(des)legitimação: ações discursivo-cognitivas para o ... · de categorização social karina...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
(Des)legitimao: aes discursivo-cognitivas para o processo
de categorizao social
Karina Falcone de Azevedo
Orientadores: Judith Hoffnagel
Luiz Antnio Marcuschi
Co-Orientador no Exterior: Teun A. van Dijk
Recife
2008
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KARINA FALCONE DE AZEVEDO
(Des)legitimao: aes discursivo-cognitivas para o processo de categorizao social
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obteno do Grau de Doutora em Lingstica.
Recife
2008
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Azevedo, Karina Falcone de
(Des)legitimao: aes discursivo - cognitivas para o processo de categorizao social / Karina Falcone de Azevedo. Recife : O Autor, 2008.
276 folhas.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Lingstica, 2008.
Inclui bibliografia.
1. Lingstica. 2. Anlise do discurso. 3. Jornalismo. 4. Movimentos sociais. 5. Cognio. I.Ttulo.
801 CDU (2.ed.)
UFPE 410 CDD (20.ed.) CAC2008-32
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
(Des)legitimao: aes discursivo-cognitivas para o processo de categorizao social
Karina Falcone de Azevedo
Banca Examinadora:
Elizabeth Marcuschi
__________________________
Isaltina de Azevedo Mello Gomes
__________________________
Jan Edson Rodrigues Leite
___________________________
Judith C. Hoffnagel (Orientadora)
___________________________
Kazue Saito Monteiro de Barros
__________________________
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obteno do Grau de Doutora em Lingstica.
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Recife, fevereiro de 2008
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Este trabalho dedicado a Luiz Antnio Marcuschi. Entre o tanto
que me ensina, me move uma lio: o desejo de conhecer. E para
isso preciso perceber o mundo para alm de uma coisa, mas
como uma integrao de todas as coisas. Entender que a
construo do conhecimento no tem limites. E da o desejo da
busca, a inquietao das perguntas. Com esse aprendizado, me
movo no mundo, em grande parte, pela trilha do seu caminhar.
E, assim, posso dizer: vejo o mundo pelos ombros de um gigante.
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AGRADECIMENTOS A Luiz Antnio Marcuschi. Primeiro: por me ver. Por acreditar no que sou capaz, quando nem eu mesma, muitas vezes, acredito. E me fazer trilhar caminhos que nunca imaginei ir. Segundo: porque tudo possvel, porque ele existe. A Judith Hoffnagel. Pela acolhida e pelas orientaes mais que competentes. Pelo prumo que me fez tomar. Pelo companheirismo, pela amizade, pela confiana. Por trazer, tambm, o que faltava a este trabalho: o olhar de uma mulher. A Teun A. van Dijk, com quem entrelacei discursos e fiz disso uma tese. Com quem compartilho idias e sentimentos. Com quem divido inquietaes e desejos de um mundo mais justo. Meu amigo, meu orientador, com quem compartilho, tambm, as mais belas canes. A Fantasia de Chico Buarque tambm nossa. A Abundia Padilha e a Kazue Saito pelas valorosas contribuies na qualificao, fazendo deste trabalho algo bem melhor. Ao Movimento dos Trabalhado Rurais Sem Terra (MST): seus ensinamentos, moto-contnuo da minha crena na justia social. Ao ex-deputado federal e advogado, Luiz Eduardo Greenhalgh, meu agradecimento pelas orientaes jurdicas e minha admirao na sua luta junto ao MST. A Capes, pelos auxlios concedidos para esta pesquisa no Brasil e no exterior, com a bolsa de doutorado sanduche. Ao CNPq, pela bolsa que financiou os ltimos meses deste trabalho. A Angela Paiva Dionisio. Minha professora, minha partner, minha coordenadora, minha amiga. No importa a vestimenta, ela est sempre ao meu lado. Aos meus pais, Kleber e Magaly. Pela sustentao material e espiritual em tudo o que fao. Aos meus irmos, Bruno e Alfredo, presenas que no precisam ser cotidianas para estarem sempre em mim. Em especial, a Alfredo, que me guarda sem saber, a quem devo meu suporte tcnico-emocional. E a minha av, Margarida, pelo apoio e crena no meu trabalho.
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Ao meu marido, Eduardo de Albuquerque Melo. O amor que impulsiona minha vida e carrega de leveza estas e outras pginas. Com ele, o prazer o cotidiano. Meu companheiro, minha famlia. A Flvia Peres. O meu lado, a minha sustentao. A minha criatividade e a minha crena. O meu elemento de integrao entre o caos e a ordem. Um dos encantamentos que guia este trabalho. A Francisco Eduardo Vieira da Silva, a quem entrego minhas dvidas e angstias. E, com carinho e competncia, me acolhe e me orienta. A Leonardo Mozdzenski. Meu amigo, minha inspirao. Quem me ajuda a ser melhor. As minhas queridas e poderosas: Beth Marcuschi, Cristina Teixeira, Dris de Arruda Cunha, Isaltina Melo, Mrcia Mendona e Kazue Saito. Com as quais compartilho gargalhadas e angustias, sempre de forma deliciosa. Aqui, em especial, a Beth Marcuschi. Aproximao recente, mas intensa: um ponto de equilbrio. Aos amigos/colegas de Ps-graduao. Porque tambm da interao com eles que se constitui este trabalho e esta autora: Adriana Rosa, Ana Regina Viera, Francisco Eduardo Vieira da Silva, Cludio Rodrigues Costa, Herimatia Pontes, Leonardo
Mozdzenski, Normanda Bezerra e Roberta Ramos Marques.
A cidade de Barcelona, pela acolhida e pela mudana de perspectiva. Por me ensinar a ver o mundo como um belo mosaico. E sem os quais eu no seria possvel: Eduardo Albuquerque, Fabola Mendona, Fbio Lucas, Flvia Peres, Isabel Maia, Janana Maia, Joo Melo, Leonardo Cavalcanti,
Leonardo Mozdzenski, Mrcia Costa, Philio Terzakis, Roberta Aureliano e Valria Luna.
Por fim, a Sofia Mendona Amaral, com as boas-vindas.
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Quando ocupamos aquela terra, paramos de morrer... (Domcio, do Assentamento Ireno Alves,
Paran, Brasil)
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RESUMO
Palavras-chave: (des)legitimao; discurso; sociocognio, jornalismo; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Este trabalho movido por duas questes heursticas: como concepes especficas assumem a condio de verdade? Por que os discursos de determinados atores/grupos sociais tm o poder de transformar verses em fatos? Tais questes, em linhas gerais, definem a forma como entendemos o mundo e agimos nele (Marcuschi, 2007b). Assim como esto atreladas a um fenmeno pouco explorado nas investigaes lingsticas: o da (des)legitimao. Trata-se de uma construo coletiva, que envolve distintas prticas sociais, que tem no discurso uma das suas foras propulsoras (Habermas 1999 [1973]; Rojo e van Dijk, 1997). Buscamos, ainda, dar conta de um outro problema: grupos/atores sociais, em situao de excluso social, sofrem as mais distintas formas de discriminao e de preconceito, sendo a excluso discursiva uma das prticas mais sutis por isso mais eficientes no processo de deslegitimao desses grupos. Pelo seu poder simblico, o domnio jornalstico opera fortemente nesse processo, da a relevncia da sua investigao. Grupos e atores sociais no so (des)legitimados a priori. A (des)legitimao uma atribuio, um ato social de categorizao, por isso no estanque e sempre situada. uma atividade que envolve operaes mentais, em um intenso processo de negociao social. Esta investigao est focada no processo de construo de (des)legitimao de um movimento social que tem resistido fora dos grupos poderosos e conseguido mudar um dos conceitos caros elite brasileira: o da propriedade. Trata-se do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como caso especfico, investigamos a cobertura do jornal Folha de S. Paulo (FSP), entre os anos de 1996 a 2006, sobre o massacre em Eldorado de Carajs, ocorrido em abril de 1996. Ao analisarmos as distintas orientaes da cobertura, percebemos que o processo de categorizao do fato como algo (i)legtimo se d por aes contnuas, que, se em determinados momentos histricos, sofreu um maior controle discursivo, por parte dos grupos do poder, em outros a presso de vrios movimentos e grupos sociais interfere e atua nesse processo, democratizando o espao discursivo do jornal, abrindo espao para outras verses e construindo modelos cognitivos diferenciados. Entretanto, o controle discursivo opera fortemente no processo de categorizao do MST e a elite se utiliza do jornal para estabelecer seu discurso como um fato jornalstico, deslegitimando o movimento. Nesta pesquisa, analisamos a cobertura da FSP tomando seis macrocategorias de anlise, denominadas frames de cobertura: 1) A Circulao das Verses; 2) A Mobilizao da Sociedade; 3) A Legalizao de uma Verso: a cobertura dos trmites judiciais; 4) A Criminalizao do MST; 5) A Partidarizao do MST e 6) O Reframing: a no-ocorrncia. Assim, investigamos o texto jornalstico a partir das distintas estratgias de construo de sentido, dos modelos contextuais variados e das aes situadas dos elementos lingstico-discursivos.
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RESUMEN
Palabras-clave: (des)legitimacin; discurso; socio-cognicin, periodismo; Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST). Este trabajo es movido por dos cuestiones heursticas: Cmo concepciones especficas asumen la condicin de verdad? Por qu los discursos de determinados actores/grupos sociales tiene el poder de transformar versiones en hechos? Tales cuestiones, en lneas generales, definen la forma como entendemos el mundo y actuamos en l (Marcuschi, 2007b). As como estn enganchadas a un fenmeno poco explotado en las investigaciones lingsticas: el de la (des)legitimacin. Se trata de una construccin colectiva, que involucra distintas prcticas sociales, que tiene en el discurso una de sus fuerzas propulsoras (Habermas 1999 [1973]; Rojo y van Dijk, 1997). Buscamos, an, darse cuenta de un otro problema: grupos/actores sociales, en situacin de exclusin social, sufren las ms distintas formas de discriminacin y de prejuicio, siendo la exclusin discursiva una de las prcticas ms sutiles por eso ms eficientes en el proceso de deslegitimacin de esos grupos. Por su poder simblico, el dominio periodstico opera fuertemente en ese proceso, de ah la relevancia de su investigacin. Grupos y actores sociales no son (des)legitimados a priori. La (des)legitimacin es una atribucin, un acto social de categorizacin, por eso no es estanque y siempre ubicada. Es una actividad que involucra operaciones mentales, en un intenso proceso de negociacin social. Esta investigacin est enfocada en el proceso de construccin de (des)legitimacin de un movimiento social que tiene resistido a la fuerza de los grupos poderosos y conseguido cambiar uno de los conceptos caros a la elite brasilea: lo de la propiedad. Se trata del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST). Como caso especfico, investigamos la cobertura del peridico Folha de S. Paulo (FSP), entre los aos de 1996 a 2006, sobre la masacre en Eldorado de Carajs, ocurrido en abril de 1996. Al analizarse las distintas orientaciones de la cobertura, nos damos cuenta que el proceso de categorizacin del hecho como algo (i)legtimo se da por acciones continuas, que, si en determinados momentos histricos, ha sufrido un mayor control discursivo, por parte de los grupos del poder, en otros la presin de varios movimientos y grupos sociales interfiere y acta en ese proceso, democratizando el espacio discursivo del peridico, abriendo espacio para otras versiones y construyendo modelos cognitivos diferenciados. Sin embargo, el control discursivo opera fuertemente en el proceso de categorizacin del MST y la elite se utiliza del peridico para establecer su discurso como un hecho periodstico, deslegitimando el movimiento. En esta investigacin, analizamos la cobertura de la FSP tomando seis macro-categoras de anlisis, denominadas frames de cobertura: 1) La Circulacin de las Versiones; 2) La Movilizacin de la Sociedad; 3) La Legalizacin de una Versin: la cobertura de los trmites judiciales; 4) La Criminalizacin del MST; 5) La Partidarizacin del MST y 6) El Reframing: la no-ocurrencia. As, investigamos el texto periodstico a partir de las distintas estrategias de construccin de sentido, de los modelos contextuales variados y de las acciones ubicadas de los elementos lingstico-discursivos.
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ABSTRACT Key-words: (des)legitimization; discourse; social cognition; journalism; Movimento dos Trabalhadors Rurais Sem Terra (MST) [Landless Rural Workers Movement]. Two heuristic questions underlie this study: how specific conceptions assume the condition of truth? Why the discourses of certain actors/social groups have the power to transform versions into facts? Such questions, in general terms, define the way we understand the world and act in it (Marcuschi 2007b), and they are also linked to a little explored phenomenon in linguistic investigations: that of (des)legitimization. This is a collective construction that involves distinct social practices that have in discourse one of their principal forces (Habermas 1999 [1973]; Rojo e van Dijk 1997). We seek, as well to explain another problem: social groups/actors, in situations of social exclusion, suffer many distinct forms of discrimination and prejudice, with discursive exclusion being one of the more subtle practicestherefore more efficientin the process of the deslegitimazation of these groups. Through its symbolic power, the journalistic domain operates strongly in this process, and therefore makes its investigation relevant. Social groups and actors are not deslegitimatized a priori. The (des)legitimization is an attribution, a social act of categorization, and for this reason it is not static, but always situated. It is an activity that involves metal operations within an intensive process of social negotiation. The investigation focuses on the process of the construction of the (des)legitimization of a social movement that has resisted the force of powerful groups and managed to change one of the concepts dear to the Brazilian elite: that of property. The social movement in question is the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) [Landless Rural Workers Movement]. As a specific case, we investigate the journalistic coverage in the newspaper Folha de S. Paulo (FSP), during the years of 1996 to 2006, of the massacre in Eldorado de Carajs that occurred in April of 1996. Through the analysis of the distinct perspectives taken by the newspaper coverage, we perceive that the process of categorization of the fact as something (il)legitimate is made through continuous actions, that, if in certain historical moments, it dsuffered a greater discursive control by the groups in power, in other moments the pressure of various social movements and groups interfered and acted in this process, turning the discursive space of the newspaper more democratic, opening up space for other versions and constructing differentiated cognitive models. However, the discursive control operates strongly in the process of categorization of the MST and the elite make use of the newspaper to establish its discourse as a journalistic fact, deslegitimizing the movement. The study investigates the coverage of the Folha de S. Paulo using six macro-categories of analysis, called coverage frames: 1) The Circulation of the Versions; 2) The Mobilization of Society; 3) The Legalization of one Version: the coverage of the judicial processes; 4) The Criminalization of the MST; 5) The MST as a Political Party; 6) The Reframing: the non-occurrence. Thus, we investigate the journalistic text from the perspectives of the distinct strategies of meaning construction, the various contextual models and the situated actions of the linguistic-discursive elements.
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SUMRIO
1. CONSIDERAES INICIAIS ............................................................................................................... 1 1.1 A ANLISE CRTICA DO DISCURSO: PRECEITOS BSICOS DO MARCO TERICO.................................... 12 1.2 17 DE ABRIL DE 1996: MASSACRE X LEGTIMA DEFESA ....................................................................... 15 1.3 JORNALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS: PODER E CONTRA-PODER NA LUTA PELA (DES)LEGITIMAO 16
2. A ANLISE COGNITIVA DO DISCURSO........................................................................................ 20 2.1 O TRIDIMENSIONALISMO DE FAIRCLOUGH E A TRADE DE VAN DIJK: A MEDIAO DISCURSIVA E A COGNIO NA ANLISE CRTICA DO DISCURSO ....................................................................................... 22 2.2 A FORMAO DO QUADRO TERICO DE NORMAN FAIRCLOUGH: OS FUNDAMENTOS EPISTEMOLGICOS DA LINGSTICA SISTMICO-FUNCIONAL E A TEORIA CRTICA ................................................................ 26
2.2.1 O Contexto e as Representaes Sociais.................................................................................... 33 2.2.2 As Noes de Lngua e Ideologia da Teoria Marxista em Fairclough e o Estancamento da
Mudana Social .................................................................................................................................. 44 2.2.3 O reframing como Proposta de Mudana Discursivo-cognitiva ............................................... 46
2.3 SOCIOCOGNIO E DISCURSO............................................................................................................. 48 2.4 A PROPOSTA SOCIOCOGNITIVA DE TEUN VAN DIJK ............................................................................ 52
2.4.1 Discurso Sociedade em Trs Aspectos de Interface.............................................................. 54 2.4.2 Os Gneros Textuais, sua Relevncia na Interface e outras Crticas AD Cognitiva .............. 61
2.5 DA SOCIOCOGNIO AO DISCURSO (DES)LEGITIMADOR..................................................................... 68
3. (DES)LEGITIMAO: UMA PRTICA SOCIAL, DISCURSIVA E COGNITIVA .................... 78 3.1 (DES)LEGITIMAO: LEITURAS SOCIAIS, AES DE CATEGORIZAO................................................. 78 3.2 A LEGITIMAO SEGUNDO HABERMAS .............................................................................................. 81 3.3 A LEGITIMAO E O DISCURSO .......................................................................................................... 86 3.4 A LEGITIMAO E A TEORIA SOCIAL.................................................................................................. 89 3.5 A LEGITIMAO COMO UMA MACROCATEGORIZAO SOCIAL.......................................................... 93
3.5.1 Categorizao: uma atividade corporificada na mente e no discurso....................................... 94 3.5.2 Entre Prottipos e Esteretipos: a categorizao de atores/grupos sociais como um continuum
.......................................................................................................................................................... 100 3.5.3 A Anlise do Continuum Prottipo Esteretipo no Discurso Jornalstico............................ 105
4. A FABRICAO DA REALIDADE I: DAS CATEGORIAS DE ANLISE................................ 111 4.1. O ESQUEMA DE ANLISE E SUAS CATEGORIAS................................................................................ 114 4.2 DESENVOLVENDO AS CATEGORIAS DE ANLISE............................................................................... 116
5. A FABRICAO DA REALIDADE II : ENTRE ATOS E FATOS, A (DES)LEGITIMAO DE ELDORADO DO CARAJS............................................................................................................ 136
5.1 A ANLISE DOS FRAMES .................................................................................................................. 136 Frame I A Circulao das Verses ................................................................................................ 136 Frame II A Mobilizao da Sociedade........................................................................................... 149 Frame III A Legalizao de uma Verso: a cobertura dos trmites jurdicos............................... 172 Frame IV A Criminalizao do MST ............................................................................................. 192 Frame V A Partidarizao do MST ............................................................................................... 206 Frame VI - o reframing: a no-ocorrncia....................................................................................... 219
6. CONSIDERAES FINAIS............................................................................................................... 221 6.1 A REALIDADE FABRICADA: ALGUMAS CONCLUSES SOBRE A (DES)LEGITIMAO DE ELDORADO DE CARAJS ................................................................................................................................................ 225
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................................................... 231 ANEXO I ................................................................................................................................................... 239 ANEXO II ..................................................................................................................................................277
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1. Consideraes Iniciais
Comeamos a apresentar este trabalho o fenmeno investigado, objetivos,
problemas de pesquisa, hipteses e proposta terica partindo da anlise do texto abaixo:
Exemplo 1:
MST quer manter 'guerra permanente', diz governo (FSP, 30/12/1996)
1 Relatrio interno do governo diz que o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais 2 Sem Terra) definiu que vai ''manter uma verdadeira guerra permanente'' contra o 3 Executivo. 4 Assessores do presidente Fernando Henrique Cardoso consideram o MST o principal 5 foco de ''tenso social'' do atual governo. 6 Chegam a avaliar que os lderes do movimento podem perder o controle sobre a 7 organizao, com conseqncias imprevisveis. 8 Essa avaliao fez com que o Palcio do Planalto determinasse um acompanhamento 9 sistemtico das aes do grupo, principalmente depois do incidente de Eldorado do 10Carajs (PA). Na poca _abril de 96_, 19 sem-terra morreram durante conflito com a 11 Polcia Militar. O governo avaliou que foi pego de surpresa por esse e outros episdios 12 envolvendo sem-terra.
Essa foi a ltima notcia publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1996, ano em
que pelo menos 19 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) foram assassinados em Eldorado dos Carajs, municpio do Par. Dos vrios
aspectos que podem ser analisados nesse texto, ressaltamos por agora um: como o jornal
categoriza o que ocorreu em Eldorado dos Carajs, em 17 de Abril de 1996. A seleo
lexical um elemento relevante para investigar essa questo. Observemos nas linhas 9:
incidente de Eldorado dos Carajs; 10: durante conflito com a Polcia Militar; 11 e
12: outros episdios envolvendo sem-terra. Os itens lexicais incidente, conflito e
episdios operam como neutralizadores de agncia, ou ainda naturalizadores: o que
aconteceu em Eldorado dos Carajs no situado como resultante de um contexto
poltico-social especfico, mas como uma casualidade. E mais: tampouco existem agentes
responsveis, j que incidentes e episdios so aleatrios, ou no podem ser controlados
pela ao humana. Se pessoas morreram em um conflito, os responsveis por essas
mortes no podem ser identificados e, conseqentemente, no h culpados. Como
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observamos nas linhas 10, 11 e 12: so construes sintticas que neutralizam a ao,
pois no h um ator causal, algum que tenha cometido as mortes.
Tambm interessante perceber qual modelo de contexto1 encapsula a
referncia a Eldorado dos Carajs. O tpico discursivo2, desenvolvido principalmente a
partir do ttulo e do lead (primeiro pargrafo) da notcia, trata de um relatrio em que o
ento Governo Federal criminaliza as supostas aes do MST. As anlises do acesso
discursivo e da representao dos sem-terra nessa notcia podem esclarecer melhor tal
aspecto. Apesar de todo o texto ser sustentado pelo discurso do Governo, j que nenhum
integrante do MST foi entrevistado, observamos um efeito de interdiscursividade entre
o Governo e o MST. Isso se d a partir de uma estratgia de atribuio discursiva. Ou
seja: um relatrio elaborado pelo governo diz como sero as aes do MST; assessores do
ento presidente consideram o movimento como um problema social e avaliam
catastroficamente o futuro dos sem-terra. Primeiramente, pela seleo dos verbos,
observamos a legitimidade dada pelo jornal ao relatrio. A partir desse aspecto, podemos
identificar o que estamos chamando de atribuio discursiva: o governo fala pelos sem-
terra e tem legitimidade para isso. O discurso do governo sobre o MST passa a ser
tomado como o prprio discurso do movimento (o MST definiu que vai manter uma
verdadeira guerra permanente contra o Executivo). No trecho manter uma verdadeira
guerra permanente, o uso das aspas no suficiente para clarificar que se trata de como
o governo est categorizando as aes do MST e no como o prprio MST definiria seu
planejamento poltico. As aspas funcionam apenas como uma marca do discurso
reportado, mas no ressaltam tal aspecto cognitivo. Outros elementos reforam o
processo de atribuio discursiva, como, por exemplo, a metfora guerra permanente,
precedida do adjetivo verdadeira. Tambm relevante pensar no prprio uso da
metfora guerra e ao que ela est associada: violncia, conflito, transtornos.
Do discurso do jornal aos atuais problemas polticos e jurdicos do MST: i) no h
condenados pelas mortes em Eldorado dos Carajs e o massacre est legalizado; ii) os
1 O conceito de modelo de contexto discutido mais sistematicamente no captulo 2, assim como ao longo de todo o trabalho, mas por enquanto o definimos resumidamente: so representaes subjetivas de situaes comunicativas e est armazenado na nossa memria episdica (van Dijk, 2000b). 2 Tpicos discursivos so entendidos como uma macro-ao discursivo-cognitiva, que organiza os aspectos centrais tratados em um texto (van Dijk, 2003). Esta e as demais categorias de anlise esto desenvolvidas no quarto captulo.
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integrantes do movimento apontam a mdia como uma das instituies que mais atuam no
processo de criminalizao do movimento, devido a uma cobertura estereotipada e
antidemocrtica. No se trata aqui de estabelecer uma relao direta entre o discurso da
mdia e a situao do MST, pois h uma complexidade de prticas sociais que no s as
discursivas e aspectos histricos que atuam nesse processo. Buscamos investigar, a
partir dos textos jornalsticos, a relao constitutiva entre uma prtica discursiva
especfica e uma prtica social. Se h o preconceito e a marginalizao do MST, isso no
pode ser aceito como a verdade sobre o movimento, uma atribuio natural. Mas sim
como uma verdade construda por grupos e atores sociais especficos, agindo
discursivamente.
Assim, chegamos ao aspecto central deste trabalho: discursos constituem
sociedades e tm fora para (des)legitimar atores, aes e grupos sociais. Tal afirmao
tem como base os trabalhos desenvolvidos na Anlise Crtica do Discurso (ACD), norte
terico desta pesquisa. Seguindo essa perspectiva, propomos analisar a ao discursiva do
jornalismo no processo de (des)legitimao do massacre de Eldorado dos Carajs.
A nossa proposta desenvolver o estudo da (des)legitimao a partir de duas
perspectivas: i) de forma mais ampla, entendemos que se trata de um fenmeno resultante
de distintas prticas sociais, por isso precisa ser investigado multidisciplinarmente; ii) e,
especificamente, como uma prtica discursiva que age na elaborao cognitivo-discursiva
de categorizao de atores/grupos sociais. Distinguir tais aspectos requer uma anlise
mais complexa dos processos de construo da (des)legitimao e possibilita investigar o
fenmeno a partir dos seus distintos aspectos constitutivos: social, cognitivo, poltico e
discursivo.
Isso porque, ao situar a (des)legitimao como um fenmeno atrelado prtica
social, entendemos que ele extrapola os limites de um domnio especfico e resulta das
amplas relaes que se estabelecem em uma sociedade. Assim, podemos compreender a
constituio da (des)legitimao no apenas como algo relacionado s instituies de
poder, ou a amplas disputas ideolgicas, mas tambm como um fenmeno que se cria a
partir de prticas cotidianas, quando, por exemplo, aceitamos, silenciosamente, o racismo
e o preconceito. E, ao propor um estudo discursivo para a legitimao, buscamos
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investigar sistematicamente a ao dessa prtica na complexa rede social que envolve tal
processo.
Alguns trabalhos j vm sendo desenvolvidos nas Cincias Sociais e na Filosofia,
a partir de uma concepo de legitimao como aes comunicativas objetivando o
acordo (Habermas, 1999 [1973]), mas so poucos os que se detm ao aspecto
especificamente discursivo (Rojo e van Dijk, 1997; van Leeuwen, 2007). Por isso, o
objetivo desta pesquisa investigar a (des)legitimao tanto sob a perspectiva social e
cognitiva, quanto lingstica-discursiva, a partir da construo de um quadro terico
multidisciplinar que d conta desses aspectos. Assim, partindo das consideraes de
Habermas (1999 [1973]) e Rojo & van Dijk (1997), defendemos que a legitimao no
apenas um ato ilocucionrio, definido nos termos e condies convencionalmente
apropriados (eleies, decretos, leis etc.), mas resultante de teias de relaes sociais,
tendo os gneros discursivos como uma importante fora propulsora. Isso quer dizer
tomar os processos de (des)legitimao como resultantes de prticas sociais, que
envolvem no apenas aes discursivas, mas macro-aes sociocognitivas constitudas (e
constituindo) contextos histricos.
Resumidamente, assumimos a seguinte perspectiva para (des)legitimao: uma
ao social de aceitabilidade atribuda a atores e grupos sociais (domnios) e promovida
discursivamente atravs de tipos relativamente estveis de enunciados (gneros). Tal ao
se estabelece, principalmente, por discursos de grupos ligados s instituies de poder
(controle discursivo); e consolidada socialmente a partir de processos de categorizao
que resultam na construo de modelos cognitivos dominantes (esteretipos/prottipos).
Noes tericas bastante complexas j foram introduzidas, neste captulo, mas
apenas com o objetivo de situ-las no quadro desta investigao3. Esses conceitos,
entretanto, esto aprofundados ao longo do trabalho de forma mais sistemtica. Por
enquanto, preciso definir pontualmente algumas noes fundamentais que do
sustentao a este estudo: uma concepo de sujeito crtico/cognitivo, ativo e reflexivo
3 importante esclarecer duas questes sobre este trabalho: i) no adotamos um captulo especfico para a fundamentao terica, sendo a teoria desenvolvida a partir das especificidades da investigao; ii) optamos por uma apresentao no restritamente cronolgica deste trabalho, mas norteada pela discusso de seus conceitos fundadores.
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(Giddens, 2003; Billig, 1991); uma noo scio-interacionista de lngua, situando-a como
uma atividade resultante de relaes sociais e instaurada pelos interlocutores mediante os
recursos lingsticos para a construo das verses pblicas do mundo (Marcuschi,
2005a); decorrendo, da, um conceito de discurso como uma forma de ao social
(Fairclough, 2001), irremediavelmente atrelado prtica social e ao contexto, sendo este
entendido como modelos mentais, em contnua atualizao entre os nossos constructos
sociocognitivos e o texto (van Dijk, 2006a). A cognio a propriedade base para a
constituio de todos esses elementos, pois organiza a nossa capacidade de conhecer e de
dar a conhecer, sendo que essa capacidade, ainda que individual, socialmente
compartilhada, por isso sociocognitiva. Esses pressupostos nos habilitam a situar a
(des)legitimao como um fenmeno que emerge nas prticas pblicas, constituda no
mbito social, resultante da ao de sujeitos reflexivos. Se estabelecer a (des)legitimao
uma ao humana (individual e coletiva), esta ao resulta de operaes de natureza
sociocognitivas; portanto o processo de categorizao um dos aspectos centrais para
esta pesquisa (ver captulo 3).
A justificativa para este trabalho a possibilidade de investigar, a partir de
prticas discursivas, como autoridade e legitimidade so criadas, reforadas e
questionadas no prprio discurso; como tambm elas so negociadas e disputadas
socialmente. Sendo a (des)legitimao uma das mais importantes foras de sustentao da
hegemonia liberal, urgente a necessidade de discutir as suas complexas formas de
estabelecimento. A escolha pela anlise do discurso (des)legitimador da imprensa em
relao ao caso de Eldorado dos Carajs se deve sua relevncia social. O massacre
mobilizou vrios setores da sociedade, no Brasil e no exterior, e, mesmo aps uma
dcada, continua tendo cobertura nos jornais e vrios desdobramentos jurdicos.
As reflexes aqui apresentadas nos levam a considerar alguns problemas de
pesquisa. Tomamos como central para este trabalho a seguinte questo: quais as aes
lingstico-cognitivas envolvidas no processo de elaborao do discurso
(des)legitimador? Como essas aes resultam em discursos distintos sobre um mesmo
episdio? Essas indagaes levam a outro problema de natureza heurstica: Como
verses se consolidam como um fato, algo dado, concreto, objetivo, quase que
naturalmente constitudo e legitimado?
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Ao analisar os textos publicados sobre o caso de Eldorado de Carajs,
identificamos no discurso jornalstico duas possibilidades de categorizao do episdio:
massacre x legtima defesa. Militantes do MST, organizaes no-governamentais,
entidades de direitos humanos etc. categorizam a morte dos militantes dos sem-terra
como um massacre. Para a Polcia, a Justia e para os Governos Estadual e Federal,
tratou-se de uma ao de legtima defesa. O que pretendemos investigar a natureza das
categorizaes e suas aes discursivas que resultam em verses to distintas. Nosso
propsito analisar os esforos cognitivo-discursivos desempenhados pelos atores/grupos
sociais para construir um fato, pois entendemos que so os discursos que transformam
um evento em um fato. Um fato um trabalho discursivo, no um dado a priori.
Os objetivos aqui apresentados so, portanto, tanto de ordem terica quanto
social, pois pretendemos investigar o funcionamento da sociedade (Giddens, 2003), a
partir da anlise discursiva. Sistematicamente, tomamos tais pontos para estudo:
Objetivo Geral:
Investigar a constituio da verso predominante (ou da verdade) sobre o
massacre em Eldorado dos Carajs, a partir das aes discursivas dos distintos
grupos e atores sociais envolvidos no caso.
Objetivos Especficos:
Investigar a ao do domnio jornalstico na construo da (des)legitimao do
massacre de Eldorado de Carajs.
Analisar as aes discursivas de categorizao do jornalismo sobre Eldorado de
Carajs, a partir das suas atividades de articulao e re-elaborao de outros
discursos.
Analisar as relaes estabelecidas pela imprensa entre as demais aes do MST e
o caso de Eldorado dos Carajs.
Para elaborar essas questes, tomamos como hiptese de trabalho que a
legitimao serve, em ltima conseqncia, para consolidar grupos e ideologias
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dominantes, controlar o poder social e excluir grupos dissidentes, contrrios ao status
quo. Entendemos que estabelecer a legitimidade fazer com que uma verdade (a do
grupo dominante) se consolide como a verdade, ou ainda como um modelo cognitivo
predominante. Como toda hiptese, trata-se de uma pressuposio, um posicionamento
assumido neste trabalho e que nos propomos, ao longo da investigao, analisar sua
validade.
Entretanto, importante ressaltar que tais pressupostos so elaborados a partir da
nossa perspectiva sobre o caso investigado. Mais: eles so posicionamentos crticos,
assim como ideologicamente orientado. Negar esses aspectos seria negar no s nossas
referncias tericas, mas o nosso esforo em desenvolver uma investigao fora do
paradigma positivista. Assim como no aceitamos a imparcialidade e neutralidade no
discurso jornalstico, tambm no podemos faz-lo no domnio acadmico. Na essncia
de tudo est o processo de construo de significaes ou de semiotizao. Enfim, tudo
so discursos e perspectivas de observao. Assim, o mito da objetividade no mais se
sustenta em um paradigma de cincia no qual o princpio bsico o de que a produo do
conhecimento se d entre sujeito-sujeito, no entre sujeito-objeto (Santos, 2003).
Assim, desenvolvemos esta investigao a partir das seguintes perspectivas:
1) Na disputa discursiva travada no caso de Eldorado dos Carajs, predominou o discurso
das instituies do poder (Justia, Governo), estabelecendo como legtimos os
assassinatos. Isso aconteceu independentemente da condenao judicial, pois legalizao
e legitimao so processos de naturezas distintas. Nessa linha, o jornalismo categoriza
Eldorado de Carajs a partir da verso de legtima defesa.
2) A legitimao dos assassinatos em Eldorado dos Carajs teve como sustentao a
deslegitimao pela imprensa do MST como grupo social: suas ideologias, suas
reivindicaes e suas lutas. Isso se d a partir de uma cobertura estereotipada e
preconceituosa sobre as prticas do MST.
importante esclarecer, entretanto, que essas perspectivas no so certezas
absolutas, mas so posturas polticas. E elas so elaboradas a partir de concepes
poltico-ideolgicas, fundamentadas por diversos trabalhos j realizados sobre o domnio
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jornalstico e suas relaes com o poder (ver Chomsky, 1999; Halloran et al 1970; van
Dijk, 1991). E, justamente por no estar estagnados em certezas, propomos esta pesquisa.
Assim, o risco da dvida se mostrou bastante positivo, ao longo desta investigao, ao
descobrirmos peculiaridades sobre a prtica jornalstica no exploradas em trabalhos
anteriores. Especificamente, podemos citar um aspecto desenvolvido no terceiro captulo
sobre as representaes sociais, a partir de uma linha contnua entre prottipos e
esteretipos, sendo essas representaes de natureza instvel e sujeita a interferncia da
sociedade na cobertura jornalstica.
Sobre os aspectos metodolgicos, desenvolvemos um estudo privilegiando a
investigao da constituio de um fenmeno o da legitimao e no apenas a sua
interpretao. Assim, situamos este estudo como de natureza mais heurstica do que
hermenutica. No tratamento dos dados, pretendemos observar as diferentes aes
discursivas, tomando uma macro-categoria como guia para a anlise das demais
categorias analticas. Essa distino no trata de uma hierarquizao dos dados, mas sim
de uma observao mais aprofundada das aes discursivas. Como macro-categoria de
anlise, propomos os frames de cobertura. Estes frames so os distintos enfoques
identificados no corpus, durante os dez anos de cobertura sobre o massacre de Eldorado
dos Carajs (1996 a 2006). a partir desses frames que pretendemos observar o
funcionamento dos demais aspectos lingstico-discursivos. Essa macro-categoria resulta
de recortes observacionais do corpus e d conta de como ocorreram os processos de
interao entre imprensa e sociedade, enfatizando o aspecto cognitivo do discurso.
importante esclarecer, desde agora, que o termo frame adotado seguindo dois
desdobramentos: i) como categoria analtica, na qual no remetemos a uma referncia
terica especfica, mas seguindo uma noo-base sobre frames: elementos cognitivos que
guiam a compreenso e a prpria interao social; ii) entretanto, tambm tratamos frame
como um conceito, mas sem aprofundar a discusso sobre as suas distintas linhas. Nesse
caso, usamos o frame como um contraponto para uma outra noo que apresentamos ao
longo do trabalho, a de reframing. Essa noo tambm utilizada como uma categoria
analtica. Ao investigar as variaes de enfoque na cobertura jornalstica sobre Eldorado
de Carajs, estamos investigando o contnuo processo de frame-reframing sobre o
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episdio e, conseqentemente, as atividades de categorizao e (des)legitimao do
massacre. Esses aspectos so desenvolvidos nos captulos 4 e 5.
A discusso terica sobre frame-reframing tem como base a proposta de Lakoff
(2004:xv), que situa frames como estruturas mentais que moldam a forma como vemos
o mundo. Neste sentido, frames so unidades conceituais. Em uma anlise da mdia, o
autor identifica que ocorrem vrias mudanas de cobertura sobre um mesmo tema, a
partir da re-conceitualizao, ou reframing. Na sua proposta, o processo de reframing
que propicia a mudana social, e isso ocorre a partir de um amplo esforo cognitivo dos
distintos grupos sociais para a mudana de modelos cognitivos. Esta discusso
aprofundada no terceiro captulo.
Tomamos como corpus ampliado de pesquisa todos os textos dos gneros
notcia, nota de opinio, artigo de opinio e reportagem publicados no jornal Folha
de S. Paulo (FSP), durante a primeira dcada de cobertura sobre Eldorado dos Carajs.
Primeiro preciso esclarecer a necessidade de delimitar a pesquisa em apenas um jornal
e, depois, justificar a escolha dos gneros textuais. A opo por um jornal se deve,
principalmente, ao objetivo desta investigao: buscamos uma anlise que d conta da
construo histrica de uma verso contada sobre o massacre dos sem-terra. Para isso,
precisamos de um corpus que no se caracterize pela diversidade de variveis
ideolgicas, mas de um material que possibilite uma pesquisa profunda sobre os
desdobramentos da histria. Tambm, devido ao vasto perodo analisado, percebemos
que possvel identificar a diversidade discursiva que poderia ser identificada na
anlise de outros jornais. Isso porque, ao longo dos dez anos, mudanas ocorreram na
direo da FSP, no quadro de reportagem e, conseqentemente, nos direcionamentos das
coberturas.
A opo pelo jornal Folha de S. Paulo foi feita a partir de dois critrios: 1) seu
alto ndice de circulao no pas, sendo o que melhor se caracteriza como um jornal
nacional impresso, da seu poder discursivo; 2) a FSP foi um dos poucos jornais que fez
a cobertura in loco sobre o massacre. A grande maioria utilizou-se de textos fornecidos
por agncias de notcias, inclusive sendo uma delas a prpria Folha. Fazem parte do
corpus ampliado de pesquisa todos os textos publicados durante os dez anos de cobertura
sobre Eldorado dos Carajs. A delimitao do corpus restrito, como em toda pesquisa,
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so de ordem subjetiva, pois estabelecida por critrios do pesquisador, no por algo que
est nos dados ou mesmo seja inerente a eles. Assim, os textos so selecionados a partir
das suas distintas caractersticas, o que proporciona debates mais diversificados sobre as
peculiaridades dos frames de cobertura. A delimitao tambm necessria devido ao
vasto nmero de textos que compem o corpus ampliado mais de trezentos. Por isso, a
seleo do corpus restrito uma tentativa de incluir nas anlises as distintas
caractersticas apresentadas em cada frame.
A partir da categorizao por frames, tambm possvel analisar o discurso da
imprensa no pelo aspecto quantitativo ou cronolgico da cobertura, mas sim pelo
desenvolvimento dos enquadres discursivos. Isso significa compreender que a atividade
jornalstica no uma reproduo de fatos, mas uma ao constitutiva desse tal fato. A
macro-categoria tambm serve para analisar as aes dos gneros textuais nos diferentes
frames.
A escolha dos gneros textuais se deve s suas distintas caractersticas de
organizao e estratgias argumentativas. Nos gneros notcia e reportagem,
possvel analisar o discurso da imprensa a partir do efeito de sentido da objetividade. J
no gnero nota de opinio e artigo de opinio, a estratgia argumentativa
diferenciada, pois se supe um texto jornalstico abertamente opinativo. Entretanto, em
nossas anlises, identificamos outras estratgias retricas de construo de sentido. No
artigo de opinio, por exemplo, uma das estratgias se d a partir de um efeito
opinativo, ou seja, o discurso do colunista deveria ser a sua opinio sobre o assunto
tratado. Entretanto, em vrios casos, ele est reverberando o discurso do poder, a partir de
elementos implcitos. O efeito de sentido : a opinio do jornal opera como uma ao
legitimadora do discurso das instituies do poder. Trazemos esse aspecto apenas para
exemplificar a diversidade de construes de sentido, nas diferentes aes dos gneros
textuais. Desenvolvemos essas questes nos captulos 4 e 5.
Analisamos o discurso da imprensa a partir de uma dinmica que busca identificar
os elementos cognitivos e lingstico-discursivos que operam no processo de interface
entre os macro-aspectos (contexto social) e o mundo textual. Assim, desenvolvemos
uma anlise que engloba elementos discursivo-cognitivos, textuais e semnticos. E, a
partir desses aspectos, observamos a macro-ao da imprensa na interferncia dos
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processos jurdicos, dos posicionamentos de governos e nas mobilizaes sociais, ou seja,
nos aspectos de ordem social e poltica. importante ressaltar que compreendemos esse
processo tambm em sentido contrrio, ou seja, os grupos sociais e polticos interferem
na construo do discurso da imprensa. E isso mais um ponto de investigao em
nossas anlises.
Outro aspecto relevante a ser esclarecido sobre nosso esquema de trabalho que
as categorias no so entendidas como unidades isoladas e estanques na construo do
discurso (des)legitimador. Pelo contrrio. Elas se inter-relacionam e operam
conjuntamente na elaborao textual. Especificar tais elementos mais uma necessidade
metodolgica, pois nos possibilita detalhar a natureza de cada uma delas. Tambm
importante ressaltar que a construo do texto est irremediavelmente atrelada aos
modelos de contexto, sendo que estes operam em distintos momentos da elaborao
textual, inclusive so anteriores fala ou escrita. No caso dos textos jornalsticos, isso
pode ser construdo nas entrevistas, nas leituras dos releases (textos informativos
fornecidos por assessorias de imprensa), nas conversas com outros jornalistas etc. Esses
elementos vo operar no momento em que o escritor elabora o seu prprio modelo para a
construo textual.
Observemos esses aspectos no esquema seguinte:
Frames de Cobertura
Unidades de Aes Legitimadoras
Representaes Sociais
Gneros Textuais
Tpicos Discursivos
Esquema 1: Dinmica da construo do texto jornalstico
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1.1 A Anlise Crtica do Discurso: preceitos bsicos do marco terico
Os pesquisadores da Anlise Crtica do Discurso (ACD) se alinham em um
projeto de estudo bsico: uma investigao discursiva no pode ser desenvolvida sem dar
conta de aspectos histricos, ideolgicos e de relaes de poder (Wodak, 2003). Outro
ponto convergente entre os analistas crticos do discurso a investigao da constituio
de fenmenos, e no apenas da sua interpretao ou explicao. Na ACD, desenvolvem-
se pesquisas que buscam caminhos mais heursticos que hermenuticos, ou como definiu
Wodak (2003:30): no se trata s de descrever, explicar, mas de arrancar a raiz do
problema. Assim, racismo, discriminao, marginalizao de grupos sociais so
estudados a partir de sua constituio discursiva, e no apenas como fenmenos
resultantes de estruturas sociais definidas. Podemos dizer tambm, com as palavras de
Marcuschi (2005b), que se trata de escutar o problema que se est investigando, de
dialogar com ele. E, a partir desse dilogo, entender as entranhas dos problemas e
agir, criticando e denunciando as formas de dominao e poder que tendem a ser
naturalizadas em sociedade; ser uma forma de resistncia criativa, pois, ao conceber o
poder e a dominao como fenmenos resultantes de complexas prticas sociais, entre
elas a discursiva, situa-se tambm no discurso as possibilidades de mudana ou de
acomodao. O projeto comum da ACD , fundamentalmente, uma postura
epistemolgica sobre o fazer cientfico, propondo a ruptura com uma srie de conceitos
que ainda esto estabilizados sob o paradigma da cincia moderna, tais como
objetividade e neutralidade (Santos, 2003; Kuhn, 1992), defendendo o engajamento da
prtica acadmica e a busca do dilogo com a sociedade para a construo do saber e para
a mudana social.
O desenvolvimento dos trabalhos da ACD, entretanto, persegue caminhos
distintos. As duas linhas tericas que trataremos mais aprofundadamente so as propostas
por N. Fairclough e T. van Dijk, no apenas pela relevncia dos trabalhos desses dois
autores, mas tambm pela possibilidade de explorarmos, a partir das suas propostas de
pesquisa, algumas questes epistemolgicas fundamentais na ACD4. No pretendemos
4 importante ressaltar que, ao delimitar esta discusso nos trabalhos de T. van Dijk e N. Fairclough, no estamos desconsiderando a importncia dos demais pesquisadores da Anlise Crtica do Discurso. A
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fazer um apanhado detalhado dessas abordagens, mas buscar os fundamentos das duas
perspectivas, a partir de alguns aspectos principais, entre eles o da relao discurso
sociedade, assim como os conceitos de ideologia, contexto, representao social e
modelos mentais. A opo por tal enfoque se deve, em primeiro lugar, por esses conceitos
serem definidores na distino das duas linhas de pesquisa e, em segundo, pela relevncia
dessas noes para a abordagem cognitiva que buscamos desenvolver neste trabalho.
Assumimos como base terica para esta investigao a linha sociocognitivista
desenvolvida por Teun van Dijk, dentro do marco terico da Anlise Crtica do Discurso.
De acordo com van Dijk (2006a, 2000a), uma anlise discursiva s dar conta das
complexas relaes entre prtica discursiva e prtica social se o aspecto scio-cognitivo
for tomado como uma interface entre essas duas prticas. Essas consideraes so
desenvolvidas no segundo captulo, no qual tratamos da Anlise Cognitiva do Discurso
(AD Cognitiva). No se trata de propor mais uma vertente para as vrias anlises do
discurso, nem mesmo algo que se ope ACD. A preocupao de van Dijk no
delimitar seu trabalho em uma linha fechada de investigao ou criar uma nova escola
para os estudos do discurso. Pelo contrrio: o autor ocupa-se em ampliar o quadro terico
da ACD, levantando problemas e questes tericas de natureza cognitiva, ainda deixadas
de lado por boa parte dos analistas crticos do discurso, mesmo que vrias pesquisas em
outras reas do conhecimento venham, cada vez mais, ressaltando a relao irremedivel
entre a cognio e as prticas lingsticas.
A prpria investigao emprica do discurso vem exigindo respostas que tm sido
ignoradas por muitos pesquisadores tais como os distintos processos de compreenso e
escrita de textos e o problema do contexto para a elaborao textual. Essa necessidade
resulta da prpria complexidade da prtica discursiva, que envolve performances
cognitivas e conhecimentos lingsticos de escritores/falantes socialmente situados, em
um contnuo processo histrico de formao. Essas questes so discutidas, no primeiro
captulo, em contraponto proposta da teoria sistmico-funcional que fundamenta a
maior parte dos estudos da ACD.
questo que, de acordo com as reflexes que propomos desenvolver neste captulo, esses autores apresentam marcos tericos fundadores distintos para a ACD.
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O terceiro captulo tem como objetivo desenvolver a nossa proposta para o estudo
do processo de (des)legitimao. fundamental para esta investigao situar a
(des)legitimao como uma atividade resultante das relaes sociais, norteada por
modelos cognitivos, sendo o discurso uma das prticas que (des)estabiliza tal processo.
Para dar sustentao a essa perspectiva, faz-se necessrio um apanhado de distintas
referncias tericas. Ao defendermos, primeiramente, que o discurso constitudo pela
trade sociedade-linguagem-cognio, e ao situarmos a (des)legitimao como um
processo resultante dessa constituio, necessitamos desenvolver uma abordagem
essencialmente interdisciplinar, estabelecendo um dilogo entre teorias sociais,
discursivas, lingsticas e cognitivas.
No que diz respeito ao aspecto cognitivista, de forma ampla, assumimos a
perspectiva sociocognitivista. Isso significa entender a cognio como uma propriedade
que se desenvolve para as (e nas) relaes sociais (Tomasello, 2003). Para o
desenvolvimento desta investigao, temos como norte alguns aspectos das teorias de
Lakoff (1987) quando defende a natureza corporificada da mente e de van Dijk
(2006a, 2006b), que situa a mente a partir da sua constituio discursiva. Na construo
do nosso quadro terico, tambm de extrema relevncia situar qual noo de lngua
fundamenta toda esta discusso: uma atividade humana para a organizao do mundo,
resultando em processos contnuos de categorizao (Marcuschi, 2007b, 2003a;
Mondada, 2000, 1997).
A teoria de Habermas (1996; 1999 [1973]) sobre legitimao o ponto de partida
para as nossas reflexes. Seguindo o autor, situamos a construo da (des)legitimao na
esfera pblica, nas aes do discurso, e no apenas como uma ao atrelada s
instituies do poder (Governos e Justia). A nossa investigao requer ainda uma teoria
social, ou uma forma de compreender a constituio da sociedade. Assumimos esse
processo a partir da proposta de Giddens (2003), pela afinidade com a perspectiva aqui
assumida sobre prticas lingsticas e performances cognitivas: fenmenos que se
constituem em um contnuo processo de estruturao, em uma relao de estabilidade-
instabilidade, resultante da ao de sujeitos reflexivos.
No quarto captulo apresentamos as categorias tericas, as justificativas para a
composio de tal quadro terico-analtico, e como tais categorias operam na construo
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discursiva do fenmeno da (des)legitimao. O quinto captulo destinado s anlises
sistemticas dos textos jornalsticos, a partir da macro-categoria frames de cobertura. Os
objetivos dessas anlises so identificar os elementos discursivo-cognitivos e lingsticos
que operam na interface discurso sociedade e, a partir da, investigar o processo de
(des)legitimao do massacre de Eldorado dos Carajs.
O objetivo do quinto captulo apresentar uma anlise global das anlises
desenvolvidas nos frames, sistematizando as consideraes, e, assim, apresentar
propostas interpretativas sobre o fenmeno investigado, a partir do discurso jornalstico.
O sexto captulo traz consideraes finais deste trabalho, bem como reflexes sobre a
(des)legitimao e perspectivas para os estudos discursivos.
1.2 17 de abril de 1996: massacre x legtima defesa
Para compreender os problemas tericos levantados, faz-se necessrio
contextualizar o caso em estudo: o massacre de Eldorado dos Carajs. No dia 17 de Abril
de 1996, pelo menos trs mil trabalhadores sem-terra participaram de uma manifestao,
ocupando uma rodovia no Par. Eles reivindicavam a desapropriao de um latifndio
improdutivo onde o MST montou o Acampamento Macaxeira. A reao do Governo
do Estado foi imediata, mas no em busca da negociao. O ento governador do Par,
Almir Gabriel (PSDB), deu a ordem para a Polcia Militar desmobilizar o protesto e
liberar a rodovia. 155 policiais irregularmente armados de acordo com o relatrio do
Ministrio Pblico foram acionados para cumprir a ordem. Resultado: pelo menos 19
integrantes do MST foram assassinados e nenhum policial ficou gravemente ferido.
Nesses dez anos, trs julgamentos foram realizados, com vrias irregularidades jurdicas.
Foram condenados apenas os dois comandantes responsveis pela operao: o coronel
Mrio Pantoja e o major Oliveira. Nenhum policial foi condenado. Em outubro de 2005,
o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu habeas corpus para os dois comandantes,
que esto atualmente em liberdade. O dia 17 de abril foi declarado pela Via Campesina
como Dia Internacional da Luta Camponesa. No Brasil, desde 2002 passou a ser
oficialmente o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrria.
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As categorizaes massacre x legtima defesa do conta das duas verses
predominantes sobre as mortes em Eldorado de Carajs. Os discursos dos Governos
Federal, Estadual e da Polcia Militar (PM) seguem a mesma linha argumentativa: os
sem-terra so os culpados pelas prprias mortes, pois estas resultaram de uma ao
necessria e em legtima defesa dos policiais militares para conter a manifestao e as
agresses do MST. No discurso dos sem-terra, houve um massacre de trabalhadores
rurais. Segundo o MST, a ao da PM foi premeditada e as mortes de alguns sem-terra
planejadas entre os assassinados durante o massacre, muitos eram lderes do
movimento. Na verso do MST, a agresso foi iniciada pela polcia. Nosso objetivo,
analisar o tratamento da mdia diante dessas duas categorizaes e investigar as
estratgias de (des)legitimao desses discursos.
1.3 Jornalismo e Movimentos Sociais: poder e contra-poder na luta pela (des)legitimao
Nesta investigao tratamos basicamente de duas foras sociais. Uma que se
estabelece em relao de sustentao com as foras do status quo: o Jornalismo; outra
que, em seus fundamentos, se posiciona contrariamente a tais foras, historicamente em
situao de conflito com o poder: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Entretanto, nesta pesquisa eles esto colocados em relao de interao, para fins
de nossos estudos. Da a necessidade de tratarmos das suas especificidades, ainda que no
de forma aprofundada, pois isso iria requerer um trabalho de natureza Sociolgica, o que
no nosso objetivo. Situamos apenas as caractersticas dessas duas distintas prticas
sociais para, assim, melhor entender como se estabelecem as suas foras e as suas
relaes em sociedade.
Primeiro tratemos do Jornalismo. Entendemos que sua caracterstica bsica ser
um domnio articulador dos discursos dos demais domnios e grupos sociais. Sendo que,
ao articular esses discursos, o jornalismo os re-elabora e constri o seu prprio discurso,
operando fortemente na construo das verses de mundo. Seguimos as consideraes
de Hallloran et al (1970). De acordo com os autores, de extrema relevncia a
investigao deste domnio. Entretanto, os jornalistas tm uma postura pouco
colaborativa quando se trata de tal investigao e resistem em refletir sobre as crticas
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trazidas por outras reas do conhecimento Lingstica, Sociologia, Histria, Cincia
Poltica etc. Para Halloran et al (1970), devido s condies de suas prticas cotidianas,
os jornalistas esto em envolvimento e identificao com o status quo, por isso eles
consideram que no vale a pena perder tempo, esforo e dinheiro para identificar o
bvio. Os jornalistas no se do conta de que, para a maioria das pessoas, a forma como
as noticias so selecionadas e apresentadas so tudo menos o bvio, e que vrias
explicaes deveriam ser dadas sobre essa prtica. Tampouco eles aceitam o fato de que
seus prprios conhecimentos e compreenso sobre a produo da notcia podem no ser
completos. O fato de o jornalismo ser um domnio que critica a todos os outros, mas no
se deixa criticar, j que controla os discursos que circulam nos veculos de comunicao,
coloca-o em situao privilegiada em relao s demais instituies, mesmo as que fazem
parte do poder.
Para Habermas (2002:218), a estruturao como empresas, e, portanto, com
interesse comercial, fez com que os meios de comunicao se tornassem prtico de
entrada de privilegiados interesses privados na esfera pblica. Ao invs de dar
publicidade s questes que efetivamente teriam interesse pblico para que pudessem ser
trazidas e submetidas a um debate racional, a imprensa passa a dar publicidade posio
de alguns grupos (os patrocinadores), que, assim, buscam criar um clima de opinio, o
que qualificado pelo autor como manipulao.
Na via contrria dessas relaes de fora esto os movimentos sociais (MS): so
organizaes no-formais, com amplo envolvimento dos seus integrantes, agindo
sistematicamente contra o abuso de poder e a desigualdade social e reivindicando
mudana poltica. So movimentos ideologicamente orientados e esto envolvidos com a
solidariedade e o compartilhamento de crenas entre os participantes (Oberschall, 1993).
Segundo Della Porta & Diani (1999), a identidade coletiva um aspecto crucial para a
caracterizao dos movimentos sociais. No so colises, pois estas tm carter
especfico e no envolvem compartilhamento de identidades
Dessa definio, chegamos ao que caracteriza o MST. Trata-se de um movimento
social, e no de um grupo, como tende a ser tratado pela mdia. E nisso reside uma
diferena conceitual: grupos (ou comportamentos coletivos) no so organizados
ideologicamente e suas aes tm objetivos bastante especficos e situados, tais como
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movimentos de bairro, protestos contra violncia, reivindicaes de infra-estrutura para a
cidade. Ou seja, os grupos se organizam para manifestaes coletivas de cidados,
exercendo seus direitos constitucionais, reivindicando algo. No so freqentes e usuais.
J os movimentos sociais so em larga-escala, coletivamente financiados para promover a
resistncia ou a mudana de questes que afetam a vida de muitos. So construes
histricas da articulao de atores sociais em situao de excluso ou discriminao
social (movimento feminista, movimentos tnicos etc.).
Assim, podemos resumir, a partir de Della Porta & Diani (1999), o que define, em
essncia, a diferena entre os movimentos sociais e os comportamentos coletivos, ou
grupos. Apesar de serem formas de aes coletivas, eles so de naturezas distintas: os
comportamentos coletivos resultam de interaes. No so a soma de vrias aes
individuais, mas sim o produto de interaes, percepes mtuas e expectativas
chamadas interaes estratgicas; j os movimentos sociais surgem como uma reao
para a mudana ou para uma poltica que negativamente afeta os interesses e a forma de
vida de muitas pessoas.
Aps essas delimitaes entre as prticas do Jornalismo e dos movimentos
sociais, parece-nos relevante o estudo da estereotipizao dos MS, a partir do caso
especfico do MST, e da ao da imprensa nesse processo. Entendemos, entretanto, que
distintos grupos da elite agem na deslegitimao das lutas e das reivindicaes desses
movimentos, que no s o jornalstico. Dessa relao, talvez seja possvel explicar porque
o discurso desses grupos preferencialmente legitimado pelo Jornalismo, enquanto que
os integrantes do MST esto em constante luta pela legitimao dos seus discursos.
Em sua trajetria de luta, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) surge da reunio de vrios movimentos populares de luta pela terra e vem
reivindicando reforma agrria no Brasil desde janeiro de 1984, quando define a
necessidade de ocupao como uma ferramenta legtima de luta. A partir da Constituinte
de 1988, os sem-terra reafirmam sua autonomia, definem seus smbolos, bandeira e hino.
Com esse aparato simblico, o movimento passa a ter mais insero social,
principalmente aps o II Congresso do MST, em Braslia, que resulta da expanso do
movimento nacionalmente. Aps o massacre de Eldorado de Carajs, a sociedade se
mobiliza ainda a favor do MST. Essa movimentao no passa desapercebida e resulta,
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conforme analisamos no nosso corpus, em uma resposta sintomtica da elite brasileira em
um processo de criminalizao do movimento. A imprensa, como uma das instituies da
elite, opera fortemente nesse processo, a partir de uma cobertura estereotipada e
preconceituosa (ver captulo 5).
Por fim, importante enfatizar algumas questes de ordem terica e poltica que
norteiam esta investigao. Ao defendermos que, em grande parte, pelo discurso que
crenas e atitudes se estabelecem em sociedade, a anlise do discurso pode servir como
uma desconstruo do que se tem como estabelecido. Analisar discursos desfazer a
realidade e propor um mundo constitudo por realidades distintas, sendo essas realidades
socialmente construdas e historicamente estabelecidas. Um mundo que construmos pela
fora da palavra. Analisar discursos prescindir do conforto de um lugar estabilizado,
dado, concreto e assumir o trabalho cotidiano da (re)inveno, assumir a fluidez, o risco e
a responsabilidade por esse mundo. Assumir a nossa condio de sujeitos reflexivos
(Giddens, 2003), de agentes crticos. Analisar discurso uma forma de trazer para o
campo do social o que tende a ser naturalizado. mostrar que verdades so crenas. E
que estas so construdas em relaes de foras e, assim, desnaturalizar poderes. Com
essa conscincia, fazemos desta investigao um ato de solidariedade com os que so
sistematicamente excludos do processo de construo social.
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2. A Anlise Cognitiva do Discurso
A proposta de uma Anlise Cognitiva do Discurso (AD Cognitiva) tem um
princpio fundamental: a cognio opera na interface da relao entre discurso e
sociedade (van Dijk, 2006a, 2006b, 2000a). O objetivo deste captulo desenvolver as
questes tericas que envolvem essa abordagem, assim como situar os aspectos
fundamentais que distinguem esse projeto dos que vm sendo desenvolvidos dentro da
Anlise Crtica do Discurso (ACD), como o proposto por N. Fairclough (2001, 1995,
1992), com base no modelo da Lingstica Sistmico-Funcional (LSF). importante
ressaltar, desde o incio, que a proposta de uma AD Cognitiva no resulta simplesmente
de uma articulao entre as teorias discursivas e cognitivas, nem tampouco se trata de
uma abordagem psicolgica do discurso. Mas antes, consiste em uma mudana de
perspectiva acerca da natureza de como se percebe a relao discurso sociedade. No
h consenso entre os tericos sobre esse processo de intermediao, pois se em algumas
linhas de pesquisa o discurso entendido como o elemento mediador entre texto e prtica
social (Fairclough 2001b); em outras, como na perspectiva cognitivista, a intermediao
compreendida a partir de uma interface cognitiva. A relevncia de discutir os aspectos
tericos da LSF deve-se forte influncia desse modelo no desenvolvimento dos estudos
discursivos da ACD.
No tratamos aqui de toda a complexidade das questes que envolvem a
lingstica sistmico-funcional, que j vem sendo aplicada h mais de 30 anos, ou mesmo
esgotamos a diversidade e a vastido tericas que hoje compem o quadro das cincias
cognitivas. Vrios trabalhos j foram realizados com esses propsitos (Gardner, [1985]
1995; Eggins, 1994; Kress, 1976). A nossa preocupao consiste em tratar de aspectos
especficos que servem para o desenvolvimento desta investigao. Pois, ao situarmos
que o processo de (des)legitimao se estabelece a partir de estruturas conceituais
complexas sendo estas estruturas elaboraes cognitivas que emergem das distintas
prticas pblicas, e constituem essas prticas , necessitamos de uma anlise discursiva
que leve em conta aspectos sociocognitivos.
A base para as reflexes aqui apresentadas so os trabalhos de T. van Dijk, mais
especificamente quando tratamos da AD cognitiva e das crticas LSF na linha de
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Halliday (1978) e, de forma mais ampla, os estudos desenvolvidos a partir do que se
estabeleceu como o compromisso cognitivista, de natureza essencialmente
sociocognitivista, tal qual proposto por Tomasello (2003), bem como os trabalhos de
Lakoff & Johnson (1999) e de Lakoff (2004, 1990). Essas referncias, apresentadas de
forma introdutria, compem o marco terico deste captulo. importante, contudo,
ressaltar uma questo. Decidimos desenvolver mais detalhadamente inclusive a partir
das suas bases epistemolgicas a proposta de Fairclough. Isso se justifica por dois
aspectos: i) buscamos uma discusso sobre a obra desse autor que, at agora, no
encontramos nos estudos da ACD. Ou seja, as pesquisas, em geral, tomam como
fundamento a proposta de Fairclough, mas no h reflexes crticas sobre tal proposta; ii)
em diferentes aspectos, todos os demais captulos tratam da base terico-analtica deste
trabalho: a linha de pesquisa desenvolvida por van Dijk. Por isso, o enfoque da discusso
sobre a obra de Fairclough neste captulo. Inclusive, nas prprias consideraes sobre a
teoria de Fairclough, j so apresentados alguns contrapontos a partir da perspectiva de
van Dijk como na discusso sobre a noo de contexto, por exemplo.
Assim, a discusso sobre Fairclough est desenvolvida em tpicos, de forma
pontual. J a teoria de van Dijk permeia todo este trabalho, como tambm constitui nosso
olhar sobre os textos analisados. Por isso, torna-se redundante nos determos mais
longamente em itens. Assim, desenvolvemos, neste captulo, noes especficas tais
como contexto, ideologia e representaes mentais pelo seu diferencial em relao s
noes clssicas. Como contribuio e posicionamento crtico acerca do trabalho de van
Dijk, propomos uma discusso sobre a importncia da abordagem dos gneros textuais
como um dos elementos da interface cognitiva. Tal perspectiva se diferencia da proposta
do autor, que situa os gneros como elementos da organizao textual. Tambm
articulamos esta discusso com outras referncias tericas, o que nos ajuda a aprofundar a
investigao do fenmeno da legitimao discursiva.
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2.1 O Tridimensionalismo de Fairclough e a Trade de van Dijk: a mediao discursiva e
a cognio na Anlise Crtica do Discurso
Fairclough (2001a, 1995, 1992) entende que a ao discursiva na construo dos
significados do mundo d-se a partir de uma relao dialtica entre o social e o simblico,
entre os indivduos organizados em grupos (sociedades) e os smbolos organizados em
significados ideolgicos (linguagens). Para Fairclough (2001a), essa relao se constitui e
constituda (como um caminho de via dupla) tridimensionalmente pelo texto, pela
prtica discursiva e pela prtica social (ver figura 1). Fairclough (2001a, 1995, 1992)
desenvolveu seu modelo influenciado pela perspectiva sistmico-funcionalista de
Halliday, articulado ao conceito foucaultiano de ordens do discurso e, embora sem
aprofundar sistematicamente, com uma base marxista. No que diz respeito s
consideraes que pretendemos aqui desenvolver, o objetivo aprofundar o debate sobre
a influncia da LSF na proposta de Fairclough, especificamente quando se trata do
aspecto sociocognitivo, j que para Halliday (1978) o que existe uma externalidade
absoluta, sendo o social colocado em relao dicotmica com o mental. Essa questo
relevante para discutir o conceito de representaes sociais em Fairclough, j que estas
no so entendidas pelo autor como elaboraes cognitivas. importante ressaltar, desde
agora, que no se trata de criticar Fairclough por no desenvolver uma anlise cognitiva
do discurso, o que, de fato, no sua proposta de trabalho, mas sim por desconsiderar a
dimenso cognitiva da prtica discursiva.
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Outro aspecto que buscamos discutir a influncia da teoria clssica marxista na
obra de Fairclough. De acordo com a perspectiva marxista, a ideologia est atrelada
classe dominante e serve imobilidade social, opresso. Lngua e ideologia fazem parte
da superestrutura social e no esto em relao recproca com a infra-estrutura, pois
ambas so categorias rgidas, de difcil mobilidade. Sobre essa questo, tomamos como
fundamento principal as crticas propostas por Bakhtin (2002 [1979]), desenvolvidas no
item 2.2. Parece-nos relevante discutir esses aspectos no trabalho de Fairclough, pois o
autor tem como proposta fundamental a noo de discurso como mudana social
(Fairclough, 2001a), o que pode apontar possveis contradies nos fundamentos
epistemolgicos dessa proposta.
Van Dijk (2006a, 2006b, 2000a) prope uma linha scio-cognitivista na Anlise
Crtica do Discurso, com base na trade discurso, cognio e sociedade. Para o autor,
impensvel uma teorizao social sem os aspectos cognitivos, assim como uma teoria
cognitiva sem uma teoria social. Van Dijk (2006a) defende que uma anlise cognitiva
no exclui uma anlise social, pois sociedade e cognio esto em relao constitutiva.
Essa compreenso pressupe dois conceitos fundamentais: i) a cognio uma
propriedade desenvolvida individual e socialmente, pois adquirida, aprendida, formada
e transformada tanto em processos de interaes sociais, como em processos individuais
Prtica social
Prtica Discursiva (produo, distribuio, consumo)
Texto
Figura 1: Concepo tridimensional do discurso (Fairclough, 2001:101).
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de percepo, inferenciao etc.; ii) a sociedade uma construo humana e resulta de
interaes coordenadas e negociadas entre atores sociais. Essas interaes s podem ser
realizadas a partir de crenas, conhecimentos, normas e valores compartilhados. Isso
requer atores cognitivos, capazes de desenvolver tais elaboraes (sobre si mesmos) e
atribu-las aos outros (outros grupos sociais). Se essas elaboraes so de natureza
cognitiva, sua funo, entretanto, de ordem social: elas possibilitam a interao. Isso
quer dizer que interagimos porque compartilhamos os mesmos sistemas de crenas, que
so os nossos conhecimentos. E esses conhecimentos no so totalmente sociais, j que
alguns esto relacionados s nossas experincias individuais e biogrficas, mesmo que
esse processo de construo seja intrinsecamente social. Desses conceitos, podemos
chegar a um outro: a noo de sujeito ator social em van Dijk. Mesmo que essa noo
no seja desenvolvida em sua obra, como se ocuparam autores da linha francesa da AD,
ela no ignorada. que o ator social se constitui na relao intrnseca entre a sociedade,
a cognio e a prtica social (entre ela, a prtica discursiva). Dessa forma, podemos falar
de uma noo de sujeito cognitivo: um agente reflexivo, crtico, que se forma (e
formado) nas interaes sociais.
Assim, passamos a tratar mais especificamente do que van Dijk (2006b) denomina
como interface: por um lado, os atores implicados no discurso no usam exclusivamente
suas experincias e estratgias individuais; por outro lado, os discursos no so formados
em uma externalidade absoluta denominada social, mas so construdos a partir de
marcos coletivos de percepo o que o estudioso define como representaes sociais.
Essas percepes socialmente compartilhadas constituem o vnculo entre o sistema social
e o sistema cognitivo individual, coordenando as exigncias externas das aes
interativas com a experincia subjetiva. disso que trata a relao constitutiva: uma
compreenso de cognio e de discurso como propriedades de natureza social, que se
formam a partir de elaboraes de atores cognitivos, crticos e reflexivos. Desse modo,
faz-se necessria uma AD que opere a partir dessa compreenso e, assim, possa dar conta
de vrios aspectos das estruturas discursivas que uma perspectiva no-cognitivista no
consegue (por exemplo, a construo de textos distintos partindo de um mesmo tema, as
distintas inferncias que leitores/ouvintes realizam no processo de compreenso de um
texto etc.).
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COGNIO SOCIAL
Interpretao Atitudes Ideologia
DISCURSO ---------------------------- SOCIEDADE
Figura 2: A Trade da Anlise Cognitiva do Discurso
Pela proposta de van Dijk (2000b), os trs vrtices desse tringulo (figura 2) esto
vinculados, por isso no possvel dar conta dos aspectos cognitivos sem compreender
que os conhecimentos e crenas so adquiridos e repassados discursivamente, em
contextos sociais. Segundo o autor, qualquer tentativa de excluir uma das partes da figura
resulta em uma anlise reducionista, pois esses trs elementos no so independentes.
Trata-se de uma perspectiva terica que busca, primeiramente, superar a
dicotomia externo x interno, como tambm desenvolver uma anlise discursiva que no
estabelea o social como a causa para todas as coisas, em uma relao determinstica.
Se estamos sob um paradigma de cincia em que no cabe mais um subjetivismo
absoluto, tambm h uma tentativa de superao do enfoque totalmente externalista das
ditas teorias sociais e funcionalistas. Como definiu Sanders (2005), trata-se de buscar
perspectivas alternativas para as teorias neo-behavioristas, que pressupem uma total
externalidade no fundamento do comportamento humano, e s analisam esse
comportamento como ocorrncias com base institucional/social5.
5 Para Sanders (2005), a proposta de Goffman (1967) tem sido a base fundamental para essas teorias neo-behavioristas.
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2.2 A Formao do Quadro Terico de Norman Fairclough: os fundamentos
epistemolgicos da Lingstica Sistmico-Funcional e a Teoria Crtica
O trabalho de Fairclough (2001a, 1995, 1992), como j discutimos anteriormente,
desenvolvido a partir de articulao do conceito de discurso foucaultiano, com o
modelo sistmico-funcional da escola de Halliday, assim como estudos sociolgicos,
principalmente os desenvolvidos na tradio da Teoria Crtica da Escola de Frankfurt.
Podemos afirmar que Fairclough adota uma postura dialtica na construo do seu
prprio quadro terico, ao articular distintas perspectivas inclusive agregando
diferentes vertentes das ADs. Essa postura de Fairclough, alm de ser dotada de um
senso mais colaborativo na construo do conhecimento, resulta em uma linha de
investigao com mais possibilidades de proposies, tendo em vista que a sua
preocupao principal no , necessariamente, a ruptura com teorias estabelecidas.
Diferentemente do incio dos estudos discursivos, nos quais a construo das propostas
tericas se deu a partir de rupturas com conceitos predominantes na Lingstica, ou
mesmo com investigaes desenvolvidas em outras reas, como a Sociologia e a sua
anlise de contedo (Possenti, 2004).
Para se inserir como uma linha de pesquisa, a Anlise do Discurso precisou
romper com noes estabelecidas na Lingstica sobre lngua, sujeito, texto e, assim,
propor a necessidade de articular os estudos do discurso com abordagens histricas,
sociais e psicanalticas. Em suma, a AD tinha esta proposta: uma lngua polissmica e
opaca, com caractersticas ainda mais notveis em textos: a de um autor que dizia sempre
mais, menos ou outra coisa em relao ao que queria dizer (em virtude dos efeitos da
ideologia, do inconsciente); e a das condies de produo com ingredientes
contraditrios (Possenti, 2004). Essa movimentao de ruptura, contudo, deve ser
entendida em uma perspectiva histrica. O incio do movimento da Lingstica para os
estudos discursivos iniciou na dcada de 1970, com a proposta de uma lingstica
crtica, desenvolvida por um grupo de estudiosos na Gr-Bretenha (Fowler et al, 1979).
Assim, se passou a articular os estudos lingsticos a elementos das teorias sobre
ideologia; aos estudos funcionalistas de Halliday (1978) e Halliday & Hasan (1989), no
quais a lngua entendida como uma potencialidade para significar, no como um
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sistema de regras; e noo de sujeito, construda a partir de forte influncia da
Psicanlise, a partir das discusses sobre o inconsciente e, afastando-se assim, da
concepo do sujeito autnomo proposta pelos primeiros estudos da Pragmtica. Foi
nesse quadro que se iniciaram as ramificaes nos estudos do discurso e as rupturas as
quais se refere Possenti (2004). Trouxemos essas breves consideraes sobre os estudos
discursivos e a Lingstica para situar melhor o surgimento da ACD, de forma geral, e,
especificamente, a discusso que estamos propondo sobre a obra de Fairclough.
A ACD, mesmo com forte influncia da lingstica crtica, s sistematiza suas
propostas em meados da dcada de 1980, quando a Lingstica j se inspirava em outros
pressupostos tericos, e assim as noes estruturalistas no eram mais o paradigma, pelo
menos no que se refere aos estudos textuais, e, principalmente, s concepes de lngua e
de sujeito. Da a possibilidade de construir um quadro terico articulando vrias
concepes vindas da prpria Lingstica, da Sociologia e das teorias sobre ideologia
e, assim, ao invs de promover rupturas, propor caminhos diferenciados para os estudos
que j estavam sendo desenvolvidos. A busca dos tericos da ACD era por um equilbrio
entre os enfoques demasiadamente lingsticos, como no trabalho de Zellig Harris, e os
que davam grande nfase aos estudos ideolgicos, como em Althusser (apud Fairclough,
2001a), sem grandes preocupaes com o estudo do texto. A busca por um quadro terico
no qual questes de ordem lingstica, discursiva, social, histrica e ideolgica tivessem
no s a mesma nfase, mas fossem trabalhados de forma articulada, foi a motivao para
o desenvolvimento do que veio a se estabelecer como a Anlise Crtica do Discurso.
Segundo Fairclough (2001a), havia um outro ponto tambm crucial para esse
empreendimento: as duas principais linhas que se formaram na Anlise do Discurso
(denominadas: anglo-saxnica e francesa) tinham uma viso esttica de sociedade, com
nfase exagerada no papel desempenhado pelo amoldamento ideolgico dos textos
lingsticos na reproduo das relaes de poder existentes (Fairclough, 2001a:20). Para
a ACD, a importncia da anlise discursiva deve ser a investigao (como um mtodo) da
mudana social e a reivindicao dessa mudana.
A formao do quadro terico da ACD tem uma forte influncia dos estudos de
Foucault, assim como aconteceu com boa parte das Cincias Sociais. O conceito de
discurso se popularizou e passou a fazer parte do norte investigativo dos trabalhos
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desenvolvidos na rea das humanidades por causa dos estudos foucaultianos. Sua
contribuio na teoria social do discurso est relacionada a questes tais como discurso e
poder; a construo discursiva de sujeitos sociais e do conhecimento; e do funcionamento
do discurso na mudana social (Fairclough, 2001a). Se essas so questes fundadoras na
ACD e trazem a acepo sociolgica para os estudos discursivos, elas no contemplam o
projeto de estudo almejado por Fairclough (2001a) e outros tericos da ACD. Para
Fairclough (2001a), faltava proposta foucaultiana uma perspectiva de anlise textual, o
que o autor definiu como uma abordagem abstrata do discurso. Da o autor seguir a
proposta de Courtine (apud Fairclough, 2001a:62): pr a perspectiva de Foucault para
funcionar. Isso implica uma base terico-metodolgica que leve em conta no s os
aspectos sociais (ideologia, sociedade), mas tambm o modo como tais aspectos
encontram-se manifestos em um texto e como podem ser analisados a partir das escolhas
lingsticas, sejam estas de ordem sinttica ou semntica. Tomando por base essa busca
por uma funcionalidade na teoria sociolgica do discurso, Fairclough (2001a, 1989)
fundamenta sua proposta na linha hallidayana. Alguns conceitos da LSF e um breve
histrico so fundamentais para o entendimento dessa relao.
Ao desenvolver alguns aspectos da sua proposta sistmico-funcionalista, Halliday
(1978) parte de duas principais influncias: o lingista (e seu professor) JR. Firth e o
antroplogo B. Malinowski, sendo este ltimo a base dos dois lingistas para tratar sobre
contexto em suas teorias. A histria sobre os fundamentos e o desenvolvimento da LSF j
foi bastante contada (Eggins, 1994; Kress, 1976), no sendo nosso objetivo recont-la
aqui. O ponto que gostaramos de discutir diz respeito ao que Halliday estipulou, em
linhas gerais, como a sua delimitao terica. Assim, as reflexes ora desenvolvidas so
de ordem epistemolgica, centrada em conceitos fundadores, no fazendo parte deste
trabalho se deter na gramtica sistmico-funcionalista proposta por Halliday e seus
seguidores. Kress (1976) e Miguel (1998), em seus trabalhos sobre a histria da LSF,
apontam que Halliday assume uma postura radicalmente social, como um dos seus
princpios fundadores. Essa postura, em parte, uma tentativa de balancear os estudos da
poca, desenvolvidos sob forte influncia do modelo mentalista de Noam Chomsky. Para
se opor ao mentalismo, Halliday prefere deixar em segundo plano a investigao da
mente, ou mesmo das propriedades cognitivas do indivduo, optando por uma teoria que
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d conta apenas do observvel. Segundo o autor, a lngua parte de um sistema social,
e no h necessidade de se interpor um nvel psicolgico de interpretao (Halliday,
1978:39). sob esse preceito que Halliday situa a Lingstica como uma espcie de
subdisciplina da Sociologia e da Semitica (Halliday & Hasan, 1989), sem aceitar a
relevncia da Psicologia nos estudos lingsticos.
importante trazer para esta discusso o contexto histrico que tratamos: no
perodo em que emerge o modelo terico sistmico-funcionalista (dcada de 1970), o
grande embate era travado entre mentalistas e behavioristas. Nesse cenrio, as
exposies de Chomsky (Gardner, [198