afetos e ressentimentos no cinema brasileiro contemporÂneo

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Perspectivas actuais na Lusitanfstica Filmografia Gaudencio, Manuel! Valente, Alexandre, 2009. Secolld Lif e (Portugal, 85 min.) Gomes, Miguel, 2008. Aquele Querida Mes de Agosto (Portugal, 150 min.) He ll er , Mark , 2009. Star Crossed - AlIlor elll l ogo (Po rt ugal, 102 min.). Vieira , Leonel , 2008. Arte de Roubal' (Portugal! Brasil! Espanha, 110 min.). 12 8 (Re)sentimentos e afetos no cinema brasileiro contemporaneo Adalberro MUll er, N ir er6i (Rio de Janeiro) " ESlumos indo de volta pra casa" (Rena la Ru sso, "Por enquanto") "Socorro, nao e SIOu sentido nada!" (Arnalda Antune s/Alice Ruiz, "Socorro") Abstract a cinema brasileiro tern side tradicionalmente abordado, em seu conjun- to, em de problemas hi st6ricos e sociais, como dependencia e subdesenvolvimento. marcando embates en tre este ti ca e poifrica. Aqui se desenha, particu!annente em re l at;:ao ao c in ema produzido a partir de 1990, uma hi st6ria do cinema brasileiro centrada na questao dos afetos e dos sentimen tos. a presente artigo se espe lh a em e procura desenvolver as ideias de uma comunicac;ao que Isma il Xavier aprese nt ou em 2000, no Encontro anual da SOCINE (Sociedade Brasileira de C in ema e Audiovisual). 0 texto se chama "Figuras do ressentimento no c in ema bras il eiro dos anos 90" (Xavier 200 I). Considero os textos de Isma il Xavier desse perfodo, e aq ue- les que ele publicou em to rn o ou a parti r dele, textos emblematicos para se entender 0 ci nema brasileiro dos anos 90 para ca. 0 eixo das posic;oes que Xavier ve rn de fe nd endo desde entao sao de grande importancia para e nten- der a c rfti ca cultural dos ultimos 20 anos no Brasil. Esse eixo se articula em dois mome nt os: primeiro, a questao do ressentime nt o figurado em alg un s filmes que deslocam a ac;ao politica para 0 plano fami li ar ou para 0 terre no dos afetos e dos sentimentos. Segundo, na questao do melodrama, genero praticado com muita frequencia no chamado "cinema da retomada" (part i- cularrnente no cinema de Wa lt er Sales, mas nao apenas). 0 que queremos saber, a partir das posiC;5es demarcadas por 0 citado autor, e se esse deslo- camento do cinema para 0 terreno dos afet.os nao implicaria uma safda para fora da discussao politica, tal como se entendia nos aoos 60, 70 e 80. E tambem, im porla pensar em que medida a dicussao polftica nao estaria 129 K. Sartingen & E.G. Ugalde. Perspectivas actuais em Lusitanística. München, Martin Maidenbauer Verlag, 2011.

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Perspect ivas actuais na Lusitanfstica

Filmografia

Gaudencio, Manuel! Valente, Alexandre, 2009. Secolld Life (Portugal, 85

min.)

Gomes, Miguel, 2008. Aquele Querida Mes de Agosto (Portugal, 150 min.)

Heller, Mark , 2009. Star Crossed - AlIlor elll l ogo (Portugal, 102 min.).

Vieira , Leonel , 2008. Arte de Roubal' (Portugal! Brasil! Espanha, 110

min.).

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(Re)sentimentos e afetos no cinema brasileiro contemporaneo

Adalberro MUller, Nirer6i (Rio de Janeiro)

" ESlumos indo de volta pra casa" (Renala Ru sso, "Por enquanto") "Socorro, nao eSIOu sentido nada!" (Arnalda Antunes/Alice Ruiz, "Socorro")

Abstract

a cinema bras ile iro tern side tradicionalmente abordado, em seu conjun­to, em fun~ao de problemas hist6ricos e sociais, como dependencia e subdesenvolvimento . marcando embates entre estetica e poifrica. Aqui se desenha, particu!annente em re lat;:ao ao c inema produzido a part ir de 1990, uma hist6ria do cinema brasileiro centrada na questao dos afetos e dos sentimentos.

a presente art igo se espelha em e procura desenvolver as ideias de uma comunicac;ao que Ismail Xavier apresentou em 2000, no Encontro anual da SOCINE (Sociedade Brasileira de Cinema e Audiovisual). 0 texto se chama "Figuras do ressentimento no cinema brasileiro dos an os 90" (Xavier 200 I). Considero os textos de Ismail Xavier desse perfodo , e aque­les que ele publicou em torno ou a parti r dele, text os emblematicos para se entender 0 cinema bras ileiro dos anos 90 para ca . 0 eixo das posic;oes que Xavier ve rn defendendo desde entao sao de grande importancia para enten­der a c rftica cultural dos ultimos 20 anos no Brasil. Esse eixo se articula em dois momentos: primeiro, a questao do ressentimento figurado em alguns filmes que deslocam a ac;ao politica para 0 plano fami liar ou para 0 terre no dos afetos e dos sentimentos. Segundo, na questao do melodrama , genero praticado com muita frequencia no chamado "cinema da retomada" (part i­cularrnente no cinema de Walter Sales, mas nao apenas). 0 que queremos saber, a partir das posiC;5es demarcadas por 0 citado autor, e se esse deslo­camento do cinema para 0 terreno dos afet.os nao implicaria uma safda para fora da discussao politica, tal como se entendia nos aoos 60, 70 e 80. E tambem, imporla pensar em que medida a d icussao polftica nao estaria

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Perspecti vas actuais na Lus itanlstica

sendo projetada para dentro do espa,o privado (da intimidade, do lar), ao inves de manter-se onde e 0 seu lugar: na esfera publica.

Referindo-se ao fil me Corafoo lll/",inada (Hector Babenco 1998), Ismail Xavier tenta definir a si tuac;:ao do personagem ressentido, e dele ex­trair alguns tra90s que marcam outras produ~5es dos anos 90:

o dado nOlavel C 0 pr6prio lear IdoJ recuo, au seja, la ] fixa~ao no passado, a ne­cessidade de refazcr percursos que tcrmina numa miragcm de li bcra~ao, como que para confirmar a prese n~a das fe ridas nao cicatrizadas 1 ... 1 H;1 urn senso de fracasso l ... J. e revela-Ise] 0 meslllo mal-eslar que vemos sinalizados por outras figuras que comp&m lada uma ga leria de personagens marcanles dos fi lmes da decada. I Nesta fi xa~ao num estado de situa~ao do passado, ou em algo que aca­ba de se pcrder, ha um potencial dramatico ]igado a projetos de v ingan~a ad ia­dos, remofdos, que encontram no cinema uma variedade de man i fes la~Ocs que romam a figura do ressenti menlo urn dado nOlavel que va le a pena ex plomr. quase urn diagn6stico nac ional (ou continental) (Xavier 200 I: 78·79)

Atraves de um rccuo hist6rico, Xavier analisa 0 drama familiar en­caixado dentro do terreno da luta operaria no filme Eles nlio ltsam Black­Tie (Leon Hirzman 198 1). Adapta,ao da pe,a homonima de Gianfrancesco Guarnieri , 0 filme mosLra ao mesmo tempo 0 terreno da a9aO politico· -sindical, no qual um operario sera assassinado, e 0 terreno dos problemas familiares, no qual l oao (Carlos Alberto Riccelli), 0 filh o do sindicalista Otavio (Gian francesco Guarnieri), se revolta e fu ra uma greve importante, para contrariar 0 pai, c tambcm porque poe em primeiro plano 0 seu futuro com a proximidade do nasci mento do filho. A safd a de Joao-Riccelli para fora do dominic da mili tancia alegoriza e anuncia, para Ismail Xavier, urn cinema que tambem abandonaria 0 seu caniter militante . Fora do terreno da polflica,o cinema passa a explorar as rela90es familiares, ou a vida errante de pcssoas solitarias nos grandes centros urbanos, ou ainda a violencia de bandidos e tra fi cantes, que exprimem seu ressentimento com drogas e chumbo contra urna engrenagern fora de seu alcance.

Gostaria de discut ir aqui alguns filmes dos anos 1990 e 2000 que, a meu vcr podem tornar mais c1aras as posi96es apresentadas por Xavier, e, sc passlvel, fazer avanc;:ar 0 debate em torno de urn "cinema de afetos e de (re)senti rnentos", que ainda marca as produ~6es mais recentes. 0 recorte e amplo, e nem todos os fi lmes serao analisados a fundo, mas vale destacar esta !ista, ainda que provis6ria (todas as listas 0 sao): Um Celt de eslrelas (Tata Amaral 1996); Os I/lOwdores (Beto Brant 1996); Baile perjl/mado (Pau lo Caldas e Urio Ferreira 1997); Cenlral do Brasil (Walter Salles 1998); El/ , ill , eles (Andrucha Wadd ington 2000); u lvollra Arcaica (Luiz

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Fernando Carvalho 2001 ); 0 invasor (Beto Brant 200 1); Abril despe­da~ado (Walter Salles 200 1); Madame Salo (Karim Ainousz 2002) ; Cidade de DeliS (Fernando Meirelles 2002); 0 cell de SlIely (Karim Ai"noup. 2006); o passado (Hecto r Babenco 2007); Coo sem dOllo (Beto Brant 2007) e 0

recente Viajo porque preciso, volto porque Ie af1lO (Karim A1noq4zJ Marcelo Gomes 2009).

Ha uma serie de filmes dos anos 1990 e 2000 que deslocam 0 cinema de sua posi9ao de "vanguarda" de embate politico (como foi 0 cinema dos an os 60, sobretudo do Cinema Novo), ou de crftica aos mecanismos de re­presenta9ao tradicionais (como acontece em cinemas de extra9ao nao aber­tamente poiftica, como os filmes do chamado "cinema marginal" , de Rogerio Sganzerla ou Julio Bressane), para 0 terreno afetivo , ou do (re)sentimento (familiar ou social ): eo que ocorre em urn filme como Baile perjllmado (paulo Caldas e Urio Ferreira 1997), que retrata, em estilo pop, e com todas as cores, a vida cotidiana e privada de Lampiao, Maria Bonita , e seus jagun~os num sertao que outrora era alegoria de uma revolu~ao por vir (veja-se 0 classico Deus e 0 diabo lIa terra do sol de Glauber Rocha, 1964). Baile perjl/mado tem como tema as film agens realizadas pelo li ­banes Benjamin Abrahao no sertao de Pernambuco nos anos 20, que regis­tram 0 dia a dia dos cangaceiros. Ainda nessa clave de revisita9aO do sertao, foi Central do Brasil 0 filme que definiti vamente mostrou que 0 sertao nao era mais aquele dos anos 60. Em Central do Brasil acompanha­mos 0 destine de urn menino 6rfiio em busca de sell pai e de uma esperta senhora, Dora (Fernanda Montenegro), que engana analfabctos escrevendo­-Ihes cartas que jamais serao enviadas. Dora e 0 menino Josue viajam entao pelo sertao em busca do pai deste ultimo (essa busca do pai ou dos la90s farniliares e recorrente no cinema dos anos 80 e 90). Aqui 0 mftico sertao de Euclides e de Glauber serao 0 pano de fundo para a descoberta das carencias afetivas dos prolagonistas, e sao justarnente essas carencias afeti ­vas que constituirao 0 cerne do filme, que se encaixa perfeitamente dentro da moldura melodramatica estudada a fundo por Ismail Xavier (2003), mas que pode ser considerada um dos grandes temas do cinema contemporaneo internacional (cf. l ameson 1983; Yoshimoto 199 1). 0 sertao seria revisita­do de modo comico-melodramatico em Ell , Tu , Eles, que conta a hist6ria de uma mulher de meia-idade (interpretada pela comediante Regina Case), Cortadora de cana, que numa pequena cidade sertaneja con segue assurnir urn relac ionarnento aberto com tres homens ao mesmo tempo. Como se sa­be, 0 trabalho da lavoura de cana (que produz 0 propalado Etanol) e dos rnais desumanos, mas aqui isso pali CO interessa, po is nao sao as rela90es tensas entre trabalho e capital que estao em jogo, mas sim 0 em bate contra

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os c6digos ar~livos que moldam uma sociedade eonservadora. Esse film e lernbra 0 cJtisslCO Dona flor e sells dois maridos (Bruno Barreto 1978) . a' •. , mas . '!UI. a cnllca aos costumes e aos c6d igos sociais nada tem do tom sallrico e lron.lco de urn Jorge Amado ou de urn Nelson Rodrigues. Ali:is , 0 cinema afellvo dos anos J 990 e 2000, quando trala de rela90es familiares, parece afastar-se do VIes pSlCanalftlco e modern ista das pe~as de Nelson Rodrigues, tam~m centradas em quest5cs fam iliares e afelivas. Como bern resume XavIer, 0 leatro de Nelson Rodrigues e composlo de:

Vaidades e ressentimentos; desordem amorosa. Cirnnda de quiproq 6 f e autod I . ~ b . Dc u s, racassos

, es rul~ao 0 SCSslva. sti le de maridos enciumados ou mulheres' t" -fellas a Iramar cenarios de vinganra Congressos de filhos d I Insa IS

(i" ,y. acup",almmar cen. nos de vlllg~n~a. habll3n1es de um mundo a deriva porque sc arado d cslado de pureza Ideal r .. ,I (Xavier 2003: 161) p e urn

Mas tambem se lrata de urn teatro de afetos e sent imentos orquestra­dos ,por urn o,lhar moderno e crftico, porque submete 0 discurso dos c6di ~s a~elJvos ao dIva psicanalftico: que desconsLr6i inclusive as motjva~OeS r:li­gl~S~~, bern ao ~os~o modernlsta: "Diatribe de moralista cujo horizonte e a relJgmo mas cUJa sttaxe e a de urn inconsciente feilo de superf' . . r '1" ICle, palsa-gen~, ~r~J Iar qU,e runclona como uma fabu la encomendada por urn Freud [ ... ] (IbId.). Dal que os filmes dos anos 1990 e 2000 se afaSlam de filmes afet lvos de ongem rodngueana, ou marcados por urn tOI11 I11UilO rodri­guean?, C0l110 os filmes de urn Arnaldo Jabor (Toda "adel. sera casligada, Ell se., que VOIl Ie am~~); de filmes como A dama do {olac:cio (Neville de AlmeIda 1978) e ~OllllJllh{/ .",as ordilloria (Braz Chediak 1980). Os cOdi­gos afet lvos af estao submetldos ao crivo de urn olh .•. / . - ar IrolllCO e ou sarcastl-co que n~o r~ro des nuda (inclusive literal mente) os sentimenlos e os afelos de man~lfa dlstanciada e crfliea, como que sinalizando alegoricamente ue os ~esaJustes na famnia acabam sendo um modelo dos desaiustes polfti!s e Vice-versa. ~ .

(T Muito distante desse tom esta UI11 filme Como VIII Cell de eSlrelas . ala Amaral 1996) . Logo no inicio desse filme surpreendenle vemos a

cabeleoreora de classe m~dia-baixa Dalva (Leona Cavalli) se ma~uiando e ~~1 segulda faze,ndo, as n~alas, Saberemos em seguida que ela vai fazer u~a ~gem para Miami , po lS vencera urn concurso de cabeleireiros E bo

haJa la be . • . . m ra _ 111 m motlvos ecOnOIllIC?S p~ra a viagern de Dalva a Miami (trata-se ,d~ uma decada que produzlU mllhoes de emigrantes brasi leiros uc

deslstlram do pafs depois dos desastres econornicos dos govemos sar~~ e ~ollor), ~ essa chance de urna nova vida que parece 1110tivar Oalva esse pragmallSl1lo de resul lados", lemlO do jd ci lado Ismail Xavier (200 1)' , que

n ....... " ..... · .... . ,._. __ ~

motiva a cabeleireira, Ao mesmo tempo, Oalva estci fugindo de urn namo­rado opressivo e ciumento, 0 (por acaso?) metalurgico Vltor (Paulo Vespucio Garcia). Trata-se aqui de urn personagem ressenlido que nao acei ta a separa\=ao da namorada, A tensao do filme aumenta quando 0 namorado decide manter Oalva e sua mae como refens na pequena casa suburbana, atraindo a poHcia e a imprensa, A presen~a da mfdia televisiva no filme vai pontuando as diferen~as entre a vida afet iva e a intromissao da televisao e da midia na vida privada. 0 desfecho tn\gico do filme de Tala Amaral vai acentuar ainda mais 0 abismo entre a vida afeliva e 0 modo como a mldia passa a "vender" essa vida, seja atraves de urn telejornalismo que investe cada vez mais em estrategias de emocionalizaltao , ou de programas de tele­rreaHdade que exploram as relaltOes afetivas sob urn fingulo espetaculari ­zante. Ora, retrospectivamente, Vm Cell de eSlre{as j ti dramatisava aquilo que viria a ser a tonica do audiovisual brasileiro, razao porque esse tilme, ass im como Eles nao lIsam Black-Tie, talvez seja urn caso paradigmatico (inclusive do discuido de nao ler sido lan9ado ale hoje em DVD).

o ressentimento de Vltor tambem encarna uma outra veJ1ente do ci­nema dos anos 1990 e 2000, marcado por uma fauna de personagens res­sentidos. Que seja 0 ressentimenlo familiar, contra 0 poder opressivo do pai, que gera um filme de irnpressionante beleza 1frica como Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho 200 1)1, OU 0 ressentimento dos deserdados sociais que gera filmes de gangster em favelas como 0 arqui-mencionado Cidade de DeliS (Fernando Meirelles e KMia Lund 2002), que destila de forma espetacularizada e com apuro tecnico impecavel 0 ressentimento dos desfavorecidos, resultando num tipo representaltao que levantou urn grande debate em torno do que e de como 0 cinema deveria moslrar a violencia nas favelas (cf. Benles 2003). Personagem ressenlido que vern da favela cobrar aquilo que a sociedade Ihe deve lambem e 0 Anisio de 0 invasor (Belo Branl 200 1), vivido por Pallio Miklos, do grupo de rock TilaS. Surgido de uma Iiteratura policial florecente nos anos 90, 0 Anlsio e urn avatar do pro­lagoniSla-narrador de 0 cobrador (Rubem Fonseca 1979), que vern cobrar com loda a violencia poss(vel da sociedade excludente que 0 criou aquilo que ela nao Ihe deu. Desenhando um quadro social menos maniquei'sta que Cidade de Deus, Beto Brant, a exemplo do que tizera com 0 excelente Os matadores, revela que hl1. pontes Jigando 0 mundo do crime das favelas e as

I UII'ollra Arcaica lamb(Sm levanla 0 problema do inceslo, lralado por Tala Amara l em &eu segundo longa. Afravb da Janeta (2000), 0 pr6prio Luiz Fernando Carvalho volla­ria ao lema do inceslo com a minisserie Os maios (2001). baseada no romance hom6ni­mo de ~a de Queiroz.

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re l a~5es violentas do capita lismo selvagem praticado nas empresas brasi lei­ras~ on de as rela~Oes nao sao menos tensas que nos barracos dos morros canocas. Em Os lIIatadores ( 1996) acompanhavamos a vida de matadores de a lug~e l (ou pistoleiros) na fronleira do Brasil com 0 Paraguai e sobre­tudo a,v l~a de Mucio., que .se envolve com a mulher do patrao, c q'ue termi­na assdssmado. Os pistoleiros eram retratados aqui de maneira fria, de tal mod~ .que ~stavam longe de encarnar qualquer tipo de ideal (de um "born band ltJsmo a Robin Hood ou a Corisco, de Deus e 0 diabo 110 terra do sol),~ Era~ resentidos que viviam em fun~ao do "pragmatismo de resulta­dos (XavIer 200 I ), e que apenas queriam se dar bem na vida.

_ Na mesma clave do ressentimento, mas em di.re~6es muito diversas. estao filmes como 0 passado (prodw;:ao argentino-bras ile ira de Hector B~benco 2007) , que deconstr6i 0 ressenlimento de uma rnulher que, como 0

Vllor de Um c~u de eSlrelas, nao aceita a separa~ao com 0 rnarido (vivido pclo astr~ mexlcano Gael Garcia Bernal), e leva ao Iimile urn projeto pes­soal.de vmgan~a, m.ovida pelo descontrole total dos afetos. Tambem e res­s~~tldo 0 protagonlsta de Madame Sata (2002) , mas 0 filme de Karim ~ lIl o u!Z , m~nos maniquefsta ainda, aponta para uma transcendencia da s ltua~ao social atraves da expressao estc tica. Temos aqu i um personagem modelo de lima outra forma de pensar os exclu fdos, aqueles que nao apenas querem se dar bern , mas que bus.cam a. t~do custo , e com urn esfor~o quase sobr~-~umano , ultrapassar pcla IIl ventl vldade e pela cri a~ao poietica uma c.ondl~ao desfav.ornv~el. 0 mrne. d.e Karim Ainousz mostra, fugindo de urn ngoroso. e mamquelsta deternlllllsmo neonaturalista que subjaz a fi lmes como Ctdade de Delis , que 0 brasileiro e capaz de supcrar as amarras do s~cular des~aso .do Estado para com os desfavorecidos, projetando a ques­tao para 0 ambIto das rel a~5es de genero (trata-se ac ima de tudo de urn homosse~ ual que tenta superar, alem da bal'reira economica, a barreira do p:e~oncelto). Madame sma talvez ja tenha apontado para aqu ilo que seria a tOI1l~a dos anos 1990 e 2000 no que diz respci to a pobreza e a excl usao (in­clusive de genero): e posslvel superar, c posslvel veneer. E a prova maior dess~s exemplOS de supcra~ao seja a hist6ria do pr6prio Luiz lnacio Lula da Silva, cUJas campanhas elei torais sempl'e enfatizaram esse tipo de di s­cu~so do exclufdo e pobre nordestino que vence na vida e transfonna 0 pafs ;nao por ae~so , su~ hist6.ria acabou-se tl'ansforma ndo em fi lme recentemen­e)~ as efeltos pSlcol6glCOS desse turning poi", na nossa His t6ria ainda

estao pa~a ser detenninados e ava liados, sobretudo na vida dos excl uldos c ex-exeluldos.

. 0 segundo longa de Karim Aiho~z , 0 Cell de Slleiy (2006) tarnbern IIlveste nesse lema dos exciuldos em busca da supera~ao pesso~ l , agora

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ambientando a {"rama numa pequena cidade do serlao cearense . Suely (Hcrmila Guedes) faz 0 pel'curso inverso dos retirantes de Graciliano Ramos , ela vai de Sao Paulo a pequena cidade do sertao onde nascera . Mais do que um sertao "em cores", "despolilizado", 0 sertao de Hcrmila e afeti ­vo. Quando descobre que 0 marido, que viria morar com ela , nao vem, ela decide voltar a Sao Paulo. Scm dinheiro para voltar, conludo, cia toma a decisao inedita de rifar 0 pr6prio corpo para consegu ir pagar a passagem de volta e sobreviver em Sao Paulo decentemente . Visto assim, sem analisar os detalhes do filme, 0 ate pareceria brutal e violento; mas trata-se antes de urn ato deliberado e pensado por Suely, inclusive porque sabe que ass im pode dom inar e cont ro lar os desejos de mach5es do interior, dispostos a fazer de tudo para possuirem Suely duran te uma noite . Assim como em Madame sa/a (e assim como ja 0 fi zera Tata Amaral), Karim AtnOl.Jlz fi l­rna com a dimera colada na personagem , uma dimera que " respira" com a personagem, criando uma narrativa muito centrada na interpreta~ao e na perfonnance de sua atriz. Na medida em que quase mergu lha na pele mes­mo da personagem, essa dimera tende a del iberadamente of us car 0 exte­rior, sobretudo aquele exterior opressivo e aquela realidade cortaote que viamos ern filmes como Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos 1963). Ao mesmo tempo, tal como ocorre em Madame Sala, Ainousz investe num olhar para as rel a~oes afetivas e domesticas, em dialogos que tratam de te­mas do cotidiano muito mais do quem em dia logos aleg6ricos ou pantleta­rios.

Em alguns film es receotes, 0 mal-estar na cidade p6s(?)-moderna parece advir antes de uma incapacidade para gerir e en tender os afetos e as re l a~6es fam iliares, como ocorre em filmes como Meu l1Julldo em perigo (Jose Eduardo Belmonte 2007) e cao sem dono (2008), no qual 0 ressen­timento rega a violencia. Em Mell mllndo em perigo, os personagens pare­cern estar a deriva dos afetos, incapazes de superar sellS traumas fam ili ares, que os expul sa para s itua~6es de solidao e de incomunicabil idade. Ha em Belmonte tambCm uma sensibilidade rara para arlicular esse est ado afetivo de perlurba~ao e urn ritmo de dimeralmontagem bastante pr6ximo do que sentem os personagens , real izando aquele ideal pasoliniano da subjeti va indireta li vre (cf. Muller 2006). 13 em cao sem dOIiO, Beto Brant explora 0

lema do personagem errante, 0 personagem sem destine e sem ideais na grande melr6poie, urn personagem comum na Iiteratura modern a e nos ci· nemas novos2. Mas aqui tudo culmina com urn relacionamento amoroso

2 Essa erTane ia/deambul a~ao csta prescnte em dois fi lmes brasileiros de grande reper· eUSsao na erhica. cujos rcalizadores se consagmram bem antes do perfodo de que

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que tende a levar 0 prolagonista a encontrar urn senti do verdadeiro para a vida, quando a narnorada, recuperada de urn dincer, convida-o para urna viagern a Barcelona. Ao que parece, estarnos diante de urn quadro em que tudo parece se resolver em terrnos de rel a~5es afeti vas, como se OUlros problemas tao graves oulrora (exclusao social , violencia urbana) fossem menos imponantes ou simplesmente nao contassem. Nesse sentido, Meu 111111ldo em perigo traz urn ingrediente importante. Urn acidente de carro, uma fatalidade, acaba alimentando urn projeto de v ingan~a , de urn perso­nagem ressentido que vira deslruir 0 relacionamento amoroso -que supera a incomunicabilidade dos protagonistas- de forma tragica.

A modo de conclusao, e impassivel nao mencionar aqui , ainda que de passagern , 0 recente Viajo p Ol'que preciso, vallO pOl'que te 01110 (2009) da dupla Karim A"'ino,""z e Marcelo Gomes (este ultimo, diretor do excel en­te e premiado road movie Cinema, wpirinas e unibus, de 2005). Trata-se de urn documentario de grande intensidade lfrica, no qual urn ge610go viaja pelo serHio enquanto Ilarra 0 tim de urn relacionamento amoroso . Revisi­tamos, atraves de imagens incidentais, quase precarias, mas muito bel as, 0

mesmo sertao de sempre. Mas nao para vcr as mazelas publicas e palfticas de descaso do Estado, nao para ver a fom e e a miseria, mas para en tender, numa dialetica dentro/fora, a miseria emocional em que esta jogado 0 na­rrador. Quc alias, e apenas uma voz. Uma voz gritando no deseno . Desena de afetos c (re)sent imentos.

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CSlamos tnllando. ESlou-me referindo a £storvo (Ruy Guerra 1999). baseado ern romance hom&ni mo de Chico Buarque. c a Hotel Atlfilltico (S usana Amaral 2(09). Nos dois lil­mes o a errflnc ialdeambula~ao. lanlo quanlo os procedimenlos fflmicos cmpregados. es­lao muilo mais pr6x imos de um cinema modemo, herde iro e continuador de uma lradi· ~ao que inclu i nomes como Godard , Truffau l, Ozu, Tarkovski . Trala·se de fihnes que ex igiriam um trabalho a parte . exawmente porque nao se situam mu ito faci lmenle em olhares panoramicos como os que eSlamos propondo.

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137 K. Sartingen & E.G. Ugalde. Perspectivas actuais em Lusitanística. München, Martin Maidenbauer Verlag, 2011.

Martin Meidenbauer K. Sartingen & E.G. Ugalde. Perspectivas actuais em Lusitanística. München, Martin Maidenbauer Verlag, 2011.