direito internacional privado - sebenta i (1)
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Mariana Melo
Enviados a 16 de Setembro de 2011
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Capítulo I – Objecto, função e conceito do Direito Internacional Privado
1. São as relações privadas de carácter internacional aquelas que entram em contacto, através
dos seus elementos, com diferentes sistemas de direito. Não pertencem a um só domínio ou
espaço legislativo, mas a vários: são relações “plurilocalizadas”.
As sociedades civis organizadas em Estados, bem ao invés de constituírem
compartimentos estanques, são estreitamente solidárias e interdependentes, e
constantemente se estabelecem entre os seus membros as mais variadas modalidades de
intercâmbio, quer no campo económico, quer no cultural, quer na esfera dos actos atinentes à
instituição da família.
2. Todos os dias se constituem ou desenvolvem no território de um Estado relações de direito
privado que não se apresentam como a expressão pura e simples da vida jurídica local, mas
que, já pela nacionalidade ou domicilio dos sujeitos, já em razão do lugar onde devem ser
executadas as respectivas obrigações, já pela situação das cosas a que respeitam, se definem
antes como fenómenos desse comércio jurídico internacional.
Logo, não seria boa solução sujeitá-las sempre e sem mais exame à autoridade do direito
local. E dada a conexão existente entre elas e várias ordens jurídicas, há uma solução que a
simples intuição nos aponta como natural: escolher dessas ordens jurídicas a que lhes seja
mais próxima, a que tenha com elas o contacto mais forte ou mais estreito.
É facto notório que entre as instituições civis e comerciais dos vários Estados existem, de
um modo geral, diferenças bem vincadas. Assim, o problema adquire um interesse premente.
4. Os inconvenientes do sistema da territorialidade das leis (omnia statuta realia) superam de
largo as suas vantagens.
A aplicação da lex fori materialis a factos que lhe sejam estranhos, que não tenham com
ela qualquer conexão espacial, violaria ostensivamente um indiscutível princípio universal de
direito: aquele que nos diz que a norma jurídica, como norma reguladora de comportamentos
humanos, não é por sua natureza aplicável a condutas que se situem fora da sua esfera de
eficácia, quer em razão do tempo (principio da irretroactividade da lei) quer em razão do lugar
em que se verificaram. O não acatamento deste principio traria inevitavelmente consigo o
perigo de ofensa de direitos adquiridos ou, quando menos, de expectativas legitimamente
concebidas pelos interessados.
Para além disso, a aplicação sistemática do direito local levaria por vezes a situações
claramente insatisfatórias.
Suponhamos que duas pessoas de nacionalidade búlgara, residentes em Sófia, pretendem
contrair casamento em Portugal. Porém, há entre elas uma relação de parentesco que as
impede, segundo o direito búlgaro, de o fazerem. Se, não obstante isso, a autoridade
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portuguesa competente lhes atendesse a pretensão e celebrasse o casamento, este estaria
desde logo votado a uma total ineficácia jurídica justamente naquele Estado a que pertencem:
a que pertencem pelo duplo vínculo do domicílio e da nacionalidade.
5. É de elementar justiça e necessidade que toda a relação da vida social seja apreciada, onde
quer que tal se faça mister, em função dos preceitos de uma lei tida por competente. Ademais,
os Estados formam uma comunidade, e o reconhecimento e o respeito que mutuamente
devem tributar bem poderão abranger as respectivas instituições civis.
Trata-se do interesse dos indivíduos e não dos Estados como entes soberanos e das
relações que entre eles se constituem. Em direito internacional privado, são interesses
relativos aos indivíduos, não aos Estados, que representam a dimensão preponderante, o
principal critério e sentido das normas jurídicas.
6. O princípio do reconhecimento e aplicação das leis estrangeiras como princípio de direito
internacional positivo. Não constitui exagero dizer que nenhuma legislação hoje existe que
pretenda valer, sem excepção, para todos os factos e relações do comércio jurídico: não há
Estado membro da comunidade internacional que não consinta em excluir, do âmbito de
aplicação das suas normas de direito privado, determinadas categorias de relações e de factos,
para os sujeitar aos critérios valorativos de outros sistemas jurídicos.
A competência da legislação portuguesa não pressupõe um facto por completo absorvido
da vida jurídica local.
7. Conceito de DIP – o direito internacional privado procura formular os princípios e regras
conducentes à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações
privadas internacionais, e bem assim assegurar o reconhecimento no Estado do foro das
situações jurídicas puramente internas, mas situadas na órbita de um único sistema de direito
estrangeiro.
8. As regras de conflitos.
As questões, por exemplo, da lei reguladora da sucessão mortis causa dos estrangeiros
falecidos no Estado do foro, a do direito aplicável à responsabilidade civil extracontratual e à
validade intrínseca do matrimónio ou às relações entre os cônjuges são resolvidas em cada
Estado de acordo com normas do direito desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso
interno.
É prática corrente de cada Estado formular, para resolução dos conflitos de leis, as
normas que tenha por mais conveniência e mais justas. Essas normas são ditas regras de
conflitos – as regras de conflitos do DIP.
Elas propõem-se a resolver um problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais
procedentes de diversos sistemas de direito.
A técnica usada para designar, para cada tipo de casos, o preceito jurídico aplicável
consiste em a regra de conflitos deferir determinada questão ou área de questões de direito,
ou determinada função ou tarefa normativa – a regulamentação de um determinado sector
normativo (validade intrínseca e efeitos dos contratos, sucessões mortis causa, relações entre
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cônjuges ou entre pais e filhos, direitos reais) – ao ordenamento jurídico que for designado por
certo elemento da situação de facto, a que chamamos elemento ou factor de conexão. Através
da concretização do factor de conexão, tornam-se conhecidas a lei e a norma material
chamadas a resolver a questão de direito proposta.
Por exemplo, a um contrato celebrado em Portugal podem ser aplicáveis normas de três
sistemas de direito: o direito nacional das partes pelo que respeita à capacidade destas; o
direito escolhido pelos contraentes quanto à substância e efeitos do negócio jurídico e ainda,
em dados termos, a lei do lugar da celebração no tocante à forma externa.
O elemento de conexão determinante da competência da lei tanto pode referir-se à
pessoa dos sujeitos da relação jurídica (sua nacionalidade, domicílio, residência), como ao acto
ou facto jurídico encarado em si mesmo (lugar da celebração ou da execução do contrato,
lugar da prática do facto gerador de responsabilidade civil) ou à coisa objecto do negócio
jurídico (situação dela). Assim, a regra de conflitos dirá, por exemplo: as questões de direito
derivadas das relações conjugais serão resolvidas pela lei da nacionalidade comum dos
cônjuges, na sua falta pela lei da residência habitual comum e em último termo por aquela
com a qual a vida da família se achar mais estreitamente conexa, a forma da declaração
negocial depende, em dadas circunstâncias, da lei do lugar em que é emitida; as sucessões
mortis causa serão regidas pela lei da última nacionalidade do hereditando; o regime dos
direitos reais será definido pela lex rei sitae e a capacidade dos contraentes pela respectiva lei
nacional.
A norma do DIP é uma regra de carácter meramente instrumental: limita-se a indicar a lei
que fornecerá o regime da situação, a lei onde hão-de procurar-se as normas que venham
orientar a decisão do litígio. Contribui para a resolução da questão jurídico-privada, mas não
diz por si própria qual ela seja.
Lições de Direito Internacional Privado – Ferrer Correia
Capítulo I
Introdução: Noção de DIP
1. Limites à eficácia da lei no espaço. As normas jurídicas vêem o seu âmbito de eficácia
limitado pelos factores tempo e espaço.
O ponto de partida do DIP assenta, por um lado, sobre a regra da não transactividade das
leis e, por outro lado, sobre o princípio do reconhecimento das situações jurídicas constituídas
no âmbito de eficácia duma lei estrangeira. Ao princípio da não transactividade corresponde a
regra segundo a qual nenhuma lei se aplica a factos que se não achem em contacto com ela.
O Direito dos Conflitos das leis (quer no tempo, quer no espaço) assume como critério
básico o da “localização” dos factos: a “localização” no tempo para o Direito Intertemporal e a
“localização” no espaço para o Direito Internacional Privado. Essa a razão por que se afirma
que estes dois direitos são direitos “de conexão”: a conexão dos factos com os sistemas
jurídicos é a que constitui o dado determinante. Pode-se afirmar como regra básica de todo o
Direito de Conflitos a seguinte: a quaisquer factos aplicam-se as leis – e só se aplicam as leis –
que com eles se achem em contacto.
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2. Situações puramente internas, situações relativamente internacionais e situações
absolutamente internacionais. Necessidade da Regra de Conflitos. Uma relação jurídica pode
através de qualquer dos seus elementos, achar-se em contacto apenas com o sistema jurídico
português (por ex., um contrato de mútuo celebrado em Portugal, entre dois portugueses,
para ser executado em Portugal), ou apenas com um determinado sistema jurídico estrangeiro
(por ex., um contrato de venda concluído entre dois japoneses no Japão, sobre coisa situada
em território japonês, onde as obrigações dos contraentes devem ser cumpridas), ou com
vários sistemas jurídicos (por ex., um comerciante português, estabelecido no Porto, conclui
em Inglaterra um contrato de venda de vinho do Porto com um comerciante inglês,
estabelecido em Londres).
Nos casos do primeiro tipo (casos puramente internos) ao órgão português de aplicação
do direito não se põe qualquer problema de determinação da lei estadual aplicável: esta lei há-
de ser necessariamente a lei portuguesa. Nos casos do segundo tipo (casos relativamente
internacionais ou puramente internos relativamente a um Estado estrangeiro), já ao órgão
português de aplicação do direito se põem problemas de DIP, quais sejam o problema de saber
se o sistema jurídico português deve ou não ver o seu âmbito de aplicabilidade limitado no
espaço e, uma vez resolvida esta questão, o problema de saber que atitude tomar perante os
factos que transcendem o seu âmbito espacial de aplicabilidade. Por força de um princípio
universal de direito, importa respeitar os direitos adquiridos e garantir a continuidade da vida
jurídica dos indivíduos, tutelando as suas naturais expectativas, terá de concluir-se também
que o juiz do foro deve em tais casos aplicar um direito estrangeiro. A situação está em
contacto com um só sistema jurídico e só este sistema jurídico pode ser aplicado.
Nos casos do terceiro tipo (casos absolutamente internacionais), põem-se um problema
de determinação da lei aplicável, visto serem duas ou mais as leis em contacto com a situação.
É necessária uma Regra de Conflitos que venha resolver o concurso entre várias leis.
É preciso fazer intervir uma Regra de Conflitos capaz de dirimir o concurso entre as leis
em contacto com os factos. No DIP, diferentemente do que se passa no Direito Transitório, ao
lado da conexão dos factos, há que atender ainda à sede das pessoas e à situação das coisas
como outros tantos elementos de conexão.
3. Objecto e denominação do DIP. O DIP tem por objecto as situações da vida privada
internacional, ou seja, os factos susceptíveis de relevância jurídico-privada que têm contacto
com mais de um sistema jurídico (casos absolutamente internacionais) ou que se passaram
adentro do âmbito de eficácia de uma lei estrangeira.
São as trocas internacionais e as correntes migratórias entre os Estados que estão na
origem de todos ou quase todos os problemas de DIP. Se uma pessoa atravessa uma fronteira,
por ex., não deve, por esse simples facto, perder o seu status familiae ou o direito de
propriedade sobre as bagagens que transporta.
4. Constituição e conteúdo das relações ou situações jurídicas. Uma distinção que importa ter
presente, tanto no Direito Transitório como no DIP, é a distinção entre constituição, por um
lado, e conteúdo ou efeitos, por outro lado, das relações ou situações jurídicas.
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Se por exemplo, dois espanhóis casam em Espanha e mais tarde, por qualquer razão, a
validade do seu casamento tem que ser apreciada por tribunais portugueses, estes não
poderão deixar de decidir quanto à validade e à existência da relação jurídica matrimonial por
aplicação da lei espanhola. Com efeito, quando a relação se constitui, os factos constitutivos só
tinham contacto com o sistema espanhol.
Por esta mesma lei se regulará o conteúdo da relação matrimonial, enquanto os cônjuges
mantiverem a nacionalidade espanhola e tiverem na Espanha o seu domicílio.
Se eles, porém, vierem a mudar de nacionalidade, o conteúdo da relação matrimonial passará
a ser regido pela sua nova lei pessoal. Contudo, o problema da constituição da relação
matrimonial continua a resolver-se em face da lei espanhola.
5. Modos possíveis de regular as relações do comércio privado internacional. O processo mais
comum de solução dos problemas do DIP é o processo próprio do Direito de Conflitos: trata-se
de designar a lei interna por aplicação da qual os problemas hão-de ser resolvidos. Se um
português compra em Paris um imóvel sito em Amesterdão, a sua capacidade de contratar é
regida pela lei portuguesa, a forma do contrato pela lei francesa, a validade substancial do
contrato e os seus efeitos pela lei escolhida pelas partes, a transferência da propriedade pela
lei holandesa. Estamos perante dispositivos que simplesmente indicam a lei ou leis aplicáveis
às diversas questões de direito que a relação suscita.
Só um verdadeiro direito material uniforme, comum a vários Estados, e concebido para
regular certas relações do comércio internacional em contacto com esses Estados, é
susceptível, não de substituir o Direito de Conflitos, mas de fazer desaparecer o problema que
este tem por objecto.
Em matéria de Direito Intertemporal, o legislador recorre por vezes a disposições de
transição que não são mais que normas materiais que, pela via da adaptação e do
compromisso entre os dois sistemas, regulam certas situações jurídicas anteriores, que
subsistem à data da entrada em vigor da lei nova, por uma forma especial. As regras materiais
poderão valer como regras de conduta, verificando-se que o seu âmbito espacial de aplicação
é definido por outras conexões que não aquelas que definem o âmbito de aplicação das
normas de direito comum.
6. Primeira noção de Regra de Conflitos. Direito de Conflitos adopta o processo indirecto
consistente em determinar a lei ou as leis que a hão-de reger. A determinação desta lei
decorre directa e imediatamente daquela regra ou princípio básico do Direito de Conflitos
segundo o qual a quaisquer factos só deve aplicar-se uma lei que com eles esteja em contacto.
É o que acontece nos casos relativamente internacionais. Nos casos absolutamente
internacionais é preciso recorrer a uma específica Regra de Conflitos que nos diga qual das leis
interessadas é a lei aplicável ou lei competente.
A regra de Conflitos destaca ou privilegia um dos contactos ou conexões, determinando
como se aplica a lei para a qual essa conexão aponte. Se se trata duma questão do estatuto
pessoal, dar-se-á preferência a uma conexão pessoal; se se trata de uma questão relativa à
forma dos actos jurídicos, dar-se-á relevância à conexão “lugar da realização do acto”.
A uma mesma situação ou relação poderão ser aplicáveis várias leis, desde que se trate de
questões ou problemas jurídicos distintos.
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7. A “lex fori” como lei do processo. O processo seguido perante os tribunais portugueses é
regulado pela lei portuguesa, ainda que ao fundo da causa se aplique uma lei estrangeira.
Há que distinguir duas espécies de leis relativas às provas: as leis de direito probatório
formal, que se referem propriamente à actividade do juiz, dos peritos ou das partes no
decurso do processo, e as leis de direito probatório material.
A esta segunda categoria pertencem as leis que decidem sobre a admissibilidade deste ou
daquele meio de prova, sobre o ónus da prova e sobre as presunções legais.
A competência da lex fori enquanto pura lei de processo não depende de qualquer conexão
particular que ligue a situação jurídica em litígio ao Estado do foro: basta que um tribunal
deste Estado seja chamado a decidir, basta que se verifique o pressuposto da competência
internacional da jurisdição desse Estado e que esta seja posta de facto em movimento. Os
fundamentos da competência jurisdicional do Estado português não coincidem de modo algum
com os fundamentos da sua competência legislativa. Se os tribunais do Estado do foro apenas
decidissem os casos que estão sob alçada do direito material deste Estado, nunca esses
tribunais seriam chamados a aplicar direito estrangeiro.
Lições de Direito Internacional Privado, Baptista Machado
1. Noção de Direito Internacional Privado
A) As situações transnacionais e o problema da sua regulação jurídica
Na organização actual da sociedade internacional encontramos uma pluralidade de
Estados soberanos. Podemos dizer que a cada um destes Estados corresponde um sistema
jurídico, pelo que há uma pluralidade de sistemas jurídicos estaduais.
Cada um destes sistemas jurídicos desenvolve-se com autonomia. Por isso estes, a par de
zonas de convergência, apresentam divergências importantes na solução de muitos problemas
jurídicos. À pluralidade de sistemas jurídicos corresponde uma diversidade de regulação
jurídica das mesmas situações da vida.
As situações da vida juridicamente relevantes podem inserir-se inteiramente numa só
sociedade estadual, sem qualquer contacto significativo com outras comunidades.
Na perspectiva da ordem jurídica portuguesa, uma situação em que dois portugueses,
residentes habitualmente em Portugal, celebram um contrato para ser executado em Portugal,
é puramente interna. Esta situação está directamente submetida ao Direito material interno,
não suscitando qualquer problema de determinação do Direito aplicável.
O que hoje se verifica é uma crescente internacionalização das relações sociais.
Os seres humanos, desde as suas mais remotas origens, realizaram grandes deslocações.
Com o surgimento dos Estados, estas deslocações passaram a ter uma dimensão
transfronteiriça e a colocar problemas de determinação do Direito aplicável.
É a partir do séc. XX que temos vindo a assistir a uma internacionalização mais acelerada,
em consequência da internacionalização da economia, dos movimentos migratórios, do
surgimento de novos Estados, dos processos de integração regional e das novas tecnologias de
informação e comunicação.
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A regulação das situações transnacionais não coloca apenas o problema da determinação
do Direito aplicável.
Perante a eclosão de um litígio relativamente a uma situação transnacional, torna-se
necessário, na falta de convenção de arbitragem, determinar os tribunais estaduais
competentes para o dirimir. Surge, assim, o problema da competência internacional.
A regulação jurídica das situações transnacionais coloca ainda um terceiro problema: o do
reconhecimento de decisões estrangeiras. Este problema coloca-se quando o litígio é decidido
por um tribunal estrangeiro e se pretende que a decisão produza efeitos na ordem jurídica
local.
B) Situações transnacionais e situações privadas. Imunidades de jurisdição e pretensões de
Estados estrangeiros
O Direito Internacional Privado ocupa-se principalmente de situações privadas.
Trata-se então de situações que dizem respeito ao Direito Civil das Pessoas, ao Direito das
Obrigações, ao Direito das Coisas, ao Direito da Família, ao Direito das Sucessões, ou a Direitos
privados especiais, como é o caso do Direito Comercial.
Também são situações privadas aquelas em que, estando implicado um Estado ou um
ente público autónomo, este não age na qualidade de sujeito público, mas como se de um
particular se tratasse, pois estas situações são regidas pelo Direito privado.
Situações transnacionais são todas aquelas em que se coloque um problema de determinação
do Direito aplicável que deva ser resolvido pelo Direito Internacional Privado.
O problema da determinação do direito aplicável pode-se colocar não só perante uma
ordem jurídica estadual, como perante a ordem jurídica internacional ou Direito autónomo do
comércio internacional.
Em princípio, não há impedimentos à aplicação do Direito público, vigente na ordem
jurídica estrangeira designada pela norma de conflitos, que seja aplicável à situação
transnacional.
Aceita-se hoje que um Estado estrangeiro só goze de imunidade de jurisdição
relativamente aos actos praticados iure imperi (no exercício de poderes de autoridade pública)
e já não relativamente aos actos praticados iure gestionis (que também podem ser praticados
por particulares).
Relativamente à admissibilidade de pretensões formuladas por Estados estrangeiros, com
fundamento no seu Direito Público, nos tribunais locais, regista-se uma vincada diferença de
opiniões. Na opinião de Lima Pinheiro, a ordem jurídica de um Estado é inteiramente livre de
decidir se tutela ou não juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu
Direito público.
O Direito Internacional coloca alguns limites, por difusos e incertos que sejam, à regulação
das situações em que estão implicados entes públicos no âmbito de outras ordens jurídicas.
Para a determinação destes limites deve estabelecer-se um paralelo com o regime da
imunidade de jurisdição.
Em resultado, não será admitida a pretensão de um Estado estrangeiro mos tribunais
portugueses quando esse Estado estrangeiro goze de imunidade de jurisdição relativamente a
litígios emergentes da mesma situação.
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Os litígios emergentes de certas relações de Direito Público, designadamente os contratos
públicos, são, perante a grande maioria dos sistemas, arbitráveis;
A imunidade de jurisdição relativamente aos actos praticados iure imperii é renunciável;
A distinção entre actos iure imperii e actos iure gestionis releva do Direito Internacional
Público e não corresponde necessariamente ao critério de classificação dos actos como sendo
de Direito Público ou de Direito privado adoptado por uma ordem jurídica nacional e, em
particular, não corresponde aos critérios seguidos na ordem jurídica portuguesa.
A arbitragem voluntária que tenha lugar em território português é regulada pela Lei da
Arbitragem Voluntária [LAV] (art. 37º).
O Estado que celebrou uma convenção de arbitragem não pode invocar a sua imunidade
perante o tribunal arbitral nem perante o tribunal estadual que desempenhe funções de
controlo da arbitragem ou de assistência à arbitragem.
Quando o Estado ou um ente público autónomo português celebre uma convenção de
arbitragem relativa a um contrato celebrado com uma sociedade sedeada no estrangeiro
coloca-se, em principio, um problema de determinação do Direito aplicável.
Com efeito, mesmo que a arbitragem se realize em Portugal, o tribunal arbitral não está
vinculado à aplicação do Direito administrativo português.
A determinação do Direito aplicável só não é necessária se as partes estipularem um
julgamento segundo a equidade.
Em segundo lugar, o Estado, mesmo que actue iure imperii, pode renunciar à imunidade
de jurisdição. É o que se verifica quando o Estado consente num pacto atributivo de jurisdição
a tribunais estrangeiros, bem como, porventura, quando aceita uma cláusula de designação de
Direito estrangeiro para reger o contrato.
A distinção entre actos iure imperii e actos iure gertionis releva do Direito Internacional
Público e não do Direito interno.
Apenas se encontra um certo consenso em torno do seguinte raciocínio básico: existe um
conjunto de actos típicos que, sendo regulados pelo Direito privado comum, podem ser
praticados por particulares; por conseguinte, estes actos são em geral encarados como
operações comerciais” ou outros actos de “Direito privado”.
A Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos
Seus Bens (Nova Iorque, 2005), já ratificada por Portugal mas que não se encontra ainda
internacionalmente em vigor, visou codificar e desenvolver o Direito Internacional Público
geral nesta matéria.
As imunidades de jurisdição dos agentes diplomáticos e consulares são reguladas pelas
Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) e sobre as Relações Consulares
(1963).
Os funcionários e empregados consulares só gozam de imunidade no Estado receptor com
respeito aos actos praticados no exercício de funções consulares.
A qualificação de uma situação como transnacional, na acepção relevante para o DIP, não
pressupõe necessariamente o carácter jurídico-privado da mesma.
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O Direito Internacional Privado português é aplicável a todas as relações que, embora
implicando estados ou entes públicos autónomos estrangeiros, organizações internacionais ou
agentes diplomáticos ou consulares de Estados estrangeiros, sejam susceptíveis de regulação
na esfera interna.
O DIP português é ainda aplicável a relações entre diferentes Estados ou organizações
internacionais que sejam por eles subtraídas à aplicação directa do Direito Internacional
Público.
C) O carácter transnacional das situações reguladas
O DIP regula situações de carácter internacional.
Por “internacional” quer significar-se a existência de contactos relevantes com mais de
um Estado soberano, com mais de uma sociedade politicamente organizada em Estado
soberano.
Trata-se de situações que transcendem a esfera social de um Estado soberano, entrando
em contacto com outras sociedades estaduais.
São múltiplos os factores que podem dar à situação este carácter transnacional: a
nacionalidade dos sujeitos, o seu domicílio ou residência habitual, o lugar do seu
estabelecimento, o lugar onde se produzem certos factos, o lugar onde está situada a coisa.
As situações transnacionais carecidas de regulação jurídica são em regra apreciadas
segundo o Direito Internacional Privado de uma ordem jurídica estadual. Daí que a inter
nacionalidade da situação seja vista, na perspectiva desta ordem jurídica, como uma
estraneidade, isto é, numa formulação muito divulgada, como produto de certos elementos de
estraneidade. Os elementos de estraneidade são os laços que ligam a situação a outros
Estados.
Assim, por exemplo, perante o Direito Internacional Privado português um casamento
celebrado por um português com uma espanhola, em Itália onde ambos residem, apresenta
como elementos de estraneidade a nacionalidade espanhola de um dos cônjuges e a
localização em Itália do lugar da residência e do lugar da celebração do casamento.
Esta perspectiva impõe-se ao legislador estadual de Direito Internacional Privado que tem
em vista situações que, além dos laços existentes com o seu Estado, apresentam elementos de
estraneidade.
Esta perspectiva também vale, até certo ponto, para os órgãos nacionais de aplicação do
DIP. O tribunal estadual aplica o DIP vigente na respectiva ordem jurídica a situações que, a par
dos laços que apresentam com o Estado do foro, e que normalmente fundamentam a
competência internacional dos seus tribunais, também estão conectadas com outros Estados.
A transnacionalidade relevante para a aplicação de normas de conflitos internacionais já não
se apresenta como uma “estraneidade” relativamente a um determinado Estado, uma vez que
estas normas são aplicáveis a uma pluralidade de ordens jurídicas estaduais.
O critério de transnacionalidade relevante depende das normas de DIP em causa.
No que toca ao Direito de Conflitos geral, a determinação da transnacionalidade está
facilitada quando os laços que se verificam com mais de um Estado soberano constituem
elementos de conexão utilizados pelas normas de conflitos aplicáveis.
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É necessária uma valoração. Por exemplo, um contrato de venda não é transnacional pelo
simples facto de a coisa vendida ter sido fabricada no estrangeiro ou de se estipular o
pagamento em moeda estrangeira. Mas, em princípio, já o é se implicar uma transferência de
valores através das fronteiras.
Nesta valoração têm de ser tidos em conta os fins e princípios subjacentes à norma de
conflitos em causa e ao sistema de DIP em que se integra, bem como o conjunto das
circunstâncias do caso concreto.
D) Processo conflitual
O DIP regula as situações transnacionais através de um processo conflitual.
Entende-se que o núcleo essencial do Direito Internacional Privado é constituído por
normas de conflitos. As normas de conflitos do DIP são proposições que perante uma situação
em contacto com uma pluralidade de sociedades estaduais determinam o direito aplicável.
Enquanto ramo do Direito, o DIP será um Direito de Conflitos.
No DIP não estão directamente em causa conflitos de soberanias, isto é, conflitos de
competência legislativa dos Estados. Trata-se de determinar o Direito aplicável a uma situação
transnacional e não de regular competências legislativas dos Estados.
Também não se deve confundir “conflitos de leis” com conflitos de normas na regulação
de uma situação da vida. O DIP pressupõe a vigência de uma pluralidade de sistemas jurídicos
que apresentam um certo grau de diversidade entre si. Para a escolha do Direito aplicável ter
um sentido prático tem de haver uma diferença na regulação da situação entre os sistemas em
presença. Mas esta divergência entre os sistemas em presença não constitui um “conflito de
normas” na ordem jurídica local, visto que estes sistemas são simultaneamente aplicáveis na
ordem jurídica local.
Tão-pouco se deve fazer confusão com os chamados conflitos de sistemas de Direito
Internacional Privado. Há um conflito de sistemas de DIP quando os Direitos de Conflitos das
ordens jurídicas em presença divergem entre si sobre qual delas deve ser aplicada ao caso.
Quando se fala em conflitos de leis em DIP quer-se identificar o problema de
determinação do Direito aplicável gerado por uma situação da vida que está em contacto com
a esfera social de mais de um Estado.
A função do Direito de Conflitos é, em primeira linha, a de regular situações
transnacionais.
Ele opera esta regulação por meio de um processo de regulação indirecta: regula as
situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável.
Num mundo dominado pelas sociedades políticas organizadas em Estados, a que
correspondem ordenamentos jurídicos autónomos, a norma de conflitos, para regular as
situações transnacionais, tem de coordenar e articular estes sistemas.
Na regulação das situações transnacionais o DIP não opera apenas através do Direito de
Conflitos, entendido stricto sensu, mas também mediante o reconhecimento das situações
jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas condições.
Assim, o DIP, enquanto ramo do Direito, engloba o Direito de Conflitos e o direito de
Reconhecimento.
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O processo de regulação operado por via do reconhecimento de efeitos de decisões
estrangeiras ainda é um processo conflitual ou indirecto. A definição da situação jurídico-
material resulta da remissão para o Direito do Estado e origem, isto é, o Estado cujo órgão
praticou o acto. São os efeitos jurídicos desencadeados pelo acto segundo o Direito do Estado
de origem que se produzem na ordem jurídica do Estado de reconhecimento.
Direito Internacional Privado – Luís de Lima Pinheiro
30. Âmbito do DIP (pág.62)
A doutrina alemã, também adoptada na Itália, restringe ao problema do conflito de leis o
âmbito do DIP. Os manuais alemães ocupam-se também das matérias do direito processual
civil internacional, com especial destaque para a do reconhecimento e execução de sentenças
estrangeiras.
Quanto à escola ango-saxónica, ela inclui decididamente no DIP o estudo de três
questões: a da jurisdição competente, a da lei competente e a do reconhecimento das
sentenças estrangeiras.
Para a escola francesa, o objecto do DIP compreende quadro matérias:
- a nacionalidade;
- a condição dos estrangeiros;
- os conflitos de leis;
- os conflitos de jurisdições.
Autores como Pillet apontavam a existência, a par da questão do conflito de leis, de um
problema autónomo: o do reconhecimento dos direitos adquiridos em país estrangeiro. Foi
também esta orientação que Machado Villela imprimiu ao seu ensino.
O reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde do averiguar se o
direito alegado efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que, no âmbito do DIP
do foro, possamos considerar competente. A determinação da lei competente constitui um
prius relativamente ao reconhecimento do suposto direito adquirido. De conformidade com a
generalidade dos sistemas jurídicos, o problema da averiguação da lei competente resolve-se
pelo DIP da lex fori: as regras do direito de conflitos português tanto se aplicam às relações
constituídas ou a constituir em Portugal como às situações já criadas em país estrangeiro. Uma
vez determinada a lei aplicável à situação litigiosa, não há que proceder à aplicação das
normas dessa lei que se referirem a tal situação: elas dirão se no caso concreto há ou não
direito adquirido a respeitar.
Se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do
reconhecimento da competência da lei que presidiu à sua constituição e se não é pelo facto de
se tratar do reconhecimento de um direito adquirido no estrangeiro que a questão da
determinação da lei aplicável deixa de se pôr em face das regras de conflitos da lex fori –
temos de concluir que aquele problema não é um problema autónomo relativamente ao do
conflito de leis.
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31. Segundo a orientação da doutrina francesa, adoptada entre nós por Machado Villela e
outros autores, há que incluir no DIP, ao lado da matéria dos conflitos de leis, a da
nacionalidade, a da condição jurídica dos estrangeiros e a dos conflitos de jurisdições ou
competência internacional dos tribunais.
Diante do problema da delimitação do DIP, dois caminhos se nos oferecem. Segundo o
primeiro caminho, reduz-se o objecto do DIP ao conflito de leis (escolha da lei aplicável) e de
jurisdições (escolha da jurisdição competente). Ao DIP competirá indicar por que legislação se
resolvem as questões emergentes das relações privadas internacionais e as regras sobre a
competência internacional dos tribunais e o reconhecimento das sentenças estrangeiras.
As regras sobre a nacionalidade são aquelas que, em cada Estado, enumeram os factores
de aquisição e perda da cidadania, definindo, portanto, as condições de atribuição, no âmbito
do direito local, de um dentre dois estatutos: o de nacional e o de estrangeiro.
A condição dos estrangeiros trata-se de apurar quais os direitos atribuídos no Estado local
aos cidadãos estrangeiros, em confronto com os nacionais. Trata-se de saber quais os direitos
de que os estrangeiros não gozam, exactamente pelo facto de serem estrangeiros. São normas
de capacidade.
As normas de conflitos de leis propõem-se a responder ao quesito: que lei devem os
tribunais locais aplicar em determinado caso? Essa lei tanto poderá ser a lex fori como a
dalgum país estrangeiro. Mas não é isto que se passa com as chamadas regras de conflitos de
jurisdições. Tais normas limitam-se a indicar as hipóteses em que os tribunais do Estado a que
pertencem têm competência internacional.
A diferença assinalada entre as normas de conflitos de leis e as de competência
internacional não é relevante, pois que, as denominadas regras de conflitos podem ser,
também elas, unilaterais. E as normas de conflitos decidem da aplicação aos diferentes casos
dos sistemas de direito privado em vigor nos diversos Estados, sendo, por isso, o direito
privado a sua sede natural. Não assim as normas de conflitos de jurisdições, as quais –
juntamente com as regras sobre o reconhecimento de sentenças estrangeiras – pertencem ao
direito processual civil internacional.
32. Mas é possível considerar as coisas doutra maneira. Todas as questões focadas têm uma
origem comum: nascem das relações de comércio jurídico internacional. Estas relações
obrigam muitas vezes a encarar e a resolver, antes de qualquer outro, um problema de
nacionalidade.
É forçoso conhecer também a condição jurídica concedida em determinado Estado aos
cidadãos estrangeiros. Também esta é uma situação prévia relativamente à do conflito de leis,
porque o problema da lei aplicável a certo negócio jurídico só se põe depois de averiguado que
as partes tinham o gozo do direito que através desse negócio trataram de exercer.
Ferrer Correia segue um caminho diverso. O DIP é, predominantemente, um direito de
conflitos. Mas isto não quer dizer que sejam dele excluídas as matérias da condição jurídica
dos estrangeiros e da nacionalidade, ambas tão chegadas ao direito conflitual.
Os temas da competência jurisdicional e do reconhecimento e execução das sentenças
estrangeiras pertencem indiscutivelmente ao âmbito do DIP.
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O reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras está ao serviço dos mesmo valores
que o DIP, ele visa fundamentalmente garantir a estabilidade e a continuidade das situações
da vida jurídica dos indivíduos.
Capítulo V – Direito dos Estrangeiros (Princípios Gerais)
33. É princípio de direito comum aos Estados modernos o reconhecimento da capacidade
jurídica aos estrangeiros.
Mas se os Estados reconhecem a personalidade jurídica dos estrangeiros, por força de um
imperativo do direito internacional positivo, eles gozam em contrapartida de liberdade muito
apreciável na execução desse princípio. Se todo o Estado deve considerar o estrangeiro sujeito
de direitos, ele é em princípio livre de fixar como bem entenda a medida concreta da sua
capacidade jurídica.
34. Tais restrições constituem justamente o conteúdo das normas do direito dos estrangeiros.
São normas que marcam a diferença entre a condição de nacional e a de estrangeiro. Não têm
elas que se incumbir da tarefa de enumerar, de modo taxativo e concreto, os múltiplos direitos
e faculdades que aos estrangeiros são reconhecidos: o que fazem é somente especificar
aqueles que lhes são denegados. Trata-se de regras que criam para os estrangeiros
incapacidades de gozo relativamente a certos e determinados direitos, ou para valer em certas
áreas. Não estamos em face de normas de conflitos, mas de preceitos jurídico-materiais. Em
certo sentido, as normas do direito dos estrangeiros opõem-se até às normas de conflitos.
Enquanto a estas anima um espírito universalista – o DIP coloca as diferentes leis em pé de
igualdade e busca decidir-se pela aplicação daquela que pareça ter com o caso a conexão mais
estreita -, as primeiras são normas de sentido eminentemente nacionalista ou territorialista:
têm a intenção de proteger determinados interesses da comunidade local, quer de política
geral, quer de política demográfica ou económica.
I
35. O princípio geral que enforma o instituto é o da equiparação. Estabelece-o a Constituição
no seu art. 15.°, nº 1: “os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em
Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”.
Todavia, também entre nós a equiparação do estrangeiro ao nacional está longe de ser
completa. Há desde logo toda uma categoria de direitos que escapa em larga medida à
influência desse princípio – os direitos políticos (art. 15.°, nº 2 da CRP).
Admitir um estrangeiro a exercer funções políticas no Estado local envolveria o risco de
esse estrangeiro trair os interesses desse Estado em benefício do seu Estado nacional.
Nem sequer o estrangeiro naturalizado está, neste ponto, inteiramente equiparado ao
nacional: são privativas dos portugueses originários as funções de Presidente da República (art.
125.° da CRP).
36. Direitos públicos não políticos. Neste domínio vale o princípio da equiparação, mas com
numerosas restrições.
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Há que sublinhar que a Constituição, no seu art. 15.°, nº 2, afasta do âmbito daquela regra
o “exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico”.
37. Direitos privados. São os seguintes os sistemas geralmente usados para determinar a
condição jurídico-privada dos estrangeiros:
1º - sistema da equiparação dos estrangeiros aos nacionais;
2º - sistema de reciprocidade (diplomática ou convencional e legislativa ou de facto).
O primeiro é o do direito português em vigor (art. 15.°, nº 1 da CRP; art. 14.°, nº 1 do CC;
art. 7.° do CComercial).
O art. 14.° limita-se a estabelecer o princípio de que aos estrangeiros é reconhecida a
capacidade de gozo de direitos privados, tal como aos nacionais e independentemente de
reciprocidade. Sob este aspecto, não há diferença entre nacionais e estrangeiros.
Mas é só este o alcance da regra da equiparação. A lei competente para decidir se ao
interessado, cidadão estrangeiro, é reconhecido o direito que ele pretende exercer (o direito
de divórcio, o de ser proprietário de bens imóveis) não pode ser senão a lei definida como
reguladora da respectiva relação jurídica (a lei reguladora do divórcio e da separação judicial
de pessoas, a lex rei sitae).
Se se interpretasse o art. 14.°, nº 1 no sentido de que aos estrangeiros são reconhecidos
todos os direitos civis dos cidadãos portugueses e mais nenhuns, não poderíamos, por
exemplo, deixar de reconhecer a um cônjuge espanhol o direito de se divorciar, a despeito de
a lei da nacionalidade comum das partes o não admitir no caso concreto, se esse direito fosse
atribuído aos portugueses pelo direito material português. Uma tal solução poria a norma do
art. 14.° em conflito aberto com a do art. 55.°, segundo a qual a lei aplicável ao divórcio é
exactamente a da nacionalidade comum dos cônjuges, na sua falta a da residência habitual
comum e, na falta desta, a lei com a qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Assim, o cônjuge estrangeiro não será admitido a exercer em Portugal, em relação ao
outro cônjuge, igualmente estrangeiro, todos os direitos decorrentes do sistema jurídico
português, mas apenas aqueles que lhe forem concedidos pela respectiva lei nacional (art. 52.°
do CC).
Se a lei designada pelo nosso direito para regular o caso for estrangeira, o estrangeiro
poderá prevalecer-se entre nós de todos os direitos por essa lei reconhecidos, precisamente
como se fosse um cidadão português. Se, pelo contrário, for a lei portuguesa a competente,
então o estrangeiro poderá exercer todos os direitos dela decorrentes, como se fosse
português. Ao fim e ao cabo, quer a lei competente seja a portuguesa ou uma lei estrangeira, o
estrangeiro é sempre equiparado ao nacional.
O art. 14.°, nº 2 formula uma importante restrição: não serão atribuídos aos estrangeiros
os direitos que, sendo concedidos pelo respectivo Estado aos seus nacionais, o não sejam aos
portugueses em igualdade de circunstâncias.
Segundo a letra expressa do referido artigo, a concessão de um determinado direito a um
indivíduo de nacionalidade estrangeira não pressupõe que esse mesmo direito esteja
reconhecido em termos gerais na legislação do Estado a que tal indivíduo pertença.
A única coisa que se exige é que, relativamente ao gozo deste direito, não se encontrem os
estrangeiros naquele Estado, e em particular os portugueses, em condições de inferioridade
perante os nacionais.
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Mas se o direito em causa, consagrado nas leis portuguesas, não estiver pura e simplesmente
reconhecido na legislação desse Estado, não será isso motivo para a sua não atribuição à parte
interessada. O que se quer evitar é a desigualdade de tratamento concedido aos portugueses
no estrangeiro, em confronto com os súbditos do Estado local.
Conforme a regra geral do ónus da prova, é ao interessado no não reconhecimento do direito
que compete provar a verificação em concreto da condição impeditiva estabelecida no nº 2 do
art. 14.°.
38. Resta aludir a outras duas restrições ao princípio da equiparação. A primeira é a que essa
regra não pode funcionar em prejuízo da ordem pública internacional do Estado português.
O outro caso será quando o reconhecimento da instituição jurídica estrangeira exigir uma
autoridade pública local uma forma de actividade que exorbite do quadro das suas atribuições.
Lições de Direito Internacional Privado – Ferrer Correia
8. O DIP e o «direito dos estrangeiros». Entende-se por «direito dos estrangeiros» o conjunto
de regras materiais que reservam para os estrangeiros um tratamento diferente daquele que o
direito local confere aos nacionais. Os estrangeiros são equiparados aos nacionais quanto ao
gozo de direitos privados (art. 14.°, nº 1 do CC). Só assim não será quando exista disposição
legal em contrário.
São dois os princípios que regrem a matéria da capacidade de gozo de direitos dos
estrangeiros em Portugal, no domínio do direito privado: o princípio da equiparação e o
princípio da reciprocidade. Por força do primeiro princípio, os estrangeiros, pelo facto de o
serem, não vêem a sua capacidade de gozo de direitos restringida em Portugal. Diz o nº 1 do
art. 14.° que eles são equiparados aos nacionais. Mas isto não significa que tenham
precisamente os mesmos direitos que os portugueses. Podem ter mais ou ter menos. Tudo
depende da lei aplicável, da lei competente para atribuir o direito. O princípio da equiparação
apenas significa que a qualidade de estrangeiro não é motivo para restrições à sua capacidade
de gozo de direitos.
O princípio da reciprocidade só funciona quando o estrangeiro pretende exercer em
Portugal um direito que o respectivo Estado nacional reconhece aos seus súbditos, ou a estes e
aos súbditos de outros Estados com os quais mantenha relações particulares, mas recusa aos
portugueses em igualdade de circunstâncias, só porque estes são estrangeiros ou porque são
portugueses. Tem que haver um tratamento discriminatório dos portugueses, fundado na
simples circunstância de estes serem portugueses ou serem estrangeiros.
O «direito dos estrangeiros» é, portanto, constituído pelo conjunto das regras materiais
do direito interno que dão aos estrangeiros um tratamento diferente do que é reservado aos
nacionais. Trata-se de regras discriminatórias que estabelecem para as pessoas (singulares ou
colectivas) estrangeiras específicas incapacidades de gozo relativamente a certos e
determinados direitos.
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Essas regras apenas se preocupam com a determinação dos direitos e faculdades de que os
estrangeiros não gozam entre nós e não dos direitos e faculdades de que eles possam
porventura usufruir por força da lei aplicável. Este último é já um problema de Direito dos
Conflitos.
Na nossa lei há múltiplos exemplos de restrição à capacidade de gozo de direitos dos
estrangeiros. Assim, por exemplo, as embarcações estrangeiras não podem exercer pesca em
áreas territoriais portuguesas. A Lei nº 1994.° proíbe o exercício de certas actividades
consideradas fundamentais para a economia da Nação ou para defesa do Estado a empresas
estrangeiras. Acham-se igualmente condicionadas a entrada e a permanência dos estrangeiros
em território nacional. Quanto aos direitos políticos vigora o art. 15.° da CRP.
9. Autonomia do problema do reconhecimento dos direitos adquiridos? Machado Villela, na
esteira de Pillet defendeu a autonomia do problema do reconhecimento dos direitos
adquiridos no estrangeiro. Este problema seria, segundo ele, um problema cientificamente
autónomo em face do problema dos conflitos de leis. Segundo aquele teríamos um puro
problema de reconhecimento de direitos adquiridos. Nenhum problema de conflitos de leis se
divisaria aí. Nos outros casos, em que a situação apresentava já carácter «internacional» ou
«plurilocalizado» ao tempo da sua constituição, teríamos ainda primordialmente perante nós
um problema de reconhecimento de direitos adquiridos, não surgindo o problema de conflitos
de leis senão num segundo momento e no papel subordinado de «simples elemento de
resolução» daquele primeiro problema.
Salienta-se que o que está em causa em qualquer das mencionadas hipóteses, mesmo
naquele em que se trata de situações ditas puramente nacionais, é sempre um problema de
conflito de leis. Estas objecções são subscritas por quase toda a doutrina moderna de DIP.
Uma situação puramente interna em relação a um Estado estrangeiro, isto é, uma
situação cujos factos constitutivos, no momento da criação do direito, estavam em contacto
com um só país é o caso, por exemplo, de um casamento entre franceses celebrado na França.
Dizem os autores modernos que, mesmo neste tipo de hipóteses, achamo-nos perante um
problema de conflitos de leis. É um problema de conflito de leis, a resolver pelas regras de
conflitos do Estado do foro.
Para Machado Villela só entre as leis em contacto com os factos se estabelece em
princípio um concurso ou conflito de leis, a resolver mediante uma regra de conflitos.
Qualquer lei que não tem – ou não teve – conexão com os factos, vê-se desde logo excluída do
círculo de leis potencialmente aplicáveis. Nada de mais exacto, se o princípio básico de todo o
DIP é o princípio universal de direito segundo o qual as normas jurídicas, como regras de
conduta que são, só devem ser aplicadas quando os indivíduos podem contar com a sua
aplicação e tomá-las como normas orientadoras da sua conduta – e, portanto, só podem ser
aplicadas àqueles factos com os quais elas tenham uma conexão temporal e espacial. Só assim
poderá assegurar-se um mínimo de respeito pelas expectativas legítimas dos indivíduos e
garantir aquele mínimo de estabilidade à sua vida jurídica que constitui um pressuposto básico
da experiência e da existência do direito como uma ordem implantada na vida humana de
relação.
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10. Afirmam, por outro lado, os opositores da teoria dos direitos adquiridos que esta cai pois
que, para saber se existe um direito adquirido, há que determinar primeiro a lei competente
para atribuir tal direito. Ora isto supõe a prévia intervenção duma regra de conflitos que nos
indique essa lei. Se apenas é reconhecido o direito que foi regularmente adquirido segundo a
lei indicada como competente pela regra de conflitos do foro, é desta regra que depende o
reconhecimento de tal direito, e não da aplicação de um pretenso princípio do respeito dos
direitos adquiridos.
Para Machado Villela, não é a regra de conflitos que está na origem do reconhecimento
dos direitos adquiridos; pelo contrário, o recurso à regra de conflitos só se justifica e se impõe
porque uma regra anterior a ela estabeleceu como princípio o respeito dos direitos adquiridos.
11. Estamos perante o confronto de duas perspectivas diferentes e opostas. A Escola Nova
(corrente moderna) entende a Regra de conflitos como um ponto de partida absoluto: é ela
que dá começo à procura da lei aplicável, é dela e só dela que depende a determinação desta
lei. Pelo contrário, a Escola Velha entende que é num princípio paralelo ao da irretroactividade
das leis que está o ponto de partida radical e o primeiro motor do DIP, não competindo à
Regra de Conflitos senão um lugar subordinado e secundário, qual seja o de uma pura regra de
conflitos: o duma regra destinada a resolver o concurso entre as leis que, por aplicação
daquele primeiro princípio e por força dele, nos possam aparecer como simultaneamente
aplicáveis. Se, da aplicação daquele princípio, resulta que só uma lei se apresenta como
aplicável, a Regra de Conflitos não tem sequer ocasião de intervir e o problema de DIP resolve-
se sem que haja de recorrer a ela. E isto há-de suceder em pelo menos dois casos: no caso de
se esta em face de uma situação puramente interna e no caso de uma situação internacional
ou «plurilocalizada» em que as várias leis em contacto com essa situação estão de acordo
sobre qual delas é a lei aplicável.
A fórmula do respeito dos direitos adquiridos, entendida à letra, se mostra inadequada;
pois o que está em causa é o reconhecimento da lei em contacto com os factos, a qual é
competente para decidir tanto sobre a relevância como sobre a irrelevância destes. A isto vem
juntar-se que a regra básica de DIP, segundo a qual a quaisquer factos se devem apenas aplicar
a lei ou leis que com eles se achem em contacto, não deixa ainda assim de funcionar também
no caso em que a relação jurídica, sendo internacional, se constituiu «no território do Estado
onde é apreciada».
12. Posição adoptada. Não podemos acompanhar o pensamento de Machado Villela, por
exemplo, quando ele afirma que, nas hipóteses em que a relação jurídica, sendo internacional,
se constitui no território do Estado do foro, temos um problema de conflito de leis «puro». É
certo que, nestes casos, não pode pôr-se um problema de reconhecimento de um direito
adquirido (duma situação jurídica já constituída), visto que se está justamente no momento da
criação ou constituição do direito; mas isto não obsta a que funcione também aí o princípio de
que se deve fazer aplicação da lei ou leis em contacto com os factos. E é este princípio que
constitui a base do DIP. A lei do foro é sempre uma das leis em contacto com a situação, uma
das leis «interessadas».
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Por outro lado, nas hipóteses em que se está em presença duma situação puramente
interna em relação a um Estado estrangeiro, não é da intervenção de um específico princípio
do reconhecimento dos direitos adquiridos que se trata, mas da intervenção daquela regra
básica (regra da não-transconexão).
Lições de Direito Internacional Privado - Baptista Machado
Direito Internacional Privado – Luís de Lima Pinheiro (págs. 153 a 166)
Capítulo II - Natureza e fontes
10. As questões de que se incumbe o DIP resolvem-se em cada Estado de harmonia com
normas pertencentes à ordem jurídica nele vigente. O DIP a que os tribunais dos vários países
recorrem a fim de dar solução aos problemas emergentes das relações privadas internacionais
– designadamente o da determinação da lei aplicável a tais relações – é todo ele de fonte
estadual. Internacional pelo objecto ou a função, o DIP é direito estadual pela fonte.
A doutrina dominante tem-se recusado a subscrever esta tese: do simples facto de
determinados princípios serem de aplicação muito geral não pode concluir-se que eles
correspondam a autênticos preceitos de direito internacional público.
Zitelmann pretendeu construir um sistema completo de DIP partindo de certos princípios
de direito internacional público: os da soberania pessoal e territorial dos Estados. Contudo,
essas normas de DIP supra-estadual teriam unicamente a função de integrar as lacunas da
legislação positiva dos diversos Estados. Não existe um DIP de carácter verdadeiramente
internacional. Demonstra-o o próprio facto do procedimento geral dos Estados, que agem na
convicção de gozarem de uma liberdade praticamente ilimitada quando fixam os pressupostos
de aplicabilidade das leis estrangeiras in foro domestico.
Todavia, uma obrigação decorre para os Estados do DIP vigente: a de se não recusarem
eles, de maneira sistemática, a aplicar direito estrangeiro, prescrevendo aos seus tribunais a
aplicação exclusiva do direito nacional. E também o dever de não aplicarem seu o direito
interno a situações que lhe sejam absolutamente estranhas, e o de aplicarem o direito vigente
em certo país a factos que por inteiro pertençam à vida jurídica interna desse país.
11. Existem numerosos tratados e convenções interestaduais versando matéria de DIP.
É, porém, ainda relativamente reduzida a área coberta por tais instrumentos diplomáticos
e diminuto o número de países ligados por esses diferentes convénios.
Dentre estes, os mais importantes são as Convenções da Haia.
Foi em 1884 que pela primeira vez se reuniu na Haia uma Conferência Internacional com o
objectivo de conseguir a unificação do DIP em determinadas matérias. Elaboraram-se seis
Convenções, todas elas de importância indiscutível.
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Se no período entre as duas guerras a obra de unificação do DIP nenhuns progressos
realizou na Europa, podem ao invés considerar-se importantes os avanços conseguidos nas
últimas cinco décadas, principalmente depois que as Conferências da Haia perderam o seu
carácter de conferências diplomáticas ad hoc para darem lugar a uma verdadeira instituição
internacional permanente: a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
Ao lado das Convenções de Haia, há que mencionar as de Genebra, de 1930 e 1931,
destinadas a regular certos conflitos de leis em matéria de letras e livranças, a primeira, e em
matéria de cheques, a segunda.
12. Os tribunais internos, como os restantes órgãos e agentes de um Estado, não aplicam
senão direito internacional privado que seja direito vigente na ordem jurídica interna desse
Estado. Há normas de conflitos estabelecidas por tratados e convenções internacionais; só que
essas normas não se tornam eficazes na ordem interna de cada um dos Estados contratantes
enquanto não forem aí recebidas ou incorporadas. São regras que os Estados contraentes se
obrigam a fazer cumprir na sua esfera interna, mas que só se tornam aí obrigatórias depois de
verificadas as condições de que a legislação nacional faz depender a incorporação. Entre nós,
essas condições resumem-se na aprovação pelo Governo (arts. 197.° e 200.° da CRP) ou pela
Assembleia da República (art. 161.°) do tratado ou convenção internacional, sua ratificação
pelo Presidente da República (art. 138.°) e publicação oficial (art. 8.°).
A Constituição veio, assim, consagrar, por forma expressa, a doutrina da recepção plena
ou automática do direito internacional convencional na ordem interna portuguesa.
Pode ocorrer que os preceitos estabelecidos pela convenção interestadual já vinculem
internacionalmente o Estado, apesar de não se terem cumprido ainda as condições de que
depende, segundo a lei desse Estado, a sua validade na ordem jurídica interna.
Conclua-se, portanto, de conformidade com a doutrina dominante, que as normas de DIP
criadas por convenções internacionais estaduais, enquanto não convertidas ou transformadas
em direito nacional, só obrigam os próprios Estados para os quais o texto da convenção se
tornou internacional. Através do depósito do instrumento de ratificação, o Estado fica
internacionalmente obrigado a emanar na ordem interna os preceitos jurídicos formulados
pela convenção ratificada ou preceitos paralelos desses: são estes preceitos, formalmente
distintos ainda que materialmente idênticos aos de fonte convencional, que os tribunais
internos vão depois aplicar.
As convenções internacionais só como fonte mediata de DIP podem ser consideradas. Na
fase actual da organização da comunidade internacional, é a lei interna – nos países, como o
nosso (art. 3.°, nº 1 do CC) - a única fonte das normas de conflitos.
13. O objecto do DIP consiste na averiguação da lei aplicável às relações privadas
internacionais, com vista à determinação da disciplina jurídico-material reguladora de tais
relações. Isto logo nos faz propender para inserir o DIP no sistema do direito privado. A norma
de conflitos não resolve por si mesma a questão de fundo, mas concorre para a resolução
dessa questão.
É fundamentalmente ao serviço de interesses relativos aos indivíduos que o DIP se
encontra.
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A problemática do DIP apresenta muito maiores afinidades e pontos de contacto com a
do direito civil e comercial do que com a de qualquer ramo do direito público
Capítulo IV – O Direito Internacional Privado e domínios afins; âmbito do DIP
23. DIP e direito intemporal (transitório). São manifestas as analogias entre DIP e direito
transitório (intemporal). Ambos pertencem à categoria “direito sobre direito”, “normas de
aplicação de normas”, “direito de segundo grau ou secundário”. Todavia, o DIP tem por
objecto os conflitos de leis no espaço, enquanto que o direito transitório, dirime os conflitos
de normas jurídicas no tempo.
O problema do DIP decorre da existência (vigência) simultânea, em territórios diversos, de leis
distintas; o problema do direito transitório, do fenómeno da sucessão no tempo, no seio da
mesma ordem jurídica, de duas normas ou complexos normativos diferentes. Os fenómenos
da dinâmica das relações jurídicas e o da dinâmica das leis levam-nos a tomar consciência de
um problema que lhes é comum: o dos limites da aplicabilidade das normas jurídicas. Limites
de aplicabilidade no espaço – e termos problemas do DIP; limites de aplicabilidade no tempo –
e surge o problema do direito transitório.
Se no direito transitório avulta o factor tempo, o elemento espaço não deixa de ser
relevante: a aplicabilidade da lei antiga a certos factos, determinada pelo momento da
respectiva verificação, não deixará de pressupor que entre tais factos e o ordenamento do foro
existisse, nesse preciso momento, a conexão espacial considerada decisiva pelo DIP. O
momento da conexão relevante é o da produção do facto que deu origem à consequência
jurídica em causa.
O DIP e o direito intemporal têm como objectivo garantir a estabilidade e continuidade
das situações jurídicas interindividuais e, assim, tutelar a confiança e as expectativas dos
interessados.
24. Conflitos internacionais e conflitos internos. Nem sempre os protagonistas do conflito de
leis no espaço são ordens jurídicas. O problema nasce algumas vezes da coexistência de vários
sistemas de direito no interior do mesmo Estado.
Isto se verifica ainda hoje nalguns Estados federais, como os E.U.A.: cada um dos Estados
federados possui a sua legislação civil própria.
Fenómeno idêntico ocorre no Canadá e também no seio de Estados unitários, como o
Reino Unido ou a Espanha, onde ao lado do direito civil comum subsiste o direito foral
naquelas províncias ou regiões do país que o conservavam ao tempo da promulgação do
Código.
Cada um desses sistemas jurídicos que entram em conflito tem o seu território próprio,
que não coincide com o território do Estado, mas que é uma divisão desse território, uma
região ou província do país. É natural que à resolução desta primeira variedade de conflitos
internos – os conflitos interprovinciais ou interlocais e os de tipo federal – presidam critérios
em grande parte idênticos aos do DIP propriamente dito. Não poderá confiar-se ali à lei
nacional das partes a regulamentação do estatuto pessoal, visto a nacionalidade ser uma só
para o conjunto das províncias: o elemento de conexão decisivo será o domicílio; não poderá
invocar-se a ordem pública como razão para não aplicar a lei doutra província.
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Uma outra variedade existe de conflitos internos: conflitos interpessoais. As várias leis em
presença não regem territórios distintos, mas distintas categorias de pessoas
A coexistência no interior do mesmo Estado de várias leis para diferentes camadas ou
estratos da população, tem uma origem confessional ou étnica.
Portugal é um Estado de legislação unitária, um Estado em que, por conseguinte, os
problemas citados não se põem.
27. DIP e direito privado uniforme. Este é direito material, e o DIP tira justamente a sua razão
de ser da existência de leis materiais divergentes. O DIP procura resolver os conflitos de leis,
enquanto o direito uniforme trata de os suprimir por intermédio de leis idênticas.
28. DIP e direito comparado. O DIP, sendo direito interno pela fonte, tem a desempenhar uma
função internacional: promover o reconhecimento e a aplicação no âmbito do Estado em que
vigora de conteúdos e preceitos jurídicos estrangeiros. Por virtude das regras do DIP, em
princípio, as múltiplas instituições jurídicas existentes algures no mundo recebem o visto de
entrada no ordenamento do foro e tornam-se nele aplicáveis.
Várias são as funções que têm sido assinaladas ao direito comparado. No período entre-
as-duas-guerras, um vasto movimento se desenha que atribui a esta ciência, como tarefa
primordial, a realização de um “direito mundial do século XX”. Continua hoje a lutar-se pela
uniformização do direito privado, e aliás com relativo sucesso, mas só naqueles termos, muito
mais comedidos.
Para outros juristas, a função capital do direito comparado consistiria em procurar no
conjunto dos sistemas legislativos os princípios básicos de todo o ordenamento jurídico e de
todo o direito.
Para muitos, a questão crucial da era em que vivemos estaria em preservar ou construir
uma ordem jurídica capaz de assegurar aos indivíduos os seus direitos fundamentais numa
sociedade demasiado dominada pela técnica. E o direito comparado interviria justamente aí:
graças a um trabalho de pesquisa, de compreensão e de síntese dos elementos comuns da
experiência humana universal relativa ao direito e à justiça, a ciência comparatista incumbir-
se-ia de captar os princípios jurídicos fundamentais, de demarcar a área inviolável dos direitos
essenciais da pessoa humana, de apontar os instrumentos mais eficazes para a defesa desse
reduto.
Toda a comparação supõe a existência de algo de comum nos objectos a comparar. O que
há de comum entre os sectores homólogos dos vários sistemas jurídicos reside muito mais nos
problemas prático-sociais a que urge dar solução no plano e com os meios específicos do
direito, de que nas próprias soluções conseguidas. Estas divergem notavelmente de país para
país – como diferem, em cada nação, de uma época histórica para outra.
A tarefa do direito comparado consiste em apurar quais os diferentes meios técnicos a
que os vários legisladores recorrem para levar a cabo funções sociais equivalentes. Através do
direito comparado, ver-se-á como instituições diferentes tendem nos diversos lugares para fins
análogos – e, ao invés, como a instituições na aparência homólogas correspondem objectivos
distintos.
Tudo isto se reveste de primordial importância para o DIP, dada a missão que lhe compete
de coordenar na sua aplicação todas as leis existentes.
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Para tanto possui ele as suas categorias normativas próprias, a cada uma das quais
corresponde um elemento de conexão determinado. A matéria que preenche essas várias
categorias, são justamente os preceitos e as instituições jurídicas dos diferentes Estados.
Só o recurso ao método da comparação jurídica permitirá em muitos casos resolver
adequadamente tal sorte de problemas.
O conhecimento crítico das divergências existentes entre os sistemas conflituais dos
Estados é essencial à tarefa da unificação das regras de conflitos e bem assim à da elaboração
dessas normas pelo legislador interno. Por último, tal conhecimento assume igualmente
importância fundamental para resolução do problema dos conflitos de sistemas de DIP.
29. DIP e Direito Constitucional. A relação entre o DIP e o Direito Constitucional pode suscitar
diversas questões:
1º São regras de conflitos susceptíveis de entrar em colisão com os preceitos constitucionais, e
especialmente os relativos à matéria dos direitos fundamentais?
2º Até que ponto devem os nossos tribunais recusar a aplicação a um preceito ou complexo
normativo estrangeiro, indiscutivelmente aplicável segundo as normas de DIP da lex fori, mas
que pelo seu conteúdo colida com algum dos direitos fundamentais consagrados na
Constituição portuguesa?
3º Podem os tribunais portugueses recusar-se a aplicar o direito estrangeiro competente, com
fundamento na sua inconstitucionalidade perante a Constituição do país de origem?
Formaram-se duas correntes de opinião:
a) Para uma, o DIP move-se num espaço exterior à Constituição, num espaço livre
relativamente aos princípios e normas constitucionais.
Não pertence ao direito de conflitos estender a validade de um princípio reconhecido no
direito interno além do seu próprio domínio de aplicação, atribuindo-lhe um papel decisivo na
determinação da lei competente. As regras de conflitos dos vários países hão-de dar a
preferência à lei que melhor se recomende segundo a natureza das coisas. O legislador deve
contentar-se com dar realização ao princípio da igualdade na esfera do direito interno.
H. Dölle afirmou expressamente que as normas de conflitos, como direito nacional que
são, devem naturalmente ser compatíveis com a Constituição política do respectivo Estado.
Em suma, as regras de conflitos são regras técnicas neutrais, que não têm o sentido de
servir a justiça.
b) Mas este modo de entender as coisas e de perspectivar o DIP é profundamente erróneo.
Não são os valores da justiça material que no DIP predominam. O DIP tem os seus
próprios visos. Contudo, os seus preceitos não são meros preceitos de ordem, porque a ordem
para que tendem não é arbitrária, cega a valores, antes uma regulamentação orientada para
certos fins: os objectivos que o DIP considerado globalmente pretende atingir e os objectivos
específicos colimados pelas suas diferentes normas.
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As normas de conflitos não são, portanto, regras técnicas axiologicamente neutrais.
A justiça que servem é de cunho predominantemente formal, nela avultando o
ingrediente da certeza e da estabilidade jurídica. O DIP propõe-se como escopo principal
promover e garantir a estabilidade e continuidade das situações interindividuais
plurilocalizadas, assegurar a livre circulação por sobre as fronteiras dos Estados dos direitos
delas decorrentes. Não é seu intento confiar o caso à melhor lei, a mais adequada à sua
especificidade, senão à que mais próxima estiver da situação concreta.
Atente-se na redacção originária dos arts. 52.°, 53.° e 55.° Do Cód.Civil de 1966, relativos
ao DIP matrimonial. Faltando a nacionalidade comum e a residência habitual comum dos
cônjuges, a lei aplicável vinha a ser a lei pessoal do marido.
Nessa hipótese, deixava de se atender ao interesse da mulher na aplicação do seu próprio
estatuto pessoal – para se resolver o diferendo da aplicação do estatuto pessoal do marido.
Independentemente da motivação da opção legislativa de 1966, e de no caso concreto a
mulher poder por vezes colher benefícios, no plano material, da aplicação da lei pessoal do
marido, era irrecusável a existência de uma discriminação, de uma violação da regra da
igualdade, no plano da justiça conflitual. A regra de conflitos vinha tutelar as expectativas do
marido, o interesse deste na aplicação de uma lei que era a sua, à qual estava decerto mais
estreitamente ligado.
As regras de conflitos, mesmo aquelas que procedem à escolha da lei independentemente
do resultado, são susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de serem assim
objecto de um juízo de inconstitucionalidade.
Em Portugal, com a reforma de 1977 do Código Civil, foram objecto de alteração aqueles
de entre os preceitos do capítulo relativo ao Direito de Conflitos tidos por contrários à
Constituição de 1976.
Quanto ao problema de saber se devem os nossos tribunais recusar-se a aplicar um
preceito ou complexo normativo estrangeiro integrado no direito considerado competente
pelo DIP da lex fori, mas que pelo seu conteúdo colida com normas constitucionais, e
especialmente com algum dos direitos fundamentais consagrados na Constituição portuguesa,
consagra a nossa lei fundamental princípios com grande relevância em matéria de direito
privado.
Os preceitos da lei estrangeira designada pela norma de conflitos que não se coadunem
com os direitos fundamentais consagrados na legislação portuguesa são seguramente
inaplicáveis, porque contrários à ordem pública internacional do Estado português. Para tanto
será indispensável que no caso de espécie se encontrem realizados os pressupostos de
relevância da ordem pública. O primeiro desses pressupostos é naturalmente o facto de se
tratar de valores de máxima importância do ordenamento do foro. Outro consiste na
existência de uma conexão significativa da espécie a julgar com aquele ordenamento.
Assim, à norma da lei estrangeira designada como aplicável ao caso pela regra de conflitos
da lex fori seria dada, em princípio, aplicação, independentemente de ela porventura colidir
com um preceito constitucional sobre direitos fundamentais.
Esta é a solução para que nos inclinamos, mas contemperada pela forçosa intervenção da
ressalva ou cláusula geral da ordem pública internacional.
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Relativamente ao último dos problemas suscitados pela relação entre o DIP e o Direito
Constitucional é o de saber se, no momento de aplicar a lei estrangeira competente, não
deverá o juiz do foro tomar em consideração o facto de dado preceito ou grupo de preceitos
não ser válido no âmbito da lex causae, em função da relação de incompatibilidade existente
entre ele e a respectiva Constituição.
Estabelece o art. 23.° do CC que, na aplicação da lei estrangeira, o julgador deve mover-se
no quadro dessa lei e orientar-se pelos princípios nela fixados.
Se em dado sistema estrangeiro determinado preceito não é aplicado pelos tribunais
ordinários por colidir com normas da respectiva Constituição, cabe ao juiz português dar a essa
circunstância o devido valor, e abster-se identicamente de o observar.
A resposta à questão enunciada é a seguinte: não cabendo seguramente ao julgador do
foro sindicar a compatibilidade constitucional de preceitos da lei estrangeira, incumbe-lhe
aplicar a mesma lei tal como ela seria aplicada pelo juiz do respectivo sistema juridico.
Lições de Direito Internacional Privado – Ferrer Correia
Capítulo II – Fundamento e natureza do DIP
§ 1º - Fundamento nacional ou internacional do DIP
14. Doutrinas internacionalistas. Podemos enquadrar nesta qualificação todas aquelas
doutrinas que definem o problema central do DIP como um problema de fundamento supra-
estadual. Para tais doutrinas, o problema do DIP tem natureza e fundamento supra-estadual,
põe-se no quadro das relações inter-estaduais que normalmente transcendem a autonomia de
cada Estado em singular.
Ponto de vista comum a todas as doutrinas internacionalistas é que não são as exigências
da vida interindividual, encaradas no ângulo de visualização do Estado singular, mas antes as
exigências da vida interestadual que constituem o fundamento do DIP.
Alguns autores falam antes de doutrinas «universalistas», ora identificando-as com as
internacionalistas, ora formando uma terceira categoria.
Uma parte das doutrinas internacionalistas caracteriza-se pelo facto de atribuir ao DIP a
função de delimitar a esfera de exercício das soberanias estaduais relativamente à
regulamentação das relações jurídico-privadas: o DIP distribuiria as competências legislativas
entre as diferentes soberanias estaduais. Os conflitos de leis traduziriam conflitos de
soberanias. Considerada a lei como forma suprema do exercício do poder soberano do Estado,
o facto de leis estaduais diferentes concorrerem sobre os mesmos factos daria lugar a um
conflito entre soberanias. Não se concebe que o Estado singular, em face dos outros Estados
situados num plano de igualdade, dite normas delimitadoras da esfera de soberania destes
outros Estados – par in parem non habet auctoritatem. Tais normas seriam necessariamente
normas de direito supra-estadual.
Procuram os seguidores deste tipo de internacionalismo estabelecer a existência de um
complexo de princípios de Direito Internacional (supra-estadual) mais ou menos vagos, mais
ou menos concretamente determinados, os quais vinculariam o Estado a manter-se dentro dos
limites demarcados no exercício da sua soberania.
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Reconhecer um Estado significaria em primeiro lugar reconhecer o seu ordenamento jurídico,
negar o reconhecimento a um ordenamento jurídico estrangeiro equivaleria a negar a
existência do respectivo Estado.
15. Teoria da delegação. Em face da inconsistência dos princípios do direito internacional
(supra-estadual) delimitadores do exercício da soberania legislativa dos Estados e dada a
inexistência de um corpo internacional de normas de DIP, procura-se conciliar a natureza
formalmente interna de todas ou quase todas as normas de conflitos com a natureza
internacional do DIP.
Para tanto, recorre-se à teoria da delegação: o DIP, como direito regulador de relações
internacionais de carácter privado, integrar-se-ia, por força desse seu objecto, no direito
próprio da comunidade internacional, no direito internacional; este, porém, delegaria nos
diferentes ordenamentos estaduais a competência para regular tal matéria.
Partindo de considerações idênticas, a teoria dita do desdobramento funcional procura
explicar a anomalia da existência de normas de conflitos estaduais, pela sua fonte, e
internacionais, pelo seu objecto e função, afirmando que ela se deve ao atraso evolutivo da
comunidade internacional em matéria de institucionalização.
Na actual fase de transição, muitas funções próprias da comunidade internacional são
desempenhadas transitoriamente e a título precário pelos Estados. Tal o que acontece com a
regulamentação e decisão das questões internacionais de natureza privada. Os órgãos
estaduais, ao desempenharem-se destas funções internacionais – quer ao legislar, quer ao
julgar – deveriam compenetrar-se de que agem na qualidade de órgãos internacionais. O DIP
seria formalmente direito interno e materialmente direito internacional.
16. Associação à doutrina unilateralista. Afirma-se que existem normas internacionais (supra-
estaduais) que distribuem a «competência legislativa» entre os vários Estados ou que, pelo
menos, impõem aos Estados certos limites que eles não poderiam ultrapassar sem violação do
direito internacional. As chamadas normas internas de DIP nada mais seriam do que a forma
por que o Estado cumpre as suas obrigações internacionais. Como o exercício do poder
soberano do Estado se torna ilícito sempre que o direito nacional seja aplicado fora dos limites
fixados pelo direito internacional, os conflitos entre poderes soberanos seriam, assim,
resolvidos por este direito.
Às normas internas de DIP outra função não caberia senão a de delimitar a esfera de
aplicação do direito nacional, deixando campo livre, para além da sua esfera de aplicação, ao
exercício das soberanias legislativas estrangeiras.
Em conformidade com este conceito de DIP (direito destinado a delimitar o direito
material nacional), as normas internas de DIP seriam sempre normas exclusivamente
unilaterais. Competiria às soberanias estrangeiras ocupar o espaço vazio deixado por esta
delimitação do âmbito de aplicabilidade do direito nacional, evitando entrar em conflito com
este mediante a observância do direito internacional.
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17. Crítica. A ideia inspiradora da maior parte das teorias internacionalistas de DIP é a de que a
competência legislativa dos Estados nada mais é do que o modo de manifestação da
soberania, a qual se deve manter dentro dos limites assinalados pelo direito internacional
(supra-estadual). Deste modo, as leis de eficácia territorial seriam manifestação da soberania
territorial e as de eficácia pessoal (extraterritorial) traduziriam a soberania pessoal (poder
internacionalmente reconhecido aos Estados sobre os seus próprios súbditos, onde quer que
estes se encontrem). Daqui resultaria uma eficácia extraterritorial jure proprio das leis
estaduais nos limites da chamada competência legislativa. Uma tal concepção implica, pois
que, sempre que num Estado se aplica direito estrangeiro, é a soberania estrangeira que se
exercita extraterritorialmente; e que, por outro lado, a soberania nacional somente se poderá
exercitar através da aplicação do direito nacional.
A soberania é um poder incarnado no aparelho de coacção e a lei, desintegrada de tal
aparelho de coerção, não constitui qualquer afirmação de poder efectivo. Consequentemente,
a delimitação territorial da soberania exclui de antemão qualquer possibilidade de conflitos de
soberanias no plano do DIP.
A lei, quanto à sua eficácia, é territorialmente condicionada.
Dado como assente que no espaço territorial do Estado não pode exercitar-se senão a
soberania nacional e que, portanto, mesmo quando o Estado manda aplicar direito estrangeiro
no seu território é sempre e ainda a soberania nacional que se exercita ao aplicar esse direito,
não pode nem deve estabelecer-se uma relação necessária entre limites da soberania e lei
aplicável.
O estabelecimento de um vínculo necessário entre soberania e lei aplicável conduziria ao puro
territorialismo na aplicação do direito e, consequentemente, ao desaparecimento do DIP.
A relevância conferida pelos sistemas de DIP ao nexo ou ligação das situações da vida com
as esferas de poder estaduais nada tem a ver com a composição de um conflito entre tais
poderes, mas, essencialmente, com a estabilidade e intensidade da ligação dos indivíduos, dos
seus actos e das coisas com as referidas esferas de poder – ligação essa que não é um facto de
poder que se imponha de per si, mas antes uma realidade sociológica a assumir pelo DIP como
elemento de apreciação para formular o seu juízo de valor legal.
§ 2º - Natureza do DIP (pág. 39)
21. Lugar sistemático das Regras de Conflitos. No nosso CC as regras de DIP aparecem no Cap.
III, do Título I do Livro I. Todas estas normas são «normas sobre normas», normas sobre a
criação, interpretação e aplicação doutras normas, constituindo no seu conjunto um «direito
sobre direito». Também se lhes chama «normas de aplicação» e «normas de segundo grau».
Dentro desta categoria ampla de «normas de aplicação» destacam-se as normas sobre
conflitos de leis no tempo (art. 12.° e segs.) e no espaço (art. 15.° e segs.). A sua função não é
dizer-nos quais as normas vigentes nem o sentido com que estas devem ser interpretadas e
aplicadas, ou como devem ser complementadas em caso de lacuna, mas dizer-nos quais são os
limites espácio-temporais a lex temporis fori (do ordenamento vigente no lugar e no momento
em que a questão é apreciada) e por que lei devem ser apreciados e decididos os casos que
caiam fora do âmbito de aplicabilidade dessa lei, assim delimitado.
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Além disso, podemos caracterizar ainda as normas de conflitos como «normas de
conexão» na medida em que elas toma a «localização» dos factos, ou seja, a sua «conexão»
com este ou aquele sistema jurídico, como ponto de partida para determinar a lei que lhes é
aplicável.
22. O DIP e o direito privado. A distinção corrente entre Direito Privado e Direito Público
refere-se ao direito material. [O Direito Privado é o conjunto de normas reguladoras das relações
entre os particulares ou entre os particulares e o Estado ou qualquer ente público, contanto que, neste
último caso, o Estado ou o ente público intervenha em pé de igualdade com os simples particulares.]
Na concepção de alguns autores, o Direito de Conflitos, que não é direito material ou de
regulamentação mas «direito sobre a aplicação do direito», não seria Direito Público nem
Direito Privado, mas um tertium genus.
Não se trata de um direito que se possa classificar como Direito Privado ou Público: será
uma coisa ou outra, conforme a natureza (pública ou privada) das normas materiais cuja
aplicabilidade esteja em causa.
O DIP refere-se essencialmente ao âmbito de aplicabilidade das normas de Direito
Privado. Além disso, é essencialmente o interesse dos particulares que está na base do DIP. O
DIP serve interesses dos particulares, se bem que os interesses que inspiram as suas normas
sejam diferentes daqueles que informam as normas de Direito Privado material. O facto de,
por vezes, algumas disposições de DIP tutelarem também interesses públicos não invalida a
afirmação feita.
As normas estrangeiras (assim como as normas da lei antiga revogada) aplicadas pelos
tribunais do foro não valem proprio vigore no ordenamento jurídico da lex fori.
Capítulo IV – O DIP e o Direito Intemporal
25. Estado da questão. É inegável o parentesco entre os dois ramos do Direito de Conflitos: o
DIP e o Direito Intemporal.
No nosso século, pode dizer-se que a ideia da identidade básica das duas ciências que se
ocupam do Direito de Conflitos entrou em franco declínio e foi até duramente contestada.
Assim tinha de ser, por isso que o desenvolvimento da teoria do DIP veio a centar-se
exclusivamente na análise da técnica da específica regra de conflitos, que não tem paralelo no
Direito Transitório.
26. Posição adoptada. A regra básica do Direito Transitório é a de a qualquer facto se aplica,
em princípio, a lei do tempo da sua verificação, e à qual corresponde, em DIP, a regra básica
segundo a qual a qualquer facto só deve aplicar-se uma lei que com ele esteja em contacto.
Podemos dizer que ao princípio da não-retroactividade no primeiro corresponde o princípio da
não-transactividade no segundo.
O interesse ou o valor fundamental que ambos os ramos de Direito dos Conflitos visam
tutelar é o interesse na segurança e certeza jurídicas. Ambos visam garantir «a uniformidade e
continuidade das situações jurídicas subjectivas» e a tutela das naturais expectativas dos
indivíduos.
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Parece ser de sustentar um completo paralelismo ou até identidade entre os princípios
fundamentais dos dois direitos de conflitos.
Tem de fazer-se a distinção, no DIP, entre o problema fundamental de Direito de
Conflitos, por um lado, e o problema derivado dos concursos de leis aplicáveis, que as
específicas regras de conflitos têm por missão resolver, por outro lado. É que este segundo
problema é privativo do DIP e, por isso, no Direito Transitório não há lugar para normas
correspondentes às específicas Regras de Conflitos de DIP.
Tendo as soluções de DIP precedência sobre as de Direito Transitório, as regras deste
direito funcionam já dentro das coordenadas traçadas por aquele e, portanto, não se lhes
depara já o problema de decidir entre leis estaduais diversas que simultaneamente se achem
em contacto com os factos a regular.
Da teoria ou parte geral do Direito de Conflitos, comum ao DIP e ao Direito Transitório,
deve ser excluída a teoria da Regra de Conflitos de DIP.
Quer os autores favoráveis à tese da analogia intrínseca entre estes dois ramos do Direito
de Conflitos, quer os seus opositores, insistem em estabelecer um paralelismo entre a
aplicação da lei nova e a aplicação da lex fori, por um lado, e a aplicação da lei antiga e a
aplicação da lei estrangeira, por outro lado. À aplicação da lei nova no Direito Transitório
corresponderia a aplicação da lex fori no DIP, e à aplicação da lei antiga no Direito Transitório
corresponderia a aplicação da lei estrangeira no DIP.
Esta correspondência é frequentemente quebrada, e daí concluir-se que existem
divergências fundamentais entre aqueles dois direitos de conflitos. No Direito Transitório, o
estado e capacidade estão sujeitos ao efeito imediato da lei nova, ao passo que, no DIP, estas
matérias são regidas pela lei nacional e não pela lex fori.
Lições de DIP - Baptista Machado
Capítulo II
Natureza e fontes
10. As questões de que se incumbe o DIP resolvem-se em cada Estado de harmonia com
normas pertencentes à ordem jurídica nele vigente. O DIP a que os tribunais dos vários países
recorrem a fim de dar solução aos problemas emergentes das relações privadas internacionais
- designadamente o da determinação da lei aplicável a tais relações – é todo ele fonte
estadual. Internacional pelo objecto ou a função, o DIP é direito estadual pela fonte.
Questiona-se se os Estados não estarão obrigados a receber na sua ordem interna certas
normas de conflitos postuladas pelo direito internacional público geral. Estariam nesse caso a
regra que declara aplicável aos imóveis a lex rei sitae, aquela que em matéria de forma externa
dos contratos remete para a lei do lugar da celebração do negócio. Mas a doutrina dominante
tem-se recusado a subscrever esta tese: do simples facto de determinados princípios serem de
aplicação muito geral não pode concluir-se que eles correspondam a autênticos preceitos de
direito internacional público.
Também não pode admitir-se uma teoria como a de Zitelmann. Este autor pretendeu construir
um sistema completo de DIP partindo de certos princípios de Direito Internacional Público: os
da soberania pessoal e territorial dos Estados.
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Contudo, essas normas de DIP supra-estadual teriam unicamente a função de integrar as
lacunas da legislação positiva dos diversos Estados. Não existe um DIP geral de carácter
verdadeiramente internacional. Demonstra-o o próprio facto do procedimento geral dos
Estados, que agem na convicção de gozarem de uma liberdade praticamente ilimitada quando
fixam os pressupostos de aplicabilidade das leis estrangeiras in foro domestico.
Todavia, decorre uma obrigação para os Estados do direito internacional público vigente:
a de não se recusarem eles, de maneira sistemática, a aplicar direito estrangeiro, prescrevendo
aos seus tribunais a aplicação exclusiva do direito nacional. E também o dever de não
aplicarem o seu direito interno a situações que lhe sejam absolutamente estranhas, e o de
aplicarem o direito vigente em certo país a factos que por inteiro pertençam à vida jurídica
interna desse país.
11. Existem numerosos tratados e convenções interestaduais que versam matéria de DIP.
É, porém, ainda relativamente reduzida a área coberta por tais instrumentos diplomáticos
e diminuto o número de países ligados por esses diferentes convénios.
Dentre estes, os mais importantes são as Convenções de Haia.
Nas quatro Conferências Internacionais de Haia realizadas elaboraram-se seis
Convenções, todas elas de importância indiscutível:
- a de 1896 sobre processo civil;
- a de 12 de Junho de 1902 sobre a capacidade para contrair casamento e a forma do
casamento;
- a de 12 de Junho de 1902 sobre o divórcio e a separação de pessoas e bens;
- a da mesma data sobre a tutela;
- a de 17 de Julho de 1905 sobre os efeitos pessoais e patrimoniais do casamento;
- a de 17 de Julho de 1905 sobre interdição.
Se no período entre as duas guerras a obra de unificação do DIP não realizou progressos
na Europa, podem ao invés considerar-se importantes os avanços conseguidos nas últimas
cinco décadas, depois que as Conferências da Haia perderam o seu carácter de conferências
diplomáticas as hoc para darem lugar a uma verdadeira instituição internacional permanente:
a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
Ao lado das Convenções de Haia, há que mencionar as de Genebra, de 1930 e 1931,
destinadas a regular certos conflitos de leis em matérias de letras e livranças, a primeira, e em
matéria de cheques, a segunda. Revestem-se de grande importância as Convenções de
Bruxelas de 1968 (sobre a competência judiciária e o reconhecimento e execução das
sentenças em matéria civil e comercial), de Lugano de 1988, a Convenção de San Sebastian de
1989, de Roma de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, de Nova Iorque, de
1973, etc..
12. Os tribunais internos, como os restantes órgãos e agentes de um Estado, não aplicam
senão o direito internacional privado que seja direito vigente na ordem jurídica interna desse
Estado.
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Há normas de conflitos estabelecidas por tratados e convenções internacionais; só que essas
normas não se tornam eficazes na ordem interna de cada um dos Estados contratantes
enquanto não forem aí recebidas ou incorporadas. São regras que os Estados contratantes se
obrigam a fazer cumprir na sua esfera interna, mas que só se tornam aí obrigatórias depois de
verificadas as condições de que a legislação nacional faz depender a incorporação. Entre nós
elas resumem-se na aprovação pelo Governo (arts. 197.° e 200.° da CRP) ou pela AR (art. 161.°)
do tratado ou convenção internacional, na sua ratificação pelo PR (art. 138.°) e publicação
oficial (art. 8.°).
A Constituição veio consagrar, por forma expressa, a doutrina da recepção plena ou
automática do direito internacional convencional na ordem interna portuguesa.
De conformidade com a doutrina dominante, as normas de DIP criadas por convenções
interestaduais, enquanto não convertidas ou transformadas em direito nacional, só obrigam os
próprios Estados para os quais o texto da convenção se tornou lei internacional. Através do
depósito do instrumento da ratificação, o Estado fica internacionalmente obrigado a emanar
na ordem interna os preceitos jurídicos formulados pela convenção ratificada ou preceitos
paralelos desses: são estes preceitos, formalmente distintos ainda que materialmente
idênticos aos de fonte convencional, que os tribunais internos vão depois aplicar.
As convenções internacionais só como fonte mediata de DIP podem ser consideradas. Na
fase actual da organização da comunidade internacional, é a lei interna – nos países como o
nosso (art. 3.°, nº 1 do CCiv.) – a única fonte das normas de conflitos.
13. O objecto do DIP consiste na averiguação da lei aplicável às relações privadas
internacionais, com vista à determinação da disciplina jurídico-material reguladora de tais
relações. Isto faz-nos propender para inserir o DIP no sistema do direito privado. Da aplicação
da norma do DIP não deriva ainda a decisão da questão jurídico-privada. A norma de conflitos
não resolve por si mesma a questão de fundo, mas concorre para a resolução dessa questão.
É fundamentalmente ao serviço de interesses relativos aos indivíduos que o DIP se
encontra.
A problemática do DIP apresenta maiores afinidades e pontos de contacto com a do
direito civil e comercial do que com a de qualquer ramo do direito público.
10. Fontes do Direito de Conflitos (pág. 183 a 222)
A) Fontes internacionais
A “moderna escola nacionalista italiana”, em que se salienta Ago, sustentou que o DIP
seria sempre direito interno.
Segundo esta escola, o Direito Internacional geral não contém normas que digam
especificamente respeito à actividade legislativa dos Estados no campo do Direito
Internacional Privado. E as Convenções Internacionais de unificação do Direito de Conflitos não
conteriam em rigor normas de conflitos mas apenas a obrigação de os Estados introduzirem na
ordem interna certas normas de conflitos.
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Esta concepção encontra-se hoje superada. O Direito Internacional Privado não tem
necessariamente carácter nacional. O Direito de Conflitos ainda é principalmente fonte
interna. Mas nada obsta à vigência de normas de conflitos de fonte internacional.
As fontes de Direito Internacional Público podem também ser fontes do Direito
Internacional Privado.
O Direito de Conflitos de fonte internacional pode actuar em dois planos: no plano da
ordem jurídica internacional e no plano da ordem jurídica estadual.
Como Isabel de Magalhães Collaço assinala nas suas Lições, as normas de conflitos criadas
e aplicadas por jurisdições internacionais são necessariamente normas internacionais.
O DIP vigente na ordem jurídica de um Estado também pode ter fontes supraestaduais. É
o que se verifica perante um sistema de relevância do Direito Internacional na esfera interna
como o consagrado no art. 8.° da CRP, que é um sistema de recepção automática.
De entre estas fontes internacionais de Direito de Conflitos vigente na ordem jurídica
interna sobressaem as Convenções Internacionais.
As normas constantes de Convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas
vigoram na ordem interna após a sua publicação e enquanto vincularem internacionalmente o
Estado português (art. 8.°, nº 2 da CRP). E vigoram na ordem interna como normas
internacionais.
Também vigoram na esfera interna como normas internacionais as normas de Direito
derivado das organizações internacionais de que Portugal seja parte (art. 8.°, nº 3).
As normas de conflitos contidas nos Regulamentos comunitários vigoram na esfera
interna como normas comunitárias (art. 8.°, nº 4). Por exemplo, as normas de conflitos do
Regulamento Roma II, em matéria de obrigações extracontratuais.
Estas Convenções internacionais e estes Regulamentos comunitários destinam-se a
unificar as normas de conflitos que vigoram na ordem jurídica dos Estados contratantes/
membros. Por isso se fala, a este respeito, de Direito de Conflitos unificado. O Direito de
Conflitos unificado é um Direito de Conflitos de fonte supraestadual que opera no plano da
ordem jurídica estadual.
A fonte mais importante do Direito Internacional de Conflitos são os tratados
internacionais que instituem ou enquadram jurisdições internacionais ou quási-internacionais.
Na determinação do Direito aplicável os órgãos internacionais devem aplicar as regras de
conflitos que constem do próprio tratado que os cria ou enquadra.
O tratado multilateral mais importante, enquanto fonte de Direito Internacional de
Conflitos é a Convenção de Washington para a Resolução de Diferendos Relativos a
Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados (1965), conhecida por Convenção
CIRDI.
Em caso de omissão do acto institutivo sobre a determinação do Direito aplicável, os
órgãos internacionais terão de formular regras de conflitos próprias.
Os tribunais internacionais, na omissão do acto internacional que os cria ou enquadra,
deveriam atender aos princípios de Direito de Conflitos comuns aos Estados em presença, e na
sua falta, formular uma solução conflitual numa base comparativa mais alargada.
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Segundo a tendência que tem vindo a prevalecer em algumas jurisdições internacionais, o
tribunal, em lugar de formular uma norma de conflitos, determina o critério de decisão do
caso com base no substrato concordante dos Direitos materiais dos Estados, enquanto
“princípios gerais das nações civilizadas” ou “princípios comuns”.
A determinação do Direito aplicável a situações transnacionais internacionalpublicizadas,
pela especificidade de que estas situações se revestem, não deve basear-se em “princípios
comuns” aos Direitos de Conflitos nacionais.
A jurisprudência internacional ou quási-internacional é também fonte de Direito
Internacional de Conflitos, quer formule as suas próprias normas de conflitos ou se
circunscreva ao aperfeiçoamento e desenvolvimento das normas de conflitos contidas em
tratados internacionais.
- Fontes internacionais do Direito de Conflitos vigente na Ordem jurídica interna
I. O costume internacional é fonte de Direito de Conflitos vigente na ordem jurídica interna.
No pólo oposto à moderna escola nacionalista italiana, os universalistas defenderam a
existência de um sistema de Direito Internacional Privado com validade universal que se impõe
aos ordenamentos nacionais. Tal sistema fundamentar-se-ia no Direito Internacional Público
ou no conceito de Direito. Esta posição é completamente indefensável perante a divergência
dos Direitos de Conflitos nacionais.
O que se discute hoje é principalmente a existência de certas directrizes de Direito
Internacional Público geral sobre a conformação global dos sistemas estaduais de DIP e a
possibilidade de, por via consuetudinária, se terem formado algumas poucas regras de
conflitos internacionais.
Para uma primeira tese, afirmada vigorosamente pelo nacionalismo mais radical contra as
concepções universalistas, do Direito Internacional Público não decorreriam quaisquer
directrizes sobre a conformação dos sistemas estaduais de DIP. Foi defendida a tese da plena
liberdade dos Estados, segundo a qual a aplicação do direito estrangeiro se fundaria apenas na
cortesia internacional.
Outros autores partem de uma concepção diferente, segundo a qual é possível extrair,
dos princípios gerais de DIPúblico, e, em especial, dos que dizem respeito à protecção dos
direitos dos estrangeiros e à igualdade dos Estados enquanto membros da comunidade
internacional, directrizes para a conformação dos Direitos de Conflitos nacionais. Este
entendimento é perfilhado por autores como Machado Villela, Isabel de Magalhães Collaço e
Ferrer Correia.
O princípio do respeito dos direitos dos estrangeiros é prevalentemente entendido como
obrigando os Estados a tratá-los segundo um padrão mínimo, conferindo-lhes uma tutela
razoável dos seus direitos e interesses no que se refere quer aos bens de personalidade quer
aos bens patrimoniais. Este princípio é incompatível com a exclusiva aplicação do Direito
material do foro às situações comportando elementos de estraneidade.
Além disso, ao participar na comunidade internacional um Estado, não pode ignorar a
vigência de outros ordenamentos estaduais nem pode ter uma pretensão de competência
exclusiva de regulação das relações que atravessam as suas fronteiras.
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Cada Estado deve reconhecer às ordens jurídicas estrangeiras uma esfera razoável de
aplicação e abster-se de discriminar a aplicação de uns Direitos estrangeiros relativamente a
outros.
A tutela dos direitos dos estrangeiros parece ainda exigir o estabelecimento de um
sistema de DIP em função de directrizes racionais, que se conformem com as ideias
reguladoras subjacentes a essa protecção.
Estas directrizes têm um carácter evolutivo: para o seu desenvolvimento contribuem as
Convenções internacionais em matéria de Direito de Conflitos, Direito dos Estrangeiros e
direitos fundamentais.
Deste modo, o DIP tem o seu fundamento no Direito das Gentes e no reconhecimento da
coexistência de uma pluralidade de ordens jurídicas nacionais.
Os autores que partem desta concepção já se dividem quanto à existência de normas de
conflitos tendo por fonte o costume internacional. A maioria nega ou põe em dúvida a
existência de tais normas de conflitos.
Segundo a concepção clássica, o DIP teria por objecto a resolução de conflitos de
soberanias, operando uma repartição de esferas de competência legislativa dos Estados.
Reconhecendo que não estão em primeiro plano, no DIP, conflitos de soberanias, mas
interesses interindividuais, entende que o Direito Internacional Público fundamentaria e
limitaria a “competência legislativa” dos Estados com base na territorialidade e a
personalidade (designadamente nacionalidade e o domicílio).
O reconhecimento destes títulos de competência não permitiria, porém, repartir as
“competências legislativas” dos Estados, visto que daí resulta frequentemente uma
sobreposição ou concorrência de “competências legislativas” estaduais.
Em suma, é de admitir que o costume internacional e fonte, de alcance limitado, do
Direito de Conflitos que opera no plano da ordem jurídica estadual.
As normas e princípios do Direito Internacional Público geral em matéria de Direito
Internacional Privado vigoram na ordem jurídica portuguesa como normas e princípios
internacionais, no quadro da recepção automática operada pelo nº 1 do art. 8.°.
II. Os tratados internacionais são a principal fonte internacional de Direito de Conflitos vigente
na ordem jurídica interna.
Podem ser multilaterais ou bilaterais.
Quanto aos tratados multilaterais temos em primeiro lugar os que unificam o Direito de
Conflitos. (pág. 195 e 196)
Estas Convenções têm hoje um domínio de aplicação exíguo, uma vez que é diminuto o
número de Estados que continuam a ser partes e que, na maioria dos casos, foram substituídas
por Convenções mais recentes nas relações entre Estados que nelas são partes.
Também há Convenções de Direito material unificado que contêm ou de onde se inferem
soluções conflituais.
Além das normas de conexão ad hoc que, em regram definem a sua esfera de aplicação
no espaço, é frequente que as Convenções de Direito material unificado contenham soluções
conflituais ou que delas se possa inferir soluções conflituais relativas a questões submetidas ao
Direito interno.
Os tratados bilaterais são principalmente fonte de Direito dos Estrangeiros.
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III. A jurisprudência internacional é fonte de Direito Internacional de Conflitos. Mas as
soluções desenvolvidas pela jurisprudência internacional dirigem-se em primeira linha aos
órgãos internacionais e não aos órgãos estaduais. Só indirectamente, mediante a formação de
costume jurisprudencial, a jurisprudência internacional pode ser fonte de Direito de Conflitos
que opere na ordem interna.
IV. Os princípios comuns aos sistemas nacionais podem ser fonte de Direito Internacional de
Conflitos.
As normas contidas em Convenções internacionais de unificação do Direito de Conflitos
unificadas, a partir do momento em que vigoram na esfera interna, são aplicáveis pelos órgãos
de aplicação do Direito e invocáveis pelos particulares, com o sentido que lhes corresponde no
contexto da Convenção internacional em que se integram e com a posição atribuída na ordem
interna às normas de fonte convencional.
B) Fontes comunitárias
Os tratados instituintes e o Direito derivado emanado os órgãos comunitários são fontes
de normas comunitárias de Direito Internacional Privado.
Em matéria de Direito de Conflitos, há ainda a referir uma Convenção internacional
celebrada pelos Estados-Membros: a Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações
Contratuais (1980). Esta Convenção, embora ligada em vários aspectos ao Direito Comunitário,
não o integra, uma vez que não se trata de acto comunitário mas de tratado internacional
directamente celebrado pelos próprios Estados-Membros.
Além disso, as normas comunitárias que consagram as liberdades fundamentais também
têm incidência sobre o Direito dos Estrangeiros, principalmente no que toca aos princípios
gerais sobre a condição jurídica dos estrangeiros nos domínios do Direito da Economia e da
entrada, permanência e saída de estrangeiros.
Também o Direito de Conflitos de fonte comunitária pode operar ao nível da ordem
jurídica comunitária ou das ordens jurídicas dos Estados-Membros.
O Tratado da Comunidade Europeia é competente para conhecer dos litígios relativos à
responsabilidade extracontratual da Comunidade Europeia por danos causados pelas suas
instituições ou agentes (art. 235.° do TCE). O art. 288.°, nº 2 remete para os princípios gerais
comuns aos Direitos dos Estados-Membros.
A jurisprudência do TCE confirma que o tribunal atende ao Direito escolhido expressa ou
tacitamente pelas partes. Na falta de designação pelas partes, parece que o tribunal, entre a
determinação do Direito nacional aplicável e o recurso aos princípios jurídico-materiais
comuns aos Estados em contacto com a situação, tem dado a preferência, nesta matéria, à
primeira via, e aplicado o Direito do Estado com o qual a situação apresenta uma conexão mais
estreita.
Segundo alguns autores, os tribunais comunitários atendem aos Direitos de Conflitos dos
Estados-Membros cujos tribunais seriam competentes para conhecer a questão (se ela se
suscitasse a título principal). Segundo outros, esta jurisprudência baseia-se nos elementos
comuns aos Direitos de Conflitos dos Estados-Membros envolvidos.
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O Direito de Comunitário também é fonte de Direito de Conflitos vigente na ordem
jurídica interna. O TCE não contém normas de conflitos que se dirijam aos órgãos de aplicação
do Direito dos Estados-Membros. O significado do Direito Comunitário derivado como fonte de
Direito de Conflitos vigente na ordem jurídica interna foi limitado antes do Tratado de
Amesterdão.
Em regra, os objectivos visados com a unificação do Direito Internacional Privado podem
ser realizados através de Convenções Internacionais celebradas pelos Estados-Membros e de
outros instrumentos mais flexíveis, como as Leis Modelo.
A unificação do Direito de Conflitos é, sem dúvida, desejável. Em princípio, esta unificação
deveria ter âmbito universal. Com efeito, os problemas e as finalidades de regulação das
situações transnacionais são comuns tanto às situações intracomunitárias como às situações
extracomunitárias.
Até à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão entendia-se que só nas matérias em
que a Comunidade tinha competência para a harmonização do Direito material podia o DIP ser
também harmonizado.
Este quadro, porém, foi radicalmente alterado pelo Tratado de Amesterdão. Nos termos
dos arts. 61.°, al. c) e 65.° do TCE, com a redacção dada pelo Tratado de Amesterdão, o
Conselho adoptará medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil, “na medida
do necessário ao bom funcionamento do mercado interno”.
O TCE tem entendido que a Comunidade Europeia tem competência externa
relativamente às matérias em que exerceu as suas competências internas. No âmbito do
Direito Económico, o TCE entende que esta competência é exclusiva, no sentido em que só a
Comunidade pode celebrar com Estados terceiros Convenções internacionais que afectem as
normas comunitárias.
Nas matérias do DIP em que a Comunidade Europeia não tiver ainda exercido uma
competência reguladora, os Estados-Membros são livres de legislar ou celebrar com terceiros
Estados convenções internacionais. Neste sentido, o Tratado da Comunidade Europeia não
atribui à Comunidade Europeia uma competência exclusiva em matéria de DIP. No entanto,
uma vez exercida esta competência exclui ou, pelo menos, limita a competência dos Estados-
Membros.
O quadro que se acaba de descrever aponta para uma acelerada comunitarização do DIP.
C) Fontes transnacionais
É aceite a existência de fontes transnacionais, isto é, de processos específicos de criação
de proposições jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio internacional que
são independentes dos órgãos estaduais supraestaduais.
No que toca ao Direito de Conflitos, estas fontes são fundamentalmente o costume
jurisprudencial arbitral e os regulamentos dos centros de arbitragem.
Estas fontes têm desempenhado um papel significativo na criação de normas e princípios
de Direito Internacional Privado da arbitragem transnacional.
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D) Fontes internas
As fontes internas a considerar são a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica.
I. Quanto à lei como fonte de Direito de Conflitos temos em primeiro lugar a Constituição. Se
não é fonte de normas de conflitos, não deixa de ser fonte de DIP, por força dos vários planos
de incidência sobre o Direito de Conflitos e domínio conexo. (arts. 8.°; 13.°; 14.°; 15.°; 87.°;
99.°, al. d); 100.°, als. a) e e)).
Na lei ordinária a principal fonte de Direito de Conflitos é o Código Civil, designadamente
o capítulo III do Título I do Livro I. (arts. 14.°; 15.° a 65.°; 348.°; 365.°; 711.°; 1651.°; 1654.°;
1664.°; 2223.°).
II. O costume foi importante antes do CC de 1966, porque aí o Direito de Conflitos português
de fonte legal era fragmentário.
O costume é uma fonte importante no DIP nos países em que este não se encontra
codificado, como por exemplo, na França.
Num sistema de Direito de Conflitos codificado, como o português, o costume pode ainda
ter algum relevo, ainda que limitado, o desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema.
III. A jurisprudência é uma fonte importante, e até a fonte principal do Direito de Conflitos,
não só nos sistemas em que vigora o precedent law, mas também noutros quadrantes em que
o Direito de Conflitos não se encontra codificado, como por exemplo em França.
Na falta de norma legal ou consuetudinária os tribunais tiveram frequentemente de
formular normas de conflitos, com apelo a certas ideias orientadoras ou princípios gerais, e,
consolidaram soluções numa jurisprudência constante. Quando estas soluções jurisprudenciais
se impuseram, como soluções vinculativas, perante a consciência jurídica geral, formou-se um
costume jurisprudencial.
A jurisprudência portuguesa recente, porém, não tem desempenhado um papel
importante no desenvolvimento e aperfeiçoamento do DIP.
IV. A ciência jurídica tem desempenhado um papel importante no desenvolvimento do Direito
de Conflitos. O seu contributo continua a ser especialmente importante, em consequência de
o DIP ser uma disciplina nova e complexa, que evolui rapidamente.
Direito Internacional Privado – Luís de Lima Pinheiro
21. Uma importante crítica feita a um direito especial das relações internacionais criado pelo
juiz, escolhido por ele ou mesmo objecto de criação individual de cada Estado e livre de
limitações espácio-temporais, sublinha que tais processos, não respeitando a lei mais próxima
dos factos e à sombra da qual teriam sido praticados na convicção de que por ela seriam
regulados, vêm pôr gravemente em causa o valor da segurança jurídica e contradizer
manifestamente as expectativas das partes. Se cada Estado concebe um direito especial
próprio para julgar as relações internacionais, o destino destas vogaria ao sabor da jurisdição
que viesse ao final a apreciar a situação.
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O DIP abdicaria de vez da missão de coordenar a aplicação dos vários sistemas jurídicos
nacionais que autores dos melhores lhe assacam como tarefa fundamental.
O objectivo da segurança jurídica – sem dúvida fim fulcral do DIP – não é de tal forma
garantido pelo método tradicional que seja possível condenar sem mais quaisquer outras
perspectivas que de uma ou de outra forma o comprometam.
Se as expectativas e percepções de justiça dos indivíduos envolvidos em relações
internacionais são modeladas pela sua experiência nacional, é fatal que, dados os diferentes
valores e concepções que conformam cada uma das comunidades em causa, haverá sempre
expectativas que serão frustradas, perigando assim o valor capital da segurança jurídica.
A ordem pública e técnicas como a adaptação, vêm fazer com que também no DIP clássico
o resultado seja imprevisível para as partes.
Não colhe assim, pelo menos na forma algumas vezes pretendida, o argumento dos que
pretendem condenar a invasão de valores materiais no seio do DIP em nome do dano que esta
causaria à segurança jurídica – na medida em que esta é igualmente prejudicada pelo sistema
tradicional que esses autores não deixam por isso de aceitar.
A criação de um direito material de fonte nacional, especialmente dirigido às relações
internacionais, abstrai da natureza da lei enquanto norma de conduta ao pretender afastar na
sua aplicação a ideia de conexão.
22. Ao invés de pretender superar o conflito de leis através da criação de um direito novo,
mais adequado às relações internacionais, trata-se agora de vincar que ao lado do processo
conflitual existiu sempre uma outra forma de regular as relações internacionais, traduzida na
aplicação de um direito comum mundial, continuação do ius gentium, que teria perdurado até
à actualidade.
A especificidade de tal direito comum estaria, para além da circunstância de cobrir
somente o campo do direito comercial, no facto de não ser de origem estadual, nem tão pouco
se encontrar codificado, mas aparecer antes como a auto-regulamentação do mundo do
Comércio Internacional.
Uma das primeiras preocupações dos seus defensores é sustentar que tal ideia nada tem
de recente e que a lex mercatória ou new law merchant não só está firmemente ancorada
numa forma historicizada de regular as relações internacionais (o jus gentium) como constitui
a sucessora natural do DIP originário que apenas não ocupa hoje o centro da problemática do
DIP em virtude de circunstancialismos marginais que fizeram que as coisas tomassem
caminhos diferentes.
Eugen Lauren sustenta que até ao séc. XIX foi um direito transnacional que regeu as
relações comerciais internacionais.
Apesar da introdução do método conflitual, a ideia de um direito transnacional comum
não fora abandonada e mereceu mesmo o apoio de insuspeitos promotores do DIP tradicional
como Story e Savigny. Como que animado de lógica própria, o sistema conflitual continuaria no
entanto a sua evolução interna que o levaria do universalismo de Savigny e dos seus
seguidores ao particularismo de um Ago e de um Bartin nos princípios do nosso século e ao
complicado sistema de um DIP formal que seria o dos nossos dias.
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Para preencher o vácuo existente o Comércio Internacional passou a reger-se por regras
próprias, expressão normalmente de imperativos gerais de justiça, como a boa fé, de uma
certa moral profissional e de orientações fixadas pela prática e provadas pelo tempo.
Ao lado do direito estadual e dos órgãos criados para a sua aplicação, a «corporação»
internacional dos agentes do comércio internacional criava assim normas de conduta paralelas
pelas quais regulava a sua actividade e estabelecia órgãos próprios de apreciação e julgamento
cujas decisões eram em princípio geralmente acatadas. Na falta de tal cumprimento, a
comunidade em questão possuía meios de sancionar de modo efectivo os comportamentos
que violavam as normas existentes.
23. A insuficiência e a imprestabilidade dos direitos internos parecem assim estar entre as
condições que levaram à criação desta lei especial e espontânea para o Comércio
Internacional.
Decisiva para o aparecimento da lex Mercatoria foi antes a unidade existente entre as
várias estruturas que nos diversos países se dedicam ao comércio internacional, a identidade
dos problemas postos por esta actividade e o análogo circunstancialismo que por toda a parte
a rodeia. (págs. 94 e95)
DIP e constituição – Introdução a uma análise das suas relações- R. Moura Ramos
Direito internacional privado e constituição - R. Moura Ramos (págs. 12 a 31)
Parte I – Conflitos de leis
Capítulo II – O método do Direito Internacional Privado
§ 1º
Orientação tradicional
69. O DIP ocupa-se de relações plurilocalizadas, que têm de peculiar o acharem-se sujeitas a
uma condição de particular incerteza e instabilidade. A função do DIP é criar para tais relações
uma disciplina que reduza essa instabilidade a um mínimo tolerável.
Quanto ao método do DIP, segundo a orientação tradicional, considera-se que o
problema que se levanta é o de designar a lei em cuja moldura deverão procurar-se os
preceitos materiais aplicáveis ao caso vertente. Esses preceitos são aqueles que os tribunais do
respectivo Estado aplicariam se o caso fosse puramente nacional, isto é, se a situação da vida
em causa não encerrasse na sua estrutura quaisquer elementos estrangeiros. Uma vez que se
trata de relações conexas com diferentes sistemas de direito, e com diferentes tipos de
regulamentação jurídico-material, o que se pergunta é qual desses sistemas deverá ser
chamado a reger a situação concreta, tendo em conta as conexões existentes entre as leis
interessadas e os factos a regular.
Esta concepção remonta a Savigny. Para o mestre da Escola Histórica, o autentico
problema do DIP é o de procurar para cada relação jurídica, à luz da sua natureza particular, a
sua verdadeira sede.
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Durante a vigência da impropriamente chamada “teoria dos estatutos”, não era da
relação da vida ou da relação jurídica que se partia para achar o sistema de que ela
verdadeiramente dependesse, pela sua localização, mas antes do próprio texto dos estatutos
ou costumes em conflito.
Tem em Savigny origem o método ainda predominante na actualidade, a que chamamos
da conexão, ou método conflitual, ou técnica da regra de conflitos, e que consiste em
procurar, para cada situação jurídica típica, o laço que mais estreitamente a prenda a um
sistema de direito determinado.
A conexão relevante consiste num elemento da factualidade concreta – o acto jurídico
fonte da obrigação, os factos por que se deve traduzir o seu cumprimento, a coisa, móvel ou
imóvel, objecto da relação jurídica, finalmente os sujeitos da relação, com a sua ligação a
determinado país, definida quer pela nacionalidade, quer pelo domicílio – tal como as coisas
se acham ligadas, por natureza, ao país da situação, e os actos ou factos jurídicos àquele em
cujo território são praticados.
É por classes ou grupos de questões de direito ou zonas de regulamentação normativa
que se opera a escolha do elemento de conexão.
70. O método tradicionalmente adoptado em DIP, que se designa por método da conexão ou
método conflitual, caracteriza-se pela utilização de normas, as chamadas regras de conflitos do
DIP. A função dessas regras é indicar o elemento da factualidade concreta, por intermédio do
qual se há-de determinar a lei aplicável às várias situações da vida. Na sua feição clássica, as
regras de conflitos são normas de conteúdo rígido, isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar
um elemento de conexão pré-determinado, ou determinável a partir de critérios enunciados
pela própria norma, sempre que se lhe apresente uma questão jurídica do tipo
correspondente à respectiva previsão.
As open-ended Rules são regras que concedem ao julgador ampla liberdade na fixação,
em cada caso, da conexão mais apropriada.
Outras normas determinam a conexão em princípio relevante – por exemplo, em matéria
de danos causados à pessoa, ou à propriedade de coisas móveis, essa conexão é o lugar onde
se tenha verificado o dano – mas permitem a aplicação de outra lei, quando se mostre que a
situação concreta sub judice se encontra mais fortemente ligada com ela.
No Código Civil português, na Lei alemã de 1986 e na Lei italiana de 1995 se encontram
disposições que em matéria de relações entre os cônjuges e efeitos gerais do casamento e de
divórcio remetem a título subsidiário para a lei da conexão mais estreita.
O contrato é regido pela lei escolhida pelas partes. Na falta de escolha, pela lei com a qual
a relação tenha conexão mais estreita, presumindo-se que essa lei é a da residência habitual
da parte a quem incumbe a prestação característica do contrato (art. 4.°, nº 2 da Convenção de
Roma de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais). Quando, porém, o contrato
tiver por objecto um direito real sobre um imóvel ou um direito de uso sobre um imóvel,
presume-se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se
situa (art. 4.°, nº 3).
Na Lei federal suíça de 18 de Dezembro de 1987 sobre o DIP encontramos a expressão
mais acabada da tendência para não sujeitar o julgador a regras de conflitos rígidas,
permitindo-se-lhe o recurso a uma lei que ele entenda ter com o caso a ligação mais estreita.
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71. As ideias expostas têm sido vivamente contestadas nos últimos tempos. A onda de
contestação procede sobretudo dos Estados Unidos. As críticas visam a própria legitimidade ou
adequação do método utilizado pelo DIP para cumprir a missão que lhe é assinalada.
Sublinham-se os seguintes aspectos:
Primeiro, a dificuldade, quando não impossibilidade, de em muitos casos se apurar a
conexão mais estreita ou mais significativa da relação jurídica. Há dificuldade em identificar a
conexão decisiva em cada uma dessas matérias (e outras), atentos os fins gerais do DIP e os
interesses que mais relevam em cada um dos seus sectores.
Outra objecção consiste na alegada impropriedade das normas de direito interno para
regular as situações internacionais, situações cujos problemas específicos aquelas normas por
completo ignoram, pois não foram elaboradas tendo em conta tais problemas.
Apontam-se ainda as dificuldades que surgem no processo de aplicação da regra de
conflitos.
Numerosos são os casos em que aos interessados será extremamente difícil, senão
impossível, determinar a lei à qual a sua relação ficará sujeita. O método descrito compromete
a possibilidade de encontrar, para as situações multinacionais, a solução mais consentânea
com os seus caracteres específicos.
§ 3º
Pesquisa da melhor lei (Better Law Approach)
78. A “better law approach” é uma doutrina que não repudia o sistema da conexão. Aplicável
será a lei, de entre as conectadas com a situação concreta, que a regular do modo mais
adequado ou justo. O principal defensor desta doutrina foi Cavers.
[A escolha da lei não deverá ser a resultante de uma simples operação mecânica, antes a ela presidirá
uma ideia de justiça material. O juiz deverá guiar-se por dois critérios: o da justiça devida às partes e o
do conteúdo e dos objectivos de política legislativa prosseguidos pelas normas em competição.]
Nos anos 70 este autor trouxe um contributo muito importante para melhor precisar o
seu primitivo pensamento – formulou os célebres princípios de preferência (“principles of
preference”), que são simples critérios orientadores para o juiz. *No entanto, parece tratar-se de
verdadeiras normas de conexão substancial. Se a lei do Estado onde se verificou o dano protege mais a
vítima do que a do Estado onde o autor agiu ou tinha o seu domicílio, deve prevalecer aquela primeira
lei.]
Contudo, ainda que fosse possível prever todos os tipos de conflitos entre preceitos
materiais susceptíveis de se verificar, certo que seria empresa vã tentar definir para cada um
desses tipos, à luz do conteúdo e fins das normas em concurso, um válido critério de opção ou
uma decisiva razão de preferência por uma delas.
A melhor lei, encaradas as coisas do ponto de vista da disciplina que institui (a observação
é de Kegel), nem sempre será a que melhor convém à situação concreta, atenta a sua natureza
de relação plurilocalizada: olhadas as expectativas dos interessados e os vários fins que o DIP
aponta.
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41
§ 5º
A perspectiva do interesse do Estado. Teoria de B.Currie
80. O método tradicional é também contestado por aqueles que para chegar à solução do
conflito de leis se colocam na perspectiva do interesse do Estado – e não na do interesse dos
sujeitos das relações jurídicas e do comércio internacional. Brainerd Currie é o expoente
máximo dessa corrente.
A posição de Currie caracteriza-se por uma radical ruptura com o método da conexão –
pela negação do sistema da regra de conflitos.
A solução do conflito de leis obtém-se a partir da análise das “políticas” em que se
inspiram e a que respondem as leis em concurso: é a governmental interest analysis. A cada lei
corresponde um espaço ou domínio de aplicação, que se delimita em função do interesse
(estadual) que a tenha determinado.
81. A teoria é insustentável. O autor parte de uma ideia falsa: a de que é sempre possível
deduzir do fundamento do preceito jurídico os limites do seu âmbito de aplicação espacial. Na
maioria dos casos, nenhuma conclusão positiva poderá extrair-se, a tal respeito, da análise do
escopo da regra de direito ou da sua ratio.
A teoria de Currie, fazendo do interesse do Estado o elemento predominante e da análise
desse interesse o único critério a seguir na busca da solução do conflito de leis, esquece por
completo a intenção primordial do DIP, que é assegurar protecção às situações jurídicas
interindividuais plurilocalizadas.
É ao interesse dos indivíduos e das comunidades vitais que eles constituem, não ao do
Estado, que cabe aqui primazia. Não é que o interesse do Estado seja elemento irrelevante em
tal matéria. No entanto, esse elemento assume um carácter nitidamente excepcional.
(Pág. 161)
82. Há, porém, regras que, por corresponderem a um interesse fundamental da organização
política, social ou económica do Estado, não podem achar-se sujeitas às normas gerais do
sistema do DIP. Tais regras são as denominadas regras de aplicação imediata ou necessária.
Elas são de aplicação obrigatória para os tribunais do respectivo Estado, para além dos limites
estabelecidos pelas regras de conflito gerais do sistema nacional do DIP. Simplesmente, a
aplicabilidade dos referidos preceitos pressupõem que entre o “caso” e a lex fori se verifique a
conexão que eles próprios estabeleçam ou que se deduza do seu fim.
Esta categoria normativa é constituída por preceitos de direito material, público ou
privado, cujo objectivo reside na tutela de interesses de grande relevância da comunidade
local, tutela que não se compadece com a aplicação de uma lei que não seja a lex fori. Trata-se
de normas que querem ser aplicadas sempre que entre o «caso» e o respectivo ordenamento
jurídico exista uma conexão estreita. Não lhes é alheia a necessidade de uma conexão;
simplesmente, a conexão requerida (e suficiente) não coincide com a fixada pela norma de
conflitos relativa à matéria em causa: é uma conexão específica.
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São normas que demarcam elas próprias o seu campo de aplicação; constituem uma espécie
do género «normas espacialmente autolimitadas, também designadas leis de police.
Segundo Francescakis, esta categoria de normas seria formada por aquelas leis cuja
observação é necessária à salvaguarda da organização política, social ou económica do país.
Deparam-se-nos tais normas principalmente no campo da legislação de carácter económico-
financeiro.
O reconhecimento da classe das normas de aplicação imediata ou necessária da lex fori,
como categoria autónoma relativamente às regras de conflitos, teve lugar na Lei de Introdução
ao CCiv. Alemão (art. 34.°), Lei Federal Suíça (art. 18.°) e Regulamento Roma I, relativo à lei
aplicável às obrigações contratuais.
Questão duvidosa é saber se tais preceitos continuam a ser aplicáveis quando pertençam
a uma legislação que não é a do Estado do foro. Duas hipóteses são de considerar:
a) essa legislação é a declarada competente pela norma de conflitos da lex fori (lex causae);
b) ela é a de um terceiro Estado.
Na primeira hipótese, parece que o único limite à atendibilidade dos preceitos em causa
consiste em serem eles repelidos pelos princípios de ordem pública internacional do Estado do
foro. Na outra, a posição tradicional é a da não atendibilidade.
O problema da relevância a conceder, para efeito da solução dos conflitos de leis, ao
conteúdo e escopo dos preceitos jurídico-materiais não se põe apenas em relação às normas
de aplicação necessária ou imediata, mas em relação a todas as normas especialmente
condicionadas ou autolimitdas.
Sirva de exemplo o caso Kaufmann v. American Youth Hostels, Inc.. Na acção de perdas e
danos baseada num acidente mortal ocorrido no Oregon, numa excursão promovida e
realizada por aquela instituição beneficente, a ré alegou que essa sua qualidade, em face da lei
do Oregon, a isentava de responsabilidade pelos danos causados a terceiros por facto
imputável aos seus empregados ou agentes. Em Nova Iorque, Estado onde o processo corria os
seus termos, tal imunidade já tinha sido abolida nessa época. No entanto, o tribunal
considerou aplicável a lei do lugar do acidente e julgou procedente a acção. A referida
imunidade só se referia às instituições sediadas no Oregon ou que, pelo menos,
desenvolvessem de modo relevante as suas actividades específicas.
A norma especial em questão era inaplicável no caso concreto – e o tribunal, partindo
desta constatação, deveria ter recorrido ao direito comum dessa lei; de onde resultaria a
condenação da ré, por se acharem presentes todos os pressupostos gerais da obrigação de
reparação civil.
Teoria de Albert Ehrenzweig
Albert Ehrenzweig, autor germânico radicado nos EUA, desenvolveu uma teoria
efectivamente ancorada no primado do foro. Para ele todas as soluções correntes do DIP
assentam numa construção que vem dos estatutários. Este autor ir-se-á distinguir pelo aceso
combate que moverá contra o Restatement of Conflict of Laws – a codificação das regras do
DIP americano – e pela propositura de uma solução que vê na lex fori a regra geral e o método
adequados para a resolução dos problemas internacionais.
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Ehrenzweig não rejeita as regras de conflito tradicionais, antes salienta que elas são
vinculativas para o juiz. São normalmente criadas em função dos precedentes jurisprudenciais
e não legislativamente e pouco adiantam para a resolução dos problemas concretos. Os juízes
aplicam a lei do foto sem para tanto terem feito funcional uma qualquer regra de conflitos: são
os casos que ele classifica de fórum rule by non choice, nos quais os tribunais fazem funcionar
um conjunto de expedientes para lograr a aplicação da lex fori. Daí a sua conclusão quanto ao
carácter básico ou residual deste ordenamento na solução dos conflitos de leis. O autor
pretende ser coerente com a matriz inspiradora do seu pensamento: se a uniformidade total
de decisões é impossível, em lugar de ficcionar como ponto de partida uma igualdade entre as
várias ordens jurídicas que depois se vem a negar na prática por múltiplos meios, vale mais
reconhecer à lex fori o seu autêntico papel da lei básica, ou residual, o que para além de evitar
a sobrevalorização de regras e excepções permitirá articular as polices do foro que demandam
a aplicação da lei estrangeira.
Ehrenzweig entende que deve partir-se da lex fori e que a sua vontade de aplicação ao
caso concreto será sempre decisiva. Na falta daqueles critérios de decisão uma de três
hipóteses seriam possíveis: ou se verifica que a lei material do foro não pretende abranger
aqueles casos, ou se conclui que ela é susceptível de generalização mesmo para eles, ou,
finalmente, se afigura claro que é do interesse da própria lei do foro que se aplique uma regra
estrangeira. Em cada uma destas situações a pedra de toque para a decisão seria sempre a
policy da regra material do foro.
O acolhimento a esta posição de Ehrenzweig foi dispensado e contra ela foram desferidas
algumas violentas críticas.
Direito Internacional Privado e a Constituição – R. Moura Ramos
10. Possuídos de uma verdadeira obsessão metodológica, de uma não menor incerteza quanto
aos fins do DIP e de uma descrença absoluta nos processos tradicionais, os autores americanos
da altura vão desenvolver ideias autenticamente derrotistas a propósito da natureza, fins e
processos de actuação do DIP. A fúria destruidora que então se ergue contra as teorias
tradicionais atinge o auge, quanto aos aspectos que por agora nos ocupam, com um brilhante
ensaio de David Cavers.
11. Para compreender a conflits revolution americana dois pólos importa conhecer antes do
mais: por um lado, o objecto da crítica, na circunstância a doutrina dominante em matéria de
DIP, representada nomeadamente por Joseph Beale, o autor do primeiro Restatement of
Conflict of Laws; por outro, o padrão em relação ao qual a realidade teórica era apreciada e em
nome do qual ela se via repudiada: no caso, uma certa forma de pensar o Direito.
Story e a escola holandesa seguem um princípio formal, segundo a qual a validade das
leis, enquanto ordens do legislador, seria exclusivamente territorial, isto é, limitada ao
território onde se exercesse a autoridade da qual elas tinham emanado.
Para Joseph Beale é indiscutível o carácter territorial do direito e a consequente
impossibilidade de aplicação no foro da lei estrangeira. Os vested rights (direitos adquiridos no
estrangeiro) só relevam para o Estado do foro enquanto pressuposto necessário da criação no
próprio foro, e através de uma norma sua, de um direito de idêntico conteúdo.
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São assim meros factos despidos de qualquer relevo jurídico autónomo, ainda que a sua
existência seja indispensável para que no foro se possa criar, com uma norma deste estádio,
um direito de conteúdo análogo.
A validade no foro de direitos e situações constituídos (as) no estrangeiro depende de
terem sido criadas pela lei a que a regra de conflitos atribui a correspondente competência.
(págs. 53 a 58)
13. É a Cavers quem dá o grande salto em frente que a aplicação ao DIP da escola realista
proporcionava. Neste processo clássico, o juiz é absolutamente indiferente ao conteúdo da lei,
ao fim desta e aos resultados da sua aplicação. Descoberta a ordem jurídica que a regra de
conflitos entende dever ser aplicável ao caso, o juiz nada mais tem a fazer que aplicá-la sem
mais.
Os inconvenientes deste processo são conhecidos, nomeadamente à luz da análise que do
Direito faz a escola realista.
O erro do processo tradicional seria o de procurar conectar os problemas legais a
legislações nacionais em vez de se interessar por resolver os casos de forma justa.
Perante um caso concreto da vida internacional, o juiz deveria analisá-lo nas suas ligações
legislativas possíveis e comparar cuidadosamente as várias leis que lhe poderiam ser aplicadas
e os resultados concretos que dessas aplicações adviriam.
Depois, haveria que comparar os resultados à luz das estritas considerações de justiça e dos
imperativos de interesse social veiculados pelas leis em confronto. Só após esta averiguação se
escolheria a lei que de acordo com estes cânones conduzisse ao resultado mais justo.
O radicalismo destas propostas, no entanto, se correspondia aos ditames doutrinários de
que o seu autor se reclamava, vinha contudo perturbar o desenvolvimento das relações
internacionais, na medida em que deixava as partes totalmente às escuras quanto à lei que
viria a ser aplicada às suas relações, abandonada a escolha desta ao sentimento de justiça
material do juiz. É talvez devido a isso que em obras posteriores Cavers vem a inflectir
sensivelmente o rumo do seu pensamento. Em The Choice-of-Law Process o autor admite a
actuação no DIP de regras de escolha da lei aplicável – os «princípios de preferência» - ainda
que na qualidade de meros princípios directores. Princípios esses, no entanto, muito
semelhantes às regras de conflitos clássicas pois que não só limitavam o círculo de leis de onde
se faria a escolha, como, ao proceder a esta, se servem não só de considerações que tomam
em conta o conteúdo das leis em presença como de outras que o negligenciam. (págs. 50 a 61)
Secção II
A publicização (ou «ideologização») do DIP
38. As tendências que vão ser referidas caracterizam-se pelo corte radical com a pretendida
imagem neutral do DIP e por sustentarem que também ele deve estar abertamente
comprometido com a realização de fins que, sedo os do Direito em geral ou os das normas
singulares que o concretizam, longe de se poderem conceber desenraizados de opções de
fundo sobre o homem e a sociedade, terão de as veicular muito claramente.
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Assiste-se à afirmação frontal de que o DIP serve também, ainda que à sua maneira, os
mesmos objectivos a que se dirigem os outros sectores do jurídico e que a imagem tradicional
da nossa disciplina, com a sua indiferença, a sua neutralidade, está viciada desde a base.
Acentua-se uma identificação dos fins do DIP às metas da sociedade e do Estado,
retirando-o do universo metapolítico em que se situava e responsabilizando-o pelas tarefas de
construção e transformação que são as do Estado e do Direito.
Longe de se poder situar na posição de mero árbitro de um litígio que se desenrolaria
entre os ordenamentos jurídicos, o DIP é autêntica parte na lide e a sua tarefa é a de actuar
por todas as formas a ideia que preside à tarefa de modelação social que as suas normas
também encerram, não podendo dispensar-se de a cumprir ou desinteressar-se de promover
soluções que quadrem com as intenções normativas que serve.
A. A «governmental interest analysis» de Currie
39. A posição de Currie sobre o DIP filia-se no contexto de renovação doutrinal empreendido
nos EUA a partir dos anos 30 que pretende estender também à nossa disciplina os processos
metodológicos da escola do realismo jurídico.
Para Currie o conflito de leis é uma consequência da interferência recíproca da esfera de
aplicação das várias leis nacionais. O autor vê aqui, retomando uma concepção de lei que tem
fortes atinências com a desenvolvida pela escola holandesa do séc. XVII, um conflito de
interesses estaduais.
O problema do DIP não poderia ser concebido de forma neutra, como se importasse apenas
estabelecer o âmbito de aplicabilidade de cada lei, mas tem antes de ser visto como uma
questão que contende com os interesses estaduais, e é portanto um problema político – o que
está em causa é determinar qual o interesse estadual que há-de prevalecer. Para Currie a
questão é um verdadeiro conflito de interesses estaduais e a sua resolução, qualquer que ela
seja, implicará sempre o sacrifício de um ou mais interesses desta natureza. Este é o núcleo da
problemática. Optou por construir um sistema de resposta – o chamado método conflitual –
que é em si mesmo uma fonte acessória de novas perturbações na matéria em causa.
Cria problemas que não existiam antes, nomeadamente naqueles casos em que não
havendo conflito de interesses estaduais, a questão continua a ser posta e resolvida em
termos de conflitos de leis. Apesar da barragem teórica no sentido da «formalização» dos
problemas conflituais, o certo é que em muitos casos se promove de facto a aplicação de uma
lei – a do foro – para tanto se lançando mão de expedientes (como a ordem pública, a fraude à
lei, a qualificação…) que, se são eventualmente os responsáveis pela sobrevivência do sistema
até aos nossos dias, não deixam de o complicar extraordinariamente, nele introduzindo contra
as intenções e propósitos proclamados a imprevisão e a incerteza. Finalmente, se há vários
Estados com diferentes políticas e interesses igualmente legítimos na aplicação das suas leis, o
tribunal é uma instância que não está em condições para ponderar o peso relativo dessas
políticas e decidir-se, por si, pela aplicação de uma delas; e isto porque, aplicando a lei
estrangeira, o juiz estaria a optar pela não promoção do seu interesse próprio. Tal função,
sendo marcadamente política, não pode em democracia pertencer ao poder judicial mas sim
ao poder legislativo.
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40. Preconizando embora a proscrição das regras de conflitos no seio do DIP, Currie não segue
Cavers na defesa da escolha de uma solução em função do resultado da aplicação de cada uma
das leis em presença.
Tal método incorreria no vício de passar ao lado, ignorando-a, da função que o autor atribui
em primeira linha ao DIP. Se o conflito de leis é, essencialmente, um conflito de políticas e
interesses estaduais, a sua solução tem de passar pela análise detalhada dessas políticas e
interesses, só depois se podendo definir uma via de resolução da questão.
Determinada a policy de cada norma e os interesses por ela visados a solução do
problema do DIP aparece facilmente: onde e quando o Estado do foro manifesta interesse na
aplicação da sua lei é a lei do foro que será aplicada; só quando não se verificar esta hipótese é
que haverá lugar à aplicação da lei estrangeira que no entanto só tem lugar quando se conclua
que ela manifesta interesse em se aplicar ao caso concreto. Restam as situações em que não
há interesse nem da lex fori nem da lei estrangeira em regular o caso. Aqui, porque não existe
qualquer interesse estatal em jogo, Currie sustenta ser preferível a aplicação da lei do foro.
Esta doutrina, apesar da aceitação nos EUA foi alvo de críticas da doutrina europeia.
41. As críticas à teoria de Currie dão-se precisamente no sentido da viragem que ele pretende
operar no DIP clássico, no que para ele é o núcleo da disciplina. Não se crê que Currie seja um
unilateralista, com a particularidade de que fixa o âmbito de aplicação das normas de direito
ab intrínseco, isto é, através delas mesmas, e não ab extrínseco, através de regras de conflitos.
Trata-se de um universalismo selvagem.
Para este autor não há lugar no DIP para o cálculo de interesses privados, ao contrário de
toda a teoria tradicional do conflito de leis que afirmava serem precisamente estes interesses
– o interesse das partes na previsibilidade da lei que em qualquer lugar lhes pudesse vir a ser
aplicada, o que conduziria à harmonia jurídica internacional e à importância que no DIP lhe é
conferida – a mola dinamizadora e o escopo de toda a actividade conflitual.
Ele procura preencher o vácuo resultante da perda dos interesses privados do domínio do
DIP com a redução deste à situação de instrumento de extensão ao plano internacional das
policies incorporadas nas leis internas.
O problema do conflito de leis tem de ser entendido, neste contexto, como o da
determinação de qual o interesse estadual que em cada caso deva prevalecer. Daí a facilidade
com que Currie resolve os problemas, apenas admitindo a aplicação da lei estrangeira onde e
quando a policy do Estado do foro não tenha interesse em se efectivar.
Encontramo-nos perante uma construção onde não é já a permeabilidade do DIP a
vectores públicos que está em causa, mas a sua exclusiva subordinação a valores desta
natureza. O DIP já não é mais nem um direito neutro nem um direito privado, mas, acima de
tudo, o veículo de extensão às relações internacionais das concepções e dos valores que
iluminam a vida jurídica interna e que se encontram consagrados nas suas regras legais. (Pág.
132 a 139)
…
48. A lex fori sempre se viu favorecida em relação à lei estrangeira no que toca ao âmbito de
aplicação que a cada uma é reconhecido. Mesmo os sistemas conflituais que professam o
princípio da bilateralidade das regras de conflitos e defendem o princípio da paridade de
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tratamento das várias ordens jurídicas e que, por esse facto, deveriam fazer depender a
aplicação das leis ao caso concreto de critérios universais, que funcionassem de igual forma
quer se referissem à lei do foro quer a uma lei estrangeira, não deixaram jamais de reconhecer
aos comandos da lex fori ou aos princípios que os informavam um lugar especial no quadro da
regulamentação das relações internacionais.
A lex fori aparece-nos como um princípio de solução do conflito de leis e não já como um
dos resultados a que se pode chegar por aplicação de critérios próprios do DIP.
A primeira construção teórica deste tipo foi a do norte-americano Walter Cook e insere-se
na escola do realismo jurídico. Descrente no jogo mecanicista das regras de conflitos, e
colocado perante a evidência de que os Estados acabavam muitas vezes nas relações com
elementos estrangeiros por aplicar o seu próprio direito, Cook sustenta que o juiz não aplica
em alguma circunstância o direito estrangeiro, mas o seu próprio, ainda que crie regras ad hoc
inspiradas nos comandos estrangeiros. Todavia, saltam à vista o irrealismo e o artificialismo
desta doutrina que acaba por nada acrescentar à situação anterior.
Albert Ehrenzweig, autor germânico radicado nos EUA, desenvolveu uma teoria
efectivamente ancorada no primado do foro e constituída em bases que fogem ao dedutivismo
de que Cook se tentara distanciar.
Distinguiu-se pelo combate que moveu contra o Restatement of Conflict of Laws – a
codificação das regas de DIP americano - e pela propositura de uma solução que vê na lex fori
a regra geral e o método adequados para a resolução dos problemas internacionais.
Partindo embora da lex fori, Ehrenzweig não rejeita as regras de conflitos tradicionais,
antes salienta que elas são vinculativas para o juiz.
No entanto, em seu entender, estas além de em muito pequeno número, são normalmente
criadas em função dos precedentes jurisprudenciais e não legislativamente e pouco adiantam
para a resolução dos problemas concretos. Fora dos casos em que os problemas se resolvem
por aplicação destas regras haveria que recorrer à elaboração teórica. Na maioria dos casos os
juízes aplicam a lei do foro sem para tanto terem feito funcionar uma qualquer regra de
conflitos: são os casos que ele classifica de fórum rule by non choice, nos quais os tribunais
fazem funcionar um conjunto de expedientes (tais como a ordem pública, a classificação de
diversos institutos de natureza processual, a defesa da ideia de que certas leis fogem ao
conflito de leis) para conseguir a aplicação da lex fori. Daí a sua conclusão quanto ao carácter
básico ou residual deste ordenamento na solução dos conflitos de leis.
Um dos problemas situa-se ao nível de uma mera técnica de substituição da lei do foro
pela lei estrangeira e da determinação dos casos em que tal troca terá lugar. Na ausência de
regras que resolvam esse problema, Ehrenzweig entende que deve partir-se da lex fori e que a
sua vontade de aplicação ao caso concreto será sempre decisiva. Na falta daqueles critérios de
decisão uma de três hipóteses seria possível: ou se verifica que a lei material do foro não
pretende abranger aqueles casos, ou se conclui que ela é susceptível de generalização mesmo
para eles, ou, finalmente, se afigura claro que é do interesse da própria lei do foro que se
aplique uma regra estrangeira. De qualquer forma, e em cada uma destas situações (que
acabariam afinal por serem reduzidas, e de todo o modo sempre aquelas em que a solução
preconizada não prejudica as expectativas das partes) a pedra de toque para a decisão seria
sempre a policy da regra material do foro. (pág. 159 a 164)
Direito internacional privado e constituição, R. Moura Ramos
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48
Capítulo III
A justiça do DIP
23. O facto operativo e a consequência jurídica do DIP. Justiça material e justiça conflitual. A
consequência jurídica própria do Direito de Conflitos traduz-se na «aplicabilidade duma
determinada ordem jurídica estadual» à resolução de certa questão jurídica concreta de
direito privado material.
Em princípio, o Direito de Conflitos abstrai do tipo ou natureza dos factos a regular, para
atender apenas à sua concreta «localização» (no tempo ou no espaço).
Uma fórmula que se proponha oferecer a solução de problemas de conflitos de leis há-de
ter forçosamente uma estrutura diversa da da norma jurídica corrente no Direito Material.
Esta descreve na sua hipótese factos típicos, verificados os quais se segue a estatuição ou
consequência jurídica. Os elementos de facto relevantes para o Direito de Conflitos não podem
ser os mesmos que relevam para fins de Direito Material.
Este reporta-se a factos típicos da vida, ao passo que aquele atende à concreta «localização»
dos mesmos factos no tempo ou no espaço. A regra básica de Direito de Conflitos reporta-se à
localização concreta do facto ou relação da vida, pois também nas hipóteses em que o
elemento de conexão não nos é fornecido pelo «localização» directa do facto ou relação mas
pela sua «localização» indirecta, isto é, pela conexão existente entre um dado elemento da
situação de facto e dado sistema jurídico (p. ex., nacionalidade ou domicílio das partes, etc.), a
regra básica de conflitos de leis continua a reportar-se àqueles factos concretos que, por se
acharem integrados na situação que está ligada àquele sistema por um dos seus elementos,
com ela se devem entender conjuntamente «localizados» no domínio de aplicabilidade de tal
sistema.
O facto operativo da consequência de Direito de Conflitos é o elemento de conexão. O
Direito de Conflitos é um «direito de conexão» e «a função de conexão é a função típica da
norma de DIP». Portanto, a conexão (concreta) é o facto que produz a dita «consequência» de
Direito de Conflitos. Não se trata de um facto jurídico como qualquer outro, por isso mesmo
que o seu efeito não se traduz numa alteração das situações jurídicas subjectivas (constituição,
modificação ou extinção duma relação jurídica), mas apenas na determinação do sistema
normativo pelo qual se deverá determinar o efeito jurídico do facto ou situação de facto em
causa.
É uma dupla circunstância que caracteriza o tipo de justiça próprio do Direito de Conflitos,
bem como o seu modo de actuação: por um lado, depender a «consequência jurídica», não
dos factos como tais, mas da sua «localização»; por outro lado, consistir essa consequência
jurídica, não numa alteração no mundo das situações jurídicas subjectivas originada pelos
factos de cuja «localização» se trata, mas na atribuição da competência para regular esses
factos a um dado sistema de normas. A valoração jurídico-material dos factos da vida não é
com o Direito de Conflitos, mas com a lei por ele designada como competente: Direito de
Conflitos e Direito Material situam-se em planos distintos, e aquele deve abstrair, em
princípio, das soluções dadas por este aos casos da vida. O Direito de Conflitos, não tendo a
ver com as valorações de justiça material, só pode propor-se um escopo de justiça formal,
consistente fundamentalmente em promover o reconhecimento dos conteúdos de justiça
material que «impregnam» os casos da vida imersos em ordenamentos jurídicos diferentes do
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ordenamento do foro, a fim de salvaguardar as naturais expectativas dos particulares e realizar
os valores básicos da certeza e segurança jurídicas.
Lições de DIP - Baptista Machado
Codificação do DIP (Ferrer Correia)
5. Entre o pensamento jurídico norte-americano dos nossos dias e o pensamento europeu
tradicional existe um grave dissídio quanto a pontos fundamentais da nossa disciplina.
Como na Europa, também nos EUA se acreditou ser possível regular o conjunto da
matéria dos conflitos de leis através de regras de conteúdo rígido: as choice-of-law rules. O
primeiro Restatement continha algumas dessas regras. Já porém os tribunais usavam de certa
liberdade e flexibilidade na aplicação das referidas normas, quer corrigindo, quer lançando
mão para o mesmo fim de soluções diferentes da decorrente da regra de conflitos.
Foi neste quadro, e quando já se preparava a revisão do Restatement, que surgiu na cena
o caso Babcock versus Jackson. Segundo a norma de conflitos tradicional, a questão jurídica
que aí se levanta – a da responsabilidade do condutor e proprietário do veículo, em caso de
acidente, pelos danos causados ao passageiro transportado gratuitamente – deveria resolver-
se conformemente à lei do lugar da verificação do dano.
Com efeito, se a disposição especial da lei do Ontário se destina a evitar conluios entre o
causador e a vítima do dano em detrimento das companhias de seguro e por outro lado, a
desencorajar a ganância das pessoas transportadas gratuitamente em automóvel alheio, pode
perfeitamente defender-se que tal disposição de lei “não abrangia implicitamente um acidente
que, embora verificado no Ontário, coenvolvia unicamente viajantes estrangeiros e não dizia
respeito a companhias seguradoras do Ontário”. O automóvel dos Jackson era de matrícula
nova-iorquina e o seguro de responsabilidade a ele respeitante fizera-se em Nova Iorque. Isto
permite conjecturar que se o pedido de indemnização tivesse sido apresentado a um tribunal
canadiano, este o teria atendido. Este caso reforçou e generalizou a descrença nas regras de
conflito tradicionais.
6. O caso Babcock vs Jackson e o Restatement Second são dois momentos extremamente
significativos naquilo a que já se chamou uma revolução no pensamento jurídico norte-
americano em matéria de conflitos de leis. Contesta-se que o problema do DIP deva pôr-se em
termos de problema de escolha de lei. É a própria ideia da norma de conflitos que entra em
crise.
À questão de saber se é por intermédio de regras de conflitos do tipo clássico que deve
prover-se à regulamentação das relações privadas de carácter internacional, tinha Cavers
respondido negativamente. Cavers censura o sistema da regra de conflitos e o seu
desinteresse pela solução a dar ao caso concreto. As regras de conflitos são regras de aplicação
mecânica. O conflito de leis deve ser encarado não como um conflito entre ordens ou sistemas
jurídicos, senão como um antagonismo ou oposição concreta entre preceitos materiais: os
preceitos que disputam entre si a regulamentação de certo caso. O problema do DIP não é um
problema de escolha entre sistemas de direito, mas entre regras materiais.
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§ 3º
Aproximação entre a doutrina europeia e a perspectiva americana
13. Entre as características principais da perspectiva americana contam-se, além da tendência
para o abandono conflitual – tendência que se encontra nos escritos de Cavers e Currie -, a
ideia do primado da lex fori (Ehrenzweig) e a propensão para atribuir um relevo importante, na
resolução dos conflitos de leis, ao factor representado pelo conteúdo e fundamento das regras
materiais em colisão. É também de sublinhar a existência de uma poderosa corrente, que se
manifesta sobretudo ao nível das decisões judiciais, favorável ao sistema das soluções
casuísticas. Esta tendência é fortemente encorajada pela feição impressa ao 2º Restatement:
sendo certo que as regras do Restatement são na sua maioria open-ended open-ended Rules,
«no futuro imediato, haverá poucas coisas que os tribunais possam fazer além de decidir cada
caso à luz dos critérios fundamentais que estão na base do direito de conflitos e que a secção
6ª do Restatement of Conflict of Laws enuncia».
14. A imagem que construíram desta doutrina os seus opositores norte-americanos pode não
corresponder inteiramente à realidade. É que muita coisa mudou, no pensamento jurídico
europeu sobre os conflitos de leis, dos anos trinta para cá.
A doutrina clássica vê o DIP como algo formal, dotado de uma teleologia peculiar que
aponta para a designação da lei ligada à situação da vida pelo laço mais forte, desinteressando-
se da maneira como essa lei possa dirimir o conflito de interesses. Sendo assim as coisas, a
distância que separa as duas concepções constitui realmente um fosso intransponível.
Nem a perspectiva americana, sobretudo tendo em conta os últimos trabalhos de Cavers
e a orientação do Restatement (Second), se pode definir por uma atitude de radical adesão a
uma ideia de escolha de lei em função do resultado, nem tão pouco a doutrina europeia actual
se mostra totalmente avessa a tomar em consideração, para boa resolução dos conflitos de
leis, as exigências da justiça material e o conteúdo e finalidades das normas a aplicar.
15. Dentro do esquema clássico – sistema de regras de conflitos bilaterais ou multilaterais -,
por vários modos são chamados a influir na resolução do conflito de leis os critérios de justiça
material e o conteúdo e fins das normas em competição.
A) No próprio momento da construção das normas de conflitos. O DIP possui uma justiça
própria, uma justiça diferente da do direito material. Nada obsta a que em certos casos a
própria justiça material invada o território do DIP.
I – É o que se passa com aquelas regras de conflitos que se propõem ou preservar a validade e
eficácia dos negócios jurídicos, ou facilitar a constituição de estados de família, ou defender
determinadas liberdades jurídicas, nomeadamente a da mulher casada para a prática de actos
jurídicos e a dos cônjuges para dissolverem o vínculo matrimonial.
a) Ao formular a norma de conflitos, o legislador é por vezes movido pelo propósito de
preservar a validade e eficácia de certos negócios jurídicos ou mesmo dos negócios jurídicos
em geral.
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Criará então uma norma de conexão múltipla alternativa, isto é, uma regra que consigne várias
conexões, todas em princípio relevantes, devendo prevalecer em cada caso aquela por via da
qual se alcance o resultado desejado: a validade e eficácia do acto.
No Código Civil português encontramos algumas normas deste tipo. O art. 65º, nº 1 diz
que as disposições por morte são válidas, quanto à sua forma externa, se obedecerem às
prescrições de uma ou outra das seguintes leis: a do lugar onde o acto foi celebrado, aquela
para que remeta a regra de conflitos da lex loci e ainda a lei pessoal do autor da herança, quer
no momento da declaração quer na do falecimento. Semelhante é a norma do art. 36º, que
indica a lei reguladora da forma das declarações negociais em geral: olhando ao disposto nesse
texto, conclui-se que o negócio jurídico será válido, pelo que toca à sua forma, contanto que
assim seja considerado quer pela lei que rege a sua validade intrínseca, quer pela lei em vigor
no lugar onde é feita a declaração, quer ainda por aquela para onde remeta a norma de
conflitos da lex loci; a menos que a primeira das leis indicadas exija a observância de uma
forma determinada, ainda que o negócio seja celebrado em país estrangeiro.
Em qualquer dos casos trata-se de uma escolha de lei em função do resultado,
constituindo aí o resultado pretendido na validade e eficácia de um negócio jurídico.
Caso semelhante é o daquelas regras de conflito – como a do art. 28º do Cód. Civil – que
substituem à norma da lei declarada competente a norma de outra lei (lei do lugar da
celebração de um negócio jurídico, quando ela seja a lex fori), sempre que aquela primeira
norma conduza a certo resultado, que se reputa inconveniente.
Sendo a lei designada para regular a capacidade dos contraentes a do respectivo Estado
nacional, um estrangeiro celebra no Estado do foro um contrato sem ter para tanto, segundo a
lei daquele primeiro Estado, a capacidade requerida; acontece que o citado contraente teria
essa capacidade em face dos preceitos da lex fori, se acaso ele fosse um cidadão do Estado do
foro. Em tal hipótese, a disposição da lex fori em virtude da qual o contrato seria válido afasta
a da lei estrangeira competente, aplicando-se em vez dela. Mas para tanto requer-se que o
contrato tenha sido celebrado no território do Estado do foro, que ele constitua uma operação
integrada no comércio jurídico local e que a sua validação corresponda à necessidade de
conceder protecção adequada à boa fé do outro contraente.
b) Outro grupo é constituído por aquelas regras de conflitos que visam facilitar a constituição
de certos estados de família.
c) Há também normas de conflitos que, uma vez feita a indicação de várias leis, mandam que
se proceda à aplicação daquela que defenda de modo mais cabal determinadas liberdades,
como a liberdade da mulher casada para a prática de actos jurídicos independentemente de
autorização do marido. A lei declarada em princípio competente cede o seu lugar a outra lei,
sempre que esta substituição tenha por consequência o reconhecimento da capacidade (ou da
plena capacidade) da mulher casada.
Outras vezes o valor que se defende é ainda a liberdade, mas a liberdade de dissolver o
vínculo matrimonial através do divórcio (exemplo pág. 52).
II – Certas regras de conflitos oferecem a particularidade de conceder preferência à lei que
melhor proteja determinada pessoa.
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Algumas delas limitam-se a estabelecer uma segunda conexão para a hipótese de a lei indicada
em primeiro lugar não reconhecer determinado direito; outras designam várias leis e deixam
ao juiz a escolha daquela que possa levar, no caso concreto, à melhor protecção do interesse
visado.
a) Do primeiro grupo são exemplo os arts. 5.° do Tratado Benelux e 2298.° do Projecto francês.
b) Do segundo grupo de normas citam-se o art. 17.° da Lei húngara de 1952 e o art. 24.°, nº 1,
da Lei checoslovaca. Ambos os textos consagram se ocupam do problema da lei reguladora das
relações entre pais e filhos, consagrando o sistema da escolha da lei mais favorável ao filho; se,
porém, este residir habitualmente no Estado do foro e a lei deste Estado lhe for mais benéfica,
será aplicada esta lei.
Neste quadro de conformidade com os “princípios de preferência” de Cavers relativos à
responsabilidade extracontratual, deverá optar-se em certos casos e termos pela lei que
melhor protecção conceder à vítima do dano.
16. Todos os casos passados em revista constituem, sem sombra de dúvida, concretizações de
uma ideia de escolha de lei em função do resultado. Segundo Cavers, a previsibilidade das
decisões judiciais não será gravemente afectada, ao contrário do que inevitavelmente
aconteceria se a determinação do sistema jurídico aplicável ao caso concreto fosse deixada ao
arbítrio do juiz, ou seja, se não houvesse qualquer norma de conflitos a balizar o círculo das
leis aplicáveis em alternativa, sendo o juiz livre de escolher aquela que levasse ao resultado
por ele mesmo reputado mais conveniente.
As normas de conflitos do tipo indicado não chegarão a representar ameaça relevante
para a harmonia jurídica internacional, mas só na medida em que possa entender-se que tais
regras são susceptíveis de aceitação por parte de todos os Estados.
A ideia de proceder à determinação da lei aplicável tendo em conta o conteúdo dos
preceitos materiais em conflito não é uma ideia estranha ao DIP europeu actual. Esta
circunstância poderá desempenhar o papel de importante traço de união entre os sistemas
conflituais do tipo europeu e a perspectiva americana.
70. O método tradicionalmente adoptado em DIP que é designado por método conflitual,
caracteriza-se pela utilização de normas, as chamadas regras de conflitos do DIP. A função
dessas regras é indicar o elemento da factualidade concreta, por intermédio do qual se há-de
determinar a lei aplicável às várias situações da vida. Na sua feição clássica, as regras de
conflitos são normas de conteúdo rígido, hard-and-fast Rules, isto é, normas que vinculam o
juiz a utilizar um elemento de conexão pré-determinado, ou determinável a partir de critérios
enunciados pela própria norma, sempre que se lhe apresente uma questão jurídica do tipo
correspondente à respectiva previsão. Contudo, ao lado dessas normas de tipo clássico, vêm
abrindo caminho as denominadas open-ended Rules (regras abertas ou flexíveis).
São regras que concedem ao julgador ampla liberdade na fixação, em cada caso, da
conexão mais apropriada.
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53
Outras normas determinam a conexão em princípio relevante – por exemplo, em matéria
de danos causados à pessoa, ou à propriedade de coisas móveis, essa conexão é o lugar onde
se tenha verificado o dano – mas permitem a aplicação de outra lei, quando se mostre que a
situação concreta sub judice se encontra mais fortemente ligada com ela.
Também no CC português (arts. 52.°, nº 2 e 55.°), na Lei alemã de 1986 e na Lei italiana de
1995 se encontram disposições que em matéria de relações entre os cônjuges e de efeitos
gerais do casamento e de divórcio remetem a título subsidiário para a lei da conexão mais
estreita.
O contrato é regido pela lei escolhida pelas partes. Na falta de escolha, pela lei com a qual
a relação tenha a conexão mais estreita, presumindo-se que essa lei é a da residência habitual
da parte a quem incumbe a prestação característica do contrato (art. 4.°, nº 2 da Convenção de
Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais). Quando, porém, o contrato tiver
por objecto um direito real sobre um imóvel ou um direito de uso sobre um imóvel, presume-
se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa (art.
4.°, nº 3). Se a prestação característica do contrato não for válida, volta-se ao princípio da
conexão mais estreita.
É na Lei federal suíça de 18 de Dezembro de 1987 sobre o DIP que se encontra a
expressão mais acabada da tendência para não sujeitar o julgador a regras de conflitos rígidas,
permitindo-se-lhe o recurso a uma lei que ele entenda ter com o caso a ligação mais estreita.
Consagra-se a cláusula geral de excepção em DIP. Os inconvenientes desta cláusula sob o
ponto de vista da certeza do direito e da previsibilidade das decisões judiciais saltam aos olhos.
71. As ideias expostas têm sido vivamente contestadas nos últimos tempos. A onda de
contestação procede sobretudo dos EUA. As críticas visam a própria legitimidade ou
adequação do método utilizado pelo DIP para cumprir a missão que lhe é assinada.
Primeiro, sublinha-se a dificuldade, quando não impossibilidade, de em muitos casos se
apurar a conexão mais estreita ou mais significativa da relação jurídica. Apontam a dificuldade
de identificar a conexão decisiva em cada uma dessas matérias (e outras), atentos os fins
gerais do DIP e os interesses que mais relevam em cada um dos seus sectores.
Outra objecção consiste na alegada impropriedade das normas de direito interno para
regular as situações internacionais, situações cujos problemas específicos aquelas normas
ignoram, pois não foram elaboradas tendo em conta tais problemas.
Apontam-se ainda as dificuldades que surgem no processo de aplicação da regra de
conflitos. São numerosos os casos em que aos interessados será extremamente difícil, senão
impossível, determinar a lei à qual a sua relação ficará sujeita.
O método descrito compromete a possibilidade de encontrar, para as situações
multinacionais, a solução materialmente mais consentânea com os seus caracteres específicos.
§ 6º
Conclusão
83. Conclui-se que as soluções metodológicas enumeradas e descritas, enquanto tomadas
como alternativas radicais ao sistema tradicional, não podem aceitar-se. Muitas delas não
pretendem substituir-se ao método da conexão, mas apenas complementá-lo.
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É o caso daquele ramo da tendência substancialista que preconiza a criação de regras
materiais avulsas ajustadas às características das situações concretas.
Apenas uma das propostas mencionadas contesta frontalmente o sistema conflitual,
chegando ao limite de prescindir, em certos termos, do requisito da conexão espacial. Essa
proposta é a de Currie (da qual se aproxima a de Ehrenzweig), mas que é considerada
inaceitável.
Em diversas hipóteses de cúmulo ou de vácuo jurídico, a única solução que se oferece é a
escolha, em função do conteúdo, de uma das normas em concurso, ou a elaboração de uma
nova regra resultante da combinação daquelas, ou ainda a adaptação de uma das leis à
especificidade do caso vertente.
O conteúdo e fins dos preceitos jurídico-materiais devem ser chamados a desempenhar
um relevante papel na resolução dos problemas do DIP.
Em vários direitos positivos deparamo-nos com normas de conflitos de carácter
substancial, que operam a escolha da lei em função do resultado. São, por exemplo, aquelas
que se propõem preservar a validade e eficácia dos negócios jurídicos e que utilizam para
tanto o recurso ao sistema das conexões alternativas. Aplicável será a lei, das várias que se
indicam, nos termos da qual o acto seja válido e eficaz. No Código Civil português existem no
art. 36.° e no art. 65.° manifestações claras deste pensamento. Outro exemplo é o da
protecção da parte mais fraca em dadas relações jurídicas.
Para além disto, o aproveitamento e a valorização do elemento constituído pelo conteúdo
e escopo dos preceitos materiais são demonstrados também pela atitude a tomar face àquela
categoria de normas e que são as normas autolimitadas.
O DIP actual assume como característica predominante, a de procurar atingir os seus
objectivos utilizando diferentes meios ou vias metodológicas. O seu método é pluralista,
multidimensional.
No fundamental, a posição definida pela doutrina clássica mantém-se inalterada. O DIP é
essencialmente direito de conflitos. As soluções dos problemas decorrentes das situações
plurilocalizadas colhem-se nos preceitos jurídico-materiais da lei com a qual a situação
concreta se achar mais estreitamente conexa.
Por outro lado, essa mais estreita conexão espacial deverá ser indicada por uma norma,
ou seja uma norma de conteúdo rígido, ou uma daquelas regras que consagram todo um leque
de opções possíveis – “open ended rules”. Tal norma deverá ser estabelecida em função dos
fins gerais do DIP, dos quais sobressai a harmonia jurídica internacional ou uniformidade de
decisões.
Lições de DIP, Ferrer Correia
17. B) A consideração do conteúdo e escopo dos preceitos jurídico-materiais releva no
momento da qualificação. Isto é válido para quem aceite a ideia de que toda a qualificação em
DIP é uma qualificação de normas, não de relações jurídicas ou de factos. O que se pretende
com o processo de qualificação é o seguinte: dada uma lei potencialmente aplicável a
determinada situação em virtude de uma regra de conflitos do foro, averiguar se as normas
dessa lei reguladoras daquele tipo de situações correspondem à categoria normativa visada na
própria regra de conflitos e expressa pelo respectivo conceito-quadro.
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Haverá que analisar à luz do seu escopo ou função sócio-jurídica os preceitos materiais cuja
aplicação está justamente em causa. Se tais preceitos considerados pelo ângulo das “políticas”
que lhes estão subjacentes, não se ajustarem às características definias pelo conceito-quadro
da norma de conflitos, terá de concluir-se pela sua inaplicabilidade.
Exemplifiquemos com o caso seguinte:
a) Art. 877.°, nº 1 – trata-se de uma norma que traduz uma certa concepção do legislador
acerca da relação entre pai e filhos e que tendo em conta esta natureza, haverá que situar no
âmbito do estatuto das relações jurídico-familiares. A aplicabilidade do preceito não será
condicionada pelo facto de ser a lei portuguesa a reguladora do contrato de compra e venda: o
elemento decisivo só poderá residir na circunstância de ser ela a lei pessoal das partes.
18. Na hipótese anteriormente focada, o problema do conflito de leis não se põe em termos
de uma opção entre preceitos materiais oriundos de ordenamentos diversos. Mas é
justamente isto o que se passa noutro tipo de situações que vamos agora analisar.
O problema é este: dois são os sistemas de direito conectados com a situação factual sub
iudice, sendo um deles (sistema A) aplicável em virtude da regra de conflitos m e o outro
(sistema B) por força da regra de conflitos n, ambas lex fori. Suponhamos que no sistema A a
norma a que caberia resolver a questão controvertida pertence, pelo seu conteúdo e função
sócio-jurídica no referido sistema, à categoria normativa da regra de conflitos m, e que o
mesmo tem de dizer-se, relativamente à regra de conflitos n, dos preceitos materiais em
princípios aplicáveis do sistema B.
Por exemplo, um indivíduo é filho natural de mãe alemã e pai polaco, tendo o pai
reconhecido o filho com o consentimento da mãe. Um tribunal alemão é chamado a
pronunciar-se sobre se o poder paternal cabe a ambos os pais ou só a um deles. Surge aqui
uma situação de cúmulo jurídico: efectivamente, enquanto segundo o direito alemão o pátrio
poder pertence unicamente à mãe, já de harmonia com a lei polaca o pátrio poder compete ao
pai e à mãe conjuntamente.
A solução da lei polaca ofende menos o direito alemão do que a solução da lei alemã
ofenderia o direito polaco. É decerto menos gravoso para a mãe sujeitá-la a exercer o poder
paternal conjuntamente com o pai, do que seria para este privá-lo em absoluto dos seus
direitos em relação ao filho. Por conseguinte deverá a mãe ilegítima alemã partilhar o pátrio
poder com o pai ilegítimo polaco.
Tecnicamente, a decisão poderá justificar-se através do princípio da adaptação. Dir-se-á
que se procedeu a um ajustamento ou adaptação do conteúdo do preceito material alemão a
uma situação por ele não prevista.
C) O método tradicional de dirimir os conflitos de leis, tal como vem sendo utilizado aquando
da codificação do DIP a nível nacional e como tem sido entendido por determinados sectores
da doutrina europeia, abre-se ao aproveitamento e valorização de critérios de justiça material
e do conteúdo e escopo das normas de direito substantivo possivelmente aplicáveis ao caso
concreto.
Há uma categoria de preceitos materiais cuja aplicação no espaço é condicionada e
determinada pela sua função ou fim.
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São eles as normas espacialmente condicionadas ou autolimitadas, normas que só
querem aplicar-se às situações da vida que se encontrem ligadas à ordem sócio-jurídica do
respectivo Estado por uma conexão espacial de certo tipo, ou esta conexão seja
expressamente estabelecida pelo próprio preceito material, ou se deduza do seu escopo. A
especificidade de tais normas reside em elas, sendo normas de direito material, delimitarem
por si mesmas o seu campo de aplicação através de um processo técnico. Todavia, é do
próprio fim visado pela norma que derivam os limites impostos à sua aplicação espacial – e
não de raciocínios do tipo daqueles de que o direito internacional privado se serve na
elaboração das suas regras.
Como a norma espacialmente autolimitada é por via de regra uma norma especial, a sua
não aplicação só determinará que se passe à aplicação do preceito de direito comum. As coisas
se apresentariam de modo diverso se a restrição do domínio de aplicação do preceito material
fosse obra de uma autêntica regra de conflitos. Quando a situação factual a regular não está
conectada com determinada lei através do elemento requerido pela regra de conflitos que
justamente apontaria essa lei como competente na espécie, a consequência inevitável disto é
a inaplicabilidade da mesma lei ao caso concreto.
É do próprio preceito material, da sua ratio, que decorrem os elementos modeladores; e
se a razão da lei se incorpora na própria lei, não tomar em conta aqueles elementos
modeladores seria atraiçoar a mesma norma a que eles pertencem e de que fazem parte
integrante.
20. No caso Kaufman vs American Youth Hostels, Inc., aplicando aos factos o seu método da
“governmental interest analysis”, Currie observou que, baseando-se a citada regra de
imunidade do Oregon no propósito de defender o património dos institutos de beneficência, o
Estado do Oregon nenhum interesse tinha em ver aplicada essa regra a uma instituição
estrangeira, que para mais nenhuma actividade beneficente exercia no seu território. Nesta
ordem de ideias, o tribunal deveria ter aplicado o direito vigente no Estado de Nova Iorque (lex
fori), condenando a demandada.
Ferrer Correia diz que a conclusão está certa, mas não a fundamentação. O tribunal nova-
iorquino começaria por eleger a lei aplicável segundo o seu próprio direito de conflitos; numa
segunda fase, procuraria determinar qual a norma da lei declarada competente (a do Oregon)
que deveria ser chamada a resolver a questão. E aqui deparavam-se-lhe duas normas e outras
tantas soluções: a disposição especial isentando de responsabilidade os institutos de
beneficência, e a disposição geral que consagra a obrigação de reparar o dano causado por
comportamento ilícito. A primeira é uma regra espacialmente delimitada, uma regra que não
quer aplicar-se, dada a sua razão de ser, aos entes colectivos de beneficência que não
pertençam ao Estado local, nem prossigam nele os seus objectivos específicos.
A solução do problema não poderia deixar de pedir-se à disposição geral da mesma lei
concernente à responsabilidade decorrente da prática de factos ilícitos. O tribunal,
constatando que se encontravam reunidas no caso todas as condições necessárias à existência
da obrigação de reparar o dano causado, não podia deixar de condenar a demandada.
Portanto, o tribunal nova-iorquino decidiu erradamente o caso Kaufman.
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22. O caso Tooker vs Lopez tratava de uma pretensão de indemnização civil derivada de um
acidente de viação. Também aqui a questão jurídica que se apresentava era a da
responsabilidade do proprietário do automóvel pelos danos causados a um passageiro
transportado gratuitamente. O acidente verificara-se no Michigan, no decurso de uma viagem
entre a universidade que os três passageiros do veículo sinistrado frequentavam e a cidade de
Detroit. O carro pertencia a um indivíduo domiciliado em Nova Iorque e era conduzido no
momento do acidente por uma filha do proprietário. Do acidente resultou a morte da
condutora e a de um dos passageiros, ambos domiciliados em Nova Iorque, tendo ficado ainda
ferido o terceiro passageiro (um jovem domiciliado no Michigan). A acção foi intentada em
Nova Iorque pelo pai do segundo passageiro contra o proprietário do veículo.
O tribunal aplicou a lei do Estado de Nova Iorque. Ponderou-se que o Michigan não tem
interesse em ver negada a reparação pedida por um demandante de Nova Iorque a um
demandado também de Nova Iorque, encontrando-se o carro seguro neste Estado.
A guest passenger law do Michigan, que só responsabiliza o transportador em caso grave
de negligência, é uma norma espacialmente autolimitada. Ela tem por fim quer a prevenção
dos conluios fraudulentos entre o agente e a vítima do dano em detrimento das companhias
de seguro, quer desencorajar os apetites imoderados dos passageiros ingratos.
No caso Tooker o vínculo era de mais fraca intensidade, mas porventura de intensidade
ainda suficiente para justificar a aplicação da guest passenger law do Michigan: a ligação de
ambas aquelas pessoas com o Michigan não era uma ligação acidental e insignificativa, já que
ambas eram estudantes que seguiam os cursos normais durante o ano escolar numa
universidade daquele Estado. Não pode dizer-se que os casos como o Tooker versus Lopez
exorbitem do âmbito de aplicação da referida guest passenger law, em face dos objectivos
perseguidos por ela.
23. No caso Dym vs Gordon, as partes eram estudantes domiciliados em Nova Iorque que
frequentavam um curso de férias numa universidade do Colorado, Estado onde ocorreu o
acidente. No Colorado existe uma guest passenger law, logo o pedido de indemnização daí
emergente foi rejeitado. O tribunal ponderou que as partes habitavam no Colorado no
momento em que a relação entre elas se constituiu, razão pela qual não se podia taxar de
fortuito o facto de o acidente se ter produzido aí.
O que para nós está em discussão não é a aplicabilidade da lei do Colorado, mas antes a
do preceito dessa lei concernente à responsabilidade do transportador, face aos objectivos
visados por esse preceito e à fragilidade da conexão existente entre os sujeitos da relação e o
país do acidente. Há realmente uma diferença não irrelevante entre este caso e o anterior, já
que a frequência de um simples curso de férias numa universidade estrangeira, ao contrário da
frequência dos cursos anuais normais, limita-se a criar entre o indivíduo em causa (o
estudante) e o Estado local laços cuja superficialidade é indiscutível.
Situações como a do caso Dym estão fora do âmbito do citado preceito especial da lex loci
delicti, preceito que constitui uma norma espacialmente autolimitada. O tribunal deveria ter
resolvido o problema de conformidade com os princípios gerais da lei do Colorado relativos à
responsabilidade extracontratual.
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24. Foquemos em último lugar um grupo de casos – aqueles em que transportador e
transportado vêm de um Estado em que existe disposição especial de lei sobre a
responsabilidade do primeiro, verificando-se o acidente num país onde o problema,
diversamente, se resolve pelos princípios de direito comum concernentes à responsabilidade
aquiliana. É a hipótese oposta à do caso Babcock.
O caso Conklin versus Horner, julgado em 1968 pelo Supremo Tribunal do Wisconsin.
Condutor e passageiro eram ambos cidadãos do Illinois e o acidente teve lugar em território do
Wisconsin, onde a regra aplicável a estes é a da common law. O tribunal fez aplicação
precisamente desta regra e concedeu a indemnização pedida.
Trata-se de deduzir do duplo fundamento da guest passenger law do Illinois os limites da
sua aplicação espacial. Dada a circunstância de no caso em análise o carro ter sido matriculado
no Illinois e de aí ter sido concluído o respectivo contrato de seguro, dado também o facto de
as partes serem cidadãos do Illinois, tudo se conjuga para que, prima facie, se conclua no
sentido da aplicabilidade da regra especial deste Estado. É a solução que um juiz do Illinois
teria perfilhado.
Mas as coisas podem tomar um aspecto diverso quando a questão se levanta perante os
tribunais do Estado do lugar do acidente. Nada impede que o tribunal se pronuncie no sentido
de que é a lei pessoal comum das partes, logo a do Illinois, a que está mais estreitamente
conexa com a situação controvertida – que ele considere, por isso, ser a solução da
competência dessa lei a que emerge do direito internacional privado da lex fori. A decisão do
Supremo Tribunal do Wisconsin no caso Conklin foi correcta.
25. O DIP do momento actual está bem longe de ser aquele direito exclusivamente formal,
aquele conjunto de regras de conexão de actuação mecânica, cegas para o conteúdo das
normas substanciais concorrentes e para os valores da justiça material.
DIP – Alguns problemas, Ferrer Correia
Situações de cúmulo e de vácuo jurídico. – Proposta de solução do problema – A adaptação.
75. Na tentativa de resolver os problemas suscitados pelas relações plurilocalizadas, deparam-
se-nos por vezes situações de “cúmulo jurídico” ou de “vácuo jurídico”. Na primeira hipótese
trata-se de uma concorrência de normas: para resolução do caso sub judice aparecem duas ou
mais normas materiais, porventura contraditórias. Na segunda, o que se verifica é a ausência
de toda e qualquer norma aplicável.
Enquanto os preceitos de um sistema jurídico normalmente se ajustam ou correspondem
mutuamente, já que entre eles existe uma conexão de sentido, fruto que são de um plano ou
desígnio unitário que os integra num todo coerente, nada garante, à partida, que esse nexo
exista entre os preceitos oriundos de sistemas jurídicos diferentes.
76. Àquelas situações deve, sempre que possível, obviar-se através da criação de regras de
conflitos especiais, regras de segundo grau ou de segundo escalão. Só quando não for possível,
seguindo esse caminho, alcançar qualquer resultado positivo, é que deverá recorrer-se ao
expediente ou técnica da adaptação: comparando as normas das leis em presença,
combinando-as, tentaremos encontrar uma solução que, respeitando-lhes o sentido ou a
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“ratio”, se adapte à singularidade do caso vertente. Como esta técnica da adaptação é
extremamente complicada e falível, só em casos contados se deverá lançar mão dela. Perante
situações de cúmulo ou vácuo jurídico, a primeira coisa a fazer é tentar descobrir uma regra de
conflitos especial. Não sendo isso viável, deverá então recorrer-se ao expediente da
adaptação. A adaptação tanto pode recair sobre normas de direito material como sobre
normas de direito internacional público.
77. Um exemplo de adaptação que recai sobre uma norma de direito internacional provado é
o caso de Chemouni, julgado pela Cassação francesa em 1963. Chemouni era um tunisino de
origem, polígamo, que a dada altura se estabeleceu e mais tarde se naturalizou em França.
Tendo a sua segunda mulher legítima (porque o casamento se realizara ao tempo em que
ambos os interessados eram cidadãos tunisinos) recorrido aos tribunais franceses para obter a
condenação do marido a prestar-lhe alimentos, a “Cour de Cassation”, considerando que a
autora havia adquirido, por modo juridicamente válido, a condição de mulher legítima do réu,
deferiu a pretensão. E deferiu-a no quadro da lei francesa.
François Rigaux advoga outra solução. Nos casos deste tipo – incompatibilidade radical
entre o antigo e o actual estatuto dos efeitos pessoais do casamento -, as relações pessoais
dos cônjuges deverão continuar na dependência daquele primeiro estatuto, isto é, da lei
nacional dos interessados ao tempo de celebração do matrimónio.
Não haverá aí recurso aos princípios que regem o conflito móvel, pois este pressupõe uma
conexão não fixa no espaço ou no tempo. Se optarmos por esta doutrina, teremos uma
hipótese de adaptação de uma norma de conflitos à singularidade da situação ocorrente.
É uma regra de conflitos nova que vem a ser criada, porque o que François Rigaux propõe é
que aos efeitos pessoais do casamento, em caso de mudança de nacionalidade, se aplique, não
a lei nacional actual, como deveria ser, mas sim a lei da nacionalidade ao tempo em que o
matrimónio se celebrou.
No entanto, a forma mãos conhecida e mais importante de adaptação é a que incide
sobre preceitos jurídico-materiais. Exemplos:
a) Segundo o direito inglês, que é o estatuto da sucessão, os bens hereditários passam em
propriedade para o executor testamentário como trustee; como a nossa lei ignora o instituto
do trust, os poderes do trustee sobre os bens existentes em Portugal devem reduzir-se aos do
normal executor testamentário português.
b) (págs. 153 e 154)
1. A ideia da lei mais favorável a uma pessoa
6. Um exemplo desta situação surge no art. 38.° do diploma que regulamenta o contrato de
agência ou de representação comercial (DL nº 178/86, de 3 de Julho), e onde se define o
campo espacial de aplicação das suas regras. No que tange à cessação, a norma prescreve que,
nos contratos que se desenvolvam exclusiva ou preponderantemente em território nacional,
só será aplicável legislação diversa da portuguesa se a mesma se revelar mais vantajosa para o
agente.
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7. Supõe-se aqui que existe na relação de agência uma parte mais fraca a proteger, ainda que
essa protecção apenas se justifique em matéria de cessação do contrato.
A aplicação da lei portuguesa também não decorre aqui do processo que caracteriza as
leis de aplicação necessária e imediata. Pois a sua aplicação não depende, como aconteceria
nesse caso, apenas do seu conteúdo e da ligação existente entre a regra portuguesa e a
situação concreta, elementos que forçariam a sua aplicação.
A noção chave do sistema que aqui encontramos parece poder reconduzir-se ao princípio
do tratamento mais favorável (a better law approach).
2. As regras de aplicação necessária e imediata
8. Estão presentes nos diplomas referidos normas de aplicação necessária e imediata. Elas
surgem nitidamente em dois deles: o DL nº 422/83, de 3 de Dezembro, sobre a defesa da
concorrência e o DL nº 446/85, de 25 de Outubro, sobre as cláusulas contratuais gerais.
9. O DL nº 422/83, que contém as regras em matéria de concorrência, disciplina a actuação
dos órgãos a quem incumbe a sua aplicação e prevê o processo e as sanções respectivas,
dispõe, no nº 2 do seu art. 2.° que, sob reserva das obrigações internacionais do Estado
português, o diploma se aplica às práticas restritivas da concorrência que ocorram no território
português ou que neste tenham ou possam ter efeito.
Exige-se que quando uma prática restritiva da concorrência ocorra em território
português ou aí produza ou possa produzir efeitos a regulamentação do diploma onde ele se
contém seja observada, não obstante o que em contrário disponha qualquer outra legislação.
A actuação da regra de conflitos bilateral do foro não é afastada; mas não tem lugar enquanto
não se concluir pela ausência das condições que exigem a aplicação a lei portuguesa.
10. Está-se face a uma verdadeira norma de aplicação necessária e imediata, isto é, perante
normas materiais do foro que exigem ser aplicadas a dado círculo de relações, para além e
independentemente do domínio que as regras de conflitos atribuam à ordem jurídica onde se
integram. Círculo que elas próprias definem, no caso em na+alise através de dois critérios que,
em alternativa, usam para a delimitação do seu âmbito de aplicação: o da localização em
Portugal das práticas restritivas e o da produção, real ou potencial, dos seus efeitos no nosso
país. [É a circunstância de procederem à delimitação do seu próprio campo através de uma conexão
espacial que faz das normas materiais do tipo das referidas verdadeiras normas materiais espacialmente
condicionadas ou autolimitdas. No entanto, nem todas as regras materiais assim concretizadas se
podem definir como leis de aplicação necessária ou imediata, pois que a conexão espacial que no seu
enunciado se contém e que preside à definição do seu campo de aplicação pode não visar impor a sua
aplicação independentemente do prescrito nas normas de conflitos.]
11. No art. 33.° do DL nº 446/85 diz-se que o diploma se aplica, para além dos contratos
regidos pela lei portuguesa, aos demais contratos celebrados a partir de propostas ou
solicitações feitas ao público em Portugal quando o aderente resida habitualmente no país e
nele tenha emitido a sua declaração de vontade.
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O artigo confirma a aplicação do diploma em que se integra sempre que a lei portuguesa
for o estatuto do contrato, assim designado pelas regras de conflitos do foro (arts. 41.° e 42.°
do CC).
12. A justificação deste regime pode procurar-se na vontade de impedir que a protecção
concedida pela lei portuguesa ao contraente mais fraco nos contratos de adesão possa ver-se
frustrada através da sujeição do contrato a uma lei estrangeira.
O regime citado vai porém mais longe, ao determinar a aplicação do diploma, no
circunstancialismo descrito, mesmo quando a lex contractus estrangeira foi objectivamente
determinada.
Assim definida, a vontade de aplicação da disciplina material portuguesa deverá ser
respeitada pelo juiz do foro; as regras de conflitos respectivas só retomarão o seu jogo para
designar uma lei estrangeira, na matéria em causa, quando as condições previstas no art. 38.°
não se encontrem reunidas.
(págs. 111 e 112)
“Aspectos recentes do direito internacional privado português”, Das relações privadas
internacionais. Estudos de Direito Internacional Privado, Rui Moura Ramos
Capítulo I
A desvalorização do mecanismo da escolha da lei aplicável
10. A tese clássica considera que, numa situação plurilocalizada, a disciplina jurídica das
questões que possam ser suscitadas há-de encontrar-se numa das ordens jurídicas estaduais
com que a relação de facto se acha conectada. O problema central desta construção é o da
determinação desse ordenamento a que se há-de ir buscar uma tal solução, determinação a
levar a cabo por um processo próprio, consubstanciado numa regra de conflitos. Tal regra
elege o ordenamento com o qual a situação apresenta uma relação mais estreita.
Não é necessariamente a mesma, em todos os casos, a entidade que tem competência
para proceder à escolha da lei competente: ao passo que os sistemas jurídicos continentais,
filiados na tradição romano-germânica, entregam ao legislador essa tarefa, nos países onde se
expandiu a common law e o seu típico modo de considerar a realidade jurídica é ao julgador
que um tal encargo é cometido. Tanto a um como outro nível, o que está em causa é a
determinação da lei aplicável.
A doutrina clássica, admitindo embora a existência de um modo alternativo, traduzido na
criação por via directa das soluções que a disciplina das situações plurilocalizadas requer, não
deixa de considerar que em certos casos a sua actuação há-de ver-se limitada.
[A limitação do jogo das regras de conflitos bilaterais, através da actuação das chamadas leis de
aplicação necessária e imediata é hoje algo de indiscutível.]
Há uma corrente que apresenta como uma ilusão a pretensão de falar em escolha da lei.
O direito internacional privado não envolveria, na sua actuação prática, qualquer mecanismo
desse tipo, antes revelaria uma aplicação da lei do Estado a que pertence o órgão chamado a
decidir a situação. O que se traduziria numa lexforização da vida privada internacional.
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Não se concebendo em termos puramente negativistas, ela vem dar uma outra
importância e valorização a um momento anterior ao da escolha de lei – o da fixação da
competência da autoridade julgadora. Ao fazer do estatuto desta e dos limites à sua acção um
problema central, tal tese sustenta uma verdadeira jurisdicionalização do direito internacional
privado.
Com a consideração de uma pluralidade de hipóteses de regulamentação, embora não se
negue a importância e a autonomia da escolha da lei aplicável, uma tal orientação não existe
por si só, estando antes ligada a uma outra que é a da determinação do órgão com
competência para a ela proceder. Sem ir ao ponto de proclamar ou actuar a absorção do
conflito de leis pelo conflito de jurisdições, afirma-se a independência entre eles.
O mecanismo da escolha da lei não pode ser visto em si e por si, havendo de ser
considerada a sua interacção com os outros momentos por que passa necessariamente o
julgador, uma vez que foi iniciado o processo de determinar a resolução satisfatória de uma
situação plurilocalizada.
A escolha da lei aplicável seria uma metodologia que em certas situações cederia o lugar à
referência ao ordenamento competente, considerado na sua globalidade, havendo que, ao
reconhecê-lo, atentar na especificidade deste método e no lugar que ele ocupa no conspecto
das soluções utilizadas na nossa matéria.
Secção I
O momento jurisdicional (determinação do fórum conveniens) como operação-chave
na resolução das situações plurilocalizadas. A «jurisdicionalização» do DIP
11. Quando se fala em jurisdicionalização do DIP pretende-se acentuar um crescendo da
importância do momento judicial. Trata-se de admitir que o foro e as suas leis constituam a
instância central para a resolução dos problemas do direito internacional privado, em termos
de estes poderem vir a ser resolvidos por aplicação das normas desta ordem jurídica. A noção
de conflito de leis, como de aplicação da lei competente, passa a um segundo plano, se não
acaba mesmo por desaparecer. A lei conveniens é, afinal, a lex fori, aquela que o juiz melhor
conhece. E a «jurisdicionalização» do DIP completa-se e assume a sua veste mais acabada
quando se considera que o atentar nas especificidades de uma dada situação internacional não
deve levar o juiz a aplicar uma outra lei que não a sua mas, antes, a declarar a incompetência
do tribunal para a julgar.
Há autores que sustentam o carácter facultativo ou dispositivo das regras de conflitos,
tornando a sua obrigatoriedade para o juiz algo que ficaria dependente de uma manifestação
de vontade das partes envolvidas no litígio.
A ideia de uma revalorização do elemento judicial veio a obter eco em alguns esforços de
unificação legislativa levados a cabo no DIP que, à missão de uniformizar os critérios de
escolha da lei, preferiram o acordo em volta da designação do tribunal ou da autoridade
competente para proferir certas decisões, às quais seria depois garantido o reconhecimento
por parte dos países comprometidos no plano internacional com a criação de soluções
uniformes.
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63
A interdependência entre o conflito de leis e o conflito de jurisdições
28. Considera-se até ao presente uma forma de resolução dos conflitos de leis, ou seja, dos
problemas do DIP, que aponta para a desvalorização do momento da determinação da lei
aplicável. Ou porque assenta numa construção teórica em que a aplicação do direito do foro
assume um lugar cimeiro; ou porque, conhecida embora a regra de conflitos, ela é remetida
para uma posição secundária, o primeiro plano sendo ocupado pela lex fori e apenas
secundariamente tendo lugar o recurso aos seus comandos; ou, finalmente, porque a regra de
conflitos é formulada em termos de conduzir afinal à aplicação da lei interna do Estado de que
retira a sua competência uma entidade que se começou por determinar. A linha geral que
subjaz a esta orientação não é aceitável em termos de princípio, pelo risco que da sua adopção
advém para a estabilidade das situações jurídicas internacionais, uma vez que ela acaba afinal
por consagrar um primado da lex fori que se revela indiferente às exigências que decorrem da
necessidade de consagrar esse valor.
Uma tal crítica só atinge perfeitamente o alvo perante as duas modalidades desta
tendência de “jurisdicionalização”, não valendo em toda a linha para a terceira. Aí o que está
em causa não é tanto a promoção inconsiderada da lex fori, mas a opção por ela em casos bem
delimitados, em função de um condicionalismo particular que é o das típicas situações em que
tal solução é utilizada, e apenas depois de se ter designado antecipadamente a entidade a
quem a resolução da questão deve ser submetida. A descaracterização da questão que nos
ocupa enquanto problema de leis não resulta de uma indiscriminada lexforização. Mas da sua
resolução preferencial a um outro e anterior nível entendendo-se ademais que a forma por
que tem lugar essa resolução arrastaria a absorção do momento da designação da lei aplicável,
em termos de a jurisdição ou autoridade designada aplicar a sua própria lei. Específica a este
processo seria a circunstância de ele operar afinal ao nível da autoridade decisória e não do
critério de decisão – ficando este identificado com a lei do Estado a que aquela se acha
vinculada.
29. A regulamentação das situações privadas internacionais não pode deixar de causar a maior
estranheza e reserva, na medida em que parece identificar-se com as posições a que conduz o
dogma da territorialidade das leis, assim contrariando expressamente a função precípua do
DIP. A finalidade essencial da normação em que este se desentranha consiste em assegurar a
conformidade entre o modo por que uma dada relação jurídica é regulada no estrangeiro e
aquele pelo qual ela é valorada no interior de um Estado, em ordem a garantir a protecção das
expectativas das pessoas e da continuidade da sua vida jurídica. A aplicação da lei do tribunal
demandado apresenta-se como a negação deste objectivo. Tal aplicação, se resultante de uma
concepção como a da territorialidade das leis, viria afinal a fazer tábua rasa da ideia de
relatividade que é inerente a qualquer regra de direito, na medida em que ela só tem sentido
em relação ao grupo social em que se insere e por referência a esse grupo tal qual ele se acha
constituído no momento em que ela se afirma. Toda a evolução do DIP tem tido lugar através
da afirmação da legitimidade do recurso à lei estrangeira e da sua aplicação in foro domestico,
sustentando-se que nada em tal aplicação contraria a ideia de soberania estadual, depois, da
parificação entre a lei estrangeira e a lex fori, negando-se as teorias e posições que partem de
um primado desta ou de uma concepção diminuída da função e natureza daquelas, e por
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último até de um certo combate ao dogma do exclusivismo da regulamentação do foro, mas
entendida ela agora não apenas limitada ao conjunto dos seus preceitos materiais, mas ao seu
próprio direito conflitual.
A tendência para a sintonia entre o forum e o ius seria algo que contra ele se recortaria,
negando essa evolução. Afigura-se que é de tentar aprofundar um pouco mais a análise,
procurando distinguir as situações em que a sintonia forum – ius decorre da pura e simples
aplicação da lei do foro de outros casos em que é patente uma certa convergência entre a
competência legislativa e a competência jurisdicional, de molde a problematizar e dar um
outro sentido ao eventual paralelismo manifestado.
A primazia reconhecida à competência da lex rei sitae, em matéria imobiliária, encontra
algo de próximo, como que nela se prolongando, na tendência para os tribunais de um Estado
serem exclusivamente competentes para as acções relativas a direitos reais sobre imóveis sitos
no seu território e se não considerarem já competentes para julgar tais acções quando elas se
refiram a imóveis sitos fora dele. Atente-se na progressiva aplicação que tem sido feita no
domínio jurisdicional, quer em sede de determinação da competência internacional directa,
quer no concerne à competência internacional indirecta, de uma ideia que, na esteira de
Savigny, tem ocupado lugar cimeiro no desenvolvimento da teoria dos conflitos de leis: a de
que as situações devem ser submetidas à regulamentação da ordem jurídica do Estado com
que apresentam laços mais estreitos.
A designação da lei aplicável perfila-se como método fundamental para prover à
regulamentação das situações privadas plurilocalizadas.
Haverá que ignorar, quer aquelas hipóteses em que a correlação do juiz com a lei material
do foro ocorre através do que Gonzalez Campos chamou processos indirectos, quer, dentro
dos processos directos, não só os que se fundam na existência de leis de aplicação necessária e
imediata, como finalmente, as situações que revelam um autêntico e verdadeiro paralelismo
entre a competência judiciária e a legislativa resultante da identidade dos pontos de conexão
eleitos para cada matéria no domínio de ambas. Quer os casos de aplicação da lex fori como
consequência do reenvio de primeiro grau, quer a utilização dela através de uma conexão
subsidiária, entendida enquanto solução de recurso, em nada afectam o mecanismo de
determinação da lei aplicável e o seu alcance, uma vez que se traduzem no resultado de um
incidente surgido no processo conducente a essa determinação e, no outro, numa necessária
reacção à impossibilidade de determinar o conteúdo dessa lei. Quanto às normas de aplicação
necessária e imediata, é sabido que não é pacífico que elas se limitem a produzir a correlação
forum – ius, podendo levar ao resultado contrário, sobretudo se aceitarmos a possibilidade de
verdadeira aplicação in foro das normas de aplicação necessária e imediata pertencentes às
ordens jurídicas estrangeiras. A existência desta figura vai revelando a existência de um outro
método, concorrente com o conflitual e limitando portanto o alcance deste, ao negar a sua
universal utilização, mas que não perturba o funcionamento do método da determinação da
lei aplicável nos casos em que a sua actuação se mantém. Outra forma de correlação forum –
ius não referida por Gonzalez Campos e que poderíamos pretender que existe nos casos em
que o juiz do foro aplica as regras de direito internacional privado material.
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Também aqui o juiz aplica a sua própria lei, sendo esta forma de regulamentar as situações
jurídicas internacionais algo que reduz o âmbito do mecanismo de determinação da lei
aplicável, mas o certo é que é bem outra a lógica que lhe subjaz, não propendendo a uma
descaracterização da escolha da lei mas apresentando-se em alternativa a ela ou como um seu
refinamento. No que toca à escolha de um mesmo elemento de conexão, no âmbito da
competência judiciária como da legislativa, também aqui o processo de determinação da lei
aplicável não é atingido na sua essência. Não se pode esquecer que essa correlação nunca é
total, não só pelo diferente processo usado num e noutro lado mas também porque é
questionável que seja sempre idêntico o conteúdo da noção, nos dois distintos âmbitos
normativos que se consideram.
Restam duas situações em que o mecanismo de determinação da lei aplicável pode
realmente ser adulterado ou afastado. Uma é aquela em que a correlação resulta da
circunstância de a afirmação da competência jurisdicional predeterminar imediatamente a
competência legislativa, assim fundado sem mais a aplicação da lex fori. A outra estará
presente nas situações em que é a competência legislativa que funda a competência
jurisdicional.
A referência ao ordenamento competente
33. A sintonia forum – ius, é mais do que um puro sistema de aplicação generalizada da lex fori,
é um método de coordenação assente fundamentalmente sobre a competência internacional
dos tribunais e a approach seguida nos EUA, na resolução de conflitos interfederais, que giraria
em torno de uma original e flexível combinação das soluções conflituais relativas à escolha da
lei aplicável e das que têm por objecto a determinação da competência dos tribunais do foro.
A sua atenção vai dirigida para o método da referência à ordem jurídica competente cujo
desígnio final será o de evitar a formação de situações jurídicas claudicantes, isto é, aquelas
relações que, constituídas no Estado do foro, não vêem o seu reconhecimento assegurado nas
ordens jurídicas onde os seus efeitos se deverão fundamentalmente produzir, desta forma se
pondo fortemente em causa a estabilidade da vida jurídica dos sujeitos nelas envolvidos.
A caracterização que o Autor faz deste método sublinha impressivamente as diferenças
que o distinguem da perspectiva clássica.
O método de coordenação das diferentes ordens jurídicas caracterizar-se-ia por não
tomar em consideração a posição dos ordenamentos estrangeiros quanto ao eventual
reconhecimento das situações a constituir no foro, bastando-se com o ter como escopo
fundamental, em matéria de designação da lei aplicável, a obtenção do consenso dos diversos
sistemas em torno da lei de que tinha sido feita aplicação no concreto caso sub judice. Uma tal
perspectiva envolveria uma referência “parcial” aos sistemas jurídicos estrangeiros, na medida
em que ela se limitaria a convocar a disciplina jurídica respectiva.
Procurando tomar em conta o conjunto do sistema jurídico estrangeiro que é objecto da
referência conflitual, Picone propõe um entendimento diferente, nos termos do qual a
“competência de uma legislação para a disciplina de uma determinada situação jurídica não
seja entendida como mera idoneidade das normas materiais dessa lei para regular a fattispecie
em apreço – antes como necessidade de que o respectivo ordenamento, considerado em
bloco, veja ser-lhe atribuída uma posição de supremacia em ordem ao modo de ser da
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situação jurídica produzida ou resultante de tal regulamentação e às possibilidades da sua
concreta actuação ou execução”.
Semelhante formulação parece recordar as teses de um DIP, defendidas por Neumann e
Gabba, nos termos das quais o juiz também não teria de, para resolver um determinado
conflito de leis, indagar qual a vontade do legislador respectivo, devendo antes determinar a
natureza da relação controvertida para estabelecer a respectiva sede e, por essa via, identificar
qual o legislador de conflitos com competência para a disciplinar. A referência a uma
determinada ordem jurídica tem por objectivo determinar o sistema legal a que se reconhece
a competência para a eleição do direito aplicável.
A designação de um direito estrangeiro não pode ter apenas por objectivo a escolha do
direito aplicável surge no pensamento de outros Autores, como Levontin que afirma que ao
designar uma lei como aplicável se está necessariamente a fazer uma referência a esse sistema
entendido como um todo, e que parece estar-se a apontar para uma resposta positiva à
chamada questão do reenvio. Concepção que se reforça com a ideia nos termos da qual
importaria sobretudo superar a formulação tradicional do nosso problema – por uma outra –
qual o sistema de conflitos que deve prevalecer. O autor aparenta entrever uma mais funda
consideração do problema, ao afirmar expressamente que a resposta de uma lei a uma
determinada questão jurídica pode resultar apenas desta quando considerada no seu
conjunto. E precisa a este propósito que a referência ao sistema geral no seu conjunto não é
sinónimo da adopção das regras de conflitos desse sistema, sublinhando que aí vem envolvida
uma maior dependência da que resultaria da mera combinação da sua lei material e do
respectivo sistema de conflitos.
34. A ideia da consideração global do sistema jurídico objecto da referência da norma de
conflitos arranca de uma precisão quanto ao objectivo central da nossa disciplina, que o Autor
concebe como destinado a permitir que os Estados e as suas ordens jurídicas, consideradas no
seu funcionamento global, garantam no seu próprio quadro as mesmas possibilidades
concretas de “desenvolvimento” e de “execução” a cada situação jurídica criada ou a criar no
âmbito do Estado cujas soluções são tidas por predominantes. A preocupação fundamental do
sistema do Autor é assim centrada na uniformidade de valoração das situações jurídicas que
por força da sua heterogeneidade ou plurilocalização se apresentam em termos descontínuos,
assumindo de imediato que, num contexto de dissociação forum – ius como é o prevalecente
na actualidade, tal uniformidade não é lograda apenas pela unidade do sistema material
aplicável, exigindo mais do que isso.
O método proposto vem implicar a consideração unitária e simultânea de todos os
completos normativos envolvidos na regulamentação das situações plurilocalizadas, uma vez
que há que garantir a cada situação a possibilidade efectiva do seu desenvolvimento nos
sistemas jurídicos estrangeiros. Opera-se desta forma uma certa novação no próprio conteúdo
da noção de conflito enquanto situação a superar e resolver pelo DIP, que passa a ser visto
como resultante do facto de uma situação jurídica determinada, qualquer que seja a
respectiva fonte, não se poder desenvolver no interior daquela ou daquelas ordens jurídicas
onde, pelo seu conteúdo e efeitos, naturalmente tenderia a localizar-se.
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Um tal desenvolvimento da situação jurídica internacional fora das fronteiras do Estado que
presidiu à sua criação é assim visto como o objectivo essencial da nossa disciplina, que
tenderia por essa forma a obstar ao aparecimento de situações jurídicas claudicantes, que na
sua simples existência, e pelo dano que acarretam à continuidade da vida jurídica dos
indivíduos nelas envolvidos, se apresentam como uma violação do princípio da confiança ou da
estabilização e segurança das expectativas que, preenchendo uma função básica do direito, e
essencial à existência de uma ordem humana de relação funda, justifica e informa a teleologia
do DIP. Uma tal abordagem vê-se obrigada a sustentar a necessidade de atender, na
apreciação da validade internacional-privatística das situações plurilocalizadas, não ao ponto
de vista exclusivo da ordem jurídica do foro, mas ao de uma ou mais ordens jurídicas
estrangeiras, unitariamente considerado.
A colocação do problema da normação das situações privadas internacionais não deixa de
lembrar certas posições tomadas a propósito da resolução de algumas dificuldades da nossa
disciplina. Paolo Picone diz que uma delas é constituída pela formulação que a doutrina do
reenvio encontrou nos tribunais ingleses e que se impôs sob a designação de foreign court
theory. De acordo com o pensamento subjacente a esta construção, os tribunais ingleses, ao
submeterem a regulamentação de uma determinada questio iuris emergente de uma situação
jurídica internacional a uma lei estrangeira, deveriam, caso não se considerasse competente e
atribuísse essa competência a uma terceira ordem jurídica, e em lugar de se limitar a aplicar
esta última, alinhar pelo contrário rigorosamente na sua posição pela que seria tomada pela
ordem jurídica do Estado que precisamente consideram mais apto a reger a situação em causa.
Os tribunais ingleses renunciam, quando a ordem jurídica por eles designada não se considera
competente para regular a situação, a aplicar as suas próprias normas, tanto materiais como
conflituais, confiando-se de todo à solução dada pelo ordenamento por eles próprios
inicialmente escolhido, no que se afigura aparecer como uma referência à solução adoptada
por esta ordem jurídica. Ao contrário, se a lei escolhida é diversa, o juiz do foro limitar-se-á a
acolher a solução que o sistema estrangeiro designado indicar, sem que as regras do foro de
alguma forma sejam tidas em atenção.
O segundo exemplo de actuação da lógica subjacente à teoria da referência ao
ordenamento jurídico competente encontra-se na construção doutrinal que encontra eco na
nossa doutrina a propósito do art. 31º, nº 2 do Cód. Civil. Dispõe a norma aí contida que,
apesar de a lei pessoal ser a lei nacional são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos
celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse
país, desde que esta se considere competente. Visa-se com esta disposição dar corpo a uma
aplicação alternativa de duas leis – lei da nacionalidade e a lei da residência habitual – em
termos de se entender que deve ser tido por válido em Portugal o acto em cuja constituição
tenham sido respeitadas as condições de validade postas por uma ou por outra das ordens
jurídicas.
Ferrer Correia defende por igual as hipóteses em que o acto tenha sido praticado “num
terceiro país, mas de conformidade com a lei do Estado do domicílio, sendo a situação dele
emergente reconhecida pela ordem jurídica deste Estado e tendo-se nele tornado efectiva”,
como também os casos em que foi outra a lei que presidiu à respectiva constituição, o que não
impede que a situação seja reconhecida e produza os seus efeitos no Estado do domicílio, por
ser essa a ordem jurídica a que este reconhece competência na matéria.
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35. Aquilo que importa referir é o campo de aplicação da metodologia em causa e sobretudo a
questão de saber se a preferência que lhe possa vir a ser reconhecida não tornaria obsoleta a
via que escolhemos para abordar o problema da regulamentação do contrato individual de
trabalho plurilocalizado, ou seja, a da determinação da lei que o deverá reger.
A maior parte dos exemplos legislativos apresentados por Picone são constituídos por
disposições legais que hoje já não estão em vigor. Afigura-se excessivo ver neste
desaparecimento das disposições legais visivelmente inspiradas por este método um sinal da
sua inadaptação ao actual curso do DIP, em que a decisão conflitual é crescentemente
inspirada por um leque variado de factores.
Todo o problema estaria em saber se, em que medida, e em que situações poderia (ou
deveria) a orientação metódica em referencia suplantar, como critério de resolução das
situações jurídicas plurilocalizadas, a clássica referência ao direito aplicável. A metodologia
clássica via reafirmada a sua propensão para regular, além da criação de situações
formalmente nacionais, o reconhecimento das situações que interessam de alguma forma o
Estado do foro. É-nos proposta uma versão mais matizada deste critério que tende a
recomendar a utilização da metodologia cujos contornos se precisaram naquelas
circunstâncias em que o essencial da coordenação entre as ordens jurídicas que constitui o
objecto do DIP está na garantia do reconhecimento de uma situação a constituir no foro por
parte de outras ordens jurídicas, isto é, do assegurar da continuidade da produção dos seus
efeitos para além da cisão que é proporcionada pela existência de uma pluralidade de ordens
jurídicas estaduais.
Como surge Picone, a relevância da lex rei sitae nos contratos que se referem aos imóveis
pode ser traduzida através de uma técnica que apele directamente à referência ao
ordenamento competente, ao sujeitar a válida constituição da relação à susceptibilidade do
seu ulterior desenvolvimento no país onde este se encontre. Com esta metodologia podem-se
alcançar objectivos a que conduz a tomada em consideração das normas de aplicação
necessária e imediata de ordenamentos diversos do da lex fori e do da lex causae.
A perspectiva referida ganha vantagem à óptica tradicional, que considera a
determinação da lei aplicável a operação essencial no domínio da regulamentação dos
contratos internacionais.
Da lei aplicável ao contrato de trabalho internacional, Moura Ramos
§4º
O DIP Material (A codificação do DIP)
26. Segundo a concepção clássica do DIP, esta busca a solução do seu problema – a
regulamentação das relações privadas internacionais – através de regras de conflitos. É o
sistema ou a via conflitual. Em face de cada situação da vida e da questão jurídica que nela se
levanta, a regra de conflitos relativa a esse tipo de questões dirá qual a conexão relevante e
por esse modo qual a lei aplicável.
Contudo, não é este o único caminho que se nos apresenta. Oferece-se a solução de
conceder à regulamentação das relações privadas internacionais através da criação de normas
especiais de direito material.
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De resto, tal solução teria um precedente célebre na história do direito: o ius gentium dos
romanos não era outra coisa senão um sistema de regras materiais aplicáveis às relações dos
cidadãos romanos com os peregrinos.
O processo clássico teria o inconveniente de gerar soluções não adequadas à
especificidade dos casos autenticamente internacionais. As leis internas são elaboradas tendo
em vista as situações da vida jurídica nacional, e a elas vão exclusivamente dirigidas. As
situações verdadeiramente internacionais dizem respeito a interesse e levantam problemas
que lhes são peculiares. Aponta-se o facto de surgirem com frequência crescente na vida
económica internacional situações que dificilmente se deixariam represar nos limites de uma
ordem jurídica nacional, através da escolha de uma conexão dominante – e fala-se a este
propósito do fenómeno da “deslocalização espacial” das situações jurídicas internacionais.
Se os problemas a resolver no momento da criação das normas de conflitos são graves,
não o serão menos as dificuldades que se levantam na sua interpretação e aplicação. É ver a
controvérsia a que se prestam a qualificação e o reenvio, as dúvidas que se suscitam na
actuação da cláusula de ordem pública, a necessidade do processo a que chamamos de
adaptação quando normas provenientes de duas legislações vêm interferir na resolução do
caso concreto.
Há um desajustamento profundo entre o DIP entendido como direito de conflitos e os
objectivos para que aponta. Tudo dependerá, dada a desarmonia existente entre as normas de
conflitos dos Estados, do país onde venha a ser necessário invocar os efeitos do acto praticado
e designadamente da jurisdição nacional que venha a ser solicitada a dirimir algum litígio que
eventualmente surja entre os interessados: se for a do Estado A, a lei aplicável será uma, outra
se for a do Estado B. Daqui são fenómeno do forum shopping.
O estado de coisas sumariamente descrito afecta a segurança jurídica e impede a
realização dos fins que o DIP se propõe.
27. As razões expostas não constituem base suficiente para justificar uma adesão à via ou
perspectiva “substancialista” atrás referida.
É erro supor que a opção pelas normas de DIP material eliminaria o problema da conexão
e da escolha da lei. Se assim fosse, teríamos aí a violação de um princípio que tem de
considerar-se implícito em todo o sistema de DIP, porque decorre da própria natureza das
normas jurídicas como normas de conduta.
O princípio é aquele segundo o qual não é lícito aplicar a uma situação da vida uma lei que lhe
seja completamente estranha, uma lei com a qual ela não esteja ou não tenha estado em
contacto no momento da sua constituição e com a aplicação da qual os interessados não
hajam podido contar de todo em todo.
À limitação ou vinculação temporal acresce uma limitação ou vinculação espacial: assim
como a lei nova não se aplica a factos passados, assim também nenhuma lei é aplicável a
factos que com ela não tenham uma qualquer conexão deste segundo tipo.
Uma lei pode aplicar-se retroactivamente e pode também ser aplicada a condutas que
não tenham com ela qualquer conexão espacial.
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28. O direito (material) especial das relações internacionais nunca poderá (ou nunca deverá)
substituir-se ao direito de conflitos – nunca poderá prescindir de uma ideia de “conexão
espacial”. A sua aplicabilidade a dado caso concreto sempre haverá de pressupor a existência
de uma qualquer ligação entre esse caso e a legislação do país em que se contém o referido ius
speciale. Essa ligação poderá ou não coincidir com a que seria exigida pela regra de conflitos
geral do respectivo sistema jurídico, não é isso que importa; o importante é que se trate de
uma conexão efectiva.
A elaboração na ordem interna dos Estados de um sistema completo de normas aplicáveis
a determinada categoria de situações internacionais não corresponde a qualquer firme
tendência do direito contemporâneo: o caso do Código do comércio internacional da
Checoslováquia constitui uma excepção. É com certa frequência que topamos nas leis internas
dos diferentes Estados com normas materiais expressamente criadas para regular
determinados aspectos de certas situações internacionais. Trata-se de normas que se aplicam
fora do domínio definido pelas regras de conflitos do sistema a que pertencem, mas cuja
aplicação depende em todo o caso da existência de um elemento de conexão entre a situação
a regular e o respectivo ordenamento jurídico, elemento que a própria normal material define.
Nestas condições, é evidente que tais preceitos não ofendem o princípio geral segundo o qual
a aplicabilidade de uma norma a uma situação dada pressupõe que entre esta situação e a
legislação a que a norma pertence exista uma conexão relevante à luz dos critérios gerais do
DIP.
29. As normas materiais apresentam a dupla característica de serem normas de fonte
legislativa e de inspiração internacionalista.
Mas há outras normas materiais, essas de elaboração jurisprudencial, também de
inspiração internacionalista, que se diriam libertas das regras de conflitos, isto é, que
actuariam pelo só facto de o litígio pertencer à esfera de competência dos tribunais locais.
Por parte de Ferrer Correia, entende-se que a criação por via jurisprudencial de tais regras
de DIP material não é de encorajar; a razão deste parecer foi já indicada quando se tratou das
normas materiais de fonte legislativa. É indispensável, para que a intervenção das normas
especiais de direito interno se torne legítima, que o problema surja num litígio que tenha com
o Estado do foro alguma conexão efectiva, alguma conexão válida à luz dos princípios gerais do
DIP. Não é certamente pelo simples facto de a lei material de um Estado ser eventualmente
mais perfeita, mais ajustada à especificidade das relações internacionais, que a sua aplicação
se justifica. Se no momento em que criaram a sua relação nenhum motivo tinham as partes
para acreditar na aplicabilidade da legislação desse Estado, a aplicação dessa legislação não
poderá deixar de ofender gravemente a própria essência da regra de direito como regra de
conduta e, logo, a previsibilidade das decisões judiciais e a certeza do direito. É inegavelmente
chocante que um Estado reserva para as relações nascidas da vida jurídica internacional um
tratamento diferente do que dispensa às relações puramente internas.
Estas considerações não informam em nada o que se disse acima a propósito das normas
materiais espacialmente autolimitadas. No ver de Ferrer Correia, o recurso a esta figura
permitirá corrigir boa parte dos resultados “inadequados” a que conduziria a aplicação pura e
simples aos casos internacionais das normas mediante as quais a lex fori procede à
regulamentação das relações de direito interno.
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30. O direito especial das relações internacionais, quer provenha de fonte legislativa ou de
fonte jurisprudencial, não exclui ou não deve excluir o processo conflitual clássico.
As convenções internacionais, por intermédio das quais se vai avançando no caminho da
unificação do direito, pertencem a um de dois tipos. Umas estabelecem regras exclusivamente
destinadas a certa classe de relações internacionais. São as denominadas convenções de
unificação. Tais convenções deixam subsistir em cada Estado contratante o direito interno
nacional, mas restringem a aplicação desse direito às relações não internacionais.
Ao lado destas, as convenções que estabelecem leis uniformes cujo destino é serem
incorporadas na ordem jurídica interna dos Estados contratantes, para aí passarem a constituir
o direito comum da matéria jurídica a que respeitam: o direito nacional em vigor até esse
momento é suprimido. Neste último caso, é evidente que a aplicação do direito material
uniforme em qualquer dos Estados signatários do convénio supõe a competência da lei deste
Estado, ou essa competência derive do direito de conflitos geral do país, ou de regras de
conflitos especiais, elas também de fonte convencional.
A regra da convenção que formula a exigência de existência entre uma certa conexão
entre o caso a regular e o Estado onde a questão se põe é uma regra de conflitos especial, que
tem primazia sobre qualquer outra lex fori. Não nos encontramos aqui perante a hipótese de
um direito material planando acima do direito de conflitos.
Algumas convenções instituíram um regime uniforme para determinada categoria de
relações internacionais e cujo alcance é universal.
O direito aplicável será necessariamente o contido na respectiva lei uniforme por mais
insignificante que seja o contacto entre a relação a regular e a ordem jurídica do mesmo
Estado. O que vale por dizer que a lei uniforme se aplica nestes casos a título de lex fori.
Também não parece ao Dr. Ferrer Correia que esta orientação seja a melhor. Nenhuma
lei, por mais perfeita que seja, pode ter a pretensão de reger situações que com ela não
tenham uma conexão efectiva.
31. A tendência para a resolução do problema do DIP através da elaboração de soluções de
nível ou índole material deriva basicamente do pressuposto da inadequação dos resultados a
que a via ou o processo conflitual nos conduziria com frequência: inadequação face à
especificidade dos problemas suscitados pelas situações multinacionais. É certo que o
abandono do método conflitual redundará em prejuízo da harmonia internacional de decisões.
Mas a tensão entre esses dois pólos – harmonia jurídica internacional e a correcção,
adequação ou justiça dos resultados – deveria resolver-se pelo prevalecimento do último.
A opção de Ferrer Correia é precisamente a oposta. A adesão à tese por ele contestada
levaria ao sacrifício de um princípio ou pressuposto essencial de todo o ordenamento jurídico:
a um facto jurídico qualquer só pode ser aplicada uma lei que com ele tenha estado em
contacto, e justamente no momento da sua prática.
Se determinada situação do comércio internacional se encontra ligada aos sistemas A e B
e ambos estão de acordo em que seja o primeiro o aplicável, este acordo deverá ser
respeitado a todo o tempo e em qualquer lugar. É certo e seguro que o não será, se a decisão
do litígio emergente dessa relação incumbir a um tribunal de C – o país que justamente
elaborou, com vista às situações do tipo daquela a que pertence a situação em causa, normas
de direito internacional privado material.
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E isto independentemente do facto que a própria norma de conflitos de C, se não fora aquela
circunstância, consideraria aplicável o sistema jurídico de A. Eis um resultado que não parece
defensável, sem embargo de neste tipo de casos ser possível prever, ao menos, o sentido em
que o problema será resolvido por um juiz do Estado C, se a questão vier a levantar-se nesse
Estado.
A inadequação das soluções decorrentes do método da “localização” das situações
multinacionais resultará quase sempre das circunstâncias do caso concreto.
Este sistema lesaria não só a previsibilidade das decisões judiciais, mas também a tão
desejável harmonia jurídica internacional – e a certeza ou segurança da vida jurídica. A referida
orientação dará lugar ao grau máximo de imprevisibilidade das decisões judiciais e, logo, de
incerteza do direito.
32. Von Mehren entende que é possível uma solução de compromisso, uma solução que
conceda um certo reconhecimento às “políticas” em que se inspiram as duas leis concorrentes
e que por essa razão seria aceitável para ambas; o que nos poria no caminho da harmonia de
decisões. A ideia fundamental do autor é que “se deveriam reconhecer os pontos de vista de
todas as ordens jurídicas que tenham uma pretensão fundada a controlar uma certa situação
multinacional, de harmonia com a medida do interesse de cada uma delas em tal situação”.
A colocação do problema nestes termos implica uma concepção do DIP que nós não
podemos aceitar.
É necessário, para que se torne legítimo recorrer ao expediente ou técnica da adaptação,
que ambas as leis em presença sejam chamadas pelas normas de DIP do forum a resolver a
questão de direito suscitada. Quanto a nós, o problema de saber se esta condição se encontra
preenchida não pode solucionar-se tentando determinar quais as leis que, pelos resultados
que visam, têm um interesse legítimo na situação multinacional considerada e podem
reivindicar o respectivo controle: o problema não pode resolver-se senão tomando em
consideração as finalidades gerais do DIP e os objectivos específicos visados nos seus
diferentes sectores.
§ 5º
Conclusões
A) As objecções dirigidas contra a concepção clássica do DIP e o método conflitual são na sua
maioria inconvenientes. O DIP clássico, na sua justiça puramente formal, na rigidez das suas
normas, era presa fácil da crítica. O DIP dos nossos dias tem vindo a adaptar-se a novas
exigências, a libertar-se de velhos preconceitos nacionalistas, a abrir-se a mais rasgadas
perspectivas. O que se contesta e rejeita é em certa medida alguma coisa que já cessou de
existir.
A tentativa de relegar o DIP, entendido como direito de conflitos, para o canto das
velharias inúteis, careceria de todo o fundamento sério. A tarefa que importa assumir é pensar
cada um dos seus problemas gerais à luz da sua intencionalidade essencial, e cada uma das
suas questões sectoriais à luz dos interesses que aí aflorem como relevantes.
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B) Não parece a Ferrer Correia que as outras soluções imaginadas para o problema do conflito
de leis sejam alternativas válidas do método conflitual. Não constitui alternativa séria a
orientação segundo a qual haveria que deduzir a solução do nosso problema de uma definição
do domínio de aplicação das normas materiais em causa, graças ao método da “governmental
interest analysis” ou equivalente. É que esta doutrina opõe-se frontalmente à teleologia
própria do DIP. As dificuldades, ambiguidades e incertezas inerentes àquele método não
podem facilmente vencer-se e clarificar-se.
Tão pouco se deseja recomendável a tese que preconiza a substituição do sistema clássico
da localização das situações multinacionais pelo da escolha da regra material susceptível de
conduzir ao resultado mais adequado. O DIP material não poderá prescindir de uma ideia de
conexão espacial, o que equivale a dizer que não poderá substituir-se ao direito de conflitos.
C) Chega-se à conclusão de que é ao método conflitual que convém recorrer para solucionar os
problemas derivados das situações multinacionais. Há que reconhecer que o método conflitual
não implica obrigatoriamente a existência de normas de conflitos de leis. A regra de conflitos
estabelecida na lei não é senão um dos caminhos que podem levar-nos ao resultado desejado,
isto é, à designação do sistema jurídico que tenha com o caso vertente a conexão mais
significativa. A outra solução que se nos oferece consiste em confiar ao juiz a tarefa de definir
ele próprio, tendo em conta certos factores entre os quais a natureza e circunstâncias do caso
sub iudice e as expectativas dos interessados, a lei mais estreitamente conexionada com a
situação a regular.
Considera-se agora um casuísmo de tipo diferente – a elaboração pelos tribunais de
soluções casuísticas mas de carácter ou nível conflitual, não material.
A esta orientação pode fazer-se a crítica de que por esse modo se lesaria a certeza do
direito. Os interessados encontrar-se-iam amiúde na impossibilidade de dizer
antecipadamente qual a lei que os tribunais de certo país, B, irão considerar aplicável à sua
relação. Esta incerteza e ambiguidade só desapareceriam se a situação em exame fosse
perfeitamente típica. São razões desta ordem que levam a rejeitar a presente directiva.
D) A preferência de Ferrer Correia vai para a solução tradicional – a das regras de conflitos
legislativas.
Limitar-nos-emos a comentar as regras de conflitos que respeitam especificamente ao DIP.
a) O facto de que em matéria de conflito de leis a ciência jurídica não logrou ainda atingir uma
fase de plena maturidade.
b) Contra a codificação produziu-se também o argumento de que a publicação de uma lei
entrava sempre a evolução, coisa que seria particularmente nociva em matéria de conflitos de
leis;
c) Segundo Neuhaus, a objecção de maior monta contra a codificação do DIP é a de que ela
poderá entravar a uniformização das normas de conflitos a nível internacional. Mas o próprio
Neuhaus encarrega-se de refutar o argumento, frisando que o melhor caminho para tal
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uniformização passa justamente pela existência de boas leis nos diversos Estados, leis que
possam servir de modelo à regulamentação internacional uniforme.
E) Todos os países têm necessidade de normas que dêem aos tribunais a possibilidade de
decidir com justiça qualquer caso que lhes seja submetido. Se o caso a julgar comporta
elementos de “estraneidade”, há um trabalho prévio a realizar: com base em certos critérios e
juízos de valor, determinar a lei a convocar para reger a situação sub iudice. A resolução de
qualquer questão jurídica deve ser pedida à lei que esteja ligada à situação de vida em causa
pelos vínculos mais significativos, pela conexão mais estreita.
Parece preferível que a justiça conflitual seja tanto quanto possível como cristalizada na
lei em normas apropriadas – as normas de conflitos.
34. Uma vez assente a ideia da necessidade de directivas, consagradas na própria lei, quanto à
maneira de resolver os conflitos entre sistemas jurídicos, põe-se a questão de saber que forma
deverão revestir essas regras. Os principais modelos são:
a) O primeiro é o Restatement Second. As regras do segundo Restatement são na maioria
open-ended rules: concluiu-se que no estado actual dos nossos conhecimentos, o máximo que
poderia fazer-se, e mesmo isso só em determinadas hipóteses, seria indicar um certo número
de elementos de conexão, competindo ao tribunal determinar em cada caso o mais
significativo de entre eles. Outras vezes formula-se uma regra geral a que se abre logo em
seguida uma excepção ampla e ilimitada: a menos que, considerada a questão concreta se
conclua que um outro Estado tem uma relação mais significativa com os factos, a coisa e as
partes.
A ideia fundamental do Restatement é efectivamente a da conexão mais significativa. Mas
o que constitui a marca original deste é a liberdade de acção que aí se concede aos tribunais:
salvo em raros casos, jamais o Restatement compele o juiz a definir uma certa conexão como a
mais estreita ou mais significativa.
a) Para Ferrer Correia é para o modelo tradicional da regra de conflitos que ele propende.
Todavia, as normas de conflitos não devem ser olhadas como algo preciso, definitivo e
concluso, senão como balizas ou marcos indicativos: a sua função não é tanto impor
dogmaticamente um percurso sem desvios, como antes definir apenas uma linha de rumo: o
rumo a observar em tanto quanto corresponder às razões que ditaram a opção. Não se vai pôr
aqui em questão a validade desta ideia pelo que toca às normas jurídicas em geral.
As normas de conflitos são regras instrumentais relativamente aos valores axiais do DIP e
aos objectivos visados nos seus diversos sectores.
b) Não deixará de se opor à doutrina preconizada aqui a objecção de que também ela reduz a
margem de certeza jurídica que se poderia esperar da codificação do DIP.
Raramente os interessados estarão em condições de prever a posição que os tribunais de
certo Estado virão a tomar na matéria em discussão, perante as circunstâncias da situação
jurídica concreta e a maior ou menor intensidade da sua ligação à lei daquele Estado.
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A atitude de maleabilidade na interpretação e aplicação da norma de conflitos, a liberdade
que se reclama para o órgão incumbido da execução dessas tarefas, não parece que
acrescente sobremaneira aquela dose de incerteza jurídica que está inevitavelmente ligada ao
DIP, produto que é da precariedade dos seus processos.
Ponderado tudo, é pelo modelo tradicional da regra de conflitos que se opta.
DIP – Alguns problemas, Ferrer Correia
§ 4º
Direito Internacional Privado Material
79. Outro ramo da doutrina ou tendência substancialista é o que advoga a criação de normas
de direito material especial para as relações internacionais.
Esse direito material pode ter origem consuetudinária.
Trata-se daquele conjunto extremamente rico, todavia muito incompleto de usos, de
práticas, de regras de natureza corporativa, etc., para o qual certos autores cunharam a
expressão de lex mercatoria.
Frequentemente acontece as normas de DIP material deverem a origem à jurisprudência.
Outras normas da mesma natureza são de fonte legislativa. Existem normas
expressamente criadas para regular aspectos ou pontos concretos de determinadas situações
de carácter internacional. Por exemplo, certas disposições do CC português (arts. 51.°, nº 2 e
2223.°) relativas a casamentos e testamentos de cidadãos portugueses celebrados no
estrangeiro. O art. 2223.° estipula, em derrogação à regra locus regit actum, que o testamento
de cidadão português feito em país estrangeiro só produz efeitos em Portugal se tiver sido
observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.
Há também dois casos em que o legislador criou um autêntico corpo de preceitos, uma
disciplina global para todas as relações compreendidas em determinado sector de actividade
jurídica – o Código de comércio internacional da Republica Socialista da Checoslováquia, de 4
de Dezembro de 1963, e a Lei da Republica Democrática alemã, de 5 de Fevereiro de 1976,
sobre os contratos económicos internacionais.
No plano do direito convencional há duas espécies de convenções: umas estabelecem
direito material uniforme, destinado a substituir nos Estados contratantes o direito neles
vigente, tanto pelo que respeita às relações internacionais, como pelo que toca às relações
internas. A aplicação dessas normas de direito uniforme dependerá, ou das regras de conflitos
já existentes no sistema interno, ou de regras especiais criadas também por via convencional
(como é o caso das Convenções de Genebra dos anos 30, sobre letras e livranças e sobre
cheques e das Convenções sobre conflitos de leis nessas mesmas matérias). Quanto às
convenções do segundo grupo, elas estabelecem direito material uniforme para determinada
área de relações jurídicas, quando estas assumam natureza internacional – e entre elas e o
direito a aplicar exista uma conexão relevante. A tais convenções dá-se o nome de convenções
de unificação.
Aquele direito material especial das relações jurídicas internacionais não pode substituir-
se ao direito de conflitos – não pode prescindir da ideia de uma conexão especial entre a
situação concreta e a lei.
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Portanto, a teoria substancialista não tem defesa, seja qual for a modalidade.
Lições de DIP, Ferrer Correia
Fundamento geral do DIP e principais interesses que pretende realizar
35. No domínio do DIP é a valores de certeza e estabilidade jurídica que cabe a primazia: a
“justiça” do direito de conflitos é de cunho eminentemente formal. Ao DIP compete organizar
a tutela das relações jurídicas plurilocalizadas. São relações estas que se encontram numa
situação de particular instabilidade. É função do DIP reduzir essa instabilidade ao mínimo
possível, assegurando o respeito das referidas relações jurídicas onde quer que um interesse
legítimo faça surgir a necessidade de obter para elas a protecção da lei.
Convirá admitir à partida a aplicabilidade às diversas situações factuais de todas as leis
que com elas tenham estado conectadas no momento da sua constituição, modificação ou
extinção. A missão das normas de conflitos consiste em indicar a tarefa que é adjudicada a
cada um desses sistemas, em definir o plano, perfil ou efeito da situação concreta que a cada
um deles compete disciplinar,
36. Os propósitos a que o DIP responde são dois. Trata-se de determinar a lei sob o império da
qual uma certa relação deve constituir-se para que seja juridicamente válida e possa tornar-se
eficaz. Depois, de executar essa tarefa de modo tal que a lei designada seja também tida por
aplicável em todos os demais países; aliás, o reconhecimento internacional da relação em
causa não estará assegurado. Pode um Estado estabelecer na sua legislação que o
reconhecimento in foro domestico de tais situações é independente do facto de à constituição
da relação jurídica ter presidido a lei declarada competente pelas normas de conflitos locais. O
reconhecimento pressupõe que a relação tenha sido criada de acordo com as disposições da
lei considerada competente pelo DIP do Forum.
Para cumprir de modo adequado essa missão, o DIP há-de proceder em termos de a
competência da lei ser susceptível de reconhecimento universal.
37. Um dos objectivos visados pelo DIP é a harmonia jurídica internacional. Este princípio
responde à intenção primeira do direito de conflitos, que é assegurar a continuidade e a
uniformidade de valoração das situações plurilocalizadas.
Embora a importância do objectivo apontado seja inegável, é evidente que ele não
resume em si toda a axiologia do DIP.
É impossível elaborar um sistema de regras de DIP unicamente do princípio da harmonia
jurídica internacional ou do mínimo de conflitos. Este princípio levar-nos-á a preconizar que o
DIP disponha dos instrumentos e técnicas adequados a corrigir o jogo normal das regras de
conflitos, em ordem a promover a uniformidade das decisões judiciais a despeito das
importantes divergências ainda existentes entre os diversos sistemas nacionais.
38. Outro princípio geral é o da harmonia material. Não está ligado à natureza específica do
DIP: o que ele exprime não é senão a ideia da unidade do sistema jurídico, a ideia de que no
seio do ordenamento jurídico as contradições ou antinomias normativas são intoleráveis.
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O jogo das normas de conflitos, na medida em que conduz por vezes à convocação de duas leis
para a resolução do mesmo ponto de direito, presta-se de modo singular à criação de
situações deste género.
Situações deste género podem também ser devidas a uma divergência de qualificações
entre duas leis chamadas a pronunciar-se sobre aspectos distintos do mesmo acto jurídico, ou
sobre questões jurídicas diferentes e todavia interligadas.
Há ainda outro campo em que o problema pode suscitar-se com frequência: o da questão
prévia. A solução deste problema oscila entre dois pólos: a harmonia jurídica internacional e a
harmonia material. O primeiro atrai para o sistema da conexão subordinada, ou seja, para a
solução de conectar a relação ou ponto prejudicial segundo direito de conflitos da lex causae.
Contudo, este sistema favorece a formação de situações do tipo que se vem analisando.
Casamentos validos perante a ordem jurídica do foro seriam todavia negados nos seus efeitos
essenciais, sempre que o estatuto dos efeitos (a lex causae) os julgasse nulos.
Para certos autores, haveria uma forma de evitar estas consequências, e seria guardar
fidelidade absoluta, pelo que toca às questões prejudiciais, às normas de conflitos da lex fori. É
o sistema chamado da conexão autónoma, segundo o qual a lei aplicável a determinada
questão de direito é sempre a mesma – e é sempre a designada pela regra de conflitos do foro
– quer essa questão se apresente com autonomia, quer se levante a título meramente
incidental.
Levanta-se a questão e saber que orientação geral adoptar no momento da formulação da
norma de conflitos, em ordem a impedir a multiplicação de situações do tipo daquelas a que
se acabaram de fazer alusão.
Deveria recomendar-se a adopção de um único factor de conexão para cada acto ou
relação jurídica, sem distinguir, quanto àquele, a forma da substância nem, quanto a esta, o
momento constitutivo da questão do conteúdo ou das consequências jurídicas imediatas.
Todas as relações emergentes do casamento e da filiação deveriam ser reguladas por uma lei,
de modo a realizar a unidade da família.
Quanto ao problema da questão prévia, seria desejável a elaboração de algum critério que
permitisse conter a doutrina da conexão subordinada dentro de limites em que a sua actuação
não fizesse perigar a harmonia material.
39. O Estado com melhor competência será o que em melhores condições se achar para impor
o acatamento dos seus preceitos. Esta consideração é uma das vias possíveis para
fundamentar a competência da lex rei sitae em matéria de direitos reais. Ela pode levar-nos
também a afastar a aplicação de uma lei, tida em princípio por competente, quando for de
recear que essa aplicação conduza a decisões desprovidas de valor prático, dado que não
serão reconhecidas naquele Estado em que se destinam normalmente a produzir os efeitos
que lhe são próprios.
Tal ordem de reflexos poderá eventualmente levar a preferir a lei da situação dos imóveis à lei
pessoal do ou dos sujeitos da relação jurídica, sem embargo de ser esta a lei tida por
normalmente aplicável neste âmbito.
Inútil dizer que este afastamento da lei pessoal pressupõe que a lex situs se julgue
exclusivamente competente ou, quando ela reenvia para outro sistema jurídico, que seja este
o único direito que a lex rei sitae reconhece como aplicável.
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40. É desejável com o interesse da boa administração da justiça que os tribunais decidam a
maior parte dos feitos submetidos a julgamento segundo os princípios do seu próprio direito
nacional, único em que são versados.
Segundo o princípio da paridade de tratamento, o DIP deve colocar os diferentes sistemas
jurídicos em pé de igualdade, de modo tal que uma legislação estrangeira seja considerada
competente sempre que, se ela fosse a lex fori e as mesmas as circunstâncias ocorrentes, a lex
fori se apresentasse como aplicável. É esta a feição que assume o DIP português.
41. Os vários princípios enunciados visam mais o sistema de normas de DIP considerado como
um todo, do que as regras particulares que o deverão constituir. É do método a utilizar na
pesquisa destas normas que se deverá tratar – método da “jurisprudência dos interesses”.
Cada norma de conflitos elege o elemento de conexão que deverá prevalecer em certo
domínio ou sector jurídico. Esta escolha deve conformar-se com uma directiva geral: é preciso
que a lei considerada competente seja apta a reger as situações multinacionais que se têm em
vista, ou determinados aspectos de tais situações. Esta adequação nada tem que ver com o
conteúdo da lei, mas decorre apenas da sua posição espacial relativamente aos factos, ou da
relação em que se encontra com as pessoas a quem estes respeitam.
Como proceder para determinar a maior aptidão relativa de certa lei para o desempenho
da missão tida em vista?
A solução do problema deverá resultar de uma ponderada avaliação dos interesses que se
apresentem como prevalecentes no sector considerado.
Para individualizar estes interesses, teremos que nos situar no quadro de uma perspectiva
universalista.
Do ponto de vista metodológico, seria incorrecto pretender deduzir do escopo visado por
uma única lei – a do foro – a solução de um problema que diz respeito à justa delimitação da
esfera de competência de todas as leis.
42. Na determinação do elemento de conexão, o principal papel compete ora a interesses
individuais, ora a interesses colectivos.
Os indivíduos, os sujeitos das relações de direito privado tiram vantagem de serem
submetidos, em tudo o que respeita ao seu estatuto pessoal, uma lei a que possam chamar a
sua lei – uma lei a que se sintam ligados de maneira estreita e permanente. Essa lei só poderá
ser a do Estado nacional ou a do Estado do domicílio. Por outra via, o interesse dos sujeitos das
relações jurídico-privadas reclama também um sistema que facilite quanto possível o
desenvolvimento da sua vida jurídica e lhes conceda inclusive o direito de escolher, em certos
termos e limites, a lei aplicável às relações que constituem.
O principal campo de incidência do outro é o chamado comércio jurídico, o mundo dos
actos relativos à produção e circulação dos bens assim como à troca de serviços, o mundo das
transacções. É valorizando este elemento que se aceita a possibilidade de submeter a forma
do contrato a uma lei que não aquela que é chamada a reger-lhe a substância, e que o
princípio da autonomia da vontade tem hoje em dia foros de cidade em DIP, pelo que tange à
matéria contratual.
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Vêm depois aqueles interesses que, sendo ainda interesses individuais, se reportam a
pessoas indeterminadas ou ao público em geral, e a que podemos chamar interesses do
comércio. Aconselham eles o recurso a elementos de conexão de natureza puramente
objectiva, tais como o lugar da situação para os direitos sobre as coisas, o país da sua criação
para a propriedade industrial, o locus delicti para a responsabilidade extracontratual.
43. É a própria justiça material que invade o domínio do DIP, fazendo prevalecer aí os seus
juízos de valor, impregnando dos seus critérios as normas de conflitos e vindo ela mesma
influir na escolha da lei aplicável.
Há uma excepção de ordem pública internacional. Esta é um limite à aplicação do direito
estrangeiro competente.
DIP – Alguns problemas, Ferrer Correia
Capítulo III - Teoria da norma de conflitos
§ 1º
Função da regra de conflitos. Regras de conflitos bilaterais e unilaterais
84. A norma paradigmática do modelo tradicional da regra de conflitos é a norma bilateral, ou
seja, a que nos indica a lei competente para dirimir qualquer questão jurídica concreta que
seja subsumível à respectiva categoria conflitual, pouco importando que essa lei seja a do país
onde o problema se levanta ou uma lei estrangeira.
Ao sistema bilateralista opõe-se o da unilateralidade. A norma de conflitos unilateral
propõe-se apenas delimitar o domínio de aplicação das leis materiais do ordenamento onde
vigora. Ela obedecerá ao seguinte esquema: «as questões jurídicas da categoria x são
resolvidas pelo direito local, desde que entre a situação a regular e este ordenamento exista
uma conexão do tipo y». Por exemplo: «As questões do âmbito do estado e da capacidade das
pessoas serão resolvidas pelo direito francês, desde que se refiram a cidadãos franceses
mesmo domiciliados em país estrangeiro» (Code Civil, art. 3.°, al. 3).
Por vezes, as normas unilaterais, onde existam, são tidas na prática como por meras
disposições incompletas, pelo que se torna possível, não necessário, integrar as lacunas do
sistema através da sua extensão analógica, isto é, convertendo-as em normas bilaterais.
Mas o verdadeiro sistema da unilateralidade é outro e para o defender pode enveredar-se
por um de dois caminhos:
a) O primeiro consiste em fazer apelo a um pretenso princípio conforme o qual o legislador
interno não teria poderes senão para delimitar a esfera de competência das suas próprias leis.
Esta ideia vai entroncar na teoria que vê no chamado conflito de leis um conflito de
soberanias.
A teoria enferma de um erro fundamental. Imagina-se que, quando o Estado aplica uma
lei estrangeira, é a própria soberania estrangeira que se faz valer. Mas na verdade a soberania
não pode exercer-se senão mediante o emprego de certos mecanismos de coerção sobre as
pessoas ou as coisas, e, logo, é evidente que no território de certo Estado só a soberania desse
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80
Estado pode tornar-se efectiva. A aplicação de uma norma jurídica – quer se trate de direito
nacional ou estrangeiro – nunca põe em jogo senão a soberania territorial.
O DIP não pode conceber-se como um sistema de princípios ou de normas visando a
resolução de conflitos de soberanias, pelo que resulta improcedente o argumento acima
invocado contra a doutrina da bilateralidade.
b) Para Rolando Quadri, a aplicabilidade de uma norma estrangeira não pode resultar senão de
uma regra do sistema a que ela pertence, ou «da vontade de aplicação» desse sistema à
situação controvertida. Para que uma lei estrangeira se ache aplicável in foro, hão-de mostrar-
se verificadas as duas condições seguintes:
- em primeiro lugar, que a situação sub judicie não esteja ligada à lex fori através do elemento
de conexão que esta lei considera decisivo no sector em causa;
- depois, que entre a mesma situação e a lei estrangeira exista precisamente a mesma relação
que essa lei requer a fim de se reputar competente. É só através do cumprimento desta dupla
condição que o sistema estrangeiro se torna aplicável in foro.
85. O sistema unilateralista desdobra-se em duas proposições. A primeira diz-nos que, não
estando em causa a competência do direito local, há que aplicar à situação controvertida o
direito que se julgar competente para a reger. A segunda, que jamais deve decidir-se um caso
pelas disposições de uma lei que o não inclua no seu âmbito de aplicação. Se uma situação A
estiver em contacto com as leis B, C e D, e só a última se lhe considerar aplicável, a aceitação
universal do sistema da unilateralidade garantirá que será esta a lei reputada competente por
qualquer tribunal de qualquer Estado, e desde logo dos Estados B e C. A uniformidade de
valoração da referida relação jurídica estará assegurada.
No caso de duas leis estrangeiras se declararem simultaneamente aplicáveis à mesma
factualidade concreta – cúmulo jurídico -, a solução tradicional consiste em optar por um dos
sistemas ou uma das normas em conflito. Simplesmente, é indispensável determinar o critério
a que essa opção haja de obedecer; e começam aí as dificuldades.
Aplicável seria aquela que, atendendo à natureza da questão posta, permitisse a solução mais
razoável. [A fim de evitar dificuldades ao juiz, o legislador poderia prescrever que nas hipóteses de
cúmulo fosse sempre aplicável a lex fori, por ser de presumir que as soluções da lex fori são as mais
razoáveis. Mas tal presunção é manifestamente arbitrária, e condenável a directiva que nela se
baseasse.] Esta orientação estaria, porém, contra-indicada pelo seu casuísmo.
Se as intenções normativas das duas leis divergirem, a determinação do preceito «mais
justo» pode revelar-se extremamente difícil, pois cada um deles, examinado à luz dos critérios
valorativos do respectivo sistema jurídico, pode ser em si mesmo equilibrado e justo. De toda a
maneira, a tábua de valores do juiz é que comandaria a opção.
Pareceria melhor solução a de elaborar expressamente para este tipo de situações
normas de conflitos especiais. Tais normas poderiam ser de uma ou outra de duas espécies: ou
normas que operassem a escolha da lei em função do resultado, ou regras que utilizassem o
método tradicional da conexão espacial.
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81
Quadri recusa esse caminho. Para ele trata-se de buscar a lei à qual a situação concreta
esteja ligada pelo vínculo mais forte e mais significativo; ela seria também, por legítima
presunção, a lei que as partes terão tido em vista.
Relativamente àquelas situações em que nenhum dos sistemas, com os quais uma dada
situação se encontra em contacto, se considera em contacto suficientemente forte para
justificar a aplicação do seu direito material, De Nova sugere, no espírito da teoria de Quadri
que, uma vez verificada a ausência de toda a disposição relativa ao nosso problema, se poderia
tentar sair do impasse através da criação de uma regra especial, regra tanto quanto possível
conforme ao sentido daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a conexão mais
estreita.
É, todavia, evidente que a solução proposta afectaria gravemente a certeza do direito. O
que se pretende, nos casos de autêntico vácuo jurídico, é a aplicação da norma da lei que
estiver ligada ao caso através da conexão mais estreita, apesar de essa lei se não considerar
aplicável e, portanto, com violação de um dos princípios básicos da teoria da unilateralidade.
A solução sugerida por De Nova é um expediente destinado a encobrir a realidade inegável da
violação deste princípio.
Encarando a questão no seu conjunto – conflito positivo ou cúmulo jurídico e vácuo
jurídico ou lacuna –, entende-se que sob o ponto de vista da certeza do direito a doutrina da
bilateralidade suplanta o sistema unilateralista.
O sistema bilateralista na sua forma pura não é com certeza aceitável: há necessidade de
lhe introduzir algumas correcções. Não é propriamente o bilateralismo, senão a sua concepção
tradicional – que foi sustentada por Anzilotti – e que de todo não corresponde aos visos do
direito internacional privado.
§ 2º
Estrutura da regra de conflitos
Os elementos estruturais de norma
86. A norma bilateral obedece a um esquema lógico do tipo seguinte: as questões jurídicas
pertencentes à categoria x serão resolvidas de conformidade com os preceitos da lei a que a
situação concreta estiver ligada através de uma conexão da espécie y.
A norma de conflitos é constituída por três partes: o objecto da conexão, o elemento de
conexão e a consequência jurídica.
O objecto (ou categoria) da conexão (aquilo que se conexiona ou conecta com
determinada lei: a lei que no caso concreto for designada pelo emento de conexão da norma)
é definido por meio de um conceito técnico-jurídico, o chamado conceito-quadro da regra de
conflitos. Ao elemento de conexão cabe a tarefa de «localizar» a situação jurídica num espaço
legislativo determinado: de a «situar», pelo que toca à valoração de tal ou tal dos seus
aspectos ou perfis, no quadro de um certo sistema de direito. Quanto à consequência jurídica,
por último, ela consiste justamente na declaração de aplicabilidade de preceitos jurídico-
materiais da lei que for designada pelo elemento de conexão.
A uma norma de conflitos não corresponde uma única consequência jurídica, mas tantas
quantos os ordenamentos existentes. Para dirimir as questões de direito pertencentes ao
âmbito do instituto x , qualquer lei pode ser competente.
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82
No entanto, para dirimir as questões desse mesmo tipo que se levantarem nas diversas
situações concretas da vida, será chamada a lei à qual a situação a regular estiver ligada
através de uma conexão de tipo y.
87. São duas as principais questões que o elemento de conexão da regra de conflitos de DIP
suscita. Uma é a do conflito de conexões ou de sistemas de normas de conflitos; a outra é a do
critério a que deverá obedecer a escolha do factor de conexão. É em função dos interesses que
se fazem valer nos vários sectores do direito internacional privado que se optará, nos
diferentes casos, ou por um sistema de conexão única, ou por um sistema de conexão plúrima.
Note-se que o sistema de conexão única nem sempre conduzirá a determinação de uma
só lei: como adverte Wengler, há factores de conexão que podem eventualmente levar-nos
por duas ou mais vias. Em tal caso, isto é, quando o elemento de conexão adoptado nos põe
no caminho de duas leis, há que arredar normalmente a hipótese de a aplicação simultânea
(cumulativa ou alternativa) dessas leis corresponder ao sentido da regra de conflitos;
sendo assim, deverá proceder-se a uma nova escolha entre as conexões que se nos
apresentarem no caso concreto.
Sempre que a anomalia apontada se verificar, o critério que deverá presidir a esta forçosa
especificação ulterior do elemento de conexão não poderá ser outro senão o que levou à
escolha do factor utilizado pela norma de conflitos. Sendo a nacionalidade adoptada como
elemento de conexão por se entender que ela é o laço mais forte e mais duradouro que pode
existir entre indivíduo e Estado, quando duas relações desta natureza se apresente, haverá
que optar por aquela que traduza a vinculação mais viva e mais real.
88. Os interesses a cuja satisfação o DIP vai dirigido aconselham por vezes o recurso a duas ou
mais conexões para uma só matéria. É o que se passa quando o que sobretudo releva é
garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a constituição ou a
extinção de certa situação jurídica. Opta-se em tais casos por um sistema de conexão múltipla
alternativa: das leis indicadas, virá a ser escolhida aquela que conduza na espécie ao resultado
tipo a priori por mais justo.
Não pertencem à categoria citada normas que, oferecendo embora um leque de soluções,
todavia querem que o juiz determine em cada caso a conexão mais estreita ou mais
significativa e proceda seguidamente nessa conformidade.
O processo de escolha da conexão relevante não ficou perfeito na fase de criação
«legislativa» da norma, e esta terá, por isso, de ser completada na fase subsequente da sua
aplicação. O legislador não fixou ele mesmo a conexão decisiva – remeteu ao juiz o encargo de
a determinar.
…
89. No pólo oposto ao do sistema da competência alternativa de duas (ou mais) leis, vamos
encontrar o da competência cumulativa. Do que agora se trata é de subordinar a produção de
certo evento jurídico ao acordo de duas leis, ou seja, à satisfação dos requisitos estabelecidos
em cada uma delas;
isto com vista a evitar a criação de situações que não possam aspirar ao reconhecimento num
dos Estados com elas mais estreitamente conexos. O escopo aqui visado é a harmonia jurídica
internacional.
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83
Este sistema não é recomendável como critério geral e dele só encontramos raras
aplicações nas legislações mais recentes. Como observa Batiffol, ele promete aplicar
cumulativamente as duas leis em presença, para ao fim e ao cabo aplicar apenas uma delas – a
mais rigorosa e restritiva.
Mas é importante não confundir competência cumulativa com aplicação distributiva de
duas leis. Neste caso, também se trata de fazer apreciar por dois sistemas jurídicos as
condições de validade do mesmo acto, porém, em termos de a matéria ser entre eles repartida
conforme determinado critério. Por exemplo, pode estabelecer-se que a capacidade para
contrair casamento se avalia, quanto a cada um dos futuros cônjuges, pela respectiva lei
nacional (art. 49.° do CC). Mas a este respeito importa advertir que certos impedimentos
matrimoniais assumem carácter bilateral. Trata-se de proibições que, parecendo dirigirem-se a
um só dos interessados, na realidade atingem os dois.
O caso mais importante a citar neste contexto é o do impedimento de vínculo. O art.
1601.°, al. c) do CC não se limita a proibir o casamento do cidadão português ele próprio ligado
por vínculo matrimonial anterior ainda não dissolvido, mas deve sem dúvida alguma
interpretar-se no sentido de que declara inábil todo o nacional para contrair casamento com
qualquer estrangeiro (ainda) legalmente casado segundo o ponto de vista do direito
português, posto que a lei nacional desse estrangeiro admita a bigamia. Aqui trata-se de um
impedimento bilateral.
90. Outra categoria de conexões múltiplas é a das conexões subsidiárias. Prevenindo a
hipótese de faltar o elemento erigido em factor primário de conexão (por exemplo, a
nacionalidade do interessado ou a nacionalidade comum dos cônjuges), a norma de conflitos
designa o elemento sucedâneo a que em tal hipótese haverá que recorrer (a residência
habitual do indivíduo, a residência habitual comum dos cônjuges). Pode utilizar-se o mesmo
sistema quando se torne impossível averiguar o conteúdo do direito estrangeiro designado
através do elemento de conexão estabelecido, ou quando se não consiga determinar o próprio
elemento de conexão (art. 23.°, nº 2). [Recorrer-se-á à lei da residência habitual do individuo, não só
quando este for apátrida, senão também quando for desconhecida a sua nacionalidade, ou não se
conseguir apurar o conteúdo dos preceitos da respectiva lei nacional.] A escolha do factor sucedâneo
deverá obedecer a critérios semelhantes àqueles de que resultou a da conexão primária.
O referido sistema da conexão subsidiária destina-se fundamentalmente a obviar uma
situação de impasse.
A relevância do elemento de conexão escolhido pela norma de conflitos é por vezes
colocada sob determinada condição. É possível que uma lei seja declarada aplicável sob
condição de ela própria se considerar competente. É o que se passa em virtude do reenvio: se
a condição posta não se verifica, se a lei indicada pelo DIP da lex fori se não reputa aplicável,
aplicar-se-á aquela que for designada pela norma de conflitos da referida lei. É quase sempre
uma ideia de harmonia jurídica internacional que está na base desta orientação.
Noutros casos, a não verificação da condição terá por consequência a aplicação de um
sistema jurídico designado, também ele, pelo DIP da lex fori e designado mesmo em via
principal: assim, a regra de conflitos poderá estipular que as sucessões por morte serão
reguladas pela lei pessoal do autor da herança, a menos que a lei da situação dos bens
(imóveis) se considere exclusivamente competente.
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A condição de que depende a aplicabilidade de uma lei está ligada ao seu conteúdo
jurídico-material: a lei concretamente designada pelo elemento de conexão da norma de
conflitos não será aplicada se conduzir a uma solução gravemente inadequada. A regra de
conflitos determina o elemento de conexão a que deverá então recorrer-se.
§ 3º
Relevância do factor tempo na actuação da regra de conflitos
91. Sucessão de regras de conflitos do foro. É principalmente o pensamento de Zitelmann que
vamos encontrar na origem da doutrina ainda hoje dominante. Ele resolve a questão de saber
qual o problema que perante uma situação concreta deve ser solucionado em primeiro lugar –
se o de DIP ou o de direito transitório – pela precedência do primeiro. Resolvida a questão da
aplicabilidade no espaço das regras de conflitos (que só podem ser as da lex fori), «importará
resolver a da aplicabilidade no tempo das mesmas regras, quando estas tenham sofrido
alteração». Haverá que recorrer ao procedimento da analogia. A aplicação retroactiva da nova
norma de DIP implicaria a violação dos direitos adquiridos, tal como implicaria uma aplicação
retroactiva do direito material.
Zitelmann ignorou que há uma diferença entre a questão transitória material e a questão
do DIP transitório.
Na primeira apenas se considera o factor tempo, ao passo que na segunda se tem de
considerar também o factor espaço. Não faria qualquer sentido aplicar as antigas regras de
conflitos se estas, hoje revogadas, nunca tiveram qualquer conexão com a relação jurídica a
julgar.
Se a relação jurídica em causa não tinha qualquer conexão com o ordenamento do foro, é
aplicável a nova regra de conflitos, porque a lei material por ela designada não pode deixar de
ser uma das leis conectadas com a relação.
«… Com a alteração da regra de conflitos não temos uma alteração do círculo das leis
«eficazes», mas apenas uma alteração do critério de escolha de uma dessas leis…». A regra de
conflitos do DIP apenas se limita a intervir dentro do âmbito demarcado pelo princípio
fundamental do DIP, segundo o qual a quaisquer factos apenas podem ser aplicadas as leis que
com eles estejam em contacto. Aquela regra opera como norma ou critério de resolução de
conflitos de normas e a sua esfera de aplicabilidade no espaço e no tempo é ilimitada. «As
regras de conflitos, na veste de normas de resolução de concursos, operam apenas como
critério de escolha entre leis em contacto com a situação da vida», como normas «que
distribuem a competência para regular a situação entre as leis em contacto com elas».
Mas a regra de conflitos também pode operar como regula agendi, dentro da esfera de
eficácia do ordenamento a que pertence, principalmente quando se trate de garantir a
validade da constituição de uma situação jurídica.
«É de aplicar a nova regra de conflitos, mesmo às relações anteriormente constituídas,
quando se trata de relações constituídas num país estrangeiro e que nunca tiveram qualquer
espécie de conexão apreciável com o direito do Estado local (lex fori).
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Se, pelo contrário, está em causa uma situação jurídica anteriormente constituída, tendo esta
constituição tido lugar no Estado do foro ou tento ocorrido num momento em que existia
entre este Estado e aquela situação uma conexão relevante, não pode deixar de aplicar-se a
regra de conflitos antiga sob pena de retroactividade.
92. Sucessão de leis no ordenamento jurídico aplicável. Ao proceder à aplicação do direito
estrangeiro mandado aplicar pela regra de conflitos, pode o julgador deparar com o problema
de saber se, havendo uma alteração no conteúdo desse direito, haverá que tomar em conta a
antiga ou a nova regulamentação material. É este o tema do conflito transitório do direito
estrangeiro aplicável.
Para a resolução de tal questão seria abstractamente possível admitir a opção pelo direito
intemporal do foro. Mas esta solução não estaria em consonância com o sentido da atribuição
de competência a um direito estrangeiro para a regulamentação de uma situação
plurilocalizada. Perante uma hipótese de sucessão de normas materiais aplicáveis, deve caber
à lex causae a tarefa de indicar os princípios com base nos quais se optará por um ou por outro
dos regimes sucessivamente vigentes. Só desse modo se conseguirá a aplicação do direito
estrangeiro nos termos em que ele seria aplicado pelo julgador da lex causae, o que
contribuirá certamente para a harmonia internacional de decisões.
Devem admitir-se duas ressalvas. A primeira diz respeito aos casos em que o direito
transitório da lex causae acolhe uma solução contraditória com o sentido da atribuição de
competência ao direito estrangeiro, apurado através da interpretação da regra de conflitos
pertinente, e do contexto do sistema geral de conflitos do foro. Por força desta segunda
ressalva, não se aplicará o direito intemporal estrangeiro quando conduza a resultados
incompatíveis com a ordem internacional do Estado do foro. A contrariedade à ordem pública
pode revelar-se mormente em certos casos de aplicação retroactiva das novas normas
materiais. Contudo, a aplicação retroactiva da lei material, só por si, não pode reputar-se
contrária à ordem pública internacional.
Considerações análogas devem tecer-se a propósito do conflito transitório de regras
conflituais estrangeiras (regras de conflitos, regras sobre reenvio), que devam ser tidas em
consideração por força do DIP do foro. A sua aplicação no tempo deve depender do
ordenamento em que se inserem
93. O conflito móvel. O problema do conflito móvel é suscitado por uma mudança na
concretização do factor de conexão e consiste em determinar qual a influência que poderão
exercer em situações jurídicas já existentes as mutações verificadas nas circunstâncias de facto
ou de direito em que se funda a determinação da lei aplicável.
Quando o legislador não o soluciona directamente (art. 29.° do CC), o problema do
conflito móvel deve resolver-se em face de cada norma de conflitos singular, tendo em conta
as razões que estão na base da escolha do elemento de conexão que ela indica. O que justifica
esta solução é o princípio da necessária unidade de legislação, que impõe a substituição da lei
actual à lei antiga; na hipótese do conflito móvel, este princípio só legitimaria a aplicação da
norma indicada pela concretização mais recente do elemento de conexão se essa norma
pertencesse à lex fori, o que nem sempre é o caso.
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O conflito móvel é conceitualmente um conflito de leis no espaço e não um conflito de
leis no tempo. Não se trata de um fenómeno de sucessão de leis no interior de um certo
ordenamento estadual, mas da “movimentação” de uma relação jurídica através de espaços
que imperam diferentes soberanias e diferentes sistemas de direito privado. A opção a tomar
é entre duas leis ambas vigentes em Estados distintos.
Enquanto o problema do DIP é um problema de dinâmica das relações jurídicas, o direito
transitório ou intemporal versa sobre um problema de dinâmica de leis.
À escolha de uma das concretizações do factor de conexão só pode chegar-se por via de
interpretação da norma de DIP em causa. A lei aplicável tem de ser determinada tanto no
espaço como no tempo.
O conflito móvel supõe uma conexão variável.
A qualquer acontecimento do mundo social correspondem um lugar e um tempo
determinados, pertencem à própria definição do evento e são obviamente inalteráveis. Tal
facto ocorreu em tal lugar e em tal momento. A referência ao lugar da verificação de um
evento não implica uma simples nota de localização espacial – coenvolve também uma nota de
situação temporal.
Os mais importantes factores de conexão variáveis são a nacionalidade, o domicilio ou a
residência de uma pessoa e a localização de uma coisa móvel.
No caso de conflito móvel no âmbito do estatuto pessoal, excepção feita das relações
entre os cônjuges respeitantes a convenções antenupciais e regimes de bens - em que o
legislador decidiu resolver o conflito suscitado por uma mudança de nacionalidade (ou de
domicílio) dos interessados, o que fez em favor da prevalência da nacionalidade comum dos
nubentes ao tempo da celebração do casamento (art. 53.° do CC) – no primeiro caso, dado o
carácter voluntário da adesão a uma nova comunidade nacional, deve entender-se que a
actual lei pessoal é aplicável à constituição de relações novas (relações entre os cônjuges - art.
52.°; separação judicial de pessoas e bens e divórcio - art. 55.°) e à determinação dos efeitos
correspondentes a uma situação já existente na conformidade da lei antiga.
Solução diferente estaria em oposição com a intenção primordial do DIP, que é promover
e assegurar o respeito e a continuidade das situações criadas ao abrigo de uma lei com a
aplicação da qual os interessados podiam contar.
Quanto aos casos relativos ao estatuto real (direitos sobre as coisas corpóreas), são
principalmente os interesses gerais do comércio jurídico que levam a preferir o situs rei como
conexão preponderante em matéria de direitos sobre as coisas móveis corpóreas (art. 46.°).
Há que preferir a lei da situação actual da coisa
Toda a solução diferente desta lesaria de modo intolerável o que constitui um princípio
universal de direito e que é o do respeito das situações jurídicas validamente estabelecidas ao
abrigo da lei que por então as regia – da lei então competente.
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Capítulo IV
O conceito-quadro e o problema da qualificação
94. É por meio de conceitos técnico-juridicos que as regras de conflitos definem e delimitam o
respectivo campo de aplicação – o espaço ou a área jurídica em que o elemento de conexão da
norma é chamado a operar. Tais conceitos têm a característica peculiar de serem aptos a
incorporar uma multiplicidade de conteúdos jurídicos; são conceitos quadro. A sua extensão é
muito variável: se alguns designam uma das grandes divisões clássicas do sistema de direito
privado (as obrigações ou os direitos reais, as sucessões por morte), outros referem-se aos
negócios jurídicos em geral, ou a certa categoria de negócios jurídicos, ou mesmo a um
aspecto isolado da sua regulamentação (como por exemplo a forma externa), ou ainda a
determinado instituto (como a filiação, o divórcio, a responsabilidade extracontratual).
São estes conceitos técnico-jurídicos que no seu conjunto constituem a famosissima
quaestio da qualificação em direito internacional privado.
95. Os problemas que se levantam são dois. O primeiro é o da interpretação dos conceitos
referidos.
É de conceitos construídos pela técnica jurídica que a norma do DIP se utiliza para
demarcar o objecto da conexão e, sendo assim, logo se põe a questão de saber como
interpretar tais conceitos.
Determinada regra de conflitos refere-se ao instituto da separação de pessoas e bens e do
divórcio e outra aos problemas que se inscrevem na área dos efeitos do casamento ou na dos
negócios jurídicos. Mas o que é casamento e o que é divórcio para a norma de DIP que utiliza
esse conceito? O problema tem sido resolvido de modos diferentes.
a) Segundo a perspectiva tradicional (teoria da qualificação da lex fori), a determinação do
conteúdo dos aludidos conceitos obtém-se recorrendo ao direito material da ordem jurídica
local. Os conteúdos subsumíveis ao conceito-quadro de dada norma de conflitos seriam
precisamente os que correspondem a esse mesmo conceito enquanto conceito próprio do
sistema de regras materiais da lei do foro. Na execução da aludida tarefa interpretativa deveria
proceder-se em termos de uma referência automática aos conceitos homólogos ao sistema de
preceitos materiais da lex fori.
Este ponto de vista não pode admitir-se.
b) Outra doutrina é a de Rabel que sustenta a necessidade de construir e interpretar a norma
de conflitos em função dos vários sistemas jurídicos cuja aplicação ela é susceptível de
desencadear. Compreendida em função de um direito material determinado, a regra de
conflitos mostra-se incapaz de dar satisfação às necessidades para que foi imaginada. Não é
com instrumentos puramente nacionais que pode acometer-se e levar-se a cabo uma tarefa
propriamente internacional, como a que compete ao DIP.
Na interpretação das regras de conflitos o recurso ao direito comparado é de preceito. Só
pelo método da comparação jurídica se torna possível apurar o conteúdo dos conceitos
utilizados pelas normas de DIP.
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c) A importância de que se reveste o direito comparado no âmbito do direito de conflitos é
inegável. O DIP é por natureza um direito aberto a todas as instituições e conteúdos jurídicos
conhecidos no mundo e a sua perspectiva forçosamente transcende os horizontes do sistema
jurídico interno e a linha de contornos dos respectivos conceitos. Na categoria normativa
própria de cada regra de conflitos hão-de incluir-se os múltiplos preceitos e os numerosos
institutos estrangeiros que, no ordenamento a que pertencem, se propunham realizar a
mesma função social que o legislador do foro teve em vista ao aludir a tal categoria, ou uma
função substancialmente análoga. Só o método comparativo permite captar nas instituições
dos diversos países, para além das diferenças de carácter técnico-jurídico que por vezes
levantam entre elas barreiras que se diriam intransponíveis, uma essência e destino comuns.
O recurso ao direito comparado, no momento da aplicação das normas de conflitos e da
subsunção aos respectivos conceitos-quadro dos conteúdos jurídicos que se ofereçam
constitui tarefa inevitável. Rabel entendia que os conceitos-quadro das normas de conflitos
deveriam definir-se por um processo de abstracção, a partir dos diferentes sistemas jurídico-
materiais. No entanto, o caminho proposto apresenta grandes dificuldades.
Todo o conceito-quadro deve ser tomado nos mais latos termos, em ordem a poder
abranger uma série indeterminada de preceitos e de institutos jurídico-materiais. As categorias
de conexão hão-de ter a elasticidade necessária para que em cada uma possamos incluir todas
as normas e instituições que a sua forma concreta e até o seu conteúdo, desempenhem, no
ordenamento estadual a que pertencem, uma função sócio-jurídica equivalente àquela que o
legislador tinha em mente, quando resolveu optar por determinado factor de conexão.
96. Todo o sistema de regras de conflitos deve ser preordenado à satisfação de determinados
interesses. Ao formular essas normas, o legislador deve proceder em termos de a cada matéria
ou zona de regulamentação jurídica ficar a corresponder a conexão mais adequada, em função
dos interesses que em cada um desses vários sectores devam considerar-se prevalecentes.
Determinar para cada preceito de direito conflitual o juízo valorativo que o enforma constitui o
momento mais relevante do respectivo processo interpretativo. A interpretação de toda a
norma de conflitos, como a de qualquer preceito jurídico, só pode ser uma interpretação
teleológica.
A interpretação dos preceitos do DIP e dos respectivos conceitos-quadro tem de ser
conduzida com certa autonomia. Pertencendo a norma de conflitos a lex fori, a esta lei tem de
pertencer também a sua interpretação. Por lex fori não podemos entender aqui a lex
materialis, mas sim a lex formalis, o direito internacional privado dessa lei. Seria um erro supor
que o conteúdo e limites dos conceitos próprios do direito de conflitos se obtêm
necessariamente e apenas por via de uma simples referência aos conceitos homólogos do
respectivo sistema de preceitos materiais. Um mesmo conceito pode assumir conteúdos
diferentes consoante o contexto normativo e que figura.
Não decorre daqui, porém, que o núcleo da previsão legal no caso da norma de conflitos
não possa considerar-se constituído por aqueles preceitos e institutos civis que o conceito
utilizado exprima no direito interno da lex fori. Todavia, além desse núcleo existirá muitas
vezes uma zona periférica formada por outros complexos normativos, a que do mesmo modo
convirá o tipo de conexão preferido pela regra de conflitos considerada.
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Um conceito-quadro abrange todos os institutos ou conteúdos jurídicos, de direito
nacional ou estrangeiro, aos quais convenha o tipo de conexão adoptado pela regra de
conflitos que utiliza o mesmo conceito. Esta conclusão reveste-se de fundamental importância
para resolução do problema da delimitação do âmbito das normas de conflitos umas em face
das outras.
97. O problema da qualificação assume a sua verdadeira importância no momento da
aplicação da norma: naquele em que se trata de averiguar se dado instituto ou preceito do
ordenamento designado por uma regra de conflitos da lex fori pode subsumir-se à categoria
normativa visada por essa regra.
O DIP ordena os preceitos materiais dos diferentes sistemas jurídicos, distribuindo-os
pelas diversas categorias que autonomamente estabelece. A classificação de um desses
preceitos, a sua inclusão na categoria x da norma de conflitos m da lex fori, depende de nele se
verificarem as características fundamentais expressas através do conceito que define a
categoria. Neste sentido, a qualificação cabe à lex fori.
Quanto, porém, ao material normativo a ordenar, esse pertence ao sistema jurídico em
que se enquadra: as suas características reais só nesse sistema poderão colher-se, tendo em
conta o seu conteúdo, as suas conexões sistemáticas e a função sócio-juridica que nele lhe for
assinalada. Nenhuma norma, nenhuma instituição jurídica poderá ser correctamente
entendida se não a situarmos no seu contexto próprio, se a isolarmos do todo orgânico a que
pertence.
Se à lex fori compete decidir se os preceitos considerados correspondem na verdade,
atentas as suas características primordiais ao tipo visado na regra de conflitos, é no quadro da
lex causae que vão pesquisar-se essas características – as características das normas materiais
potencialmente aplicáveis ao caso concreto.
98. Vendo o assunto doutra perspectiva, o problema central do tema da qualificação reside na
definição do objecto desta, ou seja, o quid a subsumir ao conceito-quadro. O problema do
objecto da qualificação é o do objecto da própria norma de conflitos.
A regra de conflitos destina-se a coordenar os diversos sistemas jurídicos conexos com a
situação da vida a regular, em ordem a evitar que leis diferentes, inspiradas em princípios
distintos se não contraditórios, sejam eventualmente chamadas a decidir a mesma questão de
direito. A norma de conflitos do direito internacional privado tem como objecto prevenir ou
eliminar os conflitos entre preceitos materiais oriundos de ordenamentos distintos.
Sendo esta a função do conceito-quadro, é a outros preceitos jurídicos que a norma se
refere em última análise – a preceitos materiais do ordenamento potencialmente aplicável são
eles que darão a resposta ao tipo de questões jurídicas visadas pela regra de conflitos em
causa: a questão da validade de um acto, a da forma do casamento, a da admissibilidade e
consequências do divórcio, a da posição sucessória do cônjuge sobrevivo, a dos pressupostos
da responsabilidade civil e da natureza e extensão do plano indemnizável.
Da lei designada pela norma de conflitos só podem considerar-se aplicáveis os preceitos
correspondentes à categoria definida e delimitada pelo respectivo conceito-quadro.
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90
Ou seja: uma lei nunca é convocada na totalidade das suas regras materiais, mas a norma de
conflitos da lex fori recorta no sistema a que se refere um sector determinado e localiza nele a
competência atribuída a esse mesmo sistema. A regra de conflitos incumbe a determinada lei
a execução de determinada tarefa normativa, isto é, confia-lhe a resolução de questões de
direito de certo tipo: é preciso que a intervenção desse ordenamento se efective através de
preceitos que justamente se destinem ao cumprimento dessa função. Se, por exemplo, uma lei
é declarada aplicável a título de estatuto real, não faria sentido admitir a inclusão no âmbito
de competência dessa lei de preceitos situados fora daquela categoria jurídica. [O art. 15.° do CC
especifica que “a competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que… integram o regime
do instituto visado na regra de conflitos.”]
O problema central da qualificação consiste em averiguar quais sejam, de entre os
preceitos materiais do ordenamento designado por certa norma de conflitos, os
correspondentes à categoria definida pelo conceito-quadro dessa norma – em determinar se
dado instituto ou preceito do referido ordenamento pode ser subsumido a tal categoria.
A qualificação como problema de subsunção de um concretum a um conceito ou a uma
categoria abstracta da lei. Para tanto, há que apurar se o concretum reproduz as características
técnicas que definem a categoria – que descrevem a hipótese da norma de conflitos encarada.
A que sistema jurídico recorrer para determinar as características predominantes do preceito
ou complexo normativo dado, a fim de lhe definir a sede ou a inserção sistemático-conceitual?
Aqui, nenhuma dúvida é possível. Temos de atender ao conteúdo e à função dos preceitos
em causa, situando-os na moldura do respectivo ordenamento jurídico.
Se à lex fori compete decidir se os preceitos considerados correspondem efectivamente,
atentas as suas características principais, ao tipo visado na regra de conflitos, é no quadro da
lex causae que vão colher-se essas características – as características dos preceitos
potencialmente aplicáveis ao caso concreto. Assim supera-se a tradicional antinomia entre
qualificação lege fori e qualificação lege causae.
99. Método ou doutrina seguida em Portugal.
A qualificação em DIP tem por objecto preceitos jurídico-materiais. A necessidade de
respeitar laços teleológicos que as várias normas podem ter entre si na ordem jurídica de que
são tomadas, exige de nós que interpretemos as regras de conflitos como referindo-se a elas a
categoria de preceitos jurídicos. O objecto preferível da qualificação são, portanto, as regras
do direito privado.
O problema da qualificação proprio sensu consiste em averiguar se tal norma ou complexo
de normas (m) de uma hipotética lex causae, atentas as características que reveste nessa lei,
entra na categoria de conexão de uma regra de conflitos (n) da lex fori: precisamente da regra
de conflitos de que derivará, em caso de resposta afirmativa à questão formulada, a
aplicabilidade daquele sistema.
Esta ideia é enunciada de forma expressa pelo art. 15.° do CC português: “a competência
atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm
nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.
Quando se alude aqui a uma lei de que se pressupõe a competência, está-se ainda na fase
das simples hipóteses.
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O que o art. 15.° quer dizer, em suma, é que, perante um sistema de direito S, e uma norma m
deste sistema, norma em que uma das partes se baseia para enunciar a sua pretensão (para
afirmar que determinada consequência jurídica se verificou), vai começar-se por considerar
aquele sistema como hipoteticamente aplicável ao caso vertente. [O art. 15.° pressupõe que o
conteúdo material desse sistema já se tornou conhecido, tendo em conta os critérios adoptados em
matéria de averiguação do conteúdo do direito estrangeiro aplicável, real ou hipoteticamente.] O passo
seguinte consiste em averiguar se a norma m, considerados o seu conteúdo e função,
corresponde realmente à categoria de conexão de uma determinada regra de conflitos da lex
fori. Essa regra de conflitos só pode tratar-se daquele de que se partiu para julgar
hipoteticamente aplicável o sistema de direito em questão. Finalmente, se se chegar à
conclusão de que as características do tipo ou da categoria de conexão da referida norma de
conflitos se encontram com efeito reproduzidas na disposição material m, nada mais restará
fazer senão declarar tal disposição aplicável à situação jurídica concreta. Se, ao invés, a
hipótese de que se partiu não se confirmar, terá de concluir-se pela inaplicabilidade do sistema
de direito S.
O Código Civil português afastou-se decididamente de toda aquela teoria que preconiza o
recurso ao ponto de vista do direito material da lex fori para resolver o problema da
qualificação. Nele se repudia o processo clássico segundo o qual, para chegar à determinação
da regra de conflitos aplicável, há que começar por submeter a situação jurídica concreta às
disposições do direito interno do foro a que caberia solucionar a questão sub judice, se a lex
fori fosse, no caso vertente, a lei aplicável. [O traço característico de qualquer teoria que se filie na
concepção tradicional consiste nisto: deve começar-se por subsumir a situação concreta a uma
disposição ou grupo de disposições do direito material da lex fori, tal como se se tratasse de um caso
incluído no âmbito de competência desta lei. Procurar-se-á seguidamente a norma de conflitos que
inclua na sua previsão disposições materiais da mesma natureza daquelas. A lei designada por esta
norma será, em definitivo, a lei aplicável. Esta é a teoria de Roberto Ago].
O legislador português tomou posição contrária a este procedimento, que não considerou
necessário, nem conforme com o princípio da igualdade.
a) Não o julgou necessário porque toda a situação da vida internacional contém em si mesma
os seus pontos de contacto, as suas conexões, e traça por si mesma o círculo das leis
“interessadas”. Não existe a priori razão para excluir qualquer delas deste juízo liminar. É
conforme ao espírito de abertura que caracteriza o direito internacional privado que se
considere implícito em todo o sistema de regras de conflitos um princípio por força do qual
uma legislação A é potencialmente aplicável a uma situação multinacional B pelo simples facto
de entre uma e outra existir um nexo significativo, de acordo com os critérios geralmente
admitidos nesta matéria. O que interessa saber é se a referida lei A decide a controvérsia entre
as partes por meio de preceitos jurídico-materiais subsumíveis à categoria normativa da regra
de conflitos do foro que tiver designado essa legislação como hipoteticamente aplicável ai casi
vertente.
Por isso preconizamos a desnecessidade da qualificação primária ou de primeiro grau,
defendida por Ago.
b) O método descrito é o único conforme ao princípio da igualdade.
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92
O que este princípio postula é que as condições que decidem da aplicabilidade ao caso da
lei estrangeira sejam as mesmas que determinariam a aplicação da lex fori. É mister que uma
legislação estrangeira, A, seja declarada aplicável à situação concreta B desde que se possa
dizer que, em circunstâncias análogas de facto e de direito, a lex fori se julgaria competente. A
aplicação desta lei não depende senão da existência de uma relação de correspondência entre
as normas por mediação das quais ela se propõe resolver a questão litigiosa e o “tipo
normativo” da regra de conflitos que a designe. (págs. 216 e 217 – exemplos)
100. Em resumo:
A denominada qualificação primária ou de primeiro grau é uma abordagem inútil, contrária
a esse espírito de rasgada abertura que deve continuar a ser a pedra de toque de todo o
sistema de DIP. Isto conduz à rejeição da teoria clássica, seja qual for a modalidade que se
considere.
Comecemos por aquela que mais perto se encontra da nossa concepção, por também nela
se operar com a ideia de uma qualificação de normas. Trata-se da teoria de Robertson. Para
este autor, há que distinguir no processo de qualificação duas operações. A primeira incide
sobre a situação de facto que dá origem à questão ou controvérsia jurídica. O problema que se
levanta aí é o da subsunção da factualidade sub judice a uma categoria abstracta da lei – a uma
das categorias do direito de conflitos do foro – em ordem à determinação do ordenamento
competente. É da própria lex fori que depende a solução deste problema.
Diversamente, a segunda qualificação é uma qualificação de normas. A qualificação
primária tornou possível a individualização da lei ou leis aplicáveis aos diferentes aspectos da
situação litigiosa. Trata-se de averiguar se uma norma particular ou conjunto de normas do
sistema ou de um dos sistemas designados como competentes pertence ou não à ordem de
questões que a regra de conflitos do foro deferiu a esse mesmo sistema. Essa definição
compete ao próprio sistema jurídico de que faz parte o preceito ou grupo de preceitos em
causa.
A teoria exposta não difere da por nós sustentada no que tange à chamada qualificação
secundária. O verdadeiro ponto de divergência entre ambas é o tema da qualificação primária.
Robertson observa que o nosso problema surge, por vezes, como incidente no processo
de actuação da norma de conflitos já determinada como aplicável em momento anterior; em
tal hipótese, a única questão susceptível de pôr-se é uma questão de qualificação secundária.
O conhecimento de qual seja a regra de conflitos aplicável ao caso supõe que se tenha
previamente “qualificado” a situação factual que se apresenta ao juiz, isto é, que se tenha
previamente operado a sua subsunção a uma das categorias do direito conflitual do foro. É
nesta operação que consiste a qualificação primária. Qualificados os factos, está definida a
norma de conflitos aplicável e fixada em definitivo a competência da lei. A qualificação
primária (lege fori) seria, assim, um passo obrigatório e decisivo para a determinação da regra
de conflitos apropriada ao caso e da legislação competente.
O certo é que este entendimento das coisas e este procedimento estão bem longe de ser
forçosos.
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93
Para outro dos ramos da teoria tradicional – que contra entre os seus representantes
Roberto Ago – há igualmente que desdobrar a questão da qualificação em dois problemas. O
primeiro, como problema de interpretação da norma de DIP, é um problema a resolver no
âmbito da lex fori. Consiste em averiguar quais as relações da vida que a regra de conflitos
pretende designar através de uma determinada qualificação jurídica. Essas relações são
precisamente aquelas que, se não fosse a circunstância de se apresentarem como estranhas à
vida jurídica local, encontrariam a sua disciplina nas normas substanciais do ordenamento do
foro que atribuem a referida qualificação às hipóteses que contemplam.
Resolvido este ponto, está determinada a regra de conflitos aplicável ao caso e
encontrada a lei competente. Há que qualificar de novo esta relação; e como o problema que
se levanta agora é relativo à interpretação e aplicação de normas do sistema jurídico
estrangeiro indicado como aplicável pelo DIP do foro, nenhuma dúvida de que é à luz deste
sistema que cumpre resolvê-lo.
Tal é a denominada teoria da “dupla qualificação”.
I) A teoria exposta distingue-se da precedente na medida em que nela a segunda qualificação
não tem por função “localizar” a competência atribuída a uma lei em determinado capítulo ou
sector do sistema, mas vai tão-somente dirigida à pesquisa das normas que na lei designada
regulam os tipos de situações em que se enquadre a situação concreta. Trata-se de uma
doutrina que por inteiro se desinteressa da “natureza” que os preceitos estrangeiros aplicáveis
assumem no sistema legislativo a que pertencem.
Quanto a nós, esta visão das coisas não é correcta. O DIP actua por adstrição de funções
normativas aos diferentes sistemas de direito. As suas normas operam cortes, distinguem
planos ou perfis, talham sectores nesses vários sistemas, e definem as condições de
aplicabilidade dos preceitos correspondentes a cada uma dessas divisões.
II) Relativamente à qualificação de competência.
a) Segundo Ago, este problema consiste em averiguar a que situações da vida quer a regra de
conflitos referir-se mediante o emprego de determinada noção jurídica – e que a questão se
resolve recorrendo às normas substanciais da lex fori que utilizam o mesmo conceito para
delimitar a esfera de relações que pretendem disciplinar.
Roberto Ago entende as normas de conflitos como exclusivamente destinadas a definir e
balizar o campo de aplicação dos sistemas jurídicos estrangeiros. O DIP seria uma disciplina
jurídica especial instituída para aquelas relações que, por estranhas à vida interna do Estado,
não seria adequado submeter ao ordenamento local. Para nós o DIP é o conjunto de critérios
normativos através dos quais se há-de apurar, em qualquer hipótese de conflito ou concurso
de leis, qual deverá ser aplicada. A aplicação dos preceitos materiais do ordenamento nacional
também está dependente da intervenção de uma norma de DIP, salvo tratando-se de relação
puramente interna. As normas de conflitos do Código de 1966 são rigorosamente bilaterais,
isto é, são normas que se propõem delimitar tanto o campo de aplicação das leis estrangeiras,
como o âmbito ou esfera de competência do próprio direito nacional. Os pressupostos de
aplicabilidade dos diferentes sistemas jurídicos são os mesmos, pois a norma que os manda
aplicar é efectivamente uma só.
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O legislador inspira-se num princípio de paridade de tratamento, ou seja, na ideia de que os
factores que decidem da aplicação das suas próprias leis hão-de ser também os que
desencadeiam a aplicação das leis dos outros Estados. Só deste modo o direito de conflitos
nacional estará à altura da missão internacional que lhe cumpre assumir.
Sendo a norma de conflitos real uma única, parece evidente que os factores que nessa
regra unilateral decidem da aplicação dos preceitos da lex fori terão de ser os mesmos que
cobram relevo na moldura das outras regras unilaterais em que se desdobra a norma de
conflitos considerada. A aplicabilidade dos preceitos materiais da lei do foro a determinada
situação da vida depende unicamente do facto de os preceitos em causa, tomados pelo que
estatuem e pelo escopo que visam ao estatuir desse modo, caírem dentro do âmbito traçado
pela regra de conflitos que justamente conexiona a relação sub judice com tal ordenamento.
Por exemplo, a norma de conflitos que submete as relações entre pais e filhos à lei
pessoal dos pais. Se estes são portugueses e se averigua que determinado preceito da lei
portuguesa, dado o seu conteúdo e fim, se integra exactamente no estatuto daquelas relações
jurídicas, de nada mais precisamos para declarar esse preceito aplicável ao caso.
É justo que o DIP coloque os diferentes sistemas jurídicos em pé de igualdade, ou seja,
que uma legislação estrangeira seja considerada competente sempre que, se ela fosse a lex
fori e as mesmas as circunstâncias ocorrentes, a lex fori se apresentasse como aplicável.
Tal solução só resultará possível desde que se renuncie à ideia de que há que proceder
inicialmente a uma qualificação da situação factual concreta, recorrendo para tanto ao sistema
de regras materiais do ordenamento do foro.
b) A doutrina a que aderimos assegura de imediato a aplicação ao caso concreto de todos os
preceitos da lei declarada competente que se relacionem de modo essencial, pelo conteúdo,
fins e conexões sistemáticas, com a matéria ou a questão de direito em causa.
A referência da norma de DIP a uma lei (quer se trate da lei do foro, quer de qualquer
outra) não abrange a totalidade das suas disposições, mas vai apenas dirigida às que possam
subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.
c) Só a posição adoptada pela doutrina portuguesa e o CC português toma na devida conta o
princípio da paridade de tratamento, porque só ela se mantém fiel à ideia de que os factores
determinantes da aplicabilidade das leis estrangeiras deverão ser os mesmos que decidem da
aplicação das nossas próprias leis. Toda a qualificação lege fori privilegia esta lei obrigando a
subsumir ao seu sistema de regras materiais a questão de direito em causa, a fim de se chegar
à identificação da regra de conflitos aplicável, lesa manifestamente o princípio da igualdade de
tratamento.
101. Os conflitos (positivos e negativos) de qualificações. No sistema jurídico S, designado
pela regra de conflitos M, a norma a que caberia resolver a questão controvertida pertence
justamente à categoria normativa visada naquela regra, e o mesmo se passa com o sistema S,
a que se refere a regra de conflitos n: aí temos uma situação em que se verifica a concorrência
de preceitos materiais de leis diferentes, convocadas a títulos também diferentes, para regular
o mesmo caso, ou o mesmo aspecto de certo caso (cúmulo jurídico).
A hipótese inversa – ausência de normas aplicáveis, vácuo jurídico – é igualmente possível.
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A solução dos problemas deve normalmente buscar-se no plano do próprio DIP. Tentar-
se-á definir uma relação de hierarquia entre as qualificações conflituantes, o que é o mesmo
que dizer entre os institutos ou as categorias de normas por elas referenciadas. Por tal via se
chegará ao sacrifício de uma das regras de conflitos em presença e à não aplicação do sistema
jurídico por ela indicado. O critério adoptado para escolher uma das duas qualificações é o
critério dos fins a que as várias normas de conflitos vão apontadas – os interesses que elas
intentam servir.
Há que ter em conta as soluções oferecidas pelas próprias leis em presença, já para entre
elas optar, já para as harmonizar entre si (adaptação), em termos de se tornar possível a sua
aplicação combinada, já para aplicar uma única dentre elas, mas depende de
convenientemente ajustada à nova situação que se apresenta (ainda adaptação).
Exemplo: A e B, ambos alemães, prometem-se mutuamente em casamento. Algum tempo
depois, B – que nessa altura se encontra em França – revoga a sua promessa sem justa causa.
Pergunta-se que direitos poderá a outra parte fazer valer. Suponhamos que a questão se
levanta em Portugal.
As disposições da lei alemã sobre os esponsais pertencem ao domínio do direito da
família, sendo portanto, o direito alemão competente – e aplicáveis as aludidas disposições
desse sistema jurídico. O direito francês não contém qualquer regulamentação especial em
matéria de contrato esponsalício e, por conseguinte, a ruptura da promessa de casamento só
poderá ser relevante, em França, se encarada do ponto de vista da responsabilidade por facto
ilícito extracontratual. Nesta matéria, a conexão decisiva, segundo o DIP português, é o lugar
onde decorre a actividade causadora do prejuízo. Aqui estamos na presença de um caso de
cúmulo jurídico.
O conflito deve resolver-se a favor do direito alemão, porque, de duas regras materiais
em competição, se uma reveste carácter de generalidade e a outra contempla em especial o
tipo de situações em foco, é a última que deve prevalecer: lex specialis derogat legi generale.
O facto de a doutrina propugnada sobre a qualificação poder engendrar dificuldades do
tipo das que acabam de ser referidas não é razão que permita condená-la. Só uma posição de
rígida sujeição à lex fori, como a que é defendida por Ago poderia eliminar aquelas
dificuldades; no entanto, essa tese é absolutamente inaceitável, como se demonstrou, quer no
seu mesmo princípio fundamental, quer em razão da impropriedade das soluções que em
muitos casos forçaria a admitir. Mas, na verdade, tais situações serão fenómenos inevitáveis,
enquanto o direito de conflitos continuar a servir-se, para resolver os seus problemas, do
processo ou técnica da especialização. Nenhuma teoria da qualificação estaria em condições
de suprimir esses fenómenos, eliminando dos quadros do DIP o problema específico que eles
suscitam: o problema da adaptação.
102. Conflitos positivos de qualificações; algumas aplicações da doutrina exposta.
a) Conflitos entre a qualificação «forma» e a qualificação «substância»
Os conflitos deste tipo resolvem-se pela atribuição de primazia à qualificação
«substância» e à norma de conflitos relativa aos requisitos de fundo do acto jurídico.
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Basta atentar nos fins a que se dirige a criação de uma conexão especial para a forma
externa dos negócios jurídicos. Dada a natureza unitária do negocio, o que estaria em princípio
indicado era submetê-lo no conjunto dos seus aspectos – validade intrínseca, requisitos de
forma e efeitos – a uma única lei. Mas ponderava-se também que razões práticas de valia
inegável militam a favor da manutenção da velha regra estatutária locus regit actum. Em
muitos casos, torna-se difícil aos interessados apurar com rigor, no país onde se encontram e
onde pretendem celebrar o negócio jurídico, a lei aplicável à substância do acto ou as
formalidades prescritas por essa lei; com Savigny, o princípio locus regit actum, sem deixar de
vigorar, perdeu a sua natureza imperativa tradicional e passou a significar apenas que o acto
jurídico não deixará de produzir efeitos se obedecer, não à forma da lei chamada a regular-lhe
a substância, mas à da lei do lugar da celebração.
Na hipótese de um conflito entre normas das referidas leis originado numa divergência de
«qualificações», optava-se pela qualificação de substância e pela aplicação do sistema jurídico
designado pela regra de conflitos relativa a esta matéria. Se da lei competente para regular a
substância do acto resulta ser este válido, ao passo que a lex loci o julga nulo por defeito de
forma, a solução da validade é aqui a solução incontestavelmente certa; a oposta estaria em
contradição com o escopo fundamental da locus regit actum.
Chegou-se ao entendimento de que a autonomia do estatuto da forma é incompleta,
porque o estatuto do negócio jurídico pode exigir a observância de uma forma especial,
mesmo que o negócio seja celebrado no estrangeiro.
Esta orientação foi expressamente consagrada no nosso CC, no art. 36.°, nº 1, para os
negócios jurídicos em geral, no art. 65.°, nº 2, para as disposições por morte. O lugar da
celebração do negócio só vale entre nós em matéria de forma como conexão secundária.
103. Se na celebração do negócio se deu cumprimento à lex loci, mas deixou de se observar a
forma que a lex causae prescreve, sob pena de nulidade, ainda que o acto seja praticado no
estrangeiro, o preceito da lex causae prevalece. Esta hipótese nada tem que ver com o conflito
de qualificações.
Caso Bártolo. É o caso estudado por Bartin, do testamento hológrafo feito por um
holandês em França. O direito francês admite o testamento hológrafo; diversamente, o Código
Civil holandês (art. 992.°) não só não considera válida esta forma de testar, mas nega
expressamente todo o valor aos testamentos hológrafos de nacionais holandeses feitos no
estrangeiro. Para Bartin, o problema devia pôr-se nestes termos: tudo depende da qualificação
que se atribua à questão da admissibilidade do testamento hológrafo e à norma do CC
holandês que a resolve pela negativa. Trata-se de uma questão ou ponto de mera forma, como
se entende em França? Será competente a lei francesa e o testamento válido. Na Holanda,
todavia, considera-se que a referida proibição do art. 992.° estabelece uma incapacidade.
Aceitando-se esta premissa, será aplicável o direito holandês e nulo o testamento. Bartin
pronunciava-se em geral pela prevalência da qualificação lege fori, e por isso concluía pela
validade do acto testamentário.
No entanto, não se tratava de um conflito entre lex patriae e lex loci actus. Tratava-se sim
de um conflito ostensivo, patente entre duas normas de DIP: a do sistema jurídico francês que,
consagrando o princípio locus regit actum, reivindica para este sistema a plena competência
no âmbito da forma dos negócios jurídicos, e a do art. 992.° do CC holandês que em matéria
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testamentária introduz certo desvio àquele princípio, a favor da lei nacional do testador,
sempre que esta lei seja a holandesa.
104. Caso de conflito de qualificações.
O casamento de um grego com uma alemã, celebrado em Colónia na forma civil, única
que o direito alemão conhece, numa época em que, segundo a perspectiva do direito grego, o
acto não chegava a participar da natureza do matrimónio. Esta discrepância traduzia um
antagonismo radical de concepções acerca da natureza do matrimónio: um puro acto do
estado civil na Alemanha, um acto essencialmente religioso, um sacramento, na Grécia. Nesta
concepção filiava-se a norma do CC grego (art. 1367.°) que impunha aos cidadãos gregos a
celebração religiosa, mesmo que o casamento fosse realizado em país estrangeiro. Logo, esta
norma dizia respeito à substância do acto. A sua aplicabilidade ao caso concreto não suscitava
dúvidas. E o mesmo se diz quanto aos preceitos da lei alemã que regulam a solenidade do acto
matrimonial: regras de mera forma, elas situam-se incontestavelmente dentro da esfera de
competência da lex loci.
Existe aqui um conflito (positivo) de qualificações: se as normas do direito alemão
relativas à solenidade do acto matrimonial correspondem à categoria de conexão da regra de
conflitos do art. 50.° do nosso CC, também por seu turno a citada antiga norma da legislação
grega era subsumível ao conceito-quadro «substância ou validade intrínseca do casamento».
Tanto em relação a umas como a outra se verificam os pressupostos que decidem da sua
aplicabilidade ao caso concreto. Trata-se, porém, de disposições inconciliáveis, cuja aplicação
simultânea era impossível.
O conflito deveria resolver-se pela prevalência da qualificação substância. Era esta a
solução que melhor se coadunava com a natureza da regra locus regit actum no sistema de DIP
português.
No entanto, talvez deva entender-se que a solução a que se chegou – predomínio da
qualificação «substância», daí aplicação exclusiva da lei pessoal e, inexistência do casamento –
é repelida pela ordem pública internacional do Estado português. Ela afrontaria o princípio da
liberdade religiosa, que é um princípio fundamental da nossa ordem jurídica (art. 8.°, nº 3 da
CRP). E a liberdade religiosa não constitui só garantia dos cidadãos portugueses, mas de todos
os indivíduos residentes em Portugal (art. 7.°, § 2º da CRP).
É indubitável que o cidadão grego poderia contrair validamente o seu casamento em
Portugal na forma puramente civil. Não se compreenderia que o Estado português, depois de
garantir nestes termos aos estrangeiros a liberdade religiosa, se negasse a reconhecer-lhes os
efeitos do exercício dessa mesma liberdade num país estrangeiro – um país que também a
garanta.
105. b) Conflito entre a qualificação «real» e a qualificação «pessoal»
Neste caso prevalece a qualificação real sobre a qualificação pessoal.
A ligação da coisa ao Estado territorial é muito mais forte do que a do indivíduo ao Estado
nacional. Este último nenhum poder efectivo tem sobre coisas situadas em território
estrangeiro, e a efectividade das decisões dos seus tribunais em relação a tais coisas depende
da cooperação que lhes queiram prestar as autoridades do Estado territorial.
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Esta consideração justifica uma norma de conflitos especial, que consagre o abandono da
competência da lex patriae em favor da lex rei sitae, relativamente a bens imóveis situados
num país cujo DIP estenda esta última regra (a regra da competência da lex situs) mesmo a
instituições jurídicas de cunho vincadamente pessoal. Na hipótese de um conflito entre duas
qualificações, a real e a pessoal, opta-se pela primeira. E teremos, deste modo, o
aproveitamento do princípio da maior proximidade para resolver uma das formas mais típicas
do conflito de qualificações.
Há países em que se define o direito do Estado a apoderar-se das heranças abertas por
óbito dos particulares como de natureza sucessória: o Estado, quando chamado a recolher
uma herança por falta de sucessores testamentários e legítimos, intervém ele próprio na
qualidade de herdeiro (teoria privatística). Noutra concepção (dominante, por exemplo, em
França e na Inglaterra), esse direito estadual é um direito público, um direito de natureza real.
Suponhamos que morre intestado em Portugal um cidadão italiano; ficam-lhe bens, dos
quais alguns se encontram em França. Nem segundo a lei italiana, nem segundo a lei francesa,
existe qualquer parente sucessível do falecido. No que respeita aos bens (imóveis) situados em
França, surgem duas pretensões que mutuamente se eliminam: a do Estado italiano – baseada
na norma do sistema jurídico respectivo que configura o direito do Estado a apoderar-se, em
dadas condições, das heranças abertas por óbito dos particulares como um direito
propriamente hereditário – e a do Estado da situação das coisas, que faz valer um direito real
sobre todos os bens sem dono existentes no seu território.
O problema deveria resolver-se [se os tribunais portugueses se considerassem competentes
para decidir acerca da atribuição dos bens imóveis situados no estrangeiro, o que não acontece] pela
prevalência da concepção real e a aplicação da lex rei sitae, e os bens situados em França
seriam atribuídos ao Estado francês.
Não assim, porém, no que respeita aos bens porventura existentes em território
português: esses bens deverão ser atribuídos ao Estado nacional do de cujus. A norma do
sistema jurídico italiano que configura o direito do Estado como direito hereditário, tem
aptidão para ser incluída na categoria normativa da regra de conflitos do art. 62.° do nosso CC;
pelo que a sua aplicabilidade ao caso concreto é inopugnável.
106. c) Conflito entre a qualificação «regime matrimonial» e «sucessório»
Neste tipo de casos, não haverá propriamente relação de contraditoriedade ou mútua
exclusão entre dois preceitos materiais ou duas séries de preceitos materiais procedentes de
ordenamentos distintos, e as dificuldades que se apresentarem resolver-se-ão considerando
que os dois estatutos são de aplicação sucessiva: aplicar-se-á primeiro o estatuto matrimonial
(reconhecer-se-ão ao cônjuge sobrevivente todos os direitos que deste estatuto lhe advierem)
e aplicar-se-á depois o estatuto sucessório, de acordo com ele se determinando a posição
sucessória do sobrevivo. À lei da sucessão só pertencerá a devolução dos bens que constituam
a herança
Mas isto supõe que as pretensões que o cônjuge sobrevivo faz derivar dos dois estatutos
sejam cumuláveis, o que nem sempre será o caso. Dois cidadãos portugueses casam sem
convenção antenupcial e mais tarde adquirem a nacionalidade alemã por naturalização.
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À morte de um dos cônjuges poderá o sobrevivo fazer valer simultaneamente o direito a
metade dos bens adquiridos, que lhe concede a lei portuguesa (estatuto matrimonial), e ainda
o direito a uma certa parte dos bens deixados pelo falecido, direito que lhe assegura a lei
alemã (estatuto sucessório)?
A lei portuguesa não põe qualquer obstáculo a que o cônjuge sobrevivo concentre em si a
qualidade de meeiro dos bens adquiridos e a de sucessor ex lege do cônjuge predefunto, nos
termos dos arts. 2133.°, 2146.° e 2147.° do Cód. Civil. Pelo que toca à lei alemã, o sobrevivo é
chamado à herança do cônjuge falecido, do modo indicado pelo § 1931 do BGB, qualquer que
seja o regime de bens do casal.
Mas a questão já é diferente neste caso. Um casal sueco adquiriu a dada altura a
nacionalidade britânica. O casamento não foi precedido de convenção antenupcial. Segundo o
direito sueco, à morte de um dos cônjuges, os bens do casal constituem-se em património ou
massa comum, a fim de que o sobrevivente levante metade; na constância do matrimónio não
existe qualquer comunhão de bens. Em contrapartida, ao cônjuge sobrevivo é recusada toda a
participação na herança do cônjuge falecido. Diversamente, o direito inglês mantém separados
os bens dos cônjuges, mas em compensação concede à viúva uma parte da herança do marido.
Se a viúva pudesse fazer valer simultaneamente o direito que lhe advém do estatuto
matrimonial (direito sueco) e o que lhe concede o estatuto sucessório (direito inglês), o
resultado seria insatisfatório, porque as duas leis em presença visam por meios diferentes um
objectivo idêntico: a protecção do cônjuge sobrevivo. A cumulação das duas pretensões não
seria uma solução razoável.
Outros sistemas jurídicos estabelecem no seu direito interno uma comunhão conjugal
inter-vivos, ao mesmo tempo que não concedem ao cônjuge sobrevivo qualquer parcela da
plena propriedade dos bens deixados pelo cônjuge falecido. É o caso do direito francês. Se um
casal francês obtém, por naturalização, a nacionalidade britânica, não poderá a mulher, à
morte do marido, pedir ao abrigo a lei francesa (estatuto matrimonial) a metade dos bens
adquiridos e ainda, sob invocação do direito inglês (estatuto sucessório), uma parte da herança
do falecido! A cumulação de pretensões não estaria em conformação com o espírito de
qualquer dos sistemas jurídicos em causa.
Kegel formulou um critério segundo o qual, quando uma das leis em concorrência
estabelece uma comunhão mortis causa, os direitos do cônjuge sobrevivo deverão deduzir-se,
sempre e unicamente, do estatuto sucessório. Quando a comunhão estabelecida por uma das
leis é uma comunhão inter-vivos, os direitos do cônjuge sobrevivo serão, sempre e somente os
que lhe reconhecer o estatuto matrimonial.
Para nós, essa razão deve ser a seguinte: a lei que institui no seu direito interno a
comunhão conjugal mortis causa visa objectivos ou tutela interesses análogos àqueles que se
propõe uma regulamentação propriamente sucessória. Se acontece essa lei concorrer, a título
de estatuto matrimonial, com outra aplicável a título sucessório – como ambas tutelam o
interesse do cônjuge sobrevivo e a sua aplicação cumulativa não se revela possível, é lógico
que se sacrifique a lei primeiramente citada, por menos titulada do que a segunda (de acordo
com a perspectiva do direito de conflitos do foro) para realizar essa tutela.
O mesmo deverá dizer-se na hipótese do conflito negativo: a lei que estabelece a
comunhão mortis causa é o próprio estatuto sucessório, sendo que no estatuto matrimonial
não pode a viúva apoiar qualquer pretensão.
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Se a lei que no caso é chamada pela norma de conflitos respeitante às relações
patrimoniais entre cônjuges estabelece uma comunhão inter vivos, ao mesmo tempo que nega
ao cônjuge sobrevivo, salvo em situações extremas, a propriedade de quaisquer bens da
herança do falecido, e por seu turno o estatuto sucessório, ao atribuir ao sobrevivo
determinada posição, pressupõe que esse cônjuge nada tenha recebido por efeito do
casamento – então, a aplicação do estatuto matrimonial precede logicamente a do estatuto
sucessório. E quando chegar a ocasião de aplicar este, limitamo-nos a verificar que o interesse,
que ele pretende satisfazer, já se encontra satisfeito.
107. Estão lado a lado duas pretensões e duas normas sucessórias. Por qual se deve optar?
Por aquela contida na lei chamada a regular a sucessão, já que a regulamentação
estabelecida pelo estatuto matrimonial, dada a função que tem nesse sistema, dado o
interesse que visa proteger, dificilmente se comporta no quadro da regra de conflitos do art.
53.° do nosso CC. Assim, acabara por ficar sozinha a norma do art. 62.° e a lei por ela declarada
competente.
Nada obsta a que o cônjuge sobrevivo faça valer ou os direitos emergentes do estatuto
matrimonial, ou aqueles que lhe reconhece o estatuto sucessório. O interessado poderá
escolher a solução que mais o favoreça.
108. Conflitos negativos. Só se levante aqui um verdadeiro problema quando exista uma
autêntica lacuna de regulamentação segundo o ponto de vista da lex fori, isto é, quando a não
aplicação das duas leis em princípio aplicáveis produza um resultado claramente insatisfatório.
Muitas vezes o conflito é apenas aparente, porque aos preceitos em causa de uma das leis
interessadas pode vir a caber a qualificação correspondente àquela que põe em movimento a
norma de DIP que designa essa lei como aplicável.
A e B, cidadãos britânicos ao tempo do seu casamento, tomam mais tarde a nacionalidade
sueca. À morte do marido, que direitos pode a viúva fazer valer?
À regulamentação da lei sueca pode atribuir-se sem esforço, em via subsidiária, a
natureza de disciplina de carácter sucessório – e assim, sendo a lei sueca o estatuto da
sucessão, a viúva poderá reclamar a meação do património constituído por todos os bens
existentes no casal no dia do falecimento do marido.
Se se trata de um caso em que um casal inglês adquire a nacionalidade francesa, não
sendo a lei francesa o estatuto matrimonial, não pode a viúva prevalecer-se das disposições
desta lei que estabelecem a comunhão de bens e aquisições. E a lei inglesa não é a lei da
sucessão.
Dado a solução ser manifestamente inaceitável por deixar a viúva sem nada, são os
direitos decorrentes desta lei que temos de lhe reconhecer. Chegaremos a este resultado por
via da interpretação do próprio sistema jurídico inglês. O legislador inglês, se não tomou
providências no capítulo dos efeitos do casamento em ordem a atribuir a cada um dos
cônjuges certos direitos sobre os bens do outro, em compensação, não deixou de estabelecer
no capítulo das sucessões as medidas que entendeu apropriadas para protecção do cônjuge
sobrevivo.
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Morre em Portugal um cidadão britânico com domicílio no Reino Unido. A herança
compõe-se de bens existentes em Portugal. O de cujus, que faleceu intestado, não deixou
cônjuge, nem qualquer parente sucessível: ambos os sistemas interessados estão de acordo
quanto a este ponto. O direito da Coroa britânica às heranças vagas, longe de revestir carácter
sucessório, é um direito público, de natureza quase real. Segundo o CC português (art. 2152.° e
2153.°), o Estado, quando é chamado à herança, é-o na veste de herdeiro.
A questão não pode resolver-se nem pela lei inglesa – pois é ao estatuto real e não ao
sucessório que há que subsumir a citada norma – nem pela lei portuguesa, porque a regra do
nosso CC relativa ao direito do Estado tem natureza sucessória e, todavia, não é esta a lei
aplicável à sucessão.
A solução não poderá consistir em ficar a herança vaga e em admitir-se o direito do
primeiro ocupante. Verifica-se no caso uma autêntica lacuna. Lacuna que se preencherá, por
integração da lei da situação dos bens, mediante criação de uma norma que habilite o Estado
da situação (o Estado português) a apoderar-se de todas as heranças existentes no seu
território, sempre que segundo a lei da sucessão o de cujus não tenha deixado sucessores.
Capítulo V
Os conflitos de sistemas de Direito Internacional Privado
Secção 1ª
Diferentes abordagens do problema
109. Um dos problemas a que nos conduz o elemento de conexão da regra de DIP é o do
conflito de conexões – o problema surgido da diversidade dos factores de conexão adoptados
aos vários sistemas de direito para a mesma matéria jurídica.
A questão pode ser encarada de duas perspectivas diversas: a unilateralista e a
bilateralista. A primeira não merece aceitação. [O sistema da unilateralidade não consegue eliminar
o problema do conflito de conexões.] E a norma bilateral presta-se especialmente a originar
aquele fenómeno do conflito de sistemas de direito internacional privado. Tem essa norma por
função designar a lei aplicável a toda e qualquer questão jurídica dimanada de uma situação
da vida internacional e delimitar o âmbito de competência das diferentes ordens jurídicas
estaduais. Mas pode acontecer que o critério de conexão do direito de conflitos do foro não
coincida com o das outras leis em contacto com a situação sub judice, resultando daí não ser a
mesma a legislação julgada aplicável nos diversos países interessados. As divergências entre os
Estados quanto à lei aplicável em cada caso concreto constituem factor adverso e grave
obstáculo à consecução do primordial intento do DIP, que é assegurar às situações
plurilocalizadas uma valoração uniforme nos diferentes países, facilitando o seu
reconhecimento universal. Tal valoração uniforme só se conseguirá, em numerosos casos,
através da adstrição da relação jurídica, por parte de todos os Estados interessados, a uma
única lei.
Ou as coisas se apresentam em termos de duas ou mais legislações se declararem
simultaneamente aplicáveis à mesma questão jurídica concreta – e teremos o conflito positivo,
ou se realiza a hipótese oposta, que é a de nenhuma das leis com as quais a situação a regular
se acha em contacto pretender discipliná-la. Fala-se então em conflito negativo.
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102
O conflito negativo deu origem ao aparecimento, por criação da jurisprudência, da teoria
da devolução ou do reenvio. Enquanto ao conflito positivo, se é certo que a respectiva solução
não é de molde a suscitar dúvidas, também ele não deixou de concitar a atenção dos tribunais.
110. A) A primeira abordagem do problema é a que leva à criação de um super-direito
internacional privado – um DIP à segunda potência.
Neumann e Gabba preconizaram a adopção por cada Estado de duas categorias ou dois
escalões de regras de conflitos. As normas de escalão superior destinar-se-iam a seleccionar o
Estado competente para as diversas matérias jurídicas, segundo critérios derivados da
natureza das coisas ou da sede das relações. A esse Estado competiria designar, através de
regras de um escalão inferior, a lei aplicável ao caso de espécie.
Trata-se de definir a lei aplicável a dada sucessão mortis causa. Deverá começar-se por
determinar o Estado a quem pertence o poder de decidir nessa matéria; função que compete a
uma das tais normas de escalão superior a que nos referimos. A esse Estado cabe designar, por
intermédio de uma das suas regras de conflitos de primeiro escalão, a lei material a aplicar.
Esta perspectiva não poderia ser fecunda senão na medida em que as regras de conflitos
de segundo escalão – as normas daquele super-direito internacional privado – fossem
adoptadas por todos os Estados. Só que tal acordo não existe, nem é de esperar que venha a
existir.
Falhando o mencionado pressuposto, é óbvio que teria de chegar-se inevitavelmente ao
seguinte resultado: depois de, numa primeira fase, se ter tentado construir um corpo de
normas destinadas a resolver os conflitos de sistemas, o momento viria em que se tornaria
forçoso proceder à elaboração de outros preceitos, de natureza e função idênticas, mas
endereçados, estes, a dirimir os conflitos entre os primeiros. Se com vista a solucionar os
conflitos de sistemas (conflitos de 2º grau) se recorre a um processo semelhante àquele que
foi utilizado para resolver os conflitos entre os preceitos jurídico-materiais, acabará por surgir
fatalmente uma terceira categoria de conflitos de normas: os conflitos entre as super normas
de direito internacional privado, ou conflitos de 3º escalão.
111. A tendência apresentada por aqueles autores não se extinguiu , antes veio a ser retomada
mais tarde, já no período entre as duas guerras, por outros juristas, dos quais há que referir
sobretudo Ernst Frankenstein.
Propõe-nos este autor um sistema em que avulta a ideia de um tríptico de conexões:
conexões primárias, secundárias e falsas. As conexões primárias são postuladas pela própria
ideia de direito e, portanto, válidas a priori: a sua validade é independente de qualquer sorte
de consagração legislativa. Há unicamente duas conexões deste tipo: uma para as pessoas,
outra para as coisas. As pessoas estão sujeitas ao direito em vigor na sua comunidade
nacional; as coisas, ao direito vigente no Estado da situação. A lei chamada a regular as
relações interindividuais é a lei da nacionalidade dos respectivos sujeitos e a lei reguladora dos
direitos sobre as coisas, a lex rei sitae.
Todo o indivíduo tem o seu próprio direito, o direito da comunidade a que pertence:
direito com o qual ele se identifica, para cuja formação concorre, à luz de cujos preceitos pode
valorar a sua conduta. Esse ordenamento jurídico é o da sua comunidade nacional.
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103
Os homens vivem segundo o direito da sua comunidade nacional e para onde quer que se
transfiram levam consigo esse direito, como levam consigo a sua cultura e a sua personalidade
total.
O Estado só é titular de poder jurídico ante os seus nacionais.
Assim, a competência da lei nacional não promana de uma regra de conflitos da lex fori
(nem de uma regra de conflitos de qualquer outra legislação), pois trata-se de uma
competência dada a priori.
E assim também a competência da lex rei sitae radica na ideia a priori de que as coisas estão
sujeitas ao poder jurídico do Estado em cujo território se acham situadas.
As conexões secundárias, exactamente porque estabelecidas pelo Estado primariamente
competente, são dotadas do mesmo valor universal das conexões primárias. Mas o mesmo
não se diga das conexões eventualmente estabelecidas por outro Estado. Se a aplicabilidade
de uma lei diferente da lex patriae (quanto às pessoas) ou da lex rei sitae (quanto aos direitos
sobre as coisas) advier de uma conexão estabelecida por outro ordenamento, estaremos
perante um caso de conexão falsa, a qual só será eficaz no território onde o respectivo Estado
exercer a sua soberania. Por exemplo, o Estado A, que tem certamente o poder de submeter
os seus nacionais residentes no estrangeiro às leis do país do domicílio ultrapassa a esfera da
sua competência quando declara aplicável o seu direito interno aos estrangeiros domiciliados
no seu próprio território. O domicílio é neste caso uma conexão falsa e internacionalmente
ineficaz.
112. Decorre do exposto que na teoria de Frankenstein o problema do conflito de sistemas
alcança solução perfeita. Os dois princípios básicos da teoria frankensteiniana (ligação das
pessoas ao Estado nacional e sujeição das coisas no Estado da situação) – princípios válidos a
priori, porque ancorados na própria ideia de direito, princípios de que resulta em todos os
casos a determinação da lei primariamente competente – equivalem para efeitos práticos às
tais normas de escalão superior ou super-direito internacional privado, que os autores citados
acima preconizavam. Não pode deixar de reconhecer-se a competência primária, fundamental
do Estado nacional pelo que respeita às relações jurídicas interpessoais e do Estado da
situação pelo que tange aos direitos sobre as coisas.
Cada Estado deve limitar-se a estabelecer normas de conflitos para as relações jurídicas
dos seus nacionais e para os direitos sobre as coisas situadas no seu território.
113. a) Contra a teoria de Frankenstein foi antes de tudo lançada a crítica de que o conceito de
direito de que arranca é extremamente duvidoso.
A ideia de que o direito procede da convicção jurídica popular pode convir a um sistema
de formação predominantemente consuetudinária. Sabe-se, porém, a escassa importância que
um tal direito assume nos Estados modernos. As normas dimanadas dos órgãos competentes
do Estado não provêm de uma vontade arbitrária e despótica, mas de um querer condicionado
e situado.
O próprio Frankenstein reconhece que nos Estados modernos é impossível afirmar que
todo o preceito de direito corresponde à convicção jurídica do povo.
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104
b) Por outra via, a ideia frankensteiniana da personalidade do direito é claramente anacrónica.
Ele supõe que o direito de um Estado tem por únicos destinatários os cidadãos desse Estado,
não sendo lícito impô-lo aos membros de comunidades estaduais estranhas. Contra isto se
insurge, porém, o espírito do nosso tempo. Tempo de circulação de homens, de ideias, de
tecnologias, de conceitos. E um sujeito que emigra para outro país adapta-se muito mais
facilmente do que outrora às formas de vida, aos usos e costumes, às realidades jurídicas que
se lhe deparam no país adoptivo.
E o seu interesse está em ser ele sujeito aí a um tratamento e a um estatuto o mais possível
idênticos aos dos nacionais, em ser ele aí o mais possível equiparado aos cidadãos.
A teoria frankensteiniana não tem em conta este dado sociológico.
c) Por último, um sistema como o exposto ignora as ponderosas razões sociais, económicas e
políticas que nos países de forte corrente imigratória fazem flectir a balança, nas matérias do
foro pessoal, para o princípio do domicílio.
Uma das regras basilares da construção frankensteiniana carece da aptidão mínima para
se tornar universal e, daí, para ser assumida como critério de resolução dos conflitos de
sistemas.
B) Outra perspectiva para abordar o problema dos conflitos de sistemas é a adoptada por
aqueles que – como Meijers, Makarov, Rigaux, Graulich, Francescakis – advogam a doutrina da
autolimitação espacial das regras de conflitos da lex fori.
É na perspectiva do conflito de sistemas de DIP que Francescakis se coloca desde início.
«Assim como falamos de um conflito de leis quando as leis internas em causa têm um
conteúdo diferente, assim também deveríamos falar de conflito entre as regras de conflitos
quando as regras de conflitos em causa são diferentes – “conflitos de sistemas de direito
internacional privado”. Para resolver esses conflitos, deveria aceitar-se a ideia de que o
domínio de aplicação das regras de conexão de um sistema jurídico não é ilimitado. Deveria
admitir-se a existência de duas categorias de relações multinacionais. As primeiras seriam
aquelas que, «não tendo embora com o sistema francês o contacto elevado por este sistema
ao papel de elemento de conexão, todavia apresentam com ele outros contactos». Perante
tais situações, a lex fori seria admitida a fazer valer o seu próprio ponto de vista, podendo
submetê-las à lei designada pela sua norma de conflitos (bilateral).
No que se refere ao problema da lei aplicável às situações absolutamente internacionais,
o autor conclui que essa lei é a que tiver sido efectivamente aplicada, sem que deva submeter-
se a sua competência a um controlo prévio. E eis-nos assim reconduzidos a um dos princípios
fundamentais do unilateralismo: aplicável em determinado caso é a lei que queira aplicar-se a
esse caso e lhe tenha sido efectivamente aplicada.
114. Sem embargo do interesse científico que apresenta e que é inegável, não parece que a
orientação referida seja de aplaudir.
As construções doutrinais que, partindo da teoria bilateralista, procuram resolver em
termos gerais a questão do conflito de sistemas, dão em regra o flanco a uma objecção que já
foi mencionada aqui e que parece irrefutável.
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Elas vêem-se forçadas a fazer apelo a um super-direito internacional privado ou direito
internacional privado à segunda potência – o que não tem outro efeito que não seja o de adiar
o problema.
A teoria de Francescakis parece escapar ilesa a esta crítica, já que, por um lado, qualquer
conexão com a lei do foro seria apta para fundamentar a aplicação das regras de conflitos
desta lei – e, por outro lado, deveria aceitar-se a competência de qualquer lei ao abrigo da
qual a relação jurídica estrangeira se tivesse efectivamente constituído.
Há, porém, outras objecções a considerar.
a) O que justifica a aplicabilidade do sistema de conflitos do foro «é o interesse da ordem
jurídica francesa em vigiar estreitamente as situações que têm com o sistema francês, não
aquele contacto que constitui para este sistema o elemento de conexão relevante, mas outros
contactos».
b) As normas de conflitos não têm como principal escopo outro que não seja o de resolver um
conflito de leis: eliminar uma situação de concorrência ou de concurso entre preceitos
materiais procedentes de ordenamentos distintos. Não são elas normas de conduta, normas
que se proponham como fim principal influenciar o comportamento dos indivíduos,
determinando-os a agir deste ou daquele modo ou a abster-se de certos actos. Onde quer que
surja um conflito de leis, deve encontrar-se uma norma que permita resolvê-lo.
Não é possível deduzir da essência destas normas quaisquer limites à sua aplicação
espacial.
c) Constitui proposição errónea a de que o sistema jurídico nacional não tem interesse em ver
aplicadas as suas normas de DIP a situações que não tenham com ele qualquer conexão, ou
uma conexão estreita. Seria para o sistema da unilateralidade integral que as reflexões de
Francescakis propenderiam.
Se, ao invés, o legislador se orienta para a criação de normas bilaterais, é a considerações
muito diferentes que lhe cumpre então atender.
d) Um derradeiro argumento pode ainda aduzir-se contra a teoria de Francescakis. Seria justo
e razoável reconhecer toda a situação validamente criada no estrangeiro, só pelo facto de se
ter constituído ao abrigo de uma lei que se reputa competente – desde que a situação em
causa não estivesse por qualquer forma conectada, ao tempo da sua constituição, com o
ordenamento local?
Há que pôr sérias reservas a um tal ponto de vista. É possível que a conexão existente
entre a situação a reconhecer e a lei estrangeira se mostre claramente insuficiente para
justificar a competência da referida lei.
A doutrina da autolimitação espacial das normas de conflitos não é aceitável. Certo que a
doutrina da bilateralidade deve ser formulada em termos de se ajustar à intencionalidade
específica do direito internacional privado.
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Secção 2º
Do Reenvio
Definição do problema
115. A legislação estrangeira designada pelo DIP do foro para regular certa questão jurídica
não se lhe considera aplicável e antes remete para outra ordem jurídica (que tanto pode ser a
do Estado local como a de um terceiro Estado.
a) Um cidadão brasileiro domiciliado em Portugal morre neste país. Segundo o DIP português,
a lei reguladora da sucessão desse indivíduo é a brasileira; segundo o DIP brasileiro, a lei
aplicável é a portuguesa (lex domicilii).
b) O de cujus era um cidadão dinamarquês domiciliado na Itália. A lex fori (portuguesa) manda
aplicar à sucessão a lei dinamarquesa (lex patriae), que no entanto defere a questão à lei do
último domicílio do hereditando (italiana).
Em nenhum destes casos a ordem jurídica indicada pelo DIP do foro se julga aplicável: no
primeiro, devolve ou retorna a competência para a própria lex fori; no segundo, como que a
transmite ou endossa a uma terceira legislação. [À primeira hipótese chamamos retorno ou
devolução strictu sensu.
Para a segunda hipótese dá-se a expressão transmissão de competência.
]
O que se pergunta é se esta atitude da lei competente (competente segundo o juízo ou a
perspectiva do DIP local) se nos impõe de alguma sorte.
Esta questão deve ser posta perante o DIP da lex fori e tratada neste enquadramento:
como problema de interpretação do direito local.
116. As origens do problema. Este problema originou-se na jurisprudência dos tribunais. Foi o
célebre caso “Forgo”.
Forgo era um cidadão da Baviera, que vivera em França longa vida e aqui falecera
intestado. Apareceram a habilitar-se-lhe à sucessão (constituída por valores mobiliários
existentes em França) certos parentes colaterais afastados, que de facto herdariam segundo a
lei vigente na Baviera, mas não segundo a lei francesa: em face desta lei, os bens seriam para o
Estado. A primeira fase do processo findou com a decisão de que a lei aplicável era a lei bávara
(lei do domicílio de origem do de cujus), em virtude de o hereditando não ter chegado a
adquirir um domicílio legal em França. Entrou a discutir-se se o direito bávaro não deveria
aplicar-se na sua totalidade; sobre se a primeira norma desta legislação, que se impunha
reconhecer e acatar, não era a que devolvia, em matéria de sucessão mobiliária, para a lei do
domicílio de facto ou residência habitual do autor da herança, a qual vinha a ser, no caso, a lei
francesa.
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107
117. A lei estrangeira designada pelo DIP do foro designa por seu turno, para regular o caso, a
própria lei do foro.
Neste conflito negativo de regras de conflitos, são possíveis as três atitudes possíveis:
a) Atitude favorável ao reenvio como princípio geral;
b) Atitude absolutamente condenatória do reenvio;
c) Atitude condenatória do princípio, mas favorável ao reenvio com um alcance limitado.
A primeira atitude é a dos partidários da doutrina da devolução ou do reenvio, doutrina
que arranca da ideia de que a referência da norma de conflitos do foro à lei estrangeira tem
carácter global.
A segunda é a atitude dos que interpretam toda a referência da norma de conflitos à lei
estrangeira como pura vocação do direito material dessa lei – como pura referência material.
A terceira é a posição moderna, firmada sobretudo pela doutrina alemã: toma-se como
ponto de partida o princípio da referência material; no entanto, reconhecendo-se que o
reenvio pode levar em muitos casos a resultados justos, adopta-se a ideia, mas tão-somente
na medida do necessário para se atingirem tais resultados.
§1º
Teoria da referência material
118. Significado da referência material. Se considerarmos em toda a legislação duas zonas ou
camadas, a mais superficial formada pelas normas de conflitos, a mais profunda pela rede das
normas de regulamentação, as regras propriamente ordenadoras da vida social – diremos que
a referência do DIP do foro a determinada lei não se detém nessa primeira região periférica, e
antes penetra até às camadas mais profundas, até à substância do sistema: as suas instituições
civis.
Tomadas assim as coisas, o que a regra de conflitos determina, quando diz, por exemplo,
que “as sucessões por morte são regidas pela lei nacional do hereditando”, é que os tribunais
locais resolverão os problemas levantados pela sucessão mortis causa de um estrangeiro tal
qual eles seriam resolvidos por um juiz do Estado nacional do de cujus, na hipótese de não se
suscitar qualquer conflito de leis. No caso da sucessão mortis causa de um brasileiro que
faleceu estando domiciliado em Portugal, a lei competente segundo a norma de conflitos do
foro é a brasileira. Serão os princípios do direito sucessório brasileiro que os tribunais
portugueses deverão aplicar. Serão aqueles princípios por que os juízes brasileiros se norteiam
sempre que não se levanta qualquer conflito de leis.
119. Os argumentos positivos em favor desta teoria:
a) Função das normas de conflitos.
O DIP constitui-se para assinar a cada uma das relações plurilocalizadas a sua lei
reguladora – e, naturalmente, a mesma lei em toda a parte. Ora se o DIP nasceu com este
sentido ou esta aspiração de universalidade, seria uma contradição nos termos admitir que as
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108
suas normas tivessem surgido marcadas do selo de uma referência a outras normas com
idêntica função mas de sentido divergente.
b) Carácter internacional, pelo seu objecto, das regras de conflitos nacionais
As chamadas regras de conflitos legislam “sobre matéria própria do direito internacional,
sendo apenas por insuficiência da organização jurídica internacional que o Estado formula as
mesmas regras, as quais representam, para ele e para os seus tribunais, o verdadeiro direito
internacional.
c) A doutrina da referência à lei de direito interno é a que melhor se harmoniza com o
pensamento modelador de toda a norma de conflitos. Seja, por exemplo, a regra que nos diz “
o estado e a capacidade da pessoa são regidos pelas leis da sua nação”. Este preceito
corresponde a uma certa ideia acerca de qual seja a maneira mais acertada de resolver os
conflitos de leis em matéria de estado e de capacidade. Dentre as soluções possíveis,
considera-se como mais razoável a de definir o estatuto pessoal pelas leis do Estado nacional
dos indivíduos. Isto por se entender que são tais leis as que presumivelmente melhor
correspondem à sua natureza, hábitos, condições e concepções de vida. Mas também por se
considerar que, sendo o estatuto pessoal alguma coisa de necessariamente estável, é decerto
a lei nacional a mais adequada a promover e a assegurar esse objectivo de estabilidade e
permanência.
A conclusão deste raciocínio é o chamamento das próprias leis por que, no Estado
nacional dos interessados, se regulam as várias matérias pertencentes ao estatuto pessoal
§ 2º
Teoria da referência global
120. Significado da referência global. Numa outra interpretação das normas de conflitos, a
referência da lex fori à lei estrangeira não vai restrita às normas de regulamentação deste
sistema jurídico, e antes o toma na unidade dos seus preceitos, tanto de direito material como
conflitual. Se na lei estrangeira se nos depara uma norma que remete o caso para a alçada
doutra legislação – ou essoutra legislação seja a lex fori (retorno) ou a lei de um outro Estado
(transmissão de competência) – há que seguir essa nova referência, desistindo da primeira.
Tal é a acepção mais corrente da teoria da referência global (a). Noutra acepção (b), as
normas de DIP da lei estrangeira (L2) só serão consideradas enquanto funcionam como normas
delimitadoras do sistema jurídico a que pertencem, isto é, enquanto regras que excluem do
âmbito deste sistema certas e determinadas relações. Se a lei nacional se declara
incompetente e remete o caso para a lex loci actus, nos não poderemos aplicar a lei nacional,
mas nem por isso estaremos adstritos a recorrer à lex loci. Sobre qual seja em último termo a
lei aplicável, decidirá a lex fori, através da norma de conflitos que devamos considerar
subsidiária da regra da nacionalidade – e que será a que utiliza como factor de conexão o
domicílio.
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109
I
Teoria clássica (doutrina da devolução simples)
121. A teoria da referência global partilha-se em dois ramos. Um deles (doutrina clássica) é a
teoria da “devolução simples”.
a) Retorno: Se L2 devolve para L1, aplicar-se-á sistematicamente L1.
b) Transmissão de competência: Se L2 remete para L3, deverá aplicar-se L3.
Há uma semelhança entre esta orientação e a mencionada no número precedente.
Pelo menos no que toca ao âmbito do estatuto pessoal, já que normalmente o facto de
conexão utilizado por L2 (lex patriae) coincidirá com o da norma da lex fori subsidiária da regra
da nacionalidade: o domicílio. Não aplicaremos a lei do domicílio por força do DIP de L2, senão
porque assim o impõe uma regra de conflitos da lex fori – regra à qual cumpriria obedecer
mesmo na hipótese de porventura dela se apartar o DIP de L2. No entanto, como na maioria
dos casos, haverá coincidência entre a norma de conflitos da lei nacional e a regra subsidiária
da lex fori, a diferença assume pouca importância.
Fundamentos da doutrina clássica:
a) O primeiro consiste na própria ideia da unidade e incindibilidade do todo formado pelo
direito material e de conflitos. O ordenamento jurídico é um todo de regras materiais e de
preceitos sobre a aplicação das leis. Se o direito de conflitos do foro remete determinado caso
para uma legislação A e esta o sujeita por seu turno à legislação B, a resolução desse caso pelo
direito material de A não constituiria uma aplicação desta ordem jurídica, antes a sua violação.
O argumento, porém, é falacioso. Ele só teria valor se se conseguisse provar a unidade
substancial das duas espécies de normas jurídicas, as de regulamentação e as de conflitos –
unidade substancial no sentido de só poderem as primeiras exercer adequadamente a sua
função sócio-jurídica ou actuar os seus fins no enquadramento definido pelas segundas.
A interconexão entre direito material e direito de conflitos não existe. Nos não podemos
dizer que determinado direito material é como é em função do sistema conflitual que lhe vai
conexo; não podemos afirmar que sem este aquele seria necessária e automaticamente outra
coisa: tal conexão é antes uma simples contingência. As valorações e os conteúdos jurídico-
materiais não estão condicionados a um determinado esquema de valorações e de conteúdos
de direito conflitual.
122. A proposição em causa é esta: o direito material de um qualquer Estado é absolutamente
inseparável das regras de competência legislativa sancionadas por esse mesmo Estado. Logo,
se o ordenamento estadual designado se reputa incompetente, uma de duas: ou há-de passar-
se directamente à legislação por ele declarada aplicável (teoria do reenvio), ou terá em todo o
caso de procurar-se por outro caminho a solução do problema. Assim o exige o respeito pela
soberania estrangeira. Como todos os Estados são iguais e devem respeitar-se uns aos outros,
não pode haver competência imposta.
Estas ideias inscrevem-se claramente no quadro de uma teoria que concebe os chamados
conflitos de leis como conflitos interestaduais – conflitos de soberanias.
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110
Tal não é, porém, a concepção a que aderimos. O problema que o DIP se propõe resolver não é
um problema de respeito e coordenação de soberanias, mas sim o de definir para os
diferentes tipos de situações do comércio jurídico internacional a lei que mais convenha a cada
um (a lei da mais forte conexão com os factos).
Logo, não faz necessariamente ao caso que o juízo do legislador estrangeiro coincida com
o do legislador local. Nem há ofensa de soberania no facto da não aplicação de uma lei que se
repute aplicável, nem no facto da aplicação de uma lei que se tenha por incompetente.
123. A objecção do círculo vicioso. Aduz-se que a teoria da referência global, quando aplicada
e desenvolvida segundo a sua própria lógica, nega-se rotundamente a si mesma, pois conduz
por força a situações de autêntico círculo vicioso.
Se a teoria é verdadeira para as regras de conflitos do sistema de onde se parte (a lex
fori), verdadeira há-de ser também para as regras de conflitos da lei que elas mandam aplicar.
Se a referência da norma de conflitos do foro à legislação do Estado nacional do indivíduo não
pode deixar de abranger a nova referência desta legislação à lex fori, também esta última
designação terá de incluir a regra que remete para a lei nacional. E estaríamos condenados a
passar continuamente da lei nacional para a lex fori e desta para aquela. Circulus inextricabilis.
E o mesmo se diga de uma hipótese de transmissão de competência.
Por óbito de um cidadão dinamarquês, cujo último domicílio foi em Londres e que deixou
bens imóveis na Itália, procede-se a inventário em Portugal. Qual o direito sucessório
aplicável? A lex fori manda aplicar a lei dinamarquesa, esta remete para a lex domicilii, a lex
domicilii designa como competente a lex rei sitae. Mas como o direito de conflitos italiano, do
mesmo modo que o português, considera aplicável a lei nacional, eis-nos de novo no ponto de
partida, condenados a fazer, passo a passo, o caminho já percorrido; e assim sucessivamente,
até ao infinito.
Note-se, contudo, que a objecção só acerta no alvo enquanto dirigida contra aquelas
formulações da teoria da referência global que admitem o trânsito directo de uma ordem
jurídica para outra: da ordem jurídica designada pela lex fori, quer para esta mesma lei, quer
para a de um terceiro Estado. Por conseguinte, está a salvo da objecção uma teoria como a da
norma subsidiária, bem como qualquer outra construção que sob este ponto de vista lhe seja
afim.
124. O argumento do círculo vicioso atinge a sua eficácia contra a doutrina da devolução.
Afigura-se inevitável este dilema: ou é realmente “da natureza das coisas” que toda a remissão
de uma lei para outra assume o significado de referência global – e então as situações
descritas de círculo vicioso serão fatais; ou se admite como logicamente possível interpretar
em termos diferentes uma das remissões da série, fechando assim o circuito e eliminando as
situações apontadas – mas nessa hipótese deixará de ser verdadeiro o princípio da referência
global; logo, ficará destruída a ideia de que toda a referência de uma lei a outra tem
necessariamente este sentido.
Reconhece-se, no entanto, que o raciocínio exposto não é adequado a invalidar senão
uma teoria que arvore o pensamento da referência global em única interpretação admissível
das normas de conflitos – de todas e quaisquer normas de conflitos.
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Mas a objecção é inoperante contra uma doutrina que simplesmente afirme, tendo em vista
certos objectivos práticos, a necessidade de entender naqueles moldes o DIP da lex fori. Nada
impede, com efeito, que o legislador de um país prescreva a aceitação sistemática do reenvio
da lei estrangeira para o direito local – ou até para a legislação de um terceiro Estado; em
termos de os tribunais desse país deverem aplicar em tais casos o direito material do sistema
indicado pela lei “reenviante”.
125. b) O argumento da uniformidade dos julgados ou da harmonia jurídica internacional
É esta a mais impressionante razão em favor da teoria do reenvio. Se, remetendo L2 para
L1 (ou para L3), os tribunais locais resolverem o caso segundo os princípios do direito interno
de L1 (ou de L3), é claro e seguro que a sua decisão será idêntica à que seria proferida por um
juiz do Estado a que L2 pertence (E2). Resultado excelente porque deste modo a justiça da
causa deixará de depender do lugar da propositura da acção; excelente ainda, porque desta
maneira mais facilmente a sentença dos tribunais alcançará o exequatur no Estado onde vigora
a lei designada pela norma de conflitos da lex fori.
Crítica: As vantagens da harmonia jurídica internacional são indiscutíveis. O certo é, porém,
que a doutrina em exame só em casos muito contados a poderá realizar – e, logo, também
neste plano se demonstra a sua inviabilidade, como doutrina ou princípio geral do DIP.
Na hipótese de retorno, o reenvio só permite alcançar a harmonia jurídica internacional
se a lei estrangeira designada pela lex fori não admitir, por sua parte, esse mesmo
pensamento. Mas isto é a prova de que o reenvio não pode ser elevado a princípio geral do
direito de conflitos.
Exemplo: Allard, cidadão francês, faleceu em Portugal com testamento, deixando bens no
nosso país. No inventário a que se procedeu, discutiu-se sobre se a mãe do falecido (mãe
ilegítima) tinha direitos de herdeira legitimária. Entendeu-se que, sendo a sucessão regulada
pela lei francesa, mas remetendo esta para o direito português (como lex rei sitae e lex ultimi
domicilii), havia que aceitar a devolução; e o caso foi julgado em harmonia com os princípios
do nosso Código Civil. Que se passaria se a questão tivesse sido levantada em França? Muito
provavelmente, os tribunais franceses teriam considerado aplicável a lei do seu país, por
aceitarem também eles o reenvio da lei da situação ou da lei do último domicílio para a lex
patriae.
O Supremo fez aqui uma aplicação injustificável (em face do princípio da harmonia
jurídica) da doutrina da devolução. A única maneira de o tribunal português resolver o
problema do mesmo modo por que o resolveria um tribunal francês, teria sido ele aplicar o
direito sucessório nacional do testador, negando a vocação sucessória ex lege da mãe
(ilegítima) do autor da herança.
Considerações idênticas são cabidas a respeito do caso Forgo, que veio a ser decidido
pelos princípios do direito francês.
126. É forçoso concluir que a teoria do reenvio, tomada na sua formulação tradicional, não
consegue atingir, senão esporadicamente, o objectivo prático que se propõe: a uniformidade
de julgados, a harmonia jurídica.
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A despeito do reenvio, a divergência de soluções pode subsistir, embora singularmente
alterada: porque os tribunais dos países interessados, se aceitarem uns e outros a referida
teoria, passam a aplicar uma lei diferente da que lhes cumpria observar, segundo a norma de
conflitos derivada do seu respectivo legislador. O tribunal do Estado do domicílio, que deveria
aplicar a lei nacional, aplica a lei do domicílio; o tribunal do Estado da nacionalidade, que
deveria aplicar a lei do domicílio, aplica a lei nacional.
Para que o reenvio conduza à harmonia jurídica na hipótese do retorno, é indispensável
que a referência de L2 a L1 seja uma referência material, é indispensável que o direito conflitual
de L2 não admita ele próprio o reenvio.
Esta crítica também é procedente quanto à hipótese da transmissão de competência. Do
simples facto de L2 remeter para L3, não pode deduzir-se, com absoluta segurança, que seja
esta a lei aplicável ao caso segundo o DIP de L2. É possível que L3 remeta por seu turno para L2
e que o sistema conflitual deste ordenamento jurídico contenha uma norma favorável à
devolução; caso este em que a lei aplicável em E2 acabaria por ser a própria lei do país.
127. c) Em favor da teoria clássica da devolução ou reenvio invoca-se, por último, este
argumento: há sempre vantagem, sob o ponto de vista do interesse da boa administração da
justiça, em aplicarem os juízes o seu próprio direito, único em que naturalmente são versados,
único que eles poderão interpretar e aplicar sem fortes probabilidade de desacerto.
Esta razão, se fosse válida, só o seria para a hipótese do retorno: se L2 devolve para L1,
deverá aplicar-se sempre o direito interno de L1. E é assim que a teoria da devolução tem sido
compreendida pelos tribunais de todos os países que a seguem. Trata-se de interpretar por
sistema toda a “devolução” à lex fori como referência pura e simples ao direito material desta
legislação.
É bom que os tribunais possam aplicar as suas próprias leis. Mas é melhor ainda que eles
apliquem às situações da vida internacional a legislação que em melhores condições estiver
para intervir, olhado o problema pelo prisma dos interesses que o direito de conflitos intenta
satisfazer. Desistir da aplicação da lei estrangeira competente a pretexto de que mais vale
aplicar o direito local – redunda em negar o próprio fundamento do DIP.
II
Teoria do reenvio total ou da devolução «dupla»
(Foreign Court Theory)
128. A teoria do reenvio total. Sua fundamentação através do princípio da harmonia jurídica
internacional. Se a modalidade clássica da teoria do reenvio se revela claramente inaceitável,
o mesmo já não se pode aparentemente dizer de uma outra sua formulação, que tem gozado
de grande favor junto dos tribunais ingleses. É a teoria do reenvio total ou “foreign court
theory”. A sua ideia básica é que a referência da norma de conflitos do foro a determinada lei
estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal como ela seria
provavelmente julgada pelo Estado onde essa lei vigora.
O direito francês manda regular a sucessão imobiliária mortis causa pela lex rex sitae; o
direito português, pela lei nacional do hereditando. Que lei aplicar em Portugal à sucessão de
um francês que deixou alguns prédios na cidade de Lisboa?
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113
A lei francesa, sem dúvida, pois os tribunais franceses, se fossem eles a decidir, aceitariam o
reenvio da lex situs para a lex patriae. Está assegurada – graças à utilização pelo juiz português
der um duplo reenvio – a uniformidade de julgados, a harmonia jurídica.
Bem assim quando a lei estrangeira remeter a decisão do caso para uma terceira
legislação. É o caso em que o cidadão francês falecido em Portugal possuía bens imóveis na
Itália.
O direito francês transfere a competência ao italiano, mas aceita o reenvio da competência
que este lhe oferece. Logo, será pelas regras do Código francês que nós, em Portugal,
deveremos resolver o litígio. A decisão do nosso tribunal coincidirá, ponto por ponto, com a
que seria proferida no mesmo caso quer na França, quer na Itália.
129. A teoria em referência caracteriza-se em face da anterior, pela consideração dada, não só
à regra de conflitos estrangeira, mas também à norma perceptiva do reenvio, eventualmente
contida, ao lado da primeira, na lei mandada aplicar. Os tribunais locais deverão observar um
só ou um duplo reenvio. Um reenvio duplo, sempre que a lei estrangeira ordene ela própria a
devolução, seja ela própria enformada pelo princípio da “referência global”. Um reenvio único,
quando a lei estrangeira designada pela lex fori, ao referir-se a outro sistema jurídico, entenda
referir-se apenas às disposições do direito interno desse sistema.
No caso In Re Ross, punha-se o problema da medida da liberdade de testar de uma
testadora inglesa domiciliada na Itália. O tribunal inglês não duvidou em aplicar as regras do
direito interno britânico, já que no Estado do domicílio (Itália) a referência à lei do Estado
nacional (Inglaterra) era interpretada pelos tribunais como restrita ao direito material. Ao
tempo do processo Ross (1930), já havia precedentes judiciais no sentido da doutrina do duplo
reenvio. Mas no caso, em virtude de não ser a lei estrangeira (italiana) designada pela lex fori
(inglesa) favorável à devolução (a esse tempo), um tal reenvio duplo não faria sentido.
130. Crítica. Também esta teoria é falsa, como teoria ou princípio geral do DIP. Nos não a
podemos conceber generalizada a todos os Estados. Se todos os Estados resolvessem aceitá-la,
o problema do conflito negativo de competência seria em muitos casos insolúvel.
O juiz português pretenderia determinar a medida da liberdade de testar (restrita a bens
mobiliários) de um inglês com domicílio em Portugal precisamente como o faria um juiz
britânico, se a questão se pusesse na Inglaterra. Mas, se efectivamente a questão se suscitasse
neste país, os tribunais de lá haveriam de a querer solucionar também como se estivessem
administrando a justiça em Lisboa… portanto, um autêntico impasse. A dificuldade só poderia
vencer-se através da criação de normas de conflitos especiais – super-normas de conflitos, ou
normas de conflitos de 2º grau - , o que significaria o abandono do ponto de vista da foreign
court theory e, portanto, o reconhecimento da sua falência.
O pensamento do reenvio não pode realmente ser erigido em princípio ou teoria geral do
direito de conflitos.
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114
§ 3º
Doutrina que, partindo da teoria da referência material, aceita a devolução com um
alcance limitado.
Reenvio e harmonia jurídica internacional
131. Demonstrámos que o reenvio como princípio geral é inaceitável, seja qual for a
modalidade em que se apresente.
Esta constatação gerou dois movimentos distintos. Criou em muitos uma disposição
absolutamente hostil ao reenvio
Mas não é este o juízo que tende hoje a prevalecer. Não foram inúteis as discussões
travadas em torno do reenvio. Reconheceu-se a utilidade do reenvio como processo de se
atingirem certos fins incontestavelmente valiosos. E muitos falam aí do reenvio como
expediente prático. Não se trata de admitir a devolução como princípio geral de DIP. No
entanto, uma vez que se apura a plena aptidão do reenvio para possibilitar, nos quadros do
DIP vigente, soluções práticas eminentemente desejáveis, certo não se justificaria que
votássemos a ideia a um degredo completo. O reenvio, se não é verdadeiro como teoria das
normas de conflitos, é perfeitamente utilizável como técnica. Ele pode converter-se em
instrumento de notável utilidade. Assim, desde logo, como um meio de realizar a harmonia
jurídica.
Veremos qual a medida em que o reenvio pode efectivamente contribuir para a harmonia
jurídica internacional.
132. 1ª hipótese: retorno directo
Nesta hipótese, o reenvio só é instrumento apto a realizar a harmonia jurídica se a lei
estrangeira (L2), ao remeter para a lex fori, o fizer para o direito interno local. Isto só pode
acontecer se a lei “reenviante” for uma das legislações anti-devolucionistas existentes, como a
brasileira, a grega, a dinamarquesa. [O reenvio é expressamente repudiado pelo Código Civil grego,
pela Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro e o Código egípcio]. Por exemplo, uma questão
referente à sucessão por morte de um brasileiro ou um dinamarquês domiciliado em Portugal.
Como a lex patriae, ao remeter para a lex domicilii, entende referir-se tão-somente ao direito
interno deste sistema jurídico, é óbvio que a aceitação do reenvio permitirá aos tribunais
portugueses julgar como julgariam os do Estado nacional do interessado, se fossem eles a
decidir.
Se a referência de L2 a L1 for uma referência material, o retorno ou devolução será meio
idóneo para realizar a harmonia jurídica.
133. Não assim, porém, nos outros casos possíveis, que são os seguintes:
1) A lei estrangeira adopta uma doutrina da devolução “simples” (a referência de L2 a L1 é uma
referência global);
2) A lei estrangeira adopta o princípio do reenvio “integral” (a referência de L2 a L1 é também
uma referência global, mas no sentido correspondente à foreign Court theory);
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Na primeira hipótese, o reenvio não conduz à harmonia jurídica e antes, pelo contrário, a
estorva e impede. No caso da sucessão Allard, o STJ tinha um só caminho a seguir, se
verdadeiramente quisesse respeitar o DIP da lei nacional do de cujus: aplicar o direito
sucessório francês. Aceitando a devolução, o Supremo não deu ao caso a solução que
provavelmente lhe seria dada em França, se o processo corresse nesse país.
O reenvio não é meio conducente à harmonia internacional toda a vez que a lei
estrangeira designada pela lex fori se mostrar inspirada pelo princípio da devolução simples.
134. Quanto à segunda hipótese: a orientação admitida pelos tribunais de E2 é a doutrina do
reenvio total, o que só pode acontecer hoje em dia sendo esse Estado a Inglaterra.
Exemplo: Um caso de investigação de paternidade ilegítima proposta por um português
contra o filho legítimo e universal herdeiro de um cidadão inglês, originário de Gibraltar, que
falecera domiciliado no nosso país (tanto segundo a concepção portuguesa, como segundo a
concepção britânica de domicílio). Considerando que o direito interno inglês ignora a filiação
ilegítima como relação jurídico-familiar, as instâncias haviam decidido que a acção era inviável
(baseadas na doutrina segundo a qual a constituição de um estado relativo só é possível
quando nela consintam as leis das duas partes). Todavia, o Supremo, argumentando com o
reenvio da lei nacional para a lei do último domicílio do investigando, julgou no sentido da
admissibilidade da acção.
E, contudo, o reenvio não é, neste segundo tipo de situações, instrumento necessário
para se alcançar a harmonia jurídica internacional, isto é, para se chegar em Portugal à mesma
solução a que se chegaria no âmbito daquela ordem jurídica a que a regra de conflitos local
atribui competência.
Na primeira hipótese citada, ilustrada com o caso da “sucessão Allard”, o reenvio não
torna viável a harmonia de julgados e antes a embaraça e tolhe. Por isso dissemos que ele não
se apresenta aí como meio adequado à realização do ideal da harmonia jurídica. Na segunda, o
caso é outro. Agora, o que se verifica é o reenvio não ser meio necessário para esse vim,
porquanto a uniformidade de julgados se logra perfeitamente sem ele.
L2 adopta o princípio da foreign Court theory e isto quer dizer que os tribunais de E2 (os
tribunais britânicos) pretendem julgar quaisquer questões relativas ao estatuto pessoal de
súbditos desse Estado domiciliados no estrangeiro do mesmo modo como elas seriam julgadas
por um tribunal do país do domicílio. Mas sendo assim, é evidente que nenhuma importância
tem, sob o ponto de vista da harmonia jurídica, a direcção em que os tribunais deste último
país (portugueses) venham realmente a encaminhar-se. Esta harmonia estará sempre
necessariamente assegurada, quer eles se orientem para a teoria da referência à lei do direito
interno (aplicando, portanto, a lei material inglesa), quer resolvam optar pela teoria do
reenvio. Tanto numa como noutra hipótese, os tribunais britânicos pautarão sempre a sua
atitude pela dos tribunais portugueses.
Por conseguinte, o reenvio não poderá legitimar-se nesta hipótese através do princípio da
harmonia jurídica internacional.
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135. 2ª hipótese: transmissão de competência
Vejamos alguns tipos de situações em que o reenvio para um terceiro sistema pode tornar
viável a harmonia jurídica – uma harmonia ou uniformidade extensiva à totalidade dos Estados
interessados.
a) O caso mais simples é aquele em que L2 transmite a competência a L3, que a aceita.
É evidente que, graças ao reenvio, a harmonia jurídica entre os únicos Estados
interessados (ou presumivelmente únicos interessados) será uma realidade. Por exemplo, o
caso de dois suíços, tio e sobrinha, que casaram em Moscovo, depois de informados pelo
cônsul do seu país de que o seu parentesco não constituía impedimento, visto o DIP suíço
remeter nesta matéria para a lex loci actus e a lei russa permitir o matrimónio entre colaterais
no 3º grau.
Se os cônjuges transferirem posteriormente o seu domicílio para Portugal e um deles intentar
aqui acção anulatória do matrimónio, invocando o disposto no art. 100.° só Código suíço e a
norma do art. 25.° do CC português – a procedência desta acção seria profundamente
chocante. Portugal é um país que só de modo secundário está interessado no assunto, visto
que ao tempo da constituição da situação jurídica em causa nenhuma conexão tinham as
partes com o ordenamento português.
136. Em todas as hipóteses é o reenvio susceptível de levar à uniformidade de julgados. Seja o
caso b) em que L3 só aceita a competência que lhe é atribuída por L2 através do mecanismo do
reenvio.
Olhando o significado textual da norma de conflitos de L3, pode acontecer que se nos
imponha a seguinte conclusão: L3 não aceita a competência que L2 lhe transmite – e, contudo,
a conclusão está errada. Se L3 não aceita a competência, é porque a retorna a L2, ou a transfere
por seu turno a L4, ou de novo à lex fori. Mas essa referência a L2, ou a L4, ou a L1, pode bem ser
uma referência global. E, se for uma referência global, é possível quem, ao fim e ao cabo, L3
venha a considerar-se aplicável; caso em que estaremos recaídos na hipótese do número
precedente.
Alguns exemplos:
A) L2 transmite a competência a L3 (sem reenvio); L3 devolve-a a L2, com reenvio.
Representando pelo símbolo ( ) a referência material ou simples e por () a referência
global, a situação pode figurar-se assim:
L2 L3
L3 L2
Um cidadão brasileiro domiciliado na Alemanha morre em Lisboa, onde deixa bens
mobiliários. A lei nacional remete (sem reenvio: art. 16.° da Lei de Introdução ao Código
brasileiro) para o domicílio, que lhe devolve a competência (na Alemanha, a sucessão é regida
pela lex patriae).
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Como o DIP alemão admite o reenvio (simples), eis que a hipótese se transmuda num
verdadeiro caso de aceitação pela lei alemã (L3) da competência que lhe é consignada pela
brasileira (L2): na Alemanha, como no Brasil, a sucessão seria regida pelas disposições do BGB.
B) L2 transmite a competência a L3 (sem reenvio); L3 transfere para L4, mas aceita a vocação
que L4 lhe dirige (com ou sem reenvio, pouco importa).
L2 L3; Ou: L2 L3
L3 L4; L3 L4
L4 L3 L4 L3
- se no último caso em E3, o reenvio significar apenas que toda a referência da lei estrangeira à
lex fori determina sempre a aplicação desta, ainda que porventura se trate de uma referência
global.
Um exemplo: um brasileiro domiciliado em Moscovo comprou determinado objecto na
Dinamarca. Litigia-se em Portugal acerca da capacidade desse indivíduo para celebrar o
referido contrato. A lei brasileira (L2) – competente segundo L1 (lex fori) – transmite a
competência ao direito civil russo (L3) que a transfere ao direito dinamarquês (L4). Esta
referência de L3 a L4 é uma referência global. Como a lei dinamarquesa devolve para a lei do
domicílio (L3), o direito russo acaba, desse modo, por se considerar aplicável. E sendo a
referência da lei brasileira à lei do domicílio uma referência simplesmente material, nenhuma
dúvida se coloca que esta é a solução também seguida no Brasil.
Do mesmo modo a adoptaria um tribunal dinamarquês, visto a Dinamarca não reconhecer
o reenvio. Mas ainda que assim não fosse, continuaria a ser verdade que a lei designada por L2
se considera competente. A circunstância de L4 se julgar também aplicável, em virtude do jogo
do seu reenvio, poderia reputar-se irrelevante. Uma vez que essa lei só aparece em cena por
ser designada por L3, e esta, ao fim e ao cabo, não a manda aplicar, tudo deverá passar-se
como se tal designação não existisse: L4 será apenas maia uma legislação que se julga aplicável
ao caso, mas a que não chega, nem directa nem indirectamente, o chamamento da lei do foro.
Também nos casos de transmissão de competência, o reenvio é meio próprio para
alcançar a harmonia jurídica internacional. Este resultado será obtido sempre que, remetendo
a lei estrangeira (L2) para outra lei, se dê o caso de todos os sistemas jurídicos em contacto
com a situação a regular designarem um deles como aplicável. Esse sistema tanto pode ser o
indicado pela norma de conflitos do foro, como o designado pelo DIP de L2 ou outro qualquer;
o que importa é que se averigúe que todas as leis interessadas estão de acordo quanto a ser
aquele o sistema competente. Se o tribunal decidir a causa em harmonia com as disposições
dessa lei, a harmonia jurídica internacional terá sido alcançada.
137. 3ª hipótese: retorno indirecto
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Suponhamos que o retorno à lex fori é ordenado por uma lei que não L2.
L1 L2
L2 L3
L3 L1
Há duas soluções a encarar:
1) Remetendo L3 para L1, aplicar-se-á sempre o direito material de L1. É a opinião por exemplo
de Wolff. O reenvio é sempre vantajoso desde que conduza à aplicação da lei do foro.
2) Noutra ordem de ideias preconizar-se-á aqui o reenvio apenas na medida em que ele puder
efectivamente contribuir para se alcançar a harmonia jurídica.
A determinação de tal medida é fácil: posta a questão a esta luz, averigua-se que a aplicação
de L1 só deverá ter-se por justificada no caso de verificação cumulativa das duas seguintes
condições: ser a referência de L2 a L3 uma referência global e ser, ao invés, a de L3 a L1 uma
referência material.
Dois estrangeiros, domiciliados em Portugal, consorciaram-se na Dinamarca. Põe-se no
nosso país o problema da validade do matrimónio. Segundo o DIP da lex fori, a lei aplicável é a
lei nacional que, por seu turno, remete para a dinamarquesa (lex loci actus) através de uma
referência global. Finalmente, o DIP português declara aplicável a lei portuguesa como lex
domicilii e esta referência é uma referência material. Tanto os tribunais nacionais como os
tribunais dinamarqueses aplicariam no caso o direito interno português. Se os nossos tribunais
julgarem a causa segundo os princípios da lex fori, a harmonia de soluções será
completamente atingida.
Já não seria assim se a referência da lei nacional dos nubentes (L2) à lex fori tivesse o
carácter de uma remissão para o direito material.
§ 4º
O reenvio oculto
138. Nas matérias do estatuto pessoal – como divórcio, seus pressupostos e efeitos, a
adopção, etc. – não existem no DIP inglês e estadunidense normas de designação da lei
aplicável, mas apenas normas de conflitos de jurisdições ou competência internacional. Se um
casal britânico pretende divorciar-se em Portugal, país onde está domiciliado, o tribunal
português não pode reportar-se ao direito inglês, por não haver aí regra de conflitos que o
declare aplicável, nem tão-pouco ao sistema jurídico português, que não é o do Estado
nacional e para o qual não devolve o DIP britânico.
Na Inglaterra entende-se que o tribunal competente aplica nesta matéria a lex fori.
Eis-nos colocados perante uma situação semelhante ao retorno. O direito inglês, através
da bilateralização da sua regra de conflitos de jurisdições (que atribui competência em
primeira linha ao tribunal inglês, como foro do domicílio das partes), considera competentes
na matéria os tribunais portugueses.
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Esta aceitação da competência jurisdicional dos tribunais locais já é traço dominante do DIP
britânico, que nas matérias do estatuto pessoal o tribunal aplica a lex fori, envolve uma
referência directa à lex materialis fori. A aplicação desta lei in foro estará de acordo com o
sentido do DIP inglês. Será em tudo uma situação análoga ao retorno – um caso de retorno
«oculto». O reenvio é admitido para eliminar o estado de dúvida e de incerteza jurídica que
deriva do facto de as leis ligadas à situação que se considera consagrarem a seu respeito
critérios de conexão divergentes. Julgando a questão do divórcio na hipótese posta, segundo
os preceitos da lex domicilii, o juiz português decidirá como no seu lugar decidiria um tribunal
britânico.
E é isto a harmonia jurídica internacional.
É por isso que propendemos a admitir o denominado reenvio oculto em face da ratio do
art. 18.°, nº 1, do CC.
§ 5º
Conclusões
139. O reenvio não pode ser erigido em princípio geral de DIP. No entanto, seria
absolutamente injustificável relegá-lo para o museu das antiguidades jurídicas. Uma coisa é o
reenvio enquanto princípio geral de DIP, outra coisa é o reenvio como “técnica” – como
procedimento complementar de regulamentação da matéria própria deste ramo do direito,
como remate da disciplina instituída pelas regras de conflitos, como modo de correcção dos
resultados do jogo normal destas regras. As regras de conflitos visam, através da eleição de um
factor de conexão tido por mais apropriado, determinar o direito aplicável em certa matéria ou
sector normativo. A lei que deste modo resulta aplicável é tomada nos seus preceitos e
instituições jurídico-materiais. A circunstância de o direito assim identificado não se reputar
competente vem introduzir na situação um elemento novo, factor talvez influente, na medida
em que a justa consideração dos interesses em causa possa porventura aconselhar, se não
impor, a sua relevância; a ponderação daquele elemento pode porventura aparecer como
necessária na moldura dos próprios interesses visados pelas normas de conflitos, isto é, como
caminho para se atingirem os fins que o DIP se propõe realizar.
Pode acontecer que a aplicação em certo e determinado caso do direito material da lei
designada pela regra de conflitos do foro se apresente como solução pior do que o adoptar-se
aí o critério do legislador estrangeiro: do que aceitar-se aí a remissão daquele sistema para
outro. Se os Estados primordialmente interessados na situação que se considera são unânimes
em a sujeitar ao direito material X, se, portanto, se pode e deve dizer que não se divisa na
hipótese qualquer conflito de leis, não se vê razão para que o DIP local se interponha, impondo
mesmo aí o seu ponto de vista divergente, vindo ele suscitar um conflito onde afinal nenhum
conflito existia. Dir-se-ia até que falha aqui o pressuposto de todo o DIP, de todas as normas
de conflitos.
Sempre que uma situação factual determinada esteja ligada a diferentes ordens jurídicas
que consagram a seu respeito critérios de conexão divergentes, é inevitável produzir-se aí um
estado de dúvida e incerteza que provoca inconvenientes. Conhecer o texto legal aplicável mas
não conhecer precisamente o preceito que nele se inscreve, ou conhecer os vários preceitos
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120
potencialmente aplicáveis a dado caso, sem todavia poder precisar aquele que ao fim a ao
cabo sobrelevará os demais – são duas situações coincidentes.
O expediente do reenvio permite em muitos casos a eliminação da situação de incerteza
jurídica, na medida em que por seu intermédio se torna possível pôr de acordo todos os
sistemas jurídicos interessados.
A doutrina exposta não vale só para as hipóteses de transmissão de competência, mas
também para as de retorno.
140. Antes do Código Civil actual, a corrente predominante na doutrina portuguesa era
contrária ao reenvio. Mesmo antes do Código actual já o princípio do reenvio tinha sido
abertamente acolhido na nossa ordem jurídica, em virtude da recepção de textos de fonte
convencional que o consagravam. - arts. 1.° da Convenção da Haia de 12 de Junho de 1902 (o
direito de contrair casamento é regulado pela lei nacional de cada um dos futuros cônjuges, a
não ser que uma disposição dessa lei se refira expressamente a outra lei);
art. 2.°, Da Convenção de Genebra , de 7 de Junho de 1930, destinada a regular certos conflitos
de leis em matéria de letras e livranças, e art. 2.°, da Convenção de Genebra, de 19 de Março
de 1931, destinada a regular certos conflitos de leis m matéria de cheques. Em todos estes
textos se atribui competência, em certos casos, à lei nacional dos interessados, mas
ressalvando-se sempre a hipótese de esta lei declarar competente a de um outro país.
Simplesmente, dada a sua origem e natureza “convencional”, não podia dizer-se que os
preceitos citados representassem a posição do nosso legislador em face do problema do
reenvio.
141. O Código de 1966 tomou expressamente posição na matéria.
O legislador português optou por uma via média. Por um lado, o Código rejeita toda a
ideia de aplicação sistemática do reenvio, quer na forma de reenvio simples, quer na forma de
reenvio duplo. A fórmula do art. 16.° - “a referência da norma de conflitos portuguesa à lei
estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno
dessa lei” – não pretende senão marcar o repúdio dessa ideia. Por outro lado, define-se com
certo rigor o âmbito em que o reenvio deve actuar.
O nosso legislador teve a preocupação de fugir a toda a orientação de tipo e raiz
conceitualista.
Contudo, o reenvio é algo de valioso e seria erro gravíssimo desprezar as virtualidades
que ele encerra. O reenvio constitui em muitos casos um dos meios ou caminhos mais
apropriados para nos levar aos objectivos que o direito de conflitos aponta.
É à harmonia jurídica internacional que se alude: à uniformidade de valoração da mesma
situação da vida por parte de todos os sistemas de direito com ela conectados. Unidade essa
sem a garantia da qual a segurança jurídica está comprometida.
O reenvio torna possível eliminar a divergência entre as regras de conflitos dos sistemas
ligados a determinada situação factual, pelo que toca à lei aplicável a tal dos seus aspectos
juridicamente relevantes. O reenvio é, portanto, factor de certeza jurídica.
O legislador português perfilhou nesta matéria uma orientação geral altamente
progressiva.
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142. A ideia de harmonia jurídica internacional foi a fonte de inspiração do legislador
português.
a) No reenvio de primeiro grau ou retorno, o direito material da lex fori só se torna aplicável se
a norma de conflitos da lei estrangeira para ele devolver precisamente (art. 18.°, nº 1: “Se…
devolver para o direito interno português). Por conseguinte, se a norma de conflitos, que
reenvia para a lei do foro, pertencer a um sistema jurídico como o brasileiro ou o
dinamarquês, não há dúvida de que é o direito interno português aquele que o tribunal deve
aplicar. Sendo certo que nenhum dos referidos sistemas admite o reenvio, resulta que a
aplicação aos factos controvertidos dos preceitos do direito interno português permitirá
alcançar em Portugal o mesmo resultado a que se chegaria na Dinamarca ou no Brasil.
Mas não assim se o DIP da lei estrangeira em questão (por exemplo, o francês) consagrar
em termo gerais o reenvio de primeiro grau.
Sempre que a referência da norma de conflitos estrangeira à lei portuguesa seja uma
referência global – isto é, uma referência que abranja as próprias regras de conflitos do direito
português –, o reenvio não promove, senão que impede a uniformidade de valoração da
situação sub judice; o que é motivo para o rejeitar. Haverá unicamente que aplicar as
disposições materiais do sistema indicado pelo DIP do foro.
O mesmo deverá dizer-se do caso em que a lei, que devolve para a lex fori, seja um
sistema inspirado pelo próprio princípio do reenvio total ou do duplo reenvio (foreign Court
theory). Não que o reenvio seja aqui um obstáculo à harmonia jurídica, mas apenas por não
ser ele meio necessário para se atingir esse fim. Mas ainda assim se justifica o reenvio, na
medida em que conduz à aplicação do direito material português.
Na hipótese do retorno indirecto – hipótese em que a norma de conflitos da lei designada
pelo DIP do foro remete para uma terceira legislação, devolvendo esta a competência à lex fori
– o reenvio é de aceitar, no quadro do art. 18.°, nº 1, e tendo em vista a ratio legis (harmonia
jurídica), quando se cumpram cumulativamente as duas condições:
1ª – aceitação do reenvio de segundo grau ou transmissão de competência por parte do
sistema designado pelo DIP local;
2ª – designação da lex fori por parte da terceira legislação em causa através de uma referência
de carácter material (referência ao puro direito interno da lei indicada). A razão inspiradora do
art. 18.° procede do mesmo modo no caso do retorno directo e na hipótese de retorno
indirecto. Se nesta hipótese resolvermos a questão sub judice pelo direito material da lex fori,
alcançaremos a solução considerada válida por ambos os sistemas estrangeiros interessados.
O texto do art. 18.° deve preferencialmente ler-se como se dissesse: “Se o direito internacional
privado da lei [directa ou indirectamente] designada pela norma de conflitos…”.
143. b) Reenvio de segundo grau ou transmissão de competência: art. 17.°
As normas de conflitos existem para coordenar na sua aplicação as leis em contacto com
uma situação determinada, por modos que a cada uma dessas leis seja atribuída a
regulamentação de um único aspecto ou efeito da mesma situação.
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Se entre algumas de tais leis surge um concurso ou conflito esse conflito tem de ser dirimido e
a arbitragem incumbe ao DIP local.
A,B e C, únicas leis em contacto com a situação a regular, repartem entre elas a
competência em perfeita unidade de vistas, de tal modo que, pelo que toca à questão jurídica
a resolver, estão todas de acordo em que seja B a resolvê-lo. Não faria sentido que o DIP do
foro viesse interpor-se aqui, fazendo prevalecer o seu critério divergente. Não se verifica aqui
o pressuposto da actuação das regras de conflitos: a existência de um conflito de leis.
No art. 17.°, nº 1 subordina-se a uma clara condição a aceitação do reenvio da lei
designada pela regra de conflitos portuguesa para outro sistema jurídico: a condição é que
este terceiro sistema se repute competente.
Se, porém, a terceira lei camada ao caso se reputar inaplicável?
Depende. Se essa lei retornar a competência à que foi designada pela norma de conflitos
do foro, o problema extingue-se, ou porque esta legislação acabe por considerar-se aplicável –
e teremos de novo a harmonia de soluções –, ou porque importará aplicá-la, uma vez que não
se pode considerar satisfeita a condição de que dependia a aplicabilidade da outra (reputar-se
ela competente).
Se, diversamente, a terceira legislação designar uma quarta, surge aí uma hipótese de
reenvio em cadeia.
A, B e C são as leis conectadas com a situação suj judice; nenhuma delas é a lex fori. A
designa B através de uma referência global, B indica C e C considera-se competente. C seria a
legislação aplicada em qualquer dos Estados interessados.
Não seria admissível que o juiz do foro optasse pela legislação A, sob pretexto de ser este
o sistema competente segundo o direito de conflitos local. Sempre que entre as diferentes leis
em contacto com a situação a regular se registe acordo quanto à competência de uma delas,
será necessariamente essa a lei a aplicar. Nesta hipótese falha o essencial pressuposto da
actuação das regras de conflitos, porque estas são normas que se destinam a arbitrar ou
dirimir conflitos de leis – e, logo, só devem intervir quando não se verifique a desejada
uniformidade de vistas entre os sistemas interessados.
144. A lei portuguesa é a única que só admite o reenvio quando ele for conforme com o
princípio altruísta. As outras leis favoráveis ao reenvio são todas expressões do ponto de vista
nacionalista ou egoísta.
A Reforma italiana consagrou expressamente o reenvio nas suas duas modalidades e
adoptou, quanto à transmissão de competência ou reenvio de 2º grau, a mesma posição do
Código Civil português: tem-se em conta o reenvio operado pelo DIP estrangeiro para a lei de
um outro Estado, se o direito desse Estado aceitar o reenvio. O fundamento desta norma é a
harmonia jurídica internacional. Mas a lei italiana afasta-se desse ponto de vista em matéria de
retorno: neste caso, aceita-se o reenvio para a lei italiana.
145. Restrições ao reenvio no âmbito do estatuto pessoal
Na perspectiva do legislador português, existe um conjunto de matérias que, pela
natureza eminentemente pessoal que revestem, devem ser governadas por uma lei que os
indivíduos possam olhar como a sua lei, à qual possam considerar-se ligados por algum vínculo
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123
verdadeiramente substancial e permanente. Só pode haver opção entre a lei da nacionalidade
e a da residência habitual (domicílio).
O legislador esteve relutante em abandonar este ponto de vista, quando forçado a fazê-lo
por exigências da regra do reenvio, como enunciara nos arts. 17.°, nº 1 e 18.°, nº 1.
Segundo o art. 18.°, nº 2, o regresso à lex fori prescrito pela norma de conflitos das lei
pessoal só é de admitir em duas hipóteses:
a) na hipótese de o interessado ter a residência habitual em território português;
b)na hipótese de a lei da sua residência habitual remeter também para o nosso direito interno.
Na primeira, o reenvio produz como único efeito a substituição da lei do domicílio à lei
nacional, sendo certo que tanto a competência daquela como a desta representam soluções
justas e praticamente equivalentes do problema da lei pessoal.
No segundo caso, a excepção à aplicação da lei pessoal justifica-se pelo acordo verificado entre
os dois sistemas jurídicos interessados nas questões de estatuto pessoal: lex patriae e lex
domicilii.
Nas restantes hipóteses possíveis de retorno, deve entender-se que o reenvio (ou dsejsa,
a aplicação da lex materialis fori) é sempre rejeitado. A definição do estatuto pessoal por uma
lei diferente tanto da lex patriae como da lex domicilii constitui, em princípio, má solução, que
só motivos especiais podem levar-nos a aceitar.
Como a situação jurídica em causa está ligada à lex fori, não há grande risco de a aplicação
da lex patriae não vir a ser reconhecida em lado algum: ela será sempre eficaz pelo menos no
Estado do foro.
146. Diz-se no art. 17.°, nº 2, com referência ao reenvio de 2º grau (transmissão de
competência) nas hipóteses de competência da lei pessoal, que a terceira legislação não será
aplicável (apesar de se julgar competente):
1º - se o interessado residir habitualmente em território português;
2º - se o interessado residir num país cujo direito de conflitos devolva, na espécie, para a lei
interna do seu Estado nacional.
Em matéria de estatuto pessoal a escolha de uma lei diferente tanto da lex patriae como
da lex domicilii constitui, para nós, uma má solução. Solução que todavia aceitaremos, se nela
convierem a lex patriae e a lei indicada pela regra de conflitos da lex patriae (harmonia
jurídica).
Suponha-se que o interessado tem a sua residência em Portugal – e que a lex patriae
designa como aplicável a lex loci, a qual se reputa competente. O art. 17.°, nº 2, manda aplicar
aqui o direito interno da lei nacional. Esta solução terá garantida a sua eficácia no Estado local,
que (como Estado do domicílio) é um daqueles mais fortemente ligados à relação
controvertida.
Relativamente à segunda restrição do art. 17.°, nº 2, imaginemos que a lex patriae remete
para a lex loci actus, que esta lei se considera competente, mas que a lei da residência habitual
do ou dos interessados reenvia por seu turno para a do Estado da respectiva nacionalidade. A
lex patriae é a lei tida por competente num dos Estados mais fortemente interessados na
situação, o Estado do domicílio. Por outro lado, tomado este caminho não nos desviaremos do
único critério que em princípio pareceu razoável ao nosso legislador: aplicação da lex patriae
ou da lex domicilii.
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147. Questiona-se, dentro do âmbito do estatuto pessoal e do círculo de casos de transmissão
de competência, se o reenvio não será de admitir, sem embargo de não se verificar a condição
primordial do art. 17.°, nº 1, que é a aceitação de competência por parte do terceiro sistema
convocado, pelo facto de ser esse o sistema indicado, de comum acordo, pelas leis da
nacionalidade e da residência habitual ou domicílio. [Pronuncia-se a favor desta solução Baptista
Machado].
A lex patriae (A) designa como aplicável a lex rei sitae (B). B não se julga competente. A
lex domicilii (C) manda aplicar também B. imaginemos que se trata de dirimir em Portugal um
pleito hereditário. O de cujus era nacional de A e residia habitualmente em C. os bens
(imóveis) encontram-se em B. Que lei aplicar?
Atendendo ao disposto nos arts. 16.° e 17.°, nº1, deveria aplicar-se à sucessão a lei
nacional. Contudo, nós propendemos para o respeito do acordo entre os dois sistemas que
merecem a qualificação de sistemas primariamente interessados – e que são a lex patriae e a
lex domicilii – sempre que esteja em causa matéria pertencente ao âmbito do estatuto
pessoal.
São a lex patriae e a lex domicilii que sobretudo contam nas questões de estatuto pessoal.
A aplicabilidade da lei que a lex patriae e a lex domicilii declaram aplicável, conquanto ela
própria se repute incompetente (e não admita o retorno) – não se infere directamente dos
preceitos do Código. No entanto, ela ajusta-se perfeitamente aos seus princípios.
148. A restrição ao reenvio enunciada no nº 2 do art. 17.° deixa de valer, sempre que a lei
indicada pela norma de conflitos da lex patriae for a da situação de um imóvel e esta lei se
reputar competente, desde que se trate de dalguma das matérias enumeradas no art. 17.°, nº
3.
Suponhamos que se põe o problema da lei reguladora a sucessão por morte de um
súbdito britânico, falecido em Portugal, onde estava domiciliado e que deixou bens imóveis
situados em França. Perante a norma do art. 17.°, nº 3, uma vez que a lei do Estado nacional
do de cujus (lei aplicável à sucessão de conformidade com os princípios do nosso DIP: art. 62.°
do CC) remete para a da situação dos imóveis e que esta lei se considera competente, é pelo
direito sucessório francês que o tribunal local tem de resolver a questão.
O art. 17.°, nº 3 constitui manifestação indirecta da doutrina dita da competência mais
próxima ou da maior proximidade, princípio que o legislador entendeu não dever consagrar. O
legislador entendeu não dever renunciar, em termos gerais, às soluções que lhe pareceram
mais oportunas, simplesmente porque a lei da situação de um imóvel se considera, no caso,
como única aplicável.
Se, porém, é a própria lei pessoal que se inclina perante a competência reivindicada pelo
Estado da situação da coisa, esta circunstância é de molde a introduzir um elemento novo no
problema. Já não se trata de adoptar determinada solução apenas por ser ela a solução
querida pela lex situs, antes a solução que se apresenta é a que está conforme com o DIP de
dois sistemas: o da lex rei sitae e o da lex patrie. Não é só o princípio da eficácia das decisões
judiciais que está em causa, senão também o da harmonia jurídica.
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149. Conexões favoráveis e contrárias ao reenvio. Nem todas as regras do DIP, encaradas à luz
dos seus fins específicos, são com eles compatíveis.
No entanto, esta ideia só aflora no art. 19.°, nº 2. Não haverá reenvio quando a lei
estrangeira aplicável o for por força da vontade das partes contratantes, os termos do art. 3.°
da Convenção de Roma de 1980.
Se a lei por estas designada remeter para outra, essa transmissão de competência ou esse
retorno não releva. Não se crê que os contraentes tenham utilizado a referência a
determinada lei só como meio de aludirem ao direito material por essa mesma lei declarado
aplicável. Se for de aceitar que as partes quiseram na verdade referir-se ao direito material
competente segundo a regra de conflitos da lei por elas designada, será esse o direito
aplicável, mas unicamente porque foi ele o direito escolhido, não em virtude de qualquer
reenvio da lei estipulada para outra lei. Aquela regra de conflitos apenas intervirá como facto.
Também a norma que confere competência, em matéria de forma externa dos negócios
jurídicos, à lei do lugar da celebração, é de molde a excluir todo o entendimento conforme ao
princípio do reenvio (a menos que do reenvio derive a validade do negócio). Elege-se como
factor de conexão o locus negotii com vista a facilitar às partes a realização de negócios
jurídicos em Estados diferentes daquele a que os mesmos negócios pertençam por sua
substância e efeitos. Do que se trata é de evitar aos interessados o ónus da indagação e da
observância daquelas formalidades consideradas essenciais por uma legislação que não seja a
do próprio país onde se encontram e onde pretendem realizar o negócio. Não faria sentido
forçá-los a conformar-se com o DIP desse país, quando porventura impregnado de um espírito
diferente.
150. O favor negotii como fundamento autónomo do reenvio. É questão pertinente a de
saber se porventura o favor negotii poderá fundamentar só por si – isto é, independentemente
da harmonia jurídica internacional – o reenvio.
Alguns autores entendem que o reenvio deverá admitir-se só porque ele se apresenta
como o meio necessário para assegurar a determinado negócio jurídico a sua plena validade
ou eficácia. E nada obsta certamente a que o legislador, no momento de elaborar as suas
regras de conflitos, dê consagração a tal pensamento, prescrevendo a adopção do reenvio
como processo de promover a validade ou eficácia de um negócio que doutro modo seria
inválido (ou ineficaz). Pode inclusivamente compreender-se que se prescreva o recurso ao
reenvio todas as vezes que ele seja o último remédio possível para salvar o negócio jurídico da
ineficácia. Cremos que seria preferível examinar o problema no quadro de cada tipo negocial –
e só admitir o reenvio pelo fundamento indicado naqueles domínios em que o interesse na
conservação do negócio jurídico se faça sentir com especial intensidade.
O certo é que o CC português só aceitou a referida directiva na hipótese de a invalidade
do negócio resultar de um vício de forma (art. 36.°, nº 2). Se a forma da declaração negocial
obedecer, não à lei do país onde esta foi emitida, mas à do Estado para que remete a norma
de conflitos daquele sistema, a declaração é válida. Esta solução corresponde à intenção
enformadora do princípio locus regit actum, que não é a de facilitar a contratação. Ela está
também expressamente consagrada em matéria de testamentos: art. 65.°, nº 1.
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151. O favor negotii como limite ao reenvio. Conforme o disposto no art. 19.°, nº 1, se do
reenvio resultar a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico, que seria válido ou eficaz em
face da lei indicada pelo DIP português, é esta a lei que se aplica – e assim ficará salva a
eficácia do acto. Significa isto que se a questão da validade do negócio for decidida em termos
opostos pela lei que reenvia e por aquela para a qual se reenvia, prevalecerá a lei que tiver o
negócio por válido.
Se os interessados realizaram o negócio jurídico de conformidade com as disposições de
um sistema de direito material que é, na espécie, o declarado competente pela regra de
conflitos do foro e for de crer que eles se orientaram por esta norma de conflitos, então não
seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do acto.
Se o pressuposto da norma do art. 19.°, nº 1 não se verificar in concreto, o preceito torna-
se aplicável: deixa de haver razão especial, do ponto de vista do nosso ordenamento, para
tutelar as expectativas das partes – a sua confiança em terem celebrado um negócio válido.
A circunstância de a lei ser omissa a tal respeito não pode ser considerada impedimento à
solução indicada, pois ela decorre da ratio legis.
Exemplo: Um cidadão do Reino Unido domiciliado no Rio de Janeiro deixa por testamento a
maior parte da sua fortuna a instituições brasileiras de beneficência. Se alguns dos calores
deixados forem transferidos depois da morte do testador para Portugal, poderão os filhos
deste fazer valer no nosso país, relativamente a esses bens, o direito à legítima que lhe
assegura o CC brasileiro?
Sem dúvida que sim. O juiz português, olhando às normas dos arts. 17.°, nº 1 e 62.° do
nosso Código, conclui pela aplicabilidade da lei brasileira, porque é esta a solução que decorre
da regra de conflitos da lex patriae como da norma da lex domicilii (no Brasil – Lei de
introdução, art. 10.° - é a lei do país em que estava domiciliado o hereditando que regula a
sucessão). Nenhum motivo existia que permitisse ao testador orientar-se, no momento e no
acto de exprimir as suas últimas vontades, pelos princípios de direito conflitual de um sistema
(o português) com o qual a situação não tinha quaisquer laços.
Apesar de o reenvio conduzir aqui à ineficácia (parcial) do testamento, o reenvio é de
acatar. O valor da harmonia jurídica vem a prevalecer sobre o do respeito pela vontade do
testador – como nos negócios entre vivos, e em condições paralelas, sobreleva ao da tutela
das expectativas das partes decorrentes da celebração do negócio. O art. 19.°, nº 1 será
inaplicável.
152. A norma do art. 19.°, nº 1, segundo o seu escopo, não se refere ao momento da
celebração do negócio jurídico, mas pressupõe uma situação já constituída, um facto
consumado.
No caso de negócios jurídicos a celebrar em Portugal com a intervenção de um agente do
Estado ou autoridade pública. Uma vez apurado que não se verificam no caso as condições de
validade requeridas pelo sistema jurídico que o reenvio vem a tornar aplicável, o funcionário
deverá recusar-se a celebrar o acto, ou deverá deixar bem expresso que o mesmo acto só terá
os efeitos quer a referida lei lhe atribuir.
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153. As normas contidas nos arts. 17.° a 19.° não resolvem por simples aplicação mecânica e
directa todos os problemas relacionados com a matéria do reenvio. Neste tipo de construções
que são os sistemas de preceitos jurídicos, nunca chega o momento de colocar a última pedra.
Era inevitável que existissem imperfeições no quadro. Essas imperfeições estão longe de
ser algo de irremediável, algo que não possamos corrigir com a simples ajuda dos meios e
processos normais de interpretação da lei. Interpretação que valorize devidamente o facto de
o DIP ser uma disciplina que busca as suas soluções e os seus caminhos e que, inclusivamente,
está para muitos a viver uma época de crise radical.
As fórmulas legais aparecem-nos aqui não como algo de concluso, de definitivo e fechado,
mas antes como tentativas de aproximação dos objectivos visados, aberturas para a
descoberta de soluções novas, sinais ou marcos indicativos, cuja função é mais definir uma
linha de rumo do que mostrar em toda a sua extensão o caminho a percorrer.
Secção 4º
O princípio da maior proximidade
172. Zitelmann formulou o que veio a chamar-se doutrina ou princípio da maior proximidade
nos seguintes termos: sendo um conjunto de bens e direitos concebido unitariamente pela lei
mais apropriada para o reger, há no entanto que distrair da universalidade todos aqueles
elementos que a ela não pertençam, segundo o estatuto próprio de cada um.
A lex fori concebe determinado conjunto de bens e direitos (por exemplo, a herança)
unitariamente e por isso manda-o regular por uma única lei (a lei pessoal do de cujus), que
comunga na mesma ideia. No entanto, alguns dos elementos da universalidade estão sujeitos
a uma ordem jurídica (a do Estado da respectiva situação) que não perfilha (ou que não
perfilha inteiramente) a referida concepção unitária. Nestas circunstâncias, há que destacar
tais elementos da universalidade. O estatuto do todo cede ao estatuto da parte. A lei pessoal
abdica da sua competência perante a competência mais forte da lei da situação.
173. O princípio enunciado é susceptível de duas acepções. Numa acepção mais restrita, ele
significa que a lei reguladora de um património – seja a herança, seja o património do incapaz
ou o dos cônjuges – cederá a sua competência à do Estado da situação de coisas certas e
determinadas, na medida em que estas coisas estiverem sujeitas nesse Estado a um regime
especial de direito material. É defendida por Lewald e Kegel.
Outro era o entendimento dado pela doutrina alemã no antigo art. 28.° da EGBGB.
De harmonia com a opinião corrente na Alemanha durante a vigência da antiga EGBGB,
devia entender-se (e esta é a segunda acepção) que a lei definida como aplicável a certa
universalidade de bens abdica da sua competência em favor da lei da situação de alguns
desses bens imóveis, não só na hipótese referida acima, mas também naquela em que a lex rei
sitae se considera exclusivamente aplicável pelo que respeita a tais bens.
São dois os casos em que, segundo a doutrina referida por último, devia aceitar-se a
citada abdicação de competência por parte da lei normalmente aplicável em favor da lei da
situação. O primeiro verifica-se quando esta última lei submete certos elementos do
património a um regime especial de direito material; o segundo, quando a lex rei sitae organiza
para os bens imóveis uma regulamentação especial de DIP.
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Não interessa, para admitir a competência da lei da situação, que a natureza mobiliária ou
imobiliária dos bens tenha algum relevo no plano do direito material: basta que seja relevante
para efeitos das regras de conflitos. Por exemplo: o direito francês distingue entre a sucessão
mobiliária e imobiliária unicamente para o efeito de sujeitar a primeira à lei do último
domicílio do autor da herança e a segunda à lei da situação dos bens. O princípio da maior
proximidade, entendido de acordo com a referida opinião, obrigará a aplicar o direito
sucessório francês à sucessão em tudo quanto diga respeito aos imóveis sitos em França, ainda
mesmo que o de cujus tenha sido um nacional do Estado do foro.
Só se dará aplicação à lex rei sitae na medida em que esta se considere competente por
esse título. Se a lex situs se considera aplicável, não como tal, mas como lei do último domicílio
do hereditando (por ser para ela o domicílio do hereditando o elemento de conexão aqui
relevante, ao passo que para a lex fori esse elemento é a última nacionalidade), a lei designada
pelo DIP do foro para regular toda a sucessão continuará sendo a única competente.
Exemplo: sucessão por morte de um cidadão do Estado local, que falece com domicílio em
Copenhaga e deixa bens imóveis na Dinamarca. O direito dinamarquês tem-se por
competente; essa pretensão não é, todavia, de acolher sob invocação do princípio da maior
proximidade, pois não é da sua qualidade de lex situs que a lei dinamarquesa deriva aqui a sua
competência, senão da qualidade de lei do último domicílio do autor da herança.
174. A adopção da primeira directiva indicada no número anterior parece aconselhada por
fortes razões. Nos casos que ela pretende abranger, a competência da lex rei sitae impõe-se a
todas as luzes. Trata-se aí de bens separados dentro do património geral a que pertencem,
bens unificados pela sua afectação a determinado escopo, de onde decorre que lhes seja
aplicável um regime jurídico especial. Reconhecer a premência dessas razões (as ponderosas
razões de política social e económica que estão na base) é admitir implicitamente a
aplicabilidade das normas por elas inspiradas, normas essas que são, no país a que pertencem,
de aplicação necessária ou imediata – é reconhecer a competência da lex rei sitae.
A admissão da doutrina exposta dentro desses limites não é de molde a suscitar dúvidas.
175. Já a ideia correspondente à segunda acepção do princípio da maior proximidade merece
graves reparos.
O fundamento da doutrina consiste na consideração de que, se os tribunais locais
decidem um pleito hereditário, um problema de relações patrimoniais entre cônjuges, à luz da
lei pessoal, ignorando os preceitos da lei do Estado da situação dos bens imóveis ou de alguns
eles, e esta lei se considera exclusivamente aplicável na matéria, aquela decisão estará
antecipadamente condenada a não passar de letra morta. Normalmente, a sua eficácia
dependerá do seu reconhecimento naquele Estado. Mas esse reconhecimento exigirá em regra
que a sentença tenha feito aplicação dos preceitos da lex rei sitae.
Esta argumentação está longe de ser decisiva. Pode acontecer que o Estado da situação
reserve de um modo exclusivo para os seus tribunais a competência jurisdicional na matéria.
Ao invés, pode ocorrer que o referido Estado não sujeite em geral o reconhecimento das
decisões de tribunais estrangeiros à condição de nelas se ter aplicado a lei competente
segundo o DIP local. Não deveria ser necessário que a lex rei sitae se repute competente
justamente a esse título: deveria bastar o mero facto de ela se reputar aplicável no caso
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concreto. Se a lei da situação não pretende aplicar-se, o seu DIP remete o problema para outra
lei, essoutra lei é que deveria ser aplicada.
176. É por estes fundamentos que não propendemos a admitir o princípio da maior
proximidade nos termos em que o admite a doutrina dominante na Alemanha, em que o
admitem as Convenções da Haia, de 12 de Junho de 1902 e de 17 de Julho de 1905.
Não é esse o caminho apontado pelas razões valiosas que estão na base do mencionado
princípio. Entende-se que os tribunais deverão trocar a perspectiva do seu direito de conflitos
pela lei do Estado da situação, no caso de se apurar que uma tal mudança de perspectiva é
condição ao mesmo tempo necessária e suficiente para assegurar às suas decisões pleno
reconhecimento no referido Estado.
177. Só o anteprojecto português de 1964 enveredara por este caminho.
Apesar do art. 5.° do anteprojecto conter a doutrina mais acertada na presente matéria,
esse texto não foi adoptado pelo legislador. Nem esse nem qualquer outro de significado
análogo ou extensão.
No art. 17.°, nº 3 encontra-se um afloramento ou consagração indirecta do princípio da
maior proximidade. Por outro lado, o art. 47.° faz desse mesmo princípio uma aplicação
directa, ainda que limitada.
Para além das duas referidas disposições, deve ainda considerar-se válida a primeira
modalidade da doutrina exposta.
Secção 5ª
O conflito positivo de sistemas de direito internacional privado e o princípio do
reconhecimento das situações jurídicas criadas no estrangeiro
178. Rejeitada a ideia de um super-direito internacional privado bem como a da autolimitação
espacial das normas de conflitos, recusada a doutrina da unilateralidade, toda a solução do
conflito positivo de sistemas diferente da que se traduz no prevalecimento da lex fori
aparecerá como inviável. É à regra de conflitos do foro que caberá sempre a designação da lei
aplicável. A circunstância de haver outra lei que se julgue competente para regular a espécie
jurídica em causa, ou que seja como tal reputada por um terceiro sistema, terá de ser
considerada irrelevante: em qualquer caso, haverá que fazer aplicação da lei que para tanto
for designada por uma norma do ordenamento jurídico do foro. [É o dogma da exclusividade do
direito de conflitos da lex fori]. Qualquer excepção deste princípio só pode derivar da própria lex
fori. [A doutrina e a jurisprudência vêm admitindo certos desvios ao mencionado princípio do domínio
do conflito negativo de sistemas (reenvio). A doutrina e a jurisprudência têm-se guiado sempre, no que
toca ao conflito positivo de sistemas, pelo princípio da exclusiva aplicabilidade do direito conflitual da
lex fori].
Pensa-se na possibilidade de se admitir que a competência atribuída a uma lei (a lei
pessoal dos sujeitos da relação jurídica) vai subordinada à condição de outra lei (a lex rei sitae)
não se julgar, ela própria, aplicável. Esta posição tem sido por vezes sustentada, com base
numa ideia de maior proximidade desta segunda lei em relação aos factos – e de uma mais
forte competência em confronto com a da lei pessoal.
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Outra questão que se coloca é a de saber se, pelo que toca às situações internacionais
constituídas no estrangeiro, não deverá aceitar-se uma ideia de competência alternativa, por
modos que essas relações possam ser reconhecidas ou com base na lei de primordial
designação (a indicada pelo DIP do foro), ou com base naquela conforme a qual foram criadas.
Condições do reconhecimento no Estado do foro dos direitos adquiridos ou das situações
jurídicas constituídas em país estrangeiro.
179. A noção de direito adquirido tem sido utilizada em direito internacional privado em
diferentes ocasiões e para diversos fins.
a) Antes de tudo, para conciliar a prática universal da aplicação de direito estrangeiro com o
princípio da territorialidade das leis e o dogma da soberania estatal. A doutrina anglo-saxónica
propôs que se recorresse ao conceito se direito adquirido (vested right).
Jamais os tribunais de um país aplicam leis estrangeiras, ou dão execução a sentenças
provindas de um Estado estrangeiro. Tudo quanto fazem é sancionar os direitos regularmente
adquiridos em virtude da lei ou da sentença estrangeira.
A teoria dos vested rights assume um interesse meramente histórico. Ela assenta num
erro claro e insofismável. Verdadeira é a proposição conforme a qual todo o acto de aplicação
de preceitos jurídicos depende unicamente da soberania do Estado territorial. Os tribunais
aplicam por vezes leis estrangeiras que não se consideram aplicáveis ao caso vertente e que
não podem ter dado origem ao nascimento de qualquer direito subjectivo. A decisão de
reconhecer o direito invocado só pode fundar-se num preceito do ordenamento local e não
um qualquer princípio de reconhecimento dos direitos validamente adquiridos em país
estrangeiro.
Nesta teoria, a noção de direito adquirido não desempenha qualquer papel construtivo:
não abre caminho a qualquer forma particular de coordenação dos sistemas nacionais de DIP,
quando esteja em causa uma pretensão de reconhecimento de um direito subjectivo criado no
estrangeiro. A teoria dos vested rights pretende apenas fundamentar a aplicação pelos
tribunais dos diferentes Estados de leis estrangeiras – não visa fornecer um contributo para a
resolução dos conflitos de sistemas, problema que, aliás, ignora.
b) Também Pillet e Machado Villela recorreram ao conceito de direito adquirido.
Para a escola de Pillet, o conflito de leis e o reconhecimento dos direitos adquiridos são
problemas perfeitamente distintos. Trata-se de reconhecer, no Estado do foro, uma situação
cujos factos constitutivos, no momento em que se verificaram, estavam todos em contacto
com um só país e um único ordenamento jurídico (estrangeiro). Nenhum conflito de leis se
divisa e o problema que surge é só o do reconhecimento dos direitos emergentes da relação
jurídica.
A isto respondeu a doutrina posterior por um modo artificioso e pouco convincente,
alegando que o conflito de leis, se efectivamente não existiu no momento da constituição do
direito, veio a suscitar-se mais tarde, quando se pretende obter o reconhecimento do mesmo
direito no Estado local, e sob a forma de concurso entre a lei deste Estado e a lei estrangeira.
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Machado Villela entende que o apontado conflito de leis é ilusório, já que a lei do tribunal
nunca poderia aplicar-se, como lei competente, a um facto que, no momento em que se
produziu, não tinha com essa lei o menor contacto.
Nos casos de relações puramente nacionais (relações conectadas com uma única ordem
jurídica, não sendo ela a do Estado do foro) não existe efectivamente qualquer conflito de leis.
A aplicação da lei estrangeira e o reconhecimento da relação estabelecida à sombra dessa lei
não podem derivar aqui de uma regra de conflitos do foro.
Baptista Machado defende que o reconhecimento decorre em tais casos de uma regra
básica, implícita em todo o sistema de DIP, ou de um princípio universal de direito, que postula
a aplicação a quaisquer factos das leis que com eles se achem em conexão. Esta opinião é
muito discutível. Segundo Ferrer Correia, a única coisa que poderá inferir-se da natureza da lei
tomada como regula agendi é que a lei, assim como não é aplicável a factos pretéritos,
também não o será a factos que com ela não tenham uma certa relação ou conexão espacial.
[Trata-se, segundo Baptista Machado, do princípio da não-transactividade, que corresponde, no âmbito
do DIP, ao princípio da irretroactividade das leis do direito transitório].
Uma lei é aplicável a todos e quaisquer factos que apenas estejam em contacto com essa
lei; qualquer lei é potencialmente aplicável a quaisquer factos que estejam conectados com
ela. Da natureza da lei como regra de dever-ser nenhum obstáculo deriva a que uma norma
material se aplique a determinadas situações factuais, desde que entre estas e a norma exista
uma conexão susceptível de relevância jurídica.
É por outro caminho que devemos procurar o fundamento, no Estado do foro, do
reconhecimento das situações jurídicas estrangeiras de conexão única.
É ainda do princípio da não-transactividade, conjugado com a ideia da inadmissibilidade
da denegação de justiça, que o aludido reconhecimento promana. É-nos vedado aplicar às
referidas relações a lex materialis fori. Não é lícito ao juiz do foro abster-se de se pronunciar
sobre a pretensão que lhe é submetida. Relativamente a tais situações, depara-se-nos uma
lacuna no sistema jurídico do foro – já que as regras de conflitos existentes se dirigem apenas
à hipótese das relações plurilocalizadas – lacuna essa que é importante preencher com uma
norma que determine a aplicação nesses casos da lei estrangeira da qual a relação sub judice
exclusivamente dependa. Não havendo aí concurso de leis e excluída a aplicabilidade da lex
fori, não se vislumbra para aquela solução qualquer alternativa. Se na hipótese da situação
plurilocalizada se deve tender para a aplicação da lei com a qual os factos em causa
mantenham a conexão mais estreita, assim na outra hipótese (a da situação de conexão
única), arredada a possibilidade de intervenção da lex materialis fori, há que fazer aplicação da
única lei com a qual a situação sub judice se acha em contacto.
180. É de uma regra específica ínsita no sistema de DIP e a cuja formulação se chega através
do processo normal de preenchimento de lacunas que deriva o reconhecimento, no Estado do
foro, das situações jurídicas criadas no estrangeiro de conformidade com as normas do único
ordenamento estatal de que elas dependem ou com o qual se acham em conexão.
A hipótese da situação jurídica de conexão única não obriga a conceber a existência de
um princípio postulante do reconhecimento extraterritorial dos direitos adquiridos, antes o
reconhecimento da referida situação decorre imediatamente da aplicação da lei estrangeira e
esta de uma norma do ordenamento do foro que, tal como as regras de conflitos, é uma
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norma de atribuição de competência. Em todo o sistema de DIP há duas espécies de preceitos
atributivos de competência: as normas de conflitos, por um lado, e por outro a norma que
prescreve, relativamente ao caso das situações puramente internas, a aplicação da lei a que as
mesmas situações se encontram vinculadas.
Contra a teoria da escola de Pillet objectou-se também que a distinção entre o problema
do reconhecimento dos direitos adquiridos e o dos conflitos de leis é destituída de interesse.
Ela só seria fundada na hipótese de a protecção dos direitos adquiridos poder actuar
independentemente do direito de conflitos – ou na de existirem normas de conflitos especiais,
criadas para facilitar o seu reconhecimento.
A primeira hipótese é manifestamente absurda, já que para reconhecer um direito como
validamente adquirido é preciso determinar previamente a lei por que deveremos aferir a sua
constituição. No entanto, é concebível um sistema em que se prescreva o reconhecimento de
todas as situações jurídicas validamente constituídas em país estrangeiro, segundo os
preceitos de uma legislação que a si própria se considere competente. Mas tal orientação não
era recomendada por Pillet.
A mesma observação é cabida a propósito da outra hipótese, isto é, a de existirem regras de
conflitos especiais para as situações constituídas fora do Estado onde o reconhecimento é
pedido.
181. Nada se ganha com estas duas doutrinas, sob o ponto de vista das soluções a dar aos
problemas levantados pelas relações privadas internacionais, com o recurso a tal princípio.
Outro tanto se diz da teoria da unilateralidade das regras de conflitos.
A doutrina dos direitos adquiridos em DIP encontra a sua expressão mais acabada numa
proposição do tipo seguinte: todo o facto constitutivo, modificativo ou extintivo de uma
situação jurídica, que se tenha verificado em país estrangeiro e que seja apto para produzir
essa consequência jurídica segundo os preceitos de uma legislação que se lhe repute aplicável,
será reconhecido como tal no Estado do foro. O sistema da unilateralidade é o que em
melhores condições se encontra para dar realização a este pensamento. Para a doutrina da
unilateralidade há que aplicar a uma situação jurídica toda a norma que se lhe repute aplicável
– e que em caso algum poderá fazer-se aplicação de uma lei que não considere a situação a
regular incluída no âmbito da sua competência.
O unilateralismo, em vez de rejeitar a noção de direito adquirido como algo de
inadequado e de inútil, vem pelo contrário realçar-lhe importância. O unilateralismo leva por
caminho direito ao reconhecimento de toda a situação jurídica criada em país estrangeiro ao
abrigo dos preceitos de uma legislação que se considere competente – o que é a consagração
da ideia fundamental da doutrina dos direitos adquiridos em DIP. Contudo, esta observação
reveste-se para nós de reduzido interesse.
Outra orientação (de Francescakis) extremamente favorável ao reconhecimento dos
direitos adquiridos é a que preconiza a autolimitação espacial das regras de conflitos locais.
Pelo que toca às relações jurídicas criadas no estrangeiro, a aplicabilidade destas normas está
dependente do facto de no momento da respectiva constituição ter existido algum nexo entre
as mesmas relações e o ordenamento do foro. Não existindo essa conexão, a lei aplicável à
situação jurídica absolutamente estrangeira será aquela que tiver sido efectivamente aplicada.
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182. É com a maior reserva que se encara a ideia da autolimitação espacial das regras de
conflitos do direito do foro, seja qual for a modalidade que revista. Não há nada na natureza
da norma de conflitos de constitua obstáculo à aplicação desta norma a uma categoria de
relações internacionais caracterizadas pela ausência de conexões com a lex fori, ou pelo facto
de terem nascido fora da esfera jurídica nacional. Não sendo as regras de conflitos normas de
conduta, mas simples medidas legislativas destinadas a resolver os conflitos de leis, o juiz,
quando solicitado a dirimir um desses conflitos, não está em princípio impedido de o fazer
recorrendo à norma do seu direito nacional, por mais remota que seja a conexão da relação
em causa com este direito.
Do primordial intento que se imputa ao direito internacional privado – assegurar e
promover a estabilidade e continuidade da vida jurídica internacional – pode eventualmente
dimanar uma forte indicação no sentido do afastamento do direito de conflitos do foro,
sempre que estiverem em causa situações constituídas no estrangeiro que, no momento da
sua criação, não tinham qualquer conexão com a ordem jurídica local.
a) Pode acontecer que a situação em causa, não sendo considerada válida pelo sistema jurídico
sob a égide do qual se constituiu, todavia o seja pelo sistema designado pelo DIP do foro.
Exemplo: A e B, nacionais de X e domiciliados em Y, consorciaram-se neste último país. O
casamento é, porém, nulo, perante a lei de Y, que não reconhece a dissolução de um primeiro
matrimónio de A, pronunciada anteriormente num terceiro Estado; ao passo que a lei de X,
atribuindo pleno efeito ao referido divórcio, considera o casamento validamente celebrado.
Nesta última lei (a do Estado nacional das partes) é declarada aplicável pelo DIP do foro.
A única solução aqui defensável é a que consiste em se observar o preceito do direito de
conflitos da lex fori; aliás, iludir-se-iam as expectativas das partes, que porventura celebram o
seu casamento sabendo que o mesmo seria ineficaz em face de uma das ordens jurídicas
primacialmente interessadas. A não aplicação dessa lei, com o consequente não
reconhecimento da relação jurídica, careceria de justificação.
Toda a doutrina que se proponha subtrair do campo de aplicação do direito de conflitos
da lex fori as relações jurídicas estranhas a esta lei, vem desde logo ferida de uma certa
inaptidão para promover a efectiva realização dos fins assinados ao direito internacional
privado.
b) A doutrina da autolimitação espacial das normas de DIP não ensina a resolver os casos em
que a situação sub judice se acha em contacto com duas leis, que a regulam diferentemente.
Em tais hipóteses, seria necessário assentar num critério que legitimasse a preferência por
uma das referidas leis. Nem sempre é possível reduzir a questão que se levanta aos termos da
alternativa «validade-nulidade», «eficácia jurídica-ineficácia».
Poderia enveredar-se por um de dois caminhos: a via conflitual ou a via substancialista. A
segunda levar-nos-ia a pesquisar a melhor lei, isto é, aquela que em relação ao caso concreto
forneça da maneira mais razoável; mas tal orientação já foi repudiada, pelo casuísmo e a
incerteza jurídica que lhe são inerentes. A primeira poderia conduzir-nos, quer à aplicação da
lei designada pela «norma de conflitos do sistema em que se localiza o facto que provocou o
nascimento (…) da situação ou da relação», quer à aplicação do direito do país com o qual a
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relação em litígio se apresenta mais estreitamente conexa. É esta última solução a que
reputamos mais aconselhável.
c) Contra as doutrinas da autolimitação espacial das regras de conflitos é também procedente
uma outra razão.
É possível que o laço existente entre a situação a reconhecer e a lei estrangeira não seja
de molde a justificar a competência dessa lei. É desejável que se caminhe por uma posição de
grande abertura quanto ao reconhecimento de situações jurídicas criadas no estrangeiro, sob
pena de se trair o primordial desígnio do direito internacional privado. O subordinar
rigidamente aquele reconhecimento à condição de na criação da situação jurídica em causa se
ter procedido de inteiro acordo com o direito material designado pela norma de conflitos do
foro, não constitui certamente a melhor solução: a solução mais ajustada ao fim de não deixar
sem tutela as expectativas das partes e sem a necessária garantia as relações da vida jurídica
internacional.
Alguma exigência terá de formular-se quanto ao fundamento do título de que a lei
estrangeira em causa (aquela que presidiu à constituição do direito subjectivo alegado) faz
derivar a sua competência.
Dois nacionais de A com residência habitual em B, casaram num terceiro país C. Se o
casamento, nulo perante o sistema jurídico do primeiro Estado, é todavia considerado válido
no segundo, é justo que a solução de validade prevaleça em D, sem embargo de aí a lei julgada
competente em matéria de condições de validade do casamento ser a da nacionalidade dos
nubentes e não a do seu domicílio. No âmbito do estatuto pessoal nacionalidade e domicílio
são conexões de valor sensivelmente idêntico. Por outro lado, o reconhecimento concedido
em D ao negócio jurídico e à relação dele emergente vai tornar-se actuante no plano dos
factos, uma vez que se fundamenta no direito material de um dos Estados com os quais a
situação em causa de encontra intimamente conexa: o Estado da residência habitual dos
cônjuges.
Mas o mesmo não se diga se o casamento, válido perante as leis do país da respectiva
celebração, não for assim considerado nem no Estado do domicílio, nem no da nacionalidade
comum dos interessados. [Porque nenhum desses dois Estados julga aplicável na matéria a lex loci
actus.]
Não se justificaria que os tribunais de D se decidissem pela validade do acto, pois não se
vê vantagem em atribuir valor jurídico a um matrimónio que se sabe ser nulo e ineficaz em
qualquer dos Estados onde se destina a produzir e a desenvolver os efeitos que lhe são
peculiares. Mais vale apreciar aqui o negócio jurídico à luz dos preceitos da legislação que a
regra de conflitos da lex fori chama a discipliná-lo – e concluir pela sua nulidade.
Não constitui justificação bastante para dirimir o litígio a favor da parte que se prevalece
do direito adquirido sob a égide de certa legislação, o mero facto de esta legislação se reputar
competente. Pelo menos, será preciso apreciar as circunstâncias de facto em que o referido
ordenamento se apoia para afirmar a sua competência.
Em suma: perante uma situação jurídica criada em país estrangeiro, afigura-se-nos
importante e necessário apurar – olhando à natureza da matéria em questão e apreciada da
perspectiva do direito conflitual do foro – se a lei à sombra da qual ela foi criada tinha com a
mesma situação um nexo atendível.
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Este critério é de aplicação relativamente fácil em caso de pretensões baseadas em
negócio jurídico. Aí, o que importará é determinar a lei sob o império da qual a relação jurídica
efectivamente se constituiu e verificar se a competência dessa lei se baseia num fundamento
aceitável.
De modo diferente se apresentam as coisas na hipótese de um conflito de pretensões
derivadas de duas leis estrangeiras, que ambas se julgam competentes: aí deverá prevalecer a
pretensão que se apoiar no sistema jurídico indicado pelo princípio da conexão mais estreita.
183. As doutrinas de Meijers e de Francescakis aproximam-se, pois têm um elemento comum:
é a ideia da limitação no campo de aplicação no espaço das normas de conflitos da lex fori. A
fim de assegurar o reconhecimento das situações jurídicas criadas no estrangeiro, é preciso
que em certas circunstâncias o DIP do foro abdique da sua competência normal para designar
a lei aplicável. Resta saber em que circunstâncias esta desistência ou abdicação é de
aconselhar.
Francescakis pensa que o sistema de conflitos do foro deve ser afastado em virtude do
simples facto de a situação considerada, constituída no estrangeiro ao abrigo de uma lei que se
reputava competente, não ter tido no momento da sua constituição contacto algum com a
ordem jurídica do país do tribunal. A ausência de todo o contacto entre a situação a regular e a
lex fori é o elemento sobre o qual se baseia e de que depende a inaplicabilidade das regras de
conflitos desta lei.
Meijers estabelece como condição da inaplicabilidade do sistema de conflitos do foto o
acordo unânime das leis conectadas com a situação sub judice, ao tempo da sua constituição
(ou extinção), quanto à competência de uma delas.
Outros autores, como Makarov, não vão ao ponto de exigir o acordo unânime dos Estados
interessados: contentam-se com uma «maioria preponderante».
A solução que Meijers propõe é incontestavelmente justa. Se uma situação jurídica se
constituiu em país estrangeiro ao abrigo da lei que todos os sistemas interessados consideram
competente, a solução só poderá ser o seu reconhecimento. Só ela joga certo com a intenção
central do DIP e a própria função das normas de conflitos, a qual consiste na resolução de
conflitos de leis. Se no caso em apreço nenhum real conflito se descortina, porque as
diferentes leis em contacto com a situação a regular existe total acordo quanto à competência
de uma delas, só pode ser esta a lei a aplicar. Qualquer outra solução entraria em colisão
inevitável com a «justiça» peculiar do DIP.
Mas a utilidade da sua doutrina afigura-se duvidosa no âmbito de um sistema de conflitos
que admita o reenvio como processo de alcançar a harmonia jurídica. Em quase todos, se não
em todos os casos que ela abrange, torna-se possível chegar ao mesmo resultado – o
reconhecimento da relação criada no estrangeiro através do recurso a um sistema de conflitos
que não é o da lex fori – graças ao expediente do reenvio: o reenvio de segundo grau. Ou o
sistema jurídico indicado pelo DIP do foro participa no «acordo das leis interessadas» – e neste
caso é manifesto que o caminho do reenvio nos permitirá solucionar no mesmo sentido o
conflito ocorrente; ou, se acaso não participa, é porque não se verifica a condição primordial
posta pelo próprio Meijers: o consenso unânime dos sistemas interessados.
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Do ponto de vista da harmonia jurídica internacional ela é claramente suplantada pela do
reenvio. Enquanto a primeira se ocupa somente das situações jurídicas criadas no estrangeiro,
a segunda abrange todas as relações, mesmo aquelas a constituir no território do Estado local.
Conclui-se que na hipótese de acordo entre os sistemas jurídicos principalmente
interessados, não se faz mister apreciar os fundamentos da competência que a si mesma se
atribui a lei estrangeira em causa – ao aplicar aos preceitos materiais dessa lei, o que
realmente se faz é respeitar a competência das outras leis que para ela remetem. Não se trata
aí senão de um caso de reenvio: de reenvio de segundo grau ou transmissão de competência.
O dever de respeitar o acordo entre os sistemas interessados prevalecerá mesmo na
hipótese de a lei que foi aplicada se julgar incompetente.
184. Para Niederer o princípio dos direitos adquiridos teria um significado e uma função
semelhantes aos da cláusula geral da ordem pública. Esta cláusula destina-se a evitar o
resultado a que levaria a aplicação dos preceitos da lei competente a determinada
factualidade concreta, quando esse resultado apareça como gravemente lesivo de valores
jurídicos fundamentais do ordenamento do Estado do foro.
De modo análogo sucede com o princípio do reconhecimento dos direitos adquiridos. Em
ambos os casos está em causa uma derrogação da regra de conflitos da lex fori aplicável à
situação sub judice: em ambos trata-se de impedir a aplicação ao caso concreto dos preceitos
da legislação competente. Ao princípio dos direitos adquiridos deverá recorrer-se quando se
reconheça que a estrita observância da lei designada pelo DIP do foro lesaria um direito
validamente adquirido ao abrigo doutra legislação. Tanto o princípio da ordem pública como o
dos direitos adquiridos obstam à aplicação dos preceitos materiais da lei competente, por
atenção à injustiça do resultado a que essa aplicação conduziria. Razão pela qual o princípio
dos direitos adquiridos deve ser considerado apenas como um complemento da teoria da
ordem pública.
Exemplo: Um filho natural de pais ingleses foi por estes reconhecido em França, país onde
todos viviam, de conformidade com os preceitos do ordenamento jurídico local, mas com
inobservância dos princípios do direito inglês. Os interessados continuaram a residir em França
por longos anos. Nestas circunstâncias, a perfilhação pôde produzir todos os seus efeitos,
passado muito tempo, um tribunal italiano vê-se colocado na situação de ter de se pronunciar,
num pleito hereditário, sobre a questão (prévia) da validade daquele acto. Segundo o DIP
italiano, o problema deve resolver-se pelo direito inglês; logo, a perfilhação não poderá ser
reconhecida. No entanto, o mais provável é que o juiz se recuse a aceitar uma tal solução, cuja
injustiça ressalta. A injustiça será evitada se o juiz apelar para a teoria dos direitos adquiridos.
185. A doutrina exposta não pode aceitar-se. Ela é mais razoável do que a de Francescakis.
É no situar-se ao nível do «caso», nesta sua ambição de reflectir as circunstâncias da
situação da vida, que a doutrina dos direitos adquiridos de Niederer se aparenta com a da
ordem pública internacional.
Na hipótese de actuação da ordem pública a solução do caso concreto será obtida ora
recorrendo a outras normas da mesma lei [A lei que é designada pela lex fori para resolver o tipo de
questões jurídicas a que pertence a que se encontra sub judice.] ora fazendo apelo à lex fori (art. 22.°
do Código Civil).
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Ao contrário, no âmbito da doutrina dos direitos adquiridos, do que se trata é de substituir,
aos preceitos da lei estrangeira designada pela regra de conflitos local, as normas de uma
outra legislação: aquela sob a égide da qual a relação sub judice se constituiu. Em caso algum
se poderá recorrer aí ou à lex fori, ou à lei que a lex fori declara aplicável no âmbito de
problemas ou na matéria jurídica que se considera.
A teoria de Niederer é dotada de extrema imprecisão – o carácter eminentemente
subjectivo do critério que propõe.
186. I) A perspectiva correcta para resolver o problema do reconhecimento das situações
jurídicas constituídas no estrangeiro não é a que consiste em negar nesse campo a aplicação
das normas conflituais do direito do foro. O caminho é o que leva à construção de regras
especiais de DIP – regras que estabeleçam alternativas para a aplicação a tais factos dos
preceitos normais de atribuição de competência e das leis por eles designadas. O que importa,
não é o reconhecimento indiscriminado das relações jurídicas estrangeiras, mas um
reconhecimento selectivo – isto é, um reconhecimento que assente na base de uma aferição
da competência da lei ao abrigo da qual a relação se constitui – o que importa é estabelecer
um leque de opções quanto ao problema da lei aplicável a tais relações jurídicas.
Do que se trata é de optar por um sistema de conexão múltipla alternativa, devendo a
alternativa resolver-se a favor da lei segundo a qual os factos constitutivos da mesma situação
se realizaram por modo juridicamente válido. Isto no duplo suposto de essa lei se considerar
competente e de a situação em causa ter podido desenvolver os seus efeitos jurídicos à
sombra da mesma lei.
II) Todavia a competência da lei que foi efectivamente aplicada nem sempre tem de ser aferida
por critérios próprios da lex fori. Essa aferição não tem lugar quando a referida lei seja a
considerada aplicável por todos os Estados aos quais a relação litigiosa essencialmente dizia
respeito ao tempo em que foi constituída. Não interessa apurar, nesta hipótese, se a lei em
causa se reputava competente: basta a circunstância de como tal a declararem os sistemas
jurídicos principalmente interessados.
III) As conexões alternativas deverão estabelecer-se tendo em atenção a natureza de cada
matéria jurídica a considerar.
IV) Uma vez definida a lei ou as leis de competência alternativa, o reconhecimento será
concedido tanto às situações jurídicas que tenham sido criadas nos termos e em virtude de
uma dessas leis, como às que o tenham sido de conformidade com os preceitos dalgum outro
sistema, contanto que este sistema seja o declarado aplicável por uma daquelas referidas leis e
se verifique, a par disso, as demais condições necessárias para que essa lei atribua à situação
em causa os efeitos jurídicos que lhe competem.
V) O princípio do reconhecimento das situações jurídicas fundadas no estrangeiro não é
aplicável àquelas situações que se constituem meramente em virtude da lei.
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187. O reconhecimento de direitos adquiridos no Código Civil português – No CC português,
depara-se-nos uma clara aplicação da doutrina preconizada neste curso. E, no entanto, de
alcance limitado: o nosso legislador furtou-se a inserir na letra dos textos uma fórmula que
consagrasse em termos latos a doutrina dos direitos adquiridos. Acolheu-a, é certo, mas
entendeu só enunciar a forma expressa no capítulo do estatuto pessoal.
É o art. 31.°, nº 2 do CC que marca a orientação do nosso direito nesta matéria. A lei
pessoa dos indivíduos é a do seu Estado nacional: art. 31.°, nº 1; mas o nº 2 do artigo
acrescenta que são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da
residência habitual do declarante, de conformidade com a lei desse país, contanto que esta lei
se considere competente.
Pelo que toca ao domínio das situações jurídicas pertencentes ao âmbito do estatuto
pessoal, dá-se expressão a uma ideia de aplicação alternativa. Duas leis são consideradas
competentes em alternativa: a lei da nacionalidade das partes e da sua residência habitual;
sendo que não haverá recurso à segunda lei senão quando seja esse o caminho necessário
para obter o reconhecimento do acto que originou a constituição ou a extinção da relação sub
judice. É uma ideia de favor negotii a que directamente aparece no art. 31.°, nº 2. Para que
determinado negócio jurídico realizado no estrangeiro seja tido por válido e eficaz no Estado
do foro, basta que ele tenha sido celebrado de conformidade com os preceitos de uma ou
outra das duas leis referidas.
A norma do art. 31.°, nº 2 tanto se aplica aos estrangeiros como aos próprios nacionais. O
reconhecimento da situação jurídica constituída no estrangeiro, pelo processo estabelecido no
art. 31.°, nº 2 é possível mesmo no caso de a relação pertencer à esfera de competência da lei
portuguesa, como lei nacional do interessado.
Exemplo: Dois portugueses contraem casamento no país do seu domicílio comum e o acto é
nulo, por vício de fundo, perante a legislação portuguesa: não obstante isso, o matrimónio
produzirá todos os seus efeitos em Portugal, desde que a lex domicilii se considere
competente [e contanto que o reconhecimento do acto não seja contrário à ordem pública
portuguesa].
A condição a que o art. 31.°, nº 2 sujeita o reconhecimento dos actos a que se refere –
terem eles sido celebrados em conformidade com a lei da residência habitual do indivíduo –
mostra que não pode fazer-se ao Código português a censura de que ele não cuida do controlo
da competência da lei ao abrigo da qual a relação jurídica se constituiu. Pelo contrário, o
legislador partiu do princípio de que no âmbito do estatuto pessoal só há duas conexões a
considerar: a nacionalidade e o domicílio (residência habitual).
Esta rigidez pode atenuar-se, considerando que no sistema do CC se tem por vezes em
conta a situação de um imóvel: arts. 17.°, nº 3 e 47.°, onde se contêm aplicações do princípio
da maior proximidade, sendo a lex rei sitae chamada aí a desempenhar um certo papel.
188. Eis a condição geral a que está sujeito o reconhecimento das situações jurídicas
constituídas no estrangeiro, ao abrigo de uma lei diferente da que teria sido aplicada se o caso
se tivesse verificado em Portugal.
A principal fonte de inspiração do art. 31.°, nº 2 é a ideia do favor negotii. Não se trata de
um texto que permita reconhecer toda e qualquer situação jurídica constituída no estrangeiro
à sombra da lei do domicílio.
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As situações jurídicas criadas simplesmente ex lege não são por ele consideradas. No caso de
averiguar a quem toca a herança de alguém que morreu intestado, ou quais os poderes do
marido ou do pai relativamente à administração dos bens próprios da mulher ou do
património do menor, o princípio do respeito dos direitos adquiridos não intervém. A norma
do art. 31.°, nº 2 pressupõe que se trate de situação decorrente da celebração de um negócio
jurídico, e que a questão posta consista na da respectiva validade ou eficácia. É nestes casos
que as expectativas das partes e de terceiros se apresentam como especialmente merecedoras
de tutela jurídica.
Exemplo: Um italiano e uma francesa, ambos domiciliados em França, casaram neste país sem
escritura antenupcial e em França continuaram a residir, até que, dois anos mais tarde, foram
estabelecer-se em Marrocos. Depois separaram-se judicialmente de pessoas e bens – e
levantou-se o problema da determinação do seu regime matrimonial. Deveria entender-se que
esse regime era o da comunhão de “móveis e aquisições” do direito francês, de harmonia com
a regra de conflitos francesa, segundo a qual, na falta de convenção, aquele regime é o
supletivo da lei que for de considerar como tacitamente escolhida pelos interessados – o da lei
do primeiro domicílio matrimonial?
Ou deveria antes julgar-se aplicável o regime de separação do direito italiano, direito
designado competente, na espécie, pelo art. 15.° do «dahir» marroquino, isto é, pelo DIP da
lex fori?
A questão foi resolvida no primeiro sentido, porque o tribunal entendeu que a citada
regra de conflitos do «dahir» era inaplicável a situações criadas num país estrangeiro onde
vigorasse uma norma diferente.
No âmbito do nosso art. 31.°, nº 2, tendo a aplicação do regime francês fundamento
contratual (vontade tácita dos cônjuges), a hipótese seria de assimilar à directamente prevista
no texto da lei.
189. O nosso texto refere-se literalmente aos negócios celebrados no país da residência
habitual das partes. Mas não deve deduzir-se que seja esse todo o alcance e todo o domínio de
aplicação da norma.
Se o acto foi realizado num terceiro país, mas de conformidade com a lei em vigor no
Estado do domicílio, sendo a situação dele emergente reconhecida pela ordem jurídica desse
Estado e tendo-se tornado nele efectiva, nada impede que ela seja também reconhecida no
Estado do foro. Esta solução obtém-se facilmente a partir da ratio legis. O elemento
verdadeiramente significativo, no quadro do preceito do art. 31.°, nº 2, não é o lugar de
celebração do negócio jurídico, mas o facto de as partes se terem colocado sob a égide da lei
do país do seu domicílio comum, dando assim nascimento a uma relação que pôde produzir
nesse país, a coberto da autoridade da respectiva ordem jurídica, os seus efeitos normais.
Assim, não seria razoável iludir as suas expectativas.
Imaginemos que a relação sub judice se constituiu sob a protecção de um sistema de
direito que não é o referido no art. 31.°, nº 2. Como, porém, é esse o sistema competente para
regular o caso segundo o DIP do Estado do domicílio, a situação jurídica assim criada é
reconhecida pela lei desse Estado, no qual pôde desenvolver os seus efeitos.
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Exemplo: Se um divórcio, decretado no país da residência não habitual dos cônjuges, de
conformidade com a lei desse país, foi ulteriormente reconhecido no país da residência
habitual, esse divórcio deveria ser reconhecido também em qualquer outro Estado, sem
excepção do próprio Estado nacional dos interessados. De todo o modo, ele será reconhecido
em Portugal.
190. Por força do disposto no art. 17.°, nº 2, se a lei da residência habitual do interessado
remeter para o direito interno da sua lei nacional, é este que deve ser aplicado, sem embargo
de a lex patriae não se julgar competente.
Esta solução não se justificará na hipótese de se tratar, não de uma situação jurídica a
constituir em Portugal, mas do reconhecimento de uma relação constituída no estrangeiro
justamente ao abrigo da lei designada pela norma de conflitos da lex patriae e reconhecida,
por conseguinte, pela ordem jurídica do Estado nacional. Para este caso há uma única solução
razoável, e é a do reconhecimento. Se os interessados tiverem em vista estabelecer uma
relação capaz de produzir todos os seus efeitos no Estado da respectiva nacionalidade e para
tanto se conformaram com os preceitos da lei designada pelo DIP da lex patriae, a não
aceitação do reenvio em tal caso levaria à frustração das suas legítimas expectativas. Tudo
aconselha a que na referida hipótese se reconheça a situação jurídica em causa.
A solução preconizada justifica-se por duas vias, isto é, recorrendo simultaneamente a
uma via de extensão analógica da norma do art. 31.°, nº 2, e a um procedimento de
interpretação restritiva do preceito do art. 17.°, nº 2. Ao mesmo tempo que se comprova a
necessidade de estender a regra do reconhecimento às situações jurídicas criadas ao abrigo da
lei para que remete a norma de conflitos da lex patriae, verifica-se também a de restringir o
preceito do art. 17.°, nº 2, às relações constituídas ou a constituir no Estado do foro.
A mesma solução deverá adoptar-se quando esteja em causa uma situação jurídica
constituída no estrangeiro de conformidade com os preceitos de uma legislação que não se
reputa competente, mas que é a legislação aplicável, ou segundo o DIP da lex domicilii, ou
segundo o direito de conflitos da lex patriae. Na primeira hipótese, a solução justifica-se por si
mesma, perante a ratio do art. 31.°, nº 2 e no quadro da interpretação extensiva desta norma.
Na segunda hipótese, o argumento a utilizar é o da analogia: assim como se reconhecem todas
as situações eficazes perante a ordem jurídica do Estado da residência habitual dos
interessados, também devem reconhecer-se aquelas que sejam produtivas de efeitos em face
da ordem jurídica do Estado nacional das partes. Quanto a este segundo caso – relação eficaz
perante o ordenamento do Estado nacional, todavia constituída sob invocação de uma lei que
se considera incompetente na matéria – há que referir ainda o seguinte: também aqui, de par
com a extensão por via de analogia da regra do reconhecimento (art. 31.°, nº 2), terá de
proceder-se a uma restrição no domínio de aplicação da norma do art. 17.°, nº 1, na parte em
que essa norma faz depender o reenvio de segundo grau da aceitação de competência pela lei
chamada em segundo lugar. Tal condição é dispensada sempre que se trate de reconhecer em
Portugal uma situação jurídica estrangeira que seja reputada válida e eficaz pelo ordenamento
jurídico do Estado nacional dos respectivos sujeitos.
191. Resta formular duas notas.
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141
A primeira é que o nosso texto exige que a situação constituída no país estrangeiro tenha
nele desenvolvido os efeitos jurídicos que lhe são peculiares. Este é um dos elementos
constituintes da razão que justifica a tutela especial dos direitos adquiridos no âmbito do DIP:
que justifica a derrogação das normas de conflitos da lex fori com aquela finalidade.
A segunda nota é que a norma do art. 31.°, nº 2 não deve ser tomada como se eliminasse
todas as possibilidades de se levar mais longe o pensamento que nela se verteu. O que há de
importante e inovador no citado preceito é a dupla ideia de que a necessidade de
reconhecimento das situações jurídicas constituídas em país estrangeiro pode forçar ao
afastamento da lei de competência normal segundo as regras de conflitos da lex fori –
contanto que entre a situação em causa e o sistema jurídico que presidiu à sua criação exista
um nexo suficientemente forte, do ponto de vista do DIP local, para fundamentar a
competência desse sistema. Haveria toda a vantagem em que a lei definisse com precisão
estas conexões alternativas. O legislador português só se julgou habilitado a fazê-lo pelo que
respeita às matérias do estatuto pessoal.
192. O texto do art. 31.°, nº 2 é um caso particular de aplicação de uma directiva geral: a que
nos leva a adoptar soluções inspiradas por uma ideia de reconhecimento das situações
jurídicas multinacionais criadas ao abrigo de leis estrangeiras, mesmo que eventualmente
essas leis não se mostrem aplicáveis, à luz dos critérios normais de atribuição de competência
consagrados no direito de conflitos do foro.
O direito internacional privado é um complexo de normas que tendo em conta o carácter
nacional da sua fonte e origem, buscam, através e para além da multiplicidade das leis, a
unidade do fenómeno jurídico.
Capítulo VI
Referência da norma de conflitos a um ordenamento jurídico plurilegislativo
193. Segundo o art. 20.° do CC, quando a lei chamada a intervir a título de lei pessoal for a de
um Estado em que coexistam diferentes sistemas jurídicos locais, a concretização do elemento
de conexão (a nacionalidade) far-se-á recorrendo ao direito interlocal do Estado estrangeiro e,
na sua falta, ao respectivo DIP. Se nem assim puder resolver-se a questão, considera-se como
lei pessoal do indivíduo a da sua residência habitual.
A primeira destas regras corresponde à orientação doutrinal e jurisprudencial largamente
dominante. A legitimidade do critério não é susceptível de ser posta em causa: contestar essa
legitimidade seria o mesmo que não reconhecer o princípio da harmonia jurídica internacional.
É ao legislador do sistema complexo que pertence determinar a esfera de competência de
cada um dos sistemas particulares.
Se à legislação do Estado, a que no caso concreto se referir a regra de conflitos da lex fori,
for estranho um sistema unitário de direito interlocal, mas todos os sistemas jurídicos
particulares consagrarem a mesma solução pelo que respeita à situação sub judice, o problema
está naturalmente resolvido: é essa a solução que cumpre adoptar.
Se no sistema jurídico complexo designado como aplicável não se encontram normas
delimitadoras da competência de cada um dos diferentes sistemas jurídicos regionais,
recorrer-se-á primeiro ao DIP central do referido sistema jurídico, se o houver, e em seguida às
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142
regras de conflitos de leis contidas nos diferentes domínios legislativos locais. É de presumir
que, na falta de normas especificamente destinadas a dirimir os conflitos internos, os tribunais
do Estado em questão apliquem nessa matéria, por analogia, os princípios de DIP consagrados
na sua lei. Segundo o nosso CCivil, se a questão não puder resolver-se por aplicação deste
critério, considera-se como lei pessoal do indivíduo a da sua residência habitual.
No anteprojecto de 1951 a orientação era diferente: a solução do problema tem de
procurar-se sempre no âmbito do sistema jurídico que for concretamente designado pelo facto
de conexão nacionalidade. Se nem pela via do direito interlocal nem pela do DIP do Estado
estrangeiro se conseguir superara a dificuldade, há que buscar no ordenamento
(plurilegislativo) competente, o sistema local a que o indivíduo possa considerar-se mais
fortemente vinculado.
As legislações mais recentes consagram o critério da conexão mais estreita: Lei federal
austríaca; a Lei de Introdução ao Código Civil alemão; a lei italiana.
194. Dispõe-se no Anteprojecto de 1951 que se o Estado de ordenamento jurídico complexo
for um Estado federal e um Estado que reconheça, além da nacionalidade federal, ainda a
nacionalidade de cada um dos Estados federados, deverá julgar-se competente a lei do Estado-
membro de que o interessado for nacional.
Vinham após o critério do domicílio actual e do último domicílio do sujeito no território do
seu Estado nacional. O recurso à lei do domicílio só é de propor na falta de nacionalidade, e
não é esta a hipótese que se tem em vista. Do que se trata é de escolher – encarando o
problema pelo prisma da lex fori – um dos vários sistemas legislativos em que se decompõe a
lei nacional. O critério da escolha é o da maior ligação relativa da pessoa a um desses sistemas.
Por isso mesmo é que se deve preferir o critério do domicílio actual. Na falta de domicílio
actual no território, deverá recorrer-se ao último domicílio do sujeito nesse mesmo Estado.
195. O legislador do CC preferiu outra solução, seguindo a linha do último anteprojecto,
bastante mais simples e prática.
Em princípio, o problema pertence ao sistema jurídico que pretendemos aplicar e deve
resolver-se de acordo com os critérios que ele mesmo forneça.
Na hipótese de falharem sucessivamente os dois expedientes descritos no nº 1 e na 1ª
parte do nº 2 do art. 20.°, não se procederá como foi dito no número anterior e desistir-se-á de
resolver a questão pela lei nacional do interessado: trocar-se-á a perspectiva desse sistema
jurídico pela lei da residência habitual. Tudo irá passar-se como se o interessado não tivesse
nacionalidade, ou como se a nacionalidade dele fosse de averiguação impossível.
A regra da 2ª parte do nº 2 do art. 20.° aplica-se tanto no caso da pessoa que reside
habitualmente no Estado de que é nacional, como no daquela que sempre residiu, ou pelo
menos reside agora, em país estrangeiro.
196. Os princípios expostos aplicam-se ao caso em que o sistema jurídico complexo designado
como competente o seja a título de lei nacional do indivíduo.
Não sendo este o caso, a situação apresenta-se em termos muito diferentes. Se o que
decide da competência das leis do Estado estrangeiro é uma conexão de carácter territorial;
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se, do ponto de vista da lex fori, a relação em causa está como que «localizada» no território
desse Estado – então a norma de conflitos do foro, que estabelece essa localização, fornece ao
mesmo tempo o critério para a remoção de toda a dificuldade resultante de naquele país
vigorarem vários direitos particulares. Será competente o sistema em vigor no lugar onde se
verificou ou onde se situa o elemento de conexão decisivo.
A solução não é logicamente necessária. Mas não se erguem no seu caminho quaisquer
obstáculos, por isso é indicado que a adoptemos, por ela ser a mais simples e a mais prática.
Assim faz a generalidade da doutrina.
Contudo, a doutrina exposta tem de harmonizar-se com os princípios precedentemente
estudados.
197. «Se a legislação que no caso for aplicável constituir uma ordem jurídica territorialmente
unitária, mas nela vigorarem diversos sistemas de normas para diferentes categorias de
pessoas, observar-se-á sempre o estabelecido nessa legislação, quanto ao conflito de
sistemas» (art. 20.°, nº 3).
Nesta hipótese, não há que fazer qualquer destrinça, consoante a natureza do elemento
de conexão decisivo.
A mesma localização da relação controvertida num ponto determinado do território do
Estado plurilegislativo, operada pela norma de DIP da lex fori, não fornece de per si, nem
directa nem indirectamente, qualquer critério útil para a escolha de um dos direitos
particulares em vigor nesse Estado.
A lei aplicável à relação jurídica é, por hipótese, a lex loci actus. Sabe-se qual é, no caso, o
lugar da celebração do negócio; mas como não pode dizer-se que nesse lugar vigora, com
exclusão de todos os demais, um desses sistemas particulares, a referência da norma de
conflitos da lex fori à lei daquele lugar deixa subsistir a interrogação: qual é o direito material
aplicável à relação controvertida?
É o que for designado pelas normas de direito interpessoal do Estado estrangeiro cuja
legislação estiver em causa. E se acaso não for de todo possível determinar o conteúdo dessas
normas, recorrer-se-á à solução que prevalecer na prática.
Quando a mesma regra designa a lei do domicílio ou da residência, o sistema interpessoal
reenviará provavelmente à lex fori, e este reenvio deverá aceitar-se.
Capítulo IX
Da aplicação do direito estrangeiro
209. O direito aplicável por força da norma de conflitos é o direito que realmente vigora num
determinado país. Pode tratar-se de direito religioso, de direito internacional incorporado in
foro, de direito consuetudinário. Por outro lado, é irrelevante o facto de o Estado ou o
Governo estrangeiro não ser reconhecido pelo Estado do foro. São coisas conceitual e
praticamente distintas: o reconhecimento do Estado ou do respectivo Governo (assunto que
releva do direito internacional público) e o reconhecimento do direito (privado) que num
Estado se encontra em vigor.
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210. O direito estrangeiro é aplicado entre nós como direito. Veja-se os arts. 348.°, nº 2 do
CCiv – o tribunal aplica ex officio o direito estrangeiro declarado competente pelas normas de
conflitos portuguesas – e 721.°, nº 3, do CPC.
211. Prova da existência e averiguação do conteúdo do direito estrangeiro. O art. 348.°
dispõe que àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer a prova da sua existência e
conteúdo; mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento. Por
outro lado, o nº 2 do mesmo artigo resolve uma outra questão que noutros países tem
suscitado dúvidas e que é a da aplicação oficiosa da regra de conflitos. O objecto da regra de
conflitos é promover a justiça do DIP, designado a lei que se considera mais apropriada, e não
conferir aos indivíduos prerrogativas às quais eles seriam livres de renunciar. Esta atitude
encorajaria o forum shopping, isto é, a busca pelos particulares na ordem internacional de uma
autoridade complacente – que seria a lex fori – a fim de obter o que não poderia ser obtido
segundo a lei aplicável.
É àquele que invocar direito estrangeiro que compete fazer a prova da sua existência e
conteúdo: mas isto não isenta o tribunal do dever de procurar obter, oficiosamente, o
respectivo conhecimento.
212. Consequências da falta de prova do direito estrangeiro.
a) Uma primeira orientação seria aquela conforme a qual o tribunal deveria pronunciar um non
liquet. Trata-se de uma orientação inaceitável porque o juiz não pode abster-se de julgar, a
pretexto de falta ou obscuridade insanável da lei. A denegação da justiça é em qualquer caso
inadmissível.
b) Quando o conteúdo geral da lei estrangeira foi estabelecido, mas não um seu preceito
particular, a lei estrangeira deve ser aplicada na medida em que o tribunal, segundo a sua
apreciação, a considere provada. A causa será julgada contra a parte que fundamenta a sua
pretensão justamente no preceito de direito estrangeiro cuja eficácia e conteúdo não puderam
ser estabelecidos. A decisão de rejeitar a pretensão está de acordo com o sentido geral da lei
estrangeira.
c) Mas o mesmo não se dirá quando nenhum elemento de prova convincente tiver sido
apresentado relativamente à lei estrangeira considerada no seu todo. São de considerar duas
soluções:
1ª – o juiz decide contra a parte que não conseguiu provar o conteúdo do direito estrangeiro
2ª – o tribunal decide de conformidade com a lex fori, sendo esta aplicável e título subsidiário.
Contudo, nenhum argumento de fundo dá base a esta doutrina, nem àquela conforme a qual
deverá presumir-se que as normas da lei competente não diferem das do direito português. O
recurso sistemático à lei do foro, como lei subsidiariamente aplicável ou em virtude da referida
presunção de coincidência, poderia conduzir a resultados que tudo indicasse não estarem de
acordo com os preceitos da lei designada pela regra de conflitos do foro.
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d) Segundo a orientação preconizada pela doutrina alemã dominante, não sendo possível
averiguar o conteúdo do direito realmente vigente num determinado Estado, deverá recorrer-
se ao direito nele provavelmente vigente. Este critério levará à aplicação do sistema que se
tiver por mais chegado ao designado pela norma de conflitos do foro. É uma presunção
legítima. No entanto, a mera circunstância de dois sistemas jurídicos pertencerem à mesma
família, ou de um deles ter servido de modelo ao outro, pode nada querer dizer relativamente
ao modo como um e outro provêem acerca de determinados aspectos da regulamentação
legal de certo instituto.
A orientação exposta nesta alínea não pode aceitar-se sem importantes restrições.
e) A doutrina referida a propósito da aplicação a título subsidiário da lex fori, parece estar em
conflito com o nº 3 do art. 348.° do CC, o qual prescreve que, na impossibilidade de averiguar o
conteúdo do direito aplicável, o tribunal recorrerá às regras do direito comum português.
Basta confrontar esta norma com a do nº 2 do art. 23.°, onde se dispõe que, na impossibilidade
de averiguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável, deve recorrer-se àquela que for
subsidiariamente competente.
O que o nº 3 do art. 348.° quer dizer é que, tornando-se impossível averiguar o conteúdo
do direito estrangeiro que for competente em via principal ou subsidiária, terá de apelar-se,
em última instância, para o direito comum português. Assim logo se vê que não está em
conflito com o nº 2 do art. 23.°.
213. Não sendo possível o conhecimento directo do direito estrangeiro, impõe-se o recurso às
presunções, que são também um modo legítimo de provar.
a) Se o tribunal não consegue estabelecer de modo preciso o conteúdo das normas de direito
estrangeiro relativas ao caso sub judice, mas consegue informar-se com segurança acerca dos
princípios gerais desse direito na matéria em questão, deverá decidir o ponto litigioso de
harmonia com tais princípios.
b) Tudo o que se conhece acerca do direito estrangeiro aplicável é ter ele sido influenciado por
outro sistema jurídico. A acção a julgar é uma acção de divórcio com fundamento em
abandono do lar conjugal. No segundo sistema jurídico, o divórcio só é admitido com base no
adultério. Posto isto, é de presumir que as normas da legislação competente não se afastem
muito desta linha de orientação – e a acção de divórcio será julgada improcedente.
Deverá recorrer-se ao sistema jurídico inspirador da lei aplicável sempre que a matéria da
causa, pela sua natureza, contenda directamente quer com linhas gerais do ordenamento
jurídico, quer com características básicas da instituição em apreço, e não com simples aspectos
particulares e por assim dizer insignificativos da regulamentação legal do instituto em causa.
Pode também admitir-se o preenchimento da lacuna do conhecimento do juiz acerca do
direito aplicável através da regra decorrente dos princípios gerais de direito comuns às nações
civilizadas.
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c) Tendo-se operado no ordenamento estrangeiro quanto à matéria sub judice uma alteração
de regime e não sendo possível estabelecer directamente o conteúdo da lei nova, a solução
que era dada ao caso pela lei antiga continua a ser válida.
d) Torna-se arriscado aguardar fidelidade ao sistema das presunções, isto é, ao propósito de
averiguar por essa via o conteúdo do direito estrangeiro – aquele direito provavelmente
vigente no Estado cuja legislação se trata de aplicar. O risco de se observar uma norma
inteiramente distinta da do ordenamento competente passa, em nosso modo de ver, a superar
a probabilidade contrária.
Deve adoptar-se o ponto de vista de que a conexão estabelecida pela norma de conflitos
utilizada não nos permite atingir o alvo (a designação do direito aplicável) – e procurar a
solução do problema utilizando a conexão subsidiária daquela, se uma tal conexão subsidiária
estiver previamente prevista no direito conflitual do foro.
Exemplos: na impossibilidade de averiguação do conteúdo do direito nacional das partes,
deverá recorrer-se à lex domicilii; na impossibilidade de averiguação do conteúdo da lei
escolhida pelos contraentes, deverá recorrer-se à lei designada pelo art. 4.° da Convenção de
Roma de 1980.
Há conexões, porém, que não têm sucedâneo, como a situação da coisa, como conexão
decisiva em matéria de direitos reais. Por outro lado, o próprio direito estrangeiro indicado
pela conexão subsidiária pode ser, ele também, de conteúdo incerto. Impõe-se a utilização da
lex materialis fori: para se evitar uma denegação da justiça.
e) Não está de acordo com as ideias expostas a norma do nº 2 do art. 23.°, do CC, porquanto
nele se estabelece que, sendo impossível determinar o conteúdo do direito aplicável, se
recorrerá imediatamente à lei que for designada pela conexão subsidiária. Mas desacordo só
existe na aparência. Enquanto não estiver estabelecida a impossibilidade de determinar,
mesmo com o auxílio de presunções, o conteúdo da lei designada como aplicável pela norma
de conflitos, não se verificará manifestamente a hipótese que condiciona a utilização da
conexão subsidiária.
Não há desarmonia entre a doutrina exposta nas alíneas precedentes e a consagrada no
Código Civil.
214. Impossibilidade de determinação do elemento de conexão utilizado pela regra de
conflitos. Este problema deverá resolver-se em ordem aos seguintes critérios:
a) Exemplo: nada se sabe acerca da nacionalidade dos interessados. Deverá utilizar-se a
conexão subsidiária em matéria de estatuto pessoal, isto é, o domicílio das partes; eles
presumir-se-ão apátridas.
b) Suponhamos que a dúvida consiste apenas em saber qual de duas nacionalidades, certas e
determinadas, é a do interessado, qual de dois países certos e determinados, é o domicílio da
parte a quem incumbe a prestação característica do contrato.
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Aqui procede-se nos mesmos termos em que foram indicados na alínea precedente – mas só
depois de comprovadamente se averiguar que é impossível determinar, das duas referidas
nacionalidades, qual a mais provável, ou qual o lugar do seu domicílio mais provável. Porque
se um indivíduo é de certeza checo ou alemão, não faria sentido considerá-lo como apátrida.
É nestes termos que deve interpretar-se a segunda parte do nº 2 do art. 23.°.
215. O juiz nacional «tem de aplicar o direito estrangeiro como o juiz estrangeiro o faria».
Trata-se de imputar ao preceito estrangeiro em causa o conteúdo e alcance que lhe forem
atribuídos no âmbito do respectivo sistema legislativo (art. 23.°, nº 1).
O tribunal português há-de observar as concepções correntes sobre interpretação das leis
na jurisprudência e doutrina do país estrangeiro. Se o sentido da norma interpretanda estiver
fixado por uma jurisprudência uniforme e constante, cumprir-lhe-á não se apartar dessa
directiva: não lhe pertence corrigir ou melhorar o que a seu juízo for errado ou imperfeito.
Só quando a jurisprudência estrangeira se apresentar dividida, retomará o juiz nacional a sua
liberdade de apreciação; mas essa liberdade ele não vai exercê-la com os meios e nos limites
consentidos pelo seu próprio direito, antes integrado nas concepções dominantes do país cuja
lei se lhe pede que aplique. É essa própria lei q eu lhe cumpre aplicar. O juiz português tentará
resolver o problema do mesmo modo por que provavelmente o resolveria, em sua maneira de
ver, um juiz do Estado da lex causae.
Capítulo VII
Da ordem pública internacional
198. Ordem pública interna e internacional. Ordem pública interna é o conjunto de todas as
normas que, num dado sistema jurídico, revestem natureza imperativa (normas inderrogáveis,
ius cogens). A aplicabilidade em concreto dessas normas supõe ou uma relação puramente
interna, ou uma relação internacional dependente desse ordenamento segundo as respectivas
regras de conflitos de leis ou segundo a respectiva norma de extensão (caso das normas de
aplicação imediata).
A ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis estrangeiras.
Continuam a existir inúmeras divergências e muitas vezes profundas entre as várias
legislações nacionais.
Cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever
abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe
incumbe proteger. A preservação desses valores e a tutela desses interesses exigem que a
todo o acto de atribuição de competência a um ordenamento jurídico estrangeiro vá anexa
uma ressalva: a lei definida por competente não será aplicada na medida em que essa
aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por
inderrogável ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local.
É isto a reserva ou excepção de ordem pública internacional.
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148
199. Dois modos de conceber a ordem pública internacional.
A) Para a doutrina actualmente dominante, que descende de Savigny, a ordem pública reveste
a natureza de uma excepção ou limite à aplicação da lei normalmente competente. A ordem
pública internacional impede a aplicação a determinada relação da vida dos preceitos que, no
sistema jurídico definido por competente pelo DIP do foro, são chamados a reger as questões
daquela categoria; e isto porque a aplicação desses preceitos daria em resultado o surgir de
uma situação manifestamente intolerada pelas concepções ético-jurídicas reinantes na
colectividade, ou lesiva de interesses fundamentais do Estado.
O efeito característico da ordem pública consiste no afastamento do regime legal
normalmente aplicável aos factos sub judice, em razão da natureza do resultado a que em
concreto a sua aplicação daria lugar: isto é, por se verificar que esse resultado seria
inadmissível para o sentimento jurídico dominante, ou negaria pressupostos essenciais do
sistema jurídico nacional. Esta é a concepção aposteriorística da ordem pública.
B) Para outra concepção (Mancini, Weiss, Pillet), ordem pública é o conceito que engloba as
leis pertencentes a determinada categoria, as leis territoriais. É a concepção apriorística.
Segundo Pillet, são territoriais (isto é, de aplicação geral no território do Estado respectivo)
todas as leis de garantia social – as leis de ordem pública. Ordem pública e territorialidade
confundem-se. A lei de ordem pública, quando se aplica e se se aplica, é por ser a lei de
competência normal para regular o caso.
C) Ordem pública em sentido negativo. A solução referida em primeiro lugar é a mais correcta.
Não se trata de excluir genericamente a intervenção de quaisquer leis estrangeiras em
determinado sector do direito privado local, mas apenas de recusar a aplicação a certos factos
concretos de certos preceitos jurídico-materiais em razão do seu conteúdo concreto – em
consideração do resultado a que levaria a sujeição a tais preceitos da relação factual sub
judice.
Impõe-se a conclusão de que a ordem pública é um problema privativo da fase de
aplicação das normas jurídicas; a intervenção da ordem pública pressupõe a aplicabilidade da
lei de que se trata segundo as regras de conflitos do foro. A ordem pública funciona, portanto,
como impedimento à aplicação da lei competente – como excepção às regras de conflitos da
lex fori.
Suponha-se um sistema de direito em que se dispõe que a capacidade para contrair
casamento se determina pela lei nacional de cada um dos futuros cônjuges, excepto pelo que
toca aos casamentos a celebrar no país, aos quais se aplicará o direito local, seja qual for a
nacionalidade das partes.
A razão fundamental da excepção de ordem pública reside na necessidade de preservar
os princípios ou valores de maior significado do ordenamento jurídico local. Mas há outra
razão: a ordem pública internacional é invocada como meio de defesa de uma política
legislativa que não visa a tutela daqueles valores mas que é adoptada por motivos de
oportunidade. A recusa da aplicação da lei estrangeira justifica-se aqui pelo receio de que a
aplicação da norma contrária àquela política possa ter um efeito subversivo.
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D) Ordem pública positiva. Normas de aplicação imediata. Há no direito material de todos os
países normas cujo escopo é tal importante que a sua violação aparece como algo de
insuportável: essas normas são portadoras de uma vontade de aplicação geral. Seriam elas as
verdadeiras leis de ordem pública.
Às normas de aplicação imediata (lois de police) não é alheia a ideia da necessidade de
existência de uma conexão entre as situações a regular e o ordenamento local: a conexão
necessária não coincidiria com a designada pela regra de conflitos relativa à matéria em
questão. São normas que demarcam elas próprias o seu âmbito de aplicação.
200. Características da ordem pública. As características da ordem pública são a
excepcionalidade, a imprecisão, a actualidade. Refere-se ainda o seu carácter nacional ou
relativo a um sistema jurídico determinado.
O conteúdo da noção de ordem pública internacional é impreciso e vago. Ordem pública
internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode definir-se pelo seu
conteúdo, mas só pela função: permite evitar que situações jurídicas dependentes de um
direito estrangeiro e incompatíveis com postulados basilares do direito nacional venham a
inserir-se na ordem sócio-jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la. Do que se trata é de
comparar os resultados da aplicação de duas leis – a lei normalmente competente e a lex fori –
a um mesmo caso, de apreciar as consequências na ordem sócio-jurídica do foro da aplicação
da primeira dessas leis.
Não basta estabelecer a incompatibilidade abstracta da norma estrangeira em causa com
as concepções fundamentais da lex fori, mas interessa para além disto tirar a limpo a
incompatibilidade com esse espírito de uma aplicação concreta da mesma norma.
A solução de tal problema supõe da parte do juiz da causa uma liberdade de avaliação
inconciliável com qualquer forma rígida. A ordem pública não é uma medida objectiva para
aferir a compatibilidade concreta da norma estrangeira com os princípios fundamentais do
direito nacional, mas a decisão de não aplicar as leis estrangeiras é alguma coisa que joga
essencialmente com avaliações subjectivas do juiz, com a representação que na mente deste
se forme acerca do sentimento jurídico dominante na colectividade e das reacções desse
sentimento à constituição ou reconhecimento do efeito jurídico que se tem em vista.
Por outro lado, a ordem pública internacional é função de concepções que hão-de vigorar
no próprio país onde a questão se põe, que hão-de vigorar na própria ocasião do julgamento:
esta característica da actualidade da ordem pública internacional é admitida pela doutrina
quase de modo pacífico. Tal característica deduz-se da própria noção de ordem pública.
201. Necessidade de balizar o campo de actuação da ordem pública.
a) Do que se trata não é propriamente de ajuizar da justiça da lei estrangeira (da sua
conformidade com a justiça da lex fori), mas da compatibilidade com as concepções ético-
jurídicas fundamentais da lex fori da situação que adviria da aplicação da lei estrangeira aos
factos da causa (art. 22.°, nº 1 do CC).
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b) Exige-se que entre a factualidade sub judice e o ordenamento do foro interceda um nexo
suficientemente forte para justificar a não aplicação da norma estrangeira em princípio
aplicável.
A justiça de uma lei é apenas uma justiça relativa: relativa a um lugar e a um tempo
determinado. Uma justiça espácio-temporalmente condicionada.
Nesta ordem de ideias, a gravidade da divergência entre a norma estrangeira e o direito
nacional reputada necessária para justificar a intervenção da ordem pública, variaria na razão
inversa da intensidade do nexo apurado entre a relação em causa e o ordenamento jurídico do
foro.
Admitindo-se a doutrina exposta, há, porém, que ressalvar os casos em que a norma ou
instituição estrangeira entre em conflito com princípios que nos pareçam essenciais a toda a
comunidade humana que deseje realmente nortear-se pela representação de valores ético-
jurídicos e assentar neles as suas estruturas sociais. Exemplo: a denegação de personalidade
jurídica a alguns homens, ou o da recusa de certos direitos fundamentais da pessoa humana
(por motivos de carácter racial ou político), o da instituição do casamento poligâmico [se um
nacional de um país que admite a poligamia pretender contrair em Portugal segundo casamento na
vigência do primeiro, é fora de dúvida que não o poderá fazer, porque a nossa concepção do
matrimónio (art. 1601.°, al.c)) a tal se oporá.], o do divórcio sob a forma de repúdio da mulher.
Nestas hipóteses, o elemento que funciona como ligação suficiente da situação sub judice ao
Estado do foro é o próprio facto de a questão poder ser resolvida por um tribunal deste
Estado.
c) Teoria do efeito atenuado da intervenção da cláusula de ordem pública. Segundo uma
doutrina francesa, a ordem pública pode operar de modo diverso conforme se trate de
adquirir um direito em França, ou de permitir que um direito adquirido sem fraude no
estrangeiro produza em França os seus efeitos. Os tribunais foram progressivamente
admitindo os efeitos patrimoniais de uma união poligâmica regularmente celebrada no
estrangeiro.
Nestes termos, Pierre Mayer diz que a excepção de ordem pública intervirá quando se
tratar, quer da criação no Estado do foro, através de uma sentença constitutiva, de uma
relação jurídica, quer do reconhecimento de uma relação já criada no mesmo Estado. A ordem
pública não intervirá em regra quando a relação tiver sido constituída no estrangeiro.
Suponhamos um divórcio estrangeiro, na sequência do qual os ex-cônjuges contraíram
segundas núpcias. O não reconhecimento do divórcio teria aqui mais inconvenientes do que o
próprio reconhecimento. O efeito social perturbador daquela primeira solução é mínimo,
atentas as circunstâncias do caso.
Entre nós, vem sendo admitido pacificamente que a celebração em Portugal de um
segundo casamento por um cônjuge divorciado no estrangeiro basta-se com a simples exibição
perante o conservador do registo civil do documento que contenha a sentença do divórcio.
Não haverá lugar à verificação da conformidade da situação derivada da sentença com a
ordem pública do Estado português.
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Por razões análogas, não tem repugnado noutros países, onde se professam concepções
semelhantes às nossas em matéria de casamento, a atribuição de direitos sucessórios aos
descendentes de matrimónio poligâmico – válido perante a lei nacional dos cônjuges e do país
da celebração – e até à segunda mulher do polígamo. É que tais soluções não implicam o
reconhecimento directo da união poligâmica, mas apenas o de que a lei reguladora da
sucessão mortis causa atribui a determinados indivíduos, em virtude da posição em que se
encontravam perante o autor da herança em vida deste, direitos sucessórios iguais aos dos
filhos legítimos. A propósito do caso Chemouni, esta doutrina é inaplicável aos efeitos pessoais
do casamento.
Exemplo: o problema posto por um repúdio (ou um divórcio privado) que tenha tido lugar no
Estado do foro. Em Portugal, como na generalidade dos países ocidentais, é uma ideia corrente
a de que em matéria de divórcio os tribunais civis têm competência exclusiva.
No entanto, a intervenção da ordem pública só se justifica no caso do repúdio, sendo
ainda necessário que a mulher, portuguesa ou residente em Portugal à data do acto, não tenha
concordado com a dissolução do vínculo matrimonial nas circunstâncias ocorrentes.
202. Função proibitiva (impeditiva) e permissiva (positiva) da ordem pública. A ordem pública
tanto pode intervir de modo a evitar a constituição ou o reconhecimento em Portugal de uma
relação jurídica sujeita a um direito estrangeiro, como para o efeito de permitir a constituição
no país de uma situação jurídica que a lei estrangeira aplicável por si não autorizaria.
Exemplos:
a) Proposta em Portugal uma acção visando a celebração do casamento com base num
contrato esponsalício, o tribunal considera contrária à ordem pública portuguesa a aplicação
do preceito da lei nacional comum das partes em que se funda a pretensão e julga a acção
inviável.
b) Intentada acção de divórcio, o tribunal entende que a admissão da acção e a concessão do
divórcio pelo fundamento invocado (que é causa legítima de divórcio para a lei da
nacionalidade comum dos cônjuges) seriam contrárias aos princípios de ordem pública do
Estado português; e conclui como em a).
Em qualquer dos casos, a ordem pública internacional impediu a produção de um efeito
jurídico que à face da lei competente deveria produzir-se.
c) A e B são nacionais de um Estado onde o impedimento de raça é conhecido. Pretendem
casar no nosso país. Provavelmente, o conservador do registo civil não porá obstáculos à
celebração do casamento, argumentando que a aplicação do preceito em causa da lei
portuguesa lesaria concepções fundamentais da ordem jurídica portuguesa.
d) A propõe contra B acção para anular um contrato com fundamento em coacção moral
exercida por terceiro. A lei aplicável à substância e efeitos do negócio jurídico nega toda a
relevância à coação nesta hipótese, como vício susceptível de invalidar o acto.
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É possível que o juiz, atendendo às circunstâncias do caso concreto, se recuse a tomar em
consideração a referida norma e julgue a acção procedente.
Tanto em c) como em d), a ordem pública actuou positivamente, permitindo a celebração
de um acto ou a produção de um efeito jurídico que à sombra da lei competente não seriam
possíveis.
O efeito directo da ordem pública é sempre impeditivo: consiste sempre na exclusão de
um preceito do sistema jurídico declarado competente pelo DIP do foro.
203. Consequências da intervenção da ordem pública. A não aplicação desses preceitos da lei
que o DIP do foro considera competente traz consigo o não reconhecimento ou a
impossibilidade de realização do acto para que se requer a tutela jurídica: o casamento, o
divórcio, a adopção. Trata-se de uma consequência normal e constante da intervenção da
ordem pública.
A exclusão da norma de direito estrangeiro pode dar em resultado a formação de uma
lacuna. Surge então um delicado problema – o do modo de a colmatar. Tem de recorrer-se à
lex fori: excluída a lei estrangeira competente, a lex fori torna-se aplicável.
A teoria de Ago defende que o direito nacional tem um valor geral, sendo o DIP o direito
especial das relações internacionais: não podendo aplicar-se a excepção, entra em
funcionamento a regra de modo automático. Não é esta a concepção a que aderimos.
As hipóteses de autênticas lacunas de regulamentação engendradas pelo funcionamento
do mecanismo da ordem pública são raras. Por vezes, o «caso» fica resolvido por completo
com a simples não aplicação do preceito estrangeiro contrário à ordem pública nacional. É um
casamento entre dois indivíduos de raças diferentes, nacionais de um Estado que considera
esse facto como impedimento matrimonial. Nós não podemos aceitar tal ponto de vista; o
casamento poderá celebrar-se. O problema está por completo resolvido.
Num outro grupo de situações, a acção da ordem pública consiste apenas em vetar a
aplicação da norma estrangeira, sucedendo no entanto nascer daí uma lacuna, que é forçoso
preencher. Mas não necessariamente pelo recurso à lex fori. O desejável é que tanto quanto
possível se resolva o problema no quadro da lei designada como competente. Esta legislação
não foi afastada no seu todo, mas tão-só num preceito determinado. Se não se torna possível
dar ao caso a solução que lhe seria dada no âmbito do ordenamento designado como
competente pelo DIP do foro, afastamo-nos o menos possível daquela solução – e o
procedimento mais indicado consistirá em colmatar a lacuna através da aplicação doutras
normas da mesma lei.
O método recomenda-se especialmente quando o preceito jurídico rejeitado pela nossa
ordem pública constitui no ordenamento a que pertence uma excepção ou desvio a um
princípio geral: afastada a excepção, recorre-se à regra.
A doutrina exposta foi perfilhada pelo Código Civil português: art. 22.°, nº 2. Na hipótese
de lacuna, só se recorre à lei portuguesa se na legislação estrangeira competente não se
encontrarem «normas apropriadas», isto é, se a partir dessa legislação não conseguir
descobrir-se uma solução que seja adequada ao caso, uma solução que não se afaste muito da
que a ordem pública forçou a recusar, ou que de toda a maneira dela se afaste menos do que a
resultante dos princípios do direito português.
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Capítulo VIII
Da fraude à lei em DIP
204. A fraude à lei em DIP consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicação normal,
a fim de afastar um preceito de direito material dessa lei (preceito rigorosamente imperativo),
substituindo-lhe outra lei, onde tal preceito, que não convém às partes ou a uma delas, não
existe. É este o elemento subjectivo da fraude. A intenção fraudulenta é levada a cabo através
de uma adequada manipulação da regra de conflitos, normalmente do factor de conexão. É
este o elemento objectivo da fraude. É a nacionalidade o elemento de conexão normalmente
utilizado.
205. Exemplo: é o caso de Beauffremont. A princesa de Beauffremont vivia em França, na 2ª
metade do século XIX, judicialmente separada do marido. Os cônjuges eram ambos franceses e
naquele tempo o divórcio ainda não existia em França. Mas a princesa queria divorciar-se para
desposar o príncipe Bibesco. Foi então aconselhada a naturalizar-se num ducado alemão, onde
a separação de pessoas e bens equivalia a um divórcio.
Como a lei desse ducado passou a ser a nova lei nacional da princesa segundo a regra de
conflitos francesa, o expediente permitiu à interessada contrair imediatamente segundo
casamento, que não foi reconhecido em França, em virtude da fraude que esteve na base da
naturalização. O objecto da fraude foi a norma de conflitos que designava como aplicável no
caso a lei francesa; e o instrumento da fraude a norma que considerava aplicável a lei a que a
interessada pretendia acolher-se.
206. Foi a ilicitude do fim visado com a manobra, não a pura e simples alteração do elemento
de conexão da regra de conflitos, que provocou a frustração do plano. Ninguém pode ser
privado do direito de mudar de nacionalidade, contanto que o indivíduo proceda com o
intento sério de aceitar as consequências mais essenciais da condição de nacional do Estado
de naturalização.
207. A manipulação do factor de conexão da norma não é essencial à relevância da fraude.
Esta pode incidir no objecto da conexão. Assim, para evitar a aplicação à sua sucessão
imobiliária da lei francesa na parte em que institui uma reserva ou porção legitimária a favor
dos filhos do de cujus, o cidadão francês Caron, domiciliado nos EUA, proprietário de um
imóvel sito em França, cedeu-o a uma sociedade americana de que ele possuía acções. A
fraude à lei francesa foi realizada através de uma mudança do estatuto sucessório resultante
da transformação de direitos imobiliários em direitos mobiliários (e em França a sucessão
mobiliária depende da lei do último domicílio do hereditando). Como a lei americana não
conhece a legítima, foi possível ao de cujus deserdar totalmente os filhos; mas os tribunais
franceses não se deixaram iludir pela manobra fraudulenta e restabeleceram a competência da
lei francesa com os consequentes direitos dos filhos do fraudante.
208. Não pode considerar-se haver fraude no caso de uma pessoa colectiva cujos fundadores
deliberem fixar-lhe a sede em determinado país unicamente para beneficiar da menos severa
legislação desse país relativamente à daquele onde a sociedade se propõe exercer a sua
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principal actividade. Estamos a pôr a hipótese de uma deliberação séria – de uma sede real. Só
é de considerar a fraude nos casos de «internacionalização artificial» da pessoa colectiva. Por
outro lado, parece que a conexão dada pelo elemento-sede – desde que se trate da sede
efectiva da pessoa colectiva e não de uma sede fictícia ou aparente – corresponderá sempre
à conexão hipotizada pela respectiva norma de conflitos, seja qual for o motivo que tenha
induzido as partes a eleger aquela sede: será sempre aí que realmente funciona a direcção
jurídica, administrativa e técnica da empresa.
209. Considerações análogas são cabidas no caso dos contratos, sempre que a lei aplicável seja
a lei escolhida pelas partes. A Convenção de Roma de 1980 consagra expressamente, no seu
art. 3.°, o princípio da liberdade de escolha da lei que há-de reger o contrato. Este princípio
não conhece limitações, contanto se trate de um negócio jurídico internacional. As partes
podem designar o direito aplicável ao sabor das suas conveniências. Assim sendo, a fraude é
neste domínio impensável. Não importa que os contraentes tenham sido determinados pelo
intuito de fugir ao regime imperativo muito rigoroso da lei com a qual a sua operação esteja
mais estreitamente vinculada: mesmo assim, a escolha será válida.
Ela só o não será se o contrato estiver conectado com uma única lei, porque nesse caso tratar-
se-á de um contrato interno e ao ligá-lo a determinado sistema jurídico as partes tiveram a
intenção de o internacionalizar (internacionalização artificial).
210. Sanção da fraude à lei. A sanção da fraude consiste no regresso ao estado de coisas a que
o fraudante pretendeu evadir-se, com a concomitante ineficácia da situação que ele visou
criar. A princesa de Beauffremont continuou casada com o anterior marido, sendo totalmente
ineficaz o casamento com o príncipe Bibesco. Por conseguinte, a naturalização alemã foi
ignorada pelos tribunais franceses, que consideraram que a princesa continuava a ser francesa.
No caso Caron, a venda do imóvel à sociedade de direito americano, com a concomitante
substituição daquele por acções da sociedade, foi ignorada pelos tribunais franceses e a
legítima dos filhos do fraudante respeitada.
Relativamente à fraude à lei estrangeira, a orientação clássica pronunciava-se no sentido
negativo. Em França, os tribunais recusaram-se a admitir a alegação de uma italiana de fraude
à lei do seu país pelo marido, que, desejando divorciar-se, foi naturalizar-se francês. A razão
invocada foi que não pertence aos tribunais judiciais criticar o acto administrativo francês da
naturalização. Admite-se hoje a relevância da fraude à lei estrangeira, pelo menos quando a
fraude tenha consistido na evicção da lei estrangeira competente a favor de outra também
estrangeira.