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Do Porto romântico à cidade dos centros comerciais Breve viagem pelo tempo João Teixeira Lopes "A destruição do passado ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas é um dos fenó- menos mais característicos e lúgubres do final do século XX' ERIC HOBSBAWN, A Era dos Extremos "...esse tempo sobrecarregado de acontecimen- tos que enchem o presente e o passado próximo..." MARC AUGE, Não-Lugares Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade É impossível desprezar o tempo quando se pretende fazer ciência social. Enquadrar os objectos no seu contexto histórico, restituí-los à duração, reve- la-se um exercício de extrema utilidade analítica. Permite a comparação e a recusa dos absolutos essencialistas. Na análise da vida cultural, de forma ainda mais visível, é impossível destruir o passado. Ele surge, repentinamente, quando menos se espera, tor- nando-se presente, porque reapropriado no tempo actual. A contemporanei- dade é uma visão sincrética de assincronismos; uma coexistência de ritmos sociais justapostos mas com temporalidades distintas. Além do mais, como 27

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Do Porto romântico à cidade dos centros comerciais

Breve viagem pelo tempo

João Teixeira Lopes

"A destruição do passado — ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas — é um dos fenó-menos mais característicos e lúgubres do final do século XX'

ERIC HOBSBAWN, A Era dos Extremos

"...esse tempo sobrecarregado de acontecimen-tos que enchem o presente e o passado próximo..."

MARC AUGE, Não-Lugares — Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade

É impossível desprezar o tempo quando se pretende fazer ciência social. Enquadrar os objectos no seu contexto histórico, restituí-los à duração, reve-la-se um exercício de extrema utilidade analítica. Permite a comparação e a recusa dos absolutos essencialistas.

Na análise da vida cultural, de forma ainda mais visível, é impossível destruir o passado. Ele surge, repentinamente, quando menos se espera, tor-nando-se presente, porque reapropriado no tempo actual. A contemporanei-dade é uma visão sincrética de assincronismos; uma coexistência de ritmos sociais justapostos mas com temporalidades distintas. Além do mais, como

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refere Auge, a história acelera-se, persegue-nos, torna-se iminente, carregada de acontecimentos não previstos que nos exigem, cada vez mais, uma busca de sentido e de inteligibilidade, de forma a não ficarmos submersos na "superabundância de acontecimentos", no "excesso" de tempo, de espaço e de imagens que caracterizam as nossas sociedades *. Lembremos ainda Wright Mills, quando alude à fonte primeira da imaginação sociológica: o cruzamento das histórias com a História, das biografias com os seus con-textos, exercício cada vez mais plausível num cenário demográfico marcado pelo aumento da longevidade e da coexistência de três ou quatro gerações, com todas as suas implicações ao nível do aumento da "memória colectiva, genealógica e histórica" 2.

Inútil estudar as práticas culturais no Porto contemporâneo sem esse regresso ao passado mais recente. Fazê-lo, seria como que reincidir numa espécie de miopia analítica, incapaz de descortinar para além do imediato, do que ainda fervilha. Amnésia que ignora a constituição das sociedades como um processo onde indissociavelmente se articulam, como as duas faces de uma moeda, a diacronia e a sincronia, o vertical e o transversal.

O Porto finissecular de Oitocentos faz tão parte de nós como o Porto dos anos noventa, às portas do terceiro milénio.

I — O Porto de Oitocentos 1.

A burguesia triunfante

Falar da vida cultural do Porto do século XIX implica, necessariamente, abordar os modos de vida da burguesia triunfante e da superestrutura de valores e estilos de vida que a ela se associam, em particular depois da vitória definitiva da causa liberal.

Por burguês entende E. J. Hobsbawn, "um «capitalista» (ou seja, um possuidor de capital, ou o recebedor de um rendimento derivado do capi-tal, ou um empresário votado a obtenção de lucros, ou as três coisas ao

1 Vd. Marc Auge, Não-Lugares Introdução a uma Antropologia da Sobremoder-

nidade, Lisboa, Bertrand, 1994, em especial pp. 31-43. 2 Idem, ibidem, p. 37.

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mesmo tempo)" 3. Apoiados na força conquistadora do lucro, os burgueses afirmaram-se, um pouco por toda a Europa (embora a ritmos diferentes), como o grupo hegemónico do século, abanando, com poderosa determinação, uma sociedade baseada nos privilégios do nascimento. Enquanto classe, a burguesia liga-se, de forma indissociável, à meritocracia e à crença de que qualquer indivíduo, independentemente da sua origem social, pode ascender ao estatuto que a sua capacidade de iniciativa lhe permitir.

Por esta mesma razão, no início do século a burguesia era ainda uma classe insegura, profundamente necessitada de impor como universal a sua própria ideologia (ou, como diria Bourdieu, de impor arbitrariamente um arbitrário cultural), carecendo, por isso, de todos os meios de legitimação e de reconhecimento. O mundo da cultura constituía, então, para utilizar uma expressão de Hobsbawn, a "quinta-essência" do universo emergente. E quem diz o mundo da cultura, refere-se, obrigatoriamente, às suas múltiplas dimen-sões, desde o vestuário, à decoração interior e exterior das casas, às formas de apresentação no espaço público, até às instituições especialmente criadas para a mise-en-scène de uma nova constelação de valores e comportamentos. Como refere ainda Hobsbawn, o "espírito da época" colocava "muita gente na situação historicamente nova de ter de desempenhar papéis sociais novos (e superiores)" 4. Digamos que, como acontece nos ritmos de aceleração mais ou menos brusca da história, as novas condições sociais objectivas necessitavam de um "espelho" correspondente no mundo "imaterial" e sim-bólico, mais resistente à mudança e caracterizado pelo peso da tradição.

Maria de Lourdes Lima dos Santos, ao estudar os manuais de civi-lidade correntes no século XIX, chega precisamente à conclusão de que tais cartilhas consubstanciavam o essencial da ordem social emergente: "O manual de civilidade terá o seu momento privilegiado como contri-buto para a legitimação dos que se orientam para um novo destino de

3 Vd. E. J. Hobsbawm, A Era do Capital, Lisboa, Presença, 1979, p. 322. De referir

que esta obra imprescindível deve ser incluída na trilogia composta, igualmente, pela Era das Revoluções e pela Era dos Extremos. Acrescenta o autor (p. 329): "O burguês era, senão uma espécie diferente, pelo menos o membro de uma raça superior, um estádio mais avançado da evolução humana, distinto das ordens inferiores, que se mantinham numa fase histórica e cultural equivalente à infância ou quando muito à adolescência (...) Assim, do senhor à raça de senhores ia só um passo. O direito de dominar, a supe rioridade indiscutível do burguês como espécie implicava não só a inferioridade, como ainda, idealmente, uma inferioridade reconhecida e aceite pelos próprios inferiores".

4 Idem, ibidem, p. 308.

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classe" 5, fornecendo inúmeros conselhos de savoir faire e savoir vivre, de forma a colmatar as lacunas de aprendizagem dos que, não tendo nascido em berço de ouro, ascenderam a posições cimeiras na sociedade, necessi-tando, por isso, de uma reconversão mais ou menos brutal do seu sistema de disposições ou habitus. Tal como refere a mesma autora, trata-se, afinal, de consagrar a nobreza adquirida como mais meritória do que a nobreza herdada. A "educação pelo mundo'"', substitui, paulatinamente, a educação pelo nascimento.

De qualquer forma, a nova classe dominante não necessitava, apenas, de legitimar a sua ascensão social. Simultaneamente, impunha-se-lhe restringir a mobilidade às classes populares, cada vez mais representadas e sentidas como "perigosas". Daí a ênfase nos procedimentos distintivos, garante e comprovativo da sua "superioridade": "neste instável equilíbrio entre democratização e elitismo se estribava a burguesia ascendente para legitimar a sua escalada ao Poder — pela aquisição de várias formas de saber-fazer, de competência, ela valorizava-se face à antiga classe domi-nante ao mesmo tempo que se demarcava das classes populares" 6.

Assim, se o século XIX é inseparável do triunfo da burguesia "con-quistadora", ele é, também, a outra face da moeda: a derrota das tentativas revolucionárias de impor, nos países mais desenvolvidos, uma ordem social tendencialmente igualitária. Neste sentido, o século XIX representa o drama, como assinala Hobsbawn, de muitos milhões de pessoas à escala planetária: a vitória da burguesia trazia benefícios apenas para uma ínfima minoria e as cedências que a custo foi fazendo, como a instauração do sufrágio directo e universal, apesar de incómodas, eram "politicamente inócuas".

O Porto de Oitocentos não é excepção. Como adiante veremos, a descontinuidade do tecido social urbano era uma realidade incontornável, bem como a segregação sócio-espacial que lhe está subjacente e que se traduz, de forma extremamente visível, nas manifestações de sociabilidade e na organização do espaço público. O conceito burguês de cidadania fica desde logo patente, após a vitória liberal, no proliferar de medidas de proibição da mendicidade e de encarceramento dos pedintes, "vadios" e "vagabundos" em instituições totais, de tipo asilar.

5 Vd. M. L. Lima dos Santos, "Para uma Sociologia da Cultura Burguesa em Por

tugal no Século XIX", Lisboa, Presença/Instituto de Ciências Sociais, 1983, p. 20. 6 Idem, ibidem, p. 8.

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Como caracterizar, no Porto do século XIX, esta nova classe domi-nante, considerada ainda, poucas décadas atrás, como o 3o Estado?

A literatura naturalista fornece-nos alguns excelentes retratos, assu-mindo-se os seus autores como atentos observadores do quotidiano burguês, ora identificados com os seus quadros de vida, ora distanciados em críticos e desencantados comentários 7.

A burguesia portuense surge-nos, antes de mais, caracterizada pela sua diversidade interna. Afinal, os novos critérios de hierarquização social origi-navam ascensões sociais demasiado rápidas para a "boa sociedade" que se mantém fiel a um certo conceito de "bom gosto" e de "cultura".

Como Maria Antonieta Cruz teve o cuidado de verificar, os dicionários da época não cristalizavam, ainda, o domínio da nova classe emergente. O burguês surge como sinónimo de "indivíduo pouco delicado, de modos e gestos grosseiros" podendo significar, enquanto adjectivo, "vulgar; tri-vial; ordinário; chato; grosseiro; sem arte; sem gosto; sem distinção; acanhado" 8.

Aliás, a falta de instrução da burguesia portuense, sobretudo por com-paração com outras realidades, marcará irreversivelmente o discurso de muitos personagens dos romances naturalistas, como o Valdez de O Bastardo, de Júlio Lourenço Pinto: "...não há quem saiba conversar, quem se interesse por duas ideias de arte ou literatura. Há apenas a vida de escritório, do Banco, da alfândega, a vida do boi sorumbático (...) depois, feito o negócio, tudo se amorrinha no pesadume crasso e bilioso da digestão flatulenta" 9.

Segundo os Censos de 1874, a percentagem de analfabetos rondava os 84.4%, descendo nas grandes cidades para 64%. O ensino primário obri-gatório apenas surge, no Porto, em 1844, data em que, nesta cidade, somente se conta um liceu (existindo outros quatro em Lisboa, Coimbra, Braga e

7 Devendo nós próprios, exercer sobre esses relatos literários, apesar do seu pen

dor fortemente descritivo (e, por isso, aparentemente "verdadeiros"...), uma prudente desconfiança metódica. Como refere Roland Mousnier, citado por Maria Antonieta Cruz, "as contemporâneos nunca viam exactamente a realidade social do seu tempo. Só têm a experiência directa de uma pequena parte dos grupos sociais e imaginam as coisas mais estranhas sobre os outros", vd. Os Burgueses do Porto na 2.a Metade do Século XIX, Porto, Ed. de Autor, 1994, p. 14.

8 Idem, ibidem, p. 14. 9 Vd. Isabel Pires de Lima (Antologia), Trajectos do Porto na Memória Naturalista,

Lisboa, Guimarães Editora, 1989, p. 33.

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Évora), exclusivamente direccionado para a população masculina 10. Tar-diamente os burgueses portuenses se aperceberão da importância do diploma como garante social de classe, exceptuando as profissões liberais (represen-tadas em reduzido número nos recenseamentos eleitorais). Nos inventários de bens relatados pelos falecidos de elevados rendimentos, os livros rara-mente aparecem, tirando, uma vez mais, alguns médicos, juizes e proprie-tários. Na fracção de classe dos negociantes, onde se concentrava uma fatia significativa da burguesia portuense, apenas 9% faziam constar a posse de livros 11.

Aliás, a especificidade da burguesia no nosso país liga-se ao seu tar-dio e incipiente processo de industrialização, que levava Oliveira Martins a definir o Portugal de Oitocentos como "uma Granja e um Banco". Essencialmente ligada ao comércio, à especulação financeira e à posse de terras (sinal duradouro de prestígio e riqueza), demorará a constituir-se uma elite burguesa de pendor industrial, preocupada com o progresso da tec-nologia, da ciência e das formas de gestão. Gaspar Martins Pereira refere, a esse respeito, a persistência da articulação do factory system com o domes-tic system, permitindo uma durável imbricação entre os factores de mudança e os elementos tradicionais: "A mesma geração que vê circular os primeiros carros eléctricos e que se habitua a saber as horas pelo silvo dos comboios continua a acordar ao toque das avé-marias, indiferente à chiadeira dos carros de bois que quotidianamente cruzam as ruas da cidade (...) persis-tem extensas zonas rurais, «trechos de aldeia autêntica»" 12.

Mais importante do que o progresso económico e os ganhos em pro-dutividade, parecia ser a obsessão mimética face à nobreza, através da per-manente procura de nobilitação, em especial os negociantes e banqueiros (entre os quais muitos "brasileiros") recém-chegados à esfera do poder.

Neste contexto, o que se pode esperar da vida cultural no Porto de Oitocentos? A resposta faz-nos distinguir duas fases. Uma primeira, em que dominava uma ética do trabalho, assente em padrões rígidos de conduta asso-ciados à procura da rentabilidade económica. Uma segunda fase, de clara visibilidade do capital simbólico e um paralelo esmorecimento da ética labo-

10 O primeiro liceu feminino surgirá no Porto em 1888.11 Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit., p. 578. 12 Vd. Gaspar Pereira Martins, Famílias Portuenses na Viragem do Século

(1880-1910), Porto, Edições Afrontamento, 1995, p. 46.

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ral 13, assente em consumos públicos e privados de cariz ostentatório, na proliferação da figura do "burguês que vive de rendimentos" e no dispên-dio descomplexado.

2. Vida cultural, sociabilidades e estilos de vida da «boa sociedade».

É, pois, na segunda metade do século XIX, que assistiremos a um notável fervilhar da cidade em termos culturais. Aliás, é toda a imagem da cidade que, aos poucos, se vai modificando, com a introdução de uma série de melhorias infraestruturais: a iluminação a gás (substituindo os "mortiços lampiões de «azeite de purgueira»" 14) a macdamização 15 e os transportes, através do surgimento do americano em 1872 (primeiramente movido a tracção animal, posteriormente a vapor e, finalmente, a electricidade — 1895), favorecendo as ligações a uma cidade em franco crescimento 16.

Multiplicam-se, antes de mais, os pontos de encontro da burguesia mais ou menos diletante, proliferando, nas ruas de Santo António, Clérigos e Almada, os cafés e botequins, como o Portuense, o Suiço, o Lisbonense, o Águia d'Ouro e o Guichard, este último o café da moda: "Estava longe de ser um café elegante, arejado e espaçoso. Mesmo assim, como espaço social, era para o Porto o que o Marrare era para Lisboa. Para além do bote-quim, onde se jogava o dominó, o Guichard dispunha ainda de outras salas de jogo nos andares superiores''17 {monte, voltar ete, quino e dominó). No entanto, como refere Gaspar Pereira, os jovens burgueses não se coibiam de frequentar tascos e tavernas, procurando as suas delícias gastronómicas 18, o

13 Vd. M. de L. Lima dos Santos, op. cit, p. 54. 14 Vd. Gaspar Martins Pereira, O Porto de Camilo, policopiado, p. 2. 15 Martins Pereira nota ainda que, "como as grandes cidades da Europa da época,

descontando as diferenças de escala, o Porto oferece a imagem de uma cidade em obras, poeirenta e desventradd\ idem, ibidem.

16 A cidade prolonga-se para Ocidente e para Oriente, tornando-se hábito, para a burguesia, o isolamento em unidades residenciais afastadas do centro (palacetes e chalés arborizados). O crescimento demográfico é também notável (a cidade cresce 75% entre 1878 e 1911, atraindo população de fora do concelho e mesmo de fora do distrito), a par da aceleração do processo de industrialização.

17 Vd. G. Martins Pereira, O Porto de Camilo, p. 25. 18 "...o peixe de cebolada no Maneta do Reimão; as tripas na estalagem do Rainha

da Praça Nova; o chispe com ervas; a orelheira com feijão; as costeletas de vitela e as ostras na Águia d'Ouro", vd. Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 26.

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que também pode ser interpretado como uma certa persistência dos contac-tos interclassistas do Antigo Regime, apesar dos crescentes intuitos segre-gacionistas da burguesia. Camilo Castelo Branco dá conta da atmosfera de um desses botequins: "Homens de grandes cabelos, sem bigodes, com fraques coçados no fio e cadeias vistosas de latão a tremeluzir nas calças brancas espipadas nos joelhos e vincadas de surro, bebiam cerveja da pipa com os queixos espumosos (...) a um canto estava um velho de semblante lívido, muito desgraçado, com um chapéu enorme de seda dum azulado decrépito (...) Ao lado, sobre um mocho, via-se uma guitarra com manchas gordurosas de suor que punham brilho, e aos pés um cão de água com o felpo encarvoado" 19.

Uma das distracções mais frequentes, em especial depois dos progres-sos na iluminação nocturna, eram os Passeios Públicos: alamedas, parques e jardins. Locais de apresentação pública da burguesia e suportes da "cul-tura de aparência", cedo estes espaços se tornaram de acesso reservado, como aconteceu logo após a inauguração do jardim da Cordoaria, em 1867 20: "Aos Domingos e dias festivos, e às Quintas-feiras à noite, o alegre recinto era tomado de assalto pela burguesia tripeira, que se apossava da avenida fronteira ao coreto. Os arruamentos abertos em volta do lago ficavam à disposição das costureiras, das criadas de servir, dos soldados da munici-

Atente-se na seguinte descrição do cenário humano que invadia esse jardim, em especial em tardes de música, e repare-se como o vestuário servia os intuitos de distinção dos actores em presença: "burgueses espanejavam ao sol a sua obesidade preguiçosa, dandys com camélias na botoeira, damas todas encolhidas no regalo quente das suas peles, cocottes com vestidos mirabolantes, estudantes de medicina pondo uma vaidade espectaculosa nas suas pastas amarelas, de fitas vermelhas flutuando, militares alisando as fardas com luvas de camurça, todo um público pacato, passeando com um método ordeiro na grande álea, acotovelando os mirones que paravam em frente do coreto, para não perderem o gesto largo da batuta do regente"22.

19 Excerto de Eusébio Macário in Isabel Pires de Lima, op. c i t , p. 42. 20 O jardim de S. Lázaro era já considerado demasiado acanhado para o cresci

mento da burguesia portuense. 21 Firmino Pereira, O Porto d'Outros Tempos, cit. in Hélder Pacheco, Porto, Lisboa,

Presença, 1984, p. 178. 22 José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. ci t , p. 77.

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Na rua central do jardim da Cordoaria, desenhado por um engenheiro paisagista alemão, no jardim de S. Lázaro, ou ainda no Passeio Alegre, a passerelle romântica multiplicava a exibição de signos da "cultura de aparên-cia". Gaspar Martins Pereira encontra factores explicativos para esta explosão dos sinais ostentatórios: por um lado, a já referida necessidade de distinção, capaz de afirmar a "nova aristocracia", ainda insegura, no papel cimeiro de imposição das modas; por outro lado, o desejo tão próprio do romantismo, de afirmação individual patente nas nuances interpretativas desses padrões estéticos dominantes, mas também numa redescoberta do corpo, dos cuida-dos pessoais e de higiene (patente, por exemplo, na "difusão do espelho, dos produtos de toilette, do banho e das roupas interiores 23). Manifesta-se, uma vez mais, a dupla acção da moda, segundo Simmel: a satisfação simultânea da aspiração ao geral (desejo de integração e reconhecimento) e da neces-sidade do singular (particularização) 24. Neste âmbito, surge, igualmente, uma "cultura do bizarro" e da excentricidade (dentro, evidentemente, de cer-tos padrões sociais e morais): "Camilo usava botas e calças à hussardo, colete e casaca ou sobrecasaca apertada, laço de gravata à byron e capa à espanhola. Era vulgar andarem sempre de esporas e com bengalas de cana-da-India, badines, «chicotinhos» ou casse-têtes que serviam muitas vezes de arma nas zaragatas. Adereços indispensáveis eram ainda os cola-rinhos altos («velas latinas»), as luvas brancas ou de cor (...), os chapéus (...) e o lenço branco, elemento simbólico fundamental nos jogos de sedução" 25. Por outro lado, como refere E. J. Hobsbawm, um duplo padrão moral (ou uma tensão entre a "moral oficial" e a moral de um capitalismo hedonista) estava omnipresente na moda burguesa, "uma combinação extra-vagante de tentação e proibição" 26: se, por um lado, imperava o recato e a ocultação da sensualidade e da sexualidade {"até os objectos que faziam lembrar o corpo (as pernas das mesas) eram por vezes escondidos" 27), por outro, proliferavam as alusões e os estímulos ao mundo dos sentidos e das

23 Vd. O Porto de Camilo, op. ci t , p. 18. 24 Vd. Georg Simmel, "La mode" in La Tragédie de Ia Culture, Paris, Ed. Rivages,

1988. O mesmo autor af i rma que o fenómeno da moda "indica uma general idade que reduz o comportamento de cada um a um puro e simples exemplo. Dito isto, ela satisfaz também a necessidade de distinção, a tendência à diferenciação, à variedade, à demar cação", op. cit , p. 92.

25 Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 20. 26 Vd. E. J . Habsbawm, op. cit , p. 313. 27 Idem, ibidem.

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sensações: "Simultaneamente, e sobretudo nas décadas de 1860 e 1870, as características sexuais secundárias eram grostecamente acentuadas: o cabelo e as barbas dos homens, o cabelo, o peito, as ancas e as nádegas das mulheres, que atingiam um tamanho exagerado devido ao uso de postiços" 28. Importante era, sobretudo, gerir cautelosamente o equilíbrio: nas aparências impunha-se não exagerar nem por defeito, nem por excesso, demonstrando a postura exacta dos que se movem, com à vontade e fami-liariedade, no "bom mundo burguês". Cautelas redobradas num tempo em que os estatutos adquiridos, como já referimos, suplantavam os herdados: "— Que, diga-se a verdade, chegámos a um tempo em que já se não sabe o que é a primeira sociedade, a sociedade elegante, distinguée. Tudo con-fundido, submergido sob esse aluvião de brasileiros enobrecidos, de bur-gueses opulentados" 29.

Mas tempos houve, em pleno ultra-romantismo, de consagração do exagero, em que o mundo espiritual, cada vez mais inacessível ao comum dos mortais, exigia duros sacrifícios. Morrer de amor era, então, a suprema glória. Sofrer, sinónimo de caminhada para o paraíso. As mulheres, pálidas à custa de vinagre e de frequentes jejuns "desmedravam a olhos vistos e amolgavam as costelas entre as compressas d'aço do colete. Estas não são já as mulheres que eu vi, sadias e frescas, como se saíssem do paraíso ter-reaF 30. Os homens, em especial os mais jovens, cultivavam também a tez pálida "e tossia-se diante da mulher amada com a dispneia dos últimos tubérculos" 31. Os encontros românticos proporcionavam-se nos cemitérios, elevados à categoria de passeios públicos.

Neste novo espírito, eram patentes algumas das contradições da família burguesa. Apesar da repressão, em particular sobre as mulheres (que repre-sentavam a unidade da família, da propriedade e da empresa, sendo igual-mente veículo de trocas e estratégias matrimoniais), os impulsos individuais e a ascese espiritual, forçavam os apertados limites do ethos burguês.

Simultaneamente, verifica-se um retraimento na esfera doméstica e uma mais nítida separação entre o público e o privado. Impunha-se a criação de espaços de sociabilidade selectiva e de acesso controlado. Desta forma, os

28 Idem, ibidem. 29 Júlio Lourenço Pinto, O Bastardo in Isabel Pires de Lima, op. cit, p. 143. 30 Camilo Castelo Branco in G. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 22. 31 Idem, ibidem.

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salões e os saraus vão sendo paulatinamente transferidos para instituições com uma indelével marca de classe 32.

Nestas, desenvolvem-se actividades propícias ao "convívio entre iguais". Merecem especial destaque os bailes, extremamente associados à prática da dança, actividade que permitia um interconhecimento rigorosa-mente vigiado entre elementos de sexo oposto, bem como a concretização de desejos e rituais de sedução reprimidos/estimulados pela "boa sociedade": "Adelina estava radiosa neste ambiente todo rescendente a emanações pala-cianas; a sua pessoa atraía as atenções, a toillette era notada (...) como era bom vestir-se de cetim e rendas! Como dá realce à beleza um vestido de baile! (...) O visconde Odivelos (...) vinha na comitiva real (...) Relanceava a vista inquiridora pela sala com a repousada confiança de quem se sente à vontade, e o seu olhar, plácido e firme, percorria com uma insistência apreciadora as formas de Adelina" 33.

Desenvolvia-se, pois, toda uma panóplia de pequenos pormenores que obrigavam os mais leigos e desconhecedores a um esforço desmedido de descodificação. Frequentar a vida mundana, crescentemente sofisticada, exi-gia verdadeiros requintes de aprendizagem. Os manuais de civilidade são, a esse respeito, bastante elucidativos. A sua primeira preocupação, no que se refere aos bailes, é a de evitar, a todo o custo, os locais públicos não con-sagrados e destituídos da aura de classe. Aliás, nestas ocasiões festivas, todos os cuidados são poucos: "É nos bailes onde se acende o sangue e se esti-mulam as paixões em razão da música, luzes, etc, e por isso é mister sabê-las reprimir" 34. Aliás, o verdadeiro cavalheiro deverá "ter todo o receio (enquanto dança) de chegar aos vestidos ou ao corpo da damd\ enquanto que esta "evitará, quanto puder, pedir alguma coisa, para que o cavalheiro não tenha motivo de voltar ao pé d'ella" 35. É toda a apologia

32 Em 1834, um punhado de negociantes e financeiros cria a Assembleia Portuense,

que dará origem, por cisão, nos anos 50, ao aristocrático Clube Portuense. Com o reforço da pequena burguesia, e dada a segregação de que era alvo, tem origem a Nova Euterpe (fundada essencialmente por caixeiros), antecessora do Ateneu Comercial do Porto. Este servirá como veículo de ascensão e legitimação das «classes médias» que aspiram a lugares dominantes, sendo posteriormente dominado, na viragem do século, por negociantes, pro prietários e financeiros, vd. Gaspar Martins Pereira e Luciano Vilhena Pereira, Álbum de Memórias do Ateneu Comercial do Porto (1869-1994), Porto, Ateneu Comercial do Porto, 1995.

33 Júl io Lourenço Pinto, Margarida in Isabel Pi res de Lima, op. ci t , pp. 130-131. 34 Manua l de Civ i l idade c i t ado in M. L . L ima dos San tos , op. c i t , p . 42 . 35 Idem, ibidem, p. 43.

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de uma moral da contenção e da distanciação/aproximação contida entre os sexos 36. Aconselha-se, por isso, o uso de luvas e de leques: "Se desejais que vos não notem a direcção de um olhar, o leque presta-vos gentilmente os interstícios das varetas rendilhadas (...) abafa os suspiros, encobre o rubor, o riso (...) salva as aparências" 37. "Salvar as aparências" e ter "boas maneiras", eis a pedra de toque da burguesia finissecular. O que, diga-se em abono da verdade, nem sempre se conseguia: "À medida que as senhoras saíam, a mesa era invadida sofregamente pelos homens (...) Os convivas apertavam-se muito ocupados em ingerir abundantemente; outros, de fora da mesa, estendiam mãos rapaces por cima dos ombros, e invadiam os bufetes dando pábulo provisório às impaciências do estômago (...) sentia-se um sussurro forte de conversas entre mastigações, tinidos batalhadores dos talheres sobre os pratos, e o ruído alegre da animalidade contente que se expande em risos (...) Neste momento a mesa tinha o aspecto de um esplen-dor orgíaco e descomposto, como uma bela mulher em desalinho, desbo-tada e murcha, depois de uma noitada lasciva" 38.

De facto, pelas descrições dos escritores naturalistas, a burguesia portuense estava longe de poder exibir os "bons costumes" de uma socia-lização adequada. As suas posturas, a linguagem utilizada, os conhecimen-tos culturais exteriorizados denotavam uma série de défices ainda não supe-rados. Apesar dos progressos técnicos, do crescimento urbano e dos novos equipamentos culturais, grande parte da média e alta burguesia ostentava ainda os sinais visíveis de uma promoção recente. Por isso, os manuais de civilidade estão repletos de advertências sobre as regras de comportamento nos locais públicos e semipúblicos, ocasiões em que era possível aferir da educação de cada um e em que os processos distintivos mais necessários se tornavam.

36 Muitas vezes completamente subvertida em ocasiões festivas, como as que se

realizavam nos conventos portuenses, aquando da eleição das respectivas abadessas: "Eram três dias de combates poéticos, de galhofa e de doçaria, entre o cerimonial e o profano, em que se ultrapassavam as barreiras da clausura, iniciando-se, por vezes, ligações ínti mas ou platónicas com as freiras ou as criadas". Os outeiros ou abadessados (assim se chamavam as festividades) eram, segundo Camilo, "concorridos de poetas e senhoras, e muitos perturbadores que da taverna passaram ao outeiro", in Gaspar. M. Pereira, "O Porto de Camilo", p. 25.

37 Idem, ibidem. 38 Júlio Lourenço Pinto, Margarida, in I. P. de Lima, op. cit, pp. 138-139.

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E no entanto, como referimos, a cidade estava irreconhecível, nesta segunda metade do século XIX. Com frequência apareciam novas escoias de música e de canto; na Rua do Almada proliferavam as lojas de fotografia onde se podia "tirar retraio daguerreotipado, em tom de ouro e azul, ao gosto inglês" 39; surgiam os primeiros jornais, como o Comércio do Porto, onde se torna habitual a publicação de romances e novelas em fascículos, lidos ao serão para toda a família; multiplicavam-se as festas particulares com ou sem fins caritativos, mas quase sempre de feição mundana; os con-certos de bandas; os espectáculos de fogos de artifício nas comemorações mais significativas; os famosos bailes de máscara no Carnaval; etc. A Foz torna-se local de eleição, em especial no Verão e em particular após a entrada em funcionamento do Americano, que em muito possibilitou a compressão das distâncias. Aqui, foi-se desenvolvendo uma cultura cosmopolita com o seu passeio público (Passeio Alegre), os seus cafés da moda, os seus hotéis e mesmo o seu casino.

Os públicos alargam-se e diversificam-se, embora em pequena escala. Joel Serrão, em estudo sobre os livros publicados em Portugal por volta de 1870, conclui pela existência de centenas de títulos, de autores em via de consagração, embora com tiragens muito reduzidas 40. E, novidade que indicia o breve surgimento de uma indústria cultural, surge um grande número de edições populares, em especial de autores estrangeiros (Zola, Victor Hugo, Eugène Sue, La Fontaine, Goethe, Júlio Verne, Chateaubriand, etc.)41.

Os equipamentos culturais sucedem-se a um ritmo quase vertiginoso, vontade de uma burguesia que pretende "modernizar" a cidade e fazer con-corrência à capital. No final do século, o Porto orgulhava-se do seu Palácio de Cristal (cuja construção data da década de 60), palco de numerosas exposições industriais e hortícolas, das quais se destaca a Exposição Internacional de 1865; dos seus museus (o Portuense — do Ateneu D. Pedro — o Municipal e o Industrial e Comercial); das suas bibliotecas (em que se inclui uma biblioteca pública); da sua Academia de Música; dos seus teatros (o S. João — o mais antigo, inaugurado em 1798, o Príncipe Real,

39 Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira, "O Porto Oitocentista" in

A. Oliveira Ramos, História do Porto, Porto, Porto Editora, 1994, p. 491. A fotografia é o documento, por excelência, que melhor demonstra a afirmação da nova classe domi nante.

40 De autores como Camilo, Herculano, Garrett, Eça, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis, Oliveira Martins, Teófllo Braga, etc.

41 Vd. Maria Antonieta Cruz, op. cit.

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antes designado por Teatro Circo, o Gil Vicente, no Palácio de Cristal, o Baquet, que foi totalmente destruído por um incêndio em 1888 e o Teatro dos Recreios, essencialmente destinado à ópera). No entanto, de todos estes equipamentos, apenas o S. João e o Baquet possuíam as condições mínimas para o teatro declamado e lírico 42. Não admira, por isso, que ironicamente A. Menezes considerasse "que só havia o Variedades, irrisoriamente deno-minado Teatro Camões, próximo da «Feira dos Carneiros» de resto...". Camilo Castelo Branco apelidava sugestivamente este teatro de a "barraca de Liceiras" 43. Aliás, ao analisarmos, por exemplo, a programação do Baquet rapidamente constatamos da sua falta de coerência e de qualidade: "Altas comédias, tragédias, zarzuelas, dramas, óperas, operetas, vaudevilles, sucediam-se, muitas vezes alternando com espectáculos de equilibrismo, como o do japonês Ali Right, domadores de Leões, o homem-cascável, pres-tigitadores, mágicos e meras curiosidades" 44.

No entanto, nada supera o gosto da burguesia portuense pela música e pelas artes cénicas, em especial a ópera e o teatro lírico. Cria-se, inclusi-vamente, a figura dos Concertos Populares que, no entanto, de popular têm apenas o nome. De facto, o preço da entrada (300 réis) "era uma extra-vagância para qualquer operário, cuja diária não excedia o rendimento de 400-500 réis, mas que explica bem a ideia da burguesia sobre quem era o povo" 45.

Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira referem mesmo que o Porto do ultra-romantismo "está na iminência de se tornar uma cidade amante da música e um dos públicos mais conhecidos da Europa" 46. No entanto, os autores não explicitam as fontes ou os argumentos que lhes per-mitem sustentar essa opinião. Pelo contrário, as idas ao teatro musicado e à ópera aparecem abundantemente descritas nas obras dos naturalistas em tons pouco abonatórios. O panorama não é de forma alguma coincidente... Aliás, os comportamentos de grande parte dos frequentadores das grandes ocasiões culturais parece pautar-se, preferencialmente, pela lógica do reconhecimento social:

42 Vd. Manuela Espírito Santo, O Teatro Baquet — no Centenário de uma Tragédia,

Porto, Círculo de Cultura Teatral, 1988. 43 Vd. Gaspar M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 27. 44 Idem, ibidem, p. 12. 45 M. do Carmo Serén e G. M. Pereira, Art. cit , p. 498. 46 Idem, ibidem, p. 492.

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"Senhoras entravam para os camarotes, acomodando-se na frente, uma grande ostentação de toillette para recompensar a incompreensão da ópera. — Pouca gente conhecida — e assestava o binóculo, movendo-o em dife-rentes direcções (...) — Aí o comendador, o padrinho! — Aonde? — Ali na superior, olha..." 47.

Muitas vezes, a mise-en-scène dos espectadores suplantava largamente a apresentação dos actores...: "Os coros desafinavam o mais possível, num compromisso funesto de enterrar a partitura. Via-se o regente gesticular, numa agitação febril, a batuta num voltear vertiginoso; um rumor surdo saía das torrinhas, prenúncios de tempestade na plateia (...) A pateada rebentou furiosa, uma grande tempestade; cadeiras rangiam e viam-se dândis numa tarefa inglória, tentando quebrar os bancos, assobiando, ges-ticulando com veemência. Falava-se alto, disputas, questões com os vizi-nhos, uma balbúrdia, pano descido (...) a Polícia interveio, desmaios nos camarotes, as famílias burguesas retiravam-se" 48.

Em suma, fica-nos a ideia de um campo cultural fracamente estrutu-rado, tanto ao nível da oferta (actores com fraca formação, repertórios de duvidosa qualidade) como da procura, existindo aqui, por isso, um efeito de homologia: apesar da assinalável homogeneidade cultural do público (aqui o singular impõe-se, dada a falta de diversidade), os seus conhecimentos cul-turais e artísticos apenas permitiam a viabilidade de uma oferta de medíocre qualidade, tanto mais que a fruição cultural assentava numa lógica essen-cialmente instrumental — meio de apresentação pública, ocasião de con-sumo sumptuário, reafirmação simbólica das posições sociais, palco de redes sociais 49. Tal não é de admirar, num contexto de profunda mutação social, em que a elite recém-empossada não possuía ainda um discurso e uma repre-

47 José Augusto Vieira, A Divorciada in Isabel Pires de Lima, op. cit, p. 148. 48 Idem, ibidem, pp. 151-152. 49 "No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toillette, namorar, passar

noite — e não se conversa (...) O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado — e comprado no bilheteiro. De resto, o teatro favorece o namoro, que é o entreteni mento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário (...) Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre — é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama — é o tédio da casa que o repele"", Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre in M. L. L. Dos Santos, op. cit , p. 41.

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sentação definidas sobre o seu papel na ordem cultural e simbólica. Além do mais, os fraquíssimos níveis de instrução não eram de molde a permitir uma familiarização objectiva com códigos culturalmente exigentes.

O assinalável sucesso do teatro lírico encontra-se ligado, não tanto a um progresso nos hábitos culturais, mas muito mais à necessidade de espaços estratégicos de convivialidade e de encontro: "reunia os ultra-românticos e irreverentes filhos-família, esperando encontros com as meninas elegantes ou seguindo as actrizes da ópera" 50.

A formação de claques, geralmente intervenientes activas nas pateadas e nos confrontos verbais e físicos que se lhes seguiam, tinham muitas vezes a ver com lógicas absolutamente exteriores ao campo cultural: "... os gru-pos rivais tinham também conotações políticas, dividindo-se entre patuleias e cabr alistas" 51.

O conteúdo do repertório indicia ainda uma fraca autonomia da cria-ção cultural (longe ainda do modelo da arte pela arte). Os dramas sociais (ou "drama da actualidade, comédia de costumes, comédia-drama, drama realista" 52) correspondiam às necessidades de educação e socialização da burguesia em ascensão, capaz de criar um novo modelo de herói, emanci-pado face à tradição e premiado pelo seu esforço de auto-valorização, assente em valores como o progresso e o trabalho. Mas o drama social fornecia ainda, embora fíccionalmente, a ideia de harmonia social. Ideia que, con-forme se caminha para o final do século e se abandonam, tardiamente, os modos de produção do Antigo Regime, encontra cada vez menos corres-pondência na realidade.

3. O reverso da "boa sociedade"

O Porto de finais de Oitocentos está longe de se confinar ao universo burguês. Nele existem as "ilhas" (que albergavam cerca de 1/3 dos habi-tantes da cidade e onde se desenvolviam intrincadas relações de parentesco), as "colmeias" e as "casas da malta"53 que abrigavam em condições mis-

50 Gaspar M. Perei ra , O Porto de Camilo, p. 26 . 51 Idem, ibidem, pp. 26-27. 52 Vd . M. de L . L ima dos San tos , op. c i t . , p . 62 . 53 "«espaços acanhados onde dormem em pobres leitos, muito juntos os operários

das aldeias , ou os aguadeiros e outros serviçais» ( . . . ) onde se aluga, por noi te ou por semana, uma cama e um prego para pendurar a roupa" in G. M. Pere i ra , O Por to de Camilo, p. 48.

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eráveis os que abandonavam as aldeias em busca do sonho citadino. O mundo iluminado da burguesia "contrasta com a ausência de iluminação pública nos arrabaldes rurais e com a presença das velas e dos candeeiros de petróleo nas casas mais pobres ou nos lugares mais afastados" 54.

Em 1905, o abastecimento de água ao domicílio é de apenas 32%; a rede de esgotos cobre somente 27% das habitações; a canalização a gás não ultrapassa os 47% das ruas da cidade. Não são de admirar, por isso, a alta taxa de mortalidade e as epidemias que até tarde fustigam a população social-mente mais desprotegida do Porto — em 1889 é a última cidade europeia a ser atingida pela peste bubónica.

O crescimento da relação salarial é também visível no significativo aumento das associações operárias de carácter mutualista. As classes labo-riosas tornam-se, progressivamente, classes perigosas, influenciadas pelo surto de associativismo operário, pela difusão dos ideais socialistas e insti-gadas pelas suas miseráveis condições de existência. Na década de 70 surgem as primeiras greves e a comemoração do dia do trabalhador torna-se uma realidade a partir de 1890, reunindo cerca de doze mil pessoas. João Grave, um dos raros escritores naturalistas a retratar a vida das classes populares, oferece-nos um expressivo retrato de uma greve: "Os homens, esfarrapados, com os casacos remendados ao ombro, mostravam os pulsos deformados pelas brutalidades do trabalho áspero e constante. Nas suas faces lívidas, os malares rompiam agressivamente e os dentes branquejavam na cor escura dos lábios (...) rugidos surdos rebentavam, explodiam (...) como pragas ful-gurantes (...)

- A greve! - Viva a greve! - Abaixo o capital! - Viva o operariado! - Morram os exploradores do povo! - Morram! Morram! - Peguemos fogo às oficinas, camaradas! (...) - Ao fogo, ao fogo, ao fogo!..." 55. Não admira, assim, a crescente segregação espacial que a burguesia

impõe, limitando a cidadania a vastas camadas sociais, escondendo a sua

54 Vd. Maria do Carmo Serén e Gaspar M. Mart ins , op. c i t , p. 392.55 Vd. João Grave, Os Famintos — Episódios da Vida Popular in Isabel Pires de

Lima, op. cit . , pp. 200-201.

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insegurança através de uma "moral da rejeição" que atinge as prostitutas, os pedintes, os "rapazes garotos", os aguadeiros, o pequeno comércio de rua, as actividades artesãs...

Nas práticas culturais e na ocupação dos (raros) tempos livres repro-duziam-se, igualmente, distâncias e (im)possibilidades. O Domingo dos pobres, segundo João Grave, passava-se na rua, ao ir livre, cobiçando as mercadorias das lojas de moda. Mas existiam ainda os passeios ao campo ou ao rio, onde se improvisavam "grupos de tocadores de «ramaldeiras» em bailaricos e descantes" 56. A música e a dança, aliás, tornam-se o pas-satempo favorito, ao mesmo tempo que as associações operárias reservam nas suas sedes espaços para essas actividades. A pequena burguesia, com o crescimento do terciário, inicia também os seus processos de distinção social, em grande parte miméticos face à grande burguesia, organizando sociedades recreativas, frequentando os passeios públicos onde são toleradas e alugando "camarotes de terceira" no teatro lírico, num movimento que principia o alargamentp de públicos.

Os mais desfavorecidos fazem da rua o seu local de eleição, prolon-gando, muitas vezes, o espaço doméstico. É na rua, também que se con-centram as novidades e os espectáculos: desde os "artistas populares, saltim-bancos e vagabundos", até aos exóticos "cães malabaristas, ursos que fazem vénias, o canário que toca pífaro, a mulher gigante, a mulher anã, as vis-tas estereoscópicas das cidades estrangeiras ou da vida de Cristo" 57, sem esquecer o circo, os parques de diversões e as sessões de hipnotismo.

O quotidiano, de resto, continua a marcar-se por cadências ruralizantes, mantendo-se uma fortíssima influência do calendário religioso, com as suas procissões e as festas sacro-profanas dos santos populares. Excepcio-nalmente, a monarquia concedia ao povo ocasiões festivas para "aclamação dos monarcas ou por ocasião do nascimento de um príncipe ou da vinda da família real ao Porto" 58. Outras vezes, contudo, as preocupações dei-xavam pouca disponibilidade para os festejos:

" (...) Na taberna da sr° Madalena, tão concorrida aos domingos, dois soldados tocavam guitarra, sentados entre uma jovial assembleia de vagabundos. O cortejo atravessou vagarosamente toda esta onda de miséria

56 Gaspar. M. Pereira, O Porto de Camilo, p. 54. 57 Idem, ibidem, p. 55.

58 Idem, ibidem, p. 56.

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e de infortúnio, despertando uma compadecida emoção. Manuel ia exausto, abandonado às mãos amigas que o acarinhavam (...)

—Veio da fábrica escoadinho em sangue! —Foi apanhado por uma trave que caiu do tecto. —Parece que já morreu!..." 59.

II — O Novo Século

1. As novidades

Aos poucos, as novidades iam chegando ao Porto. Entre 1909 e 1911 funcionou um original cinema, o Metropolitano, que tinha a aparência de uma carruagem de comboio: "«a carruagem tremelicava, como se avançasse sobre a linha, e pela janela viam-se correr as paisagens projectadas no écran, de viagens a Paris, Londres, Berlim, etc.» O espectáculo era total: tocavam campainhas e apitos com ruídos de fundo iguais aos de um com-boio autêntico" 60.

Os primeiros anos do século traziam a magia das imagens em movi-mento. O cinema, como Walter Benjamim tão agudamente observou, marca como nenhuma outra forma de arte a divulgação em massa e a associação à indústria, ao mesmo tempo que permite a ''recepção na diversão"61, dimensões indissociáveis do novo "espírito do tempo".

A cidade do Porto mergulhou nesse desígnio, como o demontram os seus numerosos cinemas. O Águia d'Ouro, inaugurado como teatro em 1899 projecta sessões de cinematógrafo, importando a tecnologia directamente dos estúdios Lumière. O salão High-Life, situado no local onde hoje se encontra o cinema Batalha, era bastante frequentado pelas camadas popu-lares: "Pelas sua pantalha passaram as mais espantosas fitas de aventuras, de pancadaria e os Western. Era um edifício sem grandes condições, rodeado por um gradeamento dando a volta à esquina da Praça, que sub-sistiu até aos anos 40" 62. O seu maior sucesso concretizou-se na exibição

59 João Grave, Os Famintos in Isabel Pires de Lima, op. ci t . , pp. 206-207. 60 Vd. Hélder Pacheco, op. cit . , p. 162. 61 Vd. Walter Benjamin, "A obra de arte na era da sua reproductibilidade técnica"

in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d'Água, 1992. 62 Vd. Hélder Pacheco, op. cit . , p. 162.

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da película A Vida e a Morte de Jesus, "colorida e com 1200 metros" 63. Posteriormente, o cinema Batalha será objecto de admiração pela ousadia estética da sua configuração arquitectónica. Merecem ainda referência, nas primeiras décadas do século, o Sá da Bandeira, o Passos Manuel, o Salão Pathé, o Trindade, o Éden Teatro e o Metropolitan-Cinematour e o Olympia.

O Rivoli, por seu lado, foi inaugurado em 1932, substituindo o antigo Teatro Nacional. Era seu proprietário o empresário Pires Fernandes, con-siderado pelos seus mais próximos colaboradores como "um homem dinâmico, meticuloso e de grande tacto administrativo" 64. O seu projecto para a sala de espectáculos assentava numa programação virada para o "grande público", sem descurar, no entanto, a preocupação com a qualidade. Nessa linha, a estreia ficou a cargo da Companhia Amélia Rey Colaço — Robles Monteiro, que apresentou a comédia em três actos de Mareei ino Mesquita "Peraltas e Sécias". Como actores principais destacam-se alguns nomes bem conhecidos: para além da própria Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, salientamos Raul de Carvalho, António Vilar e João Villaret. Oscilavam os preços entre os 60 escudos dos Camarotes e Frisas e os 4 escudos da geral, o que dá bem conta da diversidade de públicos abrangi-dos. Segundo relatos de jornais, na noite de estreia "o Rivoli mobiliza as atenções de grande parte da cidade", "Todo iluminado, portas e janelas amplas, o novo teatro do Porto chama a atenção de quem passa" 65. Sucedem-se, entretanto, uma vasta galeria de espectáculos: teatro de "tipo romântico", comédias, dramas históricos, revistas, opereta e mesmo com-panhias de circo, logrando-se obter assinaláveis êxitos e muitas lotações esgotadas. No final de 1932, o Rivoli entra também na moda do cinema, fechando para instalação do sistema sonoro.

De qualquer forma, um olhar de conjunto sobre a programação teatral e musical das principais salas portuenses faz com que nos apercebamos de um défice fundamental: não existe notícia de nenhum espectáculo produzido no Porto — os grandes sucessos eram importados de Lisboa o que repre-

63 Idem, ibidem, p. 178. 64 José Gomes Bandeira, Rivoli, Teatro Municipal 80 Anos de Espectáculo, Porto,

Edição da Câmara Municipal, 1993, p. 5. 65 Idem, ibidem.

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senta, sem dúvida, "um retrocesso em relação a épocas anteriores da história teatral portuense" 66, em particular se pensarmos no orgulho e von-tade da burguesia oitocentista em rivalizar com a capital.

2. Uma nova realidade: a metrópole

Durante as primeiras décadas do século, e com especial aceleração a partir dos anos sessenta, o Porto reforça o seu poder de atracção de pessoas, mercadorias e informação, assistindo-se a uma inédita concentração de fun-ções (cultura, administração, educação, saúde, etc). A única solução para evitar uma ruptura passou pela integração dos espaços municipais limítro-fes, através da reanimação de vários pólos urbanos e da delegação de fun-ções e competências. Assim, o Porto vê reforçado o seu papel orientador, embora no quadro de um "sistema urbano multipolar" mediante a "conver-são progressiva do centro de área produtora e mercantil em espaço gestor e comerciai 67. O centro da cidade desdobra-se em dois, com a importância crescente da Boavista. O centro clássico, esse, diminui: "de 1900 para 1991 o centro antigo desceu de 21% para 6°/o\ embora a tendência se estenda ao próprio centro moderno que recua de 45% para 27%. Pelo contrário, "a área pericentral passou de 13 para 20% e a periferia de 21% para 47%. No início do século, dois terços dos portuenses viviam no centro da cidade. Noventa anos mais tarde, a mesma proporção de pessoas reside fora dele" 68. Progressivamente, a cidade especializa-se nas grandes estruturas de enquadramento e na concentração de direcções regionais e sedes de empresa.

De dia, os bairros residenciais desertifícam-se e o centro fervilha. De noite, o panorama é o oposto. Cresce a tendência para o esvaziamento dos lugares públicos e, apesar da importante concentração de oferta cultural na cidade, a cultura de saídas ressente-se.

66 Idem, ibidem, p. 8. 67 Vd. François Guichard, "O Porto no século XX" in A. Oliveira Ramos, op. cit . ,

p. 534. 68 Idem, ibidem, p. 535.

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3. Um período de discrição e semiclandestinidade

Com o avançar do século, conjugam-se dois factores determinantes na estruturação da vida cultural portuense. Por um lado, as pesadas imposições do regime ditatorial vigente, muito pouco dado a manifestações públicas e espectaculares ou mesmo ao incentivo da cultura e da criatividade, enquanto inevitáveis expressões de liberdade, criavam dificuldades acrescidas. Por outro lado, a especificidade de uma burguesia utilitária e pragmática leva a que se reserve "o brilho para a intimidade. Tal como tinha escondido atrás de fachadas austeras a talha dourada, o salão árabe e os lustres dos seus clubes, o Porto escondeu a Arte Nova no interior das suas novas residên-cias" 69 (com duas importantes excepções, não por mero acaso cafés: a Brasileira — 1903 — e o Majestie — 1921).

Os curtos anos da l.a República conheceram ainda uma notável vitali-dade, em especial nos restritos círculos da intelectualidade e no domínio da expansão escolar. Criou-se, em 1911, a Universidade do Porto que contava, em 1926, com mil alunos. Em 1917 nasce o Conservatório de Música e em 1923 o primeiro cineclube português. Multiplicam-se, por esta altura, os cur-sos livres (em grande parte devido à acção dinamizadora da Universidade Popular e da Universidade Livre), os debates e as tertúlias, bem como publi-cações (jornais e revistas) de cariz académico, das quais se destaca a Águia, fundada em 1911.

Mas os sinais de um Estado que se pretendeu Novo, cedo se fizeram sentir, cortando cerce os ímpetos emancipatórios da Primeira República. Logo em 1928 é encerrada a Faculdade de Letras (fundada em 1919). Desde essa altura, a tradição democrática e cívica do Porto vê-se rodeada de sus-peitas, denúncias e censuras. A discrição impunha-se como estratégia de sobrevivência, enfraquecendo-se a esfera pública: "A partir daí o debate só podia limitar-se a intimidade ou adoptar modos de circulação tão dis-farçados que escapavam à percepção da maioria" 70.

Exemplo desse espírito é a actuação multifacetada do liberal Ateneu Comercial do Porto, com as suas "manhãs literárias", o incentivo dos seus prémios, os seus revigorantes concertos e recitais de canto e, acima de tudo, as suas conferências e debates por onde passaram alguns vultos do maior prestígio da intelectualidade portuguesa do presente século. A título de exem-

69 Idem, ibidem, p. 575. 70 Idem, ibidem, p. 580.

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pio, refiram-se os nomes de Miguel Torga, Vitorino Magalhães Godinho, Hernâni Cidade, Lopes Graça, João Villaret, Aquilino Ribeiro, Agostinho da Silva, António Gedeão, Vasco da Gama Fernandes e tantos, tantos outros 71. As homenagens a Antero de Quental (1942) e a Almeida Garrett (1956) sus-citaram a mobilização das energias liberais da velha burguesia, adormecida mas não aniquilada.

Discretamente, mas de forma indelével, a cidade continua a marcar a sua presença na vida cultural portuguesa, embora sem conseguir aproxi-mar-se do fulgor da capital, agora confiante do seu papel de metrópole colo-nial, e apoiada de forma notável pela actividade insubstituível da Fundação Calouste Gulbenkian.

De facto, alguns nomes dos novos intelectuais e artistas portugueses são do Porto: Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruben A., Eugênio de Andrade, Agustina Bessa-Luís, Oscar Lopes, Manoel de Oliveira, Fernando Lopes-Graça, António Cruz... No entanto, falta a animação colectiva, a vita-lidade das instituições e dos equipamentos. Antes dos anos sessenta, com a notável excepção da criação do TEP (em 1951), a sensaboria parece imperar.

Com a nova década um renovado dinamismo faz surgir alguns impor-tantes movimentos: na arquitectura consolida-se o prestígio da "Escola do Porto", através de nomes como Fernando Távora e Siza Vieira; criam-se novos grupos de música e de teatro; emerge o ensino artístico cooperativo {Cooperativa Artística Árvore, inaugurada em 1963); implanta-se a Fundação Engenheiro António D Almeida (1969). Entretanto, de forma difusa e semiclandestina, florescem os pequenos grupos anti-regime, muitas vezes organizados (?) em forma de tertúlia e extremamente diversos quanto à sua composição, indo desde os católicos progressistas inspirados na figura do Bispo D. António Ferreira Gomes, até à emergente extrema-esquerda, de várias matizes. Anuncia-se um novo ciclo.

4. Uma nova fase: a aplicação de uma política cultural autárquica

Com a "explosão" revolucionária, o Porto vê surgir inúmeros embriões de associações e grupos culturais, animados do intuito de fazer do quoti-diano uma mescla indissociável de cultura e política, na esteira de alguns

71 Vd. Gaspar M. Pereira e Luciano Vilhena, op. cit

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movimentos sociais, mais ou menos estruturados. Alexandre Alves Costa definiu da seguinte forma o espírito que lhes estava subjacente: "Foi um puro início, como tempo novo, sem mancha nem vício" 72. No entanto, muitos deles revelaram-se luzes fugazes, em especial após a consolidação do chamado período de "normalização democrática" iniciado com o 25 de Novembro e marcado por uma "institucionalização" dos consumos culturais, com a crescente intervenção do poder político, na definição dos critérios e domínios de financiamento e enquanto poderoso agente de consagração de certos nomes no panorama cultural73. As manifestações culturais acan-tonaram-se, progressivamente, nos locais especificamente destinados à cultura.

Faltava à cidade uma perspectiva estratégica do seu papel de metrópole cultural regional. Com um conjunto de equipamentos degradados e a neces-sitar de urgente reciclagem; padecendo de um localismo paroquial; sentindo a ausência de um quadro de suporte ao movimento associativo; excessiva-mente centrada na rentabilização inerte do seu património histórico e artís-tico, o Porto foi, durante décadas, uma cidade onde as iniciativas, esparsas, não eram enquadradas em qualquer exercício de planeamento sistemático e onde os agentes sócio-culturais sentiam a falta de redes e de interlocutores. Uma intervenção cultural implica, já o dissemos, um quadro de referências e prioridades, bem como meios de acção pública especializados.

Na nossa opinião, a cidade só começou a usufruir de uma verdadeira política cultural (conjuntos articulados de iniciativas coerentemente planeadas e avaliadas; objectivos claros e operacionalizáveis; mecanismos eficazes de produção e divulgação; diversificação das actividades; diálogo com os potenciais públicos; recuperação de infraestruturas; etc.) a partir de 1989, com a criação do Pelouro de Animação da Cidade. Relembramos alguns dos eixos estruturadores desse projecto pioneiro: "apoio às associa-ções recreativas e culturais da cidade, visando a sua revitalização"; "apoio à criação artística em sentido lato"', "diálogo permanente com as institui-ções públicas e privadas da cidade''; "promoção e/ou apoio à realização de acções de prestígio no campo cultura^', "apoio à inclusão do Porto nas

72 Vd. " In te rvenção de Alexandre Alves Cos ta" (Noi tes de Soc io log ia do Por to-

I I ) in Soc io log ia — Revis ta da Facu ldade de Le t ras , n.° 2 , 1992, p . 212 . 73 Em crónica recente, Regina Guimarães questionava sarcasticamente, a propósito

da ideia de o Porto se candidatar a Capital Europeia da Cultura: " is , aqui entre nós, não acham que o Por to possui um número temível de ar t i s tas o f ic ia is?" , vd. "Sejamos crus como nos compete , foda-se !" in Hei ! , n.° 2 , Abr i l de 1997 , p . 10 .

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digressões de artistas e companhias nacionais e estrangeiras de alta quali-dade"', "desenvolvimento da cooperação com outros municípios"', etc. 74.

Em termos mais concretos, podemos assinalar duas faces comple-mentares dessa política cultural de cidade: uma visível e espectacular; outra mais recôndita e de longo prazo. Na primeira é possível incluir uma série de festivais (produzidos ou apoiados pela autarquia), de cariz sazonal e que vêm marcando, desde há vários anos, a vida cultural da cidade. De tendên-cia claramente cosmopolita, proporcionam o cruzamento de artistas e de for-mas de expressão provenientes de várias partes do globo: é o caso de Ritmos (festival de formas musicais emergentes no espaço afro-latino); Intercéltico (projecto que procura reconstruir afinidades no seio de uma matriz cultural que engloba países e regiões como o Norte de Portugal, a Galiza, a Irlanda, o País de Gales, etc); o Festival de Jazz\ o Festival Internacional de Marionetas', o Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto', as Jornadas de Arte Contemporânea', as Noites Ritual Rock; o Fazer a Festa — Festival Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude', etc. 75. Nesta vertente podem ainda considerar-se as iniciativas de cariz mais espon-tâneo e convivial (com uma forte componente de animação de rua) como as Festas da Cidade e Do Natal aos Reis. A diversificação da oferta, patente nesta pluralidade de eventos, articula-se com o princípio de alargamento dos públicos, também eles heterogéneos. Faltarão ainda, no entanto, programas que propiciem o cruzamento de formas de cultura, criando dinâmicas transversais que contribuam para superar velhas hierarquias e classificações (como acontece, por exemplo, em certas peças musicais que tentam associar música popular e música erudita 76), apesar do tenso equilíbrio a que tais propostas obrigam. A outra face, mais discreta, mas nem por isso menos significativa, centra-se em três aspectos fundamentais: a recuperação per-manente de equipamentos (salas de espectáculo; museus; bibliotecas; arquivos; parques de recreio); a relação com as associações (apoio à melho-ria de instalações; formação profissional; suporte de acções voltadas para a comunidade; etc.) e a ligação às escolas, mediante projectos de formação de

74 Vd. Plano de Actividades para 1991, Pelouro de Animação da Cidade da Câmara

Municipal do Porto. 75 Vd. Viver no Porto Patr imónio Mundia l Guia do Muníc ipe 1996/97 , Por to ,

Câmara Municipal, 1996, p. 21. 76 Um bom exemplo é o espectáculo encenado por Ricardo Pais e com direcção

musical de Mário Laginha, "Raízes Rurais, Raízes Urbanas", numa originalíssima mis cegenação de fado, jazz e músicas tradicionais.

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novos públicos 77, de onde se destaca o programa Descobrir 78, direccionado para as artes, ciência e tecnologia.

Como suporte desta política estimulou-se um alargamento da rede municipal de equipamentos, de cariz estruturante. Na transição do último para o actual mandato, para além da renovação do Rivoli (cujo orçamento ascendeu a dois milhões de contos 79), destacam-se a construção do teatro do Campo Alegre, que servirá de sede da companhia Seiva Trupe, bem como a renovação das casas-museu de Guerra Junqueiro e de Marta Ortigão Sampaio.

Importa referir, também, o esforço de outras entidades neste domínio, indicador de que houve uma aceleração global no desenvolvimento cultural da cidade. Antes de mais, o Estado, destacando-se a recuperação do teatro S. João e a sua elevação à categoria de Teatro Nacional, com a lei orgânica publicada em 1997, bem como a consagração da Orquestra Nacional do Porto (ainda não sinfónica...) e a instalação, no Porto, do Centro Português de Fotografia. Salienta-se, igualmente, a acção da sociedade civil organi-zada, apoiada pelo Estado e pela autarquia. Sublinham-se, neste âmbito, o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) e o Fantas-porto (festival de cinema fantástico).

Desta forma, aumenta a necessidade de parceria entre os vários agentes culturais locais, proliferando os equipamentos geridos em comum, as co-pro-duções e as iniciativas conjuntas.

A Fundação de Serralves, por exemplo, criada com o objectivo de instalar o Museu de Arte Contemporânea, conta com o apoio de fundos

77 Cf. José Madureira Pinto, "Uma reflexão sobre políticas culturais" in Dinâmicas

Culturais, Cidadania e Desenvolvimento ' , Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, 1994, pp. 767-792. Ainda na mesma obra, vd. "Tempos e espaços da animação socio- cultural: o desencontro entre a cidade e a escola", pp. 643-658 e ainda, Tristes Escolas Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano, Porto, Edições Afrontamento, 1997.

78 Um recente anúncio, publicado na principal revista de cultura urbana — Hei! — , dava conta desse trabalho: "Ao longo do ano lectivo, dezanove escolas do Porto têm vindo a consti tuir , com o apoio de um monitor, grupos de trabalho nas áreas do teatro e da dança. O que estes alunos agora pretendem é mostrar o produto desse trabalho e part i lhar consigo o prazer de se expressarem art i s t icamente" , Hei ! , Junho de 1997, p. 20.

79 De notar que, só no ano de 1997, o orçamento municipal para o Rivoli signifi cava um mi lhão e t rezentos mi l contos , ac ima das verbas des t inadas à acção soc ia l (961.675 contos), Educação (580 mil contos) e projecto-piloto para a recuperação do bairro da Sé (400 mil contos).

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públicos e da iniciativa privada. A Fundação Ciência e Desenvolvimento resulta da colaboração entre a autarquia e a Universidade do Porto. O Coliseu do Porto que, juntamente com o Rivoli e o Teatro Nacional S. João, con-stituem o "núcleo-duro" das salas de espectáculo portuenses, é actualmente gerido (depois de uma movimentação popular contra a possibilidade de o imóvel ser adquirido por uma organização religiosa) através de fundos municipais e da iniciativa privada, tendo igualmente recebido apoio do Estado para a sua recuperação após o incêndio de Setembro de 1996. As co-produções começam igualmente a ganhar algum relevo, apesar de estarem longe de ser uma prática generalizada.

Segundo cálculos da autarquia, nos últimos dez anos o investimento cultural total na cidade do Porto superou os 26 milhões de contos. Ainda de acordo com a mesma fonte, num domínio sensível, como é o caso do teatro, em dez anos os grupos e companhias passaram de três a dezoito. Em 1997 foram dez os projectos teatrais portuenses apoiados pelo Ministério da Cultura, tendo outros tantos ficado de fora. Por outro lado, existem três insti-tuições de formação artística nesta área 80.

No que se refere a cinemas, o Grande Porto (incluindo Porto-cidade e Vila Nova de Gaia) possuía, a 1 de Outubro de 1997, 46 salas (represen-tando um acréscimo, nos últimos 7 anos, de 32 espaços de exibição)81. Quanto a editoras, a grande concentração verifica-se na região de Lisboa. Ainda assim, a revista Hei! identifica sete editoras activas, três delas de carácter quase artesanal, definida por um dos proprietários como "editora de autor" 82. A nível de galerias e de espaços de exposição, o inventário da Comissão de Coordenação da Região Norte dava conta de 40 unidades, sendo que 25 são especificamente galerias 83. Finalmente, o tecido associativo da

80 Sobre o recente panorama teatral portuense, vd. Carla Maria de Almeida, "Nunca

se fez t an to t ea t ro" in Hei ! , n.° 2 , Abr i l de 1997 , pp . 44-49 . 81 S e g u n d o i n v e n t á r i o d a C o m i s s ã o d e C o o r d e n a ç ã o d a R e g i ã o N o r t e ( 1 9 9 1 ) .

Quan to a 1997 , quando e s t a con tab i l i zação fo i f e i t a , a Grande L i sboa (L i sboa -c idade , Linha de Sint ra , Cascais , Oeiras e Linda-a-Velha) possuía em funcionamento 83 sa las de c inema . De r e f e r i r que , pos t e r io rmen te a e s t a con tagem, ence r rou , no Por to , o c inema Pedro C em (pouco an te s t i nham ence r rado o c i nema FOC O e a s duas s a l a s Lumiè re — efei to da conocorrência dos Mult ip lex?) .

82 Vd . João MacDonald , "Edi to res à mos t ra" in Hei ! , Junho de 1997, pp . 36-38 . 83 Em Agosto de 1997 era possível encontrar, em muitos destes espaços, exposições

t ã o v a r i a d a s c o m o " P a n d e i r o s e P u c a r e i r o s — A L o u ç a N e g r a e m P o r t u g a F ( C e n t r o Regional de Artes Tradic ionais do Por to) ; "Perspect iva: Al ternat iva Zero" (Fundação de Ser ra lves ) ou a inda expos ições co lec t ivas como "O Por to Re inven tado" (Gale r ia Lóis ) , vd . "Bússola" in Hei ! , n.° 6 , Agos to de 1997 .

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cidade apresenta, segundo dados municipais, um conjunto de mais de seis-centas associações e colectividades, dinamismo que, no entanto, pode ser contrariado se atentarmos no quadro n.° 1, respeitante a uma proposta de tipologia das associações.

Associações Culturais Total

Ass. Cult. Artísticas de Cariz Erudito e/ou Científico Assoe. Culturais e Artísticas de Cariz Popular

Assoe, de Cultura e Recreio Assoe, de Cultura, Desporto e Recreio

Assoe. Educativas e Formativas Humanitárias e de Solidariedade Social

Assoe. Estudantes e/ou Juvenis Assoe, de Defesa do Património

Outras Associações

34 4,9%44 6,3%74 10,7%

206 29,7%38 5,5%94 13,5%98 14,1%5 0,7%

10 14,6%

Total 694 100,0%

Fonte: Câmara Municipal do Porto

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De facto, a grande concentração nas categorias ''Associação de cariz popular" e "Cultura, desporto e recreio" revela, numa análise mais super-ficial, um tecido potencialmente envelhecido, acantonado à gestão corrente do subsídio, muitas vezes enquistado numa noção fixista de tradição e espe-cialmente vocacionado para a ocupação convivial dos tempos livres dos seus associados, o que, sendo meritório, não fornece o "salto" qualitativo dese-jável para uma nova ligação às comunidades, em mais ou menos rápida recomposição, nem tão-pouco aos novos padrões comportamentais emer-gentes, muitas vezes articulados com determinadas culturas juvenis.

Existe, no entanto, um risco. Todo o pluralismo subjacente à estrutu-ração de uma política cultural municipal encontra a sua génese, segundo Phlippe Le Moigne 84, num processo de institucionalização e regulação do campo cultural local por esferas exteriores ao próprio campo (patente, por exemplo, na elaboração ao nível nacional de critérios político-administra-tivos para o apoio à criação, ou para a consagração artística) e na apro-priação dos valores das "classes médias", que "conferem à acção cultural uma missão de promoção identitária" 85, necessária para a legitimação da sua trajectória social. Esta heterogeneização das iniciativas desemboca, para-doxalmente, num efeito de homogeneização: no seu sincretismo, na sua retórica de conciliação de interesses e de promoção de equilíbrios, as políti-cas culturais urbanas tendem a assemelhar-se cada vez mais, enfraquecendo as ligações à sua base sócio-espacial (com tudo o que isso implica de diluição de efeitos de posicionamento na estrutura social e territorial) e tornando-se um foco secundário de luta política, ou mesmo o terreno de uma certa despolitização. Corre-se então o risco de, imbuída desta "polivalência sim-bólica", a política cultural municipal perder a noção das prioridades e cingir-se a uma lógica de "acumulação de iniciativas" sem orientação estratégica ou fio condutor, visando um pluralismo assente numa certa "exaustividadé cultural", pluridireccional e visando estabelecer compromis-sos e mediações entre os vários actores em presença.

Não nos parece que isso aconteça com a nova política cultural muni-cipal.

84 Vd. P. Le Moigne, "Les pol i t iques cul ture les de Ia cul ture : du développement

cul turel au condit ionnement public (1977-1990)", in AAVV, Jalons pour VHistoire des Politiques Culturelles Locaks, Paris, Ministère de Ia Culture/La Documentation Française, 1995.

85 Idem, ibidem, p. 83.

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A primeira política cultural de cidade do século XX tem vindo a dis-tinguir-se publicamente por resultados positivos em várias frentes (criação de uma rede de equipamentos, cruzamento de localismo e cosmopolitismo, articulação entre a oferta e a procura, etc.) e com uma definição estratégica de prioridades, como anteriormente referimos.

No entanto, os resultados são mais modestos (apesar dos esforços de revitalização do tecido associativo e de contacto interactivo com o sistema formal de ensino) no alargamento da participação cultural e no contrariar das "tendências de evasão e demissão cívicas'" 86. Joga-se, nesta dimensão, uma luta desigual entre uma lógica de acção local, com uma ancoragem ter-ritorial, contra uma lógica global, de cariz a-espacial, deslocalizada e onde se enquadram as tecnologias da comunicação e as indústrias culturais.

Por mais que se estruture a oferta cultural não são de esperar, como de resto mencionámos no capítulo V, efeitos automáticos de arrastamento da procura. O Porto deixou de ser a cidade provinciana de que nos falam grande parte dos escritores que sobre ela meditaram ("O Porto é província, e província do Douro (...) O Porto é a última cidade de Trás-os-Montes, de gleba transmontana" 87) e, por isso, não mais é imune às grandes (e transna-cionais) recomposições no domínio das sociabilidades e do espaço público.

5. As novas faces da cidade.

Não nos parece errado afirmar, como de resto está patente nas pági-nas anteriores, que a história cultural do Porto sofreu profundas metamor-foses nos últimos dez anos. À lentidão da evolução anterior, à aparência mesmo de estagnação durante os longos anos do Estado Novo, surge uma década breve, para utilizarmos de empréstimo a metáfora de Hobsbawn a propósito do nosso século (um século breve). O efeito que sobre nós provoca essa aceleração é mais visível quando nos damos conta da inadequação de comentários ainda recentes. François Guichard, por exemplo (1992!), fala-nos de um Porto centrado nas tertúlias de cafés e pastelarias, símbolo do traço pretensamente mais distintivo da urbe (a sociabilidade, ou uma

86 Idem, ibidem, p. 778. 87 Vd. Eduardo de Oliveira, "Sobre o Porto" in Eugênio de Andrade (org.) , Daqui

Houve Nome Por tugal — Antologia de Verso e Prosa sobre o Por to , Por to , O Oi ro do Dia, s / data, p. 225.

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certa sociabilidade); uma cidade cristalizada num espírito semelhante ao que "animava os grandes cafés franceses de antes da guerra" 88; uma aglome-ração onde os tascos traduzem um típico "mundo fechado de homens" 89, em ambiente de quente cumplicidade. O tasco seria "o verdadeiro símbolo da sociedade do Porto (...) fechada mas calorosa, conservadora, tradi-cionalista, ainda muito masculina". Os outros lazeres resumem-se a uns pas-seios à Foz e Matosinhos, em busca da praia ou de bons ares, ou ainda à pesca à linha e piqueniques junto ao rio, hábitos bucólicos preferidos pelos mais antigos. Ainda mais recentemente, a propósito da rede de cruzamentos proporcionada pelo festival Ritmos, alguém afirmava: "Ritmos, outros ritmos, cruzamentos múltiplos, mestiçagens várias (...) no Porto. Cidade improvável, até há algum tempo pouco dada a estas miscelâneas" 90.

Não chegaremos ao exagero de dizer que este Porto, tradicional e ritualizado, morreu. Ele permanece, decerto, em franjas etariamente idosas, ou em alguns segmentos profissionais com particulares enraizamentos terri-toriais, mas vão noutro sentido as grandes transformações sócio-culturais que atravessaram a sociedade portuguesa no seu conjunto e de que demos conta em anterior capítulo. Tais símbolos já não são, seguramente, elementos estru-turantes da imagem dominante da cidade. Tão-pouco esta outra represen-tação de uma "cidade do trabalho e em certos aspectos pacatamente provin-ciana, e orgulhosa de sê-lo (...) urbe densa cujas ruas em geral adormecem cedo e se animam cedo"9K

De facto, importa particularizar. Se há ruas sossegadas e hábitos domés-ticos fortemente sedimentados, noutras zonas da cidade as noites são longas e servem de suporte a múltiplos usos, simbologias, representações, papéis e actores: a noite dos comportamentos desviantes, a noite distinta e elegante, a noite juvenil e estudantil, a noite mundana... Na própria Internet, mito e veículo ultracontemporâneo da sociedade digital, encontrámos um site com comentários extremamente personalizados a propósito de mais de duas dezenas de bares e discotecas do Porto e arredores mais próximos. Nele, fala-se de uma constelação imensa de ambientes musicais {metal, punkfhard-

88 Vd. François Guichard, Porto, La Ville Dans sa Région, Paris, Fundação Calouste

Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1992, vol. II, p. 537. 89 Idem, ibidem, p. 539. E ainda: "É lá que se encontram à noite os verdadeiros

amigos e que se fala, bem melhor do que em sua casa ou nos cafés demasiado abertos, de coisas sérias: política, amores, problemas sociais, questões de honra e de dinheiro".

90 Vd. João Luís Pereira, "Ritmos" in Hei!, n° 4, Junho de 1997, p. 10. 91 François Guichard, "O Porto no século XX" in A. Ramos, op. cit., p. 592.

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core, música antiga, música alternativa, acid, etc., etc). Existem também referências aos melhores dias da semana; à hora de início da maior animação (por vezes a partir das cinco da madrugada...); ao tipo de clientela ^selecta", "gay", "pirosa", etc.) e surgem curiosas importações linguísticas (por exem-plo, movida), bem como sugestivos recursos de estilo {portagens refere-se ao "filtro" exercido à entrada de muitos estabelecimentos nocturnos por empregados ou "seguranças"). Alguns vêem em toda esta diversidade de espaços, estilos e linguagens o entusiasmante caleidoscópio pós-moderno. Outros, avisam prudentemente que a pluralidade de opções é mais de fachada e as margens de real alternativa apresentam uma reduzida flexibilidade.

Mas um outro tipo de consumos culturais invade o quotidiano portuense. Referimo-nos à rápida aparição das modernas catedrais de con-sumo, os shopping centers, onde milhares de cidadãos passam fatias cada vez mais significativas do seu tempo livre92. E se delas falamos é porque configuram uma radical reestruturação das formas tradicionais da esfera pública. Não é por acaso que, a propósito de dois megacentros comerciais de Lisboa se criaram os seguintes slogans: "O mundo"', "A cidade dentro da cidade"', "O centro da cidade". Porque de cidades se tratam. Cidades sem geografia, abstraídas do espaço e do tempo exteriores; muitas vezes em rup-tura com a configuração urbana onde se localizam; com as suas próprias ruas, praças e fontes; cidades onde as formas urbanas perdem legibilidade e as hierarquias se despacializam embora saiam reforçadas pela ordem do con-sumo93. Edifícios que poderiam estar — e estão — em qualquer local, seguindo o princípio de que "tudo se combina com o que quer que seja". Cidades que têm mais a ver com a racionalidade do fax, do modem, dos computadores e dos cartões de crédito do que com a "velha" lógica dos cenários físicos das urbes modernas. Cidades-televisão, onde, perante a aparente diversidade de lojas e produtos, o nosso olhar se assemelha ao zap-ping televisivo, talvez com uma diferença: temos todos os canais num só94.

92 No Grande Porto, num curtíssimo espaço de tempo surgiram, entre outros: o

Central Shopping, o Cidade do Porto, o Gaia Shopping, o Via Catarina, o Arrábida Shopping, o Maia Shopping e, mais recentemente, o Norte Shopping. Perante a arrogân-cia e a imponência da sua presença, quase coramos de incredulidade pela novidade que suscitaram, em inícios da década de 80, centros comerciais como o Dálias e o Brasília.

93 Vd. Michael Sorkin (ed.) , Variat ions on a Theme Park, New York, Hil l and Wang, 1992.

94 Vd. Margaret Crawford, "The world in a shopping mall" in op. cit , p. 9.

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O mais curioso nesta nova arquitectura urbana é o colapso da história e do clima. Nestas catedrais encontram-se pastiches de todos os estilos arqui-tectónicos, misturando-se pormenores barrocos com requintes neoclássicos e pós-modernos. Num certo sentido, o "excesso de tempo" de que nos fala Marc Auge a propósito das dimensões constitutivas da "sobremodernidadé\ está aqui presente95. No Via Catarina, na baixa comercial da cidade, podemos caminhar entre miniaturas de casas típicas do Porto, remetendo-nos para várias épocas. A temperatura é artificialmente mantida a um nível constante. No Cidade do Porto é-nos dada a possibilidade de patinar num lago gelado sem sofrermos os rigores da Invernia96. No extremo, as vinte e quatro horas do dia poderiam ser passadas num centro comercial. Nada nos faltaria: das lojas de múltiplos artigos (embora a diversidade seja mais aparente do que real, dada a duplicação de estabelecimentos iguais ou extremamente semelhantes) às praças da alimentação (onde se experimentam tanto o Standard àofastfood como as delícias das cozinhas mais exóticas, israelitas ou mexicanas), passando pelos centros de lazer, alguns especialmente vocacionados para as crianças; outros mais dirigidos aos adultos, como as grandes cadeias de cinema. Os centros comerciais tornam-se mesmo locais de encontro social; oportunidade para conhecer caras novas ou ocasião de passear com

95 V d . M a r c A u g e , N ã o - L u g a r e s — I n t r o d u ç ã o a u m a A n t r o p o l o g i a d a

Sobremodernidade, Lisboa, Bertrand, 1994. Evocamos, a este propósito, uma ideia de Jean Starobinski que Auge recupera: ""Presença do passado no presente que o excede e reivin dica" (p. 81). A sobremodernidade, acrescenta Auge, faz do antigo e da história "w/w espectáculo específico — como o faz de todos os exotismos e particularismos locais (...) A história e o exotismo têm aqui a mesma função que as «citações» no texto escrito" (p. 115).

96 No recém-inaugurado Colombo, em Lisboa, o seu arquitecto fala-nos do pecu liar urbanismo imagético dos centros comerciais. Existe, por exemplo, a Praça do Novo Mundo onde as ' fontes se transformam em cascatas, o chão é um mapa da época, os animais que servem de decoração são tucanos e espécies exóticas". Na Praça do Mundo Antigo "o chão tem um padrão geométrico, há uma fonte de inspiração clássica onde surgirá uma escultura de Neptuno, o animal que aparece desenhado é um golfinho", vd. "O novo templo do ócio", Expresso, 13/9/97, pp. 16-17. Ao lado do Colombo, classifi cado como de importância supra-regional, com os seus 122 mil metros quadrados, os cen tros comerciais do Grande Porto são ainda miniaturas, com excepção do Norte Shopping, com 73.500 metros quadrados, ainda assim um "mero" empreendimento regional. De referir que, segundo M. Crawford, os cálculos de viabilidade económica destes megaedi- fícios é feita com um cuidado máximo, prevendo-se com a maior exactidão possível o número de possíveis clientes e a área de atracção. Desta forma, podem classificar-se de acordo com as seguintes categorias: centros de vizinhança; centros de comunidade; cen tros regionais; centros supra-regionais e, finalmente, no topo da hierarquia centros com capacidade de atracção internacional.

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o(a) namorado(a). Entretanto, o centro histórico da cidade perde vitalidade e desertifica-se às primeiras horas da noite. Daí os slogans de que há pouco falámos: os centros comerciais são de facto, cada vez mais (e não num sen-tido meramente metafórico), o centro da cidade. Ao mesmo tempo, este "urbanismo de fantasia"91 dissemina uma nova atitude segregacionista. Se, de facto, a ruptura face ao exterior é quase total (ausência de ruídos, de oscilações de temperatura, música ambiente) todos os aspectos negativos da cidade tendem a ser eliminados: sujidade, toxicodependência, trânsito, pobreza. Além do mais, o invisível olho electrónico dos modernos sistemas de vigilância substitui a presença por vezes incómoda da autoridade (como aponta M. Crawford, existe uma ténue fronteira entre convite e exclusão). Um paraíso artificial — dirão alguns. Mas também uma encenação, um des-pertar simultâneo de estímulos contraditórios, que tanto passam pela exci-tação e ansiedade como pela sedação. Uma "viciante droga ambientar, no dizer de Joan Didion98.

Espaços de trânsito e de passagem que colocam a nossa identidade entre parênteses, dado o seu cariz fracamente relacional. Espaços que, ao contrário dos "lugares antropológicos" (identitários, relacionais e históricos, delimitáveis num tempo e num espaço onde se produzem "formas sociais orgânicas") se fixam numa "contratualidade solitária". Não-lugares, no dizer de Marc Auge".

O que leva tantas pessoas a frequentar estes espaços? A resposta é complexa e articula, certamente, para além de outros factores, défices de for-mação cultural com a reduzida exposição a uma oferta lúdica alternativa. Mas também o curioso sentimento de um certo anonimato que se refugia numa identidade provisória (apenas quebrada, aqui e além, pela apresentação de um documento, um cartão de crédito...), também ela em trânsito, gera-dora de representações ambíguas. Por um lado, a "multidão solitária", a pouca riqueza interactiva, o sentir-se espectador, inclusivamente de si próprio100. Por outro lado, a sensação de libertação face aos constrangi-mentos habituais ("a obrigação de..."), a leveza de um novo papel (pas-

97 Expressão de Margaret Crawford, art. cit., p. 22. 98 Cit. in M. Crawford, art. cit., p. 14. 99 Vd. Marc Auge, op. cit. íoo "Existem espaços nos quais o indivíduo se sente espectador sem, verdadeira-

mente, se importar com a natureza do espectáculo. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espectáculo ou, em definitivo, como se a posição do especta-dor em si mesmo fosse, para o espectador, o seu próprio espectáculo", idem, ibidem, p. 92.

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Do Porto romântico à cidade dos centros comerciais

sageiro, cliente...): "Objecto de uma doce posse, à qual se abandona com maior ou menor talento ou convicção, goza, momentaneamente, como qual-quer possuído, as alegrias passivas da desidentificação e o prazer mais activo da representação de um papeFm.

Qual a resposta de uma política cultural de cidade face à proliferação de não-lugares? O centro da cidade desertifica-se ao cair da noite e durante o fim de semana. Paralelamente, centros comerciais e grandes superfícies comerciais fervilham de gente. Possuem estes espaços algum potencial de revitalização de uma "cultura de saídas"? A resposta deve ser prudente. Não podemos esquecer que, em grande medida, representam um prolongamento da exposição à sociedade de consumo patente nos tempos doméstico-recep-tivos. Do mesmo modo, o seu cariz socializador afigura-se fraco. Os não-lugares só lidam "com indivíduos (...) mas estes não são identificados, socializados e localizados (...)É à maneira de um imenso parêntese que os não-lugares acolhem um número cada vez maior de indivíduos (...) O não-lugar é o contrário da utopia: existe e não alberga nenhuma sociedade orgânica"™2. Mas estes espaços podem conter, em si mesmos, sementes de um "espaço praticado" (para utilizar a terminologia de Certeau). Iniciativas de animação (concertos, exposições, performances) têm vindo a proliferar nestes cenários. Sabemos que elas constituem, antes de mais, uma tentativa de reforço do ethos consumista (que talvez se possa definir pela máxima de Auge: 'fazer como os outros para ser ele próprio"103), através do poder da "atracção adjacente"104 que direcciona os olhares e os estímulos para as mercadorias circundantes e omnipresentes. Ao abranger a esfera do lazer, mais necessidades são satisfeitas e mais motivos as pessoas encontram para frequentar estes locais. Mas demitirmo-nos de uma acção cultural organi-zada, equivaleria a legitimar a fuga da cidade, dentro da cidade, que eles também (e tão bem) representam. E, quem sabe, se em vez de se oferecerem como objecto de uma "etnologia da solidão" de que Marc Auge reivindica a emergência, não poderão constituir novos cenários de encontro, "agir comunicacional" e sociabilidade. Neles circulam cidadãos, ainda que adormecidos, públicos virtuais a serem conquistados.

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101 Vd. Marc Auge, op. cit., p. 108. 102Idem, ibidem,p. 116. 103 Idem, ib idem, p. 111. 104 Vd. M. Crawford , ar t c i t . , pp. 14-17 .