneiras de se construir a narrativa evoluíram
desde as primícias da humanidade até as mais avançadas técnicas de produção de narrativas interativas,
construindo, atualmente, um período concebido como “Era Midiática”. Nesta “era”, a construção narrativa
passou da ação de compartilhar memórias e comentar acontecimentos e sentimentos para se perpetuar como bem
de consumo na indústria cultural, além de estratégia de construção, proliferação e manutenção de ideologias e
símbolos. Em síntese, Barthes (1993) afirma que a narrativa
está presente no mito, lenda, fábula, conto, novela, epopéia, história, tragédia, drama,
comédia, mímica, pintura [...], vitrais de janelas, cinema, histórias em quadrinho, notícias,
conversação. (apud JOVCHELOVITCH E BAUER, 2008, grifo nosso, p. 91).
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O ser humano convive diária e diretamente com processos e produtos narrativos que podem ser
disponibilizados de diversos formatos e suportes - músicas, filmes, seriados, contos, depoimentos, dentre outras.
Diante dessa variedade, Gaudreault e Jost (2009), parafraseando Metz (1968), distinguem cinco critérios para
definir os aspectos primordiais do ato narrativo. São eles:
a) Uma narrativa possui um começo, meio e fim, ou seja, por mais que se baseie em fatos reais ou
imaginários que tenham conteúdos anteriores e posteriores aos que foram incluídos na obra, uma
narrativa seleciona um “recorte” desse universo específico para compor seu enredo.
b) Uma narrativa é uma sequência de duas temporalidades: uma, a sequência cronológica dos
eventos do conteúdo que está sendo narrado; outra, da “leitura” dos significantes dispostos na
narrativa pelo usuário. Esses significantes, unidos ao conteúdo, formam o ato narrativo, pois
envolvem as ações de dois interlocutores.
c) Toda narrativa se concebe como um discurso, isto é, ela se compõe de enunciados que
pressupõem um subtexto que o autor orquestra a partir do seu repertório sígnico.
d) A consciência da narrativa “desrealiza” a coisa contada, ou seja, observar a narrativa como um
ponto de vista sobre um acontecimento faz com que o indivíduo que a lê compreenda o ponto de
vista do autor sobre esse fato.
e) A narrativa se configura como um conjunto de acontecimentos, formado por enunciados que
podem ser as palavras, as imagens e sons.
As artes digitais – e também as narrativas digitais - carregam tanto os aspectos supracitados como são
descritas por Lévy (2000) como “novas modalidades de produção e de recepção de obras do espírito” (p.135),
multiplicando os conceitos e possibilidades de construção estética de sentidos para autores e espectadores e
empregando as tecnologias digitais visando provocar experiências que as mídias anteriores não possibilitavam.
As principais características das narrativas digitais são a participação – em que se “convida” o usuário /
experimentador / explorador para completar / intervir diretamente na execução da obra -, a criação coletiva –
como a colaboração entre os artistas e os participantes, registros de interação que podem compor uma obra,
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dentre outras possibilidades – e a criação contínua – a “abertura” de uma obra para interações e eventualidades
imprevisíveis diante do participante, proporcionando sempre eventos diferentes para quem “participa” da obra,
como um happening1 (LÉVY, 2000). Segundo Holanda (2010), podem ser considerados exemplos de narrativas
digitais a twitteratura2, a wikiliteratura
3, o romance hipermídia
4 e tantos outros exemplos que mesclam as
linguagens textuais, visuais e sonoras a fim de criar tantas interseções possíveis entre estas. Se, com a imprensa e
o cinema, o papel da audiência restringia-se somente à recepção do produto no seu sentido mais limitado – isto é,
sem possibilidade de interferência na sua concepção ou execução -, nas narrativas digitais, essas perspectivas se
ampliam ao permitir ao usuário comum não somente ter contato com a obra ou comentar sobre ela, mas,
principalmente, criar e publicar suas próprias obras.
Retomando os processos de subjetivação (TEDESCO, 2006), este trabalho visa enfatizar “como” os atos
narrativos podem se desenvolver a partir desse tipo de processo (ou seja, partindo da individualidade dos
sujeitos) e funcionar também como processo por si, que promova a ampliação das concepções e perspectivas de
inclusão digital dos participantes. Não se trata somente de alcançar resultados concretos – a criação da narrativa
em si – ou de seus resultados abstratos – desenvolvimento da capacidade de se comunicar e expressar –, mas de
criar as condições necessárias para que os sujeitos desenvolvam a “vontade” de se expressar. Faz-se necessário
que os idealizadores deste tipo de projeto possam motivar uma autoria que, ao mesmo tempo, permita que os
integrantes olhem para si mesmos e criem histórias que sejam relevantes às suas crenças, sonhos e
1 Obra de arte que, utilizando técnicas de “colagem”, mescla poesia, música, artes visuais, visando a participação do
espectador e a imprevisibilidade que esta interação pode trazer.
2 Criação literária utilizando a rede social Twitter.
3 Criação colaborativa de textos em rede, utilizando as wikis.
4 Romance que inclui imagens, sons e animações
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comportamentos e, dessa forma, contribuam no seu processo de inclusão digital e social. Na leitura e na escrita
de uma narrativa, autores e leitores estabelecem relações de comunicação e, principalmente, de
compartilhamento de sua humanidade e capacidade de ver, ouvir, conhecer o outro. Se, como afirma Tedesco
(2006), a subjetividade se constrói também a partir das relações de força e das trocas que são estabelecidas entre
homem e sociedade, o ato autoral e narrativo pode ser considerado um desses modos, proporcionando a
capacidade de se comunicar pela rede.
Em suma, a autoria para inclusão digital torna-se um processo dialógico, em que, na mesma medida em
que se cria um novo tipo de leitor, as narrativas digitais possibilitam a concepção de um novo tipo de autoria,
aquela em que o criador concebe sua obra de forma aberta, ampliando as possibilidades de interferência pelo
público. A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que o ato narrativo por meio das tecnologias digitais pode
empregar a autoria como estratégia de desenvolvimento da autonomia crítica e criativa dos sujeitos diante das
circunstâncias, propondo pontos de vistas alternativos aos hegemônicos por alcançar uma sensibilidade por vezes
relegada a um incômodo segundo plano no cotidiano. Criar narrativas multiplica as possibilidades de o sujeito
tomar consciência de sua própria condição – social, econômica, cultural etc. – e conceber alternativas que sejam
convenientes e adequadas aos seus objetivos.
Considerações
O desenvolvimento da sociedade tecnologizada com que lidamos nesta era contemporânea nos conduz
para uma nova lógica de compreensão de papéis do sujeito: a da fluidez ao invés da estagnação. Esta lógica
fluida da distribuição e atuação dos sujeitos na sociedade se fortalece através das tecnologias digitais de
informação e comunicação, que possibilitam uma maior interferência nos meios de produção de informação. A
partir dos conceitos discutidos neste artigo, pode-se compreender não somente o papel de um novo tipo de leitor
dentro desta Sociedade da Informação, mas principalmente o novo papel do autor.
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Aprender a ler criticamente os produtos midiáticos torna-se primordial para uma participação incisiva na
comunidade, compreendendo como papel do indivíduo construir sua identidade e reconhecê-la dentro dos
processos de interação na sociedade. Num equilíbrio entre as obras da mente e do espírito, o indivíduo demanda
participações críticas e criativas que permitam uma percepção do sujeito, de fato, incluído socialmente.
Concebendo uma dimensão comunicativa desta inclusão através das tecnologias digitais, a construção narrativa
possibilita ao sujeito descrever sentimentos, fatos, pensamentos que transcendam a realidade objetiva e alcancem
percepções subjetivas sobre os acontecimentos que o cercam. A partir dessa capacidade de leitura, desenvolvem-
se autores que se aventuram a permitir que os ‘leitores’ também se tornem autores, concebendo uma autoria de
fato compartilhada entre sujeitos que se alternam na fluidez e seus papéis.
A partir da compreensão das possibilidades inclusivas deste novo tipo de autoria dentro do ciberespaço,
pode-se favorecer a constituição de sujeitos conscientes e críticos na Sociedade da Informação, não
simplesmente imersos na infinidade de informações e hiperlinks distribuídos na rede. Lidar com a biblioteca
eletrônica requer doses de ousadia e criatividade na experimentação de novos modos de conhecer e produzir, a
fim de se construir informação com solidez e coerência. O ato narrativo dentro do meio digital proporciona ao
indivíduo a publicação do seu ‘eu’ a uma gama maior de pessoas de uma maneira mais criativa e expressiva,
ampliando também as possibilidades de participação de outros sujeitos em sua própria narrativa, tornando-se, de
fato, um participante da Sociedade da Informação que se constrói em seu redor.
Diante dessa contextualização, considera-se possível que a produção de narrativas digitais amplie as
concepções e perspectivas de inclusão digital vinculada às perspectivas autorais dos sujeitos. Uma resposta
provisória seria a de que esta inclusão digital numa dimensão comunicativa acontece por meio da autoria desde
estimulada por meio de processos de subjetivação que permitam a esses sujeitos esse “olhar interior” que lhes
possibilite conhecer o que deseja narrar, as causas que o conduzem a esse ato e que objetivos almeja alcançar
com ele. Com as mudanças na construção e recepção narrativa por conta da difusão dos meios digitais, é
necessário que se formem novos “receptores” com a capacidade de produzir novas narrativas, novos
protagonistas, como afirma Costa (2002):
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alcançar o outro no universo da cultura é expandir nossa vivência para além dos limites
estabelecidos por nossa individualidade, acrescentando a ela a visão e a experiência
alheias, de um ponto de vista novo, de outro modo intangível” (p. 11)
Bratin (2006), ao conjeturar novas dinâmicas necessárias para um cotidiano mediado pelas novas
tecnologias de informação e comunicação, permite a visualização da internet de forma mais abrangente e
conectada aos movimentos tecnológicos anteriores – e praticamente – que demandas de práxis esta nova
conjuntura propõe, assim como que ações impõem mudanças nessa conjuntura. Num ourobouros de mútuas
influências, a sociedade, os sujeitos e as tecnologias complementam-se numa dialética que conecta reflexão e
prática para a inclusão digital e social de todos.
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