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DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COMO PROPOSTA PARA EXERCÍCIO DE REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA EM FORMAÇÃO DE PROFESSORES Camila Camargo Prates 1 PPGEdu/UFRGS [email protected] Maribel Susane Selli 2 LELIC/UFRGS [email protected] Margarete Axt 3 LELIC/UFRGS [email protected] Resumo Este artigo objetiva investigar efeitos de dispositivos metodológicos na formação de professores, em contexto localizado em um município do Vale do Taquari - RS, no qual atuamos como pesquisadores-formadores. Num primeiro movimento, investiga-se uma proposta de interação através do uso de caixas- dispositivos, nas quais grupos de professores inseriram escritos acerca de pensamentos, experiências e vivências referentes às suas práticas em sala de aula. Da soma destes escritos originou-se um mapa cartográfico, ao qual denominamos cartomapa. Tendo por base teórico-metodológica o conceito de dialogismo em Mikhail Bakhtin, considera-se que o processo dialógico pode estabelecer-se no grupo de formação no momento em que possibilita a existência de mais de uma voz, seja no discurso verbal ou escrito, seja nas interações professores-formadores e/ou formadores-professores. As análises apontam para a importância de dispositivos metodológicos que dêem voz aos sujeitos, considerando que todos têm importância e possibilidade de enunciação e que isto sustentaria as aprendizagens, uma vez que conceitos, produzidos e negociados no coletivo, possibilitam sempre outras relações de sentido a cada enunciação. Palavras-chave: Dialogismo. Dispositivos metodológicos. Exercício cartográfico. Formação de professores. Pesquisa-formação. 1 Mestranda em Educação PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CAPES. 2 Mestre em Educação, Doutoranda PEC/PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CNPq. 3 Docente nos Programas PPGIE/UFRGS e PPGEdu/UFRGS, coordenadora do Laboratório de Estudos em Linguagem, Interação e Cognição (LELIC/UFRGS), pesquisadora do CNPq.

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Page 1: DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COMO PROPOSTA PARA EXERCÍCIO DE ... · Como forma de registro, propusemos um exercício de escrita que poderia ser através de palavras, frases, parágrafos

DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COMO PROPOSTA PARA EXERCÍCIO

DE REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA EM FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Camila Camargo Prates1 PPGEdu/UFRGS

[email protected]

Maribel Susane Selli2 LELIC/UFRGS

[email protected]

Margarete Axt3 LELIC/UFRGS

[email protected]

Resumo Este artigo objetiva investigar efeitos de dispositivos metodológicos na formação de professores, em contexto localizado em um município do Vale do Taquari - RS, no qual atuamos como pesquisadores-formadores. Num primeiro movimento, investiga-se uma proposta de interação através do uso de caixas-dispositivos, nas quais grupos de professores inseriram escritos acerca de pensamentos, experiências e vivências referentes às suas práticas em sala de aula. Da soma destes escritos originou-se um mapa cartográfico, ao qual denominamos cartomapa. Tendo por base teórico-metodológica o conceito de dialogismo em Mikhail Bakhtin, considera-se que o processo dialógico pode estabelecer-se no grupo de formação no momento em que possibilita a existência de mais de uma voz, seja no discurso verbal ou escrito, seja nas interações professores-formadores e/ou formadores-professores. As análises apontam para a importância de dispositivos metodológicos que dêem voz aos sujeitos, considerando que todos têm importância e possibilidade de enunciação e que isto sustentaria as aprendizagens, uma vez que conceitos, produzidos e negociados no coletivo, possibilitam sempre outras relações de sentido a cada enunciação.

Palavras-chave: Dialogismo. Dispositivos metodológicos. Exercício

cartográfico. Formação de professores. Pesquisa-formação.

1 Mestranda em Educação PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CAPES.

2 Mestre em Educação, Doutoranda PEC/PPGEdu/UFRGS, pesquisadora LELIC, bolsista CNPq.

3 Docente nos Programas PPGIE/UFRGS e PPGEdu/UFRGS, coordenadora do Laboratório de Estudos

em Linguagem, Interação e Cognição (LELIC/UFRGS), pesquisadora do CNPq.

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1 Contextualizando

Trata-se de estudo no âmbito da formação de professores, produzindo

particularidade específica quando a experimentação se pauta pelo princípio

dialógico, através do qual considera participantes e autores de referência como

interlocutores e parceiros da experimentação.

Fazemos parte de um projeto de formação de professores que ocorre

em um município do Vale do Taquari - RS, no qual se problematiza o cotidiano

escolar e, mais especificamente, das salas de aula. A partir de encontros

mensais, viemos propondo dispositivos metodológicos com os quais possamos

fazer emergir produções dialógicas como as que ora apresentamos.

Essa experiência apóia-se na metodologia utilizada no projeto CIVITAS

(Cidades Virtuais: Tecnologias para Aprendizagem e Simulação), projeto

institucional do Laboratório de Estudos em Linguagem Interação e Cognição

(LELIC/ UFRGS), que propõe, simultaneamente, a formação de pesquisadores

(graduandos, mestrandos e doutorandos) e a formação de professores em

serviço (em escolas4 da rede pública municipal de ensino). O projeto propõe

experimentações que sustentem de modo consistente as práticas do professor

em sala de aula.

Na situação apresentada, ocorreram dois movimentos: (1) uma proposta

de interação através do uso de caixas-dispositivos, nas quais grupos de

professores inseriram escritos acerca de pensamentos, experiências e

vivências referentes às suas práticas em sala de aula; (2) da soma destes

escritos originou-se um mapa cartográfico, ao qual denominamos cartomapa.

Sobre estes dispositivos deteremos nossas análises subsequentes, no intuito

de acompanhar efeitos dos mesmos na prática docente. A partir disto, ao

pensarmos processos de aprendizagem na formação de professores, bem

como seus desdobramentos na sala de aula, nos perguntamos: há

possibilidade de acompanhar efeitos de ações docentes através de exercício

cartográfico?

4 Provenientes de convênios estabelecidos entre UFRGS e municípios.

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2 Dialogismo bakhtiniano na formação de professores

Embasamos esta prática de formação de professores em um

pressuposto dialógico na pesquisa-formação, entendendo esta como uma

metodologia que respeita os sujeitos da pesquisa, considerando a possibilidade

de que as múltiplas vozes presentes no diálogo sejam consideradas, pois tanto

os sujeitos de pesquisa como os pesquisadores têm a mesma importância e

possibilidade de enunciação.

Trabalhar com o pressuposto dialógico em pesquisa é, antes, considerar múltiplas vozes, em relação de tensão entre si, tanto as vozes dos participantes da experimentação, quanto às vozes dos autores de referência teórica e a do pesquisador-autor, no âmbito de uma relação de confronto mais ampla entre campos de força monológicos e dialógicos. E uma experimentação, que se pauta pelo princípio dialógico, trata participantes e autores de referência, como interlocutores e parceiros, no engendramento, tanto dos interrogantes da investigação, quanto dos enunciados interpretativos da experimentação (AXT, 2008, p. 98).

Para Bakhtin (2003) não existem fronteiras para um contexto dialógico,

não existindo nem a primeira nem a última palavra, o diálogo remete a um

passado infinito e se projeta para um futuro também infinito, renovando-se

sempre em processo posterior a ele. O diálogo possui uma incompletude, no

sentido de que ele não tem fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que

permanece aberto para novas relações dialógicas, tendo característica de

inacabamento, como que uma abertura, da mesma maneira que ocorre com a

produção de enunciados. Para o autor “nenhuma enunciação verbalizada pode

ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre

falantes e em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em

que ela surgiu” (BAKHTIN, 2003, p. 79). Assim, o eu e o outro constroem, cada

qual, um universo de valores.

O conceito de dialogismo em Bakhtin contribui para que possamos

entender o processo de interação dialógica como opção metodológica neste

trabalho de formação de professores. O processo dialógico se estabelece no

grupo de formação no momento em que aponta a existência de mais de uma

voz, seja no discurso verbal seja no discurso escrito, nas interações com os

professores.

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Para Brait (1997), o dialogismo na teoria bakhtiniana pode ser

interpretado como o elemento que instaura a natureza interdiscursiva da

linguagem, na medida em que diz respeito “ao permanente diálogo, nem

sempre simétrico e harmonioso, que existe entre os diferentes discursos que

configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (BRAIT, 1997, p.

98). Assim ocorre ao trabalharmos com esta proposta de formação de

professores no CIVITAS, em que se propõe um norte, mas não sabemos ao

certo como e se chegaremos a determinado ponto a que nos propusemos

inicialmente, porque o inusitado, o que pode vir a acontecer neste percurso/

processo, é sempre um acontecimento que vai se produzindo, nas relações

entre sujeitos, pelo dialogismo, uma vez que o outro está sempre presente nas

formulações do autor, ou daquele que produz um enunciado. O outro tem tanto

a função de quem recebe como também de quem permite ao locutor perceber

o seu próprio enunciado.

A partir do diálogo se estabelece uma corrente infinita de enunciados

(atos)5 em que a palavra6 dita leva a uma resposta do outro e assim

infinitamente. Quando um enunciado é apresentado por alguém passa a fazer

parte de todos os enunciados, como se fosse uma cadeia.

Enquanto metodologia de formação a qual o projeto CIVITAS adere,

optamos por pensar a formação de professores em serviço vinculada

diretamente à sua prática em sala de aula, ou seja, partimos do que existe e já

existia, sem descartar o que o professor até então fazia, como fazia e que

referenciais tinha para tal, na tentativa de somar a tudo isso o que pode

construir, perceber e acrescentar em sua prática, produzindo dispositivos

atravessados por linhas normativas e linhas expressivas, criadas nos fluxos

das afecções, abrindo para o inusitado revelado na criação (AXT; MARTINS,

5 Para Bakhtin, ação e seu significado, é algo que nunca é um a priori, mas que deve sempre e em toda

parte ser conquistado. O ato é uma ação, e não um mero acontecimento se o sujeito tece uma relação com

ele em seu relato dele. A responsabilidade, então, é a fundação da ação moral, o modo pelo qual nós

superamos a culpa da cisão entre nossas palavras e nossas ações, mesmo que não tenhamos um álibi na

existência – de fato, porque não temos tal álibi: “É apenas o meu não-álibi no Ser que transforma uma

possibilidade vazia em um ato ou ação responsável e real...” (p. 44 da presente tradução) (BAKHTIN,

1993, p. 8-9). 6 [...] A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua

função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a esta função, nada que não tenha

sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social (BAKHTIN, 2006, p. 34).

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2008). Desta maneira, entendemos que a experimentação trata os participantes

como autores, produzindo sentidos e autoria nos espaços de formação.

A interação dialógica como metodologia de interação e formação com o

grupo de professores se dá pelas possibilidades que entendemos se abrirem

na medida em que respeitamos os sujeitos e seus contextos e, partindo de

suas histórias e vivências, construímos possibilidades de diálogo embasadas

na relação entre estes sujeitos que, ao reconhecerem-se e serem respeitados

como legítimos neste processo, permitem-se dialogar e trazer suas práticas

para compor as relações dialógicas que vão se construindo a cada encontro.

Deste modo, problematizar a prática pedagógica cotidiana a partir da

“presença/existência” de caixas utilizadas como dispositivos - no sentido de

fazer disparar o pensamento, a produção de sentidos, os modos de

subjetivação e, ao mesmo tempo, nos ajudar a pensar algumas das

possibilidades de reflexão sobre nosso fazer pedagógico -, foi o propósito da

experimentação que apresentaremos a seguir.

3 Interações e intervenções através de caixas-dispositivos

Ao iniciar a intervenção com o grupo de formação de professores

levamos, para cada um dos participantes, uma caixinha de papel

confeccionada com dobraduras e encaixes. A partir desta caixinha propusemos

que os professores pensassem a prática docente, suas experiências e

convivências constantes com o inusitado, com diferentes acontecimentos e

situações que desafiam e fazem pensar o cotidiano escolar e pedagógico.

Como forma de registro, propusemos um exercício de escrita que poderia ser

através de palavras, frases, parágrafos ou mesmo relatos. Registros sobre o

que iam vivenciando em sala de aula no decorrer do período de intervalo entre

nossos encontros mensais. A cada novo encontro, levávamos uma caixa num

tamanho maior para recolher os escritos que estes professores produziam,

uma vez que as escritas, que se iniciaram tímidas, foram tomando proporções

cada vez maiores.

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Os escritos7 trazidos pelos professores registraram acontecimentos,

falas de alunos, dúvidas, conquistas, produções e diferentes sentimentos

vivenciados durante os intervalos dos encontros mensais. À medida que novas/

outras ideias iam surgindo, os integrantes do grupo de pesquisadores-

formadores intermediavam, buscando pensar, junto com o grupo, caminhos

que dessem continuidade ao trabalho que cada professor vinha desenvolvendo

em sua prática.

Quando propomos a reflexão através das caixas-dispositivos, estamos

buscando estabelecer relações entre bilhetes/ cartas/ parágrafos/ frases -

enunciados - produzidos pelos professores e alunos que participam do projeto

CIVITAS e seus efeitos enquanto prática na sala de aula. A partir do que

emerge nestes escritos, torna-se possível propor movimentos/vivências que

aprofundem tanto as reflexões dos professores sobre as práticas quanto os

planejamentos das atividades desenvolvidas nas escolas, com os alunos.

As caixinhas trazidas a cada encontro continham enunciados que se

produziram em sua relação, da mesma forma dialógica, com os alunos: seja

em sala de aula ou nas atividades vivenciadas por eles com suas famílias, seja

quando personagens8 surgem na sala de aula ou então quando estão

projetando seu aparecimento - ou ainda, dando-lhe vida e fazendo com que

faça parte dos acontecimentos de suas vidas particulares e da vida na sala de

aula e na escola. Esses enunciados, produzidos pelos alunos ou pelas

professoras, emergem a partir dos diálogos que se estabeleceram entre esses

sujeitos nos diferentes momentos de interação e aprendizagem

compartilhados.

Este processo que acontece através da problematização da prática - do

convite ao pensamento, de nos permitirmos imaginar outras experimentações

com os alunos, semelhantes ou diferentes das que já vinham acontecendo na

7 Lugar onde são produzidas as memórias e percursos realizados pelo professor (ou mesmo pelos alunos),

de suas experimentações. A tudo ele acolhe e se presta principalmente como registro das memórias

individuais ou coletivas. 8 No projeto CIVITAS, personagens são foco do trabalho desde a educação infantil até o quinto ano da

educação básica. Trata-se da presença/construção/invenção de um ou mais personagens que passam a

compor a sala de aula, fazendo parte do seu cotidiano e das pesquisas e aprendizagens realizadas pelos

alunos, podendo ser um personagem imaginário - que se comunicaria com as crianças apenas por cartas,

por exemplo -, ou mesmo um personagem corporificado, dependendo sempre de como o trabalho é

encaminhado e das possibilidades que emergem na turma, para que ele apareça e passe a fazer parte do

cotidiano da sala de aula, da escola e quiçá da família das crianças.

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escola, mas com intuito de fazer durar, de fazer com que um personagem seja

o centro do processo de aprendizagem e, através dele, possamos criar e

recriar o universo da escola e da sala de aula (e para além dela) -, vai se

estabelecendo pela dialogia construída na relação entre os sujeitos/

interlocutores do projeto.

No decorrer dos encontros, com os escritos trazidos pelos professores -

nas referidas caixas-dispositivos -, montamos uma espécie de mapa, que

denominamos de cartomapa. Assemelhando-se a um mapa conceitual -

embora não tão preocupado com relações lógicas e hierárquicas; mas sim

preocupado com as relações de sentido e rizomáticas -, o cartomapa se traduz

em um mapa cartográfico dos encontros.

As caixas que tudo escondem e, ao mesmo tempo, tudo podem revelar,

têm alimentado a construção do cartomapa, produzindo o exercício cartográfico

referente ao vivido nesse processo que, assim como o dialogismo, não tem fim

em si mesmo, está aberto a outros diálogos e em permanente construção.

Selecionamos, então, uma destas caixas-dispositivos. As análises dos

enunciados nela contidos focam alguns processos enunciativos em curso neste

grupo de formação de professores do qual fizemos tentativas de leitura, na

intenção de construir relações de entendimento de enunciados que poderiam

ter exercido influência nas ações docentes e discentes constituindo modos de

dizer e modos de fazer. Desta maneira, o que era comum nas anotações das

caixas torna-se coletivo, já que estamos no meio social e o meio social está em

nós.

As descrições que seguem apresentarão uma das situações que ilustra

como, a partir da reflexão do pesquisador-formador, na produção do

cartomapa, foi possível pensar as problemáticas da sala de aula de um dos

professores participantes do projeto.

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4 Formação de professores: uma situação vivenciada

Apresentamos aqui um recorte registrado por um dos pesquisadores-

formadores em seu diário de bordo9, sobre como os professores haviam

recebido a proposta das caixas-dispositivos:

[...] Um modo de iniciarmos as reuniões que tem sido muito positivo para percebermos o quanto a voz

do outro na relação dialógica é importante e ajuda a produzir sentidos, é o de perguntarmos sobre

como o projeto está acontecendo na sala de aula de cada um dos professores. No grupo, esta interação

parece-me sempre muito proveitosa, já que compartilhamos experiências e, através das trocas de

conhecimentos e vivências, os professores auxiliam-se entre si na solução de algumas dificuldades

encontradas e também na formulação de novos questionamentos e ideias. Para minha surpresa, quando

C foi falar, disse-nos que não conseguiu trabalhar na proposta, pois o grupo de formação não havia

dado-lhe retorno por e-mail, para sanar-lhe as dúvidas. Este professor queixou-se de que no encontro

anterior teria saído da formação com diversas ideias e expectativas, porém, segundo seu relato, quando

não recebeu a voz - abertura de um canal de comunicação (neste caso, por e-mail) que lhe ajudaria a

pensar um caminho - a continuidade dos trabalhos ficou comprometida. [...]

Neste encontro, a caixa-dispositivo continha as seguintes palavras:

dúvidas incertezas motivação ansiedade criatividade

Através de seu relato e do conteúdo de sua da caixa-dispositivo -

quando este professor escreve a palavra “motivação”, por exemplo, no que nos

permitimos pensar o “fora-texto” -, poderíamos inferir um pedido de incentivo

para “motivar-se”, uma vez que pudemos perceber um professor sentindo-se

paralisado em seu trabalho, buscando uma continuidade do que havia pensado

construir com seus alunos, parecendo-lhe que esta continuidade de trabalho

estaria comprometida.

No encontro seguinte - após termos conversado sobre o episódio com o

professor, na tentativa de seguir acolhendo-o junto ao grupo -, decorridos os

dias que nos separavam da nossa última reunião, ele apresenta um relato de

intensidade e encantamento com o trabalho que estava desenvolvendo com

seus alunos, trazendo as seguintes palavras/ frases na caixa-dispositivo:

9 Encontramos diversas formas de uso de um diário, sendo que Hess e Weigand (2006) destacam a

utilização, como ferramenta, por aqueles que querem compreender e refletir sobre suas práticas, num

exercício de captar o que se passa, o que se vê, o que se percebe. A nomenclatura “diário de bordo”

remete-se ao registro das experiências de tripulantes de navios que partiam em descoberta do novo mundo

(LAZAROTTO, 2009, p. 111).

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Acho que o nome do nosso personagem poderia ser Z

Comprometimento da família

imaginação alegria prazer

Estes registros que chegam às caixas-dispositivos compõem o

cartomapa, sobre o qual nos debruçamos a refletir sobre o trabalho que

envolve a pesquisa-formação neste grupo.

4.1 Cartomapa: proposta de reflexão sobre a prática

Propondo outros modos de explorar a cartografia na produção de

análises, criamos o mapa cartográfico dos fluxos de sentido do que poderia ter

se constituído na sala de aula da qual o professor acima referido fez parte.

Referimo-nos ao cartomapa, através do qual pensamos possíveis relações de

sentido, nas circunvizinhanças dos conceitos problematizados, para discutir (e

apenas discutir) efeitos de sentidos de enunciados que emergiram no referido

contexto, através das palavras/frases contidas na caixa-dispositivo.

A montagem do cartomapa ocorre como um exercício cartográfico se

propõe: “em constante movimento de transformação, refazendo seus

enunciados, mas criando novos problemas [...]” (PASSOS; KASTRUP;

ESCÓSSIA, 2010, p. 55), em que a “própria analítica [...] se dá também em

processo, nos fluxos e movimentos que atravessam o próprio plano da

experimentação, configurando um operar cartográfico, um movimento de

‘leitura flutuante’ em meio aos enunciados registrados, mapeando os pontos de

intensidade bifurcativa e suas derivações.” (AXT, 2008, p. 102).

Conforme Axt (2008), “na medida mesma em que se produz o

deslocamento de contexto e das condições de produção, produzem-se as

condições para os deslizamentos de sentido” (AXT, 2008, p. 102), que neste

trabalho se deram na relação entre interação-prática e releitura dos escritos

contidos nas caixas, para a produção do mapa-rede que aqui apresentamos:

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Mapa-rede10

: devir cartomapa

Este mapa apresenta um esboço do que pode ter sido vivenciado nas

primeiras semanas de inserção do projeto CIVITAS na sala de aula deste

professor. Nossas inferências na produção de sentidos das enunciações

(apresentadas no item 4 deste trabalho) - partem do que as leituras dos

escritos nos levaram a pensar, uma vez que “concebe-se que os sentidos

escapam das palavras [...] deixando mais claro que cada sujeito tem uma

história particular que provém da singularidade de sua experiência. Essa

agitação desestabilizadora cabe-nos pensar, institui-se como efeito no devir,

‘em se tornando’” (MUTTI; AXT, 2008, p. 359) e, por isso mesmo, não teríamos

como estudá-la (produção de sentidos) a não ser por inferências e criando

hipóteses que problematizassem estes enunciados e sentidos que emergiram

no contexto acima apresentado.

Outros mapas-rede (referentes a registros de outros professores do

mesmo grupo) compõem o cartomapa que estamos construindo nesta

formação de professores. Por tratar-se de processo em curso, apresentamos

aqui um caso individual, uma vez que interessa-nos o caráter político deste tipo

de intervenção, em que nos colocamos na fronteira entre a teoria e a prática,

para daí sim, realizar pesquisa. “A fronteira que separa o “caso individual” do

plano político mostra-se bem mais uma franja, zona de indiscernibilidade, do

que marca de separação entre um (o caso) e o de qualquer um (o político).”

(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010, p. 167).

10

Produzido no programa IHMC CmapTools (desenvolvido pelo Institute for Human and Machine

Cognition da Universidade de West Florida), acessível através do site oficial: http://cmap.ihmc.us/.

Também disponível, em versão free para download, em: http://www6.ufrgs.br/leadcap/pagina/cmap/.

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Considerações

Apresentamos aqui modos que escolhemos e entendemos poder

disparar ideias e produções que se traduzem em acontecimentos no cotidiano

das salas de aula deste grupo de formação de professores. Tanto no que se

refere ao modo de proposição do trabalho inicial com as caixas-dispositivos,

quanto ao modo de análise - aqui apresentado na proposição do cartomapa -,

não há pretensão de afirmar que seriam estas as únicas maneiras de se propor

uma interação dialógica em formações de professores.

Nas reuniões de formação deste grupo de professores, através da

escuta, do respeito ao outro, do acolhimento do que este outro tem a dizer e

questionar percebeu-se o quanto as relações dialógicas construídas ajudaram

a desenvolver um trabalho coletivo entre professores e pesquisadores-

formadores, pois, ao longo do processo, intensificaram-se as produções, as

escritas e os relatos de experiências dos professores, que apresentavam

envolvimento dos alunos e familiares, mostrando-se imersos na proposta.

Não queremos com isto dizer que esta ou aquela proposta metodológica

é mais adequada ou apresenta melhores resultados e sim que, enquanto

professores em formação, urge que sejam oferecidos estes espaços de diálogo

e problematização da prática a partir dos acontecimentos do cotidiano, dada a

importância, a relevância e as contribuições que podem trazer para viabilizar a

prática do professor. Assim contribuindo para que o mesmo tenha maiores

condições de enfrentar e encontrar caminhos para resolver as adversidades

que se apresentam em seu fazer pedagógico.

Cabe destacar que, neste mesmo plano de análise, temos enfrentado

uma necessidade dos professores de saber se “este é o jeito certo”, se

estamos seguindo o “modelo” pré-estabelecido e determinado pelo sistema que

está instituído. Comportamento este que se repete nos grupos de professores.

Romper com este paradigma tem sido também um de nossos propósitos no

decorrer de nossas ações.

Partindo das reflexões apresentadas, pensamos que a formação

docente - imprescindível enquanto processo inconcluso e permanente -, é de

extrema significância para a realização de uma prática pedagógica

contextualizada e adequada aos tempos em que vivemos, considerando que a

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prática de sala de aula tem exigido cada vez mais compreensão,

conhecimento, postura ética e comprometida dos professores.

O registro dos enunciados produzidos pelos professores no ínterim das

reuniões - e que compõem o conteúdo das caixas-dispositivos -,

ajudou/ajuda/ajudará a pensar as próximas ações e intervenções nestes

espaços de discussão, pois a cada encontro o cartomapa vai se desenhando,

se espalhando, se conectando e mostrando os percursos vivenciados nesse

lugar, com esses sujeitos. Ambos os dispositivos trabalham com a ideia de que

não há um saber total e que o conhecimento é construído permanentemente.

Referências:

AXT, Margarete. Do pressuposto dialógico na pesquisa: o lugar da multiplicidade da formação (docente) em rede. Revista Informática na Educação: teoria & prática. Porto Alegre, v.11, n.1, p. 91-104, jan./jun. 2008.

AXT, M.; MARTINS, M. A. R. Coexistir na diferença: de quando a formação em serviço pensa modos de habitar a sala de aula. In: TRINDADE, Iole Maria Faviero (org.). Múltiplas alfabetizações e alfabetismos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo PAULO BEZERRA. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 421 p.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma Filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana “Toward a philosophy of the act.” Austin: University of Texas Press, 1993. (tradução destinada exclusivamente para uso didático e acadêmico). s.n.t.

BRAIT, Beth. Bakhtin e a Natureza Constitutivamente Dialógica da Linguagem. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e Construção de Sentido. Campinas: UNICAMP, 1997.

LAZZAROTTO, Gislei Domingas Romanzini. Pragmática de uma Língua Menor na Formação em Psicologia: um diário coletivo e políticas juvenis. Tese de Doutorado, UFRGS, 2009.

MUTTI, Regina M. V.; AXT, Margarete. Para uma posição enunciativa no discurso pedagógico mediado por ambientes virtuais de aprendizagem. Interface: Comunicação Saúde Educação, v.12, n.25, p.347-61, abr./jun. 2008.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010.