a subjectividade no ciclo port wine de alves redol. a dura aprendizagem da esperança

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ÍNDICE

1. Introdução

Apresentação ................................................................................................ 11

Alves Redol : Viver com o povo, estudar a envolvência,

etnografia e literatura

António Mota Redol ................................................................................. 13

2. Alves Redol: resistência, libertação e fantasia

“Jouez la Marseillaise!”. As Franças de Redol

Luísa Tiago de Oliveira ............................................................................ 73 Redol – Mulheres de um tempo ido

Helena Neves ............................................................................................ 93 O Cavalo Espantado: da cidade cinzenta, aos refugiados

de ontem e de hoje

Cristina Santinho ..................................................................................... 117 Revisitando os contos infantis – “Velhas histórias que convém

saber melhor”

Joana Alcântara ....................................................................................... 127 Guardadores de vacas, de sonhos… e de memórias

Inês Fonseca ............................................................................................ 135

3. Políticas, Ideias e Letras

Alves Redol. As condições culturais e históricas na génese da sua obra

Jorge Crespo............................................................................................ 149

6 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

O papel da História no Barranco de Cegos de Alves Redol

Paulo Dias Oliveira ................................................................................. 155 A palavra-pele: sobre o risco de ser Redol

Pedro Ferreira.......................................................................................... 175 Alves Redol em África: as crónicas «De longe»…

Mariana Nascimento ............................................................................... 187 Alves Redol, os camponeses e o mundo novo

Fernando Oliveira Baptista ..................................................................... 197 4. Etnografias, etnografismos

O etnografismo e o universo ficcional de Alves Redol

Vítor Viçoso (FLUL) ............................................................................... 219 “Etnografismo e Tauromaquia em Alves Redol”

David Santos ........................................................................................... 241 Alves Redol e a vivência etnográfica, preparando os romances

Luís Filipe Maçarico (FCSH/UNL) ......................................................... 259 Perspectivas de teatro e comunidade: do etnografismo

ao didactismo

Miguel Falcão (ESE Lisboa) ................................................................... 279 Acerca do Inquérito em Alves Redol

João Madeira ........................................................................................... 301 5. A Lisboa de Redol

Os Reinegros: Lisboa, quotidiano e republicanismo

Maria Alice Samara (IHC-FCSH/UNL) ................................................... 311 As crónicas radiofónicas do senhor A

Carina Infante do Carmo (UA e CEC-FLUL) .......................................... 321

Aos homens falavam muitas vezes em lugares de futuro’:

trabalho e destino em Anúncio

João Edral (IELT-FCSH/UNL) ................................................................ 335

Índice 7

6. Camponeses e pescadores: o Douro e o mar de Redol

Alves Redol. Um olhar sobre o Douro

António Monteiro Cardoso (CEHC-ISCTE/IUL) .................................... 355 “Vindima de Sangue”: movimentações populares no Douro

no final da Monarquia e no início da República

Gaspar Martins Pereira (FLUP) ............................................................... 371 A subjectvidade no Ciclo Port Wine de Alves Redol.

A dura aprendizagem da esperança

Shawn Parkhurst (Universidade de Louisville/Kentucky) ...................... 393 A Nazaré de Alves Redol

Miguel Cardina (CES-Coimbra) ............................................................. 411 Uma Fenda no Canhão. Ensaio sobre o Mar-trabalho e o Mar-lazer

na Nazaré.

Paulo Mendes (UTAD) ............................................................................ 419 7. O Ribatejo de Redol

Gaibéus: “antes de tudo um documentário humano”.

Povo, arte e etnografia

Sónia Almeida (FCSH/UNL) ................................................................... 441 Música da Borda d’Água – nos textos e imagens de Alves Redol

Domingos Morais (IELT/FCSH/UNL) .................................................... 455 Ribatejo. As falas da terra e as falas do rio

Filomena Sousa (IELT-FCSH/UNL) ....................................................... 471 Factores identitários da cultura avieira

João Monteiro Serrano (Instituto Politécnico de Santarém) ................... 481 “Eles não sabem o custo da galé” – Cultura Popular, Etnografia e

Resistência na obra de Alves Redol

Paula Godinho (FCSH/UNL) ................................................................... 505

A SUBJECTIVIDADE NO CICLO PORT WINE

DE ALVES REDOL.

A DURA APRENDIZAGEM DA ESPERANÇA

Shawn Parkhurst, Department of Anthropology, The University of Louisville,

Louisville, Kentucky, USA

Introdução

“Vinho do Douro é sangue dos homens” (1981 [1949]). É nessa ideia que repousa o cerne do Ciclo Port Wine de Alves Redol. Este Ciclo é composto por três volumes (Horizonte Cerrado [1981 (1949)], Os Homens e as Sombras [1981 (1951)] e Vindima de Sangue [1980 (1953)]), todos eles sobre a vida na região do Douro, uma vida centrada na cultura da vinha, numa paisagem feita pela mão humana para permitir a produção do vinho do Porto,

O vinho e a paisagem vinhateira interessam a Redol porque, segundo as palavras do autor numa crónica publicada antes da edição do primeiro livro do Ciclo, “nenhum outro vinho exige tanto do homem para chegar ao cálice (...) nenhum outro é feito a poder de maior bravura e de tais sacrifícios” (Redol 1947:397).

Devido ao facto de Alves Redol ser bem conhecido como o primeiro nome da corrente literária chamada neo-realismo, as abordagens inter-pretativas do seu Ciclo Port Wine são importantes para a análise daquela corrente. Para António José Saraiva e Óscar Lopes, críticos judiciosos daquele movimento literário, o leitor da ficção neo-realista em prosa pode esperar dela:

Alves Redol – O olhar das ciências sociais, Lisboa, Edições Colibri, 2014, pp. 393-410

394 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

“uma redescoberta da vida rural, ou de qualquer modo regional, (...) encarada com uns olhos aos quais a cor local interessa princi-palmente em função de conflitos sociais precisos. Além do regio-nalismo, temas como o do paraíso da infância, o da frustração individual masculina ou, em especial, feminina, servem muitas vezes de base a desenvolvimentos tangenciais ao neo-realismo. (Saraiva e Lopes 2000:2036).

Embora aceitando as afirmações genéricas e estilísticas de tais críti-cos, considero-as insuficientes quando aplicadas ao Ciclo Port Wine, como também questiono a avaliação da sua obra como “demasiado didáctica [e] esquematicamente precisa”, dirigida às obras do Ciclo Port Wine em particular (Saraiva e Lopes 2000:2036).

A minha postura talvez derive de elementos da minha vida profis-sional e da trajectória social que me levou a tal vida: sou antropólogo e etnógrafo preocupado com o Alto Douro há mais de vinte anos. Filho de pais humildes e conscientes dos poderes responsáveis pela polarização das classes sociais, também me encontro preocupado com as possibilida-des de termos um mundo humano e justo, com as soluções para as crises socioeconómicas como a actual, e com os papéis que a ciência social e a teoria social podem desempenhar na saída da crise e na construção de um mundo melhor. Apreendi há bastante tempo que, ao considerar também tais problemas e soluções, uma parte significativa da literatura em geral, e o romance em particular, se entrecruza com as ciências sociais, de forma nem sempre visível. Neste texto, pretendo argumentar que os romances do Redol, e especificamente o Ciclo Port Wine, fornecem ao leitor uma visão do mundo passado que pode, hoje em dia, guiar os passos para um mundo melhor.

Do objecto vasto à realização do sujeito

Quase certo é que, nas páginas ao meu dispor, suscitarei, se bem--sucedido, maiores esperanças do que posso cumprir. Assim, encontro-me na companhia confortante deste Ciclo, porque, segundo um dos melhores críticos do Alves Redol, Pinheiro Torres, “não há uma obra de ficção em toda a literatura portuguesa que se lhe compare quanto à amplidão dos propósitos” (Torres 1979:159). Sendo, como argumentarei, que o grande tema do Ciclo é precisamente a esperança que o anima. Embora, nas palavras de Pinheiro Torres, a “massa histórico-económica de informes”

A subjectividade no Ciclo Port Wine de Alves Redol 395

lhe pareça “mal encaixada” (Torres 1979:218). Não vejo razão para esta crítica, ao longo das 1016 páginas do Ciclo Redol recorre a uma prosa, que dança entre um panorama fragmentado rompendo com qualquer horizonte, um recanto minúsculo rural, corações lacerados pelas relações entre escalas, mas recompostos pelo sentido de continuidade histórica cultivado pela vontade de recuperação. Quer dizer que, ao rotular a obra como “demasiado didáctica [e] esquematicamente precisa”, Saraiva e Lopes perdem os contornos mais enérgicos, mais “mágico-científicos” (Neves 2007) dos três volumes.

Não é apenas na prosa em forma do roman-fleuve (Torres 1979:159) ou do romance histórico (Jameson 2013) que as obras de desígnios abran-gentes são imprescindíveis. As obras com propósitos vastos são também vitais nas ciências sociais, mesmo faltando ao seu pleno cumprimento. Disto relembra-nos um analista como David Graeber quando escreve: “For a very long time, the intellectual consensus has been that we can no longer ask Great Questions. Increasingly, it’s looking like we have no other choice” (Graeber 2011:19). Graeber acerta em sentido lato, pelo menos se a cláusula “for a very long time” visar o ano de 1982 como começo.

Foi neste ano que uma das tentativas de analisar o mundo social com objectivos mais vastos foi produzida por Eric Wolf. O seu livro, ironica-mente intitulado Europe and the People Without History, começa assim:

The central assertion of this book is that the world of humankind constitutes a manifold, a totality of interconnected processes, and inquiries that disassemble this totality into bits and then fail to reassemble them falsify reality. Concepts like ‘nation,’ ‘society,’ and ‘culture’ name bits and threaten to turn names into things. Only by understanding these names as bundles of relationships, and by placing them back into the field from which they were abstracted, can we hope to avoid misleading inference and increase our share of understanding. (Wolf 1982:3)

Wolf tentou compreender as relações entre o sistema mundial capi-talista e vários dos grupos sociais que foram transformados por tal siste-ma num período de 500 anos. Alguns especialistas reconhecem que esta obra de Eric Wolf perdurará como uma “yet unsurpassed survey of com-parative global anthropology”, considerando-o “even more important today than when it was written” (Eriksen 2010:ix). Mesmo assim, referin-do-se a esta obra do Wolf, o leitor pode interrogar-se se o autor conseguiu

396 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

distinguir todas as ligações-chave da “totalidade de processos interliga-dos”. Noutra obra, Envisioning Power, Wolf reconhece as limitações da análise (Wolf 1999:14-15) mas, com realismo epistemológico, trata-as como degraus que o dirigem para uma compreensão mais completa das interligações sociais e assim do mundo. Porquê aumentar tal compreen-são? A resposta presumível é esta: porque podemos esperar melhorias do mundo, apenas aumentando a sua compreensão.

Aqui encontramos um ponto de diferenciação entre Europe and the People Without History e o Ciclo Port Wine. Como Wolf, Alves Redol tenta representar ligações mundiais de poderes políticos e económicos abrangentes e “micro-populações” (Wolf 1982:23). O primeiro desígnio de Redol – o de explicar a tragédia social do Alto Douro entre os anos de 1907-1914 – é deste teor1. Mas o segundo desígnio de Redol ultrapassa os limites “objectivos” impostos por Wolf: o de ir além de representar liga-ções objectivas para evocar laços vibrantes entre a objectividade e a sub-jectividade. Para que conta a subjectividade? Para a acção política. A subjectividade é a capacidade do ser humano para criar novidades no mundo. Como é que um romance pode contribuir para o fortalecimento de uma subjectividade capaz de renovar o mundo? Penso que a resposta de Redol seria deste tipo: primeiro, por mostrar ligações escondidas ou esquecidas (tal como no projecto de Wolf); segundo, por cultivar a espe-rança, ou seja, por evocar a capacidade das pessoas para usar tais desco-bertas no sentido de mudar a vida num sentido mais justo. No seu livro, Wolf tenta tratar de uma totalidade objectiva; no seu Ciclo, Redol tam-bém tenta esboçar uma totalidade objectiva, mas vai além disso, visando também evocar uma totalidade subjectiva – uma totalidade capaz de inci-tar as maiores esperanças na mudança social.

Assim, a tarefa das páginas seguintes será revelar a subjectividade que Alves Redol evoca por meio deste Ciclo – os primeiros romances do Redol em que o autor se dedica à análise psicológica (Torres 1979:184). Esta subjectividade alterna entre a pessoal e a colectiva. Ao fim de con-tas, a subjectividade forma-se no cruzamento da luta pela vida com a socialização das personagens centrais na narrativa, quer dizer, na realiza-ção do sujeito. A luta às vezes perde-se, mas tal perda parece oferecer

1 Assim Europe and the People Without History distingue-se, com plena consciência

de Wolf, das análises feitas a parir do alto por Andre Gunder Frank e por Immanuel Wallerstein (Wolf 1982:23).

A subjectividade no Ciclo Port Wine de Alves Redol 397

lições para os sobreviventes, se estes souberem aprender as lições. Antes de iniciar a análise, é preciso enfatizar que Redol utiliza descrições objectivas da história e da etnografia do Alto Douro, derivadas em parte de uma sua estadia na zona durante algum tempo nos anos 1940 (Teles 2001). Por via de tais descrições, o autor não mostra apenas uma maneira efectiva de minar a oposição feita por Jameson entre a “historical novel” e a pura “anthropological description” (Jameson 2013:282). Também operacionaliza a ideia de que apenas reconhecendo a importância da objectividade é que se poderá entender a formação da subjectividade pelas personagens e pelos leitores assim como pelos autores2.

Vida e morte das principais personagens

Os eventos do Ciclo giram em volta de um homem e de uma mulher, Francisco Teimas e Gracinda. Há uma paixão problemática entre os dois que serve como veículo do narrativo. Ao mesmo tempo, esta relação influi noutros acontecimentos e sofre a pressão da sociedade envolvente.

O primeiro volume do Ciclo abre com o Luís Teimas, segundo filho de Francisco, e transitoriamente o mais novo, com cinco ou seis anos, esperando que a mãe, a Elvira, dê à luz. Tenta compreender a fonte de uma vida nova e acredita na explicação de que a vida é uma prenda entregue por um cigano, que chega com uma criança, montado num macho. Espera a chegada do cigano, aborrecido com o irmão mais velho, o Chico, que mofa da sua credulidade ([1949]: 13-16). Neste contexto, a atracção entre o pai de Luís e a tia dele, Gracinda, irmã mais nova de Elvira, logo toma o centro do palco. É uma atracção escandalosa, entre cunhados, que continua depois de Elvira perder a vida, ao dar à luz. A questão no cerne deste romance consiste em saber se os dois vão amar-se ou se vão conseguir voltar as costas à força da atracção, como social-mente deviam fazer. Para o fim do volume, vimos a saber que o resultado

2 A importância da etnografia na obra completa do Redol destaca-se nas análises de

Neves (2007, 2008:247-267). A fidelidade de tais descrições é reconhecida por Teles que, enfatizando o realismo etnográfico, afirma que “os (...) quatro romances sobre o Douro [incluindo Porto Manso, publicado antes do Ciclo] (...) representam, até hoje, o melhor que se escreveu sobre a Região Duriense” (Teles 2001:283). Pereira (neste volume) comprova a veracidade das descrições históricas do Redol no Ciclo, entre as quais a do Motim de Lamego, em 1915 (cf. Pereira e Sequeira 2004).

398 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

é a consumação sexual, o que levanta a questão de estarmos a presenciar meramente uma “consumação” ou de tal se tornar numa “consumpção” dos protagonistas pelos seus desejos ilícitos.

O segundo volume, Os Homens e as Sombras, trata das consequências da “consumação” para as personagens principais depois da volta do Brasil do marido de Gracinda, António Francisco. O volume termina com a morte do António Francisco a tiro, mas a resolução do mistério da identidade do assassino fica para o terceiro volume. Os Homens e as Sombras é o mais onírico dos três volumes. A morte de António Francisco representa o auge do que se pode descrever como uma experiência fantasmagórica de Fran-cisco Teimas, que chega a não saber distinguir entre pesadelo e realidade. Assim, a narrativa toma os contornos de um rio de desejo e de loucura, de um rio de fogo que Francisco consegue atravessar.

Tal rio de fogo aparece logo em Horizonte Cerrado de forma con-creta: é o rio Douro cheio de álcool deitado à água, durante um motim contra o armazém de um negociante, o Jerónimo, que destrói a economia local por falsificar vinhos. Depois de os amotinados terem derramado vinho e aguardente de pipas quebradas, um archote lançado ao rio resul-tou “em explosões de lume”, e “a torrente luminosa alargava-se cada vez mais, lambendo, com os seus clarões de muitas cores, os geios das encostas e as trevas do céu. A multidão deslumbrava-se e tinha medo daquele milagre feito pelas suas mãos [...]” ([1949]: 101-102). A memória dessa torrente medonha atormenta os aldeões e gera uma aflição especial em Francisco Teimas enquanto seu representante.

O outro lado do rio não representa sossego, mas sim uma maturidade social que leva Francisco para além do egoísmo que o absorve nos dois primeiros volumes. Assim, o terceiro volume concentra-se nas lições da vida aprendidas por Francisco. Este último vem a saber que não matou António Francisco – e não só. Chega também a aprender a ler e a escre-ver, articulando em palavras a realidade social, que explica a vida precá-ria dos lavradores e a pobreza dos cavadores do Alto Douro. Note-se que Francisco chega à iluminação social – e pessoal – ao fugir da sua terra natal (devido a ter pensado que matou alguém), ao seu estado social e económico, abrindo assim “o horizonte fechado” da sua vida quotidiana. Antes de abalar da aldeia, a condição de Francisco é a de um pequeno lavrador. A terra absorvia literalmente toda a sua atenção. Francisco até encarava Gracinda, ora como uma extensão dos prédios, ora como veí-culo para a sua perda, pelo facto dela lhe ter emprestado dinheiro para a produção anual.

A subjectividade no Ciclo Port Wine de Alves Redol 399

Oferecem-se várias maneiras de interpretar a estrutura básica do Ciclo Port Wine.

De acordo com uma primeira interpretação, a obra apresenta-se como um exemplar tardio do Bildungsroman, em que o protagonista aprende as lições fundamentais do “jeito do mundo” (Moretti 1987). O problema central de uma tal interpretação é que o protagonista do Bil-dungsroman típico afigura-se como um indivíduo, em vez de uma classe social, veiculando uma representação do mundo social como composto apenas por indivíduos: a burguesia emergente (Moretti: 1987). O modelo do Bildungsroman aplica-se apenas parcialmente ao Ciclo, devido sobre-tudo ao facto da burguesia não constituir um objecto central na narração (Francisco Teimas é pequeno lavrador e Gracinda tem um estatuto igual) e ainda pelo facto de cenas colectivas baseadas nas classes humildes (lavradores e jornaleiros) tomarem muitas vezes um papel central3.

De acordo com outra abordagem, estamos na presença de um exem-plo literário dos “ritos de passagem,” explorados por Van Gennep e ela-borados analiticamente pelo antropólogo Victor Turner. Tais ritos con-sistem em fases “de separação, de margem, e de agregação” (Rodolpho 2004:143; Turner 1967:94) através das quais um sujeito, como parte de um grupo, chegado a uma certa “idade social,” é levado por práticas rituais a mudar de condição social, por meio de exclusão seguida por reintegração como outro tipo (mais completamente socializado) de membro da socie-dade. Embora uma margem se destaque nitidamente no Ciclo, o modelo revela-se inadequado para a sua interpretação, pois respeita a sociedades estáveis de pequena escala, enquanto a sociedade descrita por Alves Redol é o Portugal imperial, que atravessa um período revolucionário (Portugal de 1907-1914, incluindo o regicídio de D. Carlos).

Uma terceira possibilidade de interpretação do Ciclo consiste em considerar que o leitor se defronta com uma “epopeia moderna” que adopta as características de uma enciclopédia (Moretti 1996:38) e toma, como enquadramento geográfico, “o sistema mundial como totalidade” (Moretti 1996:50).

As características do Ciclo conformam-se mais com este modelo interpretativo, do que com os primeiros dois, aproximando-se até da epo-

3 Focar a narrativa em tais cenas faz parte central do “romance proletário,” como

reconhece Michael Denning numa análise importante (Denning 2004:59, 66) que muito deve à tese de doutoramento, ainda não publicada, da Margarida Losa (1988).

400 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

peia-romance produzida na Rússia, que é uma zona semiperiférica neste sistema mundial (Moretti 1996:50), como também o é Portugal (Schwartzman 1989, Santos 1992). Ainda assim, tais referências genéricas não capturam por completo a substância mais distinta do Ciclo. O leitor encontra no Ciclo uma bricolage épica com características do Bil-dungsroman, mas tal asserção levanta talvez mais questões do que resolve.

Bricolage é um termo francês, utilizado com efeitos fortes por Claude Lévi-Strauss, codificador do “estruturalismo”, durante uma tem-porada o antropólogo mais famoso do mundo, mas já considerado “um cão morto” desde o início dos anos 1980 pelos nomes mais chiques das ciências sociais. Significa uma prática seguida pelos ditos primitivos na construção dos mitos. Críticos como Fredric Jameson, todavia, encontram maneira de incorporar as percepções do método lévi-straussiano numa abordagem da cultura política do “oeste,” e até consideram que as desco-bertas estruturalistas se aplicam à vida social ocidental com tanta perti-nência como a outras formações sociais (Jameson 1981:79). Por sua vez, Moretti faz-se eco de Jameson, mas focando-se na questão da bricolage, em particular (Moretti 1996:21).

As lições mais importantes–até ler–aprendidas por Francisco Teimas no terceiro romance do Ciclo vêm de um sindicalista, Álvaro, colega na manutenção da via-férrea, mais velho e viajado. Esse facto sugere um tipo de homologia entre o estado de Francisco como homem que só pos-sui a faculdade de sentir fortemente o mundo e o desejo, por um lado, e, por outro, o proletariado. Só este é capaz colectivamente de penetrar as ilusões do mundo, por causa de ser “libertado” de tudo, salvo do que dá forma e valor ao mundo. Em termos marxistas, bem conhecidos por Redol (Torres 1979:15; Ferreira 2000:96), não é liberta de ser “força de trabalho,” mas assim fica equipada com a capacidade de entender o mundo social como totalidade4.

4 Uma tal postura, ligando a epistemologia à ontologia, tende a associar-se ao livro

História e Consciência de Classe, publicado em 1923 por Georg Lukács. Redol mostra, desde as suas primeiras publicações, uma tendência forte para celebrar a sabedoria do povo, assim, a leitura de História e Consciência de Classe apenas influenciaria uma tendência já adquirida. Certo é que a sensibilidade de Redol à importância do campo e dos camponeses não o deixava aceitar por completo a mensagem de Lukács de que só o proletariado sem resíduos camponeses podia criar a revolução desejada.

A subjectividade no Ciclo Port Wine de Alves Redol 401

Por fim, e por conselho de Álvaro, Francisco volta à aldeia e defronta-se com os seus demónios, entre quais o maior é o de Gracinda.

Em volta desses protagonistas, giram outros personagens. Um traço característico de uma narrativa neo-realista é integrar uma descrição de relações sociais em termos económicos e, por isso, no Ciclo, apresentam--se vários jornaleiros, lavradores, comissários, fidalgos, banqueiros, polí-ticos, etc. Redol descreve numerosas situações em que figuram os repre-sentantes de todas as camadas sociais5; também conduz uma descrição das interacções políticas entre monárquicos e republicanos na conjuntura revolucionária de 1907-1915. Neste texto, pretendemos tratar só algumas personagens, que são agentes dos meios literários, através de quais Redol tenta fazer operar efeitos estéticos-sociais.

O primeiro destes é a morte simbólica, e notamo-lo fortemente na personagem de António Francisco, o homem da adúltera Gracinda.

Devemos notar que Francisco Teimas tem um conflito profundo com o seu pai, que se chama António. O António Teimas é um lavrador “de gema”, um homem que se apaixonava tanto pelos prédios, que despreza-va as preces da sua mulher para abalarem do Douro e da fome, depois do desastre da filoxera. A alcunha “Teimas” aplica-se aos homens da família pela teimosia do António em ser o único lavrador que não fugiu dos ter-renos arruinados pela filoxera. A esposa de António enforcou-se quando Francisco Teimas ainda era rapaz, e Francisco nunca deixou de culpar o pai pela perda da mãe e de dois irmãos que morreram de fome. António e Francisco Teimas são, então, pólos contrários, sem compreensão quase nenhuma um pelo outro.

No nome dele, António Francisco reúne os nomes desses pólos. Este facto alerta-nos para que a sua personagem poderia servir simbolicamente como mediador entre eles. Com a questão de mediação, encontramo-nos outra vez no terreno analítico de Claude Lévi-Strauss, famoso não apenas pela noção de bricolage, mas também pelo argumento de que a mediação entre “oposições binárias” é a função de qualquer narrativa (e.g. Lévi-

5 Dois exemplos entre outros. No primeiro volume, é narrado um encontro na quinta

de um fidalgo em que os notáveis regionais discutem o que devem fazer para consertar o “tecido social” rasgado pelo ataque ao armazém de Jerónimo, o falsifi-cador de vinhos generosos, pelos aldeões famintos e desesperados. No segundo volume, é descrita uma festa comemorativa na feitoria inglesa. Remeto o leitor interessado no diferente leque desses tipos sociais para a sólida obra de Torres (1979).

402 Alves Redol – O olhar das ciências sociais

-Strauss 1958). De facto, António Francisco tem características do Antó-nio Teimas e do filho dele. O que António Francisco quer é ter terra, como António Teimas, mas ele já é bem diferente de António por ter tido a vontade de abalar da aldeia em busca de dinheiro no Brasil. Nesse sen-tido, é o contrário de um “Teimas,” como também o é Francisco que, nos dois primeiros volumes do Ciclo, é mais criança do que homem, mais temeroso do que qualquer outra coisa. Quando morre, vemos para que objectivo textual serve esse personagem misturado que António Francis-co é. A sua morte serve como libertadora de Francisco Teimas, que ainda espera a formação, através de uma experiência mais vasta do que a pos-sibilitada pela vida numa aldeia. Francisco abala da aldeia por causa desta morte e, por causa dessa mudança, fica capaz de se dominar e até de se compreender.

Tratar de uma personagem mediadora como António Francisco leva--nos outra vez ao coração do romance, a relação entre Francisco e Gra-cinda. A atracção entre eles nunca vai mais longe de uma luta bravia cheia de percepções erróneas: porquê? Parte da resposta repousa no facto de tais personagens serem escassamente descritas por Redol, em termos objectivos. São protagonistas que sabem pouco deles próprios, que só sentem pulsões. Redol parece querer mostrar uma viagem no caminho não apenas da auto-compreensão, mas também de educação que, para ele, precisa de ter um carácter social–isto é, ser baseada no intercâmbio. Para retratar um tal caminho, Redol descreve o movimento de um vazio (em termos de feições da personagem) à plenitude (em termos de experiência social). Essa plenitude subjectiva contém a vida. Mas também contém a morte. E contém não apenas as mortes de Elvira e de António Francisco, mas também as de António Teimas e de Gracinda. Francisco sobrevive e a vida dele contribui para a formação de uma subjetividade funda e vasta. Mas como é que tantas mortes podem contribuir para essa plenitude? “Vinho do Douro é sangue dos homens.” António Teimas repete a frase até a sua morte quase no fim do Ciclo. Se o vinho depende desse sangue, o Douro depende desse sangue. O sangue tem esta característica: derra-ma-se. Assim sendo, encontramo-nos perante o sacrifício como parte do sentido mais abrangente do Ciclo? Uma dica: o sacrifício muitas vezes integra-se nos ritos de passagem evocados pela experiência do Francisco Teimas.

Seria difícil conhecer um caracter menos promissor do que o de Francisco. Numa confissão à sua cunhada, diz que desejou a morte da sua mulher ([1949]:291) – que (também diz ele) nunca lhe fez mal – e recebeu

A subjectividade no Ciclo Port Wine de Alves Redol 403

o que diz ter desejado. É um homem que não conhece o seu coração, um homem que volta sempre ao mesmo tema quando encontra mais um impedimento no seu caminho para as coisas desejadas: a morte da mãe, sempre encarada como culpa do pai. O pai do Francisco parece, na maior parte do Ciclo, um homem correto, que suscita o respeito de qualquer aldeão. A questão, então, fica com o leitor: as coisas são como parecem? Será que Redol está a ensinar o leitor a avaliar com agudeza as aparên-cias?

Claro que essa pergunta tem uma carga que prejudica a resposta. Mas não é só “desconstruir” aparências que tenta fazer Redol. A ambição dele é imensa: quer mostrar que as aparências locais são feitas fora, mesmo em países como Inglaterra e a Alemanha, e “importadas,” como o vinho do sul está sendo “importado.” Quer mostrar as redes de um siste-ma mundial objectivo, como o abordado décadas depois por cientistas sociais como Eric Wolf. Quem coordena tais importações ilegítimas são actores sociais como Jerónimo e homens com estatuto social muito mais alto do que o seu – contrabandistas que se vestem na roupa de “dignitá-rios.” Assim o problema da subjectividade surge como resposta a factos objectivos e não se resolve facilmente. Apenas se pode resolver por via de uma narrativa. No Ciclo, não há quase nenhuma personagem com estatuto elevado na sociedade que seja honesto e que tenha profundidade de carácter. Há algumas excepções parciais – personagens como o fidalgo Dom Afonso Pimentel e como o médico da aldeia, o Doutor Pimenta, que estão conscientes das mentiras que legitimam os seus estatutos sociais e que são intransigentes contra a falsidade6. Mas são raras e nem são excep-ções completas. A tendência forte de Redol é para mostrar que a profun-didade de carácter fica com os humildes. Parece ser esse o motivo para descrever os sonhos (que são normalmente pesadelos) dos personagens como Francisco, Gracinda e António Teimas7. Personagens dedicadas a

6 Que os apelidos Pimentel e Pimenta sejam tão parecidos sugere uma subterrânea

ligação simbólica entre personagens com feições sociais bem diferenciadas e papeis narratológicos aparentemente diferentes. Analisar essa ligação simbólica terá de aguardar para outro dia.

7 O facto de estas personagens terem pesadelos parece ser outra maneira de Redol seguir a lição de Freud para mostrar que grande parte da realidade não é visível. Com ligeiras mudanças, tal noção não seria estranha a Marx. Vale a pena enfatizar que se, no Ciclo, Redol se terá guiado por algumas ideias derivadas de Freud, não deixou de as ligar (contra o o exemplo dos presencistas) com a análise de classe

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adquirir mais riqueza e poder por meio de manobras individualistas – por exemplo, Silva Costa, o administrador de uma enorme quinta pertencendo a família fidalga – parecem não sonhar.

Mas circunstanciar que a exploração social se faz por uma rede que se estende para trás do horizonte, e que diferenças de subjectividade se ligam a nexos dessa rede, não chega. Se a composição do Ciclo depende em parte de elementos do Bildungsroman aplicados, sobretudo, à educa-ção político-sentimental do Francisco Teimas, também depende de tais elementos para interpelar o leitor. Está em jogo uma educação do leitor no sentido de ver como é que se resolve, em termos simbólicos e narra-tológicos, os conflitos entre classes e fracções de classes sociais e facções politicas. No fim, temos um tipo de resolução. Não é a de que os monár-quicos ficam amigos dos republicanos e muito menos os sindicalistas dos comerciantes. Mas, noutro registo, sentimos aquilo que pertence a um ser humano que pode ser restituído depois de ser explorado e fragmentado. Redol mostra-o através de uma dialéctica que se resolve num núcleo social que procura compreender a realidade e, assim, ter capacidade de a mudar.

O exemplo chave é a relação entre Francisco Teimas e o Dr. Pimen-ta, o médico da aldeia. Se olhamos estes personagens como fragmentos polarizados de um sujeito revolucionário (e quero distinguir entre prota-gonista e “sujeito”), conseguimos ver no movimento simbólico entre um e o outro uma reintegração deste “sujeito.” No terceiro volume, vemos uma aproximação de um ao outro através da formação da comissão de resistência, integrada pelos dois. A resistência é contra o programa governamental de deixar de tratar o vinho do “sul” (do Ribatejo) como vinho do Porto, programa ruinoso para as aldeias, desde sempre vinhatei-ras, do Douro. Podemos ver a existência do Dr. Pimenta como um mero fragmento do ser humano completo no extracto seguinte. No momento em que o Dr. Pimenta pensa não pagar as décimas como forma de resis-tência ao governo, em solidariedade com os pequenos lavradores, afirma à sua mulher:

Enquanto foi de raciocinar, estive sempre à altura. Mas agora, que a ventania começou a soprar, encolho-me, hesito... Não há dúvida

vinda do marxismo (Torres 1979:184). Assim, se Redol antecipou a análise do sistema mundial por décadas, também antecipou as tentativas de casar Freud e Marx numa análise holística.

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de que a inteligência não basta; é preciso sentir as coisas na carne! E quando as não provamos a inteligência arranja maneiras de nos justificar. Habilidosa mas, no fundo, cobarde8.

Já vimos que Francisco fora uma criatura que só sentia e reagia e pouco mais. Mas, com o assassínio de António Francisco, que simboli-camente foi um acto dele9, Francisco abalou da aldeia, começando a trabalhar no Caminho-de-ferro, onde aprendeu a ler e a pensar sobre a economia e a política como fenómenos de classe social. Tornar-se alfa-betizado complementa a sua capacidade profunda de sentir as coisas na carne. É importante Francisco prosseguir sempre no amor de carne e não no amor ao dinheiro, porque a capacidade de amar humanos traduzir-se-á numa capacidade de representar as pessoas sem mentir. O Francisco pro-cura a ajuda do Dr. Pimenta, porque sabe que este se esforça por dizer verdades e que está muito bem informado, através das suas leituras da imprensa.

Vemos que está em causa um processo de aproximação dialéctica entre os dois –como carne e intelecto, o concreto e o abstracto – quando o Dr. Pimenta consegue ter a coragem necessária para liderar, com Francis-co, uma manifestação em São João da Pesqueira. O desenrolar da cena da manifestação em Lamego mostra dois homens de razão e coragem, aber-tos às sugestões dos seguidores, mas sobretudo controlando as suas ten-dências problemáticas. O Dr. Pimenta mostra-se corajoso a defrontar a tropa que ameaça a manifestação e Francisco mostra-se senhor de si, consciente, representando o povo e apelando para este não seguir os ape-los para actos violentos e até tentando preveni-los, por ser capaz de pre-ver as consequências da agitação não disciplinada. Mesmo assim, Fran-cisco perde algo que lhe é profundamente querido. Gracinda participa na manifestação. Por amor a Francisco, Gracinda toma um papel decisivo na organização da manifestação. E morre no tiroteio com que são recebidos os manifestantes10.

8 Vindima de Sangue, p. 351. 9 Ia matá-lo, mas outro homem, o Inverno, chegou lá antes com uma espingarda. 10 Nota-se uma progressão de manifestações através dos três volumes do Ciclo. A

primeira manifestação, contra Jerónimo, é incitada por António Teimas, ao tocar o sino da igreja aldeã. Nesta primeira manifestação, o “líder” é um homem com pouco conhecimento, para além da aldeia e da sua vinha, o que se relaciona com o facto de a manifestação ser caótica, cega, localizada, sem lição nenhuma para os

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Depois de sugerir o movimento dialéctico, no Ciclo, de uns pólos um para outros, resta uma pergunta importante, que tem a ver com a interpe-lação do leitor no processo educativo evocado por Redol: qual o papel da morte na subjectividade? Para proferir uma resposta minimamente ade-quada a essa pergunta, precisamos de considerar a personagem do Luis Teimas, o filho do Francisco. Neste texto, temos falado da “educação sentimental-política” de Francisco Teimas – o que se justifica. Mas devemos recordar que o Ciclo abre com o filho mais novo de Francisco, perplexo perante o primeiro facto da vida – o nascimento. O Ciclo encer-ra com o massacre de manifestantes em Lamego, entre eles a amante do Francisco Teimas, que é também a tia do Luís Teimas. Luís está presente na manifestação transformada num massacre e, assim, presencia a morte de Gracinda.

Na última passagem de Vindima de Sangue, encontramos Luis Tei-mas, agora mais crescido, com treze ou catorze anos, a ir com o pai, de São João de Pesqueira para a aldeia, e a pensar:

‘O vinho do Doiro é a gente que o faz com nosso sangue...’ Gosta-va de repetir essas palavras [do avô] ao pai, na convicção de que lhe saberia bem ouvi-las... A emoção agarrava-lhe a voz, talvez porque só naquele momento compreendesse o seu significado; e, embora tivesse lágrimas nos olhos, Luís Teimas achou-se feliz por sentir que a vida se alargava dentro de si11.

‘O vinho do Doiro é a gente que o faz com nosso sangue...’: esta frase circula entre as gerações da família Teimas. A frase incorpora sabe-

participantes. Não é mais do que um desabafo da fúria sentida pelo povo perante a fome e as mortes infantis. O Ciclo acaba com uma manifestação liderada por Francisco Teimas, já mais proletário e experiente do que era o pai, e pelo Dr. Pimenta. Ligada com estes factos, a manifestação do final é bem organizada, reali-zada a um nível superior (o do concelho), dirigida ao governo central, em vez de ter o alcance da freguesia ou menor ainda, quando foi dirigida contra um indiví-duo. O resultado desta última manifestação é trágico – mortes por tiros disparados por tropas governamentais – mas a tragédia tem consequências positivas: por causa das mortes, o governo decide aquiescer aos protestos dos durienses e impedir que o vinho do Ribatejo adquira direito à denominação “vinho do Porto”, mantendo assim saída para os vinhos do Douro, que se vendiam por tradição com a denominação “vinho do Porto”.

11 Vindima de Sangue, p. 379.

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doria não menos profunda por ser popular e assinala que, o presenciamos através das páginas do Ciclo Port Wine, se presencia um tipo de aprendi-zagem. Ao mostrar aos leitores uma aprendizagem que atravessa gera-ções, Redol oferece esperança atingível só pela memória, e uma memória feita tanto nas fendas (as mortes) como nos fios entre as gerações. Se mudarmos um pouco o foco para o começo e para o fim do Ciclo, pode-mos ver que Luís Teimas serve no Ciclo como uma síntese dos senti-mentos, experiências e conhecimentos do avô e do pai, da mãe e da tia. Luís aprende relativamente cedo as lições que o pai só conseguiu apren-der através de mais de três décadas de vida. Como o pai, perdeu a ternura especial da mãe cedo na vida mas, ao contrário do pai, não se ressente dessa perda. Parece aceitá-la. E seria que esta falta da ternura maternal lhe torna mais acessível o conteúdo de uma história encarnada pelo avô?

Luís Teimas começa a compreender a gravidade das palavras do avô e, por isso, a realidade do Douro enquanto região feita pelo conflito social e politico; mas percebe tais conflitos melhor do que os percebeu o avô. Este, morto pouco depois da volta do Francisco Teimas à aldeia depois da sua fuga e pouco antes do massacre da Pesqueira, nunca deixara de perceber os conflitos em termos não de classe social mas em termos muito pessoais e localizados. O conhecimento alargado do Luís chega-lhe através da inter-venção do pai na luta regional pelo pão, uma intervenção que este pode fazer só por causa da claridade que lhe veio através das suas experiências fora das fronteiras da localidade. Luís Teimas, então, representa um desenvolvimento do “espirito” do avô “sobre-enraizado” e do pai “fugido” da terra. Representa, também, através da sua experiência da cooperação e respeito mútuo entre o seu pai e o Dr. Pimenta, uma extensão promissória do conjunto deles. Representa o conhecimento, por meio da relação entre a Gracinda e o seu pai, de que o amor pode incorporar o conflito e a morte. Representa ainda a esperança no futuro que só pode vir de possibilidades abertas por acções e compreensões passadas, mas recordadas. E faz mais do que representar: evoca uma subjectividade vasta e profunda.

Interpretar assim a aprendizagem na vida sentimental-política har-moniza-se bem com o programa estético do Alves Redol, que se baseava no “imperativo de uma arte ao serviço da emancipação do homem” (Salema 1980:28). O “sujeito” Luís Teimas (que precisa de ser tratado como um representante de um sujeito colectivo) mostra ao leitor que ele próprio também pode penetrar os sentidos das frases populares como “o vinho do Doiro é sangue dos homens” e neles sentir a largura e profunde-za semântico-social que abrangem.

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Neste contexto, Luís Teimas representa um leitor de história (neste caso a história experimentada por três gerações da sua família) como o leitor imaginado por Walter Benjamin quando escreveu:

The contemporary who, in reading a work of history, recognizes with what a long hand the misery that befalls him [her] has been in preparation–and showing the reader this must lie close to the histo-rian’s heart–thereby acquires a high opinion of his [her] own powers. A history that teaches people in this manner does not make them melancholy, but provides them with weapons12.

O propósito de Redol no Ciclo Port Wine parece ser o de estimular semelhante reconhecimento no leitor preocupado com a questão de como construir um futuro justo e bom em Portugal. Luís Teimas não é um pro-tagonista do Ciclo Port Wine no sentido clássico de uma personagem com a qual o leitor se pode identificar. Luís Teimas é protagonista no sentido Brechtiano ou Benjaminiano. É um leitor dentro das páginas da trilogia que tem aprendido lições sobre a história das possibilidades e sobre a possibilidade das histórias e que fica, com treze ou catorze anos de idade, com um futuro aberto à utilização de tais lições. Se a personagem de Luís fosse viva aquando da publicação do primeiro livro da trilogia, nesse ano teria 48 anos, e teria filhos e talvez netos para dele receber instrução his-tórica. Redol parece ter usado a figura de Luís Teimas para sugerir aos leitores a capacidade para intervir na construção de um futuro justo e bom, já munidos com o conhecimento de como não é apenas o vinho do Porto que é feito com o sangue dos humanos, mas também a história e as letras. O Ciclo Port Wine oferece instrução da melhor qualidade sobre o modo como qualquer vitória da luta dos humildes por uma vida futura melhor depende de lutas supostamente passadas. Assim, sugerindo que nós somos um sujeito vasto e profundo, mostra-se um contemporâneo extraordinário.

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