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61 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 61-74 NOV. 2001 RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 17, p. 61-74, nov. 2001 DEMOCRACIA, TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO: PRECISÕES SOBRE CONCEITOS BESTIALIZADOS 1 Este artigo avalia criticamente as teses da construção democrática enunciadas nestas últimas décadas, enfatizando particularmente a “transitologia” e a “consolidologia”. Essas disciplinas, surgidas nos anos 1970 a 1990, propõem-se a estudar os processos de saída dos regimes autoritários, adotando um modelo de democracia calcado nas experiências dos países de democracias antigas, particularmente os europeus e os Estados Unidos. Esse modelo é tomado como ideal e a partir dele julgam-se, de modo absoluto, todos os demais processos de “transição democrática”. Sustentamos que o estatuto científico dessas disciplinas é bastante discutível, devido à sua baixa capacidade explicativa e preditiva. Elas baseiam-se em modelos excessivamente abstratos e formalistas – como a teoria dos jogos, com seu “eleitor racional” –, que desconsideram os fatores sócio-econômico-culturais em favor de esquemas juridicistas e estritamente politicistas. PALAVRAS-CHAVE: democracia; transição política; consolidação democrática; instituições políticas; com- portamento eleitoral; economia. Stéphane Monclaire Universidade de Paris I - Sorbonne I. INTRODUÇÃO Até a Guerra Fria, o essencial da problemática da passagem para a democracia tinha-se resumido ao “Por quê?”. A esse velho debate (que continua ainda hoje), permeado de normativismo, de finalis- mo e de funcionalismo, superpôs-se, desde os anos 50, uma discussão também muito inflamada sobre o “Por quê agora?”. Esses deslocamento e enriquecimento da interrogação inicial provocaram outras perguntas. Pois perguntar “Por quê neste momento e não antes ou depois?” é perguntar quais são os fatores propícios à passagem à democracia – questão lancinante do discurso intelectual do fim do século XX. Diversos autores (que sem dúvida esperavam pelo planeta inteiro uma era democrática) quise- ram indagar “quais condições tornam a democra- cia possível e quais condições fazem-na funcio- nar” (RUSTOW, 1970, p. 6). De tanto listá-las e revisar essa lista, eles contribuíram para forjar uma tradição teórica “condicionalista”. Assim, o nível do desenvolvimento econômico (Seymour Martin Lipset e seus discípulos), as formas da estrutura social (notadamente Barrington Moore Jr.) e o tipo de cultura dominante (Pye, Verba, etc.), foram considerados como pré-requisitos da passagem à democracia. Mas em razão de econo- micismo, historicismo e culturalismo, o valor expli- cativo e preditivo dessas análises era fraco. Os sucessivos desmentidos que a história infli- gia às teses condicionalistas, combinados à expan- são da teoria do individualismo metodológico nas ciências sociais, engendraram nos anos 1980 uma corrente probabilista: a transitologia, qualificada por seus pioneiros de “ciência ou arte da democra- tização” (SCHMITTER, 1993, p. 5). Para os transi- tólogos, geralmente muito inspirados pela definição quase minimalista, não glorificante e schumpe- teriana da democracia, esta é o regime que oferece a possibilidade de remover (pelas urnas, logo paci- ficamente) os dirigentes 2 . A democracia é o regi- 1 Este trabalho foi originalmente apresentado na mesa-re- donda Consolidação da democracia: enfoques teóricos e processos político-institucionais, realizada durante o Seminário Interna- cional de Ciência Política: Política desde el Sur, entre 3 e 5 de outubro de 2001 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento foi organizado com o patrocínio do Departamento de Ciência Política da UFRGS, do seu Pro- grama de Pós-Graduação em Ciência Política e da Associa- ção das Universidades do Grupo de Montevidéu. 2 “A democracia é um método político”, escreve Schumpeter. Ele faz dela “um tipo de organização institucional [...]

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 61-74 NOV. 2001

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 17, p. 61-74, nov. 2001

DEMOCRACIA, TRANSIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO:PRECISÕES SOBRE CONCEITOS BESTIALIZADOS1

Este artigo avalia criticamente as teses da construção democrática enunciadas nestas últimas décadas,enfatizando particularmente a “transitologia” e a “consolidologia”. Essas disciplinas, surgidas nos anos1970 a 1990, propõem-se a estudar os processos de saída dos regimes autoritários, adotando um modelo dedemocracia calcado nas experiências dos países de democracias antigas, particularmente os europeus e osEstados Unidos. Esse modelo é tomado como ideal e a partir dele julgam-se, de modo absoluto, todos osdemais processos de “transição democrática”. Sustentamos que o estatuto científico dessas disciplinas ébastante discutível, devido à sua baixa capacidade explicativa e preditiva. Elas baseiam-se em modelosexcessivamente abstratos e formalistas – como a teoria dos jogos, com seu “eleitor racional” –, quedesconsideram os fatores sócio-econômico-culturais em favor de esquemas juridicistas e estritamentepoliticistas.

PALAVRAS-CHAVE: democracia; transição política; consolidação democrática; instituições políticas; com-portamento eleitoral; economia.

Stéphane MonclaireUniversidade de Paris I - Sorbonne

I. INTRODUÇÃO

Até a Guerra Fria, o essencial da problemáticada passagem para a democracia tinha-se resumidoao “Por quê?”. A esse velho debate (que continuaainda hoje), permeado de normativismo, de finalis-mo e de funcionalismo, superpôs-se, desde osanos 50, uma discussão também muito inflamadasobre o “Por quê agora?”. Esses deslocamento eenriquecimento da interrogação inicial provocaramoutras perguntas. Pois perguntar “Por quê nestemomento e não antes ou depois?” é perguntar quaissão os fatores propícios à passagem à democracia– questão lancinante do discurso intelectual do fimdo século XX.

Diversos autores (que sem dúvida esperavampelo planeta inteiro uma era democrática) quise-ram indagar “quais condições tornam a democra-

cia possível e quais condições fazem-na funcio-nar” (RUSTOW, 1970, p. 6). De tanto listá-las erevisar essa lista, eles contribuíram para forjaruma tradição teórica “condicionalista”. Assim, onível do desenvolvimento econômico (SeymourMartin Lipset e seus discípulos), as formas daestrutura social (notadamente Barrington MooreJr.) e o tipo de cultura dominante (Pye, Verba,etc.), foram considerados como pré-requisitos dapassagem à democracia. Mas em razão de econo-micismo, historicismo e culturalismo, o valor expli-cativo e preditivo dessas análises era fraco.

Os sucessivos desmentidos que a história infli-gia às teses condicionalistas, combinados à expan-são da teoria do individualismo metodológico nasciências sociais, engendraram nos anos 1980 umacorrente probabilista: a transitologia, qualificadapor seus pioneiros de “ciência ou arte da democra-tização” (SCHMITTER, 1993, p. 5). Para os transi-tólogos, geralmente muito inspirados pela definiçãoquase minimalista, não glorificante e schumpe-teriana da democracia, esta é o regime que oferecea possibilidade de remover (pelas urnas, logo paci-ficamente) os dirigentes2. A democracia é o regi-

1 Este trabalho foi originalmente apresentado na mesa-re-donda Consolidação da democracia: enfoques teóricos e processospolítico-institucionais, realizada durante o Seminário Interna-cional de Ciência Política: Política desde el Sur, entre 3 e 5 deoutubro de 2001 na Universidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). O evento foi organizado com o patrocínio doDepartamento de Ciência Política da UFRGS, do seu Pro-grama de Pós-Graduação em Ciência Política e da Associa-ção das Universidades do Grupo de Montevidéu.

2 “A democracia é um método político”, escreve Schumpeter.Ele faz dela “um tipo de organização institucional [...]

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3 No que concerne ao Brasil, as entrevistas realizadas porSoares, Araújo e Castro (1995) e a tese de doutorado deArturi (2000) provam abundantemente que os militares cons-tituíam um grupo muito mais complexo, mais dividido.

4 A transitologia subestima a influência de fatores externos,nota-damente as pressões internacionais e o caráter freqüente-mente exemplar de algumas transições (assim, a trajetória daArgentina e a de Portugal davam a pensar aos militares bra-sileiros que desejavam evitar qualquer tipo de revanchismoe perder brutalmente suas posições de poder).

me que organiza essa possibilidade, que instaura egarante a incerteza quanto à permanência dos di-rigentes no poder. Para a transitologia, a (re)ins-tauração desse regime num país não depende dequaisquer pré-requisitos; é apenas uma probabilida-de entre outras. Rejeitando toda e qualquer qui-mera de uma predestinação da história, de um su-cesso ou fracasso pré-escrito da democracia, ostransitólogos relegavam a segundo plano os fato-res econômicos, sociais e culturais dos países estu-dados. Em compensação, eles consagravam todasua atenção às “estratégias dos atores relevantes”e à própria conduta da mudança política.

II. AS ILUSÕES DA TRANSITOLOGIA

Para a grande maioria dos transitólogos, umatransição é uma “fase política subdeterminada”,durante a qual essa ausência de regras fixas e osconflitos opondo diversos jogadores sobre as re-gras tornam as evoluções políticas “muito imprevi-síveis”. Uma transição é um período muito aberto,um momento crítico no decorrer do qual a naturezae a direção da mudança dependem, antes de tudo,das estratégias adotadas pelos grupos de atoresimplicados nesses processos. Durante esse perío-do turvo, cada ator faz “cálculos de curto prazo”que “não podem ser deduzidos das estruturas”, etende a cometer muitos erros (O’DONNELL,SCHMITTER & WHITEHEAD, 1986, p. 6, 66).

Com essa primazia dada à estratégia dos atores,os empréstimos (decorrentes dela) feitos à teoriados jogos predispunham os transitólogos a negli-genciar as mudanças de regime cujo desenrolarparecia-lhes confuso, convulsivo e que tinha en-volvido multidões (por exemplo, o caso francêsdo fim do século XVIII e do século XIX). Elesprivilegiaram mudanças recentes ou ainda em de-senvolvimento que eram menos violentas, que lhespareciam mais íntimas e compatíveis com as suasconcepções simplificadoras da ação e do indiví-duo. Daí a sua paixão pelas transições “pac-tuadas”. Para esse tipo (o mais freqüente, segun-do eles) de transição, os transitólogos conside-

ram que os atores são divididos em dois camposconstituídos por dois subgrupos: o campo favo-rável ao regime autoritário, no qual se enfrentamos partidários da linha dura e os da liberalização; eo campo da oposição, no qual estão em concor-rência radicais e cautelosos. A transição chega eprossegue quando (e à medida que) os modera-dos dos dois lados, mais do que perder tudo aosucumbir aos sobre-lances dos extremistas, pre-ferem aliar-se e fazer concessões mútuas. É a no-ção de “pacto”, moldada a partir da experiênciaespanhola dos anos setenta. Assim, a democraciapode ser edificada, fabricada; é apenas uma ques-tão de “habilidade” (DI PALMA, 1990, p. 12).

Mas esses atores, qualificados de “relevantes”,são como que desencarnados, não têm muitaspropriedades sociológicas, exceto sua capacidadede calcular tudo. Suas posições sociais estão ape-nas esboçadas: a distinção feita pelos transitólogosentre civis e militares é redutora das diferenças deinteresses, de crenças e de representações domundo que estruturam as oposições e as relaçõesentre esses grupos; a subdivisão (sistematicamentebinária) entre “duros” e “moderados” é sucinta,longe das realidades do terreno3.

Ao isolar elites que negociavam a portas fe-chadas, ao adotar um ponto de vista demasiada-mente endógeno4, ao eludir os traços culturais dospaíses estudados e ao fazer só reaparecer asmacroestruturas uma vez que o famoso pacto es-teja concluído, a transitologia acumulou erros deapreciação. Muitos autores edificaram uma teoriaque cobre somente o “curto prazo” e, assim, nãose preocuparam suficientemente com a legitimaçãodas situações políticas derivadas dos pactos. Porcerto, outros autores, mais lúcidos quanto aosperigos daquele presbitismo científico, introduzi-ram uma dose de temporalidade e analisaram astransições como mudanças compostas de seqüên-cias caracterizadas pelo tipo de problemas que as

resultante de decisões políticas, no qual os indivíduosadquirem o poder de pronunciar essas decisões após umaluta concorrencial tendo por objeto os votos do povo” (1967,p. 319-320, 355). O importante não é que cada um doseleitores tenha, ou não, a intenção de cassar a equipe nopoder; o importante é que a simples adição das suas cédulas(qualquer que seja a sua motivação) seja suficiente paraprovocar a permanência ou a saída dos dirigentes.

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7 Schmitter e Santiso (1998, p. 72) fazem do estudo daconsolidação uma “subdisciplina” da Ciência Política.

elites tinham de resolver5; mas eles caíram noteleologismo, ao considerar que uma transição bemconcluída (isto é, dando luz à democracia) de-penderia da efetividade de uma trajetória (the pathdependency) respeitosa da ordem (supostamentecheia de virtudes) das escolhas (supostamenteobrigatórias) a efetuar6. Por falta de interesse peloeleitorado (que podia doravante votar e então re-mover os dirigentes), pelas suas propriedades so-ciológicas, pela sua percepção do antigo e novoregimes, pelas suas representações do político,pelas suas esperanças frente às mudançasinstitucionais (das quais esse eleitorado entendia,mais ou menos, as virtudes e os limites), ostransitólogos não puderam vislumbrar o quanto,uma vez o pacto concluído, o apoio (pressupos-to) da população aos novos dirigentes e/ou ao novoregime poderia ser frágil. Por falta de interessenas dinâmicas macroeconômicas e pelos pro-cessos de construção simbólicas das realidadeseconômicas, eles avaliaram mal os efeitos das inter-ferências entre reformas econômicas (principal-mente os planos de estabilização e as privatizações),reformas políticas, ritmo e maneira de realizarumas e outras segundo o tipo e o perfil das elitesno poder. Dessa forma, no início dos anos 1990esses intérpretes foram surpreendidos pelo fatode certos processos iniciados, na década anterior,na América Latina (Guatemala, Peru) ou na Ásia,divergirem da trajetória idealizada. A evolução dasituação na Europa do Leste aumentou ainda maisa perplexidade dos transitólogos, uma vez que,nessa região do mundo recentemente saída doautoritarismo e sobre a qual eles tinham aplicadoos seus modelos de análise logo depois da quedado Muro de Berlim, vários ex-dirigentes comu-nistas estavam voltando ao poder pelas urnas.

Os transitólogos tornaram-se os espectadoresdo nascimento de regimes que eles não tinhamrealmente previsto: democracias “inacabadas”, istoé, que estão “longe de serem robustas” (HAKIM& LOWENTHAL, 1991, p. 16). Não se tratavade democracias representativas comparáveis àque-las existentes nos países ocidentais, mas (como oreconhecerá rapidamente O’Donnell – 1991) de

democracias “delegativas”, ou seja, de regimes quese encontravam distantes daquilo que constituía,na transitologia, o modelo de referência implícitoe absoluto (a democracia representativa européia)no qual a população se desinteressa pelos dirigen-tes que elege. Ao insistir em produzir análisesabstratas demais e privadas demais de referênciasàs situações sociais, O’Donnell e vários outrostransitólogos tinham terminado por colocar a sal-vaguarda da democracia como um ideal geral. Ora,como o observou Ernest Gellner, “agora, eles sãoobrigados a confessar que para muitas socieda-des o ideal não pode se realizar” (GELLNER, 1994,p. 188). Constatando, embora um pouco tarde,seu erro, os transitólogos começaram a pensar amédio prazo.

Se uma vez iniciada uma transição podia co-nhecer destinos muito diversos, então isso signi-ficava que ela era somente um dos momentos daconstrução democrática. Isso obrigava a ver maisadiante, a considerar que à transição sucedia umaoutra fase, rapidamente batizada pelos transitólogosarrependidos como “consolidação democrática”,residindo na passagem do regime pluralista for-mal, geralmente instaurado no período final datransição, para práticas democráticas mais efeti-vas. A transitologia reformava-se. Ela procuravadefinir os critérios que lhe permitissem afirmarque tal ou qual democracia é consolidada ou não,e também explicar porque aqui a consolidaçãoocorreu e porque lá não. As respostas fornecidasa essas duas questões iriam constituir a con-solidologia7.

III. A CONSOLIDAÇÃO REDUZIDA ÀS APA-RÊNCIAS

Evidentemente, fixar a lista dos fatores sus-ceptíveis de propiciar a consolidação e verificar aincidência real de cada um deles dependia antesde tudo da definição dada ao conceito de “consoli-dação democrática”. O sufixo “ção” permite ime-diatamente supor que se trata de um processo e oadjetivo faz pensar que esse processo consiste naconversão das democracias “inacabadas”, “apa-rentes”, “incompletas”, “frágeis”, “instáveis” ou“delegativas” num regime mais “profundo”, mais“sólido”, mais “firmado” (os qualificativos sãoabundantes; dois autores tentaram estabelecer a5 É o caso, por exemplo, de Przeworki (1991, capítulo 2).

6 Para uma crítica das derivas teleológicas em obra na ma-neira de (re)construir a trajetória das transformações políti-cas ocorridas e de pensar as causalidades históricas, ler Dobry(2000).

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8 O artigo de Terry Karl (1990) e aquele co-redigido com oseu marido, Philippe Schmitter (1991), são muito represen-tativos dos primeiros trabalhos efetuados nessa direção.

9 Whitehead (1989, p. 79) fixa esse objetivo. Antes, Rustowjá tinha falado da necessidade de prestar atenção à “habi-tuação” das elites às regras da poliarquia.

sua tipologia (COLLIER & LEVITSKY, 1997);essa proliferação já é um sinal das lacunas e dasaproximações teóricas da consolidologia). A gran-de maioria dos consolidólogos considera que oobjeto da sua disciplina não é mais, contrariamen-te à transitologia, os modos de surgimento (e asua tipificação)8 das novas regras de conquistado poder, atestando uma mudança do regime, maso grau de institucionalização das regras que ca-racterizam os novos regimes. Quanto menos es-sas regras são contestadas, mais o regime torna-se apto a superar crises graves. Já em 1990, JuanLinz tinha precisado que uma democracia conso-lidada “é um regime no qual ninguém, entre osprincipais atores políticos, partidos ou forças po-líticas, considera que haja uma alternativa aos pro-cedimentos democráticos para obter o poder, […]e no qual nenhuma instituição ou grupo políticotem direito a vetar a ação daqueles responsáveispelas decisões democraticamente eleitos ” (LINZ,1990c, p. 156). Assim, o objeto da consolidologiaé a passagem das novas configurações políticasem rotinas. Há consolidação “quando as regras setornam o único referente dos comportamentospolíticos” (SCHMITTER, 1995), quando “a de-mocracia é vista como o único jogo possível nasociedade (the only game in town)” (LINZ, 1990c,p. 156). Como conseqüência, os consolidólogosinteressam-se pelos consensos sociais, pela fun-ção socializante das normas, pela “assimilação”9

e pela interiorização das regras do jogo democrá-tico pelos principais atores do jogo político e pelapopulação em geral. Mais exatamente, eles con-centram-se nas situações que ameaçariam ainstitucionalização das normas. A escolha é com-preensível.

Como foi dito, o nascimento da consolidologiano início dos anos 1990 ligou-se (para usar ex-pressões recorrentes em vários autores) a “deses-tabilizações” ou a “recuos democráticos” de vári-os novos regimes latino-americanos e sobretudoleste-europeus de então. Mas a sua busca súbita einsistente pelos fatores capazes de frenar ou im-pedir a consolidação não tem só a ver com a his-

tória dessa jovem “disciplina”, com as lutas entrecientistas políticos ou centros de pesquisas10. Elaexplica-se também pelas lacunas no conhecimen-to de Sociologia de numerosos consolidólogos.Estas conduzem-nos a subestimar a complexida-de de qualquer processo de interiorização de re-gras e valores, a acreditar que existe uma relaçãodireta entre fatos que lhes parecem objetivos eunívocos (mas que necessariamente não o são paraa população) e o grau de interiorização. Essas la-cunas impedem-nos também de estabelecer crité-rios válidos que lhes permitiriam não somente me-dir de maneira não normativa o grau deinteriorização de tal ou tal grupo de indivíduos emmomentos distintos e em vários países (para pos-sibilitar algumas comparações), mas sobretudofixar (também de maneira não normativa, ao su-por que seja possível) o nível a partir do qual ainteriorização seria tão forte que a democraciaestaria consolidada. Assim, os vieses metodoló-gicos de que sofrem as tentativas de verificaçãoempírica efetuadas pelos transitólogos tornaminconfiável a listagem dos fatores indicados comopropícios à aceleração ou ao adiamento da conso-lidação, e tornam suspeitas as afirmações quantoà responsabilidade efetiva de cada um deles. San-tos (1998, p. 240) é severo demais quando escre-ve que “o valor explicativo e preditivo da consoli-dologia é praticamente igual a zero” – mas essevalor é, de fato, realmente muito baixo.

Obviamente, o primeiro fator destacado pelosconsolidólogos – pois eles consideravam que aconsolidação ocorreria quando as regras se tor-nassem o único referente dos comportamentospolíticos –, foi a capacidade (supostamente in-trínseca) de o arranjo institucional (aquele nego-ciado durante ou no fim da transição) tornar opaís governável e ser percebido pelos atores rele-vantes como vantajoso. Para vários consolidó-logos, notadamente Przeworski et alii (1996, p.48), “a sobrevivência de democracias de fato de-pende de seus sistemas institucionais”. Já Linz(1985), num texto pioneiro, havia afirmado quetodos os arranjos não dispõem, em si, das mes-mas virtudes, da mesma capacidade de satisfazero apetite de poder das elites políticas. Segundo

10 Os problemas com tentativas de impor pesquisadores noseio de sua disciplina são muitas vezes ligadas ao desejo demelhorar posições institucionais pessoais dentro do campocientífico.

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ele, o regime parlamentar é mais propício à esta-bilidade democrática que o regime presidencial.Pois, para ele, os países, tendo adotado o primei-ro desses regimes, vivem mais tempo na demo-cracia que aqueles tendo escolhido o segundo; e“isso não é um acidente” (LINZ, 1990a, p. 52).Essa tese é dominante na consolidologia. Linz, cujoraciocínio é, evidentemente, mais sutil que o re-sumo aqui apresentado, observa que no regimepresidencial o chefe do Estado é politicamente ir-responsável. Ele não pode ser derrubado peloCongresso, inclusive quando perdeu o apoio doou dos partidos que haviam colaborado para queele se tornasse Presidente. Se seu mandato é, porexemplo, de cinco anos, ele permanecerá no car-go cinco anos, exceto em caso de impeachment(procedimento muito desgastante que se abre ape-nas em caso de delito penal). Ademais, a dissolu-ção não existe no regime presidencial. Em casode discordância persistente com o Congresso oude crise, o Presidente não pode antecipar a con-vocação de eleições legislativas. Ao contrário, noregime parlamentar, o governo é responsável di-ante do Parlamento e a dissolução é permitida. Aochefe do governo, visto que ele vive sob ameaçade uma eventual moção de censura, não é assegu-rado permanecer no cargo até o fim da legislatura,ficar na função, por exemplo, cinco anos se alegislatura tem uma duração de cinco anos. Osdeputados não estão mais tranqüilos durante alegislatura, pois uma dissolução do Parlamentopronunciada pelo Executivo levá-los-ia a um novopleito. Linz considera que o regime presidencialcoloca em perigo as democracias nascentes ourenascentes, pois, “ao obrigar os perdedores apermanecer cinco anos sem nenhum acesso aopoder Executivo e à patronagem” (idem, p. 56),ao entregar, então, “tudo para o vencedor” e aofrustrar a possibilidade de uma revanche rápidaaos perdedores, esse regime corre o risco de le-var os derrotados no escrutínio a contestar o re-sultado do jogo, as regras do jogo e a fomentarum golpe de Estado. Estudos estatísticos pare-cem confirmá-lo: “os regimes presidencialistasestão menos propensos a sobreviver. Os regimesparlamentaristas duram mais, muito mais, do queos presidencialistas” (PRZEWORSKI et alii, 1996,p. 48). Daí Linz e outros consolidólogos declara-rem-se a favor do regime parlamentar.

Esses estudos estatísticos, entretanto, nãoconstituem uma prova indiscutível. De fato, elesadicionam numa centena de Estados (indus-

trializados ou em desenvolvimento, velhos ou re-centemente independentes) o tempo durante o qual,desde 1950, o parlamentarismo ou o presidencia-lismo esteve em vigor. Mas, ao esquecer que 365dias nos anos 50 não valem 365 dias nos anos1980, eles comparam em verdade conjuntos agre-gados diferentes. Quando atores avaliam a opor-tunidade de mudar as regras e, sobretudo, de darum golpe, eles tendem a levar em conta o tipo e onível provável de reação política no próprio país ena cena internacional. Ora, o tipo e o nível dereação não são constantes no decorrer do perío-do observado. Hoje a democracia tornou-se umregime não só altamente valorizado, mas tambémsupervalorizado. Não era o caso no passado. Porexemplo: será que o Congresso brasileiro poderiarefazer hoje o que ele fez em 1962 (suprimir opresidencialismo e impor o parlamentarismo, quan-do João Goulart tornou-se chefe de Estado, paralhe subtrair importantes meios de ação e evitarassim que ele pudesse colocar em obra suas re-formas econômicas e sociais)? Quais seriam asreações hoje? Tentativas recentes de golpe, naAmérica Central, na Ásia ou na África, fracassa-ram pela simples e rápida pressão, neste mundomais e mais globalizado, sob o domínio dos EUAou da União Européia (“não faça isso ou vamoscortar as verbas e isolá-los politicamente”). Alémdisso, esses estudos estatísticos pressupõem quea duração de tal ou qual regime explica-se essen-cialmente por elementos e acontecimentos conti-dos no período analisado. Ora, é esquecer ou su-bestimar, no caso de países tendo recentementeacedido à independência, a tarefa das instituiçõespolíticas herdadas da época colonial. Por exem-plo, a partir do fim do século XIX os inglesesintroduziram nas suas colônias instituições proto-parlamentares a que se associaram uma parte daselites locais. Esses países, uma vez independen-tes, ao acostumarem-se a certos procedimentosdecisórios, puderam conhecer mais facilmente umfuncionamento regular das instituições parlamen-tares (já parcialmente experimentadas pelo passa-do). O parlamentarismo tinha então mais probabi-lidades de perdurar.

Todavia, quaisquer que sejam os resultados dacomparação dessas estatísticas, uma vez limpasdesses vieses metodológicos11, as vantagens do

11 Outros vieses existem; por falta de espaço, não os denun-ciamos neste artigo.

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13 Sobre as relações entre federalismo e democracia segun-do as prerrogativas da Câmara Alta ou territorial, ler Stepan(1999).

14 Obra coletiva principalmente consagrada ao leste daEuropa, região que, após a queda do Muro, adotou o regimeparlamentar.

parlamentarismo sobre o presidencialismo são bemmenos certos do que Linz o afirma. De fato, esseautor comete três grandes erros. Importa insistirneles, pois isso nos ajudará a não nos enganar-mos quanto às virtudes das bricolagens institucio-nais, relativas ao sistema de governo e outros as-pectos correlatos (poder Judiciário, Estado de Di-reito, sistema de partidos, descentralização).

IV. OS PRESSUPOSTOS DA ABORDAGEMPELAS INSTITUIÇÕES

O primeiro erro de Linz, o único que tem sidopercebido rapidamente por alguns de seus cole-gas, é enganar-se em relação aos malefícios e vir-tudes respectivos desses regimes. No regime pre-sidencial, a dominação do campo vencedor não étão ampla nem tão nítida quanto ele pensa. Poruma parte, um mesmo campo leva raramente to-dos os cargos do Executivo disputados na elei-ção. Os perdedores no âmbito nacional podemganhar, no nível local, vários cargos de prefeitose/ou governadores que lhes oferecem compensa-ções suscetíveis de fazê-los aguardar até as pró-ximas eleições nacionais. Nos estados unitáriosdescentralizados e, mais ainda, nas federações quedão amplas possibilidades de ação às unidadesfederadas, essas compensações são importantes.Por outra parte, como Stepan e Skach (1993) ob-servaram, o sistema dos partidos deve ser levadomais em conta12. Se o modo de escrutínio, nolugar de favorecer a fragmentação e a indisciplinados partidos, favorecesse o reagrupamento e acoesão interna dos partidos, as probabilidades deassistir ao surgimento de uma oposição forte, unidae permanente aumentariam. Ora, para evitar queuma tal oposição apareça, o Executivo procurafreqüentemente acalmar os perdedores. Na maio-ria dos casos, ele os afaga ao lhes propor um aces-so à patronagem. O vencedor devolve então aosperdedores uma parte do que ele ganhou. Enfim,como observam Mainwaring e Shugart (1993),as relações entre a Presidência e o Congresso,muitas vezes, deterioram-se quando se trata doprocesso legislativo. Linz não percebe que no re-gime presidencial dar fracas prerrogativas ao Exe-cutivo (em particular no que se trata da ordem dodia, do direito de emenda ou de veto) pode dimi-nuir os riscos de tensão com o Congresso. Emresumo, como Linz não leva suficientemente em

consideração as formas jurídicas do Estado, nemas relações inter e intrapartidárias, nem os pode-res constitucionais divididos, ele superestima osganhos que a vitória eleitoral oferece aos vence-dores e, conseqüentemente, os perigos que esseregime presidencial deixa pairar sobre as jovensdemocracias.

Simetricamente, Linz subestima os riscos debloqueio no regime parlamentar, o que o leva asuperestimar as virtudes deste último. Por exem-plo: no caso das federações, ele não percebe quecertos conflitos não têm solução. Assim, quandoas maiorias diferem de uma Câmara para outra(dito de maneira diferente, quando a maioria doSenado é hostil ao governo apoiado pela maioriados deputados) e se a adoção de uma lei necessitado acordo das duas câmaras (é geralmente o casodos textos que possuem um conteúdo federati-vo), o governo não poderá forçar o Senado a vo-tar, visto que esse órgão não pode, de maneirageral, ser dissolvido13. Do mesmo modo e sobre-tudo, como, por exemplo, Budge e McKay(1994)14 criticam, Linz esquece mais uma vez osistema dos partidos. Quando, na Câmara dosDeputados, um partido disciplinado ou uma alian-ça sólida dispuser da maioria absoluta, o governoestará seguro de não ser censurado no decorrerda legislatura, pois a oposição será sempre minori-tária. Nessa hipótese, os perdedores são impoten-tes ou então não podem muito.

Por falta de uma observação fina, Linz erra odiagnóstico. Muito mais do que acusar o modo deseparação dos poderes e recomendar a adoção doregime parlamentar, concluem seus críticos, eledeveria, antes de tudo, desejar que as jovens de-mocracias escolhessem processos legislativos esistemas de partidos propícios a não frustrarexageramente os perdedores.

O segundo erro de Linz é uniformizar as cate-gorias “regime parlamentar” e “regime presiden-cial” que, na realidade (como o parágrafo acima osugere), cobrem uma grande variedade de confi-gurações de separação dos poderes entre Execu-

12 Ponto de vista compartilhado por Dix (1992).

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tivo e Legislativo. Essas categorias dão origem amais confusões ainda, visto que o senso comumcientífico banalizou-as15. Linz designa essas ape-lações de agenciamentos institucionais diversos de-mais. Por conseqüência, seu cálculo da durabili-dade da democracia segundo o tipo de regime nãotem grande pertinência e foi contestado. Main-waring (1993), por exemplo, ao basear-se em ou-tra definição do regime parlamentar (ele adota oscritérios de Lijphart, 1984), propõe outro cálculoque se mostra menos vantajoso para o regime.

O terceiro erro vale para Linz e seus críticos.É o juridicismo. Para eles, os arranjos institucionaissão freqüentemente mais pensados como sendosoluções (boas ou ruins) que eles estão subenten-didos por uma representação, nunca formuladamas sempre presente, de um tipo de relação entreo Direito e o fato. As regras de Direito (constitu-cionais ou infra-constitucionais) são como quefetichizadas, pois elas encerram sempre a mesmaqualidade: fazer que o real desejável pese sobre aspessoas e, através delas, sobre os fatos. Redigir a“boa” Constituição, a lei “adequada”, leva, por as-sim dizer, a tocar o mana16. O valor que essesautores atribuem, quase espontaneamente, aosregimes qualificados de maneira muito rápida deparlamentar ou presidencial, vem do fato de elestenderem a fazer das regras constitucionais o prin-cípio explicativo pertinente das condutas dosatores. Eles emprestam ao Direito uma força ine-rente que ele não tem, pelo menos uma força queo Direito não tem adquirido pelos meios que osjuristas pensam17. Eles têm ilusões sobre a forçade condução das bricolagens constitucionais queeles pregam18, e sobredeterminam a incidência do

Direito. Um único exemplo será suficiente paraque isto seja entendido: aquele da disciplina dospartidos políticos. Por certo, tais ou quais modifi-cações dos modos de escrutínios e/ou do regi-mento interno do Congresso ou do Parlamentopodem gerar antecipações nos partidos (entre lí-deres, simples eleitos, candidatos potenciais, mi-litantes) visando a maximizar suas chances de vi-tória eleitoral. No entanto, é a combinação dessasmudanças de regras com outros fatores que vaiprovocar uma maior ou menor disciplina no seiode cada formação. A homogenização do perfilsocial dos eleitos do partido (origem social, pro-fissão de origem, curso universitário), seu graude profissionalização política, a unificação dosrecursos políticos legitimamente mobilizáveis nosmomentos de tomadas de palavra, a natureza e aquantidade dos recursos (não tão-somente jurídi-cos) dos quais dispõem os dirigentes do partidopara firmar o apoio dos eleitos nas bases e evitarque estes adotem comportamentos desviantes, asformas de retribuições dos apoios visíveis – to-dos esses são elementos tão ou mais importantesque as regras institucionais19. Ocupar-se somen-te com o Direito não basta.

O juridicismo de Linz e de seus críticos leva-os a ligar demasiadamente a instauração e oarraigamento da democracia às questões institu-cionais. No seu rastro, os consolidólogos encon-tram cada vez mais o pensamento dos juristas,como Hans Kelsen, para quem a democracia éum Estado de Direito antes de ser aquele da ex-pressão da vontade popular. Incontestavelmente,Direito e democracia estão ligados. Mas os juris-tas não concordam quanto à natureza desse vín-culo. Uma parte autonomiza tanto o Direito douniverso social que as normas jurídicas tornam-se as regras de um mundo etéreo. Ao isolar assimo Direito da suas condições de produção, essesautores fazem desse vínculo uma questão mera-mente normativa20. Desse modo, a consolidação

15 Sobre os limites e as fraquezas dessa classificação bináriados regimes, ler Troper (1989).

16 Na Melanésia, escreve Mauss (1950, p. 104-105), o manadesigna e subsume notadamente “a força por excelência, aeficiência verdadeira das coisas, que corrobora sua açãomecânica sem a aniquilar. É ele que faz a rede pegar, a casaser sólida, a canoa agüentar o mar. Nos campos, ele é afertilidade; nas medicinas, as virtudes salutares ou mortais.[…] É também um tipo de éter, imponderável, comunicá-vel, que se espalha por si mesmo”.

17 Para uma crítica e uma sociologia da força do Direito, lerLacroix (1985).

18 Sobre as ilusões que levam a crer na força do Direito noBrasil, mas também no que concerne à vivacidade dessacrença no país, nos anos 80, ler Monclaire (1993; no prelo).

19 Ver os trabalhos de Gaxie (1985) sobre as transforma-ções do pessoal político-parlamentar francês no momentoda passagem da quarta para a quinta República francesa.

20 “O respeito ao Direito faz parte do pequeno grupo deprincípios privilegiados que, para nós, são indispensáveis aum funcionamento eficaz e eqüitativo do governo popular.Na qualidade de princípio democrático, é certo que um talrespeito impõe-se aos governantes e aos governados”(ABRAHAM, 1993, p. 3).

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torna-se um simples negócio técnico. De outraparte, ao contrário desse hedonismo ingênuo,superdetermina-se tanto a influência do social so-bre o Direito, que eles fazem deste último um meroreflexo da sociedade. Para eles, o vínculo entreDireito e democracia é totalmente submetido aojogo dos interesses21. Assim, a consolidação tor-na-se um negócio cínico: escolher os governantesmenos ruins e constringi-los pelas regras menosruins. Poucos juristas recusam essas duas con-cepções, tão cega uma como a outra. Poucos nãodão a priori ao Direito uma força que ele não tem,mas que ele obtém, na verdade, no decorrer devários processos sociais; poucos tentam enten-der22 a contribuição desses processos sociais,assim como as modalidades dessa contribuição.Poucos tomam em consideração os efeitos deimposição e de interiorização nascidos, não da lei,mas da força da sua forma e das crenças investidasno Direito (como princípio de resolução pacíficados conflitos).

Claro, as instituições importam, mas não exata-mente da maneira como falam Linz e muitosconsolidólogos. Evitar os desvios juridicistas dosconsolidólogos – que desejam fortalecer juridica-mente o princípio de incerteza23 ou que confun-dam mais e mais democracia e justiça – por exem-plo, Ciurlizza (2000) –, democracia e reduçãomáxima da participação das Forças Armadas nocampo jurídico-político e na ordem pública – porexemplo, Barany (1997) e Zaverucha (2000) – nãoconsiste tão-somente em não se atribuir ao Direi-to uma força que ele não tem. É preciso também

que não se tenha uma visão instrumental dos re-cursos jurídicos (mas, igualmente, dos políticos,econômicos, comunicacionais). Isso permitirádefinir as instituições como quadros regulariza-dos de interações juridicamente interligadas, fru-tos e ilustrações de um processo de divisão dotrabalho social; quadros que são o objeto de enfren-tamentos e constituem recursos na e para a con-quista ou o exercício do poder do Estado.

V. O VALOR DO RECURSO, NÃO O RECURSOEM SI

A sociologia das crises políticas, conduzida porDobry (1988), entendidas como períodos duran-te os quais o valor ligado aos recursos sofre gran-de flutuação24, ajuda a melhor compreender tran-sições e consolidações. As transições demonstramser “situações de grande fluidez política”, fasesambíguas de mudança de regime, concluídas porum arranjo institucional precário entre elites (nãosó políticas)25. Seu desenrolar varia essencialmen-te em função da disponibilidade dos recursos eem função do novo valor dado aos recursosafetados pela mobilização multissetorial, isto é, pormobilizações localizadas em diversas esferas deatividade26. De fato, se em período rotineiro osrecursos são relativamente compartimentadosentre eles, eles não mais o são em período de cri-se; eles “passam a ser confrontados devido àsmobilizações e à transformação correlativa dosrelacionamentos entre os setores sociais nos quaisoperam esses recursos” (idem, p. 138).

Desse modo, e sempre ao utilizar Dobry, aconsolidação democrática vem a ser a fase na qualo valor desses recursos (valor potencialmente re-definido pela confrontação desses recursos) esta-biliza-se e predomina. Dito de outra maneira, aconsolidação é a fase em que o valor dos recur-sos jurídicos proporcionados pelo arranjo institu-

21 “No jogo democrático, cada um considera que, por prin-cípio, o Direito é a expressão dos valores das coalizões polí-ticas dominantes. Toda a atividade política é inspirada poraquele desejo de ter a direção da elaboração do Direito e dasua aplicação que inspira toda a atividade política” (JACOB,1996, p. 3).

22 Nota-se que a história e os modos de pensamento da suadisciplina científica (isto é, a ampla preferência dada nocampo jurídico ao Direito positivo), não predispõem a pen-sar nesse tipo de problema.

23 O’Donnell (1998a), ao reconhecer os limites e erros doseus trabalhos anteriores, propôs um arsenal de medidasjurídicas para garantir o princípio de incerteza. Pastor (1999)insiste na necessidade de reformar a administração eleitoral.Claro que quanto mais a incerteza é juridicamente organizadae assegurada, mais os jogos antidemocráticos tornam-secustosos. Todavia, a distância entre as intenções do legisladore o usos das medidas pode ser, por vezes, muito grandes.

24 Dobry (1988) reformula o conceito de crise ao repensaro conceito de recurso. Esse não é o único interesse dessaobra essencial.

25 As vantagens dessa abordagem foram bem destacadas porBanegas (1993).

26 Por exemplo, no caso brasileiro, a esfera religiosa com aintervenção das comunidades de base; a esfera industrialcom as greves dos metalúrgicos; a esfera do Direito, com aspetições da OAB contra os desrespeitos ao Estado de Direi-to; a esfera jornalística, com as denúncias diárias dos erros eabusos policiais etc.

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cional nascido da transição27 firma-se em relaçãoao valor dos outros recursos, porque esses re-cursos jurídicos terão demonstrado às elites polí-ticas (mas também econômicas, militares, cultu-rais – aí reside uma nítida diferença com as tesesde Juan Linz) e aos simples indivíduos (outra gran-de divergência com Linz) sua capacidade de as-segurar uma ordem política socialmente aceitá-vel. Em outras palavras, a consolidação é essemomento (de duração variável) no qual o pessoalpolítico e o essencial da população são levados adepositar sua confiança nas instituições, nas rela-ções inter e intrainstitucionais (principalmente na-quelas que organizam as modalidades da redis-tribuição periódica dos postos de poder no seiodo Executivo e do Legislativo, nos níveis local enacional, e naquelas encarregadas de fazer res-peitar essas modalidades), com base no “valor deordem” que nelas reconhecem28. A consolidaçãoé um quíntuplo processo cujas fases combinam-se e nutrem-se umas das outras: 1) valorizaçãodesse tipo de recurso (processo já iniciado no fimda transição); 2) objetivação da superioridade pro-gressivamente construída e atribuída ao valor des-ses recursos; 3) aprendizagem desse valor em viade estabilização e já parcialmente objetivada; 4)aumento dos usos táticos desses recursos mais emais legítimos, e 5) rotinização de seu uso. Essanaturalização do valor e dos usos dos recursospermite ao regime ser tendencialmente percebidocomo necessário e contribui assim para sua esta-bilidade. Pensar, como a maioria dos consolidó-logos, que a consolidação depende de um tipo dehábito a adquirir (aquele de aceitar perder), queela se resume à aprendizagem da incerteza, nãocorresponde assim ao que de fato ocorre e podeser fonte de ilusões.

Uma dessas ilusões é considerar que a demo-cracia exige um apoio explícito e amplo da popu-lação às instituições do novo regime e necessitade sua parte comportamentos participativos (taxaalta de comparecimento às urnas, associativismoe outras práticas participativas). É verdade quedentre as numerosas democracias (re)nascentes,

no Brasil em particular, a opinião pública pareceestimar que as instituições do novo regime (parti-dos, Executivo, Legislativo, Judiciário) e os seusdirigentes não resolvem os seus problemas. Àsvezes, os entrevistados lamentam pelo antigo re-gime, ao qual atribuem retrospectivamente algu-mas virtudes quanto à política econômica e soci-al29. Ainda que um apoio efetivo contribua indis-cutivelmente muito para a consolidação, este nãoé indispensável. Um apoio difuso pode ser sufici-ente. Pois importa distinguir legitimidade do prin-cípio genérico do regime democrático (possibili-dade de remover os dirigentes pelas urnas) e efi-ciência do regime. O que conta não é que toda apopulação que tem o direito de votar vote, masque uma grande maioria dela se diga apegada aoprincípio do voto, ao fato que as urnas decidam.Não é paradoxal que um mesmo indivíduo possa,por um lado, dizer que o princípio do voto é im-portante ou crucial e, por outro, não se interessarpela política e rejeitar os atores institucionais emprincípio. Desde de que se introduzam, para ana-lisar estes dados, os fenômenos de confusão en-tre regime e dirigentes, os processos sociais deimputação de uma ineficácia econômica mais oumenos objetivada e freqüentemente construída soba ótica da copulação (louvada como necessáriamas, em verdade, parcialmente contraprodutiva)entre democracia e liberalismo, esse falso para-doxo desaparece.

27 Esse arranjo pode ser revisado durante a consolidação nosentido de fortalecer e garantir o princípio da incerteza po-lítica quanto à permanência dos dirigentes no poder.

28 Sobre as instituições como valor de ordem, ler Lechner(1990, capítulo 2).

29 Ver notadamente as pesquisas reunidas por Baquero eCastro (1996). Atenção para o fato de que os resultadosdessas pesquisas podem dar margem a enganos. Freqüente-mente os entrevistados devem responder a perguntas con-tendo palavras (“democracia”, “ditadura”, “regime militar”,“autoritário”) às quais eles não atribuem, todos, o mesmosentido. Suas respostas não podem, portanto, ser computa-das sem algumas precauções. Além disso, os entrevistadosnão gozam, todos eles, da mesma qualidade de memória dasconjunturas passadas. Assim, suas respostas às questões pe-dindo-lhes para comparar o antigo e o novo regime devemser consideradas com prudência. Enfim, não é metodo-logicamente prudente fazer comparações no nível internaci-onal, porque a esses dois vieses juntam-se dois outros: porum lado, os regimes não são semelhantes (por exemplo, oregime autoritário brasileiro era menos repressivo que o doChile), nem as conjunturas (crescimento intermitente emdeterminado país, recessão prolongada em um outro); poroutro lado, o tempo decorrido entre o fim do velho regime eo momento da realização da pesquisa pode fortemente vari-ar de um país a outro, e nesse caso o olhar retrospectivo dosentrevistados não se dirige às mesmas distâncias e não está,segundo os casos, tão sujeito aos lapsos da memória.

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VI. UMA ECONOMIA ERRÔNEA DO VOTO

A consolidação não exige um boa conjunturaeconômica, outro fator destacado por muitosconsolidólogos que temem que uma forte degra-dação da situação econômica seja sancionada pe-los eleitores. Um tal medo provém sobretudo dofato de esses autores acreditarem, infelizmente,na realidade do voto racional, na existência do elei-tor-estrategista, e imaginarem, então, que o esta-do da economia terá necessariamente uma tradu-ção eleitoral direta. Para eles, quanto mais a situa-ção é ruim, mais ela ameaça os dirigentes do novoregime e, através deles, a democracia (re)nas-cente. Denunciar a invalidez dessa concepção docomportamento eleitoral ajuda a não prestar a essefator uma importância exagerada.

Os teóricos da escolha racional são incapazesde resolver o paradoxo do eleitor (a saber, porqueuma pessoa vota enquanto a incidência de seu votosobre o resultado final demonstra-se tanto maisínfimo quanto mais cresce o tamanho da circuns-crição eleitoral)30. Assim, eles não podem dizercomo os eleitores votam. Suas formalizaçõeseconométricas dos comportamentos eleitorais sãoinócuas. Suas pesquisas sobre os determinanteseconômicos da orientação eleitoral causam per-plexidade. De fato, a quantidade de dados eco-nômicos anuais ou mensais disponíveis é, porprincípio, bem superior àquela dos dados eleito-rais, pois não há eleição a cada ano ou a cadamês. Essa deficiência impede esses autores deestudarem períodos curtos e os obriga a trabalharsobre longas séries estatísticas, o que os conduza agregar eleições ocorridas durante várias déca-das. Ora, no decorrer desse longo período as pro-priedades sociológicas dos candidatos e do eleito-rado mudaram. Os modos de escrutínio puderamvariar. Tais alterações diminuem bastante a vali-dade das comparações efetuadas. Para reduzir odesequilíbrio entre dados eleitorais e dados políti-cos e evitar assim os vieses metodológicos ine-

rentes ao estudo de longas séries, certos autoresutilizaram as pesquisas de opinião (intenções devotos, popu-laridade dos governantes, avaliaçãodas políticas públicas, prioridades das expectati-vas). Mas a resposta a uma pesquisa não eqüivalenecessariamente a uma cédula de voto. Numapesquisa o indivíduo deve responder a questõesexplícitas, enquanto uma eleição pode ser assimi-lada a um questionamento unicamente se ela forintensamente problematizada pelos eleitores, pe-los candidatos e comentaristas, e, ainda, se umtipo determinado de problemática se impuser so-cialmente. Conseqüentemente, as análises quemisturam precipitadamente dados eleitorais e pes-quisas de opinião produzem resultados pouco con-vincentes. Elas concluem ora por uma relaçãosólida entre variáveis econômicas e apoio aos di-rigentes, ora dizem que esse vínculo é frágil e atémesmo inexistente. Segundo tais estudos, o pesorelativo dos elementos do bem-estar econômicona tomada de decisão eleitoral demonstra-se es-magador e universal ou, ao inverso, marginal, lo-calizado e episódico31.

Ora, o caráter bastante contraditório dessesresultados e o fato de esses autores não chegarema destacar, sem contestação, a tarefa da variávelmacroeconômica, ou de destacar a escala devariáveis do comportamento dos eleitores, invalidaa tese do “voto porta-moedas”. Claro que outrosautores propuseram modelos de análise mais sutis,chamados “neo-racionais” na medida em que elesinvocam de maneira menos predominante aracionalidade dos indivíduos. Sua idéia básica é ade que o eleitor decide-se, sobretudo, em funçãodas comparações que faz entre as conjunturaseconômicas (aquelas que precedem imediatamenteo escrutínio e também as anteriores a estas), sa-bendo que suas informações são aproximadas eque sua memória não é infalível. Todavia, as hi-póteses desses autores são “formuladas de ummodo que não se presta suficientemente a verifi-cações empíricas; as provas são selecionadas etestadas de maneira orientada; as conclusões sãoefetuadas sem prestar uma atenção séria às expli-cações concorrentes; as anomalias empíricas e osfatos discordantes ora são freqüentemente igno-rados, ora são contornados graças a modificaçõespost hoc operados sobre os argumentos deduti-

30 Se os indivíduos procurassem efetivamente adotar ocomportamento menos custoso, as taxas de absenteísmodeveriam ser maciças nos países onde o voto não éobrigatório. Ora, não é esse o caso. Além disso, esses modelosde explicação não conseguem integrar a existência dos votosbrancos e dos votos nulos, isto é, de comportamentoseleitorais que têm um custo (pelo menos igual ao dodeslocamento até a cabine de voto) e que não induzemnenhum benefício tangível.

31 Para uma crítica minuciosa dessas teorias, ler Bernard(1997).

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vos” (GREEN & SHAPIRO, 1995, p. 130). Quan-do os eleitores levam em conta as conjunturaseconômicas, fazem-no mais de modo retros-pectivo, sociotrópico e em proporções geralmen-te marginais.

O comportamento eleitoral não se reduz a umaforma de cálculo custo-benefício. Mais que isso,ele é “o produto de uma adequação mais ou menosestável entre a percepção de um candidato ou deum partido (em relação aos seus concorrentes) eas crenças do eleitor tais como são construídasao longo da sua história pessoal e da história domercado político no qual ele intervém” (GAXIE,1985, p. 20). Assim, se os votos não refletemfielmente as conjunturas econômicas (sejam elascomparadas ou não no tempo), então é de todoabusivo fazer das degradações dessas conjunturaso principal vetor das derrotas eleitorais que sofremàs vezes os dirigentes das democracias (re)nas-centes. Tais derrotas situam-se freqüentemente nolado da oferta, aqui propriamente política (candi-datos, partidos, programas, definições da realidadepropostas, notadamente do estado da conjuntura),da sua divulgação e de suas recepções. Essas der-rotas residem também no processo social e naslutas políticas concorrenciais, graças às quais asapostas [no original: enjeux] do escrutínio foramimpostas e reconhecidas, adquiriram graus variá-veis de realidade; processo e lutas que permitiramo surgimento de novas apostas e a reativação da-queles que eram já em parte ou plenamente objeti-vados. A instabilidade eleitoral que atesta o des-manche do campo que representava até então aprimavera ou o renascimento democrático, é tam-bém fruto de um relacionamento socialmente de-terminado dos indivíduos com o político, com oespaço público. É fruto de uma identificação (so-cialmente edificada) dos eleitores com tal ouqual grupo social. No entanto, a diversidade doscomportamentos logo rotulados como “instá-veis”32 torna dificilmente mensurável o peso doselementos sociais suscetíveis de influenciar a es-colha eleitoral. Em suma, as cédulas (sejam elas

ou não em favor de um mesmo partido, de umamesma facção, de um mesmo candidato) estãolonge de ser apenas politicamente motivadas. Aparcela das motivações políticas e sua qualidadesão muito variáveis. Ora, no fim do escrutínio sãoaquelas cédulas díspares que são agregadas se-gundo as modalidades da legislação eleitoral emvigor. O sucesso ou fracasso de tal ou qual candi-dato ou grupo de candidatos é então o produtodessa agregação cega e de regras eleitorais comefeitos mais ou menos previstos pelos políticosque as estabeleceram. Esquecer tudo isso é fazerou facilitar o jogo dos intérpretes políticos (elei-tos e derrotados) que, ao final de cada votação,sempre tentam impor a seus auditórios o signifi-cado do resultado das urnas (não hesitando emapresentar os números de maneira voluntariamenteviciada); significado esse que evidentemente ser-ve, o mais possível, aos seus interesses políticosdo momento.

Não somente não há relação direta e sistemáti-ca entre comportamento eleitoral e a conjuntura,como as análises de muitos consolidólogos tendema fazer da economia um requisito33. De fato, elesestimam que a consolidação torna-se mais fácil erápida quando o sistema econômico é compatívelcom o jogo e a satisfação tendencial dos interessesdiversificados, contraditórios e doravante livre-mente exprimíveis no espaço público. Mas é es-quecer que uma conjuntura não existe em si, queé sempre o resultado de uma construção social darealidade, de processos de objetivação e de impu-tação: ora, isso não tem unicamente a ver com onível dos índices econômicos – e quais índicesprivilegiar? Vários autores confundem democra-cia e economia de mercado.

Mais recentemente, outros ou os mesmos au-tores viram na qualidade das atividades do Esta-do, principalmente da administração, um outrofator decisivo e recomendaram reformas do Es-tado, introdução de uma maior e/ou mais freqüenteaccountability dos funcionários e das suas agên-cias e serviços (TSEBELIS, 1993; O’DONNELL,1998b; WHITE, 1998; DUNN, 1999), notada-mente na justiça (KRITZ, 1995) e na polícia (PI-NHEIRO, 1997). Mas, por um lado, os pressu-postos ideológicos que estão em ação no momen-to de avaliar essas atividades e de escolher os cri-

32 Esses instáveis são “eleitores indecisos” ou “eleitorestentando ter uma opinião baseada em estimativas mais oumenos racionais e em função de necessidades e interessesmais ou menos formuláveis nas categorias estabelecidas dojulgamento político”; sem esquecer que sua instabilidade podeser antiga e persistente, ou momentânea, e constituir o iníciode um “realinhamento durável das preferências políticas”(LAGROYE, 1991, p. 358).

33 Nota-se que os velhos condicionalistas saboreiam aí suarevanche.

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térios suscetíveis de permitir esta avaliação, e poroutro lado, uma insuficiente sociologização doEstado, particularmente uma sub-utilização daque-les requisitos adquiridos das análises cognitivasdas políticas públicas (MULLER, 2000) no mo-mento de compreender e avaliar o que é a produ-ção das políticas públicas, diminuem a pertinênciadesse fator.

Enfim, a ordem das reformas políticas, admi-nistrativas e institucionais (as efetuadas e/ou asque os consolidólogos julgam necessárias) foimuito comentada. Todavia, as tentativas dos con-solidólogos de estabelecer temporalidades quepossam coincidir com o tempo social, de sopesaras experiências passadas e os cenários possíveis,por um lado herdam inevitavelmente os erros pre-cedentemente denunciados quanto à maneira depensar a economia, o Estado e as instituições, e,por outro lado, acumulam esses erros. Nessascondições, a literatura sobre a ordem das refor-mas não é muito convincente. Além disso, as

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freqüentes derivações teleológicas em curso nes-se tipo de problematização invalida ainda mais astentativas de medir os efeitos da ordem escolhida.

O leitor compreenderá que, por falta de espa-ço, não foi possível tratar em detalhe os pontosenunciados nesses dois últimos parágrafos, nemmencionar e analisar fatores estimados menosimportantes34; mas já se conclui que as teses daconsolidologia, assim como as da transitologia,através de seu objeto, de suas questões e das res-postas cogitadas, são mais próximas do ilusio-nismo – ora parcialmente, ora muito preclusas depressupostos, julgamentos de valor, aproximaçõesepistemológicas, vieses metodológicos e produ-toras de ilusões – que de uma ciência confirmada.

Recebido para publicação em 8 de outubro de 2001.Artigo aprovado em 23 de novembro de 2001.

34 Para uma um estudo mais completo, ler Monclaire (2001,p. 62-100).

Stéphane Monclaire ([email protected]) é professor no Departamento de Ciência Po-lítica na Sorbonne – Université de Paris I.

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