a visão sem tempo e a visão filogenética da diversidade biológica: implicações pedagógicas

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PARADIGMAS PRÉ-EVOLUCIONISTAS, ESPÉCIES ANCESTRAIS E O ENSINO DE ZOOLOGIA E BOT´NICA Dalton de Souza Amorim As grandes mudanças com relaçªo à compreensªo da diversidade biológica no âmbito de uma visªo evolutiva, proposta no sØculo XIX, por diversos moti- vos nªo chegaram ao ensino de Zoologia e Botânica mesmo no início do sØculo XXI. Em sua prÆtica, o ensino dessas matØrias nªo consegue superar a visªo aristotØlica. Daí decorre uma didÆtica fundamentada na memorizaçªo de nomes de grupos e de caracterís- ticas, sem integraçªo interna, sem conexªo com o co- nhecimento de outras Æreas e sem apelo ao saber pes- soal dos alunos em suma, pouco atrativo para discen- tes e docentes. Como romper com esse paradigma? A simples apresentaçªo dos filos (ou outros grupos) na seqüŒncia em que eles aparecem na filogenia nªo Ø suficiente para abandonar a visªo essencialista. Sªo ne- cessÆrios desenhos diagramÆticos das espØcies ances- trais nos vÆrios níveis, bem como a recuperaçªo das características compartilhadas entre filos para que haja integraçªo da informaçªo sobre os vÆrios grupos. Por outro lado, Ø possível trabalhar com o grande repertó- rio de conhecimento que os alunos jÆ dispıem sobre diversidade, morfologia e fisiologia animal para recons- truir as relaçıes entre os grupos e as características que compartilham nos vÆrios níveis da filogenia. Dalton Amorim.p65 15/08/08, 17:07 125

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PARADIGMAS PRÉ-EVOLUCIONISTAS,ESPÉCIES ANCESTRAIS E O ENSINO DE

ZOOLOGIA E BOTÂNICA

Dalton de Souza Amorim

As grandes mudanças com relação à compreensãoda diversidade biológica no âmbito de uma visãoevolutiva, proposta no século XIX, por diversos moti-vos não chegaram ao ensino de Zoologia e Botânicamesmo no início do século XXI. Em sua prática, oensino dessas matérias não consegue superar a visãoaristotélica. Daí decorre uma didática fundamentadana memorização de nomes de grupos e de caracterís-ticas, sem integração interna, sem conexão com o co-nhecimento de outras áreas e sem apelo ao saber pes-soal dos alunos � em suma, pouco atrativo para discen-tes e docentes. Como romper com esse paradigma? Asimples apresentação dos filos (ou outros grupos) �naseqüência em que eles aparecem na filogenia� não ésuficiente para abandonar a visão essencialista. São ne-cessários desenhos diagramáticos das espécies ances-trais nos vários níveis, bem como a recuperação dascaracterísticas compartilhadas entre filos para que hajaintegração da informação sobre os vários grupos. Poroutro lado, é possível trabalhar com o grande repertó-rio de conhecimento que os alunos já dispõem sobrediversidade, morfologia e fisiologia animal para recons-truir as relações entre os grupos e as característicasque compartilham nos vários níveis da filogenia.

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O modelo de dinâmica da ciência, baseado em para-digmas e períodos de acúmulo de dados, proposto porThomas Kuhn1, tornou-se ele mesmo um paradigma. Con-tudo, a dinâmica no ensino da ciência, com a substituiçãodos velhos por novos paradigmas no conteúdo das váriasáreas, ainda é um objeto de investigação relativamente pou-co explorado.

O próprio Kuhn2 discutiu a relação entre o ensino ea formação de novas gerações de pesquisadores3, mas mui-tos dos esforços nessa área concentram-se na transposiçãodo modelo de ciência para o ensino4. As dificuldades daindução pelo professor de novos paradigmas para os alunosenvolvem, além dos aspectos de conteúdo, elementos socio-lógicos e de psicologia cognitiva.5 Em recente análise doensino particularmente na área de Evolução, Alters & Nel-son6 chegam a conclusões importantes sobre a influência deparadigmas pré-estabelecidos no aprendizado de novos con-teúdos. No entanto, quase nenhum desses estudos abordadiretamente a análise do processo de substituição de para-digmas � ou seja, de evolução dos conteúdos � no ensino decada área da ciência.

No âmbito de uma comunidade de pesquisadores, écomum que haja convívio entre paradigmas conflitantes, emespecial em períodos revolucionários de uma área de inves-tigação.7 A demora na substituição de paradigmas na comu-nidade científica de modo geral não é muito grande. Atual-mente, o turn-over de paradigmas nos núcleos de produçãode ciência costuma ser ágil, ainda que a extensão desseperíodo varie entre áreas e tenha se acelerado nas últimasdécadas. Entretanto, à medida que nos afastamos do núcleoda comunidade produtora do conhecimento, em direção aoque às vezes se chama de comunidade reprodutora do co-nhecimento � o ensino, em seus vários níveis �, paradigmasantigos têm prevalência cada vez maior.

No caso do ensino de Zoologia e Botânica, no entan-to, o problema é particularmente atípico. Em uma época emque, na comunidade científica, não se questiona o conceitode evolução, a compreensão de alguns aspectos mais pro-fundos da teoria evolutiva e de suas implicações ainda éconsideravelmente limitada. Isso não parece diferente doque acontece com a teoria da relatividade, no que se referea conceitos que guardam enorme distância em relação aosenso comum. Porém, se no caso da teoria da relatividadea ruptura do paradigma newtoniano ocorreu há menos deum século, no caso da evolução o referencial teórico ante-rior é formado por uma mistura de aspectos do essencialis-

1 KUHN, T. S. The structure ofscientific revolutions. Chicago:Chicago University Press,2nd Ed., 1970.

2 KUHN, T. S. On learningphysics. Science & Education9(1-2):11-19, 1990.

3 DUTRA, L. H. A. Kuhn e afilosofia da educação. http://w w w. c f h . u f s c . b r / ~ w f i l /kuhnport.htm, 1999.

4 PIETROCOLA, M. Cons-trução e realidade: o realis-mo científico de Mário Bun-ge e o ensino de ciênciasatravés de modelos. Investi-gações em ensino de ciências,4(3), 1996.POMBO, O. Unidade dasciências e configuração disci-plinar dos saberes. Contribu-tos para uma filosofia doensino. Revista de Educação,VIII(1):170-174, 1999.ARRUDA, S. M.; SILVA, M.R. & LABURÚ, C. E. Labo-ratório didático de física apartir de uma perspectivakuhniana. Investigações emensino de ciências, 6(1), 2001.

5 DUSCHL, R. A. Restructur-ing science education: Theimportance of theories andtheir development. New York:Teachers College Press, 1990.DUSCHL, R. A., & GITO-MER, D. H. EpistemologicalPerspectives on ConceptualChange: Implications for Edu-cational Practice. Journal ofResearch in Science Teaching,28(9), 839-858, 1991.DUSCHL, R. A. & HA-MILTON, R. J. (eds.). Phi-losophy of science, cognitivep h y s c h o l o g y , a n d e d u c a -tional theory and practice.Albany, NY: State Universityof New York Press, 1992.COLBERN, W. W. Scienceeducation as an exercise inforeign affairs. Science & Edu-cation, 4(3):287-302, 1995.

6 ALTERS, B. J. & NELSON,C. E. Perspective: teachingevolution in higher educa-tion. Evolution, 56(10): 1891-1901, 2002.

7 KUHN, T. S. The structure ofscientific revolutions. Op. cit.

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mo aristotélico, do idealismo platônico e do criacionismodo Genesis, cuja idade supera 23 séculos. Mesmo deixandode lado a questão do paradigma criacionista, boa parte doensino de Zoologia e Botânica (inclusive em nível universi-tário) ainda se apóia largamente em uma visão essencialista-idealista. Apesar do endosso do paradigma evolucionista, amaior parte dos pesquisadores e professores ainda observauma conceituação e uma praxis essencialista ao lidar, respec-tivamente, com a natureza da diversidade biológica e com aorganização da informação sobre o tema. A conseqüência éque, constando Evolução do conteúdo programático deBiologia no ensino básico, convivem formalmente dois pa-radigmas antagônicos: um deles, evolutivo quanto ao pro-cesso de origem da diversidade; o outro, essencialista-idea-lista quanto à natureza das espécies e da organização da in-formação biológica. As filosofias essencialista e idealista nãosão ensinadas ou claramente apoiadas, de modo que o ensi-no tradicional de Zoologia e de Botânica reduz-se a umprocesso de memorização de características, sem que secomponha uma unidade clara do ponto de vista biológico oufilosófico. O resultado é pífio em termos de aprendizado ede motivação de professores e alunos.

Não é propósito deste artigo rever historicamente odesenvolvimento da Zoologia e da Botânica, ou mesmo ahistória do ensino dessas áreas. A tarefa é extensa e já estásendo realizada.8 O objetivo aqui é considerar o conflitoparadigmático no ensino tradicional de Zoologia e Botânicae apresentar uma alternativa metodológica, sob uma aborda-gem estritamente evolutiva. De alguma forma, tal discussãoserve como estudo de caso das dificuldades do processo desubstituição de um paradigma no ensino de ciências.

Zoologia e Botânica: morfologia ou ordem?É comum em alguns círculos atuais da ciência e do

ensino de ciências uma visão relativamente antipática daZoologia e da Botânica. São tidas como áreas �ultrapassa-das� em sua abordagem mais morfológica, face a vertentesque incorporam tecnologia nova, particularmente a molecu-lar. Essa é uma compreensão pobre da área, reflexo de umaconcepção deficiente de seus objetivos e de seu escopo.Ainda que a morfologia pudesse ser considerada esgotada �definitivamente não está �, nesse contexto ela é um detalhe,apenas uma ferramenta, não a meta.

Zoologia e Botânica são parte do que se chama deSistemática, que inclui ainda o conhecimento de bactérias,

8 Ver, por exemplo, PAPA-VERO, N.; LLORENTE-BOUSQUETS, J.; ESPINOSAORGANISTA, D. & MAS-CARENHAS, R. História daBiologia Comparada. Desdeo Gênesis até o fim do Im-pério Romano do Ocidente.Ribeirão Preto: Holos, 2000.

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fungos, vírus e organismos unicelulares com núcleo. O ob-jetivo da Sistemática é, a partir da investigação dos grupos,organizar a informação sobre a diversidade. É curioso que,no momento em que o planeta vive sua crise mais grave deconservação da biodiversidade, a geração de conhecimentosobre a diversidade em si atinge seu nível de menor pres-tígio.

A diversidade biológica já descrita pela ciência ficapouco abaixo de dois milhões de espécies. Estimativas dadiversidade real variam entre cinco e 50 milhões de espé-cies atuais. Esse volume de informação não pode ser apre-sentado e trabalhado � cientificamente ou de forma leiga �como listas de nomes de espécies ordenados alfabeticamen-te. Algumas contas podem mostrar a complexidade envol-vida. Na construção de uma hierarquia de espécies, organi-zada em grupos menores, há três maneiras diferentes deagrupar três espécies duas a duas; há 15 maneiras diferentesde agrupar quatro espécies, número que sobe a 105 quandoas espécies são cinco. Para 22 espécies, há mais de 13 seti-lhões de possibilidades de agrupá-las (ou 1,3 x 1025). Onúmero de possibilidades de combinar todas as quase doismilhões de espécies conhecidas é virtualmente incalculá-vel.9

O significado desses números é que deixar aos usuá-rios do sistema de classificação o papel de reordenar ascentenas de milhares de espécies listadas apenas alfabetica-mente seria lançá-los em um labirinto infinito. Ordenar oconhecimento da diversidade biológica é uma das tarefasmais elementares da Biologia e crucial para todo tipo de usoque se quiser fazer da informação biológica.

O sistema tradicional de classificação proposto porLineu10, ainda que às vezes tido como uma ferramenta pri-mária, corresponde a uma das mais extraordinárias obras deengenharia do conhecimento já desenvolvidas pelo homem.Lineu construiu um sistema aplicável a toda a diversidade.A proposição de um sistema hierárquico elimina quatrilhõese quatrilhões de relações possíveis entre as espécies, for-mando grupos que teriam pouca ou nenhuma utilidade parao usuário. Um grupo que inclua as palmeiras e o samam-baiaçu, por exemplo, apesar de alguma semelhança superfi-cial, corresponderia a apenas uma das trilhões de associa-ções indevidas entre espécies de plantas, imediatamente evi-tada pelo sistema. Note-se que o trabalho da Sistemáticanos últimos dois séculos e meio é tão importante que boaparte dos agrupamentos foi incorporada ao conhecimentocomum, passando aos léxicos e glossários de cada língua.

9 AMORIM, D. S. Fundamen-tos de Sistemática Filogenética.Ribeirão Preto: Holos, 2002.158 p.

10 LINNAEUS, C. Systemanaturae per regna tria naturae.Stockholm: Holmiae, 1758.v. 1, 824 p.

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Talvez exatamente por se tornar parte da linguagem, noentanto, o sistema deixa de ser visto como produto de umaárea da ciência e fica pouco destacado o enorme impactoque a Sistemática tem na pesquisa e no cotidiano humano.

O uso do sistema de classificação no meio científicoé imenso e demanda enorme precisão. Na verdade, a clas-sificação biológica corresponde a um sistema geral de refe-rência para todas as áreas, implicando economia, eficiênciae precisão na construção de hipóteses sobre qualquer as-pecto biológico. No teste de novos fármacos, por exemplo,é indispensável uma compreensão exata da relação entre osvários grupos de vertebrados, e do nível de surgimento decaracterísticas morfológicas, fisiológicas e bioquímicas paraque a aplicabilidade dos testes para o homem possa serdevidamente inferida.11

Zoologia e Botânica, portanto, são apenas nomes paraduas delimitações do imenso ordenamento proposto para adiversidade biológica conhecida. O uso da morfologia nãodeve ser visto com estranheza: apenas é a fonte mais baratade informação, a de uso mais antigo e a que dispõe de maisdados acumulados, permitindo comparabilidade ampla entretodas as espécies já descritas. A Sistemática, portanto, nãose apóia sobre a morfologia em particular, mas sobre umabase de dados � morfológicos, moleculares, fisiológicos,histoquímicos, comportamentais etc. � que cresce apenasgradualmente.

Paradigmas idealistas e essencialistasna Zoologia e na Botânica

Essencialismo e idealismo são assuntos da filosofia.Contudo, é necessário considerar aqui, ainda que breve-mente, sua relação com a Zoologia e a Botânica. O idealis-mo platônico é relevante, nesse contexto, na medida emque estabelece um modelo para a natureza das espécies epara as relações entre elas. No modelo de Platão, a cadaespécie existente corresponderia um tipo ideal dessa espé-cie. Todos os indivíduos de uma mesma espécie seriam có-pias imperfeitas desse mesmo tipo ideal, que existiria emum mundo ideal ou das idéias. Por causa da natureza atem-poral e perfeita desse mundo, os tipos seriam perfeitos eimutáveis. Portanto, se o tipo jamais se modifica, as imper-feições nas inúmeras cópias do tipo ideal ao longo das ge-rações corresponderiam apenas a �variações sobre o mesmotema�: nunca haveria qualquer direção nas mudanças oumodificação do que fosse a natureza da espécie. Igualmente

11 AMORIM, Dalton S. &AMORIM, Dalmo S. Phylo-genetic approaches on im-munological and parasitarystudies: some comments onpotential research programs.Bras. J. Medic. Biol. Res.,25:967-971, 1992.

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relevante, como os indivíduos das várias espécies são cópiasde entidades distintas � os vários tipos ideais �, não háqualquer conexão histórica ou material entre as espécies.

Aristóteles opõe-se sob diversos pontos de vista a essaconcepção de mundo e à maneira de Platão fazer filosofia,mas não nega o conceito de inalterabilidade das espécies e aausência de conectividade entre elas. Além de seu domíniofilosófico e de outras áreas de ciências empíricas, Aristótelesera detentor de um imenso conhecimento zoológico e botâ-nico, e foi capaz de avançar conceitos extremamente elabo-rados em Biologia, como os de homologia e analogia, se-melhanças compartilhadas, hierarquia de grupos etc. As se-melhanças entre as espécies, para Aristóteles, teriam suaorigem em essências compartilhadas. As essências seriamatemporais, implicando que tanto essas quanto as espéciesque as portam seriam fixas. As diferenças entre indivíduos damesma espécie seriam devidas a �acidentes da matéria� �portanto alheias ao interesse da ciência, que busca universaise não particulares. As diferenças entre espécies, por sua vez,seriam resultado de diferentes combinações entre essências,além da presença de essências próprias de cada espécie. Navisão de Aristóteles, ainda que as espécies não tivessem ne-nhum tipo de relação material ou histórica, o compartilha-mento de essências permitia, pelo método da diérese platôni-ca, a criação de grupos taxonômicos representados em umsistema lógico � uma classificação. As classes ou agrupamen-tos são definidos, nesse contexto, por listas de características� essências � compartilhadas. Eis as bases do ensino atual deZoologia e Botânica.

Modelos evolutivosA questão da evolução das espécies confronta-se an-

tes com a visão fixista do idealismo platônico que com avisão criacionista. Há modelos criacionistas evolucionistasviáveis, como a própria proposta de Lamarck12. De fato, noperíodo entre o final do século XVIII e o início do séculoXIX, o aspecto do idealismo platônico que confere estabi-lidade às espécies � o fixismo � parece ter sido o conceitoa superar. No ensino, o contexto filosófico compreendendoa discussão da origem da teoria evolutiva é relegado a se-gundo plano, o que dificulta a compreensão dos modelospropostos e de seus significados. Parece claro que a exclu-são da filosofia como matéria na formação básica � em umaépoca fortemente positivista e de redução de custos na edu-cação � é responsável por inúmeras das deficiências noaprendizado de ciências e na formação de conceitos.

12 LAMARCK, Jean-Baptistede. Zoological Philosophy.New York: Hafner, 1809.(Transl. H. Elliot, 1963).

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Ainda que com um modelo hoje considerado frágil,Lamarck tem o grande mérito de ter questionado o concei-to fixista das espécies. A visão evolutiva de Lamarck, noentanto, não ataca a explicação criacionista para a origemdas espécies. Questionar o fixismo, mesmo com uma basecriacionista, certamente correspondia a questionar o con-ceito de tipos ideais e, por extensão, o conceito de ideal oude perfeição. É necessário compreender, portanto, que aruptura do paradigma fixista das espécies posiciona-se alémdos limites de uma discussão biológica, no domínio da filo-sofia. Isso ajuda a dimensionar a dificuldade de superar osconceitos pré-evolutivos no âmbito do ensino, tanto porparte de alunos quanto de professores.

Darwin e Wallace propuseram um modelo explicativoextremamente poderoso para o processo de modificação dasespécies. O modelo darwinista põe em cheque o fixismoclássico com apoio em dois conceitos dificilmente questio-náveis: a existência de variabilidade herdável subjacente àsespécies (mecanismo pouco compreendido à época, masdemonstrado por Darwin) e a sobrevivência diferencial dosindivíduos de populações. Uma vez que as populações nãocrescem geometricamente, as mortes a cada geração resul-tam em um mecanismo natural de seleção das característicasdos sobreviventes. A associação entre esses dois conceitosresulta no fato de que as espécies se alteram direcionalmen-te ao longo do tempo.

O aspecto da seleção da variabilidade pré-existente éo mais conhecido e discutido do paradigma darwinista. Noentanto, o modelo contém um elemento adicional largamen-te subestimado em estudos de história da Biologia. Fosseapenas pela abordagem selecionista, o modelo de Darwin sereduziria a mais uma visão criacionista-evolucionista. Maisque isso, no entanto, a proposta de Wallace e Darwin adi-ciona o conceito de que as espécies têm conexão histórica,material: a origem das espécies atuais é explicada por umprocesso de divisão de espécies pré-existentes, as espéciesancestrais, gerando novas entidades. Isso inviabiliza o segun-do aspecto da visão idealista-essencialista, a ausência de co-nexão direta entre as espécies. Essa é uma tese efetivamenterevolucionária, sem a qual a teoria evolutiva de Darwin nãoteria sequer um traço de seu impacto científico e social.Ainda assim, sua importância no contexto da teoria evolu-tiva passa desapercebido em sentido histórico, cognitivo,epistemológico e metodológico.

Uma das implicações mais relevantes desse aspectodo modelo darwinista é que se tornou possível representar

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a história da diversidade, conectando as espécies atuais emdiferentes níveis numa grande unidade. Os diagramas querepresentam essa história são chamados de filogenia. Umafilogenia é constituída por nada mais que espécies ances-trais, em diferentes níveis até chegar às espécies atuais. Ahierarquia de parentesco entre as espécies é a explicaçãopara a hierarquia de semelhanças entre elas.

De fato, é surpreendente que a maioria dos historia-dores do evolucionismo tenha dado ênfase tão grande aoprocesso que explica a mudança e conferido menor impor-tância à contribuição mais original do darwinismo: a percep-ção da existência de uma filogenia. Essa ênfase limitada tal-vez se justifique pelo fato de que a filogenia define-se comoum dos conceitos evolutivos mais abstratos. A mudança nascaracterísticas das espécies é algo relativamente palpável,que se pode observar e medir. Mas a conexão entre as es-pécies pertence ao tempo passado e jamais pode ser obser-vada diretamente. Espécies ancestrais não são um �proces-so� que possa ser repetido experimentalmente, mas indiví-duos históricos, entidades transtemporais. Certamente, ummodelo em que as espécies se fragmentam é universal, masas espécies ancestrais dos grupos existentes são �fatos� enão podem ser observadas diretamente.

Considerando que o conceito de filogenia ocupa umaposição central no modelo de Darwin e de Wallace, seriamais razoável que tivesse sido chamado de filogenético-evolutivo, para diferir da visão lamarckista, apenas evoluti-va. A idéia de que os humanos pudessem ter um ancestralsímio causou mais resistência no entorno social do darwi-nismo emergente que o conceito de que as espécies se mo-dificam. O conceito de filogenia � ou seja, a idéia de paren-tesco entre as espécies, inclusive a humana � parece tersido uma fonte de controvérsias mais grave na metade doséculo XIX do que os aspectos puramente não-fixistas domodelo.

As dificuldades na compreensão das implicações doconceito de uma filogenia podem ser observadas em outrosaspectos da história do evolucionismo. De um lado, Darwinpropôs a existência de uma filogenia que interliga todas asespécies. A filogenia, portanto, é algo que se descobre. Noentanto, ele não propôs um método que permitisse desco-brir ou recuperar essa filogenia. Haeckel13, com apoio emseu enorme conhecimento de Zoologia e Botânica, começoumuito cedo a propor �árvores filogenéticas� para os váriosgrupos de animais e plantas. Contudo, tampouco Haeckeltratou de um método de inferência filogenética. Esse método

13 HAECKEL, E. AllgemeineEntwicklungsgeschichte derOrganismen. Berlim: Reimer,1886.

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precisou esperar quase cem anos para ser lançado, com ostrabalhos do entomólogo alemão Willi Hennig.14

Além da ausência de um método de reconstrução filo-genética, Darwin, Wallace e boa parte dos evolucionistas eneodarwinistas que os seguiram não viram a necessidade derever o sistema classificatório proposto por Lineu. Darwinpercebeu a relação entre a hierarquia filogenética e a hierar-quia sistemática15, mas não avançou além disso para proporum novo sistema de classificação, o que veio apenas comWilli Hennig16.

Assim, a despeito da revolução a que o surgimento doconceito de uma filogenia corresponde, a compreensão li-mitada de suas implicações provavelmente minou as possi-bilidades de estender rapidamente a outras áreas as mudan-ças que ele gera. A ausência de um método filogenético (e,por conseqüência, a ausência de uma filogenia reconstruídade forma rigorosa), bem como a ausência de uma conexãoentre a filogenia reconstruída e a classificação proposta fa-bricaram o convívio pacífico desses dois paradigmas antagô-nicos: o modelo filogenético-evolutivo de Darwin e de Wal-lace e o sistema idealista-essencialista das classificações tra-dicionais. O resultado colhe-se inclusive no ensino.

Fim do conflito? AlternativasA compreensão deficiente do conceito de filogenia

tem implicações tanto na pesquisa quanto no ensino. Quan-do um agrupamento que não corresponde a uma unidadehistórica � tecnicamente, um grupo que não seja monofiléti-co � é equivocadamente tomado como tal, muitas das infe-rências feitas com base nesse tipo de �grupo� são equivoca-das. Não apenas as conclusões a que se chega são errôneas,mas também se perde o poder preditivo que a filogeniacomo ferramenta gera.17

Alguns docentes de diferentes níveis de ensino, in-cluindo universitário, dizem que ministram Zoologia �naseqüência evolutiva�, o que é insuficiente. Nas aulas, àsvezes se afirma que as relações de proximidade entre osfilos animais se devem à evolução, mas mesmo quando issoocorre não se explicita o conceito de filogenia ou se consi-deram suas implicações. De fato, o ensino de Zoologia eBotânica continua constituído apenas pela apresentação degrupos taxonômicos e pelos conjuntos de característicasde cada grupo. Memorizar �na seqüência evolutiva� nãocorresponde a uma visão darwinista. Ainda que sob roupa-gem evolucionista, a praxis subjacente é exclusivamenteessencialista.

17 AMORIM, Dalton S. &AMORIM, Dalmo S. Op. cit.

14 HENNIG, W. Grundzügeeiner Theorie der phylogene-tischen Systematik. DeutscheZentral Verlag, 1950.HENNIG, W. PhylogeneticS y s t e m a t i c s . A n n . R e v .Entomol., 10:97-116, 1965.HENNIG, W. Phylogeneticsystematics. Urbana: Univer-sity of Illinois Press, 1966.AMORIM, D. S. Fundamen-tos de Sistemática Filogenética.Op. cit.

15 HENNIG, W. Phylogeneticsystematics. Op. cit. p. 20.

16 HENNIG, W. Grundzügeeiner Theorie der phyloge-netischen Systematik. Op. cit.

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As mesmas dificuldades do período inicial do para-digma evolucionista na pesquisa existem no ensino: falta depercepção da importância dos conceitos de ancestralidade ede filogenia, ausência de um método filogenético, ausênciade filogenias reconstruídas de modo preciso e falta de per-cepção das relações entre filogenia e classificação. Comessas condições de entorno, é perfeitamente natural que oensino de Zoologia (e o mesmo se aplica à Botânica) sereduza à memorização de características pouco claras deagrupamentos taxonômicos com nomes em latim.

Não se deve levantar queixa contra os professoresque ensinam Zoologia e Botânica sob essa abordagem tradi-cional. De um lado, os paradigmas essencialistas permeiama formação que receberam, de conceitos, de conteúdo e demétodo de ensino. De outro, alguns professores têm talhabilidade didática que são capazes de tornar interessantepara os alunos mesmo uma matéria em que convivem doisparadigmas incompatíveis.

É possível, no entanto, escapar desse conflito. O de-senvolvimento da Sistemática Filogenética18 e de um con-junto de ferramentas conceituais geraram as bases paratranspor a visão filogenética para o Ensino Básico. Essemodelo foi desenvolvido e colocado em prática em diferen-tes circunstâncias nos últimos anos, revelando capacidadede gerar motivação e compreensão de conceitos.19 Essa opi-nião a respeito do método foi emitida tanto por alunosquanto por professores que o têm aplicado no Ensino Fun-damental e no Ensino Médio.

No Anexo deste artigo, encontra-se a descrição dodesenvolvimento de uma aula estruturada para alunos de 6a

Série, a ser ministrada no início do semestre em que estáprogramada Zoologia. A aula também pode ser dada emséries mais adiantadas, como na 2a Série do Ensino Médioou na Universidade, fazendo-se as devidas adaptações deobjetivos, extensão e conteúdo. Ministradas no ensino uni-versitário desde 1987, aulas com esse perfil começaram aser aplicadas para a 6a Série e para o Ensino Médio, confor-me o programa mantido pelo Laboratório de Ensino deCiências da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras deRibeirão Preto (Universidade de São Paulo) a partir de1997.20

Recomenda-se que o Anexo seja lido antes de seguiradiante. Alguns elementos conceituais que sustentam essaestrutura e algumas implicações importantes em termos deaprendizado são apresentados a seguir. O modus faciendi

18 HENNIG, W. Phylogeneticsystematics. Op. cit.

19 AMORIM, D. S.; SISTO, A.S.; LOPES, D. R. N.;BRAGA, J. A. & ALMEI-DA, V. L. F. O. Diversidadebiológica e evolução: Umanova concepção para o ensi-no. p. 9-17. In: BARBIERI,M. (org.). Aulas de Ciências.Projeto LEC-PEC de Ensi-no de Ciências. RibeirãoPreto: Holos, 1999.AMORIM, D. S.; D. L.M O N T A G N I N I ;CORREA, R. J.; NOLL, M.S. M. C. & NOLL, F. B.Diversidade biológica e evo-lução: uma nova concepçãopara o ensino de zoologia ebotânica no 2º grau. p. 38-45.In: BARBIERI, M. (org.). Aconstrução do conhecimento doprofessor. Uma experiência deintegração de professores doensino fundamental e médioda Rede Pública à universi-dade. Ribeirão Preto: Holos,2002.

20 BARBIERI, M. (org.). Aulasde Ciências. Op. cit.

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dessa aula pode ser considerado como um ovo de Colombo,mas é necessária atenção para a quantidade de pressupostose elementos subjacentes que condicionam sua estrutura eseus resultados. Se não houver grande cuidado na formaçãocomplementar de professores e no estabelecimento de no-vos programas, corre-se o risco de teorização desnecessáriae domínio incompleto de conceitos e práticas, de modo quesua aplicação em escala mais ampla resultará apenas em mu-dança do conteúdo a ser memorizado sem compreensão, enão em mudança direcionada a uma formação de qualidade.

SimplicidadeA aula é intencionalmente simples em relação à adição

de conhecimento técnico novo e à dependência de tecnolo-gia. Isso permite sua implementação em situações escolaresmesmo precárias. De fato, a dinâmica da aula baseia-se prin-cipalmente na indução da compreensão a partir do questio-namento dos próprios alunos e numa visão estrutural dosorganismos.

É necessário deixar claro que, na abordagem aqui pro-posta, essas aulas não pretendem transmitir especificamenteconteúdos de evolução, de filogenia, de método filogenético,de sinapomorfias ou de grupos monofiléticos; devem basica-mente consolidar a noção de ordem subjacente à diversidadepara que, em outro momento, esses conceitos possam apa-recer naturalmente. Tal ordem está e sempre esteve sobnosso nariz e pode ser visualizada inclusive com o universode conhecimento dominado por crianças e adolescentes. Adescoberta da ordem é um processo empírico (na aula, in-duzido), o que repete a história da ciência, em que a per-cepção de que existe ordem taxonômica na natureza bioló-gica (além da ordem energética ou ecológica) precedeu aexplicação evolutiva e o conceito de filogenia. A compreen-são da existência dessa ordem tem várias decorrências noensino, criando para os alunos as condições cognitivas ne-cessárias para perceber e compreender (1) a conectividadeentre os planos de organização dos grupos, que mais à fren-te pode levar aos conceitos de (2) evolução, (3) ancestra-lidade, (4) filogenia, (5) características derivadas comparti-lhadas (sinapomorfias), (6) homologia e (7) grupos comorigem única (monofiléticos).

Ao menos na 6a Série, não é necessário colocar essesconceitos em pauta, a não ser que os alunos perguntem.Isso significa que o modelo explicativo deveria surgir comoresposta a uma pergunta levantada � pelo aluno na aula ou,

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mais adiante, pelo próprio professor aos alunos: �Como épossível que os grupos sejam tão parecidos em sua estrutu-ra, apesar das diferenças externas?�.

Praticamente todo o conhecimento de Biologia (e nãoapenas de Zoologia e Botânica) ministrado no restante dosEnsinos Fundamental e Médio colaboram para reforçar apercepção de ordem biológica e para responder a essa per-gunta sobre causalidade. O fato de, nesse primeiro mo-mento, não serem apresentados em aula elementos teóri-cos adicionais � hipóteses, conceitos, modelos, explica-ções � permite uma sinalização mais clara sobre a ordemexistente.

Construção da aula com os alunosDesse ponto de vista, a aula é construída a partir do

conhecimento dos alunos. É preciso considerar as críticasao construtivismo21, evitando que a discussão em sala sereduza à capacidade de associação contida no senso comum.Os principais conceitos evolutivos a serem formados sãoexatamente os que faltam no senso comum. Feito esse óbi-ce, vale observar que os alunos, mesmo em áreas altamenteurbanizadas, detêm uma quantidade relevante de conheci-mento descritivo de Zoologia. Ainda que ignorado ou vistopelos professores na estrutura tradicional de ensino comose não fosse técnico ou legítimo, esse conhecimento é maisque suficiente para entabular uma discussão extensa sobreordem dos grupos de animais.

AncestralidadeO conceito de ancestralidade, como afirmado acima,

é a decorrência natural mais importante subjacente à aula. Éuma decorrência, não uma premissa que os alunos devemter para que possam compreender o assunto. Apesar de nãoser colocado explicitamente aos alunos, o professor deve tero conceito de ancestralidade em mente quando desenvolveo plano de aula, uma vez que a representação dos ancestraisaparece repetidamente. Eles são desenhados em cada níveldo diagrama � que corresponde à própria filogenia � e sãomodificados para gerar outros ancestrais.

Em termos de mudança de paradigma, como foi co-mentado acima, é a inserção do conceito de ancestralidadeque supera o essencialismo e o idealismo, embutidos naabordagem tradicional. Assim, se o desenho que correspon-de aos ancestrais não estiver presente, os demais elementosde simplificação gráfica, homologia e ordenamento contidos

21 SUCTHING, W. Construc-tivism deconstructed. Scienceand Education , 1(3):223,1992.MATTHEWS, M. Scienceteaching: the role of historyand philosophy of science.New York and London:Routledge, 1994.

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na aula não terão o efeito pretendido, mantendo-se a óticaessencialista. A apresentação de grupo após grupo semindicar a condição do ancestral conserva a noção de que osfilos são entidades estanques e as características comparti-lhadas não são homólogas em sentido estritamente evo-lutivo.

Uma das fontes da força cognitiva da imagem do an-cestral advém de sua própria natureza evolutiva: ele nãodetém nenhuma das características próprias de seus descen-dentes; ou seja, ele é livre das �idiossincrasias� dos descen-dentes (ou, tecnicamente, das autapomorfias). Além disso,os ancestrais em cada nível acumulam todas as característi-cas surgidas antes de sua origem. Assim, o ancestral tem opoder de síntese, de conexão entre o passado e o futuro emcada grupo. Ele é o elemento central de agregação dos gru-pos � ou seja, dos organismos e de suas características.Como ocorre com o próprio modelo filogenético-evolutivode Darwin e de Wallace, é a ancestralidade que confere osentido de unidade à diversidade.

HomologiaÉ necessário dizer para uma criança que a cabeça de

uma ema é homóloga à cabeça de um tiranossauro, de umaanta, de um peixe ou de um inseto? Evidentemente quenão. Ainda que a base teórica subjacente ao conceito dehomologia seja muito profunda, ele nasce empiricamente:homologia é a explicação mais simples ou parcimoniosa parauma enorme quantidade de observações empíricas. O con-ceito de homologia surgiu antes da teoria evolutiva, tendoestado presente em Aristóteles, Lancaster e Owen. Dentrodo paradigma evolutivo, ele reaparece em Darwin e Haeckelcom um sentido evolutivo para as semelhanças compartilha-das. No caso da homologia, também vale a recomendação dedar aos alunos a explicação apenas depois da pergunta. Ascores iguais para os vários grupos chamam a atenção dosalunos subliminarmente para as relações de homologia. Le-vantar a difícil discussão conceitual de homologia na 6a Sérienão parece útil ou desejável.

Sinapomorfias ou característicasderivadas compartilhadas

Mesmo em ambientes acadêmicos na Biologia, oconceito de sinapomorfia ainda é ignorado ou pouco com-preendido. Os alunos, no entanto, respondem naturalmen-te à pergunta �O que é que os cnidários têm, que os

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coanoflagelados e poríferos não têm, e que o restante dosanimais também têm?�. Ainda que tecnicamente esse nãoseja exatamente o método de inferência, as respostas a per-guntas como essa são as sinapomorfias de um grupo. No-vamente, compreender a pergunta e saber respondê-la apartir do próprio conhecimento dos grupos é mais impor-tante do que decorar listas de características ou a própriadefinição de sinapomorfia. Questionados, os alunos forne-cem �sinapomorfias� para virtualmente todos os níveis, dabase ao alto do diagrama, sem maiores dificuldades. Certa-mente, é necessário um guia das características mais impor-tantes para ajudar o professor a conduzir essa discussão. Hácaracterísticas que valem a pena não esquecer e outras quesão completamente dispensáveis, dependendo do nível deensino.

Representações diagramáticasQuanto mais artísticos e elaborados forem os dese-

nhos no quadro, maior parece ser a quantidade de alunosque, talvez por não dispor de habilidade técnica para odesenho, deixam de copiá-los em seus cadernos e envolver-se na aula. A simplicidade do desenho aproxima o aluno doconteúdo da aula. Além disso, a representação diagramáticaretira da discussão tudo o que não é do interesse específicoda aula. Incluir fotografias dos animais de cada filo (semprede espécies atuais) é útil ou indispensável em outro mo-mento, mas no contexto dessa aula faz com que se perca avisão estrutural � o bauplan � dos grupos.

De modo geral, as características de qualquer espécieatual acumularam-se durante dezenas ou centenas de mi-lhões de anos, entre a origem do ancestral de um filo e aorigem dessa espécie particular (com inúmeras ancestraisintermediárias). Isso significa que uma espécie atual temum grande número de características que não existiam naancestral. Assim, a representação diagramática � ao invés deuma reprodução fiel � na construção de um modelo de cadafilo evita a confusão que resulta da inclusão de caracterís-ticas que não existiam na espécie ancestral.

Finalmente, o excesso de informação faz com que seperca o foco. Em aulas sobre cada filo em particular, épossível acrescentar outras características a seu plano-bá-sico dos filos, como coloração externa, textura, tamanhoabsoluto, forma de locomoção e detalhes de habitat, ali-mentação, sistema respiratório, sistema reprodutor etc.Portanto, na aula proposta, nada do que não está sendo

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discutido é incluído nos desenhos diagramáticos. Mantém-se, à medida que vão surgindo, apenas forma geral, tubodigestivo, sistema nervoso, sistema circulatório e talvezpouco mais.

Conhecimento prévioA maior parte de todo o conteúdo dado em uma aula

como essa sobre os animais ou suas características é dodomínio de alunos da 6a Série. De modo geral, os gruposacrescentados são apenas coanoflagelados, poliquetos e lí-rios-do-mar (sem ênfase para a memorização dos nomes).Quase todas as características compartilhadas pelos filostambém estão presentes na espécie humana. Isso é extrema-mente importante, pois faz com que o conteúdo das aulasde Zoologia seja auto-referenciado (uma diferença em rela-ção à Botânica). De modo geral, os alunos de cidades pe-quenas ou que moram mais próximos de áreas rurais têmmuito mais domínio do assunto que os alunos em condiçõesestritamente urbanas. Isso permite, adicionalmente aos ga-nhos acadêmicos da aula, um processo de valorização dosalunos por atributos pouco usuais, que não são os de classesocial, oportunidade de acesso à informação, intelectualiza-ção etc. Na experiência acumulada até agora com a práticadessa aula esse fato provoca uma mudança na dinâmica deatribuição de valor entre os alunos por excelência no domí-nio de conteúdos. Isso está de acordo com preceitos epráticas amplamente utilizados na pedagogia de PauloFreire22, em que se parte do conhecimento disponível pelosalunos para a construção de novos conceitos. De fato, difi-cilmente conceitos abstratos e novas formas de ver o mun-do, a que os novos paradigmas correspondem, conseguem-se implantar se não é feita uma ponte com os referenciaisdisponíveis no universo cognitivo disponível.

LatimÉ comum a confusão entre domínio de conhecimen-

to em Zoologia e Botânica com conhecimento de nomes.Zoologia não é conhecimento de nomes em Latim ou denomes técnicos de morfologia. Zoologia é o conhecimentodescritivo dos animais � que os alunos têm em algumaextensão � e das deduções de ordem ecológica, funcionale evolutiva que possam ser feitas a partir desse conheci-mento.

A maior parte do conhecimento estrutural dos gruposde animais nessa aula já é de domínio dos alunos na 6a Série.

22 FREIRE, P. Educação comoprática da liberdade. 19a ed.Rio de Janeiro, Paz e Terra,1989. 150 p. (1a ed. 1967).

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Alguns poucos nomes novos precisam ser usados, como�coanócitos� ou �protonefrídeos�. Os nomes latinos dosfilos, como Porifera, Cnidaria, Platyhelminthes etc., podemser colocados, mediante a observação de que eles não são oobjetivo da aula ou a parte mais importante e que a memori-zação vem aos poucos. No início, os coletivos esponjas,medusas, anêmonas e planárias são suficientes. Isso solu-ciona a ansiedade que a presença de novos nomes podecausar.

Há uma questão adicional aqui. O recurso a umaabordagem técnica e hermética é referido na teoria da edu-cação como recurso a um mecanismo de poder por parte deprofessores.23 A isso está associado o conceito do que é serum bom professor. Deter conhecimento � ao invés de deteros meios de despertar a compreensão � é visto com algumafreqüência como indicador de qualidade do professor. Nocaso de Zoologia e Botânica, é possível que algum hermetis-mo por parte da maioria dos professores seja devido à sim-ples confusão entre o que é conhecimento zoológico defato e o que é apenas nomenclatura técnica. A experiênciacom esse modelo de aula mostra uma grande motivação dosalunos pela simples descoberta de que eles não são tão ig-norantes assim, que a Zoologia não é tão difícil, que o obje-tivo não é ficar decorando nomes e que eles podem chegaràs principais conclusões a partir de seu conhecimento �respondendo às perguntas apropriadas. Com esse clima, oaprendizado de nomes dos grupos e de suas estruturasocorre como pano de fundo.

Filogenia dos animaisA ordem particular utilizada na aula constante no

Anexo � isto é, a filogenia particular utilizada � não é ca-sual. Apóia-se em vários anos de estudo de filogenia dosgrandes grupos animais24 e representa uma, dentre váriashipóteses conflitantes na literatura. Na opinião desses auto-res, essa é a filogenia mais provável e mais econômica paraa evolução dos animais, se considerada uma grande quanti-dade de informação freqüentemente descartada nos estudostradicionais. Isso significa que, apesar de não colocadas emdiscussão, determinadas decisões por trás da cena modelamos resultados.

Essa filogenia diferencia-se da maior parte das alterna-tivas por posicionar os deuterostômios entre os poliquetostubícolas, e os artrópodes, entre os poliquetos errantes. Noentanto, a simplificação devido à retirada da maior parte dos

23 FOUCAULT, M. Vigiar ePunir . Petrópolis: Vozes,1995.FURLANI, L. M. T. Autori-dade do professor: meta, mitoou nada disso? 3. ed. SãoPaulo: Cortez & AutoresAssociados, 1991.

24 CHRISTOFFERSEN, M. L.& ARAÚJO-DE-ALMEIDA,E. A phylogenetic frame-work of the Enterocoela(Metameria: Coelomata).Rev. Nordestina Biol., 9(2):173-208, 1994.CHRISTOFFERSEN, M. L.;AMORIM, D. S. & MAR-QUES, A. C. Further evi-dence for the monophyly ofthe Ecdysozoa: support frommorphology. 16th Meeting ofthe Willi Hennig Society. Wa-shington, 1997.CHRISTOFFERSEN, M.L.; AMORIM, D. S.; AL-MEIDA, W. O.; SILVA, G. S.& GARRAFFONI, A. R.S. What i f �Polychaeta�,�Annelida� and �Articulata�a r e n o t m o n o p h y l e t i c ?Articulating the Metameria,p . 31 . VI th Internat ionalP o l y c h a e t e C o n f e r e n c e .Curitiba, 1998.A L M E I D A , W. O . &CHRISTOFFERSEN, M. L.Análise cladística dos gruposbasais de Metameria. Umanova proposta para o posi-cionamento dos Arthropodae grupos afins entre os poli-quetos errantes. Série Teses,Dissertações e Monografias �1, 2a Edição. Ribeirão Preto:Holos, 2002.A L M E I D A , W . O . ;CHRISTOFFERSEN, M.L.; AMORIM, D. S.; S.GARRAFFONI, A. R. &SILVA, G. S. Polychaeta,Annelida, and Articulata arenot monophyletic: articula-ting the Metameria (Metazoa:Coelomata). Revta. Bras.Zool., 20(1):23-57, 2003.

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filos faz com que o impacto da topologia particular usadaseja relativamente baixo. A compreensão nesse momentorestringe-se aos conceitos de ordem, de homologia e deconectividade entre os diversos planos corporais e não dafilogenia particular apresentada entre os grupos. Ainda as-sim, essa mesma estrutura de aula pode ser dada a partir dequalquer filogenia, sendo apenas necessário fazer surgir in-dependentemente algumas características. No caso de ma-nutenção da monofilia dos Protostomia, como é propostopela maior parte dos livros atuais, o tubo digestivo comple-to, o peristaltismo, os protonefrídeos, os metanefrídeos, ospacotes celomáticos, o sistema circulatório, o coração, opedúnculo, a metamerização, as larvas com formato troco-foróides, entre outras características, precisariam surgirduas ou mais vezes na evolução dos animais.

Fragmentação do conhecimentoA fragmentação no ensino é alvo fácil de críticas na

teoria do ensino.25 Contudo, não é fácil encontrar alterna-tivas que permitam conexões múltiplas entre as matérias.Romper a fragmentação em uma área de ensino demandanovos paradigmas de ensino na área. Isso implica mudançasde cultura escolar, de cultura do professor e de estrutura-ção didática e cognitiva dos conteúdos; mudanças mais am-plas, para evitar essa fragmentação da educação, escapam auma disciplina específica. A própria fragmentação burocrá-tica das disciplinas dificulta a comunicação entre professo-res e a integração de conteúdos.

Na Biologia, parte dessa mudança está no uso de filo-genias para correlacionar grupos diferentes, característicasdiferentes, tempo e processos evolutivos. Mas a disponibi-lidade dos conceitos é insuficiente, no sentido de que elesestão na literatura há décadas sem que tenha sido possívelromper o ensino fragmentário. São necessários modos dearticulá-los, linguagem adequada e estratégias de formaçãode conceitos por parte dos alunos, ainda por ser desenvol-vidos. A proposta feita aqui pretende servir como elementointegrador, se os demais conteúdos puderem ser referencia-dos nessa aula.

Noções de saúde humanaA apresentação de conteúdos de biologia humana é

indispensável na formação escolar básica. Em várias séries,no entanto, os conceitos de saúde costumam preceder umacompreensão mais ampla dos problemas biológicos envolvi-

25 LÜCK, H. Pedagogia inter-disciplinar: fundamentos teó-rico-metodológicos. Petró-polis: Vozes, 1994.B A L L , D . L . B r i d g i n gpractices: Intertwining con-tent and pedagogy in teach-ing and learning to teach.Journal of Teacher Education,51(3): 241-247, 2000.

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dos. Pelo menos para as séries mais adiantadas, é possívelutilizar esse conceito de ordenamento dos grupos (ou aprópria filogenia) na apresentação de outros grupos, comobactérias, vírus e organismos eucariotos unicelulares. Issointegraria a compreensão dos grupos, seus ciclos de vida esuas características biológicas.

Muito da parte aplicada do conhecimento biológicoestá ligado a doenças humanas. A compreensão da naturezadas bactérias e dos vírus faz com que seja fácil compreen-der a biologia das doenças parasitárias e infecciosas e dasações de prevenção. Animais e plantas também adoecempor viroses e infecções bacterianas! A eficiência de açõespúblicas de saúde está diretamente relacionada à compreen-são da biologia dos agentes patogênicos, dos organismosafetados e, quando é o caso, dos agentes transmissores. Ébem sabido que há uma enorme confusão entre o mosquitotransmissor da dengue e a virose que ele transmite. Paraque campanhas educativas tenham sentido cognitivo, é ne-cessário algum conhecimento biológico subjacente. O mes-mo se aplica a grupos de animais parasitas, como em Platy-helminthes, Nematoda ou Arthropoda. A origem da vida, asmodificações de bactérias autotróficas em vários tipos debactérias heterotróficas e a origem dos vírus, dos organis-mos eucariotos e da condição multicelular em plantas eanimais podem ajudar a compreender a origem e a naturezadas muitas doenças infecciosas humanas.

De outra parte, temas que portam grande tabu, comoa sexualidade, permitem uma abordagem indireta. A com-preensão de que a união entre gametas em qualquer grupode animais (e outros eucariotos, como as plantas) resultaem reprodução permite apresentar a questão da reproduçãohumana apenas como um caso particular, sob uma óticacompletamente diferente. O ponto de abordagem será aindicação das diferenças nas condições em que gametas sãoliberados no homem e na mulher, nas condições em que aunião dos gametas pode ocorrer e no quanto o ato detransmissão de gametas pode transferir também organis-mos patogênicos. Doenças sexualmente transmissíveis(DSTs) não são apenas problemas humanos. Da mesma for-ma, outros assuntos, como alimentação adequada, o funci-onamento de órgãos e as mitocôndrias como bactériasintracelulares simbióticas, podem ser abordados sob umaperspectiva comparativa, a partir das relações de proximi-dade da espécie humana com outros organismos.

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Novos desenvolvimentosA aula apresentada no Anexo inclui apenas a exposi-

ção inicial da ordenação dos grupos de animais, indicandocaracterísticas compartilhadas em vários níveis. Um progra-ma que usa esse sistema, no entanto, não se esgota aqui.Como foi comentado acima, o mesmo sistema pode seraplicado a plantas e aos demais grupos de organismos �bactérias, fungos, vírus, protozoários etc. Além disso, mes-mo ao longo do semestre em que se ministra Zoologia na 6a

Série do Ensino Fundamental ou na 2a Série do EnsinoMédio, outras aulas podem remeter a essa. Aulas práticasextremamente simples, por exemplo, podem ter implica-ções importantes. Não é necessário microscópio ou lupapara comparar os segmentos do abdômen de um besouro,dos segmentos do corpo de um camarão e de uma minhocachamando a atenção para características compartilhadas.Conexões dessa aula com os demais conteúdos de genética,ecologia, fisiologia, saúde etc. podem ser feitas. Esse é umuniverso a ser explorado e depende da criação de materialespecífico.

Formação de professoresNão é possível esperar que professores dos vários

níveis do ensino passem a uma prática diferente, se concor-darem com o que está colocado aqui, apenas pela leituradeste texto. O material disponível na literatura em portu-guês26 fornece alguma informação, mas também não é sufi-ciente. Ainda que as aulas sejam simplificadas, os professo-res precisam dominar conceitos e informações que não es-tão na formação usual dos cursos de Licenciatura em Ciên-cias Biológicas. Como foi dito, Zoologia �na seqüência evo-lutiva� não basta. Infelizmente, o material didático ouparadidático atualmente disponível não contém os elemen-tos que permitem ir além do essencialismo.

Em 1994 e 1997, foram realizados projetos de inter-face entre pesquisadores da Universidade de São Paulo(USP) e professores da Rede Pública de Ensino, num pro-jeto do Laboratório de Ensino de Ciências, da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. Emambos os projetos foi dado a professores de 6a Série doEnsino Fundamental e de 2a Série do Ensino Médio emba-samento teórico dessa área. Especialmente em 1997, foipossível encontrar um protocolo para um curso de forma-ção complementar que habilitasse o professor a assumiressas aulas nas escolas. É necessário compreender o aspecto

26 AMORIM, D. S. et. al.. Di-versidade biológica e evolu-ção: uma nova concepçãopara o ensino... Op. cit.AMORIM, D. S. et. al.. Di-versidade biológica e evolu-ção: uma nova concepçãopara o ensino... Op. cit.AMORIM, D. S. Fundamen-tos de Sistemática Filogenética.Op. cit.

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filogenético da evolução biológica, os conceitos e funda-mentos do método filogenético, em alguma extensão as re-construções filogenéticas entre os grupos de animais, alémda discussão dos aspectos pedagógicos envolvidos. Váriaspalestras e cursos em congresso foram dados até agora coma abordagem proposta, mas ainda será necessário um grandeesforço para modificar o paradigma predominante no ensi-no dessa área.

ConclusõesA hipótese pedagógica envolvida neste projeto é que

o ordenamento da diversidade biológica, presente na estru-tura de aula proposta aqui, permitiria romper o paradigmaidealista-essencialista vigente no ensino tradicional de Zoo-logia e de Botânica, conferindo as bases para o desenvolvi-mento de uma visão filogenética e evolutiva sólida. Alémdisso, supõe-se que tal abordagem seria capaz de mudar amotivação de alunos e professores da matéria.

Ainda que sem a realização de pré-testes e pós-testes,há indicação muito clara de resultados positivos. Aulascomo essa foram dadas em escolas públicas e privadas, emcidades pequenas e médias, em bairros de classes sociaisdiferentes, em classes de 6a Série do Ensino Fundamental,2a Série do Ensino Médio, cursos preparatórios gratuitospara o vestibular e, durante muitos anos, em disciplinas deZoologia de cursos de Ciências Biológicas. A realização depós-testes no Ensino Básico ainda é necessária para confir-mar a transposição dos conceitos da situação em sala de aulapara o domínio efetivo dos alunos (e, portanto, aplicáveisem outros contextos). No ensino superior, está bastanteclaro que não é necessário conhecimento prévio aprofun-dado de Zoologia para compreender a linha de argumenta-ção embutida na aula e que há uma grande mudança demotivação e envolvimento dos alunos.

Ainda que se tenha feito referências a determinadosconceitos de teorias da educação, não é intenção deste textoavançar em uma análise mais extensa dos elementos pedagó-gicos conforme o modelo de aula apresentado. É evidenteque elementos do construtivismo, que o raciocínio cientí-fico aplicado ao ensino de ciências, políticas de inclusão etc.fundamentam boa parte da estrutura pedagógica subjacente,mas essa é uma questão técnica que deve ser deixada aespecialistas. De qualquer maneira, ao menos para os limi-tes do conteúdo apresentado, esse modelo didático temmostrado resultados muito promissores para uma mudançade paradigma.

Dalton de Souza Amorim égraduado em Ciências Biológi-cas, doutor em Zoologia e pro-fessor do Departamento deBiologia da Faculdade de Filo-sofia, Ciências e Letras de Ri-beirão Preto da Universidadede São [email protected]

Agradeço à Profa. Marisa Ra-mos Barbieri que durante anosfoi uma fonte de reflexão sobreo ensino de Ciência. À AdolfoCalor e Charles Morphy dosSantos que leram e discutiramcomigo a estrutura e o desen-volvimento do texto.

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Anexo

Minuta de aula dada em 6as Sériesdo Ensino Fundamental de Escolas públi-cas e particulares de Ribeirão Preto eBarrinha, São Paulo. Aulas para 2as Sériesdo Ensino Médio seguem a mesma estru-tura, mas podem ser mais detalhadas nonúmero de grupos e nas característicasincluídas.

A aula tem duas fases distintas. Aprimeira delas corresponde a um levanta-mento do conhecimento de Zoologia dosalunos em termos de espécies conheci-das. A segunda corresponde à apresenta-ção dos grupos, em uma ordem deter-minada, chamando a atenção para o queune os grupos e fazendo esquemas doque seria o plano-básico dos filos e dosancestrais em cada nível.

Fase 1O conhecimento das espécies

Pergunta aos alunos: �Vocês conhecemmuito de Zoologia?�.

A resposta normalmente é que não.A réplica é que eles realmente conhecemmuito de Zoologia, não sabem disso e quelhes será mostrado ao longo da aula oquanto sabem.

Pergunta: �Que espécies de animais vocêsconhecem?�.

Costuma demorar um pouco paraque os alunos entendam exatamente oque está sendo perguntado, mas aos pou-cos começam a levantar nomes comogato, cachorro, papagaio, cavalo, leão etc.Os nomes são escritos no quadro. Quan-do se dão contam de que são capazes deresponder à pergunta e que suas respos-

tas se aproveitam no contexto da aula,começa uma enorme participação, às vezesdemandando um trabalho mais de conten-ção que necessidade de estímulo à parti-cipação. Com freqüência, quinze a vinteminutos são suficientes para levantar decinqüenta a cem nomes de espécies. Nascidades longe das praias, é necessário pe-dir pelos grupos marinhos. E uma condu-ção para os animais de água doce ou paraambientes especiais acaba por contemplarespécies de uma série de filos que às ve-zes são deixados de lado. Isso enche umquadro-negro e permite a demonstraçãoda afirmação inicial: que eles conhecembastante Zoologia. Dependendo de comofor feita a programação do semestre, issopode tomar toda uma aula.

Fase 2O conhecimento de como são as espéciesPergunta: �As espécies são muito diferen-tes entre si?�

A resposta quase sempre é que sim.A provocação é dizer que será mostradoque as espécies são muito semelhantesentre si. Começa, então, um processo deexposição de representantes dos váriosgrupos de animais em uma ordem quecorresponde a uma filogenia aceita. Aoprimeiro grupo correspondem os coano-flagelados, representados por uma espé-cie esférica (há espécies ramificadas). De-pois, vêm os poríferos, cnidários, platiel-mintes, moluscos, anelídeos, artrópodes(trilobitos, aracnídeos, camarões, miriá-podes e insetos), crinóideos, peixes, anfí-bios, répteis, mamíferos, tiranossauro eaves.

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A seqüência apresentada não é ca-sual. De fato, ela precisa refletir estrita-mente a ordem da filogenia aceita dosanimais. Além disso, são usados apenasdesenhos muito diagramáticos de cada es-pécie. Eles incluem apenas parte das ca-racterísticas em discussão, mas especial-mente forma geral do corpo (nos vertebra-dos, ossatura), tubo ou cavidade digestivae, dependendo do andamento da aula, sis-tema nervoso e circulatório. Cores dife-rentes são usadas para os vários sistemas,cores iguais para sistemas homólogos. Sãoacrescentados, em alguns poucos casos,grupos que os alunos não conhecem. Paracada grupo, são dadas características sufi-cientes para uma visão estrutural. Não éobjetivo da aula uma compreensão deta-lhada da morfologia interna nem tam-pouco uma compreensão de toda a diver-sidade de formas dos grupos. Isso poderáser tratado em outras aulas específicas aolongo do semestre.

Nas figuras 1 a 3, são mostradosdiagramas dos vários grupos e como sãosucessivamente acrescentados. Na base

estão os coanoflagelados. Durante a aula,é necessário acrescentar que: (1) eles têmapenas um tipo de célula, os coanócitos;(2) eles têm uma forma esférica, comouma bola de futebol; (3) cada célula pro-voca uma pequena corrente d�água com obatimento do flagelo; (4) cada célula é ca-paz de capturar partículas ou microorga-nismos, digeridos dentro da célula; (5)eles são de vida livre. Ainda que, em al-guns dos casos, os alunos não tenham oconceito de célula consolidado, isso nãoimpede o andamento da aula.

O comentário que se segue diz res-peito à disponibilidade desse tipo de ali-mento no fundo dos oceanos e à forma-ção de uma cavidade na parte inferior docorpo, conferindo ao animal o formato deuma bola murcha. As células da parede dacavidade digestiva continuam sendo oscoanócitos, mas a parede externa passa aser de células achatadas com os cílios. Ainversão da forma do corpo e o apareci-mento de aberturas na parede, permitin-do o fluxo de água, cria a condição básicade uma esponja.

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Figura 1: Esquema final das relações entre os grupos basais de animais, indicando o plano-básico dosvários filos e o plano-básico dos grupos que reúnem os filos em vários níveis da filogenia dos animais.Na aula, esse quadro é construído com a adição um a um dos grupos, a partir da base de Metameria(o ancestral indicado no alto à direita da filogenia, o quadro continua nas figuras 2 e 3).

Choanoflagellatacoanoflagelados

Poriferaesponjas

Cnidariamedusas e anêmonas

Platyhelminthesplanárias

Molluscamoluscos

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Antes de dar cada passo, é sempreinteressante perguntar qual é o grupo maissimples, dentre animais que ainda permane-cem na lista das espécies levantadas. Nemsempre �simples� é compreendido em ter-mos de estrutura (às vezes, as repostas sãode animais �comuns�). Tudo isso traz umenorme debate na sala. Com alguma condu-ção, os alunos respondem que a forma maissimples a seguir são as medusas.

De fato, o aspecto básico da formamodificada na figura 4 é semelhante ao deuma medusa rudimentar. Um novo desenhoem que desapareçam os coanócitos e apare-çam tentáculos transforma a condição ante-

rior em uma medusa simplificada (figura 5).Aqui, chega-se a uma situação em que osalunos já têm maior domínio de conteúdose é possível extrair as informações deseja-das. Por exemplo, pergunta-se o que as me-dusas comem. Que elas comam peixes nãoé uma resposta incomum. No entanto,pode-se mostrar que, na alimentação dasmedusas, os peixes não são �colocados den-tro das células da parede da cavidade diges-tiva�, pedindo-se então aos alunos que re-solvam o problema. Um pouco de discus-são leva à conclusão de que as medusassoltam �ácido� ou �enzimas�. �Como nós!�é a exclamação a ser repetida em reação à

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Figura 2: Esquema final das relações entre osgrupos principais de artrópodes, partindo de umancestral semelhante a um poliqueto errantegeneralizado. Na aula, o quadro é construídocom a adição um a um dos grupos.

escorpiões insetos

aranhas centopéias

crustáceos

trilobitos

poliquetos errantes

Figura 3: Esquema final das relações entre ver-tebrados e equinodermos, partindo de um an-cestral semelhante a um poliqueto errante ge-neralizado. Na aula, o quadro é construído coma adição um a um dos grupos.

estrela-do-mar

lírios-do-mar

anfíbios

peixes

poliquetos errantes

poliquetos tubícolas

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maior parte das conclusões apresentadaspelos alunos a partir de agora. Começa oaprendizado da Zoologia por um processoautoreferenciado.

À pergunta sobre locomoção dasmedusas, costuma-se obter a resposta deque elas fazem um jato d�água. Em respostaà pergunta sobre como elas fazem esse jato,costuma haver um debate, às vezes intenso,

até que se conclua que é por causa do usode músculos (o que não é uma conclusãoimediata). �Como nós!�, segue o bordão. Oque permite que um conjunto de músculosse contraia ao mesmo tempo ou relaxe con-juntamente? A conclusão é a existência deum sistema nervoso, como o nosso. Depen-dendo do caso, pode-se discutir a questãoda presença de gônadas.

Antes de passar ao próximo grupo,pergunta-se: �O que as esponjas têm, queos demais animais também têm, mas queos coanoflagelados não têm?�. A respostainclui ao menos dois tipos de células euma cavidade onde ocorre a digestão. Es-sas informações podem ser colocadas emum traço que seguirá conectando todosos grupos, ao nível dos metazoários. A

pergunta seguinte é �O que as medusastêm, que os demais animais também têm,mas que os coanoflagelados e as esponjasnão têm?�. Os alunos levam alguns minu-tos para entender a lógica da pergunta ecomo respondê-la, mas a partir da segun-da pergunta como essa passam a ser mui-to rápidos na busca e obtenção de respos-tas. Nesse caso: perda dos coanócitos; di-

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Figura 4: Algumas das características derivadas (sinapomorfias)mais relevantes para discussão na 6a Série na base dos metazoários.

- mais de um tipo de célula;- um tecido interno e outro externo;- uma cavidade onde ocorre a direção.

Figura 5: Algumas das características derivadas mais relevantesna passagem da base dos metazoários para a base dos eumetazoários.

- digestão extracelular (perda dos coanócitos);- presença de células musculares;- presença de células nervosas;- presença de gônadas.

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gestão fora das células, na cavidade diges-tiva; células musculares (mais precisa-mente, células epitélio-musculares); célu-las nervosas e gônadas. A partir de uma

medusa, é possível produzir uma anê-mona simplesmente invertendo o corpo.As características mais gerais de cada ní-vel estão colocadas nas figuras 4 a 11.

Para passar para o nível dos animaisbilaterais, é possível utilizar um artifíciográfico, associado a uma imagem verbal:que a forma do corpo de uma planária cor-responde genericamente ao �esticamento�do corpo de uma medusa. O corpo da pla-nária reproduz com bastante fidelidade oplano de construção com uma cavidade di-gestiva (e não um tubo), dentro do con-texto de um animal alongado, bilateral.

A partir da condição genérica de umaplanária, origina-se o ancestral dos celoma-dos, com a adição de um sistema circulató-rio. Desse ancestral, derivam-se, por um la-do, os moluscos, com a adição de uma con-cha, e dos animais metamerizados, com adi-ção de segmentação. Do ancestral segmen-tado, surgem dois grandes ramos: de umdeles derivam todos os artrópodes e do ou-tro, os animais deuterostômios. Do ances-

Figura 8: Algumas das características derivadas mais relevantes napassagem da base dos celomados para a base dos animais metaméricos.

- metamerização do corpo;- presença de parapódios.

Figura 7: Algumas das características derivadas mais relevantes napassagem da base dos animais bilaterais para a base dos celomados.

- presença de um tubo digestivo;- presença de coração e vasos circulatórios;- presença de metanefrídeos;- presença de peristaltismo.

Figura 6: Algumas das características derivadas mais relevantes napassagem da base dos eumetazoários para a base dos animais bilaterais.

- alongamento do corpo;- condição bilateral;- cefalização;- cordões nervosos ventrais;- protonefrídeos para tornar a excreção mais eficiente.

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Figura 9: Algumas das características derivadasmais relevantes na passagem da base dosmetazoários para a base dos Porifera.

Figura 10: Algumas das características deriva-das mais relevantes na passagem da base doseumetazoários para a base dos Cnidaria.

tral segmentado, deriva diretamente um an-cestral de artrópodes, semelhante a umtrilobito. A formação de tagmas forma osancestrais dos aracnídeos, dos malacóstra-cos, dos miriápodes e dos hexápodes. Poroutro lado, do mesmo ancestral segmenta-

do, deriva-se primeiro um poliqueto tubíco-la, de onde parte um ancestral que resultaem um crinóideo e um ancestral de todosos vertebrados. O número de ramos dife-rentes de artrópodes ou de vertebrados quesão derivados depende da extensão da aula.

Ao final, coloca-se novamente a dis-cussão: os animais são tão diferentes assimentre si? Essa pergunta agora é respondidapelos alunos com muito mais cautela doque da primeira vez. Nesse momento, épossível trabalhar o conceito de unidadena diversidade. A diversidade existe e não

precisa ser negada. Mesmo assim, apesardas diferenças, os vários grupos de ani-mais apresentam grande semelhanças en-tre si, não apenas na forma geral, mas es-pecialmente na constituição básica, comos mesmos órgãos arranjados de diferen-tes formas.

- poros na parede do corpo;- fluxo de água;- abertura do ósculo para cima.

- presença de tentáculos;- cnidocistos.

Figura 11: Algumas das características derivadas mais relevantes napassagem da base dos celomados para a base dos Mollusca.

- presença de rádula;- presença de pé muscular;- presença de concha.

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