a obra literária "cartas portuguesas" de mariana alcoforado
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AS CARTAS PORTUGUESAS
Victor Correia 1
O presente artigo consiste numa análise de um
clássico da literatura portuguesa seiscentista, tendo como
fio condutor determinadas categorias de caráter mitológico:
o enigma da criação e autoria, o mito de Narciso, a
ausência e a (in)temporalidade, a sacralização do passado,
a idealização do amor, as metamorfoses da personalidade, o
tabú e a transgressão, o símbolo do cavaleiro, e o mito de
Don Juan. O objetivo é, a partir deste modelo de análise,
pensar o significado do amor-paixão, ele próprio fecundo em
mitologias, e como forma de mitologização do próprio amor.
Esta obra literária, pela riqueza psicológica, a sua
profundidade confessional, o intimismo da sua escrita, e a
grande beleza dos textos, contribuem para a dotar de
especial interesse. O amor-paixão é apresentado como algo
impossível de realizar, um comportamento desviante não
apenas devido a fatores de carater social e moral, mas
também de caracter metafísico, de que resulta uma revolta
psíquica, e uma sublimação através da escrita.
1 Doutorado em Filosofia pela Universidade da Sorbonne, em Paris. Pós-doutorando em Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa.
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Palavras chave : mito, amor, paixão, infinitude,
impossibilidade
THE PORTUGUESE LETTERS
This text consists of an analysis of a classic 17th
century Portuguese literature, having as leitmotiv certain
categories associated with myths : the enigma of his
creation and authorship, the myth of Narcissus, the absence
and the (in)temporality, the sacralization of the past, the
idealization of the love, the metamorphoses of
personality, the taboo and transgression, the symbol of the
knight, and the myth of Don Juan. The goal is, especially
from this analysis model, to think about the meaning of
love-passion, itself fruitful in mythologies, and as a way
of mythologizing of love itself. The confessional style, the
intimacy of his writing, the beauty of the texts, and the
dramatic nature of his character, contribute to give this
work of particular interest, as literary monologue rich in
psychological drama. The love-passion is presented in this
work as something impossible to achieve, a devious behavior
not only by social and moral factors, but also metaphysical
factors, that results in a psychological revolt, and a
sublimation in writing.
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Keywords : myth, love, passion, infinity,
impossibility.
INTRODUÇÃO
No mundo de hoje, cujas relações interpessoais estão
fortemente mediadas por redes sociais na Internet, correio
eletrónico, telemóvel, sms, chat, messenger, skype, fax,
vídeo-conferência, e outras formas de comunicação
instantânea à distância, é importante falar em cartas de
amor, que eram até ainda há bem pouco tempo algo muito
praticado e apreciado, mas que tendem hoje a caír cada vez
mais em desuso. Através deste veículo comunicacional
enveredemos pela temática do amor-paixão, tendo como base
específica de reflexão uma obra clássica da literatura
portuguesa, as Cartas Portuguesas, atribuídas a Soror Mariana
Alcoforado. Escolhemos esta obra literária devido ao facto
de ser uma obra paradigmática do amor-paixão, rica de
conteúdo introspetivo, de significação psicológica
profunda, e de em termos latos constituir uma problemática
com algo de lendário, e com significado simbólico e
mitológico. Em suma, o presente artigo visa abordar o
alcance dos grandes modelos do amor-paixão, através desta
obra clássica da literatura portuguesa do século XVII.
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O conceito de amor pode significar diversas atitudes :
querer bem, afeição, compaixão, inclinação, atração, etc.,
e pode empregar-se em diversos contextos : amor de mãe,
amor pela pátria, amor a Deus, amor à arte, amor pela
sabedoria, etc. Esse conceito mistura-se por vezes com o
conceito de paixão, por exemplo quando alguém afirma que
sente paixão por algo (pela arte, pela música, ou por um
ideal), e também se mistura com o conceito de prazer : o
prazer da mesa, das viagens, do fumar, de uma boa conversa,
dos aromas, da sexualidade, etc. Podemos definir as
modalidades da relação com outro indivíduo, na perspetiva
do amor, através de três grandes categorias clássicas:
ágape, philia, eros. No amor ágape falamos do amor que está
presente em toda a tradição cristã, exprimindo uma ordem
que institui o dever de amar o outro pelo simples facto de
ser outro, o que inclui a necessidade de amar os próprios
inimigos. É o amor-caridade pregado por Jesus Cristo :
“Amarás ao teu próximo como a ti mesmo,”2 e de que São
Paulo faz também a apologia : “Ainda que eu fale as línguas
dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como
bronze que ressoa, ou como címbalo que tine”3. No amor philia
referimo-nos ao amor da amizade, caro à tradição grega,
sendo Aristóteles o seu grande teorizador. Para este
filósofo a amizade não é possível sem uma forma de
igualdade que a precede ou que a instaure; é mais valiosa
que a justiça, pois em face dela somos capazes de
2 “Evangelho de S.Mateus”,22,39, Biblia Sagrada, Lisboa, Ed. DifusoraBíblica, 2003, p. 1044 3 “Primeira Carta aos Coríntios”,13,1-13, Idem, p. 2016
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prescindir até da justiça, pois ninguém desejaria ver mal
um amigo; ao contrário do amor-paixão não é carência nem
fusão, mas comunidade, solidariedade e fidelidade; ao
contrário do amor cristão não se pode ser amigo de todos; a
amizade não é uma paixão mas uma virtude.4 A terceira
grande categoria de amor é eros, também consagrado pela
tradição grega, sendo Platão o seu principal teorizador5.
Trata-se do amor-paixão, o amor do enamoramento. Tem-se por
vezes a tendência de associar eros a prazer. Associa-se eros
a prazer, pensando no prazer da sexualidade, e devido ao
facto de este, em sentido estrito, não estar presente no
amor ágape nem no amor philia, mas no amor eros. Mas o amor
eros é mais que a sexualidade, embora também a possa
incluir. Este tipo de amor contém sofrimento, fracassos,
ilusões, e desilusões. A carência constitui a sua essência,
e quem diz carência diz sofrimento e posse : “Amo-te” ;
“quero-te”, etc. É o amor da concupiscência, como diziam os
escolásticos, é o mal de amores, como diziam os trovadores
da Idade Média. É o amor desejo, o amor que se quer
exclusivo (“és meu e só meu”), o amor de atração, o amor
não intelectual, o amor não como virtude, embora possa ser
intelectualizado, espiritualizado, e contrastando com o
amor ágape e o amor philia, é preciso não esquecer o seu
carácter associal (o amante vive alucinado, e só vê a pessoa
amada, o mundo para ele deixa de existir). Falamos aqui do
amor apaixonado feito de sofrimento e de obstáculo, no
4 ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco , livro VIII, caps. 9e10,1159 a, Lisboa,Ed. Quetzal, pp. 25-34.5 PLATÃO, O Banquete, Coimbra, Ed. Atlântida Editora,1968, pp.81-97.
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sentido trágico e sem solução (o que não acontece com o
amor-paixão que se resolve em casamento e que deixa por
isso de o ser). Trata-se de uma experiência única,
representada por determinadas personagens da História, e da
literatura, como Adriano e Antínoo, Safo e a sua amada,
Tristão e Isolda, Heloísa e Abelardo, Pelléas e Mélisande,
Filémon e Daucis, Dafne e Cloé, Dante e Beatriz, Petrarca
e Laura, Pedro e Inês de Castro, Romeu e Julieta, Dom
Quixote e Dulcineia, Soror Mariana e Chamilly, Werther e
Charlotte, Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, etc.
Todas estas personagens, umas históricas, e outras
literárias, contribuíram à sua maneira para a idealização e
a sacralização do amor-paixão, muitas delas quebrando tabús
e interdições, capazes de sofrer e morrer por amor,
erguendo a figura do amante à categoria da heroicidade.
Se ágape é amar os inimigos, e se philia é amar os
amigos, eros é , conforme afirma Denis de Rougemont, “amar o
amor mais que o objeto do amor, amar a paixão por si mesma
(...) é amar e procurar o sofrimento. Amor-paixão : desejo
do que nos magoa e aniquila pelo seu triunfo. (...) A
infelicidade é que o amor que “treslouca” os amantes não é
o amor do outro tal como ele é na realidade concreta. Eles
amam-se entre si, mas cada um só ama o outro a partir de
si, não do outro. A sua infelicidade baseia-se, assim, numa
falsa reciprocidade”.6
6 Denis de ROUGEMONT, O Amor e o Ocidente, Lisboa, Editora Vega, 1989, pp.44-46.
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A LINGUAGEM LITERÁRIA E O AMOR
Vivido numa perspetiva de reciprocidade, o amor
requer permuta, partilha, pôr em comum pequenos
acontecimentos do quotidiano, penas e alegrias. A
linguagem, a comunicação falada, a palavra, alimenta as
relações de amizade, ela é condição dessas mesmas relações.
Por seu turno, qual o lugar que desempenha a linguagem no
amor-paixão ? Se entendermos a linguagem no sentido verbal,
e sobretudo no sentido de diálogo, o amor-paixão não carece
de verbalidade nem de diálogo propriamente dito para se
alimentar. Pelo contrário, o estado de enamoramento furta-
se à linguagem e à descrição verbal. O sujeito apaixonado
tem uma forte propensão para falar abundantemente com o
ser amado do seu amor, dele, de si, de ambos, mas por vezes
algumas palavras bastam, uma simples declaração, como por
exemplo : ”Diz-me que me amas”. “Amo-te”. “Quero-te para
sempre”. “Gosto de ti”. “Penso em ti”. “És tudo para mim”,
“Adoro-te”, etc. Mas isso é pouco, é como tentar exprimir a
fé religiosa ou a emoção estética : não há palavras.
Restam os gestos, os beijos, as carícias, o olhar, os
silêncios, que constituem uma outra forma de linguagem,
mais forte.
Do ponto de vista do amante, se nele procurarmos uma
linguagem verbal peculiar do amor-paixão, encontramos as
declarações, as exclamações, as simples frases balbuciadas,
o correio do coração, as cartas, e as poesias escritas para
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a pessoa amada, pelas quais o sujeito parece falar mais
para si do que para a outra pessoa, pois nada lhe comunica
de concreto, nada há a dizer propriamente, ou nada há pelo
qual se possa dizer o que eventualmente haja a dizer. Do
ponto de vista do observador, se procurarmos expressar o
amor-paixão de modo estruturado, organizado, a linguagem da
ciência, da filosofia, da religião, das ideologias, não nos
fornece os meios. Devido à inefabilidade do amor-paixão, a
linguagem por excelência, deveras representativa e
paradigmática, é a da literatura.
Por isso, La Rochefoucauld afirmava que se não
tivessem existido os romances de amor, o amor seria
desconhecido. Será que a literatura é constitutiva do amor,
ou melhor, será que simplesmente ela o catalisa e o torna
visível, sensível e ativo ? Segundo George Steiner : “as
palavras, frases, tropos, gestos do corpo e do espírito por
meio dos quais tentamos comunicar o nascimento, o
amadurecimento, o declínio do amor no nosso ser, por meio
dos quais tentamos trazer essas experiências essenciais
tanto à nossa perceção como à do outro cuja alteridade é,
neste ponto, extremamente crítica em relação a nós, são
tomados em larga medida, conscientemente ou não, do
repertório dos grandes poetas e escritores”.7
Na verdade, basta ver alguns exemplos : na Antiguidade
é Safo, é a Fedra de Eurípides, a Maga de Teócrito, a
Medeia de Apollonio de Rodi, a Didone Virgiliana, a Arianna
de Catullo. Na Idade Média a origem do mito de Tristão e7 George STEINER, Presenças Reais, ,Lisboa, Editorial Presença, 1993,p.174.
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Isolda é literária e não histórica. Houve um único poema na
raíz de todas as várias versões da história de Tristão, e a
obra, composta no século XII por um desconhecido poeta
anglo-normando, foi de tal força que determinou para sempre
a tradição. Na Idade Moderna temos Romeu e Julieta, de
Shakespeare, e na Idade Contemporânea Werther e Charlotte,
de Goethe, e na literatura portuguesa por exemplo Simão e
Teresa, do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco.
Neste sentido, a paixão faz descobrir o ainda não
dito, a intimidade torna-se algo novo, Eros traduz-se em
palavras novas, não as palavras correntes, mas as palavras
que se consagram num discurso sibiliano, misterioso,
metafórico, fragmentário, como é próprio para o amor-
paixão. O amor-paixão é sempre romântico. Romance e
romântico são aliás palavras da mesma família, o que
significa que o grande amor-paixão pertence ao âmbito das
grandes obras literárias.
A EPÍSTOLA COMO GÉNERO LITERÁRIO
Um texto pode ser uma epístola no sentido comum do
termo (determinada por motivações de ordem pragmática), no
sentido filosófico-moral (por exemplo as de Schiller), no
sentido religioso (por exemplo as epístolas de São Paulo),
e ainda no sentido estritamente literário. Na literatura
11
latina constituem referências paradigmáticas, no género
epistolar, autores como Horácio, Plínio, Ovídio, Cícero,
Séneca. A Idade Média distinguirá uma arte subsidiária da
retórica, a ars distandi, que sistematizará as regras de
redação de uma epístola. Petrarca será um dos mestres da
epistolografia medieval, com as suas Familiarum rerum libri.
Circunscrevendo-nos à história da literatura portuguesa,
encontramos alguns casos dignos de realce : por exemplo as
Cartas Familiares de Francisco Manuel de Melo, ou as Cartas
Espirituais de Frei António das Chagas. António Ferreira
utilizou a epístola para fazer teoria da literatura,
Francisco Rodrigues Lobo dedicou os diálogos II e III da
sua Corte na Aldeia a uma primeira tentativa de sistematização
estilística da epistolografia, Correia Garção legou-nos
epístolas poéticas, como a Epístola a Olindo para traçar as
bases literárias do neoclassicismo, etc.
Na epístola enquanto género literário o recetor pode
ser imaginário, e a motivação pragmática é algo
inexistente. Muito cultivada pelos humanistas que dela
fizeram um importante género literário, a epístola adquiriu
maior preponderância no século XVII, funcionando no
interior das próprias casas onde a vivência quotidiana da
intimidade gerava a autocompreensão da subjetividade,
expressa nos diários íntimos, na prática da correspondência
privada e na literatura epistolar. No século XVII a carta
“está presente na fruição estética exemplarmente sentida
como um aprofundamento de subjetividades, onde o sujeito
aprende a ser livre na formação do gosto; manifesta-se no
12
amor-paixão, onde a liberdade na escolha do amado se ergue
como algo pelo qual vale a pena viver ou morrer, uma
manifestação autêntica do livre arbítrio, ainda que
sublimada de forma ideal através da literatura”.8
Esta sublimação tem subjacente um lado verídico da
história confessada, e apesar do seu lado por vezes
verídico, não deixa de ser algo intimista e subjetivo, de
significação psicológica deveras profunda. Sucede mesmo que
algumas dessas cartas expressaram sentimentos verídicos,
foram algo real e vivido, e constituíram meios de
comunicação concretos entre os interlocutores respetivos,
mas com o passar do tempo adquiriram o estatuto de obras
literárias, devido à densidade e à riqueza do texto, e por
conseguinte, não obstante os factos reais que as poderão
ter originado, é enquanto literatura que são conhecidas
hoje, como é o caso das Cartas Portuguesas.
O CASO DAS CARTAS PORTUGUESAS
As Cartas Portuguesas foram redigidas no século XVII e
publicadas pela primeira vez em Paris, em 1669, pelo editor
Claude Barbin, com o nome de Lettres Portugaises, e tiveram
grande êxito. A primeira versão portuguesa surgiu em 1819.
Até hoje as edições nunca mais pararam, existindo
atualmente em diversas línguas. Grande parte da literatura
8 João Carlos CORREIA, Jornalismo e Espaço Público, Covilhã, Ed. Universidadeda Beira Interior, 1998, p.31.
13
do século XVIII cultivou as Cartas Portuguesas : Berquin pô-
las em verso, e sem exagerar a sua importância pode-se
dizer que elas foram a origem do romance em cartas, como do
Werther, da Nova Heloísa, e das Ligações Perigosas (isto sem contar
com outras obras literáris menos célebres). Madame de
Sévigné criou a expressão verdadeiras portuguesas para se
referir a determinado tipo de epístolas, e Stendhal dava
como exemplo do amor-paixão o da religiosa portuguesa.
As Cartas Portuguesas foram consideradas pelos
contemporâneos do editor como reais traduções de textos
originais duma freira portuguesa, Soror Mariana Alcoforado,
nascida em 1640, em Beja, freira da ordem religiosa de
Santa Clara (as clarissas) no mosteiro de Nossa Senhora da
Conceição da mesma cidade, onde veio a falecer com 83 anos.
O texto é dirigido a Chamilly, que se supõe ser Noel Bouton
de Chamilly, conde de Saint-Léger e marechal de França, no
período em que, como simples oficial, tomara parte na nas
tropas de auxílio da guerra da restauração da independência
portuguesa, e que Soror Mariana avistara pela primeira vez
da janela do seu convento, conforme afirma numa das suas
cartas.
Estas circunstâncias levantam a hipótese de nos
encontrarmos em presença de um amor factual, isto é, de uma
paixão que realmente existiu. Todavia essa hipótese não tem
grande relevância para esta nossa análise, que não é de
investigação histórica. Pode ter sido um caso verídico, mas
o que aqui nos interessa é que estamos em presença da
problemática do amor-paixão, sentimento este que aqui
14
analisamos, com os seus significados de carácter
mitológico. Por outro lado, em consequência do que
afirmámos atrás, não tem sentido fazer uma diferença entre
amor literário e amor real, dado que o grande amor,
dramático como este, mesmo verídico, acaba por se elevar ao
plano da literatura e do mito, sendo portanto por vezes
difícil estabelecer diferenças entre, por um lado, a
dimensão real, e por outro lado, a dimensão literária e
mítica do amor.
O MITO E O AMOR
O amor-paixão tem originado alguns mitos ao longo da
História, como forma de o explicar e interpretar. Um dos
mais conhecidos conta que havia uma deusa grega chamada
Penúria, extremamente miserável, que vivia sedenta e
faminta. Havendo uma grande festa dos deuses, Penúria não
fora convidada, mas no final da festa ela veio e comeu as
migalhas que sobraram. Satisfeita, a deusa dormiu com o
deus Poros, deus astuto e engenhoso, de forte
personalidade. Dessa relação sexual nasceu o deus Eros, que
herdou do pai e da mãe as suas características: por um lado
faminto e sedento, por outro lado envolvente e astuto.
Desde então, segundo este mito, toda a pessoa que é
atingida pela flecha de Eros (Cupido, na mitologia romana),
15
passa a viver os sentimentos contraditórios que ele herdou
simultaneamente de Penúria e de Poros. Este mito do amor-
paixão tenta explicar o conflito dos sentimentos das
pessoas apaixonadas, e será alvo de discussão filosófica.9
Para falar de amor recorremos ao mito, assim como à
literatura. Aliás, podemos mesmo afirmar que muito daquilo
que denominamos hoje como literatura é uma outra forma
daquilo que eram outrora as grandes narrativas míticas, e
por outro lado, se pretendemos compreender algumas grandes
obras literárias como as contemporâneas (por exemplo o
Ulisses de James Joyce), é necessário compreender os mitos
que lhe estão subjacentes. Quando o caráter das personagens
de um romance supera não em grau mas em natureza o género
humano, encontramo-nos em presença da realidade mitológica.
Conforme afirma Rougemont, ”o mito de Tristão e Isolda
já não será só o romance, mas o fenómeno que ele ilustra e
cuja influência não cessou de se prolongar até aos nossos
dias. Paixão da natureza obscura, dinamismo excitado, pelo
espírito, possibilidade pré-formada em busca de uma pressão
que o exalte, encanto, terror ou ideal : tal é o mito que
nos atormenta.”10
Conforme afirma também Edgar Morin, “não se pode viver
sem mitos, e devemos incluir entre os mitos a crença no
amor, que é um dos mais nobres e mais fortes e talvez o
único mito ao qual nos deveríamos agarrar . (...) O amor
coloca, à sua maneira, o problema da aposta de Pascal, que9 PLATÃO, O Banquete, o.c.10 Denis de ROUGEMEONT,o.c.,p.20.
16
tinha compreendido que não existe nenhum meio de provar,
logicamente, a presença de Deus. Não podemos provar,
empírica e logicamente, a necessidade do amor. Apenas
podemos apostar para e sobre o amor. Adotar com o nosso
mito de amor a atitude da aposta é ser capaz de nos darmos
a ele, dialogando com ele de forma crítica”.11
O ENIGMA DA AUTORIA
O mais aceso debate sobre as Cartas Portuguesas continua
a ser o da sua autoria, que nessa época não era algo muito
importante. O desinteresse inicial pela autoria é
justificável tendo em conta que o século XVII é anterior à
Imprensa, à questão dos direitos autorais, e à ideia de
génio individual. Conforme sublinha Foucault, “houve um
tempo em que os textos que hoje denominaríamos literários eram
recebidos, postos em circulação e valorizados sem que se
pusesse a questão da autoria; o seu anonimato não levantava
dificuldade, a sua antiguidade verdadeira ou suposta era
uma garantia suficiente”.12 Alguns autores acreditam que
foram escritas por Soror Mariana Alcoforado, enquanto
outros colocam em causa esta autoria e avançam uma
11 Edgar MORIN, Amor, Poesia Sabedoria, ,Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1999, pp.31-32.12 Michel FOUCAULT, O que é um autor ?, Alpiarça, Ed. Passagens, 2000, p. 48.
17
hipótese: terem sido escritas por Guillerages, secretário
de Luís XV.
Na verdade, não se sabe se foram escritas
primeiramente em francês (pois apareceram escritas em
francês) ou em português (devido ao facto de se denominarem
portuguesas, de Soror Mariana Alcoforado ter existido,
assim como devido ao facto de o mosteiro existir, e a
pessoa a quem se dirigem essas cartas ter estado de facto
em Portugal). Estas cartas apareceram sempre sem autor :
trata-se de uma atitude de recato por serem a exaltação da
paixão transgressora de uma freira, de modo a não
envolverem o seu autor, e por isso apareceram anónimas?
Por outro lado, se foram escritas em português não se sabe
quem as traduziu.
Além da nacionalidade, coloca-se também a questão da
identidade de género. Jean Jacques Rousseau defende que só
poderiam ter sido escritas por um homem: “Regra geral as
mulheres não amam nenhuma arte, não se conhecem de maneira
alguma e não têm qualquer génio. (...) Elas não sabem
descrever nem sentir o próprio amor. (...) Apenas uma,
Safo, que eu saiba, e uma outra, merecem ser excepções.
Apostarei contra o mundo inteiro que as Cartas Portuguesas
foram escritas por um homem.”13 Por seu turno também
Stendhal defendia, a propósito das Cartas, que “um homem não
pode dizer quase nada de sensato sobre o que se passa no
13 Jean Jacques ROUSSEAU, “Lettre a M. d’Alembert sur les spectacles”,citado por Émile HENRIOT no seu prefácio a Lettres Portugaises, Paris, Ed.Bernard Grasset, 1910.,p.XV.
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fundo do coração de uma mulher terna”.14 Toda esta
problemática contribui para dar maior caracter enigmática
às Cartas.
Também os mitos não têm autor. A própria história de
Tristão e Isolda tem mais que uma e diferentes versões, mas
o seu autor é-nos totalmente desconhecido. Na cultura
ocidental o grande debate sobre a problemática da autoria
surge logo a propósito de Homero. Foi Homero o autor da
Ilíada e da Odisseia ? Homero existiu ? Além da cultura grega,
também a judaico-cristã suscita o debate sobre os enigmas
da autoria. O texto bíblico não tem propriamente autor, mas
sim vários autores, alguns são supostos, e por outro lado,
do ponto de vista teológico o autor é o Espírito Santo.
Não teologicamente mas culturalmente, pode-se afirmar
que uma obra não aparece com autor antes do Renascimento,
época a partir da qual as obras (nomeadamente as belas
artes) passaram a ser assinadas. O culto do sujeito-autor
está ligado ao desejo de imortalização, que o homem
ocidental passa a procurar nas coisas profanas. No caso das
Cartas Portuguesas temos a distinguir entre sujeito passional
(a pessoa que amou e que fez das cartas um instrumento da
sua paixão) e o sujeito epistolar, se admitirmos que a
linguagem não tem somente uma função instrumental - a de
traduzir relações pré-existentes, consideradas como dadas
num plano referencial - mas que ela também as pode criar,
gerando sentido. Por conseguinte, pouco relevo tem para nós
a autoria histórica das Cartas, na medida em que estamos14 Citado por Émile HENRIOT, o.c.,p. XVI.
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principalmente em presença de uma paixão nutrida num texto
e sentida como paixão narrativa, de que é exemplo a
seguinte pergunta de Mariana : “Então o meu desespero está
só nas minhas cartas?” 15
Conforme afirma Denis Bertrand, “poder-se-ia dizer dum
texto que ostenta e suprime desta maneira o sujeito, que
ele convoca a questão da identidade ? A obstinação com que
se tenta ressuscitar os atores epistolares, a dar-lhes
consistência e nome ao mesmo tempo, parece-me de facto ser
complementar da que os faz não desaparecer como
assinaturas, mas sim aparecer e desaparecer como figuras.
A sua falta de ser, e a riqueza dos motivos passionais de
objetos que esta falta estabelece, exige, em nome da
organização paradigmática da narratividade, que ela seja
liquidada ou satisfeita: reconhecer os nomes é neste caso
restaurar um equilíbrio numa epistemé da identificação. Num
certo sentido, o mal estar gerado pelas Cartas Portuguesas, como
ilustra a sua historiografia, é do mesmo tipo que o da
carta anónima: ele resulta do princípio de legibilidade
inscrito na própria carta. Em ambos os caso a supressão do
signatário está ligada ao desaparecimento dum outro sujeito
(o destinatário ameaçado, por exemplo). O anonimato é
corolário da anulação inscrita na carta ela mesma; ele a
funda e a garante. E a inquietação provocada - virtualidade
da supressão, paixão ôntica por excelência - atrai, exige a
busca.”. 16
15 Cartas Portuguesas, carta terceira, tradução de Eugénio de Andrade,Lisboa, edição Assírio & Alvim , 1993, p.30.16 Denis BERTRAND, “A Enunciação Passional”, Porto, revista CruzeiroSemiótico,nº11-12,,1990, p.92.
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RELAÇÃO COM O MITO DE NARCISO
Se, como se afirma na citação atrás, a supressão do
signatário está ligada ao desaparecimento de um outro
sujeito (o destinatário ameaçado, por exemplo), pode-se
afirmar também que o texto em causa, além do autor levanta
a problemática do recetor, na hipótese de não existir neste
caso um recetor propriamente dito. Esta ausência de
destinatário resulta do carácter próprio da escrita
confessional (diários, cartas, autobiografias, confissões),
e da peculiaridade do amor-paixão, por isso podemos falar
de um narcisismo da escrita e do amor, de que o caso das
Cartas Portuguesas é deveras significativo :
“Não sei porque te escrevo”.17 “Escrevo mais para mim
do que para ti”.18 “Não sendo afinal senão eu própria o meu
inimigo”.19 “Descobri que lhe queria menos que à minha
paixão”.20
Existem muitos exemplos em como Mariana fala consigo
própria :”Cessa, pobre Mariana, de te mortificar em vão”.21
A primeira de todas as cartas inicia-se assim : “Considera
meu amor...”. A quem se dirige a religiosa ? ao homem que
a abandonou , ou apenas ao seu amor , ao amor que a consome
interminavelmente ? “Ao cavaleiro” - respondem alguns.17 Cartas Portuguesas, carta terceira,o.c.,p.30.18 Idem,carta quarta,o.c.,p.41.19 Idem,carta terceira,o.c.,p.28. 20 Idem,carta quinta,o.c.,p.47.21 Idem,carta primeira,o.c.,p.17.
21
“Ao amor” - respondem outros. Uma leitura atenta da
primeira carta parece dar-nos uma resposta. Mariana parece
incapaz de se assumir como sujeito, dirigindo-se, primeiro,
ao amor que a traiu, falando da paixão que a desiludiu,
invocando a ausência , causa do seu desespero. A análise da
segunda carta parece confirmar o duplo destinatário : o
cavaleiro e Mariana, ou talvez Mariana e o seu duplo, o
seu amor, agora independentemente da maneira como o outro
a trata. Sente que o abandono pode ser eterno e tenta
salvaguardar o que de si lhe resta - a escrita e os
“sentimentos do seu coração”.
Na terceira carta as suas perguntas retóricas
esboçam um diálogo frustrado com o vazio, com a própria
figura da ausência. Na quarta carta muda de estilo fazendo
uma retrospetiva do seu passado : neste momento ela sabe já
que escreve mais para si do que para aquele que não lhe
responde. Conforme afirma Roland Barthes, “como uma má sala
de concerto, o espaço afetivo contém recantos mortos em
que o som não circula. (...) emprego as minhas qualidades
para nada : toda uma excitação de afetos, de doutrinas, de
saberes, de delicadeza, todo o brilhantismo do meu eu acaba
por se ensurdecer, se amortecer num espaço inerte, como se
- pensamento culposo - a minha qualidade excedesse a do
objeto amado, como se tivesse avanço sobre ele. A morte é
sobretudo isso : tudo o que se viu terá sido visto para
nada. Luto daquilo que apercebemos. Nestes breves momentos
em que falo para nada, é como se morresse. Pois o ser amado
22
transforma-se num personagem plúmbeo, uma figura de sonhos
que não fala, e o mutismo, em sonho, é a morte.”.22
A morte, provocada por um forte experiência não
correspondida, encerrada em si mesma, na idealização de um
outro eu em si, e a partir de si, e que daí não sai, é
aliás uma característica de alguns mitos gregos. Um desse
mitos é o do jovem e belo Narciso que se consumiu a
contemplar inebriado a sua própria imagem refletida nas
águas de um lago.23 Enamorado de si ao mirar-se nas águas,
nelas se precipitou, vindo a ser transformado na flor a
que deu o nome, e que é no fundo um símbolo do
ensimesmamento do amor-paixão. Também a história de
Tristão e Isolda, conforme sublinha Denis de Rougemont, “é
um narcisismo mítico que se ignora, naturalmente, e que
julga ser um verdadeiro amor pelo outro. A análise das
lendas corteses revelou-nos que Tristão não ama Isolda mas
o próprio amor, e, para além desse amor, a morte, quer
dizer, a única libertação do eu culpado e escravizado.
Tristão não é fiel a uma promessa nem a esse ser
simbólico, a esse belo pretexto que se chama Isolda, mas
sim à sua mais profunda e secreta paixão”.24
AUSÊNCIA E (IN)TEMPORALIDADE
22 Roland BARTHES, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1995,pp.196-197.23 Cf. OVÍDIO, Metamorfoses, III,339-510, Lisboa, Ed. Cotovia, 2007, p. 27.24 Denis de ROUGEMONT,,o. c.,p.40
23
Confinado à sua dimensão narcísica, no amor-paixão
há a ausência do amado, e é mesmo necessário que o amado
esteja ausente para que o fogo do amor-paixão se
incendeie : é o caso do amor de Soror Mariana. No intimismo
da cela do mosteiro onde vive, recorda os momentos passados
de um amor que sente crescer com a ausência do amado,
apesar da ausência de resposta deste às suas cartas (ou
precisamente por isso). Todo o texto das cartas de Mariana
Alcoforado, sendo um texto que se constrói devido à
ausência do amado, é aliás um texto sobre essa ausência e
abandono. A presença do amado não a faria exprimir-se assim
como se exprime, e é precisamente porque ele lhe falta que
o drama se intensifica. Como satisfazer o amor-paixão de
Mariana sem o suprimir ? Não é o prazer o fim (o objetivo
mas também o termo) do desejo ? Não é a felicidade o fim da
paixão ? como poderia ser feliz o amor, se só ama o que
não é “atual e presente”?25 O amor só é apaixonado na
carência, a paixão é essa mesma carência, exaltada pela
sua ausência, e devido a isso é sofrimento e só pode durar
no sofrimento: “Agradeço-vos do fundo do coração o
desespero que me fazeis sentir e desprezo o repouso em que
vivia, antes de conhecer-vos (...) Adeus ! Amai-me sempre,
fazei-me sofrer ainda maiores tormentos!”.26
Também Tristão e Isolda, conforme lembra Rougemont,
“têm necessidade um do outro para arderem em paixão, mas
não um do outro tal como cada um é; e não da presença do
25 Cf. PLATÃO, O Banquete,o.c.,200 e.26 Cartas Portuguesas, carta primeira,o.c.,p.19.
24
outro, mas bem mais da sua ausência”.27 A distância e a
ausência que incendeia o amor-paixão pode comparar-se ao
amor a Deus. É porque Deus está ausente, distante,
inacessível, que o mistério de Deus aumenta e atrai. Do
Cântico dos Cânticos, às poesias de São João da Cruz, nada
mais próximo da experiência do amor-paixão do que as
palavras com que os místicos se dirigem ao objeto tão
sublimado que é afastado até ao infinito e tornado
inalcançável.
Assim, o amor-paixão carece de uma outra via : a via
do nada (a verdadeira vida está ausente, o ser está noutro
lugar, o ser é o que falta), é a via de Platão, para quem
“os verdadeiros filósofos já estão mortos”, é a via de Eros
: se o amor é desejo, se o desejo é carência, só se pode
amar o que não se tem, e sofrer por essa carência, só se
pode possuir o que já não falta, e o que, e a partir desse
momento (dado que o amor é carência), já não se poderia
continuar a amar. “Comparava - escreve Proust - a
mediocridade dos prazeres que me dava Albertina com a
riqueza dos desejos que ela me privava de realizar”.28É
aqui que a paixão surge, ela renasce instantaneamente na
carência e no sofrimento. Tanto é assim que - comenta
Proust - “com frequência sucede que, para que descubramos
que estamos enamorados, talvez inclusivamente para que nos
enamoremos, é necessário que chegue o dia da separação”.29
27 Denis de ROUGEMONT,o.c.,p.36.28 Marcel PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, vol. I, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2003, p. 40.29 IDEM, Ibidem
25
Por isso o amor-paixão é a saudade de um tempo
perdido, a nostalgia do in illo tempore. Mariana vive no
passado e do passado, está sempre a lembrar o passado, tudo
o que diz e faz é em função do passado, é como o desejo de
um eterno retorno, um amor que retornasse mas não se
cristalizasse, não um tempo no sentido progressivo, em
direção a uma meta, mas um tempo mítico. Mariana perde a
noção do tempo contínuo, do tempo profano, e aspira a um
tempo para além do tempo terreno, a um tempo que não
tivesse parado :
“Ai ! porque não queres passar a vida inteira ao pé de
mim ?”30 “Que felicidade a minha se tivéssemos passado a
vida juntos!”31 “Como teria sido feliz se tivesse
consentido que o amasse sempre!”32
Esta aspiração de eternidade é tanto mais mítica
quanto contrastada com a realidade : por um lado faz parte
do amor-paixão aspirar amar para sempre, mas por outro lado
faz parte da sua realidade o amar só durante um tempo, o
ser efémero. Esta fugacidade do tempo encontra-se no
próprio despoletar do amor paixão, como algo que se
incendeia num instante, o amor à primeira vista, que foi
também o que sucedeu no caso de Mariana :
“Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me
deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que
senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão”.33
30 Carta primeira,o.c.,p.18.31Carta quarta,o.c.,p.36.32 Carta quinta,o.c.,p.53.33 Carta quarta,o.c.,p.38.
26
O primeiro olhar trocado entre os amantes que vai
mudar toda a sua vida (neste caso, de Mariana) corresponde
aliás ao primeiro toque de amor divino, à conversão do
cristão. O tempo que se segue é uma busca do instante de
eternidade vislumbrado pelo acender do amor-paixão, e
também só um instante poderá voltar a trazer o tempo
passado, como o instante em que a lembrança pode assumir
inteiramente o eu (no caso de Proust) ao levar aos lábios
uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de
madeleine.
METAMORFOSES DA PERSONALIDADE
Enquanto à noção de liberdade é inerente uma conceção
de tempo linear, em direção a um objetivo, em que o
sujeito se assume como condutor da sua própria vida, à
noção de fatalidade (neste caso da fatalidade do amor-
paixão) corresponde a ideia de destino e de tempo cíclico.
Esta conceção cíclica, não linear, de tempo, característica
de todo o desenvolvimento da cultura clássica, aparece como
correlato da imagem da metamorfose na Antiguidade. Qualquer
aproximação à literatura e aos mitos clássicos permite
detetar que a mudança de personalidade é uma das
características dos deuses e também um dos procedimentos
mais usados com o objetivo de facilitar os seus desejos
amorosos, nas suas disputas ou contendas, e também nas suas
relações com os mortais. Também Heraclito, e Ovídio,
27
empregam a imagem da metamorfose como a que melhor exprime
a realidade, e na literatura contemporânea a metamorfose e
as transmutações da personalidade sucedem por exemplo em
Goethe, em Kafka, ou em Fernando Pessoa.
Mas não só na cultura (no mito ou na literatura), como
na própria condição humana, a imagem da metamorfose está
presente. Crescentemente vemo-nos a nós mesmos como atores
que, no palco do mundo, não interpretamos um papel único.
Podemos ser duros ou ternos, formais ou informais,
masculinos ou femininos, ativos ou passivos, segundo a
situação e os demais participantes da cena que vivemos.
Podemos ser uma metamorfose contínua de personalidades. É o
que sucede em Soror Mariana Alcoforado, agitada pelos
movimentos mais diversos : passa da ternura ao desprezo, e
do desprezo à humilhação. Todas as loucuras do amor, as
contradições perpétuas, as fraquezas de um coração se
encontram nela :
“Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu
carácter, dos meus modos, do meu ser”.34
“Todos os que falam comigo creem que estou doida, não
sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam
tão insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que
for”.35
“Uma pobre insensata , que o não era, como sabes,
antes de te amar”.36
34 Carta Quarta,o.c.,p.37.35Carta Segunda,o.c.,p.24.36 Carta Terceira,o.c.,p.31.
28
Deste modo, a religiosa é capaz dos mais conturbados
sentimentos : ciúme, submissão, morbidez, neurose, raiva,
ódio, masoquismo, atração pela morte, sendo estes mesmos
sentimentos palco de uma certa mitologia na cultura
ocidental. No Ocidente considera-se geralmente que a
obsessão pelo êxtase através da dor é sadismo ou
masoquismo, termos criados pelo barão Richard von Krafft-
Ebing (1840-1902), derivando o primeiro do Marquês de Sade
(1740-1814) e o segundo de Leopold von Sacher-Masoch (1836-
1905), o que não deixa de ter ligação com a ideia de
metamorfose, se à mesma associarmos na literatura e no mito
a ideia de animalidade (veja-se por exemplo A Metamorfose de
Kafka).
No âmbito das metamorfoses da personalidade, o
masoquismo psíquico é algo típico em Soror Mariana :
“Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento , de que és a
única causa, já vou tendo afeição”,37 “(...) faz-me
sofrer mais ainda”38, “(...) prefiro sofrer ainda mais do
que esquecer-te”39, “(...) Mas não, não me perdoes ! Trata-
me com dureza. Que a violência dos meus sentimentos te não
baste! Sê mais exigente!”40
O seu masoquismo psíquico é associável a Eros e
Thanatos, isto é, através da atração pela própria morte :
“(...) Agradava-me sentir que morria de amor”,41 “(...) e
37 Carta Primeira,o.c.,p.16.38 Idem,p.19.39 Carta Segunda, o.c.,p.23.40 Carta Terceira,o.c.,p.30.41 Carta Primeira,o.c.,p.17.
29
faço tanto para conservar a vida como por perdê-la ! morro
de vergonha”42, “ordena-me que morra de amor por ti”.43
Encontramos neste morrer de amor uma associação com o
romance cortês, que tem o seu desfecho na morte, e se
desvanece numa exaltação para além do mundo, com as
mitologias do amor, em que o amor é tão grande que os
amantes devem morrer de amor (por exemplo em Tristão e
Isolda). Mariana não morre, no sentido físico, como muitas
das personagens dos romances de amor e dos mitos, mas a
ideia de morte está presente no seu amor : pelo sofrer e
morrer de amor – que constitui uma característica do amor-
paixão, conforme sublinha Georges Bataille : “Do erotismo
se pode dizer que é a aprovação da vida até na própria
morte. (...) embora a atividade erótica comece por ser uma
exuberância de vida, o objeto dessa busca psicológica,
independentemente, como disse, da preocupação da
reprodução, não é estranho à morte”.44 Em suma, a morte é o
corolário das metamorfoses da personalidade: passar da vida
à morte, devido a uma experiência arrebatadora de
enamoramento que transforma a personalidade do amante, ao
ponto de a mitologia medieval considerar a paixão e o
enamoramento uma forma de patologia que acarreta a morte.
42 Carta Terceira, o.c.,p.30.43 Idem,o.c.,p.31.44 Georges BATAILLE, O Erotismo, Lisboa, Moraes Editores, 1980, Introdução, p. 10.
30
TABÚ E TRANSGRESSÃO
Segundo Freud, “o tabú é uma proibição muito antiga,
imposta de fora (por uma autoridade), e dirigida contra os
desejos mais intensos do Homem. A tendência para
transgredir persiste no seu inconsciente, os homens que
obedecem ao tabú são ambivalentes em presença do que é
tabú. A força mágica atribuída ao tabú reduz-se ao poder
que ele possui de induzir o Homem em tentação; ela
comporta-se como um contágio, porque o exemplo é sempre
contagioso e o desejo desloca-se no inconsciente para um
outro objeto”.45 Na impossibilidade de se desenvolver ou
florescer na sua forma completa, a ação humana degenera em
formas que a mitologia recupera sob a forma de heróis ou
de monstros, dando azo a comportamentos transgressores que
não poderiam ser generalizados e aceites sob pena de
destruição da sociedade, e que, portanto, são ou
condenáveis ou reservados a alguns seres excecionais. Tais
comportamentos fornecem às pessoas comuns uma compensação
imaginária de que sentem necessidade. Existe um certo
imaginário associado à transgressão, ao fora da lei, como por
exemplo Robin dos Bosques, as grandes transgressões
financeiras, como as de Alves dos Reis, de João Brandão,
etc., que preenchem o imaginário português e passam à
categoria de relatos lendários e mitológicos. Com efeito,
45 Sigmund FREUD, “Totem e Tabú”, in Textos Fundamentais, Mem-Martins,Publicações Europa-América,1990, pp. 29-47
31
essas figuras transgressoras acabam por ser vistos como uma
espécie de heróis.
Ora, por vezes também o amor é uma forma de
transgressão. Georges Bataille encontra no erotismo a chave
para desvendar o aspeto mais fundamental e determinante da
natureza humana. A essência do erotismo é ser a
transgressão por excelência, dado que é consciência do
interdito.46 Anthony Giddens distingue o amor-paixão do
amor romântico, porque ao contrário deste último, no amor
paixão o estado de arrebatamento de energias e pulsões é
tão mobilizador que leva o indivíduo a romper com os laços
sociais mais amplos, o que representaria uma ameaça
potencial para as instituições sociais.47
No campo da literatura temos os melhores exemplos,
pois como afirma Rougemont, “sem entraves ao amor não há
romance, (...) a felicidade dos amantes só nos comove pela
expectativa da infelicidade que os ameaça, (...) o amor
feliz não tem história na literatura ocidental”.48 A
história da literatura universal apresenta-nos, direta ou
indiretamente, alguns dos casos mais paradigmáticos de
comportamentos considerados como transgressores no campo
amoroso: Édipo, Safo, Tristão e Isolda, Heloísa e
Abelardo, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Adriano e
Antínoo, Óscar Wilde e Lord Douglas, D. Juan, e alguns na
literatura portuguesa, como é o caso d’O Crime do Padre Amaro
de Eça de Queirós, de Eurico o Presbítero de Alexandre46 Georges BATAILLE, O Erotismo, o.c., p. 14.47 Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade, São Paulo, UNESP, 1993, p,50.48 Denis de ROUGEMONT, o . c. , p. 4.5.
32
Herculano, do Amor de Perdição de Camilo de Castelo Branco,
etc.
Segundo a Bíblia Sagrada, Adão comeu do fruto
proibido, cometendo uma transgressão que exercia um
terrível fascínio. O interdito é sempre o mais apetecido.
Interdito por razões sociais, políticas, económicas,
razões de Estado, razões familiares, razões religiosas,
etc. Não existe grande enamoramento sem transgressão, e
quanto mais transgressor for maior será o próprio amor. Em
que consiste a transgressão nas Cartas Portuguesas ?
A forma sigilosa como tudo se passa, revela o carácter
transgressor da conduta : as cartas são enviadas em
segredo, e o próprio anonimato das cartas (hoje não sabemos
ao certo quem as escreveu) pode ser consequência disso.
Chamilly, de acordo com breves passagens das cartas, terá
entrado no convento, em segredo. Estamos no século XVII.
Para a mentalidade de então, uma mulher de pouco mais de
vinte anos ter-se apaixonado por um nobre cavaleiro,
estrangeiro, enviado em missão, e um amor que ela saberia
não ter resultados (foi um amor à primeira vista, amor de
paixão pura e simples, e sem matrimónio), seria
considerado facilmente um comportamento transgressor : por
se passar no século XVII, por ter como protagonista uma
mulher, que toma a iniciativa, sobretudo por essa mulher
ser freira, e não uma simples freira : uma freira de uma
ordem religiosa contemplativa, sob observância de uma das
33
mais austeras regras monásticas : a de Santa Clara de Assis
(Clarissas), datada de 1253.
Por conseguinte, Soror Mariana Alcoforado transgrediu
em pensamentos, palavras e obras a castidade, a discrição,
a obediência, e a clausura monástica. Embora algumas
freiras soubessem do seu amor, o seu estado de freira
levava-a mentir, embora também diga nas suas cartas que as
freiras se apercebiam do seu estado lastimoso. Mas segundo
ela, não era nada claro, eram “desconfianças”. O seu amor
era tabú, não se falava disso, por isso a transgressão de
Soror Mariana era supremamente pecaminosa, ou seja,
sedutora.
CHAMILLY E A FIGURA DO CAVALEIRO
As cartas foram supostamente dirigidas a Noel-Bouton
de Chamilly, conde de Saint-Léger e marechal de França, no
período em que, como simples cavaleiro, tomara parte na
guerra da Restauração em Portugal, nas tropas que vieram em
auxílio dos portugueses. Chamilly tomou parte no cerco de
Valência de Alcântara, no combate de Castelo Rodrigo, na
batalha de Montes Claros, no combate do rio Xevora, e em
outras ações secundárias, das quais a última conhecida é a
do Castelo de Ferreira, tendo vindo seguidamente a ser
nomeado mestre de campo e capitão de cavalaria.
34
Assim, enquanto Mariana se quer sacrificar apenas pelo
amor-paixão (algo associal e individual), em contrapartida
Chamilly quer a dar a vida em prol de ideais que têm a ver
com o Bem Comum (liberdade, fraternidade, nacionalismo).
Por conseguinte, não será demais salientar o símbolo da
cavalaria aqui implícito, e a sua importância na formação
da mentalidade do Homem ocidental. Franco Cardini considera
que “as instituições cavaleirescas e a cultura que, entre o
século XI e o século XVIII (e talvez para além deles) lhes
conferiu prestígio, revelaram-se um dos motores mais
poderosos do processo de individualização e de conquista de
uma autoconsciência do homem ocidental”.49 Assim, o
cavaleiro representaria o tipo de homem elevado a modelo,
que envergando a sua armadura toma um caracter simbólico,
representante de um ser moralmente superior.
Mas será que o cavaleiro, modelo de virtudes, existiu
realmente ? Em que medida a cultura medieval forjou o mito
distante do real ? Para Georges Gusdorf a cavalaria existiu
apenas no imaginário da canção de gesta e serve de modelo
no caminho para a virtude plena. Este autor considera
aquela instituição não apenas ligada à época medieval, mas
como uma figura tutelar perene, um modelo da Humanidade,
como uma expressão do desejo de ascensão do homem através
dos tempos, da luta pelo impossível que dificilmente se
concretiza. Daí a sua conclusão de que a cavalaria é uma
“figura da ambiguidade humana”. Segundo este estudioso,
“a cavalaria só atinge a plenitude do seu significado sob49 Franco CARDINI,“O Guerreiro e o Cavaleiro”, in O Homem Medieval, Mem Martins, Publicações Europa América, 1980, p.61.
35
o aspeto de uma entidade mítica, ausente da realidade
humana no seu devir histórico. A cavalaria é uma ficção, um
cumprimento escatológico do ser humano tal como ele se
sonhou a si próprio seguindo a inspiração de uma certa
idealidade”, e ainda: “a invenção do cavaleiro responde ao
desejo de impor um modelo reativo da bravura, da verdade e
da virtude a um mundo vítima da desordem”.50
Ora, se ontem como hoje o homem medieval congregava em
si uma dualidade, o mundo dos ideais do espírito, desejo de
ascensão, e o mundo do erotismo, podemos dizer que o
próprio cavaleiro protagoniza essa ambiguidade : vive
dividido entre os ideais cavaleirescos de valentia,
generosidade, defesa dos valores de justiça e paz, e o
mundo subterrâneo dos instintos, desejos, paixões e
impulsos, de que Chamilly permanece como um dos melhores
exemplos, também ele dividido entre os nobres ideais
cavaleirescos e o seu caso com Mariana, acabando por
enveredar por aqueles.
CHAMILLY E A FIGURA DE DON JUAN
É precisamente no século XVII, o século em que foram
redigidas as Cartas Portuguesas, que se desenvolve aquele que
50 Georges GUSDORF, “Romantismo e Cavalaria”, in Cavalaria Espiritual eConquista do Mundo, Mem-Martins, Ed. Publicações Europa-América, 1980,pp.197 e 214.
36
ficaria conhecido como o mito de Don Juan - sedutor criado
pela literatura, que surgiu na dramaturgia espanhola em
1630, alimentado depois pelo Romantismo literário, que o
associa a outras figuras, como Don Miguel de Mañara (1623-
79), que ficou com a fama de ter sido sedutor e amante de
muitas mulheres.
Chamilly pode também ser interpretado como uma
espécie de Don Juan, ao ter abandonado a freira, e ter
permanecido indiferente aos seus apelos, índo em busca de
outras mulheres. É o próprio texto das Cartas Portuguesas que
nos fornece algumas passagens que nos possibilitam
encararmos Chamilly como uma espécie de Don Juan :
“A tua disposição para me atraiçoar triunfou,
afinal”51 (...) “todas as emoções, que em mim se
apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas
unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se
extinguiam”52, (...) “vale mais sofrer como sofro do que
ter os fáceis prazeres que te hão de dar em França as tuas
amantes”53, (...) “nunca olhaste a minha paixão senão como
um troféu, o teu coração não foi verdadeiramente atingido
por ela”54,(...) “bem sei que é tão fácil para ti
desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a
ti”55, (...) “sei por experiência que és incapaz de
fidelidade”.56
51 Carta Segunda, o . c. ,p.22.52 Idem, o.c.,p.23.53 Idem, o.c.,p.2454 Carta Terceira, o.c.,p.29.55 Carta Quarta, o.c.,p.36.56 Idem,o.c.,p.39.
37
Assim, a cavalaria de que Chamilly seria ainda um
representante, profaniza-se. Chamilly, que não tinha sem
dúvida considerado que a aventura se devesse prolongar por
mais tempo do que a duração da sua estadia militar em
Portugal, deixa a sua missão e parte. Uma amante (Soror
Mariana) crê e deseja a sua paixão como algo eterno.
Chamilly, pelo contrário, sabe que se encontrava em missão
transitória, que não ficaria em Portugal, e que voltaria um
dia para França. Quando o momento veio abalou. Em França
encontrará outros amores.
Vem a propósito afirmar, conforme sublinha Roland
Barthes, que “daqui resulta esta curiosa dialética que faz
suceder sem embaraço o amor absoluto ao amor absoluto como
se, pelo amor, eu tivesse acesso a uma outra lógica (já não
estando o absoluto obrigado a ser único), a um outro tempo
(de amor em amor, vivo momentos verticais), a uma outra
música (este som, sem memória, livre de toda a construção,
esquecido do que o precede e do que se lhe segue, este som
é em si mesmo musical). Procuro, começo, tento, vou mais
longe, corro mas nunca sei que acabo : de Fénix não se
diz que morre, mas apenas que renasce (posso, portanto,
renascer sem morrer ?). Uma vez que não me sinto realizado
e que não me mato, a vagabundagem de amor é fatal”.57
EPÍLOGO
57 Roland BARTHES, Fragmentos de Um Discurso Amoroso, o. c., p.253.
38
O estudo da literatura seiscentista mostra que as
representações letradas do amor revelam, para além da
vivência da paixão amorosa, a condição humana da falta
sempre vulnerável, enredada no gozo e, ainda assim, movida
pelo desejo. Para representar o amor usava-se amplamente a
figuração da impossibilidade. Esta conceção sobre o amor
enquanto algo vivido na impossibilidade, é algo que nos
nossos dias foi estudado pela Psicanálise. Em O mal estar na
civilização, Freud escreve: “Nunca nos achamos tão indefesos
contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso
objeto amado ou o seu amor”. 58
É com uma aporia que um outro psicanalista – Lacan –
tenta também expressar o que está em jogo no amor-paixão.59
Segundo este autor, o jogo do corpo do Outro promete-se
apenas no infinito, retomando como metáfora o célebre
paradoxo de Zenão de Eleia : Aquiles nunca poderá alcançar
a tartaruga, que sai à sua frente, por ser não toda. Ele
pode ultrapassá-la, mas só poderá alcançá-la no Infinito,
mesmo porque, como sublinha Lacan, o passo da tartaruga
será cada vez menor e não chegará jamais ao limite. Segundo
Lacan, o encontro amoroso nom seu ideal de completude não
passa de uma ilusão, o que desencadeia muito sofrimento. Há
sempre um impasse na relação amorosa, porque a essência do58 Sigmund FREUD, O mal estar na civilização, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2008, p, 23.59 J.LACAN, “A instância da letra no inconsciente ou a razão desdeFreud”, in Eecritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 496-533.
39
objeto do desejo é da ordem do fracasso. Assim sucede
quando o próprio amor humano não basta, e se coloca nele a
esperança de um infinito que é impossível de alcançar.
A obra literária aqui analisada (as Cartas Portuguesas),
parte de uma nostalgia por um mundo supostamente vivido,
idealizado, e perdido, terminando numa espécie de revolta
psíquica. O desprendimento da paixão em relação ao seu
objeto é um processo muito doloroso, que a personagem das
Cartas Portuguesas custou a realizar. Etimologicamente, paixão
significa sofrimento (algo sofrido, preponderância do
destino sobre a pessoa livre e responsável). Desde o
amabam amarede Santo Agostinho, até ao romantismo moderno,
o amor-paixão é procura de sofrimento. O sofrimento que
Soror Mariana padeceu, foi como vimos efeito de uma posição
que colocou o oficial francês em condição idealizada,
estabelecendo assim uma procura impossível de ser
correspondida, uma procura ao infinito. Os queixumes, as
deceções daí resultantes, são consequência da tentativa de
apreender o amado como se fosse a metade do que falta ao
sujeito, como no mito sobre o nascimento de Eros. A perda
do objeto amado, vivida no desaparecimento de Chamilly,
colocou Mariana num processo de luto, cujo desfecho só foi
possível a partir da escrita. O processo psíquico observado
através das cartas vai da idealização do objeto amoroso e
do sofrimento a ele associado, até ao momento no qual, após
uma inversão da situação que coloca Mariana na posição de
amante, ela pôde por fim renunciar ao objeto de amor sem
renunciar ao amor. Será através da via da sublimação que o
40
amor fica liberto da posse do objeto, acarretando a
estabilização da estrutura psíquica : Mariana encontra o
amor no próprio amor, transformado em obra literária.
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