a comunicação interpessoal mediada e a representação da adolescência

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A comunicação interpessoal mediada e a representação da adolescência Mariane Cara 1 Resumo: O presente artigo tem o objetivo de apresentar o papel do telefone até meados dos anos 1990, com seu caráter verbal/sonoro, chegando à comunicação mediada por computador (CMC) que adiciona o aspecto visual à interação mediada, por meio de fotografias e vídeos compartilhados e acessíveis a qualquer momento, seja em computadores desktop, laptops, tablets ou smartphones. Na inserção da visibilidade, adentramos no universo da estética intencional, em uma superexposição hiper-corporal, que não contêm apenas o corpo natural ou orgânico, mas traz consigo uma imagerie sublimada e estetizada disciplinarmente por meio da aplicação de filtros e demais edições. Curiosamente, o papel da imagem nas relações da comunicação interpessoal mediada não é fruto apenas das redes sociais ou dos dispositivos móveis, estando presentes também no imaginário social e publicitário desde a época do telefone fixo, na figura das Pin Ups, nas publicidades, programas de entretenimento e videoclips, que utilizavam excessivamente a imagem idealizada da "garota pendurada ao telefone". A partir desta observação, podemos invocar a grande relevância da imagem e do imaginário visual na representação de adolescentes nas relações sociais e em atos de comunicação mediada. Palavras-chave: Comunicação interpessoal mediada. Redes sociais. Fotografia digital. Adolescência. 1. Introdução Embora o uso intensivo das redes sociais e dos smartphones tenha acentuado sobremaneira a comunicação interpessoal mediada entre os adolescentes nativos digitais (PRENSKY, 2001), há muito verificamos a manutenção e a intensificação dos laços sociais por meio destas formas de relacionamento mediado. Ainda nas décadas de 1940 e 1950, quando o telefone fixo tornou-se um aparato doméstico, ser adolescente significava, entre outras coisas, estar "pendurado no telefone", especialmente entre as garotas, indicando em certo grau que as práticas de comunicação são, além de outros fatores, pautadas pelo aspecto de gênero. Da invisibilidade corporal do telefone à superexposição imagética das fotografias postadas nas redes, podemos traçar o fenômeno da preponderância da comunicação interpessoal mediada no universo juvenil. Entre os dispositivos de comunicação interpessoal mediada, indicamos três 1 Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com graduação em Publicidade e Propaganda pela UNIVAP. É professora da Pós graduação em Gestão de Pessoas da UNIVAP e tem os seguintes tópicos de pesquisa/atuação profissional: comunicação e imagem, planejamento estratégico, pesquisa de mercado, análise de tendências e identidade visual.

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A comunicação interpessoal mediada e a representação da adolescência

Mariane Cara1

Resumo:

O presente artigo tem o objetivo de apresentar o papel do telefone até meados dos anos 1990, com seu caráter verbal/sonoro, chegando à comunicação mediada por computador (CMC) que adiciona o aspecto visual à interação mediada, por meio de fotografias e vídeos compartilhados e acessíveis a qualquer momento, seja em computadores desktop, laptops, tablets ou smartphones. Na inserção da visibilidade, adentramos no universo da estética intencional, em uma superexposição hiper-corporal, que não contêm apenas o corpo natural ou orgânico, mas traz consigo uma imagerie sublimada e estetizada disciplinarmente por meio da aplicação de filtros e demais edições. Curiosamente, o papel da imagem nas relações da comunicação interpessoal mediada não é fruto apenas das redes sociais ou dos dispositivos móveis, estando presentes também no imaginário social e publicitário desde a época do telefone fixo, na figura das Pin Ups, nas publicidades, programas de entretenimento e videoclips, que utilizavam excessivamente a imagem idealizada da "garota pendurada ao telefone". A partir desta observação, podemos invocar a grande relevância da imagem e do imaginário visual na representação de adolescentes nas relações sociais e em atos de comunicação mediada. Palavras-chave: Comunicação interpessoal mediada. Redes sociais. Fotografia digital. Adolescência. 1. Introdução

Embora o uso intensivo das redes sociais e dos smartphones tenha acentuado

sobremaneira a comunicação interpessoal mediada entre os adolescentes nativos digitais

(PRENSKY, 2001), há muito verificamos a manutenção e a intensificação dos laços sociais

por meio destas formas de relacionamento mediado. Ainda nas décadas de 1940 e 1950,

quando o telefone fixo tornou-se um aparato doméstico, ser adolescente significava, entre

outras coisas, estar "pendurado no telefone", especialmente entre as garotas, indicando em

certo grau que as práticas de comunicação são, além de outros fatores, pautadas pelo aspecto

de gênero. Da invisibilidade corporal do telefone à superexposição imagética das fotografias

postadas nas redes, podemos traçar o fenômeno da preponderância da comunicação

interpessoal mediada no universo juvenil.

Entre os dispositivos de comunicação interpessoal mediada, indicamos três

1 Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com graduação em Publicidade e Propaganda pela UNIVAP. É professora da Pós graduação em Gestão de Pessoas da UNIVAP e tem os seguintes tópicos de pesquisa/atuação profissional: comunicação e imagem, planejamento estratégico, pesquisa de mercado, análise de tendências e identidade visual.

principais, fruto do desenvolvimento tecnológico, sendo: 1. telefone fixo, 2. redes sociais e 3.

smartphones, estes últimos compartilhando as premissas tecnológicas dos anteriores,

adicionando o fator da mobilidade e portabilidade. Nestes três sistemas estamos tratando de

comunicações em que não seria compartilhada a presença físico-espacial dos interlocutores

em uma disembodied form of communication (VALENTINE, 2006), na premissa da ausência

corporal, o elemento diferenciador entre o telefone fixo, as redes e os smartphones é que, no

primeiro, temos a ausência das imagens e a fixidez do local e nos outros dois sistemas

instaura-se a visibilidade bidimensional dos comunicadores.

2. A invisibilidade do telefone fixo e o espaço para as representações idealizadas

No texto Birds on the wire – Troping teenage girlhood through telephony in mid-

twentieth century US media (2005), Mary Celeste Kearney demonstra como o telefone, que

primeiramente teria sido idealizado para ligações profissionais, transformou-se em um meio

decisivo no ambiente familiar, com enfoque principal no público adolescente. Além de

apontar o telefone como relevante nas relações juvenis, a autora, bem como a literatura na

qual se baseia, determina que este é um meio de utilidade doméstica eminentemente feminina,

delimitando sinais de gênero. Uma das literaturas que a autora cita é Gender and the

residential telephone, 1890-1940: Technologies of sociability de Claude S. Fischer (1988),

no qual a autora demonstra que o telefone fixo seria um aparelho de comunicação mediada

ambíguo: ao mesmo tempo que era emancipatório, mantinha um forte aspecto reacionário.

A qualidade emancipadora do telefone fixo residia na eliminação da necessidade dos

encontros face a face e na possibilidade de dar voz às mulheres que estavam sob um sistema

patriarcal. No momento em que as mulheres/adolescentes não precisavam mais

obrigatoriamente estar de "corpo presente" nas situações sociais/comunicacionais, elas

estavam desobrigadas da tarefa de escolher a roupa ideal, maquiar-se corretamente, pentear-se

e todos os demais subterfúgios estéticos próprios dos encontros físico-corporais. A forma

comunicativa não–corporal do telefone no seu princípio auditivo/sonoro, livrava as mulheres

dos códigos visuais, facilitando a verbalização dos seus sentimentos e dos seus pensamentos

mais profundos, numa época em que eram desencorajadas a falar, ou até mesmo proibidas de

emitir opinião.

Apesar deste forte aspecto emancipatório, o telefone de certa maneira mantinha o

status quo patriarcal ao reservar à mulher ou à garota a limitação de ação exclusivamente ao

refúgio do ambiente doméstico: local de onde eram feitas as ligações telefônicas

concomitantemente à execução das extensas tarefas domésticas ou à observação constante de

pais furiosos ou maridos impacientes, que comumente se referiam às filhas e às mulheres que

usavam o telefone como portadoras de uma espécie de doença: a Telephonitis2.

No limiar entre a emancipação feminina e a manutenção do status quo patriarcal, a

garota “pendurada no telefone” transformou-se em uma imagem recorrente e uma referência

emblemática da adolescência do pós-guerra, tanto nas publicidades quanto em filmes como

Bye Bye Birdie da Columbia Pictures (1963) e em programas de rádio que posteriormente se

transformaram em séries de TV, como A Date with Judy da NBC, e Meet Corliss Archer da

CBS. Nestas décadas o telefone era a figura da adolescência feminina, o signo que

representava a geração, ou, se preferirmos adotar o termo de Mary Celeste Kearney, o

telefone seria o melhor exemplo de trope3 da adolescência feminina do pós-guerra, como

podemos observar em algumas imagens:

Figura 2.1: Capa do DVD da série Meet Corlis Archer.

2 Telephonitis foi o nome dado à patologia social ou transtorno de quem tem compulsão por falar ao telefone. A palavra tomou corpo na mídia no início do século XX nos Estados Unidos. 3 Trope é o termo utilizado na língua inglesa para significar figura de linguagem no uso literário, ou seja, um sinônimo para o que entendemos como metáfora, metonímia, entre outras figuras. A intenção de Kearney ao utilizar a palavra trope ou o termo do título do artigo: troping teenage girlhood through telephony é para denotar que a garota pendurada no telefone seria a forma encontrada pelos publicitários e jornalistas para designar a adolescência da época. Troping seria uma formação discursiva que demonstra, em certo grau, as particularidades da adolescência (exclusivamente feminina) dos anos 1940 e 1950. (Kearney, 2005. p.571)

Disponível em: http://www.oldies.com/product-view/6470D.html

Figura 2.2: Publicidade do ano 1950 (supostamente da Neolite Soles) Disponível em http://www.retroarama.com/2011/09/teens-and-telephones-really-connect.html, também disponível no link: http://www.flickr.com/photos/retroarama/6196661320/. Ambas páginas de Sally Edelstein.

Interessante notar que o telefone, como meio desprivilegiado no sentido visual,

aparece constantemente em idealizações da imagem corporificada da garota que o utiliza,

mantendo as negociações a respeito do corpo feminino. A figura jovial das Lolitas dispostas

nas publicidades e programas televisivos presentifica o então corpo visualmente ausente em

formas imagéticas sedutoras, sanando a curiosidade do público sobre a aparência hipotética da

interlocutora no momento em que está na linha. Desta forma, podemos supor que a força

imagética da garota pendurada no telefone se transforma em um fetiche relacionado ao ato

voyeur.

A fetichização da mulher que fala ao telefone, apresentando o aparelho como um

recurso fálico, é recorrente também nas ilustrações de pin-ups nos anos 1940 e 1950. Diversos

artistas o utilizaram em suas obras mais conhecidas, dentre eles: Al Buell, Bill Randall, Gil

Elvgren, Earl Mac Pherson, Donald Rust, Harry Ekman, Alberto Vargas e George Petty;

sendo que George Petty ficou mundialmente conhecido pela recorrência da utilização do

aparelho em suas ilustrações, como pode ser visto a seguir:

Figura 2.3: Montagem de imagens de pin-ups do ilustrador George Petty, retiradas de diversos sites. Destaque para o site que apresenta o The Petty Project, no link: http://blog.airshowreview.com/2010-07-14/the-petty-project-history

As ilustrações das pin-ups feitas com as refinadas técnicas de Airbrush de George

Petty ficaram conhecidas como Petty Girls e são representações de garotas comuns com um ar

inocente, sempre alegres, sorridentes e dispostas, numa sensualidade ingênua e adequada para

o sucesso entre o público masculino da época. Ao observarmos as Petty Girls e as

publicidades da época com seu uso excessivo de imagens relacionando o telefone às mulheres

de forma erotizada, percebe-se que é praticamente impossível escapar da máxima do olhar

masculino objetificante da figura feminina também conhecido como “male gaze”4 e

denunciado por Laura Mulvey em seu texto Visual Pleasures and Narrative Cinema (1975),

pelo menos no que tange às imagens de meados do século XX.

4 Este tipo de olhar, segundo a autora Laura Mulvey, predomina na produção do cinema clássico hollywoodiano, de forma a manter o sistema patriarcal dominante.

Seguindo a investigação em relação ao uso do telefone como representante das

adolescentes no discurso midiático, chegamos a dois exemplos na música new wave e pop.

Em 1978, a banda Blondie lançou o single Hanging on the Telephone, do disco Parallel

Lines5, escrita por Jack Lee e produzida por Mike Chapman. O plot da letra é a história de

uma adolescente apaixonada, que conversa ao telefone com seu namorado.

Figura 2.4: Deborah Harry da banda New Wave Blondie em foto do Single Hanging on the Telephone – 1978.

Nos anos 1980, o clip Girls just wanna have fun da cantora Cindy Lauper6 retoma o

tema rapidamente em cenas que mostram a protagonista conversando com as amigas.

5 Mais informações disponíveis em: http://en.wikipedia.org/wiki/Blondie_%28band%29 6 Copyright: (C) 1983 Sony BMG Music Entertainment.

Figura 2.5: Montagem de telas retiradas do clip de 1983 Girls Just wanna have fun da cantora Cindy Lauper.

Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=PIb6AZdTr-A.

Além desses exemplos, poderíamos seguir citando outras músicas, que têm na letra o

telefone como protagonista das atividades juvenis, entre eles Ring Ring do grupo Abba,

Clouds across the Moon da Rah Band e um dos grandes fenômenos da internet de 2012: o clip

Call me maybe de Carly Rae Jepsen, que se tornou viral juntamente com suas inúmeras

versões, dentre elas a de Kate Perry, a das candidatas à Miss Estados Unidos, a emulação que

simula o Presidente Barack Obama cantando a música e o clipe que estrela Neymar Jr. e

outros jogadores para o Canal SantosTV-Youtube.

Em uma sociedade pautada pelo visual, a invisibilidade corporal do telefone fixo parece

ter nascido para ser superada pelas imagens, sua condição denota uma "falta" a qual, ainda

nos anos 1940, já era suplantada por outras analogias e presentificações, como as

publicidades, programas televisivos, filmes alusivos e ilustrações das Pin-Ups. Não seria à toa

que uma das tecnologias que os espectadores do desenho The Jetsons mais apreciavam era a

capacidade das tele-conferências do futuro, em que George falava com sua esposa Jane ou

com seu chefe Cosmo Spacely, sempre com o auxílio da imagem na tela.

3. E eis que as redes concretizaram a imagem

A visualização bidimensionalizada dos interlocutores começou a dar seus primeiros

passos com a CMC (comunicação mediada por computador) através da viabilização da

internet no meio doméstico no final dos anos 1990. Logo em seguida, em meados dos anos

2000 a partir da Web 2.07 alcança-se o nível de interatividade necessário para o crescimento

das redes sociais.

As mudanças da Web 2.0 trouxeram em seu bojo o papel ativo dos internautas, que a

partir das ferramentas disponíveis ganham a possibilidade de produzir conteúdo com a prática

do upload desmontando, em certo nível, a supremacia da cultura de massa. No ambiente da

web, propício para a participação e subjetivação, surgem em 2002 as primeiras redes sociais

da internet com o intuito de permitir a interação e a sociabilidade entre os usuários. Essas

redes emprestam os conceitos da world wide web e são rizomáticas, "na condição

indeterminada de elementos simultâneos, de eventos sucessivos" (SANTAELLA e LEMOS,

2010, p.29)

As redes sociais são dignas de nota na história da comunicação mediada, por

realizarem trocas e estabelecerem laços sociais de uma maneira diversa da comunicação que

era permitida pelo telefone fixo e, como nota Raquel Recuero (2009, p.36), as redes

influenciam e modificam a sociabilização das pessoas, em relações que geram laços sociais.,

talvez com um peso conceitual diferente do sentido tradicional da palavra "social",

especialmente daquele utilizado pela sociologia clássica tributária do século XIX. é certo que

nas redes os laços sociais são aqueles que possuem como essência a comunicação, no

contexto de estar junto.

Além das características acima citadas, é mister demarcar que as relações próprias 7 Web 2.0 é uma designação criada por Darcy DiNucci ainda em 1999 para demonstrar as prováveis mudanças da rede para atividades interativas. Na Alemanha, a Web 2.0 recebeu outros rótulos, como Netz der Amateure (rede dos amadores) e Mitmach-Netz (rede colaborativa), conforme explicita Ramón Reichert (2008, p.8).

das redes sociais da internet diferem em grau considerável das relações edificadas nos sites de

MUDs (Multi User Dungeous) como é o caso do Second Life. Manuel Castells (2003, p.147)

atenta para esta questão reforçando o fato de muitos estudos sobre redes terem como corpus

os MUDs8 maximizando, nestes textos, as "fantasias pessoais" e sugerindo subjetividades

prontas para a troca de papéis. Na prática, a ficcionalização da identidade própria dos MUDs

não pode ser transferida plenamente para o entendimento das redes sociais digitais pelo fato

do faturamento das redes ser baseado nos anúncios dirigidos por filtros, que indiretamentente

exigem do participante a autodefinição constante e, por este motivo, são diminuídas as

possibilidades dos perfis serem palcos de muitos "eus" simulados (como nos MUDs).

Outro fator relevante do sistema social enredado é a relevância da imagem. Nas redes

somos procurados muito mais por nossas fotografias e vídeos do que por nossas opiniões,

ressaltando especialmente as fotografias postadas nos álbuns e perfis, que plasmam a

aparência corporal em seus atos mais triviais e incentivam a construção imagética da vivência

no cotidiano. Quanto mais imagens postadas, mais interessante é a performance na rede.

Compartilhar fotos é um dos fatores-chave desses sistemas de comunicação

intermediada, conforme demonstra o artigo Vision Statement: Mapping the Social Internet

(PISKORSKY, 2010) especialmente no Facebook, que já começou sua história como sendo

um registro imagético, ainda no ano de 2003, quando Mark Zuckerberg criou o Facemash:

rede interna da Universidade de Harvard, que funcionava a partir da disposição de duas fotos,

e o jogo funcionava pela escolha da pessoa mais atrativa e a menos (hot or not)9.

Enquanto o telefone fixo funciona como uma forma de comunicação não-corporal e

não-visual, como um confessionário estritamente verbal, as redes sociais inauguram a práxis

da comunicação interpessoal mediada pautada por uma visualidade intencional, que adere a

uma forma latente de superexposição hiper-corporal, ou seja, trata-se de um território

imagético e representacional que não contêm apenas o corpo natural ou orgânico, mas traz

consigo uma imagerie sublimada e estetizada disciplinarmente por meio da aplicação de

filtros, edições e demais subterfúgios artificializantes.

As edições intencionais efetuadas nas imagens são atos ascéticos, tornando as

8 Os comentários do autor são dirigidos especialmente como uma crítica à recepção do livro Life on the Screen

de Sherry Turkle (1995). 9 Desde o Facemash, assistimos à maior representatividade das imagens de mulheres nas redes. Em linhas gerais, elas recebem dois terços de todas as páginas visualizadas, sendo também aquelas que mais postam fotos. Dado extraído do artigo Understanding users of Social Network publicado no site da Harvard Business School em 2009. Link: http://hbswk.hbs.edu/item/6156.html

pessoas algozes de si, numa relação persecutória, na busca do melhor ângulo para a

performance nas redes.

Submersos no fluxo ininterrupto das comunicações interpessoais mediadas, os

nascidos nos anos 1990 e início dos anos 2000 passam boa parte das horas de lazer

canalizando as energias nas experiências e atividades circunscritas ao universo visual das

redes, dedicando-se com afinco ao espaço mediado de funções bidimensionais e

prioritariamente imagéticas. No condensado das experiências vividas e postadas na linha do

tempo de Facebook ou Instagram, vemos o papel imagético amplificado. A imagem é o

grande trunfo da autopromoção, uma espécie de self-design de signos visuais que funcionam

como instrumentos de subjetivação.

Nas redes, constatamos imagens que vão além dos autorretratos ingênuos,

configurando-se como embalagens10 bidimensionais recheadas de intensa carga emocional,

repletas de feridas narcísicas. Expostos, estes corpos-produto coletam (no atacado e no varejo)

seguidores e aprovadores.

Quando a visualidade do corpo torna-se aspecto preponderante, é possível

considerar que o consumo tornou-se uma atividade de fruição estética de

imagens. Antes de comprarmos produtos, compramos embalagem: formas, cores

e texturas. Nesse sentido, o consumo de imagens fundamenta a experiência do

produto e também a do corpo. (HOFF, 2005, p. 11)

Se as redes sociais já são um local fértil para o compartilhamento de imagens

pessoais, com o advento dos smartphones e a possibilidade de postar automaticamente as

fotos capturadas, temos uma maior intensificação do caráter imagético.

4. A ubiquidade da comunicação e a visibilidade corporal dos smartphones

Acrescentamos aqui o terceiro sistema de comunicação interpessoal, representado

pelos smartphones ou, utilizando o termo de André Lemos (2004) os "teletudos", que deixam

de ser aparelhos estritamente utilizados para ligações telefônicas e se tornam os grandes

protagonistas tecnológicos de nosso tempo.

Para exemplificar a conexão estreita dos jovens com os smartphones, vale citar um

viral que circulou na web nos meses de setembro e outubro de 2012, em especial nos blogs de

10 Para aprofundar o entendimento do corpo enquanto embalagem, sugerimos a leitura do artigo "Imaginário do consumo: aproximações entre corpo e embalagem" de Tania Hoff (2005).

crônicas do cotidiano. A mensagem apresenta imagens factuais das interações entre jovens em

momentos de lazer e reunião social, sendo finalizada com uma suposta frase de Albert

Einstein. A reprodução a seguir é do portal Hellooo.org11, em língua espanhola:

Albert Einstein predijo sobre la tecnología y nuestras comunicaciones:

¿Es así como “ disfrutamos” ahora los momentos con los amigos?

Una taza de café…

Cena de reencuentro…

Encuentro en la cafeteria…

"Temo el día en que la tecnología sobrepase nuestra humanidad. El mundo solo tendrá una

generación de… perdidos/desconectados” Albert Einstein

Figura 4.1: Montagem de telas retiradas do site Hellooo.org

Disponível em: http://www.hellooo.org/albert-einstein-predijo-sobre-la-tecnologia-y-nuestras-comunicaciones/

Se essas fotos apresentadas pelo site Hellooo.org foram tiradas em situações reais ou

se foram produzidas para dar a impressão de um uso excessivo dos smartphones em locais de

convívio social, não podemos afirmar. Da mesma forma, é muito mais difícil comprovar a 11 link: http://www.hellooo.org/albert-einstein-predijo-sobre-la-tecnologia-y-nuestras-comunicaciones/

autoria da frase de Albert Einstein, especialmente por sua roupagem pouco ortodoxa, tal como

acontece geralmente nos e-mails e demais posts virais. O tom da frase está mais para um

apócrifo do que para uma citação fidedigna, todavia, o interessante destas imagens encontra-

se na demonstração (em maior ou menor grau) de como os jovens e adolescentes utilizam

intensamente as mídias e os aparatos tecnológicos em suas relações, preterindo algumas vezes

o contato olho no olho, em carne e osso.

Por sua portabilidade e com comandos amistosos para todos os usuários, os celulares

levam a comunicação interpessoal mediada ao paroxismo. Como reforça Santaella (2007, p.

236) os celulares fazem com que não sejamos mais testemunhas dos fatos, mas personagens

ativos interagindo dentro de dois contextos simultaneamente: o contexto da pessoa com quem

falamos e o contexto do local em que estamos no momento. Com a mobilidade, estamos

conectados permanentemente, disponíveis a todo momento, alcançáveis facilmente na ínfima

distância dos diminutos espaços dos bolsos e dos compartimentos das mochilas e bolsas. A

nossa atenção para as tarefas diárias permanece em estado constante de fragmentação,

entrecortando os momentos com a espiadinha na tela ou acionando os aplicativos de

fotografias como o Instagram, para congelar os instantes - dos mais intensos aos mais banais.

Ao hibridizar linguagens, os smartphones se tornam nosso complemento essencial

nas perambulações pelos espaços da urbe, porém não se resumindo às grandes cidades. A

mobilidade e a ubiquidade destes aparelhos, muitos com acesso irrestrito à web, expurga

completamente o fantasma da era inicial da internet: o do trancafiamento e isolamento do

mundo em prol das relações no ciberespaço, na época em que era necessário ficar conectado a

um fio com discagem telefônica para ter possibilidade de acesso. Diferentemente dos

primórdios da rede, atualmente as pessoas sentem até certo prazer em postar que estão

móveis. O ato do check-in demonstra com clareza esta prática, bem como as fotos que são

tiradas em locais, que conectam o corpo ao espaço ocupado transitoriamente.

Quanto mais nômades, mais informações e novidades conseguimos postar durante o

expediente midiatizado. E tudo postado em real time, sem nenhum delay informacional.

Segundo um estudo do Pew Research Center de Agosto/Setembro de 2012, o número de

usuários que acessa a internet nos Estados Unidos superou mais que o dobro dos números

referentes aos dados coletados em 2009. O mesmo estudo enfatiza que mais do que o acesso à

rede, a principal tarefa executada é o ato de tirar fotos, conforme mostram os gráficos a

seguir:

Figura 4.2: Atividades e práticas dos usuários de celulares. Estudo realizado pelo Pew Research Center publicado em novembro de 2012. Fonte: http://www.poynter.org/latest-news/mediawire/196207/pew-82-use-cell-phones-to-take-pictures/

Os celulares multitarefa foram integrados ao dia a dia das pessoas e nas relações

sociais. Da mesma forma que demonstra o estudo do Pew Research Center, o uso dos

aplicativos de fotografia são uma forma excepcional de transportar as capacidades imagéticas,

na possibilidade de gerar e receber fotos ou imagens em vídeo. Neste sentido, quem não

formaliza a imagem do presente efêmero, não teria como comprovar que viveu este mesmo

instante fugaz. Em shows, flash mobs e nos mais diversos eventos culturais o imperativo da

presença é fazer uma foto ou um vídeo. As pessoas corporificadas nos locais assistem a tudo

pelas telinhas dos celulares e câmeras. Este é o paradoxo de estar presente e transformar o

instante para ser visto na ausência. Notamos que com essa atitude muitas pessoas não vivem a

presentidade a olho nu, senão mediadas por seus dispositivos de captura do instante, sendo

observada na sua qualidade bidimensionalizante.

Figura 4.3: Imagem de uma multidão que assiste a um evento da campanha para o segundo mandato do Presidente Barack Obama em St. Petesburg College na Florida. Créditos: Doug Mills (The New York Times). Fonte: http://thecaucus.blogs.nytimes.com/2012/11/06/the-caucus-click-cellphone-nation/

As fotos efetuadas pelos celulares não são feitas com o intuito de perpetuar

qualitativamente os momentos; a qualidade imagética não é o principal fator, mas a

distribuição e compartilhamento de sensações. Se na época das Polaroids as fotos

instantâneas já representavam um aspecto social de visualização automática e materializada

magicamente pelos processos fotoquímicos, eternizando e fixando em papel os momentos

comparticipados, nas fotos instantâneas dos celulares, o que está em voga são as incontáveis

tentativas de imobilizar um instante controlável, não pautado pelo acaso, porém produzido

dentro dos parâmetros que o agente fotográfico considere ideal ou imageticamente perfeito,

sem nenhum desperdício material. Captura, confere, apaga. Busca uma nova pose, reexamina,

reapaga. Posiciona-se, reposiciona-se, tenta novamente, desiste do clique, procura um outro

ângulo mais fotogênico, um local mais iluminado... e depois de tantas investidas é hora de

submeter o resultado pelos filtros dos aplicativos de edição automatizada, como os

disponíveis no Instagram e outros.

5. Considerações Finais

Se no auge do telefone fixo o protagonismo estava sob a alcunha da verbalização

sonora, com as redes sociais e smartphones estamos sob a regência do visual, seja nas

imagens e fotos ou na visualização de textos nos chats. Na força visual da comunicação

interpessoal mediada entre adolescentes, especialmente no que tange à auto imagem dos

retratos, estamos diante de questões primordiais da auto estima, preconizando a aparência do

corpo como elemento fundante das relações mediadas.

Apesar do aspecto visual ter sido oficializado somente com a internet, o papel da

imagem nas relações pautadas pela comunicação interpessoal mediada não é fruto apenas das

redes sociais ou dos dispositivos móveis, mas estão presentes no imaginário social e

publicitário desde a época do telefone fixo, na figura das Pin Ups dos anos 1940 e nas

publicidades, videoclips e programas de entretenimento que utilizavam excessivamente a

imagem idealizada da "garota pendurada ao telefone". A partir desta observação, podemos

invocar a grande relevância da imagem e do imaginário visual na representação dos

adolescentes nas relações sociais e em atos de comunicação mediada.

Referências:

CASTELLS, M. A Galáxia da Internet. Reflexões sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. FISCHER, C. S. "Touch Someone": The telephone industry discover sociability. Technology and Culture Journal, 1988. HOFF, T. M. C. Imaginário do Consumo: algumas aproximações entre corpo e embalagem. Brasília: E-Compós, www.compos.org/e-compos, v. 3, n.4a. edição, p. 1-12, 2005. KEARNEY, M. C. Birds on the wire – Troping teenage girlhood through telephony in mid-twentieth century US media. Revista Cultural Studies , Vol.19, n.5, pp. 568-601. London: Routledge, 2005. LEMOS, A. Cibercultura e Mobilidade: a Era da Conexão. Razón y Palabra, n.41. Atizipán di Zaragoza, 2004. MULVEY, L. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Screen 16.3, Autumn, 1975. PRENSKY, M. Digital Natives, Digital Immigrants. On the Horizon, 9. October, Lincoln: NCB University Press, 2001. RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. REICHERT, R. Amateure im Netz. Selbstmanagement und Wissenstechnik im Web 2.0. Bielefeld: Transcript-Verlag, 2008. SANTAELLA, L. As imagens no contexto das estéticas tecnológicas. In: VENTURELLI, S. (Org.). Arte e tecnologia: intersecções entre arte e pesquisa tecno-científica. Brasília: Instituto de Artes da Universidade de Brasília, 2007. SANTAELLA, L.; LEMOS, R. Redes sociais digitais a cognição conectiva do Twitter. São Paulo: Paulus, 2010. TURKLE, S. Life On the Screen. Identity In the Age of Internet, New York: Simon and Schuster, 1995. VALENTINE, G. Globalizing intimacy: the role of information and communication technologies in maintaining and creating relationships. Women's Studies Quarterly, 34, 2006. Sites: http://www.oldies.com/product-view/6470D.html http://www.retroarama.com/2011/09/teens-and-telephones-really-connect.html, também http://www.flickr.com/photos/retroarama/6196661320/ http://blog.airshowreview.com/2010-07-14/the-petty-project-history

http://www.youtube.com/watch?v=PIb6AZdTr-A. http://hbswk.hbs.edu/item/6156.html http://www.poynter.org/latest-news/mediawire/196207/pew-82-use-cell-phones-to-take-pictures/ http://thecaucus.blogs.nytimes.com/2012/11/06/the-caucus-click-cellphone-nation/ http://www.hellooo.org/albert-einstein-predijo-sobre-la-tecnologia-y-nuestras-comunicaciones/