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DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COMO PROPOSTA PARA EXERCÍCIO
DE REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA EM FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Camila Camargo Prates1 PPGEdu/UFRGS
Maribel Susane Selli2 LELIC/UFRGS
Margarete Axt3 LELIC/UFRGS
Resumo Este artigo objetiva investigar efeitos de dispositivos metodológicos na formação de professores, em contexto localizado em um município do Vale do Taquari - RS, no qual atuamos como pesquisadores-formadores. Num primeiro movimento, investiga-se uma proposta de interação através do uso de caixas-dispositivos, nas quais grupos de professores inseriram escritos acerca de pensamentos, experiências e vivências referentes às suas práticas em sala de aula. Da soma destes escritos originou-se um mapa cartográfico, ao qual denominamos cartomapa. Tendo por base teórico-metodológica o conceito de dialogismo em Mikhail Bakhtin, considera-se que o processo dialógico pode estabelecer-se no grupo de formação no momento em que possibilita a existência de mais de uma voz, seja no discurso verbal ou escrito, seja nas interações professores-formadores e/ou formadores-professores. As análises apontam para a importância de dispositivos metodológicos que dêem voz aos sujeitos, considerando que todos têm importância e possibilidade de enunciação e que isto sustentaria as aprendizagens, uma vez que conceitos, produzidos e negociados no coletivo, possibilitam sempre outras relações de sentido a cada enunciação.
Palavras-chave: Dialogismo. Dispositivos metodológicos. Exercício
cartográfico. Formação de professores. Pesquisa-formação.
1 Mestranda em Educação PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CAPES.
2 Mestre em Educação, Doutoranda PEC/PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CNPq.
3 Docente nos Programas PPGIE/UFRGS e PPGEdu/UFRGS, coordenadora do Laboratório de Estudos
em Linguagem, Interação e Cognição (LELIC/UFRGS), pesquisadora do CNPq.
2
1 Contextualizando
Trata-se de estudo no âmbito da formação de professores, produzindo
particularidade específica quando a experimentação se pauta pelo princípio
dialógico, através do qual considera participantes e autores de referência como
interlocutores e parceiros da experimentação.
Fazemos parte de um projeto de formação de professores que ocorre
em um município do Vale do Taquari - RS, no qual se problematiza o cotidiano
escolar e, mais especificamente, das salas de aula. A partir de encontros
mensais, viemos propondo dispositivos metodológicos com os quais possamos
fazer emergir produções dialógicas como as que ora apresentamos.
Essa experiência apóia-se na metodologia utilizada no projeto CIVITAS
(Cidades Virtuais: Tecnologias para Aprendizagem e Simulação), projeto
institucional do Laboratório de Estudos em Linguagem Interação e Cognição
(LELIC/ UFRGS), que propõe, simultaneamente, a formação de pesquisadores
(graduandos, mestrandos e doutorandos) e a formação de professores em
serviço (em escolas4 da rede pública municipal de ensino). O projeto propõe
experimentações que sustentem de modo consistente as práticas do professor
em sala de aula.
Na situação apresentada, ocorreram dois movimentos: (1) uma proposta
de interação através do uso de caixas-dispositivos, nas quais grupos de
professores inseriram escritos acerca de pensamentos, experiências e
vivências referentes às suas práticas em sala de aula; (2) da soma destes
escritos originou-se um mapa cartográfico, ao qual denominamos cartomapa.
Sobre estes dispositivos deteremos nossas análises subsequentes, no intuito
de acompanhar efeitos dos mesmos na prática docente. A partir disto, ao
pensarmos processos de aprendizagem na formação de professores, bem
como seus desdobramentos na sala de aula, nos perguntamos: há
possibilidade de acompanhar efeitos de ações docentes através de exercício
cartográfico?
4 Provenientes de convênios estabelecidos entre UFRGS e municípios.
3
2 Dialogismo bakhtiniano na formação de professores
Embasamos esta prática de formação de professores em um
pressuposto dialógico na pesquisa-formação, entendendo esta como uma
metodologia que respeita os sujeitos da pesquisa, considerando a possibilidade
de que as múltiplas vozes presentes no diálogo sejam consideradas, pois tanto
os sujeitos de pesquisa como os pesquisadores têm a mesma importância e
possibilidade de enunciação.
Trabalhar com o pressuposto dialógico em pesquisa é, antes, considerar múltiplas vozes, em relação de tensão entre si, tanto as vozes dos participantes da experimentação, quanto às vozes dos autores de referência teórica e a do pesquisador-autor, no âmbito de uma relação de confronto mais ampla entre campos de força monológicos e dialógicos. E uma experimentação, que se pauta pelo princípio dialógico, trata participantes e autores de referência, como interlocutores e parceiros, no engendramento, tanto dos interrogantes da investigação, quanto dos enunciados interpretativos da experimentação (AXT, 2008, p. 98).
Para Bakhtin (2003) não existem fronteiras para um contexto dialógico,
não existindo nem a primeira nem a última palavra, o diálogo remete a um
passado infinito e se projeta para um futuro também infinito, renovando-se
sempre em processo posterior a ele. O diálogo possui uma incompletude, no
sentido de que ele não tem fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que
permanece aberto para novas relações dialógicas, tendo característica de
inacabamento, como que uma abertura, da mesma maneira que ocorre com a
produção de enunciados. Para o autor “nenhuma enunciação verbalizada pode
ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre
falantes e em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em
que ela surgiu” (BAKHTIN, 2003, p. 79). Assim, o eu e o outro constroem, cada
qual, um universo de valores.
O conceito de dialogismo em Bakhtin contribui para que possamos
entender o processo de interação dialógica como opção metodológica neste
trabalho de formação de professores. O processo dialógico se estabelece no
grupo de formação no momento em que aponta a existência de mais de uma
voz, seja no discurso verbal seja no discurso escrito, nas interações com os
professores.
4
Para Brait (1997), o dialogismo na teoria bakhtiniana pode ser
interpretado como o elemento que instaura a natureza interdiscursiva da
linguagem, na medida em que diz respeito “ao permanente diálogo, nem
sempre simétrico e harmonioso, que existe entre os diferentes discursos que
configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (BRAIT, 1997, p.
98). Assim ocorre ao trabalharmos com esta proposta de formação de
professores no CIVITAS, em que se propõe um norte, mas não sabemos ao
certo como e se chegaremos a determinado ponto a que nos propusemos
inicialmente, porque o inusitado, o que pode vir a acontecer neste percurso/
processo, é sempre um acontecimento que vai se produzindo, nas relações
entre sujeitos, pelo dialogismo, uma vez que o outro está sempre presente nas
formulações do autor, ou daquele que produz um enunciado. O outro tem tanto
a função de quem recebe como também de quem permite ao locutor perceber
o seu próprio enunciado.
A partir do diálogo se estabelece uma corrente infinita de enunciados
(atos)5 em que a palavra6 dita leva a uma resposta do outro e assim
infinitamente. Quando um enunciado é apresentado por alguém passa a fazer
parte de todos os enunciados, como se fosse uma cadeia.
Enquanto metodologia de formação a qual o projeto CIVITAS adere,
optamos por pensar a formação de professores em serviço vinculada
diretamente à sua prática em sala de aula, ou seja, partimos do que existe e já
existia, sem descartar o que o professor até então fazia, como fazia e que
referenciais tinha para tal, na tentativa de somar a tudo isso o que pode
construir, perceber e acrescentar em sua prática, produzindo dispositivos
atravessados por linhas normativas e linhas expressivas, criadas nos fluxos
das afecções, abrindo para o inusitado revelado na criação (AXT; MARTINS,
5 Para Bakhtin, ação e seu significado, é algo que nunca é um a priori, mas que deve sempre e em toda
parte ser conquistado. O ato é uma ação, e não um mero acontecimento se o sujeito tece uma relação com
ele em seu relato dele. A responsabilidade, então, é a fundação da ação moral, o modo pelo qual nós
superamos a culpa da cisão entre nossas palavras e nossas ações, mesmo que não tenhamos um álibi na
existência – de fato, porque não temos tal álibi: “É apenas o meu não-álibi no Ser que transforma uma
possibilidade vazia em um ato ou ação responsável e real...” (p. 44 da presente tradução) (BAKHTIN,
1993, p. 8-9). 6 [...] A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua
função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a esta função, nada que não tenha
sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social (BAKHTIN, 2006, p. 34).
5
2008). Desta maneira, entendemos que a experimentação trata os participantes
como autores, produzindo sentidos e autoria nos espaços de formação.
A interação dialógica como metodologia de interação e formação com o
grupo de professores se dá pelas possibilidades que entendemos se abrirem
na medida em que respeitamos os sujeitos e seus contextos e, partindo de
suas histórias e vivências, construímos possibilidades de diálogo embasadas
na relação entre estes sujeitos que, ao reconhecerem-se e serem respeitados
como legítimos neste processo, permitem-se dialogar e trazer suas práticas
para compor as relações dialógicas que vão se construindo a cada encontro.
Deste modo, problematizar a prática pedagógica cotidiana a partir da
“presença/existência” de caixas utilizadas como dispositivos - no sentido de
fazer disparar o pensamento, a produção de sentidos, os modos de
subjetivação e, ao mesmo tempo, nos ajudar a pensar algumas das
possibilidades de reflexão sobre nosso fazer pedagógico -, foi o propósito da
experimentação que apresentaremos a seguir.
3 Interações e intervenções através de caixas-dispositivos
Ao iniciar a intervenção com o grupo de formação de professores
levamos, para cada um dos participantes, uma caixinha de papel
confeccionada com dobraduras e encaixes. A partir desta caixinha propusemos
que os professores pensassem a prática docente, suas experiências e
convivências constantes com o inusitado, com diferentes acontecimentos e
situações que desafiam e fazem pensar o cotidiano escolar e pedagógico.
Como forma de registro, propusemos um exercício de escrita que poderia ser
através de palavras, frases, parágrafos ou mesmo relatos. Registros sobre o
que iam vivenciando em sala de aula no decorrer do período de intervalo entre
nossos encontros mensais. A cada novo encontro, levávamos uma caixa num
tamanho maior para recolher os escritos que estes professores produziam,
uma vez que as escritas, que se iniciaram tímidas, foram tomando proporções
cada vez maiores.
6
Os escritos7 trazidos pelos professores registraram acontecimentos,
falas de alunos, dúvidas, conquistas, produções e diferentes sentimentos
vivenciados durante os intervalos dos encontros mensais. À medida que novas/
outras ideias iam surgindo, os integrantes do grupo de pesquisadores-
formadores intermediavam, buscando pensar, junto com o grupo, caminhos
que dessem continuidade ao trabalho que cada professor vinha desenvolvendo
em sua prática.
Quando propomos a reflexão através das caixas-dispositivos, estamos
buscando estabelecer relações entre bilhetes/ cartas/ parágrafos/ frases -
enunciados - produzidos pelos professores e alunos que participam do projeto
CIVITAS e seus efeitos enquanto prática na sala de aula. A partir do que
emerge nestes escritos, torna-se possível propor movimentos/vivências que
aprofundem tanto as reflexões dos professores sobre as práticas quanto os
planejamentos das atividades desenvolvidas nas escolas, com os alunos.
As caixinhas trazidas a cada encontro continham enunciados que se
produziram em sua relação, da mesma forma dialógica, com os alunos: seja
em sala de aula ou nas atividades vivenciadas por eles com suas famílias, seja
quando personagens8 surgem na sala de aula ou então quando estão
projetando seu aparecimento - ou ainda, dando-lhe vida e fazendo com que
faça parte dos acontecimentos de suas vidas particulares e da vida na sala de
aula e na escola. Esses enunciados, produzidos pelos alunos ou pelas
professoras, emergem a partir dos diálogos que se estabeleceram entre esses
sujeitos nos diferentes momentos de interação e aprendizagem
compartilhados.
Este processo que acontece através da problematização da prática - do
convite ao pensamento, de nos permitirmos imaginar outras experimentações
com os alunos, semelhantes ou diferentes das que já vinham acontecendo na
7 Lugar onde são produzidas as memórias e percursos realizados pelo professor (ou mesmo pelos alunos),
de suas experimentações. A tudo ele acolhe e se presta principalmente como registro das memórias
individuais ou coletivas. 8 No projeto CIVITAS, personagens são foco do trabalho desde a educação infantil até o quinto ano da
educação básica. Trata-se da presença/construção/invenção de um ou mais personagens que passam a
compor a sala de aula, fazendo parte do seu cotidiano e das pesquisas e aprendizagens realizadas pelos
alunos, podendo ser um personagem imaginário - que se comunicaria com as crianças apenas por cartas,
por exemplo -, ou mesmo um personagem corporificado, dependendo sempre de como o trabalho é
encaminhado e das possibilidades que emergem na turma, para que ele apareça e passe a fazer parte do
cotidiano da sala de aula, da escola e quiçá da família das crianças.
7
escola, mas com intuito de fazer durar, de fazer com que um personagem seja
o centro do processo de aprendizagem e, através dele, possamos criar e
recriar o universo da escola e da sala de aula (e para além dela) -, vai se
estabelecendo pela dialogia construída na relação entre os sujeitos/
interlocutores do projeto.
No decorrer dos encontros, com os escritos trazidos pelos professores -
nas referidas caixas-dispositivos -, montamos uma espécie de mapa, que
denominamos de cartomapa. Assemelhando-se a um mapa conceitual -
embora não tão preocupado com relações lógicas e hierárquicas; mas sim
preocupado com as relações de sentido e rizomáticas -, o cartomapa se traduz
em um mapa cartográfico dos encontros.
As caixas que tudo escondem e, ao mesmo tempo, tudo podem revelar,
têm alimentado a construção do cartomapa, produzindo o exercício cartográfico
referente ao vivido nesse processo que, assim como o dialogismo, não tem fim
em si mesmo, está aberto a outros diálogos e em permanente construção.
Selecionamos, então, uma destas caixas-dispositivos. As análises dos
enunciados nela contidos focam alguns processos enunciativos em curso neste
grupo de formação de professores do qual fizemos tentativas de leitura, na
intenção de construir relações de entendimento de enunciados que poderiam
ter exercido influência nas ações docentes e discentes constituindo modos de
dizer e modos de fazer. Desta maneira, o que era comum nas anotações das
caixas torna-se coletivo, já que estamos no meio social e o meio social está em
nós.
As descrições que seguem apresentarão uma das situações que ilustra
como, a partir da reflexão do pesquisador-formador, na produção do
cartomapa, foi possível pensar as problemáticas da sala de aula de um dos
professores participantes do projeto.
8
4 Formação de professores: uma situação vivenciada
Apresentamos aqui um recorte registrado por um dos pesquisadores-
formadores em seu diário de bordo9, sobre como os professores haviam
recebido a proposta das caixas-dispositivos:
[...] Um modo de iniciarmos as reuniões que tem sido muito positivo para percebermos o quanto a voz
do outro na relação dialógica é importante e ajuda a produzir sentidos, é o de perguntarmos sobre
como o projeto está acontecendo na sala de aula de cada um dos professores. No grupo, esta interação
parece-me sempre muito proveitosa, já que compartilhamos experiências e, através das trocas de
conhecimentos e vivências, os professores auxiliam-se entre si na solução de algumas dificuldades
encontradas e também na formulação de novos questionamentos e ideias. Para minha surpresa, quando
C foi falar, disse-nos que não conseguiu trabalhar na proposta, pois o grupo de formação não havia
dado-lhe retorno por e-mail, para sanar-lhe as dúvidas. Este professor queixou-se de que no encontro
anterior teria saído da formação com diversas ideias e expectativas, porém, segundo seu relato, quando
não recebeu a voz - abertura de um canal de comunicação (neste caso, por e-mail) que lhe ajudaria a
pensar um caminho - a continuidade dos trabalhos ficou comprometida. [...]
Neste encontro, a caixa-dispositivo continha as seguintes palavras:
dúvidas incertezas motivação ansiedade criatividade
Através de seu relato e do conteúdo de sua da caixa-dispositivo -
quando este professor escreve a palavra “motivação”, por exemplo, no que nos
permitimos pensar o “fora-texto” -, poderíamos inferir um pedido de incentivo
para “motivar-se”, uma vez que pudemos perceber um professor sentindo-se
paralisado em seu trabalho, buscando uma continuidade do que havia pensado
construir com seus alunos, parecendo-lhe que esta continuidade de trabalho
estaria comprometida.
No encontro seguinte - após termos conversado sobre o episódio com o
professor, na tentativa de seguir acolhendo-o junto ao grupo -, decorridos os
dias que nos separavam da nossa última reunião, ele apresenta um relato de
intensidade e encantamento com o trabalho que estava desenvolvendo com
seus alunos, trazendo as seguintes palavras/ frases na caixa-dispositivo:
9 Encontramos diversas formas de uso de um diário, sendo que Hess e Weigand (2006) destacam a
utilização, como ferramenta, por aqueles que querem compreender e refletir sobre suas práticas, num
exercício de captar o que se passa, o que se vê, o que se percebe. A nomenclatura “diário de bordo”
remete-se ao registro das experiências de tripulantes de navios que partiam em descoberta do novo mundo
(LAZAROTTO, 2009, p. 111).
9
Acho que o nome do nosso personagem poderia ser Z
Comprometimento da família
imaginação alegria prazer
Estes registros que chegam às caixas-dispositivos compõem o
cartomapa, sobre o qual nos debruçamos a refletir sobre o trabalho que
envolve a pesquisa-formação neste grupo.
4.1 Cartomapa: proposta de reflexão sobre a prática
Propondo outros modos de explorar a cartografia na produção de
análises, criamos o mapa cartográfico dos fluxos de sentido do que poderia ter
se constituído na sala de aula da qual o professor acima referido fez parte.
Referimo-nos ao cartomapa, através do qual pensamos possíveis relações de
sentido, nas circunvizinhanças dos conceitos problematizados, para discutir (e
apenas discutir) efeitos de sentidos de enunciados que emergiram no referido
contexto, através das palavras/frases contidas na caixa-dispositivo.
A montagem do cartomapa ocorre como um exercício cartográfico se
propõe: “em constante movimento de transformação, refazendo seus
enunciados, mas criando novos problemas [...]” (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2010, p. 55), em que a “própria analítica [...] se dá também em
processo, nos fluxos e movimentos que atravessam o próprio plano da
experimentação, configurando um operar cartográfico, um movimento de
‘leitura flutuante’ em meio aos enunciados registrados, mapeando os pontos de
intensidade bifurcativa e suas derivações.” (AXT, 2008, p. 102).
Conforme Axt (2008), “na medida mesma em que se produz o
deslocamento de contexto e das condições de produção, produzem-se as
condições para os deslizamentos de sentido” (AXT, 2008, p. 102), que neste
trabalho se deram na relação entre interação-prática e releitura dos escritos
contidos nas caixas, para a produção do mapa-rede que aqui apresentamos:
10
Mapa-rede10
: devir cartomapa
Este mapa apresenta um esboço do que pode ter sido vivenciado nas
primeiras semanas de inserção do projeto CIVITAS na sala de aula deste
professor. Nossas inferências na produção de sentidos das enunciações
(apresentadas no item 4 deste trabalho) - partem do que as leituras dos
escritos nos levaram a pensar, uma vez que “concebe-se que os sentidos
escapam das palavras [...] deixando mais claro que cada sujeito tem uma
história particular que provém da singularidade de sua experiência. Essa
agitação desestabilizadora cabe-nos pensar, institui-se como efeito no devir,
‘em se tornando’” (MUTTI; AXT, 2008, p. 359) e, por isso mesmo, não teríamos
como estudá-la (produção de sentidos) a não ser por inferências e criando
hipóteses que problematizassem estes enunciados e sentidos que emergiram
no contexto acima apresentado.
Outros mapas-rede (referentes a registros de outros professores do
mesmo grupo) compõem o cartomapa que estamos construindo nesta
formação de professores. Por tratar-se de processo em curso, apresentamos
aqui um caso individual, uma vez que interessa-nos o caráter político deste tipo
de intervenção, em que nos colocamos na fronteira entre a teoria e a prática,
para daí sim, realizar pesquisa. “A fronteira que separa o “caso individual” do
plano político mostra-se bem mais uma franja, zona de indiscernibilidade, do
que marca de separação entre um (o caso) e o de qualquer um (o político).”
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010, p. 167).
10
Produzido no programa IHMC CmapTools (desenvolvido pelo Institute for Human and Machine
Cognition da Universidade de West Florida), acessível através do site oficial: http://cmap.ihmc.us/.
Também disponível, em versão free para download, em: http://www6.ufrgs.br/leadcap/pagina/cmap/.
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Considerações
Apresentamos aqui modos que escolhemos e entendemos poder
disparar ideias e produções que se traduzem em acontecimentos no cotidiano
das salas de aula deste grupo de formação de professores. Tanto no que se
refere ao modo de proposição do trabalho inicial com as caixas-dispositivos,
quanto ao modo de análise - aqui apresentado na proposição do cartomapa -,
não há pretensão de afirmar que seriam estas as únicas maneiras de se propor
uma interação dialógica em formações de professores.
Nas reuniões de formação deste grupo de professores, através da
escuta, do respeito ao outro, do acolhimento do que este outro tem a dizer e
questionar percebeu-se o quanto as relações dialógicas construídas ajudaram
a desenvolver um trabalho coletivo entre professores e pesquisadores-
formadores, pois, ao longo do processo, intensificaram-se as produções, as
escritas e os relatos de experiências dos professores, que apresentavam
envolvimento dos alunos e familiares, mostrando-se imersos na proposta.
Não queremos com isto dizer que esta ou aquela proposta metodológica
é mais adequada ou apresenta melhores resultados e sim que, enquanto
professores em formação, urge que sejam oferecidos estes espaços de diálogo
e problematização da prática a partir dos acontecimentos do cotidiano, dada a
importância, a relevância e as contribuições que podem trazer para viabilizar a
prática do professor. Assim contribuindo para que o mesmo tenha maiores
condições de enfrentar e encontrar caminhos para resolver as adversidades
que se apresentam em seu fazer pedagógico.
Cabe destacar que, neste mesmo plano de análise, temos enfrentado
uma necessidade dos professores de saber se “este é o jeito certo”, se
estamos seguindo o “modelo” pré-estabelecido e determinado pelo sistema que
está instituído. Comportamento este que se repete nos grupos de professores.
Romper com este paradigma tem sido também um de nossos propósitos no
decorrer de nossas ações.
Partindo das reflexões apresentadas, pensamos que a formação
docente - imprescindível enquanto processo inconcluso e permanente -, é de
extrema significância para a realização de uma prática pedagógica
contextualizada e adequada aos tempos em que vivemos, considerando que a
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prática de sala de aula tem exigido cada vez mais compreensão,
conhecimento, postura ética e comprometida dos professores.
O registro dos enunciados produzidos pelos professores no ínterim das
reuniões - e que compõem o conteúdo das caixas-dispositivos -,
ajudou/ajuda/ajudará a pensar as próximas ações e intervenções nestes
espaços de discussão, pois a cada encontro o cartomapa vai se desenhando,
se espalhando, se conectando e mostrando os percursos vivenciados nesse
lugar, com esses sujeitos. Ambos os dispositivos trabalham com a ideia de que
não há um saber total e que o conhecimento é construído permanentemente.
Referências:
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo PAULO BEZERRA. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 421 p.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.
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BRAIT, Beth. Bakhtin e a Natureza Constitutivamente Dialógica da Linguagem. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e Construção de Sentido. Campinas: UNICAMP, 1997.
LAZZAROTTO, Gislei Domingas Romanzini. Pragmática de uma Língua Menor na Formação em Psicologia: um diário coletivo e políticas juvenis. Tese de Doutorado, UFRGS, 2009.
MUTTI, Regina M. V.; AXT, Margarete. Para uma posição enunciativa no discurso pedagógico mediado por ambientes virtuais de aprendizagem. Interface: Comunicação Saúde Educação, v.12, n.25, p.347-61, abr./jun. 2008.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010.