apesar da pena: execução penal e redução de danos
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FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos.
Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.
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Apesar da pena: execução penal e redução de danos
Daniel Fonseca Fernandes1
Lucas Vianna Matos2
Recebido em 4.4.2016
Aprovado em 12.5.2016
Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão
teórica em torno do direito de execução
penal, compreendendo-o enquanto conjunto
de normas, conceitos e práticas que orientam
a imposição da pena de prisão e que, a partir
de uma concepção agnóstica e negativa da
pena, deve funcionar como elemento
limitador dos seus efeitos deletérios.
Pensando a execução penal a partir da
violência exacerbada do sistema prisional
brasileiro, o artigo articula uma crítica do
direito de execução penal, analisando pontos
problemáticos deste campo jurídico no
Brasil, e empreendendo esforço teórico para
não cair na armadilha legitimante das
ideologias “re”. Objetiva-se, assim, abrir uma
fissura no discurso jurídico hegemônico,
possibilitando que a execução penal seja
pensada a partir da lógica de redução dos
danos intrínsecos à experiência prisional.
Palavras-chave: criminologia crítica;
concepção agnóstica da pena; execução
penal.
Abstract: This paper proposes a theoretical
reflection about sentence execution and its
procedure, understanding it as a set of
standards, concepts and practices that guide
the imposition of a prison sentence and that,
from an agnostic and negative conception of
penalty, must function as a limiting factor of
the its harmful effects. This study analyzes
the sentence execution from the violence of
brazilian penitentiary system, articulating a
critique of the process of sentence execution,
identifying trouble spots of this legal field in
Brazil, and making a theoretical effort to
don’t fall into the trap of legitimating
ideologies "re". The purpose is thus open a
crack in the hegemonic legal discourse,
enabling the sentence executing process to be
thought from the perspective of reduction of
the intrinsic damages in the prison
experience.
Keywords: critical criminology; agnostic
conception of penalty; sentence execution
process.
1. Introdução
A conjuntura da execução penal no Brasil revela um quadro grave de violação
sistemática de direitos. De um lado, observa-se um sistema prisional no qual os efeitos
1 Aluno Especial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail:
[email protected] 2 Mestrando em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]
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deletérios sobre as vítimas da experiência carcerária são intensificados diante dos níveis
extraordinários de violência física e simbólica que marcam o seu desenvolvimento histórico.
Por outro lado, o discurso jurídico-penal parece paralisado diante desse quadro, incapaz
de assumir responsabilidades e propor alternativas. Existe certo consenso discursivo no Brasil
em torno da execução penal. O discurso jurídico costuma utilizar a lei nº 7.220/84, Lei de
Execução Penal (LEP), para exemplificar jargão muito comum em nosso país: a ideia de que
o Brasil tem boas leis, mas que por diversos motivos – ineficiência da administração, falta de
vontade política, corrupção etc. – não são devidamente aplicadas. Nessa toada, multiplicam-se
os discursos de que o Brasil tem uma lei de execução penal avançada, moderna e humana, que
– por uma fatalidade qualquer – não é aplicada.
O discurso jurídico-penal, assim, evita o debate em torno da execução, desprezando o
fato de que a questão prisional é, especialmente na nossa margem, um dos principais eixos de
deslegitimação do sistema penal. Este discurso jurídico hegemônico, reticente em enfrentar o
grave processo da deslegitimação, assume, na linguagem proposta por Zaffaroni (2001, p.
11/45), uma atitude que evita o enfrentamento do problema e a assunção de
responsabilidades, escorando-se na noção de que a legislação é “avançada”, como verdadeiro
mecanismo de fuga.
Neste contexto, há outro discurso jurídico, que pretende impor ao campo da
criminologia e do direito penal crítico uma falsa dicotomia, objetivando desmoralizar a crítica
deslegitimadora da prisão. A tese central é que diante da situação do sistema prisional não há
espaço para a crítica estrutural à pena de prisão. Opera-se, assim, uma tradução para o campo
penal do mito neoliberal do “fim da história”. Este discurso acusa os setores críticos de não
oferecerem caminhos concretos para superação da dramática situação do sistema prisional,
encarando-o como obstáculo a medidas como a construção de novos presídios, intensificação
do uso de monitoramento eletrônico e, especialmente, iniciativas de privatização de presídios.
Entendemos que o reconhecimento da deslegitimação da pena de prisão é um
imperativo ético-político, diante da empiricamente demonstrada incompatibilidade entre seus
discursos legitimantes e o seu desempenho histórico real. O discurso deslegitimador, todavia,
também por um imperativo ético não é imobilista, nem tampouco idealista. Deve ser crítico e
propositivo, deslegitimador do cárcere e orientado por uma utopia abolicionista, em sentido
positivo, mas disputada a partir da reforma progressiva e permanente do sistema prisional,
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sempre atento às possibilidades reais de cada conjuntura histórica (MATHIESEN, 2003, p.
88).
Na perspectiva de buscar alternativas à esta (falsa) dicotomia e assumindo a
responsabilidade diante do atual quadro da nossa execução penal, é que este trabalho se
apresenta como uma aproximação ainda inicial em torno do tema, no sentido do
desenvolvimento de uma execução penal como mecanismo político-criminal e jurídico-penal
de redução dos danos intrínsecos à experiência prisional.
A execução penal e seu processo só se justificam quando colocados como obstáculos
aos efeitos perversos da pena, na contramão da institucionalização do sujeito, sem lhe
conferir, no entanto, qualquer efeito positivo. A adoção de uma concepção negativa e
agnóstica da pena, no campo da execução penal, deste modo, parece se realizar a partir de
uma dupla perspectiva: necessidade de incorporação radical das garantias jurídicas formais ao
campo da execução (afastando-se do obscuro direito penitenciário) e propositura de
alternativas que reduzam os efeitos negativos da pena, buscando reduzir a incidência das
inevitáveis consequências prisionais.
2. Criminologia e deslegitimação do sistema penal
2.1. Pensar com a criminologia
Para compreender a deslegitimação do sistema penal e do cárcere, é preciso ter como
ponto de partida o instrumental oferecido pela produção do saber criminológico e a
problematização das teorias da pena, tidas como suporte discursivo deste sistema. Sem
pretender realizar um panorama histórico das diversas criminologias e suas implicações, este
estudo tem como marco teórico sua vertente crítica e as desconstruções radicais de autores
abolicionistas. Deste modo, a criminologia é encarada como “ferramenta de leitura da
realidade”, pelo que pretendemos “pensar com a criminologia”, sem realizar a mera descrição
de suas teorias (CARVALHO, S., 2013, p. 41/45).
Reconhecemos, sem medo das desqualificações que buscam tratar a produção crítica
enquanto ideológica, que a criminologia apresenta sempre conteúdo político e envolve a
disputa por posições acerca do sistema penal e suas consequências. Deste modo, rejeitamos a
criminologia enquanto “regulador apolítico, técnico-científico” (RAUTER, 2003, p. 58).
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Portanto, para articular um pensamento criminológico crítico, com intuito de propor e
induzir mudanças no sistema penal, em especial no campo da execução penal no Brasil,
tomamos como ponto de partida três eixos de premissas: a criminologia crítica, as rupturas
radicais do abolicionismo penal e o realismo marginal latinoamericano.
O primeiro eixo de premissas diz respeito aos deslocamentos produzidos pela
criminologia crítica, com base na obra de Alessandro Baratta. Partindo das rupturas geradas
pelo interacionismo simbólico e pela obra de Marx, a criminologia crítica contrapõe-se à
criminologia positivista de enfoque biopsicológico, através de dois importantes processos:
deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas (estruturais e
funcionais) e deslocamento da busca pelas causas do crime para análise de mecanismos
institucionais e sociais que aplicam e criam as definições de criminalidade e processos de
criminalização (BARATTA, 2002, p. 160/161). O crime é desnaturalizado, destacando-se a
seletividade problemática de bens protegidos e pessoas atingidas pelo sistema penal.
O segundo eixo, consiste na incorporação das críticas de autores abolicionistas como
Thomas Mathiesen, Louk Hulsman, Angela Davis e Nils Christie. O que é de central na obra
destes autores é a compreensão de que a justiça penal não é resposta legítima para situações
problemáticas e tem característica de problema público (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 157).
Deste modo, não é mecanismo apto à resolução de conflitos, mas se apresenta como causa de
tantos outros, como desagregação de células familiares, perda de laços afetivos, redução do
espaço sociabilidade, submissão a intenso controle policial e exposição à violência de grupos
diversos que disputam os espaços de poder nas instituições carcerárias.
A prisão – pena que ocupa posição central na grande maioria dos sistemas penais
(formais) contemporâneos – se apresenta como um universo artificial onde tudo é negativo, se
apresentando como um sofrimento estéril, não criativo, desprovido de sentido (HULSMAN;
CELIS, 1993, p. 62). No currículo oculto do sistema penal, nega-se legitimidade a uma série
de alternativas que deveriam ser consideradas para resolução de conflitos. Através do discurso
contra a arbitrariedade das decisões, o sistema barra soluções alternativas (CHRISTIE, 1982,
p. 50) e nega as existências variáveis na vida social.
A vigência do sistema penal se apresenta como bloqueio ao questionamento à
necessidade de punição, atrelada especialmente ao cárcere. O discurso jurídico penal é dotado
de certo fatalismo punitivo. As punições, além de serem legitimadas e pré-definidas para
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situações diversas, são tidas como inevitáveis (DAVIS, 2003, p. 09). No âmbito do judiciário
e em meio aos próprios pesquisadores, passa-se a pressupor a existência da pena.
O terceiro eixo de premissas refere-se ao realismo marginal latinoamericano de
Zaffaroni (2001, p. 161/166). Sua doutrina se apresenta como realista na medida em que se
aproxima dos fenômenos do sistema penal, reconhecendo uma “existência do material do
mundo independente dos atos de conhecimento”, recusando qualquer modelo ideal na busca
de uma “práxis redutora de violência” e elencando a vida humana como prioridade. O
pensamento deste autor apresenta-se como marginal na medida em que se situa na periferia
dos países centrais, estando com eles em relação de dependência (econômica, epistemológica,
etc.).
Zaffaroni (2001, p. 17/19) refere-se à utópica legitimidade do sistema penal como uma
característica outorgada por seu próprio discurso. Este discurso jurídico-penal, na visão do
autor, para que fosse considerado legítimo deveria se apresentar como efetivamente racional.
A racionalidade, tratada por Zaffaroni, exige coerência interna (com substrato antropológico,
não apenas lógico-formal), e valor de verdade quanto à operatividade social, sob um duplo
aspecto: valorização do discurso em função da experiência social (adequação do fim aos
meios ou “vir-a-ser possível do ser”) e funcionamento conforme suas pautas declaradas. O
discurso legitimador é perverso, pois falseia o real exercício violador e genocida do poder
punitivo.
Não raro a crise de legitimidade do sistema penal é absorvida por instâncias judiciárias
e legislativas como demanda por mais controle e disciplina em determinados grupos sociais
(MATHIESEN, 1990, p. 14). A própria inadequação do sistema é ressignificada, fazendo
parecer que os problemas gerados e não resolvidos decorrem de um problema conjuntural
operacional, solucionável através do seu incremento. Esta característica é facilmente notada
no caso da execução penal no Brasil, onde não raro se apresentam discursos por mais pena e
mais prisões como solução para problemas de violência urbana e para a própria precariedade
das unidades prisionais.
A partir destes referenciais teóricos e de outros autores de orientação crítica, busca-se
expor elementos característicos do sistema penal que expõem sua falta de legitimidade,
inadequação e necessidade de superação, seja com práticas de longo alcance, que visem
substituir sua estrutura, seja com medidas de contenção e alívio das violências penais.
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2.2. Teorias legitimantes e concepção agnóstica da pena
Entender a deslegitimação do sistema penal, a partir da ausência da racionalidade de seu
discurso, também implica rejeitar as teorias justificadoras da pena.
Para Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p. 115/116) as teorias da pena podem ser
divididas a partir de suas funções manifestas: (a) pretensão meramente retributiva sobre a
pessoa condenada por prática de delito, as conhecidas teorias absolutas; (b) pretensão de que o
valor da criminalização atue sobre pessoas que não foram condenadas pela prática de delito,
abarcadas aqui as teorias da prevenção geral, negativas (dissuasórias) e positivas
(reforçadoras); (c) pretensão de que atue sobre as pessoas condenadas pela prática de delito,
aqui colocadas as teorias da prevenção especial, que se dividem em negativas (neutralizantes)
e positivas (das ideologias re).
Diante do objeto desse trabalho, as teorias que atribuem a função de prevenção especial
à pena merecem destaque, pois, de uma forma geral, direcionam o foco do sistema penal ao
indivíduo condenado. As teorias de prevenção especial positiva sustentam o discurso de que a
pena destina-se a melhorar o indivíduo, apresentam-na como um bem para quem a recebe,
tanto em suas versões morais e religiosas como naquelas influenciadas pelo discurso médico.
O correcionalismo é sua marca determinante.
A partir desta concepção da pena, o cárcere assume posição central no sistema
discursivo do cumprimento dos objetivos declarados do sistema penal. A prisão é tida como
espaço para recuperação de pessoas apenadas apesar de todos os seus efeitos degradantes,
potencializadores de violência e redutores de sociabilidade, altamente nocivos aos indivíduos
e à própria coletividade. O conjunto das chamadas ideologias re, que sustentam a
possibilidade de ressocialização, reeducação, reinserção, reabilitação, incorporam um discurso
científico e desenvolvem técnicas destinadas a cumprir a prevenção especial positiva. O
controle se amplia de forma exponencial, com enfoque aparentemente humanista e isento,
apolítico, reforçando a sensação de legitimidade.
As teorias de prevenção especial negativa reconhecem que a pena é um mal para quem
vai sofrê-la, mas que é necessária para se preservar o meio social. É a consagração da
neutralização do indivíduo, de sua exclusão em defesa da sociedade. A metáfora do
organismo social surge com mais força, expondo a necessidade de eliminação de
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determinadas “células” diante da incapacidade de recuperá-las. Deste modo, estas teorias
ontologizam o criminoso, remetendo às antigas e ainda vivas teorias de criminosos natos,
dando suporte à ação violenta e excludente do sistema penal.
Cumpre destacar ainda, com Alessandro Baratta (2002, p. 191), que, em muitos casos,
adota-se uma teoria polifuncional da pena, em que suas funções declaradas são combinadas,
tendo, atualmente, especial enfoque discursivo na reeducação. Tais “teorias combinatórias”,
buscando conjugar funções “diversas e incompatíveis”, são marcadas pela simultaneidade
(funções que ocorrem ao mesmo tempo) e alternatividade funcional (se não cumpre uma das
funções, cumpre outra) e ocupam posição central em grande parte das legislações atuais
(ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2011, p. 140/141). No Brasil, este caráter
polifuncional é marcante tanto no Código Penal quanto na Lei de Execução Penal.
O sistema penal e suas manifestações de poder são encarados neste trabalho como um
fenômeno social, sendo necessário articular o maquinário jurídico e a concepção da pena para
construir um pensamento não legitimante, que busque esvaziar este sistema e diminuir seu
potencial destrutivo. Salo de Carvalho (2013, p. 267) sustenta que a esquizofrenia secular da
busca por legitimar o ilegítimo deve ser deixada de lado, adotando-se uma concepção
agnóstica da pena, nos termos estabelecidos por Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p.
99): “[...] a pena é uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não
repara nem restitui, nem tampouco detém lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes. O
conceito assim enunciado é obtido por exclusão: a pena é um exercício de poder que não tem
função reparadora ou restitutiva nem é coerção administrativa direta. Trata-se, sim, de uma
coerção que impõe privação de direitos ou dor, mas que não corresponde a outros modelos de
solução ou prevenção de conflitos [...]”.
Na tentativa de construir um conceito jurídico (sem pretensão de definir sua essência)
que sirva para limitar o poder do sistema penal, os referidos autores enunciam a concepção
negativa e agnóstica da pena. Esta concepção expõe, ao menos, a impossibilidade de
generalização das teorias tradicionais. Trata-se de uma concepção negativa, obtida por
exclusão e não reconhecimento, diante de limites metodológicos ou ético-políticos, de
qualquer função positiva à pena; e agnóstica, por confessar não conhecer todas as suas
funções.
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A adoção de uma concepção agnóstica e negativa da pena é compatível, a longo prazo,
com um projeto de crítica radical ao sistema penal, possibilitando a emergência de práticas
não legitimantes. O poder punitivo é um fato e a disputa crítica do direito tem que se
contrapor às circunstâncias reais na medida em que se pretende sua superação.
3. Execução penal da redução de danos
3.1. Lei de Execução Penal e anacronismo criminológico
O controle social realizado através do sistema punitivo, no Brasil, encontra-se marcado
por forte herança positivista e etiológica, que atribui sentidos ontológicos ao crime e ao
criminoso. A tradução latino-americana dos pensadores europeus da criminologia positiva,
como Lombroso e Ferri, não foi literal, implicando, a partir do marco conceitual de Sozzo
(2014, p. 07/94), um conjunto de adoções/recusas/complementações que, no caso brasileiro,
deram origem a interpretações sui generis a respeito da miscigenação e de sua interação com
fatores morais e climáticos, a partir da cisão da sociedade em uma parcela branca e civilizada
e outra indígena e negra.
As concepções etiológicas e os diversos positivismos apresentam-se como elemento de
permanência histórica nas práticas e discursos de controle social no Brasil. Na compreensão
de Vera Malaguti Batista (2012, p. 41), o positivismo é “uma grande permanência no
pensamento social brasileiro”. Diante das variadas manifestações e amplo espectro de
incidência – em especial entre pensadores conservadores, mas também em alguns setores da
esquerda - a autora vem pensando o positivismo não como uma escola, mas como cultura.
As formas de manifestações deste paradigma cultural e científico, no campo
criminológico, foram modificadas, recriadas e adaptadas em cada período histórico. O
discurso criminológico positivista, a partir do século XIX, sustenta a necessidade de uma pena
eficiente e de se promover a reforma moral do preso, ainda que a maioria dos cárceres
brasileiros tenha permanecido como verdadeiros depósitos de pessoas.
O anacronismo criminológico é evidente nos discursos e nas práticas penais no Brasil.
O paradigma positivista da compreensão do crime, que lhe confere caráter de anormalidade,
ainda não foi superado pelas práticas penitenciárias, na medida em que se busca, ao menos
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discursivamente, recuperar a pessoa condenada através de programas de reabilitação ou
ressocialização (SÁ, 2007, p. 61).
Os discursos criminológicos, próximos às práticas penitenciárias, fortalecidos por
teorias de defesa social, são apresentados como teorias humanizadoras, em oposição às
retributivistas. A busca pela realização dos objetivos das ideologias re é tida como meta
humanitária, em benefício da pessoa que sofre a pena. Nas teorias polifuncionais da pena, a
prevenção especial positiva permanece como elemento discursivo marcante, buscando dar
legitimidade ao cárcere através do correcionalismo.
A Lei de Execução Penal (1984) é o primeiro instrumento legal a regular a execução
penal do Brasil, representando algum avanço em matéria penitenciária, uma vez que
jurisdicionaliza a execução penal, além de positivar o princípio da legalidade em sede
executiva. Contudo, um olhar mais cuidadoso sobre os dispositivos da lei desvela uma
orientação criminológica anacrônica, que passeia entre um positivismo periculosista e
correcionalista. Nas palavras de Roig (2005, p. 137/138), a lei, adotando um modelo
neodefensivista, consagra a “ressocialização do condenado como objetivo anunciado da pena,
reincorporando a noção de periculosidade do agente e primando pela ideia de ‘tratamento do
delinquente’”.
A permanência do entulho positivista na legislação contemporânea se faz sentir, por
exemplo, na permanência de exames de avaliação psicossocial, herdeiros do extinto EVCP
(Exame para Verificação de Cessação de Periculosidade), conforme aponta Rauter (2003, p.
85). Apesar das críticas contundentes desde a elaboração do projeto da LEP, no início da
década de oitenta, os exames criminológicos ainda fazem parte do cotidiano da execução
penal no Brasil e seguem sendo muito úteis ao respaldar de modo “neutro” e científico” as
decisões defensivistas dos magistrados da execução penal. Estes exames contribuem para que
direitos subjetivos sejam negados e os “inimigos” permaneçam encarcerados apesar de
cumprido o percentual legal exigido para a progressão de regime ou concessão da liberdade
condicional. Apresentam-se como um instrumento voltado a homogeneizar os
“recuperandos”, formatar a sua individualidade e condicionar direitos subjetivos à adoção –
ainda que retórica – de um determinado padrão familiar, comportamental e cultural
considerado recomendável.
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A Lei de Execução Penal3 e suas repetições espalhadas por diversos estatutos
penitenciários dos estados brasileiros, como o Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia4,
preservam a existência do exame criminológico e seguem vinculando a efetivação de direitos
das pessoas presas ao resultado destas avaliações.
A perspectiva correcionalista, deslegitimada nos países centrais, a partir da decadência
do modelo penal do welfare, ainda orienta a as punições e benefícios e os mecanismos
disciplinares, além de sustentar as ideologias “re” como “teorias” de relegitimação do sistema
prisional.
A observação de expressões utilizadas na legislação ajuda a compreender o modelo de
comportamento exigido pelo sistema. Roig (2005, p. 138/159) chama atenção para o fato de
que a metade dos “deveres” do preso se relacionam com o tema disciplina, exaltados os
valores da “ordem”. A obscura ideia de “obediência”, presente em diversos dispositivos,
assim como o termo “submissão”, denota o caráter autoritário da nossa ideologia
penitenciária.
A partir desta realidade da execução penal no Brasil, mostra-se urgente a adoção de uma
práxis alternativa. Nesse sentido, a perspectiva redutora de danos maneja os institutos da
execução penal a partir da deslegitimação da prisão, compreendendo a pena como fato
político e o maquinário judiciário como mecanismo que busca diminuir suas violências
estruturais. Assim, seguindo a linha de autores que já trabalham com a perspectiva crítica e
redutora de danos da execução e do processo penal5, pretendemos apresentar ainda em caráter
preliminar, algumas observações sobre a execução penal, repensando suas práticas, a partir de
diferentes eixos: criminológico e de direito material e processual.
3 Art. 8º. O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a
exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à
individualização da execução. 4 Art. 25. O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a
exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à
individualização da execução. 5 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014; CHIES, Luiz Antônio
Bogo. Execução Penal Crítica: Tópicos Preliminares. Pelotas: Educat, 1999; CARVALHO, Salo de (org.).
Crítica à execução penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; DUCLERC, Elmir. Por uma teoria do
processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
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3.2. Horizontes criminológicos para uma perspectiva de execução penal redutora de
danos
Considerando o referencial teórico adotado, é essencial ter em vista dois pressupostos a
respeito da prisão. O primeiro diz respeito à centralidade do cárcere no sistema penal formal,
sendo a prisão a pena por excelência do aparato jurídico-penal. Esta qualidade, porém, não
encobre o fato de que a prisão apresenta-se como a ponta do iceberg (BARATTA, 2002, p.
167) do sistema punitivo de controle sendo marcada pelo caráter de continuidade,
significando, via de regra, um processo secundário de marginalização (BARATTA, 2004, p.
381). Portanto, a prisão não inaugura a exclusão violenta pelo sistema penal, por isso sua
análise não dá conta, por exemplo, do genocídio em ato nos sistemas penais subterrâneos
(ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2011, p. 53), mas problematizar a prisão e o
cumprimento da pena segue sendo tarefa urgente do pensamento crítico engajado na redução
das violências penais.
O segundo pressuposto refere-se à adoção de uma lógica estritamente redutora de danos,
segundo a qual qualquer possível benefício à pessoa submetida à execução penal se dá apesar
da pena e do cárcere. A execução penal é encarada como mecanismo jurídico de mitigação
dos efeitos negativos gerados pela imposição de pena e encarceramento. O aparato jurídico da
execução penal, portanto, não deve ser a consequência natural ou realização da pena, mas seu
oposto, sua antítese.
Adoção de uma postura redutora de danos implica total abandono das ideologias re, que
baseiam as teorias da pena de prevenção especial positiva. Toda a gramática correcionalista e
etiológica está desligada de um projeto redutor. Deste modo, não se pretende construir uma
prática voltada a recuperar, ressocializar, reintegrar, reeducar, reinserir ou reabilitar a pessoa
submetida à pena, mas construir uma práxis redutora que: (a) limite os prejuízos das privações
penais sobre o indivíduo e a comunidade; (b) se oponha ao processo contínuo de
marginalização e exclusão; (c) coloque à disposição dos sujeitos apenados uma série de
serviços que devem ser garantidos a todo cidadão.
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3.2.1. A necessária abertura do cárcere
Para realizar uma crítica criminológica consistente à execução penal, é necessário
problematizar as principais noções a respeito dos efeitos da prisão e de sua relação com a
sociedade em geral.
A sociologia desenvolvida a partir dos estudos da Escola Sociológica de Chicago muda
definitivamente os rumos da criminologia, concebendo novas maneiras de analisar e
compreender os fenômenos em torno do desvio e do controle social.
Conforme apontam Adorno e Dias (2013, p. 03), a partir dos 1940, inicia-se uma
produção acadêmica considerável acerca do universo prisional. Estes estudos iniciais
orientam-se centralmente pela noção de ruptura entre sociedade e ambiente prisional. A
prisão, desta forma, inauguraria um universo cultural distinto, com valores e regras sociais
próprios.
No que tange aos estudos criminológicos sobre a prisão, Dias e Adorno (2013, p. 20)
entendem que há certo esgotamento no modelo teórico que concebe uma ruptura entre prisão
e sociedade em geral, sendo necessário estar atento às relações interpessoais, dinâmicas e
fluxos (de informações, bens, mercadorias, pessoas, etc.) dentro e fora das prisões.
Neste sentido, é importante ressaltar, que entre a cultura dos indivíduos submetidos ao
encarceramento e o mundo “livre”, extramuros, há uma relação muito mais marcada pela
continuidade do que de ruptura (BRAGA, 2012, p. 45).
Reconhecendo a complexidade inerente à questão penitenciária – caracterizada pelo
entrelaçamento dos elementos que a compõem (CHIES, 2014, p. 39/40), parte-se do
pressuposto de que não há uma ruptura cultural drástica entre o interior da prisão e a
sociedade.
Entretanto, pretende-se trabalhar a ideia da prisão como instituição total e sua tendência
ao fechamento, nos termos definidos por Goffman (1974, p. 11), enquanto instituição que
abriga e condiciona, em certa medida, o cotidiano e as atividades dos indivíduos separados da
sociedade. O caráter absoluto da expressão apresentada por Goffman, não se apresenta
adequado às permeabilidades da vida no cárcere, contudo sua descrição mais detalhada traz
elementos que podem ser importantes na compressão dos problemas referentes à prisão. Deste
modo, considera-se adequada à análise criminológica da execução penal a ideia de “tendência
de fechamento” (GOFFMAN, 1974, p. 16).
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Pode-se observar que o controle de muitas das necessidades humanas realizado na
prisão nem sempre parte exclusivamente da administração penitenciária, mas que a
organização de grupos e coletivos dos próprios internos traçam dinâmicas de convivência
específicas, no que muitas vezes se verifica a imposição de práticas por grupos mais ou menos
organizados. É perceptível a criação de espaços de poder informal no cárcere. Esta qualidade
de tendência à totalização de necessidades, entretanto, ainda que não parta tão somente da
administração penitenciária, também é intrínseca à natureza da instituição carcerária, uma vez
que o confinamento de um grupo de indivíduos em determinado espaço não lhes retira a
inteligência de organização e arranjos de sobrevivência. Este exercício de poder para além (e
muitas vezes ao lado) da imposição de normas pela administração do cárcere também é
componente relevante para a compreensão dos efeitos e do caráter totalizante da prisão.
Neste sentido, uma das características marcantes da tendência totalizadora da vida no
cárcere é chamado por Goffman (1974, p. 24) de “mortificação do ‘eu’”, que consistiria no
resultado de um conjunto de práticas destinadas ao rebaixamento, humilhação e padronização
de comportamentos, com redução do espaço de autonomia do sujeito. Alvino Sá (2007, p.
116) aponta para os riscos de desorganização da personalidade em virtude da vida em massa
que se tem no cárcere. A imposição de determinados rituais e de normas homogeneizantes
provocam verdadeiro achatamento da subjetividade dos internos. A determinação de horários
para refeições, para banho de sol e outras práticas restritivas são características comuns nos
cárceres brasileiros.
A fratura da autonomia e o assujeitamento dos cidadãos que cumprem pena restritiva de
liberdade, efeitos típicos da prisionalização ou prisionização encontram um dos seus ápices na
previsão legal que determina que os mesmos adotem condutas contrárias a qualquer tipo de
movimento de subversão à ordem ou disciplina (art. 39, inciso IV, LEP). A lógica é tão
autoritária que não só exige a abstenção, como exige “conduta oposta” aos movimentos. Se
nos programas policialescos vige o ditado de que bandido bom é bandido morto, para a
administração da prisão, preso bom é preso subserviente e, no limite, cagoete.
Constatados alguns dos efeitos nocivos do cárcere sobre o indivíduo – em especial a
ruptura dos laços comunitários, familiares, solidários e afetivos que as pessoas presas
mantinham fora do cárcere – e rejeitando qualquer possibilidade de consequência positiva em
razão do encarceramento – é preciso tentar construir mecanismos que contrariem o sentido
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totalizante e conformador da experiência carcerária. Para tanto, é necessário defender a
abertura do cárcere para a sociedade (BARATTA, 2002, p. 203).
Permitir que membros da sociedade e familiares de presos possam desenvolver
atividades no cárcere é um caminho para tentar fazer com os laços afetivos e solidários sejam
preservados. O apoio a instituições não governamentais que realizam trabalhos diversos nas
prisões e o suporte a instituições como os Conselhos da Comunidade são essenciais para que a
experiência carcerária seja menos hostil e aflitiva. Do mesmo modo, a abertura de espaço para
estas instituições gera maior poder de fiscalização informal e denúncia das condições
precárias a que as pessoas são submetidas.
As instituições que têm tentado realizar trabalho de aproximação da comunidade
carcerária com a sociedade extramuros e de mitigação dos efeitos da prisão são, em geral,
organizações voluntárias, destacando-se as corajosas organizações de familiares de pessoas
encarceradas. Estas instituições encontram resistência por parte das administrações das
prisões, que varia a depender do nível de crítica que exerçam (BRAGA, 2014, p. 60).
Deste modo, entendemos que não é preciso apenas expor a realidade do cárcere, de
qualquer maneira. É preciso tentar ampliar e tornar complexo e acessível um debate sobre os
efeitos da pena e da prisão. Neste sentido, Mathiesen (2003, 104/108) afirma que é preciso
contribuir com a criação de um “espaço público alternativo na política penal”, aproximando-
se dos movimentos feitos “de baixo para cima”, contrários a lógica verticalizante do sistema
penal e penitenciário, buscando reduzir o isolamento totalizante da prisão e seus efeitos
negativos.
Acrescente-se ainda que neste processo de diálogo e abertura, as pessoas presas não
podem ser encaradas como meros sujeitos passivos, abordagem comum das ideologias re, que
objetificam os indivíduos encarcerados, como anormais ou inferiores, incapazes de uma
leitura sobre sua própria realidade e propor mudanças. É necessário que estas pessoas tenham
voz ativa na construção de propostas e atividades a serem desenvolvidas no cárcere.
3.2.2. Os serviços essenciais
A superação do anacronismo criminológico que orienta a execução penal no Brasil
passa ainda pela necessária reformulação do conjunto de práticas desenvolvidas no cárcere.
Com Alessandro Baratta (2004, p. 381), é necessário abandonar por completo a ideia de
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tratamento, devendo ser adotado o conceito de serviço. Em outras palavras, é preciso que as
possibilidades de ações que beneficiem as pessoas presas sejam tratadas enquanto direitos,
não como concessões de um poder administrativo benevolente.
Os mecanismos atuais de regulação de direito penitenciário, tendo como exemplo o
Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia6, consagram esta diferenciação da concessão de
benefícios pela autoridade penitenciária. Há sempre como pano de fundo a demanda por
ordem no interior da unidade prisional. O esforço para se reduzir o espaço dos efeitos danosos
da aplicação da pena deve se direcionar no sentido de preservar todos os outros direitos das
pessoas presas. Reduzir os danos da privação da liberdade é também buscar efetivar os
direitos não atingidos pela limitação da capacidade ambulatorial.
Os direitos relacionados ao trabalho assumem posição destacada, diante da intensa
propaganda institucional em torno do tema. O trabalho prisional ainda é apresentado no Brasil
pelo discurso jurídico e institucional como elemento legitimador do cárcere, eixo central do
almejado processo de ressocialização. Ocorre que a realidade das nossas prisões não esconde
a distância entre os devaneios ressocializantes e o cotidiano dos detentos do sistema prisional
brasileiro. Os trabalhos parcamente oferecidos em geral não contribuem para a qualificação
do trabalhador, são norteados pela subalternização e atraso dos instrumentos se comparados
aos utilizados no mundo do trabalho livre (CHIES, 2008, 51/59).
Além disso, a exclusão do trabalhador preso do regime geral da Consolidação das Leis
Trabalhistas reproduz um quadro de superexploração e depreciação do trabalho. O trabalhador
realiza atividades pesadas e no fim do mês recebe menos do que um salário mínimo, não
fazendo jus às horas extras, férias, 13º salário ou qualquer outra garantia trabalhista7.
6 Art. 68. Constituem benefícios, concedidos aos presos pelo diretor do estabelecimento penal estadual: I -
assistir a sessões de cinema, teatro, shows e outras atividades sócio-culturais, em épocas especiais, fora do
horário de expediente da unidade prisional; II - assistir a sessões de jogos esportivos em épocas especiais, fora do
horário de expediente da unidade prisional; III - praticar esportes em áreas específicas; e IV - receber visitas
extraordinárias, devidamente autorizadas. §1º - Poderão ser acrescidos, pela Superintendência de Assuntos
Penais, mediante portaria, outros benefícios de forma progressiva, acompanhando as diversas fases de
cumprimento da pena. [...] Art. 69. Os benefícios poderão ser suspensos ou restringidos, isolada ou
cumulativamente, por cometimento de infração disciplinar, mediante ato motivado da diretoria do
estabelecimento penal, precedido de procedimento administrativo, assegurando-se o contraditório e a ampla
defesa. 7 Lei. 7210/84. Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá
finalidade educativa e produtiva. § 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis
do Trabalho.
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Em muitos casos, o trabalho sequer é remunerado, uma vez que é prática corriqueira nos
estabelecimentos penais a exploração do trabalho dos detentos em atividades de manutenção
dos presídios – limpeza e realização de reparos prediais, por exemplo – sem qualquer
remuneração (CARVALHO, R., 2011, p. 71/78). No trabalho prisional, o estigma de
criminoso persegue o preso, que é sempre mais preso do que trabalhador.
Destaca-se que a lei de execução penal define o trabalho prisional como dever social,
não como direito do preso. Alguns estatutos penitenciários estaduais, como o da Bahia, vão
além e dispõem que o trabalho é obrigatório, considerando falta disciplinar a recusa ao dever
do trabalho8. Estas normas representam um continuum histórico da ideia que relaciona
trabalho forçado e cárcere. Nesse contexto paradoxal, permeado por intensa exploração da
mão de obra e precarização das atividades oferecidas, é preciso reconhecer a fragilidade do
discurso dominante, que divulga o trabalho prisional como uma inovação importante do ponto
de vista produtivo, moral e reintegrativo.
Por outro lado, diversas pesquisas do cotidiano prisional têm sido mais ou menos
unânimes ao concluir a importância adquirida pelo trabalho na dinâmica social da prisão, em
uma perspectiva, cabe destacar, que foge do modelo valorativo propagado pelo discurso
oficial.
O tempo no cárcere assume conotações subjetivas essencialmente diferentes daquelas
do mundo livre. Aqui fora reclamamos recorrentemente da falta de tempo para realizar todas
as nossas atividades. Há um sentimento crescente de que o “tempo está passando cada vez
mais rápido”. No cárcere é diferente. O tempo é inimigo do preso, e em nenhuma outra
circunstância a expressão “matar o tempo” parece fazer mais sentido (MATOS, 2014, p.
81/101).
O “matar o tempo” ganha no cotidiano prisional dois significados distintos.
Objetivamente, o trabalho tem o condão de – através do instituto legal da remição – diminuir
o tempo de sofrimento atrás das grades. Assim, a participação em atividades laborativas pode
matar o tempo perdido na cadeia, reduzindo a duração da pena. Do ponto de vista subjetivo, o
trabalho consubstancia uma oportunidade de fugir do ócio avassalador imposto aos detentos.
8 Art. 49. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de sua aptidão
capacidades. Art. 79. Considera-se falta disciplinar de natureza leve: [...] IX – Recusar o dever de trabalho.
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Além da capitalização do tempo, o trabalhador preso potencializa o trabalho de diversas
outras maneiras, ampliando seu espaço de locomoção, uma vez que realizam suas atividades
fora dos módulos onde os outros presos ficam segregados. Os detentos que trabalham
circulam por um espaço mais amplo e arejado, além de não estarem sujeitos durante a
atividade laboral à vigilância ostensiva dos módulos.
Além disso, os presos que trabalham podem se relacionar mais facilmente com pessoas
que não cumprem pena – quadros da administração, defensores e advogados, visitantes –,
participando, de certa forma, do cotidiano do setor administrativo da penitenciária.
Ocorre que na atual conjuntura do nosso sistema prisional, o trabalho é claramente
encarado pela legislação e, consequentemente, pela administração penitenciária como
“prêmio” para o bom preso. Assim, a pequena quantidade de vagas laborais oferecidas,
somada à ausência de critérios objetivos na escolha de quem trabalha, faz do trabalho
prisional um relevante elemento na dinâmica do controle administrativo da penitenciária. O
preso que não se submeter aos ditames disciplinares do trabalho e não contribuir com a
administração pode perder seu posto de trabalho e, consequentemente, os benefícios
adquiridos pela atividade. Cabe destacar, inclusive, que nos termos do art. 127 da LEP, o
cometimento de falta grave faz com que o trabalhador perca até 1/3 dos dias remidos.
O acesso ao trabalho, no contexto do nosso sistema prisional, consubstancia uma série
de lutas simbólicas e materiais que o afastam drasticamente do otimismo ressocializador dos
discursos oficiais. O instituto carrega todo o seu conteúdo histórico e social que remonta à
origem do sistema penitenciário, figurando, no máximo, enquanto instrumento de controle de
uma pequena parcela da população prisional. Enquanto isso, os trabalhadores encarcerados
lutam para capitalizar o tempo trabalhado que, em alguns casos, pode tornar o período de
cumprimento da pena menos aflitivo.
Dentro do modelo de execução penal aqui defendido o trabalho pode cumprir papel
decisivo na luta pela redução dos danos causados pela experiência penitenciária, mas precisa
passar por uma rigorosa reavaliação de sentidos que só é viável a partir do abandono da tese
da ressocialização. No caso específico do Brasil, é imprescindível deslocar o debate do campo
da demagogia legitimadora da prisão para a disputa do trabalho, enquanto direito do preso,
nunca obrigação. Um trabalho que seja devidamente remunerado, que leve em consideração a
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história do preso, seus desejos e suas habilidades e que tenha potencial para viabilizar a
empregabilidade do trabalhador após cumprimento da pena.
3.3. A problemática incorporação da legalidade e jurisdição penal para o campo da
execução
O movimento de jurisdicionalização da execução penal na Europa ocidental foi
impulsionado, na década de 70, por novas legislações penitenciárias orientadas por um ideal
reformista da instituição carcerária. Este movimento de reforma traduziu para o campo da
execução da pena alguns corolários do princípio da legalidade penal.
Cabe ressaltar que, apesar do anacronismo daquele movimento reformista quanto as
suas bases criminológicas, o mesmo teve importante contribuição no processo de crítica à
perspectiva jurídico-penitenciária dos sistemas prisionais do ocidente.
O antigo direito penitenciário não traduzia para a execução a legalidade penal,
tampouco a jurisdição e as garantias liberais que devem orientar o processo penal. No
horizonte jurídico-penitenciário, os condenados à pena de prisão não possuem direitos
previsto em lei, sendo objetos de uma autoritária relação especial de poder. Assim, o direito
penitenciário era uma vertente do direito administrativo, com decisivas influências no campo
penal.
A incorporação da ideia de legalidade para o cotidiano prisional e a jurisdicionalização
da execução penal configuram inegáveis avanços normativos. A radicalização deste
movimento é, portanto, um importante passo para a redução do assujeitamento dos presos à
discricionariedade administrativa, o que não afasta a necessidade de exame crítico constante
do exercício da jurisdição.
Do ponto de vista da execução penal como mecanismo de redução dos danos, nos
termos delineados no tópico anterior, é fundamental que o discurso criminológico e jurídico-
penal crítico lutem pela consolidação das garantias executivas, protegidas por um juízo da
execução penal que deve assegurar o princípio da legalidade na execução, restringindo a
discricionariedade da administração penitenciária.
Na realidade brasileira, este processo é iniciado com a promulgação da Lei 7.210/84. A
partir desse marco, o ordenamento passa a considerar o preso como sujeito de direitos e prevê
que o processo de execução seja jurisdicional, presidido por um juízo de execução. Ocorre
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que, ao nosso olhar, este processo de jurisdicionalização e vigência da legalidade, no campo
da execução, segue lamentavelmente incompleto no Brasil.
Esta constatação se relaciona com os mecanismos punitivos e disciplinares que ainda
vigoram no nosso sistema penitenciário. A lógica correcionalista que orienta as punições
disciplinares na execução penal faz com que a legislação abra um grande leque de
possibilidades de medidas punitivas, confiando à agência penitenciária, sem nenhum limite
judicial, o poder de exercer livremente o controle disciplinar no cárcere, fragilizando a
incorporação das garantias penais e processuais no campo da execução penal.
A aplicação de uma punição disciplinar pode configurar grave prejuízo ao detento,
consubstanciando, em alguns casos, efeitos similares aos da própria pena, a exemplo do
isolamento celular, da restrição da convivência e lazer ou o impedimento de exercer trabalho e
aproveitar o tempo de remição.
Zaffaroni (2001, p. 201/207), ao discutir a questão do horizonte de projeção do discurso
jurídico-penal, faz algumas observações teóricas fundamentais para a compreensão do
problema da natureza, penal ou administrativa, das medidas disciplinares na execução penal.
Acompanhamos o professor argentino na compreensão de que a definição da pena deve se
orientar a partir de dados ônticos. Nesse sentido, a natureza penal de determinado mecanismo
de enfrentamento de um conflito não pode ser deixada, do ponto de vista do discurso jurídico-
penal, ao arbítrio da agência legislativa. Ao contrário, a noção de pena deve ser definida a
partir dos dados da realidade, observadas as características decisivas do fenômeno: imposição
de dor e inadequação aos modelos de solução de conflitos dos demais ramos jurídicos.
A partir desta compreensão, que rejeita a possibilidade de que o nomem juris, definido
pela agência legislativa, determine a matéria penal, sob risco de legitimar-se uma genuína
fraude de etiquetas, Zaffaroni (2001, p. 206/207) destaca situações tradicionalmente afastadas
do campo penal que se adequam ao seu conceito de pena, incluindo, entre estas, as sanções
administrativas graves. O autor não destaca a questão das medidas disciplinares no cárcere,
mas entendemos que estas sanções são indubitavelmente dotadas desta materialidade punitiva.
A partir deste entendimento, defende-se que o processo de jurisdicionalização e
incorporação da legalidade penal na execução chegue até as medidas disciplinares, que no
mais das vezes possuem natureza penal. Esta incorporação apresenta-se como condição
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indispensável para que a jurisdicionalização da execução penal se complete no Brasil.
Surgem, então, exigências de natureza material e processual.
Do ponto de vista da legalidade penal, alguns aspectos merecem ser discutidos. O
primeiro diz respeito à aplicação do princípio da anterioridade nas normas de execução penal,
uma vez que a Lei nº 7.210/84 não faz nenhuma referência à sua aplicação no tempo. A partir
radicalização da incorporação da legalidade penal na execução, entende-se que as leis
materiais de execução – que representam uma exasperação das consequências penais
(SCHMIDT, 2007, p. 29/76), à exemplo de novas faltas disciplinares – sejam aplicadas
irretroativamente, adequando-se à noção de anterioridade penal.
A opção político-criminal de levar a sério a legalidade penal na execução cria outra
exigência incontornável: a aplicação da taxatividade neste campo. Como discutido
anteriormente, a legislação de execução penal é constituída por uma série de termos
genéricos, polissêmicos, de pouca precisão interpretativa. Mais uma vez é nos artigos
relativos às faltas e sanções disciplinares que o problema assume contornos mais dramáticos.
Destaca-se, novamente, o art. 50, I, da LEP, que determina que comete falta grave o preso que
“incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina”. Ora, a amplitude
da expressão é tamanha que, a depender da via interpretativa adotada, pode abarcar uma
quantidade infinita de condutas.
Esta situação enfraquece o controle dos atos da administração carcerária, funcionando
como um incentivo à perpetuação do autoritarismo que historicamente orienta as práticas da
administrativas. Parece fundamental que as sanções disciplinares, dispostas na legislação de
maneira tão imprecisa, passem a ser compreendidas, na esteira das considerações em torno de
sua materialidade punitiva, como genuínos tipos disciplinares, e consequentemente sofram
séria revisão legislativa, para que o corolário da legalidade penal, no quesito taxatividade, seja
respeitado.
Também constitui imperativo lógico que o discurso jurídico-penal, na perspectiva
racionalizadora das punições no cárcere, desenvolva, no campo da dogmática, a criativa ideia,
defendida por Roig (2010, p. 01/19), da teoria do injusto disciplinar, como mecanismo de
definição da imputação de medidas disciplinares no cárcere.
Cabe ressaltar que, em que pese a sua materialidade punitiva, os tipos disciplinares
possuem características descritivas e normativas peculiares que, ao que parece, exigem a
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adaptação da teoria do delito, compreendida como o conjunto de requisitos que devem estar
presentes para autorizar a persecução punitiva. Ao defender o desenvolvimento de uma teoria
do injusto disciplinar, não afastamos, sob nenhuma hipótese, a perspectiva que denuncia a
teoria do delito como mais uma promessa não cumprida da modernidade. A promessa de
segurança jurídica e limitação do poder punitivo, especialmente na nossa margem, se
transformou em inegável ilusão (ANDRADE, 2012, p. 183/210). Na esteira do pensamento de
Zaffaroni (2001, p. 2451/281), compreendemos que o desenvolvimento da teoria do delito
impõe às agências judiciais, no mínimo, um constrangimento discursivo, de potencial
limitador, que desenvolvido no campo das faltas disciplinares, insere-se como elemento do
processo de incorporação da legalidade penal, a partir de uma perspectiva redutora dos danos
relacionados à pena de prisão.
Em relação ao processo da execução penal, algumas observações podem ser feitas.
Como abordado, a LEP jurisdicionaliza a execução penal no Brasil, estabelecendo que deve
ser presidida por autoridade judicial. A legislação impõe que uma série de incidentes da
execução, como, por exemplo, a progressão ou regressão de regime, sejam decididos por
juízes e tenham a executividade acompanhada pelo órgão jurisdicional.
Cabe destacar, todavia, que não são poucos os críticos do modelo de atuação judicial no
campo da execução. Algumas considerações, especialmente de processualistas penais
garantistas, apontam a ausência da estrutura dialética no processo de execução, diante da
pouca participação do preso, que, mais uma vez é objetificado, não sendo parte processual
ativa. Esta situação é agravada pela predominância de atos escritos e pela burocratização dos
procedimentos. A oralidade perde papel, o preso raras vezes participa de audiência,
inviabilizando aquilo que Hassemer, citado por Prado (2007, p. 412), chama de compreensão
cênica da situação. A participação do preso-sujeito processual nas audiências da execução
facilitaria o controle jurisdicional sobre o cotidiano do cárcere e eventuais abusos,
contribuindo para que o órgão jurisdicional ocupe um papel central na execução.
A centralidade do órgão jurisdicional no controle da execução penal não se confunde, é
evidente, com a defesa da prevalência do sistema inquisitorial nesta fase processual. Aury
Lopes Jr. (2007, p. 371/406) denuncia que a LEP consagrou um sistema tendencialmente
inquisitório, no qual em diversos momentos não é evidente a separação entre as tarefas de
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acusar e julgar, atribuindo ao magistrado amplas possibilidades de atuação ex officio,
limitando o contraditório e a ampla defesa, relativizando a coisa julgada.
Ocorre que não é tão recorrente a crítica à incompletude da jurisdicionalização da
execução. A lei de execução penal autoriza a imposição de sansões disciplinares, dotadas de
materialidade punitiva, sem a participação do órgão jurisdicional. A lógica autoritária dá
poder ilimitado à administração penitenciária no controle da prisão, possibilitando que o
cotidiano prisional seja orientado pela ameaça e punição indiscriminada, representando
problema que deve ser enfrentado.
Esta situação é tão grave que legislação prevê, no art. 59, que “praticada a falta
disciplinar, deverá ser instaurado procedimento para a sua apuração”, mas não determina o
rito do procedimento, que será orientado por regulamento administrativo. Cabe destacar,
ainda, que é resguardada à administração penitenciária poder cautelar, estando autorizada, nos
termos do art. 60, a decretar isolamento preventivo do preso por até 10 dias. A aplicação
provisória da máxima sanção disciplinar, a inclusão do preso do famigerado Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD), depende de despacho do juiz; não existindo previsão de
participação defensiva do preso-réu antes dessa decisão judicial.
Nesse sentido, parece que, em uma execução penal efetivamente jurisdicionalizada, a
competência para instruir os processos disciplinares e decidir sobre a aplicação das punições
deve ser dos juízos de execução. O processo deve ser deflagrado a partir da provocação do
Ministério Público, devidamente subsidiado pelas informações indiciárias da administração
penitenciária, contando-se com efetiva presença da defensoria pública ou advogado
constituído, como forma de garantir ao preso-réu o direito à ampla defesa e contraditório.
A manutenção da estrutura administrativa de gestão de punições contribui
decisivamente para alimentar o clima estruturalmente autoritário do cárcere. Assim, a
restrição dos poderes discricionários da administração, especialmente na aplicação de
sanções, parece ser uma importante questão na perspectiva de execução redutora de danos.
4. Considerações finais
A partir da incorporação do pensamento crítico criminológico e tendo a abolição do
sistema penal como objetivo de longo prazo, o presente trabalho adota a perspectiva que
abandona completamente as ideologias de recuperação e tratamento das pessoas presas,
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filiando-se à vertente crítica de postura pragmática de redução de danos, a partir de uma
concepção negativa e agnóstica da pena.
Neste sentido, foram traçados dois eixos de análise da execução penal referentes à
transformação das críticas criminológicas em políticas públicas e à incorporação da legalidade
e da jurisdição nessa seara. Destes feixes de observações, é possível concluir, por ora, que o
desenvolvimento de uma execução penal redutora de danos e estritamente garantidora
envolve: (a) a limitação dos prejuízos que a privação de liberdade traz ao indivíduo, buscando
frear o processo continuado de marginalização e exclusão; (b) a abertura do cárcere para
instituições que possam contribuir para a preservação e criação de laços solidários das pessoas
presas, bem como reduzir os espaços de vulnerabilidade; (c) abertura do cárcere à fiscalização
de instituições voltadas à garantia dos direitos fundamentais das pessoas encarceradas; (d)
garantia de direitos subjetivos e serviços essenciais às pessoas presas, como oportunidades
dignas de trabalho e educação, jamais como imposição da administração; (e) desenvolvimento
da jurisdição penal na execução, afastando o arbítrio das punições administrativas; (f)
aplicação das garantias processuais e penais, como anterioridade e taxatividade, no âmbito da
execução; (g) adoção de procedimento acusatório da execução, com participação efetiva da
pessoa presa.
Ressalte-se que este horizonte de propostas pragmáticas e redutoras não significa
acreditar que a prisão possa cumprir seu desígnio humanizador e ressocializador de
criminosos. As necessidades urgentes das pessoas atingidas pelo sistema penal não podem
funcionar como elemento castrador de uma imaginação não punitiva, devendo servir como
ponto de partida para a elaboração de formas diferentes de resoluções de conflitos.
Conscientes dos riscos corridos na proposição de um modelo de execução penal que
sirva menos ao cárcere e mais aos prisioneiros, este trabalho é ainda um esboço de uma
interpretação que quer pensar a execução penal como uma das táticas, indiscutivelmente
limitada, mas possivelmente útil à contenção dos prejuízos causados pela tragédia prisional. A
perspectiva apresentada é herdeira da tradição que pretende progressivamente diminuir o
espaço social da prisão e conter, dentro do possível, os prejuízos causados às pessoas expostas
à experiência da vida encarcerada. A abolição do cárcere, contudo, não ocorrerá de forma
espontânea. Prisões não serão destruídas pela crítica contemplativa, sempre muito coerente,
mas pouco audaciosa. Parece necessário disputar política e juridicamente os mecanismos de
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