pastoril: um musical brasileiro - dialnet

21
- PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO INTRODUÇÃO Andrade elaborou o conceito em 1934, tentan- do agrupar na classifica- ção os ritos populares em que havia ação teatral se- guida de enredo, caracte- rizados por elementos coreográficos. O impulso religioso inicial, a associ- ação de canções, danças e teatro como meios de contar uma história, a co- existência de elementos cultos e populares situam- se entre os mais interes- santes aspectos apontados pelo autor, quando inter- preta o fenõmeno. Incluir pastoril no seu conceito de Danças Dramáticas, entretanto, foi-lhe sempre conflitante. Por não existir em todo o Brasil, soou-lhe etnograficamente menos relevante. E a mis- tura de elementos da cultura culta com a po- pular não se acomodava completamente a suas idéias. Mesmo na desconfortável tentativa de in- serir o evento nesse conceito, sua intuição su- pera-lhe o preconceito. O caráter rapsódico que caracteriza o evento assemelha-se ao conceito de Gramsci em Observações sobre o Folclore: MÉRCIA PINTO· RESUMO E ste texto resume uma pesquisa sobre o pas- toril, para buscar enten- der os mecanismos de estabilidade e mudança na evolução desta tradição popular. As análises vão além dos estudos existen- tes, na tentativa de esclare- cer aspectos culturais brasileiros até agora consi- derados menos relevantes nos círculos acadêmicos. Pastoril, pastorinhas, bailepastoril, lapinba, pre- sépio são denominações dadas no Brasil a festivida- des que originariamente revivem a jornada dos pas- tores a caminho de Belém, para louvar Jesus Cristo e sua família 1 . O destaque ao episódio deve-se aos pastores estarem presentes em quase todas as cenas da passagem bíblica, exceto nas profe- cias. Quando o anjo anuncia a novidade no cam- po, na ida a Belém e no momento da adoração, os pastores compõem o cenário da legenda. Sob muitos aspectos, os pastoris são reminiscências das formas de teatro religioso medieval. Envol- vem canções, danças, partes faladas e são ritos pouco pesquisados. Dentre trabalhos escritos, o de Mário de Andrade informa sobre origens e características musicais dos pastoris. Liga-se ao conceito de Danças Dramáticas, no qual classi- fica o pastoril. 2 Este trabalho sumariza uma pesquisa sobre pastoril. En- cenado durante o período natalino, esse gênero musical apareceu no Brasil como resultado da mútua influência de culturas que a colonização trouxe. Utopia familiar, idílio e idealização da natureza fundiam-se ao catolicismo po- pular e a seus votos de devoção, para construir o imagi- nário que permeia as festividades. No século XIX, fez mais intensamente parte da cultura popular urbana. Sua popularidade decresceu no fim do século e quase desa- pareceu no século XX, na fase em que era implantada a comunicação de massa. Na trajetória evidenciaram-se rupturas quando sua forma se fragmentou na prática e recombinou-se em eventos e performances. A autora destaca que as rupturas coincidiram com mudanças es- truturais na sociedade brasileira. Através de planos interpretativos, aproxima o leitor dos significados de di- álogos e músicas e põe em questão alguns fatos da cul- tura brasileira, pretendendo contribuir para desenvolver métodos de investigação de tradições populares. • Professora do Departamento de Música, Universidade de Brasília. Ph.D. Musicology University 01Liverpool- England. 16 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2 ... se é que não se deve mesmo falar de um aglomerado indigesto de fragmentos de todas as concepções do mundo e da vida, que se su- cederam na história, sendo que tão-somente nofolclore podem ser encontrados os documen- 2002

Upload: khangminh22

Post on 29-Apr-2023

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

-PASTORIL:

UM MUSICAL BRASILEIRO

INTRODUÇÃO Andrade elaborou oconceito em 1934, tentan-do agrupar na classifica-ção os ritos populares emque havia ação teatral se-guida de enredo, caracte-rizados por elementoscoreográficos. O impulsoreligioso inicial, a associ-ação de canções, dançase teatro como meios decontar uma história, a co-existência de elementoscultos e populares situam-se entre os mais interes-santes aspectos apontadospelo autor, quando inter-preta o fenõmeno. Incluirpastoril no seu conceitode Danças Dramáticas,entretanto, foi-lhe sempreconflitante. Por não existirem todo o Brasil, soou-lhe

etnograficamente menos relevante. E a mis-tura de elementos da cultura culta com a po-pular não se acomodava completamente asuas idéias.

Mesmo na desconfortável tentativa de in-serir o evento nesse conceito, sua intuição su-pera-lhe o preconceito. O caráter rapsódico quecaracteriza o evento assemelha-se ao conceitode Gramsci em Observações sobre o Folclore:

MÉRCIA PINTO·

RESUMOEste texto resume umapesquisa sobre o pas-toril,para buscar enten-

der os mecanismos deestabilidade e mudança naevolução desta tradiçãopopular. As análises vãoalém dos estudos existen-tes, na tentativa de esclare-cer aspectos culturaisbrasileiros até agora consi-derados menos relevantesnos círculos acadêmicos.

Pastoril, pastorinhas,bailepastoril, lapinba, pre-sépio são denominaçõesdadas no Brasil a festivida-des que originariamenterevivem a jornada dos pas-tores a caminho de Belém,para louvar Jesus Cristo esua família 1. O destaque ao episódio deve-seaos pastores estarem presentes em quase todasas cenas da passagem bíblica, exceto nas profe-cias. Quando o anjo anuncia a novidade no cam-po, na ida a Belém e no momento da adoração,os pastores compõem o cenário da legenda. Sobmuitos aspectos, os pastoris são reminiscênciasdas formas de teatro religioso medieval. Envol-vem canções, danças, partes faladas e são ritospouco pesquisados. Dentre trabalhos escritos, ode Mário de Andrade informa sobre origens ecaracterísticas musicais dos pastoris. Liga-se aoconceito de Danças Dramáticas, no qual classi-fica o pastoril. 2

Este trabalho sumariza uma pesquisa sobre pastoril. En-cenado durante o período natalino, esse gênero musicalapareceu no Brasil como resultado da mútua influênciade culturas que a colonização trouxe. Utopia familiar, idílioe idealização da natureza fundiam-se ao catolicismo po-pular e a seus votos de devoção, para construir o imagi-nário que permeia as festividades. No século XIX, fezmais intensamente parte da cultura popular urbana. Suapopularidade decresceu no fim do século e quase desa-pareceu no século XX, na fase em que era implantada acomunicação de massa. Na trajetória evidenciaram-serupturas quando sua forma se fragmentou na prática erecombinou-se em eventos e performances. A autoradestaca que as rupturas coincidiram com mudanças es-truturais na sociedade brasileira. Através de planosinterpretativos, aproxima o leitor dos significados de di-álogos e músicas e põe em questão alguns fatos da cul-tura brasileira, pretendendo contribuir para desenvolvermétodos de investigação de tradições populares.

• Professora do Departamento de Música, Universidadede Brasília. Ph.D. Musicology University 01Liverpool-England.

16 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

... se é que não se deve mesmo falar de umaglomerado indigesto de fragmentos de todasas concepções do mundo e da vida, que se su-cederam na história, sendo que tão-somentenofolclore podem ser encontrados os documen-

2002

-tos incompletos e contaminados que sobrevive-ram da maior parte destas concepções.... outrossim, não há nada mais contraditórioefragmentário do que ofolclore 3

Estudou-se o pastoril a partir dessa pers-pectiva, absorvendo os estratos contraditórios econfusos das diferentes concepções de vida deque fala Gramsci.

REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

Considerando-se os impedimentos e asespecificidades que caracterizam os estudos damúsica popular do Brasil como disciplina aca-dêmica, o enfoque pareceu novo, desafiador. Aausência de fontes em arquivos, tanto quantode um quadro metodológico capaz de apoiar opesquisador com ferramentas apropriadas parao entendimento, foram dificuldades para enten-der a diversidade dessa tradição. O corpo dedisciplinas teóricas para explicar o tipo de de-senvolvimento da música num meio urbano noBrasil não está estabelecido. As fontes existen-tes têm o olhar na retenção das tradições nãourbanas. As pesquisas tratam das urbes comounidades de continuidade dessas tradições e osgrupos estudados como enclaves que mantêmintactas antigas práticas musicais. Material espe-cializado sobre antropologia, sociologia e pla-nejamento urbano força musicólogos a pensarno papel da interação da música nas cidades.

Com relação ao pequeno auto natalino, aabsorção de novos elementos (instrumentos ,tecnologias, mudanças na construção das melo-dias, ritmo, lírica e vestimentas), a quantidadede informações, a associação com a complexi-dade do sistema social, diferentemente do en-contrado nas pequenas comunidades rurais,foram problemas na investigação. Quanto maisse tentou definir ou categorizar o evento, maisele fugiu.

Evitou-se preliminarmente o simples con-ceito de sua origem rural. Embora haja muitascaracterísticas da vida rural na festividade, a tra-

BCh·\.PEF51.QDIr:OS_

dição desenvolveu-se em cidades pela capaci-dade de atraírem diferentes grupos sociais. É umacelebração que coexiste numa região fronteiriçacom a su perposição de períodos históricos eculturas, com forças seculares e religiosas con-vivendo. Portanto, as dicotomias clássicas po-pular/folclórico, sagrado/profano, popular/erudito, rural/urbano foram insatisfatórias paradefinir ou classificar o objeto. Sua heteroge-neidade e a característica informal, extra-oficialdas fontes dificultavam a visão clara de causa eefeito em seu desenvolvimento. Se nãoredefinidos, os conceitos precisaram ao menosser comparados.

Como reconstruir um passado, trabalhan-do com material tão esponjoso? Pesquisandoas idéias de Bruno Nettl sobre metodologiaspara estudar a música numa sociedade urbana,encontrou-se ênfase à necessidade de enfoqueshistórico e antropológico"; o que trouxe su-porte para pesquisar o pastoril. De um lado,olhando seus passados remoto e recente; deoutro, detectando os momentos de mais signi-ficado e contribuição para identificar e diferen-ciar o evento no meio social. Vagueando pordiferentes caminhos interpretativos - ajustáveisou excluíveis - observou-se o pastoril sem exi-gir definições, categorizações, interpretação de-finitiva ou infalível. Mais ainda: não se tem esteenfoque como único caminho para apreendero assunto.

Seguindo a tendência dos estudos históri-cos dentre das especificidades da musicologia,faz-se esforço para alcançar um enfoqueinterdisciplinar até para renovar as perspectivasdo estudo. Em busca de significados e interpre-tações, às vezes o silêncio das fontes obriga aum olhar oblíquo. Imaginário popular, mitos,contos, histórias sagradas, memórias pessoais,experiências musicais, literatura, cinema, progra-mas de rádio, televisão, tudo que pudesse pro-duzir representação foi usado para auscultar asensibilidade social.

As atividades e os limites do material in-vestigado foram captados majoritariamente no

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 17

-ordeste do Brasil e cobriram do período colo-

nial (crônicas de viajantes e teatro jesuítico) aomeio do século XX, com a chegada da televisão.Se Gramsci e Nettl apoiaram teoricamente estacompreensão da natureza das práticas musicaisnum meio urbano, John Blacking favoreceu aidéia de estudar o pastoril numa perspectiva si-multaneamente sincrônica e diacrônica.?

DESCRiÇÃO DO EVENTO

Na forma e no estilo mais conhecidos, noséculo XIX o pastoril emergiu como evento po-pular, acompanhando a diversificação dos grupossociais resultantes do crescimento especialmen-te das cidades costeiras do Nordeste do Brasil.Esta pesquisa preocupa-se, em primeiro lugar,com as transformações na transição delas para amoderna vida urbana. Sua implantação na colô-nia como sinal de grandes mudanças impostaspelo poder lusitano (jesuítas como braço ideo-lógico), a mútua influência entre pastoril e car-naval, seu olhar opaco para o Teatro Revista esua rota e desbotada sobrevivência nos bordéisda periferia das cidades são momentos de des-taque em sua história.

Os pastoris do século XIX eram apresenta-dos em casas de famílias abastadas. Nos dezem-bros arrumava-se o presépio na sala de visitas,com estatuetas da Sagrada Família, de animais ereis magos. Enfeites artesanais e arbustos com-punham o cenário, e as residências eram aber-tas a visitação. Diferentes grupos homenageavamCristo recém-nascido com oferendas, cantos edanças. As famílias rurais conheciam o podereconômico encravado no tipo de produção quedominou o país até o fim do século. Patriarcaisescravagistas baseavam seus lucros na explora-ção dessa força de trabalho.

Transferindo-se para a Cidade, conserva-ram hábitos e privilégios. As relações sociaiseram de dupla moral. Católicas, adotavam for-malmente a monogamia. O ambiente domésti-co era respeitoso e hierarquizado por idade e

18 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

sexo. Homens e velhos tinham prioridade. Dasmulheres se esperava castidade antes do casa-mento e fidelidade marital depois, assim comofizeram suas mães. a prática, a família erapoligâmica. Para homens, relações sexuais forada família eram possíveis e desejáveis. Numasociedade dominada por homens, as mulherestornavam-se sua propriedade, seu brinquedosexual. Unificava-se a submissão. No contexto,imagens femininas contrastavam: casamentosarrumados, moral idade e castidade; ou licencio-sidade, nascimentos ilegítimos, ausência decasamentos e humilhações. Natural que as fa-mílias vissem encontros sociais e festas religio-sas como cenário de apresentação de seusdescendentes, como ocasião para alianças, paraexibir (ou simular) status.

Festividades natalinas eram propícias paraencontrar seus pares. Meses antes, amigos e vi-zinhos envolviam-se em ensaios, preparação decenários e vestes dos personagens que fariamparte dos jogos teatrais a apresentar frente aoaltar da sagrada família. Os enredos eram escri-tos por alguém ligado a associações religiosas(confrarias), pessoa vista como culta por conhe-cer textos sagrados. Bem informado sobre polí-tica e bons costumes, lia salmos, epístolas,evangelhos, literatura e adaptava textos.

Pelo sentimento de paz que o Natal inspi-ra, diferenças de classe, intrigas e querelas comfamiliares e vizinhos eram esquecidas. Os laresabriam-se a grupos populares que em procissãopercorriam as residências mostrando afeição pelorecém-nascido no presépio. Evidenciando a fi-gura das pastoras, os grupo pediam licença paraentrar nas casas; cantavam, dançavam e seguíamoMúsicos populare ,pe oas simples, viúvas, fi-lhas de empregado pobres, escravas ou mãessolteiras compunham o grupo de pastoras. Até 6de janeiro, quando havia a festa da queima daspalhas da manjedoura, essas funções faziam partedas atividade de pequenas cidades e vilas.

Em contraste com a formação em grupodas paradas das pastoras, os jogos teatrais ilumi-navam per onagem por personagem. Príncipes,

2002

-princesas, ninfas, fadas de reinos distantes de-monstravam o imaginário e as aspirações da so-ciedade. Lutar contra o infiel, defender acastidade, a caridade com os menos favorecidose a volta do filho pródigo eram enredos popula-res. A participação dos jovens compunha suaeducação sentimental e moral. Após as apresen-tações e a última rodada de comida, dona dacasa e filhas iam dormir. Outra parte continuavaa festa fora das residências. A vida boêmia con-vidava os homens a desfrutá-Ia na companhiadas amigas de Vênus.

Unificados pelo sentimento natalino e pelagenerosidade da grande família, os grupos seapresentavam. Como característica geral, os pas-torisnão tinham ordem predeterminada. Diferen-temente da desordenada e violenta característicado entrudo, a ambiência era calma, tendendo aabrigar estilos incrementados pela competiçãointergrupal. A festa era vivida à parte, em cadagrupo: mais rural e conservador para alguns, maisreligioso para outros; mais cosmopolita para uns,mais cômico para outros.

A participação feminina demonstrava quea performance dos pastoris fazia parte de suaeducação, era lugar de mostrar seus dotes demulher. Podiam diferenciar-se dós grupos po-pulares sem família, sem dinheiro. A despeitoda aparente confraternização, moças e rapazesrepresentavam suas famílias. As cançõesoperáticas, as danças de salão e o conteúdo dosenredos testemunhavam o tipo de ideário de seugrupo social.

Comparando entre si os grupos e levandoem conta o tipo de sociedade em questão, pode-e dizer que representavam dois lados da socie-

dade hierarquizada. A festa de natal comoritualização da sociedade patriarcal nordestina,dela emergindo o mundo dividido entre ricos epobres. Forma e função do evento os distinguem.A procissão popular se alterna com os jogos te-atrais dos abastados, separa ricos de pobres erevela os valores de cada um.

A despeito da confraternização, os pastorissimbolizam a grande família. Mas as implicações

ideológicas vão além de momentos nas salas devisitas. Enquanto iluminam o estilo e as aspira-ções das famílias, permitem aos homens aprovei-tar a noite nas ruas. Perdoados pela religião ereforçados pelo chauvinismo social, fazem usodos corpos femininos nos bordéis, por vezes osmesmos que dançavam em suas casas. Seracionalidade, moralidade e conhecimento erammais relevantes no ambiente doméstico, o rever-so conferia nas ruas identidade ao entretenimen-to. Se em casa a Virgem os abençoava,congelava-Ihes as emoções sob o manto e con-trolava-Ihes a sexualidade por meio de conceitosmorais, nas ruas a tradição punha a hierarquia decabeça para baixo, e a rotina era quebrada.

Nos bordéis, as prostitutas tomam o lugarda Virgem Maria, conferindo masculinidade aoshomens. O lado feminino emerge e é prêmio,objetivo do desejo. Os pastoris mostram duasfaces da educação feminina e duas funções paraos homens: escolher as moças para casar e ou-tras para o prazer. O ritual é o momento em quea sociedade se redefine, reforça os conceitosestereotipados da visão dualista feminina típicade classes privilegiadas que vêem a mulher pro-priedade, a mulher preconceito, a mulher dis-criminação social.

ENREDOS

Nos primeiros contatos com a festividadeforam identificadas características do estilo literá-rio que marcou a vida cultural do Brasil nos sé-culos XVII e XVIII. O estilo colonial se mostravana arquitetura de igrejas e casas grandes, em tex-tos, no teatro, na decoração, caracterizando-se porexuberância de formas e pompa litúrgica. Ecoouno Brasil com as lutas religiosas entre católicos eprotestantes, espalhado pelo mercantilismo e pe-las grandes navegações, com a marca das festivi-dades profanas ou religiosas. Divertimentospúblicos, ópera, atividades teatrais e procissõescontribuíram para formar os pastoris em enredose personagens, principalmente. Evocando o sim-

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 19

-bolismo da renovação pela fé, conhecido dos cris-tãos e exibido pelos personagens nesses dramas,os pastoris têm uma infinidade de reinterpretaçõesno imaginário da população. A dramatização seliga ao conflito, à luta cristão/infiel, entre doisconceitos de vida que levam à confrontação nofim do enredo. Os discursos são em linguagemlaudatória e conservam o ethos trágico.

Aos pés da liberdade geme e arquejaa vil escravidão, esta que outrorasedenta pretendia ser senhorada doce liberdade que o mundo inveja.

O' céus, que sobre nós a paz bafeja,da vitória o troféu já nos arvora.A servil levantar não ousa agora,A caterva enfadonha enfim fraqueja''

Em ritmo rápido, paixões e ódios crescem,batalhas são ganhas, reinos perdidos. A ação sepassa em minutos. Os enredos apresentam temasidílicos, doutrinários, religiosos ou de grandesconflitos da época, como o poema anterior queevoca escravidão, liberdade e vitória, preocupa-ções da sociedade brasileira da última metade doséculo XIX. A densidade e a expressividade desentimentos e a força catalítica, que ilumina aconformidade entre verdade e beleza, tipificarn aimaginação em questão.

Adorada senhora! O alfabeto do teu peito,unindo-se aos volumes de minh 'alma,faz com que a universidade do teu corpoviva abrasada em duas chamas.

Eu que revendo o livro das razões,segundo a confusão do teu querer,achei na prosódia dos teus olhosum amor que não consigo entender. 7

Em outro espécimen, a renúncia supremaao poder em prol da vida no campo:

Não, ele não troca um trono augustoPela vida pastoril, vida sem custo.Umparaíso de paz e tranqüilidade,Onde não vigora a negra crueldade.

20 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

Quanto é belo ver a madrugadaraiar no horizonte abrilbantada,ver a aurora nascendo com mil coresno aromático cheiro de tantas flores.

e assim vem nascendo o claro diatrazendo paz serena e alegria.E quem trocará tão feliz sorte,Por um leito triste como a mortet"

Junto à descrição de cenas rurais e de re-torno à natureza, percebe-se como o cristianismoreinterpretou a mitologia greco-romana, para cons-truir seu imaginário. O personagem mouro pren-de as pastoras, impedindo que sigam para Belérn:

Levantai-vos, gentis ninfas, o' pastoras,dos braçosque Amor eMorfeu vos temprendido,pois a liberdade que tínheis até agora,em poder de nós outros a tens perdido 9

Na tentativa de entender a estrutura dra-mática, os textos foram divididos em pastorais,épicos e paródicos!". No primeiro grupo, pure-za, inocência, idílio pastoral identificam o dis-curso. Tranqüilidade, emoções moderadas,ausência de surpresas ou desacordos estão sem-pre presentes; a reconstrução da noite santa é oprincipal objetivo. A lírica abaixo, ilustra bem asobrevivência deste estilo, numa melodia colhi-da num subúrbio de Fortaleza-CE.

Vinde, correi, o'pastoras.Que maravilha aconteceu.O Deus menino fez-se homem,já nasceu, já nasceu, dái louuores.'!

No segundo grupo prevalecem as concei-tuações morais. Grandiloqüência de argumen-.tos e caráter doutrinal da linguagem, sofisticaçãoe atmosfera irreal de um tempo legendáriosumarizam-no. Vê-se o mundo como palco deações heróicas. Cosmologias, profecias, parábo-las, redenção e conversão são assuntos centrais.Grandeza de ideais e nobreza de caráter carac-terizam seus heróis.

2002

-A um Deus eterno é que devo louvarmais que a um vivente.Tocou-me o coração a mim de repente.Surdo estou às queixas do mundo enganador,votei em Deus empregar o meu amor.Deixai pois quero, e de nenhum conselho mais tolero.12

Impregnados da ética da glória, heróis ten-tam convencer os demais da superioridade doe pírito, reconciliando vontades e paixões paraatingir os alvos.

E há enredos com a caricatura das coisas,aspectos marginais da vida, quebra de regras.Contrastando com os dois tipos anteriores, co-mentam o cotidiano: o bobo, a mulher puritana,o marido enganado, o aleijado, o surdo, o padrenamorador são personagens. Ironia, sarcasmo,marginalidade dão idéia da atmosfera:

Essas mulheres casadas que enganam seus maridosÉ espingarda de dois gatilhos,Um é do besta e outro do sabido.

Estes rapazes de hoje que não gosta de muléÉ espingarda que não atira,E quando atira é de marcha ré.

Estas mocinhas de hoje que não pensam no futuroÉ espingarda que não atira,E quando atira é no pé do muro.

Estesvelhinhos bem velhinhos que dos oitenta já passouÉ espingarda que não atira,Porque o gatilho já emperrou.U

PERSONAGENS

Observa-se, as pastoras ocupam o maiorespaço do evento. São personagens principais,contribuem com individualidade e personalida-de para a atmosfera pastoral do cenário, mesmoquando a jornada a Belém não é explícita. Pro-porcionam vida, motivação e energia aos enre-dos. Nos dramas são heroínas, mestras decerimônia, mediadoras entre Deus e seu povo,juízas de conflitos, guardiãs de fé, simplicidade,caridade e zelo. São mulheres sem nome cuja

BCH-ur'--:PERiÓDICOS

graça contrasta com a beleza de ninfas e prince-sas de jogos teatrais. Mesmo nos pastorisparódicos, em que se quebram as regras do com-portamento e elementos não canônicos não sãopecados, as pastoras reforçam as regras da soci-edade. Sobre sua presença no imaginário popu-lar nordestino - região não pastoril, com criaçãode ovelhas não disseminada e mulheres caracte-risticamente caseiras - não há aprofundamentode estudos; mas entre pastor, símbolo da vidarural, e pastoras, personagens principais de umevento urbano, percorre-se longo caminho, comlacunas que não se consegue preencher."

Na festividade popular, as pastoras dão su-porte às cenas, fazem o coro das músicas, acom-panham-nas com castanholas ou tamborins. Asregras da performance (coreografia e canções) esua função fora do palco, no entanto, são contro-ladas por homens. As vestes sempre apresenta-ram múltiplas mudanças. Nas primeiras fontespesquisadas usava-se branco e carregavam-se lan-ternas. Depois roupas curtas, coloridas, com om-bros e cabelos realçados por coroas de flores efitas. Com a vinda do carnaval veneziano, muitasfantasias chegaram ao Brasil, entre elas a de pas-tora européia, que modificou as vestimentas anti-gas. A dança assumiu caráter sensual ecarnavalesco, até incorporar-se aos cortejos deescolas de samba. Com o cinema configurandonovos mitos femininos, há influências na repre-sentação da mulher. Cria-se novo tipo de pastora.

Apesar de ter menos destaque, o pastor épersonagem relevante, líder e condutor do ca-minho para Belém. Interessa notar que às vezeso papel se inverte, sendo ele um velho que seapaixona por uma das pastoras.

Eu sou velho, muito velho.Já não posso mais andar.Queria uma pastora,pra comigo se casar.

Sou velho, muito velho.Já andei o mundo inteiro.Vocêsfiquem sabendo,velho sim, mas com dinheiro. 15

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 21

-Nos pastoris mais ligados à prostituição,

mais que palhaço o velho pastor é dono e em-presário das mulheres, na realidade. Interpretaos personagens masculinos dos esquetes e até"arranja" encontros para elas.

As alegorias são o último aspecto a identi-ficar os pastoris com o mundo colonial:

O' Ásia mais que atrevida,não sejas tão petulante,repara que o teu arrojohei de abater neste instante.

Todo mundo me conhecepor África, a destemida.E ninguém há de dizerque a seus pés me viu rendtda.l?

Simbolizam fenômenos naturais, estadosde espírito, bichos ou animais. Mitologia, virtu-des teologais, grandes abstrações humanas mis-turam-se à grandiloqüência dos enredos.Detecta-se sua reinterpretação em ranchos car-navalescos. Oriundas de grupos que nos nataisdançam e cantam nas ruas e nas casas, na pri-meira parte do século XX, as alegorias apare-cem nos desfiles de carnaval.

UTOPIA DA FAMíLIA - IDíLlO PASTORAL

A multiplicidade de temas acumulados nospastoris não é suficiente para se entender o fe-nômeno. Caracterizar-lhe a lírica, entender as leisque lhe regem a estética, as matrizes poéticas eas imagens mais familiares facilita. O tema pas-toril é a jornada para Belém, para visitar a man-jedoura onde está o Menino Jesus. No imagináriopopular, a jornada e a visita significam pedir li-cença para entrar nas casas, louvar os donos e asagrada família e despedir-se.

Meu São José,dai-nos licençapara o Pastoril dançar.Viemos para adorar.

Jesus nasceupara nos saloar.'?

22 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS v.33 N. 2

Com até oito sílabas por verso, as rimasincidem nos 3º e 6º versos. O modelo básicocombina estrofe-refrão e é acompanhado dedança. O fim dos tempos, a intolerância religio-sa, a imposição de tudo o que vinha de Portu-gal, comum aos sermões de missionários, criaramuma concepção de mundo sumarizada comoduas grandes forças em perpétua luta: Deusversus diabo, virtude versus pecado. Complexi-dade, simbolismo e espírito escolástico se em-butem na lírica dos pastoris.

Reunimos companheirasque vêm de todas as naçõesadorar o Deus Meninopara os nossos corações.

Nasceu nosso Jesus,que paz e que ventura!Messias prometido,para o bem das criaturas. 18

Espalhar para o mundo o nascimento deCristo é a mensagem-moro A simbiose entre asreligiosidades oficial e popular não sobrevive àtoa no Brasil. Como catequese, jesuítas usam lar-gamente o teatro. Assim permitem a entrada deelementos culturais locais, abrigam-nos e modifi-cam-nos. O medo do fogo do inferno ameaça.Ser católico significa regra obrigatória na colônia,onde dificilmente se sobrevive fora dessa fé.

Vimos a vos visitar"Bom menino, Deus eterno.Vós nos quereis ajudarpara poder escapardo grande fogo do inferno.

Eu também venho a dançar,posto que sou pecador,mas não tenho o que vos darporque não quero furtaro peixe do meu senhor.

Virgem Maria, senhora,vosso escravo quero ser.Eprotesto de viverem vosso serviço agorae depois até morrer.'?

2002

-Vindo de Portugal, então envolvido em

rande projeto capitalista agrícola, o cristia-nismo implantado deixou marcas particula-res na vida religiosa brasileira. Povoar a terrae multiplicar a população era fundamental. Afé cristã e todos os preconceitos contra asmulheres regulavam-lhe as vidas. A popula-ridade do culto da sagrada família fazia parteda estratégia. A Virgem Maria era apresenta-da como espírito perfeito. Suas virtudes e seucomplexo de símbolos refletiam-se nos pa-péis femininos, acentuando a di coto mia car-ne/espírito, com desdém pelo corpo eexaltações à moral.

A analogia da mulher-mãe, na visão purae hegemõnica, internalizou-se como senso co-mum e universalizou-se nos pastoris. A líricareforçava os atributos dos papéis femininos comosinônimos de sexualidade monogâmica, prati-cada somente dentro do casamento. Por nãocontribuírem para a empresa colonial, descasa-das e prostitutas eram execradas (Hoornaert: 1992e Priori:1993). No cristianismo, tornou-seemblemática a imagem da Virgem Maria e seufilho cercados por animais e pastores, com aVirgem resplandecendo a glória e o prazer deser mãe. Os mimos ao recém-nascido fazem partedessa atmosfera.

Estespeixinbos e frutasnão são mimos de valor.São prendas de um coraçãocativo do vosso amor.ê"

A ternura que recebe está em poemas sim-ples de emoção popular:

Que belos olhinhos,que linda boquinha.Parece uma rosaque vem se abrindoê!

Nas representações pastoris, o Menino Je-sus transcende o parto. Sua vida como criança,os primeiros dentes, as roupas e o alimento sãoimagens comuns.

Trago-vos este humilde presente,espero o' Deus que aceites.Não fazem mal a crianças,papinbas de arroz com leite22

" osso menino, nosso bem, presépio deBelém, gruta de Belérn" repetem-se nas rimasdos poemas.

Nasceu nosso menino'na gruta de Belém.Há paz na criaturaJesus, pro nosso bem23

Aos subordinados ao poder integram-sehumildade, aceitação da pobreza e a alegria devivê-Ia. Fazem parte da personalidade das pastoras.

Pastora:Pobre como vós, apenaslevanto os olhos para os céus.E espero tudo na Terrada providência de Deus.

Mas vossosfilhos têm fome,e eu queria socorrê-los.o' cortarei para dar-vosa trança dos meus cabelos.

Mendigo:E a recompensa é segurana eternidade dos céus.Porque, bem sabeis,quem dá aos pobres empresta a Deus.ê"

Na generosidade revela-se a maneira comoo catolicismo do século XIX enfrentou a pobreza.Pastora e mendigo são pobres, mas ela tem algoa dar a quem precisa: suas tranças, último vestí-gio seu de feminilidade e sensualidade, últimaligação com as alegrias terrenas. Depois disso,poderá falar com Deus. A jornada para Belém étambém a jornada da purificação. A expressão"quem dá aos pobres empresta a Deus" resume opoema e expressa que a Igreja considerou nor-mal a divisão social entre ricos e pobres. Comona poesia, só a caridade pode resolver a pobre-za. Nunca a justiça. Ao entregar as tranças ao

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 23

-mendigo, a imagem de humildade da pastoraconfirma o ideário da Igreja: os pobres devemconciliar-se com a vontade de Deus, devem acei-tar seu destino.

LiÇÕES MORAIS. DE REINOS MITOLÓGICOS ACONFLITOS URBANOS

Além da lírica dedicada à sagrada família,outras passagens merecem atenção. Diferente-mente dos pequenos versos louvando o MeninoJesus, enredos com lições morais apresentamesquemas poéticos mais elaborados em versos erimas. Exemplificam como alguém imagina rei-nos distantes, sem conhecê-los. Mais que o sen-timento romântico de mitologização, é a visãode um urbano idealizando o campo.

Há mais honra aqui que no teu trono;lugar que toda a corte abandona.A lei divina vela com cuidado;o crime aqui nuncafoi perpetrado 25

Simplicidade estilística, religiosidade po-pular ou histórias de grandes heroísmos morais,porém, não são as únicas formas de celebrar noBrasil o nascimento de Cristo. Em alguns pasto-ris, a participação masculina se resume à audi-ência. A importância dada às cenas donascimento é quase nula. Abole-se o presépio.E as pastoras apresentam-se nos subúrbios, empalcos improvisados, com entrada paga, numaatmosfera altamente erotizada.

Boa noite, meus senhores,Viemos cumprimentar.Que já é chegada a hora,E nós queremos é vadiar26

Permissividade moral e ares carnavalescos.Exagera-se, ridiculariza-se, imoraliza-se, erotiza-se tudo. A vida se reduz a sexo e digestão. Ospersonagens pertencem ao mundo marginal.Amor, lealdade, renúncia, generosidade - atitu-des presentes noutros pastoris- não têm lugar naversão paródica de personagens caricaturados.

24 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS V. 33 N.2

Bota pó, vitalina, tira pó.Moça véia não sai mais do carító.ê?

Nesse teatro, religiosidade, mensagens desalvação e catequese tornam-se pândegas.Incidem a irreverência, a exploração da figurafeminina, os personagens grotescos e a inversãode fatos. A principal função do espetáculo é oriso. Cabe às pastoras despertá-lo, encenandoesquetes picantes e se oferecendo aos homens.

Às cinco horas da manhã,Quando vem rompendo a aurora.Os anjos cantam no céu,E as pastorinbas vão embora.

Com saudade, eu me retiro.Eu não vim para ficar.As moças são deliciosas,lindas eformosas,belas como as rosasr"

Flores, animais e perfumes sempre povo-aram a lírica dos pastoris, mas ao se deslocar aatenção da sagrada família para a figura das pas-toras, o espetáculo perde o caráter de evange-lização. Aparentes na festividade, a ausência dedensidade, a seqüência nos enredos e a misturade gêneros musicais regionais guardam vestígi-os do circo, dos teatros mambembes e do Tea-tro Revísta.ê?

A MÚSICA DOS PASTORIS: TRADiÇÃO CULTA ETRADiÇÃO POPULAR SE ENCONTRAM

No estudo da música de pastoris, o pri-meiro obstáculo é a ausência de informaçõesanteriores ao século XIX, quando tradições po-pulares começaram a interessar intelectuais. Ahistória da música ocidental presencia, faz sécu-los, muitos encontros das tradições popular eculta. A trajetória de gêneros como o vaudeville,canção satírica cantada por músicos de rua quemais tarde se incorpora à ópera e transforma-seem gênero popular de teatro no século XX,

2002

- 8"\··1 (If' ,l.t. I-.J. .

PERIÓDICOSmostra como a musica de um grupo social éaceita por outro segmento da sociedade e passaa ter novas funções e significados.

Em sentido oposto, o repertório musicaldas camadas mais cultas está freqüentementeendo incorporado à produção popular. Árias

de óperas, temas de sinfonias, cantatas e outrosgêneros são simplificados para serem dançadosou utilizados como temas de filmes. Parodiam-e músicas para virarem jingles, fazem-se novos

arranjos para as discotecas, etc.30

No Brasil, uma audiência menos culta pôdeassimilar arte sofisticada, racional, ou vice-ver-sa. Melodias de ópera adaptadas para marchasmilitares ou reinterpretadas em hinos popularesreligiosos, gêneros de salões europeus do sécu-lo XIX, transformam-se em novos gêneros ao sefundirem com ritmos locais. Inversamente, rit-mos populares que invadem salões burguesesem mútua cooperação tornam mais tênues asdivisórias entre os dois mundos. Como? Por quegêneros, estilos musicais ou momentos de umacomposição são assimiláveis por um grupo parao qual não foram destinados?

A compreensão relaciona-se à formaçãode gosto e tendência dos grupos sociais em di-fundir a popularidade de um estilo, bem comoa função para a qual a música é conhecida oureinterpretada. Que tipo de repertório musical eseus detalhes têm sido mais usados no proces-so? Em estudo sobre as conexões do popular edo clássico no kitsch musical, Prat031 afirmou: amaioria das melodias que se prestam a serreinterpretadas pertence à época do domínio datonalidade; ao período entre barroco e roman-tismo. As obras instrumentais são preferidas. Aescolha da linha melódica é evidentemente maisimportante que a harmonia; e a característica docantábile é outra opção séria.

UMA CANÇÃO DE NATAL 32

Abordam-se aqui, nas canções dos pasto-ris, aspectos das trocas: como a música culta

interage com a popular (e vice-versa) e comoelementos musicais ou líricos de uma tradiçãosão reelaborados em novos padrões, ligados anovas combinações, adquirindo novos signifi-cados. Muito mais que a análise musical descri-tiva, tenta-se identificar a coexistência dessasvertentes, aproximando o leitor do significadodas canções e oferecendo, por meio dos váriosplanos interpretativos, contribuições para desen-volver os métodos de investigação e análise damúsica popular no Brasil. A primeira melodia,Canção do Pastor, colhida em Fortaleza, Ceará(1966), faz parte do Pastoril da Cigana.33

Desde o início do cristianismo, as come-morações do nascimento de Cristo fizeram con-viver o sagrado e o secular.

Considerando-se essa convivência comoparadigma da vida social na Idade Média - emediada pela religião, que buscava adeptos -festas, canções e jogos teatrais natalinos erammotivos de troca cultural para diferentes seg-mentos. O ethos do evento era poroso; abrigavaa religiosidade oficial, a popular e o imagináriode grupos sociais que conviviam abertamente.Adrienne Block, em estudo sobre os nôels fran-ceses, admite-lhes a origem líterária.ê" mas tam-bém seu caráter híbrido. Enfatiza o paródico,visto que lírica e melódica são modeladas emcima de clichês preexistentes, usando a estrutu-ra de verso de outro poema ou substituindo otexto numa música vocal.

Além do caráter paródico, seus parentes. brasileiros são espaço apropriado para trocas

culturaís.P A Canção do Pastor mostra um re-pertório de associações musicais, verbais, visu-ais e liga elementos estéticos, religiosos e éticos,evidenciando como se articulam no natal. Re-presenta o início do auto. Sua lírica fala do ce-nário e da ação da peça: 1. cena pastoril noturna;2. um grupo de pastoras adormece na relva; 3.chega o pastor, que liderará o grupo até Belém.

Eu sou um pobre Pastorque ando pelas campinas.Ando procurando flores,para levar ao Deus Menino.

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 25

-Vejo um grupo de Pastoras,na verde relva deitadas.Serão minhas companheiras,que dormindo, estão cansadas.

A noite está tão bonita.O céu está todo estrelado.Será para minha defesa,este tão forte cajado.

A Canção do Pastor caracteriza-se peloandamento moderado e um caráter cantábile esuave, sugerindo quietude e paz. Povoada derepertório bucólico de imagens que reproduzemo ambiente pastoril, sua lírica reforça essa at-mosfera. Ao primeiro olhar nota-se alternânciade 2 elementos contrastantes em sua melodia:arpejo ascendente (compassos 1 e 3) e grausconjuntos (compassos 5 e 7). O contraste é in-tensificado na performance, quando de braçosabertos e olhar para o alto o pastor mostra: aamplidão do espaço (1 ª estrofe), as pastorasdeitadas na relva (2ª estrofe) e o céu estrelado(3ª estrofe). O arpejo de Ré maior na P inversãoleva a primeira parte da melodia para o campoda dominante do tom principal, após identificaro egopoético da canção: um pobre pastor.

A seguir, a ação de (o pastor) andar pelascampinas é descrita com um amplo arpejo dedécima primeira atingida por um intervalo dequinta, musicando "campinas", algo grandiosoe espiritualizado que o extasia. A coerência en-tre a lírica e a melódica aparece também na 2ªestrofe, ao falar da "verde relva", que de certomodo participa do campo semântico de "campi-nas". A descrição da noite estrelada (3ª estrofe)segue o esquema do uso de arpejos para ex-pressar cenas bucólicas e idílicas, imagens idea-lizadas do ambiente rural. O desenho simples

26 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS v.33 N. 2

da linha melódica da canção pode um poucofornecer a idéia das elevações montanhosas eda grandeza dessa natureza um tanto "alpina".

I.obr•• (Ii I l6$ç

ampi

um pas 01 p~do

® ~, eu qgc

l.doI#OÇQti!l!ano '" 11141< •.. " '": ia deU$ m , uiuQ

A 2ª parte do discurso musical caracteriza-se por intervalos de tessitura menores, expres-sando o passo a passo da ação de colher flores(1ª estrofe), o cansaço das pastoras após o traba-lho diário no campo (2ª estrofe) e a constataçãode que seu cajado é sua defesa (3ª estrofe). Aaparente simplicidade e a coerência da canção esua relação com o pequeno auto não são natu-rais nem inventadas, são produtos de um traba-lho cultural. Seu estilo musical resulta doagrupamento de elementos de várias fontes, cadaum com variadas informações implícitas. Mais ain-da: em algum momento e em apropriadas cir-cunstâncias, esses agrupamentos foram abertos eseus elementos rearticulados noutro contexto.

As considerações relacionaram-se até agoraà reinterpretação no imaginário popular de umidioma pastoral típico dos séculos XVII e XVIII,quando compositores absorveram e incorpora-ram larga gama de vocabulários instrumental evocal, que passaram ocidentalmente a identifi-car a música campestre. Sem dúvida, a músicacom "sabor rural ou urbano" é anterior à épocaem que foi colhida a canção em análise. Pode-se identificar o sentimento estético em relação àpaisagem, ou que trata a natureza como objetodistante, desde Homero, na llíada. Motivos pas-torais já eram apresentados com diferentes im-plicações. A apreciação estética dos prazeres docampo (livro 8), o reconhecimento da vulnera-bilidade do pastor ante as grandes forças da na-tureza e a impossibilidade de proteger seu

2002

-rebanho (livro 5) são tôpoi que mais tarde ca-racterizarão a literatura pastoral do Ocidente. Emalgumas meditações daquele homem simples eisolado, Homero o faz seu ouvinte (livro 4).

Usar motivos pastorais em obras literáriasfoi comum entre a privilegiada minoria de ho-mens livres da Grécia dos anos 800-100 a. C.Theócrito, que com o Idyllis (séc. III a.c.) deu aVirgílio matriz para éclogas e bucólicas (séc. Ia.Ci), pintava o rural com sofisticação e fantasia,imaginando instrumentos que simbolizassem avida simples dos pastores. Para descrever o am-biente rural de forma idealizada, os artistas con-trastavam um ambiente pastoril com outro nãopastoril. Devia haver grupos que levavam a vidalonge dos que sobreviviam das atividades rurais.

Tagg (982) bem retrata o surgimento daidealização do campo na arte, como paralelo aosurgimento das cidades:

It should be obvious that country life cannotbe distinguished from city life unless cities (noncountry) existo It seems also to be follow thatthere can be no cultural-aestbetic distance tonature until a division of labour resulting inparticular types of classes division hasdeveloped to the point where one class, thanksto tbe labour of another, is severed both fromits objectiuity proximity to nature andfrom thecollective subjectioity (and psycbo-socialobjecttuity) inherent in patterns of cultureresulting from real proximity to natureó"

Descrever nesse pequeno auto a atmosfe-ra rural por clichês musicais, bem como a figurado pastor, suplanta a idealização de literatos queno ócio imaginaram reinos distantes e paradi-síacos. Além de se ver sempre o mundo pastorilcomo poétíco'? , há raízes no uso da imagem dopastor como elo entre Deus e os homens, viacristianismo. A característica migratória,favorecedora da contemplação, foi constante-mente usada pela Igreja Católica na construçãode seu imaginário. As oposições Abel/Caim, pas-tor/agricultor e homem de fé/homem ávido deviolência são sugestivas. O pastor aceita grato oque recebe, enquanto o lavrador luta contra Deus

J~~EUºDICOSe contra o homem, tanto quanto contra a natu-reza38. A humildade e a simplicidade do pastor,o que cuida das almas como se fossem seu re-banho, são conhecidas de todo cristão.

Paradisiacamente localizado, o pastor ca-racteriza desterritorialização, supera os limitesestabelecidos entre as classes sociais. A atmos-fera dessa canção e sua ligação com o contextonatalino articulam não somente a idealização danatureza, mas valores espirituais e de lirismo quepermeiam a história do Ocidente. Não por coin-cidência, no Pastoril da Cigana o pastor é o pri-meiro personagem a aparecer, parecendopredizer a festa em que classes sociais e intrigaseram esquecidas, em respeito à grandiosidadedo momento.

Na Idade Média, o prazer genuíno e vigo-roso do mundo externo encontrou expressão naprodução dos menestréis, testemunhas da sim-patia com relação à natureza. A primavera, flo-res, matas e campos verdejantes não passaramdespercebidos nem dos cruzados, que reconhe-cem isso em seus poemas.V Mas na Renascen-ça, segundo Burkhardt (991), quando a naturezaperdera suas cores de pecado e dela se afasta-ram todos os indícios de poderes demoníacos,o relacionamento dos artistas com o campo to-mou impulso. Foram eles que primeiro viram esentiram o mundo exterior como belo. Um rápi-do olhar sobre a produção artística da épocaconvence o estudioso da graça e da ternura comque literatos e pintores descrevem a vida nocampo. O efeito da natureza sobre o espíritotambém mostra provas em Dante, quando dizdo ar da manhã, do tremelicar da luz do sol nooceano ou da grandeza da floresta. Ao escreverpoemas, Boccacio possivelmente esteve tocadopela beleza da vida no campo. O geógrafoPetrarca, ao fazer o primeiro mapa da Itália, lou-vou a vida campestre (Burkhardt, 1991).

Diga-se, foi também no século XVI que oselementos estéticos que identificavam a vida nocampo foram incorporados ao repertório musi-cal natalino. Um dos mais antigos documentoscom a tentativa de descrever o campo em músi-

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 27

-ca vem da Itália. Concerto Pastoral ao Presépio-opus 3 para 6 vozes e contínuo - de F. Fiamengo,executado em 1637, em Veneza, numa cerimô-nia doméstica, já fornecia ao Ocidente o protó-tipo das próximas composições em idiomapastoral. Elementos estilísticos como efeitos deeco, orquestração baseada em terças e sextasparalelas, frases simétricas, compassos 6/8, 9/8ou 12/8 e longas notas pedais no seu acompa-nhamento foram incorporados como imagenssonoras que identificavam para a burguesia amúsica das comunidades agrárias. Com o ad-vento do capitalismo, passava mais e mais a serestilizada e vista a distância.

Evidentemente, a incorporação desses exó-ticos ingredientes musicais não foi destinada àpopulação rural. Ao contrário, na Europa espa-lharam-se nas salas de concertos dos séculosseguintes. Como enfatiza Tagg (1982), a burgue-sia relegava a natureza à posição de lugar denostálgica recreação, meditação ou outros esta-dos emocionais. O idioma musical pastoral foiainda mais popularizado por Corelli no seu Con-certo de Natal opus 6 nO 8 (1714). Fux eSchmeltzer também usaram esse vocabuláriomusical. Concertos grossos e cantatas no mes-mo estilo passaram a ser executados, inspirandoseus sucessores. Além de Bach e Haendel,Manfredini, Locatelli, Ferrandini, Geminiani eValentini são alguns dos que usaram motivospastorais na sua música.

Na segunda metade do século XIX, novodado foi adicionado aos sofisticados ingredientesque retratam o campo em música, quando a no-ção de Estado-Nação veio a ser efetivamenteconectada com cenas características de sua paisa-gem. Os compositores desenvolveram um estilonacional, usando o folclore como elo entre a hie-rarquia dos Estados emergentes e as qualidadesde sua natureza. A identificação de fontes popula-res na produção culta da época pode ser facilmen-te mapeada na obra dos compositores nacionalistas.O desejo de demarcação das fronteiras culturais,identificando as raízes das recém-criadas nações,e o orgulho de se verem diferenciadas levaram

28 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

compositores a criar imagens musicais que simbo-lizassem rios, paisagens, estações do ano, cenasde trabalho, em suas composições.

Arranjado, digerido ou adaptado, o reper-tório popular das comunidades agrárias foireelaborado para criar o estilo nacional, em quea burguesia e o capitalismo cada vez mais pode-rosos reforçassem a noção romântica da ligaçãocomunidade e Estado.i? Mais significados à es-fera da estética do gênero pastoral foram adicio-nados. Associados com o exotismo de algumasregiões (andinas, romenas ou mediterrâneas),numerosos concertos e depois sinfonias incor-poraram motivos pastorais a seu estilo. Dessaforma, o tipo de harmonia tranqüila e os efeitosde ecos sugeridos na Canção do Pastor devemser tomados não só como reflexo da calma gran-diosa da natureza na noite de natal, mas comoreferência direta a uma certa "folclorização" dasnotas pedais, que aparecem num auto popularnuma espécie de retorno''!

A chegada das representações natalinas aoBrasil, com c1ichês musicais e poéticos,corresponde à de missões religiosas emigranteseuropeus. A crônica da Companhia de Jesus éfarta de relatos de encenações feitas com meni-nos índios no aconchego de conventos e laresda colônia. No século XIX, com as transforma-ções na sociedade brasileira, as festividades na-talinas se enriqueceram. A vinda da corteportuguesa (1808) transformou economicamen-te a colônia e introduziu-lhe hábitos e costu-mes. O crescimento das cidades transformou-seem fator favorável a trocas culturais.

A sala de visitas das famílias abastadas erapalco de apresentação dos talentos domésticos.Escritores, poetas e atores exerciam seus dotes.Com a característica de abrigar generalidades, oNatal era ocasião apropriada para exibi-los eostentar o poder das famílias." A Canção doPastor, apesar de colhida em 1966, pode serconsiderada uma canção pastoril da época emque jogos teatrais encenados por sinhás-moçaseram entrecortados por procissões de popularesque dançavam e cantavam nas salas de visitas.

2002

- PERi,O(\I""'OS. I_~ ••. l. -'

Sobrevivendo na memória popular, essa simplesmelodia encapsulou os valores.v' A simetria desuas frases e as terças e sextas paralelas sugeridaspara harmonizar a melodia funcionavam comoarquétipos. Ela articula a estética pastoral numnovo padrão, recolhendo uma gama depreexistente material musical, poético e deperformance mediado por imagens de classe,gênero, nacionalidade e religião.

Mas se o atal assimilava traços dessa es-tética letrada, sofisticada e artificial, concomi-tantemente abrigava características ligadas àreligiosidade popular, no caso o villancico.Gênero de origem secular que surge como acanção simples de um camponês que louva al-gum santo católico, aos poucos ganhou inter-pretação mais sofisticada nas composições depoetas e músicos das cortes ibéricas." Desde oséculo XVI foi aceito no ovo Mundo por inter-médio de músicos de igreja, que liderados pormissionários disseminaram o gênero nas comu-nidades da América. No Brasil, o trabalho religio-so e a imigração foram os principais responsáveispela difusão do gênero, que incorporado ao ca-tolicismo popular tornou-se parte das cançõesreligiosas devocionais, sendo mais identificadoem canções natalinas.

Predominância de tons maiores, frasesmusicais e versos periódicos, construção damelodia baseada em tríades, ausência decromatismo, terminação das frases musicais noprimeiro ou no terceiro graus da escala e maisraramente na quinta, tessitura de sete ou oitonotas, raramente dez, harmonização (quandoexiste) em terças ou sextas paralelas, metro re-gular, forma musical simples com ou sem re-frão, estrutura silábica e caráter vivo eextrovertido são características apontadas porGrebe (969), que estudou o villancico na Amé-rica Latina.

Apesar de ainda não comprovada a rela-ção entre a estética pastoral e os villancicos, naCanção do Pastor notam-se as coincidênciasentre as duas formas de expressão. Embora emalgum momento de sua história o villancico te-

nha incorporado elementos da cultura culta,como os clichês pastorais e a ópera, sua métri-ca em redondilha maior ou verso de 7 ou 8 síla-bas é a mais usada na poesia popular ibérica ena brasileira. De início mostra que descendetambém dessa linha cultural. Suas fontes tor-nam-se evidentes, quando se leva em conta onome do pastor. Jacó é o nome de Tiago, oevangelista que cristianizou a Península Ibéri-ca. As lendas em torno dele são conhecidas dacristandade e eternizadas no "Caminho de San-tiago", romaria percorrida por católicos de todoo mundo, cujo alvo é a bênção na catedral deSantiago de Compostela, na Galícia. Relevan-te também a Canção do Pastor ter sido colhidanum local onde existia grande quantidade demigrantes da Galícia trabalhando como comer-ciantes. Assim como na Canção do Pastor, oPastoril da Cigana tem entre os personagensum casal de galegos com linguagem típica, quese incorpora às pastoras que vão a Belém.

Para se entender o significado do pastorilno século XIX, é necessário olhar não só para acultura e a vida musical da época, mas para suasfontes camponesas e para o uso delas pela cul-tura burguesa emergente que se urbanizava eidealizava o campo. Se para ela o mundo pasto-ril era sujeito a menos conflitos do que o mun-do socioeconômico que surgia ali, ele significavaa felicidade perdida. A Canção do Pastor com-porta mais um nível interpretativo, que coincidecom aspectos do romantismo, época de maiorpopularidade dos pastoris no Brasil. Interessan-te ver como ela epitomiza a problemática doséculo XIX. O sentimento da natureza, a apolo-gia da vida campestre como garantia e salva-guarda da liberdade e o recurso ao bom senso eao equilíbrio presentes na lírica dessa cançãoevidenciam sua inspiração romântica.

Especificamente no Brasil, o romantismofoi o período das primeiras preocupações com aidentidade nacional. A consciência das caracte-rísticas do país, sua diversidade e as fronteirasculturais estiveram em discussão desde José deAlencar, o que primeiro pôs em textos tais ques-

PINTO, MÁRCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 29

-tões (Pinto, 1977). Como festividades domésti-cas, os pastoris significavam ligação entre naçãoe comunidade, para os que se preocupavam empreservar os valores culturais.

Ao mesmo tempo, o devaneio místico dopastor, sua angústia perante o futuro, implícitana terceira estrofe do poema em questão,encapsularam valores de humildade e o louvordas virtudes patriarcais, típicos do sentimentoromântico. À época, o contraste cidade/campo,corte/aldeia evidenciou-se em arte. Não seria aidéia que permeia toda a canção, quando inter-pretada por pessoas que vieram do campo emoram na cidade? Não seria o mito da felicida-de imaginada, a saudade do passado tranqüilo(não vivido!) o que a canção expressa ao vercomo utopia o mundo pastoril?

A cena das pastoras pode também ser umareinterpretação do balé romântico. A coreogra-fia delas quando acordam, bailando em tempode valsa lenta, lembra as bailarinas românticas(braços em meio círculo, como em Les Sylphides),refletindo o ideal trágico do amor inatingível, nacombinação de exótico e sobrenatural; etéreosseres que parecem dissipar-se na ilusão do võo.45

As canções lentas dos pastoris tendem a execu-tar esse mesmo padrão coreográfico, que mos-tra pastoras como seres inanimados, cujaexistência está além da vida cotidiana. Não seriaesse o ideal de qualidades sobrenaturais que acultura brasileira atribui à figura feminina? Nãoseriam as mulheres sem nome (pastoras) queem procissão visitavam presépios em casas eigrejas que se transformariam em musas more-nas, da cor de Madalena=" - ideal da mulherbrasileira comum, inspiradora de canções na mú-sica popular?

ÓPERA, MÚSICA DE SALÃO E BANDAS DE MÚSICAINVADEM A CENA

Além dos oillancicos, a ópera parece tersido a grande fonte de inspiração para os com-positores das melodias dos pastoris. A transfe-

30 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

rência da corte portuguesa para o Rio de Janei-ro, em 1808, favoreceu atividades econõmicas ea vida cultural da colônia, atraiu músicos e esti-mulou interesse por novidades estrangeiras. Amúsica tornou-se mercadoria de consumo dasreuniões sociais, e o estilo italiano de óperadominou o gosto musical até o fim do século.As bandas de música, por mais rudimentares quefossem, animavam paradas com arranjos demelodias de ópera, além de valsas, mazureas,scbottiscbes, polkasí"

Saia o lindo Anjo para o seu lugar.Convido o lindo guia para vir dançar.Senhoras e senhores, queiram desculpar.Que a nossa jornada não acaba já.

Nas duas primeiras frases de sua melodia,o exemplo anterior é adaptação da abertura daópera "O Guarani", de Carlos Gomes, e mostracomo a ópera pode ser assimilada pelo repertó-rio dos pastoris'" . À parte estilos eruditos e sa-lões europeus, há nos pastoris dobrados emarchas militares com letras adaptadas. Umacompreensível presença desses gêneros, se forconsiderado que as orquestras dos eventos eramconstituídas em grande maioria por músicos debanda. De origem pobre, aumentavam a rendatocando em festas populares e traziam seureferencial musical para elas. Nesta pesquisaencontramos adaptações de marchas para pas-toris, com letras em que as pastoras se revelamfortes e viris (comparáveis a escoteiras) e a jor-nada para Belém aparece como vitória.i?

A rutilante estrela, que tanto encanta com seu brilhar,Por isso alegremente, belas pastoras, vamos marchar.

Marchemos, pastorinbas, que a linda estrela no céu reluz. Anunciando que no Egito, entre aspalhinhas, nasceu Jesus.

Como mediadoras de estilos musicais, asbandas de música transcendem fronteiras, inva-dem o carnaval. Rádio e indústria fonográficaaumentam significativamente sua influência. Atéa década de 50, as orquestras que animavam

2002

-bailes, nigbt clubs e desfiles carnavalescos ti-nham majoritariamente músicos de corporaçõesmilitares. Toda rádio formava sua big band efacultava um mercado paralelo aos profissionais.A hegemonia foi ameaçada nos anos 50, pelosinstrumentos eletrônicos.

Exemplifica-se a seguir a influência debandas de música no típico gênero natalinomarcha de pastoras, que se desenvolveu no. ordeste do Brasil a partir de instrumentistas deopro em orquestras de festas natalinas. Trata-se

de marcha lenta (rnm J= 82), solene e majestosaevocando a atmosfera de uma procissão. Asquiálteras aqufe ali, a anacruse no início damelodia e a oscilação entre as tonalidades mai-ores e menores não alteram a ambiência. A letralembra um cartão de natal. A primeira estrofe éa capa, paisagem noturna com estrela. Ao seabrir lê-se a mensagem das espiritualizadas pas-toras, que vão a Belém levar flores a Jesus epedir, para toda a gente, um feliz natal e umbom ano novo.

Nofirmamento uma estrela apareceu,De raro brilho e beleza sem igual,Anunciando que Jesus nasceu,Dando-nos assim a linda noite de natal.

Nós, as pastorinhas e os pastores,Vamos a Belém, a Belém, a BelémCheios de fé, cheios de amores,Levando flores pra Jesus nosso bem.Pedimos de todo o coração,nesta nossa exaltação,elevando-nos acima do material.Jesus, óJesus, dai a teu povoUmfeliz natal e um bom ano noioí" .

o maxixe, tido como o jeito brasileiro dedançar a polka, também aparece nos pastoris.Recusado pela classe média por sua coreografiasensual, aos poucos foi aceito através dos espe-táculos do Teatro Revista e entrou nos salões._ os pastoris está mais presente nos momentosde riso. Note-se a proeminência dada às palavras-festa, natal, saudar" enfatizando a atmosfera dafestividade. Seus versos jocosos indicam que aspastoras não mais se interessam em ir a Belém:

PERiÓD,COSHaja festa, companheira, haja festa!Passe para o seu lugar, seu lugar.Viemos saudar este povo, seu moço,viva a festa de natal, de natal!

Partido azul é azul,passe para o seu lugar, seu lugar.Viemos saudar este povo, seu moço,viva a festa de natal, de natal!

Partido encarnado é encarnado,Passe para o seu lugar, seu lugar.Viemos saudar este povo, seu moço,viva a festa de natal, de natall'"

o ritmo vivo do maxixe convida a platéiamasculina a dançar e indica a tendência do even-to a secularizar-se. A imagem do pastor análogaà do homem comum e sua relação com Deus -expressa no salmo 23 - não mais existem:

o senhor é meu pastor, nada me faltará.Ele me faz andar em verdes pastagense conduz-me às águas tranqüilas.

o pastor que deu lugar à imagem cristãde Jesus e seu rebanho migrou para um conteú-do que a audiência masculina aprecia melhor. Amensagem é:

A pastora é a minha alegria, com ela nada mefaltará.Ela mefaz feliz em pastagens coloridas e iluminadas,Ela me guia para além do cotidiano.

A análise das canções dos pastoris revela-nos a sobrevivência de diferentes concepções devida, traços de tradições e tempos históricos vari-ados de que fala Gramsci 0986, p.183). Uma fes-tividade cuja existência faz fronteira entre culto epopular, entre rural e urbano, com forças secula-res convivendo com a religião oficial. Neste sen-tido, a metodologia do estudo incluiu abordagemantropológica e enfoque histórico, olhando opassado remoto e o recente, tentando ressaltar osmomentos mais significativos, que lhe conferemidentidade. O ecletismo das cerimônias natalinas

PINTO, MÁRCIA. P ~STORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 31·

-no Brasil do século XX chegou ao ápice na im-plantação do rádio e da indústria fonográfica. Parailustrar, em Fortaleza-Ceará, anos 40/50, mesmoem colégios de classe média e alta, nos natais, ospastoris apresentavam estilos musicais que sur-preendiam qualquer ouvido:

Serenata Árabe (Paul Frontini),Rendez-uous (WAletter); Nisson (- fox-trot);

Valsa da Cbampagne (Lucy Barrozo),Covardia (A. Cbarlo),

Dança de Anitra (Edvard Grieg);Canção Feliz (Paurilo Barrozo).

Os enredos assemelhavam-se a uma his-tória de amor oriental estrelada por RodolfoValentino. Os cenários imitavam filmes america-nos. O fundo musical da cena de fuga da sagra-da família para o Egito era uma canção de amorinterpretada por Carlos Galhardo: "Um grandeamor nunca termina".

As características musicais mostram-seabrangentes. Se o gênero for tido como um pe-queno "musical", abriga tanto o solo como aexecução em grupos. Certamente sua trajetóriatestemunhou mudanças em direção à seculari-zação e à carnavalização, com tendências aopredomínio de canções de conteúdo cômico eao desaparecimento daquelas semelhantes aosvillancicos (ainda presentes nas partes mais re-lacionadas com as loas à sagrada família), ecosda religiosidade popular. Os esquetes teatraiscomeçam a desaparecer ao fim do século XIX,deixando somente danças e canções separada-mente apresentadas, sem relação visível entresi. Os diálogos tornam-se menores, desculpa paraque uma nova canção seja cantada.

A coexistência entre estilo europeu demúsica de salão, canções operáticas de pastorisencenados em famílias abastadas e a tradicionalMarcha de Pastoras - gênero típico do evento -parece haver sobrevivido até quando as classesmédia e alta deixaram o palco dos jogos teatraisdomésticos e as procissões natalinas, para sejuntarem ao corso carnavalesco ou à platéia doTeatro Revista, modernos e mais apropriados

32 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

espaços para buscar novas alianças de classe,amostragens de dotes e de origem social de fi-lhos e filhas. A fusão de canções operísticas como estilo militar, mediada pelas bandas de músi-ca, representa alargamento do evento no que serefere à orquestração. a era do rádi052 , a intro-dução de tecnologias usando microfones esti-mulou novas mudanças, e razões comerciaisimpuseram a redução do tempo das canções.Mencionamos a tendência a preferir o tempobinário ao 3/4 ou 6/8 dos antigos villancicos. Omaterial musical dos pastoris apresenta cançõesreligiosas reverenciando Deus (resíduo medie-val de sua origem, testemunho do sentimentoreligioso popular) e canções seculares (reela-boração popular da música das classes domi-nantes). As bandas de música, a influência daópera e a supervalorização do coro femininocaracterizam influência mútua entre carnaval epastoril e os efeitos das trocas culturais que têmo meio urbano como palco. Incluam-se a influ-ência do rádio e a presença de gêneros popula-res como baião, xaxado e outros.

Que caracteriza e diferencia o evento mu-sical urbano do encenado na incipiente socie-dade colonial? A opulência das famílias abastadasdo século XIX? Diferenças e preconceitos entreos sexos? A profissionalização e a especializa-ção de músicos e de participantes do evento? Ocrescimento de canais de comunicação, indus-trialização, alfabetização; o poder da mídia? Gê-neros e estilos musicais diferentes, de váriasfontes? A absorção da população rural pela ci-dade? A emancipação dos escravos?

Certamente os processos variam muito.Certamente a capacidade de se sobreporem con-funde. No entanto, testemunham a importânciade se reconhecer a natureza especial da músicano meio urbano.

QUESTÕES FINAIS

Remetendo a análise ao início do séculoXVI, não restam dúvidas: a revolução tecnológica,

2002

-que pela navegação transoceânica introduziu oeuropeu no Brasil, teve nas culturas locais im-pacto semelhante ao destas décadas de progres-sos cibernéticos e de mundialização. Junto àintrodução de animais e plantas, novas relaçõeseconômicas e sociais foram inseridas. Mas a des-truição das bases da vida social de um povo, suaomogeneização imposta por língua e religião

únicas, a negação de uma ética e a visão de mun-o e de sistemas espirituais foram tão ou mais;olentas para as culturas preexistentes do que a

perplexídade ao se chegar ao terceiro milênio.O pastoril foi mensageiro do novo tem-

po, do nascimento do Deus que salvava do fogoo inferno mas legitimava explorar a terra e o

povo. Quase dois séculos depois, o iluminismoinfluenciou estruturalmente a colônia. Ao ex-pulsar os jesuítas, o Marquês de Pombal tenta--a inseri-Ia em seu tempo, expandindo autoridade real, integrando os índios ao mer-do de trabalho, tratando-os como súditos.

Desta feita, os instrumentos para a cultura eu-ropéia civilizada penetrar na colônia incluíampadronização de cidades e casas e exigiam ahomogeneização de corações e mentes, numanova visão de mundo e de progresso.

Como? Em quais circunstâncias a forma--o da vida urbana brasileira se efetivou na ca-acterização do pastoril? Até que ponto os

membros da incipiente cultura preferiram acei-tar ou rejeitar o novo estilo de vida que perce-beram? Que doutrinação acompanhou essasmudanças?

Em sua história, o gênero pastoril foi tes-emunha de importantes mudanças nos hábitos

e nas atitudes da sociedade. Inicialmente religi-oso e comunitário, respondeu aos anseios místi-cos e às necessidades da população semi-rural.A posteriori transmitido para a sociedade maisdiversificada das pequenas cidades, foi encena-do em salas de visitas de famílias abastadas ealões paroquiais, mas ainda com canções, dan-

ças e enredo. Na platéia, em vez de camponesese famílias de fazendeiros, surgiram donas decasas, barbeiros, alfaiates, pequenos comercian-

se I-

PERIODICOStes e bancários, profissionais que caracterizavamuma sociedade pré-industrial. Naquele estágio,o pastoril era um momento de diversão cuja li-gação com o nascimento de Cristo era trivial.Jesus, sua família e os reis magos eram persona-gens acidentais. Com roupas escassas, gestos si-nuosos e diálogos picantes as pastoras atraíambem mais a atenção do público do que a angús-tia da sagrada família na fuga para o Egito.

NOTAS

1 A presença de pastores no nascimento de Cristotem origem na passagem bíblica - Evangelho deSão Lucas 2: 8-21.

2 Andrade, Mário de. 1951, v. I, p. 339.3 Gramsci, Antonio. 1986, p. 183.4 Nettl, Bruno. 1978, p. 13.5 Blacking, john, 1977, p. 19.6 Morais:1902. Baile do Despotismo, Paz, Guerra e

União.7 Querino: 1914. Baile do Meirinho (fala de

Escolástico, estudante que se apaixona por umasenhora que recusa seu amor).

8 Querino: 1914. Baile do Príncipe (fala de Amélia,pastora que duvida que o príncipe apaixonadoviveria com ela no campo).

9 Morais: 1901. Baile dos Mouros.10 Mesma classificação de Villanueva-1994, ao anali-

sar os Villancicos Galegos.11 Pinto: 1966. Pastoril da Cigana-1966. Pastor anun-

ciando o nascimento de Cristo.12 Morais: 1902. Baile do Triunfo do Amor. Príncipe

fala a seus ministros, quando é convertido.13 Meio: 1990. A Espingarda. Esta canção de pastoril

já era cantada pela avó da pesquisadora que havianascido no século XIX, e é muito difundida emtodo o Nordeste do Brasil.

14 Tradicionalmente, a pecuária do Nordeste do Bra-sil é caracterizada pela criação de gado bovino.

15 Lamas: 1978. Auto da Libertina. Fala do velho pastor.16 Morais: 1901. Baile das Quatro partes do Mundo.17 Esta melodia e sua lírica aparecem em muitos pas-

toris nordestinos desde os anos 1940.18 Colhido em 1966, em zona de prostituição, Forta-

leza-Ceará.19 Anchieta, Padre. 1561. Auto da Pregação Univer-

sal. p. 136. Fala de um índio.20 Morais: 1919.

PINTO, MARCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 33

-21 Idem.22 Idem.23 Pastoril da Cigana. Colhido pela pesquisadora em

1966.24 Morais: 1957. Baile da Caridade. Fala de uma pas-

tora.25 Morais: 1901. Baile do Príncipe. Fala de Amélia,

uma pastora.26 Sette: 1958.27 Melo: 1990. Velha canção de pastoril paródico. Foi

gravada por vários cantores, inclusive LuizGonzaga, mas sem alusão ao evento.

28 Conhecida canção de pastoras. Aparece em muitospastoris da primeira metade do século XX e apareceem todas as gravações citadas pela pesquisadora.

29 Vindo de Portugal, o Teatro Revista chegou ao Brasilna segunda metade do século XIX, conquistando aclasse média para público cativo. Vedetes, diálogospicantes e a crítica de costumes viajavam com ascompanhias, que se apresentavam nas capitais espa-lhando matrizes e novas configurações do ser femi-nino no imaginário do povo. Usando ritmospopulares, o repertório musical contribuiu para po-pularizar o Teatro Revista. Moças "lindas e delicio-sas" estavam nas rádios dos anos 1940 e 50, fazendodos pastoris dos auditórios, atrativos de audiência.Cantoras (pastoras) locais atraíam multidões. A par-ticipação das classes populares nos teatros das rádi-os também criou bailes, representou lazer,divertimento e realização de desejos simbólicos.

30 Exemplos interessantes: a popularidade e o nú-mero de arranjos que alcançam certas melodiasna atualidade. O Concerto de Aranjuez de ].Rodrigo, por exemplo, é o concerto erudito maistocado e arranjado neste século, superando o Con-certo n. 2 de Tchaikovsky e o de Grieg opus 16em Lá menor. Cite-se a popularidade de melodiascomo Pour Élise, o primeiro movimento da sonataopus 27, n. 2, (Ao Luar), a sinfonia n. 6 (Pastoral)de Beethoven, o estudo n. 3 opus 10 (Tristesse) deChopin e melodias de Bach e Haendel.

31 Prato: 1985, p. 375.32 Apesar de Grebe:1969, Stevenson: 1976, Morais:

1986 usarem o termo Villancico para designar ascanções de natal da América Latina, optamos porusar aqui o termo canção, mais comumente usadono Brasil.

33 O Arraial Moura Brasil (Fortaleza-CE) era consi-derado zona de baixo meretrício.

34 Ela ressalta que o fato de a maioria das cançõester a lírica mais extensa que a parte melódica indi-ca sua origem literária. Block, 1983, p. 5.

34 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS V. 33 N. 2

35 A pesquisadora não exclui haver várias versõespara a melodia e o poema da Canção do Pastor.

36 Tagg: 1982, p.4.37 Iser: 1996, p. 41, afirma que o mundo pastoril se

tornou um canal privilegiado pela história, no quala ficção se torna perceptível porque te matiza aprópria artificialidade.

38 Na Bíblia, imagens pastoris e a figura do pastor sãofreqüentes. "O Senhor é meu pastor" (salmo 23:1)= somos vulneráveis como qualquer animal. Isaíasfala que Deus alimentará seu rebanho como umpastor ao seu (40: 11).jeremias também vê o pastorcomo exemplar divino de humildade (23: IV).

39 São Francisco de Assis louva a natureza em suaobra. Além da lenda de que armou o primeiropresépio da história, passou seu amor pelos cam-pos com seu Hino ao Sol, agradecendo a Deuspor tê-lo criado.

40 Rimsky Korsakov utilizou melodias colhidas numaantologia de José Inzenga (Ecos de Espana-colección de cantos y bailes) para compor CaprichoEspanhol, sem ter ido à Espanha. No século XX, atentativa de descrever a natureza com música ga-nhou novo apelo dos compositores, associada como movimento neoclássico. Reflete-se nos trabalhosde Casella (La Favola d'Orfeo- 1932), Auric (o baléLaPastorale-I926) e Stravinsky (Orpheus-1948).No processo de secularização da sociedade, essasobras já estavam desconectadas das cerimônias na-talinas, tomando rumo independente.

41 Exemplos mais significativos desse tipo de harmo-nia podem ser ouvidos em Haendel (Sinfonia Pas-toral do Messias-1741), Beethoven (SinfoniaPastoral-1808), Borodin (Nas Estepes da Ásia Cen-tral-1880), Copland (On the Open Prairie e o balésuite Billy and Kid - 1941), Bruckner (Sinfonia n.4, ln der Wald), Mahler (Lied von der Erde -1912).

42 Incentivados pela imprensa recém-chegada ao Bra-sil, as coleções de pastoris escritas por poetas eoutros escritores começam a aparecer.

43 A Missa Pastoral para a Noite de Natal (1811), depadre José Maurício, foi composta no idioma mu-sical que dominava as composições natalinas. Por-tanto, o estilo era conhecido no Brasil.

44 Ver Cantigas de Santa Maria, poemas dedicadosà Virgem Maria e escritos pelo rei Afonso, o Sábio,no século XIII. Anterior a isto, citou-se o Auto dosReis Magos (sec. XI). Nos Cancioneiros de Palácioe de Segóvia são documentados espécimens deVillancicos. A vida dos pastores e a atmosfera ru-ral são descritos por Gil Vicente nos trabalhos tea-trais Auto Pastoril Castelhano e Auto Pastoril

2002

-Português. Usava fontes populares como inspira-ção para seus trabalhos.

45 Os estereótipos da dança romântica estão presentesnos "bailados" apresentados em teatros escolares declasses média e alta. Aos poucos, foram reinterpretadosnos pastoris. Marie Taglioni 0804/1894) é protótipoda bailarina romântica. Refletiu em sua dança o espí-rito que inspirou a literatura de Seott e Hugo e a mú-sica de Chopin e Berlioz. Seu delicado físico foimoldado por seu pai, que como coreógrafo desen-volveu o estilo caracterizado de leveza, graça e mo-déstia. Ela lançou o costume de dançar com diáfanassaias compridas e sapatos de ponta, aumentando oefeito artístico de sua figura que se elevava e aterrissa-va delicadamente. Como os pastoris abrigavam dife-rentes segmentos da sociedade em suas performances;alguns movimentos foram reinterpretados em coreo-grafias cada vez mais distantes do modelo original.

46 Alusão à composição As Pastorinbas, de Noel Rosae Braguinha.

47 Mesmo antes de 1810, quando D. João VI ordenoua formação de bandas de música em todas ascorporações militares brasileiras, as bandas têm sidoresponsáveis por boa parte do gosto musical dosbrasileiros. Com um repertório que abrangia can-tos religiosos e seculares, elas eram presença obri-gatória em festas e pastoris, que como um musicalpopular, não se furtaram de adaptar e criar melodi-as a partir do repertório que interpretavam.

48 Furtado: 1972, p. 114.49 Dobrado 220 e Marcha Brasil eram muito execu-

tadas pelas bandas de música do Estado Novo0937-1945). São encontradas na íntegra em Pin-to, p. 264 e 265.

50 No Firmamento uma Estrela Apareceu. Gravação:Natal Brasileiro. Trata-se de uma marcha de pasto-ras, cujo autor até hoje não foi encontrado. É mui-to executada por bandas de músicas e foi gravadaduas vezes nos discos citados pela pesquisadora.

51 Haja Festa é encontrada em diversos pastoris nor-destinos. Ela está documentada em tres diferentesversões nos discos referidos pela pesquisadora.

52 Enfatiza-se mais uma vez que nas rádios do Nor-deste, os programas de auditório tiveram nos pas-torisum de seus suportes mais importantes. Muitasde suas pastoras partiram depois para formar con-juntos menores, como é o caso do trio "PauloCirino e suas Pastoras", famoso em Fortaleza nosanos 1950 e 60. Nas rádios do Sul, é conhecido"Ataulfo Alves e suas Pastoras". Já na era da lV, opróprio Chacrinha, dizia que a inspiração de seusprogramas eram os pastoris de sua infância.

PERIODICOSREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anderson, Benedict. 1993. Imagined Communities.London: Verso.Andrade, Mário de. 1959. Danças Dramáticas doBrasil. São Paulo: Livraria Martins Editora.Belloni, Maria Luíza. 1994. "A Mundialização daCultura". in Sociedade e Estado. Vol. IX. Departamentode Sociologia. UnB.Blacking, john. 1977. "Some Problerns of Theoryand Method in Study of Musical Change". In YearBook 01tbe International Folk Music Council. Vol. 9.___ 1986. "Identifying Processes of MusicalChanges". In World 01Music. Vol. XXVIII, n. 1.Block,Adrienne. 1983. Tbe Early Prencb Parody Nôels(2 v.). Michigan: UMI Research Press.Brandão, Théo. 1951. Folguedos Natalinos deAlagoas. Maceió: Depto. Estadual de Cultura de.___ 1977. O Presépio de Alagoas. Museu ThéoBrandão. MEC. Maceió.Burkhardt, J. 1991. A Cultura do Renascimento naItália. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.Canclini, Nestor Garcia. 1997. Culturas Híbridas. SãoPaulo: EDUSP.Chaves, Luiz. 1917. O Primeiro Presépio de LisboaConhecido. (séc. XVIII) Imprensa nacional de Lisboa.Coelho, Jacinto (editor). 1973. Dicionário de Litera-tura (2 v.), Porto.Colerick, George. 1995. Romanticism and Melody.London: Juventus.Debret, Jean Baptiste. 1834. Viagem Pitoresca e His-tórica ao Brasil (2 v.). Paris: Ed. Firmin Didot.Empson, William .. 1950. Some Ver.sions01Pastoral.London, Chatto Windus.Etton, Andrew Y. 1984. Literature and Pastoral.London: Yale University Press.Furtado, Maurício. 1972. "Auto da Lapinha". In Re-vista Brasileira de Folclore n.33, p. 114. CDFB.Gardner, George. 1846. Trave/s in tbe Interior 01Brazil. London: Reeve Brothers Publishers.Graham, Maria. 1824. Diário de uma Viagem ao Bra-sil (republicado em 1990. EDUSP. S. Paulo)Gramsci, Antonio. 1986. Literatura e Vida Nacional.Rio: Civilização Brasileira.Grebe, Maria Esther. 1969. "Introducción ai Estudiodel Villancico en Latinoamérica". Santiago, RevistaMusical Chilena, v. 23, parte 107.Greg, Walter W. 1959. Pastoral Poetry and Drama.New York: Russel and Russel.

PINTO, MÁRCIA. PASTORIL: UM MUSICAL BRASILEIRO. P. 16 A 36 35

-Gibbon, J, Murray. 1930. Melody and Lyric. London:Dent and Sons.

Grove Dictionary of Music and Musicians. 1980.London: Stanley Sadie.

Hoornaert, Eduardo. 1992. História da Igreja noBrasil. Petrópolis/R]: Vozes.

Iser, Wolfgang. 1996. O Fictício e o Imaginário: perspec-tiuas deuma Aruropologia Iiterdria: Rio: Editora da UFRJ.

Jolles, Andrê. 1972. Formes Simples. CollectionPoétique. Paris: Editions du Seuil.

Kidder, Daniel P. 1845. Reminiscências de Viagens ePermanências nas Províncias do Norte do Brasil(republicado pela EDUSP em 1990).

Koster, Henry. 1816. Travels in Brazil. London:Longman.Lamas, D. Martins. 1978. Pastorinhas, Pastoris, Presé-pios e Lapinbas. Rio de Janeiro: Grafica Olympio Editora.

ling, jan. 1977. Musik som Avbild au Verk/igheten.Gôteborg: Musikvetenskapliga Institutionen vidGõteborg Universitet.___ 1989. Europas Musik Historia- Folkmusiken.Góteborg, Esselte Studium Fôrlag,

Magia, Carlos H. 1969. La Lyrica Popular Contem-poranea. México: EI Colegio de Mexico.

Meio, Luiz Gonzaga. 1990. O Pastoril profano dePernambuco. Recife: Fundação Joaquim Nabuco.Merwe, Peter van der. 1992. Origins ofthe PopularStyle. Oxford: Clarendon Press.

Middleton, Richard. 1993. Studying Popular Music.Milton Kaynes, Open University Press.

Morais, José de Meio. 1888. Festas Populares do Bra-sil. Rio de Janeiro: Garnier.___ 1895. Costumes e Tradições do Brasil: festasde natal. Rio de Janeiro: Livraria Contemporânea.___ 1901. Serenatas e Saraus. Rio de Janeiro: Garnier.___ 1904. História e Costumes. Rio de Janeiro:Garnier.___ 1905. As Vésperas de Reis: os Ranchos. Rio deJaneiro: Garnier.___ 1957. Bailes Pastoris da Babia. Salvador: Li-vraria Progresso.___ 1979. Festas e Tradições Populares do Brasil.São Paulo: EDUSP.Morais, Manuel. 1986. Vilancetes, Cantigas e Roman-ces do Seco XVI. Ed. Portugaliae. Fundação CalusteGulbenkian.NettI, Bruno.1978. Eight Urban Musical Cultures-tradition and changes. University of Illinois Press.Urbana.

36 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.33 N.2

Oliveira, Dulce Martins. 1954. Baile Pastoril. Rio deJaneiro: Borsoi.

Ott, Carlos. 1954. Baile Pastoril da Babia. Salvador:Faculdade de Letras da UFBA.

Pinto, Mércia. 1997. Tbe Braziliari Pastoril, a Historyof a Popular Musical Genre (tese de doutorado).Universidade de Liverpool. Inglaterra.

Peyre, Henri. 1975. Introdução ao Romantismo. Lis-boa: Publicações Europa América.

Prato, Paolo.1985. "Musical Kitsch: dose encountersbetween pops and classics", in Popular MusicPerspectives. Papers of the International Conferenceon Popular Musica Studies, Gõteborg, IASPM.

Priori, Mary deI. 1993. Ao Sul do Corpo. Rio de Ja-neiro: José Olympo Editora.

Querino, Manoel. 1914. Bailes Pastoris- trechoscondensados. Salvador: Typographia Almeida.

Romero, Sílvio. 1883. Cantos Populares do Brasil.Lisboa (republicado em 1985 pela EDUSP).

Rowe, W. e Schelling, V. 1996. Memory andModernity - popular culture. London: Verso.

Sette, Mário. 1958. Maxambornbas e Maracatús. Riode Janeiro: Livraria Casa do Estudante do Brasil.

Stevenson, Robert. 1976. Vilancicos Portugueses. Ed.Portugaliae. Fundação Caluste Gulbenkian.

Tagg, Philip. 1982. "Nature as a Musical MoodCategory". IASPM: P8205. Stensilserien. GóteborgsUniversitet.

Tarasti, Eero. 1994. Musical Semiotics. Indiana: In-diana Univeristy Press.

Turner, Victor. 1982. Celebration- studies in festiuityand ritual. Washington: Smithsonian Institution Press.___ 1992. Tbe Antbropology of Performance. N.York: Paj Publications.

Villanueva, Carlos. 1994. Los Villancicos Gallegos.La Corufia. Fund. Pedro Barrié de Ia Maza.

Wõlftlin, Heinrich. 1968. Renaissance und Barock-eine Untersuchung über Wesen und Entstehung desBarockstils. Basel, Schwabe Co.

DISCOS:

Cantigas de Natal. Madrigal da Universidade Federaldo Ceará. Fortaleza, 1963.Cantigas Brasileiras. Gravação Tapecar 1970.

Natal Brasileiro. Gravação Marcus Pereira. 1984.Pastoril. Patrocínio da EMBRATEL. Recife 2000.

2002