a construção do poder na \"revolução\" de avis (1383-1385)

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ANAIS DO VII ENCONTRO HUMANÍSTICO

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ANAIS DOVII ENCONTRO HUMANÍSTICO

Endereço para correspondência e pedidos:

Universidade Federal do Maranhão - Centro de Ciências Humanas -Núcleo de Humanidades - Av. dos Portugueses, s/n – CEP: 65085-580– São Luís – MA – Brasil.Fones (98) 2109.8300 / 2109.8302 – Fax:: (98) 2109. 8301E-mail: [email protected] page: www.nucleohumanidades.ufma.br

Núcleo de HumanidadesCentro de Ciências Humanas

Universidade Federal do Maranhão

ANAIS DO

VII ENCONTRO HUMANÍSTICO

19 A 23 DE NOVEMBRO DE 2007

CCH/UFMA

TEXTOS DAS MESAS REDONDAS

1a Edição

São Luís - Edufma

2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃOReitor: Natalino Salgado

Vice-Reitor: Antônio José Silva Oliveira

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Lyndon de Araújo dos Santos

NÚCLEO DE HUMANIDADESCoordenador: Claudio Zannoni

COMISSÃO EDITORIAL:Antônia da Silva Mota (DEHIS/UFMA); Claudio Zannoni (DESOC/UFMA);

José Henrique de Paula Borralho (DEHIS/UEMA); Almir Ferreira da Silva Jr.(DEFIL/UFMA); Manoel William Ferreira Gomes (DEPSI/UFMA); Maria da

Graça Pereira Guimarães Corrêa (DELER/UFMA); Maria Mirtes dos SantosBarros (DEARTE/UFMA); Ronaldo Rodrigues Araújo (DEGEO/UFMA);

Sílvia Cristina Duailibe Costa (CCH/UFMA)

CONSELHO EDITORIALAlfredo López Austin (Instituto de Investigaciones Antropológicas deMéxico); Ana Jacó Vilela (UERJ); Anna Casella Paltrinieri (UniversitáCattolica del Sacro Cuore di Milano); Antônio Carlos Robert Moraes(USP); Antônio Cristian Saraiva Paiva (UFC); Antônio Paulo Rezende

(UFPE); Ari Pedro Oro (UFRGS); Deise Mancebo (UERJ); Edmundo AntônioPeggion (UNESP); Edna Maria Ramos de Castro (UFPA); Eliseo LópezCortés (Universidad de Guadalajara - México); Enrique Serra Padrós

(UFRGS); Gema Galgani Esmeraldo (UFC); Giovanni da Silva de Queiroz(UFPB); Ilse Sherer-Warren (UFSC); Izabel Missagia de Mattos (UCGO);João Lima Sant’Anna Neto (UNESP); Liana Maria Sálvia Trindade (USP);

Marco Aurélio Werle (USP); Sílvia Maria Schmuziger de Carvalho (UNESP)

ORGANIZAÇÃO DESTE VOLUMEClaudio Zannoni

ARTE DA CAPAFoto Pablo Cabado - Museu de Antropologia de Xalapa (México)

EDITORIAÇÃOVictor Alves de Lima

Encontro Humanístico (7.: 2007: São Luís, MA)Anais do VII Encontro Humanístico /

Organização de Claudio Zannoni - São Luís:Edufma, 2008.

264p.; 21cm.

ISBN - 978-85-85048-97-61. Ciências Humanas - Encontro científico -

UFMA.CDD. 001.35CDU. 168.522:061.3(812.1)

VII ENCONTRO HUMANÍSTICO

Organização:Núcleo de Humanidades (NH) - UFMA

Cêntro de Ciências Humanas - CCH - UFMA

COORDENAÇÃO GERAL:Prof. Dr. Claudio Zannoni (Coordenador NH)

Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos (Diretor do CCH)

COMISSÃO CIENTÍFICA:Profa. Dra. Antônia da Silva Mota; Prof. Msc. Manoel William

Ferreira Gomes; Prof. Dr. Almir Ferreria da Silva Júnior; Profa. Dra.Maria Mirtes dos Santos Barros; Prof. Msc. Ronaldo Rodrigues Araújo;Prof. Dr. Alexandre Fernandes Corrêa; Profa. Ms. Maria Olília Serra

COMISSÃO DE COMUNICAÇÃO/DIVULGAÇÃOProf. Dr. Claudio Zannoni; Prof. Msc. José Henrique de Paula Borralho

Profa. Msc. Maria da Graça Guimarães Corrêa; Prof. Msc. RonaldoRodrigues Araújo

COMISSÃO DE APOIO E INFRAESTRUTURA:Prof. Msc. Manoel William Ferreira Gomes; Profa. Dra. Maria Mirtes

dos Santos Barros; Prof. Msc. Ronaldo Rodrigues Araújo; Prof. Msc.José Henrique de Paula Borralho; Funcionários e Monitores da UFMA

APOIO INSTITUCIONALUniversidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Estadual doMaranhão (UEMA); Departamento de Artes (UFMA); Departamento

de Filosodia (UFMA); Departamento de Geociências (UFMA);Departamento de História (UFMA); Departamento de Letras (UFMA);Departamento de Psicologia (UFMA); Departamento de Sociologia e

Antropologia (UFMA); Curso de História (UEMA)

PATROCÍNIOALUMAR

APRESENTAÇÃO

O VII Encontro Humanístico superou as expectativas.Foram 1.500 participantes; 411 Comunicações Orais; 87 Pai-néis; 40 mesas-redondas; 4 conferências; 21 mini-cursos; 8oficinas. A programação cultural contou com o espetáculo tea-tral, “O Imperador Jones”; o show de três bandas de rockformadas por universitários; mais uma amostra de filmes.

Tudo isso é resultado de um trabalho em equipe, queenvolve alunos, professores, o pessoal da gráfica universitáriaresponsável pela confecção do material de divulgação do En-contro Humanístico, como: cartazes, folders e caderno de re-sumos, em condições precárias de trabalho.

O VII Encontro Humanístico teve como primeira experi-ência a inserção da IV Jornada de Sociologia e do Iº Colóquiode Consciência Negra. Esperamos que estes eventos possamse multiplicar nos próximos anos tornando, o EncontroHumanístico, a voz da pesquisa universitária na área de ciênci-as humanas.

Lembramos também a contribuição de outras universi-dades que colaboraram conosco para a realização desse even-to, em especial a UEMA, mas também UNDB, UNICEUMA, FAMA,São Luís e outras. Tivemos também a participação do COLUNe do CEFET/MA.

Por isso, podemos dizer que o Centro de Ciências Huma-nas da UFMA tem o privilégio de promover o EncontroHumanístico, insistindo que mantê-lo é contemplar apresenta-ções e discussões dos resultados de pesquisas nas áreas dasciências humanas.

O Encontro Humanístico existe, não para fazer ruído aca-dêmico, mas para elaborar uma melodia polifônica.

Se, propositalmente, não seleciona um foco temático,não pretende com isto apenas colecionar informações, masviabilizar o diálogo entre sujeitos desse universo. Propõe, pois,relacionar conteúdos diversos, fermentando a multi eminterdisciplinaridade, numa perspectiva transversal. Pretende,então, dialetizar a variedade do conhecimento, talvez encon-trando indícios de continuidade na fragmentação, de unidadena diferença.

O Encontro Humanístico objetiva mostrar, na prática, queo que emerge do processo transforma o próprio processo,resgatando a complexidade irredutível e enxergando, na alea-toriedade do caos aparente, a ordem implícita.

Estudantes, pesquisadores e professores têm encontra-do nesse evento anual uma oportunidade singular para trocarexperiências. A publicação deste livro com os textos das me-sas-redondas, apresentadas no encontro, se insere nessa pers-pectiva.

A Comissão Organizadora

Sumário

A LINGUAGEM E A REFLEXÃO INTERDISCIPLINAR....13Letícia Marcondes Rezende

ESCRAVIDÃO E POLICIAMENTO NO MARANHÃO EMMEADOS DO SÉCULO XIX..............................................21Regina Helena Martins de Faria

AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO NA IMPRENSAJORNALISTICA DO MARANHÃO NA DÉCADA DE1880...............................................................................31Josenildo de Jesus Pereira

A CONSTRUÇÃO DO PODER NA “REVOLUÇÃO” DE AVIS(1383-1385).................................................................41Adriana Maria de Souza Zierer

ALGUNS VALORES QUE PERMANECEM: a idade média eos dias atuais.............................................................51Neila Matias de Souza

TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO............59Veraluce Lima dos Santos

O TRABALHO SOB O SIGNO DO DESENVOLVIMENTOHUMANO........................................................................71Ilza Galvão Cutrim

REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE SÃO LÚIS:além da retórica municipalista, o que serve comoentrave para sua “efetivação”?....................................79Eduardo Celestino Cordeiro; Juarez Soares Diniz

PROJETO UFMA SÃO LUÍS 400 ANOS..........................89Alexandre Fernandes Corrêa

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PALAVRA-MONUMENTO: a expressão da finitude napoesia de Hölderlin........................................................99Ellen Caroline Vieira de Paiva

DANÇA-TEATRO: uma tendência artísticatransformadora................................................................107Leônidas da Souza Santos Portela

AUTISMO: uma discussão sobre conceito, classificaçãoe educação inclusiva................................................113Manoel William Ferreira Gomes

IMITAÇÃO E IMAGINAÇÃO ‘DA MIMESIS ÀS PAIXÕES’:a ilusão do reflexo para Rousseau..............................121Luciano da Silva Façanha

TELEOLOGIA E HISTÓRIA EM KANT: da Crítica do Juízoà Idéia de uma História Universal...............................133Zilmara de Jesus Viana de Carvalho

PARA ALÉM DA PRESERVAÇÃO DA VIDA: a vontadede poder....................................................................143Ellen Caroline Vieira de Paiva

A PRÁTICA COMO CENÁRIO DA APRENDIZAGEM.....151Arão Paranaguá de Santana

O PROJETO “O EXTENSIONISTA” E A PREPARAÇÃODE PROFESSORES DE TEATRO...................................157Célida Braga

A NOSTALGIA PÓS-MODERNA: o Complexo de Dédaloem perspectiva...........................................................167Alexandre Fernandes Corrêa

O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E AS AÇÕESAFIRMATIVAS. Cotas de negros para a universidade:a “quem” e a “que” se destinam?..............................177Cícero H. Batista Lobo; Sérgio Costa; Juarez S. Diniz

UM OLHAR SOBRE MOÇAMBIQUE: a percepção dapaisagem na literatura africana. O romanceTerra sonâmbula, de Mia Couto..................................189Márcia Manir Miguel Feitosa

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O ROMANCE UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASACHAMADA TERRA, DE MIA COUTO............................195Juliana Morais Belo

CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA MÉDICA E DAGEOGRAFIA DA SAÚDE...............................................201João Batista Pacheco

O ESPAÇO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE DEEVENTOS DA SÁUDE: sazonalidade climáticae doenças tropicais.....................................................213Ronaldo Rodrigues Araújo

A EXALTAÇÃO DA FESTA PÚBLICA E A RECUSA DAREPRESENTAÇÃO........................................................219Edilene Pereira Boaes

O DESABROCHAR DA SOCIEDADE NALIBERDADE..................................................................227Karliane Fontinele

A NOVA HELOÍSA: espelho da filosofia rousseaunianano século das luzes......................................................233Maria de Jesus Gonçalves Dominici

CONFLUÊNCIAS ENTRE O EMÍLIO E OREI-FILÓSOFO............................................................237Maria do Socorro Gonçalves da Costa

TEMA ECOLÓGICO PARA LOUIS VUITTON:uma análise semiótica das categorias semânticascultura e natureza.....................................................243Maria da Graça P. G. Corrêa; Marize B. R. Aranha; LuísRodolfo C. Sales

O DOM DE GOVERNAR: São Luís e a idéia de justiçanos Livros da Camara (século XVII)..........................249Alírio Cardozo

AS CAPITÂNIAS PRIVADAS NO ESTADO DOMARANHÃO E PARÁ DURANTE OS SÉCULOSXVII E XVIII..............................................................257Rafael Chambouleyron

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A LINGUAGEM E A REFLEXÃOINTERDISCIPLINAR*

Letícia Marcondes Rezende**

Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a organização doconhecimento dentro da universidade e a sua relação com a sociedade.Mostra que uma das características fundamentais das ciências humanas,que é a dificuldade que elas apresentam para mensurar os seus resultadose produtos, é, ao mesmo tempo, o seu fracasso e a sua vitória. Essa mesmainvisibilidade as protege porque é apenas visível para olhares profundos enão superficiais.Palavras-chave: Método. Conteúdo. Diálogo. Saber. Sabedoria. Identidade.Autonomia.

Abstract: This paper brings a reflection on knowledge organization insidethe university and its relation to society. It stresses that one of thefundamental characteristics of human sciences, which is the difficulty theypresent to measure their results and products, is, at the same time, theirfailure and their victory. This invisibility itself protects them because it isonly visible to profound and not superficial approaches.Keywords: Method. Contents. Dialogue. Knowledge. Wisdom. Identity.Autonomy.

* Conferência proferida durante VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleode Humanidades - CCH/UFMA, no dia 19 de novembro de 2007**Professora da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara. Email:[email protected].

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O artigo detalha aquilo que entendo pelos dois termos do título efaz articulações possíveis entre linguagem e interdisciplinaridade. Há umuso abusivo do termo interdisciplinar atualmente e um equívoco comtermos próximos, tais como transdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar,etc. Na realidade, eles pouco importam mas importa o modo como osinvestimos de significados e como explicamos e distinguimos tipos deatividades, de práticas, de atitudes, que revelam compreensões dife-rentes dos termos em questão e, portanto, revelam compreensões dife-rentes do conhecimento e de sua organização. Esses termos aparecemcom mais freqüência em épocas de transformação e mudançasinstitucionais. Essas mudanças podem ser impulsionadas internamente,quer dizer, pelo próprio amadurecimento de uma área de conhecimentoque se autocritica e se esgota como organização estabelecida de umcerto modo, ou externamente e, nesse caso, impulsionadas por deman-das econômicas, demográficas, sociais, políticas, etc. Penso que tam-bém seja difícil separar as pressões internas das externas, pois devemesmo sempre haver interação e diálogo entre as partes interessadasno conhecimento, nos processos formativos, e as pessoas não podemestar isoladas em uma sociedade.

Esse espírito de diálogo vai predominar neste texto. Mas o con-ceito de diálogo, aqui defendido, distancia-se de consenso, de meiotermo, de caridade cristã e de harmonia, conceitos com os quais sem-pre ele é identificado (ou mesmo confundido) e vai na direção do confli-to, do desequilíbrio, das tensões, que são necessários para que umaordem de organização superior seja alcançada quando as tensões forempara além da adaptação e novamente assimiladas e equilibradas. Por-tanto, as tensões entre o poder do Estado, organizações sociais epolíticas, demandas econômicas e financeiras precisam dialogar com osprofessores e pesquisadores que estudam, organizam, criticam e ques-tionam um tipo de conhecimento ou um modo específico de organizaçãodo conhecimento. É claro, também, que vão existir mesmo entre profes-sores e pesquisadores aqueles que não fazem a interpretação necessá-ria e profunda ao renascimento de uma nova ordem e são essas própriaspersonagens internas que colaboram com as externas e as primeiras adefender as mudanças externas dentro da universidade. De não-mutantessão os mutantes por excelência, sempre à espera do momento de cum-prir o dever, de colocar uma lei e um decreto em prática, de se adequarà legislação vigente.

Não podemos esquecer também que — além daqueles que seprovocam e se auto-organizam porque em algum dia de suas vidas umraio diabólico ou uma fagulha divina os tirou de um adormecimento e oscolocou diante de Deus ou, quem sabe, do diabo; e daqueles que cum-prem o dever se aplicando o máximo possível em deixar cursos, progra-mas, currículos e disciplinas como querem o poder instituído e o Estado— há aqueles para os quais não importa para qual lado vão a universida-de e o conhecimento: são todos os lados iguais. Na maioria dos casos,estes últimos, de fato, têm razão, e há uma inteligência protetora nesse

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acomodamento e nessa economia de energia, que sustenta um raciocí-nio simples e verificável na prática: a mudança é a mudança do mesmo.Os três comportamentos são visões possíveis dentro do universo quedeve ser a universidade: o acomodamento, a mudança para o diferentee a mudança para o mesmo.

É compreensível que as coisas aconteçam desse modo. Aquelesque se constroem cotidianamente não sentem a necessidade da mu-dança externa e institucional. Os dois lados, poder instituído externo epersonagens internos à universidade, professores e pesquisadores, pre-cisam ter autonomia e identidade. E quando se tem autonomia e identi-dade, o diálogo significa perdas e ganhos para todos os lados e nãoconsenso e harmonia. Por exemplo, atualmente vemos uma imposiçãodo Estado na universidade e uma única concepção de universidadepreponderar: a universidade que gera produtos visíveis e mensuráveis ese esquecem de que muitos desses produtos visíveis, mesmo perten-centes à ciência e à tecnologia hoje existentes, eram invisíveis e foramalcançados por meios sofisticados e por protocolos experimentais devisibilidade em laboratórios com lentes potentes, que transformaram oinvisível em visível. Por exemplo, um dos desafios das ciências humanasé a questão da visibilidade e da mensurabilidade. E talvez a caracterís-tica primeira das ciências humanas seja essa sua proximidade com oinvisível e com a divindade e a expectativa de que a unidade de medidapara as ciências humanas nunca será encontrada.

O que acontece com a organização do conhecimento, das disci-plinas, dos cursos e currículos não é diálogo, e sempre uma das partesenvolvidas não tem identidade e autonomia. Essa parte da universidadesem identidade e autonomia é a parte mais forte ou a mais frágil? É clarotambém que a resposta a essa pergunta vai depender de pontos devista. Isso é lamentável para o desenvolvimento de um país e de umasociedade conscientes da importância do conhecimento na sua organiza-ção. Começa a ficar claro por que os termos tais como interdisciplinar,multidisciplinar, pluridisciplinar, trandisciplinar aparecem de modo mais in-tenso em tempos de mudança. Para responder a essa questão, bastaatentar para o termo “disciplina”, que, segundo o dicionário Aurélio, signi-fica, “como termo geral, regime de ordem imposta ou livremente consentida,observância de preceitos e normas e, de modo específico, significa con-junto de conhecimentos para cada cadeira de um estabelecimento deensino ou simplesmente matéria de ensino”. Mas a matéria de ensinodepende, para existir como tal, de uma organização do conhecimento e,portanto, inclui também a moldura, a forma, o contorno, que possibilita-ram a organização de um conteúdo de um certo modo. Se começamos aquestionar o porquê de uma disciplina, ou de uma organização de umconteúdo estarem como estão ou serem ensinados como são ensinados,ou serem pesquisados como são pesquisados, começamos a perceberque há, em tomo do conteúdo, um contorno que o aprisiona de um certomodo; há uma história do modo como o conteúdo se organizou com opassar dos tempos; há personagens (indivíduos com historicidade, quer

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dizer em carne e osso) que podemos apontar como responsáveis por essecontorno; há momentos históricos e condições contextuais que podemosremontar e apontar como sendo o momento que deu forma ao conteúdode um certo modo. Ou, ao contrário, não conseguimos facilmente recu-perar essas autorias, não porque não existiram mas porque se perderamao longo da história. Como diz o Prof. Carlos Franchi (1991) a respeito doensino de línguas: trata-se de um baú de guardados. Cada um saberáencontrar na especificidade que domina essas personagens e esses mo-mentos históricos. Eu saberia dizer isso para o conteúdo de línguas,lingüística, ensino de línguas materna e estrangeiras que são os domínioscom os quais eu tenho uma familiaridade.

Os pares forma e conteúdo ou método e conteúdo são importan-tes para a argumentação que estamos desenvolvendo neste texto.Toda disciplina existe como disciplina porque tem um método ou umaforma que a sustentam, que a configuram de um tal modo. Precisamoster consciência ou conhecimento explícito (que é a mesma coisa) deque essa forma se configurou desse modo historicamente,contextualmente, e consciência sobretudo (e isso é importante) de queisso não está pronto, nunca esteve, e nunca estará: está, ao contrário,em constante reorganização e, isso, cotidianamente. O conteúdo é umsuporte para atividade do sujeito, assim como é um texto para a leiturade cada leitor específico, que, com a sua experiência de vida e deleitura, produzirá como resultado um texto diferente do outro. Cada ator(professor ou pesquisador) que investe criativamente, que age sobre umconteúdo e que ensina para outros atores com idades e contextos soci-ais diversificados, percebe a reorganização e o movimento do conteúdo;percebe frestas, fronteiras, pontos obscuros, abismos, novos caminhosde reorganização do conteúdo que ensina ou pesquisa Nesse momentode perspicácia e discriminação do potencial de organização ou de cami-nhos de um conteúdo desvendados pela própria prática, pela própriaação, o ator (professor ou pesquisador) percebe a beirada que brilha ecintila como uma estrela e que não pertence ao conteúdo: trata-se desua própria imaginação, de seu espírito criativo, de sua reflexão. É o seuser em ação que se manifesta. Percebe também que essa clarividência sóaconteceu por meio de uma prática de ensino ou uma prática de pesquisade um conteúdo específico (e para nós, nesse ponto, ensino e pesquisanão se diferenciam); percebe que é o seu domínio do conteúdo ou deuma especificidade, ou, ainda, de uma matéria que lhe oferece resistên-cia, dramas pessoais de ensino e de aprendizado e que lhe permite, pormeio de processos cognitivos de base, tais como discriminação, compa-ração, avaliação, reversibilidade, etc. atingir essa clarividência, esse es-pírito que brilha e cintila. Isso jamais se revelaria sem um conteúdo. É aplasticidade que se pode efetuar sobre um conteúdo, é o movimento dapercepção de um mesmo conteúdo sob vários ângulos que permite per-ceber o vazio. Quer dizer, trata-se de um vazio que é pleno, ou que não éunidirecional mas multidirecional. Trata-se não ver as partes separadasdo todo que as constitui. É um vazio que existe porque tem a matéria que

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lhe dá contorno (vejam que aqui invertemos o que falamos acima, masessa inversão se completa com o raciocínio já feito): do mesmo modo queo método ou a forma dá contorno à matéria, é a matéria que permite darcontorno ao vazio ou à forma ou ao método que jamais se revelariam novazio que é vazio. Embora essa cintilância seja um vazio, uma forma, éum vazio-pleno que dependeu do conteúdo e da prática do sujeito que ointerpreta e o vivencia (professor, aluno, pesquisador, leitor, etc). Essaenergia da criatividade e da descoberta, como conseqüência da ativida-de prática e do diálogo, não é acumulada em nenhum lugar e em nenhumlivro: é perdida no cotidiano das escolas e dos laboratórios. Da pesquisaaté temos resultados mas também não temos nunca os registros doscaminhos e descaminhos. Até porque sempre escrevemos livros e com-pêndios sobre os saberes acumulados e estáticos e jamais sobre a sabe-doria ou sobre a dinâmica dos valores ou significados de um conteúdo oudos conteúdos para tempo, espaços e sujeitos diversificados. Nuncacolocamos no papel a energia e o investimento gastos para descobrir umoutro caminho, por exemplo, na transmissão de um conhecimento paraum aprendiz, quando ele apresenta alguma dificuldade de compreensão,ou o momento de encruzilhada de caminhos no trabalho de pesquisa,que, muitas vezes, como conseqüência também de pressões externaspara a produção da pesquisa em uma certa direção, não exista. Nessesmomentos de decisão e opção, cresce, com tal esforço, muitas vezes, oprofessor e o aluno, mas a disciplina fica incólume, sem se alterar. Napesquisa também, cresce o pesquisador, às vezes a própria pesquisaevolui para outros caminhos, às vezes evolui apenas linearmente. Provade que não temos esses alicerces, essas forças acumuladas no conteúdodas disciplinas e dos saberes é o fato de que eles estão constantementesendo alvos de forças externas (autoridade, Estado, etc) para que mu-dem, ganhem novos rótulos e novas configurações. Embora com toda aprática de ensino e de pesquisa existentes, se separamos do resultadodessa prática (que existe muito mais para a pesquisa do que para oensino) o próprio investimento e criatividade, em três gerações (aqueleque ensina hoje porque aprendeu com um professor há 20 anos queaprendeu com um outro há 20 anos antes) teremos três gerações e umséculo de conteúdos incólumes, quer dizer estaremos falando no final deum século a mesma coisa que se disse no início do século.

Se isto é assim, se sempre foi assim e se vai continuar sendoassim, melhor que todos nos conscientizemos disso (de que há pessoase forças que sustentam as mudanças e que tomemos as rédeas desseprocesso e deixemos as nossas marcas nesses saberes investidos).Porque a questão que fica é: Por que alguns podem forçar a mudançaem uma direção e outros não? Será que aqueles que realmente forçam amudança cotidiana e invisível se alimentam com isso? são auto-sufici-entes? se bastam? Por que exatamente quem vivencia o ensino oupesquisa de um conteúdo não são eles os protagonistas desse amadu-recimento e mudança? Por que há uma assimetria muito grande entre osgrupos? Nunca vemos um grupo de professores ou de pesquisadores na

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origem desse processo, mas quase sempre a universidade é a receptoradessas mudanças e reestruturações. É claro, como já dissemos acima,o Estado e o poder constituído precisam de colaboradores internos semos quais nenhuma mudança seria proposta. As reestruturações curriculareschegam à universidade por leis e decretos e os membros da academiassão quase sempre solicitados a participar de um diálogo no qual ascoisas já estão predeterminadas. Onde fica a conclamada autonomia dauniversidade, ou pelo menos de uma parte dela? O que é feito com aoutra parte da universidade que aposta em uma condução diferente doconhecimento e dos saberes?

Interdisciplinaridade hoje é ser polivalente (pluridisciplinar?multidisciplinar?) saber de tudo e de nada, não ter aprofundamentoalgum, ter informações gerais e não universais; não ter domínio deespecificidade alguma, não estar no ápice e ao mesmo tempo na fron-teira de um conhecimento. Chegar ao ápice de uma especificidade e,portanto, aos seus fundamentos filosóficos, que serão compartilhadoscom especialistas de outras especificidades, fica reservado para a for-mação da elite e para os países do primeiro mundo; interdisciplinaridade,hoje no Brasil, é ser flexível; é ser adaptável às regras do mercado, épertencer a um grupo de profissionais de segunda ou terceira categori-as que vai ser jogado para o lado que for conveniente ser jogado, semresistência (assim como é a forma sem a matéria e sem sujeitos; eassim como é o conteúdo sem a forma e sem os sujeitos): amorfo,maleável, sem princípios, sem fundamentos, sem resistência e que cum-pre o que o poder de decisão central, muitas vezes que não pertencenem ao nosso país, quer que cumpra; ser interdisciplinar é se anular emdireção a um todo (a globalização) do qual individualmente não fazemosparte e do qual muitos já foram excluídos e marginalizados. Não se tratada conquista do universal. A articulação do todo com a parte, do uni-versal com o particular que pertence à uma tradição humanística daqual todos fazem parte com ser humanos se perde e se desfaz e ésubstituída por conceitos coletivos como globalização que não conse-guem integrar o ser humano na totalidade da humanidade: é um todoque não contém a parte. É bem verdade que a tradição humanísticaclássica se desvirtuou em um elitismo ou em um eruditismo e se distan-ciou também do homem comum, do homem cotidiano e também nãoconsegue responder mais aos desafios de formação. Como exemplosdesses posicionamentos instrumentais, podemos conferir a retirada, dagrade curricular das universidades, das licenciaturas em línguas clássi-cas e das línguas estrangeiras, que não existem na escola básica, e apermanência do inglês e a entrada do espanhol. É muito engraçado echega a ser até cômico o argumento de que tais e tais línguas nãoprecisam ter licenciaturas porque elas não mais existem na escola bási-ca. Quem as retirou da escola básica e há apenas algumas décadas?Não foram os mesmos protagonistas, ou a mesma ideologia, que depoisde um intervalo dado para que a memória se apague dão continuidade atais mudanças. Só estavam preparando o terreno para poder elaborar

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agora essa argumentação sobre o já destruído. Aguardem o próximocapítulo e as próximas décadas. Trata-se de uma questão de tempopara se argumentar de que não precisa existir também o bachareladopara tais línguas; que elas não têm utilidade, não servem para nada.Mas quem define o critério de utilidade e de serventia? A partir de qualângulo se fazem essas análises para dizer o que deve ficar e o que deveser retirado? Os critérios são externos. Mas é também (e agora interna-mente) a ausência de alicerces novamente profundos, de reflexãointerdisciplinar por exemplo, em relação ao ensino de línguas em geral eao ensino em particular da língua materna e das línguas estrangeirasque facilitam (porque débeis e insuficientes) esses verdadeiros roubosem nossa formação.

A reflexão interdisciplinar é uma metacognição; é a consciênciado ato de pensar. Ela acontece quando se suspende, em ato, o pensar efocamos a beirada que cintila como uma estrela; quando pensamos opensar; quando se percebem os vasos comunicantes, o diálogo entreconteúdos construídos e estruturados. A interdisciplinaridade é um es-forço para se perceber uma atividade estruturante que sustenta o co-nhecimento organizado, o transforma mas que é também a sua gênese.E não seria isso a linguagem?

A linguagem não é uma propriedade específica das línguas natu-rais. Ela é uma atividade de construir representação, estabelecerreferenciação e regulação ou equilibração. Portanto, a linguagem é umdiálogo. Ela é, ao mesmo tempo, psicológica e ligada à construção daidentidade e sociológica, levando em consideração a alteridade. A maiorparte de nossa atividade de linguagem é interna e invisível. Trata-se deuma atividade metalingüística inconsciente (atividade epilingüística). Alinguagem é um processo de medida. Estamos o tempo todo medindo adistância ou a proximidade de significados diferentes mas próximos, querdizer, parentes. Avaliamos, comparamos, vemos o que é igual e o que édiferente. Em resumo: discriminamos o tempo todo. O estilo, a sutilezaconstituem, nessa reflexão, fundamento. Na concepção de linguagemaqui defendida, todos os enunciados de uma língua são ambíguos e alinguagem — e, conseqüentemente, as línguas — não são instrumentosde comunicação, não passam mensagem alguma, nem há codificação edecodificação. A linguagem é um trabalho de investimento de significa-dos feito pelos sujeitos sobre sistemas de expressão, no nosso caso,sobre sistemas de expressão verbal (textos orais ou escritos), e a co-municação (quando existe) é o resultado de tal trabalho.

Sempre quando propomos a indeterminação da linguagem, cons-truímos um lugar especial para o trabalho do sujeito. Nesse caso, alinguagem é um mecanismo de equilibração que existe em todo ser vivoe que ganhou no ser humano uma sofisticação. Procurar a linguagem,definida desse modo, quer dizer, interdisciplinarmente, é um desafiopara gramáticos e lingüistas, que têm por tradição descrever línguas enão estão habituados às reflexões filosóficas ou interdisciplinares. En-contrar as propriedades da linguagem como uma atividade de represen-

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tação, definida interdisciplinarmente nas marcas e nos arranjos das lín-guas, é também um desafio por outro lado, para psicólogos, filósofos,lógicos, sociólogos, antropólogos que sempre estudaram a linguagem,como propriedade universal do ser humano de construir representação eassimilaram-na, ao longo do tempo, à reflexão, ao juízo, ao pensamen-to, etc, mas nunca descreveram línguas e nem se ativeram às marcas eaos arranjos léxico-gramaticiais das línguas.

Vemos, com essa pequena introdução ao conceito de linguagemque a nossa formação — no caso a que eu conheço melhor — deprofessores de línguas materna e estrangeiras, ou de estudiosos delingüística (mas penso que posso e devo, e é também o objetivo destemeu texto, generalizar tal reflexão aos outros conteúdos também: ma-temática, história, química, etc) é polarizada e pendular: ora língua semlinguagem , ora linguagem sem língua. Trata-se de uma formação frag-mentada e não integradora. Como causa dessa polarização no ensino eaprendizado de um conteúdo específico, no nosso caso, de línguas,temos as polarizações maiores: teoria e prática, forma ou método econteúdo, abismos entre os graus de ensino e não solução de continui-dade entre os diferentes níveis de ensino e a conseqüente hierarquizaçãoda mão-de-obra que trabalha com o conhecimento: professores e oensino de um lado e pesquisadores e pesquisa, de outro. A grande eprimeira polarização, geradora das outras aqui já mencionadas, é a queexiste entre o conhecimento e o poder ou entre o conhecimento e asociedade organizada de um certo modo, por exemplo, as hierarquiasexistentes entre mão-de-obra especializada ou não. É necessária umamudança de visão de mundo para que a reflexão interdisciplinar aconte-ça. A insistência na existência dos vasos comunicantes entre as polari-zações permitirá uma educação crítica, formadora e integradora.

Penso que essa situação é quase insolúvel e continuará por muitotempo, porque, quando se fazem novas mudanças, exatamente aquiloque é invisível e que contribui negativamente para a avaliação dasciências humanas, para a não-obtenção de recursos, de honras, deméritos e de privilégios mostra o seu lado positivo: é fugidio, a suacaptura é muito difícil e não se faz visível para mudanças superficiais.Essa é a vitória da invisibilidade e, apesar de tudo e de todos e de todasas mudanças com intuitos bons ou maus ou mais ou menos, a dimensãohumana do conhecimento renasce e está sempre disponível para olha-res sérios e profundos. Essa é a nossa esperança para as ciênciashumanas.

Referências:

FRANCHI, Carlos. Criatividade e Gramática. CENP-Secretaria de Estadoda Educação São Paulo, 1991.

Letícia Marcondes Rezende

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ESCRAVIDÃO E POLICIAMENTONO MARANHÃO EM MEADOS DO

SÉCULO XIX*

Regina Helena Martins de Faria**

Resumo: Este estudo aborda a constituição de aparatos de policiamentono Maranhão provincial, destinados, principalmente, à captura de escravosfugidos e à destruição de quilombos. Destaca a importância dos escravosna composição da população da província e as formas de resistênciaconsideradas mais perigosas: as fugas e os quilombos. Apóia-se nalegislação para apresentar a estrutura de funcionamento dos mencionadosaparatos.Palavras-chave: Maranhão Provincial. Policiamento. Escravidão. Quilombos.

*Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa redonda “Controle social e resistência escrava na crise do escravismono Maranhão”. Baseia-se em e chega a reproduzir fragmentos do texto de minhatese de doutorado (FARIA, 2007).**

**Professora do Departamento de História da UFMA, doutora em História pelaUFPE, coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas de Segurança e de Trabalho.Maranhão, séculos XIX e XX. E-mail: [email protected]

Abstract: This study broaches the policing apparatuses constitution inMaranhão provincial, destined, mostly, to the capture of fugitive slavesand to the maroon destruction. It highlights slaves’ importance in thecomposition of the province population and the resistance forms consideredmore dangerous: the escapes and the maroons. It supports in thelegislation to present the functioning structure of the mentionedapparatuses.Keywords: Maranhão Provincial. Policing. Slavery. Maroons.

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1. INTRODUÇÃO

A recente historiografia sobre a escravidão superou a dicotomiaque durante tanto tempo definiu a imagem dos africanos e seus des-cendentes, escravizados no Brasil, vistos ora como líderes guerreiroschefiando quilombos, ameaçando a vida e a tranqüilidade dos senhorese a segurança do Estado, ora como cativos submissos que aceitavampacificamente sua (má) sorte1. A bandeira da superação é empunhadaemblematicamente por Eduardo Silva (1989), ao anunciar num artigoque entre Zumbi e Pai João havia o escravo que negociava, construin-do espaços de liberdade na escravidão.

Assim, parodiando João José Reis e Flávio dos Santos Gomes(1996, p.9), pode-se afirmar que “onde houve escravidão houve resis-tência”: quer aquela cotidiana das pequenas negociações do dia-a-dia, quer aquela estremada, da fuga, da formação do quilombo, dainsurreição, do suicídio ou da agressão física que chegava, às vezes,ao assassinato. Os corriqueiros atos de resistência eram administradospela justiça privada dos senhores ou de seus prepostos nas fazendase nos casarões das vilas e cidades. Os estremados requeriam a parti-cipação do aparato repressor estatal, especialmente quando se trata-va das fugas e dos quilombos, que recebiam atenção especial.

As fugas, como não eram consideradas atos criminosos, nãotinham penalidades previstas para os fugitivos na legislação portugue-sa ou na brasileira, sendo incriminado apenas quem dava guarida aoescravo fugido. No início da colonização, portanto, a captura dessesfugitivos podia ser realizada por qualquer pessoa que os encontrasse.No decorrer do século XVII, câmaras municipais legislaram a respeito,criando a profissão de apresador de escravos fugidos, que se popula-rizou com o nome de capitão-do-mato, embora tenha recebido outrasdenominações. A vinculação de tais profissionais ao Estado ficavaapenas na autorização que precisavam obter do poder municipal parapoderem exercer seu ofício, pois eram remunerados diretamente pelossenhores dos escravos que capturavam2.

No caso dos quilombos, a responsabilidade do Estado era maior.Quando os capitães-do-mato encontravam ajuntamentos de escravosfugidos, que não conseguiam debelar com seus auxiliares, o aparatomilitar estatal costumava ser requisitado pelas autoridades locais. Nostempos coloniais, duas organizações armadas podiam ser destacadaspara essas ações: as tropas regulares ou de primeira linha, profissio-nais, embrião do futuro Exército; e as tropas auxiliares, em especial asMilícias, porque as Ordenanças3 não podiam atuar fora das localidadesonde eram constituídas. No Brasil Império, essas tropas milicianas co-loniais foram extintas, tendo sido criada a Guarda Nacional ou MilíciaCidadã, que também podia ser convocada para o combate aos quilombos,enquanto as tropas do Exército eram gradativamente afastadas des-sas funções, devido as províncias passarem a ter seus próprios corpos

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de policiamento militar, inclusive alguns voltados para a captura dosescravos fugidos e o combate aos quilombos (FARIA, 2007). Descreversucintamente a constituição destes aparatos policiais é o principalobjetivo deste artigo.

2. RESISTÊNCIA ESCRAVA NO MARANHÃOPROVINCIAL

Quando o Maranhão se integrou ao Estado nacional, em 1823, erauma das províncias com maior percentual de escravos negros em suapopulação, se não fosse mesmo a maior. O aumento na importação detrabalhadores africanos escravizados, na segunda metade do século XVIIIe na primeira do século XIX, para atender a expansão da grande lavourade algodão e arroz, havia mudado seu perfil demográfico, antes, acentu-adamente marcado pela presença do indígena, escravizado ou não. Umcenso populacional realizado por volta de 1820 identificara que 53,3%dos seus 152.892 habitantes eram escravos (LAGO, 2001). Em meadosdo século XIX, a situação não estava muito diferente, pois 51,6% das217.054 pessoas que ali viviam ainda estavam submetidas ao jugo daescravidão, conforme recenseamento de 1841 (MIRANDA, 1841).

Os cativos concentravam-se na parte norte do lado oriental daprovíncia, considerando que a colonização agrícola se expandia dolitoral para o interior e da fronteira do Piauí para o centro do Maranhão.Mas eram numerosos também nas fazendas que vicejavam nas baixasterras em volta do Golfão Maranhense, a chamada Baixada Maranhense,e na faixa litorânea do lado ocidental.

Escrevendo no final do decênio de 1810, o capitão Francisco dePaula Ribeiro (2002, p. 108), militar português em serviço no sul doMaranhão, estimava que, na parte setentrional da província, aproporcionalidade era de seis a sete escravos(as) para cada habitantelivre ou liberto. Na parte meridional, a situação era inversa: de quatroa cinco livres ou libertos(as) para cada pessoa reduzida à escravidão.

Em tais circunstâncias, as fugas eram freqüentes e os quilombosnumerosos. As densas florestas tropicais e os rios perenes tornavampossível a sobrevivência nas matas. Desse modo, tem-se notícia dequilombos no Maranhão desde os primeiros anos do século XVIII. Mas foina centúria seguinte que se multiplicaram, de tal forma, que o historiadorMatthias Assunção (1996, p. 436) julga terem se tornado um “fenômenoendêmico”. Pontilhavam por toda a parte setentrional da província. Le-vantamento documental realizado por Maria Raimunda Araújo (2001)4 osidentifica em terras de Alcântara, Guimarães, Pinheiro, Viana, Santa He-lena, Carutapera, Icatu, Iguará, Brejo, Tutóia, Rosário, Itapecuru e SãoGonzaga, sendo a região de Turiaçu/Gurupi, na fronteira com o Pará, a de

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maior ocorrência e onde resistiram por mais tempo. Eram verdadeirashidras, na inspirada imagem cunhada por Flávio Gomes (2005), que, bati-das em um lugar, ressurgiam em outro, nas pantanosas matas da Amazô-nia maranhense. Quanto ao Maranhão oriental, um inventário feito peloProjeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos DireitosHumanos só encontrou ali um caso de quilombo, depois de 1845 (apudASSUNÇÃO, 1996, p. 459). O avanço da colonização dessa região iaconstituindo núcleos populacionais e novos municípios se formavam comsua estrutura burocrática, símbolo do avanço do processo civilizador. Aregião do Turiaçu/Gurupi, por se manter pouco devassada, até as últimasdécadas da escravidão continuou como reduto de comunidades quilombolas.

Debelar essas comunidades de fugidos era uma preocupação cons-tante dos governantes e da classe senhorial, porque as fugas e osquilombos eram as formas de resistência escrava consideradas as maisperigosas à ordem escravista. No entendimento de Clovis Moura (2003,p. 103, grifos do autor), “o negro fugido era o rebelde solitário queescapara do cativeiro”. Nesta condição estava no primeiro estágio daconsciência rebelde de protesto contra a escravidão. O segundo está-gio era alcançado quando esse sentimento era socializado e o rebeldesolitário se juntava a outros para a formação de um quilombo, “entidaderadical” de negação ao escravismo. Em sua análise, o quilombo e asociedade escravista tinham estruturas antagônicas, expressas nas se-guintes contradições: no primeiro, “homem livre, terra livre confiscada,trabalho comunal livre, coletivismo agrário, forças armadas de defesa, efamília alternativa livre”; na segunda, “escravo, latifúndio escravista,trabalho compulsório, produção para o senhor, forças armadas de re-pressão, família reprodutora de escravos” ( MOURA, 2003, p. 108).

Face ao exposto, compreende-se que o governo da Província doMaranhão tenha criado aparatos de policiamento direcionados ao com-bate das comunidades quilombolas e à repressão às fugas.

3. O POLICIAMENTO ESCRAVAGISTA

A reforma constitucional de 1834 transformou os Conselhos Pro-vinciais em Assembléias Legislativas, concedendo-lhes o direito de deli-berar sobre diversas questões, entre as quais estava a definição daforça pública provincial. No exercício desta nova atribuição, o PoderLegislativo da Província do Maranhão autorizou a constituição de cor-pos policiais, alguns direcionados às zonas rurais, priorizando a luta àresistência escrava.

a) Os Corpos de Polícia RuralA primeira matéria aprovada pela recém-constituída Assembléia

Legislativa da Província do Maranhão, em relação à força pública, foi acriação de um Corpo de Polícia Rural em cada distrito de paz5 daprovíncia, exceto nos da capital (MARANHÃO, Lei n. 5, de 23 de abril

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de 1835. CLP). Em São Luís, a capital, havia então Corpos da GuardaMunicipal Permanente com soldados profissionais e aquartelados, oque explica a mencionada exclusão.

Os Corpos de Polícia Rural (CPRs) seriam tropas pequenas, detrês a dez soldados com um comandante, dependendo do tamanho dapopulação, da extensão e das necessidades do distrito. Seus compo-nentes tinham direito a um vencimento mensal, armamento e muniçãopagos pelo governo provincial. Embora devessem atender às solicita-ções das autoridades judiciais nomeadas pelo Governo (juízes de direi-to e juízes municipais), estavam diretamente vinculados aos juízes depaz, magistrados eletivos que serviam ao Estado de forma litúrgica6 eque eram, à época, as maiores autoridades policiais em âmbito local,com poderes para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, se-gundo terminologia jurídica atual.

Sintomaticamente, a destruição de quilombos e as providênciaspara que não se formassem eram atribuições dos juízes de paz. Oengajamento dos soldados rurais nessas ações era explicitada na leide criação dos CPRs, que estipulou as gratificações que eles deviamreceber dos senhores dos escravos fugidos que prendessem. Seguindoo que era praticado pelos capitães-do-mato, ficaram estabelecidostrês níveis de gratificação para tal serviço, de acordo com o grau dedificuldade da captura: dois mil réis para os apresamentos realizadosno próprio povoado; cinco mil se ocorressem fora dele; e dez mil quan-do se dessem em quilombos. Neste último caso, as gratificações eramdivididas igualmente entre o comandante e os soldados que houves-sem participado da expedição.

Ainda não foram identificadas as localidades em que os CPRschegaram a se organizar, no seu curto período de vigência. Em 1838foram declarados extintos, sob a justificativa de que o policiamentomilitar em toda a província devia ficar a cargo do Corpo de Polícia daProvíncia do Maranhão (CPPM), criado em 1836.

b) As Guardas CampestresÉ possível que os praças do CPPM não tenham se desincumbido

a contento das funções de capitães-do-mato porque, em 1839, opresidente da província, Manoel Felizardo de Sousa e Mello (1839, p.28-29), defendia a formação de tropas especiais, aptas a penetrarnas matas e a perseguir através delas “os escravos fugidos efacinorosos”, extinguindo “quilombos e coutos de malfeitores”. Dessemodo, na legislatura de 1840, os deputados provinciais autorizaram aconstituição de Corpos de Guardas Campestres (CGCs), com organi-zação e atribuições praticamente idênticas às dos CPRs (MARANHÃO,Lei n.º 98, de 15 de julho de 1840. CLP).

Atuando nas décadas de 1840 e 1850, as Guardas Campestrespassaram por três momentos: o primeiro, de 1840 a 1843; o segundo,de 1843 a 1847; o terceiro, de 1850 a 1858.

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Quando foram criadas, ficaram vinculadas às prefeituras decomarca, instituições que haviam sido constituídas no Maranhão, des-de 1838, assim como em outras províncias, para substituir os juízes depaz na condição de maior autoridade policial nos distritos. Pouco tem-po depois, a Reforma Judicial de 18417 extinguiu as prefeituras decomarca e criou os cargos de delegados e subdelegados de polícia,que se tornaram verdadeiros “policiais juízes”, pois tinham competên-cia para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, como antes ofizeram os juízes de paz, por quase toda a década de 1830. Todavia,essa Reforma confirmou o combate aos quilombos como competênciado Juizado de Paz, que a manteve enquanto durou a escravidão. AsGuardas Campestres ficaram, então, subordinadas aos juízes eletivos.

A similitude das atribuições dos CGCs com as desempenhadaspelos capitães-do-mato pode ser percebida na forma de assalariamentoque lhes fora determinada por lei: só seriam remunerados pelos cofrespúblicos nos dias em que estivessem “empregados no ataque e destrui-ção de quilombos e coutos de malfeitores”, podendo receber as costu-meiras recompensas prometidas pelos senhores dos escravos fugidos.

No primeiro momento foram organizadas em Itapecuru-Mirim, Viana,Guimarães, Cururupu e Santa Helena, onde havia queixas da existência dequilombos. No segundo momento passaram a se denominar Esquadras deGuardas Campestres (EGCs), vinculadas aos delegados e subdelegados,podendo funcionar também nos distritos da capital. Dessa vez, foram or-ganizadas em freguesias das comarcas da capital (Nossa Senhora da Con-ceição, São Joaquim do Bacanga, Nossa Senhora da Luz do Paço); deAlcântara (São Matias de Alcântara, Santo Antônio e Almas, São Bento,São Vivente Férrer); Itapecuru (Nossa Senhora das Dores do Itapecuru-Mirim, São Sebastião da Manga, Nossa Senhora do Rosário, Santa Maria deIcatu, São José do Preá) e Viana (Nossa Senhora da Conceição de Viana,São Francisco Xavier de Monção, Nossa Senhora de Nazaré do Mearim eno distrito de Anajatuba) (MAGALHÃES, 1844, Mapa 11). Extintas em 1847,um forte argumento utilizado pelo presidente da província para seremreativadas, no ano de 1850, foi a informação de terem os guardas campes-tres capturado 592 fugitivos (569 escravos e 23 desertores) na ilha doMaranhão, nos três anos em que ali aturam (COUTINHO, 1850, p. 7).

Na última fase, mantiveram o perfil que lhes fora imprimido em1843, sendo constituídas desta vez em doze lugares: nas delegaciasda capital e em Guimarães, Alcântara, São Bento, Rosário, Itapecuru-Mirim, Codó, Coroatá, São Luís Gonzaga, Chapadinha e Santa Helena(MACHADO, 1953, p. 9). É importante destacar que os lugares em queforam criadas, em suas três edições, foram justamente aqueles emque havia quilombos, como se pode verificar confrontando-os com oslugares identificados no mencionado levantamento realizado por MariaRaimunda Araújo (2003).

Quando as EGCs foram extintas, em 1858, mais uma vez foialegado que a província deveria redirecionar os recursos para areestruturação do CPPM.

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c) As Esquadras do MatoA segunda desmobilização das Guardas Campestres coincidiu

com a aprovação da Lei Provincial nº. 236, de 20 de agosto de 1847,que determinou a nomeação de capitães-do-mato em todos os termosda província. A vinculação à burocracia estatal desses tradicionaiscaçadores de escravos indica que eram vistos como parte da “forçapública” provincial, competindo ao Poder Executivo estabelecer sobreeles algum mecanismo de controle. Desse modo, foi disposto que cadajuiz de paz indicaria ao governo provincial os nomes das pessoas quejulgasse aptas ao posto, em seu distrito. O presidente da província asnomearia, gratuitamente, e os títulos de nomeação seriam registradosnas respectivas câmaras municipais.

Cada distrito de paz poderia ter até dois capitães-do-mato,cada um com até cinco soldados, escolhidos por eles e nomeados pelojuiz de paz, formando uma pequena força armada, referida na docu-mentação da época como Esquadra do Mato (EM). Os capitães-do-mato vinculavam-se ao juiz de paz, que podia suspendê-los quandonão merecessem mais sua confiança, nomeando outros em caráterinterino, até serem efetivados pelo governo provincial.

A lei que instituiu as EMs não previa salários nem fornecimentode armas e munições aos seus integrantes. Os capitães receberiamprêmios pelos escravos capturados, o dobro dos valores anteriormenteestabelecidos para os guardas campestres: 20.000 réis por cada umaprisionado em quilombo; 10.000 réis “pelo que andar a corso”; e2.000 réis pelo encontrado nas cidades, vilas e povoações, e até umalégua distante das mesmas. Os prêmios e as despesas com alimenta-ção e custódia dos escravos nos “depositários públicos”, enquantonão fossem resgatados por seus senhores, tudo devia ser pago pelosproprietários dos escravos.

Competia aos capitães-do-mato manter uma lista atualizada dosescravos fugidos do distrito onde atuavam, prestando conta de suasações ao juiz de paz, em relatórios semestrais, que deveriam ser envi-ados ao Chefe de Polícia, autoridade maior da província na área desegurança, naquela época.

Porém, tudo indica que não teve sucesso a intenção de atrelar oscapitães-do-mato ao aparato estatal no Maranhão provincial. Nos anossubseqüentes à promulgação da lei que regulamentou a vinculação, osgovernantes informavam que haviam nomeado todos aqueles indicadospelos juízes de paz, mas reclamavam que esses magistrados não envia-vam as listas dos escravos de seus distritos nem informavam sobre aatuação desses caçadores de escravos (COUTINHO, 1850, p. 7). Areestruturação das Guardas Campestres, em 1850, é um indício de quea experiência não fora proveitosa.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a extinção das EGCs, no final da década de 1850, a captu-ra dos escravos fugidos e o combate aos quilombos do Maranhãomanteve-se a cargo dos capitães-do-mato, das tropas regulares pro-vinciais (o CPPM) e das companhias de milicianos da Guarda Nacional(que deviam existir em todos os distritos). No entanto, as forças ex-pedicionárias que eram organizadas para “bater” quilombos tambémpodiam contar com a participação das tropas regulares nacionais: ossoldados do 5º Batalhão de Infantaria e, nos anos de 1850 ao iníciodos de 1860, com as cinco Companhias de Pedestres que existiam naprovíncia. E não se pode esquecer dos chamados paisanos, homenslivres e pobres, civis, não engajados a tropas regulares ou milicianas,que desde os tempos coloniais eram chamados a engrossar as fileirasdas mais diversas ações bélicas: apresamento de índios para o cati-veiro; disputas entre fazendeiros, entre outras.

Todavia, o estudo desta temática está dando apenas seus pri-meiros passos na História do Maranhão. É preciso continuar esquadri-nhando a documentação para se conhecer como atuavam os aparatosde policiamento escravagista aqui apresentados. Afinal, soldados, es-cravos fugidos, quilombolas e capitães-do-mato, todos saíam da grandemassa de “desclassificados”, gerada pelo sistema escravista, que pena-lizava não só os escravos, mas também os livres pobres, preteridos nomundo do trabalho e vistos como “vadios” e “facinorosos”, por não seadequarem à lógica do trabalho compulsório então predominante8.

Notas1 Sobre o debate historiográfico acerca desse dualismo, ver QUEIRÓZ (2000),SCHWARTZ (2001), GOMES (2003)2 Ver LARA (1996).3 Os integrantes das Milícias e das Ordenanças serviam regidos pelo princípio demilícia. Segundo KEEGAN (1995, p. 242), esse princípio “ estabelece o dever deprestar serviço militar para todos os cidadãos aptos do sexo masculino; a falta ourecusa em prestá-lo leva geralmente à perda da cidadania”. Ou seja, todos oshomens eram obrigados a pegar em armas para defender o rei e suas possessõesou a quem o representasse. Em muitas monarquias constitucionais e nos Estadosdemocráticos do século XIX, esse princípio continuou a vigorar, agora em nomeda defesa da vida e das propriedades dos cidadãos.4 Ver também GOMES (2005).5 O art. 2º do Código de Processo Criminal define que um distrito de pazcompreende uma área fixada pela Câmara Municipal, contendo “pelo menos setentae cinco casas habitadas” (BRASIL, Lei de 29 de novembro de 1832. CLI.). Comfreqüência, a área de um distrito correspondia à de uma freguesia.6 O conceito de liturgia é weberiano. Cf. WEBER (1999. v. 2. p. 233-287). Aproprio-me da interpretação que dele fez Fábio Mendes Faria (2004, p. 113), quando diz:“Entendemos por liturgia formas de prestação de serviços administrativos pornotáveis locais com seus próprios recursos, não-remuneradas e voluntárias. Suaprática administrativa caracteriza-se pelo diletantismo, pela mobilização do

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prestígio pessoal, pelo domínio dos processos orais e pela busca constante deresultados consensuais negociados. As diretivas do poder central serão objeto decontínua tradução local pelos notáveis”.7 Essa reforma se fez por meio da Lei nº. 261, de 3 de dezembro de 1841, e dosRegulamentos nº. 120 e 122, de 31 de janeiro e 2 de fevereiro, respectivamente(BRASIL. CLI).8 Ver PRADO JUNIOR (1999), FARIA (2001).

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AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVI-DÃO NA IMPRENSA JORNALÍSTICA

DO MARANHÃO NA DÉCADA DE1880*

Josenildo de Jesus Pereira**

RESUMO: No Maranhão, a partir da década de 1870, a agricultura mercantilde exportação escravista aprofundou o seu processo de decadênciapromovendo uma ruptura entre a racionalidade ideológica e a base sócio-política em que se fundamentavam as relações de dominação de classe.Nesse contexto, setores das classes dominantes, como estratégiaideológica, utilizaram-se do discurso baseado na idéia de uma crise com oobjetivo ocultar esse processo e recompor o equilíbrio. A escravidão foiapresentada como o seu fator estrutural. A imprensa jornalísticadesempenhou uma ação significativa uma vez que os articulistas deperiódicos, a partir de seus vínculos ideológicos com as classes sociaismaranhenses, não só divulgaram bem como discutiram a respeito daescravidão no contexto da crise e apontaram as eventuais soluções paraa mesma.Palavras chaves: Maranhão. Representação. Escravidão. Imprensa.Década de 1880

ABSTRACT: In Maranhão, from the 1870’s, the commercial agriculture withslaving base started to ruin, promoting the break between the ideologicalrationaliy and the social and political base that were the roots of therelations based on domination. In order to recompose the balance, sectorsof the dominant classes used “the image of the crisis” as an ideologicalstrategy. Slavery was presented as the structural factor. In the process ofconstruction and dissemination of the arguments that were elaborated topersuade the other social classes about the “crisis”, the journalistic presshad a significant action because, due to their ideological links with socialclasses from Maranhão, the news writers not only disseminated the newsbut also started a discussion about slavery in the context of crisis andshowed some solutions for it.Keywords: Maranhão. Representation. Slavery. Press. Decade de 1880.

* Texto apresentado sob a forma de Comunicação na Mesa Redonda: “ControleSocial e resistência escrava na crise do escravismo no Maranhão”, no VII EncontroHumanístico, de 19 a 23 de novembro de 2007. Trata-se de fragmentos da tesede doutorado defendida na USP em março de 2007.** Professor do Depto. de História da UFMA. Doutor em História pela USP.

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1. INTRODUÇÃO

A escravidão é uma das mais relevantes categorias explicativasdo processo histórico brasileiro, e, em igual medida, as idéias queorientaram a sua abolição, porque elas imprimiram marcas até hojepresentes nas relações sociais, econômicas e culturais do país, sobre-tudo, no que se refere à experiência de vida da população negra. NoBrasil, a escravidão chegou ao fim por meio da “Lei Áurea”, decretadaem 13 de maio de 1888.

No contexto da abolição, as condições sócio-econômicas deprovíncias brasileiras, sustentadas pelo trabalho escravo, não eramcomum entre si devido o deslocamento do eixo dinâmico da economiabrasileira da área que corresponde, hoje, ao Nordeste para o Centro-Sul do país. Esse fato se deveu à decadência econômica de provínciasbaseadas em lavouras tradicionais de cana-de-açúcar, algodão e ta-baco, e à expansão paralela da produção de café em províncias doCentro-Sul, sobretudo na de São Paulo (PRADO JUNIOR:1971).

O Maranhão integrava o conjunto de províncias do “Nordeste”decadente. As interpretações desse estado de decadência apontamcomo fatores geradores a contínua diminuição da mão-de-obra escra-va provocada pelo fim do tráfico internacional de escravos e o refluxode seus produtos exportáveis: algodão e açúcar, no mercado externo,dada à concorrência estrangeira. (MESQUITA: 1987) Nessas circuns-tâncias, parte dos grandes proprietários rurais via a sua fortuna entrarem franco declínio, sendo obrigados a venderem escravos e terraspara pagarem dívidas contraídas com os donos do “capital mercantil-escravista”, isto é, os ricos comerciantes, os quais, por meio de em-préstimos, financiavam a produção. Alguns comerciantes e proprietári-os rurais instalaram fábricas têxteis nas cidades de Caxias, Codó e SãoLuís, a capital da província, e um Engenho Central no vale rio Pindarécom a perspectiva de industrializarem a área de grande lavoura. (CAL-DEIRA:1988). Nesse contexto, verifica-se uma densa migração decearenses fugindo da seca para a província.

Na década de 1880, essas características indicam o quanto eradiferente as condições sociais e econômicas do Maranhão em relaçãoàs províncias do centro-sul do Brasil, sobretudo, a de São Paulo, naqual, em decorrência da lavoura do café, se desenvolviam processosde urbanização e industrialização permeados por um denso fluxo deimigrantes europeus. (PRADO JUNIOR:1971)

Nas últimas décadas do século XIX, no Brasil, a escravidão era otema de pauta de debate em diferentes lugares: cozinhas, alcovas,esquinas, bares, salões, igrejas, câmaras legislativas, mas, sobretudo,nos jornais.

Neste artigo, se objetiva compreender o sentido de representa-ções da escravidão naquele contexto de decadência da agriculturamercantil de exportação. Para tanto, se escolheu como aporte docu-mental a imprensa jornalística por ser o fórum no qual, à época, o

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debate de qualquer tema tinha maior alcance. Em termos teóricos,definiu-se a dialética como método e classe social, ideologia e discur-so como conceitos chaves da análise.

2. A IMPRENSA E A HISTÓRIA

Para JONES (2005), os jornais têm múltiplas funções. Entre elas,a de ser um repositório de crônicas, de registros de eventos da vidadiária e, sobretudo, um órgão de política que promove a livre discussãode uma diversidade de assuntos. Desse modo, eles são consideradosdocumentos, nas ciências humanas, por serem um relevante materialde pesquisa na medida em que fornece um conjunto de informaçõesque possibilitam novas interpretações a respeito de temas tradicio-nais. De acordo com MOSCA (2002), em seus gêneros: político, religi-oso, literário ou pasquim, o jornalismo periódico capta, produz e fazcircular idéias e sistemas de valores referentes a uma formação social,constituindo um espaço público de representação simbólica e, por isso,um circuito de interatividade imerso no jogo de forças sociais consti-tuintes da experiência histórico-social de seus sujeitos. 2

No Maranhão, da década de 1880, tal como em décadas anterio-res, havia jornais que se definiam como “noticiosos”, “políticos”, “religio-sos” e “literários”, ao lado de outros que se especializavam em criticaros costumes; por isso, eram chamados de “imprensa baixa”. Muitos nãoeram publicados todos os dias. Alguns tiveram uma curta duração eoutros a edição fragmentada. Além do mais, nem todos discutiam aescravidão. Em vista dessa circunstância, optou-se pela pesquisa emjornais diários e editados por empresas particulares, ou seja, periódicosnão oficiais, ao se considerar que podiam apresentar um debate maisabrangente acerca do tema. Com base nesses critérios foram escolhi-dos três jornais diários: “Diário do Maranhão”, “O Paíz” e “Pacotilha”.

O “Diário do Maranhão” foi fundado em 1855, por empresários, logoapós o fim do tráfico internacional de escravos. Trata-se de um jornal docomércio, lavoura e indústria. A sua publicação era diária, exceto nosdias santos e feriados. Era composto por três folhas. Na primeira apre-sentava o Editorial e as notícias provinciais e nacionais. Na segunda folhase encontra a Secção Geral, na qual eram feitos os anúncios referentes àvida social e econômica da província, ou seja, o movimento de entrada esaída de navios do porto; a propaganda comercial; eventos sociais (fes-tas, casamentos e óbitos), bem como os anúncios de venda, de comprae aluguel de escravos; de fugas; de homicídios praticados por escravos ede notícias a respeito de quilombos. Na terceira folha publicavam-se osanúncios gerais referentes à administração pública provincial.

O jornal “O Paiz” foi fundado em 1863 pelo professor ThemístoclesAranha, jornalista e editor do jornal por vinte anos. Até o númerodezoito esse periódico circulava três vezes por semana, com o subtí-tulo de jornal católico, literário, comercial e noticioso. Depois passou a

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ser diário e editado com o subtítulo de “Órgão Especial do Comércio:órgão de Classe”. O jornal “Pacotilha” foi fundado pelo jornalista VictorLobato, em outubro de 1880, no contexto do movimento abolicionista.A princípio, tinha como proposta ser um periódico popular e sem filiaçãopolítico-partidária. Apresentava-se como um jornal abolicionista e re-publicano. Em janeiro de 1881 parou de circular para reiniciar em abrildo mesmo ano, reformulado e de tamanho igual aos demais jornaisdiários. Em 1930, deixaram de editá-lo, para retomar em 1934 até oano de 1938, quando deixou de circular em definitivo. Entre os seusredatores-chefes se destacam Antonio Lobo e João da Mata de MoraesRego, filhos de famílias tradicionais de proprietários rurais, que se apre-sentavam como liberais. (IGNOTUS: 2001)

Não é demais reiterar que nenhum discurso apresentado acercade determinados temas é neutro em relação às condições históricasvividas por seus sujeitos, uma vez que os mesmos se orientam por umfiltro ideológico. Desse modo, se lida com o jornal baseado na acepçãode que não há um documento-verdade, objetivo, inócuo, pois, deacordo com CAPELLATO (1994:24)

O documento é o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente,da sociedade que o produziu e também das épocas sucessivas durante asquais continuou a viver esquecido ou manipulado. Esse produto resultade relações de forças conflitantes e do empenho de seus produtores paraimpor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagemda sociedade.

No processo de leitura e análise das matérias apresentadas nosjornais, considerou-se que as palavras articuladas sob a forma dediscursos incorporavam e expressavam visões sociais de mundo depessoas concretas e, por isso, sempre carregadas “de um conteúdoou de um sentido ideológico ou vivencial.” Nesse sentido, sublinha-seconforme BAKTHIN (2002:123) que

O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussãoideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma,antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Qualquerenunciação por mais significativa e completa que seja, constitui apenas umafração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente àvida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc).

Com base nesse pressuposto, pergunta-se o que estavasubjacente nas idéias e os valores apresentados na imprensa jornalísticaacerca da escravidão num contexto de decadência da agricultura mer-cantil de exportação?.

Parte-se da hipótese de que as representações da escravidãocompuseram os fios de uma trama assentada na tese de uma crisemoral, urdida como uma estratégia de ocultamento do processo dedesagregação das classes dominantes maranhenses e elaboração deuma nova racionalidade de dominação. Vale ressaltar conforme CERTEAU(1996:99) que estratégia implica no “cálculo (ou manipulação) das

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relações de força que se torna possível a partir do momento em queum sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cida-de, uma instituição científica) pode ser isolado”.3 Nesse sentido, aidéia de uma crise moral decorrente da permanência da escravidão,além de neutralizar e isolar a luta dos escravos, em prol de sua liberda-de e autonomia, em relação aos proprietários de escravos, ocultariapor um lado o processo de decadência em que se encontravam asclasses dominantes em uma conjuntura em que a luta dos escravos, oabolicionismo e o desenvolvimento do capital industrial exigiam a con-figuração de outras condições históricas e sociais.

3. JORNAIS E AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO:sentidos e significados

Na primeira metade do século XIX, segundo JORGE (1987), osjornalistas se caracterizavam pela ideologia e posição assumidas napolítica, daí o surgimento de uma imprensa doutrinária e combativa. Nasegunda metade do século XIX, essa tendência se manteve, mas, sobas novas condições sócio-econômicas e políticas. O fim do tráficointernacional de escravos, a concorrência estrangeira e a retração depreços do algodão e do açúcar no mercado externo agravaram a agri-cultura mercantil maranhense e a situação financeira de proprietáriosrurais. Em tal conjuntura, a noção de uma decadência econômica erao diagnóstico geral. Acrescente-se a esse quadro, as fugas, osquilombos, as insurreições escravas e o movimento abolicionista de-sencadeado na Corte. Em vista disso, a necessidade de compreendere explicar o que estava acontecendo era imperativo. Com esse propó-sito, a escravidão e o sistema de coivara foram apresentados como osfatores geradores do atraso e da decadência econômica da província.Contudo, na década de 1880, a crítica moral da escravidão era oponto central do debate. O comerciante Martinus Hoyer sublinhava:

Cada cidadão devia contribuir direta ou indiretamente para a gradualextinção da dolorosa enfermidade que afligia a nação desde os temposcoloniais, e que havia entorpecido o progresso moral e material. Afinal,todos deviam trazer o seu quinhão, grande ou pequeno, para extirparesse cancro social, e dentro em poucos anos levar avante a grande obracivilizadora. Assim, acabariam com a escravidão no Brasil, e isto semviolência, sem revolução política e quase sem abalos e sofrimentos. (Apud.VIVEIROS: 1992:500).

Desde a década de 1860, algumas reflexões acerca da técnicade produção eram publicadas em periódicos maranhenses. No jornal OPaiz (05.11.1861), publicou-se o artigo de “O Matuto”. Para ele, alavoura estava agonizante entre a vida e a morte devido ao sistemade coivara e o trabalho escravo. O primeiro porque destruía o meionatural e o segundo por seu limite tecnológico e de produtividade,pois, como disse: “um feitor preto com algum cuidado e armado debom chicote é quanto nos basta”.

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No artigo, “A Liberdade”, publicado no jornal Pacotilha(11.06.1881), o autor destacava que a escravidão era um “sono inglório”e a liberdade um “tesouro imenso”. Em O Paíz (20.02.1885) lia-se quea mesma era um “cancro maldito”.

O Promotor Público, Benedito Leite (Pacotilha: 09.06.1883), for-mado na Faculdade de Direito de Recife, sublinhava que o trabalhoescravo era condenável porque significava o “embrutecimento da in-teligência, condição necessária da escravidão e causa infalível daausência da arte, isto é, do progresso do trabalho”. Além do mais, eraprejudicial aos proprietários, porque “o escravo não trabalhando parasi perdia o gosto e a vontade, elementos poderosos da produção,levando-os a poupar-se ao trabalho o mais que pudesse perdendo-seassim parte de sua atividade”. Nessa perspectiva, os articulistas des-se jornal endossavam o argumento de que a escravidão era

o estágio da infância que tanto nos envergonha em face da civilização doséculo, que tem obstado a que marchemos na conquista do vellocino deoiro da igualdade humana há tantos séculos sonhada pelo homem docalvário (PACOTILHA: 02.04.1884).

Para o jornalista Themístocles Aranha (O Paiz, 22.02.1885) tra-tava-se de um “um funesto erro, uma planta venenosa que cresceuno solo da pátria, e precisava ser estirpada pelas raízes, enfim umamancha no pavilhão nacional”. Mas, advertia que, embora sendo umerro de séculos, não poderia ser dissipada com rapidez, pois “a árvoreestendeu raízes profundas por baixo dos alicerces do edifício social,se a arrancassem, violentamente, desabaria o edifício convulsionan-do o solo da pátria”. Nesse sentido, sublinhava:

[... ] Essa mancha que conspurca o lábaro da nação brasileira não poderáser apagada com o emprego de reagentes fortes, porque com ela podeser destruída a própria bandeira. Pede senhores, esta reforma muita calma,pede duas manifestações de coragem cívica - uma a de dominar e dirigiros sentimentos abolicionistas que trazem agitados tantos espíritos; a outraafirma francamente as nossas convicções, opondo resistência legal aosimpulsos valentes desses sentimentos, e também aqueles que quiseremretroceder só assim se servirá patrioticamente ao país na perigosa situaçãoem que se acha. E seja quanto antes tomada uma resolução, porque nãopode a lavoura continuar no estado aflitivo em que se vê.

No jornal Diário do Maranhão (04.04.1888) a escravidão era re-presentada como uma “secular instituição que tanto entorpeceu o país”.Qual era a lógica de tais representações quando se sabe que os propri-etários rurais, por sua “consciência afetiva e moral” em relação à es-cravidão, em curto prazo, não se compreendiam vivendo sem a riquezae o prestígio social conferido por ela, pois, a mesma, experimentadacomo uma necessidade e um valor era a linha do horizonte a partir daqual, sobretudo, os antigos produtores de algodão compreendiam o seumundo. Daí as dificuldades em lidar com a perspectiva de sua extinção

Um exame crítico dessas questões pode evocar significados dealcance mais profundo para além da aparência dessas idéias. Conside-rando-se as contradições de uma sociedade escravista em decadên-

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cia, a subseqüente quebra entre a sua racionalidade ideológica e a suabase social e política, se compreende essas representações como frag-mentos de um discurso ideológico com um duplo objetivo. Por um lado,para promover o ocultamento da perda da vitalidade e do sentido dosnexos econômicos que asseguravam a reprodução das relações dedominação de que se beneficiavam os ricos comerciantes e, sobretu-do, os proprietários rurais. Por outro lado, para adequar as classesdominantes às demandas como liberdade exigida pela mobilização es-crava e o abolicionismo; o trabalho livre assalariado reivindicado pelomovimento do capital industrial impulsionado a partir da Europa Oci-dental, bem como a recomposição das relações de dominação em no-vas bases, mas sem que perdessem o poder.

Desse modo, as representações da escravidão adquireminteligibilidade ao serem analisadas a partir das relações sociaisvivenciadas, sobretudo, entre proprietários rurais e escravos em suatotalidade e, em particular, no contexto da decadência da agriculturamercantil de exportação. Considerando-se, a partir de THOMPSON(1987:09), que classe social é “um fenômeno histórico, que unificauma série de acontecimentos díspares e aparentementedesconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na cons-ciência”, vale lembrar que os trezentos anos de escravidão criaram, noBrasil, uma experiência de vida, onde comerciantes e proprietáriosrurais enriqueceram e construíram um ethos cultural escravocrata como qual não seria fácil prescindir a não ser quando a própria sobrevivên-cia estivesse em jogo. Assim, tais representações da escravidão po-dem ser compreendidas como nuances do processo de construção desua consciência de classe. De acordo com MARX, & ENGELS, F. (1961:301) “o modo de produção da vida material condiciona o processo davida social, política, e espiritual em geral. Não é a consciência dohomem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu sersocial é que determina a sua consciência”

Nesse sentido, as representações da escravidão, naquele con-texto da decadência não podem ser lidas como simples idéias, umamentira ou ilusão, pois se tratava de um conjunto de convicções, deorientações cognitivas orientadas por uma perspectiva social de clas-se, portanto de formulações ideológica considerando-se que

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, diretamente,entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material doshomens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, ointercâmbio espiritual dos homens aparecem como emanação direta deseu comportamento matéria”l. (MARX, 1985: 26)4

Nesse sentido, essas representações foram urdidas enquantoum discurso ideológico para servir ao exercício da dominação em umasociedade fundada na luta de classes. De acordo com EAGLETON(1997), dizer que um enunciado é ideológico significa afirmar que estácarregado de um motivo ulterior estreitamente relacionado com alegitimação de certo interesse em uma luta de poder. Não é possível

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desconsiderar que de concreto ocorria a desagregação das relaçõesde dominação que sustentavam as classes dominantes. Desse modo, aidéia de uma crise geral provocada pela permanência da escravidãoocultava esse processo criando as condições para uma novaracionalidade de dominação de classe sem que as classes dominantestradicionais fossem deslocadas dessa posição.

Importa não esquecer que os ricos comerciantes e proprietáriosrurais era o público-alvo dos jornais Diário do Maranhão e O Paíz. Ojornalista Temístocles Aranha, fundador do jornal O Paiz, era amigo dochefe do Partido Conservador, o senhor Augusto Olimpio Gomes deCastro. Essa situação os levou a limitar-se a fazer uma crítica moral aescravidão e a defenderem o seu fim de acordo com os seus interes-ses. No entanto, o discurso apresentado no Jornal Pacotilha, teve umaconotação crítica em relação à ideologia urdida pela escravidão, pois,seus articulistas se apresentavam como a vanguarda da modernidadedo Maranhão defendendo o trabalho livre, a urbanização e fábricascomo signos do progresso.

Para destacar o conservadorismo das classes sociais tradicio-nais publicaram o artigo: O mal dos moços (PACOTILHA, 08.01.1883).Nele, o autor criticava a permanência do trabalho escravo no Brasil eas práticas sócio-culturais dele decorrentes. Ele destacou que todosos anos as academias, os institutos, os seminários e os liceus do paísdespejam no país centenas de rapazes com suas borlas à cabeça,seus diplomas em canudos, seus anéis de esmeralda, de rubi, de topázio,de opala e de safira. Esses “moços” eram advogados, magistrados,boticários, médicos, padres, diplomatas e engenheiros, ou seja, filhosdas classes dominantes cuja riqueza era produzida pelo trabalho es-cravo. Naquela conjuntura, o autor, sublinhava era preciso empurrarcom a respectiva força de seus pulsos:

[...] O carroção do Estado na direção do seu destino social, sobre o trilhoda ordem, montando a estrada, dando azeite ao sistema governativo,defendendo o precioso carro da hipérbole com a pena, com a língua oucom a espada contra salteadores noturnos e contra os inimigos famintos. 5

Supõe-se que o “destino social” era a sociedade do trabalho livre.A “ordem”, a permanência de relações de dominação, mas, organizada emoutras bases a partir da abolição do trabalho escravo, isto é, o carro dahipérbole, o qual devia ser conduzido sob o controle dos protagonistas doprogresso, ou seja, “os moços”, ao invés dos “salteadores noturnos” e“inimigos famintos”, isto é, os escravos com as suas diferentes formas delutas como, fugas, quilombos e insurreições entre outras.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os articulistas dos jornais Diário do Maranhão, O Paiz e Pacotilha,a partir de suas relações com as classes sociais do Maranhão foram,também, os protagonistas da imagem da crise urdida como estratégiaideológica para ocultar o processo de desagregação das relações de

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dominação em que se sustentavam as classes dominantes. Para tan-to, se apresentavam ao público leitor como se estivessem de posse deum “discurso competente” revestido de legitimidade científica sob afórmula de um saber-poder constituído segundo a lógica de que, “nãoé qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa emqualquer lugar e em qualquer circunstância”. (CHAUÌ, 1997:07). Des-sa perspectiva se credenciaram para tratar acerca da escravidão na-quele contexto. A análise comparativa entre os discursos apresenta-dos nesses periódicos indica que não diferiam entre si quanto à propo-sição de mudanças superficiais nas relações de dominação ainda vi-gentes, pois nenhum deles sugeriu um programa de transformaçõessociais que incorporasse à abolição do trabalho escravo umareestruturação fundiária com base na defesa do fim da grande propri-edade, o livre acesso a terra, a apropriação e usufruto da riquezaproduzida pelos trabalhadores.

Por fim, se espera que essa reflexão possa contribuir para quese relativize a tese da inadequação do negro à sociedade competitivae se compreenda a realidade de exclusão social da população negra,no Brasil, como o resultado de um encaminhamento político e ideológi-co articulado num contexto de luta de classes, polarizado pelos propri-etários rurais defendendo a permanência da concentração da riquezae da terra, e pelos escravos em permanente luta pela liberdade paradisporem, plenamente, de si e para si.

Referências:

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Josenildo de Jesus Pereira

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A CONSTRUÇÃO DO PODER NA“REVOLUÇÃO” DE AVIS (1383-1385)*

Adriana Maria de Souza Zierer**

Resumo: Cada período histórico busca legitimar o poder dos governantes deuma determinada maneira. No período medieval o poder régio estava associadoao sagrado e ao Cristianismo. Neste sentido, com a eclosão do Movimento de Avise a ascensão política de D. João, um bastardo que se tornou rei, era necessário aconstrução simbólica de uma imagem positiva ao fundador da nova dinastia. Destaforma, o cronista Fernão Lopes (1380-1460), uma espécie de historiador medieval,elaborou na Crônica de D. João I uma imagem do monarca como o eleito de Deuspara governar Portugal. No contexto do Cisma do Ocidente, com dois papas naCristandade, D. João é descrito como o “Messias de Lisboa”, partidário do papa deRoma, tido pelo cronista como o papa “verdadeiro”, daí ser favorecido pelo Criadornas lutas contra Castela, o que se expressava em vitórias nos conflitos bélicos.Segundo Lopes, o Mestre de Avis tinha o apoio dos “verdadeiros portugueses”,isto é, dos “miúdos” e lutava juntamente com o nobre secundogênito Nuno ÁlvaresPereira contra o Anticristo, representado pelo rei de Castela, que pretendia governarPortugal.Palavras-Chave: Movimento de Avis. Construção simbólica. Poder. Messianismo

Abstract: Each historical period legitimates the governments’ power in adeterminant manner. In medieval times royal power was associated to the sacredand to Christianism. With the occurrence of the Aviz’ Movement and the politicalascension of John I, a bastard who became king, it was necessary a symbolicconstruction of a positive image to the new dynasty founder. Thus, the chroniclerFernão Lopes (1380-1460), a kind of medieval historian, elaborated in the Chronicleof John I an image of the king elected by God to rule Portugal. In the “GreatSchism” context, with two popes in Christianity, John of Portugal is described asthe “Messiah of Lisbon”, supporter of the Roman’s pope, pointed by the chronicleras the truthful pope, reason by which John of Portugal is favored by God in thefights against Castile, which was expressed in victories in the war conflicts. ToLopes, the Master of Aviz had the support of the truthful Portuguese people, this is,the little ones, and fought together with the non-primogenital noble Nuno ÁlvaresPereira against the Antichrist, represented by the king John of Castile, who intendedto rule Portugal.Keywords: Avis’ Movement. Symbolic construction. Power. Messianism

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa redonda “Temáticas da antigüidade e idade média à luz do passado epresente”.** Professora Adjunta do Departamento de História e Geografia da UniversidadeEstadual do Maranhão (UEMA).

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1. INTRODUÇÃO

D. João I atingiu o poder político em Portugal em 1383 através doMovimento de Avis, que deu início ao estabelecimento de uma novadinastia no poder. A função do cronista Fernão Lopes uma espécie dehistoriador medieval, foi estabelecer uma legitimação simbólica para aascensão do primeiro monarca da Dinastia de Avis. Para isso utilizou-sedo sentimento de religiosidade da época em questão e transformou oprimeiro monarca avisino no “Messias de Lisboa”, o qual através daajuda divina conseguiu libertar Portugal do domínio de Castela com vitó-rias excepcionais nas batalhas de Atoleiros (1384) e Aljubarrota (1385).

O contexto de ascensão de D. João ao poder em Portugal estárelacionado à morte de D. Fernando (1367-1383), último monarca daDinastia de Borgonha, que não possuía herdeiros masculinos para su-cedê-lo. Seu governo havia enfrentado três guerras contra Castela daqual não fora vencedor de nenhuma. Por fim, o Tratado de Salvaterrados Magos apontava que o descendente de sua filha, D. Beatriz e dosoberano de Castela, D. João de Castela seria o novo monarca dePortugal, o que poderia levar o reino a cair nas mãos dos castelhanos.Este filho ainda não era sequer nascido e assim o trono deveria passarpara a viúva do rei, D. Leonor, considerada por muitos como amante doConde de Andeiro.

Neste momento, D. João, Mestre de Avis e filho bastardo doirmão de D. Fernando, o rei D. Pedro (1357-1367), lutou contra essesdois grupos e assumiu o poder, primeiro como regedor, em 1383, e de-pois como rei, em 1385. Porém, como ele era bastardo, após a suamorte foi realizada a legitimação simbólica do seu governo através devários escritos de forma que a nova dinastia criada por ele se firmasseno poder. O que garantiria a legitimidade do seu governo, segundo Lopes,não era apenas uma convenção dos homens, mas um desejo divino.

Por isso, o autor na Crónica de D. João I constrói a imagem do“Messias de Lisboa”, isto é o soberano escolhido por Deus para gover-nar e “salvar” o reino português do domínio castelhano, que foi associ-ado pelo cronista a uma idéia de luta do bem contra o mal. O elementoque parecia confirmar definitivamente este argumento foram os resul-tados excepcionais das batalhas, apesar do efetivo menor do exércitoportuguês e uma série de milagres contados pelo cronista

Ao analisar o governo de D. João I, seu cronista Fernão Lopesafirmou que D. João representava o novo, isto é, o “amor à terra” e odesejo dos “naturais” ou a “arraia-miúda” em apoiar o reino e o Mestrede Avis contra o domínio de Castela, o que era contrário ao direitofeudal vigente.

Mas não havia ainda um “sentimento nacional” dentro de Portu-gal à época de D. João I, tanto que a maior parte da nobreza apoiou orei de Castela, uma vez que, segundo o direito consuetudinário, segui-do pelos nobres, esta era a norma correta a ser adotada. Até entãohavia uma fidelidade maior aos compromissos da nobreza enquanto

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grupo do que o compromisso com um território. Daí Fernão Lopes cons-truir em seu relato a idéia de uma nobreza ideal, cuja ligação é com oreino e o monarca, personificado na figura de Nuno Álvares Pereira, emoposição à nobreza tradicional, acusada no relato de constituir os“enxertos tortos” da oliveira portuguesa.

A justificativa de Fernão Lopes em torno de D. João como oeleito de Deus, isto é como o Mexias de Lisboa, conforme apresentadona sua crônica, tem por objetivo garantir-lhe a legitimidade. Em virtu-de de ser bastardo e por haver obtido o poder com base na força, eranecessária uma legitimação simbólica do seu governo, pois emboratenha conseguido se eleger como rei nas Cortes de Lisboa (1385), D.Nuno, seu comandante militar, coagira os votantes a apoiarem D. João,o vencedor contra Castela na Batalha de Atoleiros (1384).

2. FERNÃO LOPES, LEGITIMADOR DA DINASTIA DE AVIS

É significativo pensar que Fernão Lopes, cronista a serviço deuma dinastia, escreveu a Crónica de D. João I já após a morte domonarca (1433), entre os anos de 1440 e 1448. Seu relato é umahistória encomendada que denigre alguns em detrimento de outros. D.João ficou conhecido com o epíteto de rei da Boa Memória e é possívelacreditar que a memória das suas ações já fosse louvada quandoestava vivo. Segundo Armindo de Sousa (s/d, p. 497), documentos dacorte de poucos anos após a sua morte o intitularam como “Pai dosPortugueses”, o que parece confirmar tal hipótese.

Assim, é importante perceber que o documento do cronista pro-cura legitimar uma nova dinastia no poder, apresentando uma estraté-gia discursiva que não poderia ser contestada no campo simbólico,através dos milagres que o cronista descreve acerca das ações béli-cas de D. João e D. Nuno, mostrando a preferência de Deus peloMexias e o consagrando no poder. Embora bastardo, palavra nuncamencionada pelo cronista, D. João foi rei pela “vontade divina” e porser “filho de rei”, já que era filho do rei anterior a D. Fernando, omonarca D. Pedro (1357-1367).

O historiador Jacques Le Goff ressalta o papel do documentoescrito como um monumento que é utilizado em benefício dos dirigen-tes. Por isso, para o autor, “tornar-se senhores da memória e do es-quecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos gru-pos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históri-cas” (LE GOFF, 1989, p. 13).

Neste sentido fica claro que foi graças à propaganda empreen-dida principalmente através do discurso da corte, do qual a crônica éum dos elementos, que D. João I atingiu uma aura de salvador, comopretendia o seu relato.

Assim é provável que a propaganda sobre os feitos do rei, enfatizandosuas virtudes bélicas já estava sendo construída antes de sua morte,embora a sua crônica tenha sido redigida somente após a morte de D. João

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I (1433), entre os anos de 1440 e 1448, após o governo de seu filho D.Duarte (1434-1437) e durante a regência do infante D. Pedro.

Após a confecção do documento, é possível que a propagandatenha se consolidado e que a crônica fosse lida nos espaços públicos,como sugere Accorsi Jr. (1997, p. 103), de forma a transmitir os feitosengrandecedores do rei à população. Tal atitude contribuiu para afixação de uma mensagem positiva dos feitos de D. João I, reforçandoassim a “boa memória” do seu reinado e justificando frente à posteri-dade a ascensão da Dinastia de Avis ao poder.

É importante salientar, portanto, que a produção de Fernão Lopespor se inserir na chamada “história encomendada” tem um posicionamentopolítico. Assim, seu relato procurou denegrir alguns e beneficiar outrosatravés de um discurso partidário e pró-avisino (FERREIRA, 1995, p. 117) .

Por diversos motivos, Fernão Lopes ocupa um papel de destaquena literatura portuguesa. Em primeiro lugar, por ter adotado um modelo detrabalho diverso dos outros cronistas de seu tempo. Antes dele, os cro-nistas visavam fazer um elogio daquele que encomendava o documento,mas a partir de sua produção, outros elementos entraram em cena.Preocupou-se em aferir a veracidade das fontes e seu relato dos fatos évivo, movimentado. João Gouveia Monteiro (1988, p. 111) chamou estaabordagem do cronista de linguagem ‘fílmica’, através da qual o cronista,munido da câmera da época, isto é, a sua pena, realizava a composição esucessão de grandes cenários onde se desenvolviam os fatos.

Fernão Lopes foi influenciado por diversos tipos de narrativa:hagiografias, sermões, romances de cavalaria. Sua narrativa liga-se àoralidade, escreve como que voltado a uma platéia. Há inclusive, vári-as passagens em que conversa com o leitor/ouvinte do seu relato,afirmando que não se estenderia muito sobre determinado assuntopara não cansá-lo.

Outro elemento importante foi a preocupação do cronista emmostrar a participação de outros segmentos sociais que não apenasos ‘grandes’. Assim a narrativa dá grande atenção aos ‘miúdos’, o quepermite uma maior compreensão da sociedade do seu tempo.

Ele próprio teve uma origem modesta, sendo proveniente tal-vez de uma família de mesteirais ou de camponeses que viviam nosarredores de Lisboa. Casou-se também com uma senhora de origemsimples e uma sobrinha sua era casada com um sapateiro (MARQUES,1976, p. 56-57). Daí provavelmente provém a sua simpatia pelos“miúdos”, os quais demonstraram o “amor pela terra” na Crónica deD. João I, uma importante justificativa para que o Mestre de Avisalcançasse o poder político.

D. João por sua própria condição de filho ilegítimo, pertencentea uma ordem religiosa (era Mestre de Avis) e por isso não podendocasar-se (não era o candidato ideal para ser rei (REBELO, 1983, p.53). A nova dinastia era marcada pela ilegitimidade. Daí a necessida-de do cronista encarregado da memória do seu fundador para elabo-rar uma justificativa baseada principalmente nos sinais divinos ex-

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pressos principalmente nas vitórias guerreiras para justificar o novogoverno.

3. ELEMENTOS JUSTIFICADORES DO “MESSIAS DELISBOA”

O elemento a ser ressaltado neste trabalho sobre a Crónica de D.João I é a relação entre a religiosidade e a sua apropriação pelo poderpolítico. Desta forma, através do relato de Fernão Lopes, D. João éapresentado como o Messias de Lisboa, o exemplo de bom cristão capazde salvar o reino português do domínio castelhano, o que garantiria nofuturo também a salvação espiritual dos habitantes de Portugal.

Quanto a D. João de Castela é descrito pelo cronista como maucristão, tendo, portanto, aproximações com o diabo e personificandoa imagem do Anticristo, isto é, aquele que vem destruir o reino deDeus e que na Bíblia pode ser representado por Satanás, por um dra-gão e por um tirano. Os termos Anticristo e Messias aparecem citadosexplicitamente na primeira parte da crônica de Fernão Lopes, respecti-vamente nos capítulos 63 e 123.

De acordo com o historiador Nieto Soria o messianismo políticoestá ligado a um rei escolhido por Deus, com ligações com os reis doAntigo Testamento. Segundo Soria, ele é considerado um escolhidopara realizar uma determinada tarefa e por isso age como um instru-mento do divino. Na obra de Fernão Lopes, a função de D. João éclara: expulsar os castelhanos que representam o Anticristo e apoia-vam o “anti-papa” de Avignon e levar o reino à salvação.

Este monarca é esperado para realizar uma empresa há muitodesejada e tem a seu favor a eleição divina. Elementos sobrenaturaisestão ligados à sua figura, como as profecias e os sonhos. Um exemploé o sonho de Frei da Barroca, um religioso inspirado por Deus quesonhou que D. João seria o rei de Portugal.

É importante também mencionar o contexto histórico do gover-no de D. João. O final da Idade Média é caracterizado pelo medo do fimdos tempos. Fome, guerras, aumento da exploração sobre os pobres,revoltas e a Peste Negra levaram muitos a temerem a ira Divina e o fimpróximo. Além disso, entre os anos de 1378-1417 ocorreu o Cisma doOcidente, com dois papas, um em Roma, outro em Avignon e numdeterminado momento por mais um terceiro papa, em Pisa. Toda essaconjuntura gerou o apego de alguns por idéias milenaristas sobre achegada de um governante salvador ou Imperador dos Últimos Diasque lutaria contra o Anticristo e estabeleceria um período de felicidadena terra antes do Juízo Final.

Essas idéias eram compartilhadas por alguns grupos como osfranciscanos espirituais, favoráveis aos ideais da pobreza de Cristo,fraticelli, franciscanos radicais que se tornaram heréticos, e beguinos,comunidade religiosa suspeita de heresia. Eles se inspiravam no pen-samento do monge calabrês Joaquim de Fiore (m. 1202) que pregava a

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existência de três Idades, a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo,sendo a última Idade considerada uma era de renovação, na qual osmonges conduziriam os humanos a uma nova era de felicidade. Osescritos de Joaquim após a sua morte foram considerados heréticos,mas tiveram grande importância e o monge também falava bastantedo Anticristo, que viria assolar a terra antes da era de felicidade, quepara ele começaria em 1260.

Utilizando esta expectativa messiânica de alguns elementos dasociedade portuguesa, como os beguinos e franciscanos espirituais, ocronista Fernão Lopes apresentou na sua crônica, a ascensão de D. Joãoao poder como um combate entre o bem e o mal. Pelo fato de D. Joãoapoiar o papa de Roma, tido pelo cronista como o papa legítimo e de D.João de Castela apoiar o papa de Avignon, este monarca será intituladopelo cronista como “herético e cismático” e suas ações apresentadascomo condenáveis. Já as de D. João de Portugal terão a proteção deDeus, o que é demonstrado quando um santo, Frei da Barroca toma umaembarcação para Lisboa e faz a previsão de que o Mestre de Avis e osseus seriam os reis de Portugal (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 49).

Um primeiro indício da proteção divina ao eleito de Deus podeser mostrado quando Fernão Lopes descreve o Cerco de Lisboa, reali-zado pelos castelhanos em 1384. De acordo com a lógica do cronista,por serem pecadores os portugueses deveriam ser colocados à provapara ver se mereciam realmente a vitória contra os maus cristãos. Acidade de Lisboa é vista como possuindo analogias com o povo portu-guês e com a Virgem Maria, e espera ser salva por D. João. Entre osmilagres que apontam para a vitória dos portugueses, estão a apari-ção de homens com vestiduras alvas de anjos ao exército português ea chuva de cera que cai do céu (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 213).Num primeiro momento, os portugueses rezam a Deus e parece quesuas preces não são atendidas. A fome é grande entre a população.

Numa resposta divina, uma peste é enviada somente ao exérci-to castelhano. Mesmo ao misturar prisioneiros portugueses com osinfectados, nada acontece e por fim, pelo fato de a esposa do reicastelhano ser infectada, este baixa o Cerco, o que representa avitória portuguesa nas tribulações e seu merecimento em ser salvapelo escolhido de Deus, D. João.

Este é apresentado pelo cronista como seguidor do “EvangelhoPortuguês”, sendo ele, assim como Nun’Alvares Pereira vistos como re-presentantes do papa de Roma e que por isso, defendiam o reino deseus inimigos e para manter esta fé “espargiram seu sangue até amorte” (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 340). D. João é comparado norelato a Cristo e a Moisés e D. Nuno a S. Pedro (FERNÃO LOPES, 1990,v. 1, p. 342). Desta forma, o reato deixa bastante claro a unidade entreo Mestre de Avis e seu comandante militar, capazes de, amparados umno outro, construir uma sociedade baseada em novos laços como alealdade a um território, graças ao apoio de nobres não primogênitos,como era o caso de D. Nuno (ZIERER, 2004, p. 174). É importante

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lembrar ainda o papel de Moisés como aquele que levou o povo prometi-do de Deus à terra onde abundaria leite e mel e portanto o de D. Nunocomo condutor de Portugal às vitórias contra o exército de Castela.

As tribulações enfrentadas pela cidade de Lisboa, através dafome, da sede, da guerra e da peste (embora este último tormento sótenha atingido os castelhanos) poderiam significar um curto estabele-cimento da vitória do Anticristo na terra, representado pelo papa deAvignon e seu apoiante, D. João de Castela. Porém a vitória de D. Joãorepresentada pelo descerco pode ser entendida como o estabeleci-mento de uma nova sociedade, um novo período de felicidade na terra,governado por um rei escolhido de Deus (uma espécie de Imperadordos Últimos Dias, que combate o Anticristo) até o reaparecimento doSalvador, o Filho de Deus, separando definitivamente os pecadoresdos salvos no Juízo Final. Este rei terreno pertencia, segundo a visãodo cronista, também a uma dinastia eleita, a Dinastia de Avis.

Portanto, Fernão Lopes consegue o estabelecimento de umaimagem positiva para D. João e sua dinastia, ancorada na religiosidadee na idéia de que D. João representa o bem, o cristianismo, o salvadorde Portugal e aquele que estabelece um novo tempo, que o cronistaintitula como a Sétima Idade, no qual elementos de categoria inferiorseriam nobilitados (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 350). Além disso, deacordo com o cronista seria iniciado também um período de justiça ede atendimento aos anseios dos “humildes”. Ao contrário de outrospensadores medievais como Santo Agostinho, Beda e Joaquim de Fiore,que vêem a sexta idade como um período de decadência próximo dofim dos tempos, o cronista apresenta a Sétima Idade como um “novotempo” de felicidade na terra.

A seguir, Fernão Lopes no seu relato atribui a uma autoridadereligiosa, o frade franciscano Rodrigo de Cintra, a explicação dos acon-tecimentos do Cerco. O frei faz comparações bíblicas e aponta que seos castelhanos tentassem investir outra vez contra Portugal teriamuma fragorosa derrota. Portanto, a segunda investida do exércitocastelhano pode ser vista como a segunda tentativa de domínio doAnticristo, que, segundo o Apocalipse, precederia o Juízo Final. Deacordo com o Apocalipse, os povos de Gog e Magog viriam junto com oAnticristo para preparar o seu advento. Pouco depois, porém, sãoderrotados pelos santos e mártires e quarenta dias após a sua morteviria o Juízo Final e a Parusia (FRANCO JR., 1999, p. 44).

O cronista convenientemente estabelece o período de felicidadecom a época introduzida por D. João I. No entanto, após o estabeleci-mento do governo joanino, instaurando o início da Sétima Idade, nãohaveria nenhuma outra modificação social, pois o cronista não preten-de um rompimento com a ordem estabelecida, mas sim justificar onovo grupo político que ascendeu ao poder, a Dinastia de Avis.

Na segunda parte da crônica, quando D. João já foi aclamadocomo rei pelas cortes de Coimbra é contado o episódio que vai legiti-mar pelas armas a vitória portuguesa contra Castela: a Batalha de

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Aljubarrota (1385). Antes da batalha, pode-se notar a preocupaçãode D. João na “diminuição” dos pecados dos habitantes de Portugal,proibindo práticas pagãs, como adivinhações e leitura de sortes, entreoutras, além de encomendar procissões, visando agradar a Deus ereceber o merecimento da vitória (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p.101).

Teoricamente, segundo o relato, havia a impossibilidade de ven-cer a batalha pelo fato de o exército português ser muito menor. Nosnúmeros exagerados de Fernão Lopes, os portugueses teriam 6.500homens, enquanto os castelhanos 30.000. Já os historiadores comoOliveira Marques afirmam que os castelhanos eram entre 17.500 e19.000 homens e os portugueses 7.000 (MARQUES, 1986, p. 530).Segundo a descrição do cronista, tudo no acampamento castelhanoabundava: além dos homens, os armamentos, bebidas, conservas, oque indicava pelos fatos que o rei de Castela tinha todas as possibili-dades para vencer a batalha. Mesmo assim, o monarca é mostradocom atitudes cruéis, como a de ter mandado decepar e cortar aslínguas de homens, mulheres e crianças e de ter ateado fogo a igrejas,como a de S. Marcos, em Trancoso (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, 64).

O cronista enfatiza várias vezes que apesar desta superioridadebélica, o rei de Castela invadia Portugal sem ter direito de fazê-lo, pornão ter respeitado o Tratado de Salvaterra dos Magos, o qual previaque somente o seu descendente e da rainha D. Beatriz, filha do faleci-do D. Fernando, poderia ser o rei de Portugal. Tudo isso como paraindicar que a despeito da sua vantagem, a vontade divina acabaria porpender para o lado de Portugal. É bastante mencionado no texto aquestão de que o “juízo de Deus” seria feito.

O texto enfatiza ainda as rezas de cada um dos lados, os portu-gueses recebendo a comunhão pelo lado do papa Urbano de Roma(FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p.103) e os castelhanos pelo lado dopapa de Avignon. Segundo o cronista: “E dois bispos que ali vinham ealguns frades pregadores outorgavam indulgências da parte do antipapaa todos os que contra os portugueses tomassem armas ou dessemajuda daquilo que tivessem para lhes fazer a guerra” (FERNÃO LOPES,1990, v. 2, p.104).

Porém os portugueses fiavam-se na mãe de Deus. Por a lutaocorrer na véspera da Assunção da Virgem Maria, os portuguesesrezaram e fizeram o jejum, o que demonstrava a sua devoção (FERNÃOLOPES, 1990, v. 2, p. 93).

A vitória nas armas que os portugueses tiveram representa, aosolhos do cronista, o próprio milagre e a confirmação de todos os fatosprecedentes da eleição divina de D. João por Deus. Segundo OliveiraMarques (1986), a vitória portuguesa ocorreu porque o exército castelhanoestava desmotivado e acreditava que a vitória já era certa. Quanto aoexército português, estrategicamente se posicionou melhor no planalto,construiu uma paliçada defensiva e abriu fossos e outras paliçadas, impe-dindo o avanço da cavalaria castelhana. Além disso, também contribuiucom a vitória o próprio desejo dos portugueses de vencer o combate.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAISConforme foi possível observar Fernão Lopes construiu com su-

cesso a imagem de D. João I como salvador de Portugal, exemplo decristão modelar e apoiante do papa de Roma. O elemento que consoli-dou esses feitos foi a batalha de Aljubarrota (1385), marco capaz deconsolidar a imagem de D. João como bom governante, garantindo-lhefrente à posteridade o epíteto de “Rei da Boa Memória”. Os feitos bélicos,somados a tomada de Ceuta em 1415, confirmaram a figura de D. Joãocomo um rei poderoso nas armas e escolhido por Deus para governar.

Para além dos efeitos positivos da conquista nas armas, houvetambém a vitória simbólica dos escritos de Fernão Lopes para consolidaruma imagem positiva da Dinastia de Avis através da figura de seu primeiromonarca. Mas é importante lembrar que o governo joanino foi marcadopor aumento de impostos, as sisas, guerras prolongadas (a paz comCastela só foi assinada em 1411) e reclamações dos pequenos contra osabusos dos grandes. De forma que, a Sétima Idade tão prometida nosescritos de Fernão Lopes à arraia-miúda, aos “verdadeiros portugueses”que lutavam por sua terra, Portugal, ficou relegada, na prática, a umoutro plano imaginário, que seria o da vida após a morte onde os “miúdos”poderiam finalmente encontrar a verdadeira felicidade.

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Adriana Maria de Souza Zierer

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ALGUNS VALORES QUE PERMANECEM:a idade média e os dias atuais*

Neila Matias de Souza **

Resumo: Já estando no século XXI a sociedade atual não pode negar as raízes deseus valores nascendo da Idade Média. Nesse longo período que durou mil anos, ohomem medieval estava impregnado de noções, conceitos e virtudes relacionadosao caráter intrinsecamente religioso daquela época. Portanto, sua vida estava pautadaem valores considerados fundamentais por todos aqueles que pertenciam àquelaformação social. Isso pode ser evidenciado na construção do cavaleiro ideal – indivíduopertencente à nobreza e que compartilhava de seus valores e normas de conduta –que deveria possuir os valores contemplados pela Igreja como essenciais naconstituição de um bom cristão. É isso que é possível observar numa fonte do séculoXIII O Livro da Ordem de Cavalaria, de Ramon Llull, e numa fonte do ciclo arturianoA Demanda do Santo Graal. Entre os valores tidos como ideais nesses dois documentosestão a justiça, a caridade, a lealdade, a castidade, a fidelidade; o cavaleiro deveriasegui-los e tornar-se um exemplo para a comunidade. Todas essas virtudes aindahoje continuam muito presentes em nosso cotidiano, a partir da análise dessas duasobras iremos relacionar os valores medievais com os valores de nossa sociedade.Palavras-chave: Idade Média. Valores. Cavaleiro.

Abstract: As being in the last century the current society cannot deny the roots of itsvalues which come from the Middle-age. During that one-thousand year period, themedieval man was full of notions, concepts and valves related to the extremelyreligious character at that time. Therefore, man’s life was based on values consideredlike fundamental for everybody who belonged to that social background. It can beemphasized on the construction of the ideal knight – individual who comes fromnobles and who shared his values and life’s rules – who should have the valuesrequired by the Church like essential in the formation of the Good Christian. This isobserved on a source from the XIII century O Livro da Ordem de Cavalaria (Book ofChilvary Order) and A Demanda do Santo Graal (The Quest for the Holy Grail).Among the ideal values presented on these two documents we have: justice, charity,loyalty, chastity, fidelity; the knight should follow those values and become an examplefor the community. All those values are still very present on days, and from theanalysis of those two books we will relate the medieval values to those of our society.Keywords: Middle Ages. Values. Knight.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa redonda”Temáticas da antigüidade e idade média à luz do passado epresente”.**Graduanda em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Bolsista doCNPq/PIBIC/UEMA. Prêmio de Melhor Bolsista da Área de Ciências Humanas noXIX Seminário de Iniciação Científica da UEMA (2007). Orientadora: Prof. Dra.Adriana Maria de Souza Zierer – Dept. História e Geografia/UEMA

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a iniciar uma reflexão acerca de algunsvalores que ainda se fazem presentes em nossa sociedade como res-quícios do medievo. Entendemos que é interessante também sinalizarum ponto a respeito da Escola dos Annales.

Não é novidade a revolução e a influência que esse movimentocausou na forma de se conceber, entender e escrever a história. Comnomes que são referência para qualquer pesquisa historiográfica comoMarc Bloch, Lucien Febvre, Fernando Braudel, Jacques Le Goff eGeorges Duby entre tantos outros, a Escola dos Annales pôde aolado de sua bandeira por uma interdisciplinaridade vislumbrar novoshorizontes para a pesquisa histórica.

Mas ao lado de toda essa ovacionada revolução causada pelosAnnales, houve também algo de negativo. É o que nos adverte ClóvisPereira dos Santos, segundo ele as diversas linhas de pesquisa provo-caram bairrismos entre si, fazendo com que uma anulasse a outra parapoder justificar a sua própria existência, é o conceito psicanalítico donarcisismo das pequenas diferenças. (SANTOS, 2005, p. 40).

Percebemos que a luta por uma história da Idade Média aqui noBrasil vem se configurando promissora, pois tem conseguido algunsavanços significativos como a existência de diversos grupos de pes-quisa1 e associações como a Associação Brasileira de Estudos Medie-vais (ABREM). Muito se discute sobre a importância da história medie-val para o contexto brasileiro, e é exatamente nesse momento queobservamos os bairrismos de que fala Clóvis dos Santos e como issoatrapalha o diálogo de uma história que se quer totalizante.

Ao contrário do que se pensa não só o Brasil, que foi colonizadopor Portugal (país com intensa experiência medieva), mas o Ocidentecomo um todo tem muito ainda de medievalidade, pois somos herdeirosdessa civilização cristã ocidental que foi a Idade Média. É o que noslembra Jacques Le Goff:

Esta longa Idade Média é, para mim, o contrário do hiato visto peloshumanistas do Renascimento e, salvo raras excepções, pelos homensdas luzes. É o momento da criação da sociedade moderna, de umacivilização moribunda ou morta sob as formas camponesas tradicionais,no entanto viva pelo que criou de essencial nas nossas estruturas sociaise mentais. Criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho amáquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, aconsciência e. finalmente, a revolução. (LE GOFF, 1979, p.12).

Com isso, apresentaremos aqui alguns valores presentes em duasfontes medievais que tratam de algo que ainda hoje envolve o imagi-nário das pessoas: os cavaleiros do tempo da Idade Média.

2. A CAVALARIA E SEU INÍCIO

A cavalaria tornou-se uma instituição na Idade Média com umaética e ideologia próprias que a fizeram ainda mais notável para a

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posteridade. É por isso que uma das imagens mais recorrentes daIdade Média é a dos cavaleiros, eles são concebidos como homenscorajosos, virtuosos, nobres. Todas essas características são de fatoobservadas, no entanto, a última merece algumas considerações.

Nem sempre a cavalaria dos tempos medievais foi como a co-nhecemos hoje, no seu início um aspirante a cavaleiro tornava-se ummembro desse grupo apenas com o recebimento das armas. Isso ébem explicitado por Jean Flori, segundo esse autor os antigos rituaisde entrega das armas eram um sinal de poder referindo-se aos impera-dores, reis, depois príncipes quando atingem a idade das responsabili-dades (FLORI, 2005, p.34).

No que diz respeito aos cavaleiros, o autor afirma não conhecerrituais de investidura especificamente destinados aos cavaleiros antesdo século XII. “A cavalaria, antes dessa data, ainda está no limbo e oscavaleiros são apenas guerreiros, subalternos na maioria, que comba-tem por seus mestres e dos quais se exige somente força física, cora-gem, fidelidade e obediência. Essas são virtudes de base da futuracavalaria” (FLORI, 2005, p. 36).

Franco Cardini também sinaliza para essa questão quando afir-ma que:

A tendência para a especialização da profissão das armas e, em seguida,para a desmilitarização geral das sociedades romano-bárbaras (...) fezcom que as tradições antigas se mantivessem apenas nos grupos de eliteque eram as companhias de soldados agrupados em torno de príncipes;e a entrega solene das armas tornara-se mesmo patrimônio dos rituaisque assinalavam o acesso dos jovens príncipes ao mundo do poder. Sãoestas as bases da cerimônia que nos habituamos a definir como “revestirde armadura” e que, juntamente com o combate a cavalo e os sinaisexteriores da sua condição e do seu tipo de vida, teriam contribuídoprecisamente para a definição do cavaleiro. (CARDINI, 1989, p. 58).

Como podemos perceber, os primeiros tempos dessa cavalarianão foram circundados por uma áurea de fantasia e deslumbramento.Inicialmente os guerreiros que combatiam nessa corporação eram deorigem pobre, muitos não tinham como sobreviver e viam na atividadeguerreira uma possibilidade de conseguirem melhores condições de vidae ascender socialmente.

Desse modo, nem sempre aqueles que compunham a cavalariaeram de origem nobre. Essa instituição só se torna exclusividade danobreza no final do século XII, quando este grupo social se apropria dacavalaria, passando a retirar dela seus futuros membros. Então, deacordo com Léopold Génicot, nobreza e cavalaria fundem-se e a qua-lidade de pertencimento à ordem de cavalaria passa a ser hereditária(GÉNICOT, 2006, p. 284-286).

3. A ORDEM DE CAVALARIA

Uma das fontes primárias referidas no início desse texto é O Livroda Ordem de Cavalaria de Ramon Llull. Esse autor foi um filósofo catalão

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que viveu no século XIII e foi educado na corte do rei Jaime I, de Maiorca,daí a sua influência para os assuntos ligados a atividade guerreira.

Após ter sido convertido ao Cristianismo devido à visão repetidapor cinco vezes de Cristo crucificado, Llull deixa todos os seus bens efamília para seguir sua missão de conversão dos infiéis e de criação deum livro que seria o maior de todos e serviria de manual aos cavaleiros:

- Amável filho – disse o cavaleiro – eu estou perto da morte e meus diasnão são muitos, ora como este livro foi feito para retornar a devoção ea lealdade e o ordenamento que o cavaleiro deve ter para mantersua Ordem, por isso, belo filho, levai este livro à corte aonde ides emostrai-o a todos aqueles que desejam ser novos cavaleiros. Guardai-o eapreciai-o se amais a Ordem de Cavalaria. (LLULL, 2000, p.11, grifo nosso).

Llull escreve essa obra que é uma espécie de manual pedagógi-co de como se tornar um bom cavaleiro numa época em que a cavala-ria estava cada vez mais afastada dos ideais cristãos. Nesse sentido,ele afirma que um aspirante a cavaleiro só se tornaria um “bom cava-leiro” se seguisse os valores cristãos. Para isso o filósofo elenca algu-mas virtudes necessárias àqueles que desejavam ser bons cavaleiros,entre essas virtudes estão: justiça, caridade, lealdade, fidelidade, bon-dade, castidade e honra. Sendo possuidor dessas virtudes o guerreirotornava-se, então, o cavaleiro ideal.

Ramon Llull constrói esse ideal de cavaleiro numa época em quea cavalaria se apresentava em desprestígio quanto aos valores daIgreja, que vinha já há algum tempo tentando controlar o espíritoagressivo desses guerreiros.

A violência dessa época era provocada principalmente pelas guer-ras privadas e disputas de poder entre famílias. Para controlar aagressividade desses homens que atingia principalmente os mais neces-sitados, pobres e indefesos, a Igreja promovia alguns movimentos decontenção da violência da atividade guerreira como a Paz de Deus e aTrégua de Deus. A primeira se referia a não atacar alguns locais como,santuários, hospitais, Igrejas e pessoas como, padres, viúvas, donzelase pobres indefesos, caso isso fosse desobedecido a pena era deexcomunhão. Já a Trégua de Deus não permitia o combate em determi-nados dias da semana: da tarde de quinta-feira à tarde de domingo.Desse modo a Igreja tentava controlar aquilo que era impossível proibir.“Assim, embora sem proibir tout court a guerra (o que seria impensável,numa sociedade em que se verificava uma supremacia de guerreiros),limitava-se a guerra o mais possível”. (CARDINI, 1989, p. 59).

E nesse processo de envolvimento da Igreja com a atividadeguerreira, a instituição eclesiástica se utiliza de algo muito mais eficazpara tentar controlar a cavalaria: a transformação do ritual de investiduraem um sacramento litúrgico comandado pela voz protetora da Igreja.

Essa sacralização do adubamento do novo cavaleiro pode serobservada na seguinte passagem do Livro da Ordem de Cavalaria:

O escudeiro diante do altar deve ajoelhar-se e levantar seus olhos,corporais e espirituais, a Deus e suas mãos a Deus. E o cavaleiro devecingir-lhe a espada, para significar castidade e justiça; e, em significação

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de caridade deve beijar seu escudeiro e dar-lhe uma bofetada para quese lembre disso que prometeu e do grande cargo a que se obriga e dagrande honra que recebe da ordem de cavalaria.(LLULL, 2000, p.73 ).

Desse modo, a cavalaria passa a ser uma ordem guiada pelosideais da Igreja especialmente no processo de investidura do cavaleiro,fazendo com que esse se aproxime cada vez mais das virtudes cristãs.

4. UMA DEMANDA PELA FÉ

A Demanda do Santo Graal é uma fonte medieval que integra ociclo arturiano dos romances de cavalaria. Nesse romance em prosa cons-tituído pela reunião de vários textos com a mesma temática e sem umautor definido, podemos perceber a conjugação de vários elementos dacavalaria medieval como, por exemplo, a busca de aventura, a proteçãode donzelas em perigo, a lealdade entre companheiros de batalha.

O único original que nos restou dessa Demanda portuguesa é ocódice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena (MONGELLI, 1992, p.55).Esse documento, na verdade, é a tradução de um outro original, apreen-de-se daí as dificuldades a respeito das origens dessa chamada “matériada Bretanha”:

Não só por causa da enorme quantidade de textos, muitos deles aindainéditos, como também pelas numerosas versões de uma mesma obra,cada uma delas desfigurando o exemplar anterior, ao gosto do copista,que naqueles tempos de dava o direito de interferir na narrativa,restringindo-a ou ampliando-a em nome de motivos nem sempre claros.(MONGELLI, 1992, p.55).

Essa novela de cavalaria é uma narrativa sobre a busca, umademanda, dos cavaleiros de Rei Artur pelo Graal, uma espécie de vasosagrado, no qual se acreditava conter o sangue de Cristo. Como oreino de Camelot governado por Rei Artur estava passando por gran-des dificuldades, os cavaleiros da Távola Redonda2 partem em buscado Santo Graal para recuperar a prosperidade em Camelot.

Entre esses cavaleiros que partem em busca do Graal, há ocavaleiro esperado por todos: Galaaz, aquele que traria a paz e aprosperidade para o reino de Artur: “Rei Artur, eu te trago o cavaleirodesejado, aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de José deArimatéia, pelo qual as maravilhas dessa terra e das outras terão fim”.(MEGALE, 1999, p. 20).

Embora todos os outros cavaleiros da corte arturiana comoLancelot3, Erec, Ivain fossem homens honrados, corajosos e valenteseles não possuíam a principal virtude para atingir o Graal: a castidadee a virgindade. Somente Galaaz a possuía e era, portanto, o cavaleiroideal, seguidor dos valores cristãos e dos ideais da Igreja. Podemospercebem isso na citação acima em que Galaaz é descrito como per-tencente à linhagem de Davi.

Galaaz é em muitos momentos colocado à prova quanto ao cum-primento de sua missão, como no caso em que é tentado por umadonzela, filha do rei Brutus, que se enamora por louco amor à Galaaz:

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Assim amou a donzela Galaaz, mas nunca o vira nem souber que coisaera amor, e olhava Galaaz e prezava-o tanto em seu coração, mais quetodas coisas e como nunca mulher homem prezou; e por isso lhe pareciaque, se não o tivesse à sua vontade, morreria. E por isto o cuidava elaconseguir muito facilmente, porque o cavaleiro era muito jovem e muitoformosa. (MEGALE, 1999, p. 33).

Desse modo, enfrentando algumas provações para completarsua demanda em busca do Santo Vaso, Galaaz é único cavaleiro capazde atingir esse objetivo pois era um homem casto e obediente a Deus,ou seja, detentor das virtudes cristãs, sendo, portanto, um bom cava-leiro, o cavaleiro ideal.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das duas fontes aqui apresentadas: O Livro da Ordemde Cavalaria e A Demanda do Santo Graal podemos observar a conflu-ência de elementos religiosos para a cristianização da cavalaria.

Na obra de Ramon Llull o cavaleiro ideal era aquele que possuíaas virtudes cristãs de bondade, justiça, honra e castidade. Da mesmaforma, na novela de cavalaria do Graal percebemos a construção docavaleiro ideal exemplificado na figura do jovem Galaaz.

Uma cavalaria cristianizada e temente a Deus era uma realidadeque serviria de exemplo para a sociedade medieval. Desse modo, aIgreja através de longos e antigos processos como a Paz e a Tréguade Deus conseguiu sacralizar uma instituição essencialmente guerreirae pautada na prática da violência.

Os valores cristãos que foram incorporados à cavalaria aindahoje são considerados valores ideais a serem seguidos por todos aquelesque queiram se tornar bons cristãos e desejam seguir uma demandareligiosa de fé.

É diante dessas questões analisadas no decorrer do texto quereafirmamos a atualidade dos estudos medievais para a nossa socie-dade, que no século XXI ainda é uma sociedade fortemente cristã.

Notas:1 No Maranhão estão cadastrados junto ao CNPq os grupos Brathair – Grupo deEstudos Celtas e Germânicos e Mnemosine – Laboratório de História Antiga eMedieval. Há vários outros grupos de pesquisa no Brasil como o Programa deEstudos Medievais (PEM/UFRJ) e o Scriptorium (UFF) no Rio de Janeiro, oLaboratório de Estudos Medievais (LEME/USP) em São Paulo, entre outros.2 De acordo com o prefácio da obra Romances da Távola Redonda de Chrétiende Troyes houve toda uma elaboração a respeito dessa famosa mesa. Ela teriaem sua origem a influência de várias tradições célticas, entre as quais a da “Mesados Festins”, que em alguns lugares e em determinadas ocasiões podia vir a teruma forma arredondada.3 Lancelot era pai de Galaaz e embora considerado o melhor cavaleiro do mundo,cometia um grande pecado: traição. Lancelot mantinha uma relação adúltera coma rainha Guinevere, esposa de rei Artur.

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AnexoQuadro comparativo entre as virtudes que deveriam ser seguidas e os

vícios a serem evitados pelos cavaleiros.

Referências:A Demanda do Santo Graal. Texto sob os cuidados de Heitor Megale.São Paulo: T.A.Queiroz, 1988.BURKE, Peter. A Escola dos Annales: a revolução francesa dehistoriografia (1929-1989). São Paulo, Editora da UNESP, 1997.CARDINI, “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O HomemMedieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa:Editorial Estampa, 1982.FLORI, Jean. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da IdadeMédia. São Paulo: Madras, 2005.GÉNICOT, Léopold. “Nobreza”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval 2 V. São Paulo:EDUSC, 2002.LE GOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa:Editorial Estampa, 1979.RAMON LLULL. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283). Traduçãode Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência“Raimundo Llúllio” (Ramon Llull), 2000._______. Vida Coetânia (trad. de Ricardo da Costa). Disponível em:www.ricardocosta.comMONGELLI, Lênia Márcia. “A Novela de Cavalaria: A Demanda do SantoGraal”. In: MONGELLI, L. M.; MALEVAL, Maria do Amparo e VIEIRA,

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Yara F. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. SP: Atlas, 1992, p.55-78.SANTOS, Clóvis P. dos. “História e Psicanálise. As Mentalidades a partirda Metapsicologia de Freud e Lacan e um possível caso medieval”. In:ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Relações de Poder, Educação e Culturana Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba (SP): Editora Solis,2005, p. 39-45.TROYES, Chrétien de. “Lancelot, o Cavaleiro da Charrete”. In: Romancesda Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTOHUMANO*

Veraluce Lima dos Santos**

Resumo: Abordagem da tecnologia como desenvolvimento humano.Apresentamos as tecnologias instrumentais, simbólicas e organizadorascomo procedimentos técnico-científicos que contribuem para adaptar ohomem ao meio em que se insere.Palavras-chave: Tecnologia. Desenvolvimento humano. Tecnologiasinstrumentais. Tecnologias simbólicas. Tecnologias Organizadoras.

Abstract: Technology as human development approach. We presentinstrumental, symbolic and organizing technologies as terchno-scientificprocedures that contribute to adapt man to the environment in which he is in.Keywords: Technology. Human development. Instrumental Technologies.Symbolic Technologies. Organizing Technologies.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa redonda “Tecnologia e desenvolvimento humano”** Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão.Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Évora-Portugal.

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O homem evoluiu, não só como animal, mas também como sersocial; por isso, para o seu desenvolvimento físico e mental, é neces-sário que permaneça em contato com outros seres humanos. Como serôntico e ontológico, ele cria um mundo de cultura e de valores que éparte integrante de seu meio ambiente natural.

Assim, as características biológicas e culturais da natureza huma-na não podem ser separadas. A humanidade surgiu através do próprioprocesso de criar cultura, e necessita dessa cultura para a sua sobrevi-vência e ulterior evolução. [...] A evolução humana, portanto, progrideatravés de uma interação dos mundos interno e externo, dos indivíduos edas sociedades, da natureza e de cultura. (CAPRA, 2003, p. 291-292)

À proporção que o homem cria cultura, instrumentaliza-se. É paraa tecnologia, como forma de expressão de sua própria natureza, que elese volta para instrumentalizar-se, produzindo mudanças, no sentido deatender às suas necessidades de sobrevivência (comida, abrigo, saúdee segurança), necessidades de desenvolvimento (educação, emprego,industrialização) e necessidades de afirmação (riqueza, estabilidade ecrescimento). Podemos, assim, afirmar que “os produtos da tecnologiainvadem as nossas casas, as nossas escolas e os locais de trabalho,envolvendo completamente as nossas vidas” (REIS, 1995, p.15).

Nesse afã de atender às suas necessidades, o homem desenvol-ve tanto tecnologias instrumentais, quanto tecnologias simbólicas etecnologias organizadoras (SANCHO, 1998). Isso devido à sua capaci-dade para gerar esquemas de ação sistemáticos, aperfeiçoá-los, ensiná-los e transportá-los para grupos distantes no tempo e no espaço.

As tecnologias instrumentais são procedimentos técnico-cientí-ficos empregados na fabricação de utensílios, aparelhos, ferramentas,objetos em geral utilizados pelo homem para suprir suas necessidades,não só de sobrevivência, mas também, de desenvolvimento e de afir-mação, conforme já nos referimos anteriormente.

As tecnologias simbólicas são os procedimentos técnico-cientí-ficos usados pelo homem para intermediar sua relação consigo mesmo,com os outros e com o mundo em que se insere, através da represen-tação simbólica. Incluem-se, nesse tipo de tecnologia, a linguagem, ossistemas de escrita, o conteúdo curricular dos sistemas de ensino, alíngua como um código elaborado, os sistemas numéricos, a internetcom um sistema de rede que conecta computadores em todo mundo.

Quanto às tecnologias organizadoras, podemos dizer que são osprocedimentos técnico-científicos empregados na organização da so-ciedade e do controle do homem no que se refere à vida em socieda-de. Fazem parte desse grupo tecnológico “a gestão da atividade pro-dutiva (taylorismo, fordismo, gremialismo...), das relações humanas,técnicas de mercado...” (SANCHO, 1998, p. 25), bem como a escola,através da gestão e controle do processo ensino/aprendizagem.

As tecnologias instrumentais surgem com os primeiros instru-mentos primitivos, simples lascas de pedras que tornaram possível aconstrução de abrigo e instalações primitivas. Deram ao “homo habilis”

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um lugar na história: por ser capaz de dar às pedras formas instrumen-tais que o ajudaram a manipular seu meio ambiente de modo vantajo-so, tornou-se o ator principal da história, estabelecendo “a matrizmental necessária para o pensamento e o raciocínio, a linguagem e acultura” (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p. 29)

A tecnologia da produção de instrumentos foi se aperfeiçoandocada vez mais, tornando, assim, possível a fabricação de lâminas muitofinas e pequenas que permitiam ao homem costurar peles de animais parafazer vestimentas que o protegessem do frio, possibilitando-o a sobrevi-ver perto da linha do gelo. Também fez surgir novos instrumentos quefacilitavam a organização e a manutenção dos centros populacionais osquais cresciam cada vez mais: a) o arado puxado a boi aumentava a áreade terra trabalhável, contribuindo, assim, para que a agricultura de plan-tio e colheita freqüentes produzisse safras em seqüências mais rápidas;b) a roda d’água transformava os grãos produzidos em alimentos para ohomem; c) o aqueduto, cujo aparecimento ocorreu em 700 a.C, solucio-nou o abastecimento de água; d) a moeda facilitou o trabalho dos co-merciantes e diminuiu os riscos nas transações comerciais, pois as moe-das eram feitas de ouro de peso padrão e marcadas com um retrato domonarca, o que dava confiabilidade à peça; e) as casas passaram a serfeitas de tijolos secos a fogo em comunidades protegidas por armasmetálicas; f) a invenção da irrigação, no Oriente Médio, fez mudar ocaráter da terra, distribuindo as águas dos rios para as terras cultiváveisdos arredores das populações, controlando, assim, a sociedade e seuambiente e gerando excedente o suficiente para sustentar uma série deofícios como “pastores, lavradores, boiadeiros, pescadores, açougueiros,cervejeiros, padeiros, barqueiros, agricultores, jardineiros, construtores,carpinteiros, oleiros e tecelões, além de indivíduos dedicados à produçãode bens de luxo como jóias e candeias” (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p. 65);g) o relógio mecânico movido a peso, criado no século XIII, o qual tornoupossível novas formas de disciplinar as forças sociais.

Convém ressaltar que a escrita, uma tecnologia simbólica, favo-receu o surgimento de outras tecnologias instrumentais como, porexemplo, os tipos móveis inventados por Gutemberg. Esses tipos mó-veis eram letras metálicas1 duráveis e intercambiáveis, usadas paraimprimir palavras sobre o papel. A escrita também favoreceu a expan-são da imprensa por toda a Europa.

Segundo Burke; Ornstein (1998, p. 138-139),A imprensa espalhou-se pelo continente numa velocidade extraordinária.Em 1455, não existiam textos impressos na Europa, mas por volta de 1500vinte milhões de livros haviam sido publicados em 35 mil edições – umlivro para cada cinco habitantes. [...] Em um sentido muito especial, o livrofoi a primeira mercadoria industrial produzida em massa no sentido moderno.Nenhuma invenção se havia difundido tanto e tão rapidamente na história.

Com o avanço de várias ciências como Física, Química, Biologia,Matemática, dentre outras, o desenvolvimento científico associou-seao desenvolvimento tecnológico e fez surgir novos instrumentos. Den-tre eles, destacamos: o barômetro, aparelho utilizado para observa-

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ção meteorológica, criado por Torricelli; o telescópio, aparelho pormeio do qual Galileu descobriu as luas de Júpiter e manchas na super-fície do sol; o microscópio, que levou o conhecimento a se diferenciarem um grande número de novas matérias especializadas, como a biolo-gia, a botânica, a anatomia, a embriologia; o anemômetro que mediaos ventos para ajudar na previsão do tempo; o pirômetro que auxiliavaos foguistas; os instrumentos de navegação que tornaram as viagensmais seguras; a lançadeira voadora, que acelerou o trabalho do tece-lão, provocando o desenvolvimento de máquinas de fiar; o motor avapor de James Watt (séc. XVIII), que deu início à Revolução Industri-al; a ferrovia e navegação a vapor, que reduziram as viagens intercon-tinentais ou transcontinentais a uma questão de semanas, em vez demeses; o telégrafo elétrico, utilizado para a transmissão de informa-ções ao redor do mundo em poucas horas.

Ressaltamos que, entre as tecnologias instrumentais, encon-tram-se as tecnologias de informação e de comunicação, representa-das pela imprensa (livros, jornais, revistas, dentre outros), rádio, tele-visão, computador, dentre outras, que disponibilizaram novas formasde o homem agir sobre a realidade, possibilitando, assim, mudanças namaneira como vivemos, como trabalhamos e alterando nossas percep-ções sobre o mundo, nossas crenças e as próprias instituições.

As tecnologias instrumentais consolidaram grandes centros con-sumidores, com capacidade de absorver a fabricação de produtos emgrandes quantidades, o que reduzia os custos e justificava a introdu-ção das inovações, cada vez mais espetaculares como a televisão, osantibióticos, os tecidos sintéticos, os computadores, no quotidiano dohomem. Essas tecnologias instrumentais possibilitaram, ainda, o de-senvolvimento de pesquisas que conduziram à fabricação de foguetese satélites, levando o homem à lua e projetando sondas que hojeexploram o Universo celeste.

Essas mesmas tecnologias instrumentais também contribuírampara o surgimento de remédios cada vez mais potentes, de implantesartificiais e transplantes de órgãos naturais, de alimentos melhores,mais abundantes e baratos, por meio da engenharia genética. Elasfavoreceram, ainda, o surgimento da nanotecnologia, área de conhe-cimento que permite o controle da estrutura atômica da matéria, pos-sibilitando, assim, que supercomputadores do tamanho de uma caixade fósforos possam ser construídos e que supercondutores, asnanomáquinas, possam ser injetados no corpo humano para o combatede doenças. Esse tipo de tecnologia instrumental, também, contribuipara revolucionar o modo produtivo e, conseqüentemente, a economiade uma nação, o desenvolvimento do homem.

Além das tecnologias instrumentais, temos as tecnologias sim-bólicas, conforme já referido anteriormente. Consideramos que astecnologias simbólicas2 se configuram, também, como Tecnologias deComunicação; dizem dizem respeito à linguagem, à língua, aos siste-mas de escrita, aos conteúdos curriculares, à internet, dentre outros

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sistemas de representação simbólica, cada um com suas peculiarida-des. Dentre essas tecnologias simbólicas, fazemos ressalva apenas àlinguagem, à língua e à Internet.

A linguagem é considerada tanto um meio de comunicação quantouma aptidão humana. Como meio de comunicação, a linguagem é vistacomo uma atividade de comunicação presente em qualquer escala davida animal. Assim, são linguagens os movimentos (dança das abe-lhas), a reação a cores ou a odores (atração do macho entre asborboletas pelo cheiro), as produções vocais (aves, mamíferos). Essese outros expedientes também são utilizados pelo homem para entrarem contato com o seu semelhante.

Contudo, desde os tempos mais remotos, a linguagem é definidacomo uma

aptidão humana para associar uma cadeia sonora (voz) produzida pelochamado aparelho fonador a um conteúdo significativo e utilizar o resultadodessa associação para a interação social uma vez que tal aptidão consistenão apenas em produzir e enviar, mas ainda em receber e reagir àcomunicação. (BORBA, 2003, p. 9).

Assim compreendida, a linguagem se revela como o mais eficazinstrumento natural de comunicação utilizado pelo homem. Como “umconjunto complexo de processos – resultado de uma certa actividadepsíquica profundamente determinada pela vida social – torna possívela aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer” (CUNHA;CINTRA, 1987, p.1).

Muitas têm sido as áreas de conhecimento que tomam a lingua-gem como objeto de estudo. Na filosofia clássica, desde Platão, a lin-guagem é concebida como a expressão ou tradução do pensamento, ouseja, há uma relação entre as representações mentais e o mundo exte-rior, mediada pela linguagem. Os filósofos, no entanto, desconfiavam dalinguagem como veículo de erro e traição do verdadeiro pensamento.

Husserl (apud MERLEAU-PONTY, 1971, p. 319), ao propor umaeidética da linguagem, concebe-a (linguagem) como “um dos objetosque a consciência constitui soberanamente”, exercendo, assim, frenteao pensamento, o papel de “acompanhamento, substituto, lembreteou meio secundário de comunicação” (SANTOS, 2000, p. 102). Ela erao apresentar-se imediato e espontâneo das representações. Isto por-que era na linguagem que as representações

recebiam seus primeiros signos, recortavam e reagrupavam seus traçoscomuns, instauravam relações de identidade ou de atribuições; a linguagemera um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso[...] só se podiam conhecer as coisas do mundo passando por ela. Nãoporque fizesse parte do mundo numa imbricação ontológica [...], masporque era o primeiro esboço de uma ordem nas representações domundo; porque era a maneira inicial, inevitável, de representar asrepresentações. (FOUCAULT, 2002, p. 409).

A linguagem também é concebida como “a casa do ser; nelamorando, o homem ex-siste enquanto pertence à verdade do ser, pro-tegendo-a” (HEIDEGGER, 1991, p. 18). Ela (re)vela em palavras a ex-

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sistência do ser do homem, de sua essência, isto é, o modo humano de“ser”. Nesse sentido, a linguagem se constitui advento iluminador-velador do próprio ser, na sua interação com-o-outro, tornando-se olugar em que as relações sociais se constituem e os falantes se reali-zam como sujeitos.

Vemos, assim, que o homem se serve da linguagem para estabe-lecer uma relação viva consigo mesmo, com seus semelhantes e com omundo que o rodeia. Torna-se, portanto, “uma manifestação, umarevelação do ser íntimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e anossos semelhantes” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 206).

Como uma tecnologia simbólica, a linguagem se constitui, por-tanto, o elemento estruturador da relação do homem com o real, tor-nando-os presença.

A língua, outra tecnologia simbólica, é, ao mesmo tempo, parteintegrante, produto e veículo da cultura, entendida como “um conjun-to socialmente herdado de práticas e crenças que determinam a tramadas nossas vidas” (SAPIR, 1990, p. 165). Daí por que a língua nãopossuir existência isolada de uma cultura.

O indivíduo, para interagir com o mundo, vale-se do sistema dassignificações disponíveis, representado pela língua, pelo conjunto dosescritos e da cultura de que é herdeiro.

Merleau-Ponty (1971, p. 203) procurou definir a língua como “atomada de posição do sujeito no mundo de suas significações”. Elaexpressa, não o pensamento fechado sobre si mesmo e consciente dalei, mas o pensamento transformado pela cultura, pela realidade(re)significada, a partir do contexto em que o homem se insere. Pode-mos, então, afirmar que o indivíduo pensante se fundamenta no indiví-duo encarnado. É essa encarnação que a língua revela, através designos adequados às condições de uma situação concreta de interaçãohomem versus mundo.

Houaiss (2001, p. 1762) concebe a língua como um “sistema derepresentação constituído por palavras e por regras que as combinam”nos enunciados, empregado pelos indivíduos de uma comunidade lin-güística para se comunicarem. Esse sistema se constitui o principalmeio de comunicação e de expressão, falado ou escrito, na comunida-de lingüística.

A língua, também, se destaca como um fato de linguagem.Saussure (1970) apresenta-a numa relação dicotômica com a fala: alíngua como um sistema constituído que o indivíduo tem que assimilá-loe a fala como a forma de expressão do indivíduo. Isto porque a línguaé “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo que, por si só, nãopode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude deuma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comuni-dade” (SAUSSURE, 1970, p. 22).

Para Saussure (1970), a língua é, ao mesmo tempo, uma reali-dade psíquica e uma instituição social. Como realidade psíquica, éconstituída por imagens acústicas e significados. Como instituição so-

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cial, é um conjunto de convenções necessárias, que uma comunidadeadota para tornar possível o exercício da faculdade da linguagem nohomem. É como instituição social que a língua se impõe ao sujeito,tornando-se um elemento de coesão e organização social.

Outros teóricos, como os estruturalistas, além de Saussure, tam-bém, concebem a língua como um sistema imutável e estável, consti-tuído de “formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida talqual à consciência individual e peremptória para esta” (BAKHTIN, 1995,p. 82). Dentre eles, destacamos: Jakobson (1995), Bally (1965), Martinet(1979), Genouvrier e Peytard (s.d), Borba (2003).

Uma outra concepção de língua a ser destacada é a proposta porBakhtin (1995). Para ele, “a língua é uma atividade, um processo criativoininterrupto de construção (‘energia’), que se materializa sob forma deatos individuais de fala” (BAKHTIN, 1995, p. 72). Nesse sentido, a língua,por possuir como fundamento o ato de criação individual, revela-se comouma evolução ininterrupta, como uma criação contínua e como um fatosocial, cuja existência se funda nas necessidades de comunicação.

Como um dos integrantes da cultura digital, temos a Internet,que estamos enquadrando-a tanto como uma tecnologia simbólica quan-to de comunicação. É uma tecnologia simbólica por estabelecer a me-diação entre o homem e o meio em que se insere, através da repre-sentação simbólica – o signo. É uma tecnologia de comunicação por-que, por meio de uma rede interligada a computadores, possibilita acomunicação entre os homens situados em qualquer parte do planeta.

Com a Internet, o globo não mais se constitui apenas uma figuraastronômica, porém tornou-se o território no qual todos se encontramrelacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos. A antiga ordemde representações e dos saberes está cedendo lugar “a imaginários,modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda poucoestabilizados. [...] A partir de uma nova configuração técnica, querdizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humani-dade é inventado”. (LEVY, 2002, p.17).

A Internet possibilitou o desaparecimento do espaço planejado,emancipado das restrições naturais do corpo humano, e fez surgir umespaço cibernético, cujos elementos constitutivos estão inscritos natemporalidade ímpar de uma difusão instantânea. Com isso, “as distin-ções entre ‘aqui’ e ‘lá’ não significam mais nada”. (VIRILO apud BAUMAN,1999, p.25).

Nesse contexto, a condição do homem também é afetada, alte-rando-se. Isto porque a anulação tecnológica das distâncias tempo-rais/espaciais, em vez de homogeneizar a condição humana, polariza-a. Alguns indivíduos “podem agora mover-se para fora da localidade –qualquer localidade – quando quiserem. Outros observam, impotentes,a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés”. (BAUMAN,1999, p.25). Basta dizer que, sem sair de casa, o usuário da Internetviaja o mundo, faz uma série de coisas, ao ganhar uma nova identida-de na Rede. Ele se esconde por pseudônimo, usando um apelido ou

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nome de fantasia – o Nickname, como forma de manter o anonimatona Rede. Esse recurso possibilita a um mesmo indivíduo entrar, emcurto espaço de tempo, com nomes diversos e até personalidadesdiversas, dando, assim, uma volatilidade às identidades sociais. Assim,o usuário da Internet, sem ter o desafio de olhar nos olhos de seuinterlocutor, pode se transformar, passando, inclusive, uma outra ima-gem de sua pessoa como, por exemplo, ter dez ou vinte quilos amenos, ser dez ou vinte anos mais jovem. Ele pode ser mais simpático,engraçado e até deixar a timidez de lado; pode ser qualquer um quedesejar ser, pois o internauta, nome que recebe o usuário da Internet,possui a chance de virar ator comunicante.

Como uma tecnologia simbólica e de comunicação, a Internettem se tornado, podemos assim afirmar, o mais revolucionário meiotecnológico na Era da Informação. Ela (a Internet) tem criado um novosistema de comunicação que utiliza cada vez mais uma língua univer-sal, “promovendo a integração global da produção e distribuição depalavras, sons e imagens de nossa cultura, [...] personalizando-os aogosto das identidades e humores dos indivíduos”. (CASTELLS, 2005,p.40). Seu impacto pode ser sentido nas mais diversas áreas da vidacontemporânea: da educação à cultura de massa, do entretenimentoaos negócios, dos namoros virtuais aos casamentos reais.

Essa participação interativa do usuário mediada pela Internettem possibilitado o surgimento de uma nova linguagem, cuja grafia nosdeixa sem saber como proceder: “page” ou “peidge”?, “down” ou“daun”?, “end” ou “ende”? Outras vezes, “por conta da rapidez usa-seapenas a inicial de algumas palavras e a grafia de outras é alterada:‘que’ se transforma em ‘q’, ‘aqui’ que se transforma em ‘aki’, ‘você’ setransforma em ‘ce’ ou em ‘vc’ (NICOLACI-DA-COSTA, 1998, p.167).Outras vezes, ainda, as palavras são utilizadas na língua de origem,como é o caso do inglês.

Nasce, assim, na Internet, uma língua híbrida3, com uma lingua-gem cifrada, tendo na escrita sua forma de expressão predominante. Éuma língua fonética, muito econômica e lacônica. Essa língua híbridaapresenta não só uma alta incidência de neologismos e vocábulosingleses não traduzidos, como é o caso de setup, web page, homepage, link, chat, software, hardware, mouse, e-mail, dentre outraslexias, mas também as abreviações de expressões em inglês, como ocaso dos acrônimos btw (by the way ou a propósito), bbs (bulletinboard sistem), LOL (laughing out loud ou rindo alto), AFK (away fromkeyboard ou longe do teclado). Encontramos, ainda, nessa língua hí-brida, as abreviações que encurtam a tarefa de digitar, como por exem-plo: H/M (você é homem ou mulher), Bjs p vc, blz! (Beijos para você,beleza!), 9vidades (novidades), Que booooooommmmmm!!!!! TCDF(Tô Chorando De Felicidade), 4U (for you/para você).

Convém ressaltar que, com a Internet, à escrita foi atribuído umgrande desafio: tornar-se tão dinâmica quanto a fala, mostrando-se,assim, capaz de preencher vazios que, na fala, são supridos por recur-

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sos paralingüísticos como os gestos, o tom da voz, a expressão facial,um olhar ou até mesmo o silêncio. É uma escrita “leve, compacta,econômica e cheia de símbolos brincalhões que poupam palavras etoques” (NICOLACI-DA-COSTA, 1998, p.160), como os símbolos usa-dos para expressar emoções, os chamados emoticons ou ícones emo-cionais, cujo objetivo é representar o estado emocional ou atitude dequem escreve, ou seja, são códigos elaborados a partir de sinais depontuação, para expressarem sentimentos, emoções. Por exemplo: :-)ou :) feliz; :-D ou :D dando gargalhadas; :-O ou :O espantado; :-P ou:P fazendo careta; ;-) ou ;) piscando; :-( ou :( ou :-> triste ou muitotriste; :-S ou :S de boca fechada; :-ê ou :ê indiferente.

Esses emoticons são improvisados na hora da conversa na Redee construídos à base de caracteres do teclado do computador,formatando as diversas expressões de uma face. Há, ainda, os smileys,termo proveniente do inglês significando sorridente, alegre, com tra-ços mais refinados, coloridos, na maioria das vezes, colocados à dis-posição do internauta pelo próprio provedor da Rede dentro dos chatscomo forma de tornar a conversa mais divertida, mais criativa.

Tanto os emoticons quanto os smileys ganham sentido, à medi-da em que as mensagens vão sendo construídas, permitindo que aleitura seja efetivada porque se correlacionam com as simbologias e ossímbolos, quanto à convencionalidade, não são totalmente arbitrários.Segundo Epstein (1990, p.66), “Os símbolos [...], além de representa-rem uma idéia abstrata, transcendem a dimensão puramente cognitiva.O ‘significado’ de um símbolo transborda as fronteiras do racional, poisatinge as camadas mais profundas da psique humana”.

Nesse sentido, no ambiente virtual, o símbolo é utilizado emsubstituição a algo, ou seja, é acionado pelo usuário sempre que apalavra possa ser dispensada ou sempre que quiser associar à escritauma maior expressividade, substituindo, inclusive, a linguagem não-verbal como os gestos, a expressão facial, entre outros.

Um outro tipo de tecnologia que influencia o desenvolvimento dohomem diz respeito às tecnologias organizadoras que, conforme já men-cionamos anteriormente, referem-se aos procedimentos técnico-cientí-ficos de que o homem se vale para organizar a sociedade, criando,assim, condições de sobrevivência no espaço/tempo em que se insere.

Dentre as tecnologias organizadoras, destacamos a escola, umainstituição da sociedade responsável por “preparar crianças para avida em sociedade, em particular, nos domínios que eram outrora dacompetência da família, da igreja e da colectividade” (ALVES, 1992, p.34). Ela (a escola) está sujeita a exigências bastante contraditórias:de um lado, deve se mostrar competente em cumprir a missão a que sedestina, ou seja, ajudar aos que nela adentram a encontrarem o seulugar na sociedade e dela participarem de forma atuante; de outro,deve se adaptar ao mundo exterior em constante evolução, fazendo-aperder o espaço que ela desde sempre ocupara.

Heidegger (1998, p. 18), referindo-se à Escola Superior, assimse manisfesta:

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Ali defronte, do outro lado da rua, está o prédio da Escola Superior. Algo queé. Por fora podemos examiná-lo de todos os lados, por dentro podemospercorrê-lo todo do portão ao sótão, registrando tudo que se nos apresentar:corredores, escadas, salas e instalações. Por toda parte encontraremos entese até numa ordem bem determinada. Mas onde está o Ser dessa EscolaSuperior? Sem dúvida ela é. O prédio é. Se alguma coisa pertence a esseente será o seu Ser e, não obstante, não o encontramos dentro do ente.

Em sua descrição, ele pergunta pelo Ser da Escola. Isso nos fazafirmar que o Ser do ente Escola está na cultura que se faz presentenela como construção humana, ou seja, ela (escola) deve ser o resul-tado de uma história que não está circunscrita a suas paredes e mu-ros, ao edifício como um todo, mas, sim, o resultado de uma culturaconstruída pelo próprio homem, visto como, no dizer de Espósito (1993,p. 27), “um ser de significados, ser histórico, precedido por tradições,portanto, sujeito às facticidades, sejam estas derivadas do mundo emque habita, sejam próprias à sua condição de humano”.

Ainda Espósito (1993, p. 30), buscando definir a escola, vaiapresentá-la como “uma instituição peculiar que visa à estabilidade, ondese ministra a muitos, metodicamente, um determinado conjunto de dou-trinas, leis e princípios que regulam um sistema”. Assim, a escola, a partirdas políticas educacionais propostas pelos sistemas nacionais de ensino,põe em prática as reformas e as mudanças no processo ensino/aprendi-zagem. Cabe, portanto, a ela não só procurar desenvolver a formação dehábitos, atitudes, habilidades, valores, convicções, etc., mas tambémencarnar os conteúdos culturais, convertê-los em disciplinas escolaresou áreas de conhecimento, transformando-os num tipo peculiar de saber– o saber escolar – capaz de interferir na cultura da sociedade.

A escola também é concebida como “um instrumentopoderosíssimo para regular e construir a pluralidade cultural e fazercaminho para a unidade da ciência” (NIZA apud PEÇAS, 2005, p. 151).

Em tempos de globalização, em que nos deparamos com umdesenvolvimento ímpar da informação, quer no que se refere às fon-tes, quer no que diz respeito à capacidade de difusão, o aluno chega àescola trazendo dentro de si um mundo que ultrapassa em muito oslimites da família e da vizinhança, considerados seus primeiros grupossociais. Os meios de informação e de comunicação entram em concor-rência ou, podemos assim dizer, em contradição com o mundo escolar,através de suas mensagens lúdicas, informativas, publicitárias bemcriativas, oferecendo às crianças uma gratificação instantânea semexigir-lhes nenhum esforço, o que não acontece com a escola: paraalcançarem sucesso, devem se esforçar o máximo.

Essa nova forma de estar no mundo exige da escola um novopapel: possibilitar ao aluno “encontrar, organizar e gerir o saber, guiandomas não modelando os espíritos, e demonstrando grande firmeza quantoaos valores fundamentais que devem orientar toda a vida” (DELORS,2000, p.155); exige que a escola esteja aberta para o mundo, assimi-lando e reconstruindo o saber, descortinando outros mundos e abrindonovas janelas do mundo do conhecimento, de forma democrática.

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Assim, a escola deve tornar-se um espaço permeável à influênciade projetos político-pedagógicos voltados principalmente para a cons-trução de uma ordem social mais igualitária, universalizando a cultura,promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico e a cidadania,para ser, de fato, uma instituição humana onde o ser se demora.

Isso posto, podemos reafirmar que as tecnologias, tanto ins-trumentais, quanto simbólicas e organizadoras, têm mantido estreitarelação com a evolução humana, em consonância com o desenvolvi-mento do mundo. Todo esse aparato instrumental tecnológico, simbó-lico e organizacional proporciona ao homem um maior poder de ditarseu próprio destino e de dominar um mundo cada vez maior.

Notas:1 Esta técnica já havia sido desenvolvida na Coréia (séc. XIV), porém seu uso foipermitido exclusivamente para repor certos textos religiosos que haviam sidodestruídos pelo fogo. Após completar o trabalho de reposição, o maquinário foidestruído. (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p.138)2 O termo simbólicas está significando o conjunto de símbolos próprios de umpovo, de uma época.3 Considerando que hibridismo significa um processo de formação de palavrascom duas ou mais raízes de línguas diferentes, o termo híbrida está significando aimbricação dos tipos de signos que estão a ser utilizados na comunicação realizadano ciberespaço.

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O TRABALHO SOB O SIGNO DODESENVOLVIMENTO HUMANO*

Ilza Galvão Cutrim**

Resumo: Análise de discursos sobre a noção de trabalho, a partir dosconceitos de Bakhtin sobre dialogismo. Os discursos analisados marcam oinício do processo de industrialização no Maranhão.Palavras-chave: Discurso. Trabalho. Dialogismo. Industrialização.

Abstract Speeches analysis about the notion of work starting from Bakhtin’sconcepts about dialogism. The speeches analyzed set the start of theindustrialized process in Maranhão.Keywords: Speech. Work. Dialogism. Industrialization

*Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa-redonda “Tecnologia e desenvolvimento humano”.**Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista-UNESP/Araraquara. Professora do Departamento Acadêmico de Letras – CEFET/Maranhão. E-mail: [email protected]

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Nosso trabalho tem por objetivo tecer uma breve discussão so-bre a relação entre tecnologia, desenvolvimento humano e trabalho, apartir da análise de discursos que circularam em diferentes épocas,mas que remontam a um mesmo fato histórico: a industrialização noMaranhão – mais especificamente na capital São Luís – com aimplementação de um parque fabril, no final do século XIX. Procurare-mos identificar na voz do patrão o ideal burguês de desenvolvimentohumano, e na voz de uma ex-operária a consolidação desse ideal.

Estabelecemos um diálogo com a Análise do Discurso francesa(AD), que entende o discurso enquanto processo enunciativo, em cujamaterialidade exibe-se a articulação do lingüístico com a História, eque para analisar o texto em sua totalidade, discute questões taiscomo interdiscursividade, intertextualidade e heterogeneidadediscursiva. Ao analisar as várias vozes que tecem os fios de um texto,a AD problematiza a diversidade de lugares enunciativos em que seapresenta o enunciador. E parte do princípio segundo o qual os senti-dos, sob o ponto de vista discursivo, são produzidos pela materialidadeda língua, por meio de palavras, mecanismos sintáticos e enunciativos.

Fiorin (1997, p. 23), ao diferenciar intertextualidade deinterdiscursividade, separa a noção de texto e discurso. Para ele,intertextualidade “é o processo de incorporação de um texto em ou-tro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”, enquanto a interdiscursividade “é o processo em que se incorpo-ram percursos temáticos e ou figurativos, temas e/ou figuras de umdiscurso em outro”. Vale lembrar que o texto é tão heterogêneo quan-to o discurso, pois tanto um quanto outro são constituídos por vozes,que formarão a memória discursiva de uma sociedade.

Segundo Brandão (1998, p. 128),A memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado nointerior de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos: comocertos enunciados estão na origem de atos novos, como são retomadosou transformados, qual a força de sua permanência.

Nossa análise tem como foco a construção discursiva do presi-dente da Companhia de Fiação Rio Anil, Henri Airlie, e de seu secretário,Antônio Cardoso Pereira, na ocasião de inauguração da fábrica, tambéme de uma tecelã, ex-operária. Seguindo as trilhas da materialidade tex-tual, destacaremos o ideário de desenvolvimento humano, associado àidéia de trabalho, presente no discurso do presidente e seu secretário,e a relação dialógica que se estabelece com o discurso de uma ex-operária, e os efeitos de sentidos que resultam desses discursos.

1. SOB O DISCURSO DO NOVO

O arroz e o algodão constituíram por um longo período a base daeconomia maranhense. Nos anos trinta do século XIX registra-se umdeclínio na lavoura de arroz e uma pausa na de algodão, tendo, dentreoutras causas, a queda dos preços e das exportações, assim como aconcorrência internacional enfrentada por esses produtos.

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A implementação da indústria têxtil no Maranhão inicia-se nofinal do século XIX como decorrência do declínio na economia agrária ecomo um marco histórico da Revolução Industrial no Estado. O ano de1886 é marcado como o início da era das fábricas de tecido, e aprimeira das nove fábricas que iriam movimentar a economia do estadoé inaugurada na cidade de Caxias. Em 1921, operavam nove fábricasno Maranhão. Em menos de uma década, o parque fabril maranhensemobilizava um capital que girava em torno de oito milhões e oitocentosmil réis (ITAPARY, 1998).

Os discursos que circulam nos jornais apresentam as fábricascomo símbolo de

uma era de prosperidade para a Pátria Maranhense que de há certo tempopara cá vai despertando do marasmo, da indiferença em que permaneceulongos anos, da atrofia, com o organismo depauperado pelos vícios daescravidão. As fábricas surgem de toda a parte e com elas o despertar deuma vida nova, cheia de atividade, urgida pelo progresso, prometendo-nos um futuro bonançoso que compense a esterilidade do passado. (Ojornal A Pacotilha, de 23 de agosto de 1891).

Com a inauguração das fábricas instaura-se o discurso do novo,de um futuro promissor, em contraposição a um passado tomado pelomarasmo. Cria-se na burguesia rural uma conotação de burguesia in-dustrial urbana. Para a população carente as fábricas significam gera-ção de empregos. Segundo Itapary (1998), as fábricas geraram emtorno de três mil, quinhentos e trinta empregos.

É nesse clima de mudança, de grandes expectativas, embaladopelo progresso que se inaugura uma das principais fábricas têxteis deSão Luís, a Rio Anil, que nasce sob o discurso de desenvolvimento.

2. NAS VOZES: trabalho e desenvolvimento

Em seu discurso de inauguração, o presidente da Companhia RioAnil, Henry Airlie, dá ênfase ao papel que a fábrica desempenhariacomo geradora de trabalho:

“quem quiser trabalhar, achará o trabalho, ganhará dinheiro, não só parasuprir o sustento necessário para o corpo, mas também para comprarcoisas para agradar o paladar, para agradar o corpo com ornamentospessoais ou para as casas, para comprar livros para a educação e adornodos espíritos.1

A fábrica se apresenta como frente de trabalho, e o trabalhoestá associado à liberdade – em contraposição ao trabalho escravoexplorado até então – ao poder de compra, ao consumo. Prega-se odiscurso da oportunidade: “quem quiser trabalhar, achará o trabalho”. Oenunciador constrói efeitos de sentido segundo o qual haveria empre-gos para todos os que quisessem. Existe a reatualização de uma idéiabastante difundida na sociedade de que só fica desempregado quemquer; serviço há para todos. Isso se reflete no enunciatário como umapelo que não considera se há mão de obra especializada. Todos pode-

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riam empregar-se na fábrica, bastaria se apresentar. Destacamos tam-bém o discurso da mudança: o trabalho remunerado, em contraposiçãoao trabalho escravo que até então movimentou a economia maranhense.Daí o operário teria como comprar para comer, vestir; poderia agradar ocorpo com ornamentos pessoais. Além disso, poderia investir em educa-ção. Esse enunciado constrói uma identidade de operário a partir doconsumo que rege a sociedade capitalista: ele será cidadão no momen-to em que se tornar um consumidor preocupado não só com o “sustentonecessário para o corpo”, como também com o “ornamento para o corpoe para a casa”. Esses são padrões que regem o modo de vida burguês,evidenciando um entrecruzamento de discursos que permeiam uma so-ciedade movida por bens de consumo. Em São Luís, o modo como asociedade burguesa encontrou para enfrentar a crise que afetou a la-voura de algodão e açúcar foi a ostentação, imitando os padrões euro-peus, particularmente o que se consumia na França. Crescia o consumoe com ele o desejo de se manter as aparências.

Ressaltamos um outro fragmento do discurso de Henry Airlie,que se fere à inserção da Rio Anil no movimento industrial que seespalhava pelo país:

“o nosso querido Maranhão não tem sido dos mais calados; pelo contrário,tem tomado parte muito saliente e distinta neste caso. Há entre nós muitasempresas que nos tornarão mais independentes, abrirão mais portas parao progresso, mais e mais facilidades para a educação industrial e artísticado povo do Estado.”

O enunciador assume, discursivamente, uma identidademaranhense ao se referir ao Estado como “o nosso querido Maranhão”.Destaca a iniciativa de empresários maranhenses – incluindo-se tam-bém já que ele é um dos pioneiros nessa iniciativa – em busca de umasaída para o problema que vinham enfrentando com o fim da economiade base escravista. A participação de muitas empresas nessa emprei-tada com o propósito de tornar o Maranhão mais independente econo-micamente destaca o espírito empreendedor da época, mas vela seressa a solução encontrada para superar a crise das lavouras de expor-tação. O discurso do empreendedorismo disfarça o discurso do temor,da insegurança no novo negócio.

Ao instalar um nós (“muitas empresas que nos tornarão maisindependentes”, o enunciador procura criar um jogo de cumplicidadecom o enunciatário: este também se sentirá fazendo parte dos quese beneficiarão, de alguma forma, com o parque fabril. Esse propósitoé reforçado com a idéia de que haverá “mais facilidades para a edu-cação industrial e artística do povo”. A referência a povo consistenuma manobra discursiva, cuja intencionalidade é faze-lo acreditarque também teria sua parte no progresso. Vale lembrar, entretanto,que nunca houve um investimento na educação industrial do povomaranhense. Não havia mão de obra especializada, de aprimoramentotecnológico, pois o maquinário comprado na Inglaterra já estava ob-soleto para a época.

Ao concluir, o presidente da Rio Anil pede a todos:

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façamos votos para que em nós, os diretores, não falte zelo, diligência,prudência e, COM LICENÇA DO SENHOR CÂMBIO, economia para que omais rapidamente possível concluamos a tarefa de instalação da indústria,que será um movimento do espírito empreendedor dos maranhenses.

Esse discurso torna evidente a preocupação de inaugurar e man-ter a fábrica operando. Haveria necessidade de zelo, diligência, pru-dência e permissão do câmbio. Apesar de representar prosperidade, aRio Anil operou praticamente no vermelho desde sua inauguração en-frentando grandes dificuldades, quase havendo desistência em suainstalação. A moeda nacional, o réis, desvalorizava diante da libra, oque obrigou os donos a aumentarem o capital da fábrica de 800 para1.800 contos de réis. Com a eclosão da I Guerra Mundial, o preço docarvão mineral sofreu aumento, o que obrigou a Rio Anil a buscaralternativas de energia. (ITAPARY, 1985).

A seguir, transcrevemos partes do discurso do secretário da RioAnil, Antônio Cardoso Pereira.

Antigamente, isto é, antes de termos a idéia da montagem desta fábrica,talvez aqui não se consumisse um ano o capital que presentemente sedepende por semana; e é por isso que o povo tem afluído de todos oslados.Assim, vemos este lugar ir progredindo, enchendo-se da vida satisfeita deuma população alegre e laboriosa que todos os dias aumenta [...]devemosconvir que uma nova era de prosperidade e bem-estar se vai implantarentre nós e que não será para admirar ver convertido este aprazível terreno,em pouco tempo, numa risonha e pitoresca vila suburbana.

Antigamente marca uma oposição temporal entre um passadoque antecede a fábrica e um presente marcado pela fábrica. O passa-do simboliza uma época de poucos investimentos, enquanto o presen-te se destaca pela audácia dos empresários, pela quantidade de capi-tal investido, pelo grande movimento do povo e por tudo o que afábrica representa: a salvação da economia, a industrialização, o pro-gresso, a esperança, o novo.

Há um diálogo com o discurso de progresso e desenvolvimentoapregoado pelo presidente. Na voz do secretário esse discurso serepete pela esperança numa “nova era de prosperidade e bem-estar[que] se vai implantar”. Essa “nova era” inaugura a nova fase econô-mica maranhense .

A materialidade discursiva destaca o labor, sinônimo de traba-lho. Não só o trabalho dos administradores, mas o trabalho operário deuma “população de vida satisfeita, alegre e laboriosa”. O operário ga-nha o status de homem realizado, feliz, que trabalha por prazer. Aocontrário da economia de base escravocrata, que via o trabalho comosinônimo de humilhação, na era da indústria o trabalho assume outraconcepção. Na “nova era da prosperidade”, o discurso do progressoprever a emancipação das cidades: “e que não será para admirar verconvertido este aprazível terreno, em pouco tempo, numa risonha epitoresca vila suburbana”. As fábricas, instaladas nos arredores docentro comercial da cidade, pouco a pouco estimularam a criação dos

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primeiros bairros proletários, localizados em volta desses núcleos in-dustriais. Em São Luís, destacam-se a criação dos bairros Anil, Camboa,Madre Deus, Fabril.

O sonho de criação de uma vila pitoresca oculta o propósito dosempregadores: a construção das casas nas proximidades da fábricagarantia a força de trabalho por um período mais longo e, ao mesmotempo, assegurava maior assiduidade na produção.

Segundo o Relatório da Diretoria da Companhia de Fiação e Te-cidos Rio Anil (1894, p. 22 e 37),

Não havendo no bairro do Anil casas para alugar, próprias para residênciasdos empregados e operários da fábrica, reconhecemos a imperiosanecessidade de mandar construí-las por conta da Companhia, pois sãointuitivas as vantagens daquele pessoal morar junto à fábrica.Achamos de bom resultado a construção destas casas porquanto podemcontribuir para a localização do pessoal e consequentemente para boamarcha dos trabalhos da fábrica.

A instalação das indústrias nos arredores da cidade fazia surgir ossubúrbios. Em São Luís, o crescimento do bairro do Anil deu-se graças àcirculação de capital e ao comércio resultante da instalação da fábrica. Avenda de produtos como gêneros alimentícios, tecidos, ferragens e miude-zas em geral elevou o bairro, em 1919, à categoria de Vila. (LIMA, 2002).

Ao pensarmos o signo como um embate de idéias, em cujo inte-rior criam-se imagens que representam e produzem efeitos de alteridade,podemos entender que o sujeito se constrói no e pelo discurso e éconstruído no e pelo discurso alheio. O discurso da ex-operária CelesteSantos, que trabalhou na fábrica Cânhamo2, no início dos anos 40,mantém com os discursos do presidente e do secretário uma relaçãodialógica, na medida em que a concepção de trabalho mantém a mes-ma relação: a oportunidade:

[...] Então tinha muito serviço. Tinha a fábrica Cânhamo que levava muitaspessoas, tinha muita gente na fábrica e na São Luís, logo agarrada, nomesmo bairro [...]. E tinha emprego pra todo mundo, que hoje a vida cresceu,porque fechou essa fábrica e ficou esse bando de gente desempregada ecada um tinha suas famílias [...]. Marido e mulher trabalhavam na mesmafábrica, os filhos já foram ficando, o maiorzinho que já dava pra entrar. Amãe já pedia pro chefe, já arrumava pra trabalhar na fábrica. Eu quandoentrei de menor, tinha 14 anos. Então era a vida que a gente levava: maridoajudava a mulher, as mulheres ajudando os maridos, as crianças já estavamficando maiorzinhas, uns estudavam de noite, outros já não estudavam maisporque não tinham possibilidade, já naquela influência de ter a sua vida, detrabalhar, ajudar em casa, ter as suas coisinhas.”3

Em todos os textos analisados há uma regularidade discursivaque associa trabalho a desenvolvimento humano. No discurso da ex-operária ele é apresentado como sinônimo de uma vida digna, reto-mando, discursivamente, o provérbio “O trabalho dignifica o homem”,que também pode ser percebido nos discursos de Airlie e Pereira. Osujeito-operário vê a fábrica como um lugar de emprego para toda afamília; um lugar de possibilidades, onde todos tinham oportunidades.

Não há uma consciência das condições de exploração do traba-lho infantil e do trabalho feminino. No imaginário da ex-operária as

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fábricas eram uma extensão da casa e um meio de garantir o sustentoda família: “Marido e mulher trabalhavam na mesma fábrica, os filhos jáforam ficando.”

O termo trabalho, nos séculos XIX e XX no Brasil, vincula-se àinstalação das relações sociais, ocasião em que o trabalho realizadopelo escravo é substituído paulatinamente pela mão de obra, remune-rada, do trabalhador imigrante. “Emprego”, na acepção de cargo, fun-ção, ganha maior representatividade com a industrialização.(SARGENTINI, 2003, p. 130) No enunciado da ex-operária destacam-se expressões que denominamos de quase sinônimas: “serviço”, “em-prego” e “trabalho”. Entendemos “serviço” como oportunidade paratodos os que quisessem uma ocupação (Então tinha muito serviço.).Há aqui um entrecruzamento com a voz do presidente da fábrica (“quemquiser trabalhar, achará o trabalho”); “emprego” como função (para osoperários haveria a função de operar os teares, as caldeiras) seguindoa acepção de Sargentini, e “trabalho” como um elemento que ressoa-va na memória discursiva do operário como base de desenvolvimento,mecanismo de mudança da condição de uma vida de miséria para umavida de estabilidade: “ajudar em casa, ter as suas coisinhas”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAISA Revolução Industrial promoveu um conjunto de mudanças

tecnológicas com impacto no processo produtivo. As máquinas foramsubstituindo a mão de obra. Mas antes dessa substituição elas preci-savam ser operadas e para isso era necessário que houvessecapacitação por parte de quem fosse executar esse serviço. SegundoGrinspun (2001, p. 51), o grande desafio da tecnologia é o desenvolvi-mento tecnológico e suas repercussões numa sociedade, pois ele vaidepender da capacitação científica da sociedade; e para que hajaformação científica, é necessária uma educação tecnológica.(GRINSPUN, 2001, p. 51 In Educação tecnológica).

Historicamente, a tecnologia está relacionada à evolução e mu-danças que ocorreram em nossa sociedade. O ideal de trabalho apre-goado pela burguesia fabril4 e assumido pela classe trabalhadora nãofoi suficiente para possibilitar um desenvolvimento do trabalhador comtodos os seus direitos reconhecidos; mas possibilitou o desenvolvi-mento de um lugar suburbano para a condição de Vila e hoje para acondição de bairro com certa independência.

O discurso de inauguração de Henri Airlie e Antônio CardosoPereira se presentificam na memória de operários, instaurando sempreum desejo de renovação, tendo o emprego como eixo de desenvolvi-mento e mudança. A recorrência desse discurso se manifesta na me-mória discursiva de uma ex-operária, que vê a relação de trabalhocomo um fio condutor para o desenvolvimento do rendimento familiar,para o sustento da casa, para o consumo.

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Notas:1 Os fragmentos dos discursos do presidente e do secretário da Fábrica Rio Anilforam retirados de ITAPARY, J. A falência do ilusório. Memória da Companhia deFiação e Tecidos do Rio Anil. São Luís: ALUMAR, 1998.2 A fábrica Cânhamo hoje abriga um Centro de Artesanato, o CEPRAMA.3 In: BARROS, V. Imagens do moderno em São Luís. São Luís: UNIGRAF, 2001.4 É importante ressaltar que estamos tratando especificamente do bairro do Anil.

Referências:BARROS, V. Imagens do moderno em São Luís. São Luís: UNIGRAF,2001.BRANDÃO, H. N. Subjetividade, argumentação e polifonia. A propagandada Petrobrás. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.FIORIN, J. L. O romance e a simulação do funcionamento real do discurso.In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido.Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.GRINSPUN, M. P. S. (Org.) educação tecnológica: desafios eperspectivas. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001.ITAPARY, J. A falência do ilusório. Memória da Companhia de Fiação eTecidos do Rio Anil. São Luís: ALUMAR, 1998.JORNAL A PACOTILHA. São Luís, 23 de agosto de 1891.LIMA, N. O. O bairro do Anil: apogeu e decadência. Monografia CursoGeografia. Universidade Estadual do Maranhão, São Luís, 2002. RELATÓRIO DA DIRETORIA DA COMPANHIA DE FIAÇÃO E TECIDOS RIOANIL, 1894, p. 22 e 37.SARGENTINI, V. O. A teatralidade na geração de empregos: mídia nacampanha eleitoral. In: GREGOLIN, M. R. (Org.) Discurso e mídia: acultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.

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REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDESÃO LUÍS: além da retórica munici-

palista, o que serve como entravepara sua “efetivação”?*

Eduardo Celestino Cordeiro**Juarez Soares Diniz***

Resumo: O estudo inclina-se na questão metropolitana, especificamente na cadeiade conseqüências que perpassam por espaços não metropolitanos. Taisconseqüências têm influenciado articulações peculiares nos atores políticos, dentreelas, há a eminência de um discurso regionalista, muitas vezes, em confrontocom a retórica municipalista pós-1988. O caso da Grande São Luís, onde se observaa tentativa da chamada “efetivação da metropolização”, é um palco emblemáticodesse quadro. Analisou-se o papel da dimensão espacial da Grande São Luís paraa construção política dos arranjos gestor desta região, que legalmente é tidacomo metropolitana.Palavras-chave: Relações intergovernamentais. Regiões metropolitanas. RegiãoMetropolitana da Grande São Luís

Abstract: The study tends to the metropolitan subject, specifically in the chain ofconsequences that pass by non metropolitan spaces. Such consequences havebeen influencing peculiar articulations in the political actors, among them, there isthe prominence of a speech regionalista, a lot of times, in confrontation with therhetoric municipalista powder-1988. The case of the Larger São Luís, where oneobserves the attempt of what is called “the metropolitan’s accomplishment” is anemblematic stage of that case. The role of the spatial dimension of the GreaterSão Luís was analyzed for the political construction of a government of this regionthat is legally considered as metropolitan.Keywords: Intergovernmental Relationships. Metropolitan areas. Metropolitan areaof the Larger São Luís.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa-redonda “Região metropolitana da grande São Luís: além da retóricamunicipalista, o que serve como entrave para sua ‘formação’?”.**Bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão. Email:[email protected]*** Doutor em Políticas Públicas. Professor Adjunto do Departamento Geociência(UFMA). Coordenador Científico do Núcleo de Estudos Avançados em GeografiaHumana (NEAGH/DEGEO/UFMA). Email: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Como constituição legal, a Região Metropolitana da Grande SãoLuís (RMGSL) vem sendo discutida no meio político maranhense, instigan-do em diferentes setores sociais o debate da questão metropolitana.Para a Geografia, as regiões metropolitanas (RMs) são produtos espaciaisespecíficos, sua existência é concreta, desde a materialidade construída,até as relações e processos que a produz e re-produz, portanto, não éproduto de um ato legal. Essa espacialidade, devido suas grandes dimen-sões (irrestritas ao tamanho populacional), apresenta claramente proble-mas sociais que não se encerram nas fronteiras político-administrativasdas cidades que a constitui – são problemas com amplitudessupramunicipais. Assim, são lugares de notória necessidade do exercíciodas relações intergovernamentais (RIGs), pautadas, principalmente, noparadigma da gestão integrada e compartilhada em escala multiterritorial,base das políticas que almejam ser metropolitanas. Esse paradigma seapresenta promissor aos diferentes centros urbanos, entretanto, é noscentros com caráter metropolitano onde eminentemente ele se colocacomo princípio básico das políticas urbanas. Considerar tal proposição, éadicionar uma importante variável para se entender o porquê da não“efetivação da metropolização da Grande São Luís”.

2. “EFETIVAÇÃO DA GRANDE SÃO LUÍS”: o que issosignifica?

Usado por políticos da RM, o termo aparece, na mídia jornalísticae em discursos políticos, relacionado à definição dos limitesintermunicipais da RM, seria, segundo esses discursos, o ponto chavepara tornar a RMGSL legitima e passível de receber os recursos fede-rais reservados às RMs brasileiras1. O fragmento jornalístico a seguirtraz um depoimento típico da concepção do que seria a “efetivaçãometropolitana” da Grande São Luís, observadas em falas publicas dospolíticos que abordam a questão:

A deputada Telma Pinheiro, presidente da Comissão de Assuntos Municipaise de Desenvolvimento Regional, disse que “não há mais como impedirque a metropolização saia do papel para realmente acontecer na prática”.Segundo ela, para atingir este objetivo, o primeiro passo é definir oslimites territoriais. (Notícia do site da Assembléia Legislativa do Estado doMaranhão, http://www.al.ma.gov.br, acessado em 10/02/2007)

É bom ressaltar que a referida fala foi registrada em momento oqual a Assembléia Legislativa do Estado, procurou cooperação técnicacom o IBGE, com finalidade de demarcação técnica dos limitesintermunicipais da ilha. Mas, se a demarcação dos limites pode ajudara resolver questões pontuais, ela, todavia, não ultrapassa a visão eretórica municipalista, marcante no segundo momento da trajetória dotrato político da questão metropolitana no país (AZEVEDO; GUIA in:RIBEIRO 2004), podendo ser apontada como um dos maiores empeci-lhos, se não a consolidação, ao menos, à estruturação mais abrangentee efetiva de políticas para região metropolitana.

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Se por um lado o discurso político em voga na RMGSL diz que paraa efetivação “sair do papel” dever-se-ia primeiro definir os limitesintermunicipais da RM, por outro lado, analisando a Lei estadual n.° 69de 2003, que dá nova redação à Lei de n.° 38/1998, a qual dispõe sobreRMGSL, nota-se que legalmente a RMGSL já existe, ou seja, juridica-mente está efetivada. Porém, nesta mesma Lei, existe um conjunto dedisposições que norteiam o arranjo institucional de gestão para a RMGSL.Dentre as disposições, está a definição dos limites municipais como umadas treze categorias consideradas de “interesse metropolitano”,verificadas na transcrição abaixo do quarto artigo da Lei:

Art. 4º - Considera-se de interesse metropolitano os seguintes serviçoscomuns aos municípios que integram a Região Metropolitana da GrandeSão Luís;I – planejamento integrado de desenvolvimento econômico e social;II – saneamento básico, notadamente abastecimento d’água, rede deesgoto sanitário e serviços de limpeza pública;III – uso do solo metropolitano;IV – transporte e sistema viário;V – aproveitamento dos recursos hídricos e controle da poluiçãoambiental;VI – habitação;VII – saúde e educação;VIII – definição dos limites municipais;IX – regularização fundiária;X – produção e abastecimento;XI – proteção do patrimônio cultural;XII – turismo regional;XIII – distribuição de energia elétrica.

Ainda segundo a Lei, essas categorias, denominadas de “servi-ços comuns”, representam um conjunto de tópicos a serem tratadospela entidade criada para a gestão metropolitana. Essa entidade édenominada de Conselho de Administração e Desenvolvimento da GrandeSão Luís - COADGS. Seria um órgão formado por representantes decada governo municipal da RM e do governo estadual, ficando a parti-cipação popular regulamentada no regimento interno.

Pelas atribuições do COADGS verifica-se que tal entidade seriaa instância básica para a operacionalidade das políticas de corteintermunicipal na RM estudada. Seria então, parte fundamental daconstituição de um arranjo gestor para a RMGSL.

Por tudo isso, dentro da análise aqui empregada, não se aceita aconcepção de que a metropolização da Grande São Luís seja restritamenterelacionada à demarcação dos limites intermunicipais, como é posta nosdiscursos dos políticos que debatem a efetivação da Grande São Luís. Emcontrapartida, entende-se, o termo “efetivação da RMGSL”, como a for-mação do arranjo institucional gestor da região previsto em lei.

Todavia, é primordial destacar que o processo de metropolização,dentro das concepções teórico-conceituais mais disseminadas, é abase pela qual um conjunto de cidades se efetiva enquanto classeurbana denominada de região metropolitana. Como não é objetivo des-

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te artigo apresentar o resgate realizado das concepções demetropolização presentes na literatura cientifica, nem verificar se aRMGSL é de fato uma região metropolitana, optou-se por considera aclassificação proposta pelo Observatório das Metrópoles (2004), a qualpõe a RMGSL como Centro Regional – um nível a menos na hierarquiados espaços urbanos. Considerando essa classificação, propõe-se adi-cionar mais um dado na análise da não “efetivação” da Grande SãoLuís, ou seja, considerar a constituição da aglomeração como elemen-to influenciador das determinações políticas.

3. RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NAFORMAÇÃO DA GESTÃO METROPOLITANA NA RMGSL:conflitos-obstáculos.

Pela própria constituição pluri-municipal de qualquer RM, a for-mação do arranjo administrativo da RMGSL, requer articulações políti-cas entre vários governantes. Assim, será fundamental concentraresforços nas relações intergovernamentais (RIGs), tanto horizontais,notadamente entre as municipalidades envolvidas, como também nasrelações verticais, travadas em conjunto por essas municipalidades eas esferas superiores de governo.

Dentro do quadro das RIGs praticadas no âmbito da discussãoacerca da RMGSL, observa-se que o ponto de maior polêmica e colocadocomo pilar para tal efetivação é a definição dos limites municipais. Aconurbação está na gênese desta problemática, pois na medida em que oprocesso de ocupação ali existente ia se intensificando, interesses políti-cos sobre esse espaço iam sendo reproduzidos e intensificados. Dentrodesta questão, São Luís e São José de Ribamar são os municípios commaior impasse relativos a seus limites. A zona limítrofe de São Luís comSão José de Ribamar, é com isso palco dos mais variados problemasreferentes aos limites intermunicipais. São os dois municípios na ilha comos maiores grau de urbanização (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2004),e onde a mancha urbana fica bastante evidente na carta-imagem SA.23-Z-A, encontrada no Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado doMaranhão (disponível no em http://www.zee.ma.gov.br/). Essa condiçãoreflete uma tendência geral das aglomerações urbanas brasileiras regis-trada pelo Observatório das Metrópoles (2004), pois São José de Ribamarcomo cidade mais próxima do pólo (São Luís) tender a urbaniza-se maisrapidamente em comparação aos mais afastados do pólo. Essa urbaniza-ção ao estender-se intensificou as transformações no ambiente, o quedesconfigurou as características passadas deste meio, desaparecendo,inclusive, antigos marcos delimitadores das fronteiras municipais. Essasalterações no ambiente fazem com que a delimitação legal entre essesmunicípios fiquem confusas.

Há de ressaltar que existe também litígio na zona limítrofe entreSão José de Ribamar e Paço do Lumiar, mas de menor embate. Já nos

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limites entre Raposa e Paço do Lumiar, não foram encontradas zonascom tal problema, fato explicado, em parte, por tal espaço ser depouca ocupação urbana.

Nas zonas de litígio territorial entre os municípios, é comum,moradores não saberem a qual prefeitura pleitear serviços e equipa-mentos públicos. Além disso, não é raro nessas localidades, moradorespagarem impostos e tarifas relativas a dois municípios, existindo, in-clusive, a possibilidade dos moradores “escolherem” a qual municípiosuas obrigações fiscais deverão ser atreladas.

No âmbito das obrigações municipais, o impasse territorial naszonas limítrofes cria situações agravantes em determinados bairros,onde os serviços e equipamentos públicos deixam de ser oferecidosdevido à questão de competência municipal, ou seja, as ações decada municipalidade são restringidas pelo risco (ou desculpa) de esta-rem exercendo atividades em território que não lhe compete.

Expor a problemática gerada por tal litígio, tem o intuito dedefinir sua importância perante a efetivação da RMGSL. Ocorre umadisputa municipalista, em que conflitos de interesses locais predomi-nam nas relações intergovernamentais dos atores envolvidos. Perce-be-se que tal situação é de se esperar, pois paralelo a uma desatualizadademarcação territorial, a aglomeração apresenta um ritmo aceleradode crescimento, principalmente nos municípios periféricos que, segun-do dados do Censo de 2000, obtiveram taxas médias geométricasanuais superiores a do pólo (IBGE, 2007).

Soma-se ao embate da efetivação, a tradição municipalista nosdiscursos políticos, identificada por Azevedo e Guia (in RIBEIRO, 2004),derivada das primeiras décadas pós-Constituição de 1988. Desta for-ma, ocorre uma influência negativa para a construção de uma gestãointermunicipal, necessária às RMs. Os governantes, sobre a égide daautonomia municipal, acabaram por criar um ambiente político favorá-vel ao isolamento de suas políticas públicas.

Contudo, principalmente com o modelo proposto pelos consórciosintermunicipais, novas relações intergovernamentais são traçadas sobreespacialidades intermunicipais integrantes de um arranjo socioeconômico,que deflagra um caráter regional. Essas espacialidades, no geral, sãocunhadas de metropolitanas, pois são as regiões metropolitanas (de fato)locais que expressam mais claramente os problemas supramunicipais. Nessesentido, o entendimento do que seria uma metrópole, ajuda a compreen-der a inerente necessidade de se trabalhar as RIGs no conjunto da aglo-meração, relações essas que teriam a finalidade de produzirem políticaspúblicas integradas e compartilhadas a níveis intergovernamentais.

4. FENÔMENO METROPOLITANO E SUAS IMPLICAÇÕESNA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Objetivando entender o metropolitano, Francisconi e Souza(1976, p.149), consideram que

Hoje, metrópole ou metropolitano significa igualmente a grande cidade,com um significado que independe das funções de cidade-mãe sobre uma

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rede urbana, isto porque o crescimento urbano que se verifica no mundocontemporâneo criou gigantescos complexos urbanos, que não secaracterizam unicamente por serem metrópoles de um sistema de cidades,mas por formarem núcleos com problemas qualitativamente diferentedos centros urbanos menores. O termo metropolitano passa então aenglobar aspectos intra-urbanos, criando-se a consciência de que existemproblemas metropolitanos. (apud CUNHA, 2005 p.92)

O metropolitano aparece, assim, ligado os problemas dos maio-res centros urbanos. Seria a pior expressão da alta concentração dasforças e meios de produção social em pontuais cidades. A cidademetropolitana, quando não é a própria metrópole, integra-seconsolidadamente a ela, através de intensas trocas (materiais eimateriais) diárias viabilizada por grande volume de capital envolvido.Todo esse espaço integrado, re-produtor do que se chama urbano,também produção problemas em escalas muito mais amplas, ou seja,atinge boa parcela dessas cidades – um caso mais típico e relacionadoao aumento dos fluxos são os problemas de transportes.

Quando os problemas metropolitanos são apreendidos em suaescala intermunicipal pela sociedade, realça-se a dificuldade de seremtratados localmente, o problema local é entendido com parte de umoutro maior dentro do conjunto de cidades. Tal fato irá forçar asarticulações intergovernamentais, pois é percebido que muitos proble-mas no âmbito metropolitano só serão passíveis de solução caso hajaações conjuntas entre gestores públicos das cidades envolvidas jun-tamente com as esferas estadual e federal.

Porém, mesmo não tendo a grandeza e a importância das regi-ões metropolitanas, outras aglomerações apresentam situações-pro-blemas que extrapolam os limites municipais. Em grandes centros ur-banos onde existe certa complementaridade entre várias cidades, en-contra-se nos estágios iniciais uma boa quantidade de problemasintermunicipais. É, por exemplo, o caso da RMGSL.

Por manterem uma complementaridade, os municípios inseridosna RM estudada, passam a ser vistos como um conjunto que se inte-gra gradualmente. Caso essa complementaridade continuar a se refor-çar, gradativamente irá dá corpo a uma identidade regional, onde osatores sociais se articularão conforme a apreensão desta realidade.

No caso da RMGSL, RM sem caráter metropolitano (OBSERVA-TÓRIO DAS METRÓPOLES, 2004), foi constatado (CORDEIRO, 2007) obaixo número de entidades com denominação e ação metropolitana,situação incomum nas RMs com caráter metropolitano consolidado.

Conseqüentemente, observa-se a dificuldade dos atores políti-cos em mobilizar e articular forças segmentos da sociedade para que a“metropolização saia do papel”2. Em comunicações pessoais nãoregistradas, verificou-se que em segmentos diversos da população daRM não compreendiam significativamente o que eram uma região me-tropolitana e o que a institucionalização da RMGSL implicaria nas ativi-dades por eles realizadas. Esse desconhecimento, também foi notado

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nas falas propaladas em plenárias realizadas no Seminário “Região Me-tropolitana da Grande São Luís: impasses e implicações para as políti-cas públicas locais”.

No presente evento, realizado nos dias 13 e 14 de março de2007, foi notória nos discursos dos gestores municipais da RMGSL, opouco entrosamento na questão metropolitana. Além daqueles, os par-ticipantes, em sua maioria, pronunciaram questões de aspecto estri-tamente municipal, em detrimento do que se deveria discutir, ou seja,a cooperação entre as municipalidades envolvidas.

Conforme o exposto, o debate da questão metropolitana naGrande São Luís, mostra-se com pouca participação popular e, atécerto ponto, política. Esta situação dificulta o avanço da “efetivaçãoda Grande São Luís”, por não incrementar articulações sociais voltadasa tal objetivo.

Uma explicação, para essa dificuldade, pode ser encontrada nainstância espacial, pois, considerando que o espaço é produto, pro-cesso e manifestação da sociedade (SILVA apud DANTAS, 2003), umaespacialidade não-metropolitana, como a da RMGSL, denota constitui-ção social, também, não-metropolitana, ou seja, uma sociedade forado contexto metropolitano.

Lomar (2001) ressalta que antes da instância jurídica contempla-da pela institucionalização, o fenômeno metropolitano se consubstancianuma realidade cultural, econômica, geográfica, urbana e ambiental pró-pria. Essa realidade instiga uma articulação social ampla (principalmen-te, intermunicipal) nos diferentes setores sociais envolvidos, o que aju-daria a formar o arranjo institucional de gestão para a região.

5. CONCLUSÃO

Como espacialidade não-metropolitana, a Grande São Luís não apre-senta os ditos problemas metropolitanos, os quais, por suas grandesdimensões (transfronteiriça), instigariam articulações intermunicipais vol-tadas às soluções dos mesmos. Devido à configuração não-metropolitanada RM, a “efetivação da Grande São Luís” não representa uma questãorealmente metropolitana; em última análise, seria uma questão de gestãointermunicipal, típica das regiões metropolitanas, e que, com seu paradigmade gestão compartilhada e integrada, traz perspectivas benéficas àsgrandes aglomerações urbanas, como a da Grande São Luís.

Porém, o arranjo institucional de gestão regional para RMGSL,que seria o objetivo maior da “efetivação”, está sendo debatido sobreum enfoque municipalista, o qual coloca a questão da definição doslimites intermunicipais como o grande impasse e entrave da efetivação.Essa postura mostra-se contraditória aos princípios de gestão compar-tilhada e integrada a nível intergovernamental, colocados como a basee característica típica das políticas que almejam ser metropolitana.

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A presença do discurso municipalista no debate da formaçãoinstitucional da Grande São Luís, reflete também a configuração espaci-al da RM, pois a maioria dos problemas intra-urbanos podem, mesmo queinsatisfatoriamente, ser tratados no âmbito local (municipal). Porém, aproximidade espacial e a complementaridade que apresentam as cida-des da RM são fatores facilitadores da manifestação de situações-problemas intermunicipal. Dois casos foram indicados por Cordeiro (2007),a saber: a gestão da bacia do rio Paciência e o transporte intermunicipalda ilha. Com isso, justifica-se a necessidade de pensar em políticaspúblicas pautadas nos paradigmas da gestão metropolitana.

Os arranjos institucionais metropolitanos têm suas bases naspolíticas integradas e compartilhadas entre os governos e gestoresdas municipalidades envolvidas (relações horizontais), bem como es-tas com as esferas superiores de governo (relações verticais), comopreconizou Rezende (1999). Portanto, no caso da chamada “efetivaçãoda Grande São Luís”, construí-la através de discursos municipalistas, édesvirtuar a problemática, restringindo, assim, as possibilidades de“integrar a organização, o planejamento e a execução de funçõespúblicas de interesse comum” para a região, oferecida no Artigo 25,parágrafo 3, da Constituição Federal.

Notas:1Para traçar a concepção dos agentes públicos dos que seria a efetivação daGrande São Luís, foi analisados discursos presentes em matérias jornalística, nosdiários oficiais e falas propaladas no seminário “Região Metropolitana da GrandeSão Luís: impasses e implicações para as políticas público locais”, realizado em2007.2É usando expressões do tipo “metropolização sair do papel” que alguns políticosreferenciaram na mídia o processo que visa criar o arranjo gestor institucionalpara a RMGSL, algumas vezes como sinônimo de definição dos limitesintermunicipais

Referências:AZEVEDO, Sergio de. Os dilemas institucionais da gestão metropolitana.In: Ribeiro, César de Queiroz (org.). Metrópoles: entre a coesão e afragmentação, a cooperação e o conflito. Rio de Janeiro; FundaçãoPerseu Abramo, 2004.ASSEMBLÉIA e IBGE vão assinar convênio para demarcar limitesterritoriais da Grande São Luís. Agência Assembléia, Maranhão, 01 Jun.

Eduardo Celestino Cordeiro; Juarez Soares Diniz

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2005. Noticia disponível em: http://www.al.ma.gov.br/paginas/noticias.php?codigo1=1074 Acessado em: 28 de julho de 2007.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.CORDEIRO, Eduardo Celestino. Política Pública de RegiõesMetropolitanas: estudo de caso da Região Metropolitana da GrandeSão Luís. 2007. 100 f. Monografia (Graduação em Geografia) –Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2007.CUNHA, Fábio César Alves da. A metrópole de papel: a representação“Londrina Metrópole” na institucionalização da região metropolitanade Londrina. 2005. 240 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdadede Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, PresidentePrudente, 2005. Documento disponível em:http://www.biblioteca.unesp.br/bibliotecadigital/document/?did=2910Acessado em: 06 de fevereiro de 2007.DANTAS, Shirley, Carvalho. Turismo, produção e apropriação do espaçoe percepção ambiental: o caso de Canoa Quebrada Aracati, Ceará.PRODEMA/UFC, 2003 (Dissertação de Mestrado).IBGE. Censo 2000: Taxa de crescimento anual 1991-2000. Disponívelem: www.ibge.com.br Acessado em: 30 de jun. 2007.IPEA. Configuração atual e tendências da rede urbana do Brasil. Brasília:IPEA, 2002. (Série caracterização e tendências da rede urbana doBrasil, 1). Convênio IPEA, IBGE, UNICAMP/IE/NESUR, IPEA, 2002.LOMAR, Paulo J. Vilela. A Constituição Brasileira e a GestãoMetropolitana. In: Políticas Urbanas Metropolitanas (Pesquisa). Meyer.R.M.P. e Grostein, M. D. (Coords.) SEDU/LUME/FAUUSP/FUPAM. SP,2001.OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES. Análise das regiões metropolitanasdo Brasil: identificação dos espaços metropolitanos e construção detipologia. Convênio Ministério das Cidades/Observatório das Metrópoles/FASE/IPARDES. Brasília, 2004.REZENDE, Fernando. Federalismo fiscal: novo papel para Estados eMunicípios. In: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - CEPAM. O municípiono século XXI: cenários e perspectivas. Ed. especial. São Paulo, 1999. p.87-96.

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Projeto UFMA São Luís 400 anos*

Alexandre Fernandes Corrêa (UFMA)**

Resumo: Um breve texto em que se apresenta o projeto de ação culturale institucional ‘UFMA São Luís 400 anos’. Trata-se da proposta de umacontribuição das universidades para a qualificação dos eventoscomemorativos do Quarto Centenário da capital do Estado do Maranhão.Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Universidade. ComemoraçãoHistórica

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido peloNúcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa-redonda “Projeto ‘UFMA São Luís 400 anos’.”** Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia eSociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudose Pesquisas Patrimônio & Memória. Email: [email protected]

Abstract: A brief text in which presented the draft action cultural andinstitutional ‘UFMA St. Louis 400 years’. This is the proposal for a contributionof universities for the qualification of events celebrating the fourth centenaryof the capital of the state of Maranhao.Keywords: Patrimony. Memory. University. Historic Celebrations

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1. INTRODUÇÃO

Nesse texto apresentar-se-á o Projeto de criação do GRUPO DETRABALHO que se propõe a elaborar e organizar os eventos e promo-ções culturais para as comemorações dos 45 anos da UFMA e dos 400anos da cidade de São Luís, no âmbito da Universidade Federal doMaranhão1.

Trata-se de um GRUPO DE TRABALHO (Comitê), vinculado a Rei-toria e a Vice-Reitoria e a Pró-Reitoria de Extensão da UFMA, para acoordenação dos diversos eventos promocionais e festividades quedeverão ocorrer antes e durante a importante data histórica dos 400anos de fundação da cidade de São Luís (2012) e dos 45 anos defundação da Universidade Federal do Maranhão.

a) 45 anos da UFMA & 400 anos de São LuísO Grupo de Trabalho pretende articular pessoas e instituições

para trabalhar antecipadamente, no sentido de promover uma partici-pação efetiva e organizada nessas comemorações históricas. É umtrabalho que se inspira no que está sendo feito na cidade de Quebec(www.quebec400.qc.ca)2, no Canadá – fundada por franceses, em1608, apenas quatro anos antes da fundação de São Luís

Estamos diante de uma oportunidade única para desencadearum processo de revitalização da UFMA e das Instituições Públicas deEnsino Superior no Estado do Maranhão. São Luís é a única cidadebrasileira, do período colonial, que “fundada” por franceses e coloniza-da por portugueses, e povoada por grupos sociais e culturais de diver-sas origens, possui um acervo arquitetônico civil de extraordinária be-leza na América do Sul. Circunstância que faz com que o seu QuartoCentenário seja uma data importante não apenas para os maranhenses,mas também para todo o Brasil e demais países que direta ou indireta-mente participaram de sua formação social e cultural. Dessa maneira,temos a oportunidade de realizarmos eventos únicos, originais e derepercussão nacional e internacional. Esses eventos precisam ser pre-parados com a necessária antecedência, para que sejam viabilizados.O Quarto Centenário de nossa cidade pode entrar para a História,com reflexos para a sua economia, cultura, política, etc., assim comoas comemorações dos 45 anos da UFMA.

Dependendo do êxito dessa divulgação de São Luís, podemoscontar com a participação e o financiamento de empresas nacionais,dos demais países e seus respectivos governos, no processo derevitalização de nossas Universidades Públicas. Esse é o ponto maisimportante: através desse processo podemos reverter o quadro pre-cário e desprestigiado que hoje vive as Instituições Públicas de EnsinoSuperior. Temos uma excelente oportunidade de promover a auto-estima e revigorar a participação dessas instituições na sociedade,renovando o espírito universitário e transformando a imagem públicadestas importantes e fundamentais instituições sociais e culturais.

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2. JUSTIFICATIVA

a) Promoção cultural e social das instituições públicas deensino superior

Vamos oportunizar a aproximação dos 400 anos de São Luís comoum catalisador para desencadear um grande e vasto processo de pro-moção da das Instituições Públicas de Ensino Superior do Maranhão,semelhante ao que ocorreu com as cidades que tornam-se sedes degrandes eventos, como os Jogos Olímpicos - cujo exemplo mais marcanteé o da cidade de Barcelona, que estava completamente estagnada atéas Olimpíadas de 1992 e que hoje, totalmente revitalizada, é uma dasmaiores atrações turísticas da Espanha. Lembramos, também, do queestá acontecendo atualmente na cidade de Pequim, na China, por con-ta dos Jogos de 2008, e da ECO-92 no Rio de Janeiro e, igualmente, osrecentes Jogos Pan-Americanos, na mesma cidade.

Não vamos chegar a tanto, pois não vamos sediar uma Olimpíada,nem uma Copa do Mundo... Mas, podemos considerar a possibilidade depropormos intervenções sociais e urbanísticas em São Luís, através dapromoção, divulgação e difusão das pesquisas e invenções científicasproduzidas nas IPES, incrementando seu desenvolvimento, e elevando aqualidade de vida na cidade, como, por exemplo, novas soluções paraas obras de saneamento básico nos bairros mais necessitados, a res-tauração do casario colonial que ainda está deteriorado, a instalação debondes para circularem pelas ruas do seu centro histórico, intervençõespaisagísticas, investimentos nos bairros da periferia, etc.

Tudo isso pode trazer benefícios extraordinários para a Universi-dade Federal do Maranhão e as outras instituições de ensino superior(IES) públicas e privadas do Maranhão. Pois, estas instituições poderãooferecer, neste período, idéias criativas e novas soluções estratégicaspara a melhoria de vida da maioria da população, evitando a concentra-ção dos esforços e dos investimentos, apenas no cenário turístico ecultural para os visitantes. É preciso que estas instituições garantamque o processo de comemoração dos 400 anos, será de promoção dacidadania geral, do bem estar de todos os cidadãos e não de umaminoria já privilegiada por usos de equipamentos urbanos exclusivos.

O processo de promoção cultural e social que esse trabalhodesencadeará deve ser obra de autoria coletiva, de caráter democrá-tico e aglutinador da comunidade do Maranhão. Daí a necessidade decriação de um Grupo de Trabalho (Comitê) para coletar e avaliar todasas propostas sobre a questão3. Propostas que não se restrinjam a vidauniversitária, mas que integre uma preocupação cidadã. Pensa-se aquinas propostas de criação de Parques Zôo-Botânicos Públicos, Parqueda Cidade de São Luís, etc.

Chamamos a atenção para a importância do período históricoque já estamos vivendo e para as oportunidades econômicas, turísti-cas e culturais que ele nos oferece. Temos que ter em vista um Proje-to Cultural Universitário Democrático para cidade que São Luís com-

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plete 400 anos renovada e oferecendo mais qualidade de vida paraseus habitantes, além dos turistas que a visitam.

Mais uma vez, é preciso enfatizar a necessidade de se organizarcom antecedência os eventos que acontecerão nesse período. Assimevitamos improvisos e amadorismos, como o ocorrido nas comemora-ções dos 500 anos do Descobrimento (Achamento) do Brasil. É comesse espírito universitário que o Grupo de Trabalho conclama a todos aparticiparem desse esforço de aglutinar nossas melhores vocações, nosentido de promover para o país e para o mundo uma imagem dinâmi-ca, plural e democrática da cidade de São Luís.

b) Histórico da criação do “Projeto UFMA São Luís 400anos”

A idéia de criar um Grupo de Trabalho para organizar a participaçãoda UFMA nas comemorações dos 400 anos de São Luís, nasceu inicial-mente nas reuniões do Núcleo Gestor do Centro Histórico, organizadaspela Fundação Municipal do Patrimônio Histórico (FUMPH). O professor esociólogo Alexandre Fernandes Corrêa participava desse órgão de gestãocompartilhada desde 2004, quando desenvolvia e coordenava o Projetode Pesquisa e Extensão “Teatro das Memórias: entre o passado e ofuturo”4 no bairro do Desterro.

A idéia de criação do Grupo de Trabalho incrementou-se também apartir das atividades no Laboratório de Ensino de Ciências Sociais (LECS-Sociologia) da UFMA e da militância na diretoria do Sindicato dos Sociólo-gos do Maranhão; mas foi na campanha para Vice-Reitoria do Prof. Dr.Antônio Oliveira, articulada pelo sociólogo Raimundo Nonato da Silva naUFMA, que amadureceu e se sedimentou o “Projeto UFMA São Luís 400anos”. O Professor Dr. Antônio Oliveira prontamente se entusiasmou coma idéia e logo passamos a construir conjuntamente, um perfil maisinstitucional e orgânico. Esse processo culminou com a apresentação doProjeto ao Prof. Dr. Natalino Salgado, ainda em campanha para a Reitoriada UFMA. No decorrer da campanha eleitoral, novas adesões surgiram,como a do sociólogo Glauber Brito, que passou a articular outras institui-ções fora da UFMA.

O Prof. Dr. Natalino Salgado, hoje eleito Reitor, assumiu com entu-siasmo o compromisso de levar a frente a idéia de criação do Grupo deTrabalho para coordenar o “Projeto UFMA São Luís 400 anos”. Passou,então, a defender a idéia de que o Projeto deveria ser encampado comoum dos Programas Institucionais prioritários da sua gestão. A expectativano momento é de que seja instituído o Grupo de Trabalho e que possamosdar continuidade a um trabalho que já apresenta novos direcionamentos.

Da idéia original de criar um GT de coordenação da participaçãoda UFMA nas comemorações dos 400 anos de São Luís, hoje amplia-mos o escopo de novas ações futuras ao nos integrarmos a um Projetomais abrangente. Trata-se da criação do Consórcio das InstituiçõesPúblicas de Ensino Superior (UEMA, CEFET e UNIVIMA). Esse Consórcio

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promoverá a participação não só da UFMA, mas das outras IES doEstado do Maranhão, promovendo um patrimônio público de enormevalor cultural, científico, artístico e humanístico.

Esse trabalho coordenado e articulado com a sociedademaranhense pretende difundir e promover, através de diversas modali-dades e atividades integradas, acervos culturais, humanísticos, artís-ticos e científicos de alto valor civilizatório oferecendo à cidade deSão Luís instrumentos concretos para seu desenvolvimento na buscapor dias melhores para todos os maranhenses. As Universidades eInstituições Públicas de Ensino Superior do Maranhão têm realizadonessas décadas o melhor de seus esforços no sentido de proporcionara Cidade e ao Estado um futuro de riquezas e de esperanças paratodos os cidadãos.

c) As universidades e instituições públicas de ensinosuperior & São Luís 400 anos

Ainda faltam cinco anos para as comemorações dos 400 anos defundação do núcleo urbano de São Luís. Não é muito tempo assim paraque uma instituição pública já comece a tomar decisões importantes, nosentido de participar e ser protagonista nesse evento marcante e sin-gular. A História urbana de São Luís é relativamente rica e merece queprofessores e pesquisadores das Universidades Federal e Estadual inici-em logo um trabalho em comum, se antecipando ao acontecimento.

O primeiro passo é articular as Instituições Públicas de EnsinoSuperior num projeto integrado, elaborado e liderado pelas suas reitori-as, num Consórcio de participação igualitária. A partir daí seguir com oconvite para que as faculdades e centros universitários da cidade seintegrem ao projeto. Certamente que o caminho salutar para tal arti-culação institucional é a proposta de um “Seminário sobre a Fundaçãoda Cidade”, ainda para o ano de 2007. Sabemos que uma polêmicahistórica tem alimentado conversas e debates controvertidos sobre asversões diferentes em relação ao papel histórico dos europeus no pro-cesso de constituição e fundação do núcleo urbano histórico antigo.Uns defendem, de um lado, o pioneirismo francês, considerando Danielde La Touche o fundador da cidade. De outro lado, encontram-se osque defendem que Jerônimo de Albuquerque Maranhão foi o verdadeiroagente urbanizador do núcleo primitivo da cidade. De um lado, os quedefendem a França Equinocial, com certa francofilia apaixonada e sau-dosista; de outro, os que defendem a justiça histórica com relação asações do luso-brasileiro mestiço, que além de restaurar a ordem portu-guesa, empregou esforços de engenharia racional e organizada, paraalicerçar o futuro urbano na ilha. Outros dados históricos a ser conside-rados e que não devem ser negligenciados: a integração do país, e dePortugal, à Coroa Espanhola por mais de 60 anos (1580-1654); e, ainvasão Holandesa que durou 4 anos (1640-44).

Muito se poderia dizer sobre as diferentes versões referentesàqueles tempos primeiros, colorindo de nuances as duas variações

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mitológicas da história. Contudo, o espaço dessas linhas é curto e nãoé esse o propósito do presente texto. Aqui a reflexão encaminha-separa a oportunidade de as Instituições Públicas de Ensino Superior doEstado, ser protagonistas de um projeto esclarecido e cidadão, quepromova com ética e lisura uma contribuição autêntica e de valorcultural transcendente. As universidades e centros públicos de ensinoe pesquisa têm esse dever para com a sociedade; não podem negli-genciar um acontecimento dessa ordem, em que diversos órgãos dopoder público municipal, estadual e federal vão concorrer para partici-par dessas comemorações. Além, disso diversas empresas vão de-monstrar interesse em participar e patrocinar eventos de qualidade,que sejam compatíveis com a importância cultural e histórica dessascomemorações.

Assim, sugerimos que estas instituições acadêmicas e universi-tárias promovam e organizem linhas editoriais, calendário de exposi-ções, seminários, projetos educacionais, concursos literários, científi-cos e artísticos, que tenham como tema os 400 anos da cidade. Pararealizar esse trabalho organizado é necessário que estas instituiçõescomecem a articular-se e tomem a iniciativa de levar a frente umempreendimento oportuno que certamente promoverá uma reflexãoampla sobre os destinos que queremos dar a uma cidade bela e plural.É uma oportunidade rara de avançarmos na democratização efetiva deum debate amplo sobre o passado, o presente e o futuro de São Luís.A expressão plural de sua diversidade cultural e ambiental pode contardefinitivamente com um momento singular de congraçamento das dife-rentes vozes e expressões humanas que contribuíram com sua forma-ção histórica. Não podemos deixar passar esse acontecimento semque São Luís possa revelar suas potencialidades intrínsecas, desen-volvendo democraticamente sua vocação cosmopolita original.

3. OBJETIVOS E FINS

a) O consórcio universidades e instiuições públicas deensino superior

Com o intuito de articular as ações das Universidades Públicasdo Estado do Maranhão, elaboramos o Projeto de criação do Consórcioentre a UEMA, CEFET e UNIVIMA, que juntamente com a UFMA, vãopromover e integrar um Programa Institucional que organizará eimplementará um conjunto de iniciativas inter-institucionais.

b) Ações Institucionais- Criação do Núcleo de Extensão no Centro Histórico – NUEX/

CICAH (Centro Integrado de Ciências, Artes e Humanidades);- Intercâmbio de experiências entre Pesquisadores, Professores,

Estudantes e Comunidades;- Projeto Núcleo de Extensão Consorciado no Centro Histórico;

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- Criação do Consórcio Universidades Públicas – São Luís 400anos – Portal na Internet;

- Criação da Sociedade Civil Pró São Luís 2012 – ParceriaInstituto de Cidadania Empresarial (ICE) e São Luís ConventionBureau Visitors (SLCBV);

- Promoção Cultural e Humanística da Capital e do Estadoatravés das Universidades Públicas do Estado do Maranhão;

- Difusão da imagem dinâmica, plural e democrática da cidadede São Luís e da UFMA, para o País e para o Mundo;

- Implantação da Academia de Ciências do Maranhão;- Propor a realização da 62ª Reunião Anual da SBPC em São

Luís no ano de 2012;- Promover a Memória dos Professores, Pesquisadores e

Cientistas Eméritos das Universidades Públicas;- Concurso de Logo-Marca e Selo para a Campanha;- Seminários sobre o tema das Comemorações Históricas –

Conferencistas Nacionais e Estrangeiros;- Concurso Literário – UFMA e São Luís 400 anos;- Concurso de Monografias Científicas (mesmo tema);- Criação de Linhas Editorias para Publicação de Monografias,

Dissertações e Teses;- Criação de Prêmio Anual Jovem Cientista sobre o Tema:

“Contribuição Científica da Universidade para a Cidade”- Prêmio Pesquisador Sênior (mesmo tema);- Jogos Universitários Promocionais: Maratona da Cidade, Rally,

Jogos Radicais, etc;- Festival Universitário de Artes: Música, Dança, Artes Plásticas,

Fotografia, Cinema e Teatro (sobre o tema);- Selos Comemorativos com nomes dos Pesquisadores,

Professores, Intelectuais e Cientistas Eméritos dasUniversidades Públicas;

- Contatos com o Ensino Médio e Fundamental.

c) Linhas de ação culturalEntre outros produtos e linhas de ação cultural, social, artística,

científica, promocional e turística que se pode desenvolver, temos:1) Criação de linhas editoriais sobre a cidade de São Luís:

publicação de teses de doutorado, dissertações de mestradoe monografias de especialização e graduação – além detrabalhos literários e científicos premiados e de grande valorcultural, artístico e científico;

2) Criação de concursos literários e humanísticos vinculadosao tema;

3) Exposições de arte e cultura;4) Festivais de música, teatro e dança;5) E ainda diversas manifestações culturais dos diferentes grupos

formadores da sociedade maranhense – como os povos

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indígenas, os afro-descendentes, os sírios e libaneses, e outrosgrupos de migrantes que se enraizaram no Estado do Maranhão.

Porém, para concretizar esse Projeto Cultural é preciso umapreparação profissional, organizada com muita antecedência. Não con-sideramos prematuro propor preparativos para um evento que aconte-cerá apenas em 2012.

Como preparação para o ano de 2012, podemos, nesse intervalode tempo, estabelecer intercâmbios, utilizar idéias e experiências pro-movidas pelo Comitê Organizador das Comemorações dos 400 anos dacidade de Quebec no Canadá - fundada por franceses, no mesmocontexto histórico que propiciou o estabelecimento da colônia da “FrançaEquinocial” no Maranhão. Quebec completa 400 anos em outubro de2008. Essa parceria poderá vir a ser um forte atrativo de intercâmbiocultural, econômico e turístico para a cidade de São Luís.

Outra idéia importante, entre outras tantas que podemos traba-lhar, é a realização de jogos amistosos (torneio universitário) defutebol (ou outro esporte amador) na cidade, entre as seleções doBrasil, França, Canadá, Espanha, África, Holanda e Portugal, no dia doaniversário de São Luís. Além desses países devemos considerar apossibilidade de convidar os representantes de outros povos e cultu-ras que participaram da formação social e histórica da cidade, como osimigrantes sírios-libaneses, e os diferentes povos e nações indígenasdo Estado do Maranhão.

O Consórcio de IPES, e a Prefeitura de São Luís, poderia elabo-rar um evento dessa envergadura, com o apoio da Confederação Bra-sileira de Futebol (ou outra entidade esportiva) e os Governos doEstado e do Município. Não se trata apenas de realizar um espetáculoesportivo para comemorar essa data. A publicidade gratuita em tornodesse evento, pela mídia esportiva desses países, serviria tambémpara chamar a atenção dos europeus, e do mundo em geral, sobre acidade brasileira que está em vias de completar 400 anos de existência– despertando e incrementando o interesse turístico e cultural por SãoLuís, com reflexos diretos para a economia e a cultura local e a vidaacadêmica e científica das Instituições Públicas de Ensino e Pesquisa.

Outra idéia considera a possibilidade de no dia 08 de setembrode 2012 realizar uma Maratona Universitária em nossa cidade – pro-posta que será encaminhada à Prefeitura de São Luís. Maratona quecontaria com a participação de atletas das Universidades dos referidospaíses, como símbolo de amizade entre as nações. Esse evento teriaum custo relativamente baixo para a sua realização, mas certamentecausaria um grande impacto promocional e social.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destarte, com certeza estamos diante de uma oportunidade úni-ca para desencadear um processo de revitalização da UFMA e dasInstituições Públicas de Ensino Superior no Estado do Maranhão. São

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Luís é a única cidade brasileira, do período colonial, que “fundada” porfranceses e colonizada por portugueses, e povoada por grupos sociais eculturais de diversas origens, possui ainda um acervo arquitetônico civilde extraordinária beleza, na América do Sul e Latina. Aspecto singularque faz com que o seu Quarto Centenário seja uma data importante nãoapenas para os maranhenses, mas também para todo o Brasil e demaispaíses que, direta ou indiretamente, participaram de sua formação soci-al e cultural. Dessa maneira, temos a oportunidade de realizarmos even-tos únicos, originais e de repercussão nacional e internacional. Esseseventos precisam ser preparados com a necessária antecedência, paraque sejam viabilizados. O Quarto Centenário de nossa cidade pode en-trar para a História, com reflexos para a sua economia, cultura, política,etc., assim como as comemorações dos 45 anos da UFMA.

Dependendo do êxito da divulgação da cidade de São Luís, po-demos contar com a participação da comunidade local, dos demaispaíses e seus respectivos governos, no processo de revitalização denossas Universidades Públicas. Esse é o ponto mais importante: atra-vés desse processo podemos reverter o quadro precário e desprestigiadoque hoje caracteriza as Instituições Públicas de Ensino Superior noEstado do Maranhão. Temos uma excelente oportunidade de promoverum patrimônio cultural, artístico, humanístico e científico, de valorincomensurável, além de revigorar a participação e os vínculos dessasinstituições na sociedade, renovando o espírito universitário e trans-formando a imagem pública destas importantes e fundamentais insti-tuições sociais e culturais em nossa sociedade.

Notas:1 A UFMA tem sua origem na antiga Faculdade de Filosofia de São Luís do Maranhão,fundada em 1953. A Universidade então criada, fundada pela SOMACS em 18/01/58 e reconhecida como Universidade livre pela União em 22/06/61, através doDecreto n.º 50.832, denominou-se Universidade do Maranhão, congregando aFaculdade de Filosofia, a Escola de Enfermagem “São Francisco de Assis” (1948),a Escola de Serviço Social (1953) e a Faculdade de Ciências Médicas (1958).Agregou ainda a Faculdade de Direito (1945), a Escola de Farmácia e Odontologia(1945) - instituições isoladas federais e a Faculdade de Ciências Econômicas (1965)- instituição isolada particular. Assim foi instituída, pelo Governo Federal, nos termosda Lei n.º 5.152, de 21/10/66, a Fundação Universidade do Maranhão – FUM, coma finalidade de implantar progressivamente a Universidade do Maranhão.2 http://www.monquebec2008.com/MonQuebec2008/3 Através de enquetes realizadas pelo Portal do Consórcio das IPES, pela RádioUniversidade (UFMA) e demais meios de comunicação de massa.4 Resolução nº. 463/2006-CONSEPE/UFMA

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PALAVRA-MONUMENTO: a expressãoda finitude na poesia de Hölderlin*

Ellen Caroline Vieira de Paiva**

Resumo: Análise da expressão da finitude na poesia de Hölderlin a partirda filosofia heideggeriana. Heidegger percebe na figura do poeta o pontode iminência do falar originário da linguagem. O linguajar cotidiano de umpovo histórico nasce da tarefa originária dos poetas de captar o inaudito.A finitude consiste no caráter indizível da linguagem que impõe limites a siprópria sempre deixando possibilidades para a sua superação. Eis entãoo serviço dos poetas.Palavras-chave: Poesia. Ressonância. Tradução. Finitude. Monumento

Abstract: Analysis of endness expression in Hölderlin’s Poetry byHeidegger’s Philosophy. Heidegger looks in poet the starting point of firsttalking of languaje. The everyday talking of a hystoric people borns bypoets’s originary work of listening the untold. Endness is into untellingfeature of languaje that makes limits by its own always leaving possibilitiesfor its superation. So, there is poets’s working.Keywords: Poetry. Relistening. Translate. Endness. Monument

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa-redonda “Arte e hermenêutica: a poesia e a verdade da palavra”** Estudante de graduação nos cursos de Filosofia e Direito da Universidade Federaldo Maranhão – UFMA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Estética e Hermenêutica.Integrante do Grupo de Pesquisa em Nietzsche. Integrante do Grupo de Pesquisaem Schopenhauer. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

E para que poetas em tempos de penúria?Hölderlin

Em Pão e Vinho Hölderlin pergunta o sentido da existência dospoetas no momento da retirada dos deuses. Quando os deuses seafastam aguardam que os homens se encontrem em sua própria condi-ção. E ao serviço dos poetas está a obra de instaurar esse princípio.

Ora, de acordo com Hölderlin, quando se retiraram, os deusesdeixaram para o homem a linguagem como uma espécie de “clarear doser”. E é a partir desse clarear que os poetas sentem que algo na exis-tência se auto-consuma. Tem-se, então, uma manifestação do ser quepertence ao destino dele próprio. Assim, para Hölderlin, na confluênciaentre o destino do ser e do destino do poeta, a poesia se evidencia.

Sua grandeza reside, sobretudo, na apreensão de que a poesia não émera habilidade poética, de que o poeta não é um fazedor de versos, mas,essencialmente, experiência. Experiência significa, para Hölderlin, lançar ohomem para o lugar em que ele já sempre se encontra, devolvendo-o àgravidade do seu limite. É que o homem pode apenas ser o que é porqueestá plantado na finitude, na mortalidade, no tempo. Plantado na sua finitudeé que o homem pode tanto encontrar-se com o divino – esse infinitamenteoutro – como também querer a ele equiparar-se. (Dastur: 1994, p. 02)

Isto então nos faz perguntar: mas qual é o destino do poeta?De acordo com a filosofia heideggeriana, seu destino é captar o que osdeuses deixaram no âmbito da linguagem, cuja atividade já se efetivacom uma profunda marca de finitude. Afinal, a retirada dos celestiais éuma condição de fim que determina nos bardos a própria evidentiadessa condição. Logo, o trabalho do poeta é, por excelência, um tra-balho finito que tenta tornar permanente o passageiro que se foi comos deuses ou que se vai com o tempo.

Os poetas são aqueles mortais que, cantando com gravidade ao deus dovinho sentem o rastro dos deuses idos, seguem tal rastro e, desta maneira,assinalam a seus irmãos mortais o caminho em direção à mudança.(Heidegger: 1996, p. 07)

A palavra se configura então, como monumento, de modo queao poeta cabe faze-la suportar a história também se desgastando naexistência. Desta forma, a poesia se define como o ocaso da lingua-gem. Aqui não se trata exatamente de um fim, mas de um findar. O fimem processo é finitude, de modo que, na poesia, se dá a continuidadee renovação da linguagem a partir da fala e da escuta do poeta.

A essência da poesia revela a tarefa sempre constante da lin-guagem de colocar limites a si própria e ultrapassá-los. Seu destino ésempre esconder quando quer mostrar. E é aqui que surgem os poetas:os mortais que criam ressoando o ir-se dos divinos na instância dalinguagem que “naufraga no silêncio”1.

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2. A EXPRESSÃO DA FINITUDE NA POESIA DEHÖLDERLIN

Heidegger apresenta a poesia de Hölderlin como instância dereconhecimento ontológico da linguagem. Em seu ensaio Hölderlin aessência da poesia parte de cinco versos do poeta que servem depalavras-guia para sua análise.

a) Poetizar: a mais inocente de todas as ocupaçõesDe acordo com Heidegger, Hölderlin, numa carta a sua mãe em

1799, trata o poetizar como “a mais inocente de todas as ocupações”.Enquanto poeta, Hölderlin vê na poesia o seu ofício, sua ocupaçãoprincipal e, por assim o sê-lo, caracteriza um fazer do homem com algo– neste caso, um fazer da escrita com o objeto da palavra. Entretodas as atividades é a mais inocente por se mostrar sob a forma deum jogo,distante das ações que transformam a realidade, operandosimplesmente no plano da linguagem, como um jogo.

b) Linguagem: o mais perigoso dos bens dado ao homemHeidegger encontra num fragmento de 1800 considerações

hölderlinianas sobre a linguagem enquanto uma propriedade concedidaao homem pelos deuses. Ei-lo:

Mas o homem vive em cabanas recobrindo-se com um vestido recatado,pois apesar de ser mais íntimo, é mais solícito e guarda seu espírito,como a sacerdotisa a flama celeste, que é seu entendimento. E por issose é dado o alvedrio e um poder superior para ordenar realizar osemelhante aos deuses e se é dado ao homem o mais perigoso dosbens, a linguagem, para que mostre o que é, que tem herdado eaprendido dela o que tem de mais divino, o amor que tudo alcança.(Hölderlin, apud Heidegger: 1992, p. 02, grifos nossos)

A linguagem é um bem dos deuses e herança dos homens. Estesa herdam dos seres divinos juntamente com a terra. Seu caráter debem – como propriedade – se deve ao fato de permitir um meio depublicidade entre os entes, tornando o homem histórico. Nesta relaçãode herança, aqueles que herdam também são pertenças de suas res-pectivas propriedades. Desta forma, o homem sucede os deuses nalinguagem e na terra. Eis aqui então o princípio do perigo: o homem éherdeiro de algo que os coloca temporariamente na condição divina. E“só de tempo a tempo o homem suporta a plenitude divina. E a vidadepois é sonhar com eles”. (Hölderlin: 1994, p. 186)

A semelhança humana ante os deuses confere ao homem a dádivada linguagem; nela, a condição divina se realiza no homem para mostrar oque é. Nesse sentido, a inocência da poesia acima tratada traz consigouma ameaça: precisamente por operar no plano da linguagem, a poesiaabsorve os riscos dessa dimensão. A linguagem é a mais perigosa propri-edade porque destrói e funda simultaneamente para a ela própria regres-sar. Sendo concedida ao homem, que herda a terra dos deuses e a ela

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pertence, é o mais perigoso dos bens porque encerra consigo o maior dosperigos: o perigo do perigo porque cria a possibilidade de outros perigos.

O perigo de que fala Heidegger é a ameaça do ser pelo ente. Ao“mostrar o que é” o homem engana e desengana. E isto ocorre porqueo homem fala. O falar é o primeiro que cria o aberto da ameaça e doerro do ser e da possibilidade de perder o ser.

c) Homem: um diálogoCanta Hölderlin: “o homem tem experimentado muito; nomea-

do a muitos celestes, desde que somos um diálogo e podemos ouviruns aos outros” (Hölderlin apud Heidegger: 1992, p. 05, grifos nos-sos). O fato de que falamos e ouvimos nos define como um diálogo. Oser do homem se funda, assim, no falar, o qual se realiza essencial-mente no diálogo. Este último pressupõe uma escuta – ouvir pressu-põe uma condição originária eqüitativa do falar. O diálogo constitui,assim uma unidade de falar e ouvir que se consubstancia na portadorada nossa existência, a pré-sença (Dasein).

Enquanto presença nomeadora, o homem tem nomeado muitosdeuses. Heidegger então diz: “Até que o falar aconteceu propriamen-te como diálogo, vieram os deuses a palavra e apareceu um mundo.Mas, importa ver que a atualidade dos deuses e a aparição do mundonão são uma conseqüência do acontecimento do falar, senão que sãocontemporâneos” (Heidegger: 1992, p. 05). Essa contemporaneidadeentre deuses e fala nos revela enquanto ouvintes dos celestes e,enquanto tais, herdeiros da linguagem.

d) Poetas: instauradores do que permaneceNo poema Em memória (Andenken), Hölderlin diz: “mas o que

permanece, fundam-no os poetas”. O que permanece (o ser) devepôr-se ao descoberto para que apareça o ente. Ocorre que, precisa-mente o que permanece se dá de forma passageira e imediata, demodo que a sua captação está a serviço de homens capazes de trans-cender a dicotomia entre mortais e divinos. Estes são, para Heidegger,os poetas, porque estes nomeiam deuses e coisas. O poeta é aqueleque se projeta fora, entre deuses e homens. Ele faz isso falando nalinguagem dos deuses, qual seja, em signos (metáforas).

e) Palavra-monumento: a finitude da instauraçãoHeidegger tem como última palavra-guia deste ensaio o seguin-

te verso de Hölderlin: “pleno de méritos, mas é poeticamente que ohomem habita esta terra”. Aqui se evidencia a existência humanacomo uma experiência eminentemente poética. Mas, o que há no poé-tico que define nosso existir?

A poesia não é um mérito, uma conquista humana. Ao contrário,é uma doação dos deuses. Seu caráter donativo em muito se asseme-lha ao caráter hereditário da linguagem. Assim, a mais inocente das

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ocupações, por ser um dom divino assume traços decisivos na exis-tência humana, de maneira que, situando-se no reino da linguagem,tem, com esta uma essência comum, qual seja, a instauração do sercomo palavra. Com isto, não se trata de um simples jogo inofensivo ecaprichoso, mas, ao contrário, aquilo que torna público tudo o quantodepois falamos e tratamos no linguajar cotidiano.

O caráter de bem da linguagem na condição donativa da poesiaconfere publicidade aos entes tornando o homem dotado de historicidadee suportando a própria história. Por isso, a poesia é dotada dacontemporaneidade divina, isto é, de uma anterioridade que torna odiálogo o próprio acontecimento da linguagem. Neste sentido, “a poe-sia é o linguajar primitivo de um povo histórico” (Heidegger: 1992, p.08) – algo que é completamente diverso da “expressão do espírito deum povo” por transcender à história2.

Os poetas são aqueles que falam com os deuses, que conse-guem captar o passageiro que permanece escutando a fala dos deu-ses. Assim, canta Hölderlin:

É direito nosso, os poetas, estar em pé ante as tormentas de Deus, coma cabeça desnuda, para apreender com nossas próprias mãos os raios deluz do Pai, a ele mesmo. E fazer chegar ao povo envolto em cantos o domceleste. (Hölderlin apud Heidegger: 1992, p. 08)

Portanto, na imediatez da captação dos raios de luz do Pai opoeta perde algumas nesgas de luz. Fica com algo, diz algo, mas perdeoutro tanto do que ouviu. Porque o perigo da linguagem ameaça o serpelo ente e, com isso, o que se mostra, se esconde. Logo, o poético éeminentemente finito, de maneira que habitar o mundo nessas cir-cunstâncias é existir em termos de finitude.

Quando Gianni Vattimo fala da quebra da palavra poética, tocaprecisamente o ponto onde a palavra revela a finitude. Por isso toma afigura do monumento, aquilo que persiste na existência resguardandoo já ido. O monumento é a espacialidade que torna sempre presente oque se foi com o desgastar do seu próprio material constituinte; obronze ou o calcário que se desgasta com o tempo preserva diantedele as rugas do rosto esculpido.

Assim também o faz a palavra em sua constituição no mundo.Enquanto monumento, por um lado, fixa algo a ser dito naindividualização da ressonância; por outro, projeta o que há de ser nodito do tempo operando uma revelação de sentido na experiência datradução. Os deuses soam; o poeta ressoa o dito na existência reali-zando um pronunciamento. E toda pronúncia, é finitamente, poetica-mente, uma renúncia.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A poesia de Hölderlin concede à palavra a condição de monu-mento, isto é, uma construção que fixa algo a ser dito e o projetarumo ao tempo. Assim, o princípio da poesia compreende, fundamen-

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talmente, ressonância e tradução. A primeira consiste na capacidadehumana de deixar o mundo fazer-se palavra. A segunda, por sua vez,pode ser entendida como a permissão natural ao fundamental mostrar-se. A poesia é desenvolvida tanto como apresentação individualizadoraquanto como experiência.

Nos termos de ressonância e tradução está em jogo o princípio da poesia.Para Hölderlin, o princípio da poesia é escuta. Sendo a escuta a apreensãodo tempo das coisas, sendo o ouvido o sentido mesmo do tempo, a palavrapoética é em si mesma anúncio do fazer-se das coisas. Na escuta, futuroe passado, possibilidade e concretude, memória e criação concentram-seem cada instante, como um raio. A coisa é o seu devir e somente issoconstitui o seu espírito (CAVALCANTE: 1994, p. 13).

O fazer poético vem marcado por uma profunda preocupaçãocom o que seja verdadeiro, com o autêntico, de maneira que a poesiase torna maior quanto mais proporciona uma experiência de verdade. Apoesia realiza evidencia no que quer significar. Ocorre que essa evi-dência do significante trás consigo seu próprio velamento. Nessas cir-cunstâncias a palavra o revela como finito, aproximando-se da própriacondição humana.

Com efeito, para Hölderlin a finitude (Endlichkeit) é pressupostoda existência humana. O homem “habita a terra poeticamente”, ouseja, lança-se a terra numa expressão de mostrar-se e de resguardar-se, afirmando-se e negando-se simultaneamente. A revelação poéticase realiza precisamente na simultaneidade entre afirmação e negação,de maneira que tais opostos não se excluem; ao contrário, afirmam-seconstantemente a partir de si próprios.

Desta forma, o homem existe poeticamente por conquistar àcada dia sua condição de finitude a partir de sua própria condição. Apoesia vem ser o horizonte sobre o qual o inaudito soa e, por meio daescuta humana ressoa. A palavra o trás ao mundo onde o sujeita àsua condição monumental.

Notas:1VATTIMO, G. Heidegger e a poesia como ocaso da linguagem. Disponível emhttp://www.heideggeriana.ar Acesso em 15 de dezembro de 2007.2“A poesia não é um adorno que acompanha a existência humana, nem somenteuma passageira exaltação nem um acaloramento e diversão. A poesia é ofundamento que suporta a história, e por isso não é tampouco uma manifestaçãoda cultura, e menos ainda a mera “expressão” da “alma da cultura”” (Heidegger:1992, p. 07).

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Referências:

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ROSETE, Isabel. A arte como poesia essencial em que um povo diz oser. Disponível em http://www.consciência.org Acesso em 23 de setembrode 2006.VATTIMO, Gianni. Heidegger e a poesia como ocaso da linguagem.Disponível em http://www.heideggeriana.ar Acesso em 15 de dezembrode 2007._______. O fim da modernidade – niilismo e hermenêutica na culturapós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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DANÇA-TEATRO: uma tendênciaartística transformadora*

Leônidas de Souza Santos Portela**

Resumo: O presente artigo expõe análises e reflexões sobre a dança-teatro alemã, linguagem artística que vêm sido constantemente discutidana contemporaneidade, gerando inquietações que levam a elaboraçõesde conceitos que não se fixam assim como a própria linguagem. Tema denotável importância na formação acadêmica em artes cênicas.Palavras-Chave: Dança-Teatro. Pina Bausch. Corpo. Contemporaneidade

Abstract: The present article displays analyses and reflections on theGerman dance-theater, language artistic that come been constantly arguedin the contemporaneidade, generating fidgets that take the elaborationsof concepts that are not fixed as well as the proper language. Subject ofnotable importance in the academic formation in scenic arts.Keywords: Dance-theater. Pina Bausch. Body. Contemporaney.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - UFMA/CCH, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa-redonda “Dança: ciência e arte do movimento”** Graduando de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Maranhão,coreógrafo.

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1. INTRODUÇÃO

A dança está intimamente relacionada às transformações hu-manas, através dela é possível perceber as inúmeras mudanças histó-ricas e sociais que o corpo sofre em contextos mundiais. Não se sabeexatamente onde e quando surgiu, registros deixados pelos povos pri-mitivos em cavernas revelam a necessidade que o homem sempresentiu de expressar seus sentimentos através do corpo, dançavam emcírculo para comemorar a vitória, o sacrifício. Sabe-se também que naGrécia, a população já se manifestava em festas dionisíacas sacrifi-cando animais em rituais de honra a Dionísio, o deus do teatro, dovinho, da fertilidade e da dança.

Atualmente existem inúmeras técnicas e métodos para trabalhá-lacomo: a capoeira, o balé, as danças populares, os folclores regionais, adança de salão, a novadança, a dança contemporânea e educativa, adança-teatro, única ou qualquer tipo de denominação usada para tentarresumir às manifestações dos sentimentos humanos através do corpo.

A dança é uma forma de arte bastante ligada à juventude,através dela é possível humanizar os indivíduos, sensibilizá-los, traba-lhar a consciência respiratória e muscular do corpo a organização e orespeito entre corpos que se relacionam num mesmo espaço.

É necessário pensarmos cuidadosamente em abordagens quepermitam problematizar, articular, criticar e transformar as relaçõesentre a dança, o ensino e a aprendizagem, pois o reconhecimentodessa linguagem artística enquanto área de conhecimento a ser tra-balhada nas escolas foi legalmente introduzido pela LDB 9394/96; apartir de 1997 esse processo foi coroado a nível nacional com a inclu-são da dança nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).

Em suma, os conteúdos de dança são: aspectos e estruturas doaprendizado do movimento (aspecto da coreologia, educação somáticae técnica); disciplinas que contextualizam a dança (história, estética,apreciação e crítica, sociologia, antropologia, música, assim como sa-beres de anatomia, fisiologia e cinesiologia) e possibilidades de vivenciara dança em si (repertórios, improvisação e composição coreográfica).

2. A DANÇA-TEATRO ALEMÃ

A dança-teatro alemã – tanztheater - é uma linguagem de no-tável importância nas artes cênicas da atualidade, vertente da dançacontemporânea inicialmente desenvolvida por Rudolf von Laban (Hungria1879, Inglaterra 1958) nas primeiras décadas do século XX, tendocomo principal objetivo o delineamento de uma linguagem apropriadaao movimento corporal, com aplicações teóricas, coreográficas,educativas e terapêuticas.

Azevedo afirma que Labanapresenta um método de análise de ações corporais simples para que oaluno desenvolva sua capacidade de observação e realização de ações

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as mais diversas; estuda entre outras coisas a direção e planos de gestos,sua extensão e caminho no espaço, a energia muscular usada na resistênciaao peso e a acentuação do movimento; emprego do tempo (rápido normale lento) e fluência que pode se manifestar aos trancos (com interrupçõesou quebras entre um e outro movimento) ou a contínua (sem qualquerperda de ligação entre um movimento e aquele que vem a seguir) p.66.

Laban preocupava-se com a função da dança enquanto ele-mento de educação. Distanciou-se da dança como uma expressão desentimentos subjetivos, seu interesse agora era exemplificar seu novoconceito de dança que naquele período era mostrada como forma dearte independente, baseada nas leis de harmoniosas formas espaciais.Tornou possível a análise dessas formas de dança de acordo com osritmos específicos que o corpo em movimento descrevia no espaço.Dirigiu grandes grupos profissionais de onde saíram os mais importan-tes nomes da dança. Entre eles, destacam-se Mary Wigman e KurtJooss.

Mary Wigman, discípula deu continuidade ao trabalho de seumestre (1916-1933) observando delicadamente a habilidade deste paraajudar seus alunos a analisar suas características físicas, penetrandono universo interior em busca de suas próprias raízes. Wigman foi maisespecífica sobre sua versão de dança-teatro do que seu mentor Laban,elaborando características expressivas, chamando sua arte de dançaabsoluta. Wigman fundou a Ausdrukstanz (dança da expressão) umaverdadeira rebelião ao balé clássico, buscando uma expressão indivi-dual ligada a lutas e necessidades humanas “universais”. Neste mo-mento a preocupação com expressividade corporal ganhava maior ên-fase sobre a simples técnica de execução de movimentos.

Kurt Jooss, outro discípulo de Laban que também nos apresentaconceitos de dança-teatro. Desenvolveu tremas sociopolíticos por meioda ação dramática de grupo e da precisão da estrutura formal e deproteção fazendo sua declaração em termos de movimento. Joossconstruiu métodos baseados nas teorias espaciais e qualitativas deLaban, que conscientemente, combinavam técnicas clássicas com adança moderna. Os dançarinos sob sua direção combinavam treina-mentos de diferentes linguagens artísticas e sua dança na visão doespectador foi tida como uma forma modernizada de balé.

Jooss atuou como diretor de dança no teatro de Münster, Ale-manha, em 1925 e tornou-se co-fundador da Folkwang ballet, na cida-de de Essen, também na Alemanha, onde o auge de seus esforçostornou-se visível em jovens artistas que vieram de seu estúdio. Entreeles Pina Bausch.

“A dança-teatro não me parecia merecer uma definição fechada, oumesmo uma descrição classificatória. Percebê-la através de algunsprincípios gerais e dinâmicos seria mais justo. Inclusive porque seu eixoconstantemente sai do eixo, isto é, a dança-teatro desconstrói construções,definições, modos fixos de agir, ser, pensar...”. (FERNANDES, 2006, p.315)

Não há uma definição específica para o termo dança-teatro,sabe-se que ela não está simplesmente ligada à imagem de um dança-

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rino falando ou de um ator dançando, da forma óbvia e imediata que sepensa. A linguagem propõe a ruptura do binário dança/teatro, corpo/mente, movimento/texto.

a) A dança-teatro de Pina BaushA coreógrafa alemã Pina Bausch (nascida em 1940) é da primei-

ra geração pós-guerra e expoente mundial da dança-teatro. Desmon-ta estruturas mecanizadas e cânones corporais impostos no universoda dança e pela sociedade.

Os estudos de MACHADO sobre o método bauschiano afirmam:São carícias que se transformam inesperadamente em agressão, tentativasde toque que se partem em recuos e recusas. O ser humano mostra-seem suas aparências e profundezas, seus pólos conflitantes, seu desespero.Seus corpos, densos de energia, tornam-se frágeis e vulneráveis emencontros e desencontros; depois de violentados são acariciados,novamente agredidos, restando imagens solitárias profundamentedilaceradas ou ocultando a dor em máscaras impassíveis.

Em seus trabalhos coreográficos, Bausch incorpora o balé emsua forma e conteúdo, usando movimentos técnicos e cotidianos embusca de seu próprio vocabulário artístico. De certa forma é um traba-lho semelhante ao de Mary Wigman em sua utilização das experiênciasde vida dos bailarinos, mas distingue-se por não recusar a técnicaclássica. Essa ligação entre a cena e as experiências de vida de seusdançarinos, é uma tentativa verdadeira na abstração de cotidianos emdiferentes realidades culturais em estéticas críticas e sociais.

A coreógrafa utiliza-se de vários bailarinos e lota os palcos;suas peças apresentam um caos grupal generalizado, sob certa or-dem, favorecendo processo sobre produto e provocando experiênciasinesperadas em dançarinos e platéia, e para a surpresa desta, asmajestosas imagens de repente abrem espaço para cenas quase vazi-as, silenciosas e com pouca luz. Mas isto acontece com interaçãoentre as artes sem rejeitar a grandiosidade teatral.

Na dança-teatro de Pina Bausch, a repetição é um método etema crucial, aplicada tanto ás palavras quanto aos movimentos aserem feitos, usada para desarranjar as construções gestuais da téc-nica ou da própria sociedade. Por meio da repetição de gestos e pala-vras, a dança-teatro de Bausch contém os interesses de Wigman,com a expressão pessoal e psicológica, e de Jooss, com questõessociais e políticas, além de expandir o gesto social de Brecht para umapolítica corporal e individual.

A repetição tem a função de quebrar a imagem popular de dan-çarinos enquanto “seres espontâneos”, desmontando conceitos de ape-nas atores serem considerados os intelectuais do palco, revelandosuas insatisfações e desejos. Bausch usa a repetição como um instru-mento para alcançar estética crítica.

Gestos cotidianos são trazidos ao palco de formas abstratas egestos técnicos são repetidos até alcançar significação socialdesconstruíndo imagens estereotipadas e estabelecidas. Palavras são

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repetidas até que seus significados se dissolvam seus significados lite-rais tornando-se um referente à fisicalidade da dança.

Atualmente a repetição é utilizada em aulas de dança enquantoelemento de fixação e aprendizado de coreografias, e percebe-se quetêm sido um grande destaque na construção cênica no contexto dadança contemporânea.

Como exemplo posso citar o espetáculo “Solo Solidão”, de minhaautoria, onde o ator-dançarino interage com alguns elementoscenográficos como o pato de borracha, a caixinha de música, a bola ea gravata que se remetem à memória infantil, insensata e à vida socialde um determinado personagem. Este personagem denuncia suas pró-prias experiências de vida de forma metafórica e abstrata.

Modelos de sons de despertadores, campainhas, ônibus e con-versas completam esta proposta numa tentativa de aproximar cenica-mente o espectador de seu cotidiano, revelando o próprio cotidianohumano em cena. A repetição de modelos de sons e movimentos tor-na-se um elemento familiar ao espectador.

Costumo refletir da seguinte forma: Hoje acordei feliz, escoveios dentes e me achei belo ao olhar o espelho, será possível repetir asmesmas ações com a mesma intensidade acordando triste amanhã?

A dança-teatro nos aproxima do cotidiano tornando a atmosferacênica tão comum quanto a vida. Repetimos inúmeras vezes as mes-mas ações no cotidiano o que se transformam são os sentimentos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dança e suas inúmeras vertentes possui um destaque artísticorespeitável. Pode-se afirmar que ela se comunica com diversas áreas doconhecimento e têm se mostrado fundamental no processo de desen-volvendo prático e cognitivo, dentro e fora das universidades.

O corpo não é mais um meio para um fim. Ele tornou-se o assun-to da apresentação. Algo novo começa na história da dança: o corpoestá contando sua própria história, está produzindo seu próprio texto.

A função da dança-teatro é orgânica e visceral e sua experimen-tação torna-se uma constante inquietação cognitiva na preparação doartista para a cena. Estamos num momento em que a arte e suasinúmeras vertentes crescem gradativamente, onde seres considerados“espontâneos” tornam-se únicos e verdadeiros em suas contribuições.

A função da dança-teatro é refletir e questionar as relações etransformações culturais do corpo na própria sociedade. Logo, faz-senecessário o seu conhecimento e apreciação.

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Referências:

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AUTISMO: uma discussão sobreconceito, classificação e educação

inclusiva*Manoel William Ferreira Gomes**

Resumo: Discute-se a diversidade e potencial de conceito e de categoriade autismo, a partir de um breve histórico desde o termo grego “autos”,até a classificação pelo DSM – IV (Manual diagnóstico e estatístico detranstornos mentais). Na educação inclusiva – vincula-se um pouco da partelegal, desde a Constituição Brasileira de 1824 até do Decreto n. 5.296 de2 de dezembro de 2004 e considerações. Destaca-se também aapresentação da Associação dos Amigos dos Autistas do Maranhão (AMA– MA).Palavras-chaves: Autismo. Síndrome. Invasivo. Educação inclusiva. Escola.

Abstract: This paper deals with the diversity and potentiality of conceptand category of autism from a brief historycal sketch using the term “autos”,a greek prefix until the classification by DSM-IV (Manual for diagnosis andstatic’s - of the mental disturbances). In the inclusive education it is linked,too, the legal portion from the Brazilian Constitution of 1824 until the Decretn.5.296 of the 2n« of December of 2004 and considerations. It is detached,too, the presentation of the AMA-MA, that’s to say the Association of theFriends of the Autists in Maranhão.Keywords: Autism. Syndrome. Invasive. Inclusive Education. School.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 denovembro de 2007, durante a mesa redonda “Trabalho interdisciplinar comindivíduos com diagnóstico de autismo”** Professor no Departamento de Psicologia da UFMA; Mestre em Psicologia Socialpela UERJ. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

Falar ou escrever sobre o autismo tem sido, em todas as épo-cas, um grande desafio para todos os profissionais envolvidos com oassunto. Apesar de um volume crescente de publicação de livros,artigos e trabalhos sobre esse tema, constata-se nosso desconhecerou mesmo ignorância - como diz Pierre Ferrari, professor de Psiquiatriapara a Infância e a Adolescência da Universidade de Paris - sobreaspectos que continuam sem respostas nos dias atuais.

Poderíamos destacar aqui a questão do próprio conceito, das ca-tegorias, da etiologia, do diagnóstico, da avaliação, da intervenção e daeducação. No entanto, neste trabalho discutir-se-ão apenas os itensconceituação (categorias e classificação); a Educação Inclusiva; e apre-sentação da Associação dos Amigos do Autista do Maranhão (AMA-MA).

A história do autismo começa com a origem do termo; que pro-vém do grego autos, que significa “de si mesmo”, e foi empregado pelaprimeira vez pelo psiquiatra suíço Bleuler, em 1911, para descrever afuga da realidade e o retraimento para o mundo interior dos pacientesadultos acometidos de esquizofrenia.

A psicanalista inglesa Melanie Klein - assistente de Freud - foi aprimeira a aplicar o tratamento psicanalítico em uma criança autista.Ela não empregou o termo “autismo”, mas descreveu “a importância daformação do símbolo no desenvolvimento do eu”, em um artigo publi-cado em 1930. Cita o caso do menino Dick, de quatro anos, desprovidode afeto, que era indiferente à presença ou à ausência da mãe ou dababá; não se relacionava com as pessoas e não fazia de conta com osbrinquedos (FERRARI, 2007).

Em 1943, Leo Kanner psiquiatra norte-americano de origem austrí-aca fez a primeira descrição do autismo em seu artigo “Distúrbios autísticosde contato afetivo” - o autismo infantil precoce. Para Kanner, o autismoconsiste na “[...] incapacidade das crianças de estabelecer relaçõesnormais com as pessoas e de reagir normalmente às situações, desde oinício da vida”. Ele caracterizou clinicamente a afecção, retornando aotermo “autismo”, que o psiquiatra Bleuler havia empregado para descre-ver a fuga da realidade. Dessa maneira, o autismo infantil foi reconhecidopor Kanner como uma afecção autônoma e específica ligada aos primeirosanos da infância – autismo infantil (FERRARI, 2007, p. 9).

Em 1944, Hans Asperger, um médico austríaco, escreveu umartigo com o título “Psicopatologia Autística da Infância”, no qual cha-ma atenção para a qualidade do comportamento social do autista queperpassa a simples questão de isolamento físico, timidez ou rejeiçãodo contato humano, mas se caracteriza, sobretudo, pela dificuldadeem manter contato afetivo com os outros, de modo espontâneo erecíproco - “psicopatia autística”.

Assim, historicamente, constata-se que a inclusão do autismona categoria de psicose ou de esquizofrenia varia conforme as escolaspsiquiátricas.

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Por “psicose” compreende-se, de um modo geral, um distúrbiomaciço da realidade, envolvendo uma desorganização (ou a não orga-nização) da personalidade.

O termo “esquizofrenia”, inicialmente denominada por Kraepelin,de demência precoce, referia-se a alterações específicas no pensa-mento, nos sentimentos e nas relações com o mundo externo, cujocurso muitas vezes é crônico ou intermitente Houzel (1991 apudBAPTISTA; BOSA, 2002, p. 27).

Verifica-se, assim, grande controvérsia com relação à distinçãoentre autismo, psicose e esquizofrenia. Por essa razão é que as primeirasedições da Classificação de transtornos mentais e de comportamento -CID não fazem qualquer menção ao autismo. Já a oitava edição o trazcomo uma forma de esquizofrenia, e a nona agrupa-o como psicoseinfantil. Por sua vez, a partir de 1980, assiste-se a uma verdadeira revo-lução paradigmática no conceito, sendo o autismo retirado da categoriade psicose do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais -DSM-III e do DSM- III-R, bem como na CID-10, passando a fazer partedos transtornos globais de desenvolvimento – TGD. Daí então o DSM-IVtraz o transtorno autista como integrando os transtornos invasivos dodesenvolvimento – TID, encontrando-se também na tradução para oportuguês o termo “abrangente” em substituição a “invasivo”, juntamen-te com os transtornos desintegrativos (BAPTISTA e BOSA, 2002).

Tanto o CID-10 quanto o DSM-IV estabelecem como critériopara o transtorno autista o comprometimento em três áreas principais:

a) Alterações qualitativas das interações sociais recíprocas;b) Modalidades de comunicação ec) Interesses e atividades restritos, estereotipados e

repetitivos.A classificação francesa define autismo como psicose, diferen-

ciando o chamado autismo infantil “tipo Kanner” (com aparecimentodos primeiros sintomas dentro do primeiro ano de vida e quadro com-pleto até os três anos) das “outras formas de autismo infantil”, com oaparecimento tardio dos sintomas, após os três anos, incluindo tam-bém algumas formas de psicose do tipo simbiótica – condição de mãe efilho na vida extra-uterina -, da deficiência mental, demência e distúr-bios complexos da linguagem oral.

Em 1990, o Grupo para o Avanço da Psiquiatria – GAP tambémenquadrou o autismo em transtornos psicóticos, sendo denominado de“autismo infantil precoce”.

É bom ressaltar a mudança na forma de conceber o autismo,passando da condição de “doença”, com identidade definida e distintados quadros envolvendo problemas orgânicos, para a de “síndrome” –que significa conjunto de sintomas. Assim, quando se fala de transtornoou síndromes autistas, quer-se designar a “tríade de comprometimen-tos” independentemente da sua associação com aspectos orgânicos,ou seja, identifica um perfil comportamental com diferentes etiologias.Essas mudanças refletem o acúmulo de conhecimento produzido por

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pesquisas no mundo todo, incluindo-se os epidemiológicos, na busca deidentificar-se tanto as características clínicas comuns como suasespecificidades e delinearem-se aspectos diferenciais de outras condi-ções como deficiência mental, transtornos da linguagem e esquizofrenia.

Com referência à identificação do nível de comprometimento autista,Lorna Wing, psiquiatra inglesa, critica a divisão em subgrupos comoautismo típico, atípico e não especificado. No entanto, Batista; Bosa(2002), afirmam que, do ponto de vista de investigação científica, éimportante a identificação de subgrupos e seus possíveis perfis sociais,cognitivos e outros. No final de 1979, Lorna propôs a noção de “espec-tro autista”, para designar déficits qualitativos na denominada tríade decomprometimentos (linguagem, comunicação social e imaginação).

2. EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Para entender a questão da inclusão de pessoas com deficiênci-as, necessário seja feito um esborço histórico da legislação produzidaem todo o mundo sobre essa matéria.

Na época do Brasil Império, na Constituição de 1824, foi consa-grado o direito à educação para todos os brasileiros, tendo esse direi-to se mantido nas Constituições de 1934, 1937 e 1946.

Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, afirmou-se o princípio danão discriminação e se proclama o direito de toda pessoa à Educação.

Em 1990 aconteceu a Conferência Mundial Sobre Educação ParaTodos em Jomtien, na Tailândia, que não apenas firmou a DeclaraçãoMundial sobre a Educação para Todos, mas também confirmou umPlano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendiza-gem (CARNEIRO, 2007, p. 33 – 34).

Não apenas o tema educação simplesmente mas também edu-cação inclusiva têm sido motivo de vários estudos e encontros. Entreeles destaca-se pela sua importância a Conferência Mundial de Neces-sidades Educacionais Especiais, na Espanha, em 1994, quando foi apro-vada a Declaração de Salamanca, cujos princípios norteadores são:

1. O reconhecimento das diferenças.2. O atendimento às necessidades de cada um.3. A promoção de aprendizagem.4. O reconhecimento da importância da “escola para todos”.5. A formação de professores.

Os aspectos político-ideológicos que estão embutidos nos prin-cípios dessa Declaração levam a pensar num mundo incluso, ondetodos têm direito à participação na sociedade, fazendo valer a demo-cracia de forma cada vez mais ampla.

No Brasil contemporâneo, a Lei n. 9.394/96 Lei de Diretrizes eBases da Educação) reserva o capítulo V à Educação Especial, cujosdetalhamentos são fundamentais:

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1. Garantia de matrícula para os Portadores de NecessidadesEducacionais Especiais, preferencialmente na rede regularde ensino.

2. Criação de apoio especializado, para atender àspeculiaridades dos alunos especiais.

3. Oferta de educação especial durante a educação infantil.4. Especialização de professores.

É tarefa dos governos federal, estadual e municipal implementara Política Pública de Inclusão, visto que na forma federativa cada esferatem atribuições específicas. Atualmente dispomos da Coordenação Na-cional para integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE),que pertence à estrutura da Secretaria Especial de Direitos Humanos daPresidência da República, responsável pela condução da regulamenta-ção das leis federais de acessibilidade, envolvendo treze ministérios eoutros órgãos governamentais, consulta pública, consolidação das con-tribuições da sociedade até a sanção presidencial do Decreto n. 5.296,em 2 de dezembro de 2004 (Manual da mídia legal 4, 2005).

Nesse breve histórico, compreende-se que a legislação garanteo acesso de qualquer pessoa portadora de deficiência à mesma sala deaula de crianças ou adolescentes não portadoras de deficiência. Noentanto, muitas instituições de ensino recusam-se a receber pessoasportadoras de deficiência, inclusive da síndrome de autismo, em seucorpo discente.

Feitas as considerações legais sobre a Educação, abordar-se-áo sistema educacional inclusivo.

A Globalização implantou em todo o planeta uma enorme veloci-dade nas mudanças do dia-a-dia das pessoas, principalmente a dosavanços científicos e tecnológicos, disponibilizando, a serviço do ho-mem pós-moderno, recursos e possibilidades antes considerados im-possíveis. Essa nova realidade tem provocado mais competição e maisdesigualdade principalmente entre os povos de países periféricos ouem desenvolvimento, como é o caso do Brasil, conduzindo-os a umaconvivência com índices inaceitáveis de injustiça social. Nesse con-texto, incluí-se a Educação, apesar da maioria dos diversos paísesestar empenhada em interesses comuns que visam superação do fra-casso escolar, consubstanciado em altos índices de evasão, repetênciae baixo rendimento. Vive-se um grande desafio: como efetivar, naprática, os direitos assegurados a todos, para que possam se benefici-ar da educação de qualidade? (EDLER CARVALHO, 2004).

E mais: quanto às pessoas portadoras de deficiência, dos queapresentam condutas típicas de síndromes neurológicas, genéticas,psiquiátricas e psicológicas, como é o caso do autista, como garantir,em escolas inclusivas, o princípio da integração e a elevação dosníveis de qualidade no processo educacional?

Percebe-se facilmente que são muitas as providências políticas,administrativas e financeiras a serem tomadas para que as escolas, semdiscriminações de qualquer natureza, acolham a todas as crianças, in-

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dependentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emo-cionais, lingüísticas e também crianças portadoras de deficiência.

Sabe-se que as mudanças na maneira de fazer educação paratodos, e principalmente para pessoas portadoras de deficiência nãoocorrem pelo tremular de uma varinha do condão.

Na verdade, as transformações que todos almejam conduzindo asescolas a oferecer respostas educativas de qualidade – ao mesmo tempocomuns e diversificadas -, não dependem, apenas, das políticas educaci-onais, mas articuladas com todas as outras políticas públicas, particular-mente com aquelas que detêm a distribuição de recursos financeiros.

Dessa forma, é necessário que a Educação Especial deixe de serum subsistema que se ocupa de um determinado tipo de alunos comdeficiências, “[...] para converter-se num conjunto de serviços e derecursos de apoio, orientado para a educação regular, em benefício detodos os aprendizes” (DUK, s/d, apud EDLER CARVALHO, 2006, p. 78).

Atualmente os sistemas educacionais inclusivos estabelecemprogramas, projetos e atividades que permitem o desenvolvimento plenoda personalidade dos indivíduos, fortalecendo o respeito aos direitoshumanos e às liberdades fundamentais, proclamados pela DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos.

Tendo feito esse percurso sobre a Educação Inclusiva, neces-sário se faz saber, então, o que é uma Escola Inclusiva?

Segundo Carneiro (2007, p. 30), trata-se de uma:Instituição de ensino regular aberta à matrícula de TODOS os alunosindistintamente. Este conceito é a base de sustentação da compreensãode escola que, além de trabalhar o conhecimento universal nas suasmanifestações contemporâneas, tem, também, a responsabilidade deobjetivar processos de aprendizagem de acordo com as particularidadesde cada aluno.

Já Edler Carvalho (2006, p. 29), pesquisadora em Educação In-clusiva, diz que:

Pensar na inclusão dos alunos com deficiência(s) nas classes regulares semoferecer-lhes a ajuda e apoio de educadores que acumularam conhecimentose experiências específicas, podendo dar suporte ao trabalho dos professorese aos familiares, parece-me o mesmo que fazê-los constar, seja como númerode matrícula, seja como mais uma carteira na sala de aula.

Os estudos demonstram que não há diferença nos objetivos daeducação especial e da regular. Ambas têm por finalidade o plenodesenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cida-dania e sua qualificação para o trabalho, quando possível. Nesse con-texto, então, concluí-se que a inclusão escolar tem sido um equívoco,especialmente quando das mudanças, nas escolas tanto comuns comoespeciais. Esse é o ponto de maior discussão, visto que, sem essasmudanças as instituições de ensino não terão condições de receber atodos os alunos indistintamente (MANTOAN e PRIETO, 2006).

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3. ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DO AUTISTA DOMARANHÃO.

Muito antes do ano de sua fundação, um grupo de pais de crian-ças e adolescentes autistas desta cidade já se reunia, buscando arti-cular a criação de uma associação que pudesse assistir seus filhos e darapoio as famílias. Desse modo, em 25 de setembro de 2004, esse grupoacrescido de outros pais, e incentivado pela Clínica Neurocenter, criou aAssociação de Amigos do Autista do Maranhão (AMA-MA), quando foieleita uma diretoria provisória com o objetivo de providenciar seu regis-tro, elaborar os estatutos e preparar a eleição de uma diretoria regi-mental. No dia 30 de dezembro deste ano, a associação dará posse asua segunda diretoria com mandato para o biênio 2008 – 2009.

A AMA – MA é uma entidade civil, com personalidade jurídica dedireito privado, de caráter filantrópico, sem fins lucrativos, com duraçãoindeterminada, com autonomia administrativa, financeira e patrimonial,com sede foro na cidade de São Luís, Capital do Estado do Maranhão.

A Associação tem por finalidade: assistir aos portadores de neces-sidades especiais “autista e suas variantes”, dando-lhe assistência àsaúde, à educação bem como realizar sua integração e inclusão ao mer-cado de trabalho, à cultura, ao esporte e ao laser; oferecer à família umaorientação sistemática, adequada, e socializar conhecimentos relaciona-dos a questão, propiciando-lhe uma melhor qualidade de vida; fomentaramplos debates com os pais sobre as relações da dinâmica familiar desta-cando-se os aspectos emocionais e comportamentais; fomentar subsídi-os e promover estudos e discussões com seus associados acerca deassuntos correlatos a síndrome de pessoas autistas e suas variáveis epromover junto à comunidade campanhas de esclarecimento, sobre oautismo, objetivando diminuir os preconceitos ainda existentes.

Referências:BATISTA, C. R. e BOSA, C. (Orgs). Autismo e educação: reflexões epropostas de intervenção. Porto Alegre: Artmed, 2002.CARNEIRO, Moaci Alves. O acesso de alunos com deficiência às escolase classes comuns: possibilidades e limitações. Petrópolis, RJ: Vozes,2007EDLER CARVALHO, Rosita. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”.4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2006.FERRARI, Pierre. Autismo infantil: o que é e como tratar. Tradução deMarcelo Dias Almada. – São Paulo: Paulinas, 2007. –(Coleção caminhosda psicologia).MANTOAN, Maria, T. E. e PRIETO, Rosângela G. Inclusão escolar: pontose contrapontos. Valéria Amorim Arantes, organizadora. - São Paulo:Summus, 2006.Manual da mídia legal 4: comunicadores pelas políticas de inclusão.Escola de Gente – Rio de Janeiro: WVA Editora, 2005.

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IMITAÇÃO E IMAGINAÇÃO ‘DAMIMESIS ÀS PAIXÕES’: a ilusão

do reflexo para Rousseau*

Luciano da Silva Façanha**

Resumo: No contexto do iluminismo francês do XVIII, destaca-se a figurado filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau que, além de escrever obrasde ficção, também pensa sobre a atividade artística em termos de suaconceituação e da função e utilidade que é atribuída pela sociedadesetecentista. Elaborando uma das maiores críticas à idéia de Imitação(Mimese), pois, esta colaborou para a degradação dos costumes,observada nos progressos sofridos pelo homem, dentro de uma perspectivado declínio.Palavras-chave: Imaginação. Rousseau. Ficção. Mimesis. Verdade.Metáfora. Reflexo. Fábula.

Abstract: In the context of the French iluminismo of the XVIII, it isdistinguished figure of the genevan philosopher Jean-Jacques Rousseauwho, beyond writing fiction workmanships, also think on the artistic activityabout terms of its conceptualization and the function and utility that isattributed by the setecentista society. Elaborating one of the critical greatersto the idea of Imitation (Mimese), therefore, this collaborated for thedegradation of the customs, observed in the progressos suffered for theman, inside of a perspective of the decline.Keywords: Imagination. Rousseau. Fiction. Mimesis. Truth. Metaphor.Consequence. Fábula.

* Este texto é uma versão ligeiramente modificada do apresentado durante o VIIENCONTRO HUMANÍSTICO – Centro de Ciências Humanas – UFMA, na MesaRedonda Progresso e Decadência: arte, história e memória. São Luís / MA,21.11.2007.** Doutorando em Filosofia na PUC/SP, Mestre em Filosofia pela PUC/SP e Professordo Departamento de Filosofia da UFMA. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

No século XVIII, tempo em que, com quase nenhuma exceção,os filósofos escrevem tratados de filosofia, de política, diálogos, poe-sia, peças de teatro, romances, contos, fábulas, obra de história,elaboram peças de música. É de se supor que haja unidade nessasobras, apesar de toda a distinção que há na produção desses autores,principalmente do Rousseau. Esses homens se pensam, como Homensde Letras. Essa idéia de uma República das Letras que vem desde oRenascimento até o período da Ilustração, objetiva a reunião dos inte-lectuais da Europa inteira, independente dos Estados constituídos oupor constituírem, independente das crenças e das particularidadeslocais. É claro que, essa comunidade representa um modelo ideal,solidamente instalado na memória dos intelectuais até o final do AntigoRegime, mas, também, nos permite compreender as relações que osHomens de Letras estabeleciam com seus pares; além de contribuirpara fazer evoluir a noção de autor, em um campo de forças harmoni-osas ou conflituosas, pois a República da Letras é o norte do Imaginá-rio, da Imaginação. O Homem de Letras equivale à figura daquele quepratica as Belas Letras, herdeiro de uma cultura e dirigindo-se a umaelite letrada. As belas letras permanecem como uma referência exem-plar, que determina uma prática do discurso baseada em uma concep-ção valorizada da criação literária.

Neste momento cabe a distinção entre o que é autêntico e oinautêntico, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e o injusto;ou seja, a crítica, a arte de julgar e, portanto, de distinguir, estaria emrelação estreita com uma concepção dualista do mundo. A razão pe-sava constantemente, ‘contra e a favor’, enfrentando contradiçõesque produziam sempre novas contradições, dissolvendo-se em um tra-balho permanente de crítica.

Não há mais nada que possa contentar a razão. O progressopassa a ser o guia da crítica, mesmo quando ele não é considerado ummovimento ascendente, e sim de destruição, ou decadência, como erapara Rousseau1 (FAÇANHA, 2007, p. 93-101). “Da consciência dessaoposição nasceu a síntese intelectual que devia conduzir o séculoXVIII à fundação da estética teórica. [Ciência para a qual convergetodo o esforço por uma visão clara do individual, da coerência e daunificação formal] Mas, antes que essa síntese intelectual tivesserecebido a sua forma definitiva , o pensamento filosófico deveria aindaenfrentar uma série de etapas preliminares com vistas à definição, sobdiversos aspectos e várias perspectivas, da unidade que queria esta-belecer entre os termos em conflito” (CASSIRER, 369, 1992).

Segundo Cassirer, tanto a poética, a retórica, quanto a teoriadas artes plásticas, deste período, devem ser consideradas numa pers-pectiva sintética, pois, “a verdadeira e essencial tarefa da críticareside, precisamente, em transpor esse limite, em penetrar com seusraios o claro-escuro da ‘sensação’ e do ‘gosto’ que ela deve sem

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cometer nenhum atentado à sua natureza, trazer para a luz do conhe-cimento.” (Id. Ibid., 368, 1992)

A partir do século XVIII, julgar é nivelar tudo, é reduzir atémesmo o rei à condição de cidadão. Para os Homens das Letras, opoder é sempre abuso de poder. Assim, um bom monarca é pior do queum mau, porque impede a criatura humilhada de perceber a estupidezdo princípio absolutista. Inclusive, no discurso preliminar da Enciclopé-dia, D’Alembert nos diz que, “o filósofo necessita conquistar sua certe-za, abominando as noções abstratas.” (D’ALEMBERT 131, 1964)

Então, se neste período, não há possibilidades de resolver asquestões metafísicas, deixemo-las de lado e pensemos naquilo quenos diz respeito mais de perto e para o qual, talvez, possamos encon-trar alguma resposta. Esclarecemos que a questão trazida aqui é jus-tamente a que remonta algumas das reflexões de Platão sobre osefeitos negativos da mímesis. O termo mímesis, “significa literalmenteimitação.” (AUERBACH, 1-20, 2004) Rousseau resolve acompanhar acondenação que Platão faz a mímesis no livro X da República (595 a-608 b). Platão designa a semelhança das coisas empíricas com asidéias, de que são as representações, incluindo entre aquelas coisasempíricas também as obras de arte. Portanto, a mímesis torna-se con-ceito central da estética.

2. O SENTIDO DE MÍMESIS PARA ROUSSEAURousseau não estuda a mímesis em si mesma, mas como parte

da linguagem, não como faz um lingüista, mas como uma manifesta-ção de questões e problemas pertinente à sua filosofia. Não se trata,assim, de uma ‘filosofia da linguagem’, mas de ‘problemas da lingua-gem na filosofia’. Por certo, muitos outros nomes poderiam constarnesse ensaio – Diderot, Voltaire, D’Alembert são apenas exemplos dealguns autores cujas concepções mereceriam nossa atenção. A es-colha de limitar nossa pesquisa a esse autor se deve a ênfase que eledá ao tema da mesa redonda “Progresso e decadência: arte, históriae memória”, pois, a problemática da mímesis está intimamente vincu-lada à saída do estado de natureza e a instauração de uma socieda-de degenerada pelo progresso. Primeiramente, se observa alguns ar-gumentos de Rousseau na Carta Sobre os Espetáculos (Carta aD’Alembert), pois, ele apresenta o interesse subsidiário de anunciar acrítica ao efeito de sugestão produzido pelos meios de comunicação,tão atual nos dias de hoje: ‘o fato do prazer do cômico basear-se emum vício do coração humano, terá, como conseqüência, que, quantomais a comédia for agradável e perfeita, mais o seu efeito será fu-nesto aos costumes’; fala da intenção de Molière, no que se refere acomédia: “Tendo de agradar ao público, ele consultou o gosto maisgeral daqueles que o compõem: sobre esse gosto ele formou ummodelo, e sobre esse modelo pintou um quadro dos defeitos contrári-os, do qual tomou seus caracteres cômicos, e cujos diversos traçosdistribuiu em suas peças.” (ROUSSEAU, Carta a D’Alembert, 55, 1993)

Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’

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Segundo Rousseau, o teatro reflete, pura e simplesmente, oscostumes estabelecidos e deve, portanto, ser condenado pela razãoprática, por conduzir inevitavelmente seu público a aprovar o estadopresente da sociedade, que é mau. As alegrias que o sujeito encontrana satisfação de suas verdadeiras necessidades, o teatro substitui umprazer sem utilidade. O prazer do espetáculo seduz o espectador, afasta-o, e essa mesma distância o faz esquecer, na contemplação de umdestino imaginário, seus deveres imediatos.

Em outros termos, o teatro faz com que o sujeito se identifiquecom os personagens, com suas paixões, colocando em ação forçassubconscientes que minam a sensibilidade moral do receptor por meioda imitação. O horror ao mal, que personagens como Fedra e Medéiainspiram, vai, aos poucos, sendo reduzido e se transformando em sim-patia. Do mesmo modo, o espectador da comédia é levado a rir do quehá de ridículo na virtude de um misantropo respeitável, por exemplo.Assim, a comédia presta homenagem ao vício secreto que se dissimulaatrás do prazer extraído do cômico.

Como se disse, há, em Rousseau, uma retomada da questão damímesis, na recusa à imitação dos costumes da sociedade, necessari-amente corrompida, segundo o nosso autor. Contrapondo natureza acultura, o filósofo genebrino sugere que se consulte a natureza, oupassando a pregar a base da sua proposta ficcional. O conceito dearte estaria, então, de volta a Platão, na sua conceituação de mimesis.

Também, no Emílio, livro III, Rousseau põe na boca do preceptorJean-Jacques, uma afirmação surpreendente: “Detesto livros; só ensi-nam a falar do que não se sabe.” (ROUSSEAU, Emílio, Livro III, 200,1995) Esse juízo, pronunciado por um dos mais influentes Homens deLetras de seu século, pode à primeira vista soar como uma banalidadede um autor que se deliciava com os contrastes. Porém, a sustenta-ção dessa questão revela uma implacável coerência: Emílio será cui-dadosamente mantido à distância desses perigosos objetos: ele apren-derá a ler tardiamente e apenas para fins estritamente práticos; oslivros a que Rousseau se refere são as fábulas, bastante recomenda-das para a edificação moral das crianças.

Examinar as razões que levaram Rousseau a adotar essa postura écolocar-se de imediato na intersecção de todos os grandes temas queperpassam todo o seu pensamento. A crítica do genebrino se refere àsubstituição das coisas pelos signos e do que é pelo que parece ser, oresguardo contra a expansão incontrolada da imaginação e, especial-mente, da imitação, a norma de adequação à natureza, tanto nos proce-dimentos de representação artística como no percurso ordenado dasetapas que levam da criança ao homem plenamente desenvolvido quepode, enfim, tirar um proveito autêntico e não alienado da leitura dasobras literárias. Mas o caminho até essa proveitosa fruição dos livros éárduo e cheio de perigos. O mais característico é o já apontado: “falar doque não se sabe”. Antes de se ter obtido um sólido conhecimento daspróprias coisas, a fixação nas palavras, faladas ou escritas, constitui uma

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substituição perversa da coisa pelo signo, da matéria da sensação e daexperiência pela representação (pela convenção). No caso das crianças,seres eminentemente sensíveis e nada racionais, de que serve “inculcarem suas cabeças um catálogo de signos que nada representam paraelas?”. A apreensão das coisas é condição prévia para a apreensão cor-reta dos signos, e inverter essa ordem na educação das crianças não éapenas um exercício inútil, mas positivamente nocivo.

Memória, imitação, imaginação e aprendizado devem, portanto,exercer-se inicialmente sobre a massa de sensações e experiências queconstituem seu ambiente concreto – tudo o que a criança toca, escutae se recorda, tanto com relação às coisas, a seus próprios estadosinternos, e aos comportamentos dos que a circundam. Esse é o livro, dizRousseau, com o qual ela, sem perceber, enriquece continuamente suamemória enquanto aguarda o momento em que seu julgamento venha ase aproveitar dessa massa acumulada de observações.

O contato exclusivo com as coisas tem também o dom de evitar ocrescimento desregrado daquela faculdade que – responsável, é certo,pelos cumes do desenvolvimento intelectual, espiritual e artístico dahumanidade – é também seu mais implacável algoz: o reflexo da ilusão.Pois é a imaginação que possibilita aos homens descolar-se do mundoreal e vislumbrar horizontes que estimulam seus desejos em um grauincompatível com as possibilidades efetivas de sua satisfação, instau-rando esse hiato intransponível que está, para Rousseau, na origem dasfrustrações e sofrimentos que se abatem sobre a humanidade civilizada.A educação de Emílio é, nesse sentido, em grande medida negativa –trata-se principalmente de evitar seu contato com os objetos que elenão deve conhecer, em benefício de um desenvolvimento paulatino econtrolado de suas faculdades imitativas. E as palavras (metáforas),que não são as coisas, mas, seus meros representantes, e que gozampor isso mesmo de uma cômoda irresponsabilidade diante das realidadesdo mundo, devem ser objeto de cautela especial.

Observemos como Rousseau desmascara o gênero literário quea sabedoria convencional de sua época havia tomado como a literatu-ra infantil por modelo: as fábulas de La Fontaine. “Ensinam as fábulasde La Fontaine a todas as crianças e nenhuma só as entende. E se asentendesse seria pior ainda, porquanto a moral se apresenta tão con-fusa e tão desproporcional com sua idade que a levaria mais ao víciodo que à virtude.” (ROUSSEAU, Livro II, 104-105, 1995)

O próprio encanto e atração que as fábulas apresentam sãoalcançados por meio de recursos fantasiosos e poéticos que obscure-cem o ponto crucial e desviam a atenção para inúmeros outros pon-tos, levando por vezes a conclusões em franco desacordo com ospropósitos edificativos visados. Para fundamentar e desenvolver suacrítica, Rousseau dedica várias páginas do Emílio à discussão de umadas fábulas mais conhecidas e elogiadas de La Fontaine – a fábula doCorvo e a Raposa, submetendo-a, verso a verso, a uma impiedosadissecação. Vejamos:

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Mestre Corvo, em uma árvore empoleiradoTinha no bico um queijo

As objeções de Rousseau dirigem-se tanto ao conteúdo expres-so quanto à forma de expressão. “Mestre! Que significa esta palavraem si? Que significa diante de um nome próprio? Que sentido temnesta oportunidade? Qual a razão para se chamar o corvo de Mestre?A criança que lê a fábula sabe o que é um corvo? Se nunca viu um,que sentido há em falar-lhe deles? Se ela sabe como é um corvo, comopoderia razoavelmente conceber que ele estivesse segurando um queijono bico? Que queijo? Da Suíça, de Brie ou da Holanda? Façamos sem-pre imagens segundo a natureza.” (ROUSSEAU, Livro II, 105-106, 1995)

A forma da linguagem também é objeto de crítica: “que significanuma árvore empoleirado? Não se diz numa árvore empoleirado, diz-seempoleirado numa árvore.”(Id.) Rousseau observa, que será precisoexplicar à criança as peculiaridades da linguagem em verso e as razõespor que ela é empregada no relato. Faz uma crítica também, à licençapoética dos animais falantes: “Mais ou menos assim lhe falou. Falou?Então as raposas falam? E falam a mesma linguagem que os corvos?Prudente preceptor toma cuidado, pesa bem tua resposta antes dedá-la. Tem mais importância do que imaginas.” (Id.)

Os comentários aos versos seguintes retomam a crucial questãoda mentira.

Eh! bom dia, senhor Corvo!Como sois bonito! Como me pareceis belo!Sem mentir, se vosso gorgeioCorrespondesse a vossa plumagem,Serieis a fênix dos hóspedes deste bosque (Op. cit., p. 107)

Antes, porém, Rousseau volta a apontar os aspectos indesejá-veis do emprego desta linguagem. É claro que o que Rousseau vêcomo má prática pedagógica é exatamente o recurso do literato, essaredundância, cabe apontar, não é inútil e desprovida de conteúdo,pois tem o papel de realçar o intento do bajulador que, com a multipli-cação das palavras, almeja multiplicar os elogios. Nada disso, é claro,passa despercebido ao preceptor Jean-Jacques, a quem de modo al-gum falta sensibilidade estética. Mas, ele insiste as razões que satis-fazem o homem afeito ao mundo, às paixões e à arte não são algo queEmílio possa pelo momento compreender. Mas é o verso seguinte quemais desperta sua indignação. “Sem mentir! Mente-se então às ve-zes? Em que pé ficará a criança se lhe explicardes que a raposa dizsem mentir exatamente porque mente?” (Id.)

Há aqui demasiadas sutilezas e perversidades que a criançamerece ser poupada – o abismo entre ser e parecer que governa aconduta da maioria dos homens irá ao fim tornar-se seu conhecido. Éimportante que ela preserve sua autenticidade e transparência duran-te esses anos cruciais de sua formação.

Ante tais palavras, o corvo não cabe mais em si de alegria.E para mostrar sua bela vozAbre um largo bico e deixa cair sua presa. (Id.)

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Chega-se a culminação da fábula, o ponto para o qual convergetoda a ação: é a queda do queijo, que tem como contrapartida dramá-tica a queda de todos os disfarces e o desvelamento das verdadeirasnaturezas do corvo e da raposa, ou antes, dos tipos humanos queesses personagens-animais representam. Antes dessa dissolução detodos os enganos, o verso precedente se referira à “bela voz” docorvo. Esse é um ponto crucial: “Não vos esqueçais de que, paraentender este verso e toda a fábula, a criança deve saber o que sejaa bela voz do corvo.” (Id.) Mas – justamente – o relato nesse pontoparece cúmplice da ilusão, e cabe fazer a criança entender que a vozé chamada “bela” precisamente porque não é bela. Diferentemente daraposa, porém, o narrador não tem o propósito de fazer alguém crernessa mentira – mas como poderíamos explicar à criança seu propósi-to, e, caso o consigamos, em que medida a instrução de uma criançana prática do discurso irônico e da inversão do sentido das palavraspode trazer-lhe algum proveito e edificação? Chega-se à moral dafábula, esses apêndices que são redundantes no caso em que a fábulateve sucesso em sua empreitada, e impotentes quando ela fracassou:

Pega-o a raposa e diz: Meu bom senhorAprendei que todo aduladorVive a expensas de quem o escutaEsta lição vale bem um queijo, sem dúvida.O corvo, envergonhado e confuso,Jurou, um pouco tarde, que noutra não cairia. (Id.)

Rousseau nota inicialmente o uso pejorativo de “bom” em “meubom senhor”: “Eis aí a bondade já transformada em tolice. Por certonão se perde tempo para instruir as crianças.” – isto é, ao instruí-lasquanto ao real valor que a sociedade dá à bondade. E, com essaconstatação, podemos passar ao diagnóstico de Rousseau quanto aofracasso das fábulas em geral, na tarefa de promover a edificaçãomoral a que ostensivamente se propõem. Citando Rousseau:

Pergunto se é preciso ensinar a crianças de dez anos que há homens quelisonjeiam em benefício próprio? Poder-se-ia quando muito ensinar-lhesque há zombadores que caçoam das crianças e, em segredo, põem aridículo sua tola vaidade; mas o queijo estraga tudo; ensinam-lhes menosa não deixarem cair do bico do que a fazerem-no cair no bico de outrem.Eis meu segundo paradoxo e não menos importante. (Id. Ibid., 108)

Rousseau identifica duas empreitadas totalmente paradoxais:‘ensinar que existem homens que adulam e mentem’; ‘ensinar os meiosde realizar esses atos’.

Observai as crianças aprendendo suas fábulas e vereis que, quando emcondições de aplicá-las elas o fazem quase sempre ao contrário da intençãodo autor e que, ao invés de atentarem para o defeito de que lhes queremcurar ou prevenir, elas se inclinam para o vício mediante o qual se tiraproveito dos defeitos dos outros.” (Id.)

Pouco sensibilizadas pelas emoções, e menos ainda pelas emo-ções de outrem, eminentemente práticas e imediatistas em suas aspi-rações, as crianças tendem naturalmente a identificar-se com quem é

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bem-sucedido. Fazem troça do corvo e todas admiram a raposa. Apretensa lição moral se torna uma lição de imoralidade. “Ninguém gos-ta de se humilhar, e as crianças assumirão sempre o papel do vencedor– é a escolha do amor-próprio”(Id.); é uma escolha muito natural (é aescolha da convenção).

Ressalta-se que na Nova Heloísa, Rousseau já havia antecipadoessa mesma censura em relação à educação dos filhos de Julie eWolmar. Na Carta III da Parte V, St. Preux narra as palavras de Julie:

Sabeis que nosso filho mais velho já lê passavelmente. Eis como nasceunele a vontade de aprender a ler. Tinha a intenção de dizer-lhe, de vezem quando, para diverti-lo, alguma fábula de La Fontaine e já começaraquando ele me perguntou se os corvos falavam. Vi imediatamente adificuldade para fazer-lhe sentir bem claramente a diferença entre oapólogo e a mentira; safei-me da dificuldade como pude e, convencidade que as fábulas são feitas para os homens mas que se deve sempredizer a verdade nua às crianças, suprimi La Fontaine.” (ROUSSEAU, Júliaou A Nova Heloísa, 502, 5ª. Parte, CartaIII, 1994)

Porém, é importante compreender qual é exatamente a nature-za da crítica que Rousseau dirige às fábulas de La Fontaine. Algumaspassagens da exposição precedente já deixaram bastante claro, quenão se trata de uma insensibilidade de Rousseau para com os méritosartísticos ou mesmo morais dessas obras. Ele mesmo torna isso explíci-to no parágrafo com qual encerra sua discussão:

Entremos em acordo, senhor de La Fontaine. Prometo ler-vos com cuidado,amar-vos e instruir-me com vossas fábulas, pois espero não me enganarcom seu objetivo; mas quanto a meu aluno, permiti que não lhe deixe estudaruma só até que me tenhais provado seriamente que lhe é útil aprendercoisas de que não compreende um quarto sequer; que naquelas que poderácompreender nunca se porá do lado errado, que ao invés de se corrigir coma vítima não se forme de acordo com o malandro.” (Id. Ibid., 109)

Se nos é fácil, por um lado, aceitar que a educação de umacriança envolve muitas outras atividades além da leitura, a completainterdição dos livros proposta por Rousseau continua a chocar nossasensibilidade. Mas essa interdição só pode ser adequadamente com-preendida no contexto de todo o projeto educacional que Rousseaudelineou no Emílio, e nossa dificuldade é, exatamente, assimilar aradicalidade desse projeto. Rousseau propõe uma educação segundoa natureza, e dentre as muitas implicações dessa caracterização estáa idéia de que cada uma das fases do desenvolvimento do ser humanoapresenta suas potencialidades e necessidades peculiares.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rousseau estabelece algumas condições, por meio da represen-tação natural que pudesse reunir todas as lições esparsas em tantoslivros, num único objeto:

Filósofo ardoroso, (...) Desde que precisamos absolutamente de livros,existe um que fornece, a meu ver, o mais feliz tratado de educação natural.

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Esse livro será o primeiro que meu Emílio lerá; ele sozinho constituirádurante muito tempo toda a sua biblioteca e sempre terá nela um lugarimportante. Será o texto a que todas as nossas conversações acerca dasciências naturais servirão apenas de comentários. Servirá para comprovaros progressos de nossos juízos. E enquanto nosso gosto não se estragarele nos agradará sempre. Mas qual será esse livro maravilhoso? Aristóteles?Plínio? Buffon? Não: Robinson Crusoé. (ROUSSEAU, Livro III, 200, 1995)

A diferença mais importante é que Robinson Crusoé, em sua ilha,deve enfrentar problemas que não envolvem seres humanos, e não seresolvem, pela influência sobre atos e opiniões maleáveis de outrem,mas apenas pela atuação sobre a natureza inflexível das coisas. Todaa complexa dinâmica das paixões humanas, com as oportunidadescorruptoras que abrem à imitação e a imaginação, estão ausentes,não há rigorosamente nada, no livro, que possa ser mal-interpretado,que envolva a imposição ou sujeição da vontade e, portanto, a desco-berta e o desejo de explorar as relações de dependência entre aspessoas. O único objeto de identificação é um personagem cujos atose motivos são perfeitamente compreensíveis, e cujo sentimento é sau-dável e não aliena Emílio de si próprio.

Ora, um mundo sem o Outro? Isto não é uma redoma doentia esolitária, uma perversidade diante da qual parecem desculpáveis todasas supostas más influências que Rousseau denunciou nas fábulas etambém, no teatro? Ao que tudo indica, é a própria natureza que, maisuma vez, vai impor seu ritmo e suas necessidades. O período que anatureza aloca ao aprendizado técnico-instrumental, a “pacífica idadeda inteligência”, como o denomina Rousseau, é curto demais para apren-der tudo que é útil, a época das paixões está chegando, e assim quebaterem à porta, [Rousseau nos alerta] Emílio não mais prestará aten-ção a nada senão a elas. Com o aparecimento do impulso que o impelepara o Outro, ele é impelido também para o mundo das comparações,das disputas e da busca da primazia. Ele observará os outros cominteresse e apreensão, e passará pela inquietante experiência de sever observado e avaliado por eles. Seu amor próprio, que nada mais éque a preocupação com a opinião que os outros têm dele, se desen-volve. E ele fica vulnerável, e irá fatalmente experimentar um novotipo de sofrimento, pois, o mundo dos homens é muito mais complexo eimprevisível do que o mundo das coisas, e, Emílio cometerá erros, comtodos os detalhes fantasiosos e imitativos.

Portanto, para o filósofo genebrino, o ‘estado de natureza’ tema função de explicar uma hipotética situação ainda anterior a um esta-do pré-social no qual os indivíduos pudessem existir de forma isolada.Ainda no prefácio do Discurso sobre a origem e os fundamentos dadesigualdade entre os homens é colocada a necessidade de se come-çar a conhecer os homens mesmos, em sua constituição original paracom isso separar o que pertence à sua própria essência daquilo que ascircunstâncias lhes acrescentaram. Assim, a idéia de ‘natureza’ pareceestar ligada à ausência de ocasião, não encontrada em tempo crono-lógico algum, existindo apenas como referencial ontológico do homem

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nele mesmo. Dessa forma se observa que, o problema da passagem do‘estado natural’ para o ‘estado civil’ desemboca em outro problema ain-da anterior: para haver passagem de um estado a outro, ambos oslados teriam necessariamente que estar num mesmo plano, o que nãoacontece. O ‘estado civil’ não se diferencia do ‘estado de natureza’ peloacréscimo das experiências da complexidade social, se diferencia antescomo o existir e a existência, o real e a realidade. Seria necessário quehouvesse um estado intermediário, que unisse os outros dois. O próprioRousseau afirma haver um espaço imenso que os separam e que nalenta sucessão de coisas (experiências) ocorrentes nessa fenda médiaé que se pode encontrar a solução de uma infinidade de problemas damoral e da política, que os filósofos não podem resolver.2

No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau parece quererdizer que esse espaço pode ser fornecido pela linguagem, que surgecom a vida em sociedade e com ela se aperfeiçoa; a palavra é aprimeira “instituição social” (ROUSSEAU, 109, 1998) Porém, nos adver-te: “uma língua, seja qual for, jamais poderá expressar por completo ossentimentos que a suscitam: as paixões.” (Id. Ibid., 113) Surge aqui agrande questão da concepção de Rousseau da linguagem: se, de umlado a língua é sempre um veículo para as paixões e, por isso, nuncapoderá captá-las por completo, por outro, nada mais existe para serdito senão as mesmas paixões. Todo meio de expressão é um meio, umintermediário: toda linguagem se mostra insuficiente perante aquiloque pretende dizer. É preciso, então, admitir essa insuficiência quecaracteriza as línguas – a linguagem indireta, uma imitação de umoriginal inatingível. “Perguntar pela relação entre interpretação e fan-tasia é perguntar pela relação entre linguagem e imaginação, ou ainda,pela relação entre sentido e imagem.” (PRADO JUNIOR, 16, 1988) Nãoexiste solução para o problema: as paixões não podem ser ditas com amesma intensidade com que são sentidas – dizê-las significa perdê-lase, entretanto, são elas que exigem uma voz que as diga. “A letramata.” A proposta de Rousseau é, então, a de retornar às origens dalinguagem. No início, ele nos diz, falar e cantar não eram coisas distin-tas, as palavras não possuíam um sentido preciso e podiam significar oconteúdo de toda uma frase. Nos primórdios, a linguagem era maispoética e livre, por isso mais próxima das paixões. Rousseau sabe quenão se pode mais recuperar inteiramente a pureza e a leveza dasprimeiras vozes: o estado de corrupção das línguas atuais não maispermite que se funda canto e palavra. No entanto, parece haver umasaída. Como? Buscando encontrar melhores meios para se expressar emaneiras mais eficazes para a imitação das paixões, pois, “se é verda-de que um véu esconde as evidências do coração inocente, é precisofugir, esconder-se sob a máscara do Autor: a escrita é o meio quesuprimindo o imediato, torna possível o futuro retorno à imediação.”(PRADO JUNIOR, 20, 1988).

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Notas:1 Retoma-se a questão debatida no VI Encontro Humanístico: “O diagnóstico do‘Declínio do progresso’ no século XVIII a partir da Iluminação de Rousseau.”2 Essa questão encontra certa semelhança com a crítica aristotélica aos “doismundos” de Platão e o problema da ligação entre eles nas idéias de imitação eparticipação como espelho que reflete as idéias, mas não são as idéiasmesmas, onde ser não é existir, e que por sua vez cai na problemática doterceiro termo onde os dois mundos participem para se unirem numa espéciede ligação. A necessidade dessa compreensão se dá por esta ser a base detodo pensamento de Rousseau.

Referencias:AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literaturaocidental. Estudos dirigidos por J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,2004.CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução: Álvaro Cabral.Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.D’ALEMBERT, J. R. Discours préliminaire de l’Encyclopédie. OeuvresCompletes. Vol. I. Paris, 1964.FAÇANHA, Luciano da Silva. O diagnóstico do ‘Declínio do Progresso’no século XVIII a partir da Iluminação de Rousseau. São Luís: CiênciasHumanas em Revista/UFMA. Número Especial, v. 5. 2007.PRADO JUNIOR, Bento. Imaginação e interpretação: Rousseau entre aimagem e o sentido. 2º Colóquio UERJ/A INTERPRETAÇÃO. Rio de Janeiro:Imago, 1990.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’Alembert. Tradução Roberto LealFerreira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993._______. Emílio ou da educação. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1995._______. Ensaio sobre a origem das línguas: em que se fala da melodiae da Imitação Musical. Tradução: Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo –Campinas: editora da Unicamp, 1998._______. Júlia ou A Nova Heloísa. Tradução: Fúlvia M. L. Moretto. SãoPaulo – Campinas: Hucitec, 1994.

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TELEOLOGIA E HISTÓRIA EM KANT: daCrítica do Juízo à Idéia de uma História

Universal*

Zilmara de Jesus Viana de Carvalho**

Resumo: Estudo sobre a doutrina teleológica da natureza desenvolvidana Crítica do Juízo, a partir de um fundamento transcendental como condiçãopara uma melhor compreensão da História Universal de um Ponto de VistaCosmopolita e elucidação de aparentes contradições no sistema kantiano.Palavras-chave: Teleologia. Natureza. Entendimento. História.

Abstract: Study on the teleologic doctrine of the nature developed in theCritical one of the Judgment, from a transcendental bedding as condition forone better understanding of the Universal History of a Point of viewCosmopolita and briefing of apparent contradictions in the kantiano system.Keywords: Teleologia. Nature. Agreement. History.

* Este texto é uma versão ligeiramente modificada do apresentado durante o VIIENCONTRO HUMANÍSTICO – Centro de Ciências Humanas – UFMA, na MesaRedonda Progresso e Decadência: arte, história e memória. São Luís / MA,21.11.2007.** Mestre em Filosofia pela UFPB e Professora do Departamento de Filosofia daUFMA. E-mail: [email protected]

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Em um estudo anterior acerca da doutrina teleológica da natu-reza apresentada com base no opúsculo “Idéia de Uma História Uni-versal com um Propósito Cosmopolita”(1784), levantamos, mesmo quesem a pretensão de ali elucidá-lo, o problema que se segue: “como anatureza, cujos conceitos, assim como as leis, são produzidos peloentendimento, portanto de forma a priori, embora demonstre sua rea-lidade por exemplos da experiência, conforme Crítica da Razão Purapode, ao mesmo tempo, possuir um plano oculto, como condição depossibilidade para o progresso da humanidade?” (CARVALHO, 2007) Ébem verdade, que, se por um lado, esse problema é impossível de sersolucionado à luz do referido opúsculo, por outro esclarecê-lo contri-buiria de forma significativa para um melhor entendimento do expostona História,vez que permitiria situá-la melhor dentro do sistema kantiano.Para tanto, faz-se necessário recorrer a Crítica da Faculdade do Juízo(1790), obra na qual Kant trata com mais acuidade a teleologia. Noentanto, familiarizemo-nos um pouco mais com a questão proposta.

Na Crítica da Razão Pura (1781), as leis de natureza estãovinculadas à espontaneidade do entendimento. Lembremos quanto aesse ponto, que as intuições sensíveis de espaço e tempo é quedeterminam à matéria empírica, dando – lhe forma e que cabe aoentendimento ligar as representações fornecidas por tais intuições, ouseja, conceituar. A matéria empírica é, pois, indeterminada, não háuma inteligibilidade inerente a ela e independente do sujeito, daí por-que é o sujeito cognoscente, que é o legislador da natureza e não aprópria natureza, esta é incapaz de dar leis universais e necessárias asi própria, isto significa, que o sujeito não é simples receptividade, eleé fundamentalmente espontaneidade, ele tem o poder de criar concei-tos e, nessa perspectiva fazer ciência, conceito nessa ótica nada tema ver com contemplação, mas com construção.

Por outro lado, o entendimento opera sob a perspectiva da uni-versalidade, fornecendo sempre uma compreensão universal, que ob-viamente não pode dar conta de leis contingentes e, por assim dizer,das particularidades da natureza e de suas múltiplas possibilidades. Eisaí então um possível caminho em direção à solução, o entendimentopossui um alcance limitado, não apenas por não permitir um conheci-mento da coisa em si, mas também por não poder fornecer um conhe-cimento das partes da natureza e das relações destas entre si.

A natureza é, num primeiro momento, precisamente naquele emque somos afetados sensivelmente por ela, matéria bruta, como diz opróprio Kant, mas lembremos que isto é afirmado na Crítica da RazãoPura, portanto quando ela é vista sob a lente atenta do sujeito queconhece, isso, por sua vez, não tem como implicação necessária, quea natureza nada tenha a nos oferecer além do seu aparecer, massomente que este basta para que as condições de possibilidade doconhecimento possam operar.

Na obra “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza” (1786),Kant apresenta uma definição detalhada de natureza, para tanto divi-

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de – a em formal e material. Do ponto de vista formal, ela é entendidacomo uma maneira de ser, “[...] o primeiro princípio interno de tudo oque é inerente à existência de uma coisa” (KANT, 1990, p. 13). Maisadiante, esclarece, que chamam – se leis os “princípios da necessida-de do que é inerente à existência de uma coisa” (Id.Ibid., p.15), lem-bremos que a necessidade é garantida pelo apriorismo, o conceito denatureza, nessa medida, implica ou assimila o de lei. Natureza é aquiloque categorizo, aquilo acerca do qual legislo. Já no que se refere aosentido material, significa:

[...] o complexo de todas as coisas enquanto podem ser objectos denossos sentidos e, por conseguinte, também objectos da experiência;entende – se, pois, por essa palavra a totalidade de todos os fenômenos,ou seja, o mundo dos sentidos, com exclusão de todos os objetos nãosensíveis. (Id.Ibid., p. 13)

No âmbito teórico, pois, há que se notar, por um lado, que aciência da natureza deve conter uma parte pura, capaz de resguardara necessidade e a universalidade dos conceitos e que só em virtudedesta é que é ciência genuína.

Toda a ciência natural genuína precisa, pois, de uma parte pura, na qualse deve fundar a certeza apodíctica, que a razão nela busca; (...) O puroconhecimento racional por simples conceitos chama – se filosofiapura ou metafísica. (...) Por conseguinte, a genuína ciência naturalpressupõe uma metafísica da natureza. Esta deve, pois, conter semprepuros princípios, que não são empíricos (é por isso que leva onome de metafísica). (Id.Ibid., p. 15)

A ciência que assim não procede deve ser chamada de imprópria,suas leis são contingentes, não são apoditicamente certas, “os princípi-os são nelas apenas empíricos” (Id.Ibid., p. 14). Por outro, a ciência danatureza não pode aplicar – se senão ao condicionado, ao fenomênico.

Examinando agora a Crítica do Juízo, observemos que a faculda-de de julgar reflexionante opera de maneira análoga ao entendimento,ou seja, espontaneamente, muito embora seu percurso seja diferente,haja vista ir do particular para o universal (vez que unifica todas asleis particulares, embora sem determiná - las) e sua tarefa não seja ade produzir conhecimento, pois não prescreve nada à natureza, sendosua função refletir sobre ela. Quanto a isto diz Kant:

A faculdade de juízo reflexiva, que tem a obrigação de elevar – se doparticular da natureza ao universal, necessita por isso de um princípio queela não pode retirar da experiência, porque este precisamente devefundamentar a unidade de todos os princípios empíricos sob princípiosigualmente empíricos, mas superiores e por isso fundamentar a possibilidadeda subordinação sistemática dos mesmos entre si. (1995, p 24, XXVI)

Observemos, no entanto, que a própria faculdade de juízo refle-xiva dá a si mesma, como lei tal princípio, conforme aponta Herrero:

... a faculdade de julgar precisa do princípio de finalidade formal. Desseprincípio não se pode deduzir a possibilidade de uma finalidadeobjetiva real na natureza1, pois o princípio não é determinante darealidade. Mas se a finalidade objetiva se dá na experiência, ela pode tornar– se compreensível com o princípio de realidade formal. (1991, p. 56).

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Com efeito, afirma Kant:[...] o princípio da faculdade do juízo é então, no que respeita à formadas coisas da natureza sob leis empíricas em geral, a conformidade a finsda natureza na sua multiplicidade. O que quer dizer que a natureza érepresentada por este conceito, como se um entendimento contivesse ofundamento da unidade do múltiplo de suas leis empíricas. (Op.Cit, 1995,p. 25, XXVIII)

É esse princípio de realidade formal que nos habilita a pensar anatureza sob a perspectiva da finalidade, como se um entendimento,que Kant adverte não é o nosso entendimento discursivo, pois trata-se de um tipo, um entendimento intuitivo, (arquetípico), que repre-senta a natureza como conformidade a fins, ao intuir o todo, isto é, aorepresentá-lo, bem como às partes dependendo desse, contivesse ofundamento da unidade do múltiplo .

A natureza deixa de ser simplesmente construção de um enten-dimento sobre algo que antes de ser intuído no tempo e no espaçonada mais era do que simples matéria informe, bruta, para ser pensadacomo algo que nos autoriza a formular um princípio universal de finali-dade. É digna de nota a seguinte passagem da Crítica do Juízo:

... falamos, então, na teleologia da natureza, como se a conformidade afins nela fosse intencional mas todavia simultaneamente de forma a atribuirtambém esta intenção à natureza, isto é, à matéria. Através distopretende-se indicar (porque aqui não há lugar para nenhum mal entendido,na medida em que ninguém pode de certo atribuir intenção no sentidopróprio do termo a uma matéria inanimada) que esta palavra aqui somentesignifica um princípio da faculdade de juízo reflexiva, não da determinante(...). (Id.Ibid., p. 225, B, 308)

Por meio da passagem supracitada é possível concluir, como defato ocorre na referida Crítica, que a idéia não é fazer da natureza umser inteligente, detectando uma intenção na matéria, o que feririagravemente a coerência interna do sistema kantiano. A idéia é mostrarque o olhar sobre a natureza pode ser lançado de várias formas e semo prejuízo da unidade da razão, por mais multifacetada que esta seja(unidade esta perseguida na Crítica em tela, embora fuja ao nossopropósito aqui detalhar). Note-se, entretanto, que a estrutura do en-tendimento é paradigmática para as peripécias da razão, que semprese conduzirá de forma análoga a esse, embora por aventuras que oultrapassem. Ainda assim é ele que serve como referência para a típi-ca, recorrente em todo o sistema. Baseado neste esclarecimento épossível agora empreender uma leitura mais significativa da célebrepassagem da História, na qual Kant afirma:

Não há aqui outra saída para o filósofo, (...) senão inquirir se ele nãopoderá descobrir uma intenção da natureza no absurdo trajecto das coisashumanas, a partir da qual seja possível uma história de criaturas queprocedem sem um plano próprio, mas, no entanto, em conformidadecom um determinado plano da natureza. (1995, p. 22, A, 386)

A intenção da natureza, um plano oculto da natureza, não signi-fica propriamente algo que esta, as surdinas, gesta, por si mesma,através de uma inteligibilidade que lhe é peculiar, mas uma forma de

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percebê-la, forma para a qual o conhecimento do mecanismo naturalse mostra insuficiente. A compreensão acerca da teleologia naturalestá, pois, interditada à ordem do conhecer. Na Física, como bemlembra Kant, “... abstrai-se da questão de saber se os fins naturaissão intencionais ou não intencionais, pois isso seria uma intromissãonum assunto que não lhe diz respeito (...).” (Op.Cit.,1995, p. 225, B,307) Contudo um espaço legítimo para tal se abre pela via do pensa-mento. A finalidade da natureza e, portanto, a doutrina teleológica,ressurgiria na esfera do pensar, mantendo-se, assim, a recusa à ex-pressão um fim divino (Id.Ibid., p. 224, B, 306), o que implicaria colo-car por cima da natureza um ser construtor, pois como adverte Kant:“temos que, de forma cuidadosa e modesta, limitar-nos à expressãoque precisamente só afirma tanto quanto sabemos, isto é, à de um fimda natureza” (Id., p.224, B, 306).

Sem pretender aqui refazer o percurso da segunda parte daCrítica do Juízo, observemos, entretanto, que o entendimento, comovimos, em seu caráter discursivo unifica a natureza através das leisuniversais que prescreve, nos dando a conexão das coisas apenas doponto de vista do gênero e não como seres particulares, ou seja, nãopodemos conhecer todo o particular que se manifesta na naturezatampouco a unidade dessas leis particulares.

Destarte, só a faculdade de julgar pode procurar uma lei para oparticular, pois pensar o particular como contido no universal é suaespecificidade, utilizando – se para tanto de um princípio de unifica-ção, por meio do qual a natureza é representada como possuindo umafinalidade em sua diversidade, admitindo um entendimento, emboranão o nosso, um entendimento intuitivo, que vai do todo para aspartes, um fundamento supra – sensível da unidade sistemática, pro-jetado pela faculdade de julgar reflexionante para possibilitar a refle-xão sobre a conexão do múltiplo, do contingente, sob a perspectivade um todo ordenado finalísticamente.

Assim, a natureza é vista como final, como possuidora de umaordem que tem que ser confirmada pelo conhecimento particular daexperiência. No entendimento discursivo o todo é apresentado comodependente das partes, o mesmo não ocorre no entendimento intuiti-vo (arquetípico), neste as partes é que tem que ser representadascomo dependentes do todo, de modo que neste último “...a represen-tação de um todo contenha o fundamento da possibilidade da formada mesma e das conexões das partes que lhe pertencem.” (Id.Ibid., p.249, B, 350) A representação do todo, ou seja, a idéia dele, comoidéia de fim, o precede como causa e é esse principio final formal, quepossibilita, que o fim que pode haver na natureza possa ser pensadocomo necessário.

Atentemos para o que afirma Kant:De modo nenhum a razão humana (nem qualquer outra finita, que quanto àqualidade fosse semelhante à nossa, mas que do ponto de vista do grau aultrapasse em muito) pode esperar compreender a geração, nem mesmo

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de uma folhinha de erva a apartir de causas simplesmente mecânicas. Sepois a conexão teleológica das causas e efeitos é para a faculdade do juízoabsolutamente imprescindível no que respeita a possibilidade de um tal objeto,mesmo para o estudar segundo o fio condutor da experiência; se não é demodo nenhum possível encontrar um fundamento suficiente e referente afins para os objetos externos enquanto fenômenos, mas pelo contrário aquele(que se encontra também na natureza) tem que ser procurado somente nosubstrato supra –sensível da mesma, do qual porém nos está vedada todaperspiciência <Einsicht> possível, então nos é completamente impossívelretirar da própria natureza princípios de explicação para as ligações finais eé necessário, segundo a constituição da faculdade de conhecimento humana,procurar para isso o fundamento supremo num entendimento originário comocausa do mundo. (Id.Ibid., p. 251, B, 353-354)

Uma vez pontuados esses aspectos, passemos agora, ainda quesem a pretensão de um detalhamento exaustivo, ao percurso, que vaiem direção ao Soberano Bem, como fim término do homem no mundo.Para tanto, acompanhemos o movimento da finalidade presente nosseres particulares à idéia de fim último.

A idéia norteadora para determinar um fim último é considerarque para que uma coisa exista como fim natural, seja reciprocamentecausa e efeito de si mesma. Isto só pode ser constatado nos seresorgânicos, visto que não apenas são seres organizados, como tambémseres que organizam a si mesmos, de modo que neles tudo é fim e meioreciprocamente. Segue – se daí que as partes sejam pensadas uma“[...] em função das outras e por causa do todo” (Id.Ibid.,p. 216, B,291), que é o fundamento da possibilidade destas.

Os seres organizados possuem, segundo Kant, força formadora(bildende), força essa que se propaga a si mesma e que não pode serexplicada apenas pelos mecanismos da natureza, tampouco por umacausa produtora que esteja fora da natureza, como ocorre na arte,nos produtos fabricados por esta, como é o caso dos relógios, onde“(...) uma parte existe na verdade em função de outra, mas não éatravés ‹durch› dessa outra que ela existe.” (Id., p. 216, B, 292) Alémdisso, há um empobrecimento da compreensão da natureza quandovista como análoga à arte, vez que se pensaria à luz de uma talanalogia um artífice fora da própria natureza. Em realidade, Kant ad-verte para o fato de que a perfeição interna que possuem os seresorganizados — seres “(...) em que tudo é fim e reciprocamente meio.”(Id.Ibid., p. 218, B, 296) — , não pode ser explicada por analogia aqualquer faculdade natural nem por analogia a arte humana, haja vistaque também o homem pertence à natureza.

Ora, nos próprios seres da natureza fica evidente, não apenas aorganização, mas também a relação com os outros seres. Deste modo,o princípio de finalidade interna remete – nos ao de finalidade externae tudo “[...] tem que ser considerado como organizado e tudo tam-bém, por sua vez, é órgão dentro de uma certa relação com a coisamesma.” (Id.Ibid., p. 220, B, 298) Visto que esses seres são ao mesmotempo meio e fim, a natureza revela – se na sua totalidade comodotada de finalidade, embora não de um fim último. A noção de fim

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último implicaria na natureza compreendida como sistema (não comoagregado) teleológico organizado.

A idéia de um fim último exigiria, necessariamente, admitir umser cujo fim de sua existência estivesse em si mesmo e não fora de sie fosse incondicionado, um ser capaz de “[...] mediante a sua razãorealizar um sistema dos fins a apartir de um agregado de coisas forma-das de modo conforme a fins.” (Id.Ibid., p.267, B, 383) Somente ohomem, ao mesmo tempo, ser racional e natural poderia realizar taisfins, conforme afirma Kant:

Esse ser é o homem, mas considerado como númeno; o único ser danatureza, no qual podemos reconhecer, a partir da sua própria constituição,uma faculdade supra-sensível (a liberdade) e até mesmo a lei dacausalidade com o objeto da mesma, que ele pode propor a si mesmocomo o fim mais elevado (o bem mais elevado no mundo). (Id.Ibid., p.278, B, 402)

Observemos o que diz a terceira proposição da História:A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que ultrapassa oarranjo mecânico da sua existência animal, e que não participe de nenhumaoutra felicidade ou perfeição excepto que ele conseguiu para si mesmo,liberto do instinto através da própria razão. (Op.Cit.,1995, p. 24, A, 389)

Notemos que unicamente no homem a natureza abre mão doinstinto em favor da razão, o desenvolvimento de todas as disposiçõesnaturais ao qual estão sujeitas todas as criaturas, ganha uma novatessitura, por um lado, como pondera Giannotti, porque o “indivíduonão está apenas sendo empurrado no sentido de desdobrar totalmen-te as suas disposições naturais (...) precisa aprender a usar todaselas2 e não tão-somente algumas.”3 (2003, p. 144) Por outro e, comoconseqüência, só podem alcançar seu desenvolvimento na espécie,tendo em vista a finitude de sua existência, marcada pela morte.Lembremos, no entanto, com Kant, que se é verdade “que os homens,nos seus esforços, não procedem de modo puramente instintivo, comoos animais, (...) também não como racionais cidadãos do mundo”.(Op.Cit., 1995, p. 22, A, 386).

Ora, observemos que até aqui a Crítica do Juízo tem respondidoafirmativamente as proposições da História, apresentando de formadetalhada não apenas a noção de fim da natureza, no tocante a todosos seres de um modo geral, como também apontando para o homem,de modo mais específico, como fim-término.

Acompanhemos, uma vez mais, o itinerário da referida Crítica.Para que algo seja considerado como terminal, tem que serincondicionado, a natureza não pode ser pensada como sua causa, talcausa só pode ser inteligível. Nessa perspectiva, o ser humano paraser compreendido como fim-término da criação, teria que ser pensadocomo sujeito moral e não como membro da natureza, somente suaexistência, assim pensada, pode ter um valor absoluto, por conseguin-te, só no homem considerado como fim-término da criação, podemosencontrar um objetivo final, determinado a priori pela lei moral e para oqual esta nos obriga, a saber: o Soberano Bem. A moralidade reapare-

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ce assim na Crítica da Faculdade do Juízo, mais especificamente, atravésda problemática união entre moralidade e felicidade, isto é, do Sobera-no Bem, fim término do homem no mundo. Pelo exposto a partir daCrítica do Juízo a natureza e, por conseguinte, também o homem,tanto do ponto de vista sensível quanto supra-sensível não é vítimade um mecanismo natural cego.

Os homens, movem-se, assim, como já afirmava a História, emum plano traçado pela própria natureza, plano a partir do qual a histó-ria é tecida e lembremos que é também no jogo das relações humanasque a moralidade das ações são engendradas e, que apenas por meiodesta há um sobrepor-se às determinações naturais, uma ultrapassa-gem do reino da legalidade, pelo da moralidade, da liberdade externa,tão cara ao estado civil, pela liberdade interna, condição para a moral,para o reino dos fins.

É possível agora ao final dessa exposição, ajuizar que ocorrealgo de atípico na démarche kantiana, uma vez que a fundamentaçãotranscendental, condição de possibilidade para o desenrolar de todasas suas exposições, no tocante à História Universal é desenvolvidaposteriormente, para isso é suficiente observar, que na referida obratodo recurso explicativo utilizado para advogar a teleologia naturaltem na experiência sua fonte e testemunho.

Todavia caberia indagar ainda sobre a pertinência dessa conclu-são e sobre se de fato não poderia Kant ter-se dado por satisfeito comos abundantes exemplos oferecidos na História para corroborar suasafirmações. Quanto a isto, basta, no entanto, ao nosso ver, atentarpara o que nos diz no parágrafo 66 da Crítica do Juízo, parágrafointitulado Do princípio do ajuizamento da conformidade a fins internaem seres organizados:

Esse princípio, segundo o modo como ocorre, é deduzível da experiência(...). Mas por causa da universalidade e da necessidade que esse princípioafirma de uma tal conformidade a fins, não pode simplesmente assentarna experiência, mas pelo contrário tem como fundamento algum princípioa priori qualquer, ainda que seja meramente regulativo e aqueles finsexistissem somente na idéia daquele que ajuíza e em nenhuma outracausa eficiente. (Id.Ibid., p. 219, B, 296)

Notas:1 Grifo nosso.2 Grifo nosso.3 Diferentemente dos demais seres da natureza não se trata, no caso dohomem de um desdobramento das suas disposições naturais, como se fora umser meramente instintivo, mas de um aprendizado que irá direcionar sua açãopara áreas diversas: ciência, política, moral, estética.

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Referências:CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de. Natureza e Progresso em Kant.São Luís: EDUFMA, Ciências Humanas em Revista, v. 5, número especial,2007.GIANNOTTI, José Arthur. Kant e o Espaço da História Universal. SãoPaulo: Martins Fontes, trad. Ricardo Terra, IN.__ Idéia de Uma HistóriaUniversal de um Ponto de Vista Cosmopolita, 2003.HERRERO,F. J. Religião e História em Kant. São Paulo: Edições Loyola,1991.KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, trad. Valério Rohden e António Marques, 1995._______. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, 1994.________. Idéia de Uma História Universal de Um Ponto de VistaCosmopolita. Lisboa, Edições 70, trad. Artur Morão, IN.__ A Paz Perpétuae Outros Opúsculos, 1995.________. Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza. Lisboa: Edições70, trad. Artur Morão,

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PARA ALÉM DA PRESERVAÇÃO DAVIDA: a vontade de poder*

Ellen Caroline Vieira de Paiva**

Resumo: Análise do conceito de Nietzsche de vontade de poder emalternativa ao de vontade de vida de Schopenhauer. Desenvolve-se acompreensão de intensificação da vida a partir de sua própria condição enatureza em oposição ao ascetismo filosófico que apenas objetiva umapreservação da vida. A moral ascética é, para Nietzsche, um ciclo “doentio”de contra-vontade que se arvora no intuito de simples conservação. É,contudo, necessário, intensificar a vida, aproximar-se do eminentementenatural afirmando a vontade criadora.Palavras-chave: Vontade de poder. Natureza. Preservação da vida.Intensificação da vida

Abstract: Analysis about Nietzsche’s “desire of power” concept as analternative to Shopenhauer’s “life desire). It manages comprehension ofimproving live by its own condition and nature in oposition to philosophicascethism wich only makes life preservation. Ascethic moral is, to Nietzsche,a sick circle of no-desire that lays in simple conservation. However, it’snecessary improving life, coming next to actually natural according creatingdesire.Keywords: Desire of power. Nature. Life preservation. Improving life

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 denovembro de 2007, durante a mesa redonda “Schopenhauer, Nietzsce e asfilosofias da vontade”**Estudante de graduação nos cursos de Filosofia e Direito da Universidade Federaldo Maranhão – UFMA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Nietzsche. Integrantedo Grupo de Pesquisa em Schopenhauer. Integrante do Grupo de Pesquisa emEstética e Hermenêutica. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO

As filosofias da vontade de Arthur Schopenhauer e FriedrichNietzsche assinalam um momento fundamental na filosofia do séculoXIX, qual seja a figuração do corpo como base para o desenvolvimen-to de uma compreensão moral. O conceito de vontade, ainda queeminentemente metafísico, evidencia-se em todos os entes vivos en-quanto corpos. De fato, essa evidentia em tudo aquilo que é vivodestitui o homem de uma condição superior em relação aos outrosviventes (animais, plantas etc.) e o lança em um plano moral diversodaquele iniciado por Platão e continuado por toda a medievalidade emodernidade.

A dimensão moral nascida com o conceito de vontade é instân-cia da vida, princípio que pressupõe o movimento inicial de todo que-rer. Neste ponto se irmanam tanto a filosofia de Schopenhauer quantoa de Nietzsche. A divergência entre ambos surgirá precisamente notrato com esse conceito, de modo que a vontade para o primeiro deveser negada e, para o segundo, afirmada.

Schopenhauer reconhece na vontade de vida um âmbito de jogo(Spiel) entre natureza e sofrimento, de maneira que o querer naturalpossibilita ou a possibilidade de tédio, quando da sua saciedade, ou ade dor, quando do contrário. Isto se dá pela própria condição despro-vida de sentido da vontade, a qual, cega e irresoluta, lança-se a tudoo que é vivo sem a definição de qualquer telos além do próprio desejo.A proposta então é a fuga do ângulo infinito de incidência da vontadede vida por meio da arte, da compaixão ou do ascetismo, de maneiraa garantir a preservação da vida até que esta chegue ao fim. Destaforma, a negação consiste em uma diminuição do sofrimento próprio dacondição vivente.

Nietzsche, por outro lado, verifica na negação da vontade aprópria origem (Ursprung) da decadência moral do Ocidente. O filósofode Röcken percebe na compaixão e no ascetismo um movimento deoposição à própria vida, à própria condição corporal do que é vivo.Ora, um corpo doente é um corpo fraco para os prazeres e vicissitudesda vida – e aqui se evidencia sua metáfora de chamar a civilizaçãoocidental de doente, decadente. É necessário, ao contrário, tornar-seforte e cada vez mais vivo. Na mesma perspectiva, a arte deve atuarnão como fuga da vontade, mas da sua afirmação, a fim de promover aintensificação da vida. Neste sentido, a vontade adquire uma linhadiretriz para seu ângulo de incidência, qual seja, o poder.

A proposta deste trabalho é analisar a vontade de poder (Willezur Macht) nietzscheana em termos alternativos à filosofia da vontadeschopenhaueriana com vistas a promover uma discussão desconstrutivada perspectiva moral moderna da virtude, cujos objetivos se resumema conservar a vida. Assim, para além da preservação, aqui examinare-mos a pulsão orientada para o que a torna mais real, mais viva, maisintensa.

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2. VONTADE DE PODER: pulsão orientada para aintensificação da vida

Nietzsche inicia a terceira dissertação da Genealogia da Moralquestionando a origem dos ideais ascéticos, analisando o fato de osfilósofos e eruditos objetivarem sempre a elevada espiritualidade, o ide-al de perfeição que os torne superiores à condição animal que suspiravontade. O que autor intenta com tais questionamentos iniciais é sob oolhar genealógico já iniciado nas dissertações anteriores1 encontrar nasorigens deste problema o paradoxo da manutenção da vontade.

(...) no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem seexpressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui(horror ao vácuo): ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querero nada a nada querer. (Nietzsche: 2004, pp. 87-88)

O querer tem na filosofia nietzscheana uma força fundamentalna medida em que está associado aos pressupostos fundamentais davida animal, quais sejam, os instintos. Em O Mundo como Vontade eRepresentação, de Arthur Schopenhauer, Nietzsche encontrou exata-mente essa relação entre vontade e natureza.

“A vontade deve alimentar-se dela mesma, visto que, fora dela não existenada, ela é uma vontade esfomeada. Daí essa caça (chass/Jagd), essaangústia (anxiété/Angst), esse sofrimento (souffrance/Leiden) que acaracteriza.” (SCHOPENHAUER: 2001, 28)

Ocorre que em Schopenhauer esta vontade deve ser negada,uma vez que ao afirmá-la estamos sempre indo de encontro ao sonhoe ao engano sensível. Para ele, é o ideal incorpóreo o real objetivo dohomem sábio. O filósofo deve ter no corpo – e na arte – o instrumentalnecessário para viver, mas, diante do sofrimento do mundo, deve re-sistir a ele a fim de que sua vida se conserve até a chegada da morte.Diante da certeza do sofrimento, a única liberdade que possuímos é ade diminuí-lo, por meio da negação do desejo. Desta forma, a filosofiade Schopenhauer – assim como toda a modernidade e medievalidadeherdeira de Platão – se sustenta em ideais ascéticos

Nietzsche enxerga na tríade vontade-natureza-sofrimento algomuito interessante na filosofia de Schopenhauer. Contudo, irrompeintempestivamente contra a forma com que seu antecessor trata essaquestão. Negar essa tríade é negar a vida em seus princípios funda-mentais. Diz ele em fragmentos póstumos: “Como se comportou todoo processo orgânico em relação ao resto da natureza? É nisso que sedescobre sua vontade fundamental.” (Nietzsche: 2005, afor. 2 [99],p. 222) Essa vontade caracteriza-se como força propulsora da vidaem todas as suas manifestações e encontra-se orientada para a domi-nação, para o poder. Temos assim, em Nietzsche, uma vontade depoder (Wille zur Macht).

Os ideais ascéticos funcionam no sentido de preservação davida, na medida em que revelam a luta da vida contra a morte. Contu-do, trazem consigo o germe da própria degeneração, uma vez que, aonegarem a vontade de vida se colocam contra a própria vida.

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Está claro que uma contradição como a que se manifesta no asceta, “vidacontra vida”, é, considerada fisiologicamente, não mais psicologicamente,simplesmente um absurdo. (...) o ideal ascético nasce do instinto de curae proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todosos meios, e luta por sua existência. (Nietzsche: 2004, p. 109)

Para Nietzsche, todavia, não basta conservar a vida, masaumentá-la, intensificá-la, a fim de que se esteja de encontro com oefetivamente real. Por isso, ele percebe na moral cristã dominante naEuropa dos seus dias um grande equívoco. Filósofos como Kant eSchopenhauer2 assemelham-se aos sacerdotes cristãos, que devemnegar a fama, o poder e a sensualidade. O ressentimento cristão anteas condições dos valores nobres, como já tratado anteriormente, sereflete no filósofo-sacerdote no âmbito da intelectualidade, cuja con-tingência no nobre se opõe à toda a sua razão de ser.

É o sacerdote o primeiro ressentido de um rebanho. São eles osprimeiros a realizarem uma violência contra si, posto que inicialmentecombatem a si mesmos para garantir o poder. Assenhoreiam-se, assim,da força da sua própria vida, tendo nesta uma ponte para outra exis-tência. E é aí, então, que Nietzsche identifica o problema: há umparadoxo aparente na existência diversa da ambiência celeste e divi-na, dada a “terrestridade” da vontade de poder. É por meio do triunfoda agonia derradeira que o mártir alça os mais altos vôos.

“O triunfo na agonia derradeira”: sob este signo superlativo lutou desdesempre o ideal ascético; neste enigma de sedução, nesta imagem deêxtase e tormento ele reconheceu sua luz mais intensa, sua salvação,sua vitória final. Crux, nux, lux [ cruz, noz, luz] – para ele são só umacoisa. (Nietzsche: idem, p. 107)

No afã insaciável do desejo de ser outro o sacerdote encontra aprisão do seguinte esquema de reprodução: ao estabelecer um reinosobre os que sofrem, o sacerdote encontra-se imbricado por uma ordemde discurso de identidade. Ele próprio deve sentir as dores de suas ove-lhas para poder entendê-las. É isto que sustenta e imprime a representa-ção dos ideais ascéticos nos fracos. Temos assim a seguinte fórmula:nojo do homem + compaixão pelo homem = vontade de nada (niilismo).

Quanta resignação humilde, viscosa, açucarada, flutua em seus olhos!Que desejam realmente? Ao menos representar o amor, a justiça, asuperioridade, a sabedoria – eis a ambição desses “ínfimos”, dessesenfermos! E como esta ambição torna hábil! (Nietzsche: ibidem, p. 112)

Os enfermos, para Nietzsche são todos os fracos inseridos nessacondição de negação da vida, de maneira que os sãos encontram-seexatamente entre os afirmadores da vida. Diante dessa oposição, o sa-cerdote se torna o pastor, o protetor do rebanho contra o mundo econtra o próprio rebanho. Evita-se, assim, a anarquia e auto-dissolução.

O sacerdote realiza esta “defesa” por meio da mudança de dire-ção alternada do ressentimento, de maneira que o instituto da culpafunciona como mecanismo fundamental. A certeza de haver um culpadopara o sofrimento entorpece a dor das ovelhas. Os sacerdotes, então,através do afeto, se convertem nas tarântulas no discurso de Zaratustra.

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Seja o homem salvo da vingança; é esta para mim a ponte da esperançasuperior, e um arco-íris anuncia grandes tormentas. As tarântulas, todavia,compreendem doutra forma. “Justamente quando as tempestades danossa vingança enchem o mundo, é quando nós dizemos que haja justiça”.Assim falam elas entre si. “Queremos exercer nossa vingança e lançarnossos ultrajes sobre todos os que são semelhantes a nós”. Isso juram asi mesmas as tarântulas. (...) Sacerdotes da igualdade: a tirânica loucurada vossa impotência reclama em brados a “igualdade”, por detrás daspalavras de virtudes esconde-se a vossa mais secreta concupiscênciade tiranos! (Nietzsche: 2003, p. 86, grifos nossos)

A virtude serve no esquema de reprodução de identidade comotransposição do ideal incorpóreo na vida humana, como meio de seascender à condição dos valores supremos. Isto foi absorvido pelosfilósofos de maneira que à sua imagem atrelou-se a figura do homemvirtuoso, que se opõe à natureza pecaminosa do homem comum. MasNietzsche compreende isso apenas como uma interpretação de umfato, o que diverge, completamente do fato mesmo.

O homem virtuoso apenas trás consigo a transfiguração da von-tade de poder, uma vez que apenas garante o ponto optimum em talpoder se consubstancia. Zaratustra a coloca como algo que transfor-ma o portador do dom da virtude no próprio dom. Assim:

A vossa ambição é querer converter-vos, vós mesmos, em oferendas epresentes. Por isso desejais acumular todas as riquezas em vossas almas.(...) Quando vos elevais acima do louvor e da censura, e quando a vossavontade, como vontade de um homem que ama e quer mandar em todasas coisas, então assistis à origem da vossa virtude. (...) Essa nova virtudeé poder; um pensamento reinante e em torno desse pensamento umaalma sagaz: um sol dourado, e em torno dele a serpente do conhecimento.(Nietzsche: idem, pp. 69-70)

Em oposição à mendacidade de se esconder essa condição sob ovéu da humildade, Nietzsche oferece a afirmação do poder em termos denão só de conservação, mas de aumento, intensificação da vida. Istofundamenta sua crítica ao último Wagner e à estética schopenhauriana.

Ressalte-se que a discussão estética empreendida por Nietzschenesta situação não está desgarrada da temática de uma crítica dosvalores morais. Isto porque para o filósofo de Zaratustra são os valo-res estéticos aqueles necessários a uma transvaloração de todos osvalores. A sustentação de tal inferência encontra-se na proximidadeda arte com a vida.

A arte fomenta a criação de possibilidades da vontade em pers-pectiva de liberdade, o que provoca em si, uma excitação da vontade depoder – esta, entendida como condição peremptória para a conservaçãoe intensificação da vida. Assim sendo, a reivindicação da pulsão dionisíacaante a dominação apolínea ocorre no sentido de manter um combateintermitente entre ambas na perspectiva da contradição dos atributos,na guerra. Tal contradição só pode ser entendida em termos de plenomovimento, isto é, de devir. Desta forma, Apolo conserva a vida, Dionísioa intensifica. Por isso, diz Nietzsche em seus fragmentos póstumos:

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O engano de Apolo: a eternidade da forma bela; a legislação aristocrática“assim deve ser sempre!”.Dioniso: sensualidade e crueldade. A efemeridade poderia ser interpretadacomo o prazer da força criadora e destruidora, como a criação constante.(Nietzsche: 2005, afor. 2 [106], p. 223)

A crítica a Schopenhauer toca exatamente nesta questão, umavez que o Belo, para ele, libera uma força de reflexão contemplativa doem si. Temos neste filósofo, como em outros ascetas, o intuito orientadopara a mais elevada espiritualidade do homem, o que revela a dimensãosacerdotal do filósofo. Além disso, o Belo, em Schopenhauer tem o inte-resse de libertação da “tortura da vontade”, conferindo à experiência daarte o caráter instrumental de alcance com o eterno fundamental.

Afinal, a moral ascética sustenta-se por uma atividade maquinalde alívio da existência sofredora por meio do desvio do sofrimento.Isto se dá em duas frentes: a primeira, tocante ao amor ao próximo,enquanto estímulo à vontade de poder, a segunda, tocante à forma-ção do rebanho. A vontade poder é estimulada pela sensação de su-perioridade promovida pelo altruísmo. O aumento do rebanho, por suavez, entorpece a dor por meio do aumento do rebanho. O sofredorressentido encontra a liberdade da segregação no rebanho, uma vezque “os fracos buscam associar-se”. (Nietzsche: 2004, p. 125) Diantedessa condição de fraqueza, Nietzsche apresenta a condição dos for-tes de, ao contrário, buscar a dissociação.

Enquanto discurso de libertação da alma humana, o ideal ascéticopõe em fuga a dor humana ao liberar, aos poucos, alternadamente, osressentimentos humanos transpondo no sentimento de culpa a conso-lidação do reino do sacerdote ascético. O pecado, assim, caracteriza-se, como a interpretação sacerdotal da má consciência animal. O idealascético é o único sentido encontrado para o homem para seu sofri-mento, é a sua salvação.

Mas apesar de tudo - o homem estava salvo, ele possuía um sentido, apartir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo,do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momentopara que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontademesma estava salva. (Nietzsche: 2004, p. 149)

Desta forma, ainda que seja uma negação à vida e com tudo oque ela tem a oferecer, o ideal ascético ainda é, em si, uma vontade,uma vontade de nada. Eis então paradoxo dessa questão. Afinal, “quemnão tem nada para fazer, um nada já lhe dá o que fazer”. (Nietzsche:2005, p. 159)

3. CONSIDERAÇÕES FINAISQuem sente dor quer viver.

NietzscheEm termos ontológicos a vontade é a iminência de movimento

entre o silêncio do não ser e o som do ser. É ela que promove o aconte-cimento das coisas nos horizontes de vida; cria contextos, abre condi-ções e perspectivas. Se as conseqüências destas forem de dor ou prazer

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ambos serão reais e aqueles que os terão de viver estão sujeitos às duaspossibilidades, pois o prazer quer a si mesmo. “Amor-fati” significa umaentrega à facticidade no eterno presente. Esta entrega é conseqüênciada própria perspectiva de afirmação nietzscheana: afirmar a vontade éafirmar a vida – posto que aquela seja o princípio fundamental desta.

A convocação do Dionisíaco se dá em termos de uma renúnciaascética (Entsagung), isto é, como aniquilação da realidade-vontade.É somente a partir dessa compreensão que se pode pensar em “tratara doença” ascética – oriunda do platonismo – a partir de suas própriasforças.

Precisamos desaprender a consciência como a aprendemos. Nogeral, a grande força conservadora, que afirmava a preponderância emrelação à moral, era aquilo que chamavam de mal, a tendência do indivíduoa se afirmar sem considerar as doutrinas, a sentir-se bem, a buscar seuprazer, a subordinar suas necessidades mais próximas às mais distantes,enquanto a moral não apenas as divide em necessidades superiores einferiores, mas também ensina a desprezar e, muitas vezes, a condenarestas últimas (as chamadas alegrias sensuais). (Nietzsche: 2005, p. 87,grifos nossos)

É este “tratamento” que requer a criação de novos valores quetenham na vida o seu o princípio fundamental, de maneira a não sim-plesmente conservá-la, mas aumentá-la; intensificá-la. Se essencial-mente o valor funciona como parâmetro para tal princípio, a vida, porsua vez, se fundamenta no devir como “vontade de poder”, pontofluido de ação do trans-homem (Übermensch), criador de outras di-nâmicas, de outras instâncias no eterno retorno do tempo da vida.

Notas:1 A Genealogia da Moral se subdivide em três tratados: 1°) “Bem e Mal” – “Bome Mau”; 2°) “Falta”, “Má Consciência” e Fenômenos Coligados e 3°) Quesignificam Ideais Ascéticos?2 “As morais de Kant e de Schopenhauer já partem, inadvertidamente, de umcânone moral: a igualdade dos homens e a idéia de que o que é moral para umdeve ser moral para outro. Porém, isso já é conseqüência de uma moral, talvezde uma moral muito questionável. (...) – E o fato de se querer uma moral jápressupõe um cânone moral! Seria necessário respeitar essa moralincorporada da autoconservação! Ela é, de longe, o sistema mais sutil damoral!” (Nietzsche: 2005, p. 177)

Referências:DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no século XX; trad.Lucy Magalhães; consultoria, Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1997.FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; trad. Roberto Machado. 11.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993.

Para além da preservação da vida

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HEIDEGGER, Martin. La frase de Nietzsche “dios ha muerto”; traducciónde Helena Cortés y Arturo Leyte en HEIDEGGER, M., Caminos de bosque,Madrid, 1996; trad. nossa. Disponível em http: //www.heideggeriana.ar.Acesso em 25/01/2007.LEFRANC. Jean. Compreender Nietzsche; trad. Lúcia M. Endlich Orth.Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência; trad. Jean Melville. São Paulo:Martin Claret, 2004._______. Além do Bem e do Mal: prelúdio de uma filosofia do futuro;trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2004._______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém;trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003._______. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais; trad. PauloCésar de Souza. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2004._______. De El Caminante Y Su Sombra; trad. nossa. Disponível emhttp: //www.nietzscheana. ar. Acesso em 25/01/2007._______. Ecce homo: como alguém se torna o que é; trad. PauloCésar de Souza. 2.ed. 4. reimp. São Paulo: Companhia das Letras,2005._______. Fatum e Historia: vacaciones de pascua 1862; traducciónde Luis Fernando Moreno Claros, en NIETZSCHE, F., De mi vida. Escritosautobiográficos de juventud (1856-1869), Valdemar, Madrid, 1997; trad.nossa. Disponível em http: //www.nietzscheana. ar. Acesso em 25/01/2007._______. Genealogia da Moral: uma polêmica; trad. Paulo César deSouza. 7. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2004._______. Sabedoria para Depois de Amanhã – seleção dos fragmentospóstumos por Heinz Friedrich; trad. Karina Jannini. 1.ed. São Paulo:Martins Fontes, 2005.SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação;trad. M. S. Sá Correia. 1.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade – niilismo e hermenêutica nacultura pós-moderna; trad. Eduardo Brandão. 1.ed. São Paulo: MartinsFontes, 2002.

Ellen Caroline Vieira de Paiva

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A PRÁTICA COMO CENÁRIO DEAPRENDIZAGEM*

Arão Paranaguá de Santana**

RESUMO: A mesa-redonda objetivou a ampliação do debate acadêmicoem torno da relação entre extensão e ensino do teatro, considerando opapel social da universidade pública na formação do arte-educador em umcontexto específico. A partir da visão de três especialistas, debateu-se aarticulação conceitual e histórica entre extensão, pesquisa e ensino; aspolíticas públicas relativas ao apoio a programas e projetos; análise doprojeto “O Extensionista”, ressaltando, ainda, a necessidade da práticade extensão como comunicação, processo e compromisso, e a importânciade projetos na área de arte e cultura.

ABSTRACT: The Round Table discussion aimed to widen the AcademicDiscussion around the relation between Extension and Drama Teaching,considering the social role of the Public University in the Art Teacher’s trainingprocess into a specific context. From the three expert’s point of view, theconceptual and historical articulation among extension, research andteaching was discussed; and also public policies related to programs’ andprojects’ supporting as well as analysis of the “The Extensionist” project,emphasizing the necessity of extensive practice as communication, processand commitment, and the importance of projects in the area of Art andCulture.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 denovembro de 2007, durante a mesa redonda “A extensão, o papel social dauniversidade pública no Maranhão e a formação do arte-educador”.**

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O Departamento de Artes (DEART) da Universidade Federal doMaranhão (UFMA) possui uma história vinculada à prática extensionista,seja por iniciativa de professores como de estudantes, no passadocomo no presente.

O propósito de estabelecer elos entre o ensino e a extensão foise cristalizando através de ações concretas, por exemplo, com a par-ticipação de uma grande equipe junto ao projeto Democratizando aciência, levado a cabo durante a 47ª Reunião Anual da SociedadeBrasileira para o Progresso da Ciência, ocorrida na UFMA em 1995,assunto que foi alvo de discussão neste Encontro Humanístico

Segundo dados da Pró-Reitoria de Extensão (PROEXT), o DEARTé o departamento acadêmico que tem mais projetos catalogados emtoda a UFMA, e atualmente esse perfil congrega ações relevantes, asaber: A Encenação em Movimento: O Imperador Jones, do grupoCena Aberta, com recursos do Prêmio Jovem Artista, destinado a mon-tagem cênica de espetáculo e trabalho de formação estética de pro-dutores e receptores; Oficinas de Arte no Interior Maranhense, vincu-lado à pedagogia e ao aprendizado do teatro e das artes que lhe sãocomplementares; Casemiro Coco, projeto voltado para a pesquisa so-bre a linguagem do teatro de animação e sua relação com a culturapopular; Projeto Quinta de Arte, destinado ao público universitário,seja com espetáculos, mostras de experiências e oficinas; Grupo Uni-versitário de Teatro, projeto que enfatiza a formação de repertório,dando base à iniciação na linguagem cênica; Arte-Educação na Vidada Criança e do Adolescente, desenvolvido há mais de uma década embairros de periferia, com ênfase em jogos teatrais; Escola Extensionistade Canto e Coral, projeto voltado para a musicalização de jovens eadultos; Coreografando o Cotidiano, cujo propósito é o de indicar adança como caminho para a construção da cidadania das mães eadolescentes da Vila Embratel; Pólo UFMA de Arte na Escola, quetraduz-se na política de formação continuada do DEART para estagiá-rios dos cursos de Licenciatura em Educação Artística e Teatro, pro-fessores licenciados e atuantes nas redes pública e privada de educa-ção básica, artistas e agentes sociais que atuam no ensino da Arte.

Considerando que o projeto político-pedagógico do Curso deLicenciatura em Teatro da UFMA, em vigor, define que a prática comocomponente curricular é uma das vertentes essenciais para desenvol-vimento da formação discente, ao lado dos conteúdos de naturezacientífico-cultural e das atividades complementares, há de se estabe-lecer propostas concretas para o fortalecimento dessa base instru-mental voltada para a implementação do currículo na dimensão docotidiano.1

Em decorrência desses fatos e evidências, sobressai-se a ne-cessidade de encetar uma discussão sobre a temática da formação deprofessores relacionada à prática da extensão, articulando as açõesdo cotidiano aos anseios da sociedade, ou seja, à razão fundante da

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universidade contemporânea. Por sinal, a luta pela indissociabilidadeentre os três pilares da esfera de ação universitária – ensino, pesquisae extensão – que geralmente se ouve falar sem que se fixe uma ima-gem real a lhe projetar um sentido pleno, possui, no caso específicodas artes, uma característica situada no âmago estético-pedagógico,entranhada ao fazer teórico e prático que é inerente ao percurso dagraduação, seguindo vida afora através da formação continuada.

Nessa reinvenção da universidade, cabe ao aluno vivenciar oacontecimento como fenômeno contextualizado, buscando explicaçõessingulares, às vezes unicamente aplicáveis para aquele determinadocaso, adotando também uma perspectiva analítica de naturezaontológica, na qual a forma de ver o problema compreende a análisedas suas particularidades frente à visão conjuntural observada pelossujeitos participantes.

Ciente de que os conceitos tratados nos parágrafos preceden-tes implicam em atitudes afirmativas por parte dos sujeitos que cons-troem a vida acadêmica, há um projeto em curso, iniciado em 2007 ecom muitas ações previstas para ocorrerem em 2008, cuja perspectivaaponta para a trajetória formativa dos estudantes em termos de pa-norama social e cultural. Denominado Ação Cultural em Teatro, esteprojeto integra o desenvolvimento curricular do Curso de Licenciaturaem Teatro, através das disciplinas Prática de Extensão I e Prática deExtensão II, respectivamente no quinto e sétimo períodos letivos. Aatividade vem sendo desenvolvida em diversos bairros de São Luís(MA), em 2007, com ações previstas para garantir sua permanência natrajetória curricular e na experiência institucional da Universidade Fe-deral do Maranhão / UFMA, envolvendo a parceria entre sujeitos –estudantes, professores, jovens e adultos provenientes de comunida-des culturais e grupos artísticos –, instituições escolares, entidadesinformais e outras que se propõem à lida com a arte e a cultura.2

Como há necessidade de se estabelecer uma rede de relaçõesentre o planejamento, a execução e a avaliação para o projeto emtela, a mesa-redonda A extensão, o papel social da universidade públi-ca no Maranhão e a formação do arte-educador integrou o X Encon-tro Humanístico, com o propósito de ampliar a base discussão emtorno do assunto. Três especialistas deram contribuições relevantes,reafirmando a certeza de que o saldo da ação extensionista é bastan-te favorável.

O Prof. Dr. Roberto Mauro Gurgel Rocha, coordenador do projetoDemocratizando a ciência (SBPC-UFMA, 1995), discorreu sobre o temada articulação conceitual e histórica entre extensão, pesquisa e ensi-no, reivindicando uma postura mais conseqüente, agressiva e compro-metida, por parte da UFMA, embora apontando saldos favoráveis emalgumas ações pontuais, no passado como atualmente.3 Demonstrouque a relação entre teatro e extensão é tão velha como a própriauniversidade, pois os estudantes de Bolonha (séc. XI) tinham como

A prática como cenário de aprendizagem

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atributo visitar as comunidades e representar teatralmente o resulta-do de seus estudos. Na América Latina, berço da extensão entre nós,como no Brasil dos anos 1960, os movimentos populares e os artistasprotagonizaram a construção de uma universidade ativa, lembrando oscapítulos da história cultural brasileira que se reportam à União Nacio-nal dos Estudantes, aos Centros Populares de Cultura e aos grupos deteatro Arena, Oficina e Opinião.

A contribuição da Prof. Dra. Maria Teresa Seabra Soares deBritto e Alves, do Departamento de Saúde Pública da UFMA, externoua preocupação com a política de extensão das universidades brasilei-ras quanto ao apoio a programas e projetos, ressaltando que há ne-cessidade de uma reinvenção do papel da universidade em respostaaos desígnios e exigências sociais da atualidade. Discutindo as políti-cas esboçadas no âmbito do Fórum de Pró-Reitores de Extensão dasUniversidades Públicas (FOR-PROEXT), a palestrante enfatizou a im-portância da flexibilização curricular no decorrer da graduação, a ne-cessidade de construção de um caminho do estudante rumo à valida-ção social de seus estudos e pesquisas, bem como a institucionalizaçãode projetos pautados no projeto político-pedagógico do curso e noperfil do alunado.

A terceira fala, da Profa. Esp. Célida Maria Lima Braga, tratou deum projeto desenvolvido pelo DEART, em 1995, como parte das ativi-dades de Democratizando a ciência, enfatizando a tentativa de supe-ração dos entraves epistemológicos subjacentes ao currículo do cursovelho (Educação Artística, com habilitação em artes cênicas), que atéentão não havia alimentado a prática extensionista junto à formaçãode professores numa perspectiva estética e comunitária. Ao refletirsobre o processo de montagem da peça O extensionista, que contoucom a coordenação acadêmica e direção artística do Prof. MSc. LuizRoberto de Souza, montagem essa que foi desenvolvida junto à disci-plina Interpretação II, Braga apontou alguns aspectos consideradosessenciais para a saudável vivência universitária, tais como: (i) supe-ração do tempo reservado para os créditos curriculares da disciplina;(ii) motivação dos participantes para vivenciar a experiência do palco;(iii) colaboração de estudantes e professores no processo de trabalho,afora os inscritos na disciplina Interpretação II; (iv) contribuição docrítico Fernando Peixoto, que ministrou palestra e teceu considera-ções sobre o ensaio geral da peça; (v) apresentação da peça emesquema de temporada com quatro sessões, uma delas com platéia decerca de mil pessoas, contando ainda com a presença de dirigentes daSBPC.4

A mesa-redonda destacou, finalmente, a necessidade da práti-ca de extensão numa visão freireana, como comunicação, processo ecompromisso, superando a noção a ela atribuída enquanto função,meramente burocrática e de aparição esporádica.5 Neste sentido, fo-ram discutidas algumas questões que devem balisar a reflexão dos

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nossos extensionistas, a saber: a UFMA está comprometida com asnecessidades do povo maranhense? Quais são essas necessidades?Como enfrentá-las? Quais contribuições a área de teatro poderia dar?

Questionamentos como esses não podem calar, mas sim ressoarnas das vozes ativas dos sujeitos que se propõem ao desenvolvimentode projetos de extensão, sobretudo aqueles vinculados ao ensino epesquisa, como é o caso de Ação Cultural em Teatro. Equaciona-las,redimensiona-las, opera-las junto às parcerias institucionais e aos su-jeitos das comunidades, compreende-las com todos os desafios inter-nos e externos, torna-se, então, ao mesmo tempo a tarefa acadêmicae o valor ético-social da iniciativa. Resta, então, traçar bons indicado-res e conseguir fontes de informação confiáveis para realizar a avalia-ção em vários níveis – diagnóstica, político-institucional, pedagógica ede impacto do projeto em si – para que se possa verificar, com clareza,a concepção de extensão praticada e sua função junto ao currículopleno do Curso de Licenciatura em Teatro.

Notas:1 Cf. Resolução CONSUN-UFMA n. 75, de 28-09-2004, alterada pela ResoluçãoCONSEPE-UFMA n. 523, de 15-03-2007.2 Em 2008 o projeto Ação Cultural em Teatro contará com recursos obtidos compremiação no Edital PROEXT 2007 (MEC-SESu-DEPEM).3 Sobre isso, ressalte-se a contribuição da Profa. MSc. Marisa Marçalina, do Departamento de Educação II, quanto ao impacto de um projetodesenvolvido no âmbito do curso de Pedagogia, com estudantes das sériesiniciais da educação básica que moram nas adjacências do Campus doBacanga.4 A esse respeito, recomenda-se a consulta à monografia de conclusão de cursode Célida Maria Lima Braga, que narra e analisa o procedimento estético epedagógico da montagem da peça O extensionista, de Felipe Santander.5 O debate em torno dessas questões motivou a participação do público,ressaltando-se a contribuição do Prof. Dr. Sávio Araújo (UFRN), sobre asrelações entre as políticas públicas do Estado e da universidade, e doestudante Abimaelson Santos (UFMA) quanto à ampliação do universo culturaldo alunado, além dos ganhos para as comunidades envolvidas em projetosdessa natureza.

A prática como cenário de aprendizagem

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O PROJETO “O EXTENSIONISTA” E APREPARAÇÃO DE PROFESSORES

DE TEATRO*

Célida Braga**

Resumo: Procuramos neste estudo, mostrar a importância do projeto OExtensionista, enquanto proposta de experimento teórico-prático paraformação do professor de Teatro. Este experimento cênico foi desenvolvidona disciplina Interpretação II, do Curso de Licenciatura em EDA, HAC daUFMA. Apresentamos “O Extensionista” como instrumento capaz de propiciaralternativas para interferir na crise de paradigmas em que a Licenciaturaem Teatro na UFMA se defrontava e se defronta ainda hoje. Dessa forma,ressaltamos as possibilidades de diferentes disciplinas se relacionaremem uma perspectiva metodológica interdisciplinar. Tentamos mostraratravés desta análise a importância deste projeto de pesquisa para aformação tanto em nível pedagógico, quanto em nível cênico do professorde Teatro.Palavras-Chave: Projeto “O Extensionista”. Formação de Professor deTeatro. Experimento Cênico.

Abstract: We sought in this study, to show the importance of the projectExtensionista, while proposal of theoretical-practical experiment for theteacher’s of Theater formation. This scenic experiment was developed inthe discipline Interpretação II, of the Course of Licenciatura in EDA, HAC ofUFMA. We presented Extensionista to the future teacher of Theater in thesense of contributing so much for the formation in pedagogic level, as inscenic level. It is like this, that everybody notices the Project “ Extensionista“ as instrument capable to propitiate alternatives to interfere in the crisisof paradigms in that Licenciaturas was confronted and they are stillconfronted today; and that they are many, the possibilities of differentdisciplines if they relate in a perspective methodological interdisciplinar.Keywords: Project “ Extensionista “. Formation of Teacher of Theater. I tryScenic.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“A extensão, o papel da universidade pública no Maranhão e a formação do arte-educador”.** Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Maranhão doCurso de Educação Artística e do Curso de Licenciatura de Teatro, especialista emMetodologia da Educação Superior pela Universidade Estadual do Maranhão eparticipa da coordenação Pedagógica, do projeto “Ação Cultural em Teatro” decoordenação Geral do Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana (DEARTE-UFMA). Email:[email protected]

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O surgimento do Projeto “O Extensionista1” está pautado emdois propósitos. O primeiro diz respeito à estrutura do Currículo doCurso de Licenciatura em Educação Artística no que se refere: à frag-mentação dos conteúdos nas habilitações e a dicotomia entre compe-tências técnicas e pedagógicas. O segundo, à necessidade de clarezasobre a identidade do curso: Licenciatura ou Bacharelado.

Ao construir esta análise, busca-se de forma contundente com-preender a estrutura curricular e metodológica do Curso de EducaçãoArtística a partir da relevância, em termos de teorias e práticasadotadas, para a construção de um saber científico, artístico e edu-cacional. E assim, entender “O Extensionista” como possibilidade deintegração do ensino, da pesquisa e da extensão como alternativa desuperação do problema fragmentador no ensino de teatro.

Na década de 902, alguns professores e alunos da Habilitaçãoem Artes Cênicas, em busca de novas possibilidades para trabalhar osconteúdos de disciplinas específicas da habilitação, que se apresenta-vam estandardizados nos programas, encontram possibilidadesmetodológicas para interferir no contexto da disciplina InterpretaçãoII a partir do Projeto de Montagem – “O Extensionista”, demonstrandoassim, uma preocupação com ensino pela pesquisa; revelando a im-portância de se trabalhar conteúdo mais dinâmico a partir dos eixosde análise e uso e estimulando alunos e outros professores a investi-garem outras formas de abordagens de conteúdos, didáticas e práti-cas de ensino.

Na busca de dinamizar a formação de professores de teatro paratorná-la mais viva e significativa no contexto da Educação Básica econtextualizar o fazer pedagógico e artístico com a realidade maranhense,ao contrário de metodologias e conceitos presos a hipóteses.

Esses anseios nascem num período em que a Universidade brasilei-ra vem caminhando para a aceleração do processo de privatização;empresariamento do ensino e para uma crescente desobrigação do Go-verno Federal, no que diz respeito ao financiamento da universidadepública. Poucos projetos sendo desenvolvidos no sentido de oportunizarprofessores e alunos na busca da superação da dicotomia teoria-prática,diante das dificuldades de relacionar ensino, pesquisa, extensão. Sendoassim, o ensino científico necessita redefinir uma política nacional queassegure condições reais de ensino e pesquisa na produção acadêmica.

Nessa perspectiva, não se pode desvincular a Educação Superiordo modo capitalista e da produção da existência humana. Por isso,acredita-se que o ensino superior deva exprimir a própria contradiçãodo desenvolvimento do sistema capitalista e recriar novos paradigmasna tentativa de construção de um projeto humanizador de universidade.

Partindo dessa concepção, procuramos compreender a relaçãoentre universidade e sociedade. À Universidade, tornaram-se comunsàs inúmeras críticas e afirmações sobre a desvinculação desta com arealidade brasileira. Trabalhos de extensão, serviços que se predis-põem interferir na sociedade, mas, raramente articulados com o ensi-

Célida Braga

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no, com as pesquisas realizadas e com os problemas sociais. Consta-ta-se na prática acadêmica, a distância entre o trabalho científico eas atividades que contribuem com os movimentos sociais.

No que diz respeito à Universidade Federal do Maranhão, essasquestões são perceptíveis. De acordo com Gurgel (1995), “(...) o quefazemos é tão pouco dentro dos problemas que a sociedade apresen-ta”3. Este recorte representa um restrito vínculo entre ensino, pesqui-sa e extensão no processo de formação de professores e cria possibi-lidades de discurssão sobre o papel da extensão universitária a partirda representatividade do Setor de Extensão da UFMA.

No tocante à quantidade de produção acadêmica da universida-de maranhense, na visão de Duarte (1997), “(...) está ainda longe doque poderíamos medianamente almejar4”. Nesse sentido pode-se des-tacar, a situação das licenciaturas. Observa-se um quadro em queainda é relevante professores que se ressentem da qualificação demestrado e doutorado.

Vários questionamentos nos perseguem na busca de dar contade tal complexidade que envolve as ações da Universidade, parapercebê-la sob um outro viés, ou seja, vê-la potente e articuladora deconhecimentos sobre diferentes operações técnicas, estéticas, críti-cas, históricas e sociais. Sendo assim: o que seria Universidade? Comoé produzida? A quem se destina?

Nesse sentido, o desenho de universidade que se busca repre-sentar aqui é o que está em busca de identidade própria e de umaadequação à realidade social e com ampla autonomia para cumprir suasfinalidades, garantindo pluralismo de idéias e liberdade de pensamento.

Se a proposta é sair do tecnicismo5 cedendo lugar ao conteúdopropriamente didático-pedagógico e cientificamente elaborado, as univer-sidades precisam encarar as licenciaturas a partir da importância que pos-suem no contexto acadêmico, não como de “segunda opção”.(?) explicar

No que concerne aos cursos de licenciaturas da UFMA, sãocursos pequenos a nível quantitativo (essa situação muda um poucona década de 90) e a nível qualitativo, quanto aos que se formam. Nãose percebe uma política na universidade preocupada com essa situa-ção, mas, sim, uma postura acomodada. Conforme Duarte (1995), auniversidade sabe de suas precariedades, mas vem tornando-se omis-sa na busca de um projeto revitalizador dessa precariedade.

É importante destacar que, as Licenciaturas curtas passam aexistir em 1974, com o objetivo de formar professores polivalentes6.Nesse contexto a noção de polivalência na Educação Artística é de:valorizar a prática artística; particularizar o ensino de arte em habilita-ções; reforçar a dicotomia teoria-prática, ensino-pesquisa-extensão;valoriza-se o adestramento e o treinamento profissional.

A universidade como centro de educação, precisa reconhecer aprioridade dos cursos de licenciaturas e contribuir com o ensino formale informal, por intermédio de futuros professores da Educação Básica.Mas para maior entendimento sobre o trabalho aqui estruturado, ne-

O projeto “O extensionista” e a preparação...

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cessita-se de uma análise sobre o referencial histórico do Ensino daArte no Brasil a partir da noção de polivalência.

A partir da Lei 5692/71, principalmente depois da resolução nº23 de outubro de 1973, que regulamenta de forma obrigatória a disci-plina Educação Artística no ensino brasileiro. Conforme Cunha (1989),o Art. 7 da LDB, “(...) veio contribuir para reforçar e aumentar umquadro já confuso, conturbado e sem clareza de objetivos e finalida-des, tanto para a formação e o papel político-educacional do profes-sor, quanto para a disciplina. 7”

Dessa forma o curso de Licenciatura em Educação Artística,passa a ser compreendido na perspectiva de formar profissionais queao mesmo tempo desenvolvam práticas a partir do conteúdo de váriaslinguagens artísticas: artes plásticas, artes cênicas, desenho e músi-ca, com carga horária de 30 horas/ano.

Com essas novas idéias, cabiam ao professor desta disciplinadominar o conhecimento de todas as linguagens artísticas. E ao alunoda Educação Básica, a compreensão dos diversos saberes artísticosmaterializados na sala de aula. Segundo Santana (1995): “(...) que emnível de Brasil traz muitas diferenças, talvez nas particularidades regi-onais, mas não traz as diferenças no que diz respeito às matérias deensino e a compreensão da formação desse educador. Quem é esseeducador que vai formar?”8

Na década de 80, surgem movimentos de professores de Artesque discutem um novo rumo para a Educação Artística. Nestes deba-tes o paradigma interdisciplinar se apresenta como tentativa de supe-ração da fragmentação dos conteúdos artísticos. Mas será na décadade 90 (final do século XX), que emerge uma necessidade de (novos)paradigmas. E assim, professores de Artes, ainda enfrentam barreirasde diante das novas propostas de mudanças no contexto da escolapública até os dias atuais. O currículo fragmentador entre o conheci-mento artístico e pedagógico na maioria das vezes, valorizando o con-teúdo em si mesmo, permanece sendo reforçando.

Essa problemática evidencia: a produção de modo fragmenta-do; a dissociação dessa produção com o conhecimento científico (con-texto de onde emerge). E apresenta a polivalência como conhecimen-to limitado. Lück (1994), ao conceituar polivalência, coloca que: “Aomesmo tempo em que produz (a polivalência) um mosaico de informa-ções de conhecimentos paralelos desagregados uns dos outros. Àsvezes antagônicos e ainda considerados como legítimas representa-ções da realidade9”.

Dentro dessa perspectiva, a interdisciplinaridade possibilita umasignificativa experiência na superação da fragmentação que vinha en-frentando a Licenciatura em Educação Artística, Habilitação em ArtesCênicas, notadamente na UFMA. De acordo com Lück (1994):

O início da década de 90 caracteriza-se pela idéia de interdisciplinaridade,tema-chave dos mais representativos eventos sobre formação deeducadores, tais como as últimas reuniões anuais da Associação Nacionalde Pós-Graduação em educação (Anped), nos Encontros Bienais de

Célida Braga

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Professores de Educação (CBE). Esquecida em décadas passadas, voltaagora como palavra de ordem das propostas educacionais não só noBrasil, mas em outros países.10

A interdisciplinaridade surge como paradigma emergente na edu-cação. No campo das Artes, se apresenta como possibilidades de aber-turas, facilitadora de trocas por meio de intercâmbios das disciplinasespecíficas da HAC. Nessa perspectiva a linguagem teatral, abre di-versas possibilidades de sugestões, buscas e discussões e como agentefacilitador dessa experiência. Mas o que caracteriza uma atitudeinterdisciplinar? Fazenda (1993), acrescenta que:

É a atitude da busca, da pesquisa. É a transformação da insegurança numexercício do pensar num contribuir. A solidão dessa insegurança individualque vinca o pensar interdisciplinar, pode transmutar-se na troca, no diálogo,no aceitar o pensamento do outro. Exige a passagem da subjetividadepara a intersubjetividade11.

Na discussão acima se analisa o caminho percorrido pelo proje-to para facilitar o entendimento da forma de relação das parceriascom “O Extensionista”, posto que se acredita que esta tenha nascidoa partir da idéia de integração. Disciplinas afins: Interpretação II,Expressão Corporal II, Teatro de Animação, Caracterização. Outraanálise está enfocada na parceria complementar: Núcleo de Estudosda América Latina (NEAL), vinculado a Pró-Reitoria de Pesquisa ePós-Graduação, criado no ano de 1994, quando quebra a rigidez daestrutura institucional que reforçava o paradigma fragmentador e ainclusão do projeto na 47ª SBPC – na abertura das conferências dasComissões Democratizando a Ciência, nos bairros de São Luís. A pro-posta das Comissões Democratizando a Ciência era ampliar o espaçode debates sobre a relação da pesquisa científica entre universidadee comunidade na democratização da ciência e da arte na periferia;divulgando os conhecimentos produzidos pela UFMA no sentido deintercambiar saberes científicos e populares; abertura para a partici-pação dos movimentos populares nas discussões com o mundo daciência.

Dessa forma o papel do NEAL no Projeto “O Extensionista” erade divulgação, de organização dos seminários como parte da progra-mação artístico-acadêmica. Trabalhando em conjunto com o CA deArtes, APRUMA, Departamento de Comunicação Social, as temáticasde discussões no projeto foram: Extensão Universitária eInterdisciplinaridade; Reforma Agrária e Latifúndio; e As Influênciasbrechtianas na América Latina e no Brasil.

A importância do Extensionista é observada em vários aspec-tos. Uma, porque mobilizou segmentos da comunidade; possibilitoumostrar o teatro como viés para democratizar o saber científico epopular; também, contribuiu para a tomada de atitudes dos problemaspresentes nas comunidades. Outra, porque buscou a unidade entrealunos, professores e instituições, uma forma de aventuras.

O futuro professor de Teatro, envolvido no experimento teveoportunidades de aprofundar saberes brechtianos buscando procedi-

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mentos para a organização e a ampliação do ensino e da pesquisa eassim, sujeitos ativos da relação professor-aluno.

A partir das parcerias estabelecidas, buscou-se entender, se,na proposta do Projeto houve concepção interdisciplinar. Analisa-seque as parcerias se deram por junção de disciplinas, interação deconceitos, de métodos e de conteúdos?

Então esta análise na perspectiva interdisciplinar surge a partirdas inquietações com o currículo da HAC; tentativa de superação dafragmentação do conteúdo nas disciplinas; interação das diversas áreasdo conhecimento com a produção do conhecimento do Projeto. Assimcomo outras disciplinas não conseguiram se envolver: ruim para osalunos que ficaram com excesso de tarefas, ou seja, pesquisa doprojeto O Extensionista, mais outras atividades das outras disciplinasque poderiam está juntas. A partir da “Avaliação Escrita da Prática daMontagem” realizada pelos alunos, na questão sobre a perspectivainterdisciplinar, destacam os seguintes aspectos:

(...) este é assunto que ainda não ocupa espaço devido em nosso curso.Muitos professores se sentem coadjuvantes e pensam que estãotrabalhando para uma disciplina. (...) Os professores querem cada ummostrar o resultado de suas disciplinas. (...) Infelizmente (ainterdisciplinaridade) não aconteceu, houve apenas uma tentativa.

De acordo com Fazenda (1993): “certas disciplinas aparecemsob os mesmos domínios materiais, juntam-se parcialmente, criandoassim relações complementares entre seus respectivos domínios deestudo”. Dessa forma, afirmamos que “O Extensionista” estabeleceuuma relação dialógica com os participantes na própria ação do pensar-fazer, uma proposta de cunho científico.

Acredita-se que o Ensino Superior: deva criar oportunidades deinteração entre ensino-pesquisa-extensão; buscar a unidade teoria-prática para formar profissionais capazes de interferir com autonomiano contexto social, e, a partir daí redimensionar o processo educativo,na recuperação da dinâmica das relações, do homem consigo, com ooutro e com ambiente em que está inserido.

Cremos que essas mudanças são prioritárias, tanto para a Li-cenciatura de Teatro, quanto para educação escolar e que, seu maiorreflexo será na sociedade de forma geral. Nesse sentido é que aponta-mos traços importantes d’O Extensionista como contribuições para aformação de professores de Teatro na UFMA:

· Primeira tentativa de estabelecer de forma sistemática arelação de aprendizagem entre teoria e a prática dos alunosda HAC, a partir das metodologias utilizadas, buscando uniro ensino artístico e pedagógico; construir um saberinterdisciplinar através do teatro. E assim, unir os pilaresbásicos no campo do saber científico, ou seja: ensino – pormeio das disciplinas Interpretação II e Expressão Corporal II;pesquisa – por meio do desenvolvimento do Projeto e extensão– por meio das parcerias com o NEAL e com as ComissõesDemocratizando a Ciência na 47ª SBPC.

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· A montagem da peça teatral “O Extensionista” de FelipeSantander, apresenta dois eixos de discussão: O primeiro emnível temático, sobre extensão universitária e seudistanciamento da realidade social; a questão agrária a partirda reforma e latifúndio, problemas enfrentados pelos paísesda América latina (específico do México e Brasil). O segundo,em nível dramatúrgico, a escrita da peça é realista, maspossui características brechtianas, por usufruir bastante danarrativa. O texto de Santander dá possibilidades de narrar-se, distanciadamente, o que no passado ocorreu na cidademexicana Techtnotlén das Flores, (a revolta dos camponesese o impasse de rodear a prefeitura municipal e exigir queentregue seus companheiros presos). Esse fato é narradopelo Cancioneiro, como fato acontecido (passado) e nãoacontecendo, pois o tempo presente é a narração feita pelopersonagem Cancioneiro. Típica da dramaturgia moderna daAmérica Latina em que se mostra nitidamente uma influênciabrechtiana.

· O objetivo não era de envolver palco-platéia em uma grandeação dramática, mas permitir ao espectador que, mesmo sedivertindo, consiga entender as dimensões sociais, políticase culturais da sua própria realidade. De acordo com Peixoto(1995): “nasce de uma proposta que nasceu de Brecht, masé uma proposta brasileira. A regra de Boal, que FelipeSantander utiliza é o teatro foro”.

· O processo de encenação envolveu 19 alunos; 06 professores;01 monitor; 03 músicos da comunidade. Os Departamentosde Artes, Comunicação Social e Departamento de DesenhoTecnológico sob a coordenação do professor mestre LuizRoberto de Souza.

· Na perspectiva de fundamentação teórica das disciplinasenvolvidas, trabalhou-se o seguinte conteúdo: teorias doteatro dialético brechtiano na visão de Rosenfeld (1993),Boal (1982), Bornheim (1992), Koudela (1994); jogos teatraise exercícios de alongamento corporal, exercícios vocais;criação da trilha sonora; construção de cenários e máscaras;seminários extra-sala de aula.

· O entendimento dos alunos sobre uma proposta deencenação criada a partir da idéia de todos, de forma quefosse viável na proposta de montagem da peça teatral. Eassim, contribuir para formar profissionais de Teatro,conscientes da importância social do ensino de teatro paraa humanização do indivíduo no reencantamento do mundo.

· “O Extensionista”, abriu espaço dentro do Curso de EducaçãoArtística, até então não explorado: para projetos queobjetivam o ensino pela pesquisa, possibilidades aos futuroseducadores de Teatro se engajarem em projetos de extensão.

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O projeto “O Extensionista”, deixou marcas de sua ação.Principalmente porque na história da Habilitação de ArtesCênicas na UFMA, foi a primeira vez que recebemos apresença de grande intelectual do teatro, Fernando Peixoto,que ministrou palestra sobre “O Teatro latino-americano e asinfluências de Brecht no Brasil.

Ao acreditar-se que o homem é produto histórico em cons-tante transformação, enquanto educadores, não podemos fazer exi-gências que desrespeite o próprio processo evolutivo intelectual doeducando. O desafio constante é a unidade na diversidade. Os estí-mulos serão sempre necessários e diferenciados para que o educan-do tenha autonomia e assim, se posicione sobre a qualidade de suaformação, valorizando-se, como intelectual que busca a sua supe-ração.

Diante do exposto, salienta-se a importância de projetos que:objetivam o ensino pela pesquisa e criam possibilidades à futuros profes-sores de teatro, se envolverem com a extensão universitária; reconstro-em metodologias que primem pela dialética inerente à práxis criadora.

Portanto, ao refletir sobre O Projeto “O Extensionista” e aPreparação de Professores de Teatro não se busca desvendar solu-ções esquemáticas para repetir desafios estéticos. A atitude deespanto (característica do teatro didático de Brecht) é necessária.O desafio maior diz respeito ao significado do experimento e suacontribuição na formação de professores de teatro. Entrementes,precisamos ampliar este pensar, fazer teatro numa metodologia sem-pre em reconstrução, um saber a várias mãos, no contexto em queestivermos inseridos e até mesmo quando surgirem problemascurriculares.

A grande idéia básica de que o mundo não deve ser visto como umcomplexo de objetos completamente acabados, mas sim como umcomplexo de processos, no qual objetos aparentemente estáveis, nadamenos do que suas imagens em nossas cabeças (nossos conceitos), estãoem incessante processo de transformação. (Friedrich Engels).

Notas:1 Projeto de montagem – “O Extensionista” – peça do dramaturgo mexicano FelipeSantander sob coordenação do prof. Ms. Luiz Roberto de Souza (Luiz Pazzini),insere-se dentro da disciplina Interpretação II, do Curso de Licenciatura de EducaçãoArtística, que tem por objetivo a aplicação de técnicas brechtianas do teatro didático,um dos principais caminhos de estudo no teatro-educação. Ano de execução:1995.2 In: TIRAMONTI (1995, p.35): “Cenário dos anos 90, apresenta três característicasbásicas que geram condições diferentes para a construção das políticas públicas:instalação de um novo paradigma educacional; recuperação de um espaço delegitimidade para o estado; definitiva descentralização do sistema”.3 GURGEL, Roberto Mauro. Trabalho apresentado no I Seminário do Projeto “O

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Extensionista”: Extensão Universitária e Interdisciplinaridade, 1995.4 DUARTE (apud BRAGA, 1997, P.78).5 In: FUSARI & FERRAZ, (1993, p.32): “A ‘Pedagogia Tecnicista’, presente aindahoje, teve suas origens a partir da segunda metade do século XX, no mundo, e apartir de 1960/1970, no Brasil. (...) o aluno e o professor ocupam uma posiçãosecundária, porque o elemento principal é o sistema técnico de organização da aulae do curso. Devido à ausência de bases teóricas mais fundamentadas, muitosvalorizam propostas e atividades dos livros didáticos que, nos anos 70/80, estãoem pleno auge mercadológico, apesar de sua discutível qualidade enquanto recursopara o aprimoramento dos conceitos de arte”.6 In: SANTANA, (2000, p.44): “(...) a figura do professor polivalente, ou seja,aquele profissional que circula facilmente do 1º ao 2º grau e, ao mesmo tempo,da atividade à disciplina, passando pela área de estudo”.7 CUNHA (1989. p.64),8 SANTANA, Arão P. Trabalho apresentado no I Seminário do Projeto “OExtensionista”: Extensão Universitária e Interdisciplinaridade, 1995.9 LÜCK, (1994 p.21)10 LÜCK, (1994, p.27).11 FAZENDA (1993, p.18)

Referências:BADER, Wolfgang (introdução e organização). Brecht no Brasil:experiências e influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta enovos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1992.BRAGA, Célida Maria Lima. O Extensionista: tentativa de superação dadicotomia teoria-prática na formação do professor de cênicas. SãoLuís: UFMA, 1997. (Monografia de Conclusão de Curso).CADERNOS DA AMÉRICA LATINA (Núcleo de Estudos da América Latina).São Luís:UFMA, 1995.CADERNOS ANDES. Proposta da ANDES para a universidade brasileira.Edição atualizada e revisada, 1995.CUNHA, Luiz Antonio. Qual Universidade? São Paulo: Cortez e Autoresassociados, 1989. (Coleção polêmicas do nosso tempo).DEMO, Pedro. Educar pela Pesquisa. Campinas: Autores Associados,1996.ENSINO DE ARTE: Reflexões. Recife:ETFPE, ANARTE/Regional, 1994.FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: um projeto emparceria. São Paulo: Loyola, 1993.FERRAZ, Mª. Heloisa C. de T, FUSARI, Mª. F. de Rezende. Metodologiado Ensino de Arte. São Paulo: Cortez, 1993.KOUDELA, Ingrid. Brecht: Um jogo de aprendizagem. SãoPaulo:Perspectiva, 1992.LUCK, Heloísa. Pedagogia Interdisciplinar: Fundamentos teórico emetodológico. 7.ed. São Paulo.LUCKESI, Cipriano, BARRETO, Elói, COSMO, José, BAPTISTA, Naidson.Uma universidade: uma proposta metodológica. 7.ed. São Paulo: Cortez,1995.

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MOROSINI, Maria Costa (org.). Universidade no Mercosul. São Paulo:Cortez, 1994.SOUZA, Luiz Roberto de. Relação teoria-prática na formação doeducador de cênicas. São Luís, 1994. (Monografia de especialização –CEMES/UFMA).TIRAMONTI, Guilhermina. O cenário político educacional dos anos 90:a nova fragmentação. São Paulo: Cortez, 1995. (Cadernos de Pesquisa,100).

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A NOSTALGIA PÓS-MODERNA:o Complexo de Dédalo

em perspectiva.*Alexandre Fernandes Corrêa**

Resumo: Breve artigo analisando o ‘complexo de Dédalo’, num paralelocom a mitologia Grega, para se interpretar as ‘encruzilhadas do labirinto’das políticas do patrimônio e da memória na atualidade. O foco da análiserecai especialmente para as recentes dinâmicas de aceleração dosprocessos de ‘turistificação’ e ‘gentrificação’ da paisagem urbana dosCentros Antigos das metrópoles brasileiras.Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Paisagem. Urbanismo. Turismo

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCh/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“Novas Sociabilidades e Urbanidades Contemporâneas”.** Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia eSociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudose Pesquisas Patrimonio & Memória. Email: [email protected]

Abstract: Brief article analyzing the ‘complex Dédalo’, in a parallel with theGreek mythology, to interpret the ‘crossroads of the maze’ of the policiesof the heritage and memory in actuality. The focus of the analysis liesespecially for the recent dynamics of acceleration of the processes of‘turistification’ and ‘gentrification’ of the urban landscape of the HistoricCenters Brazilian cities.Keywords: Patrimony. Memory. Landscape. Urbanism. Tourism

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1. INTRODUÇÃO

Vou apresentar nessa Mesa-Redonda algumas idéias heterodoxasque tenho elaborado a partir de minhas experiências com pesquisa-açãoe ação cultural nos bairros que compõem o Centro Antigo de São Luís,desde o final da década de 1990. Nestas experiências em pesquisa eextensão universitária tenho observado processos metamórficos queoferecem sinais significativos dos processos profundos de mudança queocorrem atualmente no imaginário social brasileiro, em relação a gestãodas paisagens culturais urbanas e das memórias sociais.

Apoiado nas intervenções críticas de C. Castoriadis, especial-mente na série de textos designados Encruzilhadas do Labirinto, voutrabalhar provisoriamente com a expressão ‘Complexo de Dédalo’, paratentar interpretar o conjunto de fenômenos que observo se sedimentarno quadro empírico referido acima.

Trata-se de um estudo sobre os processos sócio-culturais queidentifico desenvolverem-se, através de vultosos investimentos cole-tivos, nos centros urbanos antigos e nos diversos acervos patrimoniaise museológicos contemporâneos. Nestes cenários privilegiados vemosencenarem-se forças poderosas que agenciam todo um conjunto deequipamentos que compõem as paisagens culturais urbanas dos Cen-tros Antigos das metrópoles brasileiras. São novos agenciamentos co-letivos, manifestos cenograficamente, e que surgem como um novo‘brinquedo’ nas mãos de arquitetos e engenheiros: combinando novose velhos tecnocratas especialistas do patrimônio histórico e cultural.

Trata-se de uma construção histórica cada vez mais sofistica-da. Mas também é uma construção política que tem nos conduzido aomais fantasmagórico dos labirintos da modernidade. Labirinto urbano,que atravessou o milênio, deixando como herança à sociedade cadavez atônita, uma fantasmagoria certamente desconcertante.

A natureza dessa fantasmagoria se funda no desenraizamento evi-dente que se manifesta na engenhosidade estetizada, nas artificialidadesfabricadas (ou autenticidades encenadas1) pelos projetos arquitetônicos,e de engenharia cultural, que se distanciaram e romperam os laços dasociabilidade básica e fundamental, ainda resistentes nesses CentrosUrbanos Antigos. São ‘Projetos de Intervenção Tecnocrática’ que se dis-tanciam cada vez mais do cotidiano e da vivência social mais concreta.

Mas, é preciso que se descreva particularidades de uma ‘outrarealidade’ virtual, para que se possa fazer toda justiça. Os arquitetos,engenheiros e tecnocratas do patrimônio surgem como sintomas tardi-os numa sociedade em crise, crise da sociabilidade artificializada numcomplexo sócio-cultural que se impõem de modo inédito e sem prece-dentes. O “fim do social”, enfocado por vários sociólogos contempo-râneos, entre os quais cito Jean Baudrillard (1994), se cristaliza nes-sas “memórias do social” que vemos engendrarem-se como paródias,sinais de uma irrisão tardia. Ironicamente, é no momento que se tentasalvaguardar, com esforços concentrados com apelos sentimentais

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apoiados uma retórica romântica e nostálgica, muito sedutora e super-elitizada, que vemos manifestar-se o sintoma de uma falência, a falên-cia da sociabilidade numa sociedade cada vez mais individualista eanti-social2.

Esse processo se encaixa como uma luva, especialmente no nos-so contexto sul-americano. Contexto sócio-cultural em que a sociabili-dade mais cotidiana, a sociabilidade da cultura popular resistente eviva, sempre foi um grande estorvo para os arquitetos, engenheiros etecnocratas da elite. Estorvo, pois, esses vestígios e traços da vivênciacultural popular atrapalhavam, e ainda atrapalham, o jogo de ‘faz deconta’ e da ‘memória’ (em que se busca as imagens replicadas) seusprojetos ‘fetichizados’ de intervenção, no que poderíamos chamar aquinovos parques do ‘admirável mundo novo’ do passado tornado mercado-ria turística. Os processos de ‘gentrification’ que se observam desenvol-ver pelo país a fora, replicando aqui o que ocorre em vários paísesocidentais, é reflexo desse processo de intensificação da ‘marginalização’,sem precedentes, dos grupos dos imigrantes, desempregados, excluídose de todas as minorias que ainda ocupam os Centros Antigos das gran-des cidades brasileiras. Isso se faz hoje com o acordo unânime detodos, acadêmicos e cidadãos, que chancelam a ‘ideologia’ da‘turistificação’3, com a esperança de que haverá enfim a redenção eco-nômica do país, com as promessas de desenvolvimento capitaneadopela chamada ‘indústria limpa e sanitária do turismo sustentável’ – ideo-logia poderosa que merece ser analisada criticamente, superando esteestado hipnótico em que nos encontramos aprisionados: políticos, co-munidades, especialistas, profissionais, professores, universitários, etc.De tal sorte que criticar essa ‘ideologia’ é ser considerado um tipo de‘pessimista’ incurável, um derrotista, um ‘idiota’ crítico, que não admiraas maravilhas que o turismo pode oferecer para o país e, especialmente,para as regiões mais pobres da nação que possuem acervos paisagísticosbioculturais com ‘grande potencial’ turístico...

Contudo, é evidente que mesmo gozando de forte apelo comer-cial e empresarial, esse modelo está em crise, esgota-se a passoslargos, pois as contradições são cada vez mais presentes, assim comodensas, tensas e eloqüentes. Mas, o esforço para encobrir estas ares-tas e incongruências é gigantesco.

É certo também que assistimos e testemunhamos metamorfosese avatares de um modelo já bastante conhecido, que se reconheceapenas na sua atual fase como uma momentânea e passageira‘teatralização’4 sanitária e higienizadora, que aglomera e condensa comouma onda, uma moda fugaz de consumo passadista chique, em tem-plos consumistas simulados e com referências e citações refinadas eestetizadas do ‘passado’.

Mas, essa onda modista nostálgica, tem deixado um rastrofantasmagórico cada vez mais curioso. Antes de se esgotar totalmente,pretende deixar seus ‘fósseis’ tombados e inscritos nas paisagens urba-nas das cidades, aspirando uma ‘eternidade’ sacralizada, como prenún-

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cio de um fim heróico e glorioso, mas profundamente decadente. É sim,uma inscrição do imaginário de uma classe social que se vê desmoronan-do junto com o modelo e uma visão de mundo específica, em que seupredomínio, em mais de um século de intervenções arbitrárias e autori-tárias, nas cidades brasileiras, finalmente parece anunciar seu fim.

É preciso contextualizar esse processo, pois isso não se dáfragmentariamente, como preconizam os profetas e poetas do frag-mento, trata-se de uma ‘imaginação de classe’, uma cenologia-de-classe5 imposta por um tipo de subjetividade de classe particular. Asclasses médias e altas estão sempre ávidas por novos espaços nascidades, querem novos símbolos descartáveis para consumir, e paraaplacar o vazio de um consumismo passivo e alienante. Mas logo desa-parecem do cenário criado para eles, e volta a ser encenada a deca-dência e a desvalorização imobiliária do lugar, e de novo voltam osgrupos sociais e culturais expulsos do lugar, recolhendo os pedaços doque sobrou do consumo passivo e passageiro.

Esse processo é desencantador, crítico e preocupante. Poucasvozes se levantam contra esse estado de coisas, poucos hoje ousamapontar para os vícios desse ciclo. Como decifrou N.Canclini, reflexãoinserida aqui numa longa citação:

Precisamente porque o patrimônio cultural se apresenta alheio aos debatessobre a modernidade ele constitui o recurso menos suspeito para garantira cumplicidade social. Esse conjunto de bens e práticas tradicionais quenos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom,algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabediscuti-lo. As únicas operações possíveis – preserva-lo, restaura-lo difundi-lo – são a base mais secreta da simulação social que nos mantém juntos.Frente à magnificência de uma pirâmide maia ou inca, de palácios coloniais,cerâmicas indígenas de três séculos atrás ou à obra de um pintor nacionalreconhecido internacionalmente, não ocorre a quase ninguém pensar nascontradições sociais que expressam. A perenidade desses bens leva aimaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes de consensocoletivo, para além das divisões de classe, etnias e grupos que cindem asociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio. Porisso mesmo, o patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologiados setores oligárquicos, quer dizer, o “tradicionalismo substancialista”(Canclini, 2003, p. 160).

Destaco da citação as expressões: ‘cumplicidade social’, ‘man-ter juntos’, ‘fontes de consenso coletivo’, etc. É exatamente o queestamos vendo acontecer em relação a ideologia de que o turismotrará o desenvolvimento para as regiões subdesenvolvidas do país:todo mundo concorda com esse novo axioma.

Nesse trajeto repetitivo e labiríntico, os tecnocratas, os arquitetose os engenheiros, com fobia do social e do que eles chamam de‘intelectualismo inútil’, continuam a não dar ouvidos à crítica. Todavia,sempre chega a hora de se assumir as responsabilidades sociais e políti-cas pelas escolhas mal sucedidas. Destarte, é preciso mudar essa matrizde atuação alienante, reducionista, classista e anti-democrática. Os Cen-tros Urbanos Antigos devem ser para todos os cidadãos, não só para

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turistas, nem só para as pessoas das classes médias e altas, devemmanter-se espaços de encontro dos diferentes segmentos culturais eeconômicos da sociedade. Evitando assim a expressão neurótica de umfalso amor pelo passado, apontado por Lévi-Strauss na obra Antropolo-gia Estrutural II: “ (...) que o amor pelo passado é uma mentira nascidades que, para satisfazer a sua necessidade de crescer, massacramtodos os vestígios do que foram e do que as fez (...)” (1976, p. 291).

Em traços largos esse é o escopo do campo de problematizaçõesque esse artigo tenta contemplar. Vamos introduzir alguns temas teó-ricos para balizar a reflexão crítica e por fim, sugerir algumas saídaspara esse labirinto de Dédalo.

2. O TEMPO DA LONGA DURAÇÃO: tempo para refletir

Esta breve incursão reflexiva no campo epistemológico, em quevemos desenhar-se uma unidade quanto a percepção dos processosde transformação que acontecem na atualidade – e que se manifes-tam na área da cultura, da natureza e da tecnologia – ajuda-nos aatingirmos enfim o ponto central desta fala. Creio que pelo espaçodessa intervenção esse talvez seja o ponto que merece ser destacadoaqui. Assim, o foco da análise recairá agora sobre o que chamarei de‘conflito antitético’ entre o ‘tempo da longa duração para a reflexão’ eas exigências contemporâneas da pressa e ansiedade em dar respos-tas rápidas a problemas novos. Pois é preciso colocar em questão asócio-técnica, isto é, colocá-la sob o crivo da perspectiva sócio-antropológica. Sigo nesse sentido o questionamento colocado porLaymnert: “com base em que critérios podemos julgar o atual processodo capitalismo global?”

Há um descompasso intrínseco entre a percepção da singulari-dade dos novos enfrentamentos políticos e sociais, que a questão dopatrimônio e da memória sucita, e uma demanda cada vez mais ávidapor respostas utilitárias e não-reflexivas. Chamaria de ‘síndrome fóbica’,contra o ‘tempo da reflexão’, essa resistência dura em se refletir comprofundidade os processos que estão transtornando os quadros dereferência tradicionais da ética e da política na atualidade. As novasdinâmicas dos enfrentamentos culturais e políticos do presente, queexigem uma reflexão acurada e sensível as especificidades dessas no-vas configurações, se debate com a demanda por simplificações utili-tárias e instrumentais cada vez mais agudas.

Contudo, é certo que a atualidade nos lança em um mundo admi-ravelmente novo, para o qual não temos respostas prontas, pois o fatodestes novos enfrentamentos não terem antecedentes na história huma-na, não é possível encontrar na nossa ‘caixa de utilidades e ferramentastradicionais e clássicas’, isto é canônicas, respostas para esses novosproblemas. Como sugere C. Geertz, cabe então trabalhar com as ‘pergun-tas’ adequadas: “Si no conoces la respuesta, discute la pregunta”6.

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A ciência é invocada a dar respostas rápidas e técnicas paraproblemas que mal começam a delinear-se – sabemos que elaborar umainquieteção, ou problematização, isto é, conseguir elaborar um problemacientífico, já é um passo importante na resolução do problema. Portanto,nas dinâmicas do patrimônio e da memória na atualidade, o que pareceser urgente é que talvez seja mais importante preparar nossas mentespara novas exigências da atualidade. Sabemos, desde já, que o momentoé de ‘refletir e pensar’ e de saber construir os problemas verdadeiramentecruciais, relacionados a conservação, preservação e promoção dos acer-vos naturais e culturais em risco de desaparecimento. Esse é um pontoimportante, o tempo da reflexão e da elaboração de novos quadros dereferência políticos e éticos tornou-se essencial para que possamos daros passos menos dúbios nesses novos domínios. Talvez neste II Fórumpossamos vislumbrar a criação de um Laboratório, ou Observatório, daspolíticas do Patrimônio Cultural na atualidade, que possa nos oferecercondições de ir além das demandas por Oficinas e Mini-Cursos, excessi-vamente repetitivos, multiplicadores e facilitadores de praticas a-críticassem profundidade e sem consciência reflexiva apurada.

A tecno-ciência e as sócio-técnicas têm oferecido respostas pon-tuais e provisórias, como frutos de uma demanda açodada, que leva aosolapamento das verdadeiras questões epistemológicas de fundo. Pois,é preciso saber esquadrinhar as linhas de força dos atuais e novosenfrentamentos civilizacionais que estão na cena preservacionista. Tantona área da natureza quanto na área da cultura, assistimos aos novosinvestimentos avassaladores do capital, que tem dado saltos vertigino-sos, em poucas décadas. Da referida ‘virada cultural’, passamos rapida-mente para a ‘virada cibernética’ – e a biotecnologia, que inaugura empassos largos a ‘engenharia genética’, tem servido de modelo para asnovas ‘engenharias culturais’ em processo de difusão. Não é a toa queouvimos, com cada vez mais freqüência, terminologias análogas nessesdois domínios da natureza. Homologias analisadas num artigo recenteque escrevi e que trata especificamente do que designo de ‘simultanei-dades epistemológicas’ que parecem estar ocorrendo nos domínios danatureza e da cultura. Trata-se do texto Patrimônios Bioculturais naHipermodernidade: a crise dos critérios de autenticidade (Corrêa, 2007).

3. ‘ENCRUZILHADAS DO LABIRINTO’ DO PATRIMÔNIOE DA MEMÓRIA

Após seguirmos esse trajeto elíptico pelo pensamento críticoacerca dos processos de transformação recentes do imaginário socialcontemporâneo, podemos retomar a metáfora do ‘labirinto’ e reintroduzira reflexão no eixo da argumentação apresentada por Castoriadis7.

Parece agora que podemos fazer com mais propriedade a analo-gia com o que designei inicialmente de ‘Complexo de Dédalo’ – quesimbolizaria esse processo de uma crescente demanda por uma sócio-técnica do patrimônio histórico e cultural.

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Vejamos o significado da metáfora do Labirinto, ligado ao perso-nagem mítico Dédalo: “Dédalo, na mitologia grega antiga, elabora osaspectos mais técnicos, simbolizando a ‘engenhosidade’. Tanto constróio labirinto, onde o homem se perde, quanto as asas artificiais de Ícaro,que contribuem para a escapada e o vôo, e provocam, finalmente, aperda. Construtor do labirinto, símbolo do subconsciente, ele represen-taria muito bem, em estilo moderno, o tecnocrata abusivo, do”:

(...) Intelecto pervertido, de pensamento cego pelo afeto, que, perdendoa lucidez, faz-se imaginação exaltada e fica prisioneiro da sua própriaconstrução, o subconsciente (DIEL, 1966, p. 47).

Mas, a construção pode ser, também, consciente, e elevar-sesobre as asas da ambição, a qual, uma vez desmesurada, leva à ca-tástrofe – no nosso caso, ‘a museificação e petrificação dos CentrosUrbanos Antigos’8.

O personagem lendário de Dédalo é o símbolo do tecnocrata, doaprendiz de feiticeiro fantasiado de engenheiro, que não conhece oslimites do seu poder, se bem que seja representativo da inteligência prá-tica e da habilidade de execução e o tipo do artista universal, sucessiva-mente arquiteto, escultor, inventor de meios mecânicos. Com as está-tuas animadas que lhe foram atribuídas, ele faz lembrar Leonardo da Vincie seus automata. Mas, Dédalo não teve mais sorte do que Leonardo comos diferentes príncipes a que serviu (Chevalier, 1991, p. 327).

Esse parece ser o ‘complexo arquitetural’ que hoje domina acena da cultura – a engenhosidade técnica a serviço do capital quepretende investir e lucrar com aquilo que, até então, se consideravaintocável e carregado de uma aura autêntica e romântica, e que seacreditava até a pouco tempo que não despertaria jamais a ganânciados mercadores e capitalistas de plantão.

Todavia, o significado da palavra ‘labirinto’ não é unívoco,apresenta sentidos aparentemente paradoxais. Comumente se consi-dera uma “construção arquitetônica, sem finalidade aparente, de es-trutura complicada e da qual, uma vez em seu interior, é impossível oumuito difícil encontrar a saída” (Cirlot, 1984, p. 329). Dessa forma, seconfigura um labirinto como algo extremamente complexo, no qual de-vemos saber caminhar com lucidez.

É sabido que a “origem do labirinto é o palácio cretense deMinos, onde estava encerrado o Minotauro e de onde Teseu só conse-guiu sair com a ajuda do fio de Ariadne”. Percebemos ai que se conser-vam, pois a “complicação de seu plano [arquitetônico] e a dificuldadede seu percurso” (Chevalier, 1991, p. 530).

Destarte, o labirinto atravessa o tempo como um desafio à ima-ginação e ao pensamento. Sua imagem arquitetônica nos atravessadesde a mitologia Grega, até a contemporaneidade tardia. Desde olabirinto de Creta, construído por Dédalo, para encerrar o Minotauro –criatura metade touro, metade homem – numa arquitetura repleta deencruzilhadas e dificuldades; vivemos o jogo fascinante de suas varia-ções caleidoscópicas na atualidade vertiginosa. Funda-se, então, como

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um arquétipo trans-histórico a noção do labirinto como uma constru-ção tortuosa que se destina a desorientar os indivíduos que se atre-vem a desafiá-lo, aceitando “perder-se nas galerias que cavamos,andando em círculos, ...até que essa rotação inexplicavelmente abrafendas por onde se possa passar”9.

“Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; suaarquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim” (Borges,1998, v. 1, p. 598).

Mas, se o labirinto é lugar do perder-se nas suas encruzilhadas,é também lugar próprio de exploração, de investigação e de pesquisa.A sua imagem e representação é mais mental do que arquitetônica.Por isso, parece fecundo nos associarmos aos que pensam no labirintocomo uma ‘metáfora do conhecimento’. Explorar, investigar e pesquisaras bifurcações, as encruzilhadas e os caminhos tortuosos dessa metá-fora torna-se simultaneamente um convite para a investigação e umdesafio para a criação de possíveis saídas.

A metáfora do ‘labirinto’ parece encaixar-se como uma luva nocontexto cultural que estamos analisando. Com Castoriadis encontra-mos uma refinada e sofisticada reflexão sobre a ‘ascensão da insignifi-cância’ numa ‘sociedade à deriva’, num ‘mundo fragmentado’ que pre-tende, sob múltiplos avatares do conformismo triunfante, permanecerfossilizado, e se eternizando através da estética fetichizada pela‘turistificação’ de todos os bens culturais; criando ‘parques temáticos’em que se enclausura o passado como mercadoria fetichizada. A me-táfora do labirinto dá sentido a essa experiência como ‘perda nummundo que é equivalente ao caos’ (Cirlot, 1984, p. 330). As ‘encruzi-lhadas’ desse ‘labirinto’ construído pelos arquitetos e engenheiros, osnovos ‘dédalos’ da engenhosidade tecnocrata contemporânea, mere-cem uma análise crítica rigorosa e contextualizadora, que possa servirde resistência para o exercício de uma ‘política da paisagem’ que res-peite a polifonia da cidade e garanta a voz e a expressão democráticadas memórias sociais marginalizadas nesse contexto de intensificação,sem precedentes, da ‘gentrificação’ globalizada10.

Desafortunadamente, a referida ‘gentrificação’, associada a‘turistificação’, tenderá a se acelerar nestes próximos anos, com oanúncio recente da realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014,em solo brasileiro. Esse evento incrementará ainda mais a voracidadedos agentes públicos que irão reproduzir ad infinitun a fórmula dailusão, já decifrada mais acima, qual seja: turismo igual a mais desen-volvimento. Axioma questionável e altamente perverso.

Para não alongar-me nessas reflexões, em respeito ao temponecessário para o debate, lembro, a título de desfecho, um pensamen-to de C. Castotiadis:

Pensar é entrar no labirinto, mais precisamente é fazer existir e aparecerum labirinto, quando se poderia ter ficado estendido entre as flores, aolhar o céu (1987, p. 252).

Alexandre Fernandes Corrêa

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Notas:1 Noção utilizada por MacCannel e referida por Silvana Araújo no texto Artifícioe Autenticidade (Banducci Jr,, 2001).2 Este artigo poderia ter ainda um outro subtítulo: “A Nostalgia dos Zumbis Pós-Modernos”. Reflexos de um cenário civilizacional caracterizado pelo filósofoSlavoj Zizek (1996), que afirmou: “nos arrastamos como zumbis pós-modernos”. Esse traço também é descrito por Gilles Lipovetsky, na obra A Erado Vazio (1983). Mas, encontramos também uma excelente descrição dessequadro societário contemporâneo em Georges Balandier, na obra A Desordem:o elogio do movimento (1997).3 Termo utilizado no sentido empregado por Cláudio Jorge Moura de Castilho(1999): “O Uso do Turismo na Formação de Representações Sócio Espaciais doDesenvolvimento em Recife/PE”.4 Ver A Teatralização do Poder e A Encenação do Popular de Nestor Canclini, naobra Culturas Hibridas (2003).5 Usado como paródia ao termo forjado por Patrice Pavis: etnocenologia: “oestudo, nas diferentes culturas, das práticas e dos comportamentos humanosespetaculares e organizados” (PAVIS, 2003, p. 272).6 Nesse particular, merece dispor a lembrança as palavras sutis de Merleau-Ponty: “La vida personal, la expressión, el conocimiento y la historia avanzanoblicuamente, y no directamente, hacia fines o hacia conceptos. Lo que sebusca demasiado deliberadamente, no se consigue”.7 Em Castoriades, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto, vol. I. Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1987; temos uma análise, a partir do conceito de labirinto,de toda tomada de consciência social. Ver também, Rosenstiehl, P. “Labirinto”;in: Enciclopédia Einaudi, v.13, Lógica Combinatória. Imprensa Nacional, Casa daMoeda, 1988a., pp. 228-46.8 Sobre este ponto ver a crítica de Henri-Pierre Jeudy, elaborada desde o livroMemórias do Social (1990), até a obra mais recente Espelho das Cidades(2005), em que faz uma contundente crítica da estética urbana contemporânea.9 Castoriadis, As Encruzilhadas do Labirinto, (vol.1). Paz e Terra, 1987.10 Como exemplo gritante da dificuldade dos atuais especialistas do patrimônio, osnovos Dédalos tecnocratas da contemporaneidade, em compreender as dinâmicasdo patrimônio e da memória está na questão da cidadania da acessibilidade dosportadores de necessidades especiais aos Centros Urbanos Antigos. Como estessítios-parques foram tombados na segunda metade do século XX, foramcongelados sem que se possa vislumbrar o direito de acesso dos que não podemse locomover em ruas com paralelepípedos e escadarias íngremes. Esquecem-seestes tecnocratas daquilo que Paul Ricoeur chamava a atenção, o ‘passado tinhaum futuro’ (Morin, 2001, p. 369-378). É preciso que o patrimônio seja efetivamentede todos e não dos que se apropriam dele ‘primeiro’.

Referências:BANDUCCI Jr. (Org.) Turismo e identidade local: uma visãoantropológica. Campinas: Papirus, 2001.BALANDIER, Georges. A desordem: o elogio do movimento. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil. 1997BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do sociale o surgimento das massas. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994

A nostalgia pós-moderna

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BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges. 1. ed. SãoPaulo: Globo, 1998. 3 v.CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2003CASTORIADIS, C. As Encruzilhadas do Labirinto Vol. I. Rio de Janeiro:Paz e Terra. 1987._______. As Encruzilhadas do Labirinto Vol. II - Os domínios do Homem.Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988._______. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz eTerra. 1991_______. As Encruzilhadas do Labirinto Vol. III - O mundo fragmentado.Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992._______. As Encruzilhadas do Labirinto Vol. IV. Rio de Janeiro: Paz eTerra. 2002CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio.1991CORRÊA, Alexandre. “Patrimônios Bioculturais na Hipermodernidade: acrise dos critérios de autenticidade”. 2007. http://www.pasosonline.org/Publicados/5207/PS080207.pdfDIEL, Paul. Le symbolisme dans la mythologie grecque. Paris: Payot,1966.LABIRINTO. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi, vol. 13, Lógica-Combinatória.Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988. p. 247-273.LEIS, H. R. O labirinto: ensaios sobre ambientalismo e globalização.São Paulo: Gaia / Blumenau: Fundação Universidade de Blumenau. 171p. 1996.LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural I. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1975.LIMITE: A ÉTICA E O DEBATE JURÍDICO SOBRE O ACESSO E USO DOGENOMA HUMANO/ Org. Fernanda Carneiro Rio de Janeiro: Dezembro,2000.LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaio sobre o individualismocontemporâneo. Lisboa: Ed. Relógio D’Água. 1983MORIN, Edgar. Religação dos saberes. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva,2003.SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções: os caminhosda biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005.SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impactoda sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: 34,2003.ZIZEK, Slavoj (org). Um Mapa da Ideologia. Rio. de Janeiro: Ed.Contraponto, 1996

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O ESTATUTO DA IGUALDADERACIAL E AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Cotas de negros para a universi-

dade: a “quem” e a “quê”se destinam?*

Cícero Hermes Batista Lobo**Sergio Costa***

Juarez Soares Diniz****

RESUMO: O projeto de Lei:”Estatuto da Igualdade Racial” aprovado no Senadoem novembro de 2005, atualmente tramita na Câmara dos Deputados Federais etem sido nesta jornada parlamentar, alvo de manifestações contra e a favor à suaaprovação. Tal polemica traduz a complexidade, que é em meio a uma sociedadelevada a crer que vive sob a convivência da democracia racial. O estatuto prevêa criação de cotas para negros nas universidades públicas, encontrando fortesargumentos na realidade histórica do preconceito racial. Em contrapartida, asações afirmativas encontram sérios empecilhos, ao tentar delimitar quem é oudeixa de ser negro na sociedade brasileira. Inevitavelmente elas fomentam odebate sobre o campo das injustiças sociais, historicamente reproduzidas peloEstado Brasileiro.PALAVRAS-CHAVE: Ações Afirmativas. Cotas. Desigualdade étnico racial.Desigualdade socioeconômica. Critérios. Raças e classe.

ABSTRACT: The Law project “State of racial equality” approved in November2005, actually, moves camera of members in federal and has been in this dayparliamentary, target in manifesto against and favor to your approve, this polemicaltraduced the complexity, what is on means to a society leaded to believe that liveunder a convivial democracy racial. Prevue the creating the statute of quota forrules on public universities, fortes arguments to meet in reality historical processof racial. Departure in against, the actions affirmatives are serious barriers, thewho’s try delimit let to be black or in brazilian society. Impossible to prevent, theyfomenter the debate for the field of social injustices, historically state Brazilian.Keywords: Affirmative action. Quotas. Racial inequality ethnic. Socioeconomicinequality. Criteria. Race and class.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“O estatuto da igualdade racial e as ações afirmativas: cotas de negros para auniversidade ‘a quem e a que se destinam?’’”.** Especialista em Docência do Ensino Superior. Prof. Substituto do Departamentode Geociências (UFMA)*** Especialista em Docência do Ensino Superior.**** Doutor em Políticas Públicas. Prof. Adjunto do Departamento de Geociências(UFMA). Coordenador Cientifico do Núcleo de Estudos Avançados em GeografiaHumana (NEAGH/DEGEO/UFMA).

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1. INTRODUÇÃO

Historicamente, verifica-se no Brasil a existência de duas cida-danias: a cidadania da população branca, com expectativa de vida de70 anos e com um índice de desenvolvimento humano que colocaria opaís entre as cinqüenta nações mais desenvolvidas, e a cidadania dapopulação negra, com expectativa de vida inferior a 64 anos, índice dedesenvolvimento igual ao de países como Gana e com ganhos líquidoscinco vezes menores ao da população de etnia branca.

Percebe-se que o abismo entre brancos e negros é marcado nãosó pelas diferenças de cor da pele ou de origem étnica, mas pelasdistâncias socioeconômicas entre os diferentes grupos e que, nemmesmo, a propagada ideologia da democracia racial conseguiu escon-der esta realidade.

Para tanto, mesmo creditando avanços aos esforços, almejandotanto a melhoria de vida da população negra quanto o empenho dasociedade na denúncia e superação da desigualdade étnico-racial esocioeconômica brasileira, as conquistas neste campo resultam maisda atuação de comunidades e de instituições particulares e não go-vernamentais do que de políticas de não-discriminação ativa por partedo poder público.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-ra e Africana (2005, p. 11), definem Ações Afirmativas para negros,como políticas de reparações, reconhecimento e valorização voltadospara a sua história.

As referidas ações devem oferecer garantias a esta populaçãovisando o acesso, permanência e sucesso no histórico escolar de cadaindivíduo em questão, além da aquisição de competências e conheci-mentos tidos como indispensáveis para a continuidade dos estudos,resguardando estes atuarem como cidadãos responsáveis e partici-pantes, além de desempenharem com qualificação uma profissão.

Em contrapartida, reconhecimento implica justiça e igualdadede direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valoriza-ção da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros gruposque compõem a sociedade brasileira.

O sistema de cotas para negros, nas universidades públicas, cla-ma pela voz dos que o defendem e o combatem, ambos munidos defundamentadas razões. Os primeiros argumentam, almejando garantiade melhores chances, visando a inserção de negros tanto no poderpúblico quanto nos mercado e campo de trabalhos; enquanto o segundogrupo denuncia a inconstitucionalidade da política afirmativa e a defici-ente atuação do Estado na promoção da melhoria do ensino público.

Neste território de debates e conflitos, questões como desi-gualdade étnico-racial, socioeconômica e estrutural, bem como a ado-ção de critérios de pertencimento racial e de classe vem à tona.

O referido artigo, diante de complexa realidade, antes de seposicionar com posturas a favor ou contra o sistema de cotas, preo-

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cupa-se em identificar as razões do passado e do presente histórico,que implicam no atual quadro de conflito relacionando tais fatos com acarga de simbolismo e representatividade inerente nas relações sociaisbrasileiras no trato com as questões materiais, indispensáveis a dignaqualidade de vida.

As projeções advindas destes levantamentos históricos e rela-ções, impetradas entre si, em suma, suscitou uma série de verifica-ções baseadas sob o critério da coerência dos argumentos tanto con-tra quanto a favor em relação a importância concreta das políticas decotas para negros, o que, inevitavelmente, levou-se a consideraçõesquanto as conseqüências das ações afirmativas para o futuro da soci-edade brasileira.

Embora o tema se constitua em objeto de estudo nas maisdiversificadas áreas de pesquisa e debates do atual cenário brasileiro,as informações e estudos ainda carecem de amadurecimento discursivoe metodológico no que diz respeito à pesquisa científica.

O material existente, a maioria provido de sites da internet re-quer um cuidadoso trato de escolha devido ao fato de que este seconstitui em redações extremamente tendenciosas. Ressalta-se, po-rém, que, apesar da dificuldade na coleta de dados, o grupo de pes-quisa, de característica multi e transdiciplinar, inevitavelmente, muniu-se da literatura prévia adquirida na prática em distintas áreas.

A fase de levantamento, análise e relações entre fatos históri-cos, impreterivelmente, caminhou ao lado da organização das idéias apartir de dados e postos à prova em grupo de estudo e seminários.Tais exposições, sistematizadas, seguidas de debates visando a orga-nização de pontos em comum e divergentes entre o grupo, gerou aestrutura do artigo que aqui se apresenta.

Por fim, destaca-se que as limitações do artigo margeiam oprocesso de critérios adotados e suas implicâncias étnicas esocioeconômicas no bojo das classificações visando selecionar os be-neficiados pelo sistema de cotas, tomando por base as experiênciasda UERJ e UNB.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Devido a um passado brasileiro de escravidão, o que levou a popu-lação de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias,constatou-se a extrema exclusão de jovens negros das universidadesbrasileiras. Em decorrência disso, houve uma necessidade de políticassociais de reconhecimento aos que foram prejudicados e,consequentemente, de reparação para com os afrodescendentes abran-gendo a exclusão socioeconômica, o preconceito e discriminação raciais.

Este cenário impulsionou a atual luta nacional pelas cotas paraafrodescendentes, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pelaVida, em 20 de novembro de 1995, encampada por ampla frente desolidariedade entre acadêmicos negros e brancos, cursinhos pré-ves-

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tibular para afrodescendentes pobres e movimentos negros da socie-dade civil, além de outros setores solidários, como jornalistas, líderesreligiosos e referências políticas.

A política brasileira de ações afirmativas nasceu deste proces-so histórico. Baseada em dados estatísticos, tais como as projeçõesdo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada) ao enfatizar“[...] que serão necessários 30 anos para que a população negraalcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhumapolítica específica de promoção da igualdade racial na educação sejaadotada” (Manifesto a favor do Estatuto da desigualdade Racial e daLei de Cotas, jul. 2006).

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNDU),ao divulgar, no ano de 2004, o Atlas Racial do Brasil, apresentou dadosrevelando que os negros são sessenta e cinco por cento dos pobres esetenta por cento da população indigente.

[...] o projeto de lei que institui o Estatuto da Igualdade Racial traz umasérie de ações afirmativas, com o objetivo de inserir a população negrana sociedade [...] trata de políticas públicas de combate ao racismo esuas manifestações: o preconceito racial e a descriminação racial [...]são propostas para a educação, saúde, trabalho, mídia, terra, moradia ecotas. (Jesus, 2005, p.01)

A lei de cotas para negros no ensino superior, antes de tudo,reivindica do poder público, uma ação de caráter imediato e por tempodeterminado, diante da imobilização do Estado para com a grandemaioria dos autodeclarados negros, em território brasileiro, o que setraduz em torno de 45 por cento – cinco por cento pretos e quarentapor cento pardos - segundo dados do último censo de IBGE. Destepercentual, segundo Jesus (idem), “o número de negros nas universi-dades é de apenas dois por cento”.

3. IMPORTÂNCIA DO DEBATE

Ao remeter para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro -ALERJ - em caráter de urgência, o Projeto de Lei 1653/2000, tratandoda medida de reserva de vagas pelas universidades estaduais em tor-no de cinqüenta por cento para estudantes das escolas públicas da-quele Estado (UERJ, 2006, p. 01), o então governo implantou muitasinterrogações na comunidade acadêmica carioca. Consequentementea UERJ, sob pedido da Comissão de Educação da ALERJ, defrontou-secom a função de elaborar um parecer sobre o projeto, o que, emdecorrência das referidas dúvidas, como os métodos de acesso àsuniversidades, os processos de exclusão e a validade do combatedesta com a reserva de vagas, bem como a necessidade de implanta-ção de políticas públicas que garantam o acesso e a permanência dosestudantes de escolas públicas no ensino superior, originou naquelemesmo mês - agosto de 2000 – o seminário “Democratização, acessode Ensino à Universidade Pública”.

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As políticas de ações afirmativas têm uma básica característica.Em torno delas há uma série de opiniões advindas das mais diversasidentidades físicas e jurídicas que se agrupam nos que são contra, afavor, indecisos e os que não dão importância. Baseado nesta premis-sa que cedo se formulou no Estado do Rio de Janeiro, um dos pontoscentrais do parecer ressaltou a importância do projeto ser discutidopela sociedade antes de ser apresentado a ALERJ.

O tema passou a integrar intensamente a pauta das questõesnacionais, assim que o Projeto de Lei 3198/00, do então senador PauloPaim – PT/RS – começou a tramitar no Congresso Nacional, instituindono Capítulo VI o “Sistema de Cotas” no bojo das ações afirmativasvisando garantir maior acesso dos negros no ensino superior, aos car-gos públicos, empresas privadas e candidaturas por partidos políticos(Brasil, 2000). Os debates, mesmo que timidamente e com forte incli-nação da mídia para os que são contra, envolvem professores dediversas áreas, alunos, instituições de ensino por todo o país, socie-dade civil, ONG’s e partidos políticos.

Para tanto, reconhece-se que o lugar central dos debates é auniversidade. Levando-se em conta que esta representa um espaçode reprodução e legitimação da ascensão social das elites no Brasil e,consequentemente, tornando-se território de contradições, o espaçouniversitário cumpre sua função, ao *se transformar em importantevia no empenho pela democratização da sociedade brasileira.

Nesse espaço, os debates possibilitam o fomento aos mais di-versos posicionamentos sobre o tema. Maggie e Fry (2004) assim semanifestam, em relação ao Rio de Janeiro:

[...] a repentina adoção de cotas como política de Estado nos surpreendeu,e muito [...] não imaginávamos que as cotas seriam virtualmentedecretadas, e mesmo se tivéssemos imaginado que isso pudesse acontecer,provavelmente não teríamos antecipado o extraordinário poder dasdecisões “de cima para baixo” nesse país que queríamos democrático[...] (p. 68)[...] Não houve debate público nem entre os representantes dos eleitoresantes dos decretos ministeriais e da promulgação da lei de cotas do Riode janeiro [...] (p.69).

Ainda que se identifiquem diferentes pareceres quanto à adoção demedidas de redução das desigualdades estruturais no acesso aos cursosdas universidades, a intensificação dos debates possibilita a formação deopiniões diante de escorregadio e pouco conhecido campo de deliberaçõesque é o Estatuto da Igualdade Racial, mais especificamente o Sistema deCotas para negros.

O escritor Abdias do Nascimento em artigo à seção “Opinião” daFolha de São Paulo (jul. 2006), e, um dos favoráveis ao sistema decotas afirma que os dois manifestos1, um contra e outro a favor doEstatuto, entregues na Câmara dos Deputados revelam que “há vidainteligente dos dois lados do debate” e que este último “em uma soci-edade que antes se refugia nas fantasias da ‘democracia racial’, é omelhor produto da ação afirmativa até o momento”.

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4. QUEM SÃO OS NEGROS BENEFICIADOS? O QUESÃO COTAS?

O critério básico adotado pela maioria das universidades públi-cas, para garantir o direito de negros a concorrer em vestibulares nosistema de cotas, baseia-se na autodeclaração.

A diretriz, acima citada, justifica-se na premissa de que emrelação a pertencimento étnico racial, o Estado e suas instituições, nocaso as universidades não devem impor, sejam respaldados pela ciên-cia ou políticas educacionais via governantes e gestores públicos, asprocedências ancestrais da população brasileira. Em suma, a questãoalém de implicar origens suscita também consciência política.

Mas é aqui que as generalizações do sistema de cotas emperramquando saltam do projeto para execução. A dificuldade maior naimplementação dos critérios de reservas de vagas baseia-se no pres-suposto de que a cor não é critério suficiente para a identificação deuma raça.

De acordo com Pena e Bortoloni (2006, p. 02), para a genéticamoderna “raças humanas não existem do ponto de vista biológico”.Apontam que, na sociedade brasileira, impera uma desigualdadeconjuntural. Em outras palavras, afirmam que tais desigualdades soci-ais se manifestam por meio da exclusão econômica de determinadosgrupos, entre eles o dos negros. Ressaltam que, aproximadamente,oitenta e seis por cento da população apresenta mais de dez porcento de contribuição africana em seu genoma.

Quais seriam os parâmetros de identificação da desigualdadeconjuntural? Maggie e Fry (idem, p.73) acirram a discussão entre de-fensores e contrários ao sistema de cotas, ressaltando o problema daprecipitação em se confundir exclusão social com racismo. Os autoresexpõem que existem duas correntes básicas para a explicação da de-sigualdade étnico-racial:

[...] Há quem atribua a desigualdade entre “negros” e “brancos” ao passadoescravista e às poucas oportunidades educacionais de qualidade oferecidaspara os pobres em geral, entre os quais estão tantos “negros”. Quem seopõe a essa opinião diz que é o preconceito estabelecido após a aboliçãoque é responsável pela reprodução das desigualdades entre “negros” e“brancos” [...].

Contrária a esta dualidade, Jesus (idem, p.05) observa que adiscriminação deve ter um tratamento diferenciado. Encontra-se dian-te de duas fontes de desigualdades: a exploração capitalista e a dis-criminação racial e que não se supera uma em detrimento da outra,mas que a desigualdade advinda do racismo tem relativa autonomia emrelação à exploração de classe e que “muito embora brancos pobrespossam sofrer violência policial, o negro ou a negra pobre sofrem maiorperseguição da polícia, maus-tratos em lojas, discriminação no traba-lho e na escola bem como xingamentos racistas [...] o racismo atingenegros/as pobres e os que se julgam em outra classe social”.

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O documento Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educaçãodas Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (idem, p 15) ressalta que é importante tomar-seconhecimento do que envolve o processo de construção da identidadenegra no país, um caminho marcado pela discriminação que englobatanto a desvalorização da cultura de matriz africana quanto dos as-pectos herdados pelos descendentes de africanos. Lembram que otermo “negro” começou a ser usado pelos senhores para designarpejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavraainda perdura, mas que coube ao Movimento Negro ressignificar talterminologia, dando-lhe um sentido político e positivo.

De acordo com o documento em questão, termos como “raça” e“étnico-racial”, antes de serem considerados classificações humanas,melhor se encaixam como categorias de discursos, pois denunciamconflitos forjados, historicamente, nas tensas relações entre brancose negros, “muitas vezes simuladas como harmoniosas”. O documentoaponta, ainda, que esta “harmonia” inter-racial se representa na for-ma do mito da democracia racial difundindo “[...] a crença de que, seos negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é porfalta de competência ou de interesse [...] (idem, p.12).

É notório observar que o sistema de cotas suscita aquilo queMaggie e Fry (idem, p. 70), denominaram de “discriminação positiva”.Apesar dos problemas que esta ação afirmativa possa vir a causar, taiscomo a exclusão de brancos pobres e quiçá a de negros em pródigasituação socioeconômica, a adesão favorável a esta política é grande.

Evidencia-se desta forma, um evento crítico estabelecido entreas desigualdades estruturais e as desigualdades sociais.

A primeira está a cargo de resoluções do Estado, previstas naConstituição brasileira e, que, de acordo com os que são contrários aosistema de cotas, este se limita a compensá-las através de açõesafirmativas.

A segunda se revela no agravante quadro de desigualdades ét-nico-racial e socioeconômica, requerendo, segundo os que são a fa-vor, a intervenção das referidas ações.

Neste sentido, a defesa da democracia, baseada em valores como aigualdade, inclusão e justiça, deveria referir-se às formas concretas deinclusão [...] em algumas circunstâncias, igualdade significa tratamentodiferenciado; em outras, significa tratamento igual [...] em nome do méritoindividual ou da livre competição entre iguais em abstrato, alguns indivíduose grupos são mantidos fora dos espaços que lhes permitiram ter umamaior influência sobre os rumos da sociedade [...] (Biroli, s/d,)

A questão das cotas sociais e raciais - escolher talvez sejaredundante, o contrário pode se evidenciar negligência – traduz-se eminstrumentos capazes de dar acesso à posições de poder aos estru-turalmente excluídos. Implica na participação do processo de transfor-mação das desigualdades estruturais, ou o seu contrário, cooptandoos excluídos beneficiados como aliados na preservação hegemônica dopoder vigente.

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5. CRITÉRIOS: os casos da UERJ e UNB

Percebe-se o quanto é difícil analisar o Sistema de Cotas semproblematizar identidades sociais com recorte racial. O referido siste-ma em essência é discriminatório porque se sustenta numa política dereparação histórica.

Baseado neste enfoque, a UERJ, primeira universidade brasileiraa adotar o sistema de cotas para estudantes de escola pública emtodo o território fluminense, ao optar também pela reserva de vagaspara negros, instituiu, em setembro de 2003, uma política afirmativabeneficiando “alunos carentes”. Evitou-se desta forma, que alunos deescolas particulares migrassem para o sistema público no terceiro anodo ensino médio o que originaria, como conseqüência, uma situação desubtração nas chances de concorrências para os excluídos sócio-eco-nomicamente do mercado de trabalho com formação superior.

Quanto aos negros, além do critério da comprovação de carên-cia, a UERJ adotou o da autodeclaração de pertencimento racial porparte de todos os estudantes beneficiados por esta ação afirmativa(UERJ, 2006, p. 02).

Ao reconhecer o problema pela ótica da exclusão socioeconômica,que envolve negros, brancos e índios, bem como deficiências no ensi-no público da educação básica, a UERJ destinou quarenta e cinco porcento de seu total de vagas para o sistema de cotas, sendo vinte porcento para estudantes de escola pública, vinte por cento para negrose cinco por cento para deficientes e índios. Para evitar fraudes, ocandidato só poderá se autodeclarar negro, sendo que a cor pardaestá excluída da classificação.

A UNB, através do Plano de Metas para Integração Social, Étni-ca e Racial na Universidade, tornou-se a primeira universidade federala implantar a política de cotas para negros. Visando frear a ação dos,que a mesma denominou, “burladores raciais” (Maio e Santos, 2004),optou por polêmica via, despertando severas críticas em contrário,principalmente de antropólogos afeitos a negação do uso da antropo-logia – diga-se ciência - como justificativa para uma ação que deveser tratada e avaliada no plano político.

Discorda-se de Maio e Santos (idem), quando estes afirmam quea UNB tange importância secundária a autodeclaração. Segundo Fry(apud Maio e Santos, 2004), em sua crítica contrária ao sistema decotas, o caminho da autoproclamação por si só é obsoleto como crité-rio, requerendo para sua eficiência fronteiras étnico-sócio-raciais com-plementares. Em contrapartida, concorda-se com a crítica dos autores(idem) que, a UNB ao recorrer ao uso do sistema baseado nas análisesmorfológica – cor da pele, textura do cabelo, lábios grossos e formatodo nariz – e psicológica – tais como, engajamento político em movimen-tos negros e relações amorosas inter-étnicas -, muniu-se de práticasconhecidas em antropologia como “peritagem e pedagogia racial”. Taisações foram consideradas imprescindíveis para a intervenção eugênicado cenário social brasileiro em fins do século XIX e início do XX. Emoutras palavras, tal instituição, considerada referência no ensino supe-rior, adotou, movida pela ciência, paradigmas que a mesma condena.

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Adotar critérios visando classificações étnico-raciais no sistemade cotas requer definição a quem(?) esta política realmente devefavorecer. Neste caso, os beneficiados, não devem ser classificadosno que tange somente a definições étnicas, mas também de classe.Consequentemente, o sistema de cotas fomenta a discussão no quediz respeito aos problemas que envolvem a exclusão sócio-econômica,o preconceito étnico racial e as estratificações sociais, indicando quea política de ações afirmativas aqui em questão, ao que suscita levan-ta uma polêmica socialmente inconfessável: dentre os pobres, os ne-gros são os mais pobres.

6. A CONSTITUIÇÃO E AS AÇÕES AFIRMATIVAS

A discussão em torno da exclusão social e Ações Afirmativas nocontexto atual é resultado “III Reunião Mundial contra o Racismo,Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban,África do Sul”. Os representantes do Brasil, despertando para a reali-dade social de sua população, comprometeram-se formal e publica-mente com a erradicação da discriminação contra negros.

A emissão de opiniões diante de polêmico assunto é quaseimpossível, contrapõe interesses étnicos raciais e de classe e aindaenfoca atenção aos direitos individuais e coletivos prescritos consti-tucionalmente.

Tecnicamente, as cotas agridem o princípio da igualdade, se-gundo o 5º artigo da Constituição Federal, que diz “todos são iguaisperante a lei sem distinção de qualquer natureza”. Entretanto taispolíticas são amparadas pela mesma Carta que, no artigo 3º, “garantea igualdade de oportunidades para todos”. Em decorrência disso ascotas se constituem numa das ações que podem reparar um erro co-metido para com aqueles que descendem de negros africanos quevieram para o nosso país, a revelia, e que com o esforço de seutrabalho e elementos culturais contribuíram para a formação de nossahistória política e social.

Segundo pesquisas feitas pelo IBGE E IPEA, o cidadão negrobrasileiro encontra-se em condição desigual. Constata-se ainda que aquestão da discriminação racial - embora cada brasileiro venha afirmar“não ser racista” – tem sido a causa principal desta desigualdade, oque resulta em exclusão.

Nesse contexto, as políticas de ações afirmativas vêm sendopensadas, debatidas e implantadas em universidades brasileiras - comoa UNB e UERJ - no intuito de corrigir erros de um passado marcado pelainjustiça e crueldade.

Por outro lado, há, ainda, aqueles que vão de encontro com osistema de cotas para negros. No manifesto “contra” às referidas po-líticas (mai. 2006), intelectuais, artistas e líderes de movimento sebaseiam em idéias tais como “a nação brasileira passará a definir osdireitos das pessoas com base na tonalidade da pele”. E, ainda, queeste tipo de política poderá “semear um tipo de racismo e bloquear ocaminho para resolução real dos problemas de desigualdade”

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É importante ressaltar que de acordo com os que a defendem, apolítica de ações afirmativas não é a solução para corrigir a situaçãodo cidadão negro brasileiro, tanto que todos são unânimes em reco-nhecer que tais intervenções possuem caráter provisório, mas poderáser um dos inúmeros passos que o Brasil ministrará em direção a umapolítica de justiça, moral e respeito e equidade nas chances de colo-cação nos mercado e campo de trabalho.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política brasileira de ações afirmativas, dentre elas o Estatutoda Igualdade Racial e o Sistema de Cotas para negros nas universida-des, vêm deslocando a questão das implicâncias entre as desigualda-des étnico-racial e sócio econômica, do campo das discussões isola-das para o debate mais amplo em todo o território nacional.

Classificadas como “discriminação positiva”, as cotas refletemum processo histórico de denuncia contra o racismo étnico-racial so-frido pelos afrobrasileiros, mais especificamente os negros. Resultamde pressões que as organizações da sociedade civil vêm ministrandoao poder público, o que, em primazia, culminou com a legalização doracismo como crime inafiançável.

Porém, as penas previstas por lei não garantem a ascensãosocial dos negros aos cargos públicos, acesso e permanência nas uni-versidades e a preparação teórico-instrumental para a inserção nosmercado e campo de trabalhos. Ao contrário, o contingente defavelados, presidiários, indigentes, desempregados e sub-empregados,revela-se em sua maioria representados por negros.

Ressalta-se que, nesta análise interpretativa, não se ignora agigantesca parcela da população branca submetida a precárias condi-ções de vida. É aqui que o problema do racismo imbrica-se com o dadesigualdade sócio-econômica, desvendando que, entre os excluídos,os negros sofrem o processo da exclusão com mais contundência. Istonão implica em afirmar que, os afrodescendentes, com favorável situ-ação socioeconômica, estejam isentos do preconceito étnico-racial,assim como, de maneira geral, negros pobres e ricos não exerçampráticas racistas de forma contrária.

Os argumentos que justificam a miscigenação e a democraciaracial brasileiras, perdem força quando analisados sob o prisma daascensão socioeconômica. Nas classes média e alta, a miscigenaçãonão se mostra tão evidente. Quanto aos cargos públicos, a presençade negros no poder chega a ser legada para o campo do exótico e dodiferenciado, ou seja, não é normal. Estes contra-argumentos abalamos alicerces do mito da democracia racial, porque a atinge no seuprincipal ponto, o da igualdade dos direitos.

Em contrapartida, a implantação das ações afirmativas não ga-rante a mudança do quadro social acima traçado. O sistema capitalis-ta vigente possui duas principais características, fomenta a desigual-dade de direitos, a competição exacerbada e como conseqüência oindividualismo. Nesta ordem socioeconômica, tais ações não têm se

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posicionado com veemência, apenas postulam que, a garantia do acessoao poder e ao consumo, pode mudar os cenários de desigualdadeexpostos. Permanece a dúvida, em relação a questão da cooptaçãoideológica pelo sistema, ou seja, se as consciências de raça e classe,sustentam-se diante da ascensão social.

Quanto ao Estado, a indagação persiste, pois, as ações afirma-tivas, denunciam a ineficiência deste em relação a igualdade de direi-tos previstos na Constituição. Tal falha vem se intensificando, desde aprimeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, ao constatar-se queas Medidas Provisórias, nos últimos doze anos, atuam como instru-mento de governabilidade do Estado brasileiro. Em suma, isto revelaque a Constituição vem sofrendo negligências de toda ordem. Lembremo-nos do IPMF, que era MP e atualmente, sob o argumento da legalidadeconstitucional, imergiu no senso comum dos impostos a pagar.

O sistema de cotas para negros nas universidades públicas, temum tempo curto de sobrevida; aproximadamente dez anos. Oxalá as-sim seja estabelecido! De outra forma, não se pode negar que, estaação afirmativa, minimiza os gastos dos governos com educação pú-blica de qualidade, e ainda presta-se como instrumento de divulgaçãopolítica de partidos e candidatos nas eleições. Num país em que medi-das provisórias adquirem caráter permanente, tais ações podem seguirna mesma ordem administrativa. Paira outra dúvida.

Em relação aos debates, a população como um todo, timida-mente opina quanto a questão das cotas para negros. A causa maiorda abstinência é a falta de informação, aliada a manipulação dos gran-des veiculadores de mídia, notadamente afeitos aos que são contra,sob o citado argumento da miscigenação e democracia raciais.

Os critérios de seleção para as cotas, fomentam à populaçãorefletir sobre origens e consciência política no que diz respeito a termi-nologia “negro”. O critério da autoproclamação segue por duas vias,uma que força o debate em torno da consciência negra – e que envol-ve negros e não negros -, ou seja, colocam em pauta nacional, astensas relações étnico-raciais, a diversidade cultural, bem como der-rubam o discurso ideológico do Estado brasileiro que propaga consti-tuir-se numa “única nação”. Consequentemente, as identidades e cons-ciências étnico-raciais brasileiras chamam atenção para “as diversasnações” que compõem nosso país.

Por outra via, este critério dá margens à quem não precisabeneficiar-se das cotas, tornando a autoproclamação insuficiente paratal, o que requer a adoção de parâmetros adicionais na questão racial,fatalmente implicando, de acordo com o estudo, na situaçãosocioeconômica dos candidatos. Fica a dúvida, se cabe ao Estado,oficialmente, impor quem deve ou não deve optar, nesta escorregadiaquestão de pertencimento racial.

No que diz respeito à universidade, em especial, a pública, com-pete-lhe provocar debates almejando consciente tomada de decisõespor parte de todos os interessados. É de seu papel elaborar propostas,pareceres e pesquisas que melhor conduzam o caminho na implantaçãodas cotas. Em contrapartida, outra dúvida permanece imersa nas dis-

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cussões em relação ao papel da universidade: Notadamente estruturadacurricularmente em referenciais eurocêntricos, a Universidade está abertaa adotar outras instâncias étnico-raciais de conhecimentos?

O Sistema de Cotas para negros nas universidades públicas, comoação afirmativa de caráter necessário e imediato, encontra pela frente,duas básicas questões a responder: A “quem” e a “quê” se destina.

Notas:1 Em maio de 2006 foi entregue aos deputados federais o “Manifesto contrárioao Estatuto da Desigualdade Racial e à Lei das Cotas”. Em junho deste mesmoano, como resposta ao documento anterior, os deputados receberam o“Manifesto a favor do Estatuto da Desigualdade Racial e da Lei de Cotas”. Emnovembro de 2005 o Estatuto foi aprovado pelo Senado.

Referências:A POLÍTICA DE COTAS E A EDUCAÇÃO. 13 de maio de 2005. Palestraproferida pela Professora Mestra Ilma de Fátima de Jesus na CâmaraMunicipal de São Luís por iniciativa do Vereador Batista Botelho.BRASIL. Projeto de Lei N° 3198, de 2000. Institui o Estatuto da Igualdadeem defesa dos que sofrem preconceito e discriminação em função desua raça e/ou cor, e dá outras providências. Poder Legislativo, Brasília,DF, 07 de junho de 2000.DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕESÉTNIO-RAIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA A CULTURA AFRO-BRASILERIAE AFRICANA. Ministério da Educação. Brasília, DF, junho de 2005.MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. A reserva de vagas para negros nasuniversidades brasileiras. Estudos Avançados. 18 (50), p. 67- 80, 2004.MANIFESTO CONTRÁRIO AO ESTATUTO DA DESIGUALDADE RACIAL E ÀLEI DAS COTAS. Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.MANIFESTO A FAVOR DO ESTATUTO DA DESIGUALDADE RACIAL E DALEI DE COTAS. Brasília, DF, 03 de julho de 2006.NASCIMENTO, Abdias. Ação afirmativa: o debate como vitória. Folhade São Paulo. São Paulo, 07 de julho de 2006. Opinião.UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. Apresenta informaçõessobre o processo de implantação do sistema de cotas e pesquisasquantitativas, almejando acompanhar o rendimento e o percentual depermanência dos alunos cotistas da universidade. Disponível em: http://www2.uerj.br. Acesso em: 16 de ago. de 2003.SCIELO. Sérgio D.J. Pena; Maria Cática Bortolini. Pode a genética definirquem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais açõesafirmativas?. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 19 dejul. de 2006.MAIO, Marco Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Política de cotas, os“olhos da sociedade” e os usos da antropologia: o caso do vestibularda Universidade de Brasília (UNB). In: XXVIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃOBRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS, Caxambu.Anais...Caxambu, MG: ANPOCS, out. 2004.BIROLI. Flávia. Cotas: afinal, do que é que se está falando? Doutoraem história pela UNICAMP, é Professora Adjunta do Instituto de CiênciaPolítica da UNB.

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UM OLHAR SOBRE MOÇAMBIQUE: apercepção da paisagem

na literatura africana.O romance Terra sonâmbula, de Mia

Couto*

Márcia Manir Miguel Feitosa**

Resumo: Aborda-se o processo de percepção da paisagem à luz do romanceTerra sonâmbula, do moçambicano Mia Couto, com ênfase sobre o espaçoda narrativa em que se desencadeiam as ações vividas pelos personagensnuma Moçambique arrasada pela guerra pós-independência.Palavras-chaves: Percepção. Paisagem. Moçambique. Tradição oral eescrita

Abstract: This work approaches the process of the landscape perceptionin order to develop the analysis of the novel Terra sonâmbula, by Mia Couto,with empahsys in the space of the narrative where the lived action aredeveloped by the characters, in Moçambique, destroyed by the pós-independence war.Keywords: Perception. Landscape. Moçambique. Oral and written tradition.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“Um olhar sobre Moçambique: a percepçãoda paisagem na literatura africana”** Profa. Dra. em Literatura Portuguesa pela USP e Profa. Associada Nível I doDepartamento de Letras da UFMA. Coordenadora do Projeto de Pesquisa (PIBIC –CNPq) “Literatura e paisagem: um estudo do romance moderno e contemporâneode língua portuguesa à luz da percepção ambiental”.

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1. INTRODUÇÃO

O conceito de paisagem está diretamente associado ao processode percepção, sendo escorregadio, na maioria das vezes; poético, emquase todas as vezes em que é empregado, sobretudo no campo dosestudos literários. Para alguns de seus teóricos, em que pese a ciênciageográfica, “paisagem” é um conceito em que reina a imprecisão e assimdeve continuar sendo; para outros, como Simon Shama, no livro Paisa-gem e memória, “antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagemé obra da mente.” (SHAMA, 1996, p. 17), configurando-se “nem sempre[em] ‘local de prazer’ – o cenário com função de sedativo, a topografiaarranjada de tal modo que regala os olhos.” (SHAMA, 1996, p.28)

A geógrafa Solange de Lima Guimarães, no artigo “Filigranas deuma paisagem: um estudo sobre a percepção de lugares de medo”,avança a análise desse conceito ao filiar o qualificativo “vivida” à idéiaentão tradicional de paisagem.

De acordo com a autora: “A paisagem vivida preserva e transmi-te, ao longo da história de vida de cada um de nós, os valores epercepções de nossos grupos culturais...” (GUIMARÃES, 2001, p. 03),constituindo um território de imagens que, mesmo fragmentadas, ser-vem de pólo de resistência no campo da memória e da evocação daslembranças.

Romance da desolação da paisagem natural e humana, Terrasonâmbula, do moçambicano Mia Couto, envereda pela paisagem damemória, em busca da identidade perdida nos cadernos de Kindzu e nosonho de transpor a dura realidade da guerra pós-independência. Apaisagem vivida por Muidinga, em sua travessia pelas narrativas deKindzu, não constitui o caminhar por espaços alienados, destituídos desentido. Não. Antes está investido de afetividade, de construção deum mundo de paz e abundância, ainda que vivido sob a atmosfera dosonambulismo.

2. A PAISAGEM DA ORALIDADE E DA ESCRITA

Traduzido em mais de 20 línguas, esse romance de Mia Coutoteve como primeira edição o ano de 1995, tendo sido amplamentelaureado pela crítica. Conquistou prêmios na África e na Dinamarca,consagrando a produção literária do escritor moçambicano, autor ain-da de Estórias abensonhadas (1994), Mar me quer (1998), Vinte ezinco (1999), O último vôo do flamingo (2000), Um rio chamado tem-po, uma casa chamada terra (2002), dentre outros.

Preocupado com o resgate de lendas e narrativas orais de seupovo, Mia Couto, desde a década de 80 do século XX, tem renovado aliteratura moçambicana, constituindo um ourives da palavra, à seme-lhança de Guimarães Rosa, dado o fino trato que confere à linguagem.Curioso é destacar que até há pouco tempo a cultura africana desco-nhecia a escrita. Como ressalta Vera Maquêa (2005, p. 170): “...encontramos em Mia Couto o caráter transnacional da literatura, que

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consegue ao mesmo tempo expressar problemas humanos fundamen-tais e trabalhar com a massa de sentidos específicos das circunstânci-as históricas de Moçambique.”

No livro, identificamos onze capítulos, narrados em terceira pes-soa, sobre a tentativa de sobrevivência durante a guerra civil pós-independência entre o jovem Muidinga e o velho Tuahir, e onze cader-nos, narrados em primeira pessoa, por um tal de Kindzu, acerca damemória de tempos passados. Na reflexão de Vera Maquêa (2005, p.174), não se verifica o dualismo na obra, na medida em que tanto atradição oral quanto a escrita estabelecem entre si um diálogo, “poisque ambas se confundem”.

Mergulhados no universo cultural de suas raízes, somos apre-sentados ao “machimbombo” (“autocarro”, traduzido à página 10), es-paço importante em que se imiscuem o presente da narrativa, vivenciadopelo jovem Muidinga e o velho Tuahir, e a história póstuma de Kindzu;ao “congolote” (bicho de mil patas), à “sura” (aguardente produzidados rebentos de palmeira), inspiração para o nome de Kindzu, atribuídopor seu pai, Taímo.

Outros elementos inerentes à tradição moçambicana se apre-sentam, como forma de enriquecer o legado cultural de seu povo, aexemplo de “concho” (pequena embarcação, uma canoa, que, no con-texto da narrativa, constitui o espaço para o qual o pai de Kindzuretornaria, morto, do mar, à semelhança do que ocorre no conto “Aterceira margem do rio”, de Guimarães Rosa; “machamba” (terrenoagrícola, encontrado por Muidinga e Tuahir quando resolvem deixar omachimbombo à procura de comida) e “machongo” (terra fértil de so-los argilosos, presente nos cadernos de Kindzu).

Duas estradas são percorridas por Muidinga e Tuahir: a real, trans-corrida no machimbombo queimado, espaço de terror de corpos carboni-zados, e a imaginária, espaço da utopia vivenciada nas linhas escritas porKindzu: “A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noitetoda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que des-ponta dos cadernos: ‘Quero pôr os tempos...’” (COUTO, 2006, p. 14).

Rejane Vecchia afirma que “Muidinga se apropria do passado deKindzu, o que lhe dá algum conforto na identificação que aos poucosvai nascendo. O sonho é o espaço em que o lugar ideal se apresenta,assim como o homem que deve habitá-lo.” (VECCHIA, 2002, p. 493).Bachelard, em A poética do espaço, reforça a promessa da idealizaçãodo espaço no plano onírico, ao ressaltar que:

Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente,estranhos a todas as promessas de futuro, (...). Voltamos a esses lugaresnos sonhos noturnos. E esses redutos têm valor de concha. E, quandovamos ao fundo dos labirintos do sono, quando tocamos nas regiões desono profundo, conhecemos talvez uma tranqüilidade ante-humana. O ante-humano atinge nesse ponto o imemorial. (BACHELARD, 1978, p. 203)

As estórias escritas por Kindzu, que objetivam preservar a memó-ria moçambicana e a tradição oral do contador de estórias, revelam umaMoçambique dialética, em conflito entre a opulência e a miséria, entre a

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ambição e o desprendimento, entre a vida e a morte, enfim. Ao morrer,Kindzu avista Gaspar, o rapaz, filho de Farida, procurado insistentemen-te por Kindzu ao longo de sua odisséia pela Moçambique arrasada pelaguerra e pela destruição de seu povo. Depara então com seus cadernosnas mãos de um miúdo, que nada é mais do que o próprio Muidinga/Gaspar, fruto novo de uma terra marcada pela infertilidade. Depositárioda esperança de sonhar um mundo melhor e, ao mesmo tempo, substi-tuto de Kindzu na tradição oral das histórias de seu país, Muidinga tem amissão de servir de nova semente para o futuro, agora consciente desua identidade e da transformação de seu meio.

Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéisque me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: sãoos meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o meninoestremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam oscadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão,as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vãoconvertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vãotransformando em páginas de terra. (COUTO, 2006, p. 218)

Mais extensos que os capítulos em que se narra a história deMuidinga acompanhada do velho Tuahir, os capítulos narrados por Kindzusurpreendem quando no final o próprio Kindzu aparece narrando suamorte e seu desaparecimento, o que comprova que a história feitapelos homens sobrevive para além da sua matéria

A passagem da não-percepção da paisagem para a percepção lúci-da e transformadora se dá de forma gradativa, como a acompanhar atransposição da estrada morta em estrada viva. No primeiro capítulo queantecede o primeiro caderno de Kindzu, o narrador, que narra da perspec-tiva de uma testemunha, abre o romance com a descrição de uma paisa-gem horrenda porque produto de uma terra seca, morta, sem estrada.

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só ashienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem semestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca.Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidasda ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível.E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem damorte. (COUTO, 2006, p. 09)

À medida que os escritos de Kindzu começam a ocupar a mente eas fantasias de Muidinga, descortina-se a mudança da paisagem, aindaque seca e povoada pela miséria: “Muidinga repara que a paisagem, emredor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existemnos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga,um quase prenúncio de verdes.” (COUTO, 2006, p. 53)

Mais adiante, já na página 69, o narrador salienta que apenas aMuidinga é dada a condição de acompanhar as transformações dapaisagem, eleito no mar das miragens do desejo:

...a única coisa que acontece é a consecutiva mudança da paisagem. Massó Muidinga vê essas mudanças. Tuahir diz que são miragens, fruto dodesejo de seu companheiro. Quem sabe essas visões eram resultado detanto se confinarem ao mesmo refúgio. Por isso ele queria uma vez maispartir, tentar descobrir nem sabia o quê, uma réstia de esperança, umasaída daquele cerco. (COUTO, 2006, p. 69)

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Gradativamente, a paisagem adquire novas cores e a presençada vida já se faz notar, com nuances de alegria. A saída do refúgio,representado pelo machimbombo, espaço vívido da guerra, parece abrirnovos horizontes do olhar:

Um vento soprava e os frutos se embatiam, em múltiplos batuques. Umavez mais, a paisagem mudara seus tons e tamanhos. O arvoredo eramais baixo embora mais cheio. A humidade crescia, devia haver umaaguinha a correr perto. Tinham saído do autocarro na madrugada dessedia mas andaram apenas em círculos para não se afastarem muito dasua moradia. (COUTO, 2006, p. 93)

No sexto capítulo, Muidinga toma de fato consciência de quesão os cadernos de Kindzu os responsáveis pela percepção simbólicada paisagem que se opera em sua mente. Ao lê-los, novas fantasias efatos fantásticos se desvelam, a beirar o plano do maravilhoso:

A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, elasozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: nãoé o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nemsempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê oscadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocamem outras visões. (COUTO, 2006, p. 109)

Uma das epígrafes que abrem o livro sintetiza, poeticamente, apassagem da não-percepção da paisagem para a percepção utópica,conquistada durante o sono, em pleno estado de sonambulismo. Frutode uma crença dos habitantes de Matimati, a terra da água, faz partedo imaginário cultural legado pela tradição oral e que é resgatado porMia Couto, ao lado de um pensamento de Platão, representando acultura grega ocidental, e a fala do personagem Tuahir, criação roma-nesca e porta-voz do futuro de redenção de Moçambique. Logo, nummesmo espaço de construção da página da terra, a ser semeada pelaspalavras, convivem harmoniosamente a tradição oral, a ficção literáriae a filosofia clássica, o que consolida mais uma vez o amálgama criadopor Mia Couto nessa obra: a Moçambique ancestral e o país construídosegundo o modelo do Estado ocidental.

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homensdormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam,os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquelanoite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho.(Crença doshabitantes de Matimati) (COUTO, 2006, p. 07)

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estradapermanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazeremparentes do futuro.(Fala de Tuahir) (COUTO, 2006, p. 07)Há três espécies de homens:os vivos, os mortos e os que andam no mar. (Platão (COUTO, 2006, p. 07)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos onze capítulos que constituem a via crucis de Muidinga eTuahir de uma paisagem inóspita e horripilante de um machimbombo quei-

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mado para o mar aberto, símbolo da dinâmica da vida, em que se fecha ociclo do nascimento, transformação e renascimento, somos levados, quaseque simultaneamente, aos outros onze capítulos, em formato de cader-nos, de um personagem de nome Kindzu, que, como o nome sugere, nosembriaga com a narração de sua vida desde a infância, marcada pelafuga da guerra, pela procura de Gaspar, pelo desejo heróico de se tornarum guerrilheiro naparama, nos moldes de um soldado da justiça.

Como num jogo de espelhos, Muidinga e Kindzu encontram-seem suas próprias memórias. Ambos lutam por atingir o amor, a bonda-de, a amizade e a felicidade a partir da percepção acurada do quedeve constituir o corpo social, cultural, histórico e político da sonhadaMoçambique. Neste contexto, a paisagem vivida, “em suas múltiplasfaces, vai mesclando os movimentos da vida, sonhos e expectativas,a memória, os desejos de cada grupo cultural como um único corpo”(GUIMARÃES, 2001, p. 04).

Yi-Fu Tuan, o renomado filósofo e geógrafo chinês, sustentaque “experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar apartir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O quepode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiên-cia, uma criação de sentimento e pensamento.” (TUAN, 1983, p. 10).Muidinga e Tuahir aprenderam com a experiência fantástica dos cader-nos de Kindzu a sonhar com a sobrevivência da cultura africana, aindaque, muitas vezes, suplantada pelo poder do colonizador e com aesperança de que será possível nascer das cinzas o presente caótico,sufocado pelo terror. Num misto de doçura e selvageria, constroem ahistória de suas vidas na paisagem da memória.

Referências:BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; Apoética do espaço. Traduções de Joaquim José Moura Ramos et al.São Paulo: Abril Cultural, 1978.COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Maputo: Ed. Ndjira, 2006.GUIMARÃES, Solange T. de Lima. Filigranas de uma paisagem: um estudosobre a percepção de lugares do medo. In: Revista Olam – Ciência eTecnologia. Rio Claro. V. 1, no 2, novembro de 2001.LARANJEIRA, José Pires. Mia Couto e as literaturas africanas de línguaportuguesa. In: Revista de Filologia Românica. Disponível em: <<http:www.Paisagem, tempo e cultura. Roberto Lobato Corrêa e Zeny Rosendahl(orgs.). 2ª ed. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004.MAQUÊA, Vera. Três romances de Mia Couto: horizontes moçambicanos.In: Diálogos críticos: literatura e sociedade nos países de línguaportuguesa. Vima Lia Martin (org.). São Paulo: Arte & Ciência, 2005.SHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras,1996.TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. deLívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.VECCHIA, Rejane. Terra sonâmbula: a sobrevivência de uma utopia. In:Abrindo caminhos: uma homenagem a Maria Aparecida Santilli. Coleção ViaAtlântica, no 2. São Paulo, 2002.

Márcia Manir Miguel Feitosa

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O ROMANCE UM RIO CHAMADO TEM-PO, UMA CASA CHAMADA TERRA, DE

MIA COUTO*

Juliana Morais Belo**

RESUMO: Estudo da obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra,de Mia Couto considerando o olhar da percepção da paisagem e as relaçõesentre cultura x ambiente e as conseqüências desta relação na narrativa.Palavras-chave: Cultura. Paisagem. Literatura

ABSTRACT: study of the novel Um rio chamado tempo, uma casa chamadaterra, by Mia Couto considering the look of landscape perception andrelations between culture x enviroment and consequences of this relationin the narrative.Keywords: Culture. Perception. Literature

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“Um olhar sobre Moçambique: a percepçãoda paisagem na literatura africana”** Graduanda do Curso de Letras e bolsista do PIBIC – CNPq.

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1. INTRODUÇÃO

Nas Ciências Humanas, os estudos paisagísticos vêm sendo in-vestigados sob vários pontos de vista e correntes filosóficas. É deinteresse observar como é percebida, representada e vivida a paisa-gem e sua relação com os indivíduos; mas também seus principaisfatores, processos e conseqüências tanto individuais, como coletivos.

Dentre os diversos olhares sobre a percepção da paisagem, op-tou-se pelo olhar que a Geografia Humanística vem desenvolvendo nosúltimos anos, mais precisamente desde a década de 1980, notadamentepelos geógrafos Yi- Fu Tuan, Lívia de Oliveira e pelo arquiteto VicenteDel Rio.

Por participar e modificar a história do homem, o estudo dapaisagem implica em observar a inter-relação entre o indivíduo e oespaço e como essa relação se processa em cada pessoa, visto que,no filtro da percepção, existem outros fatores que são de ordem soci-al, cultural, psicológica.

No livro Convite à Filosofia, Marilena Chauí (2002, p. 122) definea percepção como “uma esperiência dotada de significação, isto é, opercebido é dotado de sentido e tem sentido em nossa história devida, fazendo parte de nosso mundo e de nossa vivência.”

Para Yi- Fu Tuan, a todo processo de percepção sucede-se umaconduta, que pode ser um comportamento consciente ou uma atitu-de, tendo como principais fatores os sentimentos e a experiência.

Como foi citado anteriormente, o interesse pela paisagem dizrespeito a vários ramos científicos e nenhum deles detém a percepçãointegral da problemática. No caso desta abordagem, procedeu-se àanálise da obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, deMia Couto. É de importância nesta análise o modo como cada persona-gem se envolve com a paisagem, como a percebe, pois o conhecimen-to da paisagem “incorpora o espaço desconhecido, ou seja, o espaçoda vivência ou da ‘práxis social’ e não apenas o tão discutido espaçode ação, considerado insuficiente para a mudança de pensamento,atitudes e comportamento social” (MACHADO E STURZA: 2002, p.48).

Com relação aos estudos na área da preservação da paisagemcultural, há a constatação de que a percepção ambiental desenvolvepapel de fundamental importância nesta relação. Afinal, ao estabele-cer-se a noção de paisagem, a noção de relações humanas está atre-lada a este processo. Neste bem do povo, percebe-se a concentraçãode práticas sociais que, se preservadas, são constituintes da memóriada população. A prática da materialidade do espaço conforma a paisa-gem em objeto que pode ser visualmente percebido e alterado pelasações sociais, que são marcadas pela relação entre os conhecimen-tos, apegos e símbolos. Conseqüentemente, a paisagem cultural nãorepresenta um panorama estático, mas também é de natureza históri-ca e está em processo de constituição e transformação.

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02. A INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE

A história da dominação moçambicana apresenta característi-cas distintas com relação a outras colônias. Vale ressaltar que a ocu-pação restringiu-se a uma faixa estreita do litoral sul. Conseqüente-mente, o poder da metrópole portuguesa não se impôs às culturaslocais que sobreviveram ao período colonial, mesmo com a luta e aexploração em que a população foi envolvida.

Desta forma, a idéia de homogeneizar e expandir valores dassuperpotências produtoras de mercado enfrentou em Moçambique umasituação diferenciada: este país preservou vivamente aspectos cultu-rais que limitaram a soberania portuguesa. Pode-se perceber que estapreservação deu ensejo a lutas anticolonialistas, pois tornou possívela mobilização política para enfrentar o dominador, que, apesar dasdiferenças étnicas, era comum a todos.

Entretanto, a conservação destes aspectos culturais não impe-diu Moçambique de libertar-se sem as conseqüências de todos ospovos dominados: fome, miséria, sofrimento e dor.

Em 1979, surge a guerra civil e esta funciona com pano históricona narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, deMia Couto. Esta abordagem dará prioridade à relação entre cultura epaisagem, porém é de fundamental importância evidenciar os aspectoshistóricos que influenciam a atitude dos personagens perante a per-cepção da paisagem.

No tocante a fatos históricos, a guerra civil desperta nos perso-nagens sentimentos de dor, medo e sofrimento. Tais sentimentos sãoexpandidos para a paisagem que se apresenta:

As casas de cimento estão em ruínas, exaustas de tanto abandono. Nãosão apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronando. Aindavejo numa parede o letreiro já sujo pelo tempo: “A nossa terra será otúmulo do capitalismo”. Na guerra, eu tivera visões que não queria repetir.Como se estas lembranças viessem de uma parte de mim já morta”(COUTO: 2003, p.223).

Esta paisagem cultural revela a natureza histórica do povomoçambicano, é elemento de fundamental importância para a consti-tuição da memória do povo:

Paisagens são, portanto, patrimônio material; este se apresenta aosindivíduos por meio de sua forma física e perceptível a qual, em se tratandode lugares, os expõe, informando sobre a vida social nos mesmos einteragindo com os indivíduos que nele estão (KOHLSDORF: 2001, p. 5).

Portanto, nesses trechos pode-se evidenciar que o contato coma paisagem cultural revela o descontentamento, a solidão e o medoque a guerra provocara. Esses sentimentos são compartilhados pelomesmo povo, à medida que a memória e a identidade histórico-culturalvão se desenvolvendo.

03. O RIO COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE CULTURAL

O aspecto cultural no uso e na percepção da paisagem dependede fatores distintos: experiência, atitudes conscientes, comportamentos

O romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra...

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inconscientes, sentimentos e subjetividades. Na obra Um rio chamadotempo, uma casa chamada terra, o “elemento rio” assume importânciatanto geográfica quanto simbólica: primeiramente, ele delimita a separa-ção entre a ilha e a cidade. Esta separação não é apenas territorial, mastambém cultural. A saída e, posteriormente, o retorno do personagemMariano à ilha gera conflitos acerca de sua identidade cultural:

A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam que a própriadistância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, maislongínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duasalmas (COUTO: 2003, p. 18).

Esta distância representa dicotomias: progresso x atraso; tradi-ção x modernidade. O personagem Mariano representa a dúvida, abusca pela auto-afirmação. Representa a necessidade de conhecer-se a si mesmo, de estabelecer raízes com um lugar específico.

Com relação a aspectos simbólicos, o rio é local de aconteci-mentos emocionalmente fortes, é o símbolo de uma população queatribui valores mitológicos, ritualísticos e sagrados a ele.

Os fatos importantes estão presentes em diversos personagensda narrativa. A cada um o rio atribui significado. Com a personagemMariavilhosa, o elemento assume um ciclo de vida e morte, afinal o inícioe o desfecho de sua vida encontram-se no rio. Na verdade, segundo osfamiliares da personagem, ela apenas retornou ao local de origem:

Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água, que anos depois,reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve quemtestemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que iasubmergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrouno rio seu corpo já era água. E nada mais senão água (...) água era o queela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por aí, nessas ondas.(COUTO: 2003, p.105)

A trajetória de Mariavilhosa e Fulano Malta teve início no rio, e ofim foi o encontro até ele. Outra característica que deve ser ressalta-da é a atribuição do “elemento água” a algo primordial. Este caráterremonta ao pensamento do filósofo Tales, que acreditava que a águaera a origem e a foz de tudo. É o termo último das coisas, é o sustentodas coisas. Este princípio é aquilo do qual tudo vem, aquilo pelo que é,é aquilo pelo qual termina. É elementar, essencial e prossegue.

No Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,o rio assume a possibilidade universal e da fluidez das formas. Repre-senta a fertilidade, a morte e a renovação. Para o personagem DitoMariano, o elemento assume um caráter fértil e ritualístico. No caráterfértil, a paisagem encontra no amor a motivação para a contemplaçãodo rio. O relacionamento amoroso entre Dito Mariano e Admirança temsua concretização no rio, afinal, numa noite de lua nova, o persona-gem pede para dormir com a amada. Vale lembrar que o ato de dormircom outra pessoa representa a entrega da alma. O rio é o cenário, é opalco de um amor proibido. É a concretização da fertilidade, pois, apóseste encontro, os dois geram uma criança que, logo após o nascimen-to, foi nomeada de água, ou Madzi, na língua local. Este fruto é Marianoque, após a revelação da sua origem, encontra sua identidade, conhe-

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ce seu passado. Com relação à nomeação do personagem, pode-seperceber que houve a tentativa de perpetuar o amor. É o rio que nãopode deixar de existir. Representa a conservação da paisagem cultu-ral, um bem que era comum a todos da família. A herança deixada porDito Mariano foi a paisagem. Esta ligação representa a formação damemória e da identidade, pois numa civilização onde a tradição oral e acultura têm importância, a ausência destes fatores implica em morte.O rio é o elemento que participa destas relações pessoais, ele compar-tilha códigos, no qual o símbolo não é apenas um substituto de algo,mas também é um elo de memória e identidade.

O vínculo do personagem Dito Mariano com o elemento rio esten-de-se aos rituais de morte, pois seu enterro só foi possível à beira do rio.

Numa das revelações ao filho, ele revela a sua síntese com oelemento. Síntese esta que também está presente no filho: “E agora lhechamo outra vez de ‘água’. Sim, você é a água que me prossegue, ondasucedida em onda, na corrente do viver”. (COUTO: 2003. p.238). Notocante a aspectos culturais, o rio é sinônimo de costumes, das tradi-ções africanas. O ritual representa a tentativa de preservar a paisagemcultural que deve ser contemplada pela população. Há a expectativasocial de que o lugar assuma o papel de bem simbólico, não somenteespaço funcional. Desta forma, o local assume a propriedade substitutivado símbolo, capaz de habilitá-los em evocar fatos, processos e relaçõessociais considerados relevantes à memória coletiva. Esta preservaçãoatende à necessidade da identidade histórica e coletiva.

Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo nochão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família;do outro, nós os chegados. Ficam todos assim, parados á espera. Até queuma onda desfaz o desenho na areia (...) estava escrito o respeito pelorio, o grande mandador. Acatara-se o costume. (COUTO: 2003, p. 26)

Outro caráter que revela a importância do rio na tradição oral éa existência de lendas que fazem parte da cultura local. Numa delasacredita-se que, em noites escuras, as grandes árvores das margensse desenraizam e caminham sobre as águas. Com o amanhecer do dia,elas retornam ao local de origem.

Porém, há um significado que merece destaque: a atribuição devalor que remonta à eternidade. Para o personagem Juca Sabão, o rionão tem começo nem fim, ele é o próprio tempo.

Queria subir o rio até a nascente. Ele desejava decifrar os primórdios daágua, ali onde a gota engravida e começa o missanguear do rio (...) o rioé como o tempo! Nunca houve princípio, concluía. O primeiro dia surgiuquando o tempo já há muito se havia estreado. Do mesmo modo é mentirahaver fonte do rio. A nascente é já o vigente rio, a água em flagranteexercício. (COUTO: 2003, p.61)

A atribuição de valores ao rio depende de cada experiência vivi-da pelos personagens: a alguns é morte, renovação, é fertilidade.Porém deve-se destacar a importância que permeia toda a civilizaçãoafricana: a paisagem é mais que um simples código compartilhado; é,antes de tudo, algo sagrado, ritualístico. É parte de toda a nação, é amemória e a identidade cultural que tentam preservá-la.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta abordagem, alguns aspectos de Um rio chamadotempo, uma casa chamada terra foram explorados à luz da percepçãoda paisagem. Esta análise deu prioridade ao “elemento rio”, porém deve-se ressaltar que outros aspectos da obra também influenciam na noçãode espaço vivenciado, tais como: a casa, a terra e a ilha, pois estesfatores interagem para a formação do processo histórico-cultural dospersonagens da narrativa. É importante ressaltar que a noção de paisa-gem perpassa a noção de subjetividade, posto que, na maioria dasrelações entre homem x espaço, os resultados são de ordem subjetiva.

Outra característica que funcionou como objeto de estudo foi ainfluência dos rituais e das tradições africanas, afinal, a partir destes,a maneira de perceber o espaço sofreu influência. Outro fator quedeve ser ressaltado é a afeição que os personagens têm pelo rio, poisa maioria deles teve sua história de vida ligada ao elemento. Estaligação deu-se tanto em rituais tradicionais quanto em rituais fúne-bres, com foi o caso do personagem Dito Mariano.

Mas também o rio assume o significado de elemento primordial,de condição necessária à vida. Esta atribuição é tão antiga quanto acivilização, pois, desde as religiões anteriores ao cristianismo, a águaassume um valor sagrado. Porém, tal importância estende-se ao pen-samento filosófico, afinal, o filósofo Tales, ao buscar um elementoprimordial, uma substância que seria a gênese da terra, encontrou naágua o elemento necessário.

A paisagem cultural é, ao mesmo tempo, sagrada e cultural. Elaé o elemento comum, é o que une pessoas tão diferentes no mesmoobjetivo: preservar o rio, preservar este bem cultural. É a tentativa depreservar uma nação, juntamente com toda a sua história, com suamemória, pois a falta de identidade cultural e de memória significa amorte de um povo, representa não ter raízes, é uma perda até mesmoda constituição do sujeito enquanto ser histórico.

Referências:CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2002.CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos; tradução Verada Costa e Silva... [ET al.]. – 20.ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo:Companhia das Letras, 2003.DOS SANTOS, Valci Vieira. Tempo e memória nas águas de Um Rio. In: http:www.uea-angola.org./artigo.cfm?=683. Acesso em 14.08.2007.KOHLSDORF, Maria Elaine. Percepção e preservação da paisagem cultural.In: OLAM- Ciência & Tec. Rio Claro. Vol. 1. N. 2. P.187-211.2001.TUAN, YI-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitude e valores do meioambiente. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1980._______. Espaço e lugar: uma perspectiva da experiência. Trad. de Lívia deOliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.VECCHIA, Rejane. Terra Sonâmbula: a sobrevivência da utopia. In: Abrindocaminhos: homenagem a Maria Aparecida Santilli. Coordenação e ediçãode Benilde Justo Caniato e Elza Miné. São Paulo: Coleção Via Atlântica, no02, 2002.

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CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA MÉ-DICA E DA GEOGRAFIA DA SAÚDE*

João Batista Pacheco**

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda“O espaço como categoria de análise de eventos de saúde” **Professor Adjunto no Departamento de Geociências do Centro de CiênciasHumanas – UFMA. Geógrafo e Mestre em Saúde e Ambiente.

Resumo: Geografia Médica e Geografia da Saúde como diferentes, porémarticuladas abordagens médico-espaciais do ambiente. Imbricam-seacepções de ambiente e espaço ao processo de estruturação científicadessas vertentes geográficas. Enfatiza-se a transposição da GeografiaMédica fisiocêntrica para um formato contemporâneo tecnológico e factual.Reconhece-se na Geografia Médica pragmática uma confiável ferramentade aferição e consistente material de análise na Geografia da Saúde crítica-humanística.Palavras-chave: Geografia Médica e Geografia da Saúde. AmbienteSocioconstruído e Sociogeocenose. Geoestressores. Homeostase e Estresseambiental.

Abstract: Medical Geography and Geography of Health as different howeverarticulated medical-space boardings of the environment. Environment andspace to the process of scientific distribution of these geographic sourcesare grouped. It is emphasized transposition of phisiocentric MedicalGeography for a factual technological contemporary format. One recognizesin pragmatic Medical Geography a trustworthy tool of gauging andconscientious material of analysis in the Geography of the Health critical-humanistic.Keywords: Medical Geography and Geography of Health. SocialConstructed Environment and Sociogeocenosis. Geostressers.Homoeostasis and Environmental Stress.

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1. INTRODUÇÃO

Num certo sentido, Geografia Médica e Geografia da Saúde seinterpenetram. Na verdade, as mesmas estão articuladas, contudodisponibilizam juízos disintos à medida que evoluíram por diferentespercursos, transmutando-se das acepções nosológica e nosogeográficapara as pragmática e humanística.

Este estudo constitui uma revisão contextual que passa pelabase pretérita da Geografia Médica até as suas fases moderna e con-temporânea, nas quais ocorre certa libertação epistemológica das amar-ras do fisiocentrismo ambiental. Nesse ínterim, advém a Geografia daSaúde como uma versão médico-espacial que transita pela correnteteoria social crítica. Em sinergia, as mesmas propõem-se como férteiscampos de interpretação socioespacial e de significativa aplicação naspolíticas públicas de saúde. No hodierno ambiente socioconstruído, ariqueza de elementos de coesão e de conflitos — situação dehomeostasia e degradação que se apresentam à análise médico-geo-gráfica — orienta para diferenciados, porém integrados, modos de in-terpretar a saúde-doença do ambiente: de um lado, a Geografia Médi-ca, proeminentemente pragmática; de outro, a Geografia da Saúde,prudentemente holístico-humanística.

2. GEOGRAFIA MÉDICA: EVOLUÇÃO DO OBJETO

a) Base pretérita de construção da Geografia MédicaAparentemente Geografia Médica e Geografia da Saúde são

sinonímicas. Na verdade, as mesmas estão articuladas, contudo sãoepistemologicamente distintas à medida que evoluíram por diferentespercursos, transmutando-se da acepção nosológica para anosogeográfica e a humanística. Libertando-se das amarras dofisiocentrismo determinista, essas vertentes geográficas propõem-secomo férteis campos de interpretação socioespacial e de significativaaplicação nas políticas públicas de saúde. No hodierno ambientesocioconstruído, a riqueza de elementos de coesão e de conflitos —situação de homeostasia e degradação que se apresentam à análisemédico-geográfica — orienta para diferenciados, porém integrados,modos de interpretar a saúde-doença do ambiente: de um lado, aGeografia Médica, proeminentemente pragmática; de outro, a Geogra-fia da Saúde, prudentemente holístico-humanística.

Aparentemente Geografia Médica e Geografia da Saúde sãosinonímicas. Na verdade, as mesmas estão articuladas, contudo sãoepistemologicamente distintas à medida que evoluíram por diferentespercursos, transmutando-se da acepção nosológica para anosogeográfica e a humanística. Libertando-se das amarras dofisiocentrismo determinista, essas vertentes geográficas propõem-secomo férteis campos de interpretação socioespacial e de significativa

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aplicação nas políticas públicas de saúde. No hodierno ambientesocioconstruído, a riqueza de elementos de coesão e de conflitos —situação de homeostasia e degradação que se apresentam à análisemédico-geográfica — orienta para diferenciados, porém integrados,modos de interpretar a saúde-doença do ambiente: de um lado, aGeografia Médica, proeminentemente pragmática; de outro, a Geogra-fia da Saúde, prudentemente holístico-humanística.

Os alicerces pretéritos da Geografia Médica estão nas relaçõesempiristas e inatistas do homem com o meio. Sem denominação espe-cífica, uma geografia médica surgiria nos conhecimentos ambientaisdeterministas, iniciados há séculos a.C.. Embora em outros continen-tes, como a África, a medicina sistematizada já fosse uma prática, aobra “Dos Ares, Águas e Lugares” (MACMAHON; TRICHOPOULOS, 1996,p. 5. Tradução nossa), produzida num cenário já visivelmenteeurocêntrico, inspiraria e integraria o corpus hippocraticus, no âmbitoda preocupação médico-espacial.

Relacionando elementos cósmicos, climáticos e astronômicos àcompreensão da saúde-doença, portanto, não se atrelando à mentali-dade metafísica e folclórica dominante, o trabalho de Hipócrates temsido respeitado por geógrafos quanto à parceria entre conhecimentosmédicos e geoambientais. Foi importante na posterior sistematizaçãoda Geografia Médica, porém seu pesado fardo determinista estimulouum ambientalismo entremeado a equívocos imperdoáveis: supostasdisparidades físicas, morais e comportamentais de habitantes da Euro-pa em relação aos de outros espaços do planeta, estariam condiciona-das às diferenças de solo e de clima. Para Sodré (1986, p.15) Hipócrateslevaria o determinismo ao limite extremo, marcado pelo estabelecimen-to de distinções preconceituosas entre os habitantes das montanhase os das planícies: aqueles, por força da influência das terras altas,úmidas, batidas pelos ventos, seriam de estatura alta, bravos e detemperamento suave; estes, por força da influência das formas leves,descobertas, desprovidas de água, com bruscas variações de tempe-ratura, seriam secos, nervosos, indóceis, arrogantes.

Dos séculos XV ao XVII (do mercantilismo ao advento do capi-talismo), as apropriações de territórios megatérmicos florestados, comoda América, África e Ásia, fizeram-se acompanhar de irremovíveis mi-grações de doenças e em alguns casos pandemias. O reconhecimentodos novos ambientes e seus habitáculos (nichos e geótopos) cobra-vam técnicas e métodos de análise mais esmerados. Nesse ínterim,reafirmar-se-iam “estereótipos hipocráticos” e “invenções” de “doen-ças tropicais” que confeririam uma suposta superioridade européia: ospróprios micróbios e hospedeiros levados nas embarcações para osterritórios recém-tomados eram classificados como de habitáculo tro-pical, as “doenças tropicais”, apesar de muitos serem eurítopas e cos-mopolitas (sem “identidade” territorial). A partir da segunda metade doséculo XVII aconteceram os grandes debates que alimentariam aNosologia e, daí, a Geografia Médica e a Epidemiologia (PESSOA, 1960,

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p. 102: PACHECO, 2004, p. 22). O ponto de vista sanitarista de W. Farre seguidores, a respeito de uma constituição ambiental miasmática dedoenças, se esgotaria diante das teses biológicas de J. Snow. O grandeinteresse pela microbiologia logo aconteceria através de estudos de O.Muller, apesar da relação etiológica entre micróbios e doenças ter suacomprovação na segunda metade do século XIX, através de L. Pasteur.Essa fase microbiana de estudo de doenças afeta a perspectiva espaci-al de moléstias, contudo, não a torna totalmente excludente. Do séculoXVIII ao XIX grandes obras sobre medicina geográfica são elaboradas.Algumas se assemelham às de Schnurrer, pois trazem a Geografia Físicana explicação das modificações de doenças; outras, seguindo uma linhade Hirsch, ensaiam uma geografia médica mais genérica. Evolui oentrosamento entre a Epidemiologia e a Geografia, em vista da perspec-tiva têmporo-espacial, tornando-as, até certo ponto, indistintas. Variá-veis como tempo e espaço se prestam reciprocamente à análise deaspectos autóctones, euritópicos e cosmopolitas associados àendemização, epidemização e pandemização. Cabe observar que aGeografia Médica que antecedeu o século XX teria formato mais médicoque geográfico, pois na medicina urbana era maior a aceitação biomédicada unicausalidade (para cada doença, um patógeno específico).

b) Base moderna e transição na construção da GeografiaMédica contemporânea

Em detrimento da unideterminação de doença, o impacto cientí-fico da insurgente compreensão geoecológica agente-doença-ambi-ente (teoria multicausal e ecológica) coloca como premente umaoficialização da expressão Geografia Médica, embora, ainda no séculoXVIII a terminologia já fosse usual. Inspirada em La Blache, a guinadabem sucedida da Geografia Médica se deve às contribuições de Sorree Sauer, pois “conceitos de gêneros de vida alimentariam a perspecti-va de biogeocenose e aquilo que depois se projetaria como uma hodiernasociogeocenose” (PACHECO, 2004). Geopatologia, Geomedicina, Geo-grafia das Doenças, Nosogeografia (Nosografia) e Nosologia orientampara um mesmo sentido de “distribuição espacial e prevalência dedoenças”, embora alguns autores encontrem, nesses termos, distintossignificados. A consagração do uso da expressão Geografia Médica,porém, acontece no final da década de ’40 do século XX, simultanea-mente às contribuições do paradigma regional ou da síntese regionaliniciada por Hettner, na virada para o séc. XX, e aprofundada por R.Hartshorne nos anos ’30 e ’50. O conceito de espaço se imbrica aosestudos da transmissão de doenças por circulação e deslocamentosde vetores nos ambientes naturais (nicho natural) de E. Pavlovsky. É ateoria parasitológica da nidalidade, ou focos naturais das doençastransmissíveis, que trata da análise da propagação de doenças nosnichos ecológicos (paisagem natural específica) através de agentescausais (animais doentes e assintomáticos) para vetores e a conse-qüente reprodução do processo em um dado espaço natural

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(patobiocenose). Lacaz (1972, p. 5) refere-se ao domínio da patologiainfecciosa e parasitária como aquele em que a Geografia Médica apre-senta grande interesse e importância, principalmente no estudo daschamadas doenças metaxênicas, isto é, aquelas que possuem um re-servatório na natureza e um vector biológico no qual se passa uma dasfases do ciclo evolutivo do agente infectante.

Dos agentes etiológicos dormentes ou inativos nos vetoresassintomáticos (nicho ecológico de Pavlovsky) se progride, através deM. Sorre, para a ampliação do conceito de habitat e ecúmeno, comênfase à relação patogênica do homem com animais domesticados esinatrópicos (de silvestres a domiciliados). Conforme Lebon (1970, p.162) “A incidência de muitas moléstias depende da associação dohomem e do organismo infectante com outros organismos. M. Sorreaplica a expressão complexo patogênico a essa associação”. A pers-pectiva de meio (ecúmeno, antrópico) é proeminente na concepçãode complexo patogênico (climático, orgânico e social) e não expurga ohomem dinâmico, tal qual ocorre nos focos naturais enzoóticos dePavlovsky. Segundo Pessoa (1960, p.88), o Complexo Patogênico deSorre “É o agrupamento do homem e do parasita, com ou sem inter-venção de um agente transmissor”. No seu progresso, a GeografiaMédica passaria a estudar a extensão das doenças infecciosas emdada região e a correlação dos diversos fatores geográficos e climáti-cos, a prevalência, gravidade, ou com os surtos epidêmicos das doen-ças consideradas, além do envolvimento do homem com a migraçãosinatrópica. Segue-se uma ulterior preocupação com incidências demoléstias em função de um contexto de abastança, pobreza e desi-gualdade nas relações com meios geográficos anfitópicos; ou seja,estudos de localismos endêmicos e eventos epidêmicos retomados nobojo da interpretação de níveis e gêneros de vida desiguais.

No aspecto interdisciplinar, o conhecimento mediado, mas nãoproeminente, da Geografia e da Medicina, apesar de aindadesconfortavelmente descritivo, logo se enriqueceria graças aos avan-ços integrados dos estudos biomédicos e sanitários e de dinâmica doespaço. Na própria Geografia Física, as associações geográficas deorganismos, temperatura, pressão, umidade, calor, luminosidade com aprópria ação do homem no seu ambiente de moradia são registros deconsideráveis contribuições da climatologia no saneamento dospatolocalismos. A Geografia Médica, embora ainda envolvida nas amarrasbiogeocenóticas de espaço estático, adquire personalidade pragmáti-ca na gestão territorial da saúde pública. Conceitos de epidemia,endemia e pandemia ganham novas dimensões sociais entre geógrafosque logo seriam da saúde. Os eventos endêmicos (a endemia é umaimportante marca geomédica que tem significativa durabilidade eextensividade) adquirem associações espaciais mais diversificadas, maso seu caráter estenótopo (doenças e agentes se limitam a um lugarpor condição de fatores geográficos) é rediscutido.

Não menos importante é a epidemia. De tendência eurítopa oude ocorrência cósmica, é um fenômeno geopatológico atípico. Embora

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representando uma significativa quantidade de indivíduos atingidos, emum dado momento e por determinadas doenças ou agravos em diversifi-cados locais ou regiões, não caracteriza uma situação territorializada. Aepidemia é efêmera. Nesse sentido, a sazonalidade e aleatoriedade dasua ocorrência-prevalência, a princípio, não remeteriam à constituiçãode localismos, mas deixariam marcas indeléveis na qualidade do espaço.

Associada à intensificação dos deslocamentos globais, a pandemia(um tipo particularizado de epidemia) e facilitada por agentes de deslo-camentos geográficos, os tecnovetores ou transportadores artificiais eos biovetores, tem a capacidade de se alastrar territorialmente emdimensões mais extensas que a própria epidemia. Nessa situação, asdoenças e seus agentes têm a possibilidade de sair da sua área epidê-mica e atingir uma vasta região, país ou mesmo adquirir um carátercosmopolita. A sua propagação extrapola padrões têmporo-espaciais deepidemias convencionais. Desde as incursões imperialistas européias, aspossibilidades de eventos pandêmicos se ampliam na medida em que asredes de contato e o progresso dos meios de transporte transcontinentaisreduzem as barreiras geográficas entre os diversos mundos, permitindoconsideráveis migrações de doenças.

Os temas abordados na Geografia Médica, embora importantes,são divorciados de uma compreensão consistente acerca dos ambien-tes da interação e contextualização, mantendo-se fragmentados ereducionistas. Por período exageradamente longo, insistiu-se num for-mato geomédico fisiocêntrico, materialista, obscuro e acrítico, o quemais escondeu do que expôs os fatores de aprofundamento das dis-crepâncias socioespaciais.

c) Geografia Médica na contemporaneidadeA fase contemporânea da Geografia Médica representa a culmi-

nância da renovação instrumental e técnica que já se iniciara na fasemoderna. Embora não antinômicas, geografia Médica e da Saúde sãoconsideravelmente distintas. A hodierna Geografia Médica, de imbricaçãoneopositivista, tem considerável sentido pragmático, mas não necessa-riamente um pensamento qualitativo. Modelística e quantitativa, a mes-ma tem inquestionável utilidade em gestão territorial. Estrutura-se nainteligência técnica (na geotecnologia, geomática, modelos e estatísti-ca inferencial), mas é capaz de execrar, a princípio, a articulação comos propósitos humanísticos e a interpretação integrativa. Igualmente,não se omitiria o fato de que essa linha de pensamento tem fornecidomaterial racionalmente consistente acerca da complexidade saúde-do-ença-ambiente. Diante disso, é vastamente aplicável em políticas pú-blicas e ações privadas de saúde pública. Apreende categorias objeti-vas da paisagem munida de maior instrumental disponibilizado pelamecatrônica e automação de dados (geomática). Aliando-se ao su-porte tecnológico (tecnologias geográficas ou geotecnologias), à“geoestatística, mais lógica ‘fuzzy’ e modelos multi-escala” (CÂMARA;MONTEIRO; MEDEIROS, 2000, apud KOGA, 2003, p. 199) e à aborda-

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gem comportamentalista, valoriza-se um saber imprescindível à funda-mentação de uma ulterior interpretação eclética da saúde: tecnicismo,humanismo e teoria social.

d) Geografia da Saúde ou Geografia Médica Pós-modernaA Geografia da Saúde seria uma versão pós-moderna da Geo-

grafia Médica ou, talvez, uma disciplina paralela que se sustentaria nadinâmica dos ambientes socioconstruídos. De qualquer modo, o espa-ço se concebe na medida da transposição do estático e linear para odinâmico e associativo. A concepção de ambiente-saúde-doença éhumanística, decorre de um saber democratizado que inclui a valoriza-ção da percepção nas escalas do cotidiano urbano, além da interpre-tação psíquico-social dos eventos e diagnósticos geopatológicos. Porextensão, não se excluem a distribuição, qualidade e o alcance geo-gráfico e social dos serviços de saúde, tampouco métodos qualitativosde avaliação e controle de qualidade de vida e ambiente.

O enfoque pós-moderno reafirma dimensões socioespaciais dedoenças sobrepostas, contudo integradas e encadeadas à evoluçãoda dinâmica de espaço contemporâneo. Os espaços hodiernos nosquais se processam as relações saúde-doença-ambiente são simulta-neamente globalizadores e globalizados, então mais complexos e inter-ligados. Alguns, em doses diversificadas, são aparelhados edominadores; outros, consumidores, subsistentes, alienados e subser-vientes. É na própria dimensão de lugar — o habitat humano — parti-cularmente o espaço de exclusão social, geralmente aglomerado esocioindicador (sensível a respostas, tais como euestresse e diestresse)que se acentuam as imissões (padrões de concentração e risco) de-correntes das emissões (lançamentos de estressores) por fontes nãonaturais, mas induzidas ou construídas antropicamente. No habitathumano das socioespacialidades micro se desenrola algo assemelhadoao que Larcher (2000) denomina “estresse antropogênico”.

Epidemia, endemia e pandemia, na atualidade, reportam-se tam-bém aos estados de saúde-doença provocados por agentes ou tensoresque não são necessariamente infecciosos. São estimuladores de res-postas ambientais deletérias que atendam a critérios de interaçõessocioespaciais, temporais e demográficos típicos das epidemias,endemias e pandemias e que atinjam índices de ocorrência crítica dapreocupação da saúde pública. Podem ser incluídos nessa categoria ossociopatógenos (agentes socioculturais de doenças). Ocorrem espe-cialmente nos ambientes construídos motivados por ação tecnogênica.As respostas críticas estão em doenças carenciais (desnutrição,avitaminose, anemia, comuns em espaços geográficos de privaçõesmateriais), degenerativas (hipertensão, diabetes, neoplasias), ou mes-mo psíquicas (neurose, psicose), geralmente sob a ação devastadorado estresse crônico. Este é o diestresse ou distresse, liberado no serhumano como carga alostática de difícil reversibilidade. Os sociopatógenosabraçam uma orientação psíquico-social. Em certas situações essas

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categorias de tensores estão profundamente relacionadas a exposiçõesambientais que estimulam respostas topofóbicas ligadas a desgastesmentais, ansiedades e desvios de conduta, por exemplo.

Nos espaços de vizinhança se processa, de modo potencializadoe descontrolado, a contínua emissão/imissão de sociopatógenos, osestimuladores de estresse no ambiente geográfico (meio externo) e noorganismo (meio interno). As privações materiais e psíquicas podemestimular uma ruptura de reação positiva que, segundo Larcher (2000)e McEwen; Lasley (2003) está na resiliência, na rustificação e noajustamento. Contrariamente, o desequilíbrio pode levar à instalaçãoda exaustão, com minimização da resistência e propensão à morbidade.Por isso, espaços insalubres e excluídos podem facilmente adquirir umnível diestressor crônico e de considerável carga diestréssica orienta-da para a degeneração socioambiental.

A Geografia da Saúde possibilita enxergar, no ambientetecnificado, novos horizontes de interpretação social de geoestressoresda saúde, porém, sem a pretensão de se excluírem as grandes contri-buições das vertentes “não-humanísticas”. Naquela há uma explícitaaproximação e uma integração com o caráter humanístico de ver eperceber o ambiente, este, refém da tecnologia, da competitividade edo consumismo (que contemplará a nomenclatura socioconstruído).Lugares incitam reflexões sobre subjetividades e identidades territoriaisganham ênfase nos estudos de saúde-doença-ambiente. Nestes, resi-de um firme propósito de se resgatarem escalas microespaciais cotidi-anas, de territórios vividos, sem a proeminência dos seus limitesfisiográficos, legais e economicistas rígidos. O mapeamento deve valo-rizar fronteiras sociais e possibilitar a reinterpretação dos processos econflitos socioespaciais que decorrem das experiências individuais esemióticas com o ambiente do homem. Associam-se percepções ereações, êxitos, ascensões sociais e satisfações, enfim, alívios e pra-zeres que implicam topofilias, as quais orientam para a manutenção daalostase como mecanismo corpóreo de estabilidade psicossomática;mas, também, as armadilhas, aflições, decepções, fracassos, vicissi-tudes e degenerações sociais, enfim, sofrimentos associados atopofobias que deflagram cargas alostáticas e enriquecem osmapeamentos geopatológicos.

O quadro 01, a seguir, demonstra a evolução da Geografia Médi-ca/Saúde.

3. GEOGRAFIA MÉDICA E GEOGRAFIA DA SAÚDE: APROPÍCIA SINERGIA

A vertente holístico-humanística da Geografia da Saúde se de-senvolveu como reação imediata, porém filosoficamente bem sucedi-da, à racionalidade capitalista dominante. Contudo, ao longo da suateorização, as dificuldades quanto à sua aplicabilidade e sentido prag-mático em solucionar as evidentes desigualdades socioespaciais têm

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sido equacionadas na eficácia instrumental da Geografia Médica. Ascomplexidades biopatológicas e sociopatológicas incitam a transposi-ção dos mapeamentos das descrições do espaço humano no meiofísico, eficientemente produzidos na Geografia Médica, para emara-nhados de implicações objetivas, subjetivas e intersubjetivas, perce-bidos na Geografia da Saúde. Os infindáveis conflitos econômicos,políticos, sociais e culturais remetem às desigualdades socioespaciaisque extrapolam a capacidade de interpretação da Geografia Médica,porém possíveis de serem analisadas no âmbito da Geografia da Saú-de, pois a esta se tem acrescentado um diálogo socioespacialtranstextual. Os fenômenos espaciais apresentados de modo estáticopela Geografia Médica são incorporados à perspectiva dinâmica, por-

Construção da geografia médica e da geografia da saúde

Quadro 1 - Geografia médica e da saúde no tempo

Geográfia MédicaGeografia da

Saúde

TradicionalPré-Cristo até primeira metade do século XX

ContemporâneaDa segunda metade

do século XX atéprimeira década do

séc. XXI

Pós-modernaPrimeira década do

séc. XXI

Antiga Moderna Transição

Corpus hipocraticusDeterminação

ambientalnaturocêntrica

extremada (relevo,vegetação, clima eseus fatores) deepidemicidade eendemicidade.

Estereótipos porassociação "raça",ambiente, doença.Eurocentricidade,

incursões eintensificação depandemicidade

Teoria miasmáticana explicaçãoambiental de

doenças

Análise linearidiográfica da

incidência-prevalên-cia de doençascontagiosas.

Relação biocenóticade espaço-doença

Conflito teoriamiasmática

(ambiental) vsunicausalidade e

microbiologia."Influência" doevolucionismo,teorias raciais eestereótipos datropicalidade de

doenças. Discursosepidemiológicos emédico-geográficos

relativamenteindistintos:

"influência" regionalde fatores

fisiográficos naocorrência,

prevalência ecomportamento de

doenças.Dicotomia

natural/humanizado

Teoria Multicausal earticulação

ecológica. Relaçãobiogeocenóticaespaço-doença

Análise nomotéticada ocorrência-prevalência de

doençascontagiosas edegenerativas.

Reducionismo pormodelagem

sistêmica do espaçoreal dos eventosgeopatológicos.

Uso exaustivo dosMétodos

Quantitativos(Patometria).

Teorias dos Focosnaturais de doenças

e Complexospatogênicos

Epidemiologia eGeografia Médicaarticuladas, mas

distintas.Busca de umainterpretaçãointegrativa.

É um reconhecidocampo de

investigaçãovastamenteaplicado nas

ciências médicas eafins.

Proeminência dopositivismo lógicocomo linguagem

universal.Interpretação por

articulaçãotêmporo-espacial de

endemicidade eepidemicidade.

Modelosbioclimáticosaplicados aosestudos dos

padrões e difusãoespacial dedoenças.

Desenvolvimento eaplicação deSistemas deInformaçãogeográficos

Instrumentosavançados

(inteligênciatecnológica) de

produção de dadoscomo suporte à

Geografia da Saúdee Epidemiologia.

Afirmação daGeografia Médicacontemporânea

como objetoconsistente da

Geografia da Saúde.Sociogeocenose na

relação saúde-doença. Abordagem

dialógicapragmática-holístic-

a-humanística;enfoque/epistemol-

ogiainterdisciplinar;intradisciplinar e

múltiplos métodosde investigação.Contestação à

ditadura da verdaderacional absoluta e

generalista.;Reinserção do

métodoconjetural/semioló-

gico(reconhecimentodos eventos de

saúde-doença comocontraditórios ediferenciados).

Inserção de novosconceitos eatributos doambiente.

SocioconstruídoInterpretaçãoassociativa desaúde-doençainclusive das

relações políticas epsíquico-sociais, napromoção e acesso

à saúde.

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tanto, associativa, da Geografia da Saúde. Daí, em vez de uma persis-tente geografia genérica das doenças (respaldada unicamente na pro-dução de dados estáticos por medidas estatísticas, modelos multi-escala e cartografia digital) esta fornece material para as interpreta-ções supranuméricas e à representação da realidade socioespacial,especificamente cotidiana. No sentido prático e integrativo, GeografiaMédica integra o objeto da Geografia da Saúde e, nessa culminância,se preocupam com estudos e ações, como:

- Elaboração de bancos de dados e corpus bibliográficosoportunos ao Meio Ambiente e à Saúde Pública.

- Reconhecimento territorial, levantamento de estrutura,equipamento e dotação geoecológica para diagnósticomorfofuncional do cenário geográfico em vista da viabilidadee impedimento da instalação e hierarquização dos serviçosde saúde;

- Estudo de demanda demográfica, mobilidade, diversidadecultural e percepção, padrões de inclusão, exclusão social econflitos de vizinhança que remetem à emissão e imissão degeoestressores do sossego (poluição sonora, radioativa, dopatrimônio, visual e do ar);

- Estudo e avaliação de tensores da paisagem (agressão àságuas, solos, climas, fauna, flora e associações e massaurbana) e respostas (reação, recuperação e exaustão emforma de impacto ou diestresse natural e antropoambiental)no ambiente socioconstruído.

- Estudo da articulação habitáculo e habitat criado, pressãosobre agentes, hospedeiros e reservatórios.

- Caracterização geográfica do perfil epidemiológico,endemiológico e dos padrões socioespaciais de agravos;

- Reconhecimento da propensão socioambiental à materializaçãode localismos de doenças;

- Promoção e efetivação de educação ambiental e organizaçãode defesa do ambiente e da saúde;

- Assessoria na elaboração de planos, políticas e gestãocompartilhada de saúde: promoção, territorialização do acessoaos serviços, controle, fiscalização, inspeção e recuperaçãopara inibição da degradação da saúde e ambiente.

4. CONCLUSÃO

Geógrafos de reconhecida especialidade em ambiente, aplicadaàs ações de saúde, situam-se legalmente no campo técnico. Estetrabalho revisa o esforço da construção geográfica em colocar ferra-mentas, como a Geografia Médica, seguidas de análises holístico-humanísticas disponibilizadas pela Geografia da Saúde, a serviço daminimização dos estresses espaços-ambientais. Por isso, a cartografiatemática, a geomática e o geoprocessamento, acompanhados de

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softwares avançados, são ferramentas poderosas colocadas pela ci-ência geográfica nos planejamentos territoriais, incluindo relatórios quecontemplam retrognósticos, diagnósticos e prognósticos de cenáriosnos quais se processam as inextricáveis relações saúde-doença-ambi-ente. As simulações e estimações de risco e controle ambiental emgeótopos, geofacies e bairros, envolvendo situações de salubridadeou insalubridade, trazem irremovíveis associações com o olhar médico-geográfico. Perícias e arbitramentos acerca de tensões que afetam ahomeostase ambiental passam necessariamente por olhares sinérgicostanto da Geografia Médica quanto da Geografia da Saúde. As discus-sões e interpretações holístico-humanísticas, pertinentes à atual con-figuração epistemológica da Geografia da Saúde, são irremovíveis dosconfiáveis métodos e técnicas de aferição, organização, descrição einferência de dados desenvolvidos na Geografia Médica. Antepostos,mas reintegrados ao entendimento qualitativo, os vastos instrumentose informações contidos nessa vertente do saber geográfico se somari-am de modo instigante ao objeto da Geografia da Saúde, enquantovetor de promoção de ambientes saudáveis.

Referências:KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territóriosvividos. São Paulo: Cortez, 2003.LACAZ, Carlos da Silva. Introdução à Geografia Médica do Brasil. SãoPaulo: Edgard Blücher, 1972.LARCHER, Walter. Tradução Carlos Henrique B. A. Prado. Ecofisiologiavegetal. São Carlos: RiMa, 2000.LEBON, J. H. G. Introdução à Geografia Humana. Tradução: CristianoM. Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.McEWEN, Bruce; LASLEY, Elizabeth Norton. O fim do estresse comonós o conhecemos. Tradução Laura Coimbra. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2003.MACMAHON, Brian: TRICHOPOULOS, Dimitrios. Epidemiology: Principles& Methods. 2ª ed. Boston: Little Brown & Company, 1996.PACHECO, João Batista. Poluição Sonora e Geografia da Saúde: ainterpretação crítica do processo socioespacial da saúde-doença (títuloprovisório). São Luís: 2004 (em elaboração).PESSOA, Samuel. Ensaios médico-sociais. Rio de Janeiro/Guanabara:CEBS-HUCITEC, 1960.SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à Geografia: Geografia e Ideologia.Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

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O ESPAÇO COMO CATEGORIA DEANÁLISE DE EVENTOS DA SAÚDE:sazonalidade climática e doenças

tropicais*Ronaldo Rodrigues Araújo**

Resumo: O presente trabalho faz uma relação entre o clima e a saúde dapopulação da cidade de São Luís, com ênfase na incidência dos casos dedengue, procurando demonstrar de que forma a interferência da ocupaçãohumana associada às variações climáticas pode influenciar o modo de vidado ser humano, bem como as relações existentes entre clima e saúde.Palavras-chave: Doenças tropicais. Clima. Estrutura urbana. São Luís.

Abstract: It makes a relation between the climate and the health of thepopulation of the city of São Luís, with emphasis in the incidence of theaffection cases, looking for to demonstrate of that it forms the interferenceof the human being occupation associated with the climatic variations itcan influence the way of life of the human being, as well as the existingrelations between climate and health.Key words: Tropical illnesses Climate. Urban structure. São Luís.

* Trabalho apresentado no VII encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de Novembro de 2007, durantea mesa redonda “O espaço com categoria de análise de eventos da saúde”.** Mestre em Geografia. Professor do Departamento de Geociências da UFMA. E-mail: [email protected]

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A forma de organização espacial da população favorece a existên-cia de condições ou situações de risco que influenciam no seu padrão enível de saúde. Dessa forma, a produção das doenças pode ser determi-nada por diversos fatores, tais como os ambientais, os sociais e os cultu-rais que atuam no espaço e no tempo sobre as populações sob risco. Osgrupos sociais vulneráveis, como por exemplo, aqueles com carências deserviços de saneamento básico, estão sujeitos a potencializar efeitosadversos por meio de fontes de contaminação, locais de proliferação devetores e outros.

As aceleradas taxas de urbanização da sociedade atual levaram àconcentração da população, à ocupação desordenada das cidades acom-panhada de vetores transmissores de doenças adaptados ao ambientemodificado, aumentando os riscos à saúde advindos do contato comresíduos domésticos e industriais.

Dentre as doenças (re)incidentes no Brasil a dengue, no momentoatual, destaca-se como a mais importante arbovirose que afeta o homeme constitui-se em sério problema de saúde pública no mundo, especial-mente nos países tropicais, onde as condições do ambiente associadas àineficácia das políticas públicas de saúde favorecem o desenvolvimento ea proliferação do Aedes aegypti, principal mosquito vetor dessa doença.(NUNES e ARAÙJO, 2005)

De acordo com Tauil (2002), no mundo, o dengue é um dos maioresproblemas de saúde pública, sendo considerada a mais importantearbovirose da atualidade. O Ministério da Saúde (2007), considera a den-gue um dos principais problemas de saúde pública no mundo. Os dados daOrganização Mundial da Saúde (OMS) estimam que entre 50 e 100 mi-lhões de pessoas se infectem anualmente, em mais de 100 países, detodos os continentes exceto a Europa. Cerca de 550 mil doentes neces-sitam de hospitalização e 20 mil morrem em conseqüência da dengue.

No Brasil, no período de 1923 e 1982, não foram registrados ne-nhum caso, porém a doença re-emergiu e hoje tanto o vetor como adoença estão presentes em quase todos os estados do país.

A doença, que até o início da década de 1980 era consideradacomo sendo erradicada do país, reapareceu em 1981 na cidade de BoaVista e em 1986 houve um surto na cidade de Nova Iguaçu-RJ. Desdeentão, a dengue começou a (re)aparecer em diversas cidades brasileirascomo episódios curtos e localizados, não sendo dada muita importância àsua ocorrência.

A enfermidade se tornou um grave problema sócio-ambiental urba-no e de saúde pública e passou a ter projeção nacional após 1995,quando sua notificação se tornou obrigatória, e as campanhas de com-bate e prevenção à doença e ao seu vetor se intensificaram.

Em São Luís, a capital do Estado do Maranhão, o primeiro casonotificado e confirmado laboratorialmente, data de junho de 1995, apesarda intensificação da vigilância entomológica que não impediu que o anofosse encerrado com 2.128 casos notificados de dengue clássico e umÍndice de Infestação Predial de 7,3 %.

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Para Tauil (2002), a reemergência dos casos em território nacionaldevem-se: 1) à rápida urbanização brasileira alimentada pela intensamigração rural-urbana, que aumentou o número e o tamanho das cidadesque não tinham os serviços e as infra-estruturas necessárias para rece-ber a população; 2) ao processo industrial moderno que gera inúmerasembalagens descartáveis e materiais automotivos que não têm umadestinação apropriada; 3) aos problemas institucionais tais como a faltade legislação, orçamento e apoio à vigilância epidemiológica municipal,incapacidade do Estado em aumentar serviços e infra-estruturas e pro-blemas na inspeção e combate aos reservatórios, e 4) à falta de informa-ções e de uma educação para a sociedade voltada à prevenção.

Nos centros urbanos, dificuldades relacionadas com o saneamentobásico se ampliam na medida em que se alarga o diâmetro urbano e seformam bairros e comunidades periféricas, cada vez mais distantes dosreservatórios e das estações de tratamento de água e de esgoto. Asredes implantadas e os serviços em execução ficam sempre muito aquémdas necessidades e do ritmo de crescimento da população. (ALVES, 1992).

Nossas cidades - inclui-se aqui a cidade de São Luís - cresce-ram em tamanho e número sem a devida preocupação de seus habi-tantes e governantes com a implantação de uma infra-estrutura urba-na capaz de promover, em alguns aspectos, uma qualidade de vidapara todos, independente de sua classe social.

Varias espécies de mosquitos do gênero Aedes podem servircomo transmissores do vírus do dengue. O Aedes aegypti é a espéciemais importante na transmissão da doença. No Brasil, duas delas estãohoje instaladas: Aedes aegypti e Aedes albopictus

Os vetores dessa doença são, no Brasil, o Aedes aegypti e oAedes albopictus. O “Aedes aegypti é a principal espécie responsávelpela transmissão do dengue” (TAUIL, 2002, p. 868) e “é um mosquitodoméstico, antropofílico, com atividades hematofagíca diurna e utili-za-se preferencialmente de depósitos artificiais de água limpa paracolocar seus ovos” (TAUIL, 2002, p. 868). Esses mosquitos habitam osdomicílios e peri-domicílios onde se alimentam e se reproduzem.

A transmissão ocorre quando a fêmea da espécie vetora secontamina ao picar um individuo infectado que se encontra na fasevirêmica da doença, tornando-se, após um período de 10 a 14 dias,capaz de transmitir o vírus por toda sua vida através da suas picadas.Dessa forma, o vírus do dengue persiste na natureza mediante o ciclode transmissão homem-Aedes aegypti-homem.

A dengue é uma doença febril aguda caracterizada, em sua formaclássica, por dores musculares e articulares intensas. Tem como agenteetiológico um arbovírus (Vírus transmitido por artrópodes) do gêneroFlavivírus da família Flavivíridae, do qual existem quatro sorotipos: DEN-1, DEN-2, DEN-3, DEN-4. A infecção por um deles confere proteçãopermanente para o mesmo sorotipo e imunidade parcial e temporáriacontra os outros três. Trata-se, caracteristicamente, de enfermidade deáreas tropicais e subtropicais, onde as condições do ambiente favorecemo desenvolvimento dos vetores.

O espaço como categoria de análise de eventos da saúde

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O mosquito transmissor da dengue é tipicamente urbano; sendoraras às exceções quando é encontrado na zona rural. Isso faz comque os focos epidemiológicos se concentrem nas áreas urbanas, sejaem bairros ou na periferia, devido às más condições de limpeza dosquintais em suas residências, por parte dos moradores e uma coletaineficiente em muitos dos casos, realizada pela prefeitura, descartan-do os resíduos em locais impróprios ecologicamente.

A densidade demográfica, a falta de saneamento, o não acessoàs técnicas que possam mitigar o aparecimento de doenças são fato-res preponderantes, às vezes mais que o clima ou a hidrografia, semdesconsiderá-los, pois também são componentes espaciais.

Esses fatores, que favorecem ou mitigam o aparecimento dedoenças, não são naturais ou conseqüências de processos exógenos àsociedade, são produzidos dessa maneira pela sociedade e têm conse-qüências sociais. Deste modo, podemos aludir ao conceito de Espaçosde Suscetibilidade. (CASTRO et al, 2007)

Dessa forma, cabe destacar a incidência de determinadas doen-ças que estão relacionadas diretamente com a tropicalidade de algu-mas regiões do planeta. Essas doenças tendem a serem predominan-tes em certas zonas climáticas por, exatamente, oferecerem condi-ções bastante favoráveis para a proliferação dos vetores responsá-veis pela sua transmissão.

O clima pode influenciar na incidência e reincidência de certasdoenças em tempos distintos. Estas moléstias que afligem o homemdemonstram em suas incidências coincidências íntimas com as condi-ções climáticas e com a estação do ano. Neste caso, o clima podeafetar tanto a resistência do corpo humano a algumas moléstias comoa propagação e a difusão de alguns organismos patogênicos ou deseus hospedeiros.

[...] o clima e as variações climáticas exercem grande influencia sobre asociedade. O impacto do clima e das variações climáticas sobre o ser humanopode ser positivo (benéfico ou desejável) ou negativo (maléfico ou indesejável).As sociedades têm visto muitas vezes o clima basicamente como um fatornegativo e o têm negligenciado como recurso. Contudo, o clima é tanto umfator negativo como um recurso, dependendo do tempo local e dos valoresenvolvidos nos parâmetros climáticos. (AYOADE ,1998, p. 288)

Em um ambiente tropical a precipitação constitui um elementode destaque na caracterização e compreensão do clima, sendo um dosprincipais elementos de análise na Organização e no planejamentoterritorial e ambiental, posto que dentre os vários parâmetros climáti-cos a precipitação é o que apresenta a maior variabilidade.

Segundo a Organização Pan-americana de Saúde (2003), o climaafeta a saúde humana de diversas maneiras. Furacões, tempestades einundações matam milhares de pessoas a cada ano e comprometem águae alimentos. As secas provocam fome e desnutrição. Chuvas fortes po-dem desencadear epidemias de doenças como a malária e a dengue.

É notadamente marcante a influência do clima sobre a manifes-tação do mosquito transmissor da dengue, o Aedes aegypti. SegundoCupollilo (2000), a variação dos elementos climáticos e a incidência doAedes aegypti, estão relacionadas de maneira muito direta.

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A esse respeito, tem sido observado um padrão sazonal de inci-dência coincidente com o verão, devido a maior ocorrência de chuvase aumento da temperatura nessa estação. Esses fatores favorecem oaumento dos índices de infestação e da densidade vetorial.

As epidemias de dengue, sobretudo na área urbana de São Luís,são geralmente explosivas e envolvem porções apreciáveis da população.Freqüentemente começam durante as estações chuvosas, quando o vetorda doença existe em maior abundância. (NUNES e ARAÙJO, 2005)

Analisando os gráficos 1 e 2 de evolução da dengue e da distri-buição mensal das chuvas em São Luís, observa-se que a Denguepossui uma sazonalidade, ou seja, o período de maior ocorrência daenfermidade se dá entre Fevereiro e Maio.

Esse fato demonstrou que a Dengue possui uma certa relaçãocom a precipitação, pois é no final do período chuvoso que a enfermi-dade começa a ocorrer e a se agravar, devido sobretudo, ao acúmulode água em recipientes artificiais no extradomicilio urbano que servemde criadouro ao mosquito transmissor da moléstia. Com o aumento doscriadouros e da população de mosquitos, conseqüentemente, se elevaa ocorrência da doença.

De acordo com Ferreira (2003 p-183) “as precipitações podemdesencadear a eclosão de ovos de mosquitos em diapausa”. Esse fato faz

O espaço como categoria de análise de eventos da saúde

Gráfico 1 - Precipitação total média de São Luís (1961-1990)

Fonte: NormaisClimatológicas (1961-1990)

Gráfico 2 - Casos notificados de Dengue Clássico pormês no Município de São Luís entre 1997-2002

Fonte: SINAN (1997-2002)

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com que a população de mosquitos se eleve durante o período chuvoso.Desse modo, as chuvas, ou melhor, as coleções hídricas – pequenas poças– acumuladas durante as chuvas são fundamentais para o desenvolvimen-to e para a proliferação do mosquito transmissor da enfermidade.

Convém ressaltar que muitas vezes a Dengue é assintomática,ou seja, a pessoa foi infectada, mas os sintomas da doença não semanifestam. Esse fato faz com que não sejam registrados casos dadoença. Outro fato que oculta casos da doença é o diagnóstico impre-ciso, pois a enfermidade pode ser confundida com outras doençascomo a rubéola, a gripe, o resfriado e o sarampo.

Do exposto pode-se considerar que a Dengue e as chuvas pos-suem apenas uma relação, posto que existe uma sazonalidade da do-ença que coincide, em partes, com o período chuvoso; pois o vetorda doença, para se desenvolver, necessita de água limpa e estagnada,o que pode facilmente ocorrer durante, e logo após as chuvas noambiente urbano. Todavia, não se pode afirmar -estatisticamente-que o aumento pluviométrico implica em aumento da enfermidade. Ape-nas o que se pode afirmar é que a água limpa e parada, acumuladadurante e logo após o período chuvoso, é uma pré-condição para odesenvolvimento do Aedes Aegypti, mosquito vetor da Dengue.

Referências:ALVES, Júlia Falivene. Metrópoles: cidadania e qualidade de vida. 3ªed. São Paulo: Moderna, 1992. (Coleção polêmica)AYOADE, J. O. Introdução à climatologia para os trópicos. São Paulo:Difel, 1998.CASRO, Catão R., GUIMARÃES, R. F., CARVALHO JUNIOR, O. A, GOMES,R. A.T. Espaços de suscetibilidade ao dengue. In: III SIMPÓSIO NACIONALDE GEOGRAFIA DA SAÚDE. Anais, Curitiba (PR). 2007 (meio digital)CUPOLLILO, Fulvio et al. Estudo Bioclimatológico Humano: espacializaçãode doenças nas estações chuvosa e seca em Caratinga – MG. In: IVSIMPÓSIO BRASILEIRO DE CLIMATOLOGIA GEOGRÁFICA. Anais... Rio deJaneiro: UFRJ, 2000. p.105.ELY, Deise Fabiana. Incidência e espacialização da leptospirose emLondrina/PR e sua correlação com alguns elementos climáticos. In: VSIMPÓSIO BRASILEIRO DE CLIMATOLOGIA GEOGRÁFICA. ContribuiçõesCientífico-Técnicas, Curitiba (PR): UFPR, 2002, p. 908-917.FERREIRA, Maria Eugenia. Doenças tropicais: o clima e a saúde coletiva.Alterações climáticas e a ocorrência de maçaria na área de influênciado reservatório de Itaipu (PR). Terra Livre, São Paulo, ano 19, v. 1,n.20, p. 179-191. jan/jul. 2003.NUNES, José Sérgio Alves, ARAÚJO, Ronaldo Rodrigues. Relações geográficasentre o clima e a incidência de dengue na cidade de São Luís. CiênciasHumanas em Revista, São Luís (MA), v.3, n.2, p. 93108, 2005.TAUIL, Pedro Luiz. Aspectos críticos do controle do dengue no Brasil.Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.18, n.3, p. 867-871.mai/jun, 2002. Disponível em http://www.scielosp.orgscielo.php?script=sci_aerrext&pid=S0102311X2002000300035&ING=en&nrm=iso>. Acesso em 16/11/2007.

Ronaldo Rodrigues Araújo

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A EXALTAÇÃO DA FESTA PÚBLICAE A RECUSA DA REPRESENTAÇÃO*

Edilene Pereira Boaes**

RESUMO: Na Carta a d’Alembert: Sobre os Espetáculos Rousseau posiciona-se na contra mão dos iluministas, devido a publicação do verbete “Genebra”na Enciclopédia, que trata da implantação do teatro em Genebra, O filósofogenebrino defende a impossibilidade de tal empreendimento, pois asimplicações seriam irreversíveis nos aspectos econômicos, políticos e sociais;além de exaltar a aparência e o rebuscamento das ações sociais. Rousseauressalta enquanto saída do obscurecimento da representação a festa públicagenebrina, enaltecendo a constituição republicana, enquanto o teatroesconde a festa mostra, enaltecendo a plena identificação entre o eu e ooutro, sem necessitar de palco ou de máscaras, numa exaltação do ser.Palavras-chave: Teatro. Festa. Representação. Ser. Parecer.

ABSTRACT: In the Letter of Alembert: On the Spectacles Rousseau it islocated in the one against hand of the iluministas, had the publication ofverbete “Geneva” in the Encyclopedia, that deals with the implantation ofthe theater in Geneva, the Genevan philosopher defends the impossibilityof such enterprise, therefore the implications would be irreversible in theeconomic aspects, social politicians and; beyond exaltar the appearanceand the rebuscamento of the social actions. Rousseau standes out whileexit of the obscurecimento of the representation the Genevan public party,enaltecendo the republican constitution, while the theater hides the partyshows, enaltecendo the full identification between I and the other, withoutneeding palco or masks, in a dither of the being.Keywords: Theater. Party. Representation. Being. To seem.

*Texto levemente modificado do apresentado no VII Encontro Humanístico,realizado de 19 a 23 de Novembro de 2007, na Mesa Redonda intitulada “ReflexosRousseaunianos: teatro, educação, política e representação”**Professora Substituta do Departamento de Filosofia – UFMA. Pesquisadora doGrupo de Estudo Jean-Jacques Rousseau – CNPQ – DEFIL – UFMA.

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A Carta a d’Alembert: Sobre os Espetáculos é uma obra decircunstância em resposta ao verbete Genebra, escrito por d’Alembertdefendendo a implantação do teatro de Comédia na república genebrina.O “Cidadão de Genebra” sente-se impelido a escrever uma respostaem defesa da república genebrina e suas leis, enquanto calvinistaconvicto que as leis do poder público vêm de inspiração divina, emanado próprio Deus que a constituiu. Escreve a Carta Sobre os Espetácu-los: Sobre os Espetáculos em 1758, num no período de três semanas.Escrita em fevereiro, revista no mês seguinte e enviada ao editor Rey.Onde em seu prefácio torna pública a sua ruptura com Diderot e comos philosophes.

(...) A Carta a d’Alembert integra o teatro nessa perspectiva, pega ocaso particular do teatro e tenta provar que o teatro é estranho àvirtude, é estranho ao amor à pátria e da igualdade e que não sedeve unir ao teatro uma missão pedagógica. O teatro sempre foi oque é o teatro grego não é o teatro moderno, entretanto os filósofos nasua mania de versatilidade costumam não levar em conta esses costumes.(MATOS 2006).

1. O TEATRO E A EDUCAÇÃO DOS COSTUMES

A Carta a d’Alembert vem ser uma justificativa de seu patriotis-mo, um claro elogio à sua pátria, costumes e constituição. Diferente deParis, Genebra tem pouco mais de 24 mil habitantes na época, comparticularidades que evidenciavam a sua auto-suficiência, suas mani-festações artísticas que difeririam daquelas vistas em Paris, à diversãopara este povo segundo o autor deveria ser ao ar livre, em comunidade.

Nesse sentido d’Alembert em sua argumentação engana-se, poiso teatro é uma distração, deve agradar e não instruir. No espetáculoteatral a tragédia eleva os sentimentos e a ação dos heróis, diminuin-do a humanidade do espectador. A comédia ridiculariza o homem, ba-seada num vício do coração, o gosto pelo ridículo, caricaturando avirtude. Rousseau faz uma extensa análise sobre a obra de Molière,especialmente O Misantropo, objeta principalmente que o protagonis-ta Alceste, que é bondoso e amigo dos homens seja apresentado deforma ridícula e desprezível. Filinto, o insinuante, cético e mundano,por outro lado é exibido como superior a Alceste e levando a melhorsobre a virtude. Neste sentido, Genebra não dispõe de um públicosuficiente para manter um teatro em sua estrutura, e teria muito aperder. O verbete Genebra da Enciclopédia para ele engloba váriasquestões:

Se os espetáculos são bons ou maus em si mesmos? Se podem se aliaraos bons costumes? Se a austeridade republicana pode comportá-los? Sedevem ser comportados em uma pequena cidade (Genebra na épocatinha 24 mil habitantes)? Se a profissão de comediante é honesta? Se ascomediantes são tão recatadas quanto às outras mulheres? Se as boasleis bastam para coibir o abuso? Se as leis podem ser bem cumpridas?(ROUSSEAU 1993, p.41)

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Em primeiro lugar, Rousseau observa que os espetáculos sãoentretenimentos, e se é que os povos precisam de entretenimento quefossem permitidos quando necessários, quando o lazer não estiver àfrente do trabalho que o dignifica. Existe uma infinidade de espetácu-los de um povo a outro.

Em Londres um drama interessa quando faz odiar os franceses; em Tunis,a bela paixão seria a pirataria; em Messina uma vingança bem saborosa;em Goa, a honra de queimar alguns judeus. Se um autor desrespeitaressas máximas, poderá fazer uma peça belíssima à qual ninguém assistirá.(...) Assim, o teatro purga as paixões que não temos e fomenta as quetemos. (ROUSSEAU 1993, p.45)

O dramaturgo adula as paixões. Assim, para Rousseau, o teatromodifica os costumes, e, portanto, não deve ter o papel educador queDiderot aspirava, ao agradar o espetáculo não ensina, ao ensinar oespetáculo não agrada. E para o autor nada é mais fácil que despertarbom sentimento numa platéia de teatro dado o “desinteresse” que acondição de espectador proporciona: todos meros observadores dedisputas que não lhes concernem diretamente, ninguém corre o riscode preferir o mal que lhe é útil ao bem que a natureza faz amar e, porisso cada um toma logo o partido da justiça, da verdade. Sobre atragédia levar à compaixão pelo terror e piedade, Rousseau diz queeste é um sentimento vão e passageiro. Um resto de sentimento natu-ral logo sufocado pelas paixões; uma piedade estéril, que nunca pro-duziu o menor ato de humanidade e que só pode ser pleno dentro doespaço do teatro.

Ah, se a beleza da virtude fosse obra da arte, há muito a arte a teriadesfigurado! Quanto a mim, ainda que me chamem de malvado por ousarafirmar que o homem nasceu bom, eu acho isso e creio tê-lo provado;está em nós e não nas peças a fonte do interesse que nos prende ao queé honesto e nos inspira aversão pelo mal. (ROUSSEAU 1993, 45)

Para o pensador, o argumento de que o espectador entraria emcontato com a virtude durante a dramatização, e que o mesmo sairiado teatro com a consciência tranqüila já que vira a virtude na tragé-dia, e poderia praticá-la na vida real; seria vã, a platéia em sua huma-nidade, perde-se entre o real e o imaginário: “Quanto mais penso, maisacho que tudo o que se representa no teatro não se aproxima de nós,mas se afasta”. (ROUSSEAU 1993, 47).

O teatro não tem um compromisso com a virtude, mas sim coma paixão e o gosto do público (opinião pública). O talento de escritor deMolière (1622-1673) estaria enganando os filósofos que se divertiamcom suas peças ao invés de denunciar nelas este caráter grave.

Molière é o mais perfeito autor cômico das cujas obras nos sejamconhecidas. (...) Seu maior cuidado é ridicularizar a bondade e asimplicidade. (...) em suas comédias as pessoas de bem são apenastagarelas, os maus são pessoas de ação que, na maioria dos casos sãocoroadas com os mais brilhantes êxitos, enfim, a honra dos aplausos vairaramente para o mais estimável e quase sempre para o mais hábil.(ROUSSEAU 1993, p.54).

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Rousseau não repudia apenas aquela espécie de teatro em suaépoca, mas a teatralização do seu tempo, não é uma mera reação,mas “tem um quê de revolução”. (FORTES, 1997, p.146). O que severifica na Carta a d’Alembert não é apenas a recusa da implantaçãodo teatro em Genebra, mas a exaltação daquilo que é próprio destacidade no que diz respeito à diversão: a festa cívica genebrina, quenão feria sua constituição republicana.

Não é apenas o teatro que se quer evitar, mas o alto grau de representação,na qual completa a separação espectador-espetáculo, a festa constituiráo mínimo possível de espetáculo ou o grau zero da representação. Opróprio fenômeno do espetáculo, de cujo modelo se retira às categoriaspara se pensar a vida social, é avaliado segundo estas mesmas categoriase os mesmos esquemas e submetido ao mesmo instrumento de medida.(FORTES 1997, p.147).

A necessidade e a utilidade, se úteis e necessários devem serpermitidos, caso contrário são um mal, contudo não é a utilidade queos determina, mas o prazer que proporcionam:

Quanto à espécie dos espetáculos, ela é necessariamente determinadapelo prazer que eles proporcionam, e não pela utilidade. Se neles se podeencontrar alguma utilidade, tanto melhor; mas o objetivo principal é agradare, se o povo se divertir o objetivo foi alcançado. (ROUSSEAU 1993, p.41).

Divertir seria a perfeição possível do teatro, para, além disso,seria impossível, pois a idéia pedagógica iluminista, de mudar os senti-mentos e costumes não cabe no jogo teatral.

Está em nós e não nas peças a fonte do interesse que nos prende ao queé honesto e nos inspira uma aversão pelo mal. Não há arte que produzaesse interesse, mas apenas as artes se valem dele. O amor do belo (...)não nasce de um arranjo de cenas; o autor não o leva para lá (para ocoração), mas o encontra ali (no coração). (ROUSSEAU 1993, p. 45).

Rousseau aponta que os sentimentos pintados pelos autoresteatrais e expostos pelos atores, “apenas demarcam um jogo de ce-nas, bom para divertir o público, mas que seria loucura querer trans-portar para a sociedade”. “Aconteça o que acontecer, ou essa genteterá que reformar seus costumes em nossa cidade, ou corromperão osnossos”. (ROUSSEAU 1993, p. 126).

2. A FESTA POPULAR GENEBRINA: exaltação daigualdade

E Rousseau interroga (1993, p. 128): “Como! Não deve havernenhum espetáculo numa República? Pelo contrário, deve haver mui-tos deles, nelas vemos brilhar o verdadeiro com um real ar de festa.” Oespetáculo promovido pelo teatro esconde o espectador e mostra oator, o espaço mostra todas as desigualdades existentes entre oshomens. As festas promovidas devem ser ao ar livre onde todos par-ticipem, e a igualdade seja o que rege a mesma e as ações de todos,que no jogo do ser e parecer o ser prevaleça; onde as máscaras sejamremovidas, os gestos não sejam afetados.

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Quais seriam os objetivos desta festa? O que se mostrará? Nada sequisermos. Com a liberdade, em todos os lugares reina a abundância, obem-estar reina também. Plantai no meio de uma praça uma estacacoroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor, ainda:oferecei os próprios espectadores como espetáculo; tornai-os eles mesmosatores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para quecom isso todos fiquem mais unidos. (ROUSSEAU 1993, 128).

Os espectadores são os próprios espetáculos. O que se buscacom a festa coletiva é a abolição da representação (enquanto jogodo ser e parecer, do artificial) que é dado pela própria natureza, semnecessitar de mediação.

“Esses bailes assim dirigidos pareceriam menos com um espetá-culo público do que com a reunião de uma grande família, e do seio daalegria e dos prazeres nasceria à conservação, a concórdia e a pros-peridade da República”. (ROUSSEAU 1993, p. 132). A festarousseauniana reproduz ou reivindica aquilo que foi perdido com aentrada na vida social, uma ilusão necessária para que o homem seencontre consigo e com outro que se perdeu dentro da história.

Os homens não estão alegres porque foram convidados para uma festa:esta é apenas uma manifestação visível da alegria que os homens sentemem encontrar-se reunidos – de uma alegria cujo excesso e cujotransbordamento inesperado explodem nos gestos exteriores de júbilo,em jogos, cerimônias, cantos. (STAROBINSKI, 2001, p.103)

A festa em si é um mero pretexto, o verdadeiro objeto reside naabertura dos corações. O teatro e a festa se contrapõem, enquantoum se encerra na escuridão, enquanto prisão, o outro liberta.

Mas não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristementeum pequeno número de pessoas num antro escuro; que as mantémtemerosas e imóveis num silêncio da inação; que só oferecem aos olhos,biombos, pontas de ferros, soldados, aflitivas imagens da servidão e dadesigualdade. Não povos felizes, não são essas as vossas festas! É ao arlivre, é sob o céu que deveis reunir-vos e entregar-vos ao doce sentimentoda vossa felicidade! (ROUSSEAU 1993, p. 128.)

O teatro rouba o ser, outorgamos a outrem o direito de nosrepresentar, a cisão palco e platéia é mais profunda do que poderevelar a cena, ultrapassa o teatro e chega na vida social enquantorepresentação. A exaltação da festa coletiva tem a mesma estruturada vontade geral do Contrato Social: “A vontade geral, para ser ver-dadeiramente geral, deve sê-lo tanto no objeto quanto na essência; aprova de que essa vontade deve partir de todos para aplicar-se atodos”. (ROUSSEAU 1978, p. 49).

Nesse sentido, a descrição da alegria na festa genebrina oferecetraços da vontade geral exposto no Contrato Social, está no plano dateoria do direito, enquanto a festa está no plano existencial daefetividade. Na alegria pública o homem é ator-espectador, é aqueleque quer a lei e obedece a lei. Olhar a todos é ser olhado por todos, umaenunciação da alienação de todas as vontades particulares, em quecada um recebe em troca de tudo o que cedeu à comunidade, encontrocomum entre membros que entenderam a razão da vida em sociedade.

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoas eos bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada

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um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendoassim tão livre quanto antes. (ROUSSEAU. 1978, p. 32).

O estipulado no Contrato no plano da vontade e do ter, na Cartaa festa realiza no plano do olhar e do ser, cada um é alienado no olhardos outros, e cada um é restituído a si mesmo por um reconhecimentouniversal. A festa genebrina tem um contrato voltado para a conser-vação dos seus usos e costumes:

Todas as sociedades juntam-se numa só, tudo se torna comum a todos. Équase indiferente em que mesa sentamos (...); mas essa mesma profusãoestá então no lugar certo, e o aspecto da abundância torna mais comoventeo da liberdade que a produz. (ROUSSEAU 1993, p. 129).

Os jogos e as festas cívicas para Rousseau enquanto saída parauma boa constituição política, numa constante aproximação com aRepública de Platão na busca de adequar à formação do povo a partirda Paidéia, de uma formação total:

Só há liberdade segundo Rousseau quando todos os homens foremobrigados a serem livres. Ao contrário de seus contemporâneos Rousseaudefende em Emílio uma fé determinante da força da crença de cadahomem. Obedecer a lei é seguir os ditames da razão e não os de algumadivindade ou de algum tirano. Quando em sociedade os homens cedemuma parcela de sua liberdade ao estabeleceram entre si o contrato social,cada um ganha no final aquilo que cedeu no início. Ou seja, só assim serápossível alcançar o bem comum na expressão da vontade geral.(PISSARRA 2006, pp. 9-10)

Por isso, a formação humana não deve ser exteriorizada, maspartir de um lugar comum. Esse lugar para Rousseau é a cidade, apon-tando para a pólis grega, onde o ser político se desenvolveu. Só acidade – com as suas leis –, podem educar o homem, exercitando-opara a vida social, espaço de virtude, conformando-os à vontade co-mum. Para evitar o mal é necessário que se encontre um remédio:

Vejo só um remédio para tantos inconvenientes: que, para tornar os dramasde nosso teatro ajustados à nossa realidade, nós mesmos os escrevamose tenhamos autores antes de termos atores. (ROUSSEAU 1993, p. 124).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A festa será para a Rousseau a saída para o mal que ronda aRepública de Genebra, opta por outros espetáculos: as festas ao arlivre (no verão), os bailes (para o inverno) e os jogos que serviriampara confirmar a educação virtuosa daquele povo.

Ele vai assim englobar toda a população da cidade, e cada um se tornarásimultaneamente ator e espectador. A festa é a versão teatralizada dogesto de alienação voluntária realizado pela universalidade dos contratantesdo Contrato social: a obediência, a submissão que são o mal permanecemparciais, tornam-se o fundamento da legitimidade quando não excetuamnenhum indivíduo.(...) O jogo de aparências e de imitação podia serdenunciado como corruptor quando implicava a solidão das consciências.Mas, como um toque de varinha mágica, o parecer se torna benéfico quandose acompanha da troca universal dos olhares. (STAROBINSKI 2001. p.173).

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O mal que adentra o teatro a partir da representação é substi-tuído pela partilha universal, num retorno a si, nos dramas que seinserem na realidade da cidade, tornar as pessoas verdadeiros atores-espectadores da sua condição, retirada da abstração, dependência ealienação das consciências, continuar no processo até que tudo sejarevisto novamente: num constante voltar a ser, por meio do aperfei-çoamento da reflexão, do amor próprio, o próprio mal faz com que ohomem busque o bem que já está posto nele de maneira latente. Porisso, para Rousseau tudo se relacionará com a política, o pensadorassinala que a felicidade ou infelicidade humana estarão ligadas aomodo como se conduz a vida dentro da cidade, na convivência comoutrem para que sua liberdade e autonomia se afirmem a partir da lei.

Não há submissão a qualquer instância, e sim obediência à lei. A razão,mesmo que quisesse jamais poderia subornar-se uma vez que o seuprincípio é a liberdade. É na cidade então que se realiza a vida moral epolítica do indivíduo, uma vez que ele não só participa da criação das leis,como também vive sob sua proteção. Procurar a felicidade é procurar obem-estar coletivo: a vocação do homem é a co-cidadania: o eu deveexpandir-se nas dimensões da cidade, o narcisismo deve tornar-se dealguma forma, coletivo. (PISSARRA 2006, p. 12).

As festas na atualidade por mais diferentes que sejam da suaformação primeira, mas ainda trazem em si o compartilhamento daalegria, de uma felicidade que pode ser vista apenas de maneiracoletiva, num compartilhamento da memória coletiva. Nesse sentido,por mais caricata, por mais mecânica que seja a sua manifestação afesta representa a transfiguração do isolamento em presença, a pos-sibilidade para um pensar diferente sobre a representação e a políti-ca. Retomadas a partir desse traço essencial de identificação de umacomunidade ou de um povo, seja no carnaval, no Bumba-meu-boi, nosblocos tradicionais ou nos festivais de música popular, nas brincadeirasde rua, etc. Cada grupo tem a sua própria estrutura para se comuni-car. A mediação cessa e, cada um se identifica consigo mesmo, co-municar a realidade do ser que se transfigura no social.

Então, indaga-se: qual a consonância que há entre a filosofiade Rousseau e a contemporaneidade? Logo para esse filósofo que ahistória do homem é muito mais da decadência do que do progresso?Segundo o professor Luciano Façanha (2005, p. 4), “tudo indica, queJean-Jacques, realmente não pretende excluir as artes, mas recuperara totalidade social tomando como base a virtude por ser a única ne-cessária entre os homens. Se não se trata de excluir as artes e asciências então estamos diante de um mal menor.” Pois, ao traçar umcaminho aparentemente contrário com o seu tempo, a grande pers-pectiva de Rousseau é diagnosticar o seu século. “Se o homem conti-nua a sofrer os males, é porque o próprio homem os engendrou, contraas suas próprias disposições naturais. A desigualdade, a tirania, omundo das aparências são a prova de que o homem está comprometi-do com uma história que ele mesmo forjou”. (SOUZA 2001, p. 79).Rousseau nos convida a pensar nessas possibilidades, talvez haja umasaída, mas, não se inscreve no curso normal dos acontecimentos,porém, cremos que o cidadão de Genebra sinalize da seguinte forma:

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Quanto a nós, homens vulgares, a quem o céu não concedeu talentos tãograndes e que não fomos por ele destinados a tamanha glória,permaneçamos na obscuridade. Não corramos atrás de uma reputaçãoque nos escaparia e que, na situação atual das coisas, jamais nosdevolveria o seu preço, ainda que tivéssemos todos os títulos para obtê-la [aparência]. De que serve procurar nossa felicidade na opinião deoutrem, se podemos encontrá-la em nós mesmo? Deixemos a outros ocuidado de instruir os povos sobre os seus deveres e limitemo-nos a bemcumprir os nossos; não temos necessidade de saber mais.Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, entãotanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estãogravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuasleis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência nosilêncio das paixões? Ai está a verdadeira filosofia. (ROUSSEAU 1978,p. 351 – 352)(grifos nossos).

Referências:ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. A vida de Rousseau e a Elaboração de sua obra.Discurso Sobre as Ciências e as Artes, Discurso Sobre a Origem e osFundamentos da Desigualdade Entre os Homens, Da Economia e a Carta ad’Alembert sobre os Espetáculos. Tradução: Lourdes Santos Machado. PortoAlegre: Biblioteca dos Séculos/Editora Globo, 1958.FAÇANHA, Luciano da Silva. A questão do progresso / Antiprogresso na filosofiapolítica de Jean-Jacques Rousseau. Revista Paradigmas. Ano V (maio-jun), n.26, 2005._______.Luciano da Silva. Conferência intitulada: O Diagnóstico do “declíniodo progresso” no século XVIII a partir da iluminação de Rousseau, na mesa-redonda: Progresso e decadência no Século das Luzes. Ciências Humanasem revista. v. 5, n. especial, 2007.FORTES, O Paradoxo do Espetáculo: Política e Poética em Rousseau. SãoPaulo: Discurso Editorial, 1997.MATOS, Luiz Fernando Franklin de. A filosofia no Palco. I Curso Livre deHumanidades, série de 18 programas que tematiza Filosofia, Sociologia,Antropologia e Letras em DVD da Cultura Marcas e Abril. 2006.PISSARRA, Maria Constança Peres. Iluminação para a vida. Revista Filosofia,Ciência e Vida sobre a obra Cartas Escritas da Montanha de Jean-JacquesRousseau, traduzido para o português pela autora. Editora Escala. Ano2006 nº. 10.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’Alembert: Sobre os Espetáculos; Tradução:Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993.______. Discurso sobre as Ciências e as Artes. Tradução: Lourdes SantosMachado. São Paulo. Abril Cultural, 1978.______. Discurso Sobre a Economia Política e Do Contrato Social . Clássicosdo Pensamento Político. Tradução: Maria Constança Peres Pissarra.Petrópolis, RJ: 1995.SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre ahistória no iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial. 2001.STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. Ensaios. Tradução: MariaLúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.______. A transparência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobreRousseau. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia dasLetras, 2001.

Edilene Pereira Boaes

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O DESABROCHAR DA SOCIEDADENA LIBERDADE*

Karliane Fontinele**

Resumo: O presente texto visa explicitar a concepção rousseauniana sobrea liberdade. Como o princípio da liberdade se torna exigência éticaprimordial no estabelecimento de uma sociedade legítima. Sendocontratualista, considera que através de um pacto social o homem sai doestado de natureza e cria a sociedade civil. Assim a liberdade tambémapresentará dois momentos, a liberdade natural que é a condição de serhomem natural; e liberdade civil, convencionada, que é usurpada peloestado corrompido, depravado. No entanto, Rousseau proclama umasociedade que seja alicerçada nos pressupostos da verdadeira liberdade,onde todos sejam iguais, sintam-se membros e amem sua pátria.Palavras-chave: Liberdade. Homem. Natureza. Sociedade. Moralidade.

Abstract: This text seeks to clarify the design rousseauniana on freedom.As the principle of freedom becomes paramount ethical requirement in theestablishment of a legitimate company. As contractualist, believes thatthrough a social pact the man leaves the state of nature and creating acivil society. Thus freedom also present two moments, the natural freedomthat is the condition of being human nature, and civil liberty, agreed, whichis misused by corrupt state, sinning. However, Rousseau proclaims a societythat is rooted in the assumptions of true freedom, where all are equal, andfeel themselves members love their homeland.Keywords: Freedom. Man. Nature. Society. Morality.

* Texto ligeiramente modificado do que foi apresentado na Mesa Redonda“Reflexos rousseaunianos: teatro, educação, política e representação” duranteo VII Encontro Humanístico realizado pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA,no período de 19 a 23 de novembro de 2007.** Estudante de graduação em Filosofia Licenciatura na Universidade Federal doMaranhão- UFMA; 7º Período. Pesquisadora do Grupo de Estudo Jean-JacquesRousseau – CNPQ–DEFIL–UFMA.

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Jean Jacques Rousseau envolvido profundamente com a existên-cia humana, tem como um dos pontos centrais de seu pensamento: aliberdade, dando-lhe um papel fundamental na moral e na política.

Para um bom entendimento do princípio da Liberdade no homem,parece ser preciso analisá-lo em sua dupla manifestação, enquantoliberdade natural própria do indivíduo no estado de natureza, e liber-dade civil, no estado civil, sendo esta colocada por Rousseau no “Contra-to Social” como de igual monta se, a construção do estado civil seaproxima o máximo possível da virtude, ou seja, se tal busca formarhomens virtuosos.

Nossa investigação pretende compreender os dois estados jácitados, em que o homem é concebido e analisar como o princípio daLiberdade se torna exigência ética fundamental, um elemento essenci-al para a constituição de um estado legítimo, com uma sociedadefundada nos pressupostos da Liberdade, que faz com que todos oshomens se sintam membros da pátria.

Pode-se dizer que seja talvez impossível abordar qualquer as-pecto do pensamento de Rousseau sem fazer referência à sua dimen-são de autor contratualista, que não esteja na relação natureza esociedade, estado natural e estado civil, homem natural e homem civil.

1. A LIBERDADE NO ESTADO DE NATUREZA

O estado de natureza segundo Rousseau seria um estado pré-social, hipotético, a-histórico, no qual o homem é apresentado comuma vida simples, com poucas necessidades (alimentação, descanso,cópula), com uma vida limitada às sensações puras e vivendo de acor-do com as condições que a natureza lhe impunha.

No estado de natureza cada indivíduo basta a si mesmo, perma-nece numa indiferença para com todos, onde cada um vive de acordocom suas necessidades inatas. Há neste homem um forte sentimentode autopreservação, procura somente o que é necessário à conserva-ção de sua própria vida, está voltado aos seus interesses particulares.

O homem nesse estado obedece senão a seus instintos e que-reres imediatos, com uma total independência do outro.Ele está àmargem da história mesmo munido da perfectibilidade. Esta é a capa-cidade de se aperfeiçoar, que é um atributo do indivíduo e não daespécie humana, sendo assim um dado da constituição natural dohomem e, por conseguinte todo desenvolvimento é aquisição individuale perece com aquele que alcançou tais prodígios.

Vejamos como o autor escreve no segundo discurso:“concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra,sem domicílio, sem guerra e sem ligação,sem nenhuma necessidade deseus semelhante, bem com sem nenhum desejo de prejudicá-los, talvezsem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem,sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senãoos sentimentos e as luzes próprias desse estado,no qual só sentia suasverdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter o interessede ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos que a vaidade”(ROUSSEAU,1978,p.227).

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Aqui Rousseau fala da independência do indivíduo no estado denatureza e de sua incapacidade de se sobrepor sobre os outros, base-ado numa auto-suficiência, que é propriamente a determinação daLiberdade de sua vontade natural.

Todo indivíduo é livre para fazer tudo aquilo que estiver ou queacredita estar ao alcance de suas capacidades, liberdade para cederou não aos impulsos da natureza, ou seja, ele é independente. Ohomem natural gozava de sua plena faculdade de escolha livre, semqualquer limitação externa ao próprio homem, exceto as determina-ções de sua constituição natural.

Depreende-se então a Liberdade de vontade como fundamentalao homem presente em sua natureza, é inerente a sua própria condi-ção de ser, e assim não pode lhe ser tirado, pois é retirar a moralidadede suas ações. Tal liberdade se efetiva no âmbito coletivo, pois é nasatividades coletivas que encontra a sua força e pode se realizar ple-namente. Apesar de estar integrada à natureza, movimenta-se deforma independente, adquirindo assim uma autonomia, no sentido depoder criar alternativas diante das circunstâncias que possam o en-volver, sendo senhor de seu próprio destino e de si mesmo, e tendo naliberdade o sentido do seu viver.

2. A LIBERDADE PERDIDA

O estado civil é um estado no qual a existência do homem, a suacondição social é determinada pela presença do outro, ou seja, umasituação onde sua autonomia não está mais posta, pois está sujeitaao outro, perdendo assim sua liberdade originária, mas segundo Rousseauadquire outra de “igual monta”, a liberdade civil.

A civilização é vista como responsável pela degeneração dasexigências morais mais profundas da natureza humana e sua substitui-ção por uma cultura intelectual, baseada no poder da reflexão.

Nesse novo estado o homem é emancipado através do uso darazão, que o possibilitou a superação de alguns obstáculos naturais,que modificou gradativamente toda a forma de viver do ser humano.

Para o outro genebrino, o homem se pôs contra sua própriaorigem, ele tornou-se depravado pelo mau uso que fez da reflexão, oremédio se fez veneno.Cito:

se ela nos destinou a sermos sãos,ouso quase assegurar que o estado dereflexão é um estado contrário a natureza e que o homem que medita, éum animal depravado (ROUSSEAU,1978,p.351).

O nascimento da sociedade se baseia na propriedade privada,acreditando piamente no poder da reflexão (uma crítica aos iluministas)que trouxe consigo costumes que corrompem, como a necessidade deestima pública, que tornou as relações sociais enganosas, e que insti-tuiu uma associação desigual e viciosa que vive o conflito entre seuspróprios interesses e os interesses coletivos.

Essa nova concepção de vida retira o homem de sua essência,tornando-o incapaz de agir com comiseração, já que o agir procede da

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condição de escolha, situação alterada pela desigualdade estabelecidapela sociedade civil, feita de forma que os caracteres primordiais aoser homem ou foram esquecidos ou estão mascarados pela polidez doscostumes.

Segundo Rousseau houve a corrupção do conceito de estadocivil, fruto de uma sociabilidade não conduzida pelas determinações doconceito racional de pacto social. A usurpação do estado por parte doindivíduo é de tal forma contrária aos fundamentos do verdadeiro pac-to, que em vez da liberdade natural reinar impera a vontadeparticular.Cito Rousseau: “tornando-se sociável e escravo, torna-sefraco, medroso e subserviente, e sua maneira de viver, frouxa eafeminada acaba por debilitar ao mesmo tempo sua força e sua cora-gem” (ROUSSEAU, 1978, p.241).

A independência do homem não pode ser realizada neste esta-do, ele abre mão de sua liberdade para participar do estado civil cor-rompido, onde apenas se encaminha à escravidão, perdendo sua pró-pria condição de ser homem como no estado de natureza.

O autor comenta que o estabelecimento da sociedade era inevi-tável. Assim era justamente no exercício de sua liberdade que o homempoderia decidir tanto pela consolidação de sua liberdade quanto pelasupressão desta, e foi por este caminho que ele se embrenhou, perdeusua liberdade originária, de viver conforme suas paixões naturais, parase submeter à uniformidade da sociedade civil, onde as relações basei-am-se em máscaras, no aparecer e não no ser verdadeiro.

3. A OUTRA LIBERDADE

Uma das pretensões de Rousseau na emancipação do indivíduo éencontrar uma forma tal de sociedade que preserve a pessoa e os bensde cada pessoa, já que agora a figura do outro é referencial e se impõe,de modo que, tendo concluído o pacto com todos, possa somente obe-dece a si mesmo, num acordo recíproco onde todos alienam seus direi-tos e deveres, elaborando as leis do estado e as de si próprio.

O estado social de direito vem na verdade transformar em liber-dade civil e não suprimir a liberdade natural do homem, acrescentado-lhe o poder de estabelecer a si mesmo as leis que deve obedecer. É estaprecisamente a definição da liberdade no momento civil, num estadolegítimo que se aproxima da virtude, que nada mais é senão autonomiade legislar-se a si mesmo, tornar-se moral, dar a si mesmo as leis.

Cito Rousseau:o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e umdireito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar.O que ele ganhaé a liberdade civil e a propriedade de tudo quanto possui (...) Poder-se-ia, a propósito do que ficou acima, acrescentar à aquisição do estado civila liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de simesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência àlei que se estatuiu a si mesma é liberdade. (ROUSSEAU,1978,p.36-37).

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Esta liberdade só pode ser adquirida por uma mudança radicalda ordem social diferente da sociedade que o pensador viveu, cujadirecionou sua crítica, expulsando tudo o que é arbitrário e particular,dando à necessidade interior da lei o aperfeiçoamento das paixõesnaturais humanos.

Liberdade civil significa adesão à lei estrita e inviolável que cadaum impõe a si mesmo, o verdadeiro caráter da liberdade é o livreconsentimento em face da lei.

Uma característica da liberdade também está no princípio doamor-de-si, pois ele permite a conciliação entre o “eu” individual e o“eu” coletivo, onde o homem prescinde de sua vontade particular paraparticipar do corpo político, que substancia o pacto social, a alienaçãodo homem ao soberano, no conceito de vontade geral. Esta é a vozque traduz o que há de comum nas vontades individuais.

O amor-de-si constitui a interioridade do indivíduo, o que permi-te pensar uma identificação da vontade particular e coletiva, na figurado soberano, que é o povo incorporado, ditando a vontade geral, cujaexpressão é a lei, objetivando tornar o homem cidadão de uma socie-dade livre. Assim todos poderão se “identificar a um todo maior, sen-tir-se membros da pátria, amá-la com esse sentimento delicado quetodo homem separado só tem para si mesmo” (ROUSSEAU,1978,p.81)

Esta realização do sujeito particular no interesse geral, no so-berano, implica um contrato social onde todos deliberadamente resol-veram formar um tipo de sociedade, uma livre associação, uma baselegítima de estado que transformou o indivíduo em cidadão que decidiuviver de acordo com os pressupostos da liberdade convencional com agarantia das leis, na harmonia civil.

Considerando que o homem está fadado em ter como referênciao outro, é preciso encontrar formas melhores de lidar com a presençadeste outro. Assim deve-se estabelecer à vida social regras derivadasde um bom pacto que vise o bem comum, e é a vontade geral, vontadedo “povo”, corpo político que expressará estas regras que os próprioshomens elaboraram a si mesmos unanimamente.

Assim a liberdade se precisa na faculdade que cada um possuide fazer predominar a vontade geral sob sua vontade particular, ondeo “povo” em conjunto obedecendo ao soberano é verdadeiramentelivre, por que a realização da liberdade se dá na submissão de todos àsleis votadas pela maioria que é representada na qualidade da vontadegeral. Esta faz a abstração do interesses divergentes e das paixões decada um para só cuidar do bem comum.

A liberdade não exclui submissão e não significa arbitrariedade,mas estrita necessidade de ação. A submissão não é de uma vontadeindividual, a um outro sujeito, ela diz apenas diz que a vontade indivi-dual está suspensa como tal, nada mais deseja ou exige para si, poissó existência e queres no seio da vontade. geral

A vontade geral se expressa na lei, somente a adesão a estavontade é que se constitui a personalidade autônoma, que é o objeti-

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vo da ordem social estabelecida pelo contrato. Esta por sua generali-dade, impessoabilidade e inflexibilidade, permite subjugar os indivíduospara torná-los livres, encadear-lhes a vontade geral com sua própriaautorização, fazer valer o seu livre consentimento contra a recusa.Sujeitando-se às leis, se é livre, “pois que elas são apenas registros denossas vontades”, é livre aquiescência, livre consentimento em faceda lei que cada um impõe a si mesmo.

A submissão à vontade geral possuidora de inflexibilidadecorporifica objetivamente a natureza moral do homem, e o conduz auma liberdade que resguarda o homem do vício e a uma moralidade queeleva o homem à virtude, liberto dos estreitos limites de seu próprioser individual e egoísta, encontra a plenitude numa verdadeira experi-ência social junto a cidadãos que aceitam o mesmo ideal de vivernuma sociedade onde todos são agentes livres, que a si mesmos pres-creve as leis, onde “todos se unindo, todos obedecem apenas a simesmo e permanecendo livre, como antes de estabelecer o contratosocial” (ROUSSEAU,1978,p.89).

Referências:CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. SP,UNICAMP, 1997.CHEVALLIER, Jean Jacques.. As Grandes obras Políticas. Rio de Janeiro,Agir, 1966.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem das desigualdadesentre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978._______. Contrato Social, São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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A NOVA HELOISA: espelho da filo-sofia rousseauniana no

século das luzes*

Maria de Jesus Gonçalves Dominici**

Resumo: O que se pretende expor neste artigo é a visão sobre o livro ANova Heloisa de Jean-Jacques Rousseau como um meio de propagação dasua filosofia. Análise esta, que se divide em três etapas: o porquê doromance e como surgiu; os personagens e suas relações harmônicas,porém conflituosa; os aspectos filósofos do pensamento do autor como oideal de virtude, amizade, felicidade e verdade.Palavras-chave: Filosofia. Romance. Iluminismo. Critica.

Abstract: What he intends yourself to display in this article the New Heloisais the vision on the book de Jean-Jacques Rousseau as a way of propagationof its philosophy. Analysis this, that if divides in three stages: the reasonof the romance and as it appeared; the harmonic personages and itsrelations, however conflictions; the aspects philosophers of the thought ofthe author as the ideal of virtue, friendship, happiness and truth.Keywords: Philosophy. Romance. Iluminismo. It criticizes.

* Este texto é uma versão ligeiramente modificada da que foi apresentada naMesa Redonda: “Reflexos Rousseaunianos: teatro, educação, política erepresentação” durante o VII Encontro Humanístico realizado pelo Núcleo deHumanidades - CCh/UFMA, no período de 19 a 23 de novembro de 2007.** Estudante de graduação em Filosofia Licenciatura na Universidade Federal doMaranhão- UFMA; 8º Período. Pesquisadora do Grupo de Estudo Jean-JacquesRousseau – CNPQ – DEFIL – UFMA.

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A Nova Heloisa foi publicada em 1761, embora tenha nascido em1757 quase ao mesmo tempo do Emílio e do Contrato Social. O roman-ce de Rousseau causou um grande entusiasmo na sociedade do séculodas luzes, uma vez que, encontrou um público já bastante aberto aoextravasamento romântico que despontava neste período. “As gran-des cidades precisam de espetáculos e os povos corrompidos de ro-mances. Vi os costumes de meu tempo e publiquei estas cartas”.(ROUSSEAU, Júlia ou A Nova Heloisa, p. 23, 1994).

Na medida em que a sociedade prima por exacerbadas exposi-ções das paixões, Rousseau atende aos seus desejos publicando umromance com uma nova roupagem, livre dos exageros e das hipocrisiascontidas nas histórias amorosas da época.

A infância de Rousseau foi muito marcada pela literatura românti-ca, pois quando criança, aos seis anos de idade, ele e seu pai concluíramas leituras dos romances deixados como herança pela sua falecida mãe.

Talvez, esta seja a explicação pelos seus dotes literários e pelagrande sensibilidade que emana de seus pensamentos, porém, apesarde sua educação ter sido influenciada por romances, ele condena aorientação infantil através de fábulas, pois assim desenvolve-se preco-cemente a imaginação e as emoções antes da razão. É seguindo estaorientação que Rousseau dá seus primeiros passos para a elaboração desua teoria educacional que será tratada no Emilio com mais intensidade.

Do mesmo modo que o filosofo genebrino vai exteriorizar atravésdo Emilio suas considerações acerca da Educação, a Nova Heloisasurgiu como medida eficaz de propagação de seus pensamentos sobreo progresso desmedido causado pelo Iluminismo.

Contudo, ter sido educado lendo romances, ao contrário do quedefende, não foi grande problema para Rousseau, pois se tornou umdos filósofos mais importantes da humanidade.

O pensamento rousseauista está presente em todos os capítu-los que compõe o seu romance, como a vida na alta sociedade e suasfalsas virtudes, a crítica feita a musica francesa, o ideal de educação;ideais filosóficos e religiosos defendidos pelos personagens Wolmar eJúlia entre outros.

Os personagens centrais do romance: Júlia e Saint-Preux vivemuma forte paixão e buscam viver um para o outro, porém surgemsituações que os impedem de viverem juntos este amor.

Júlia é uma mulher suave, simples, cristã e de uma fé tamanhaque passa segurança a todos os outros personagens, pois é para elaque todos recorrem e é por ela que todos vivem. É essa meiguice epura inteligência que vai fazer de Júlia uma espécie de preceptora deseu próprio amante cujo temperamento é impulsivo e descontrolado.

Para tornar mais impossível o relacionamento de Julia com seuamante aparece a figura do Senhor de Wolmar, um homem experiente ede fria razão, cuja compreensão e bondade conquistam a afeição deJúlia tornando-a sua esposa.

Dentro desse triangulo amoroso, Julia casa-se com o senhor deWolmar ainda amando Saint-Preux, porém não esconde de seu marido

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seus sentimentos e conta-lhe toda sua história de amor entregando aWolmar até mesmo as correspondências trocadas com seu amante. Écom a relação deste trio amoroso que Rousseau vai fundamentar, oumelhor, expressar o ideal de verdadeira amizade e do sincero laçomatrimonial.

O senhor de Wolmar mesmo sabendo da antiga paixão entre Júliae Saint-Preux, o instala em sua casa para tentar curá-los de suaspaixões, muito embora fracasse em sua missão. Júlia, fiel, permanececumprindo as obrigações de esposa sendo sincera e honesta para como marido, enquanto o amante tenta constantemente conter os impul-sos de sua paixão em nome da amizade que é a base para se alcançara felicidade em comunidade.

Desse modo, criando personagens cujo ser é transparente comoágua Rousseau levanta criticas a sociedade de sua época, sociedadeessa que se cobre de luxuosidades para disfarçar as imperfeições daalma.

Nesta época (século XVIII), a sociedade está tão ofuscada peloprogresso trazido com o Iluminismo que as pessoas não conseguemmais perceber o que existe por detrás das galantes cortinas da hipo-crisia. Desanimado com o comportamento das pessoas da alta socie-dade Rousseau procura colocar em sua obra personagens simples esensíveis que pudessem contracenar com a leveza do cenário.

A impossibilidade de atingir seres reais lançou-me no país das quimeras e,nada vendo no mundo real que fosse digno de meu delírio, alimentei-o nummundo ideal que minha imaginação criadora em breve povoou com seressegundo o desejo de meu coração (...). Figurava-me o amor, a amizade, osdois ídolos do meu coração sob as mais encantadoras imagens (...). Imaginavaduas amigas (...) dotei-as de dois caracteres análogos, mas diferentes, comduas figuras não perfeitas, mas de meu gosto, animadas pela benevolênciae pela sensibilidade. Fiz uma morena e outra loura, uma sensata e outrafraca, mas de uma fraqueza tão tocante que a virtude parecia com elabeneficiar-se. Dei a uma um amante do qual a outra foi uma terna amiga emesmo alguma coisa mais. Mas não admitir nem rivalidades, nem brigas,nem ciúmes porque tenho dificuldade em imaginar qualquer sentimentopenoso e porque não queria embaciar esse quadro risonho com algumacoisa que desagradasse a natureza. Apaixonado por meus dois encantadoresmodelos, identifiquei-me o mais possível com o amante e o amigo, mas o fizamável e jovem. Dando-lhe, além disso, as virtudes e os defeitos que sentiaem mim. (ROUSSEAU, As Confissões, p. 426, s/d).

A obra de Rousseau possui personagens de alta generosidade emuito acima do homem de sua época. Têm eles uma simplicidade euma grandeza que os fazem seres de exceção, longe que estão dohomem comum e de suas intrigas.

Este contraste existente na obra entre o mundo harmonioso esensato dos personagens com a realidade do século XVIII é um dospontos fundamentais em “A Nova Heloisa”, pois é a partir daí quedesponta uma nova orientação à literatura, a educação e as ciênciassociais nos últimos dois séculos.

A vida na alta sociedade retratada na obra e tão criticada pelofilósofo mostra como o refinamento desfigura o bom costume e detur-

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pa o bom senso. Nesta perspectiva Rousseau lança seu olhar pessi-mista ao progresso trazido pelo Iluminismo, pois este torna os homensescravos de seus produtos e alienados de si próprios.

O teatro movido pelo interesse de poucos e resultante de ne-cessidades frívolas e corrompidas pelo excesso de luxo, representandoapenas o que a política diz que deve ser visto ganha uma visão nega-tiva do genebrino. Desse modo, vê-se no Teatro uma preocupaçãocom o aparecer, porém um mostrar-se desfigurado, artificial e banal,longe de como as coisas são em seu percurso natural.

Assim, a virtude e a verdade são ocultadas pela máscara daluxuosidade, pois vale mais aquele que aparenta ter, e exalta-se a vidana sociedade, expurgando comicamente qualquer forma de vivenciacampestre, transforma-se a simplicidade campesinal em brutalidademedíocre.

Caminhando em direção oposta ao Iluminismo, embora ovivenciando, Rousseau vem resgatar a idéia de virtude enquanto arethé(principio que move tudo) e força de verdade inclinada à felicidade.

O retorno à vida no campo onde o camponês é conhecedor deseu trabalho e convive de maneira harmoniosa com a natureza extra-indo dela apenas o necessário a sua sobrevivência é trazido pelo filó-sofo como atitude de extrema importância na purificação dodepravamento ocasionado pelas grandes cidades.

O colorido de suas falsas virtudes embacia o brilho das verdadeiras, aartimanha dos procedimentos substitue os deveres reais, os belos discursosfazem desdenhar as belas ações e a simplicidade dos bons costumes éconsiderada grosseira. (ROUSSEAU, Júlia ou A Nova Heloisa; p. 32, 1994).

Outro ponto fundamental em sua obra é a influencia feminina nacriação da personalidade masculina, porém, não nos confundamos comos machismos disfarçados de revolução feminista de nosso século.Para Rousseau, a mulher guiada por uma consciência adquirida durantetoda sua educação e que consegue medir os sentidos com a razão écapaz de formar um homem virtuoso e digno.

Contudo, A Nova Heloisa obra que foi recebida como um best-sellerda época não é uma desinteressada exposição dos pensamentos de seuautor, mas um meio para que Rousseau veiculasse suas criticas aos víciostrazidos pelo Iluminismo, uma vez que este movimento ao expandir novosconceitos de vida e proporcionar o progresso das ciências e das artes,contribuiu, também, para a deturpação dos costumes. Desse modo, ape-sar de estar inserido no movimento iluminista Rousseau vê mais além agrande cegueira que as luzes da razão causam ao homem.

Referências:ROUSSEAU, Jean-Jacques, As Confissões. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Júlia ou A Nova Heloisa. São Paulo: Hucitec,1994.

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CONFLUÊNCIAS ENTRE O EMÍLIOE O REI-FILÓSOFO*

Maria do Socorro Gonçalves da Costa**

Resumo: Confluências entre o Emílio de Rousseau e o Rei- Filósofo, dePlatão. Personagens fictícios criados em importantes obras desses filósofos:Emílio ou da Educação e A República. Modelos esses que, embora elaboradosem épocas tão diferentes, uma no Iluminismo a outra, no período Clássico,trazem em si algo de comum e relevante, como por exemplo, a submissãoa uma educação diferenciada e ampla- a Paidéia, pautada em valoresuniversais e humanos que lhes proporcionariam uma Arete, que os mesmosgostariam de ver efetivados. Para isso, utilizou-se os Livros V e VI daRepública e o Livro IV do Emílio.Palavras- chave: Rousseau. Platão. Educação. Virtude. Personagens.

Abstract: Confluences between Emilio of Rousseau and the King Philosopher,of Platão. Fictitious personages created in important workmanships of thesephilosophers: Emilio or of the Education and the Republic. Models thesethat, even so elaborated at so different times, one in the Iluminismo toanother one, the Classic period, bring in itself something of common andexcellent, as for example, the submission to a differentiated and ampleeducation the Paidéia, pautada in universal and human values that wouldprovide a Arete to them, that the same ones would like to see accomplished.For this, one used Books V and VI of the Republic and Book IV of Emilio.Keywords: Rousseau. Platão. Education. Virtue. Personages.

* Este texto é uma versão ligeiramente modificada da que foi apresentada naMesa Redonda: “Reflexos Rousseaunianos: teatro, educação, política erepresentação” durante o VII Encontro Humanístico promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, no período de 19 a 23 de novembro de 2007.** Estudante de graduação em Filosofia Licenciatura na Universidade Federal doMaranhão- UFMA; 8º Período. Pesquisadora do Grupo de Estudo Jean-JacquesRousseau – CNPQ – DEFIL – UFMA.

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O Século das Luzes insere no universo filosófico Jean- JacquesRousseau (1712-1778), cidadão genebrino radicado na França onde aefervescência no meio acadêmico fazia-se notar nos vários ramos doconhecimento. Era o auge do Iluminismo e o progresso representava areunião do que de melhor haviam produzido as ciências e as artes.

Mais precisamente, sua inserção se dar quando, respondendo àpergunta feita pela Academia de Dijon sobre se o restabelecimentodas ciências e das artes teria aprimorado os costumes, Rousseau aorespondê-la, dá inicio ao “Primeiro Discurso” (1749), no qual primeira-mente começa por elogiá-las, para com o desenrolar de suas argu-mentações, sentenciar que as mesmas acabaram por corromper oscostumes e a boa moral, vindo mesmo a transformar o homem em umindivíduo imediatista, esquecendo-se de si mesmo para dar conta dosinteresses de outrem ou para ser reconhecido. Por isso, diz o autor:“Outros males, piores ainda, acompanham as letras e as artes.Tal é oluxo, como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos homens (...)Que se tornará a virtude, desde que seja preciso enriquecer a qual-quer preço ”(ROUSSEAU,1978, p.344).

Certamente que isso não atraiu para si bons augúrios, uma vezque, tendo respondido pela negativa, muitas críticas sobre ele incorre-ram passando a ser visto pelos renomados acadêmicos, como uma es-pécie de traidor, algo que ele mesmo já esperava; pois, como criticartão renomada Academia? O interessante é que mesmo a par dessa idéianão se desanimou, pois melhor, disse ele, decepcionar alguém do que ircontra seus princípios e convicção , salienta no “Primeiro Discurso”.

Rousseau, é bem sabido, não é um homem de sua época , poisarvora para si um reconhecimento futuro que até seus contemporâne-os mais próximos foram insensíveis de compreender suas pretensões ecríticas. Em vista disso, e inconformado com o cientificismo exacerba-do pela razão no século XVIII, Rousseau estará preocupado em resga-tar o sentimento, algo marcadamente humano e que parece esquecidoem uma sociedade corrompida, em que atuam homens superficiais edespreocupados de seu interesse por si; pelo próximo; pela pátria;pela virtude. Assim, pretende Rousseau para sua época : “Como seriadoce viver entre nós, se a contenção exterior, sempre representasse aimagem dos estados do coração, se a decência fosse a virtude, senossas máximas nos servissem de regra, se a verdadeira filosofia fosseinseparável do titulo de filósofo!” (Idem, p.335).

Assim, sua forma de se contrapor e mostrar seu descontenta-mento com essa sociedade vem à tona , segundo nos assegura oprofessor Luciano Façanha quando Rousseau decide calar-se e ex-pressar-se pela escrita. “Desse momento em diante, Rousseau pontuaem todas as suas obras de doutrina que a história do homem é muitomais de decadência do que de progresso” (FAÇANHA, 2006, p.48).Desse modo, faz emergir Emílio, personagem hipotético, em estado denatureza, estado em que o homem reconhece a si, uma criança a qualfará Rousseau esboçar em sua figura um indivíduo que irá seguir ocurso da natureza, ou seja, sem que nada o faça antecipar suas

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potencias, preservada das forças das paixões educada por um pre-ceptor que ao invés de reprimi-lo, fará seguir um caminho que o permi-ta amadurecer enquanto verdadeiramente humano.Um adulto consci-ente de si e da sua natureza- a natureza humana; alguém que reco-nhece no outro através do amor próprio, algo que é comum a todos, apiedade. Esse personagem assim imaginado está retratado na obrarousseauniana “Emílio ou da Educação” (1762). Obra essa duramentecriticada e inclusive queimada por suas críticas às instituições escola-res burguesa da época que reprimiam a liberdade das crianças; porpropor um projeto educativo para elas.

É na construção e constituição de Emílio que Rousseau mostraráa diferença de uma educação que respeita limites do indivíduo e oprepara para a sociedade civil, desde a infância à idade adulta, porvolta dos vinte anos, a idade moral. Para isso, vai fazendo compara-ções entre a educação dos jovens de “vossos preceptores” e a de“meu aluno” – referente a Emílio, que é apresentado a cada novoconhecimento no tempo certo e na idade que convier. O que tornaráEmilio selvagem, isto é, em estado de natureza, é o não despertarcedo demais para as paixões do corpo e da alma ,e, nisso, o propósitode Rousseau é que seu preceptor fique atento e o puxe no sentidocontrário a elas, pois só assim haverá um amadurecimento de ambos,sem que o do primeiro estrague a segunda. Citando Rousseau:

“Se os fizerdes tomar um curso diferente, e se o que se destina aaperfeiçoar um indivíduo servir para a formação de outro, ambospermanecerá num estado de fraqueza e a obra da natureza ficaráimperfeita (...) Membros grossos e robustos não fazem nem a coragem,nem o gênio, e julgo que a força da alma não acompanha a do corpoquando por outro lado, os órgãos da comunicação entre as duas estiveremmal dispostos” (ROUSSEAU, 1999, p.304).

No livro Filosofado, as autoras Maria de Lourdes Aranha e MariaHelena Martins ao se referirem ao personagem de Rousseau, dizem quepara Emílio, a “educação começa pelo desenvolvimento das sensa-ções, dos sentimentos, até que ele chegue por si próprio às noções debem e de mal e à concepção religiosa (...) O objetivo da educação é areconstrução de um homem social participante de uma sociedade raci-onal que respeita a natureza” (ARANHA e MARTINS,1986, p. 259).

Nesse sentido, vai Rousseau construindo e demonstrando comodeveria ser educado um indivíduo para que venha a se tornar umcidadão cosmopolita, consciente de sua condição do meio político aoqual venha a tornar-se membro. E o que o diferencia nessa formaçãomarcando o seu caráter, é uma boa educação que para o caso deEmílio se daria longe da sociedade vivenciada por Rousseau. Por isso,quando diz: “Examinem bem a constituição do homem, acompanhemos primeiros desenvolvimentos do coração em tal ou tal circunstância,para ver como um indivíduo pode diferir de outro por força da educa-ção” (ROUSSEAU, 1999, p338.), está querendo indicar assim que averdadeira origem e corrupção dos costumes ou do próprio homem,estaria numa educação sem princípios morais e humanos. Princípiosestes que Emílio comporta.

Confluências entre o Emílio e o Rei-Filósofo

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Como Rousseau, o filósofo grego Platão (423-347 a.C) tambémviveu em um período não só marcante para sua época como foi elemesmo para a História da Filosofia. Referimo- nos ao período clássico ouantropológico em que viveu este filósofo, no qual o problema filosófico épropriamente o homem, sua ética, virtude e saber; introduzidos pelosSofistas e aprofundados por Sócrates. Platão também demonstra certainsatisfação, devida à condenação de seu ilustre mestre, Sócrates,condenado pela contraditória Democracia grega, pelo mesmo ter susci-tado nos jovens a conversa e ensinar-lhes a pensarem por si mesmos; etrazer consigo um deus desconhecido- a consciência, talvez.

É em uma de suas obras mais importantes- A Republica, quePlatão, ao pensar em uma cidade justa contrapondo-a à que vivenciara,cria a República- cidade ideal. Nela vai estar esboçadas não só aconcepção de justiça que não estaria na cidade, mas nos indivíduosque a compõem de acordo com sua classe, como também seu bomfuncionamento a partir deles. Mas tal cidade não seria nada se à suafrente não estivesse alguém capaz de bem a administrá-la. Trata-sedo Rei- Filósofo que, assim como a cidade são criações hipotéticasque talvez em lugar algum venha a se efetivar. Mas isso são apenassuposições, pois o que este filósofo quer de fato é demonstrar comouma cidade boa, bela e justa seria semelhante aos que nela habitam.

Para isso, Sócrates que é o condutor do diálogo juntamentecom Glauco, Adimanto e Trasímaco, ao elaborarem a estrutura funcio-nal da cidade, percebem a necessidade de se pensar o indivíduo, quemé e que princípios deverá ter, pois só assim haverá um verdadeirocomprometimento não só com a cidade mas também consigo e comseus concidadãos, uma vez que nela as relações entre os homens sbaseiam na amizade e na justiça. Por isso diz ele o ideal seria “Sedescobrirmos a natureza da justiça, porventura entenderemos que ohomem justo em nada se difere dela, mas em tudo lhe é semelhante?Oudar-nos- emos por satisfeito se se aproximar bastante dela e delaparticipar mais do que aos outros?” (PLATÃO, 1987, p.250).

Mas esse não é um processo fácil, dirá Platão, se os jovens nãotiverem uma educação que para isso os faça descobrirem-se a si mesmose suas aptidões. E defende que é somente através de um processoeducativo bem amplo e elaborado e que exige empenho dos que a ele sesubmetam que isso será possível ; sendo que com o passar do tempo umse destacará entre os demais. Trata-se do Rei- Filósofo. Citando Platão:

“- Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agorase chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê essacoalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosasnaturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão dooutro não forem impedidos forçosamente de o fazer, não haverá tréguasdos males, meu caro Glauco, para as cidades, nem antes disso será jamaispossível e verá a luz do sol a cidade que há pouco descrevemos”(PLATÃO,1987, p. 252)

E o empenho de Platão na Republica , é sobremaneira elencar asqualidades que aquele deverá ir adquirindo, que vão da infância àidade adulta tais como força, agilidade, argúcia de espírito , raciocínio;

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até chegar um ponto em que esteja apto a assumir a administração dacidade. E por que não dizer que o genebrino propõe o mesmo cursopara “seu” Emílio, também beneficiário de uma educação privilegiadaque o faz tender para o mesmo fim? Os princípios humanos seriam osmesmos para estas figuras e a seguinte citação do Emílio pode serempregada tanto para o personagem de Rousseau como para o Rei-Filósofo. Citando Rousseau:

“Os verdadeiros princípios do justo, os verdadeiros modelos do belo, todasas relações morais entre os seres, todas as idéias da ordem gravam- seem seu entendimento; ele vê o lugar de cada coisa e a causa que o afastadele; vê o que pode fazer o bem e o que o impede. Sem ter experimentadoas paixões humanas, reconhece suas ilusões e seu funcionamento”(ROUSSEAU, 1999, p.337).

Lembremos, que trata- se ambos de personagens fictícios esbo-çados em obras de importantes filósofos que ao mesmo tempo em quese contrapõem à uma sociedade real demonstram através da condutadesses seres, como deveriam agir não só moralmente mas também comoseres humanos, homens de saber, conscientes de suas naturezas- anatureza humana. Fora que ao lermos Rousseau com olhar platônico, ouvice-versa, veremos nitidamente semelhanças entre as propostas pla-tônica e rousseauniana para seus personagens no que se refere não sóà educação como também ao ideal de civilismo. Além do que,enquantoPlatão procura uma natureza filosófica constituída a partir de um princi-pio educativo, Rousseau procura uma natureza humana construída porvia de um preceptor filósofo, alguém que conduza Emílio a este fim.Deste, o Vigário Saboiano; o do Rei- Filósofo, seria Sócrates, supõe-se.

Do mesmo modo, tanto para Platão quanto para Rousseau, umamá educação é sinônima dos maiores males não só para si enquantopessoa como para a sociedade. Citando Platão:

“Logo, ó Adimanto, diremos que as almas mais bem dotadas, se se depararuma educação má, se tornará extremamente perversa? Ou julgas que osgrandes crimes e a maldade imoderada têm a sua origem numa naturezaextenuante, pervertida pela educação, e que uma natureza débil nuncaserá causa de grandes bens nem de grandes males?” (PLATÃO, 1987,pp.280-281).

Rousseau propõe a Emílio o desenvolvimento não só do corpomas também da alma. Assim também Platão propõe ao Rei- Filósofo,uma educação tanto do corpo como da alma (espírito), pois só assimestaria apto à dialética e a compreender entre aquilo que é, o uno e oque muda sempre, o múltiplo. O Emílio, estaria comprometido com averdade. “Queremos, pois, que Emílio ame a verdade, que ele a conhe-ça; mantenhamo-lo sempre afastado dos negócios” (ROUSSEAU,1999,p.236).E o que diremos do Rei- Filósofo senão esse mesmo com-prometimento? Emilio deve ver e escolher o que é melhor para si e oseu preceptor o que tem de fazer é mostrar as coisas como elas são,seja a realidade, seja o que está posto nos livros. Tanto ele como oRei- Filósofo se viesse a existir, não estariam aquém de suas condi-ções, logo seres de paixões e inclinações, mas que nem por isso se

Confluências entre o Emílio e o Rei-Filósofo

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deixariam tomar por esses sentimentos, pois possuidores de racionalidadeauto- legisladora, usariam-na para se fazerem reconhecer- se a simesmos e a progredir mas só enquanto esse progresso não deterio-rasse suas virtudes e moralidade.

Emílio e o Rei- Filósofo são personagens humanos idealizadospor seus criadores e, enquanto tais o q se percebe em Rousseau, é umresgate que ele faz do homem no iluminismo,uma vez que este se verperdido ante o turbilhão social de uma sociedade exultante do sabersobre o ser; do parecer sobre o ser; do agradável sobre o útil; apon-tando o caminho,não para que de fato o homem venha a sair da suacorrupção, mas amenizar seus conflitos internos e também externosfazendo com que o homem perceba isso. E através do Rei- Filósofo,Platão quer demonstrar os ideais de virtude e conduta ética . Resu-mindo, ambas as personagens estão imbricadas por uma Arete, princí-pios humanos e amor à verdade, esta, a Arete, como sendo reflexo desuas formações física, espiritual e estética.

Referências:ARANHA, Maria de Lourdes de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Editora Moderna, 1986.FAÇANHA, Luciano da Silva. Para ler Rousseau: Uma interpretação dasua Narrativa Confessional por um Leitor da Posteridade. São Paulo:Edições Inteligentes, 2006.PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. Portugal:Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 1987.ROUSSEAU, J. Jacques. Primeiro Discurso.2ª Edição- São Paulo: AbrilCultural, 1978.__________. Emílio ou da Educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira.Ed.Martins Fontes, 1999.

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TEMA ECOLÓGICO PARA A LOUISVUITTON:

uma análise semiótica das categoriassemânticas cultura e natureza*

Maria da Graça Pereira Guimarães Corrêa**Marize Barros Rocha Aranha***

Luís Rodolfo Cabral Sales****

Resumo: Pela teoria do percurso gerativo de sentido de Greimas, queoferece parâmetros numa perspectiva crítica para a recepção e produçãode textos, analisa-se o tema ecológico materializado no anúncio publicitárioda bolsa retornável da grife Louis Vuitton. Para sustentar os argumentosda análise, é também utilizado o apoio do ex-presidente soviético MikhailGorbatchev ao abrir a campanha de 153 anos da grife.Palavras-chave: Semiótica. Sentido. Percurso gerativo.

Abstract: Through the generative course, which offers patterns forreceipting and producing texts in a critical perspective, it is analyzed theecological theme materialized on the Louis Vuitton recycled handbagadvertisement. For supporting the analysis, it used a recent adverstimentstaring the sovietic ex-president Mikhail Gorbatchev that celebrates 153years of the brand.Keywords: Semiotics. Signification. Generative course.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo deHumanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durantea mesa redonda “O percurso gerativo de sentido”.** Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Departamento de Letras. Mestraem Língua Portuguesa – UFPB. E-mail: [email protected]*** Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Departamento de Letras. Mestraem Educação – UFMA. E-mail: [email protected]**** Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Licenciado em Letras. E-mail:[email protected]

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Através do percurso gerativo de sentido, Greimas ofereceparâmetros para a recepção e produção de textos, numa perspectivacrítica. Sua teoria possibilita a análise de textos verbais, não-verbaise sincréticos, nos níveis fundamental, narrativo e discursivo, sendocada um descrito e explicado por um modelo, compreendendo que,para a construção do sentido do texto, é imprescindível a relaçãoentre os três. Embora dando prioridade ao plano do conteúdo, essateoria pode também ser aplicada no plano da expressão, uma vez queum texto manifesta-se nos dois planos.

Para ilustrar a análise do percurso gerativo de sentido propostopor Greimas, foi escolhido o anúncio publicitário da Louis Vuitton, vei-culado na revista Vogue do mês de maio de 2007, número 345, ediçãode aniversário, em que se percebe o verbal e o não-verbal.

Fonte: Vogue do mês de maio de 2007, número 345, edição de aniversário.

Por considerar que todo texto é orientado por duas categoriassemânticas mínimas, definidas na relação dos opostos e não por meiode cada uma separadamente, o nível fundamental, que corresponde àprimeira etapa do percurso gerativo de sentido, determina essas opo-sições semânticas, a partir do mais simples e abstrato.

No anúncio publicitário em análise, percebe-se uma oposiçãosemântica /natureza/ versus /cultura/. Por um lado, a natureza (natu-ral, simples, bucólico) está determinada nas flores do campo dentro dasacola; por outro, a roupa e os acessórios (óculos e pulseira, porexemplo) são determinantes da cultura (relativo à civilização e aoprogresso).

Os elementos da categoria semântica do nível fundamental re-cebem uma qualificação positiva (eufórica) ou negativa (disfórica). A

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euforia e a disforia não são valores determinados pelo sistema axiológicodo leitor, mas pelo próprio texto. Assim, no texto publicitário em foco,há a categoria de base /natureza/ como eufórica em oposição à cate-goria também de base /cultura/ como disfórica.

No nível narrativo, são as transformações que sustentam o sen-tido do texto. Em semiótica, existe sentido se um sujeito busca umobjeto de valor. Nessa segunda etapa do percurso gerativo, o sentidoaparece na acepção de “direção” e o sujeito assume os elementos dasoposições semânticas do primeiro nível como valor (positivo ou negati-vo). Por estar em disjunção ou em conjunção com esse objeto devalor, esse sujeito atua através de um fazer transformador, conduzin-do a mudança de um estado para outro. Os estados de conjunção e dedisjunção são representados, respectivamente, por: (suj. )•obj) e (suj.U obj); e a seta (’!) significa o fazer transformador.

O anúncio da Louis Vuiton segue o seguinte esquema do progra-ma narrativo simples: (suj. U obj) ’‡(suj. )•obj), isto é: o leitor, sujeitoem disjunção com /natureza/, ao comprar a sacola da grife, entra emconjunção com este objeto de valor.

Importa considerar que o sujeito, ao operar transformações,age por um programa narrativo mínimo definido pela seqüência: enun-ciado de estado ð enunciado de fazer ð enunciado de estado.

Já os programas narrativos complexos, de acordo com teoriasemiótica de Greimas, se estruturam em uma seqüência de quatro fa-ses: manipulação, competência, performance e sanção. Na fase demanipulação, um sujeito age sobre outro para levá-lo a querer e/oudever fazer alguma coisa. Na fase de competência, o sujeito que vairealizar a transformação da narrativa é dotado de um saber e/ou poderfazer. A performance é a fase em que acontece a transformação doestado de disjunção para o estado de conjunção, ou vice-versa. E, porfim, na sanção, o sujeito reconhece que a transformação foi operada.

O sujeito manipulador que opera na fase da manipulação é cha-mado de destinador; o sujeito manipulado, destinatário. O destinadorage pelo poder ou pelo saber. Ao agir pelo poder, ele oferece objeto devalor positivo (manipulando o destinatário por meio do querer) ou ob-jeto de valor negativo (manipulando o destinatário por meio do dever)- processos denominados, respectivamente, de tentação e de intimi-dação. Ao agir pelo saber, o manipulador ou faz uma imagem positivado destinatário e incita-lhe o querer para confirmar; ou, ao contrário,faz uma imagem negativa do destinatário e incita-lhe o dever de negá-la – processos denominados, respectivamente, de sedução e de pro-vocação. Assim, o manipulador age pelo poder, ao qual correspondemos processos de manipulação: tentação ou intimidação; ou age pelosaber, ao qual correspondem os processos de manipulação: seduçãoou provocação.

É preciso atentar que, no caso do texto publicitário, o destina-tário é o leitor. Dessa forma, no anúncio da grife Louis Vuitton, osujeito destinatário/leitor é manipulado pelo saber do destinador, que

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atribui a ele uma imagem positiva (a imagem de alguém que reconhecea importância da natureza) para levá-lo a querer confirmar essa ima-gem. Despertado o desejo de confirmá-la, ocorre o processo de mani-pulação denominado pela semiótica de sedução.

Para que ocorra a performance, o sujeito precisa de uma compe-tência para realizá-la. Na fase da competência, o sujeito que vai realizara transformação é dotado de um saber fazer e/ou de um poder fazer. Nocaso do texto publicitário, o sujeito destinatário sabe como operar atransformação para entrar em conjunção com o objeto de valor.

A articulação entre competência e performance é chamada depercurso narrativo da ação. Para iniciar um percurso narrativo, um sujeitoé manipulado, para que, por fim, se dê a sanção. Na sanção, o destinatá-rio emite julgamentos sobre o que foi realizado na performance. Assim, oobjeto é avaliado de acordo com o ser e o parecer e, para um textopublicitário, esta etapa é decisiva para o consumo do produto, pois,quando o que é parece ser, há a verdade (dá-se o consumo do produto).

O terceiro nível do percurso gerativo de sentido proposto porGreimas é o nível discursivo. As estruturas discursivas são examina-das do ponto de vista das relações entre a enunciação (produção ecomunicação do discurso) e o texto-enunciado. No texto publicitário,pressupõe-se a existência de uma equipe responsável pela criação dascampanhas. Entretanto, para a semiótica, no texto publicitário, nãoexiste um “autor”, mas um enunciador - aquele que enriquece a narra-tiva e a transforma em discurso.

É preciso lembrar que o texto escolhido, por ser uma peça publi-citária, possui dois objetivos principais que admitem diferentes rela-ções e gradações: promover a venda de produtos e agregar valores àdeterminada marca. Ao que tudo indica, o desejo do enunciador dacampanha publicitária da sacola Louis Vuitton não foge à regra: pre-tende promover a venda e, ao mesmo tempo, agregar valores “ecolo-gicamente corretos” ao produto.

Para cobrir temas e criar um efeito de realidade, o texto publici-tário procura figuras, que, por sua função representativa, remetem aomundo natural. No caso do anúncio da Louis Vuitton, as figuras são osóculos, as pulseiras, a roupa e a sacola, que representam a /cultura/(civilização, sofisticação); e são as flores, que remetem para o tema /natureza/, sustentado no fato de terem sido colocadas dentro dasacola, transferindo tal valor a ela.

Atualmente, as empresas de acessórios investem em bolsas,estilo sacola, retornáveis, isto é, não-descartáveis, confeccionadas apartir de matéria-prima natural como bambu e algodão orgânico, quenão prejudicam o ambiente. Isso ocorre em decorrência da preocupa-ção contemporânea com a preservação ambiental, que não admiteagressões à natureza. Entre as indústrias de produção de moda reco-nhecidas internacionalmente, a Louis Vuitton foi pioneira na fabricaçãode sacolas ditas “ecologicamente corretas”.

Recentemente, para sua nova campanha publicitária, a LouisVuitton também ajudou organizações que trabalham em prol da pre-

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servação ambiental. Segundo noticiou o site da BBC Brasil em 4 deagosto de 2007, a Louis Vuitton apoiou projetos destinados a evitar oaquecimento global, em particular, a fundação “Cruz Verde Internacio-nal”, presidida por Mikail Gorbachev, ex-líder da extinta União Soviéti-ca, hoje dedicado à causa da preservação ambiental.

Este ano a Louis Vuitton completa 153 anos. E para a campanhacom a qual comemora mais de um século e meio no mercado, convidouMikhail Gorbachev. Uma das imagens da campanha publicitária traz oex-presidente soviético pensativo, dentro de um carro, olhando paraos vestígios do muro de Berlin, que durante décadas, simbolizou, comseu apoio, a fronteira intransponível entre os universos comunista ecapitalista.

Fonte: Aliás - O Estado de São Paulo, de 11 de novembro de 2007.

Essa imagem surpreendeu o mundo. O seu impacto foi tamanhoque o jornal “O Estado de São Paulo”, de 11 de novembro de 2007, nocaderno especial “Aliás”, traz matéria assinada por Timothy GartonAsh, professor de estudos europeus na Universidade de Oxford, ilus-trada com a peça publicitária, em forma de foto, sobre a legenda:“TRIUNFO CAPITALISTA – Anúncio mostra Gorbachev passando pelomuro em companhia da bolsa de grife”. A peça abriga uma frase eminglês, que diz mais ou menos o seguinte: “Uma jornada nos leva facea face conosco”. Isso traduz verbalmente a relação entre o ex-esta-dista e o muro de Berlin, sustentado, com seu apoio, pelo regimecomunista na Alemanha Oriental. Há, ainda, que se considerar o efeitoque a palavra “acompanhado” provoca, uma vez que isso se diz dealguém em companhia de outro ser vivo, geralmente ser humano. Sen-do a bolsa que lhe faz companhia, e não um ser humano, a grifesobrepõe-se como figurativização do capitalismo.

Na análise feita, ênfase maior foi dada ao plano do conteúdo.Mas, no texto publicitário analisado, há elementos importantes queconfirmam os argumentos apresentados. Por exemplo: os cabelos damodelo chamam a atenção, uma vez que o corte e o arranjo delessempre foram elementos determinantes não só da personalidade comotambém de uma função social – por estarem encaracolados, diferem

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do padrão atual consagrado e remetem ao angelical; a boca é órgãoda palavra e origem das oposições, dos contrários e das ambigüida-des; o olhar, dotado de poder mágico, é o instrumento das ordensinteriores – fascina, fulmina ou seduz; as flores manifestam a extremadiversidade do universo; e a corda, atada à cintura da atriz ScarletJohansson, lembra o cordão umbilical, re-estabelecendo o elo entre oser humano e a terra-mãe.

Além de tudo isso, com as letras L e V na frente da bolsa, queformam e personificam a logomarca da grife Louis Vuitton, está escritaa palavra love, cujo sentido é amor. No texto publicitário, amor, em-pregado em sentido amplo, remete sobremaneira a amor ao planeta. Asacola representa o ventre da terra, de onde brotam as flores, quedão fruto. Este é a própria mulher, que, segurando a corda, aí repre-senta o ser humano.

Refêrencias:ASH, Timothy Garton. O que restou de concreto. O Estado de SãoPaulo, São Paulo, 11 nov. 2007, Aliás, p.3.BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo:Ática, 1997.FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 13º edição. SãoPaulo: Contexto, 2005.GHEERBRANT & CHEVALIER Dicionário dos símbolos. 8ª edição. Rio deJaneiro: 1994.HERNANDES, Nilton. Duelo: a publicidade da tartaruga da Brahma naCopa do Mundo. (p. 227-244). In: LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES,Nilton. (Orgs.) Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto,2005.PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica: os percursos do olhar. 2ºedição. São Paulo: Contexto, 2007.VOGUE BRASIL. Edição de aniversário. São Paulo: Carta Editorial. n°345; maio/ 2007; edição de aniversário, p. 286.

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O DOM DE GOVERNAR: São Luís ea idéia de justiça nos Livros da

Câmara (século XVII).*Alirio Cardozo**

Resumo. Este texto analisa as idéias de “justiça” e “governo” no Maranhãodo século XVII. Nossas fontes principais para esse estudo são os Livros daCâmara de São Luis. Este acervo documental nos fornece importantesinformações sobre o discurso de poder que a Câmara produz sobre aCidade. Este discurso, por sua vez, constrói uma série grande de normaspara a vida cotidiana e política de seus moradores.Palavras-chave: Governo. Cidade. Justiça. Nobreza. Século XVII. São Luís.

Abstract. This text analyses the Idea of “justice” and “government” in theold state of Maranhão in the seventeenth century. Our main sources tothis study are the council’s books of the São Luis city. This sources collectionsupply us important informations about the power speech produced bythe council about the city. This speech build a series of rules to the lifestyleand the political life of the settlers.Keywords: Government. City. Justice. Nobility. Seventeenth century. SãoLuís city.

* Este trabalho foi apresentado por ocasião do VII Encontro Humanístico daUFMA, realizado no período de 19 a 23 de novembro de 2007, e faz parte de umapesquisa que desenvolvo junto ao Departamento de História desta Universidade,intitulado: Mundos Cruzados: a cidade de São Luis, o antigo Maranhão e o impérioLuso-espanhol (1612-1668). Agradeço aos professores: Drª Antônia Mota e Dr.Rafael Chambouleyron que aceitaram o convite para formar uma mesa-redondasobre “Cidade, cultura e poder entre os séculos XVII-XVIII”. Agradeço tambémà Arlindyane dos Anjos Santos pelo auxílio nesta pesquisa.** Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão.Mestre em História Social pela UNICAMP.

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Os Livros das Câmaras ultramarinas estão entre os documentosmais instigantes para um debate sobre a idéia de justiça entre osséculos XVI e XVIII. Estas fontes falam a partir de uma perspectivalocal sobre os diversos problemas enfrentados pelos moradores de forado “Reino” (ou seja, fora de Portugal). Entre os seus temas mais re-correntes: a economia local, a pobreza local, as riquezas locais, osconflitos de jurisdição entre os administradores, mas também referên-cias às comidas, bebidas, vestimentas, os costumes... São Luis possuium dos grandes acervos deste gênero, enquanto que outras importan-tes cidades do antigo Estado do Maranhão, como Alcântara e Belém,perderam os seus próprios Livros (MARTINS, 2001).

Embora sejam documentos ricos em informações sobre a admi-nistração das cidades ultramarinas, os Livros da Câmara devem serlidos com extremo cuidado. Não são janelas abertas a partir das quaiso historiador pode mirar o passado sem pagar grandes tributos. Defato, estamos falando de registros de uma época bem diversa da nos-sa. Por isso, para uma leitura verossímil desse material precisaremosempreender uma perigosa viagem a um mundo, o século XVII, quepossuía pressupostos jurídicos, culturais, e mentais específicos. Sãoesses pressupostos gerais, mediados por circunstâncias locais, própri-as ao Maranhão dos seiscentos, que queremos discutir neste pequenotexto. Nosso objetivo principal é refletir sobre a concepção ideal degoverno e poder a partir da retórica camarária.

1. OS LIVROS E SEU LUGAR

Antes de mais nada, para uma leitura prudente dos Livros daCâmara precisamos levar em conta as especificidades do período e dolugar onde foram produzidos. Certas características da sociedade por-tuguesa do século XVII sugerem que esse material não pode ser lido aomodo das atas modernas. Nesse sentido, devemos levar em conta trêscondições básicas: 1. O conceito de “justiça” da época; 2. As grandescaracterísticas da linguagem utilizada pelas Câmaras; 3. A representa-ção específica do poder a partir dos Livros existentes em São Luis.

De modo geral, os Livros da Câmara sustentam uma relação dedomínio sobre a Cidade e seus moradores, disciplinando todas as ativi-dades econômicas, sociais e políticas. A Cidade é definida, então,como jurisdição própria da Câmara e de seus representantes. Como sesabe, o sítio básico de uma cidade portuguesa é constituído por qua-tro itens básicos: 1. Um forte (fundamental para a proteção); 2. Umpalácio (que abriga o Capitão-Mor ou o Governador); uma Igreja Matriz(ou um convento que comporte esse papel); 3. Uma cadeia e umaCâmara (que fiscaliza e, por vezes, aplica a justiça). A Câmara é, viade regra, composta por dois ou três vereadores, um ou dois juízes, umprocurador, dois almotacés, um escrivão (MONTEIRO, 1993, p. 304).Seu número apresenta, entretanto, uma certa variação de acordocom o costume local. As funções básicas de uma Câmara: zelar pelo

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Bem Público e fiscalizar a aplicação da justiça do reino. Dessa forma, aCâmara se posiciona como mediadora entre o poder Imperial e as ne-cessidades locais (BICALHO, 2003).

Aqueles que integram a Câmara são chamados de “Oficiais” e natradição notarial portuguesa recebem o tratamento próprio de VossasMercês. (HANSEN, 2004, pp. 108-109). Da mesma forma, o coletivo dosque podem ou poderiam fazer parte de uma Câmara (eleitos em vota-ções periódicas) é conhecido por “Homens Bons”. Essa denominaçãonos interessa mais de perto. Os Homens Bons são os homens aptos agovernar em função de sua “nobreza”, qualidade de sangue, ou de seuhistórico familiar favorável. Homem Bom também é uma expressão utili-zada para indicar diretamente um vereador, ou homem de palavra quali-ficada, como pode ser verificado em vários Títulos das OrdenaçõesFilipinas de 1603 (especialmente: título 65, § 2; titulo 68 § 3).

2. A IDÉIA DE JUSTIÇA

Estamos num campo estranho à cultura jurídica liberal. O con-ceito de “justiça” nos séculos XVI e XVII reconhece que os homenssão diferentes entre si. Por terem graus distintos de nobreza, os ho-mens e as mulheres merecem tratamentos distintos da lei. No caso dosConselhos locais, esses homens “privilegiados” tinham como missãorepresentar o poder real, fiscalizando a aplicação das suas leis eprerrogativas (SCHWARTZ, 1979, p. 292). Ao mesmo tempo que o reiafirma sua inquestionável autoridade junto aos subordinados e súdi-tos, oferta a eles a autonomia necessária para decidir em seu nome.Nesse sentindo, o soberano “conferia direitos aos que possuíam posi-ção” (LARA & MENDONÇA, 2006, p. 88).

A idéia de “justiça” da época sugere, ainda, que um administra-dor de “boa” origem familiar tenderia a praticar, conseqüentemente,um bom governo. Por isso, a escolha de uma família para dirigir oMaranhão, como se fosse sua própria casa, seria uma decisão plausí-vel. Foi o que ocorreu, a partir de 1621, com o governo de FranciscoCoelho de Carvalho, representante da importante família AlbuquerqueCoelho (CARDOSO, 2002). Anos depois, em 1646, num parecer doConselho Ultramarino, Francisco Coelho de Carvalho (sobrinho do pri-meiro governador) foi considerado o melhor candidato ao governo doMaranhão por ser “neto do grande Feliciano Coelho de Carvalho, eparente mui chegado de Francisco Coelho de Carvalho e Payo Coelho(....)”, de onde se pode concluir, segundo afirma o texto: “ser confor-me a natureza humana, os filhos imitarem os pais e neles se acha amesma virtude que os pais tiveram, de modo que águias generosasnão criam pombas tímidas, nem estas águias reais (...)” (“Parecer doConselho Ultramarino a respeito do que pede Francisco Coelho de Car-valho em satisfação dos seus serviços”. Annaes da Bibliotheca Nacio-nal do Rio de Janeiro, vol 26 (1904), p. 453).

Portanto, ficava claro que os homens que podem entrar no go-verno dos estados, capitanias e cidades, para além da própria com-

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petência administrativa, fator cada vez mais relevante durante o séculoXVII, são homens de uma “qualidade” diferente da maioria: pobres, de-gredados, deserdados, índios e mestiços. Só esses homens mereceriam adenominação de “cidadãos”, termo aplicado a todos os homens após ofinal do século XVIII, mas incompatível com o conceito de justiça doperíodo anterior. Essa relação entre “nobreza” e “bom governo” pareceser fundamental para uma análise verossímil da burocracia da época.

Outro aspecto relevante para o estudo da concepção seiscentistade governo, a partir do caso maranhense, é o formato do texto camarário.O estudo dos Livros da Câmara como gênero retórico específico, apesarda grande iniciativa de estudiosos como Adolfo Hansen (2004), parecenão ganhar espaço entre historiadores e cientistas políticos. Entretan-to, esse estudo parece importante na medida em que a linguagem jurídi-ca constrói um outro nível de disputa, mais silenciosa e hermética,entre as esferas do poder e os grupos sociais (THOMPSON, 1987).

Não é necessário dizer que os limites deste pequeno texto nãosão apropriados para um estudo mais profundo sobre a retóricacamarária. O que faremos aqui é a construção de uma síntese sobre ascondições mínimas a partir das quais se organiza tal discurso. Nãodesconsideramos, por outro lado, os diversos e profundos limites queos escrivães locais apresentavam, com sua pouca, pouquíssima ounenhuma erudição. Estamos aqui no limite estreito entre o conheci-mento escrito e a tradição oral.

Tal como afirmam os especialistas em direito seiscentista, comoManuel Hespanha e Pedro Cardim, as relações entre os poderes políti-cos são mediadas pelo domínio maior ou menor de uma certa “culturajurídica” (HESPANHA, 1994; CARDIM, 1998). Assim, algumas informa-ções tratadas nos Livros da Câmara se encontram inundadas por fór-mulas preestabelecidas pela tradição. Os “fatos” narrados por essesdocumentos são organizados segundo as convenções de época, en-quanto que outros são dominados por um decoro, próprio desse tipode registro escrito. Em 29 de junho de 1647, por exemplo, os Oficiaisda Câmara consideram prudente que certas cartas enviadas pelo reinão sejam registradas nos Livros. Por conterem certos “segredos”,declara o documento: “não é bem que se registre nem se saiba” oconteúdo. Portanto, esse decoro camarário tende a selecionar tópicase informações consideradas apropriadas.

A escrita camarária representa bem a concepção de governo ede ordem desse tempo. Essa sociedade se concebe politicamente comoum corpo ou organismo vivo. Nesse sentido, seus membros possuem,como num corpo humano, partes e funções. O rei é representado, viade regra, como a cabeça; os seus representantes (como as assembléi-as, tribunais e a Câmara) são o corpo, sem o qual a cabeça nada pode.

Há dois sentidos básicos que caracterizam os Livros da Câmara:1. A manutenção da República; 2. A sustentação do “Bem Comum”.Praticamente tudo o que é registrado nesses Livros é mediado poresses dois sentidos. Vejamos como isso se dá.

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A manutenção da República. O primeiro sentido diz respeito ànecessidade de manutenção da harmonia e do bom convívio entre osdiversos poderes representados no espaço urbano. Assim, ao mesmotempo que afirma a sua autoridade sobre a Cidade, o discurso daCâmara qualifica os outros poderes concorrentes: Capitão-Mor, Go-vernador, Ouvidor, missionários. Esses outros poderes são tipificadosquase sempre como: inadequadamente interventores (Capitão, Gover-nador); resistentes à tradição jurídica local (Ouvidor) ou incompatíveiscom a autoridade local (missionários).

A documentação camarária, então, tipifica cargos, poderes e açõesrespectivas. Essas tópicas são relativamente constantes e devem serlidas com cuidado pelo leitor interessado em disputas “reais”. Essa ten-dência pode ser encontrada fartamente nos documentos. Em vereaçãode 31 de agosto de 1647, por exemplo, a Câmara resolve chamar oOuvidor Geral do Estado, Antonio Figueira Durão, para que “quisesse seramigo do capitão-mor”, pois corria informação de que “havia entre ambosinimizades”. O Ouvidor respondeu à Câmara dizendo ser “amigo” do capi-tão-mor nas ocasiões em que este não se envolvia com as questões daouvidoria. De fato, se existiam problemas pessoais entre as duas autori-dades, nunca saberemos ao certo e nem importa realmente. Nesse caso,tanto a pergunta da Câmara, quanto a resposta do Ouvidor, para além dequalquer desavença “real”, têm funções bem demarcadas: manter oslimites da jurisdição local. (LIVROS DE ACÓRDÃOS, 1646-1649).

O mesmo Ouvidor Geral do Estado, Antonio Figueira Durão, seenvolve em outras polêmicas em torno do problema da jurisdição. Emdezembro de 1647, impedido de acumular a função de Corregedor daComarca, ameaça ir pessoalmente dar conta a Sua Majestade dos “ex-cessos” cometidos pelos Oficiais da Câmara. (LIVROS DE ACÓRDÃOS,1646-1649). A preocupação com os equilíbrios dos corpos políticos éuma constante. Em 7 de março de 1648, em resposta a apelação de umex juiz da Casa, Pedro Vieira, a Câmara sugere que o requerente desistada ação que, segundo os Oficiais, só “serve de perturbar a paz e quietaçãoda República” (LIVROS DE ACÓRDÃO, 1646-1649). O grande mal a serevitado, do ponto de vista do discurso da Câmara, é a introdução denovas fórmulas de governo que estejam em desacordo com os “usos ecostumes” do Império. Um bom exemplo disso são as advertências fei-tas pelos Oficiais da Câmara por ocasião da morte do governador Fran-cisco Coelho de Carvalho (1648). Dessa vez, as preocupações recaemsobre a possibilidade de acúmulo de poderes por parte do Capitão-Mor,Manuel Pita da Veiga. Nessas circunstâncias, o mais apropriado é quenão houvesse nenhuma alteração na estrutura do governo até que umnovo Governador Geral fosse escolhido, de modo que o “Capitão-Morservisse e administrasse seu cargo assim da maneira que o dito Gover-nador o tinha provido sem haver inovação alguma” (26 de fevereiro de1648. LIVROS DE ACÓRDÃOS, 1646-1649). “Inovações” ou “alterações”são termos pejorativos para a época, quase sempre sinônimos de desa-cordo ou desordem (CARDIM, 1998, p. 29).

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3. O BEM COMUM DO POVO

O segundo sentido a partir do qual se organiza o discursocamarário é a questão da sustentação do Bem Comum. A partir destatópica, a Câmara disciplina os “usos” da Cidade, aplicando uma sériegrande de interditos, censuras e proibições aos seus moradores. Esseverdadeiro registro de intervenções garante a autoridade jurídica daprópria Câmara e, ao mesmo tempo, formula um destino coletivo para acomunidade (HANSEN, 2004, p. 108). Como afirma Nicola Matteucci, anoção de Bem Comum não significava simplesmente a junção dos inte-resses individuais, mas uma “síntese harmoniosa” entre indivíduo e cole-tivo a partir da qual se busca um “consenso” (MATTEUCCI, 1995, pp.106-107). Nesta sociedade, diferentemente da nossa atual, as esferasdo público e do “particular” se confundem e uma não parece anular aoutra (TORRÃO FILHO, 2006, p. 154). Por esse motivo, a Câmara de SãoLuis propõe uma reforma de costumes, tentando inviabilizar os usosparticulares dos bens e gêneros da Cidade.

Em São Luis, algumas vereações do século XVII comprovamessa larga tendência. A Câmara ao longo do período tentou disciplinar,sobretudo, as atividades econômicas de grande e médio porte, taiscomo a produção de açúcar – por exemplo, impedindo que os morado-res utilizassem a cana na feitura de doces e os engenhos na produçãode aguardente. Da mesma forma, existiam regulamentos específicossobre a travessia para Alcântara, o comércio com Belém, a venda ecomercialização de “vinho”, “azeite”, carne, etc.. Entretanto, muitasvezes, a Câmara construía censuras sobre a vida cotidiana e as esco-lhas particulares dos moradores da Cidade. A censura recaia sobretudo aquilo que estava em discordância com este “Bem Comum”, ouseja, todas as atividades não reguladas pelos Homens Bons (XIMENDES,2004). Em 25 de agosto de 1654, dois pedreiros, Francisco Parente eFrancisco Campos, foram condenados a pagar multa por terem traba-lhado nas mediações do rio Itapecuru sem licença da Câmara. Emvereação de 9 de dezembro do mesmo ano, a Câmara proíbe quequalquer morador faça aguardente de cana ou de mandioca pelos pre-juízos, já muito debatidos na época, à produção de açúcar na região(LIVROS DE ACÓRDÃOS, 1654-1657).

Nenhuma atividade poderia estar isenta do controle da Câmara.Em 14 de dezembro de 1656, uma pernambucana chamada Francisca deMello foi presa por possuir uma pequena taberna onde vendia, semlicença, vinho, tabaco, e pequenas comidas. Em 27 de novembro de1655, a Câmara resolve proibir que os moradores da cidade usem partei-ras não reconhecidas pelos Oficiais. As festas também são corrente-mente reguladas. Em 5 de janeiro de 1656, a Câmara resolve aplicarmulta aos cidadãos que faltaram a procissão “Del Rey” e festas religio-sas semelhantes. Da mesma forma, são regulados todos os itens refe-rentes a essa atividade: a música, a decoração e, mesmo, a “pregação”feita pelos padres (LIVROS DE ACÓRDÃOS, 1654-1657). Parece claro

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que a Câmara constrói um discurso recorrente de intervenção sobretudo e todos, o que não quer dizer que este nível de controle funcio-nasse todo o tempo, ou não houvesse espaços de oposição e fuga.

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Por fim, o discurso que a Câmara produz sobre a Cidade pendeentre fórmulas construídas pela tradição letrada e invenções própriasdo lugar onde a Câmara atua, inclusive pela pouca erudição dosescrivães. Embora esse pequeno texto tenha se inclinado a analisar aprimeira dessas condições, sem esgotar o tema, tanto uma quanto aoutra parecem ser fundamentais em qualquer leitura verossímil dessesdocumentos. O passo seguinte seria, exatamente, o estudo de como aexperiência maranhense teria modificado ou relativizado tais tendênci-as imperiais. Problemas internos como as grandes distâncias, o traba-lho indígena, a necessidade de fórmulas novas de acúmulo de rique-zas, entre outras questões, tinham um grande potencial para cons-tranger as convenções importadas do Reino. Mas isso fica para umapróxima oportunidade.

Referências:BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro noséculo XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime.Lisboa: edições Cosmos, 1998.CARDOSO, Alirio. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local,acordos e conflitos no Antigo Estado do Maranhão (1607-1653).Dissertação de mestrado (história) apresentada à Universidade Estadualde Campinas (UNICAMP), 2002.HANSEN, Adolfo João. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e Bahiado século XVII. São Paulo/Campinas: Ateliê editorial/Editora da Unicamp,2004.HESPANHA, Antonio Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições epoder político. Portugal no século XVII. Coimbra: Livraria Almedina,1994.LARA, Silvia Hunold & MENDONÇA, Joseli Maria N. Direitos e Justiças noBrasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.LIVRO DE ACÓRDÃOS. SÃO LUIS, 1646-1649. Arquivo Público do Estadodo Maranhão (APEM).

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LIVRO DE ACÓRDÃOS. SÃO LUIS, 1654-1657. Arquivo Público do Estadodo Maranhão (APEM).MARTINS, Ananias. “Municípios de São Luis e Alcântara no Maranhão:informes preliminares de formação e função”. In: História dos Municípios:Administração, eleições e finanças. II Seminário Internacional – Históriado Município no Mundo Português. Coimbra: Centro de Estudos deHistória do Atlântico/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2001.MATTEUCCI, Nicola. “Bem Comum”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editorada UNB, vol. 1, 1995, pp. 106-107.MONTEIRO, Nuno. “Os Conselhos e as Comunidades”. In: HESPANHA,Antonio Manuel (coord.). História de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, vol. 4.SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. SãoPaulo: Perspectiva, 1979.THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. A origem da Lei Negra. Riode janeiro: Paz e Terra, 1987.TORRÃO FILHO, Amilcar. “Em Utilidade do Bem Comum: usos e conflitosdo espaço público em São Paulo (1765-1775)”. POLITEIA: História eSociedade, vol. 6, n. 1 (2006), pp. 149-175.XIMENDES, Carlos Alberto. “A Câmara de São Luis e o Mundo do Trabalho(1646-1755)”. Outros Tempos, vol. 1 (2004). Revista eletrônica;endereço: http//www.outrostempos.uema.br/volume1.htm.

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AS CAPITANIAS PRIVADAS NOESTADO DO MARANHÃO E PARÁ

DURANTE OS SÉCULOSXVII E XVIII*

Rafael Chambouleyron**

Resumo: o texto discute o significado das capitanias de donatários noEstado do Maranhão e Pará para entender a multifacetada experiência deocupação e povoamento do território, nos séculos XVII e XVIII.Palavras-chave: Capitanias privadas. Estado do Maranhão e Pará. SéculosXVII e XVIII

Abstract: this text discusses the significance of the private captaincies inthe State of Maranhão and Pará in order to understand the diverseoccupation and population experiences on the region throughout the 17th

and 18th centuries.Keywords: Private captaincies. State of Maranhão and Pará. 17th and 18th

centuries

* Este texto é fruto de uma pesquisa que desenvolvo junto à Universidade Federaldo Pará, intitulada “A coroa portuguesa e a Amazônia: natureza, economia etrabalho (1640-1706)”, que conta com financiamento do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O texto foi apresentado naMesa Redonda “Cidade, cultura e poder entre os séculos XVII e XVIII” no VIIEncontro Humanístico, realizado em São Luís do Maranhão, de 19 a 23 denovembro de 2007.** Doutor em História pela Universidade de Cambridge; professor da Faculdadede História da Universidade Federal do Pará.

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1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a historiografia brasileira e a portuguesa têminsistido na importância dos modos de governo na América portugue-sa. Nesse sentido, se repensaram as relações entre os poderes cen-trais e locais, recolocando o problema do absolutismo; por outro lado,tem se apresentado o problema das distâncias no império no interiordas discussões sobre o exercício dos poderes metropolitanos; final-mente, tem se discutido acerca das redes e das trajetórias adminis-trativas que marcaram o poder no contexto ultramarino e imperial(FRAGOSO, GOUVÊA & BICALHO, 2001; BICALHO & FERLINI, 2005;MONTEIRO, CARDIM & CUNHA, 2005; SOUZA, 2006).

Nesse movimento, as cidades e vilas coloniais têm sido objetoda atenção dos historiadores, a partir de uma série de eixos de deba-te: a conformação dos poderes locais e da negociação com a Coroa; opapel das Câmaras municipais no governo; e a constituição de redesde clientela no âmbito urbano (BICALHO, 1998; BICALHO, 2003).

Todos esses problemas têm permitido abordar, a partir de outrosolhares, a própria história colonial do antigo Estado do Maranhão. Nes-ta comunicação gostaria de chamar a atenção para uma série deoutras questões, inseridas nesse debate mais amplo.

O que me moveu a pensar as questões que quero apontar aqui éaquilo que caracterizaria como uma perigosa tentação de importarmodelos explicativos, construídos a partir de realidades específicas –como a do Rio de Janeiro ou a de Minas Gerais – para tentar compre-ender realidades como a do antigo Estado do Maranhão. É o caso, porexemplo, da importância que têm as comunidades mercantis para pen-sar os problemas do governo em lugares como o Rio de Janeiro(FRAGOSO, 1998; SAMPAIO, 2003) e que, seguramente, no Estado doMaranhão não tiveram o mesmo papel. Nesse sentido, parece-me quehá uma especificidade da região, que, embora tenha existido em ou-tros espaços da América portuguesa (e do próprio império), aqui tevemaior importância e longevidade.

Trata-se da existência das capitanias de donatários, que seconstituíram principalmente no período filipino e foram suprimidas peloMarquês de Pombal: Caeté ou Gurupi (pois inicialmente situada à beiradeste rio), doada em 1622 a Gaspar de Sousa, confirmada em 1634;Cabo do Norte foi doada em 1637 aos Maciel Parente, confirmada em1645; Cumã ou Tapuitapera, doada em 1627 aos Coelho de Carvalho,confirmada em 1646 (VIVEIROS, 1999; LOPES, 2002); Cametá, doadaem 1633 aos Coelho de Carvalho, confirmada em 1649 (BARATA, 1908;CRUZ, 1969); Ilha Grande de Joanes, doada em 1665 a Antônio deSousa de Macedo.

O que faz o estudo das capitanias algo importante? Fundamen-talmente, o fato de que as capitanias constituem um mecanismo depovoamento e de ocupação territorial peculiar.

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De fato, nas capitanias, construía-se um território onde se plas-mavam poderes que, em função de uma doação, tinham que ser res-peitados pelas autoridades reais e pelos moradores das capitaniasreais. Ao mesmo tempo, os donatários eram obrigados a desenvolveras suas terras, razão de ser da própria doação. É fundamental lembrarque a instituição das capitanias privadas se explica não somente comouma forma de recompensa dada pelos reis, mas também como umaestratégia de exploração econômica e de domínio político e religioso deum determinado território. Assim, a lógica de ocupação do territórioera outra, pois, embora estivesse sujeita a uma série de regras deter-minadas pela Coroa, dependia da iniciativa e financiamento particula-res, dos donatários (SALDANHA, 2001; JOHNSON, 1972; HESPANHA &XAVIER, 1998).

Meu objetivo aqui é mostrar a necessidade de reconhecer que aprópria lógica da colonização portuguesa no Estado do Maranhão (comoem vários outros lugares do seu Império) é em si própria multifacetada.Vejamos três eixos a partir dos quais pode se pensar a experiência dascapitanias de donatários, e que nos permitem pensar questões a res-peito da ocupação da região.

2. POVOAMENTOO povoamento das capitanias privadas cabia aos donatários,

sob o risco de perderem suas terras. Em 1682, por exemplo, o própriopríncipe regente reconhecia os esforços e sucessos dos donatários deTapuitapera, que tinha já formado “uma vila, a melhor do mesmo Esta-do, e com moradores, de que se formavam duas companhias de orde-nança, e engenhos e mantimentos de que se sustentava a cidade deSão Luís” (“An.to de Albuquerque Coelho de Carvalho…”, 1682, f. 300).Na mesma carta, por outro lado, o soberano reconhecia as dificulda-des que tinha o donatário para povoar a capitania de Cametá, conce-dendo-lhe mais quatro anos de prazo para ocupá-la.

Nesse sentido, cabe aprofundar a reflexão e investigação acer-ca das estratégias adotadas pelos donatários para ocupar e povoarsuas terras. Bom exemplo disso é a migração açoriana fomentada nofinal da década de 1640 pelo donatário da capitania de Cametá (“An.to

Coelho de Carvalho”, 1647, f. 94v). Mais ainda, qual a importância quetiveram para a Coroa as capitanias como forma de ocupação do terri-tório? Em vários momentos, a Corte incentivou e favoreceu o esforçodos donatários, na medida em que ela própria era incapaz de garantir aocupação do Estado do Maranhão. No século XVIII, o donatário dacapitania do Caeté, por exemplo, vinculava o aumento da populaçãode sua capitania ao resgate e descimento de índios, revelando umalógica que atrelava o povoamento ao controle sobre a força de traba-lho (“Requerimento de José de Melo e Sousa…”, 1734).

Entretanto, não devemos confundir a iniciativa dos donatárioscom a da Coroa, nesse sentido é preciso investigar em que medidaessas estratégias diferiam das adotadas por ela. É preciso se pergun-

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tar, por exemplo, que tipo de alianças os donatários e seus procurado-res estabeleceram com portugueses e com os índios para o povoa-mento de suas vilas.

3. TERRITÓRIO

Eidorfe Moreira chamou a atenção de que povoações comoCametá e também a fortaleza de Gurupá constituíram “bocas do ser-tão” (MOREIRA, 1966, p. 33). De fato, apesar de um número grande deexpedições saírem de Belém, a vila de Cametá e a fortaleza de Gurupáse tornaram centros de difusão da penetração portuguesa pela Ama-zônia. Foi o caso da famosa expedição de Pedro Teixeira, na primeirametade do século XVII; ou de uma importante embaixada dirigida pelosjesuítas (tendo à frente o padre Antônio Vieira), em 1659, para nego-ciar as pazes com nações indígenas do Marajó, composta de dozecanoas, que foi organizada e partiu também de Cametá.

Nesse sentido, cabe-se perguntar acerca da diversidade de ex-periências urbanas e sociais no interior do Estado do Maranhão. Emque medida essa natureza de “boca do sertão”, de onde saíam e che-gavam expedições ao sertão organizava a vida de uma vila comoCametá, ou uma fortaleza como Gurupá? Como então essas vilas searticulavam em relação aos principais centros urbanos (do ponto devista demográfico e político) do Estado do Maranhão, como a cidadede Belém, por exemplo? Afinal, o que significava viver numa vila dedonatário? Em 1733, o primeiro bispo do Pará, Dom frei Bartolomeu doPilar, queixava-se sobre a vila do Caeté, “que a vila só tinha o nome,por não ver nela mais que algumas poucas casas, ou para melhor dizer,palhoças, porque os moradores assistiam todos nas casas das suasroças, achando-se a chamada vila desamparada” (“Consulta do Con-selho Ultramarino a Dom João V”, 1733).

Por outro lado, as vilas das capitanias do Caeté e de Tapuitaperaeram lugares de passagem na rota que ligava o Maranhão ao Pará. Épreciso investigar a fundo o que isso significava na organização doespaço urbano e das atividades dos moradores da região. Portanto,assim como havia “bocas do sertão”, havia também espaços funda-mentais para a comunicação entre as duas principais capitanias doEstado. Essa heterogeneidade dos usos dos espaços urbanos tem queser abordada para entender a diversidade das experiências de povoa-mento da região.

4. EXERCÍCIO DOS PODERES

A questão da jurisdição das terras privadas coloca um problemaimportante para a historiografia. Como falei, nos últimos anos, histori-adores brasileiros e portugueses têm dado muita atenção às formas degoverno nas colônias. Basicamente, trata-se de repensar a idéia de

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que o Antigo Regime, o absolutismo, implicara um domínio centralizadoe exclusivo do rei sobre o governo de suas terras. O que se temapontado indica que, tanto em Portugal, mas principalmente nas “con-quistas” ultramarinas o governo era compartilhado e negociado pelomonarca com grupos locais (organizados muitas vezes em torno alinhagens familiares).

Isso tem levado os historiadores a investigar as formas de as-censão e legitimação social e política dos moradores das colônias,para entender igualmente as maneiras por meio das quais negociavamcom o rei e seus delegados no ultramar. A experiência das capitaniaspermite pensar esse problema a partir de uma outra perspectiva.

Os poderes dos donatários eram reconhecidos pela Coroa, umavez que eram por ela outorgados, mas diferiam dos poderes municipaisreconhecidos pelos reis. A doação de terras com jurisdição foi uminstrumento criado pela própria Coroa para desenvolver terrasdesabitadas por europeus, desde a conquista das ilhas no século XV.As Câmaras atrelam-se a uma outra tradição, da formação dos conce-lhos municipais em Portugal, desde a Idade Média. Nesse sentido, odesenvolvimento das capitanias, com sua vila, sua Câmara, e suasjustiças, atreladas aos interesses de algumas famílias da elite luso-americana, significava a consolidação de um poder “local” que não seconfundia necessariamente com os poderes das Câmaras. Em 1674,por exemplo, o donatário de Cametá queixava-se da intromissão dosoficiais da Câmara de Belém na sua jurisdição, o que valera uma repre-ensão do próprio monarca aos vereadores.

“Oficiais da Câmara da capitania do Pará &. Antônio de Albuquerque Coelhode Carvalho, donatário da capitania de Cametá, se me queixou de haverdesmandado à dita sua capitania, repartir os índios forros dela, contra a formade suas doações; e porque não convém proceder-se nesta conformidade,hei por bem e vos mando e ao tenente da dita capitania do Cametá, que senão intrometam não governo dos índios, que somente toca à pessoanomeada pela Câmara, visto não haver ainda forma na governança nacapitania do Cametá” (“Para os off.es da Camara do Pará…”, 1674, ff. 4v-5).

Mas é preciso pensar também como se davam os conflitos entrepoder real e poder dos donatários em terras consideradas privadas.Como se relacionavam as autoridades reais com os poderes dosdonatários? Em 1650, a capitania de Cametá era alvo da ação dosgovernadores e capitães-mores, do que resultou também uma adver-tência do rei, que estranhava numa carta régia que “os governadores,capitães-mores dele se intrometiam na jurisdição da dita capitania, enão guardavam o que dispõem na doação dela” (“Para o gov.or doMaranhão…”. 1650, f. 163v).

O poder dos donatários chocava-se igualmente com outros po-deres constituídos e reconhecidos do Estado do Maranhão. Era o casodos missionários. O domínio temporal concedido aos jesuítas sobre asaldeias de índios livres, em virtude do Regimento das Missões, de 1686,não tinha a mesma aplicação nas capitanias de donatários. Em 1699, orei esclarecia aos padres da Companhia de Jesus que

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“a jurisdição chamada temporal que se vos concedeu se não entende emforma que por virtude dela fiquem os índios das aldeias das capitanias deque é donatário o dito Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho isentosda sua jurisdição, nem para que possais de algum modo impedir seusmandados que sempre se presumem justificados, e quando acheis ocontrario e deveis fazer presente ao dito donatário ou a seu capitão-tenente por modo de requerimento, e não de jurisdição para que vosdefira como for justiça” (“Para o superior das missões do Maranhaõ…”,1699, p. 184).

Por outro lado, é preciso investigar como as elites locais serelacionavam com as famílias dos donatários, que tinham seu poderfamiliar (as capitanias eram hereditárias) reconhecido pela Coroa. Mui-tas vezes, os interesses dos donatários se chocavam com os daselites de Belém e São Luís, cujo poder se expressava através dasCâmaras dessas cidades, como vimos. Tal qual nas capitanias reais,como Pará e Maranhão, haveria o surgimento de, digamos, “sub-elites”nas capitanias privadas, que se opunham ou conflitavam com os pró-prios donatários? Talvez seja possível perceber isso com a extinçãodas capitanias, na década de 1750, processo que gerou uma significa-tiva rearticulação de poderes locais.

A constituição desse poder privado, embora limitado pelo exer-cício do poder real, é um campo de trabalho inédito para o Maranhãocolonial. Apesar dos trabalhos de Manuel Barata, Ernesto Cruz (sobreCametá), de Antônio Lopes e de Jerônimo de Viveiros (sobreTapuitapera), pouco foi investigado sobre essas relações. E isso é deimportância para entender também a composição das elites e dasfamílias nas terras de capitanias privadas após a sua extinção, nasegunda metade do século XVIII, pelo Marquês de Pombal.

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O estudo das capitanias privadas pode nos ajudar a melhor en-tender a complexa experiência colonial da ocupação do Estado doMaranhão. Cabe aos historiadores, começar a colocar essas questõesem pauta para ajudarmos a pensar a reescrita da história do Estado oMaranhão. Reescrever a história do Estado do Maranhão significa colocá-lo no debate nacional, dialogando com a historiografia a partir daespecificidade, e não da adequação de modelos construídos a partirde outras realidades.

Referências:

a) Fontes:“An.to Coelho de Carvalho”. 10 de julho de 1647. Arquivo HistóricoUltramarino, códice 92, f. 94v.“An.to de Albuquerque Coelho de Carvalho. Pera povoar a capitania deComutá”. 6 de março de 1682. Arquivo Histórico Ultramarino, códice93, f. 300.

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“Consulta do Conselho Ultramarino a Dom João V”. 14 de março de1733. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (Avulsos), caixa 15, doc.1378.“Para o gov.or do Maranhaõ. Sobre se darem a Antônio de AlbuquerqueCoelho de Carvalho as doações q. tem da capitania do Camutá, e asmaes provisões passadas em seu favor e se naõ intrometerem osgov.res do Maranhaõ na jurisdiçaõ della”. 25 de fevereiro de 1650. ArquivoHistórico Ultramarino, códice 275, f. 163v.“Para o superior das missões do Maranhaõ. Sobre os missionarios sequererem entremeter no governo temporal das terras de donatarios equeixa que delles fez Antonio de Albuquerque donatario do Camutá”.17 de janeiro de 1699. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 66 (1948), p.184.“Para os off.es da Camara do Pará. Sobre An.to de Albuquerque donatarioda capitania do Cumutá”. 24 de abril de 1674. Arquivo HistóricoUltramarino, códice 268, ff. 4v-5.“Requerimento de José de Melo e Sousa para Dom João V”. c. 1734.Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão (Avulsos), caixa 21, doc. 2146.

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As capitanias privadas no estado do Maranhão e Pará...

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Rafael Chambouleyron