arqueologia e patrimônio

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Erechim RS 2007 ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO PEDRO PAULO A. FUNARI

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Erechim RS2007

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO

PEDRO PAULO A. FUNARI

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

L699 Lições : tributo a Paulo Reis Franklin da Silva / organizado por Giana Lisa Zanardo Sartori, José Francisco Spinelli, Karen Franklin. – Erechim, RS: EdiFapes, 2006. 212 p. (Série Personalidades Acadêmicas; 1)

1. Direito 2. Silva, Paulo Reis Franklin da 3. Biografia I. Sartori, Giana Lisa Zanardo II. Spinelli, José Francisco III. Franklin, Karen CDU: 34 929

Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra Milbrath CRB 10/1278

Todos os direitos reservados pela Habilis Editora.Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquerforma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico,inclusive através de fotocópias e de gravações,sem a expressa permissão do autor.

Editoração: Darcy Rudimar VarellaCapa:

www.habiliseditora.com.br

APRESENTAÇÃO

A Arqueologia mundial passou por transformações profun-das, nas últimas décadas. Surgida no século XIX, no bojo da ex-pansão imperialista, a disciplina caracterizou-se, por muitas dé-cadas, por abordagens elitistas e por um distanciamento da socie-dade. Ancorada nas certezas da pesquisa de campo empírica edescritiva, em laboratório, parecia imune às transformações soci-ais e científicas. A emergência dos movimentos e conflitos sociaisveio a alterar esse quadro. As Ciências Humanas e Sociais distan-ciaram-se do positivismo de matriz oitocentista e procuraram ex-plicar a sociedade em suas contradições e contrastes. A Arqueolo-gia experimentou essas circunstâncias de maneira particularmen-te sentida. Na América Latina, a Arqueologia Social Latino-Ame-ricana testemunhou o despertar de uma preocupação tantoepistemológica, como política, de forma precoce e premonitóriado que ocorreria alhures. No mundo, a Arqueologia iria se envol-ver com os grupos sociais, o que resultaria, em 1986, na criaçãodo Congresso Mundial de Arqueologia (World ArchaeologicalCongress).

Nestas circunstâncias, pode entender-se esta coletânea. Aqui,recolhem-se artigos ou capítulos de livros publicados nos últimosanos sobre diversos temas, unidos pela preocupação a um só tem-po teórica, ou epistemológica, e política. Foram publicados, emsua forma original, em revistas especializadas ou em livros es-trangeiros, muitos deles redigidos em inglês e traduzidos ao ver-náculo. A sua junção neste volume permite, portanto, que atinjamum público mais amplo e que possam ser lidos de forma maisfácil e articulada. Foram divulgados, originalmente, nas seguin-tes publicações:

FUNARI, P. P. A. . Lingüística e Arqueologia. DELTA, Revista deEstudos de Lingüística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 15, n. 1, p.161-176, 1999.

FUNARI, P. P. A. . Historical archaeology from a world perspective.In: P.P.A. Funari, M. Hall, S. Jones. (Org.). Historical archaeology,Back from the edge. Londres: Routledge, 1999, v. , p. 37-66.

FUNARI, P. P. A. . A Arqueologia Histórica em uma perspectivamundial. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p.35-41, 2003.

FUNARI, P. P. A. ; I. Podgorny ; NEVES, E. G. . Introdução. In:Primeira Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na Américado Sul, 2000, Vitória. Anais da Primeira Reunião de Teoria Arqueo-lógica na América do Sul. São Paulo : MAE-USP, 1998. p. 1-12.

FUNARI, P. P. A. . Mixed Features Of Archaeological Theory InBrazil. THEORY IN ARCHAEOLOGY, A WORLD PERSPECTIVE.LONDRES: ROUTLEDGE, 1994, v. , p. 236-250.

FUNARI, P. P. A. . A importância da teoria arqueológica na Américado Sul. In: Primeira Reunião de Teoria Arqueológica na América doSul, 2000, Vitória. Anais da I Reunião de Teoria Arqueológica naAmérica do Sul. São Paulo : MAE-USP, 1998. p. 213-220.

FUNARI, P. P. A. . Destruction and conservation of cultural propertyin Brazil: academic and practical challenges. In: R.Layton; P.G. Stone;J. Thomas. (Org.). Destruction and conservation of cultural property.1 ed. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2000, v. 1, p. 93-101.

FUNARI, P. P. A. . Os desafios da destruição e conservação do patri-mónio cultural no Brasil. Trabalhos de Antropologia e Etnologia,Lisboa, v. 41, n. 1/2, p. 23-32, 2001.

FUNARI, P. P. A. . MAE-USP amphora collection: vessels andinscriptions. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP,São Paulo, v. 11, p. 275-282, 2001.

FUNARI, P. P. A. ; DOMINGUEZ, L. ; MENEZES, L. . Patrimônioe Cultura Material. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2006. 74 p.

FUNARI, P. P. A. . Considerações sobre o profissional de museu esua formação. nethistoria, 2005.

FUNARI, P. P. A. . Desaparecimento e emergência de grupos subor-dinados na Arqueologia brasileira. Horizontes Antropológicos, n. 18,2003.

FUNARI, P. P. A. . A ‘Republica de Palmares’ e A Arqueologia daSerra da Barriga. REVISTA USP, v. 28, p. 6-13, 1996.

FUNARI, P. P. A. . Tornar-se arqueólogo no Brasil. Trabalhos deAntropologia e Etnologia, Lisboa, v. 40, n. 3/4, p. 117-131, 2000.

FUNARI, P. P. A. . Como se tornar arqueólogo no Brasil. RevistaUSP, São Paulo, v. 44, p. 74-85, 2000.

Agradeço ao Everson Paulo Fologari, por incentivar a publi-cação deste livro, assim como devo mencionar o apoio institucionaldo Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp), CNPq,CAPES, FAPESP e FAEPEX/Unicamp. A responsabilidade pelasidéias restringe-se ao autor.

SUMÁRIO

Lingüística e Arqueologia .......................................................... 9

Referências Bibliográficas ....................................................... 23

A Arqueologia Histórica em uma perspectiva mundial ........... 27

A primeira Reunião Internacional de Teoria Arqueológicana América do Sul: um marco na história da arqueologiabrasileira .................................................................................. 35

A importância da Teoria Arqueológica Internacional para aarqueologia Sul-americana: o caso brasileiro .......................... 43

Os desafios da destruição e conservação do PatrimónioCultural no Brasil ..................................................................... 59

Contradições e esquecimentos nas imagens do passado .......... 71

Teoria e métodos na Arqueologia contemporânea:o contexto da Arqueologia Histórica ....................................... 79

A coleção de ânforas do MAE-USP:vasos e inscrições ..................................................................... 87

Considerações sobre o profissional de museu esua formação ............................................................................ 97

Desaparecimento e emergência dos grupos subordinados naArqueologia brasileira ........................................................... 107

A “República de Palmares” e a arqueologia daSerra da Barriga ..................................................................... 131

Como se tornar arqueólogo no Brasil .................................... 143

LINGÜÍSTICA E ARQUEOLOGIA

INTRODUÇÃO

A Arqueologia é uma disciplina cuja multiplicidade deenfoques e especializações dificulta que se possam tecer gene-ralizações a seu respeito. Uma primeira grande questão refere-se à sua posição em relação às outras ciências, pois alguns aconsideram uma técnica, enquanto outros preferem considerá-la uma ciência. Alguns consideram-na uma disciplina auxiliarde uma ciência interpretativa maior, como a Antropologia ou aHistória, outros rejeitam essa dicotomia. Um grande númeroconsidera que ela estuda o passado, embora outros admitam quepode tratar, também, do presente. Todos têm como ponto emcomum, no entanto, o fato de a Arqueologia construir seu co-nhecimento, principalmente, a partir da cultura material (cf.Funari, 1998: 9-16).

Este preâmbulo fazia-se necessário para que se pudesseintroduzir a discussão sobre a relação entre a Lingüística e aArqueologia de forma adequada. De fato, a Arqueologia englo-ba uma série de disciplinas, mais específicas, cujos pontos decontato podem não ser numerosos, como a Pré-História e a Ar-queologia Histórica, a paleografia e a paleobiologia, a Arqueo-logia Clássica e a os estudos líticos, para mencionar apenas umafração das especializações correntes. Neste contexto, meus ob-jetivos neste ensaio não pretendem abarcar, diretamente, as re-lações entre a Lingüistica e a Arqueologia em todos os camposdesta última e em todas as variedades teórico-metodológicas,mas, de maneira mais modesta, destacar as relações históricas eestruturais entre ambas. Na medida em que se estará buscandoas origens dessas ligações, far-se-á uso do aporte da Filologia e,no que se refere ao século XX, a Lingüistica será tomada emsentido igualmente amplo.

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A LÍNGÜÍSTICA ROMÂNTICA E O NASCIMENTO DA ARQUEOLOGIA

A língua, para os românticos, era uma preocupação central,e as línguas estariam ligadas a determinados locais, paisagens eclima, expressões individuais de povos específicos, a serem guar-dados ciosamente. Isto levou ao desenvolvimento da Filologiahistórica com seus dois modelos principais, tronco e famílias lin-güísticas. Na Lingüística histórica, os pressupostos de origens sim-ples, seguidos de ramificações e divergências, identificáveis aposteriori, tornaram-se ubíquos na disciplina. Os modelos de tron-co e família lingüísticas não favoreciam a concepção de misturasou convergências, reforçando o axioma inicial de que cada línguateria uma essência cujos contatos históricos não alterariam nun-ca. Neste contexto, no final do século XVIII, o interesse pela Ín-dia, em geral, e pelo sânscrito, em particular, levou à constataçãode que a afinidade, tanto de raízes verbais, como de formas gra-maticais, entre o sânscrito e as línguas européias devia explicar-se por uma origem comum. Tais povos e línguas originais foramlogo designados como indo-europeus, por franceses e ingleses, eIndogermanisch pelos cientistas de língua alemã. Uma raça, aria-na, seria a portadora dessa língua e esse povo foi logo considera-do superior por fatores lingüísticos. Assim, foram distinguidosdois tipos de língua, as línguas nobres, flexionadas, de origemespiritual, que permitiam o desenvolvimento da inteligência e opensamento abstrato e universal, como as línguas indo-européias,e as línguas não-flexionadas, de tipo animalesco, como todas asoutras.

É notável como os principais lingüístas, em particular naAlemanha, como Humboldt, estabeleceram as bases tanto dasmodernas ciências humanas como do novo sistema universitário(Reill, 1994: 365). Humboldt estabeleceu a superioridade cultu-ral dos gregos, resultado de sua análise da perfeição lingüística dogrego antigo, resultado, como o próprio alemão, da sua autentici-dade e pureza, não contaminadas por elementos estrangeiros. Oslingüistas, ao relacionarem o grego ao sânscrito e ao criarem anoção de indo-europeus, elevaram, paralelamente, a Philologie

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ao estatudo de ciência exata (Wissenschaft), acima da necessida-de de evidências históricas externas que validassem seus esque-mas interpretativos, fundados na migração de povos portadoresde línguas. A origem lingüística da vida social pode ser avaliadapor uma passagem de Ernst Curtius, datada de meados do séculopassado:

“O povo que soube, de uma maneira tão peculiar, desenvolver otesouro comum da língua indo-germânica foi o heleno. O primei-ro feito histórico foi o desenvolvimento desta língua, feito já ar-tístico. Entre suas irmãs, o grego deve ser considerado uma obrade arte, a tal ponto que, se dos helenos só nos restasse sua gramá-tica, seria já um testemunho integral e válido dos dotes extraordi-nários e naturais deste povo. A língua toda parece o corpo de umatleta treinado, no qual cada músculo e cada tendão desenvolve-se, plenamente, sem materia inerte, tudo é poder e vida” (Curtius,citado em Bernal, 1991: 334-5).

Estabelecida a equação entre língua e raça, no contextoevolucionista do século passado, logo buscou-se no difusionismoa explicação para o desenvolvimento da civilização nos diferen-tes rincões (sobre a continuidade do uso do conceito dedifusionismo, consulte-se Ruiz, 1996). Flinders Petrie, emboraviesse de uma área técnica, com sua base na engenharia, pode serconsiderado, a justo título, um dos fundadores da moderna Ar-queologia, ainda que seja conhecido, em geral, como egiptólogo.Petrie dirigiu-se ao Egito, em 1880, para verificar se o que diziamsobre as pirâmides era verdade, tendo comprovado os diversosavanços técnicos dos egípcios e desenvolvido um método de clas-sificação tipológica para ordenar os diferentes estilos da cerâmicalocal. Essa tipologia, uma das bases fundamentais de toda a Ar-queologia, fundava-se em uma analogia com a classificação lin-güística, que se utilizava de termos como “troncos e famílias”lingüísticas, substituindo-se, apenas, a língua pela forma dos arte-fatos. Sir Flinders Petrie inventou a chamada “datação por se-qüência” (sequence dating), no início deste século, ao classificaruma série de tumbas egípcias, de acordo com uma seqüência cro-nológica. Sua classificação partiu da cerâmica encontrada nas tum-bas, que foram colocadas em uma ordem, de maneira que as dife-

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renças eram vistas como o resultado de uma série lógica de mu-danças. Por exemplo, as alças de um pote tornavam-se progressi-vamente menores, até serem reduzidas a uma simples linha pinta-da na lateral do vaso, na posição antes ocupada pela alça saliente.Classificando os potes de acordo com a progressiva diminuiçãodo tamanho da alça obtém-se uma datação relativa da série deartefatos. A inspiração lingüística desta classificação é clara: assimcomo a lingüistica histórica pode reconstruir a seqüência est (la-tim), *es, é (português), também o arqueólogo propôs classificaros artefatos (Deetz, 1967: 32). Os desdobramentos desta analogialingüística seriam múltiplos e pode dizer-se que toda a Arqueolo-gia do século XX fundou-se, como veremos adiante, nesta matriz.

A relação entre língua, raça e cultura material seria outropasso decisivo na constituição da Arqueologia. Esta equação sur-giu, de maneira sintomática, na obra de um filólogo e pré-histori-ador alemão, Gustav Kossina (1911), cuja preocupação era deter-minar elementos da cultura material que correspondessem a umpovo conhecido e definido por sua língua, os germanos (Jones,1997). Partia-se do axioma que em todos os períodos, áreas cul-turais arqueológicas coincidem com povos ou tribos reconhecí-veis, com a ocupação de um dado território e com uma língua, oudialeto, próprios. Procurava-se distinguir, assim, os grande gru-pos língüísticos, e portanto étnicos, dos germanos, eslavos e celtas,na Pré-História, bem como culturas individuais, que correspon-deriam a dialetos lingüisticos, como é o caso dos vândalos ou doslombardos (Trigger, 1989: 165). Teríamos o seguinte esquemalógico:

Línguas Germânicas Célticas Eslavas

Povos Germânicos Celtas Eslavos

Territórios Germânicos Celtas Eslavos

Cultura material Germânica Celta Eslava

Na Pré-História, caberia ao arqueólogo fazer o caminho in-verso à lógica formal, que parte da existência da língua, identifi-

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cando um conjunto de artefatos, que se distribuem por um territó-rio e que corresponde, necessariamente, a um povo e a uma lín-gua, ainda que não tenhamos acesso direto a esta última. O gran-de divulgador desta teoria, que viria a ser conhecida como “histó-rico-cultural”, foi Gordon Childe, cuja advertência de que “a cul-tura, entretanto, se não representa necessariamente um grupolingüístico, representa geralmente um grupo local que ocupa umaárea geográfica contínua” (Childe,1960: 17-18), não deixa dúvi-da quanto ao paradigma língüístico de sua concepção de cultura:

“Sendo a linguagem um veículo tão importante na formação etransmissão da tradição social, o grupo assinalado pela posse deuma ‘cultura’ distinta provavelmente falará também uma lingua-gem distinta...cada língua é produto de uma tradição social e agesobre outras formas tradicionais de comportamento e pensamen-to. Menos familiar é o processo pelo qual as divergências de tra-dição atingem até a cultura material.... ‘next Friday’, na Inglater-ra, transforma-se em ‘Friday first’ na Escócia...Na Irlanda e noPaís de Gales os trabalhadores rurais usam pás de cabos longos,ao passo que na Inglaterra e na Escócia os cabos são muito maiscurtos. O trabalho realizado é, em cada caso, o mesmo, embora omanuseio do instrumento seja, evidentemente, diverso. As diver-gências são puramente convencionais...As divergências lingüísti-cas devem ser tão velhas quanto as divergências culturaisidentificáveis no registro arqueológico” (Childe, 1960: 15-17).

A influência da Lingüística de Saussure (1955) aparece naadaptação à cultura material de conceitos desenvolvidos para alíngua. Assim, a regularidade absoluta das modificações fonéti-cas transforma-se em mudanças regulares na forma dos artefatos,a Lingüística geográfica, que procura explicar a dispersão das lín-guas e sua possível concomitância em um mesmo lugar fornece àArqueologia um modelo de causalidade das extensões geográfi-cas das chamadas “culturas” arqueológicas. No entanto, a leituraarqueológica de Saussure poderia ser definida como seletiva, ins-trumental, como se o modelo estrutural da Lingüística fosse antesum fato do que uma interpretação. Desta forma, as consideraçõesprudentes de Saussure sobre a questão da relação entre língua,raça e mentalidade foram deixadas de lado, o que acarretaria umaseparação muito nítida entre a Língüística e a Arqueologia. Assim,

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Saussurre alertava que língua e raça não coincidem e que a cultu-ra, o modo de pensar, chamado de “mentalidade”, não deriva dalíngua utilizada e, de forma explícita, negava a existência de umamentalidade semita e outra indoeuropéia (Saussurre, 1995: 311).Em outros termos, o caráter radicalmente arbitrário da língua, res-saltado por Saussure, foi negligenciado, a favor de uma leituraculturalista e racial.

Childe derivava, pois, o conceito de cultura, usado na Ar-queologia, daquele formulado pela Lingüística e sua leitura dosaxiomas correntes na Lingüística histórica (Harris, 1994), preva-lecente até o pós-guerra, fazia com que também propusesse a exis-tência de línguas e, portanto, povos e culturas, superiores, semprea partir do critério língüístico, como transparece, de forma maisnotável, no seu livro sobre “Os arianos”, publicado em 1926: “aslínguas indo-européias e sua pressuposta língua de origem foram,sempre, excepcionalmente, instrumentos delicados e flexíveis dopensamento...pelo que se pode supor que os arianos foram dota-dos de dotes mentais excepcionais, senão do usufruto de uma altacultura material” (Childe, 1926: 4).

O período posterior à Segunda Guerra Mundial viria a des-valorizar os aspectos mais claramente racistas destas teorias, comoreação explícita à manipulação nazista desta identificação entreraça, língua e um ethos imutável. No entanto, não caiu totalmenteem desuso algo que havia sido popularizado pela Arqueologia nomeio século anterior: a confecção de mapas das migrações depovos, falantes de certas línguas e portadores de uma cultura ma-terial específica. Assim, um mapa de supostas expansões territoriaisde povos de língua germânica, feito por um arqueólogo nazista,Hans Reinerth, continuou a ser contraposto a mapas de outrasexpansões, como a migração de povos de fala eslava, feito por umpolonês, Konrad Jazdzewski, sendo, talvez, o exemplo mais re-cente e elaborado aquele proposto por Colin Renfrew (1987a);uma crítica consistente encontra-se em Kohl, 1992, 169-173). Emoutros termos, a busca dos indo-europeus, por parte da Arqueolo-gia (cf. Dolukhanov, 1995; Häusler, 1995; crítica em Funari, 1996),e a aceitação de uma relação direta entre língua, povo e evidência

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material continua sendo atual (cf. crítica em Jones e Graves-Brown,1995: 7) e suas ligações com a lingüística histórica são diretas.Na América do Sul (Brochado, 1984), a Pre-História também tembuscado identificar línguas, povos e artefatos, sempre a partir dosesquemas de filiação lingüística, como no caso das línguas tupis,e procurando identificar migrações de povos, com suas línguas eartefatos, estes últimos os únicos preservados arqueologicamen-te. A dispersão lingüística continua a servir de modelo para a di-fusão de formas de objetos, como no caso dos vasos da tradiçãoPedra do Caboclo (cf. discussão de um caso recente, em Neves,1998). Pode concluir-se que grande parte da Arqueologia con-temporânea continua a usar os modelos da língüística de pré-guer-ra, sendo, provavelmente, o exemplo mais elaborado o livro deColin Renfrew sobre “Arquelogia e Língua” (Renfrew, 1987b; cf.crítica em Huld, 1993).

LINGÜÍSTICA ESTRUTURAL, ANÁLISE DE DISCURSO EARQUEOLOGIA

O período do pós-guerra testemunhou o surgimento de ou-tras influências de desenvolvimentos da Lingüística nas demaisciências, que se somaram às anteriores, em particular na Arqueo-logia. A Lingüística estrutural viria a ter um impacto muito fortena Arqueologia, em particular a partir da década de 1960. Contu-do, isto não significa que se tenha abandonado a analogia com aLingüística histórica, pelo contrário, esta continou a servir demodelo, em especial no que se refere à classificação e seriaçãotipológica dos artefatos. Aceitando-se a noção de que a línguapassa por um nascimento, crescimento, apogeu, declinío e substi-tuição por outra, aplicou-se o mesmo aos artefatos:

LATIM ARCAICO ESTILO INICIAL

LATIM PRÉ-CLÁSSICO ESTILO EM CRESCIMENTO

LATIM CLÁSSICO ÁPICE

LATIM PÓS-CLÁSSICO DECLÍNIO DO ESTILO

LÍNGUA ROMÂNICA NOVO ESTILO

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Este método, chamado de seriação, parte do pressuposto deque os artefatos passam por um ciclo analógico àquele de umalíngua e caberia, assim, ao arqueólogo que encontra um artefato,colocá-lo na correta posição, relacionando uma suposta regra uni-versal que afetaria línguas, artefatos e povos. Embora o esquemade nascimento, crescimento, apogeu, declínio e fim seja, de ma-neira direta, emprestado à vida, não à língua, sua adoção comométodo com estatuto de discurso científico derivou da segurançacientífica da análise lingüística histórica. No entanto, a seriaçãoem Arqueologia levou a uma prática tautológica, pois a colocaçãodos elementos em uma ordem deriva deste ciclo a priori, não dedatações externas independentes que mostrassem, ao arqueólogo,que o esquema proposto estava, sempre, correto. No entanto, ageneralização do uso da seriação, ainda que esta se baseie emaxiomas não verificáveis, explica-se, em grande parte, pelo cará-ter científico da análise lingüística que estava na base do métodoarqueológico.

Depois disso, na década de 1960, com o desenvolvimento dachamada Arqueologia Processual, a Lingüística estruturalista exer-ceu uma influência determinante na formulação de umametodologia arqueológica estritamente “lingüística”. Segundoessa perspectiva, os artefatos, como as palavras, seriam os produ-tos da atividade motora humana, por meio da ação dos músculose sob uma orientação mental. A forma resultante de qualquer arte-fato consistiria de uma combinação de unidades estruturais — osatributos — que, com determinada combinação, produz um obje-to com função específica na cultura que o produziu. Se mudarmosqualquer atributo, sua significação funcional mudará, se a mu-dança for suficiente para alterar sua significação. Em outras pala-vras, haveria unidades estruturais, nos artefatos, correspondentesaos fonemas e morfemas na linguagem, o que demonstraria, mui-to mais do que uma simples analogia, uma identidade de estruturaessencial entre a língua e os objetos. Um exemplo, apresentadopor James Deetz (1967: 83-101), permite avaliar o grau de ade-quação do modelo lingüístico para a análise arqueológica. Ao clas-sificarmos pontas de flecha provenientes de um determinado sí-tio, encontramos três tipos. Um tipo tem base e laterais retas, com

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uma chanfradura perto da base; outro é semelhante, mas tem basedenteada; o terceiro tem lados e base retos e não tem chanfradura.Esta classificação funda-se em três atributos — chanfradura nalateral, na base e na forma dos lados.

Se aceitarmos que as chafraduras nas laterais ou na base têmalgum sentido funcional, pontas de flecha idênticas, exceto pelapresença ou ausência de chanfraduras nas laterais, formariam umpar mínimo, distingüíveis com base em um único elemento estru-tural, assim como as palavras mata e bata formam um parlingüístico mínimo. Igualmente, as pontas de flecha que são idên-ticas, exceto pela presença ou ausência de chanfraduras na base,formariam, também, um par mínimo, se servissem a diferentespropósitos. Esta chanfradura é, normalmente, um fator na coloca-ção de um cabo, a maneira como a ponta da flecha era ligada àflecha, pelo que é razoável supor a existência de uma diferençafuncional. Chanfradura das laterais poderia ser, portanto, consi-derada como equivalente a um fonema, tendo Deetz proposto ouso do neologismo factema para se referir a isso. A definição defactema seria, então, a classe mínima de atributos que afeta a sig-nificação funcional do artefato. As chanfraduras poderiam variarconsideravelmente de forma, contanto que a significação funcio-nal da ponta de flecha não fosse alterada por essa variação, sendoestas variantes do factema consideradas como alofatos. A origemdeste raciocínio na Lingüística estrutural é clara, pois a variaçãoalofônica deriva, em parte, das imperfeições ou variações no apa-relho produtor da fala e algumas variações nos factemas são oresultado de expressões imperfeitas do mundo mental para aquelematerial.

Os morfemas da Língüística foram renomeados, chamadosde formemas da cultura material, a classe mínima de objetos quetem significação funcional. Neste contexto, as pontas de flechaformam morfemas, que combinam com outros morfemas paraproduzir outros artefatos. Continuando no exemplo da flecha,poderíamos dizer que se constitui de cinco formemas: haste, ca-beça, penas, cimento de encaixe e pintura ou desenho na haste.Cada um desses formemas pode aparecer em outros contextos,

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mas juntos formam algo específico. O estruturalismo lingüístico,levado, talvez, a suas últimas conseqüências por Deetz, seria ado-tado, de forma mais genérica e menos literal pela Arqueologiadaquele período, em geral (cf. Carandini, 1979). Em alguns ca-sos, como no estudo de petroglifos, alguns arqueólogos utiliza-ram o modelo da evolução lingüística para interpretar a transfor-mação estilística, como no exemplo de uma evolução a partir deuma linha reta coroada com um ponto, ou a partir de um ânguloou de um círculo (Porras, 1992). De uma forma ou de outra, as-sim, este modelo, inspirado no estruturalismo lingüístico, conti-nua a ser um dos mais fortes referenciais para a interpretação ar-queológica.

Já na década de 1970 podia afirmar-se que “a preocupaçãocentral das ciências do homem é a linguagem” (Vogt, 1989: 62).A Lingüística, no entanto, passou a incorporar outras abordagens,em particular introduzindo uma noção sócio-histórica de discur-so, de maneira que se entende que as condições sociais determi-nam mesmo as propriedades do discurso (Fairclough, 1990: 17;155). A introdução das classes sociais e dos contextos históricosespecíficos (Kress e Hodge, 1979) e a valorização do exosemiótico,para usar um termo de Lagopoulos (1986: 234), representou umanova onda de influência lingüística, a partir de autores como Rossi-Landi (1975; 1986). Para a Arqueologia Pós-Processual, iniciadana década de 1980, a cultura material poderia ser considerada comoum sistema de sinais em código que constitui sua própria línguamaterial, ligada à produção e ao consumo. Esta linguagem, entre-tanto, não reflete, de forma direta, as estruturas significativas deuma língua em outra forma, como se, a cada passo, a analogiaentre sistema de linguagem verbal e material devessem corres-ponder rigorosamente. Como a língua, a cultura material é umaprática, práxis simbólica com produto de significado determina-do e específico, que precisa ser situado e compreendido em rela-ção à estrutura global do social (Shanks e Tilley, 1987: 101).

Se, para Saussurre, a relação entre significante e significadoera inteiramente arbitrária então, e seguindo os passos de Derrida(1976; 1978), Barthes (1977) e Foucault (1981), as oposições ediferenças poderiam ser estendidas indefinidamente. Na medida

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em que o significado é dado pela diferença, mais do que pela iden-tidade, a linguagem não pode ser um sistema fechado. Os senti-dos dos sinais são sempre ambíguos, pois se um sinal é constituí-do pelo que não é, pela diferença, com relação aos outros, nãopode haver uma relação fixa entre um significante e um significa-do, já que o significado é, imediatamente, o significante de umoutro significado. O sentido, portanto, é o resultado de um jogosem fim de significantes. Na esteira destas preocupações, podeconsiderar-se a cultura material como um discurso materialestruturado e silencioso, ligado às práticas sociais e às estratégiasde poder, interesse e ideologia. Se a própria Lingüística é umaempreitada que não dispensa a pluralidade de pontos-de-vista(Barthes, 1966:84), uma ideologia (Rajagopalan, 1996), a mesmasubjetividade passou a ser elemento central da Lingüística apro-priada pelas outras ciências humanas (Iggers, 1995: 560). Os fun-damentos semióticos das ciências (Grzybek, 1994) implicavamem considerar a própria textualidade do discurso acadêmico.

Na Arqueologia, há dois discursos a serem analisados: aque-le da cultura material e sua representação, em forma de texto,sobre a cultura material. A discursividade da cultura material,objeto de atenção básica da Arqueologia, tem merecido particularconsideração. A cultura material pode ser concebida como consti-tuída por uma série de signos metacríticos, signos cujo sentidomantém-se radicalmente disperso por uma cadeia aberta de sig-nificantes-significados. O sentido do registro arqueológico, nestaperspectiva, não se reduz aos seus elementos constitutivos mas oque se busca são as estruturas, e os princípios que compõem essasestruturas, subjacentes à tangibilidade visível da cultura material.A análise visa, assim, descobrir o que está oculto nas presençasobserváveis, levar em conta as ausências, as co-presenças e co-ausências, as semelhanças e diferenças que constituem o padrãoda cultura material em uma contexto espacial e temporal específi-co. Os princípios que regem a forma, natureza e conteúdo destepadrão encontram-se tanto em termos de micro-relações (comoum conjunto de desenhos em um vaso cerâmico) quanto de macro-relações (como o conjunto de relações entre assentamentos eenterramentos), estando sempre inextricavelmente ligados.

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Segundo estas abordagens, a cultura material não significatanto uma relação entre as pessoas e a natureza, como relaçõesentre grupos, relações de poder, portanto. A forma das relaçõessociais fornece uma rede na qual a força sígnica da cultura mate-rial permite definir, redefinir, organizar e transformar essa mesmared (grid). As próprias relações sociais articulam-se em um cam-po de significado parcialmente estruturado pelo pensamento e pelalinguagem, sendo capaz de reforçar os sentidos reificados e ins-critos na cultura material. A cultura material como constituídapor cadeias de significantes-significados não deve ser tratada deforma simplista, como se representasse algo em particular, como,por exemplo, se o uso do vermelho estivesse sempre a indicar osangue ou se vasos de certa forma fossem considerados de usofeminino, e outros de uso masculino. A força sígnica da culturamaterial depende da estrutura das suas inter-relações e o sentidode qualquer artefato específico está sempre interseccionado pelosentido de outros artefatos. Os artefatos, assim, formam elos emuma cadeia de objetos, em um campo aberto de signos. De acordocom estas leituras da Lingüística aplicadas à Arqueologia, seriafalso considerar que a cultura material expressa exatamente o quese exprime na língua, com uma simples mudança de forma (davoz para a matéria). A importância da cultura material como forçasígnica consiste na sua diferença em relação à linguagem, aindaque esteja envolvida na comunicação de sentidos. Os sentidospodem ser comunicados por meio de ações, falas e artefatos, maso meio altera a natureza e a efetividade da mensagem (Shanks eTilley, 1987: 102-117).

A cultura material revela sua estrutura e princípios subja-centes por meio da repetição. Como um discurso comunicativo,ela solidifica, codifica e reifica as relações sociais nas quais elaviceja e das quais deriva, a um só tempo. A ação social é o produ-to do discurso e deste surgem tanto a ação como a cultura materi-al, que menos significam as relações sociais do que as estabele-cem e fixam. Pode afirmar-se, em conseqüência, que os artefatosconstituem um código de signos que se trocam. A produção, utili-zação e consumo de cultura material, por parte do indivíduo, podeser considerada como um ato de bricolagem. A partir desta pers-

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pectiva, uma série de estudos têm sido feitos, marcando, prova-velmente, uma inflexão o livro de Ian Hodder (1982), significati-vamente intitulado “Símbolos em ação”. Pode comparar-se aabordagem proposta, a partir dos anos 1980, com aquelas que es-tudamos nas páginas precedentes deste ensaio, a partir do exem-plo da análise da cerâmica Dangwara, da Índia (Miller, 1985).Miller representa o quadro simbólico formal que sumariza a vari-abilidade da cerâmica na sociedade dangwara, estabelecida aorelacionar as formas dos potes, as cores e os usos às categoriasculturais e aos códigos, como comidas, gênero e casta. As dife-rentes classificações das categorias cerâmicas, de acordo com acor, rótulo semântico e função, foram relacionando o códigocerâmico a outros códigos ou sistemas de classificação.

Esta Arqueologia “intérprete” parte do pressuposto que omundo social é polissêmico (Shanks e Hodder, 1995: 8) e que,como qualquer outra disciplina, a Arqueologia constrói seu obje-to por meio de um discurso e possui, portanto, um caráter narrati-vo (Munslow, 1997: 5). Caracterizado o arqueólogo como umstoryteller (Shanks e McGuire, 1996: 82), um segundo níveldiscursivo passou a ser objeto de atenção: o próprio discurso daArqueologia. Um clássico desta nova inflexão pode ser conside-rado o estudo de Christopher Tilley (1989) sobre “Discurso depoder: o gênero da conferência inaugural de Cambridge”. Desdeque a cátedra de Arqueologia foi fundada por John Disney, em1851, em Cambridge, sucederam-se dez catedráticos, sendo queos últimos quatro discursos de posse da cátedra, por DorothyGarrod (1938), Grahame Clarck (1952), Glyn Daniel (1974) eColin Renfrew (1981), foram analisados como um gênero literá-rio dotado de uma retórica própria. A aula inaugural, encaradacomo um rito de passagem, possui alguns princípios típicos dessegênero literário: referência aos catedráticos anteriores, citaçõesdas conferências inaugurais anteriores, a importância deCambridge, seu internacionalismo, um estilo erudito, com refe-rências abundantes e em línguas estrangeiras. Uma linha de in-vestigação importante da Arqueologia da ultima década, portan-to, passou a ser o estudo do discurso dos próprios arqueólogos,não apenas, nem principalmente, em escritos programáticos, como

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as conferências inaugurais, mas em sua produção quotidiana so-bre os mais variados temas. Assim, a identificação de grupos étni-cos, no registro arqueológico, passou a ser investigada, justamen-te, como uma construção textual que constitui tradições discursivasarqueológicas sobre o tema (Jones, 1997). Não se trata mais detentar “descobrir” os vestígios dos “germanos”, mas de entendercomo se constrói um discurso sobre grupos étnicos a partir dacultura material.

Os exemplos poderiam ser multiplicados e não se imagineque essas preocupações discursivas restrinjam-se a um grupo re-duzido de estudiosos, pois a própria produção de divulgação daArqueologia para o grande público, a seu modo, incorporou essasnovas abordagens. Assim, o manual de Rahtz (1986: 109-110),um best seller já traduzido para o português, incorpora, de formajocosa, esse caráter inevitavelmente discursivo do escrito arqueo-lógico, por mais objetivo, empírico e factual que se pretenda.Apresenta um engraçado guia para a leitura e decifração dos ári-dos relatos de escavação que merece ser citado: quando se lê “érazoável sugerir que...”, leia-se “não é razoável, mas seria ótimose fosse assim...”; ou então, “não pode haver dúvida que...” deveser entendido como “qualquer um que não concorde se sentirá umtolo...”. Em outros termos, as certezas empíricas das décadas pas-sadas foram substituídas por um saudável alerta que, também oarqueólogo, está a produzir um texto a ser analisado enquanto tal.

Pode concluir-se que a Arqueologia, umbelicalmente ligadaà Lingüística, continua a receber seus influxos e, em certo senti-do, a construir-se como ciência tendo a Lingüística como refe-rencial maior. A História da própria disciplina vincula-se à Lin-güística e, nos últimos anos, tem-se, com mais e mais freqüência,voltado para uma introspecção que inclui a análise metalingüísticado próprio discurso arqueológico (Tilley, 1989: 62). A Arqueolo-gia, como disciplina crítica e criativa, continuará a dialogar, deforma muito intensa, com a Lingüística, em suas mais variadasmanifestações.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Rajangapolan Kanavilil o convite para que escrevesseeste ensaio e aos seguintes colegas, que me ajudaram de diferentes ma-neiras: Martin Bernal, Siân Jones, Philip L. Kohl, Alexandros-PhaidonLagopoulos, Randall McGuire, Eduardo Goes Neves, Michael Shanks,Bruce G. Trigger. Os comentários de dois referees anônimos ao manus-crito permitiu-me diminuir suas deficiências, mas aquelas que perma-necem são de minha responsabilidade.

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A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA EM UMA PERSPECTIVAMUNDIAL

A Arqueologia Histórica tem se desenvolvido, nos últimosanos, de forma cada vez mais intensa e dinâmica. Nesta ocasião,retomarei reflexões tecidas há algum tempo, em fóruns no exteri-or e no Brasil e que resultaram na organização do volume, co-editado com Martin Hall e Siân Jones, Historical Archaeology,Back from the edge (Londres, Routledge, 1999). Em parte, mi-nhas considerações retomam questões discutidas no capítulo“Introduction: archaeology in history”, escrito a seis mãos, comSiân Jones e Martin Hall, mas incorpora, também, aspectos quetenho tratado em outras publicações, elencadas ao final deste paper.Por isso mesmo, não apresentarei referências bibliográficas, en-contradas nos trabalhos publicados e referidos ao final. Minhareleitura da disciplina parte, portanto, da experiência compartidanão apenas com os dois colegas, como com uma pletora de estu-diosos que se têm questionado sobre a Arqueologia Histórica.

A Arqueologia das sociedades com escrita tem uma grandetradição na disciplina, em particular no estudo das grandes civili-zações fundadoras do “Ocidente”, como as Arqueologias Clássi-ca, Bíblica, Egípcia e Médio Oriental. Contudo, o termo “Arque-ologia Histórica” tem sido usado, em particular na América doNorte, para referir-se ao estudo de um período histórico específi-co, o moderno (sensu anglico, i.e. do século XV em diante), emgeral nas Américas. O termo Arqueologia Histórica, com tal defi-nição, não é usado na Europa e na Ásia, já que se entende porhistóricas diversas arqueologias, como a Clássica e a Egípcia, paramencionar apenas duas delas.

A Arqueologia Histórica como o estudo das sociedades comescrita incorpora, assim, tanto a disciplina homônima norte-ame-ricana, como as diversas disciplinas que lidam com sociedades

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com documentação escrita. Tem-se buscado mostrar que ela nãoé uma simples ancilla, serva ou auxiliar da documentação escritae da ciência da História, pois a cultura material pode não só com-plementar as informações textuais, como fornecer informaçõesde outra forma não disponíveis e até mesmo confrontar-se às fon-tes escritas. Nas últimas duas décadas, preocupados com a análi-se da sociedade, os arqueólogos históricos têm, cada vez mais,focalizado sua atenção nos mecanismos de dominação e resistên-cia e, em particular, nas características materiais do capitalismo.

A Arqueologia Histórica liga-se, de forma umbilical, às no-ções de identidade, tratando de sociedades, de uma forma ou deoutra, relacionadas ao arqueólogo. Na Europa, a Arqueologia éencarada como o estudo de nossa própria civilização, sejam elasas grandes civilizações que formariam o legado ocidental, sejamas anteriores à escrita, mas ainda assim históricas, porque inseridasnuma narrativa das fontes escritas, como é o caso, por exemplo,da Arqueologia dos celtas (ou de Hallstadt e La Tene). Nos Esta-dos Unidos, a disjunção com a Pré-História estabelece, à sua ma-neira, essa ligação da Arqueologia Histórica com a sociedadeamericana, às expensas dos indígenas, encarados como o “outro”,o selvagem contraposto à “civilização”, como ressaltou ThomasPatterson.

As dinjunções entre letrado/iletrado, mito/história, primiti-vo/civilizado têm sido, de forma crescente, criticadas por separa-rem elementos discursivos interligados, de forma a evitar, porexemplo, que sítios indígenas não sejam objeto da ArqueologiaHistórica, mesmo se contemporâneos àqueles europeus. Outradicotomia criticada tem sido aquela que divide o mundo moder-no, dominado pelo capitalismo, dos períodos anteriores. Em pri-meiro lugar, porque grande parte das estruturas mentais e materi-ais modernas derivam e mantém, ainda que de forma alterada,características de outras épocas e civilizações. O capitalismomoderno funda-se no feudalismo, até mesmo naquilo que tem decontrastivo, as estruturas sociais modernas construíram-se a par-tir de contextos medievais e antigos, tanto derivados do chamadoocidente, como do chamado oriente. Em segundo lugar, mesmo

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quando não haja ligações genéticas entre realidades modernas eas outras, a comparação entre situações pode fornecer elementosúteis para o conhecimento tanto da cultura material antiga, comomoderna, tanto do Oriente, como do Ocidente, de qualquer ma-neira, criações discursivas, antes que realidades efetivamente se-paradas, como alerta Said.

Neste contexto, tem se propugnado que a Arqueologia His-tórica abranja seja o estudo do mundo moderno, seja de todas associedades com escrita. Seria o caso de manter uma ArqueologiaHistórica específica e, neste caso, qual sua especificidade dianteda Arqueologia pré-histórica? Ainda que o contato com os estu-dos da cultura material de sociedades sem escrita seja importante,em termos do estudo da cultura material em seus aspectos maisamplos, parece-nos que se deve reconhecer as particularidadesmetodológicas do estudo de sociedades com escrita e com docu-mentos, examinando os papéis históricos e singulares que a escri-ta possui na comunicação, representação e na própria construçãodiscursiva da disciplina Arqueologia. A presença de documentoscaracteriza e define as sociedades em que diferentes sistemas deescrita são utilizados.

Em seguida e talvez ainda mais importante, a História comonarrativa escrita sobre o passado, a Historie dos alemães, o gêne-ro literário histórico, assim como as decorrentes tendênciashistoriográficas, acabam por fornecer os quadros discursivos sobreo passado e que conformam, de uma ou outra maneira, a própriadefinição do contexto histórico usado pelo arqueólogo no estudodas sociedades históricas. Conceitos como Arqueologia romanaou colonial assumem periodizações e definições derivadas da tra-dição historiográfica e só nesse contexto adquirem sentido. A Ar-queologia, contudo, pode transcender os quadros estritos dahistoriografia assentada nas fontes escritas, cujo viés de classeconstitui sua própria essência e a cultura material pode tratar detemas simplesmente ausentes ou ignorados pela documentação,como no caso das grandes maiorias, da vida rural e do quotidiano.Os discursos verbal e artefatual entrecruzam-se, de diferentesmodos, nas sociedades históricas e o desenvolvimento de técni-

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cas para tratar de tais inter-relacionamentos permanece uma ques-tão fundamental no seio da disciplina.

Entre as questões contemporâneas mais recorrentes na dis-ciplina, devem mencionar-se os estudos sobre relações de poder,expressas na dominação e resistência, na desigualdade, em colo-nizadores e colonizados, dentre outros temas abordados na últimadécada. O estudo da cultura material histórica permite, assim, co-nhecer as tensões sociais e a variedade de situações sociais viven-ciadas. De forma crescente, contata-se uma insatisfação com osmodelos normativos de cultura, cujos pressupostos de homo-geneidade social não parecem encontrar respaldo nem nos estu-dos da cultura material, nem na teoria social contemporânea. Nestecontexto, o capitalismo mesmo não consegue uniformizar a cul-tura material e as mentes e conceitos derivados da noção de“aculturação” têm sido postos em dúvida, pela homogeneidadeque está a implicar. A europeização, primeiro, e a americaniza-ção, depois, do mundo, foram também chamadas de globalização,um conceito normativo e homogeneizador, e, por isso, passaram aser vistas como apenas um lado da medalha, pois a diversidadesocial não se conforma a seus ditames. A fortiori passam a serquestionados os conceitos modernos, derivados do imperialismo,aplicado a sociedades do passado assimiladas discursivamente aoOcidente, como no caso da “romanização” ou da “helenização”.

De forma cada vez mais acentuada, portanto, tem-se estuda-do o próprio campo discursivo da disciplina e da formação deconceitos modernos que moldam, de maneira invisível, os discur-sos possíveis. Multiplicam-se os estudos sobre a invenção de qua-dros interpretativos, com ênfase na História das Arqueologias,como procedimento heurístico indispensável para a crítica daspráticas discursivas, no interior da disciplina. Um exemplo mere-ce ser citado, por paradigmático: a Arqueologia da Mesopotâmia,também conhecida como Assiriologia. O Oriente, surgido comoinvenção contraposta ao Ocidente, fundou uma Arqueologia embusca da “civilização”, passada como uma tocha para gregos, ro-manos e, ao final, para os modernos imperialistas. O caráter im-perialista, militar mesmo, dessa Arqueologia imprimiu feições à

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disciplina que, para serem descontruídos, exigem uma exegese daprópria ciência. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, todasas Arqueologias Históricas só adquirem pleno sentido a partir desseolhar histórico disciplinar.

No início deste artigo, ressaltei que se tratava de colocar aArqueologia Histórica em um contexto mundial e este é o último,essencial, aspecto a discutir. Por muito tempo, as tradições disci-plinares levaram ao isolamento das Arqueologias Históricas e esseensimesmamento em muito contribuiu para as dificuldades en-frentadas pelos estudiosos, em particular de contextos periféricoscomo na América do Sul, mas não só aí. A Arqueologia Bíblica,por exemplo, um projeto tão claramente ideológico, tão compro-metido com o ideário conservador religioso, manteve-se comoum campo científico, em grande parte, devido a seu isolamentodo restante da Arqueologia. Nos últimos anos, contudo, os conta-tos entre os estudiosos de diferentes países e horizontes culturaismostraram a importância do diálogo com a ciência mundial, comoutros pontos de vista, com a diversidade. Uma Arqueologia mun-dial significa uma variedade de interesses e sujeitos em confron-to, com a introdução de agentes sociais, como as mulheres e osgrupos étnicos e sociais, de diferentes ideologias, de umaheterogeneidade que está no presente e leva à busca dessa mesmadiversidade no passado. Em última instância, essa, talvez, a mai-or mensagem das pesquisas, em termos mundiais, na ArqueologiaHistórica, pois a pluralidade e a conseqüente convivência da vari-edade passou a constituir aspecto central da disciplina, em ummundo também ele caracterizado pelas diferenças.

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25. 1998 A Arqueologia de Palmares. Sua contribuição para o conhecimen-to da História da cultura afro-americana, Studia Africana,Barcelona, 9,175-188.

26. 1998 Arqueologia, História e Arqueologia Histórica no contexto sul-americano, in P.P.A. Funari (org.), Cultura Material e Arqueologia His-tórica, Campinas, IFCH-UNICAMP, 7-34.

27. 1999 P.P.A. Funari, S. Jones & M. Hall, Preface, in P.P.A Funari, M. Hall& S. Jones (eds), Historical Archaeology, Back from the edge, Londres,Routledge, xix-xx.

28. 1999 P.P.A. Funari, S. Jones & M. Hall, Introduction: archaeology inhistory, in P.P.A Funari, M. Hall & S. Jones (eds), Historical Archaeology,Back from the edge, Londres, Routledge, 1-20.

29. 1999 Historical archaeology from a world perspective, in P.P.A Funari,M. Hall & S. Jones (eds), Historical Archaeology, Back from the edge,Londres, Routledge, 37-66.

30. 1999 Maroon, race and gender: Palmares material culture and socialrelations in a runaway settlement, In P.P.A Funari, M. Hall & S. Jones

PEDRO PAULO A. FUNARI34

(eds), Historical Archaeology, Back from the edge, Londres, Routledge,308-327.

31. 1999 Algumas contribuições do estudo da cultura material para a discus-são da História da colonização da América do Sul, Tempos Históricos,Cascavel, 1, 11-44.

32. 1999 Lingüística e Arqueologia, DELTA (Revista de Estudos deLingüistica Teórica e Aplicada), 15, 1, 161-176.

33. 1999 Etnicidad, identidad y cultura material: un estudio del CimarrónPalmares, Brasil, siglo XVII, in A. Zarankin & F.A. Acuto (eds), Sed nonsatiata, Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Conteporánea,Buenos Aires, Ediciones del Tridente, 77-96.

34. 1999 Etnicidad, identidad y cultura material: un estudio del CimarrónPalmares, Brasil, siglo XVII, in A. Zarankin & F.A. Acuto (eds), Sed nonsatiata, Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Conteporánea,Buenos Aires, Ediciones del Tridente, 77-96.

35. 1999 Brazilian archaeology, a reappraisal, in G. Politis & Benjamin Alberti(eds), Archaeology in Latin America, London & New York, Routledge,17-37.

36. 2000 Achaeology, education and Brazilian identity, Antiquity, 74: 182-5.

37. 2000 Review of “Race and affluence: na archaeology of African-Americanand consumer culture”, by Paul R. Mullins, Historical Archaeology 34(2),2000, 111-112.

38. Contribuições da Arqueologia para a interpretação do Quilombo dosPalmares, Fronteiras, Revista de História, UFMS, 3(6), 1999, 79-90(publicado em 2001).

A PRIMEIRA REUNIÃO INTERNACIONAL DE TEORIAARQUEOLÓGICA NA AMÉRICA DO SUL: UM MARCO NAHISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

A partir da década de sessenta, a Arqueologia internacionalpassou a incorporar uma preocupação reflexiva com os proble-mas relativos à teoria e ao método no desenvolvimento da disci-plina. Nos últimos anos, em diferentes contextos, surgiram fórunsdedicados à reflexão crítica sobre a Arqueologia, como oTheoretical Archaeology Group (TAG), na Grã-Bretanha e, emtermos mundiais, a fundação do World Archaeological Congress,em 1986 representou uma tomada de posição, por parte de muitosarqueólogos, quanto à epistemologia e à ética da práxis arqueoló-gica. Neste contexto, a América do Sul, em geral, e o Brasil, emparticular, testemunharam um grande desenvolvimento da refle-xão crítica, nestes últimos anos, após duas décadas de obscu-rantismo, resultante de regimes ditatoriais. Assim, o WorldArchaeological Congress e a Associação de Antropologia Brasi-leira uniram-se na iniciativa de propor, no quadro da 21ª Reuniãoda ABA, em Vitória (ES, Brasil), de 6 a 9 de abril de 1998, arealização de uma Primeira Reunião Internacional de Teoria Ar-queológica na América do Sul. A proposta começou a tomar for-ma em 1996, por iniciativa de Alejandro Haber1 e Pedro PauloAbreu Funari2, quando se encontravam ambos em solo britânicopara o trabalhos arqueológicos em Cambridge e Southampton,respectivamente, tendo recebido o incentivo de Ian Hodder e PeterUcko. A partir destes primeiros entendimentos, e já com o apoioinstitucional do World Archaeological Congress, manifestado pelosecretário Julian Thomas, marcou-se para outubro de 1996 umencontro, na Argentina, para organizar uma proposta acadêmica

1 Professor da Escuela de Arqueología, Universidad Nacional de Catamarca, Argentina.2 Estada financiada pelo World Archaeological Congress, em Janeiro de 1996.

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mais detalhada. Em outubro, reuniões preparatórias foram reali-zadas em Catamarca3, quando se definiu um programa inicial euma comissão executiva4 e uma comissão científica de apoio5.

A organização do evento exigiu diversas outras reuniões ini-ciais6, tendo-se apliado o apoio institucional7 ao evento e a com-posição das comissões executivas8 e científicas9. A Reunião con-tou com o aporte financeiro de diversas instituições científicas ede fomento à pesquisa10, tendo contado com duas conferências evinte e cinco papers, agrupados em quatro grandes temas. As con-ferências, a cargo de Julian Thomas, sobre “A História e a políticado WAC”, e de Randall McGuire, sobre “Uma Arqueologia dostrabalhadores americanos”, abriram o primeiro e o último dia doevento, respectivamente. A apresentação de Thomas permitiu queo público presente tomasse contato com a História do WAC, cujaspolíticas de reflexão crítica sobre o papel social e acadêmico doarqueólogo permitiram enquadrar todo o encontro. No primeirodia, a discussão girou em torno de “Teoria e Método”, com a apre-sentação de sete papers:

Julian Thomas11, University of Southampton, Recontextualizingmateriality and the social;

3 Funari contou com um auxílio-viagem da FAPESP para participar das II Jornadas deEtnolingüística y Antropología, em Rosário, Argentina e a Universidad de Catamarca forne-ceu subsídios para que se pudesse efetuar reuniões de organização do evento.

4 A primeira comissão executiva contava com Alejandro Haber, P.P.A Funari (representantesênior da América do Sul no Conselho Executivo do Congresso Mundial de Arquelogia),Irina Podgorny (representante júnior perante o mesmo Conselho) e Norberto Luiz Guarinello(Departamento de História, FFLCH-USP, Brasil).

5 A primeira comissão científica era composta, além dos membros executivos, do Presidentedo WAC, Bassey Andah, do Secretário, Julian Thomas, e Peter Ucko.

6 Em particular, em Londres e Southampton, em fevereiro de 1997, com apoio do CNPq,quando se consolidaram os entendimentos com a direção do WAC e em maio do mesmoano, quando, com apoio dos Departamentos de História da UNICAMP e da USP, a Profa.Podgorny participou de reuniões com Funari e Guarinello.

7 A Sociedade de Arqueologia Brasileira, na gestão de Paulo Tadeu de Albuquerque e SheilaMendonça, apoiou e divulgou o evento; a Associação de Antropologia Brasileira propôs arealização encontro no quadro da reunião regular da ABA; o Fórum Interdisciplinar para oAvanço da Arqueologia, na gestão de Eduardo Goes Neves, associou-se à proposta e a divul-gou.

8 Eduardo Goes Neves passou a integrar a comissão executiva.9 A Comissão Científica passou a contar, também, com a Presidente da ABA, Mariza Correa e

com Haiganuch Sarian (MAE-USP, Brasil).10 World Archaeological Congress, CAPES, FAPESP, IFCH-UNICAMP e MAE-USP.11 Com apoio financeiro do WAC.

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 37

Michael J. Heckenberger, Museu Nacional (UFRJ), Hierarquiae economia política na Amazônia: a construção da diferença eda desigualdade em sociedades ameríndias;

Gustavo Politis, Universidad de La Plata, Cultura Material ecrianças entre os Nukaks;

José Luis Lanata, Universidad de La Plata, The Archaeologyof Hunters and Gatherers in South America: recent history;Erika Marion Robrhan-Gonzáles12, MAE-USP, A cerâmica emestudos de interação e mudança cultural na região centro-oes-te brasileira; e

Benjamin Alberti13, University of Southampton, GenderArchaeology: a case study.

As apresentações e as discussões que se seguiram, em trêslínguas, inglês, português e espanhol, contaram com tradução si-multânea trilíngüe. Confrontaram-se, nas discussões, as aborda-gens contextuais, ou pós-processuais, de Thomas e Alberti, queenfatizaram o caráter de construção discursiva da lide arqueoló-gica, e enfoques mais ou menos informados no processualismo,de uma forma ou de outra representados pelos outros panelistas.Lanata e Heckenberger referiram-se, em suas palestras, a mode-los genéricos explicativos, assim como Prous esboçou um análisecrítica dos estudos sobre as pinturas rupestres. Politis gerou gran-de interesse e admiração pela pesquisa etno-arqueológica de campoe suas ilações sobre o papel das crianças foi particularmenteinstigante. Robrahn-Gonzáles relacionou o estudo da cerâmicacom a dinâmica social no Brasil Central, tendo levado a troca deidéias com diversos colegas, em particular com Irmhild Wüst. Amediação de Irina Podgorny organizou o debate, que se prolon-gou pelo início da noite.

O segundo dia centrou-se no tema “Arqueologia e Etnici-dade”, mediado por Eduardo Goes Neves, tendo contado com seisapresentações:

12 Com apoio financeiro da FAPESP.13 Com apoio financeiro do WAC.

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Francisco Noelli, Universidade Estadual de Maringá, Repen-sando os rótulos sobre os Jê do sul do Brasil: pelo compassa-mento entre algumas noções básica da Arqueologia e daEtnologia;

Scott Allen, Universidade Federal de Alagoas/Brown Univer-sity, Etnicidade e Arqueologia Histórica do Quilombo dosPalmares;

Stephen Shennan14, Insitute of Archaeology, Londres, Conceptsof ethnicity in the past and present;Carlos Magno Guimarães, FAFICH-UFMG, Arqueologia e gru-pos étnicos: os quilombos;

María Ximena Senatore, Universidad de Buenos Aires,Arqueología del contacto europeo-americano. Discusión teó-rica y modelos de análisis en áreas marginales; e

Irmhild Wüst, Universidade Federal do Goiás, Continuidadese descontinuidades: Arqueologia e Etnoarqueologia no cora-ção do território Bororo oriental, Mato Grosso.

A etnicidade foi tratada, pelos diversos expositores, a partirde diferentes ângulos, gerando debates entre os panelistas e entreestes e os outros participantes. Noelli desenvolveu uma críticados modelos vigentes na Arqueologia Brasileira em geral, e quan-to ao sul do Brasil, em particular, propondo, em seu lugar, umaanálise que tente integrar os dados arqueológicos àqueles históri-cos, etnográficos e lingüísticos. Os problemas de tal pretensãoforam aventados por Funari, em particular no contexto das dis-cussões mais recentes sobre Arqueologia e Etnicidade. Estas for-maram o cerne do paper de Wüst, cujo endosso das literatura maisatualizada (e.g. Siân Jones) acabou gerando discussões diversas.Shennan somou-se, em sua apresentação, a Wüst ao demonstrarcomo a Etnicidade é antes construção complexa que busca de tra-ços de origem. Allen e Senatore, com estudos de casos específi-cos, juntaram-se àqueles que propugnam pela complexidade dasrelações étnicas e pelos decorrentes desafios de seu estudo a par-

14 Com apoio financeiro do WAC.

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 39

tir da cultura material. Talvez a apresentação mais controversatenha sido a de Guimarães, sobre a identificação arqueológica dequilombos para fins de demarcação de terras. Diversos antropólo-gos presentes divergiram das propostas de Guimarães sobre a cha-mada “ressemantização” do conceito de quilombo, tal como pro-posto por um grupo de trabalho da ABA.

O terceiro dia foi organizado, por Funari, em torno da dis-cussão da “Paisagem, cultura material e patrimônio”, tendo con-tado com seis apresentações:

Andrés Zarankin, Universidad de Buenos Aires/UNICAMP15,Arqueología de la Arquitectura: un modelo teóricometodológico para su abordaje;

Cristina Bruno16, MAE-USP, A importância dos processosmuseológicos para a preservação do patrimônio;

Elizabete Tamanini17, Museu Arqueológico de Sambaqui deJoinville/UNICAMP, Arqueologia e Educação: teoria e prática;

Eduardo Goes Neves18, MAE-USP, Mito, História e Arqueolo-gia na Bacia do Alto Rio Negro, Amazônia;

Marisa Lazzari, Universidad de Buenos Aires, Objetos viajerose imágines espaciales: relaciones de intercambio y laproducción del espacio social; eFelix Acuto, Universidad de Buenos Aires, Paisages cambian-tes: la ocupación inka en el Valle del Caclhaqui Norte, Argen-tina.

As discussões centraram-se, por um lado, nas apropriaçõesda cultura material, objeto de estudo do arqueólogo, por parte dasociedade em geral. Bruno e Tamanini apresentaram reflexõessobre como o trabalho arqueológico envolve, necessariamente,considerações sobre a transformação destes artefatos em patri-mônio, acadêmico e extra-acadêmico. Houve grande discussão aeste respeito, pois muitos arqueólogos dissociam seu trabalho,

15 Doutorando da UNICAMP, contou com apoio financeiro do CONICET (Argentina).16 Com apoio financeiro da FAPESP.17 Doutoranda da UNICAMP, contou com apoio financeiro da CAPES.18 Com apoio financeiro da FAPESP.

PEDRO PAULO A. FUNARI40

propriamente arqueológico, da patrimonização da cultura materi-al. Por outro lado, Zarankin, Neves, Lazzari e Acuto utilizaram-sede estudos de caso para apresentar propostas de uso da teoria ar-queológica. Zarankin discutiu a relação entre os modelosarquitetônicos e a Arqueologia, enquanto, ainda no campointerdisciplinar, Neves relacionou História, Mito e Arqueologia.A paisagem foi tratada de forma original por Lazzari e Acuto,destacando-se a preocupação daquela com os movimentos dosobjetos e deste último com a diacronia no assentamento humano.

O quarto dia começou com uma conferência de McGuire,uma muito oportuna introdução à mesa que se seguiria. Em suaapresentação McGuire tratou dos excluídos da História dos Esta-dos Unidos, os trabalhadores, e mostrou um projeto de pesquisaarqueológica dos vestígios de um grupo de trabalhadores em gre-ve, no início do século. Destacou, ainda, a transformação dessasevidências em patrimônio e demonstrou, de forma clara, seu pro-pósito de engajar a Arqueologia na luta pela liberdade e na rejei-ção de uma Arqueologia que, ao se querer neutra e ahistórica,mostra-se conservadora e pouco capaz de explicar sua própriaprática e teoria. A mesa-redonda que se seguiu, sobre Arqueolo-gia latino-americana: teoria e História, mediada por Goes, mos-trou-se particularmente fértil em suscitar debates e compôs-se deseis papers:

Bernd Fahmel Beyer, Instituto de Investigaciones Arqueológi-cas, UNAM, México, Academy and culture in Mesoamerica:two realities?;Cristiana Barreto19, University of Pittsburg, A Arqueologia noBrasil e na América Latina;

Haiganuch Sarian20, MAE-USP, Arqueologia Clássica no Bra-sil: fronteiras e horizontes;

Irina Podgorny, Universidad de La Plata, The reception of NewArchaeology in Argentina: boundaries, contexts and power;

Pedro Paulo A Funari21, UNICAMP, A importância da teoria

19 Com apoio financeiro da FAPESP.20 Com apoio financeiro da FAPESP.21 Com apoio financeiro da FAPESP.

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 41

arqueológica internacional para a Arqueologia Brasileira; e

Randall MacGuire, Binghamton University, Radical theory inAnglo-American and Hispanic archaeology.

Todos os papers trataram da História da Arquelogia, a partirde estudos de caso e pontos de vistas diferentes. Beyer, Podgornye Funari ressaltaram, ao estudar a América Central, a Argentina eo Brasil, respectivamente, as relações entre o contexto histórico eas práticas e teorias arqueológicas. Barreto procurou contrapor-sea tais contextualizações, tratando dos avanços da Arqueologia noBrasil como desenvolvimentos no interior da ciência. Sarian,embora tenha tratado da Arqueologia Clássica, apenas um doscampos de investigação no Brasil, ressaltou os efeitos cientifica-mente destacáveis dessa área. McGuire forneceu uma visão am-pla, contrapondo a Arqueologia americana à hispano-americana,com destaque para a Arqueologia Social Latino-Americana. Asdiscussões centraram-se no grau de autonomia da ciência arqueo-lógica e nas suas relações com a sociedade abrangente.

Ao final, Goes e Funari mediaram uma plenária sobre oevento. Diversos participantes ressaltaram a importância e inova-ção de um encontro deste tipo, baseado na troca de idéias. Ressal-tou-se que, em um contexto ainda marcado pelos conflitos, atémesmo de caráter pessoal, a apresentação de papers e sua discus-são marcou uma nova etapa, em reuniões arqueológicas na Amé-rica do Sul. Em seguida, foi enfatizada a importância da inserçãoda Arqueologia sul-americana na Arqueologia Mundial. Surgiu aproposta de realizar-se o segundo encontro, tendo sido formadauma comissão provisória22 para encaminhar o evento, que estáplanejada para outubro ou novembro de 1999. A publicação dospapers foi sugerida e solicitou-se o envio dos textos, até fins dejulho de 1998, para que sejam publicados. Neves apresentou àComissão de Publicações do MAE-USP o projeto de publicar umvolume com as atas, em português, e Funari e Podgorny, em reu-nião do executivo do WAC, em maio de 1998, na Croácia23, apre-

22 Composta por Irina Podgorny, Gustavo Politis, Andrés Zarankin, Felix Acuto, Marisa Lazzari,Ximena Senatore, Eduardo Goes Neves, Cristiana Barreto, Bernd Beyer.

23 Com apoio financeiro do WAC e Fundación Antorchas

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sentaram o projeto de publicar um World Archaeological Bulletin,em inglês, para divulgação internacional, tendo obtido o apoioformal do executivo.

O público, além dos panelistas, compreendeu arqueólogos,antropólogos e outros interessados de diferentes instituições, emparticular MAE-USP, UNICAMP, UFES, UFMG, MASJ, Univer-sidade Estácio de Sá (RJ), UFRJ, Universidade Estadual deBlumenau e Museu Nacional. Tomaram parte estudiosos do Bra-sil, Argentina, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Os inte-lectuais envolvidos, os papers apresentados, as discussões de altonível, a proposta de continuidade com um segundo encontro e aspropostas, já encaminhadas, de publicação, no Brasil e no exteri-or, dos textos apresentados, estão a demonstrar a importância doevento para a Arqueologia Latino-Americana e pode-se estar se-guro que se abrem novas perspectivas para a História da Arqueo-logia no continente.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os colegas mencionados do decorrer do texto, poissua colaboração foi imprescindível para o êxito do evento. Devo mencionar,ainda, o apoio da FAPESP (processo 97/13975-5), IFCH-UNICAMP, Se-cretaria da ABA, Cynthia de Ávila, Celso Perota e os demais organizadoreslocais, em Vitória.

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A IMPORTÂNCIA DA TEORIA ARQUEOLÓGICAINTERNACIONAL PARA A ARQUEOLOGIA SUL-AMERICANA:O CASO BRASILEIRO

Existe teoria arqueológica no Brasil? A resposta a esta ques-tão depende, é claro, da definição do termo “teoria”. Embree (1989:37) considera que “a Arqueologia histórica, em sentido amplo,inclui a meta-Arqueologia e como a pesquisa substantiva incluimetodologias de coleta de dados e, também, a análise da teorizaçãodos modelos explicativos”. A ausência, no Brasil, de postos ex-plicitamente voltados para a metodologia ou a teoria arqueológi-cas (Faria 1989:35) estaria a indicar que há uma falta de teoria naArqueologia Brasileira, como acontece em outros países (Kotsakis1991:69; Thomas 1995). Além disso, é ainda muito comum des-prezar artigos interpretativos como sendo “muito teóricos”(MacDonald 1991:830; cf. Cooney 1995). A teoria é considerada,às vezes, como “esotérica, subversiva, anárquica – algo que deve-ria ser evitado por uma questão de higiene intelectual” (Harlan1989:583).

É possível, no entanto, qualquer trabalho de campo sem teo-ria? É possível separar ação (poesis) e teoria (praxis) (Croce, s.d.:41)? Não é difícil concluir que não há meio de praticar uma disci-plina acadêmica, como a Arqueologia, sem quadros analíticos. Ateoria nada mais é do que “visão, contemplação”, theoria signifi-cando, em primeiro lugar, a observação visual (thea) e, com con-seqüência, “especulação”, um “conjunto de idéias”. Se conside-rarmos que “a História não é um grupo de fatos sobre o passadomas, ao contrário, um conjunto de idéias sobre o passado, no pre-sente” (Wright & Mazel 1991: 59), então torna-se claro que nãohá prática arqueológica sem fundo teórico. É precisamente nestestermos que podemos dizer que há teoria arqueológica no Brasil,não como um quadro aberto e explícito de assertivas sobre a

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ontologia do conhecimento arqueológico, mas como uma herme-nêutica subjacente que informa tanto atividades de campo e seusrelatos, como artigos em geral. Desentranhar esta perspectiva te-órica das atividades e discursos arqueológicos é, entretanto, umatarefa ingrata, considerando as múltiplas mediações que ligam asatividades empíricas aos seus suportes conceituais. Além disso,generalizações sobre disciplinas acadêmicas exigem alguma ou-sadia, pois novos materiais ou descobertas, ainda que de camposespecíficos, podem invalidá-las e, assim, a melhor maneira deevitar incompreensões, consiste em explicitar os critérios usadospara estudar o tema. Desta maneira, é possível entender os liamespropostos, neste trabalho, entre o explícito e o implícito naArqueologia brasileira.

O conhecimento, como uma relação social entre pessoas eentre pessoas e coisas (Tilley 1992: 176), é um processo históricoe político de interpretação e ação no mundo. A Arqueologia, comodisciplina acadêmica, não está livre de elos sociais e políticos(Champion 1991: 144) e os arqueólogos estão, sempre, trabalhandosob a pressão das questões levantadas por suas próprias épocas esociedades (Burguière 1982: 437). “Qualquer tentativa de com-preender a presente configuração da disciplina deve, portanto, serfundada em uma análise sistemática e empírica de sua História ede sua prática” (Pinsky 1989: 91) e, neste processo, o arqueólogonecessita reconhecer, em detalhe, a extensão das circunstâncias epadrões, sempre em mudança, em diferentes contextos históricos(Burckhardt 1958: xi). Todas os modos de prática e escrita arque-ológicas entram em contato com diversos grupos sociais, em épo-cas diferentes e em constante mutação (La Capra 1992: 439). Istosignifica que se tem que estudar, por um lado, a História da soci-edade brasileira como um todo (e, em particular, sua História in-telectual) e, por outro, o contexto internacional interagente com asociedade brasileira. Não se pretende, aqui, apresentar um relatoexaustivo, a respeito da Arqueologia Brasileira mas, ao contrário,partem-se de dois critérios explícitos: mencionam-se, apenas etão somente, aqueles trabalhos que tenham alguma preocupaçãoteórico-metodológico, cujo impacto possa ser avaliado por publi-cações. Por isso mesmo, a simples introdução de autores estran-

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 45

geiros em cursos, ainda que possa ter sido importante para a aber-tura de horizontes para diversos pesquisadores, não representaprodução própria. Nesta ocasião, não tratarei da período pré-formativo, pré-disciplinar da Arqueologia no Brasil, até a décadade 1950 (tratado em Funari 1995a), focalizando os desenvolvi-mentos teóricos desde sua introdução como disciplina acadêmi-ca, nos últimos quarenta anos.

A Arqueologia, desde o século passado, havia sido explora-da por estudiosos, em geral ligados aos Museu Nacional do Riode Janeiro, Museu Histórico Nacional e Museu Paulista. Enquantotrabalhos empíricos eram levados adiante por diretores de mu-seus sob os auspícios de um sistema de patrocínio de elite, ohumanista Paulo Duarte estava no exílio por sua oposição ao Es-tado Novo e, ao retornar, introduziu a Arqueologia como discipli-na acadêmica (De Blasis & Piedade 1991: 167) e seu papel comodefensor do patrimônio arqueológico estava em claro contrastecom o padrão tradicional predominante. Seu humanismo basea-va-se em uma abordagem ética, para com a sociedade e, por isso,pôde propor duas medidas revolucionárias: o desenvolvimento deinstituições arqueológicas acadêmicas e a proteção do patrimônio.Os diretores de museus e os arqueólogos tradicionais, ligados aossistema de compadrio dominante no país, nunca iriam propor taismedidas, que, inevitavelmente, desafiavam o nepotismo e as rela-ções de clientela, infensos ao mérito e aos direitos igualitários(Da Matta 1991b: 399). A democracia propugnada por Duarte,baseado no mérito, era, pois, estranha à sociedade hierarquizadanacional; seu humanismo, de estilo francês, era o suficiente pararomper com práticas patronais arbitrárias de longa tradição (Funari1992a: 8).

A intervenção militar de abril de 1964 (Cammack 1991: 35)marcou um período não apenas de repressão generalizada, comode reforço do clientelismo e do compadrio, agora organizado porum regime de força. Logo após o golpe, um acordo foi firmadoentre a United States Agency for Inter-American Development e oMinistério da Educação e Cultura do Brasil (Funari 1996e), quegerou a reorganização de todo o sistema universitário nacional

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(Sebe 1984: 72), sob a égide da ideologia de “segurança nacio-nal” (Ortiz 1985: 85). A ação dos Estados Unidos era o resultadodo fato que “por toda a comunidade acadêmica norte-americana,esforços foram envidados para mobilizar o Ocidente, em uma lutaideológica global, enquanto, ao mesmo tempo, esposava-se umaobjetividade desinteressada, como um dos valores e instituiçõescaracterísticos deste mesmo Ocidente” (Novick 1988: 16;Klappenber 1989: 1014). Esta abordagem positivista estava pordetrás das atividades de alguns arqueólogos americanos ligadosao establishment americano (Roosevelt 1991: 106) e aos milita-res sul-americanos.

Logo depois do golpe, aqui estiveram Clifford Evans e BettyMeggers e, já em outubro de 1964, organizaram o que chamaram“um seminário intensivo para ensinar teoria e metodologia arque-ológicas, classificicação e interpretação cerâmica” para pupilosbrasileiros (Evans 1967: 7). Imediatamente após o seminário,Evans e Meggers usaram o mês de novembro de 1964 para viajarpor onze Estados brasileiros, visitando reitores e diretores demuseus, agora afinados com o novo regime de força. Umpositivismo ingênuo estava no centro da sua abordagem arqueo-lógica. Meggers (1979: 13) ensinou e treinou uma geração de pra-ticantes brasileiros sob a bandeira da objetividade em busca dosfatos: “espero que as pessoas entenderão que a verdade é maisinteressante do que a ficção”.

A Arqueologia, como ciência experimental (Miller 1975: 7),foi interpretada como estranha às questões históricas, em clarocontraste com as Humanidades. Este tipo de empirismo contrapu-nha-se à abordagem humanista proposta por Paulo Duarte, acusa-da, pelos empiristas, de ser algo alheio à cultura nacional. Esteempirismo anti-histórico, importado dos Estados Unidos, foi in-troduzido em uma sociedade completamente diversa da america-na, na qual o empirismo, a competição, os direitos individuais e ocapitalismo, dentro e fora da academia, constituem um quadrocultural consistente. O empirismo, no Brasil, serviria a outros pro-pósitos. O sistema social brasileiro baseia-se em princípios não-capitalistas (Faoro 1976: 736), como a hierarquia (Da Matta 1980:16), o compadrio (Leal 1949: 23; Telarolli 1977: 16), o nepotismo

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(Da Matta 1991a: 14), o amigismo, o familismo e o favor (S.Schwartz 1988: 237). Desde o período colonial, amizades (Pastore1991: 12), clientelas, ideologia corporativa e paternalismo têmsido elementos centrais da vida social brasileira (Lara 1988: 110):“o favor é nossa mediação quase universal” (Schwartz 1988: 76).Vianna (1987: 13) estava propenso a definir este sistema comofeudal. “No Brasil, graças a raízes históricas profundas, pessoasindicadas são os governantes: as pessoas no poder indicam paren-tes e amigos. Educação, competência e qualidade são critériosestranhos à nossa cultura de privilégio” (Castro 1991: 2). Há, pois,um claro desequilíbrio entre os princípios capitalistas, individua-listas, por detrás do positivismo, nos Estados Unidos, e a mesmaabordagem, quando aplicada em um contexto social baseado emvalores não-igualitários e clientelísticos. Isto fica evidente nasArqueologias dos dois países. O principal objetivo do trabalho decampo empírico consiste em coletar artefatos e classificá-los. Estaabordagem considera os depósitos dos museus como contas ban-cárias: devem ser preenchidas com dados (dinheiro) recolhidospelo estudioso (ou capitalista). A evidência coletada pelos arque-ólogos deveria ser classificada e transformada em fatos e núme-ros (cf. Shor 1986: 422). Isto é o que almejam os empiristas, nosEstados Unidos, e podem ser muito bem sucedidos, em seus pró-prios termos. Contudo, este não é o caso do Brasil. O objetivo deespalhar trabalhadores de campo por todo o país, coletando arte-fatos em grande quantidade, armazenando-os em museus, consti-tuindo corpora que seriam, ao final, classificados como matériaprima, não foi completado. Porquê?

Desde a década de 1960, os brasileiros foram treinados, pe-los empiristas americanos, como trabalhadores de campo, sob aégide de um determinismo ecológico não-histórico.

“Seus métodos de escavação e análise misturava materiais deperíodos diferentes, artificialmente comprimindo a seqüência ar-queológica. Esta abordagem norte-americana, entretanto, influ-enciou, de maneira decisiva, os estudiosos brasileiros, graças aosacordos entre instituições brasileiras e americanas e ao estabele-cimento de uma rede de colegas e alunos” (Roosevelt 1991: 107;ênfase acrescentada).

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Este grupo de praticantes não se desenvolveu, como seria ocaso em outros lugares, como um simples “feudo acadêmico”(Levine 1992: 218) mas, em uma sociedade clientelística, como abrasileira, e sob direto comando autocrático da ditadura, este gru-po tornou-se o único legítimo. Passaram a perseguir ou impediras atividades daqueles que não concordavam com a abordagemempirista ecológica e com sua organização e ponto de vista poli-ticamente despótico (Chaui 1992: 6). Duarte e outros foram ex-pulsos da vida universitária, o projeto humanista foi eliminado nonascedouro e o establishment arqueológico, que estava sendo cri-ado, foi dominado por um grupo de empiristas autoritários. A pró-pria cassação de Paulo Duarte, pela ditadura, não deixou de re-presentar um episódio paradigmático, pois o duro golpe ao proje-to acadêmico foi acompanhado da tentativa de destruição do Ins-tituto de Pré-História, por Duarte fundado, pois “o conceito dePré-História é inaplicável ao caso americano”, segundo um dosbeneficiários daquele período de exceção, Ulpiano Toledo Bezer-ra de Meneses (Duarte 1994: 176). À inexistência da Pré-Histó-ria, propunha-se que “a Arqueologia, por sua natureza de ciênciaauxiliar da História, está longe, bem longe, de ser um fim em simesmo”, nas palavras do mesmo autor (Meneses 1965: 22), o queinviabilizaria qualquer desenvolvimento, seja da Pré-História, sejada Arqueologia.

Este grupo formou uma confraria (Meggers 1992) que pas-saria a controlar escavações, financiamentos, publicações, postosarqueológicos e em museus, e, não menos importante, a limitar adifusão de perspectivas diversas. Mesmo estudiosos americanos,que tivessem posições interpretativas diferentes, históricas, foramsistematicamente impedidos de trabalhar. Como ressaltou AnnaRoosevelt:

“Ainda que muitos estudiosos tivessem encontrado evidências <emoposição à abordagem ecológica>, as pessoas da escola determi-nista, com freqüência, não permitiam a publicação de descober-tas dissonantes, como “datações muito antigas” ou assentamentopré-históricos complexos” (Roosevelt 1991: 107).

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A constituição de um grupo que tentava tudo controlar ex-plica porque o empirismo, no Brasil, não conseguiu atingir seuspróprios objetivos de coletar dados, estabelecer corpora e, final-mente, classificar o material em larga escala. Como é comum emsistemas autoritários, não era possível desenvolver discursos epráticas alternativas e não havia, pois, qualquer necessidade, paraaqueles que controlavam o establishment, de serem competentesem seus próprios termos epistemológicos. Graças à ditadura, foipossível reestabelecer práticas clientelísticas por meio do poderarbitrário, usando o empirismo, antes de mais nada, como umajustificativa de poder. Este período foi descrito, por um de seusativos participantes, Tânia Andrade Lima (1998: 25) como “umafase muito dinâmica, com muito trabalho de campo”, o que está asugerir que o isolamento não fazia os perceber que o fim do mo-nopólio discursivo já chegara.

De fato, Walter Neves (1988: 245), logo depois da restaura-ção do regime civil, reconhecia que “no Brasil, salvo rarasexcepções, continuamos a fazer levantamentos oportunísticos eescavações injustificáveis e as instituições de ensino, lamentavel-mente, perpetuam o modelo epistemológico, ainda vigente naArqueologia no Brasil”. A maioria das atividades e publicaçõesarqueológicas continuavam a ser meramente descritivas(Scatamacchia 1984: 198). No entanto, a abertura política torna-ria possível a emergência de uma pluralidade de abordagens. Ape-sar da cassação, o legado de Paulo Duarte pode ser identificadona influência francesa (Laming Emperaire, Emperaire, Prous,Vialou, Guidon, entre outros), cuja importância, como alternativaao modelo dominante, naqueles anos difíceis, não pode ser subes-timada. Papel particularmente relevante foi exercido pela Arque-ologia Clássica (Funari 1997), ao inserir a Arqueologia brasileirano contexto internacional. Pela primeira vez, arqueólogos brasi-leiros publicavam livros no exterior (e.g. Funari 1992b; 1996b;Carreras & Funari 1998), estabeleciam contatos e intercâmbios,livravam a Arqueologia dos esquemas clientelísticos, formavampesquisadores independentes e ao corrente da Arqueologia Mun-dial. Livros atualizados de Arqueologia, produzidos no Brasil,chegaram às escolas, com autores como Maria Beatriz Florenzano

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(1997). Assim, destaque-se a publicação do primeiro manual paraescolas primárias sobre a Pré-História brasileira, escrito pelo ar-queólogo clássico Norberto Luiz Guarinello (1994), cuja exce-lência levou a que fosse adotado pelo Ministério de Educação doBrasil, sendo distribuído aos milhares e constituindo-se no livromais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, em toda a Histó-ria (cf. Funari 1996 ; Faversani 1997). Outros arqueólogos, traba-lhando com temas pré-históricos, como Eduardo Góes Neves eWalter Alves Neves, e históricos (cf. Funari, Jones & Hall 1998 ae b), passaram a inserir-se na ciência internacional, afastando-sedo provincianismo e do compadrio local. Diversas dissertações eteses de Arqueologia foram desenvolvidas em São Paulo (USP eUNICAMP), Rio Grande do Sul (UFRGS e PUCRS), Pernambuco(UFPE) e Rio de Janeiro (UFRJ), assim como no exterior, aindaque muito ainda esteja inédito e que poucos trabalhos se aventu-rem a questionamentos teóricos mais amplos.

Mais recentemente, tem havido um interesse crescente nateoria arqueológica, no Brasil, principalmente por parte das no-vas gerações. A Arqueologia crítica, apresentada como uma críti-ca da ideologia dominante no presente, que aparece comonormativa e ahistórica (Handsman & Leone 1989: 119), junta-mente com a consciência pós-processual ou contextual da subje-tividade da disciplina (Thomas 1990: 67), constituem temas emdiscussão. Artigos, por exemplo, sobre o efeito do colonialismo edo nacionalismo na Arqueologia africana (Rodrigues 1991), de-monstram um interesse crescente pela Arqueologia mundial e pelateoria arqueológica. Tal interesse reflete, também, uma maior aten-ção prestada àqueles que têm formulado a teoria arqueológica in-ternacional, sendo lidos, em particular, Binford, Courbin, Deetz,Gardin, Hodder, Orser, Shanks, Tilley, Trigger, entre outros. Se-guindo as idéias de Stephen (1989: 267) e Hodder (1991: 10),mais atenção tem sido dada aos grupos subordinados (Trigger1998: 16), por oposição ao culto às elites, como ainda propugnadoentre nós (e.g. Lima 1994) como os escravos (e.g. Guimarães 1992;Funari 1996d), e esforços têm sido envidados para apoiá-los emsua luta contra a marginalização. Isto explica o estudo dos índiosque viviam em Missões (Kern 1989: 112), a “História da resistên-

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cia à dominação” (Leone 1986: 431), da antigüidade (Guarinello1989) ao período colonial (Funari 1991).

Também artigos têm sido publicados sobre a teoria arqueo-lógica stricto sensu (e.g. Funari 1989; Kern 1991; Serra 1994;Funari 1995a; 1995b; 1996 a; 1996f ; 1998a; 1998b). Multipli-cam-se as publicações de fundo teórico, tratando de temas como“Hipóteses sobre a origem e expansão dos tupis”, que mereceuum dossiê na Revista de Antropologia da USP, a partir de umtexto de Francisco Noelli (1996), cujas hipóteses encontram suasorigens em trabalhos inéditos de José P. Brochado. Também odossiê sobre “Surgimento do homem na América”, com textosinterpretativos de Marta Lahr, Walter Neves, André Prous, entreoutros, demonstra as preocupações teórico-metodológicas emcurso. Ainda no estudo da Pré-História, as discussões sobre aocupação da Amazônia têm contado come estudos informados nateoria arqueológica, como é o caso da obra de Eduardo Góes Ne-ves e a inserção da Arqueologia brasileira no contexto internacio-nal amplia-se, em especial com a participação de brasileiros nosconselhos de revistas como Latin American Antiquity (IrmhildWüst), International Journal of Historical Archaeology e Materi-al Culture (P.P. A Funari). No campo da Arqueologia Histórica, ospróprios rumos da disciplina têm sido debatidos, com decisivaparticipação brasileira, com a organização de uma sesssão em WAC3 e de um volume de One World Archaeology (Funari, Jones &Hall 1998 a e b) em um contexto mundial (Funari 1996c; 1998 a;Funari, Jones & Hall 1998 a e b), superando, assim, oprovincianismo e o culto às elites, prevalecente em produçõesparoquiais. Também a realização do Simpósio Internacional so-bre Teoria e Método em Arqueologia, no Museu de Arqueologia eEtnologia da USP, em agosto de 1995, mostra a crescente atençãoprestada à epistemologia arqueológica.

Pode concluir-se que o desenvolvimento da teoria arqueoló-gica, importante como pode ser na Europa e na América do Norte,é algo absolutamente fundamental para o futuro da Arqueologiano Brasil. No contexto de uma Arqueologia ainda dominada porrelações de compadrio, muitas vezes infensa, até mesmo, ao

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empirismo que busca seguir padrões internacionais de qualidade,a teoria tem um papel crucial em impulsionar os arqueólogos aopensamento crítico, à interpretação e análise e, não menos impor-tante, a desafiar as idéias e práticas estabelecidas. A despeito dareação daqueles que usufruem de um poder burocrático, sem fun-damentação em prestígio científico reconhecido fora da provín-cia, sua tentativa de suprimir as vozes discordantes está fadada aofracasso, em uma sociedade pluralista. Por meio da leitura da te-oria arqueológica, alguns arqueólogos brasileiros têm sido capa-zes de confrontar dificuldades que, de outra forma, seriam insu-peráveis. A teoria arqueológica, assim, ajuda a transformar a Ar-queologia brasileira de uma maneira vital e, ainda que refletir so-bre ela não seja suficiente, é algo, entretanto, indispensável paramudá-la.

AGRADECIMENTOS

Este texto representa uma reelaboração de palestra, apresentada emSouthampton, em 1992, no encontro anual da Theoretical Archaeology Group(EuroTAG), em sessão organizada por Peter Ucko e publicada em Theory inArchaeoloy, A world perspective, Londres, Routledge, 1995, 236-250. Agra-deço aos seguintes colegas, que forneceram artigos (alguns inéditos) e meajudaram de diversam maneira: Fábio Faversani, Martin Hall, Siân Jones,Carlos Magno Guimarães, Arno Álvarez Kern, Mark P. Leone, EduardoGóes Neves, Walter Alves Neves, Francisco Noelli, Charles E. Orser, Jr.,Anna C. Roosevelt, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. Este trabalho contou como apoio do World Archaeological Congress , FAPESP e CAPES

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OS DESAFIOS DA DESTRUIÇÃO E CONSERVAÇÃO DOPATRIMÓNIO CULTURAL NO BRASIL

Os desafios da destruição e conservação do património cul-tural no Brasil são, provavelmente, pouco conhecidos do públicoacadémico português e este artigo visa apresentar alguns aspectosdessas questões aos estudiosos lusitanos. Antes de discutir a ex-periência brasileira, cabe explorar os diferentes sentidos ligadosao conceito mesmo de “património cultural”. As línguas români-cas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à“propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”.Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos,daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage,na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que,pelo mesmo processo de generalização que afectou as línguas ro-mânicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passoua ser usado como uma referência aos monumentos herdados dasgerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre umareferência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, pre-sente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal(em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, im-plícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afec-tivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precurso-res, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “pro-priedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italia-no, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre omonumento e a sociedade, de tal forma que pode ser consideradauma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” épolítica, “a propriedade cultural é sempre uma questão política,não teórica”, ressaltava Carandini (1979: 234).

Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989: 36) sugeriuque “uma consciência histórica é estreitamente relacionada comos monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monu-

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mentos constituem importantes marcos na transmissão do conhe-cimento, da compreensão e da consciência históricos”. Não háidentidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aquelesque perdem suas origens, perdem sua identidade também”(Ballart1997: 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicossão importantes portadores de mensagens e, por sua própria natu-reza como cultura material, são usados pelos actores sociais paraproduzir significado, em especial ao materializar conceitos comoidentidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto,procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos econtestados, em termos culturais, antes que como portadores designificados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de refle-xões, mais do que de admiração (Potter s.d.). Uma abordagemantropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarara manipulação do passado (Haas 1996). A experiência brasileira,a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado,incluindo-se o gerenciamento do património, é, de forma cons-tante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António AugustoArantes (1990: 4): “o património brasileiro preservado oficial-mente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível porum lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboramde maneira simbólica”. Esses estratos são os excluídos do podere, assim, da preservação do património.

No Brasil, houve, sempre, uma falta de interesse, por partedos arqueólogos, em interagir com a sociedade em geral – como éo caso, na verdade, alhures na América Latina, como nota Gnecco(1995: 19) – e o património foi deixado para “escritores, arquitectose artistas, os verdadeiros descobridores do património cultural noBrasil, não historiadores ou arqueólogos” (Munari 1995). A pre-servação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considera-do, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42),como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar quea importância da Igreja Católica na colonização ibérica do NovoMundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifíci-os, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indí-genas (cf. o exemplo maia, em Alfonso & García s.d.: 5), sejam asigrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso

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na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas forambem preservadas no Brasil, com importantes excepções, e istopode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos,de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeiranacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordeme progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade equalquer edifício moderno é considerado melhor do que um anti-go. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janei-ro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quais-quer que tenham sido os motivos económicos, sociais ougeopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’almafavorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasi-leira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, masuma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejosdeveriam preterir seu património, em benefício de uma cidadesem passado (Funari, a sair).

Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrançamaterializada seja São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimentonão encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou aser uma cidadezinha até fins dos século XIX, até tornar-se, nestesúltimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul. Nesse pro-cesso, restos antigos sofreram constantes degradações ideológi-cas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar umacidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim sepode falar, são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera,planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para come-morar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios pú-blicos, como o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Es-tado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a As-sembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e amais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do séculoXIX como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmenteremodelada na década de 1970. Mesmo em cidades coloniais, al-gumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, de-clarada Património da Humanidade, a modernidade está semprepresente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont(1998: 3) descreve esta situação com palavras fortes:

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“A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquelaentre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação,ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turis-mo para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimi-gos da preservação dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar,a própria administração municipal, não afectada pelos problemassociais e ignorante das questões culturais em geral mas, às vezes,os moradores também, inconscientes da importância dos monu-mentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novasjanelas, antenas parabólicas, garagens, telhados e casas inteirasbastam para transformar uma cidade colonial em uma cidademoderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, comoé o caso de tantas delas”.

É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em teracesso à infraestrutura moderna mas, como notam os europeusquando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievaispodem ser completamente reaparelhados, sem danificar os prédi-os, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça aopatrimónio arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já queos ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igre-jas e museus locais coloniais (Rocha 1997; cf. um caso semelhan-te na República Tcheca, Calabresi 1998). Um problema mais pro-saico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manu-tenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios (Lira 1997; Se-bastião 1998). Estes três perigos para a manutenção dos bens cul-turais, aparentemente não relacionados, revelam uma causasubjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre opovo e as autoridades, a distância que separa as preocupaçõescorriqueiras e o ethos e políticas oficiais. Houve uma “política depatrimónio que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, osfortes militares, as câmaras e cadeias como as referências para aconstrução de nossa identidade histórica e cultural e que relegouao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros operários”(Fernandes 1993: 275).

Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como sesua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou dignade atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil:

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as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”,onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as“casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo,mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas”(tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedadebaseada na escravidão, desde o início houve sempre dois gruposde pessoas no país, os poderosos, com sua cultura materialesplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reve-rência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos,dignos de desdém e desprezo. Como enfatizou o grande sociólo-go brasileiro, Octávio Ianni (1988: 83), o que se considera patri-mónio é a Arquitetura, a música, os quadros, a pintura e tudo omais associado às famílias aristocráticas e à camada superior emgeral. A Catedral, frequentada pela “gente de bem”, deve ser pre-servada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”,não é protegida e é, com frequência, abandonada. Os monumen-tos considerados como património pelas instituições oficiais, deacordo com Eunice Durham (1984: 33), são aqueles relacionadosà “história das classes dominantes, os monumentos preservadossão aqueles associados aos feitos e à produção cultural dessasclasses dominantes. A História dos dominados é raramente pre-servada”.

Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirmaque é comum que os grupos dominantes usem seu poder parapromover seu próprio património, minimizando ou mesmo ne-gando a importância dos grupos subordinados, ao forjar uma iden-tidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de separaçãoentre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, emgeral, tão marcado quanto no Brasil. Neste contexto, não é desurpreender que o povo não preste muita atenção à protecção cul-tural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua rea-lidade. Há uma expressão no português do Brasil que demonstra,com clareza, esta alienação das classes: “eles, que são brancos,que se entendam”. Note-se que esta frase é usada também porbrancos para se referirem às autoridades em geral. A mesma dis-tância afecta o património, pois os edifícios coloniais são consi-derados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer,

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assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta adestruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada comoum tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mascontra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalter-nos.

O património arqueológico stricto sensu poderia deixar deser afectado por esta falta de interesse na preservação da culturamaterial da elite, na medida em que a Arqueologia produz evi-dência de indígenas e dos humildes em geral (cf. Trigger 1998:16). Entretanto, há muitos factores que inibem um engajamentoactivo da gente comum na protecção patrimonial. Em primeirolugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema.Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas li-ções de História e, na maioria das vezes, as poucas referênciassão negativas, ao serem representados como preguiçosos, umamassa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Osíndios eram considerados ferozes inimigos, dominados por sécu-los e isso pleno iure. Em famoso debate, no início do século XX,Von Ihering, então diretor do Museu Paulista, propôs o extermí-nio dos índios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancaro progresso do país (Schwarcz 1989: 59) e, mesmo que tenha sidodesafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacio-nal do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda é muito sintomáticada baixa estima dos indígenas, mesmo na academia. Basta lem-brar que o material indígena proveniente do oeste do Estado deSão Paulo, coletado há oitenta anos, à época de Von Ihering, apenasagora está sendo exposto, graças a um projecto inovador da Uni-versidade de São Paulo (Cruz 1997): antes tarde do que nunca!

Os negros, por sua parte, foram considerados como bárbarosameaçadores ou, como disse, há pouco, um eminente e renomadohistoriador brasileiro, Evaldo Cabral de Mello (Leite 1996): “Nãoé possível negar o que era o Quilombo dos Palmares: era umarepública negra, foi destruída e eu prefiro, para ser franco, queassim tenha sido. Por uma razão muito simples. Se Palmares ti-vesse sobrevivido, teríamos no Brasil um Bantustão, um Estadoindependente e sem sentido”. Assim, um importante historiador

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ainda se sente ameaçado pelos negros e parece mirar-se em Catão:delenda Palmares! Ser capaz de dizer tais disparates ex cathedrarevela muito sobre a doutrinação, cheia de preconceitos que, deuma outra ou de outra maneira, acaba por atingir o próprio povo(Funari 1996a: 150 et passim).

Por fim, mas não menos importante, há uma falta de comu-nicação entre o mundo académico, em particular a comunidadearqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a co-munidade, não para ela (Rússio 1984: 60), dando ao povo umamelhor compreensão do passado e do mundo (Hudson 1994: 55).Para atingir esses objectivos, pesquisas de largo fôlego não deve-riam levar à diversão (Durrans 1992: 13), mas à integração deprocessos, como é o resgate de edifícios históricos e a escavaçãode sítios arqueológicos, e produtos, como a publicização do tra-balho científico por meio de diferentes media (Merriman 1996:382). Um bom exemplo é o destino de um sítio arqueológico par-ticularmente importante no Brasil: o quilombo do século XVII,conhecido como Palmares. Desde a década de 1970, começou-sea suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase umséculo ao sistema escravista, se localizava no interior do Estadode Alagoas, na Serra da Barriga. Ativistas negros encontraramrestos de superfície na colina e conseguiram, depois de uma cam-panha sem precedentes, fazer com que as autoridades declaras-sem a área património nacional, em 1985. Contudo, devido aopouco caso do establishment arqueológico, controlado por forçasconservadoras ligados ao regime militar (Funari 1995b: 238-245),o sítio ficou nas mãos das autoridades locais. O resultado foi ouso de tractores para nivelar uma parte importante do sítio, o quepermitiu que as autoridades promovessem festas e, desta forma,conseguissem o apoio eleitoral.

No início da década de 1990, quando o trabalho arqueológi-co começou na Serra, um dos principais objectivos foi actuar coma comunidade local e com os activistas negros, de modo que sepudesse compreender o sítio e sua importância e se pudesse alme-jar, para o lugar, mais do que o destino de local de festas. O poderobtido por aqueles que estão, normalmente, excluídos dos pro-

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cessos de decisão (Jones 1993: 203) seria apenas possível por meioda divulgação científica e na mídia da pesquisa arqueológica. Nosúltimos anos, os arqueólogos encarregados do estudo do sítio,Charles E. Orser, Jr. (1992;1993;1994;1996) e este autor (Funari1991;1994a;1995a;1995c;1996a;1996b;1996c;1996e;1996f; Orsere Funari 1992) publicaram três livros, integral ou parcialmente,dedicados a Palmares, mais de dez artigos científicos em revistasacadémicas brasileiras e estrangeiras, assim como Scott Allen(1997; 1999) produziu um mestrado e um doutorado sobre o sítio,além de estudo de Michael Rowlands (1999), a partir do mesmosítio. Além disso, diversos artigos em revistas e jornais, tanto noBrasil como no exterior, foram publicados. É provável que istonão seja suficiente para mudar, de forma radical, a atitudesubjectiva dos brasileiros comuns para com essas evidências hu-mildes de um quilombo, pois o contexto mais amplo no Brasilnão seria alterado por uma actividade académica isolada, mas,mesmo assim, muito mais gente, agora, sabe da existência do sí-tio e de sua possível importância.

De facto, quinze anos atrás, no final do regime militar,Olympio Serra (1984:108) propôs uma interpretação ousada dePalmares, como um possível modelo de sociedade não-autoritá-ria: “deveria ser possível recriar a experiência de uma sociedadepluralista, como era a República de Palmares. E se você olha estamais atraente fase da História do Brasil, vai ver que, em Palmares,não havia apenas negros, mas também índios, judeus, em outraspalavras, todos os discriminados pela ordem colonial, todos queeram diferentes”. Alguns anos depois, o trabalho arqueológico naSerra da Barriga produziu evidência material que pode substanciaresta abordagem humanista. Palmares deve seu crescimento, so-brevivência e destruição ao papel que teve no comércio entre acosta e o interior, pois os interesses mercantis e Palmares se opu-nham àqueles da nobreza e dos latifundiários, que triunfaram, aofim, devido à força dos grupos nobiliárquicos, em Portugal e nacolónia. A destruição desta tendência pluralista explica a persis-tência de um discurso racista e elitista, já mencionado, e o traba-lho arqueológico de resgate da cultura material do quilombo, as-sim como sua preservação como património cultural, passa a ter

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um papel não desprezável na promoção de uma consciência críti-ca, dentro e fora do mundo académico.

No Brasil, o cuidado do património sempre esteve a cargoda elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes.Edifícios de alto estilo arquitectónico, protegidos por lei, são dei-xados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte éamplamente tolerado. Recentemente, Christie’s vendeu uma obra-prima de Aleijadinho (Blanco 1998a; 1998b). A imprensa está sem-pre a noticiar a respeito, sem que se faça algo a respeito (cf. Leal1998; Verzignasse 1998; Werneck 1998). Arqueólogos de boa cepanão escondem sua ligação com antiquários (e.g. Lima 1995). Agente comum sente-se alienada tanto em relação ao patrimónioerudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que sãoensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres, em outraspalavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, atarefa académica a confrontar os arqueólogos e aqueles encarre-gados do património, no Brasil, é particularmente complexa econtraditória. Devemos lutar para preservar tanto o patrimónioerudito, como popular, a fim de democratizar a informação e aeducação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que opovo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimen-to, para que possamos trabalhar, como académicos e como cida-dãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primei-ro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nossopatrimónio comum. E isto não é uma tarefa fácil.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a diversos colegas, que contribuíram de diferentes manei-ras, para que este artigo fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, BrianDurrans, Juan Manuel García, Siân Jones, Vítor Oliveira Jorge, RobertLayton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G.Trigger, Peter Ucko. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.Devo mencionar, ainda, os apoios institucionais do Congresso Mundial deArqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade deBarcelona e Universidade Estadual de Campinas.

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CONTRADIÇÕES E ESQUECIMENTOS NAS IMAGENS DOPASSADO1

Gostaria de começar agradecendo aos organizadores doCEDEM da UNESP, em especial à Professora Anna MariaMartínez Corrêa, o convite de participar, hoje, deste debate, emtorno do livro da Professora Marly Rodrigues, estudiosa que hámuito admiro e que tanto nos tem ensinado sobre o patrimônioem nosso país. Começarei por citar algumas passagens do capítu-lo conclusivo do volume e que servem como reflexões surgidasao cabo de um percurso, como se olhasse para a História do cui-dado com o patrimônio com o devido distanciamento, já a enxer-gar não mais as pedrinhas, mas o mosaico resultante dos docu-mentos compulsados e criados pela autora, na forma de entrevis-tas com os próceres administrativos. Assim, Marly Rodrigues des-creve o primeiro período da instituição estadual de patrimônio, de1969 a 1982, em pleno arbítrio de um regime de força:

“Em um período de ascensão do conservadorismo, como os trezeprimeiros anos de atuação do Condephaat, a evocação do bandei-rante e do grande cafeicultor atenderia quer à distinção de seg-mentos paulistas, quer às abordagens comemorativas e cívicas dacultura e da educação...Consagradores de um tempo passado,entendido como um tempo sem contradições, as representaçõesbandeiristas, cafesistas e da colonização remetiam à nostalgia davida rural” (pp. 148-9, grifo acrescentado).

De fato, a autora remonta a Taunay as origens dessas ima-gens idealizadas do passado e demonstra sua força no período de

1 Participação em Mesa-Redonda no CEDEM- UNESP, DOCUMENTAÇÃO EMEMÓRIA,TESES EM DEBATE, “IMAGENS DO PASSADO, A INSTITUIÇÃO DOPATRIMÔNIO EM SÃO PAULO, 1969/1987”, Marly Rodrigues, Condephaat e Faap, ex-positora. Pedro Paulo Funari, UNICAMP, Walter Pires, SMC/SP, Debatedores. Célia R.Camargo, UNESP. Moderadora. Dia 11 de setembro de 2001, às 18:00h. Praça da Sé, 108,1º andar, tel 252 05 10. Discussão sobre o livro de Marly Rodrigues.

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ápice da ditadura, mas sua força ideológica consiste, como bemressalta Marly Rodrigues, na ênfase na ausência de contradições,na visão idílica de um passado em que todos seríamos bandeiran-tes. Tal concepção continua, quase vinte anos depois, a dominaras representações materiais do nosso passado, como atesta, deforma exuberante e indecente, o Museu Paulista, in primis, masnão apenas, pois o inventário dos bens tombados continua a privi-legiar essas imagines maiorum.

A restauração das liberdades formais viria a permitir a emer-gência, no seio da sociedade, de múltiplas vozes e interesses oque, em parte, se refletiu, na ampliação do universo cultural re-presentado no patrimônio (Meneguello 2001). No entanto, MarlyRodrigues conclui seu balanço de forma muito clara, ao enfatizaras permanências seculares do discurso da exclusão. Segundo aautora:

“Do conjunto de bens tombados no Estado de São Paulo, fazemparte poucas memórias de negros, de imigrantes e de trabalhado-res. Os remanescentes de sedes de fazenda e ricas mansões urba-nas sombreiam os de senzala, dos cortiços e dos bairros operári-os. Desse modo, o patrimônio paulista se apresenta não apenascomo perpetuador da memória, mas também do esquecimentooficial. A exclusão atinge não apenas os excluídos, mas remetetoda sociedade à idealização do passado como um tempo des-provido de contradições e diferenças. Além disso, não permite areflexão sobre as relações hoje vigentes na sociedade, dessa for-ma reafirmando igualdades idealizadas e camuflando conflitos, oque subtrai dos homens a idéia de possibilidade de transforma-ção, razão mesma da memória, da retenção e socialização da ex-periência vivida” (p. 151, grifo acrescentado).

Não se trata de particularidades, de idiossincrasias das polí-ticas patrimoniais paulistas, mas de características intrínsecas dopreservacionismo nacional, inserido, portanto, em uma sociedadesecularmente patriarcal, hierarquizada, fundada na obediência,infensa à liberdade e à cidadania ativas (cf. obras de Funari, nasreferências). Como enfatizou o grande sociólogo, Octávio Ianni(1988: 83), o que se considera patrimônio é a Arquitetura, a músi-ca, os quadros, a pintura e tudo o mais associado às famílias aris-

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tocráticas e à camada superior em geral. A Catedral, frequentadapela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja deSão Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, comfrequência, abandonada. Os monumentos considerados comopatrimônio pelas instituições oficiais, de acordo com EuniceDurham (1984: 33), são aqueles relacionados à “história das clas-ses dominantes, os monumentos preservados são aqueles associa-dos aos feitos e à produção cultural dessas classes dominantes. AHistória dos dominados é raramente preservada”.

Marly Rodrigues nota que não se trata, apenas, de excluir asmaiorias e as minorias, mas de construir um passado homogêneo,isento de tensões, contradições e variedade. A sociedade é vistacomo um conjunto harmônico de pessoas, uma koinonia, no sen-tido já proposto por Aristóteles (Politica 1252a7), a viver segundonormas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo,a dissensão, a variedade e a diferença aparecem como desvios danorma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção desociedade cria o conceito de identidade partilhada, de caracterís-ticas iguais (de onde se origina a própria palavra identidade, deidem, “o mesmo”, em latim), como se todos, portanto, perten-cêssemos à confraria. Este o conceito normativo de pertença,belonging, tão caro aos modelos de sociedade sem conflitos, semdiversidade.

Epur, como lembra Marly Rodrigues, a ausência de confli-tos e diferenças não passa de idealização do passado, uma visãoidílica dos donos do poder, daqueles que controlam a preservaçãoda cultura material, acostumados com o exercício do mando ecom a expectativa de obediência por parte daqueles que devemfazê-lo e que são, segundo sua ótica, simples néscios. Contudo,Marly Rodrigues menciona contradições e diferenças que não sesujeitam à lógica do discurso da homogeneização opressiva, poisa resistência consiste em desconstruir, no sentido literal e figura-do, essas memórias materiais repressoras. A alienação da popula-ção e o divórcio entre o povo e as autoridades distanciam e sepa-ram as preocupações corriqueiras das pessoas comuns e o ethos epolíticas oficiais. Houve uma “política de patrimônio que preser-

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vou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as câ-maras e cadeias como as referências para a construção de nossaidentidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento assenzalas, as favelas e os bairros operários” (Fernandes 1993: 275).

Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como sesua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou dignade atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil:as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”,onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as“casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo,mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas”(tugúrios) (Reis Filho 1978: 28). O resultado de uma sociedadebaseada na escravidão, desde o início houve sempre dois gruposde pessoas no país, os poderosos, com sua cultura materialesplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reve-rência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos,dignos de desdém e desprezo.

Marly Rodrigues considera que essa invenção de um passa-do homogêneo e harmônico inibe a reflexão sobre as relações so-ciais odiernas e tende a subtrair dos homens seu potencial de trans-formação social. A preservação patrimonial insere-se, neste con-texto, em uma luta pela preservação do status quo e das iniqüida-des vigentes. Essas tentativas de imobilização dos agentes soci-ais, entretanto, sempre encontram seus limites na própria práxissocial, que escapa aos ditames dos administradores da sociedadee da gestão patrimonial. Marly Rodrigues conclui sua obra compalavras fortes sobre a deotologia do preservacionismo, sobre suatarefa:

“A busca desse sentido (sc. de democratização das práticas pú-blicas de proteção da memória social) implicaria o interesse emfavorecer a emergência de uma consciência política que absor-vesse o presente como um tempo historicamente constituído, noqual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, ooutro, o conflito e a resistência, elementos constituintes daininterrupta luta pelos direitos sociais” (p. 152).

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O preservacionista sempre tem uma pergunta em mente: pre-servar para quê? Há alguns anos, quando de uma homenagempóstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanista PauloDuarte – personagem do capítulo de Marly Rodrigues “Passado,reflexo do presente”-, Maria Cristina Bruno (1991) evocava umabela imagem sobre a preservação:

“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência.Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e po-pular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a in-formação”.

Informação, criação de consciência, ação no mundo, trans-formação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19).Seria, até mesmo, o caso de propor que se deva preservar paratransformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio declasse ou grupo e qualquer ação preservacionista pode levar à re-flexão crítica. Abrir a cabeça, talvez a meta maior da preservação(Hudson 1994: 55). A começar por uma política que se contrapo-nha à alienação da moda e à descontextualização derivada damercantilização generalizada dos objetos e dos edifícios em nos-sa sociedade pós-moderna (Durrans 1992: 14), que contribua paraa autonomia do público (aquilo que os ingleses tão bem definemcomo empowerment, cf. Giroux & McLaren 1986: 238). O passa-do, em forma de patrimônio material, serve ao presente (Luc 1986:118).

A luta por direitos sociais, propugnada por Marly Rodrigues,consiste em batalhar por um preservacionismo que dê conta dascontradições, dos conflitos, da heterogeneidade (cf. Rodrigues2001: 17). Tal luta não se pode restringir à esfera dos órgãos depatrimônio, pois são as forças sociais a permitir, em última ins-tância, a contestação das exclusões já consolidadas. A ação con-junta com os agentes constitui, pois, o meio privilegiado de açãopor uma preservação libertadora. O belo livro de Marly Rodrigues,de forma muito sintomática, conclui-se com uma convocação àação, com um brado por uma política pluralista que contribua paratransformar nossa sociedade. Cabe a todos nós contribuirmos paraisso.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Cristina Bruno, Brian Durrans, Octavio Ianni, RobertLayton, Cristina Meneguello e Marly Rodrigues. Devo, ainda, mencionar oapoio institucional do World Archaeological Congress. A responsabilidadepelas idéais restringe-se ao autor.

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TEORIA E MÉTODOS NA ARQUEOLOGIACONTEMPORÂNEA: O CONTEXTO DA ARQUEOLOGIAHISTÓRICA1

A Arqueologia possui diversas correntes teóricas, cujosparadigmas epistemológicos não são, às vezes, bem conhecidos.Neste contexto, procuro apresentar um quadro geral das posturasmais recorrentes e relaciono essas abordagens à prática contem-porânea da Arqueologia Histórica (Funari, Hall e Jones 1999, combibliografia sobre o tema).

A Arqueologia só pode ser entendida em seu contexto histó-rico e social, como alertava Michael Shanks há algum tempo.Desde seu surgimento, diversas teorias desenvolveram-se e, decerta forma, todas elas continuam até hoje sendo utilizadas. Her-deira do nacionalismo do século XIX, a Arqueologia tem no mo-delo histórico-cultural sua teoria mais difundida. A partir da no-ção de que cada nação seria composta de um povo (grupo étnico,definido biologicamente), um território delimitado e um cultura(entendida como língua e tradições sociais), formou-se o concei-to de cultura arqueológica. Esta seria um conjunto de artefatossemelhantes, de determinada época, e que representaria, portan-to, um povo, com uma cultura definida e que ocupava um territó-rio demarcado. Este modelo está calcado em suas origensfilológicas e históricas e surgiu no contexto da busca das origenspré-históricas dos povos europeus, tendo surgido na Alemanha,com Gustav Kossina, e se generalizado graças à genialidade deVere Gordon Childe. Childe retirou os pressupostos racistas domodelo original e desenvolveu o conceito de cultura arqueológica,acoplando-o ao evolucionismo materialista de origem marxista.

1 Considerações apresentadas em eventos acadêmicos sobre os campos conceituais na Arque-ologia das sociedades históricas.

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O modelo histórico-cultural parte do pressuposto que a cul-tura seja homogênea e que as tradições passem de geração a gera-ção. Desta forma, seria possível tentar determinar os antepassa-dos dos germanos ou dos guaranis. Este modelo, ainda que tenhasofrido muitas críticas, como veremos, continuar a ser o mais uti-lizado em Arqueologia, em suas múltiplas variantes e formas.

O primeiro assalto consistente a esse paradigma viria da-queles que não praticavam a Arqueologia de cunho filológico ehistórico, à maneira européia. No contexto da Arqueologia antro-pológica norte-americana, surgiu um movimento, na década de1960, que se auto-denominava de New Archaeology ou Arqueolo-gia Processual, capitaneada por Lewis Binford. Começou-se como grito de guerra de que “a Arqueologia é Antropologia ou não énada”, em claro desafio ao caráter histórico da Arqueologia histó-rico-cultural. A História estaria em busca dos eventos e das cultu-ras singulares, enquanto a Antropologia americana ressaltava quehaveria regularidades no comportamento humano. Buscavam-se,pois, leis transculturais de comportamento. Partia-se do pressu-posto que os homens maximizam os resultados e minimizam oscustos, em qualquer época e lugar. Assim, estudar o assentamentohumano há dez mil anos na Mesopotâmia ou na China deveriapartir dos mesmos pressupostos e pouco importavam as caracte-rísticas históricas específicas. A Arqueologia processual refletiabem uma visão capitalista do passado humano, privilegiando umainterpretação materialista pouco preocupada com as diversidadesculturais. Surgida no contexto da Guerra Fria e tendo atingido seuápice na década de 1970, ela continua bastante difundida, aindaque nunca tenha conseguido suplantar, em popularidade acadê-mica, o modelo histórico-cultural.

A partir da década de 1980, começaram a surgir críticas maiscontundentes ao processualismo. Nas Ciências Humanas, em ge-ral, difundia-se o pós-modernismo e as críticas à idéia de verdadecientífica. A partir da noção de que as ciências são construçõesdiscursivas, inseridas em contextos sociais, desmontou-se a lógicado processualismo: os homens não foram sempre e em toda partecapitalistas! Alguns, como Ian Hodder, começaram a ressaltar que

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havia uma dimensão simbólica na cultura que não podia ser dei-xada de lado, já no início da década de 1980, mas foi a publicaçãode Re-Constructing Archaeology, por Michael Shanks eChristopher Tilley, em 1987, que marcou o processo de recons-trução da Arqueologia. Os autores uniram as vertentes filológicas,históricas e filosóficas da crítica social às reflexões da Antropolo-gia contextual, em um ataque devastador aos pressupostos histó-rico-culturais e processuais, caracterizados como discursos a ser-viço das potências imperialistas e da exploração. Já antes disso,Bruce G. Trigger constatava que a New Archaeology era uma for-ma de Arqueologia imperialista. A Arqueologia pós-processualou contextual introduziu, de forma explícita, a dimensão políticada disciplina, sua importância na luta dos povos pelo seu própriopassado e por seus direitos.

Foi neste contexto que surgiu o World Archaeological Congress(Congresso Mundial de Arqueologia), em 1986, congregando ar-queólogos e outros estudiosos, assim como indígenas, preocupa-dos com as dimensões sociais da Arqueologia. Shanks e Tilleyconstataram que o próprio nome da disciplina pode ser interpre-tado como o “conhecimento do poder”, retomando um dos senti-dos da palavra arque, em grego. A partir da década de 1990, esseengajamento levou a um crescente dinamismo da chamada Ar-queologia Pública (public archaeology), entendida como toda apletora de implicações públicas da disciplina, do cuidado pelopatrimônio aos direitos humanos.

A partir do final da década de 1990, há um crescente pluralismointerpretativo na Arqueologia. Os modelos fundados no históri-co-culturalismo continuam muito difundidos, tanto por serem osque mais cedo surgiram e terem continuado a desenvolver-se,como por responderem a inquietações históricas concretas, comoé o caso da busca das origens pré-históricas de povos como ostupis ou os guaranis. A partir da década de 1960, uma vertentehistórico-cultural importante em certos países latino-americanosfoi a Arqueologia Social Latino-Americana, teoria fundada emChilde e que se aplicou bem à reconstrução das grandes civiliza-ções pré-colombianas, como a maia, inca e asteca, que estariamna base das modernas nacionalidades de países com forte presen-ça indígena, como o México e o Peru.

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O processualismo, por sua parte, continua importante, em parti-cular por fornecer esquemas interpretativos aplicáveis a qualquercontexto histórico. Assim, o estudo da captação de recursos e dospadrões de assentamento tem se beneficiado das ferramentasinterpretativas da New Archaeology, sendo seus métodos maisusados em certos países, como na Europa Oriental ou na Argenti-na, ou em determinadas instituições de pesquisa. A Arqueologiacontextual, em suas mais variadas manifestações, tornou-se co-nhecida em toda parte e assumiu a vanguarda em países como aInglaterra e em diversas instituições pelo mundo afora, em pri-meiro lugar no mundo anglo-saxão, mas também alhures. A con-vivência de diferentes e, às vezes, contraditórias teorias em Ar-queologia constitui uma salutar característica da disciplina na atua-lidade.

Neste contexto, pode afirmar-se que a Arqueologia Históri-ca é uma disciplina ainda muito jovem, tendo se institucionalizadohá apenas quarenta anos, nos Estados Unidos. No Brasil, sua prá-tica tem-se ampliado, principalmente, a partir da década de 1980,em parte como resultado da restauração paulatina das liberdadespúblicas e do declínio do arbítrio, primeiro com a anistia (1979),o relaxamento da censura e, ao cabo, com a passagem a um regi-me civil em 1985.

A primeira questão epistemológica a ser abordada refere-seàquela mais central e que se encontra no cerne de todo engenhoda disciplina: seu estatuto ontológico. A Arqueologia, surgida emsolo europeu herdeira da tradição ocidental renascentista, tevealgumas de suas bases assentadas na História da Arte, na Arquite-tura acadêmica, no mundo das formas. Este período pré-históricoda Arqueologia marcou profundamente a disciplina, em busca dasgrandes estátuas gregas, da aisthesis, da percepção das etéreaslinhas da beleza marcadas no mármore e noutros materiais no-bres. Quando o século XVIII testemunhou o avanço das Luzes euma nova universidade tomou forma, a Filologia passou a erigir-se como fundamento último da humanidade e o próprio estudodas formas, já multissecular, passou a ser apresentado à seme-lhança das línguas. A nascente Filologia já se havia inspirado naBiologia para decompor as línguas em troncos e filiações, assim

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como para apresentá-las, à maneira dos seres vivos, com nasci-mento, crescimento, ápice, declínio e desaparecimento e tais me-táforas foram passadas, mutatis mutandis, para a cultura material.Neste contexto, a Arqueologia não podia deixar de ser filológicae, portanto, histórica.

Muito diversa a Arqueologia surgida do outro lado do Atlân-tico, nos Estados Unidos. Ao lado de uma Arqueologia européialogo implantada nas universidades e museus americanos, tão bemrepresentada pelas Arqueologia Clássica, Bíblica, do Egito e daMesopotâmia, surgia outra, a Arqueologia pré-histórica. As Ar-queologias surgidas no Velho Mundo estudavam a civilizaçãoeuropéia e suas origens, voltavam-se para as próprias sociedadesem que se inseriam. Nos Estados Unidos, surgia uma disciplinavoltada para aqueles que não faziam parte da civilização ociden-tal, a Antropologia interessada no substrato humano dos diversospovos. Para tanto, era necessário conhecer as línguas indígenas(Lingüística), as tribos existentes (Etnologia) e aquelas extintas(conhecidas pela cultura material e estudadas pela Arqueologiapré-histórica).

O estudo da cultura material recente das sociedades ociden-tais demorou, portanto, a surgir e quando o fez encontrou-se naencruzilhada de diversas origens e abordagens. Na Europa, o es-tudo arqueológico destes últimos séculos, por vezes chamada deArqueologia Pós-Medieval, continua a ser prática minoritária, massempre vinculada à lógica narrativa das origens históricas e, comfreqüência, na esteira de um discurso das formas eruditas e daselites. Nos Estados Unidos, onde a disciplina se desenvolveu comgrande êxito, as raízes antropológicas da Arqueologia Históricapermitiram que se criassem narrativas críticas, ainda que prevale-ça a lógica das nobres origens da nação. As tensões epistemológicasno interior da Arqueologia Histórica, nos Estados Unidos, refle-tem sua dupla face: por um lado, a suntuosidade material da civi-lização euro-americana forma a base de uma narrativa dominanteconservadora e que justifica o domínio do mundo. Por outro lado,ao poder voltar-se sobre si mesma como se estudasse uma outrahumanidade, à maneira da Antropologia, podem surgir os confli-

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tos, as maiorias silenciadas, a materialidade da opressão e da re-sistência.

Neste contexto mais amplo, a Arqueologia Histórica brasi-leira não deixa de compartilhar das aporias e contradições ineren-tes a este campo de pesquisa. Na origem da Arqueologia Históri-ca no Brasil, está o patrimônio, bem material de alto valor mone-tário e eo ipso símbolo da vitória da apropriação do trabalho alheio.Patrimônio é aquilo que poucos têm, é o cabedal a ser passado depai para filho, de proprietário a proprietário, apanágio de poucos.Deste sentido jurídico de patrimônio deriva o uso cultural do ter-mo. Trata-se, pois, de bens que demonstram a proprietários e nãoproprietários seu devido lugar na ordem social. Também em nos-so meio, pois, a disciplina surge como reforço material de narrati-vas hegemônicas, ainda que os discursos dominantes sejam di-versos daqueles prevalecentes nos Estados Unidos ou na Europa.Para uns o individualismo capitalista da América, para outros atradição aristocrática européia, enquanto no Brasil as narrativasdominantes fundam-se no patriarcalismo escravista. Nos EstadosUnidos, a Arqueologia constrói ou desconstrói um individualis-mo capitalista, na cultura material quotidiana de capitalistas oude trabalhadores, à porcelana de aparato se opõe a cerâmica dosoperários, a grande arquitetura erudita à construção vernacular.Uns falam da grandeza dos antepassados, outros ressaltam as lu-tas dos humildes trabalhadores. Na Europa, ao culto à tradiçãoaristocrática, opõe-se o quotidiano de camponeses e trabalhado-res. No Brasil, não há individualismo capitalista nem tradição aris-tocrática que resistam à escravidão e à exclusão social de amplasmaiorias, ademais heterogêneas ao extremo: de negros a indíge-nas, de pobres imigrantes a judeus errantes, de sertanejos a serin-gueiros.

As conseqüências epistemológicas dessas particularidadesbrasileiras não podem ser subestimadas. A ciência periférica ca-racteriza-se pela importação de discursos dos centros hegemônicose, neste caso, como encontrar o individualismo burguês ou a tra-dição aristocrática, os camponeses ou os operários, tais como apa-recem nos estudos da Inglaterra e da Nova Inglaterra? Os discur-

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so dominante de elogio da tradição ou do individualismo burguêsadapta-se mal aos trópicos, artificial quando aplicado a sociedadetão pouco burguesa ou aristocrática sensu stricto. O contra-dis-curso, por sua parte, não pode inventar, senão de forma caricata, aresistência pelo consumo capitalista, como se faz nos EstadosUnidos, nem propugnar a criação de uma consciência de classeno quotidiano das lutas fabris e camponesas, como no Velho Mun-do. Os sujeitos sociais fragmentados da Arqueologia Histórica noBrasil são mais ambivalentes e contraditórios, a começar de umaelite patriarcal predatória e truculenta, pouco instruída, infensa aqualquer liberdade: pouco aristocrática e em nada burguesa, adespeito do uso de porcelana e perfumes que, alhures seriam sinalde uma coisa ou de outra. Do outro lado, os sujeitos são heterogê-neos por definição: indígenas, negros, mulatos, libertos, pobres,caboclos, sertanejos, num elencar sem fim de lutadores que nãoeram tampouco indivíduos como seus congêneres dos centroshegemônicos americanos e europeus. Não é por acaso que a Ar-queologia Histórica engajada e pública volta-se, precisamente, pararesgatar as vozes, os vestígios e os direitos de nativos, negros e detodos os outros excluídos das narrativas dominantes. Essas ten-dências, cada vez mais importantes no contexto mundial, tornam-se, da mesma forma, mais e mais conhecidas e praticadas no Brasil,inserindo nossa Arqueologia nas práticas internacionais.

REFERÊNCIA

Funari, P.P.A., Hall, M., Jones, S. (eds). 1999 Historical Archaeology, Backfrom the edge. Londres, Routledge, 1999.

A COLEÇÃO DE ÂNFORAS DO MAE-USP:VASOS E INSCRIÇÕES1

Ânforas eram uma importante forma de comércio no mundoantigo. Eram usadas para o transporte de líquidos, normalmentevinho, azeite e salações. Eram usadas, em primeiro lugar, comorecipientes de abastecimento e comércio a longa distância. Asânforas fornecem-nos evidência direta da movimentação de ali-mentos, algo importante tanto por razões econômicas e culturais.O estudo desses vasos torna-se mais fácil, também, pela existên-cia de um grupo substancial de informação epigráfica, pois mui-tas ânforas possuíam inscrições incisas nas ânforas antes da coc-ção e/ou inscrições pintadas depois do cozimento (Peacock eWilliams 1986: 2). Ânfora, em grego “um vaso para transportecom duas alças” (Funari 1987), foi usado, pela primeira vez, naPalestina, no século XV a.C. O vaso cananeu foi exportado parafora da região, logo alcançando a Grécia. A forma bicônica dovaso cananeu foi usado nos períodos minóico e micênico, mas aGrécia não adotaria a forma típica da ânfora até o século VII a.C.Ânforas de diferentes cidades desenvolveram formas próprias, oque permitia sua fácil identificação (cf. Funari 1985a).

As alças das ânforas gregas eram, com freqüência, estam-pilhadas, referindo-se a fazendas produtoras, nomes de éforos emeses, sendo certificados de capacidade, garantia de peso dosconteúdos para cobrança de impostos e para informação ao con-sumidor (Grace 1949). A evidência dos selos indica que as ânforasde Rodes e Cnidos foram exportadas desde essas cidades até co-lônias e assentamentos no Mediterrâneo. Cidades e comércio dosgregos na sul da Itália e na Sicília levaram ao desenvolvimento,

1 Artigo publicado em inglês, MAE-USP amphora collecton: vessels and incriptions, Revistado Museu de Arqueologia e Etnologia, 11, 2001, 275-282. Traduzido do original em inglêspor Pedro Paulo A. Funari.

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em meados do IV século a.C., das chamadas ânforas greco-itálicas(Will 1982). A pasta da maioria das ânforas costuma ser simples,com inclusões de minerais e pedras. Vasos grandes eram, em ge-ral, construídos em partes, mas os pequenos eram feitos de umasó vez. Todas as ânforas precisavam ter suas bocas fechadas, sen-do usuais os tampões vegetais ou de argila.

Os estudos anfóricos desenvolveram-se desde o século XIXmas, em grande escala, a partir da década de 1970 (Funari 1985b).As principais áreas de especialização são a classificação e tipologia,petrografia e epigrafia, de tipos específicos de ânforas. O estudodas ânforas tem sido importante para a interpretação econômica esocial do mundo antigo, na medida em que as ânforas fornecemuma pletora de dados sobre a economia, sociedade, hábitos e cul-tura antigos. As ânforas dão informações únicas sobre temas comoa movimentação de mercadorias e os hábitos culturais, relacio-nando-se à identidade cultural. Os estudos anfóricos contribuí-ram para um melhor conhecimento da economia do mundo anti-go (Garlan 1986: 7), em particular, graças aos catálogos de olari-as (Empereur e Picon 1986), de inscrições (Empereur 1982;Empereur e Guimier-Sorbets 1986; cf. Funari 1997: 85-86) e aoutros esforços para publicar e estudar corpora (Funari 1994).Desta maneira, é possível tecer análises bem fundamentadas dasociedade antiga (Wellskopp 1998: 182).

O objetivo deste artigo consiste em fornecer um catálogo deânforas e selos anfóricos no acervo do Museu de Arqueologia eEtnologia da USP. O Museu guarda duas ânforas greco-itálicas,uma ânfora grega e cinco selos anfóricos, quatro de Rodes e umde Cnidos.

SELOS DE RODE SE CNIDOS

O vinho era uma importante mercadoria durante o períodohelenístico (Grace 1961: 14) e os vinhos de Rodes e Cnidos eramexportados em quantidade, por serem baratos. Esses vinhos eramimportados em muitos mercados, sendo de Cnidos 65% das maisde 40 mil selos de ânforas encontrados em Atenase ródias mais de

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85% dos selos anfóricos de Alexandria. Em Delos, selos de Cnidoseram muito comuns (mais de 60%) e os de Rodes não eram pou-cos (mais de 20%). Alcançavam também os mercados da penín-sula itálica em quantidade. A maioria das ânforas não eraestampilhada e é difícil saber a proporção de estampilhadas paranão estampilhadas. Em geral, selos ródios e de Cnidos apresen-tam dois nomes, um que se refere ao proprietário e outro a ummagistrado epônimo, datando a ânfora e o vinho. As ródias costu-mavam possuir dois selos, no topo de cada alça, com os seguintesdados: uma data dada pelo nome do magistrado epônimo(epi+nome no genitivo), nome do mês ródio (depois de 275 a.C.),outro nome no genitivo, que se refere, com probabilidade, ao pro-dutor autorizado. O selo é circular, com o símbolo da cidade, umarosa, com outras imagens também possíveis (Grace 1961: 12;Grace e Savvatiano-Petropoulakou 1970: 279, 293; Van der Werff1977: 34; Debidour 1979: 271). Selos de Cnidos levam o nome deum magistrado e de um produtor autorizado (Grace 1961: 12).Estampilhas de ambas as cidades mudam após 146 a.C., quandoos romanos introduziram os nomes de dois funcionárioscontroladores (Grace 1961: 20).

CATÁLOGO DE SELOS

1. e....adaliouTamanho do selo: 5,0 x 1.8 cm.Forma: retangularPasta: marron.Data: depois de 275 a.C.Número de tombo: MAE-USP 64/11.18, doado pelo governoitaliano.Área de produção: Rodes.Local de achado: Itália.Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro dolábio é de cerca 12,8 cm e o ângulo do selo em relação ao pesco-ço é de 21 graus.

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A referência ao mês ródio dalios, no genitivo, indica que oselo foi produzido depois de 275 a.C., quando os meses foramintroduzidos nas ânforas ródias.

2. [a]ris[to]klaeusSegunda marca: P (1 x 1 cm)Tamanho: 3,2 cm.Forma: circular.Pasta: cinza.Data: início do segundo século a.C.Número de tombo: MAE-USP 64/11.32, doado pelo governoitaliano.Área de produção: Rodes.Local de achado: Itália.Descrição do fragmento: alça de ânfora ródia. O diâmetro dolábio era de cerca 11,6 cm. E o ângulo em relação ao colo de 21graus.

O selo refere-se ao produtor ródio Arístocles, ativo nos últi-mos cinqüenta anos anos do domínio romano, o que permitedatar o selo na primeira metade do século II a.C.

3. [s]o[kr]ateusTamanho: 3,4 cm.Forma: circular.Pasta: cinza, com superfície esbranquiçada, avermelhado nocentro.Data: entre 275-180 a.C.Número de tombo: MAE-USP 75/1.41, doado por U.T.B.Meneses.Área de produção: Rodes.Local de achado: Delos.Descrição do fragmento: alça ródia. O diâmetro do lábio era decerca 13,4 cm. e o ângulo da alça em relação ao colo é de 15graus.

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 91

Conhecemos dois produtores ródios chamados Sócrates, umativo entre 275 e 180 e outro entre 146 e fins do século primei-ro. Considerando o ângulo da alça, propõe-se uma data maisantiga (Grace 1952: 530; Grace e Savvatianou-Patropoulakou1970: 302).

4. EpitpatrophanPanamou

Tamanho: 3,9 x 1,9 cm.

Forma: retangular.

Pasta: cinza, esbranquiçado na superfície, avermelhado ao centro.

Data: entre 220 e 180 a.C.

Número de tombo: MAE-USP 75/1.42, doado por U.T.B.Meneses.

Área de produção: Rodes.

Local de achado: Delos.

Descrição do fragmento: alça ródia, ângulo da alça em relaçãocolo de 11 graus.

Um produtor ródio de nome Pratophanes é bem conhecidoentre 220-180 a.C. (Grace 1952: 529; Grace e Savvatianou-Petropoulakou 1970: 294).

5. AgathinouKnidin

Ânfora

Tamanho: 5,6 x 1,6 cm.

Forma: retangular, com um desenho de ânfora de Cnidos.

Pasta: avermelhada.

Data: meados do século II a.C.

Número de tombo: MAE-USP 75/1.43, doado por U.T.B.Meneses.

Área de produção: Cnidos.

Local de achado: Delos.

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Descrição do fragmento: alça de ânfora de Cnidos. O ângulo daalça em relação ao colo é de 10 graus.

O produtor Agathinos estava ativo antes e depois da inter-venção romana de 146 a.C. (Grace 1952: 530; Grace eSavvatianou-Patropoulakou 1970: 294).

CATÁLOGO DE ÂNFORAS VINÁRIAS

1. Ânfora greco-itálica

Tamanho: altura, 40 cm; diâmetro, 14 cm.; colo, 7 cm., diâme-tro de 8,5 cm.; largura do corpo, 21 cm.

Forma do vaso: piriforme.

Pasta: cinza.

Data: 350-250 a.C.

Número de tombo: MAE-USP 64/9.5, doado pelo governo itali-ano.

Área de produção: Itália.

Local de achado: Castiglioncello (Livorno, Itália).

Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico e ombro mar-cado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e no alto da pança,corpo piriforme, com ponta curta e maciça.

2. Ânfora greco-itálica

Tamanho: altura, 48 cm.; diâmetro, 12 cm.; alça, 12 cm., diâ-metro, 8,4 cm., largura do corpo, 19,8 cm.

Forma do vaso: piriforme.

Pasta: marron.

Data: 350-250 a.C.

Número de tombo: MAE-USP 64/9.6, doado pelo governo itali-ano.

Área de produção: Itália.

Local de achado: Toscanella, tumba dos Velinii (Itália).

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 93

Descrição do vaso: lábio triangular, colo cilíndrico, ombro mar-cado, alças ovóides ligadas abaixo do lábio e ao alto da pança,corpo piriforme com ponta curta e maciça.

3. Ânfora grega (fragmento)

Tamanho: altura, 69,5 cm; diâmetro do colo, 12 cm; altura daponta, 10,5 cm.

Forma do vaso: corpo cilíndrico.

Pasta: avermelhada.

Data: séculos V-IV a.C.

Número de tombo: MAE-USP 64/11.3, doado pelo governo ita-liano.

Área de produção: Grécia.

Local de achado: Palermo, necrópole púnica (Itália).

Descrição do vaso: corpo cilíndrico com ombro arredondado ealças compridas, ponta curta.

As ânforas greco-itálicas também são conhecidas comoRepublicaine 1, Lamboglia 4 e Peacock e Williams classe 2(Peacock e Williams 1986: 84-85; crítica do termo ‘greco-itálica’em Manacorda 1986). As ânforas greco-itálicas são, a um só tem-po, greco-helenísticas e romanas e são o resultado do encontrodos mundos romano e helenístico e da expansão dos mercados deprodutos de consumo de massa. Os objetos comercializados tor-naram-se estandardizados e as ânforas vinárias foram produzidasem várias partes do Mediterrâneo no período entre o fim do quar-to século a.C. e meados do segundo século a.C. (Will 1982). Asduas ânforas greco-itálicas do MAE-USP representam dois pa-drões diversos, ambos incluídos entre os recipientes menores des-se tipo de ânfora.

CONCLUSÕES

As poucas ânforas e estapilhas armazenadas no MAE-USPconstituem uma pequena amostra do artefato arqueológico mais

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encontrado no Mediterrâneo. Os selos provêm de cidades gregase são uma clara indicação da importância, durante o períodohelenístico tardio, do controle municipal da produção e comérciode vinho. Revelam a importância das instituições políades até aintervenção romana em 146 a.C. A ânfora de estilo grego em con-texto púnico é uma indicação de que, a despeito das rivalidades, ocomércio de vinho era, desde tempos antigos, fator de contatosculturais. As ânforas pan-mediterrâneas de tipo greco-itálico re-presentam uma nova fase no desenvolvimento do comércio e damanufatura, produzidas em muitas áreas no Mediterrâneo, comvolumes estandardizados. Testemunham as mudanças econômi-cas, sociais e culturais no Mediterrâneo e, com sua materialidade,essas ânforas são evidências únicas da vida social no mundo antigo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos seguintes colegas: Jean-Yves Empereur, HaiganuchSarian, J.A. Van der Werff, Elizabeth Lyding-Will, David Williams e CéliaMarai Cristina de Martini. As idéias são minhas e sou o único responsável.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROFISSIONAL DE MUSEU ESUA FORMAÇÃO

A multiplicidade de situações dos museus pode parecer, àprimeira vista, um empecilho a qualquer generalização sobre aformação do profissional de museu. De fato, há museus científi-cos, como os há de pequenas localidades, há museus de arte, comoos há de rua. Nesta variedade de situações, multiplicam-se os pro-fissionais de museus, de curadores a restauradores, de educadoresa biólogos. E pur, há algumas questões genéricas que se referemao cerne da atividade em museus, aquilo que diz respeito à essên-cia da ação patrimonial. No umbral do terceiro milênio, os desafi-os dos profissionais de museus podem ser resumidos a cinco gran-des temas, interrelacionados:

- O PLURALISMO;

- A RELAÇÃO COM A COMUNIDADE NA CRIAÇÃO DECONHECIMENTO DE INTERESSE SOCIAL;

- A RELAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE O PROFISSIONAL DEMUSEU E AS CIÊNCIAS;

- A LUTA PELO SABER CONTRA AS HIERARQUIAS BU-ROCRÁTICAS.

Os museus representam o mundo como parte da ordem soci-al (Fyfe 1998: 326), sua taxonomia refletindo, de forma mediada,a táksis da própria sociedade. Não é casual que uma palavra-cha-ve na organização dos museus seja, precisamente, taxonomia,“ordenação segundo uma regra”1, pois tudo no museu é classifi-cado e ordenado. Os setores, da reserva técnica à exposição, cadaum subdividido e classificado. Esta concepção acompanha os

1 Cf. Platão, Leis, 925b, katà tèn táksin tõu nómou, “segundo a ordenação de uma regra”.Taxonomia deriva de táksis, “arranjo”, do verbo tássein, “arranjar”, originalmente, os solda-dos para uma batalha; cf. Heródoto, 8, 86: katà táksin, “ordem de batalha”.

PEDRO PAULO A. FUNARI98

museus ab origine, desde sua própria fundação, refletindo a pró-pria hierarquia social na qual surgiu. No entanto, no umbral doterceiro milênio, mais do que uma única ordenação e taxonomia,o mundo pós-moderno caracteriza-se pelo mais radical pluralismo2,programa explícito da proposta do Aktives Museum. O tema cen-tral do trabalho didático do Museu Ativo consiste em transformaros consumidores de conhecimento em produtores. As visitas gui-adas deveriam, sempre que possível, serem dissolvidas em parti-cipação ativa, um meio para que a confrontação com o mundomaterial gere o sentimento inesperado, a indignação e a curiosi-dade (e.g. Fahmel-Beyer 1993). Em uma sociedade aberta, há umapluralidade de opiniões e deveria, pois, haver diferentes relatosdo mundo material exposto no museu (Baker 1991: 58-59). Estepluralismo implica em subverter o discurso da autoridade que pre-valece na exposição de uma única versão, a verdade dos que con-trolam o poder (Potter n.d.:3-7).

O pluralismo não se restringe à exposição e à ploliferação denarrativas3, mas estende-se às proprias divisões do saber no inte-rior do museu. A segmentação dos setores reproduz uma separa-ção artificial entre os profissionais do museu, como se fosse pos-sível dissociar exposição e reserva, programa educativo e pesqui-sa de campo, reflexão pedagógica e científica, reproduzindodicotomias estranhas à prática crítica. Não se trata de adorar oacervo, mas pensar sobre ele (Potter n.d.: 39)4. Não se trata deisolar especialistas, cujo conhecimento hermético deveria ser pre-servado, mas é no confronto de perspectivas que se produz conhe-cimento (Funari 1997, com bibliografia anterior). Assim, no inte-rior da instituição museu, nada justifica a falta de diálogo entre osdiversos profissionais, senão a acomodação. A produção de co-

2 Cf. Lorenz (1998: 619): Postmodernismus ist deshalb immer eine radikale Version desPluralismus (ênfase no original).

3 Keine Ausstellung ohne Erzählungen, como se propõe na concepção do Museu Ativo (“nãohá exposição sem narrativas).

4 Cf. Potter (n.d.: 39): If we can encourage ourselves (sc. museum professionals) and ourvisitors to see the objects in our museums as ‘fragile’ – as culturally constructed and aculturally contested rather than as self-evidently important and in possession of inherentmeanings – then perhaps we all will begin to treat those objects better, thinking about themrather than worshiping them.

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 99

nhecimento5 implica na disposição a aprender com os outros, se-jam os profissionais colegas de instituição, seja o público em ge-ral. Ainda “é tempo de fazer museu com a comunidade e não paraa comunidade”, como dizia, há quinze anos Waldísia Rússio (1984:60). A busca de um museu gerido com a comunidade é uma tarefaque implica romper as barreiras disciplinares e as formalidadesdas compartimentações acadêmicas (Oliveira 1999), bem comosuperar o modelo do museu desligado da sociedade, mera “Torrede Observação”, como propõe uma abordagem elitista (Meneses1993: 218). Para produzir conhecimento impõe-se interagir como educando (Giroux & McLaren 1986: 234) e o público está mui-to mais aberto a essa interação do que, normalmente, se supõe(McKee & Thomas 1998: 7).

A comunidade não é, por sua parte, uma unidade, um con-junto homogêneo. Este modelo normativo de cultura já tem sidobastante criticado e não se pode idealizar a comunidade (Jones1997, com literatura a respeito), composta de heterogêneos inte-resses. No entanto, pode afirmar-se que, de maneira sistemática,são excluídos dos processos de decisão, na sociedade e, por con-seqüência, nos museus, todos os que não estão no poder, defavelados a judeus, de negros a nordestinos (Jones 1993: 203-15).Esses diversos públicos compõem uma comunidade também elaplural e pouco afeita a generalizações que possam dar conta desua heterogeneidade. Os profissionais de museu não podem igno-rar essa diversidade, nem deixar de reconhecer no museu um ins-trumento a serviço dos que estão fora do poder (Vargas & Sanoja1990: 53), sob a pena de continuarem a ser servos desse mesmopoder (Funari 1996: 18). Para que o profissional de museu consi-ga atingir esse público e com ele interagir, “é necessário tomar oseu universo cultural como ponto de partida, permitindo que elese reconheça como possuidor de uma identidade cultural especí-fica e importante”, nas palavras de Paulo Freire (em entrevista aMcLaren 1988: 224). Nessa diversidade da comunidade, desta-

5 Cf. Haiganuch Sarian (1999:34): “Produção e reprodução do saber se expressariam nosMuseus Universitários, por meio de responsabilidades inerentes à natureza de um Museu,de tal modo que os Professores destas instituições fossem igualmente Curadores – Curator-Professors -, para lembrar a designação americana”.

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que-se o público infantil, tanto por se tratar dos futuros cidadãos,como pela necessidade de tomar-se em conta o caráter lúdico aser adotado pelo museu (Oliveira 1999).

O profissional de museu sempre tem uma pergunta em men-te: preservar para quê? Há alguns anos, quando de uma homena-gem póstuma ao obstinado defensor do patrimônio e humanistaPaulo Duarte, Maria Cristina Bruno (1991) evocava uma belaimagem sobre a preservação:

“Patrimônio, para Paulo Duarte, era visto com muita abrangência.Sinônimo de qualidade de vida, pesquisa e ensino, erudito e po-pular, antigo e moderno e, acima de tudo, preservação para a in-formação”.

Informação, criação de consciência, ação no mundo, trans-formação, eis as metas da preservação (Funari 1992/3:18-19).Seria, até mesmo, o caso de propor que se deve preservar paratransformar a sociedade, pois o conhecimento não é apanágio declasse ou grupo e qualquer museu pode levar à reflexão crítica.Abrir a cabeça, talvez a meta maior de um museu (Hudson 1994:55). A começar por uma exposição que se contraponha à aliena-ção da moda e à descontextualização derivada da mercantilizaçãogeneralizada dos objetos em nossa sociedade pós-moderna(Durrans 1992: 14), que contribua para a autonomia do público(aquilo que os ingleses tão bem definem como empowerment, cf.Giroux & McLaren 1986: 238). O passado, conservado no Museuem forma de patrimônio, serve ao presente (Luc 1986: 118). Masnão é apenas na exposição, que se busca transformar, nem só nasuperação das barreiras entre os setores do museu: há que se in-surgir contra a separação entre o museu e as ciências, divisãooitocentista artificial e pouco afeita à atual busca de integraçãodas disciplinas6.

As Wissenschaften surgidas na criação da moderna Univer-sidade, em fins do oitocentos, acostumaram-se a relacionar-se como museu e seus profissionais de forma instrumental e analógica à

6 Ainda que alguns dos grandes museus brasileiros, voltados para as Ciências Naturais, noséculo XIX, tenham atuado na pesquisa científica (cf. Lopes 1997).

ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO 101

taxonomia social. Assim como há os que pensam e os que traba-lham, os que mandam e os que obedecem, assim, também, o cien-tista se relaciona com o museu. Como se o museu fosse um locala serviço dos verdadeiros cientistas, como se os profissionais demuseu fossem servos, à maneira dos gregos, definidos como ins-trumentos a serviço dos cientistas. No entanto, os cientistas quetrabalham em museus são, também, profissionais de museus! Adicotomia, de toda forma, tende a permanecer, sob o manto diáfanoda clivagem entre os pesquisadores científicos e os outros profis-sionais. Nem todos os museus possuem cientistas em seus qua-dros, ainda que todos tenham, por definição, profissionais demuseus. Em qualquer dos casos, a clivagem existe, seja interna,seja externa, ao corpo funcional do museu. Esta dicotomia separadois aspectos indissociáveis do conhecimento: teoria e prática,mundo das idéias e prática quotidiana. O conhecimento científicoé essencial, em especial naquilo que tem de propriamente cientí-fico, que é o desafio às idéias recebidas e ao senso-comum, paravivificar o museu. Por outro lado, não se pode esquecer que omuseu pode fornecer um manancial de desafios práticos que ape-nas podem servir para o avanço do conhecimento acadêmico (cf.Haas 1996: S1-S11; Jones 1993: 203).

Neste contexto mais amplo, como se pode situar a formaçãodo profissional de museu e qual museu será por ele criado? Emprimeiro lugar, há que se superar concepções estreitas e rígidasdo que seja e, principalmente, do que deva ser o museu. A forma-ção do profissional de museu não pode prescindir de um amplo evariado contato com as ciências, em geral, e do homem, em parti-cular. Um conhecimento crítico da História dos museus pode sero ponto de partida para a reflexão sobre os fundamentos pedagó-gicos que devem estar subjacentes a uma educação patrimonial(Tamanini 1998). A formação deste profissional não se pode fur-tar ao internacionalismo e ao cosmopolitismo, pois há uma imen-sa experiência estrangeira , que vai dos eco-museus aos museusde rua, cujo conhecimento é imprescindível.

A formação do profissional inclui um conhecimento, de pri-meira mão, das diversas ciências envolvidas com o patrimônio e

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os museus, tão numerosas que, provavelmente, apenas uma amos-tra poderá ser estudada pelo futuro profissional de museu7. Estasdisciplinas seriam melhor agrupadas por grandes eixos, deixan-do, ainda, que o estudante pudesse escolher áreas de maior inte-resse e vocação. Tendo em vista a disparidade de situações, im-portante atenção deve ser dada à variedade de museus e ao seugerenciamento igualmente variado. O estágio torna-se, neste senti-do, uma experiência prática que permite ao estudante tomar contatocom uma gama de instituições, de diferentes tipos, do grande mu-seu universitário ao simples museu local. O relacionamento coma comunidade e as formas de interação com os grupos sociaistambém devem ser objeto de atenção. A patrimonialização dosbens individuais e coletivos das comunidades insere-se na dinâ-mica de integração do museu na coletividade e, para tanto, sãonecessários estudos específicos, incluindo aspectos técnicos (comoo registro de relatos orais e a preservação de fotografias) e teóri-cos (como tudo que se refere à criação de memórias populares).

A legislação de proteção do patrimônio e tudo que diz res-peito aos aspectos jurídicos da preservação incluem-se no neces-sário cabedal do profissional de museu. Este aspecto da sua for-mação conduz ao grande âmbito das implicações sociais do mu-seu. Em qual museu atuará o profissional? Este museu será o re-sultado da ação do próprio profissional. No presente, os museus,como a própria academia, encontra-se eivada de relações de po-der, de estruturas burocráticas cuja finalidade, muitas vezes, pou-co tem a ver com o conhecimento e a sociedade8. Esta é umasituação que resulta de séculos de uma estrutura social hierárqui-ca, patriarcal, autoritária e voltada para a conservação do statusquo (cf. Funari 1996, com literatura). Naturalmente, os museus,como órgãos burocráticos do Estado, em sua maioria, reprodu-zem estas relações iníquas e inibem tanto a reflexão como a ação

7 Museologia, História, História da Arte, Arqueologia, Antropologia, Etnologia, Biologia, Ge-ografia, Etnologia, Estudos da Cultura Material, Folclore, Geologia, Botânica, História Oral,Iconografia, Semiótica, entre outras.

8 Cf. M.C. Bruno, C. Rizzi e M.X. Cury (1999: 46): “apesar do grande esforço, muitos museusestão longe da consciência do equilíbrio entre o cuidado com os acervos e a atenção com asexpectativas das sociedades”.

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crítica. Os profissionais de museus, como também os cientistas,aliás, são incentivados ao conformismo, à aceitação das verdadescorrentes, tão pouco verdades, mas tão correntes. As estruturasburocráticas dos museus, ainda mais do que aquelas acadêmicasstricto sensu, são infensas ao mérito e à dedicação ao conheci-mento e à sua socialização. Isto se explica pela importância polí-tica, no sentido pequeno da palavra, associada aos cargos, a come-çar da direção das grandes instituições de Estado. Há até, como sesabe, museus criados para indivíduos dirigirem! Além deste cará-ter político da direção, e como decorrência, seguem-se cargos,chefias e eminências pardas que vicejam nos museus, naquilo quese chama de atividades de corredor e de bastidores. Não é de es-tranhar que, ainda mais que na academia, nos museus a convivên-cia pessoal seja tão pouco profissional.

Neste contexto, o profissional de museu deve, necessaria-mente, lutar pela transformação do próprio museu, à luz do que sefaz e discute no mundo, a este respeito, mas, também, na interaçãocom a comunidade que deve dar vida ao museu. Não se trata detarefa fácil, nem a luta se mostra ligeira. No entanto, cabe ao pró-prio profissional de museu, já em atividade e, a fortiori, em for-mação, buscar a profissionalização da atuação no museu. Istoimplica atuar para que o mérito suplante o compadrio, a busca doconhecimento supere a inércia burocrática que pode, senão mataro museu, inviabilizar sua efetiva função científica e crítica. Paraisto, impõe-se a instituição de um plano de carreira, baseado natitulação, com hierarquias fracas e coletivos acadêmicos fortes,sempre a partir de critérios científicos. Para o profissional de museuem formação, este é um aspecto essencial: a deontologia associa-da à prática em museus. A dura realidade dos museus pode indu-zir ao desânimo e ao conformismo, se não houver, na formaçãodo profissional, um projeto crítico e acadêmico que permita a trans-formação da própria instituição. Neste sentido, a situação do futu-ro profissional de museu assemelha-se muito àquela do futuroprofessor, pois, em ambos os casos, apenas uma luta pela trans-formação da estrutura burocrática e de seus objetivos permiteantever um futuro criativo.

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A formação do profissional de museu, portanto, não se res-tringe ao saber técnico, nem, menos ainda, ao domínio das arti-manhas do micro-poder. O desafio que se impõe é formar profis-sionais que sejam autônomos, críticos, infensos à inercia, propen-sos à luta pela transformação. Aparente paradoxo, que se busquea transformação, em uma profissão voltada para a preservação.No entanto, para que se possa, efetivamente, preservar, é necessá-rio transformar uma realidade que contribui para destruir opatrimônio. O primeiro e decisivo passo é formar profissionaisautônomos, independentes e transformadores do mundo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Professora Maria Cristina Bruno, cujo convite para parti-cipar deste encontro sobre “O Profissional de Museu no umbral do TerceiroMilênio” incentivou-me a escrever este texto. Devo mencionar ainda os se-guintes colegas: Dione Bandeira, Brian Durrans, Bernd Fahmel-Beyer, SiânJones, Parker B. Potter, Jr., Nanci Vieira Oliveira, Brian W. Thomas,Elizabete Tamanini. As idéias apresentadas são, naturalmente, de responsa-bilidade exclusiva do autor.

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DESAPARECIMENTO E EMERGÊNCIA DOS GRUPOSSUBORDINADOS NA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

A Arqueologia tem uma longa tradição no Brasil, tendo ini-ciado como uma prática acadêmica logo após a independência,em 1822, sob a tutela financeira da Corte Imperial. A transferên-cia da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, comouma estratégia diante das conquistas napoleônicas, acabou resul-tando na implantação, em terras tropicais, de uma elite típica doAntigo Regime europeu, que impôs um discurso imperial a res-peito das origens nobres do poder colonial. Indivíduos subordina-dos, como a maioria da população escrava, estiveram fora destediscurso sobre a origem (Ursprung) e as raízes civilizadas dos“bravos” conquistadores portugueses. Depois da Independência,esta mesma elite dominante portuguesa continuou mantendo sobseu controle os arcanos do poder imperial e aditou ao seu discur-so uma imagem idealizada dos nativos sul-americanos, começan-do desta forma, em um certo sentido, a Arqueologia Pré-históricabrasileira. Os africanos continuaram ausentes no discurso arque-ológico, enquanto que os indígenas desempenharam um papelsubordinado. Apenas a partir da década de 1890, e com o fim daescravidão e da monarquia, é que o discurso imperial passou pau-latinamente a veicular discursos menos homogeneizantes a res-peito do passado. Mesmo assim, levaram ainda algumas décadaspara que a Arqueologia se tornasse uma disciplina acadêmica.Estudos sobre os “nativos” ou sobre a pré-história apenas ganha-ram proeminência depois da Segunda Guerra Mundial, quandouma Arqueologia de traço humanista buscou enfatizar a impor-tância de se ver os indígenas como seres humanos, possuidores deculturas dignas de serem estudadas e preservadas. Tal abordagemfoi silenciada pelo longo governo ditatorial (1964-1985), e maisuma vez os indivíduos subordinados foram suprimidos do discur-so arqueológico. Nas últimas duas décadas, entretanto, tem havi-

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do um incremento nas atividades arqueológicas e, pela primeiravez, os grupos subordinados, tanto os de descendência africanaou miscigenada como os de extração social mais pobre, têm apa-recido nos discursos arqueológicos. É com relação a este contex-to que se delineia o objetivo principal do presente artigo: investi-gar como tem se apresentado a questão da subordinação na inter-pretação arqueológica brasileira – tanto no discurso da Arqueolo-gia pré-histórica como no da histórica – avaliando, então, de quemaneira os desenvolvimentos mais recentes, e menos excludentes,desta disciplina, no Brasil, tem contribuído para mudar este pano-rama.

UM DISCURSO IMPERIAL NAS ORIGENS DA CIVILIZAÇÃO

O Brasil foi governado por Portugal, nos moldes de um Es-tado Absolutista, desde o século dezesseis até a independência(Handelmann 1987:826). A base do sistema social era, então,escravista e senhorial, com uma enorme influência dominadoradas antigas linhagens patriarcais dos proprietários de terra (Velho1986). Tal estado de coisas foi mais marcado no início da coloni-zação, quando se formou, então, um sistema social altamentehierarquizado (Da Matta 1991: 399), dominado, principalmente,pelos grupos senhoriais. Os grandes proprietários de terra gover-navam como verdadeiros senhores despóticos, cada qual comoum pater famílias em seus “domínios feudais” particulares e agin-do, conjuntamente, como uma elite autocrática (Arraes 1972: 23-26). A independência, em 1822, entretanto, não provocou mudan-ças significativas na estrutura social em geral, e a Família RealPortuguesa continuou a governar o Brasil até 1889. Embora fosseum recém fundado Estado nacional independente, o Brasil man-teve a mesma elite dirigente autoritária de seu passado colonial, oque se refletiu no próprio Estado: definido não como uma Repú-blica, mas como um Império. Desta forma, enquanto outros Esta-dos nacionais modernos eram construídos como novas nações, aselites brasileiras buscavam inspiração em organizações políticaspré-modernas, como o velho Império português e os ImpériosBritânico e dos Habsbugo. Distintamente dos outros novos países

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independentes, como nas repúblicas fundadas sobre o princípioda igualdade de direitos entre todos os cidadãos (tendo em conta,entretanto, que tal princípio excluísse os não-cidadãos, como asmulheres e os escravos), no Brasil, foram preservadas as distin-ções, obedecendo a uma hierarquia fundada na posição social ouna titulação nobiliárquica dos indivíduos.

O discurso imperial, entretanto, é inaugurado mesmo antesda independência, quando a Corte portuguesa (tendo vindo para oRio de Janeiro para fugir do perigo representado pelo avanço deNapoleão) estabeleceu um Museu Real na então capital do Impé-rio, em 1818. O Rio se tornara, dessa forma, por abrigar a elitedirigente portuguesa, a capital do Império Luso, que se estendiadesde sua porção americana até a África e a Ásia. O Museu Real,por sua parte, buscava, de uma forma similar ao Museu Britânico,ser um museu do poder colonial, reunindo material dos territóriosportugueses na Europa, na América, na África e na Ásia. Tal pre-ocupação foi explicitada em um documento, publicado logo apóso estabelecimento do museu: “Instruções para os viajantes e osfuncionários civis nas colônias a respeito dos procedimentos parao recolhimento, conservação e remessa de objetos da HistóriaNatural”, que instruía os governadores de cada província brasilei-ra a organizar coleções de todos os produtos de seus territórios eenviá-los para o Rio de Janeiro. Estas instruções eram igualmenteválidas para todos os governadores das possessões portuguesas,inclusive os do próprio território português na Europa. O Museutambém estabeleceu contatos oficiais com seus parceiros nas prin-cipais capitais coloniais, principalmente Paris e Londres (Lopes1997: 25-71).

A independência não alterou o caráter imperial tanto do dis-curso oficial quanto do Museu em si, apesar de seu nome ter sidomudado para Museu Nacional. Em 1838, foi publicado o primei-ro catálogo completo do museu, a Lista de objetos reunidos noMuseu Nacional desta Corte. É digna de nota a maneira como omaterial foi dividido em seções: zoológica, botânica, mineral, deBelas Artes, e de Objetos relacionados às artes, hábitos e costu-mes de diversos povos. Na seção de Belas Artes estavam incluí-

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dos moedas, medalhões, esculturas, pinturas, mas também instru-mentos de Física e máquinas. A categoria “Objetos relacionadoscom diversos povos” incluía antiguidades egípcias e européias,assim como aquelas relacionadas com os “povos ignorantes”: na-tivos da África, Ásia, Nova Zelândia, Ilhas Sandwich e Brasil.Como Lopes (1997: 70) tem afirmado, embora os estudiosos fi-quem atormentados com a presença de múmias egípcias no Mu-seu, a organização global do material foi inspirada pelos museusimperiais europeus, e conseqüentemente os materiais egípcios eeuropeus eram incluídos como uma lembrança das origens no-bres das elites. A coleção de material “selvagem”, de diversas ori-gens, por outro lado, era uma maneira de reafirmar que não eramera coincidência o fato dos africanos serem escravizados e osnativos massacrados no Brasil, pois este povos eram considera-dos como animais a serem domados. As coleções de História Na-tural eram também um meio de enfatizar o poder da elitegovernante, por meio da acumulação e assimilação do conheci-mento. O Museu Nacional como um todo era, desta forma, umimenso discurso material a respeito da exclusão de grupos subor-dinados – africanos, nativos, pessoas comuns – e uma exaltaçãodo poder discricionário da nobreza e das velhas classes senhoriaisem geral.

O estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Bra-sileiro, em 1838, deu à Arqueologia uma nova presença oficialinstitucionalizada. As reuniões do Instituto tinham lugar no Mu-seu Nacional, e as duas instituições compartilhavam das mesmaspreocupações. O ano seguinte à fundação do Instituto assistiu apublicação do primeiro volume de seu periódico, a Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Também em 1839houve uma “investigação arqueológica” na Pedra da Gávea, noRio de Janeiro, em busca de uma suposta inscrição “fenícia”. Asinvestigações foram cuidadosamente registradas, e a expediçãoconcluiu que tais inscrições eram tão importantes quanto oshieróglifos egípcios ou as inscrições cuneiformes mesopotâmicas(Langer 2000: 68). Como Ferreira observou (1999: 18), o Insti-tuto buscou também produzir seu próprio Champolion ouSchliemann, ao enviar um padre, o cônego Benigno José de

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Carvalho, com a missão de descobrir cidades perdidas e inscri-ções. Ao mesmo tempo, os nativos brasileiros foram gradualmen-te idealizados de acordo com a teoria do bon sauvage – comofossem heróis nacionais distantes, que, na visão do Instituto, esta-vam já extintos. Desta forma, a Etnografia e a Arqueologia foramintroduzidas como disciplinas mutuamente implicadas, como partedo mesmo esforço na busca desta espécie idealizada de nativo. Osestudiosos brasileiros estavam em estreito contato com as teoriasarqueológicas então desenvolvidas na Europa, principalmente naFrança e na Dinamarca, e, por várias décadas, a explicação maisrecorrente para a ocupação da América era que os nativos descen-diam de povos bíblicos que, como o passar dos anos, degenera-ram no Novo Mundo.

A Arqueologia praticada no Instituto tem sido apropriada-mente rotulada como “nobiliária”, dadas suas umbilicais ligaçõescom a elite brasileira, que usou o passado indígena, pré-histórico,em seu favor, reclamando para si o legado cujos verdadeiros her-deiros eram, de direito, os povos de descendência nativa (Ferreira1999: 28). De maneira mais específica, uma mistura entre a teoriados cataclismas de Cuvier e o Criacionismo buscava então expli-car o desaparecimento das antigas gerações de possíveis coloni-zadores mediterrâneos que, pensavam os estudiosos do Instituto,teriam originalmente trazido a civilização para os trópicos. Pro-váveis cataclismas é que teriam posto um fim a estas migraçõestranscontinentais, conduzindo a uma degeneração das sociedadesnativas, como podia ser provado por meio das evidências mate-riais dos restos humanos e fósseis colecionados pelo Museu.

Os estudiosos do Império estavam, também, em estreito con-tato como os mais importantes teóricos sociais do período, taiscomo Gobineau e Renan, e estavam afinados com o tom cada vezmais racista das idéias do período. Cuvier, por sua parte, inspirouos intelectuais brasileiros com sua tese da suposta inferioridadedos povos africanos:

“a raça negra, é marcada pela cor escura, cabelo duro ou en-rolado, crânio comprimido e nariz achatado. A projeção das par-tes inferiores da face dos indivíduos desta raça, assim como seus

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lábios grossos, aproximam-nos às tribos dos macacos: que temsempre permanecido no mais completo estado de barbarismo”(Cuvier 1831:53).

Os asiáticos não eram avaliados de maneira muito mais po-sitiva. Os semitas, por exemplo, eram descritos por Renan comoincapazes de desenvolverem habilidades intelectuais: “o pensa-mento abstrato é desconhecido entre eles, e o metafísico, impossí-vel. Em tudo neles há uma completa falta de complexidade, suti-leza ou sensibilidade” (1885: 13). Já para John Stuart Mill o Ori-ente era o reino do despotismo e da estagnação: “lá o costume é apalavra final, em todos os assuntos; a justiça e o direito estão àmercê dele; ninguém, a não ser um tirano intoxicado com o po-der, cogita resistir ao argumento do costume” (Mill [1895] 1985:136).

A maneira como a elite compreendia sua própria superiori-dade racial resultou em uma infinidade de diferentes classifica-ções, como ocorreu nos Estados Unidos, onde os protestantesanglo-saxões sustentaram sua superioridade com relação a todosos outros grupos, principalmente no que diz respeito aos africa-nos, mas também no que concerne aos mexicanos e aos católicosirlandeses (Patterson 1997: 112). Em outras palavras, a Etnografiacontribuiu para retratar o colonizado como um selvagem, cujacultura deveria ser esquecida e ao qual deveria ser ministrada aeducação européia. Foi de acordo com estes termos que tanto aArqueologia do período quanto suas práticas correlatas fornece-ram uma maneira apropriada de mapear o passado das terras co-lonizadas (Bahraini 1998: 168). Mesmo os críticos do capitalis-mo, como Karl Marx (e.g. 1978: 434), aceitaram esta pintura ge-ral da civilização ocidental, tomando-a em contraste com o su-posto atraso do resto do mundo (cf. Funari 1999a).

Neste contexto geral, a Arqueologia brasileira não foi muitomais excludente do que a prática acadêmica geralmente levada atermo na Europa. A estrutura social brasileira, por outro lado,marcada pelo modelo do Antigo Regime europeu, contribuiu so-bremaneira para caracterizar de uma maneira singular este dis-curso de exclusão, mas promovendo, em contrapartida, a detração

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da grande maioria dos habitantes do país. Em outros lugares, osbretões, franceses e alemães eram considerados superiores aosbárbaros estrangeiros, fossem eles semitas, chineses, indianos ouafricanos. No Brasil, entretanto, não havia cidadãos brasileiros,apenas nobres, antigas linhagens familiares, e uma imensa maio-ria da população dependente e subordinada, formada por váriospovos indígenas e pelo numeroso grupo dos descendentes de afri-canos.

O ESGOTAMENTO DA ARQUEOLOGIA IMPERIAL E O INÍCIO DOSÉCULO XX

As duas últimas décadas do Império (os anos 1870 e 1880)testemunharam o ápice das instituições acadêmicas ligadas à CorteImperial, tais como o Museu Nacional e o Instituto Histórico eGeográfico. Durante este período, a Arqueologia desempenhouum papel central na formação da ideologia da Corte: fundada emuma imagem ideal e enobrecida dos nativos, que, nas palavras doDiretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, estava “na iminênciade desaparecer” (1889: 26). Durante o mesmo período, dois ou-tros museus foram estabelecidos nas províncias – o MuseuParaense (1866), em Belém do Pará, e o Museu Paranaense (1876),em Curitiba. Ambos se voltavam para a coleção de artigos da His-tória Natural, assim como artefatos arqueológicos e etnográficos.O fim do regime levou a um declínio abrupto na abordagem im-perial para com o passado, tendo então ocorrido uma mudança docenário de poder do Rio de Janeiro para São Paulo. O Antigo Re-gime era uma coalizão de aristocratas das províncias, na sua mai-oria proprietários de grandes plantações de base escrava, cujosinteresses eram defendidos pela Corte, na cidade do Rio de Janei-ro, então capital do Império. A emancipação dos escravos em 1888foi logo seguida pelo golpe republicano de 1889. Os militares fo-ram influenciados pelo Positivismo e o novo centro econômicodo país trasladou-se para o Estado de São Paulo, ao Sul do Rio deJaneiro, que já vinha empregando, há algum tempo, o trabalhoassalariado nas plantações de café.

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O então novo movimento republicano tem sido caracteriza-do como um regime oligárquico, pois o país continuou a ser go-vernado por uma ínfima minoria, que continuou a empregar osmétodos tradicionais do patronato, do favorecimento e da autori-tária repressão das pessoas comuns. Ideologicamente, entretanto,as novas elites não tinham interesse em manter o aspecto tanto domundo da Corte quanto de suas representações do passado. En-quanto que as elites imperiais preferiam retratar-se como umamistura das antigas linhagens de proprietários de escravos com asraízes nativas míticas, celebradas pela sua nobreza idealizada, osnovos proprietários capitalistas, por sua parte, não tinham essemesmo interesse pela nobreza, fosse ela européia ou indígena. Asnovas elites rejeitaram as mais estimadas imagens criadas pelasvelhas elites, para o espanto da ainda orgulhosa elite da capital noRio de Janeiro. Carlos Gomes, o renomado compositor de óperasde Campinas, em São Paulo, foi um dos melhores representantesda abordagem de Corte nos anos finais do Império. Ele compôsvárias óperas em italiano, sendo Il Guarany a mais importante napopularização do mito do “nobre índio”. Embora Gomes fosse deSão Paulo, o novo regime ignorou seu trabalho e substituiu a ide-ologia (Anschauung) do Estado Imperial (Ortiz 1985) por novasformas de cultura material que pudessem simbolizar sua posiçãosocial e a dos grupos subalternos.

Nos últimos anos do Império, a Corte decidiu construir ummonumento em São Paulo, às margens de um regato, o Ipiranga,onde Pedro I teria proclamado a Independência do Brasil, em 1822.Depois do colapso da monarquia, em 1889, as novas elites paulistasdecidiram transformar tal monumento em um museu, o MuseuPaulista, que deveria ser, como posto em seus estatutos de 1894,“um museu sul-americano, voltado ao estudo do reino animal, daZoologia, da História Natural e da História Cultural do homem”(Regulamento 1894: 4). O estudioso alemão Herman von Iheringfoi o Diretor principal do Museu de 1894 a 1915. Tendo chegadoao Brasil em 1880, este estudioso trabalhou, antes de se tornardiretor do Museu Paulista, como um explorador naturalista para oMuseu Nacional. Ele organizou o Museu Paulista principalmentecomo uma instituição de História Natural, mas também com se-

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ções dedicadas aos artefatos históricos e às “coleções etnográficase arqueológicas relacionadas aos indígenas brasileiros” (1894: 5).

Von Ihering estudou em Göttingen, onde obteve seu PhD emMedicina, em 1873, e, em 1876, outro em Filosofia. Tornou-se,então, Privatdozent em Zoologia da Universidade de Leipzig, em1878, antes de partir para os trópicos, em 1880, onde adquiriu acidadania brasileira, em 1882 (Losano 1992). Von Ihering estavabem informado sobre o discurso acadêmico de seu tempo, espe-cialmente no que diz respeito às teorias científicas de fundo racis-ta, como as especulações acerca do caráter racialmente hereditá-rio da inteligência, sobre o caráter também hereditário do com-portamento, e sobre as teorias eugênicas. Estas então chamadasnovas abordagens científicas da vida social estavam em sintoniacom as novas preocupações da elite em classificar as pessoas nãopela posição social, como era o caso durante o período imperial,mas por supostos critérios científicos. Desta forma, o direito daelite em governar não era mais justificado em termos de privilé-gios de nascimento, mas por distinções “científicas” e “acadêmi-cas” ente os que estão de acordo com as normas e os que nãoestão, entre as pessoas que governam e as que são governadas (ouoprimidas). O mítico e idealizado índio guarani, cultuado pelodiscurso imperial, foi deixado de lado, sendo substituído por umaforma de abordagem mais racional, simpática aos proprietárioscapitalistas e “de acordo com a propriedade privada”. Von Iheringpublicou, em 1908, uma impetuosa justificação da política deexterminação dos nativos, em um famoso artigo publicado noJornal do Museu Paulista, intitulado “A questão dos indígenas noBrasil”. Seu argumento provocou considerável oposição de vári-os intelectuais do Rio de Janeiro, surpresos pela inversão de papeisque se promovia. Os indígenas brasileiros, que tinham sido esti-mados como fossem nobres ancestrais (mesmo se de acordo comuma origem distante e mítica), eram agora retratados como umobstáculo ao avanço dos proprietários de terra capitalistas, quedeviam extermina-los. Havia uma lógica de ferro por detrás daabordagem acadêmica de Von Ihering: era de importância capitalgarantir a propriedade privada da terra e o desenvolvimento dasatividades de extração dos recursos naturais, tarefas que seriamimpossibilitadas caso os indígenas não fossem eliminados; a co-

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leta de material arqueológico e etnográfico dos grupos indígenasera, então, apenas uma maneira de se tomar posse da cultura ma-terial de um povo na iminência da extinção. O Museu Paulista eseu diretor ganharam o Grande Prêmio da Exposição Nacional,no Rio de Janeiro, em 1908, pela apresentação de artefatos indí-genas. Na época, tal coleção de cultura material indígena era iné-dita, e foi decerto mais abrangente que o conjunto de todas ascoleções levadas a termo durante o regime Imperial.

De diversas formas, o trabalho de Von Ihering expressava onovo ponto de vista científico e a abordagem capitalista para comas populações indígenas brasileiras – que deveriam ser preserva-das apenas na forma de suas relíquias materiais. Este estudiosotambém exerceu uma influência significativa sobre o desenvolvi-mento da Arqueologia no país, de forma que ao adotarem sua abor-dagem, muitos estudiosos começaram a assumir que seu conheci-mento especializado e cientificamente objetivo a respeito da cul-tura indígena autorizava-os a lidar com os nativos e com seusvestígios materiais da forma que melhor lhes aprouvesse. No fi-nal das contas, a destruição das culturas nativas foi consideradacomo fato inevitável – para alguns, praticamente uma necessida-de. Nativos, negros e imigrantes das chamadas “raças inferiores”(inclusos aí os judeus, árabes, italianos, espanhóis e portugueses),em suma, todos que estavam chegando em números cada vezmaiores ao país, foram representados pela nova elite capitalistacomo não civilizados, graças a intelectuais como Von Ihering. Iro-nicamente, Von Ihering teve um destino inglório, pois foi demiti-do do Museu Paulista em 1916 e retornou à Alemanha em 1920.Vários comentadores relacionam sua desgraça ao fato do Brasilestar em guerra com a Alemanha, e sugerem que alguma espéciede sentimento anti-germânico tenha contribuído para sua queda.Entretanto, a razão oficial para sua demissão foi uma acusação deuso indevido de dinheiro público. Algumas versões chegam a afir-mar que ele tenha dirigido o Museu como fosse seu “domíniofeudal” particular (como era comum, e ainda o é, no Brasil), ten-do empregado seu próprio filho, Rodolfo, como diretor-associa-do. Qualquer que tenha sido o caso, com a demissão de Von Ihering,seu discurso científico, fundado sobre a justificação arqueológica

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da exterminação dos indígenas, foi substituído por um outro dis-curso a respeito dos grupos subordinados.

O sucessor de Von Ihering, Affonso d’E. Taunay, foi um dosprincipais proponentes de uma nova forma de inventar o passadono Brasil. São Paulo tinha estado na linha de frente do poder eco-nômico e político desde a queda da monarquia, com os proprietá-rios das plantações de café fornecendo os sustentáculos para onovo regime. Estes plantadores, entretanto, também começarama investir seus capitais na cidade de São Paulo e na sua industria-lização, que, em contrapartida, estimulou um significativo influ-xo de migrações transoceânicas. A maioria destas migrações erade italianos: em 1901, 90% de todos os trabalhadores de São Pau-lo eram italianos, e mesmo em 1920 o número destes indivíduoschegava próximo aos 40%. Outros vinham de lugares mais dis-tantes, incluindo o Japão, e de outras regiões às margens do Me-diterrâneo. Muitos lojistas e varejistas, por exemplo, eram pesso-as de origem judaica ou árabe provenientes do Império Otomano,conhecidos simplificadamente como “turcos”. Em reação a estasmudanças sociais, o discurso da elite mudou, a ponto do termo“selvagem” ser utilizado não apenas para os indígenas das terrasainda não exploradas, mas também para os trabalhadores nas plan-tações e para o proletariado urbano. A indicação de Taunay para oMuseu Paulista coincide com este período de mudança social, esuas atividades na reformulação do Museu foram instrumentaisna criação de uma nova imagem material do passado.

Especificamente, Taunay foi encarregado de remontar a exi-bição do Museu, preparando-o para a comemoração do centési-mo aniversário da Independência, que ocorreria em 1922. Taunaydispensou a exibição acadêmica desenhada por Von Ihering e subs-tituiu todo o material original por um grupo completamente novo,glorificando uma recém criada figura histórica, o pioneiro ban-deirante. Taunay e outros intelectuais da elite forjaram o termocomo uma maneira de distinguir as antigas famílias paulistas dosoutros habitantes do Estado.

Os bandeirantes foram imaginados nos moldes daquelesheróicos caçadores de escravos que lutaram pela expansão das

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fronteiras do oeste brasileiro, combatendo indiferentemente indí-genas, africanos e espanhóis, e tornando-se, desta forma, os res-ponsáveis por multiplicação do território português na Américado Sul (Love 1982; Abud 1986). Taunay descreveu-os nos moldesdos antigos fundadores de Roma, como fossem eles patres patriae(“os pais da nação”) ou ditadores romanos (Taunay 1929: 107,115). A elite bandeirante de São Paulo deveria guiar o país, e nãoser guiada, como no dito latino non ducor, duco, adotado pelacidade de São Paulo na onda de comemorações do centenário daIndependência, em 1822. Parafraseando Cícero, poderíamos di-zer que as elites consideravam que “bandeirante seruire fas nonest, quem dii immortales omnibus gentibus imperare uoluerunt”(“não é permitido aos bandeirantes serem governados, pois as di-vindades imortais destinaram-nos a governar sobre todas as ou-tras pessoas”). A invenção do próprio nome bandeirante esta nadependência da invenção de um objeto, da recorrência a um ele-mento da cultura material (cf. McGuire e Walker 1999: 162), deuma bandeira – como uma insígnia militar que representasse atradição dos bandeirantes. Não é uma referência distante buscar aorigem deste mito nas leituras da mesma literatura latina que ins-pirara Taunay, e no seu uso do uexillum (estandarte) como umareferência tanto à bandeira militar quanto às tropas pertencentes auma unidade (cf. César, De bello gallico 2, 20 e Tácito, Historiae1, 70).

Os bandeirantes foram inventados por intelectuais como Ellis(1926) e Alcântara Machado (1926), mas foi Taunay quem osmaterializou na exposição do Museu Paulista (Rodrigues 1999:147). Na antecâmara do Museu, as imensas estátuas dos bandei-rantes de Taunay saudavam os visitantes. Cada região do país erarepresentada como se tivesse sido conquistada pelos bandeiran-tes, também com o recurso de esculturas, pinturas e outros itensmateriais que eram usados para guiar o público. A fundação daprimeira cidade na colônia portuguesa (“A Fundação de SãoVicente, em São Paulo”) foi retratada com os primeiros coloniza-dores representados como os bravos descobridores, com bandei-ras nas mãos, como se estivessem na iminência de conquistar ocontinente. O simbolismo implicava que estes colonizadores não

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eram mais portugueses, mas, ao contrário, já pertenciam ao inte-rior do novo mundo e olhavam na direção das fronteiras do oestecomo se a imaginar um futuro glorioso. Uma outra pintura (“Apartida dos exploradores do rio”), mostra uma expedição bandei-rante partindo para conquistar as terras longínquas. Nestas pintu-ras, grupos subalternos são retratados apenas como servos obedi-entes. Eles também estão ausentes da maioria das outras galeriasque, mesmo oitenta anos mais tarde, estão hoje ocupadas comdoses maciças de cultura material da elite. Estão, por exemplo,entre este material, as liteiras usadas pela elite. Curiosamente,como em tantos outros casos análogos, os grupos subalternos queas carregavam, os escravos, adquirem, nestes contextos, uma sur-preendente invisibilidade. Não existe referência a eles, eles nãopertencem ao mundo material que povoa a maioria dos principaismuseus brasileiros (Funari 1994; 1995).

ARQUEOLOGIA ACADÊMICA DA DÉCADA DE 1940

A primeira universidade brasileira foi fundada em São Paulona década de 1930, mas a Arqueologia como uma atividade aca-dêmica foi introduzida apenas depois da Segunda Guerra Mun-dial, principalmente devido à pioneira condução política e inte-lectual de Paulo Duarte, amigo de vários eminentes arqueólogosfranceses. Duarte foi um humanista sem igual e um defensor dosgrupos subalternos, ainda mais se tivermos em conta que ele mes-mo fez parte da antiga elite liberal paulista – um verdadeiro “ban-deirante”. Duarte, entretanto, no início de sua carreira, foi umdefensor aguerrido do patrimônio, como ele mesmo tornou claroem um discurso que proferiu na Assembléia Legislativa de SãoPaulo, quando propôs a criação de um Departamento Estadual doPatrimônio, apenas alguns dias antes do golpe fascista de 1937(Duarte 1937). Duarte combateu o governo ditatorial que se ins-talara (1937-1945) e foi para o exílio na França. Lá se interessoupelos estudos que os franceses vinham fazendo a respeito do en-genho humano (vista como uma capacidade de toda a humanida-de), assim como pelos estudos de pré-história, levados a termoem uma perspectiva dilatada: desde os primeiros hominídeos até

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o presente, e em todas as partes do mundo. O conceito chave era“l’homme”, o ser humano e sua capacidade de criar, um conceitodiretamente associado com a luta pelos direitos humanos (les droitsde l’homme), em uma Europa pós Segunda Guerra Mundial quecolocava o nazismo no esquecimento.

Devido à sua amizade com Paul Rivet, então diretor do Muséede l’Homme em Paris, Duarte criou a Comissão de Pré-história daUniversidade de São Paulo, em 1952; trouxe arqueólogos profis-sionais franceses, J. Emperaire e A. Laming (Emperaire & Laming1956; 1958) para trabalhar nesta instituição; e começou a treinarbrasileiros na área (López Mazz 1999). Pela primeira vez na his-tória brasileira, material pré-histórico foi considerado umpatrimônio humano, digno de ser preservado e estudado. Preocu-pado com “l’homme américain” (“o homem nativo da América”),Duarte defendeu a idéia de se instituir uma proteção legal para opatrimônio pré-histórico brasileiro (Duarte 1958). Como um re-sultado de seus esforços, o Congresso brasileiro promulgou umalei federal (Lei No. 3942) em 1961, protegendo os vestígios ar-queológicos – que permanece ainda hoje como o único item dalegislação nacional a respeito do assunto (Morais 2001). Duarte(1952; 1955; 1968; 1969) estudou e lutou em favor da proteçãodos sambaquis, amplamente usados pelas empresas construtoraspara pavimentar estradas e rodovias. Como uma conseqüência,restos humanos até então tomados como de pouca importância –resultado da ação milenar do homem em determinados contextos– foram pela primeira vez considerados dignos de atenção (Bruno1991; Funari 1999b). Os “nativos”, por muito tempo subordina-dos, foram introduzidos não apenas nas discussões acadêmicasmas na sociedade de uma maneira geral.

Estes esforços humanistas sofreram um severo revés em 1964,quando ocorreu um golpe militar que colocou o país sob um go-verno autoritário nos vinte e um anos seguintes. Logo depois dogolpe, o Instituto Smithsonian e as autoridades militares começa-ram um plano arqueológico, que duraria cinco anos, parareformular a ainda incipiente Arqueologia brasileira. Cliffor Evanse Betty Meggers, do Smithsonian, organizaram o Projeto Nacio-

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nal de Pesquisa Arqueológica, mais conhecido pela siglaPRONAPA. Como este chamado programa nacional (sic) fossecontrolado por Washington, a Arqueologia humanista foi inicial-mente desestimulada e, mais tarde, ativamente perseguida. Duartee seus colegas pesquisadores, interessados nos nativos, sofreramrestrições de verbas. Como um ato final, Duarte foi expulso davida universitária pelas autoridades, ajudadas por alguns oportu-nistas, como ele mesmo recordou em um documento publicadodepois de sua morte (1994). Sua última publicação foi “Fontespara a pesquisa pré-histórica” (1970), que nunca foi distribuída,pois foi censurada por aqueles que, primeiro, o perseguiram e,mais tarde, sucederam-no no comando do Instituto de Pré-histó-ria (Caldarelli 2000). Neste artigo em questão, Duarte refere-seao regime de governo que conduziu sua expulsão como ditatorial,ressalta que os indígenas, em particular, estavam experimentandoa destruição de seu patrimônio, e critica abertamente os novos“invasores bandeirantes do século XX” (Duarte 1970: 371, 379 e381).

Passou a ser impossível tomar os grupos subordinados comoobjeto de estudo arqueológico, assim como de qualquer outra disci-plina acadêmica. Gradualmente, a partir da década de 1970, oregime militar permitiu algumas liberdades, mas a Arqueologianão foi logo beneficiada, pois estava ainda sob o controle dospartidários dos militares. Apenas em 1985, com a saída de cenado governo ditatorial, é que os arqueólogos se viram mais umavez livres para comprometer-se com os grupos subalternos. Maisuma vez uma abordagem humanista foi, também, possível, maisuma vez “l’homme américain” foi trazido para o centro das dis-cussões por vários arqueólogos. Por todo o país, vários estados emunicípios introduziram artigos em suas legislações, buscandoproteger os vestígios arqueológicos. Pela primeira vez, também, aArqueologia começou a ser usada para estudar os grupos de des-cendência africana, como é o caso da Arqueologia dos grupos “mu-latos” (Orser e Funari 1992; 2001; Funari 1999c, com referênciasanteriores; Allen 1999). Da mesma maneira, a Arqueologia foiusada para se lidar com vestígios de “desaparecidos”, daquelesque assassinados e enterrados em valas comuns pelo governo

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ditatorial (Oliveira, com.pess.). O estudo dos sitos relacionadoscom os povos de origem e descendência africana é uma maneirade compreender o racismo e as formas de resistência desenvolvi-das contra ele (Paynter 1990: 60), assim como o estudo da opres-são foi e é uma maneira de fazer oposição ao governo autoritário.

Talvez o mais importante ganho da Arqueologia, no últimosanos, tenha sido o engajamento dos seus profissionais com o pú-blico (cf. Funari 2000b). Vários arqueólogos continuam perpetu-ando a longa tradição de se estudar o passado a partir do ponto devista das classes altas, celebrando abertamente as finas louçasusadas pelas elites, defendendo que certas peças arqueológicaspossam ser vendidas em lojas de Antigüidade (e.g. Lima 1995;criticism in Trigger 1998: 16) e mesmo promovendo a expulsãodos índios, dos “negros” e das pessoas comuns em geral das áreasocupadas pelas elites (veja exemplos em Funari 2001b). Tal pos-tura não é surpreendente se considerarmos a natureza da estruturasocial brasileira e a tumultuada história da disciplina arqueológi-ca durante o recente passado ditatorial. É sempre difícil ouvir avoz dos grupos subordinados (Spivak 1988), mas a Arqueologiapode desempenhar um papel central na tarefa de torná-la maisfácil de ser ouvida (Hall 1999). O ato de examinar a evidênciamaterial dos grupos subordinados oferece uma oportunidade dese ter um acesso mais abrangente a comunidades que tradicional-mente não são representadas (cf. Guimarães 1990), tanto no pas-sado histórico quanto no pré-histórico (Saitta 1995: 385; McGuire1999: 830).

Se a sociedade é caracterizada por contradições sociais, lu-tas e conflitos de interesse, então os membros dos grupos subal-ternos e dos grupos dominantes estarão sempre em oposição, ecada arqueólogo terá de decidir do lado de qual se colocará. Nestecontexto, o engajamento com a sociedade é um aspecto definidordo trabalho do arqueólogo, principalmente daquele que buscamanter uma posição crítica no que concerne às condições sociaisdo país onde trabalha (Trigger 1990: 785; McGuire 1999: 828).Em 1999, os 10% que representam a camada mais rica da popula-ção do Brasil detinham 52% da riqueza do país, enquanto que os

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50%, que representam a cada mais pobre, detinham apenas 10%da riqueza do país (Marin 2001). As pessoas de descendência afri-cana representam 45% da população, mas apenas 2% destes sãoestudantes universitários (Beting 2001), e existem mais de 40milhões de brasileiros com alguma ascendência indígena. Arque-ólogos em sociedades deste tipo são necessariamente parte da eli-te, e a Arqueologia pode ser usada ideologicamente para reforçaro discurso de exclusão por meio da manipulação da cultura mate-rial (Rodrigues 1999: 151; Skidmore 2000: 572). Provavelmentea melhor maneira de combater esta tendência é o engajamentocom a sociedade; já que, na sua grande maioria, os indivíduos deuma sociedade são claramente aquilo que Walter Benjamin (1974:352) denominou de geknechteten, “subalternos” – termo que en-globa todos aqueles destinados a servir os outros (cf. Funari 1998:109; Felman 1999: 12-14). Tal caminho abre a oportunidade paraos arqueólogos confrontarem suas evidências de uma perspectivacrítica, observando as contradições tanto no passado quanto nopresente (Tilley 1982: 37; Spriggs 1983: 3; Leone 1986). As críti-cas mais agudas feitas a respeito da Arqueologia da dita camadasuperior provém, atualmente, dos arqueólogos do terceiro e doquarto mundo, assim como das mulheres e das minorias étnicasno ocidente (Durrans 1989: 73). A Arqueologia dos grupos subal-ternos é, desta forma, uma maneira de escrutinar os contextos –tanto do passado quanto do presente – em que os discursos arque-ológicos a respeito do passado são produzidos e reproduzidos. AArqueologia fornece acesso , indiferentemente, à dominação e áresistência a ela, às elites e aos subordinados (Paynter e McGuire1991: 13; Frazer 1999: 5). A Arqueologia do gênero (Cavicchioli2002; Freitas 1999), o resgate dos direitos das comunidades indí-genas (Baeta 2000; Noelli 1998; 2000; Nunes 2002; Oliveira 1996),a luta por museus mais democráticos (Gomes 2001; Rodrigues2001; Tamanini 1999), a política patrimonial (Juliani 1995;Caldarelli 1999; Cali 2001), e o crescimento da análise crítica dadisciplina (Neves 1988; Reis 2002) são todos passos importantesda Arqueologia brasileira em suas novas preocupações com osgrupos subalternos. A Arqueologia brasileira tem, hoje, uma opor-tunidade sem igual de se engajar na recuperação dos grupos su-balternos, e de lutar por liberdade.

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AGRADECIMENTOS

Este artigo foi, originalmente, escrito em inglês e traduzido para oportuguês por Fábio Adriano Hering, a quem agradeço. O artigo em inglêsserá publicado em livro em breve. Agradeço, ainda, aos seguintes colegas:Scott Joseph Allen, Dione Bandeira, Cristina Bruno, Solange Caldarelli,Marina Regis Cavicchioli, Brian Durrans, Lúcia Juliani, Leandro Karnal,Luciana Freitas, Johnni Langer, Mark P. Leone, Maria Margaret Lopes, JoséMaria López Mazz, Randall McGuire, José Luiz de Morais, Walter AlvesNeves, Francisco Silva Noelli, Solange Nunes, Nanci Vieira Oliveira, CharlesE. Orser, Renato Ortiz, Ana Piñon, Jr., Jaime Pinsky, Marly Rodrigues,Thomas C. Patterson, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Dean J. Saitta,Thomas Skidmore, Elizabete Tamanini, Bruce G. Trigger. Devo mencionar,ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP,FAPESP e CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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A “REPÚBLICA DE PALMARES” E A ARQUEOLOGIA DASERRA DA BARRIGA

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O objetivo mais amplo do Projeto Arqueológico Palmares,como foi denominado, consiste em adquirir informação sobre avida quotidiana em Palmares, principalmente por meio dos vestí-gios materiais. Quase tudo que se sabe sobre Palmares deriva dedocumentos escritos por aqueles que, de uma forma ou de outra,combatiam o quilombo, o que acaba por gerar uma visão distorcidadaquela sociedade. Até aquele momento, não havia sido efetuadanenhuma pesquisa arqueológica na área do antigo quilombo. Nadase sabia sobre a cultura material de Palmares e o Projeto Arqueo-lógico Palmares procura, em primeiro lugar, obter informaçõesdetalhadas, e de primeira mão, sobre os tipos de arfefatos feitos eusados em Palmares. A partir desses dados concretos, pode-se al-mejar obter informações a respeito da organização ideológica,social, econômica e política. De início, planejamos realizar duasetapas de campo de caráter prospectivo, visando localizar sítiosarqueológicos em superfície e realizar algumas trincheiras e/ou

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quadrículas, apenas na Serra da Barriga, único local seguramenteidentificado como parte do antigo quilombo (4).

A República de Palmares compunha-se de diversos mocam-bos, cujos nomes, transmitidos pelos documentos da época, pos-suem etimologia africana, tupi e portuguesa (5). A capital, conhe-cida, na época, como Cerca Real do Macaco ou Serra da Barriga,localiza-se no município de União dos Palmares (5). A metodologiada etapa de campo consistiu, basicamente, em um levantamentoou prospecção pedestre, visando localizar vestígios materiais ar-queológicos superficiais. Tendo identificado artefatos na superfí-cie, planejamos realizar alguns testes com pás, a fim de determi-nar a profundidade e grau de preservação do material. Esse proce-dimentos básicos permitiram mapear os sítios arqueológicos eavaliar as possibilidades de trabalhos arqueológicos futuros maisextensos e demorados.

Antes de iniciarmos os trabalhos de campo, partimos dosdocumentos escritos para entendermos como os colonizadorescompreenderam e combateram esse estado rebelde (6). Já em 1612,há referências a uma comunidade de escravos fugidos na Zona daMata e em 1640 os holandeses consideram-na um sério perigo(7). Baro comandou um ataque holandês em 1644 que teria viti-mado cem pessoas e capturado 31 quilombolas, de um total deseis mil que viviam no principal acampamento (8). A rivalidadeentre portugueses e holandeses seguramente contribuiu para o cres-cimento de Palmares e, com a retirada desse últimos, os ataquesaos assentamentos, que já eram nove, intensificaram-se no perío-do entre 1654 e 1667. A partir de 1670 ofensivas quase anuaisvisavam destruir o Estado rebelde, governado por Ganga Zumba,entre 1670 e 1687 (9). Acusado de colaboracionismo, Ganga Zum-ba foi morto e sucedido por seu sobrinho Zumbi, rei entre 1687 e1694, iniciando um período de guerras mais intensas, que culmiramcom a expedição comandada pelo paulista Domingos Jorge Velho(10). Em fevereiro de 1694, após um sítio de 42 dias, Macaco foitomada e Domingos Jorge Velho reivindicou o botim, tendo viti-mado 200 quilombolas e aprisionado 500, a serem vendidos forada capitania (11). Duzentos teriam fugido, entre os quais Zumbi,capturado e morto em 20 de novembro de 1695.

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Nas duas campanhas de prospecção, em 1992 e 1993, foipossível identificar 14 sítios arqueológicos na Serra da Barriga,apenas um deles posterior ao quilombo dos Palmares (12). Osoutros sítios puderam ser datados pela presença de majólica oucerâmica vidrada, caracterizada por um brilho opaco que contémóxido de estanho. A localização dos sítios não parece ser fortuitapois, à exceção do sítio 11, datado do século XIX, os sítios restan-tes situam-se na parte superior ou na face sul, com um possívelalinhamento de sítios de observação nos costados a sudeste. Ossítios 10, 13, 8, 6, 9, 7 e 5 formam uma linha leste/oeste, ao sul daSerra, defronte ao rio Mundaú. Ainda que seja prematuro aventarhipóteses sobre a funcionalidade dos sítios, cuja densidade deocupação ainda não é possível determinar, os futuros trabalhospoderão melhor relacionar esse alinhamento e a estrutura geral doassentamento quilombola.

A cerâmica vidrada encontrada no sítio pode ser enquadradano amplo espectro denominado de majólica. A majólica foi, pro-vavelmente, introduzida na Península Ibérica pelos mouros, tor-nando-se popular apenas com a Reconquista, a partir do séculoXIII (13). Cerâmicas relacionadas são as faianças francesas, ho-landesas e inglesas (delft). Os fragmentos provenientes da Serrada Barriga não podem ser considerados comparáveis à majólicafina da época, devendo ser encarada como um material utilitário ederivado (14). Um dos fragmentos apresenta duas faixas parale-las avermelhadas, com fundo verde amarelado, enquanto outraspeças, de diferentes formas, possuem um vidrado que varia doamarelado ao esverdeado. Este tipo cerâmico, associado à cerâ-mica comum encontrada na Serra da Barriga, confirma a ocupa-ção da área no século XVII (15).

De um total de 2.448 artefatos coletados, mais de noventapor cento são objetos de cerâmica (16). Um grande vaso, encon-trado enterrado há 15 centímetros de profundidade, merece al-guns comentários. Havíamos traçado dois transeptos, ou linhasnorte/sul e leste/oeste, e testávamos, a cada dez metros, com umapá, a área imediatamente à frente dos monumento a Zumbi, quan-do encontramos, no teste de 40 metros norte, um grande vaso en-

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terrado em época colonial (17). No topo do vaso, em sua parteexterior, encontramos dois machados líticos com seus fios parabaixo, apoiados nas bordas do vaso. Ambos encontravam-se insitu e não apresentavam sinais de uso, o que sugere um caráterritual ou apotropaico. Na parte superior interna do vaso, encon-tramos um segundo vasilhame, fragmentado mas completo, escu-ro, de paredes finas (0,54 cm), com diâmetro, na boca, de 36 cm.No fundo do grande vaso encontramos 31 fragmentos diminutosde cerâmica.

A interpretação desse achado não é simples. Uma primeirahipótese poderia relacionar o vaso aqueles de tipologia tupinambá(18). Poderia tratar-se, seguindo uma tradição de cemitérios indí-genas pré-cabralinos, de uma urna funerária, na medida em quetoda a área circundante apresenta abundantes vestígios superfici-ais de vasos desse tipo. Entretanto, a presença dos machados, dovaso no topo e dos fragmentos cerâmicos no fundo sugerem ou-tras possibilidades. Poderia tratar-se de um depósito de grãos ououtros materiais, o que explicaria o vaso no topo e os fragmentosao fundo (19). Os machados serviriam, nesse caso, para protegero vaso e seu conteúdo. A própria forma do vaso pode ser relacio-nada à África, pois os Mbundu, em Angola, utilizam recipientesmuito semelhantes (20). Talvez fosse possível aventar a hipótesede que as índias tivessem produzido esses vasos, usados no assen-tamento quilombola, segundo sua técnica tradicional tupinambá,mas cuja forma não era estranha aos africanos e cujo uso poderiaser mais próximo dos costumes bântus do que ameríndios (21).De qualquer forma, a presença de cerâmica indígena em assenta-mentos coloniais não devia ser excepcional e o caso da cidadeespanhola de Santa Fé La Vieja, no nordeste da Argentina, ocupa-da de 1573 a 1660 parece indicar que uso de cerâmica local não-hispânica, de tipo tupi-guarani, era bastante difundida. Não seestranharia tendência semelhante no quilombo de Palmares (22).

Os resultados preliminares das prospecções arqueológicasna Serra da Barriga indicam que o tema crucial para a compreen-são do quilombo relaciona-se com a etnicidade dessa comunida-de. Stuart Schwartz talvez tenha sido o historiador que melhor

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tenha desenvolvido a tese de que Palmares era uma sociedademuito claramente africana:

“As tradições de Angola claramente predominaram. Os resi-dentes referiam-se a Palmares como angola janga (pequenaAngola)...O ki-lombo, uma sociedade a qual qualquer homempodia pertencer por meio do treinamento e iniciação, servia àque-le propósito. Encontra-se, pois, uma instituição designada para aguerra, a qual podia incorporar grande número de estranhos des-providos de ancestrais comuns a um poderoso culto guerreiro...Uma figura fundamental no ki-lombo era o nganga a zumba, umsacerdote cuja responsabilidade era tratar com o espírito dos mor-tos. O ganga zumba de Palmares era provavelmente o detentordesse cargo....Devemos considerar os aspectos africanos dePalmares não como “sobreviventes” desincorporados de seu meiocultural original, mas como um uso muito mais dinâmico e talvezintencional de uma instituição africana na forma especificamentedesignada para criar uma comunhão entre povos de orígensdíspares e fornecer uma organização militar eficiente. Certamen-te os escravos fugidos do Brasil adequam-se a essa descrição”(23).

Essa interpretação segue uma tradição de associar-se os costu-mes de Palmares com aqueles de Angola (24). Contudo, a assimi-lação do ki-lombo angolano com o quilombo de Palmares pare-ce, à luz dos estudos de africanistas, insustentável. De fato, o ter-mo quilombo só foi usado no Brasil em 1691, segundo Schwartz,estando ausente dos documentos anteriores que se referem aPalmares. O ki-lombo angolano, por sua parte, foi um movimen-to guerreiro muito específico e efêmero, datado do segundo quar-tel do século XVII (25), posterior, portanto, ao início de Palmares.Por outro lado, John Thornton tem ressaltado que os contatos cul-turais, na própria África, entre europeus e africanos era muito maisintensos do que se costuma admitir (26) e sugere que, nas Améri-cas, “os escravos não eram militantes culturamente nacionalistas,que procuravam preservar tudo que fosse africano mas, ao contrá-rio, mostravam grande flexibilidade para adotar e mudar sua cul-tura” (27). Em geral, portanto, pode afirmar-se que os africanos,na América, passavam a forjar culturas especificamente america-nas, diversas das africanas (28).

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Nesse contexto, não é de se estranhar as referências ao cato-licismo em Palmares, nem à presença de mouros, brancos e índi-os no quilombo, presenças cuja inserção no ki-lombo imbangalaseria impensável. Segundo diversos estudiosos, as perseguiçõescoloniais fariam com que Palmares pudesse atrair uma pletora degrupos marginalizados pela ordem vigente (29). O trabalho ar-queológico em Palmares, embora ainda muito inicial, já demons-tra que, apenas a partir da cerâmica, pode supor-se que ali convi-viam pessoas de diversas origens étnicas e culturais. Este carátermultiétnico deriva, em parte, da situação histórica e estratégicade Palmares. Os quilombos estabeleceram-se em uma região cir-cundada por nativos, a oeste, por moradores e fazendeiros, na costae, entre 1630 e 1654, os holandeses a nordeste. Os mocambossobreviveram não apenas em confronto com esses grupos como,necessariamente, em interação. Na verdade, faziam parte de umcontexto internacional ainda mais amplo, pois a própria escravi-dão colonial era o resultado do capitalismo mercantil europeu (30).

A continuidade do trabalho arqueológico na Serra da Barri-ga, prevista para os próximos anos, permitirá passar dasproscpeções, efetuadas nas duas primeiras etapas de campo, paraescavações. Os primeiros resultados indicam que há ainda muitoa fazer, mas as perspectivas são, também, bastante amplas. O in-teresse por Palmares, tanto no Brasil como no exterior, tem sidoacentuado, em parte graças às prospecções arqueológicas (31).Seu prosseguimento deverá trazer dados inéditos que permitamrepensar esse grande Estado rebelde (32).

NOTAS

1. O nome “república”, utilizado nos documentos do século XVII é umatradução, ao vernáculo, do termo latino então corrente, res publica, usa-do para designar qualquer Estado; cf. Édison Carneiro, O Quilombo dePalmares, São Paulo, 1988, p.33. Termos de origem africana, comomocambo e quilombo, foram introduzidos posteriormente, em geral comconotações pejorativas. Nos documentos que se referem a Palmares, oassentamento rebelde é chamado de mocambo, “esconderijo”, segundo

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R.P. Kent, “Palmares: an African State in Brazil, in R. Price (org), Maroonsocieties, Baltimore, 1979, p.174.

2. Ver o volume organizado por Orser, Historical Archaeology on SouthernPlantations and Farms, Ann Arbor, 1990, com bibliografia anterior.

3. Obtivemos fundos da Illinois State University, National GeographicSociety, National Science Foundation, Joint Committe on LatinAmerican Studies of the Social Science Research Council, AmericanCouncil of Learned Societies, National Endowment for theHumanities, Ford Foundation e apoio institucional do Núcleo de Es-tudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Alagoas, Museu ThéoBrandão (Maceió), da prefeitura de União dos Palmares e do Estado deAlagoas; a participação, na etapa de campo, de Michael Rowlands foifinanciada pelo British Research Council.

4. A localização dos outros mocambos ou aldeias não é segura, como ficaclaro ao compararmos os mapas apresentados por Décio Freitas,Palmares: A Guerra dos Escravos, Porto Alegre, 1984 e por Zezito deAraújo, Serra da Barriga: Exposição de Motivos para o Tombamen-to, Maceió, 1985.

5. Kent, op.cit., pp.180-1 relaciona os nomes Aqualtene, Dombrabanga,Zumbi, Andalaquituche a idiomas bântus; Subupira e Tabocas sãotopônimos tupis, segundo Teodoro Sampaio, em seu dicionário O Tupina Geografia Nacional, São Paulo, 1987; a capital, Macaco, conhecidanos documentos da época como Oiteiro da Barriga (hoje, Serra da Barri-ga), pode ser português ou uma má interpretação do termo bântu mococo;Amaro é de origem portuguesa.

5. A Serra da Barriga localiza-se, aproximadamente, a 9 graus 10’00" Sul e36 graus 05’00" Oeste, medindo cerca de 4.000 metros de leste a oeste e500 a 1.000 metros de norte a sul. A altitude varia de 150 a 560 metrosacima do nível do mar; cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi:Preliminary Archaeological Research at the Serra da Barriga, Stateof Alagoas, Brazil, Normal, Illinois State University, 1992, pp.14-15 etpassim.

6. Sempre levando em conta que “toda sociedade deixa registros que procu-ram apresentar suas próprias visões e respostas que se ajustem a umambiente político específico”, segundo John Thornton, “TheCorrespondence of the Kongo Kings, 1614-35, Problems of InternalWritten Evidence on a Central African Kingdom”, Paideuma, 33, 1987,p.420.

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7. Gaspar Barleus, em seu História dos feitos recentemente practicadosdurante oito anos no Brasil, Belo Horizonte, 1974 (originalmente pu-blicado em 1647), p.253, refere-se a que “certo Bartolomeu Lintz viveraentre eles para que, depois de ficar-lhes conhecendo os lugares e o modode vida, atraiçoasse os antigos companheiros”.

8. É difícil avaliar a veracidade desses números, que poderiam estar infla-dos. De qualquer forma, dos 31 quilombolas capturados, sete eram índi-os e alguns crianças mulatas.

9. Há muitas evidências da religiosidade associada ao poder, tanto na Áfricacomo em Palmares. O título nganga era usado para designar “sacerdo-te”, tanto nas religiões tradicionais bântus como no catolicismo africa-no, segundo Jean Nsondé, “Christianisme et religion traditionelle au paysKoongo aux XVII-XVIIIe. siècles”, Cahiers d’Études Africainnes, 128,23, 4, pp.705-711. A importância da ligação entre o exercício do poder eo controle do sagrado na África bântu tem sido ressaltada por MichaelRowlands, “From Tribe to State in West Central Africa”, Symposium atCascais on Critical Approaches in Archaeology: Natural Life,Meaning, and Power, manuscrito inédito, p.29 e Michael Rowlands eJean Pierre Warnier, “Sorcery, Power, and the Modern State inCameroon”, Man (NS), 23, 1992, pp.118-132. Sobre o título nzumbi,ver Tulu Kia Mpansu Buakasa, “Croyances et connaissances”, emThéophile Obenga e Simão Souindoula (orgs), Racines Bantu, Libreville,1991, p.179.

10. O termo nzumbi possui conotações militares e religiosas a um só tempo.

11. Segundo o preceito romano reconhecido à época: iuste possidet, quiauctore praetore possidet.

12. Sítio número 11, com majólica, creamware, pearlware, whiteware,stoneware, material datado entre fins do século XVIII e início do XIX;cf. Charles E. Orser Jr., In Search of Zumbi, The 1993 Season, Nor-mal, 1993, pp.3-6 e Pedro Paulo A. Funari, “The Archaeolgy of Palmaresand its Contribution to the Understanding of the History of African-American Culture”, Historical Archaeology in Latin America, 7, 1994,p.30.

13. Cf. Florence C. Lister e Robert H. Lister, A Descriptive Dictionary of500 Years of Spanish-Tradition Ceramics: 13th through 18thCenturies, California, 1976, pp.1-2.

14. Os fragmentos podem associar-se à majólica portuguesa ou, talvez maisprovavelmente, àquela holandesa, pois a semelhança da coloração como material daquela proveniência, encontrado na América do Norte, pode

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ser observada; cf. Charlotte Wilcoxen, Dutch Trade and Ceramics inAmerica in the Seventeenth Century, Nova Iorque, 1987, prancha 5 etpassim). Compare-se com a majólica contemporânea em África, emJames Kirkman, Fort Jesus: A Portuguese Fortress on the East AfricanCoast, Oxford, 1974, pp.119-121.

15. Pré-historiadores, tanto no Brasil como no exterior, têm dificuldade emadmitir a presença concomitante, em sítios históricos, de cerâmicas detipo indígena misturadas com cerâmica colonial. Há quem proponha tra-tar-se de duas ocupações sucessivas, pré-histórica e colonial. Essas hi-póteses revelam, contudo, desconhecimento das características dos síti-os coloniais, cuja cultura material apresenta elementos europeus, indíge-nas e mesclas, associados. Desconhecem, também, os documentos his-tóricos que se referem aos sítios coloniais e que, se lidos, permitem cons-tatar que artefatos “pré-históricos” eram usados nos assentamentoscolonais. Estas considerações surgiram de conversas com Susan Alcocke Carla Sinopoli a respeito da reação de alguns pré-historiadores quandode uma palestra sobre os trabalhos na Serra da Barriga, em agosto de1995, em Simpósio organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnologiada Universidade de São Paulo. Infelizmente, as características da Arque-ologia História ainda são largamente desconhecidas pelos pré-historia-dores, induzindo a erros crassos de julgamento.

16. 91% cerâmica comum, 4,5% cerâmica trabalhada, 1,3% líticos, 0,6%vidro, 0,1% metal e 1,9% outros materiais variados.

17. O objetivo desses transeptos era averiguar os danos arqueológicos cau-sados pelo uso de um trator, por alguns anos sucessivos, a fim de “lim-par” a área, tornando-a um local mais aprazível para os festejos do diada consciência negra, 20 de novembro. Como era esperado, toda a área(sítio 1) diante do monumento foi muito afetada pela remoção dos vestí-gios.

18. Cf. José Joaquim Justiniano Proenza Brochado, An Ecologial Model ofthe Spread of Pottery and Agriculture into Eastern South America,Urbana, Tese de Doutoramento inédita, figura 16 et passim.

19. Merran McCulloch refere-se a tais vasos entre os Mbundu (Ovimbundu),em Angola, em seu The Ovimbundu of Angola, Londres, 1952, p.15.

20. Wilfred D. Hambly, The Ovimbundu of Angola, Chicago, 1934, p.368e prancha XIV.

21. Assim, um vaso de tipo indígena poderia ser reapropriado pela popula-ção mestiça do quilombo como um recipiente de armazenamento.

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22. Andrés Zarankin, “Arqueologia Histórica urbana en Santa Fe La Vieja:el final del principio”, Historical Archaeology in Latin America, 10,1995, p.56, figuras 13 e 14; cf. p.94: el sistema español implantado enAmerica Latina, a diferencia del Británico en América del Norte,fue relativamente flexible en lo que repecta a la integración de dife-rentes grupos étnicos a la sociedad colonial. Ello se refleja en que,desde los primeros tiempos, el colonizador Hispánico acostumbrótomar como servientes, concubinas, o esposas a integrantes de lapoblación indígena local.

23. “Mocambos, Quilombos e Palmares: a resistência escrava no Brasil co-lonial”, Estudos Econômicos, 17, 1987, pp.84-86.

24. E.g. Charles Ralph Boxer, The Dutch in Brazil, 1624-1654, Oxford,1973, p.140.

25. Joseph C. Miller apresenta, em seu Kings and Kinsmen, Early MbunduStates in Angola, Oxford, 1976, pp.160-260 et passim, um estudo deta-lhado das origens, características e transformações do ki-lombo. Suainserção no contexto local impossibilitaria sua “exportação” para a rea-lidade do mundo colonial americano, dominado pela escravidão coloni-al e pelos ameríndios, inexistentes em África.

26. A respeito do Kongo, ver John Thornton, “Early Kongo-PortugueseRelations: a New Interpretation”, History in Africa, 8, 1981, 183-202.

27. John Thornton, Africa and Africans in the Making of the AtlanticWorld, 1400-1680, Cambridge, 1992, p.206.

28. Cf. Jonathon Glassman, “The Bondsman’s New Clothes: theContradictory Consciousness of Slave Resistance on the Swahili Coast”,Journal of African History, 32, 1991, p.278 et passim.

29. Por exemplo, José Flávio Sombra Saraiva, “Silencio y ambivalencia: elmundo de los negros en Brasil”, América Negra, 6, 1993, p.46; EugeneD. Genovese, From Rebellion to Revolution. Afro-American SlaveRevolts in the Making of the Modern World, Baton Rouge, 1981,p.62.

30. Cf. Fernando A. Novais, “Brazil and the Old Colonial System”, in R.Graham (org), Brazil and the World System, Austin, 1991, pp.11-56.

31. No exterior, a mídia tem dado grande destaque ao trabalho; cf. DavidKeys, “South America’s lost African Kingdom”, The Independent,Oct.19th, 1993, p.23; Brian Fagan, “Brazil’s Little Angola”, Archaeology,July/August, 46, 1993, pp.14-19; Anver Versi, “The Lost Kingdom”, NesAfrican Life, December 1993, p.9; Entrevista de P.P.A. Funari à BritishBroadcast Corporatiom, 24/10/1993. No Brasil, diversos órgão de im-

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prensa tem publicado artigos, entre os quais, Ricardo Bonalume Neto,“O Pequeno Brasil de Palmares”, Folha de São Paulo, 4/6/95, 5-16;Pablo Pereira, “Arqueologia tenta desvendar vida em Palmares”, O Es-tado de São Paulo, 25/6/95, A28.

32. Devo agradecer a diversos colegas que, de diferentes modos, ajudaramna elaboração desse artigo, embora a responsabilidade pelas idéais sejasomente minha: Zezito de Araújo, José Proença Brochado, JonathonGlassman, Joseph Miller, Charles E. Orser Jr., Michael Rowlands e JohnThornton.

COMO SE TORNAR ARQUEÓLOGO NO BRASIL

INTRODUÇÃO

Para que se possa tratar da formação do arqueólogo, é neces-sário, antes, definir a identidade do arqueólogo. Em um contextomais amplo, pode afirmar-se que o estudo da Arqueologia variamuito, em diferentes tradições universitárias. Nos Estados Uni-dos, a maioria dos arqueólogos é constituída de antropólogos, jáque a Antropologia, normalmente, ali incorpora áreas como a Lin-güística e a Arqueologia. Isto significa uma formação básica emAntropologia, voltada para o estudo do outro, os antropólogosestudando os índios vivos e os arqueólogos os mortos. Nos pró-prios Estados Unidos, contudo, há também arqueólogos com ou-tras formações, como é o caso dos arqueólogos clássicos, que es-tudam as civilizações grega e romana, cujo estudo liga-se às le-tras clássicas, à História e à História da Arte, em medidas varia-das, segundo a tradição de cada instituição. Há, ainda, os arqueó-logos oriundos da orientalística (egiptólogos, assiriólogos), dosestudos bíblicos (a chamada “Arqueologia Bíblica”) ou das maisvariadas disciplinas, como a Biologia ou a Geologia (cf. Taylor1948: 11). A outra grande vertente produtora de arqueólogos, aescola européia, é ainda mais multifacetada. Em termos gerais, osarqueólogos europeus, pré-historiadores, classicistas ou medie-valistas formam-se na tradição histórico-filológica de origem ale-mã. Em alguns centros, a Arqueologia é parte da História da Arte,em outras relaciona-se à História ou às línguas, raramente fazemparte da Antropologia. Os britânicos foram os que levaram maisadiante a independência epistemológica da disciplina, criandodiversos cursos de graduação em Arqueologia, exceção tanto maisnotável quanto, tanto na Europa como nos Estados Unidos, costu-ma-se reservar-se à formação em Arqueologia o caráter de umaespecialização, após uma educação universitária mais genérica.

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A formação do arqueólogo no Brasil insere-se, pois, no con-texto mais amplo esboçado. Não há uma única tradição acadêmi-ca universal e tampouco, no Brasil, haveria que buscar uma uni-dade que alhures inexiste. Não se pode, entretanto, fazer um ba-lanço da formação do arqueólogo no país sem analisar, ainda quebrevemente, a História da disciplina em nosso meio e o ambienteacadêmico no qual ela se desenvolve (Funari 1997). A Arqueolo-gia acadêmica brasileira é recentíssima, o número de arqueólogosprofissionais reduzidíssimo e os centros de formação pouco nu-merosos. Além de descrever as vicissitudes da formação de ar-queólogos no Brasil, hoje, pretende-se contribuir para a discussãodo seu aprimoramento, visando inserir a Arqueologia brasileirano âmbito mais amplo da Arqueologia mundial.

A ARQUEOLOGIA NO QUADRO DA ACADEMIA BRASILEIRA

A sociedade brasileira, patriarcal, dominada por uma estru-tura social hierárquica secular, produziu muito tardiamente a uni-versidade, séculos depois das primeiras congêneres hispano-ame-ricanas. A universidade brasileira, desenvolvendo-se a partir dadécada de 1930, viria a ter algumas características estruturais,derivadas do próprio caráter restritivo à liberdade intelectual dasociedade nacional, ainda presentes entre nós. Florestan Fernandes,um dos nossos primeiros acadêmicos, advertia, antes do golpemilitar de 1964, que “o intelectual se torna, literalmente, um es-cravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre o risco de sofrerpressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual”(Fernades1975: 85). Segundo outro decano da ciência nacional,Milton Santos, “buscar o novo é perigoso”, resultado da falta devalorização do mérito intelectual propriamente dito:

“Eu acho que o meio intelectual no Brasil é, até certo ponto, opaco,no sentido de que a vida acadêmica não se caracteriza pela exis-tência de um mercado acadêmico. As pessoas nascem, crescem,evoluem e morrem no mesmo universo. Então, a idéia de compe-tição se compromete e o sistema de referências é igualmente do-méstico. É muito autocentrado e funciona, com freqüência, emdetrimento de uma emulação mais ampla” (Santos 1998: 6).

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O compadrio, generalizado, chega aos editoriais dos jornais(Folha de São Paulo 1997a), levando a que as pesquisas confir-mem o discurso do poder, tanto das autoridades políticas comoacadêmicas, perpetuando, de forma acrítica, aquilo que PierreBourdieu (1988: 777) chama da senso comum acadêmico. Predo-mina um sistema universitário dominado por um mandarinatoautocrático e medíocre, a busca desenfreada pelo micropoder doscargos por parte daqueles que nada sabem, como se expressavaTheo Santiago (1990). A palavra corporação aparece em quasetodas as análises críticas da academia brasileira (e.g. Comparato1993; Miceli 1995: 3) e criam-se neologismos para descrever essarealidade: “os buroprofessores, quer dizer, aqueles indivíduos que,sai um, entra outro, mas é o mesmo grupo, que são pessoas inúteisporque esses pró-reitores, quase todos, são pessoas inúteis, umestorvo à produção intelectual” (Milton Santos 1999: 25). Adissociação entre progressão na carreira e a competência, que in-clui titulação, mas não se limita a ela (Goldemberg 1992), com-põe um quadro pouco alentador de uma época “hostil à crítica eao dissenso” (Barros e Silva 1997). Neste contexto, quando maisda metade das bolsas concedidas pelo CNPq não resultam emdefesas de tese, não há surpresa (Folha de São Paulo 1997b).

A academia brasileira padece, portanto, de deficiências es-truturais, de origem histórica clara. Um sistema universitário sur-gido no seio de uma sociedade tão hierarquizadora e infensa àliberdade de oportunidades não poderia deixar de refletir essascaracterísticas dominantes (Funari 1997a, com literatura). Duranteo período de jugo militar, em particular, os aspectos mais deleté-rios de uma academia servil ao poder produziram resultados queainda nos atormentam. O compadrio, associado a um poder dis-cricionário, pôde levar o controle discursivo ao paroxismo, insti-tuindo, em algumas áreas, uma limitação severa ao desenvolvi-mento da ciência. Com a abertura e, em especial, com orestabelecimento dos civis ao poder, a liberdade acadêmicarediviva logo começou a produzir reflexões críticas e menos aco-modadas (Batista 1997).

Este pano de fundo permite, agora, refletir sobre o desenvol-vimento da Arqueologia, em nosso meio. A Arqueologia pré-aca-

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dêmica tem longa trajetória no Brasil, desde seus primórdios noInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no século passado.Contudo, apenas no pós-Segunda Guerra ensaia-se o início daArqueologia acadêmica, graças às iniciativas de Paulo Duarte,fundador da Universidade de São Paulo, político, intelectual ehumanista, sob cuja égide surge a Comissão de Pré-História quese transformaria no Instituto de Pré-História, à imitação do IPHde Paris. Assim, ab initio, a Arqueologia começa a penetrar o es-paço universitário como atividade de pós-graduação, ao menosno sentido de que se trataria de atividade a ser desenvolvida pelopesquisador após sua formação universitária, em área, de algummodo, ligada à Arqueologia. Nesse primeiro momento, com achegada dos franceses, com Madame Emperaire à frente,enfatizavam-se as técnicas de campo e laboratório, como se aArqueologia fosse pouco mais do que uma tekhné, à maneira fran-cesa, muito distante, pois, das Wissenschaften que compunham osaber (Wissen) acadêmico. Um primeira conseqüência dessa for-mação inicial foi a dissociação entre pesquisa empírica e inter-pretação. Assim, ainda que bem intencionada, a Arqueologiahumanista ressentia-se da falta de ambições epistemológicas quelhe dessem espessura acadêmica no interior tanto da universidadebrasileira como, principalmente, internacional.

Estes primeiros arqueólogos acadêmicos formados no Bra-sil foram logo acompanhados por uma nova leva, resultado daincursão, pós-golpe militar de 1964, de Betty Meggers e CliffordEvans e a constituição de um programa nacional de pesquisas ar-queológicas (PRONAPA). Não seria o caso, nesta ocasião, de re-tomar as discussões sobre o imbricamento do esquema pronapianocom o regime de força (cf. Funari 1995; Funari 1998), mas deressaltar o tipo de formação arqueológica que estava sendo intro-duzido no país1. Os clássicos da literatura arqueológica norte-americana não eram conhecidos, assim como os desenvolvimen-tos mais recentes. Walter W. Taylor (1948: 44) e sua busca daautonomia da Arqueologia havia sido ignorado, como tinha sidoo apelo, então recente, de Binford (1962), em direção a uma Ar-queologia processual. Prevalecia, na formação desses arqueólo-gos, a constatação devastadora de Binford (1984: 15) de que o

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“arqueólogo de campo escavador fica a discutir o teor alcoólicoda pinga nos bares das redondezas” (cf. Funari 1987), o que foiinterpretado pelos seus epígonos como treinamento orgânico,fomentador de centros de pesquisa, um período de ouro da Arque-ologia nacional (e.g. Schmitz 1989: 47; Dias 1995: 35; Lima 1998:25)2. A formação intelectual propugnada pela equipe de Meggersnão bebia do imenso manancial americano3, que poderia ter aber-to os horizontes daqueles que seriam considerados, às expensasdos arqueólogos formados pelos franceses, os fundadores da Ar-queologia universitária nacional. Os resultados dessa formaçãoforam muitos, da falta de autocrítica (Prous 1994:11) à despreo-cupação com publicações (Neves 1998: 628)4, da ausência decorpora (cf. Wheeler 1956: 211)5 à execução de levantamentosoportunísticos e escavações injustificadas, sem planejamento (Ne-ves 1988: 204).

Uma terceira vertente arqueológica surgia, àquela época. AArqueologia clássica, surgida por iniciativa do Professor EurípidesSimões de Paula (Duarte 1994: 163-4), diretor da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, noquadro de um plano mais amplo de expansão da Faculdade, emgeral, e das línguas clássicas em particular. De início encaradacomo mera “ciência auxiliar da História, longe, bem longe de serum fim um si mesmo”, parte da História da Arte (Meneses 1965:22), a Arqueologia Clássica assumiu uma importância insuspeitadade início. A inserção da Arqueologia Clássica brasileira na ciên-cia universal significou uma formação intelectual abrangente. Aformação de quadros nesse campo da Arqueologia permitiu que,pela primeira vez, arqueólogos brasileiros dirigissem projetos depesquisa internacionais, publicassem livros e artigos no exterior,dando uma visibilidade internacional à Arqueologia brasileira (cf.Funari 1997). A formação menos restrita desses arqueólogos aca-bou por resultar em que a própria Arqueologia de temas america-nos fosse desenvolvida por arqueólogos de formação clássica, cujomelhor exemplo, ao menos em termos de divulgação científica daArqueologia, talvez seja o volume de Norberto Luiz Guarinello(1994), o livro mais vendido sobre Arqueologia Pré-Histórica, emtoda a História (cf. Funari 1996; Faversani 1997).

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Após essa fase inicial, que abrange o período dos anos 1950e 1960, a Arqueologia brasileira insere-se na reforma universitá-ria implantada pelos militares. A pós-graduação brasileira passoua seguir o sistema americano, com mestrados e doutorados e aformação em Arqueologia continuou a ser um especialização pos-terior à graduação, com a exceção do curso, nunca reconhecidopelo MEC, na Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Os arqueólogosque surgiram nas três vertentes apontadas, acrescidos de algunsestudiosos estrangeiros, como André Prous e Gabriela Martín,constituíram os quadros que estabeleceriam a formação em Ar-queologia nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto nas CiênciasHumanas, em geral, buscava-se uma formação intelectual menosdescritiva e mais crítico-analítica (Janotti & Mesgravis 1980: 9),a Arqueologia empirista, único discurso associado ao poder, im-punha, por mecanismos hierárquicos comuns às sociedades patri-arcais (cf. Collis 1997: 11), mas aqui levados ao paroxismo peloregime de arbítrio, uma formação infensa a leituras interpretativas.Sempre houve quem lesse, quem buscasse sair desse marasmo,mas só podia fazê-lo por sua conta e risco (Noelli 1999). Não sepode subestimar o sufocamento das vocações, pois as hierarquiaspermitiam que se expulsassem da universidade aqueles que nãose conformassem, como ocorreu com o notável caso de WalterNeves e Solange Caldarelli (reportado em Prous 1994: 12; e emFunari 1999), nem a institucionalização de uma hierarquia infensaao mérito facilitou a formação de novos arqueólogos6. Na maioriados casos, bastava algo muito mais insidioso, a internalização dasubmissão, pois se sabia que “à volta de um grande e frondosocarvalho, nada cresce”, nas palavras de Norberto Luiz Guarinello(1999), a respeito de um dos mandarins da Arqueologia. Não sebuscou criar massa crítica, formando novos estudiosos, o que ex-plica, em parte, que muitos dos pais fundadores pronapianos te-nham tido tão poucos alunos, sendo que, ainda hoje, “na maioriadas instituições brasileiras há um processo de sufocamento denovas vocações”, nas palavras de Francisco Noelli (1999)7.

As duas últimas décadas testemunharam transformações ra-dicais em um quadro que parecia pouco promissor para a Arque-ologia brasileira. Warwick Bray (1994: 6), quando discursou ao

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assumir a cátedra de Arqueologia Americana no Instituto de Ar-queologia de Londres, ressaltou que os melhores resultados aca-dêmicos derivam do incentivo à variedade de linhas de pesquisa eà não aceitação do discurso da autoridade do intelectual sem obrae, no caso brasileiro, a multiplicidade resultante da democracia sóteve resultados positivos (Lafer 1996: 9)8. Os centros de forma-ção de arqueólogos multiplicaram-se pelo país, entendendo-seformação em seu sentido pleno, como Bildung. De fato, o empi-rismo que esteve subjacente à primeira leva de arqueólogos aca-dêmicos fez com que se igualasse Arqueologia e escavação. En-tenda-se escavação no sentido de trabalho de campo, não todo oprocesso que começa com um problema, que se desenvolve emum projeto de intervenção no campo, que gera artefatos a seremestudados, que implica em publicações, que, enfim, produz co-nhecimento. Este sentido de escavação, como parte de um pro-cesso de conhecimento (Welterkentniss), não pode prescindir deaspirações interpretativas. Por outro lado, como ressaltaram, re-centemente, dois grandes arqueólogos da atualidade, MichaelShanks e Randal McGuire (1996: 79), Gordon Willey e V. GordonChilde, dois dos mais influentes arqueólogos de todos os tempos,rarissimamente escavaram, o que está a demonstrar que a forma-ção do arqueólogo não pode descuidar da reflexão.

Já se disse que os arqueólogos são pouco numerosos no Bra-sil, talvez trezentos, para uma país de dimensões continentais, depopulação elevada, com centenas de milhares de estudantes uni-versitários. Isto se explica, em parte, pelo fato de a Arqueologianão ser um curso oferecido na graduação, com uma única exce-ção. O graduação em Arqueologia oferece as vantagens de umaespecialização precoce mas pode ser uma armadilha, caso o cursonão esteja bem articulado a áreas de conhecimento afins, em par-ticular a História, a Antropologia, mas também a Geografia, aBiologia ou, até mesmo, a Literatura, a Fotografia (e.g. Olivier1999a), o Jornalismo (e.g. Cotter 1999: 8), para mencionar ape-nas algumas. Os bons cursos de graduação em Arqueologia noexterior não deixam de inserir-se nas ciências afins e o mesmoprincípio é válido para o Brasil. Em geral, no entanto, a formaçãodo arqueólogo dá-se na pós-graduação. Neste caso, há duas gran-des vertentes, a majoritária inclui a Arqueologia em um curso de

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História, de Antropologia ou de outra ciência. Na tradição euro-péia, predomina a ligação com a História, em direta ligação coma herança de Childe (cf. Trigger 1984: 295; Funari 1997c)9. Destaforma, o arqueólogo, seguindo a tradição dominante, tanto naEuropa como nos Estados Unidos, toma contato com uma pletorade áreas, já que a própria Arqueologia é multidisciplinar (Ucko1994: xiv). A outra vertente, minoritária, forma arqueólogos emprograma de pós-graduação próprio.

Os programas de pós-graduação majoritários, que acolhema formação em Arqueologia, permitem que os arqueólogos to-mem contato direto com a epistemologia de uma outra ciência, oque pode revelar-se muito produtivo. Há, naturalmente, duas de-ficiências estruturais: uma tendência a incorporar a Arqueologiacomo ciência auxiliar de outra, o que lhe tira a especificidade, e afalta de um estudo mais direcionado para a variedade de áreascom as quais a Arqueologia se relaciona (Funari 1998). Assim,corre-se o risco de termos arqueólogos que nunca deixaram deserem geólogos ou historiadores, risco tanto maior quanto, àsvezes, as únicas leituras e práticas do educando se restringiram,desde a graduação, àquela área de estudo. Perde-se, assim, a ne-cessária consciência de que a Arqueologia é, em sua essência,multidisciplinar (Silva e Noelli 1996). A pós-graduação em Ar-queologia, por sua parte, possui a virtude de apresentar um pro-grama coerente de disciplinas voltadas para essa área. No entan-to, uma deficiência estrutural consiste na falta de ênfase no cará-ter multidisciplinar da Arqueologia, pois esse seu aspecto deveriaimplicar em um currículo que enfatizasse o conhecimento, emprimeira mão, das grandes teorias sobre o funcionamento e a trans-formação das sociedades, das formas de expressão, mas tambémdo mundo físico e biológico. Na verdade, a própria comparti-mentação do conhecimento divide, de forma burocrática, unida-des de conhecimento (McGuire 1992: 4) e poder-se-ia propugnar,como se tem feito, que o estudo da cultura material – outro nomepara a Arqueologia - seja, eo ipso, multidisciplinar (Miller e Tilley1996; e.g. Noelli 1996a; 1996b).

Os educandos não são vasos vazios a serem preenchidos comdados, mas como pensadores e agentes sociais (Shor 1986: 422)

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devem ser capazes de decifrar o mundo à sua volta (Tragtemberg1985: 43) e, a fortiori, na Universidade deve-se, mais do estudar,estudar para aprender a estudar, nas palavras de Antonio Gramsci(1979: 154). Como disse, recentemente, o veterano arqueólogonorte-americano, John L Cotter (1999: 39), “os fatos qualquer umpode adquirir e aprendi que as pessoas podem ter acesso aos fatoselas mesmas, caso se interessarem o suficiente. O que se deveriafazer é tentar ajudá-las a organizar sua própria conceituação dosdados e o que farão com suas próprias vidas e carreiras, bem comoabrir novas vias de pensamento”. Há pouco, Michael Shanks(1997: 395) propunha sete objetivos para a formação dos estudio-sos da Arqueologia e vale a pena transcrevê-los na íntegra:

“a) enfatizar a importância das ligações interdisciplinares; b)construção e debate teóricos, acompanhados de um compromis-so com a prática arqueológica; c) um interesse no caráter peculiardas fontes arqueológicas; d) um interesse em algumas questõesmais amplas da teoria social; e) pragmatismo e ecletismo maisvalorizado do que uma suposta pureza teórica e ideológica; f) umaceitação do pluralismo; g) um forte senso de criatividade da ati-vidade arqueológica”.

As implicações de cada um desses itens para os nossos cur-sos de pós-graduação são claras e diretas. Os cursos devem incen-tivar a interdisciplinaridade, oferecendo um currículo que abran-ja disciplinas ligadas às diversas disciplinas formais. Os créditosobtidos no interior do curso devem ser complementados com boaporcentagem de créditos externos. Não se pode dissociar a práticaarqueológica da formação teórica, pelo que a prática de campo oude laboratório nunca deveria preceder a formação mais abrangente.Os debates teóricos abrangem tanto as correntes da Arqueologia,do antiquarianismo ao pós-processualismo, passando pelos mo-delos histórico-culturiais e processual, esquemas de interpretaçãosempre ligados a momentos históricos específicos10. No que serefere à Arqueologia, a História da disciplina (Funari e Podgorny1998: 420), no mundo e no Brasil, assim como das correntesinterpretativas, deve estar no centro da preocupação (cf. Trigger1990: 4 et passim). A especificidade das fontes materiais está aexigir um estudo próprio que, no entanto, não pode deixar de lado

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as reflexões de diversas ciências sobre o mundo material, daSemiótica11 à Física (cf. Funari 1999b). A teoria social12, entendi-da como o imenso universo de reflexões da Sociologia, Antropo-logia, História, Filosofia e Lingüística, encontra-se no âmagomesmo da Arqueologia, ciência que estuda, afinal, a sociedade.Não se chega a compreender que estudiosos da sociedade nuncatenham lido Levi Strauss, Weber, Durkheim, Braudel, Foucaultou Saussure, para citar alguns pensadores apenas.

Pragmatismo e ecletismo, palavras tão temidas entre aque-les que encaram a ciência como profissão de fé e formação deséquitos de cartilhas, constam, com destaque, na lista de Shanks.A ciência não se confunde com a religião, nem, menos ainda, como partido político e, por isso mesmo, os cursos e suas linhas depesquisa mais do que homogêneos, “coerentes” e uniformes, de-vem abranger um grande espectro de concepções (Funari 1999c).No caso da Arqueologia, pragmatismo e ecletismo implicam, tam-bém, adotar terminologias vigentes, já que estão em uso, semreificá-las, como se refletissem alguma realidade inefável, reco-nhecendo as críticas e limites dos rótulos classificatórios. Purezaideológica não condiz com ciência. O pluralismo parte da aceita-ção da diversidade de práticas e teorias (cf. Neves 1991; Funari1992), de campos de investigação e especialização, de vocações(Funari 1996b). A criatividade do educando expressa-se, assim,em sua capacidade de criar sua própria trajetória intelectual, peloque a formação não é um aprendizado ou adestramento(Unterrichtung), mas uma verdadeira educação (Erziehung), de-senvolvimento de uma capacidade interior de reflexão e ação crí-ticas (cf. Funari 1996). Esse abrangente programa, proposto porShanks, insere-se na sua constatação anterior de que a Arqueolo-gia , além do estudo do antigo (este o sentido primevo da pala-vra), deve ser, também, o estudo do poder, recuperando o sentidooriginal da palavra arkhé, em grego (Shanks e Tilley 1987; cf.Funari 1990).

Tornar-se arqueólogo no Brasil possui, no entanto, particu-laridades que não foram mencionadas nos sete pontos tratadospor Shanks. As especificidades da vida universitária em nosso

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meio, já acenadas, bem como a conturbada História recente dopaís e da Arqueologia, em especial, fazem com que haja aspectosainda a serem discutidos. Talvez tudo se possa resumir àconstatação de Ovídio (Heroid. 2, 85), que exitus acta probat,transformado na quintessência do mundo anglo-saxão: the proofof the pudding is in the eating13. Aqui, cabe uma digressão. Emum mundo social e acadêmico tão caracterizado pelas relaçõeshierárquicas e tão infenso ao mérito, como é o nosso, todo tipo dedistorção é possível. Já se mencionou, alhures, que o poder buro-crático se concentra nas mãos dos que menos publicam (cf. San-tos 1999b, em nota), que, em nossa universidade, é possível obtertítulos acadêmicos “por decreto”, em triste herança dos temposda cátedra. Neste contexto, torna-se compreensível a referência àprova dos fatos. Tornar-se arqueólogo, neste artigo, significa tor-nar-se arqueólogo de verdade, no sentido forte da palavra, acadê-mico, não poderoso, brilhante, admirado e temido, por falar (epouco publicar) ex auctoritate. Em outras palavras, tornar-se umacadêmico requer desligar-se do poder paroquial e inserir-se naciência universal. Para tanto, o primeiro requisito é instrumen-talizar-se lingüisticamente, em particular dominando a língua fran-ca hodierna, o inglês14. Alguns propugnariam que, devido aos ví-cios, ao compadrio e ao paroquialismo local, melhor seria enviaros interessados a estudar no exterior e apresentam como argu-mento exemplos de jovens PhDs cuja obra científica notabilizou-se desde cedo. De fato, não faltam exemplos de arqueólogos nestasituação, mas há que se considerar, em primeiro lugar, que nemtodos aqueles que obtiveram título no exterior se notabilizarampor publicarem e formarem pesquisadores, quando voltaram aoBrasil, quando mais não fosse porque o sistema burocrático nãoincentivava que o fizessem (cf. exemplos em Funari 1997b). Nãose trata, pois, de obter um título no exterior, algo não tão difícil,mas ser capaz de produzir e interagir com a ciência universal eisto poucos que foram ao exterior o fizeram.

Em segundo lugar, titular-se no Brasil não exclui a preocu-pação em atuar na ciência internacional, como diversos exemplosem nosso meio arqueológico estão a demonstrar. Ademais, a solu-ção dos títulos obtidos no exterior, estratégia ainda adotada em

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diversos países, que mandam seus melhores arqueólogos paracursarem a pós fora do país, não pode abranger um grande núme-ro de estudiosos, o que dificulta a formação de massa crítica, in-dispensável para que a ciência, de nível internacional, possa serproduzida em nosso próprio meio. Como quer que seja, objetivoprimeiro dos cursos de pós-gradudação que formarão arqueólo-gos só pode ser inserir seus quadros profissionais e seus alunos naciência universal, utilizando-se, entre outros recursos, das cha-madas bolsas sanduíche (estágios de alguns meses no exterior),dos convênios de cooperação internacional, do patrocínio da vin-da de professores estrangeiros. Neste sentido, a Arqueologia na-cional avançou de forma significativa, pois não poucos arqueólo-gos estrangeiros têm estado em nosso país, ensinando graças aoapoio de órgãos brasileiros, como o CNPq e a FAPESP15 e órgãosinternacionais. Muitos jovens arqueólogos têm tido a oportunida-de de estagiar no exterior e a inserção da Arqueologia brasileirano contexto internacional, em poucos anos, aumentou significati-vamente16.

Após esta longa digressão, pode voltar-se à quintessênciaanglo-saxônica: the proof of the pudding is in the eating. Tornar-se arqueólogo, como, de resto, tornar-se um verdadeiro intelectu-al, em geral, depende da consciência de que nada substitui o co-nhecimento e que este não se confunde com poder burocrático.Os cursos de formação de arqueólogos, cada vez mais, têm tidoque se adequar aos critérios de mérito, universais, como é o casoda publicação das pesquisas, seu debate nas revistas arbitradasestrangeiras. Exemplos na Arqueologia brasileira não faltam. Tor-nar-se arqueólogo também implica reconhecer que esta ciênciatem sido reacionária, cultuando explicitamente as elites, explo-rando, muitas vezes, as maiorias e minorias oprimidas em benefí-cio nada científico e puramente monetário, como é o caso, emmuitas ocasiões, de bem pagas atividades de campo financiadaspor grandes empresas17. Contudo, não há pesquisa, nem mesmopré-histórica, que esteja fora dos interesses da sociedade (Veit1989: 50) e a Arqueologia pode ser profundamente humanista(Heckenberger, Neves e Peterson 1998: 83), particularmente re-levante para uma sociedade multicultural (Giuliani 1995: 91),sempre que atue com o povo (McGuire 1994: 830). O engajamento

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do intelectual não lhe subtrai qualquer conhecimento, como aler-ta Pierre Bourdieu (1989: 59; cf. Meyer 1990: 135-6), ao contrá-rio, pois “conhecer” é “saber com” os outros18. Tornar-se arqueó-logo inclui, assim, saber que não há trabalho arqueológico quenão implique em patrimônio e em socialização do patrimônio edo conhecimento (Tamanini 1998). Tornar-se arqueólogo consis-te em saber que qualquer escavação deve tornar-se uma publica-ção, acessível à comunidade científica. Significa saber que os ar-tefatos não podem ficar abarrotando os depósitos, inéditos. Paratanto, em diversos países, há regulamentos públicos que apenaspermitem que os arqueólogos desenvolvam novos projetos se pu-blicarem, tanto o relato da escavação, quanto o material arqueo-lógico recolhido. Tornar-se arqueólogo implica em considerar quea patrimonialização dos objetos faz parte integrante do ofício ar-queológico19. Neste sentido, a formação do arqueólogo, em nossomeio, ainda é muito deficitária, pois pouca atenção se tem dado,em termos estruturais, a esses aspectos, considerados, às vezes,estranhos à própria disciplina, enquanto, mundo afora, a Arqueo-logia pública se encontra em expansão e a Arqueologia e a Educa-ção não são mais dissociáveis (cf. Funari 1994; Funari 1996, am-bos com extensa literatura).

Tornar-se arqueólogo no Brasil hoje, portanto, apresenta di-versos caminhos possíveis (QUADRO). Para o jovem iniciante,as perspectivas são muito variadas, de acordo com as escolhasque venha a efetuar. Tornar-se arqueólogo acadêmico, objeto pri-meiro deste artigo, não promete uma remuneração fabulosa, masoferece oportunidades excepcionais para refletir sobre a socieda-de, para agir com a comunidade em prol tanto da preservação dopassado como para a transformação do presente (e.g. Tomazela1999). Permite que se intervenha na Educação, fazendo com quemilhões de brasileiros tenham um contato mais profundo e menosparcial com sua própria História. Incentiva os futuros arqueólo-gos a integrarem-se à ciência mundial, tornando seus contatos como exterior uma experiência dinâmica. Assim, apesar dos percal-ços e das dificuldades, pode concluir-se que, em aceitando os seusdesafios, tornar-se arqueólogo acadêmico, no Brasil, abre hori-zontes e oferece oportunidades únicas.

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Quadro

COMO TORNAR-SE ARQUEÓLOGO PROFISSIONAL NOBRASIL EM 1999

I. PRÉ-UNIVERSITÁRIO:

1.VOLUNTARIADO EM PROJETOS DE PESQUISA

2. VOLUNTARIADO EM MUSEUS E OUTRAS INSTITUI-ÇÕES

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: DESPERTAR OGOSTO PELO ESTUDO DA CULTURA MATERIAL,MAS POSSIBILIDADE DE SE DECEPCIONAR PORDEFICIÊNCIA NA FORMAÇÃO ACADÊMICA

II. UNIVERSITÁRIO:

1. GRADUAÇÃO:

A. EM ARQUEOLOGIA (CURSO NÃO RECONHECIDOPELO MEC)

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZA-ÇÃO PRECOCE, POUCO CONTATO COM ÁREASAFINS

B. EM DISCIPLINA UNIVERSITÁRIA RELACIONADA(HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, BIOLOGIA, SOCIO-LOGIA, GEOGRAFIA, LETRAS, ENTRE OUTRAS)

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COMÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALI-ZAÇÃO MAIS TARDIA

2. PÓS-GRADUAÇÃO:

A. EM ARQUEOLOGIA

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: ESPECIALIZA-ÇÃO, MENOR ÊNFASE NAS CIÊNCIAS AFINS

B. EM PROGRAMA DE ÁREA RELACIONADA

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: CONTATO COMÁREAS RELEVANTES DA CIÊNCIA, ESPECIALI-ZAÇÃO MAIS TARDIA

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III. PERSPECTIVAS PROFISSIONAIS:

1. NA ACADEMIA

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: PRODUÇÃO DECONHECIMENTO, POSSIBILIDADE DE DESENVOL-VIMENTO DE PROJETOS DE ÂMBITO INTERNACI-ONAL, MAS OS SALÁRIOS NÃO SÃO ELEVADOS

2. EM MUSEUS, INSTITUIÇÕES PATRIMÔNIO E OUTRAS

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: IMPORTÂNCIASOCIAL DA ATIVIDADE DO ARQUEÓLOGO, MASPOUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DE CONHECI-MENTO E BAIXOS SALÁRIOS

3. NA CONSULTORIA (ARQUEOLOGIA DE CONTRATO)

- VANTAGENS E DESVANTAGENS: RENDA ELEVA-DA, MAS POUCO INCENTIVO À PRODUÇÃO DECONHECIMENTO E RESTRIÇÕES À CRÍTICA SO-CIAL

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos seguintes colegas: Warwick Bray, Adriana Schimdt Dias,Fábio Faversani, Norberto Luiz Guarinello, Siân Jones, Alexandros-PhaidonLagopoulos, Randall McGuire, Daniel Miller, Walter Alves Neves, Fran-cisco Noelli, Nanci Vieira Oliveira, Laurent Olivier, André Prous, MichaelShanks, Elizabete Tamanini, Cristopher Tilley, Bruce G. Trigger. A respon-sabilidade pelas idéias, naturalmente, restringe-se ao autor.

NOTAS

1 Recentemente, Cristiana Barreto (1999) considerou “falsa qualquer tenta-tiva de caracterizar uma politização da disciplina para este período comoo faz Funari (1992b)”. A cassação de Paulo Duarte e seu afastamento dadireção do Instituto de Pré-História, em 1969, as sucessivas reuniões deBetty Meggers e Clifford Evans e as autoridades políticas, não só acadê-micas, impostos pela ditadura, o apoio oficial de órgãos do Estado, comoo CNPq, a ascenção acadêmica, com destaque na Arqueologia, de perso-nagens cuja vinculação com altos hierarcas do regime militar era explíci-

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ta, até mesmo por laços matrimoniais, monstram que não houve politizaçãoda disciplina, mas uma explícita relação, em nada científica, entre arque-ólogos e o poder político discricionário. Neste sentido, não se pode en-tender o uso de um adjetivo como “falsa” senão como uma tentativa deimpor, apenas com recursos discursivos apodíticos, um ponto de vistaque serve para “livrar a cara” daqueles que estiveram profundamenteenvolvidos com o arbítrio. Sobre o poder do esprit de corps de intelectu-ais que participaram de regimes de força, veja-se o caso de Vichy, estuda-do por Sonia Combe (1996), em diversos aspectos similar à situação bra-sileira. Suas palavras conclusivas merecem ser citadas, referindo-se aosintelectuais: unless they are careful, run the risk of letting themselves beguided by ‘functional imperatives serving both the production of consensusand social integration’. This was Jürgen Habermas’ warning warning toGerman historians. He was a non-historian, as his opponents never stoppedemphasizing, whose vigilance had launched the Historikerstreit and who,on that occasion, was surprised to discover among scientists the attitudesof ‘political men engaged in conflict’ (Habermas 1988: 57).

2 Cf. Schmitz (1989: 47): “Faz pouco mais de vinte anos que a Arqueologiabrasileira começou a receber verbas públicas e a desenvolver ambiciososprogramas exploratórios, acompanhados de um treinamento mais orgâni-co do pessoal”; Dias (1995: 35): “A implantação do Programa represen-tou um salto quantitativo e qualitativo para a Arqueologia Brasileira. Suaimplementação possibilitou que, em apenas cinco anos, fossem levanta-dos mais de 1500 novos sítios arqueológicos, enquadrados em um mode-lo cronológico e espacial de que carecia a Pré-História brasileira... OPronapa também foi responsável por fomentar a multiplicação de centrosde pesquisa arqueológica no país, que passaram a formar um númerocada vez maior de pesquisadores qualificados”; compare-se com Lewgoy(1997: 248), Noelli (1999), neste artigo. Diversos arqueólogos engajaram-se no discurso do poder, saudando o regime militar e seudesenvolvimentismo; cf. (Meneses 1968: 43) “a importância que se vematribuindo (sc. nos anos imediatamente anteriores a 1968) à Universida-de como fator de desenvolvimento”.

3 Cf. Lewgoy (1997: 248): “Pelos depoimentos de nossos informantes, per-cebemos que os ensinamentos passados pelos representantes doSmithsonian resumiram-se a técnicas de coleta e interpretação de dados,tendo sido desprezados deste intercâmbio a oferta global de orientaçõesteórico-metodológicas, bem como o espectro de problemáticas de pes-quisa disponíveis nos Estados Unidos à época”.

4 Neves (1998: 628): no excavation profiles, or the actual artefact compositionof each leve are presented. One has to wait the full publication of the

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Pronapaba reports“. Note-se que as pesquisas na Amazônia, referidas porNeves, estão completando trinta anos!

5 A importância da compilação de corpora era já bastante conhecida na Ar-queologia européia, como ressalta Wheeler (1956: 211): The advantagesof a scholarly corpus or yardstick need no further emphasis and theextension of the corpus-system is certainly no less urgent now than it wasin Petrie’s day. Haiganuch Sarian, há anos, tem propugnado a necessida-de de se publicarem corpora também para o material arqueológico pré-histórico brasileiro (sobre o papel de Sarian na formação de arqueólogosbrasileiros, cf. Funari 1997b).

6 Prous (1994: 20) descreve a Sociedade de Arqueologia Brasileira compalavras fortes: SAB, dont la structure hiérarchisée a permis de contrôlerles destinées de l’archéologie du pays. Um tal domínio não se entendereifora do contexto de uma sociedade hierarquizada, sob jugo de uma dita-dura; cf. Pereira (1998: 64).

7 Cf. Neves (1988: 209): “É evidente que, nesse caso, os centros de forma-ção domésticos acabam funcionando justamente ao contrário, ou seja,acabam funcionando como um instrumento vil de perpetuação do mode-lo epistemológico hoje vigente na Arqueologia brasileira”; sobre os limi-tes da liberdade acadêmica no Brasil, em geral, consulte-se Funari (1999a;1999b); cf. Funari 1988c.

8 Cf. Milton Santos (1999): “A institucionalização crescente da vida univer-sitária acaba por forjar uma teia, cada dia mais sólida e visível, em que otrabalho rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam subserviên-cias no baixo e médio clero, editando medidas ditas saneadoras da admi-nistração e das finanças, cujo resultado final é a limitação à liberdade dopensar e do dizer, enquanto, espertamente, autoridades superiores, cadavez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas comas finalidades da educação, inundam o mercado com discursos eloqüen-tes, mas vazios”.

9 Cf. Wolfram (1986: 9): Der Begriff ‘historierende’ Archäologie zurBeziechnung der Archäologue jener Jarhzehnte (1920 bis 1968) wurdegewählte, da V. G. Childe unde seine Generation die Ansicht vertraten,die Archäologie sei Teil der Geschichtswissenschaften um Ihr Ziel dieInterpretation bzw. Rekonstruktion einzelner Ereignisse in derVergangenheit.

10 Cf. Erich Fromm (1969: 15): Ideas have their roots in the real life ofsociety.

11 Um exemplo bastará: a Arqueologia espacial, iniciada, com este nome, nadécada de 1960 e hoje travestida de Arqueologia da paisagem muito tema interagir com a Semiótica do espaço (cf. Lagopoulos 1998).

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12 Entenda-se teoria, à maneira dos gregos, em seu sentido amplo, engloban-do tanto grandes quadros interpretativos, como mais prosaicas explica-ções, como as middle range theories; cf. crítica a estas últimas, em Wehler(1979a:17): Jedermann wird vermutlich der Meinung beipflichten können,dass das Wort ‘Theorie’ in den letzten Jahren eine inflationäre Aufblähungerlebt hat. Nicht selten ist es an die Stelle von ‘plausibler Interpretation’getreten, hat manchmal sogar nur ‘These’ gemeint oder genau dasbezeichnet, was bei Droysen eine mehr oder minder gute ‘Fragestellung’geheissen hätte.

13 Cf. Wehler (1979b: 60): Das in der historischen Erzählung wenigstenszum Teil miteingebaute Erklärungsangebot finde ich im Vergleich mitexpliziter, diskussionsfähiger historischer Theoriebildung wit unterlegen.In der Tat: the proof of the pie is in the eating.

14 Cf. Olivier (1999a): En ce qui me concerne, j’utilize l’Anglais comme‘lingua franca’ qu’elle est désormais; o jornal da ADUSP, em seu númerode julho de 1998, p. 56, reproduziu uma sintomática notícia da Nature (9/4/98), que seria bastante pertinente ao caso brasileiro e que, por isso,merece ser transcrita: “Novo sistema de avaliação reduz o poder dos ‘ba-rões da ciência’ na Itália. O novo sistema intituído na Itália tem privilegiadoa qualidade dos projetos e reduziu bastante a pulverização de recursosque gerava uma distribuição ampla e, conseqüentemente, escassa de re-cursos por grupo de pesquisa. Alguns nomes bem conhecidos não conse-guiram, pela primeira vez, renovar seus auxílios por falta de mérito cien-tífico. Os pedidos de auxílio devem ser apresentados tanto em inglês comoem italiano, de maneira a permitir a participação de consultores exter-nos” (grifo acrescentado).

15 Um bom exemplo, recente e entre outros, refere-se à vinda de Siân Jones,com apoio da FAPESP e da British Academy, tendo ensinado na pós-graduação da UNICAMP, cujos alunos puderam tomar contato com obrassuas inéditas, como seu livro, publicado em 1997, ano em que esteveaqui. Desta forma, pôde discutir-se uma obra cujas qualidades fariamcom que fosse, em menos de dois anos, resenhada nas principais revistasinternacionais e brasileiras.

16 Em 1991, terminava artigo constatando que três passos se faziam neces-sários: 1. To know, debate, exchange ideas and integrate archaeology withother social sciences; 2. To integrate Brazilian archaeology witharchaeology as practised everywhere else in the world; 3. To adopt a Codeof Ethics...to prevent archaeology being used against indigenous minoritiesand other oppressed people, and to prevent the return of politicalpersecution within or outside academic life (Funari 1991: 128; cf. emcastelhano, Funari 1992: 64-65).

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17 Trata-se de algo universal, como assinalaram McGuire e Walker (1999),mas cujos contornos, em uma sociedade tão desigual como a brasileira,tornam-se dramáticos. Recentemente, Noelli (e.g. 1994;1995;1996c) temproduzido diversos estudos contundentes a respeito. Em um artigo sobrea formação do arqueólogo no Brasil, não caberia desenvolver este tema,que merece uma reflexão específica. Registre-se, no entanto, que o únicocritério universalmente aceito para a chamada Arqueologia de Contratoconsiste na produção científica que deve resultar de qualquer atividadecontratada por uma empresa, o que nem sempre ocorre no Brasil. A for-mação de iniciantes na Arqueologia nesse ambiente pode ser, portanto,bastante inadequada, pois o que se tem que aprender é a produzir ciência,o que nem sempre é o caso na Arqueologia de Contrato.

18 Conscientia, “saber com”, implica na interação social.19 Um dos motivos de se desconsiderar o aspecto patrimonial da Arqueolo-

gia advém da noção estreita, defendida por alguns, de que “a Arqueolo-gia não é o estudo de objetos, de coisas” (Meneses 1980: 6), o quedescaracteriza a inevitável ligação entre a Arqueologia e a apropriaçãodos artefatos pela sociedade.

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