debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS DEBATE SOBRE A QUESTÃO URBANA: O CASO BRASILEIRO MAYARA BLASI Florianópolis 2010

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Page 1: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS

DEBATE SOBRE A QUESTÃO URBANA: O CASO BRASILEIRO

MAYARA BLASI

Florianópolis

2010

Page 2: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

MAYARA BLASI

DEBATE SOBRE A QUESTÃO URBANA: O CASO BRASILEIRO

Monografia submetida ao Curso de Ciências

Econômicas da Universidade Federal de Santa

Catarina como requisito obrigatório para

obtenção do grau de Bacharelado.

Orientador: Prof. Dr. Helton Ricardo Ouriques

Assinatura:____________________________

Florianópolis

2010

Page 3: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS

A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 9,5 à aluna Mayara Blasi na disciplina

CNM 5420-Monografia, pela apresentação deste trabalho.

Banca Examinadora:

_________________________________

Prof.º Dr. Helton Ricardo Ouriques

Orientador

_________________________________

Prof.º Dr. Armando de Melo Lisboa

Membro

_________________________________

Prof.ª Drª. Marialice de Moraes

Membro

Page 4: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

RESUMO

BLASI, Mayara. Debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro. Monografia. Departamento

de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

O presente trabalho aborda o tema da urbanização, que vem crescendo nos meios acadêmicos

e políticos do mundo todo. Segundo a ONU, em 2009 mais da metade da população se tornou

urbana, e, considerando os países isoladamente, em 2050 quase todos eles terão metade de

suas próprias populações morando nas cidades, sendo o crescimento puxado pelos países

subdesenvolvidos. Sendo nesses onde se concentram os maiores problemas de distribuição de

renda, entre tantos outros, sabe-se que os desafios ao combate às desigualdades, por parte da

sociedade, compreendida pelo Estado, pelas classes dominantes e pela classe trabalhadora,

aumentarão. Neste contexto, a urbanização do Brasil, apresenta traços que elucidam o

desenvolvimento que os países ainda não urbanos podem esperar: com profundos problemas

de segregação, periferização, violência, entre outros. A atuação do Estado, embora

subordinada aos mandos e desmandos das classes dominantes, tem sido importantíssima para

o arrefecimento das desigualdades, não sem que os agentes sociais tivessem que empreender

grandes lutas para serem ouvidos. A legislação urbana do Brasil, com destaque para o

Estatuto das Cidades, é um exemplo notório de como Estado e sociedade se relacionam para

abordar interesses tão distintos e antagônicos que são os que permeiam a questão urbana.

Palavras-chave: Urbanização, Cidades, Políticas Urbanas.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Populações rural e urbana do mundo, 1950-2050, 20

FIGURA 2 – Populações rural e urbana por grupo de desenvolvimento, 21

FIGURA 3 – Países agrupados por coeficiente de Gini (Baseado em renda, diversos anos), 35

FIGURA 4 – Cidades mais desiguais (Gini baseado em renda): cidades selecionadas no

mundo em desenvolvimento (1993-2008), 36

FIGURA 5 – Déficit Habitacional Total, segundo Unidade da Federação – Brasil - 2007, 40

FIGURA 6 – Déficit Habitacional Total em relação ao total dos Domicílios, segundo Unidade

da Federação – Brasil – 2007, 41

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, segundo regiões

geográficas e regiões metropolitanas (RMs) – Brasil – 2007, 42

Page 7: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, por especificações

– Brasil – 2007, 43

GRÁFICO 2 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, segundo regiões

geográficas – Brasil – 2007, 44

Page 8: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ................................................................................................................ 5

LISTA DE TABELAS................................................................................................................ 6

LISTA DE GRÁFICOS .............................................................................................................. 7

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

1.1 Tema e Problema ...................................................................................................... 10

1.2 Objetivos ................................................................................................................... 10

1.2.1 Objetivo Geral .................................................................................................. 10

1.2.2 Objetivos Específicos ....................................................................................... 11

1.3 Justificativa ............................................................................................................... 11

1.4 Metodologia .............................................................................................................. 12

1.5 Referencial Teórico .................................................................................................. 13

2 ENTENDENDO A FORMA URBANA ......................................................................... 14

2.1 O conceito de cidade................................................................................................. 14

2.2 Urbanização: Tendências recentes............................................................................ 19

2.3 O direito à cidade ...................................................................................................... 24

3 A QUESTÃO URBANA NO BRASIL ............................................................................ 27

3.1 O processo de urbanização brasileira ....................................................................... 27

3.2 O caráter desigual da urbanização brasileira ............................................................ 33

3.2.1 A desigualdade através do Coeficiente de Gini ................................................ 33

3.2.2 A desigualdade através do déficit habitacional ................................................ 37

3.3 A evolução da política urbana no Brasil ................................................................... 45

3.3.1 O papel do Estado na urbanização .................................................................... 45

3.3.2 Considerações sobre a Política Urbana no Brasil ............................................. 50

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 60

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 62

ANEXOS .................................................................................................................................. 66

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1 INTRODUÇÃO

Pela primeira vez na história da humanidade, a porção da população mundial que vive em

áreas urbanas ultrapassou, em meados de 2009, a que vive em zonas rurais. Agora, mais de

3,3 bilhões de pessoas moram em cidades. A América Latina desponta como a região mais

urbanizada do mundo em desenvolvimento e o Brasil exerce um peso significativo nesta

estatística1. Aqui, 84,35% da população está concentrada em cidades (IBGE, 2010).

Com o avanço da industrialização os países presenciaram uma migração em massa do

campo para as cidades, sem que houvesse contrapartida na oferta de serviços públicos,

sobretudo saneamento básico, educação, cultura, saúde e moradia. Esta carência não poderia

ser traduzida senão em um índice elevado de exclusão social e pobreza e segregação espacial

nas áreas urbanas.

A fim de discutir estas e outras questões referentes à questão urbana este trabalho se

organizará em capítulos conforme breve descrição a seguir.

A primeira parte deste trabalho dedica-se à compreensão da forma urbana. Da

conceituação do termo cidade ao entendimento da dinâmica espaço-temporal compreendida

por estes espaços, a realidade passa a ser observada de acordo com tendências mundias da

urbanização. A partir desta realidade, que denota um futuro cada vez mais urbano, aparece o

tema do direito à cidade, que determina aos cidadãos o direito ao usufruto das cidades dentro

dos princípios da sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social.

O último capítulo se apropria do conteúdo do anterior para analisar o caso brasileiro da

urbanização e suas contradições. Um breve histórico elucida o caráter desigual das cidades –

fato afirmado com auxílio de dados – e a partir daí o texto se estende na análise do papel do

Estado e da evolução das políticas públicas voltadas à garantia do direito à cidade.

1 1 The Population Reference Bureau. World Population Highlights: Key Findings from PRB‟s 2010 World

Population Data Sheet. Vol. 65, nº 2. Julho de 2010. Disponível em:

<http://www.prb.org/pdf10/65.2highlights.pdf>.

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10

1.1 Tema e Problema

A urbanização, como fenômeno relativamente recente na história do homem, trouxe

consigo fenômenos que reforçam a dificuldade de atuação das esferas públicas, ainda mais se

termos em vista a mutabilidade das cidades, que requerem inovações do poder público e da

sociedade.

Como o mundo é cada vez mais urbano, é neste espaço em que as velhas e novas

contradições do sistema econômico atual se mostram com mais força. Nesse sentido, é

importante o conhecimento da trajetória que o desenvolvimento da cidade tomou ao longo da

história para que se compreendam os fenômenos recentes. Como se deu a urbanização no

Brasil, um dos países mais desiguais do mundo e, atualmente, um dos mais urbanos, entre os

subdesenvolvidos? De que forma o Estado brasileiro enfrentou os problemas que foram

surgindo, tendo em vista os variados interesses que lhe influenciam as ações?

Além disso, importante se faz saber o estágio atual do debate a respeito do urbano,

com ênfase no direito à cidade que aglomera em si praticamente todas as reivindicações

sociais concernentes à vida nos espaços urbanizados presentes em todo globo. Que

reivindicações são essas e qual sua importância?

Essas perguntas, entre outras secundárias, compõem o tema e o problema do presente

trabalho.

1.2 Objetivos

1.2.1 Objetivo Geral

O objetivo geral deste trabalho é analisar questões relevantes para o entendimento da

questão urbana, tecendo comentários a respeito da realidade específica brasileira.

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1.2.2 Objetivos Específicos

- Abordar a complexidade das cidades de forma conceitual;

- Indicar as tendências dos fenômenos urbanos em escala mundial;

- Recuperar o debate sobre direito à cidade;

- Explorar a questão urbana brasileira partindo de um breve histórico da urbanização,

discutir acerca do seu caráter desigual e tecer considerações acerca das políticas urbanas, sua

evolução e eficácia.

1.3 Justificativa

O tema escolhido para análise tem sido constantemente discutido no Brasil e no

mundo. A 5ª edição do Fórum Urbano Mundial, entitulada “Direito à Cidade – Unindo o

Urbano Dividido” demonstra que, mais uma vez, autoridades governamentais, lideranças

comunitárias, pesquisadores e diversos tipos de organizações sociais se reúnem para discutir

as várias faces das desigualdades sociais que dividem, muitas vezes de modo violento, os

territórios das cidades.

A idéia de trabalhar com questões relevantes dentro do debate sobre às cidades pode

ser justificada pela significativa presença do tema adentrando as esferas institucionais,

inclusive dos organismos internacionais, o que torna a luta pelo direito à cidade cada vez mais

presente. Este debate busca alternativas para amenizar os padrões desiguais, precários e

predatórios de urbanização que estão se disseminando, de modo destrutivo, em várias partes

do planeta. Tais padrões são produzidos pelas forças desregradas e desagregadoras dos

mercados formais e informais que promovem formas excludentes de uso e ocupação do solo

urbano, que segregam os locais de moradias dos grupos de alta, média e baixa renda. (DAVIS,

2006)

Tanto pela importância global, quanto pelo interesse pessoal em aprofundar o

conhecimento sobre o assunto, este trabalho se configura como uma contribuição à discussão

já existente. Partindo de um ordenamento da revisão teórica, os dados relativos às cidades são

Page 12: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

12

analisados e, em seguida, são tecidas considerações acerca da atuação do Estado frente aos

problemas urbanos. Pensar nas cidades como espaços urbanos harmônicos exige o estudo e a

reflexão sobre o tema, objeto deste trabalho.

1.4 Metodologia

Para o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa foi dada uma abordagem

qualitativa à problemática central. A fim de compilar o máximo de informações a respeito dos

problemas enfrentados na cidade e a contrapartida da ação pública, buscou-se organizar

coerentemente as ideias originadas de diferentes referências bibliográficas para enriquecer a

análise em questão.

O método de pesquisa utilizado foi descritivo, pois traz dados de institutos de

pesquisa e órgãos governamentais para melhor analisar e ilustrar comparativamente as

variáveis em estudo. O tema foi estudado também pelo método explicativo de pesquisa que

serviu para melhor esclarecer os dados coletados, auxiliando no desenvolvimento do estudo.

A análise teórica se deu fundamentalmente através de pesquisa bibliográfica, mas

contou também com a pesquisa documental. A primeira contribuiu para a apreensão da teoria

e da contextualização do tema, enquanto a segunda, através da coleta de dados em órgãos

governamentais e agências multilaterais (p. ex.: Agência HABITAT, CENUEH – Centro das

Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística), trouxe evidências para as constatações apresentadas ao longo da pesquisa.

A questão urbana foi abordada neste trabalho conforme breve descrição a seguir.

A primeira parte deste trabalho dedica-se à compreensão da forma urbana. Da

conceituação do termo cidade ao entendimento da dinâmica espaço-temporal compreendida

por estes espaços, a realidade passa a ser observada de acordo com tendências mundias da

urbanização. A partir desta realidade, que denota um futuro cada vez mais urbano, aparece o

tema do direito à cidade, que determina aos cidadãos o direito ao usufruto das cidades dentro

dos princípios da sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social.

O capítulo 3 se apropria do conteúdo do anterior para analisar o caso brasileiro da

urbanização e suas contradições. Um breve histórico elucida o caráter desigual das cidades –

com auxílio de dados – e a partir daí o texto se estende na análise do papel do Estado e da

evolução das políticas públicas voltadas à garantia do direito à cidade.

Page 13: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

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1.5 Referencial Teórico

A fim de trabalhar primeiramente com um panorama geral das cidades, este trabalho

trará a abordagem de diferentes linhas de pensamento. À economia se juntam as ciências

sociais e políticas, além da estatística, urbanismo e demografia. É a junção dessas diferentes

linhas que vai nos possibilitar embasar nossas hipóteses teóricas, de aspecto qualitativo, com

dados concretos do mundo e do Brasil (aspecto quantitativo).

De início, para entender a filosofia do direito à cidade será de fundamental

importância fazer uso das obras de Henri Lefebvre e David Harvey, expoentes no assunto,

sendo o segundo não citado diretamente nesta pesquisa, apenas sendo utilizado pelos demais

autores que explicam o tema. O cenário da urbanização no mundo será estudado a partir da

obra Planeta Favela de Mike Davis e complementado por relatórios publicados pelo Centro

das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat).

Enquanto isso, o cenário nacional será descrito com auxílio das publicações de

Erminia Maricato, Marcelo José Lopes de Souza, Roberto Luís de Melo Monte-Mór entre

outros. Aqui tratamos de assuntos que vão da panorâmica atual das cidades brasileiras às suas

projeções para o futuro, passando por análises das práticas de gestão das políticas urbanas e

seus resultados.

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2 ENTENDENDO A FORMA URBANA

2.1 O conceito de cidade

A fim de iniciar a reflexão sobre o tema, este tópico aborda alguns conceitos e traça

um panorama geral dos complexos espaços urbanos.

Cada vez mais as cidades, ou o espaço político e sócio-cultural formado a partir delas,

se tornam o centro da organização da sociedade e da economia. A linha que separa o estudo

da sociedade em geral e da cidade, portanto, se atenua cada vez mais. Ainda assim, sua

separação e a identificação de características únicas são imprescindíveis para análise e

compreensão do tema.

A dificuldade em se tratar este tema de forma universal pode ser atestada quando são

pesquisadas as diferentes referências concernentes à conceituação dos termos cidade e urbano.

O relatório State of the Worlds Cities 2010/20112, elaborado pela agência HABITAT

da ONU, apresenta a cidade como reflexo das ações da humanidade. De forma subjetiva,

propõe que o espaço urbano concentra ao mesmo tempo os questionamentos e as soluções

para seus problemas recorrentes. Esta dinâmica é, portanto, definida:

Cities are perhaps one of humanity‟s most complex creations, never finished, never

definitive. They are like a journey that never ends. Their evolution is determined by

their ascent into greatness or their descent into decline. They are the past, the

present and the future. Cities contain both order and chaos. In them reside beauty

and ugliness, virtue and vice. They can bring out the best or the worst in

humankind. They are the physical manifestation of history and culture and

incubators of innovation, industry, technology, entrepreneurship and creativity.

(UN-HABITAT, 2008, p. xii)

Esta descrição aglutina idéias de diferentes estudiosos do tema. As características

específicas abordadas acima serão mais bem exploradas no decorrer do trabalho.

Depreende-se desta concepção do termo cidade o caráter temporário dos espaços

urbanos, percebidos como estruturas nunca acabadas. Lefebvre (2008) reconhece, no mesmo

sentido, a cidade como um “organismo vivo” e afirma que não há possibilidade de reduzi-la a

um simples resultado, como se a história pudesse estar refletida em uma esfera espacial,

pronta para análise no tempo presente.

2 O relatório está disponível para download no endereço eletrônico:

<http://www.unhabitat.org/pmss/listItemDetails.aspx?publicationID=2917>.

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Esta característica de constante mutabilidade é imprescindível ao acompanhamento da

dinâmica da sociedade. Isso porque o espaço urbano não se impõe aos cidadãos como um

sistema fechado e completo, posto que seja resultado de suas relações sociais, indissociáveis

dos elementos que o constituem e daquilo que o contém. (Lefebvre, 2008)

Sua sugestão é que a especificidade dos fenômenos urbanos é dependente de um fator

de imediatice, conforme trecho:

A cidade depende também e não menos essencialmente das relações de imediatice,

das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade (famílias,

corpos organizados, profissões e corporações etc.); ela não se reduz mais à

organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas metamorfoses se

reduzem às mudanças nessas relações. Ela se situa num meio termo, a meio

caminho entre aquilo que se chama de ordem próxima (relações dos indivíduos em

grupos mais ou menos amplos, mais ou menos organizados e estruturados, relações

desses grupos entre eles) e a ordem distante, a ordem da sociedade regida por

grandes e poderosas instituições (Igreja, Estado), por um código jurídico

formalizado ou não, por uma “cultura” e por conjuntos significantes. (LEFEBVRE,

2008, p. 52)

A ordem próxima, não reflete uma ordem dada, mas sim, uma ordem socialmente

construída por relações sociais geralmente subordinadas à ordem distante. Carlos (2009), na

mesma direção, retrata o espaço geográfico com uma origem histórica que, enquanto espaço

destas relações, é como um “fazer incessante”, fruto de uma produção humana contínua:

Não é, apenas e tão-somente, produto da história, na medida em que a aparência

reproduz a história. A paisagem urbana, enquanto forma de manifestação do espaço

urbano, reproduz num momento vários momentos da história. Aí emergem os

movimentos, a multiplicidade dos tempos que constituem o urbano. (CARLOS,

2009, p.24)

É fundamental conseguir distinguir a cidade, elemento visível e concreto, passível de

recortes, e o urbano enquanto espaço de sua complexidade, local de interação entre os

diferentes modos de vida. Sendo delimitada espacialmente, a cidade pode ser considerada

como o lugar de concentração da população urbana, produção, circulação e consumo de bens

e serviços, esfera de decisão política do urbano.

Segundo Corrêa (1993), a cidade é o lócus de interação entre os agentes que, ao

mesmo tempo produtores e consumidores do espaço, atuam de modo a seguir a dinâmica da

acumulação capitalista, ou seja, desempenham um papel na reprodução das condições de

produção e das relações de produção. Para isso, a cidade dispõe de uma característica de

mutabilidade complexa. As formas espaciais e suas funções são alteradas constantemente,

enquanto o espaço se mantém articulado e fragmentado, sendo, ao mesmo tempo, reflexo e

condicionante social. Sobre esta definição, o autor conclui:

Page 16: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

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Eis o que é o espaço urbano: fragmentado e articulado, reflexo e condicionante

social, um conjunto de símbolos e campo de lutas. É assim a própria sociedade em

uma de suas dimensões, aquela mais aparente, materializada nas formas espaciais.

(CORRÊA, 1993, p. 9)

A produção espacial ocorre a partir do processo de reprodução do capital e esta

afirmação fica mais crível quando estudada a origem dos espaços urbanos. Enquanto o

processo produtivo é visto como o principal agente das mudanças espaciais, é imprescindível

analisar o lado consumidor deste mesmo espaço urbano. Trata-se do trabalhador ou

consumidor de modo geral que, muito além da esfera produtiva, tem necessidade de habitar

este espaço e deve ter acesso aos meios de consumo coletivos. (CARLOS, 2009, p. 30)

As relações entre os agentes consumidores e produtores de espaço reflete as próprias

relações de produção e se dá, portanto, de maneira desigual, produzindo contradições e

conflitos inevitáveis, que serão retomados adiante. Carlos (2009, p. 34) reflete que: “a

sociedade produz o espaço a partir da contradição entre um processo de produção socializado

e sua apropriação privada. Portanto, o espaço se reproduz, reproduzindo conflitos.”

A fim de decifrar estas relações vale lembrar que toda reflexão sobre a cidade passa

por uma reflexão de ordem política. Para Lefebvre, as relações determinantes de processos

globais só se inscrevem no contexto urbano quando transcritas por ideologias, interpretadas

por tendências estratégicas e políticas; esta característica acaba por determinar uma

disfuncionalidade do espaço urbano, regido por interesses das classes no poder.

É importante ressaltar também que qualquer método utilizado para análise do espaço

urbano deve tê-lo como produto do processo de produção num determinado momento

histórico, que compreende determinações econômicas, mas também sociais, políticas,

ideológicas e jurídicas, que se articulam na totalidade da formação econômica e social, idéia

reforçada no seguinte trecho:

[...] a cidade aparece como materialidade, produto do processo do trabalho, de sua

divisão técnica, mas também da divisão social. É materialização de relações da

história do homem, normatizada por ideologias; é forma de pensar, sentir consumir;

é modo de vida, de uma vida contraditória. (CARLOS, 2009, p.26)

Depreende-se que o processo de reprodução espacial se dá em uma sociedade

hierarquizada, o que faz com que a cidade se apresente como um produto apropriado

diferencialmente pelos cidadãos.

O relatório do State of the World’s Cities 2010/2011 aponta esta diferença na forma

em que os espaços e as oportunidades são produzidos e apropriados. As desigualdades

espaciais visíveis em tantas cidades são apresentadas como o “resultado das disparidades

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socioeconômicas e de grandes processos de desenvolvimento urbano, governança e exclusão

institucionalizada de grupos específicos.” (ONU-HABITAT, 2010, p. 13)

O tema da desigualdade é tão gritante que acabou por nortear os debates do último

Fórum Urbano Mundial, sediado no Rio de Janeiro em março deste ano. A escolha do tema

“Direito à Cidade: Unindo o Urbano Dividido” já denota esta preocupação. Segundo a UN-

HABITAT:

A society cannot claim to be harmonious if large portions of its population are

deprived of basic needs while others live in opulence. A city cannot be harmonious

if some groups concentrate resources and opportunities while others remain

impoverished and deprived. (UN-HABITAT, 2008, p. 50)

O espaço urbano dividido resulta, prioritariamente, da exclusão econômica e leva à

exclusão social, política e cultural. Cada uma dessas dimensões influencia a maneira como as

iniciativas de políticas podem contribuir de maneira positiva na redução da desigualdade. A

divisão desigual do espaço físico e social tem como causas aparentes (1) a sub-urbanização -

periferização e crescimento para as regiões fora da cidade, e (2) os fenômenos urbanísticos

recentes que compreendem as megarregiões, corredores humanos e cidades-região3.

No primeiro caso, a distância física social entre os bairros pobres e ricos, ou o simples

afastamento de áreas do tecido urbano, cria desafios ao excluir de interações sociais uma

parcela da população que, além disso, tem condições de vida deterioradas:

Tanto na forma de “periferização” (assentamentos informais) ou do “crescimento

descontrolado para as regiões fora da cidade” (zonas residenciais para grupos de

renda alta ou média), a sub-urbanização gera externalidades ambientais,

econômicas e sociais negativas. Nos países em desenvolvimento, o fenômeno

acontece, sobretudo, como uma forma de escapar da má governança, da falta de

planejamento e de acesso ruim aos serviços e instalações. Pobres e ricos procuram

refúgio fora da cidade, gerando ainda mais divisão do espaço físico e social. (ONU-

HABITAT, 2010, p. 5)

Os fenômenos urbanísticos - segunda causa aparente – mesmo considerados novos

motores da economia global e das economias regionais, caminham para o mesmo sentido da

sub-urbanização. Apesar de melhorarem a interdependência entre as cidades, tendem a gerar

desequilíbrios ao fortalecer vínculos com os mesmos centros econômicos, ao invés de permitir

um desenvolvimento espacial mais amplo.

Davis (2006) traz outro recorte da forma urbana com o conceito “urbanização baseada

em regiões” dos geógrafos Adrian Aguilar e Peter Ward. Trata-se da caracterização do

3 Estes fenômenos são assentamentos urbanos em escala massiva que estão surgindo em várias partes do mundo,

unidades espaciais que estão unidas territorial e funcionalmente por sistemas econômicos, políticos,

socioculturais e ecológicos. (ONU-HABITAT, 2010, p. 4).

Page 18: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

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desenvolvimento periurbano contemporâneo em torno da Cidade do México, de São Paulo, de

Santiago e de Buenos Aires.

Os níveis mais baixos de crescimento metropolitano coincidiram com uma

circulação mais intensa de mercadorias, pessoas e capital entre o centro da cidade e

o seu interior, com fronteiras ainda mais difusas entre o urbano e o rural e

desconcentração industrial rumo à periferia metropolitana, principalmente além dos

espaços periurbanos ou da penumbra que cerca as megacidades.(AGUILAR e

WARD, 2003, p. 4 apud DAVIS , 2006, p. 21)

O mundo está diante de uma nova configuração das áreas urbanas que terá o registro

de uma desigualdade cada vez maior, tanto dentro das cidades de diferentes tamanhos e

especializações econômicas quanto entre elas.

O mesmo autor (2006, p. 18) observa que, apesar de todos estes novos fenômenos

exigirem uma releitura das políticas públicas voltadas para as cidades, “três quartos do

crescimento populacional futuro serão suportados por cidades de segundo escalão pouco

visíveis e por áreas urbanas menores”4. Nestes lugares, a carência de planejamento e de

recursos financeiros para acomodar essas pessoas vai impedir a oferta adequada de serviços

públicos.

A forma pela qual os cidadãos se organizam no ambiente urbano é relevante para o

debate a partir do momento que se entende sua origem. Moreno (SANTOS, 2001 apud

MORENO, 2002, p. 13) afirma que: “é enganoso pensar que os centros urbanos modernos são

os responsáveis pela destruição da experiência humana. As cidades são apenas a manifestação

representativa da civilização que adotamos”. Ou seja, constituídas principalmente a partir de

meados do século XIX, ao calor das grandes transformações que se seguiram à revolução

industrial, as cidades existentes e as ainda por nascer são/serão, em toda sua complexidade

espaço-temporal, da organização do homem na produção de sua vida, resultados inevitáveis,

passíveis de estudo e intervenção humana.

Esta complexidade espaço-temporal, construída de acordo com as formas pelas quais

as cidades e suas periferias foram se configurando ao longo do tempo, dentro do panorama

mais geral das reestruturações produtivas, necessidades e contradições do sistema capitalista,

deve ser levada em conta quando da elaboração de políticas urbanas, que é o escopo

pragmático de todas as considerações e tentativas de apreender a realidade urbana acima

exposta. Antes que sejam consideradas tais políticas, é imprescindível delinear os fenômenos

urbanos contemporâneos que, inseridos na mutabilidade interminável das cidades, são

4 Esta afirmação do autor está baseada em sua análise do relatório: UN-HABITAT. The Challenge of Slums:

global report on human settlements, 2003 (Londres, 2003), p. 3.

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continuidades dos movimentos anteriores, mas trazem sua carga de novidades, desafiadoras

dos agentes públicos responsáveis por dar-lhe um termo socialmente aceitável.

2.2 Urbanização: Tendências recentes

O rápido crescimento populacional da segunda metade do século XX vem arrefecendo.

Apesar disso, pelo fato de estar havendo uma melhoria nos índices de mortalidade e quedas

menos rápidas do que se esperava nas taxas de nascimento, o crescimento continuado da

população ainda perdurará por décadas5. Deste crescimento, boa parte será absorvida pelas

cidades dos países menos desenvolvidos.

A população do mundo atingiu um ponto de transição: em meados de 2009, o número

de pessoas vivendo em áreas urbanas (3,42 bilhões) superou o número de pessoas vivendo em

áreas rurais (3,41 bilhões) de acordo com dados da Divisão Populacional da ONU6 deste

mesmo ano (ver Figura 1). Este fato indica uma tendência de que as cidades serão

responsáveis por absorver quase todo o crescimento populacional do mundo. Estima-se que a

população urbana mundial deva crescer 84% entre 2009 e 2050, chegando a 6,3 bilhões de

pessoas, ante 2,86 bilhões de pessoas que estarão vivendo em áreas rurais.

5 The Population Reference Bureau. World Population Highlights: Key Findings from PRB‟s 2010 World

Population Data Sheet. Vol. 65, nº 2. Julho de 2010. Disponível em:

<http://www.prb.org/pdf10/65.2highlights.pdf>. 6 United Nations Department of Economic and Social Affairs/ Population Division. World Urbanization

Prospects: The 2009 Revision.

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FIGURA 1 – Populações rural e urbana do mundo, 1950-2050 Fonte: UNITED NATIONS - World Urbanization Prospects The 2009 Revision: Highlights. New York, 2010. Department of Economic and

Social Affairs - Population Division.

Entre as áreas urbanas, ganham ênfase as áreas dos países menos desenvolvidos7.

Enquanto a proporção urbana nas regiões mais desenvolvidas já era quase 53% em 1950,

ainda vai levar uma década para que metade da população das regiões menos desenvolvidas

viva em áreas urbanas (ver Figura 2). A região da América Latina e Caribe configura uma

exceção, pois já possui 80% de sua população vivendo em cidades.

A Ásia, em particular, deve presenciar, até 2050, um crescimento de 1,7 bilhões na

população urbana. Na África e na América Latina e Caribe este número será de 0,8 e 0,2

bilhões, respectivamente. Podemos dizer, então, que o crescimento populacional tem se

tornado cada vez mais um fenômeno urbano concentrado nas áreas do mundo em

desenvolvimento.8

7 The more developed regions comprise all regions of Europe plus Northern America, Australia/New Zealand

and Japan. The term “developed countries” is used to designate countries in the more developed regions. The

less developed regions comprise all regions of Africa, Asia (excluding Japan) and Latin America and the

Caribbean, as well as Melanesia, Micronesia and Polynesia. The term “developing countries” is used to

designate countries in the less developed regions. (ONU-HABITAT, 2010) 8 Ver: INTERNATIONAL INSTITUTE FOR ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT (London). David

Satterthwaite. The transition to a predominantly urban world and its underpinnings. Human Settlements

Discussion Paper Series 2009 - Theme: Urban Change –4. Disponível em:

<http://www.iied.org/pubs/pdfs/10550IIED.pdf>.

Page 21: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

21

FIGURA 2 – Populações rural e urbana por grupo de desenvolvimento Fonte: UNITED NATIONS - World Urbanization Prospects The 2009 Revision: Highlights. New York, 2010. Department of Economic and

Social Affairs - Population Division.

Nos países em desenvolvimento, o crescimento urbano rápido reflete três fatores

básicos: migração de áreas rurais para áreas urbanas, crescimento natural da população

(nascimentos menos mortes) entre residentes urbanos e reclassificação de áreas antes

consideradas rurais conforme mudanças de suas características.

Fatores que expulsam as pessoas do campo incluem a diminuição em qualidade e

quantidade das terras agricultáveis, estruturas de mercado falidas e ausência de instituições de

apoio, como as de crédito para pequenas propriedades familiares. Na América Latina a

distribuição desigual de terra – legado do colonialismo e da comercialização da agricultura –

contribuiu para o fenômeno de migração.

De acordo com Davis (2006), a urbanização do Terceiro Mundo manteve um ritmo

acelerado de crescimento (3,8% ao ano entre 1960 e 1993) mesmo durante os anos difíceis da

década de 1980 e no início dos anos 1990, período em que houve queda do salário real, alta

dos preços e disparada do desemprego urbano. A recessão urbana não chegou a reverter a

tendência da urbanização, o que indica que a vida precária nas zonas rurais continuou a

exercer pressão para fora, principalmente devido à deterioração das condições financeiras da

produção no campo, sem que tivesse havido políticas de contenção, da mesma forma como

foram insípidas diante da crise dos anos 1980 as políticas de urbanização.

Page 22: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

22

Durante as décadas de 1980 e 1990, principalmente, as áreas rurais sofreram com as

políticas de desregulamentação agrícola e as condicionalidades dos planos de ajuste estrutural

(PAEs) impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos governos nacionais. Isto fez com que os

produtores agrícolas se inserissem no mercado global de commodities, de difícil competição, e

se tornassem, cada vez mais, vulneráveis a choques internos ou externos, tais como seca,

inflação, aumento dos juros e queda do preço das commodities. A migração da população

rural para as cidades pode ser explicada apenas como uma alternativa para a população que

não poderia mais em áreas rurais garantir sua sobrevivência.

Sendo assim, a cidade como se conhece hoje foi se delineando ao passo das

transformações econômicas ocorridas na história. Num primeiro momento, houve a transição

da auto-suficiência (e isolamento) do campo para a subordinação deste à cidade e,

concomitantemente a esta inversão o espaço urbano vai se configurando enquanto condição

fundamental para a consolidação da indústria.

Lefebvre (2008, p. 124) ressalta que diante desta fase, “é essencial não mais considerar

separadamente a industrialização e a urbanização, mas sim perceber na urbanização o sentido,

o objetivo, a finalidade da industrialização.” Refere-se à industrialização, do modo como foi

(im)posta como sendo um instrumento de dominação ideológica do capital, que nega o social

urbano frente ao econômico industrial e ainda esclarece que:

[...] a cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a

generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-

las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma

virtual predominância e de uma revalorização do uso. (LEFEBVRE, 2008, p. 14)

Ferreira (2003) verifica na prática a teoria de Lefebvre para a América Latina

conforme trecho abaixo:

[...] esse crescimento industrial - baseado na aliança dos interesses das burguesias

nacionais e do capital internacional - tinha como condição a manutenção do baixo

valor da mão-de-obra abundante, o que restringia por princípio a possibilidade de se

oferecer habitações, infra-estrutura e equipamentos urbanos que garantissem

qualidade de vida aos trabalhadores. (FERREIRA, 2003, p. 1)

Na teoria, estes entraves à qualidade de vida nas cidades deveriam ser amenizados à

medida que a urbanização avançasse porque a idéia dos aglomerados urbanos é justamente

alcançar melhores padrões de vida à população. A alta densidade populacional deveria

diminuir o custo per capita de prover os serviços básicos como água potável, saneamento,

coleta de lixo, eletricidade, e os menos óbvios tais como atividades culturais e desportivas,

Page 23: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

23

além de facilitar a participação cidadã nos meios institucionais que discutem e põem em

prática políticas que afetam direta ou indiretamente as populações das cidades.

Infelizmente, junto à rápida urbanização percebe-se a impossibilidade de haver um

acompanhamento efetivo das economias locais, dos serviços públicos e da infraestrutura.

Como os recursos financeiros são limitados, em um determinado momento as pressões

política e econômica ditam para onde eles devem ser direcionados e isso gera exclusão social.

Outra variável que serve de parâmetro para a avaliação do cumprimento das promessas

que virtualmente a cidade faz é o aumento da renda. Segundo o relatório Estado das Cidades

no Mundo 2010/20119 a urbanização só cumpre o papel de geradora de renda se for

acompanhada de taxas de crescimento econômico e se conseguir distribuir benefícios e

oportunidades através de políticas adequadas:

Entretanto, quando a urbanização vem acompanhada de um crescimento econômico

fraco, quando faltam políticas distributivas ou quando as que existem são

ineficazes, a urbanização resulta na concentração local de pobres ao invés de trazer

uma redução significativa da pobreza. (ONU HABITAT, 2010, p. 6)

Os fenômenos recentes da urbanização, portanto, têm colocado em xeque a capacidade

das cidades absorverem pessoas e atenderem suas necessidades. O fato de que a maior parte

do crescimento populacional mundial previsto para as próximas décadas se dará nas cidades

dos países menos desenvolvidos, que sofrem de problemas crônicos em infra-estrutura,

financiamentos de longo prazo e distribuição de renda, possivelmente tornará ainda mais

distante a cidade da teoria, em que o rebaixamento dos custos dos serviços públicos resultante

da aglomeração populacional deveria ditar seu desenvolvimento, e a cidade da prática, em que

o rebaixamento dos mesmos custos diante da mesma aglomeração, estando inserido no

contexto da acumulação capitalista, que até hoje não pôde prescindir de populações

miseráveis compondo o exército industrial de reserva, não é motivação forte o suficiente para

melhorar as condições de vida da aglomeração (desde que ela exista), no jogo de interesses

que a cidade comporta.

Entretanto, como nos mostra a história, mudanças positivas nos espaços urbanos são

possíveis e têm ocorrido principalmente por causa das propostas, ações e lutas de uma miríade

de organizações e agentes sociais, das mais diversas especializações, que se esforçam por

apontar no império do poder econômico e financeiro caminhos alternativos que driblam os

9 O relatório State of the World’s Cities 2010/2011 tem uma versão em português onde constam somente o

resumo e as principais constatações do original. Trata-se do mesmo relatório cuja referência é a ONU-HABITAT

(2010) (em português). Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1063:estado-das-cidades-do-

mundo-20102011&catid=1:dirur&Itemid=7>.

Page 24: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

24

obstáculos. Atualmente, tais personagens participam do debate amplo a respeito do direito à

cidade, o qual é objeto do próximo tópico.

2.3 O direito à cidade

O direito à cidade tem evoluído ao longo dos últimos 50 anos sob a influência de

grupos sociais e organizações da sociedade civil, em resposta à necessidade de melhores

oportunidades para todos, em especial para os grupos marginalizados ou desfavorecidos que,

conforme visto no tópico anterior, tenderão a crescer num ritmo similar, senão maior, ao

aumento da população, que ocorrerá predominantemente em regiões pouco desenvolvidas.

Segundo Lefebvre (2008, p. 134) “o direito à cidade se manifesta como forma superior

dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar”.

Este direito, portanto, transcende o acesso irrestrito aos serviços públicos, pois deve ter como

premissas a busca pela liberdade de opinião e participação, assim como o acesso equitativo às

oportunidades.

Conforme AMIN e THRIFT (2002):

The right to the city ... should … make more practical the rights of the citizen as an

urban dweller… and user of multiple services. It would affirm, on the other hand,

the right of users to make known their ideas on the space and time of their activities

in urban areas; it would also cover the right to the use of the centre, a privileged

place, instead of being dispersed and stuck into ghettos. (KOFMAN; LEBAS, 1996,

p. 34 apud AMIN; THRIFT, 2002, p. 142)

Estes autores complementam que este seria o senso de cidadania urbana que se

pretende desenvolver, qual seja, a idéia da democracia como acesso, reciprocidade, utilização

plena das potencialidades humanas. Concordam com este senso os diversos estudiosos da

cidade que percebem na ação dos planejadores urbanos um instrumento de dominação

ideológica.

Sendo assim, a identificação de parâmetros para a “cidade ideal” requer a idealização

de um cenário pelos próprios cidadãos. Lefebvre (2008) lembra que, a fim de superar a

ideologia das políticas públicas, as teorias só avançam se levarem em conta a realidade urbana

em formação, ou a práxis (prática social) da sociedade urbana. Afirma ainda que qualquer

projeção de uma sociedade ideal, pelos planejadores das cidades não seria capaz de, sozinha,

atingir seu objetivo:

Page 25: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

25

Nem o arquiteto, nem o urbanista, nem o sociólogo, nem o economista, nem o

filosófico ou o político podem tirar do nada, por decreto, novas formas e relações.

[...] Nem um, nem outro cria as relações sociais. Em certas condições favoráveis,

auxiliam certas tendências a se formular (a tomar forma). Apenas a vida social (a

práxis) na sua capacidade global possui tais poderes. (LEFEBVRE, 2008, p. 109).

A regulação e a organização do espaço passam a ser visualizadas, neste debate, como

atividades que se associam diretamente com a realização dos direitos humanos, levando em

conta que é na cidade onde a maioria dos indivíduos estabelece sua moradia, exerce suas

atividades profissionais, constrói suas relações sociais e obtém acesso aos recursos ou bens

que lhe garantem a satisfação de suas necessidades básicas.

O direito à cidade serve, portanto, como um baluarte contra os tipos de

desenvolvimento exclusivo, a seletiva repartição de benefícios, a marginalização e a

discriminação nas cidades hoje. É a plataforma necessária à garantia dos direitos humanos.

Como expressão da busca pelo direito à cidade, em 2004, movimentos sociais e

organizações de todo o mundo, com apoio da UNESCO e da ONU-HABITAT, entre outras

entidades, desenvolveram a Carta Mundial do Direito à Cidade10

, que foi revista em 2005.

Esta iniciativa levou à adoção de cartas locais em várias cidades no mundo e pode ser vista

como um reconhecimento formal e explícito sobre a necessidade de incluir o direito à cidade

nas políticas, estratégias ou legislações das cidades, postura que vem sendo adotadas por

diversos países, pouco a pouco.

O Brasil, por exemplo, foi o primeiro país a incluir na sua Constituição (1988) um

capítulo específico sobre política urbana, cujos artigos específicos - 182 e 183 – foram

regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001)11

. Esta

regulamentação delega às autoridades municipais mais responsabilidade na implantação de

um conjunto de medidas que visa à garantia do direito à cidade, à defesa da sua função social

e à passagem para uma gestão urbana mais democrática (UN-HABITAT, 2010, p. xv)12

.

Alguns outros países e cidades aprovam aspectos de governança democrática que são

explícita ou implicitamente compatíveis com o conceito do “direito a cidade”, a exemplo:

For example, Rosario, Argentina‟s third largest city, has declared itself a “Human

Rights City” with a formal commitment to openness, transparency and

accountability. In Australia, the Victoria Charter of Human Rights and

Responsibilities (2006) refers explicitly to equal rights, including freedom, respect,

equality and dignity for all. Some other countries and cities endorse aspects of

democratic governance that are explicitly or implicitly consistent with the “right to

10

A íntegra da Carta Mundial do Direito à Cidade está na seção Anexos desta pesquisa. 11

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. 12

Informações traduzidas do relatório UN-HABITAT (em inglês).

Page 26: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

26

the city” concept: Dakar‟s Civic and Citizens’ Pact (2003); India‟s Citizen’s

Charter (1997); and Porto Alegre‟s Participatory Budgeting and Local Solidarity

and Governance Programme (2004). (UN-HABITAT, 2010, p. xvi)

Este reposicionamento das autoridades municipais foi iniciado na década de 1980 pela

cidade de Porto Alegre, com o seu Orçamento Participativo. Com base nele, mais de 70

cidades ao redor do mundo modelaram seus próprios procedimentos desde então.

Em 2004 se fez notar, também em Porto Alegre, o Programa de Governança Local

Solidária. Este projeto reforçou ainda mais a prática do orçamento participativo, convidando

todos os residentes da cidade para sentar-se em fóruns onde os projetos para o próximo

orçamento da cidade são propostos e priorizados. O programa é implementado em todos os 17

loteamentos urbanos (subdivisão municipal) da cidade, transformando Porto Alegre em uma

“cidade em rede participativa”.

A participação dos cidadãos no planejamento urbano é essencial e imprime um caráter

de comprometimento da população com um futuro que ela deseja ver materializado.

Conforme Barbosa (2008), a cidade deve ser

[...] o lugar da criação e da participação cidadã em seus mais diversos sentidos,

sejam estes urbanísticos, econômicos, culturais ou éticos. Isso significa que, não só

a cidade deve proporcionar as condições para que o ser humano se desenvolva

material e culturalmente, mas que a própria cidade deve ser fruto do desejo e obra

da ação política. (BARBOSA, 2008)13

Diante desta perspectiva, o direito à cidade deve inserir-se em todos os planejamentos

municipais e nas funções políticas, em forma de regulamentação e de práxis cidadã,

antecipando-se e combatendo a violação dos direitos humanos.

Como agregador de todos os direitos básicos, físicos e sociais, dos membros do

aglomerado urbano, sendo estudado e adaptado às novas necessidades e configurações do

urbano em seu imutável fazer-se, o direito à cidade é o ideário mais completo a ser perseguido

pelos gestores públicos que devem ter em mente, contudo, a imprescindível participação

daqueles que vivem na práxis os problemas a serem resolvidos.

Tendo sido delineados os conceitos, processos, tendências e debates relativos à cidade

e à urbanização, pode-se, agora, partir para a questão urbana no Brasil, sua evolução, suas

contradições e as contramedidas empregadas para tentar reduzir as disparidades presentes em

nossas cidades.

13

Artigo eletrônico, não possui página. Disponível em:<

http://www.riodemocracia.org.br/riodemocracia/site/acervo/artigo.php?id_content=55>

Page 27: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

27

3 A QUESTÃO URBANA NO BRASIL

A compreensão dos episódios da urbanização mundial, da complexidade conceitual

das cidades e dos direitos de seus habitantes, foram temas dispostos até o presente capítulo de

forma a preparar a análise para o caso brasileiro.

De forma mais contundente, a realidade das cidades brasileiras será construída da

seguinte maneira: em primeiro lugar, será delineado um breve histórico da urbanização

brasileira, com os paralelos necessários ao fenômeno em escala mundial. Em seguida a

desigualdade dos espaços urbanos brasileiros é evidenciada através de dados oficiais. Por fim,

analisar-se-á a evolução das políticas urbanas, lembrando o papel do Estado como agente

transformador do espaço e a evolução da legislação sobre as políticas públicas.

3.1 O processo de urbanização brasileira

O processo de urbanização brasileiro se deu, em grande parte, no século XX. Apesar

disso, o estado atual das cidades remete a uma condição antiga, característica dos períodos

colonial e imperial, que têm como marcas a concentração de terra, renda e poder.

A urbanização brasileira se intensificou na segunda metade do século XX, quando o

capitalismo industrial ganhou momento no país e dinamizou a economia a partir da

consolidação das grandes cidades industriais, particularmente São Paulo, o grande pólo do

Brasil. A transformação de uma economia agro-exportadora em uma economia centrada na

substituição de importações para o mercado interno redefiniu a cidade industrial como lócus

de dinamização e de transformações seletivas no espaço e na sociedade brasileiras.

O espaço dominado pela cidade cresceu, então, de forma intensa, e do mesmo modo a

vida da maioria da população. Nos 60 anos que separam 1940 de 2000 incorporaram-se às

cidades aproximadamente 125 milhões de pessoas (MARICATO, 2000), através

principalmente do fenômeno da imigração. A população urbana que correspondia a 26,3% do

total, passa a ser mais de 81% e, pelas novidades que o fenômeno da urbanização brasileira

demonstra, esta população urbana nasce já metropolitana: “Levando em conta que foi somente

na década de 60 que a população urbana superou a rural, pode-se afirmar que a transformação

Page 28: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

28

urbana no Brasil foi tão acelerada que fez coincidir, no tempo, a urbanização e a

metropolização” (BRITO E SOUZA, 2005).

Nos anos 80 o processo de metropolização teria uma inversão, cedendo lugar, em

crescimento populacional, ao processo de periferização. De todo modo,

Dos quase 170 milhões de habitantes brasileiros em 2000, aproximadamente 30%

moram em nove metrópoles. Duas delas estão entre as maiores cidades do mundo:

Rio de Janeiro (10,5 milhões de habitantes) e São Paulo (16,7 milhões). Um total de

13 cidades têm mais de um milhão de habitantes (MARICATO, 2000)

Este crescimento extraordinário da população urbana, cujas taxas no Brasil superou

em muito as vistas nos países desenvolvidos, deveu-se tanto pelas elevadas taxas de

fecundidade, quanto, principalmente, pela imigração, conforme estimam Brito e Souza

(2005):

No auge da expansão urbana, as altas taxas de fecundidade ainda tiveram grande

importância para esse excepcional crescimento demográfico, pois somente a partir

da segunda metade da década de 60, quando ela se acelera e se generaliza, há o

declínio dos níveis de fecundidade. Contudo, a maior parte do crescimento

demográfico urbano deve ser explicada pelo intenso fluxo migratório rural-urbano,

dentro do contexto do grande ciclo de expansão das migrações internas. Somente

entre 1960 e o final dos anos 80, o auge do ciclo, estima-se que saíram do campo

em direção às cidades quase 43 milhões de pessoas - total que inclui o chamado

"efeito indireto da migração", ou seja, os filhos tidos pelos migrantes rurais nas

cidades. (BRITO; SOUZA, 2005, p. 49)

Tal fenômeno, como será visto adiante, não foi acompanhado por políticas urbanas

adequadas, sendo, dentro das questões que interessavam aos governos que se sucediam,

marginal a questão da cidade.

A integração dos diversos espaços econômicos neste período, necessária para

viabilizar os programas de governo, que tiveram como preocupação básica a industrialização

do país, determinou que, além de ser intensiva, a urbanização fosse, também, extensiva. Nas

palavras de Monte-Mór (2006):

É a essa urbanização que ocorreu para além das cidades e áreas urbanizadas, e que

carregou com ela as condições urbano-industriais de produção (e reprodução) como

também a práxis urbana e o sentido de modernidade e cidadania, que tenho

chamado urbanização extensiva. A urbanização extensiva atingiu nos últimos 30

anos praticamente todo o país: estendeu-se a partir das regiões metropolitanas

articulando-se aos centros industriais, às fontes de matérias primas, seguindo a

infra-estrutura de transportes, energia e comunicações, criando e estendendo as

condições de produção e os meios de consumo coletivo necessários ao consumo da

produção industrial fordista que se implantava no país a partir do “milagre

brasileiro”. (MONTE MÓR, 2006, p. 16).

Page 29: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

29

Estes dois aspectos da urbanização – intensividade e extensividade – colocam desde

cedo a questão da habitação em pauta, pois, além dos projetos governamentais que, ao

preverem grandes obras e investimentos em infra-estrutura, foram moldando o espaço das

cidades, a desordem da ocupação pela população também o fez.

A primeira medida efetiva do governo para tentar financiar a ocupação do solo nas

cidades foi a criação do Banco Nacional da Habitação, em 1964. Ao mesmo tempo que

financiava os projetos de moradia, o BNH contribuía para a própria organização do espaço,

uma vez que seus recursos tinham como destinatária apenas uma pequena parte da população.

Segundo Maricato (2000):

Mas é com a implementação do SFH – Sistema Financeiro da Habitação, em 1964,

que o mercado de promoção imobiliária privada, baseado no edifício de

apartamentos, consolida-se por meio de uma explosão imobiliária. Além da

imagem das cidades, mudam também o mercado fundiário e vários aspectos da

cadeia produtiva (que, apesar disso, não abandona suas características de atraso em

relação ao processo de trabalho) (RIBEIRO, 1997; CASTRO, 1999 apud

MARICATO, 2000, p. 23)

E, complementando:

Infelizmente o financiamento imobiliário não impulsionou a democratização do

acesso à terra por meio da instituição da função social da propriedade. Essa era a

proposta da reforma urbana preconizada pelos arquitetos no Congresso do IAB –

Instituto de Arquitetos do Brasil – de 1963. A atividade produtiva imobiliária não

subjugou as atividades especulativas, como ocorreu nos países centrais do

capitalismo. O mercado não se abriu para a maior parte da população que buscava

moradia nas cidades. Ele deu absoluta prioridade às classes médias e altas.

(MARICATO, 2000, p. 23)

Assim, como a camada mais pobre da população foi excluída das iniciativas em

possibilitar o acesso à moradia, a urbanização no Brasil, principalmente a partir da década de

80, foi acompanhada pelo fenômeno da favelização.

Os efeitos perversos resultantes do aumento do contingente populacional deveriam ser

revertidos através da oferta adequada de serviços públicos mas, a partir de 1982, os recursos

para habitação e saneamento foram ainda mais restritos, o que contribuiu com o aumento do

número de favelas. Assistiu-se no Brasil a um aumento das periferias e aglomerados urbanos,

ou favelas. Enquanto a população brasileira cresceu a 1,9% ao ano entre 1980 e 1991, e 1,6%

entre 1991 e 2000, a população favelada cresceu respectivamente 7,65% e 4,18%. Em 1970, a

cidade de São Paulo tinha apenas 1,2% da população morando em favelas, segundo dados da

Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura Municipal (Sehab). Em

Page 30: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

30

2005, essa proporção sobe para 11%, segundo a mesma fonte. (MARICATO, in: DAVIS,

2006, p. 215)14

.

O fenômeno da favelização acompanhou, assim como a própria urbanização, as

necessidades de reprodução do capital, que, a partir da década de 1930 e após a de 1940,

principalmente, tornou-se predominantemente industrial. Como se verá no tópico 3.3.1, o

papel do Estado na urbanização é garantir as condições para que o capital possa acumular-se.

Entende-se daí por que motivo ele foi omisso na questão da moradia. Maricato (2000) mais

uma vez elucida a questão:

A industrialização baseada em baixos salários determinou muito do ambiente a ser

construído. Ao lado do grande contingente de trabalhadores que permaneceu na

informalidade, os operários empregados do setor industrial não tiveram seus

salários regulados pela necessidade de sua reprodução, com a inclusão dos gastos

com moradia, por exemplo. A cidade ilegal e precária é um subproduto dessa

complexidade verificada no mercado de trabalho e da forma como se processou a

industrialização. Até mesmo parte dos trabalhadores empregados na indústria

automobilística, surgida no Brasil nos anos 50, mora em favelas. (MARICATO,

2000, p. 31)

Assim, considerando a evolução da urbanização um fenômeno que não pode ser

estudado sem que se tenha em mente o modelo de desenvolvimento econômico que o Brasil

empregou, afirma Maricato (2000) que

O modo de vida da maior parte da população urbana – ao evidenciar a convivência

dos bens modernos e até mesmo do automóvel particular (de segunda ou terceira

mão) com o ambiente de um casebre cuja construção parece remontar a uma era

pré-moderna – leva à conclusão de que não é possível dissociar esse urbano e essa

moradia dessa sociedade e desse modelo de industrialização e desenvolvimento.2

A

tragédia urbana brasileira não é produto das décadas perdidas, portanto. Tem suas

raízes muito firmes em cinco séculos de formação da sociedade brasileira, em

especial a partir da privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre

(1888). (MARICATO, 2000, p. 24)

Quando as discussões a respeito da urbanização e das obrigações do Estado em regular

a construção das cidades de forma a atender as demandas sociais tomaram importância no

âmbito do governo, no final da década de 1980, a urbanização já estava tomando outro rumo.

As metrópoles passaram a crescer menos que as cidades periféricas, que além de absorver o

contínuo fluxo de imigração inter-regional, passaram a receber a própria população do núcleo

metropolitano, devido, principalmente, ao avanço do capital imobiliário.

Na realidade, as próprias atividades econômicas, notadamente a indústria, passam pelo

processo de periferização, de deslocamento das capitais para outros municípios, em

decorrência do uso dos espaços urbanos mais nobres, pela ação do Estado e pelo capital

14

Os dados são expostos por Ermínia Maricato no posfácio do livro Planeta Favela (2006) de Mike Davis.

Page 31: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

31

imobiliário (BRITO E SOUZA, 2005). Criam-se na periferia, assim, formas arcaicas de

produção do espaço, como a autoconstrução em loteamentos ilegais ou em áreas invadidas,

configurando extensas áreas de concentração de pobreza.

Brito e Souza (2005) esclarecem os números relevantes deste processo:

Quando se analisa a contribuição do núcleo para o crescimento do aglomerado,

nota-se que nos anos 80 ela já era inferior a 50,0% - e isto significa que as periferias

começavam a ter o comando do crescimento demográfico metropolitano. Na década

de 90, o peso dos núcleos metropolitanos continua a se reduzir, e os demais

municípios passam a responder por 62,0% do incremento total da população

metropolitana - proporção maior do que a do núcleo na década de 70. (BRITO;

SOUZA, 2005, p. 51-52).

Cunha (2003) aponta no mesmo sentido:

No Brasil, o fenômeno da metropolização teve como corolário um marcante

processo de "periferização" de boa parte da população nacional. De fato, a maioria

das regiões metropolitanas brasileiras havia apresentado, no período 1970-80, taxas

de crescimento mais elevadas em seus municípios periféricos. Nos anos 80, a

despeito do processo de desconcentração populacional e do fato de as sedes

metropolitanas terem registrado decréscimos em suas taxas de crescimento

populacional, o processo de periferização intensificou-se ainda mais, com os

municípios não centrais exibindo taxas elevadas e superiores às do núcleo

metropolitano. (CUNHA, 2003, p. 226)

A implicação desta periferização, segundo Maricato (2000), não poderia ser outro que

não o aumento relativo das regiões pobres. Segundo ela, os fenômenos que mais chamam a

atenção na urbanização nas últimas décadas são o aumento da pobreza e a escalada da

violência urbana sem precedentes:

Pela primeira vez em sua história, o Brasil tem multidões concentradas em vastas

regiões – morros, alagados, várzeas ou mesmo planícies – marcadas pela pobreza

homogênea. Nos anos 80 a sociedade brasileira conheceu também, pela primeira

vez, um fenômeno que ficaria conhecido como violência urbana: o início de uma

escalada de crescimento do número de homicídios, sem precedentes na história do

país. (MARICATO, 2000, p. 23)

A segregação espacial – cuja participação para sua manutenção pelo Estado será

estudada mais adiante, surge então como fenômeno de escala nacional. As oportunidades que

de fato havia nas primeiras décadas do século XX para a população imigrante e depois para a

população migrante (inserção econômica e melhora de vida) parecem quase extintas. A

extensão das periferias urbanas tem sua expressão mais concreta na segregação espacial ou

ambiental configurando imensas regiões nas quais a pobreza é homogeneamente disseminada.

Pela primeira vez na história do país registram-se extensas áreas de concentração de pobreza,

a qual se apresentava relativamente

Page 32: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

32

A segregação urbana é uma das faces mais importantes da desigualdade social e parte

promotora da mesma. À dificuldade de acesso aos serviços e infra-estrutura urbanos

(transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de

abastecimento, difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches, maior exposição à

ocorrência de enchentes e desmoronamentos etc.) somam-se menos oportunidades de

emprego (particularmente do emprego formal), menos oportunidades de profissionalização,

maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação contra

mulheres e crianças, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer.

A urbanização trouxe, por outro lado, melhorias em alguns aspectos importantes da

vida da população. A mortalidade infantil na década de 1940, por exemplo, era de 149 mortes

entre mil nascidos vivos, antes de atingir um ano de idade. Em 2010 essa taxa passou a ser de

22,5, segundo o IBGE (2010). Segundo Maricato (2000, p. 25), “a significativa diminuição do

índice num período relativamente curto, está relacionada, especialmente, à extensão da rede

pública de água, às campanhas de vacinação e ao atendimento às gestantes.”

Outro dado que apresentou significativa melhora foi a expectativa de vida ao nascer

que saltou de 42,7 anos, em 1940, para 73,1 anos, em 2010, segundo o IBGE (2010). Segundo

Maricato (2000)

Essa significativa melhora de indicadores não os torna homogêneos se consideradas

as diversas regiões no Brasil. Nas áreas mais pobres, especialmente no Nordeste, os

índices evoluem positivamente, mas mantêm uma diferença negativa em relação à

média nacional. Em 1940, por exemplo, a esperança de vida ao nascer na Região

Nordeste era de 38,4 anos, quando a média nacional era de 42,7. De qualquer modo,

há uma notável e clara melhora de vida de toda a população brasileira nesse período

se forem levados em conta os dados apresentados, pois tanto a queda da mortalidade

infantil quanto o aumento da esperança de vida ao nascer se referem a uma melhora

genérica. Trata-se da possibilidade de viver mais anos ou simplesmente de viver

mais de um ano de vida (no caso da mortalidade infantil). (MARICATO, 2000, p.

25)

E, indicando a urbanização como promotora desta evolução:

Não são necessários argumentos para relacionar a evolução desses indicadores ao

processo maciço de urbanização. Alguns dos principais fatores orientadores dessa

dinâmica são: socialização de informações, extensão do serviço de água potável,

extensão dos serviços de vacinas, acesso a antibióticos, atendimento médico ao

parto e à gestante, aumento da escolaridade, entre outras condições que são mais

acessíveis em meio urbano. (MARICATO, 2000, p. 26)

A urbanização no Brasil, portanto, teve diversos matizes, entre os quais a

concomitância entre ela e a metropolização, a integração que ela proporcionou entre a cidade

e o meio rural, chamada de urbanização extensiva, a periferização e a favelização, todas elas

com a concorrência importante da imigração e do descaso relativo do Estado, no que diz

Page 33: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

33

respeito às condições de vida que as cidades viriam a proporcionar à maioria de seus

habitantes.

Embora se tenham visto alguns avanços, as desigualdades acentuaram-se, sendo

importante seu estudo para que se entenda, de forma mais global, o processo de urbanização.

Este será, portanto, o objeto do próximo tópico.

3.2 O caráter desigual da urbanização brasileira

O caos urbano, as favelas, o transporte precário, a falta de saneamento e a violência

são alguns reflexos da trágica situação em que se encontram as cidades atualmente. Esses

problemas não podem ser pensados como características intrínsecas às áreas urbanas. Como

visto no tópico anterior, suas origens apontam para antecedentes históricos que, por serem

determinados por variáveis econômicas de um sistema reprodutor de desigualdades,

condicionam a vida nas cidades de acordo com esta determinação da economia, qual seja, que

a resolução dos problemas sociais não interfere (ou não pode interferir) na necessidade

primeira de continuar-se a acumulação de capital.

As disparidades socioeconômicas, tornadas evidentes na exclusão institucionalizada de

grupos específicos, aparecem, neste contexto, como fatores ao mesmo tempo geradores e

resultantes das desigualdades espaciais visíveis em tantas cidades.

Dentre os diversos critérios utilizados para se medir e qualificar as desigualdades nas

cidades, o índice de Gini e o déficit habitacional, com as matizes de interpretação que eles

comportam, estão entre os mais presentes na bibliografia deste trabalho. Segue-se, portanto,

uma análise sucinta destas variáveis, aplicadas à realidade brasileira atual – o que iluminará

ainda mais os tortuosos caminhos (pela indicação mesma dos resultados gerais em que

desembocaram), delineados no tópico anterior, pelos quais se deu sua urbanização.

3.2.1 A desigualdade através do Coeficiente de Gini

Segundo Anderson; Sweeney e Williams (2007), o Coeficiente de Gini é geralmente

usado para calcular-se a desigualdade na distribuição de renda em determinada população.

Page 34: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

34

Consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda, em

que todos têm a renda idêntica, e 1 corresponde à completa desigualdade, em que uma pessoa

detém toda a renda. Ele é capaz de exprimir realidades que o PIB per capita deixa obscuras e,

por focalizar a variável determinante, em última instância, da qualidade de vida em geral, é

exaustivamente citado no debate referente à cidade e suas contradições. A figura 3 oferece

uma base de comparação para as considerações seguintes, a respeito da realidade brasileira.

FIGURA 3 – Países agrupados por coeficiente de Gini (Baseado em renda, diversos anos) Fonte: UN-HABITAT, 2010, p. 63

A tabela acima exclui os países desenvolvidos que, em geral, encontrar-se-iam nas

duas primeiras colunas, à esquerda. Como se pode observar, o Brasil se encontra, segundo a

ONU, no grupo de países caracterizados por apresentarem altíssima desigualdade na

distribuição de renda, junto com vários outros países da América Latina. Entretanto, nesta

região, constatou-se que, em nove deles, o coeficiente de Gini urbano diminuiu ligeiramente

de 1999 para 2006. A desigualdade urbana, portanto, está caindo, embora ainda mantenha

índices elevados. Esta é uma análise da ONU-HABITAT no relatório State of the World’s

Cities 2010/2011 que avaliou a distribuição de renda em 17 países selecionados na região.

A Nicarágua foi o país que registrou a maior queda de Gini (aproximadamente 10%)

no período. As melhores performances após a da Nicarágua ficaram a cargo de Brasil, Chile,

Panamá e Peru, onde o coeficiente de Gini baseado na renda estreitou-se durante este período,

em 7,4%, 6,5%, 5,6% e 5,4%, respectivamente.

Considerando algumas cidades brasileiras, de acordo com a ONU-HABITAT (2010),

Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Brasília, apresentam um coeficiente de Gini (baseado em

Page 35: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

35

renda) superior a 0,60, o que as posiciona como as mais desiguais na América Latina. Se

avaliadas em escala mundial, ficam atrás apenas das cidades sul africanas que lideram o

ranking, conforme mostra a figura abaixo:

FIGURA 4 – Cidades mais desiguais (Gini baseado em renda): cidades selecionadas no mundo em

desenvolvimento (1993-2008) Fonte: ONU-HABITAT, Observatório Urbano Global, 2009. dados da CEPAL, CESAP, UNU e outras fontes.

Embora esta posição nada honrosa ocupada pelo Brasil seja preocupante, vale ressaltar

que entre os anos de 2005 e 2007 muitas cidades brasileiras presenciaram uma queda no

Índice de Gini, a exemplo de São Paulo (18%), Rio de Janeiro (12%) e Brasília (6%).

Esta redução contribui para o rebaixamento do índice calculado para o país como um

todo: de 0,63 em 1999, o índice caiu para 0,60 e 0,58 em 2004 e 2007 respectivamente. A

queda gradual deste índice pode ser atribuída, segundo a ONU-HABITAT (2010), a três

fatores: padrões demográficos, política educacional e proteção social.

Considera-se, por exemplo, a redução do crescimento demográfico nas regiões

metropolitanas, decorrente, em parte, do declínio das taxas de fecundidade que, em 1970, era

de, aproximadamente, 5,8 filhos por mulher e que atualmente é de 1,94 (IBGE, 2010), um

padrão demográfico que contribuiu para a melhora do índice de Gini.

Quanto à política educacional, o Estado avançou na fiscalização e controle dos

programas educacionais através da Política Nacional de Educação Infantil, elaborada pelo

Page 36: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

36

MEC e dos Parâmetros Curriculares Nacionais15

. Junto a isso, a busca pela admissão

universal à escola primária e a redução efetiva nas taxas de repetição escolar contribuíram

para a queda do índice de Gini geral. (ONU HABITAT, 2010, p. 77)

A proteção social desponta como maior responsável pela redução do índice de Gini no

Brasil. Merece destaque o Programa Bolsa Família, programa de transferência de renda às

famílias mais pobres em vigor desde 2003. Melhorias em outras esferas de proteção social,

como, por exemplo, o aumento do salário mínimo real em mais de 70% no período de 1995 a

200716

também contribuíram positivamente.

Estas políticas sociais bem delineadas e objetivadas estimularam a demanda agregada

e o consumo, o que ampliou o mercado doméstico, e, por conseqüência, a renda e o poder de

compra da população.

Apesar da importância do Índice de Gini enquanto um indicador de distribuição de

riqueza, a análise da desigualdade urbana, na maioria dos estudos sobre o tema, é feita

excessivamente através dele. Os índices de desigualdade de renda não são suficientes para

descrever o que está acontecendo exatamente em uma comunidade, ou como esta comunidade

pode mudar para melhor ou pior. A desagregação dos coeficientes de incidência de pobreza

em área urbana e rural, ou em cores de pele, entre outras, é um pouco mais esclarecedora (em

2005, por exemplo, os níveis de pobreza foram três vezes maiores nas áreas rurais do que nas

cidades, e foram particularmente graves entre os afro-descendentes), sendo recomendada sua

análise para futuros trabalhos, embora escape ao propósito deste.

Trabalhar, então, com a avaliação de dados de desigualdades de renda urbana isolados

pode camuflar outros tipos de disparidades, ou falhar ao capturar o alcance do serviço público

entregue. Este trabalho, portanto, não se demora neles e traz algumas outras evidências sobre

a desigualdade urbana, por ir ao encontro da idéia do Human Development Report (UNDP,

1990), que afirma que o objetivo principal a ser perseguido pelos formuladores de políticas

públicas vai além da garantia da renda.17

15

Estes parâmetros estão disponíves no seguinte endereço eletrônico:

<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/eduinfpolit2006.pdf>. 16

Para mais informações, consultar:

<http://www.mte.gov.br/dados_estatisticos/anuario_2008/arquivos/pdf/anuario_trabalhadores_2008.pdf>. 17 Para reforçar esta idéia o Relatório de Desenvolvimento Humano (Human Development Report) feito pelo

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (United Nations Development Programme –

UNDP) apresenta a seguinte informação: “Technical considerations of the means to achieve human development

- and the use of statistical aggregates to measure national income and its growth - have at times obscured the fact

that the primary objective of development is to benefit people. There are two reasons for this. First, national

income figures, useful though they are for many purposes, do not reveal the composition of income or the real

beneficiaries. Second, people often value achievements that do not show up at all, or not immediately, in higher

measured income or growth figures: better nutrition and health services, greater access to knowledge, more

Page 37: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

37

Ou seja, o desenvolvimento de um país, ou em menor escala, de uma cidade, está

essencialmente ligado às oportunidades que oferece à população de fazer escolhas e exercer

sua cidadania. E isso inclui não apenas a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde,

educação e habitação, mas também segurança, liberdade, acesso à informação, cultura, entre

outros fatores que permitem a expressão de suas identidades sociais e culturais. Mais

freqüentemente do que não, estas formas de capital social não são refletidas em pesquisas

econômicas que estão mais ligadas às questões de renda para vários grupos. Para melhor

avaliar o desenvolvimento nas áreas urbanas, portanto, a análise deve contar com novas

informações.

Para avaliar pormenorizadamente o desenvolvimento nas áreas urbanas, portanto, seria

necessário contar com informações que, transcendendo a esfera dos direitos básicos e, talvez

por isso, transcendendo as próprias estatísticas disponíveis, uma vez que estas se concentram

naqueles, não se encontram facilmente. Desta forma, sem prejuízo para os objetivos deste

trabalho, optou-se pela análise de mais um índice, conforme já citado – o do déficit

habitacional, que, por se concentrar nas cidades e por ser um dos índices mais ligados à

própria materialidade espacial delas, responde satisfatoriamente aos requisitos impostos pelos

objetivos indicados.

De qualquer forma, o item 5.3 deste trabalho, responsável por delinear o papel do

Estado e a política urbana brasileira trarão algumas considerações a respeito desses direitos

“não-básicos”, principalmente o que se refere à participação cidadã na tomada de decisão a

respeito dos rumos das cidades.

3.2.2 A desigualdade através do déficit habitacional

Este tópico traz dados relativos ao déficit habitacional no Brasil18

. A moradia, fator

que norteou os primeiros passos do planejamento urbano no país, foi escolhida de forma

proposital, pois os dados referentes à questão habitacional abarcam outras políticas urbanas.

secure livelihoods, better working conditions, security against crime and physical violence, satisfying leisure

hours, and a sense of participating in the economic, cultural and political activities of their communities. Of

course, people also want higher incomes as one of their options. But income is not the sum total of human life.

(PNUD, 1990, p. 9) 18 Esta subseção baseia-se no relatório Déficit Habitacional no Brasil 2007 elaborado pelo Centro de Estatística

da Fundação João Pinheiro a pedido do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Habitação.

Disponível em: < http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-habitacional-no-brasil>.

Page 38: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

38

Alerta-se, de antemão, que a solução mais indicada para melhorar as condições

habitacionais da população mais pobre, o que significa, em última instância e de acordo com a

teoria marxista, garantir a reprodução da força de trabalho, não provém, única e

exclusivamente, de melhorias nos programas de habitação. Para que sejam viabilizados, esses

programas devem ser integrados a outras políticas urbanas, a exemplo, transporte, energia

elétrica, esgotamento sanitário e abastecimento de água. Conforme reconhece Costa (1986):

A habitação em seu sentido amplo, ou seja, não como um simples abrigo, mas a

moradia bem localizada em relação aos lugares das atividades diárias de seus

moradores e dotada de todos os serviços urbanos essenciais, tais como os de

transportes, de saneamento e saúde, de educação e de lazer, entre outros, coloca-se

no centro do consumo coletivo necessário à reprodução da força de trabalho.

(COSTA, 1986, p. 167)

A pesquisa Déficit Habitacional no Brasil 2007 além de apontar a necessidade de

construção de novas moradias avalia as especificidades internas dos domicílios a fim de

mensurar a qualidade de vida dos moradores (conceito de inadequação de moradias).

Em 2007 o déficit habitacional no Brasil foi estimado em 6,27 milhões de domicílios,

dos quais 82,6%, correspondentes a 5,18 milhões, estavam localizados em áreas urbanas. O

mesmo estudo estima que na região Sudeste se concentra o grande percentual das carências,

37,2% do total (2,34 milhões). Ela é seguida de perto pela região Nordeste, com 34,2% (2,14

milhões). Também merecem destaque as regiões metropolitanas, responsáveis por 29,6%

(1,86 milhão) do total do déficit. (Ver Figura 5)

Dentre as unidades da Federação, merecem destaque os valores absolutos do déficit

habitacional em São Paulo: estima-se a necessidade de 1,23 milhão de novas moradias, o que

corresponde a 9,6% dos domicílios. Quanto à região metropolitana o déficit é de 629 mil

moradias.

Page 39: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

39

FIGURA 5 – Déficit Habitacional Total, segundo Unidade da Federação – Brasil - 2007 Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 2007

Devem ser também mencionados os estados de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e

Maranhão que apresentaram déficit absoluto de 521 mil, 511 mil, 479 mil e 461 mil,

respectivamente. Maranhão é o estado que apresenta o maior déficit percentual habitacional

total em relação ao total de domicílios, 29,5%.

Quando a avaliação do déficit passa a ser feita com relação ao total de domicílios,

continua grande a diferença entre as regiões. Na Sudeste ele representa 9,3% do total dos

domicílios, enquanto na região Sul, 7,9%. Com maiores índices se encontram a região

Nordeste, com 15%, e a Norte, onde as carências representam 16,7% dos domicílios. Nessas

duas últimas regiões o déficit nas áreas rurais é superior a 18%. (FIGURA 6)19

.

19

Os dados desta figura estão apresentados na seção Anexos – Tabela 1.

Page 40: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

40

FIGURA 6 – Déficit Habitacional Total em relação ao total dos Domicílios, segundo Unidade da Federação –

Brasil - 2007 Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 2007

Quando avaliado o componente renda (faixas de renda média familiar mensal) é

confirmada a concentração do déficit na faixa de até três salários mínimos, o que corresponde

a 89,4% do total. Ao se considerar a faixa de renda imediatamente superior (mais de 3 e

menos de 5 salários) são mais 6,5% das famílias, totalizando 95,9% das carências urbanas.

(Ver seção Anexos – Tabela 2). Tais dados fortalecem a afirmação de Ferreira (2003)

concernente à impossibilidade do novo padrão de acumulação brasileiro - industrial a partir da

década de 60 - contribuir para melhores condições de vida da população ou diminuir o déficit

habitacional, uma vez que depende da manutenção das desigualdades, que asseguram sua

mão-de-obra barata e abundante.

Após este levantamento, o Ministério das Cidades anunciou no 5º Fórum Urbano

Mundial, que de 2007 para 2008 o déficit habitacional no Brasil foi reduzido de 6,3 milhões

para 5,8 milhões de domicílios, o que corresponde a uma queda de 8%. O país já havia

registrado queda de 2006 para 2007 e a razão principal desses resultados está ligada à

melhoria da renda. Esses dados foram atualizados pela Instituição João Pinheiro, autora do

relatório de Déficit Habitacional da qual este trabalho se utiliza, com informações do IBGE e

da Pnad.

Tais dados ainda não são tranqüilizadores e, além de revelarem um dos aspectos mais

grotescos da atual realidade urbana no país, em que se nega a uma parcela de seus

Page 41: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

41

“moradores” as condições de serem assim denominados, com todas as implicações funestas

que a ausência de um domicílio pode causar na vida de uma pessoa, colocam o debate a

respeito do direito à cidade, por mais importante que seja, numa posição de virtual utopia para

essas pessoas. Como se pode pensar nos direitos mais imateriais, melhor compatíveis com os

países desenvolvidos, quando não se tem um teto sob o qual dormir?

Infelizmente, estes dados podem ser piores quando a análise dos domicílios passa a ser

feita segundo os critérios de inadequação das moradias.20

A metodologia para esta análise,

segundo a Fundação João Pinheiro, considera enquanto objeto de estudo apenas os domicílios

não identificados como em situação de déficit habitacional em função de sua estrutura física

(domicílios duráveis21

).

A inadequação de domicílios é classificada segundo os critérios de inadequação

fundiária, carência de infraestrutura, ausência de banheiro de uso exclusivo, cobertura

inadequada e adensamento excessivo dos domicílios próprios. Dados mais atualizados já

estimam que os domicílios inadequados totalizem 11,25 milhões no Brasil, o que representa

24,1% das moradias urbanas22

.

TABELA 1 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, segundo regiões geográficas e regiões

metropolitanas (RMs) – Brasil - 2007

ESPECIFICAÇÃO INADEQUAÇÃO

FUNDIÁRIA DOMICÍLIO SEM

BANHEIRO CARÊNCIA DE

INFRAESTRUTURA ADENSAMENTO

EXCESSIVO COBERTURA

INADEQUADA

Norte 85.199 194.648 1.650.281 208.435 103.049

Nordeste 400.694 424.741 3.658.276 347.054 42.875

Sudeste 962.349 156.226 2.059.998 741.035 161.131

Sul 365.855 93.361 1.311.034 117.792 201.877

Centro-Oeste 65.810 59.801 1.775.358 86.393 34.134

Brasil 1.879.907 928.777 10.454.947 1.500.709 543.066

Total das RMs 1.031.059 183.968 2.383.349 669.223 148.589

Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 2007

20

Para a análise dos domicílios segundo os critérios de inadequação: Em primeiro lugar, apenas são objeto de

estudo os domicílios não identificados como em situação de déficit habitacional em função de sua estrutura

física. São excluídas, portanto, as habitações precárias – as improvisadas e as rústicas – e os domicílios do tipo

cômodo, incluídos como coabitação familiar. Em segundo lugar, como as variáveis consideradas são

características das áreas urbanas, são excluídos da análise os domicílios localizados nas áreas rurais. Finalmente,

como um domicílio pode ser inadequado segundo mais de um critério, não é possível sua totalização sob pena de

dupla contagem. 21

Não são considerados nesta análise os domicílios não-duráveis: Domicílios improvisados são os locais

construídos sem fins residenciais que servem como moradia, tais como barracas, viadutos, prédios em

construção, carros etc.; Domicílios rústicos são aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, que

causam desconforto e risco de contaminação por doenças, em decorrência das suas condições de insalubridade e,

por fim; Cômodos são domicílios particulares compostos por um ou mais aposentos localizados em casa de

cômodo, cortiço, cabeça-de-porco etc.; Coabitação Familiar compreende a soma das famílias conviventes

secundárias e das que vivem em domicílios localizados em cômodos – exceto os cedidos por empregador.

(BRASIL, 2009) 22

Extraído de: <http://www.cidades.gov.br/noticias/deficit-habitacional-cai-novamente-de-14-9-para-14-5-do-

total-de-domicilios> Outubro de 2008.

Page 42: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

42

GRÁFICO 1 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, por especificações – Brasil - 2007 Fonte: Elaborado pelo autor com dados da Tabela 123.

Entre os critérios de inadequação de domicílios analisados, a maior preocupação recai

sobre a carência de infraestrutura urbana. Excluídos os domicílios inseridos no cálculo do

déficit habitacional (as habitações precárias e os cômodos), em 2007, quase 10,5 milhões de

domicílios não foram atendidos por, no mínimo, um dos serviços básicos analisados -

iluminação elétrica, abastecimento de água com canalização interna, rede geral de

esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta de lixo.

O mesmo relatório constata ainda que o número equivalente a 21,7% dos domicílios

urbanos inadequados em 2007, já foi pior em 2004 quando equivalia a 25,4%. Essa melhora

aconteceu também em números absolutos, tendo havido redução de mais de 700 mil moradias

carentes em infraestrutura no período. Apesar disso, a situação das moradias brasileiras que se

enquadram neste critério de inadequação urbana ainda é precária e deve permanecer como

foco das políticas públicas.

A observação da distribuição espacial dessas carências é também elucidativa, e mostra

que a pior situação se encontra nas regiões menos desenvolvidas. Aproximadamente metade

da população das regiões Norte e Centro-Oeste tem deficiência no atendimento desses

serviços essenciais, com exceção do Distrito Federal que dispõe das mais bem atendidas áreas

urbanas em termos de serviços de infraestrutura do país. Brasília, apesar de apresentar um

coeficiente de Gini da ordem de 0,60 provia, em 2007, acesso à água encanada a 90% de sua

população e saneamento a 85%. (UN-HABITAT, 2010, p. 79)

23

Este gráfico não possui indicação de porcentagem pelo fato de não haver possibilidade da soma de todas estas

carências serem 100%. Podem haver domicílios que estejam em dois ou mais critérios ao mesmo tempo.

Page 43: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

43

GRÁFICO 2 – Critérios de inadequação dos domicílios urbanos duráveis, segundo regiões geográficas – Brasil –

2007. Fonte: Gráfico elaborado pela autora com dados da tabela 1.

A situação é preocupante em todas as unidades da Federação. É mais acentuada no

Ceará (42,8%), em Pernambuco (40,2%), no Maranhão (38%) e em Alagoas (64,8%). Na

região Sudeste, apesar do número absoluto alto - 2,06 milhões de moradias - a falta de

infraestrutura afeta percentualmente menor parcela da população comparativamente às demais

regiões: 8,8% em 2007.

O menor número de moradias não atendidas adequadamente pelos serviços de

infraestrutura, em valores absolutos, está na região Sul: 1,31 milhão, correspondendo a 17,6%

dos domicílios urbanos. Entre os três estados da região Sul, o Paraná apresenta o pior

resultado, com 646 mil moradias inadequadas (22,9% do total). Apesar disso, é na região

metropolitana de Curitiba que se encontram os melhores indicadores da região, pois esta

cidade apresenta apenas 56 mil domicílios em situação precária, ou 6% do total.

A região Nordeste, apesar de apresentar percentual elevado em 2007, 34,6%, já esteve

em pior situação: em 2004, os domicílios urbanos com alguma deficiência na infraestrutura

somavam 43,9%. Em números absolutos, os dados atuais trazem um déficit de 3,66 milhões

de domicílios ante 4,25 em 2004.

Como um domicílio pode ser carente em mais de um serviço de infraestrutura, a

situação é mais grave quanto mais serviços são inadequados em determinada região. Assim,

de acordo com o Gráfico 2 e a Tabela 1 observa-se a pior posição da região Norte. Enquanto

em média, no Brasil, 80,7% dos domicílios apresentam carência de apenas um serviço básico,

Page 44: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

44

nessa região são 68,1%. Em contrapartida, com ausência de dois serviços são,

respectivamente, 16,3% e 27,7%24

.

A pesquisa25

salientou, assim como em suas edições anteriores, a gravidade da

situação que representa a falta de esgotamento sanitário, entre os domicílios que apresentam

carência de apenas um serviço de infra-estrutura. Dos 8,43 milhões de domicílios urbanos que

informaram carência de um serviço, 6,24 milhões têm problemas com o esgotamento. Apenas

na região Norte a falta de abastecimento de água é mais relevante, como já vinha sendo

detectado nos anos anteriores.

A maior parte dessas moradias precárias é fruto dos processos de favelização,

segregação e periferização, delineados no tópico anterior. Conforme visto, eles

acompanharam as necessidades da indústria em oferecer os menores salários possíveis, a

transferência destas para áreas menos nobres (menos centrais) e a desconsideração do Estado

que, não sendo suficientemente pressionado pelas classes mais desfavorecidas – devido isso,

em grande parte, ao regime autoritário que aqui existia, contribuía com a precarização da

habitação urbana, de acordo com o papel que lhe é próprio, a ser analisado adiante.

No período analisado, contudo, a tendência é de melhoria dos indicadores. Entre 2004

e 2007, houve queda de 260 mil domicílios com serviços básicos inadequados. O destaque é

para São Paulo e sua região metropolitana, onde apenas 4,9% e 7% respectivamente das

moradias apresentam alguma carência. Em contrapartida, no Rio de Janeiro se encontram os

maiores percentuais, 16% em 2007, com 12,9% na sua região metropolitana, correspondendo

a 817 mil e 513 mil domicílios respectivamente.

O Brasil, conforme indicado anteriormente, utiliza o maior programa de transferência

de renda do mundo, o Bolsa Família, que tem mais de 11 milhões de famílias pobres como

beneficiárias (ou 46 milhões de indivíduos no país em 5.563 municípios). Como parte da

iniciativa “Fome Zero” este programa contribuiu com 50% da redução da pobreza no país

entre 2003 e 2008. Uma vez que os problemas habitacionais se concentram nas famílias com

menor renda atendidas pelo programa, este, juntamente com políticas de financiamento

habitacional, tais como Minha Casa, Minha Vida, e de investimento em infra-estrutura, como

o PAC, contribui para o declínio dos índices negativos há pouco citados.

Os dados apresentados, referentes ao déficit habitacional e, anteriormente, ao índice de

concentração de renda no país, recheiam a discussão contemporânea a respeito do direito à

cidade no Brasil. Querer-se-ia que eles fossem menos discutidos, se fossem menos graves,

24

Ver Tabela 3 na seção Anexos. 25

Refere-se ainda a pesquisa Déficit Habitacional no Brasil 2007 apresentada no início desta subseção.

Page 45: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

45

dando lugar a percentuais de participação democrática nos órgãos públicos, de acesso a meios

de entretenimento, que se refiram à liberdade do pensamento, entre outros. Entretanto, sabe-se

que, embora as lutas pelos direitos básicos - e pelos que assim não são chamados - sejam, e

devam ser, concomitantes, haja vista a complexidade em que se apresentam na realidade

mutante das cidades, o respeito aos primeiros é condição sine qua non para que os segundos

possam ser buscados com propriedade e realismo.

Ademais, os dados supracitados indicam uma parte reveladora do fim em que

desaguaram as últimas cinco décadas de urbanização acelerada no Brasil. Cabe agora,

explicitar o modo pelo qual o Poder Público, através de políticas urbanas, acompanhou o

fenômeno.

3.3 A evolução da política urbana no Brasil

As políticas urbanas estão inseridas no contexto de luta de classes e podem ser

analisadas através de dois pontos de vista distintos – o primeiro, que abstrai as relações

sociais para a apreensão de suas determinações e características, refere-se ao papel que o

Estado é condicionado a tomar para si, por ser o garantidor do status quo, por ser quem, em

última instância, garante juridicamente, e por meio da força, a propriedade privada. O

segundo ponto de vista diz respeito às pressões sociais das classes mais desfavorecidas, diante

das quais o Estado se vê pressionado a agir, através de políticas específicas, para problemas

reais específicos, embora esta pressão seja absolutamente menor que a do ponto anterior,

subordinando-se inclusive a ela.

Os dois próximos tópicos tratarão, portanto, desses pontos de vista distintos, sendo que

o segundo, pela sua especificidade particular a cada país, trata, obviamente, do Brasil.

3.3.1 O papel do Estado na urbanização

Os processos de produção do espaço urbano resultam da interação entre três agentes: o

capital, o Estado e a classe trabalhadora. Para Ultramari e Moura (1994, p. 39), o capital

determina o custo da terra, impondo a concentração de atividades e mão-de-obra condizentes

Page 46: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

46

com sua reprodução; o Estado “representado pela ação do poder público... [tenta] propiciar

serviços e condições básicas para a sobrevivência e a reprodução da força de trabalho,

garantindo, assim, o fluxo da economia”; enquanto que a classe trabalhadora ocupa e vive a

desordem da periferia.

Seguindo este raciocínio, Moizes e Martinez-Alier (1978), afirmam que:

[...] a cidade (ou metrópole) não pode ser vista simplesmente como um reflexo da

estrutura econômica, pois ela foi formada – melhor seria dizer construída – como

resultado da ação de diferentes atores históricos, cada qual marcando sua

intervenção de acordo com os seus interesses próprios. Esses atores foram,

fundamentalmente, as classes dominantes, as classes populares e o Estado. As

primeiras trataram de se utilizar dos grandes centros urbanos como centros

privilegiados de concentração de capital e de força de trabalho. As segundas

intervieram como puderam para garantir as condições de sua reprodução no

contexto urbano. (...) Finalmente, o Estado agiu para garantir as condições

necessárias de coesão social no contexto desses interesses diferenciados, além de

suprir as insuficiências da chamada iniciativa privada em alguns setores

estratégicos. (MOIZES; MARTINEZ-ALIER, 1978, p. 46)

A coesão social de que tratam não significa que o Estado busque, espontaneamente,

algum tipo de igualdade ou a amenização dos problemas de segregação social e espacial que a

cidade contribui a reproduzir. Muito pelo contrário, para Lefebvre (1999b, p.119), que se

utiliza do exemplo de Paris, o espaço foi, através do planejamento do Estado, construído e

modelado para atender às necessidades das burguesias mercantil e industrial e dos homens do

próprio Estado, sendo que a classe operária não pôde fazê-lo de acordo com suas

necessidades. Ao proletariado restou a expulsão, a segregação. Para Lefebvre (2008),

portanto, o Estado e empresa convergem para a segregação e a separação analítica isolou a

vida cotidiana em ingredientes, fragmentos: trabalho, transporte, vida privada, lazeres.

Lojkine (1997 p. 277) confirma tal ponto de vista, ao dizer que a política urbana

capitalista não atua como um “instrumento de regulação ou de „gestão‟ das contradições de

classe, mas sim, como elemento de agravação, de exacerbação dessa contradição entre

monopólios e camadas sociais não monopolistas”.

As desigualdades presentes nas cidades brasileiras, algumas das quais indicadas na

subseção 4.2 desta pesquisa, podem ser consideradas sob este contexto da segregação, pois

tendo o Estado que atuar para reproduzir certas desigualdades, ele reproduz a segregação de

diversas maneiras que, segundo Lojkine (1997, p. 189), são três, basicamente:

a) Oposição centro (preço maior) e periferia;

b) Separação entre zonas ou moradias para ricos e populares;

c) Funções urbanas – zoneamento.

Page 47: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

47

Os próprios Planos Diretores, segundo o autor, são o meio mais específico pelo qual o

Estado estabelece e influencia a localização das atividades industriais, das moradias divididas

por faixa de rendimento, dos espaços de comércio, dos espaços de consumo público, seguindo

sempre a lógica da segregação, que atende aos interesses dominantes. Isto não retira, contudo,

a importância deste instrumento de política urbana, que será objeto de relevante discussão no

próximo tópico.

Pode-se ter em conta o papel que a segregação representa no planejamento estatal de

direcionamento prioritário de investimentos. Lojkine (1997, p. 209, 217, 240-241), citando a

França, descreve um fenômeno similar ao visto no Brasil durante o governo de Kubitschek e

os governos militares, que lideram, na história do país, em investimento infra-estrutural:

[...] a planificação urbana e as práticas e financiamento estatal durante os anos 1960

respondem à lógica da segregação social, na medida em que os transportes

(representados por vias de circulação rodoviária e ferroviária) favorecem as zonas

urbanas apropriadas pela classe dominante. E isso se dá através do próprio

planejamento e da aplicação dos recursos financeiros em curto prazo para atender a

esses interesses específicos. (LOJKINE, 1997, p. 209)

Por fim, para que sirva de exemplo prático a esta característica que o Estado tem no

papel de construir o tecido urbano por meio de um viés segregacionista, cita-se Hogan,

quando este analisou o papel do Estado no crescimento ao mesmo tempo desorganizado e

meticulosamente planejado da indústria de Cubatão. Este município do estado de São Paulo,

localizado na Região Metropolitana da Baixada Santista, foi alvo de grandes projetos

industriais na década de 50 e 60, entre os quais estão a Refinaria Presidente Bernardes de

Cubatão (RPBC) e a Cia. Siderúrgica Paulista [COSIPA]26

.

Segundo Hogan (1993):

[...] talvez nenhuma outra cidade erigiu seu parque industrial de forma tão

planejada. A história mostrou que a estratégia foi equivocada, mas não podemos

dizer que foi uma estratégia impensada. A refinaria e a siderúrgica, e as indústrias

que as seguiram, foram os frutos dos planos de desenvolvimento elaborados em

nível de governo federal, obedecendo a metas nacionais. (HOGAN, 1993, p. 114-

115)

Para prover a indústria de mão-de-obra,

[...] a população trabalhadora seria buscada em outros municípios. Que uma parcela

dos trabalhadores iria morar em Cubatão, e que outros setores como o pequeno

comércio e a construção civil aumentariam essa população local, foi ignorado ou

deixado ao acaso. Depois de ocupar os antigos bananais e as nesgas de terra firme,

a população crescente ia procurando espaços. Aterraram o mangue, construíram

26

Para mais informações, acessar:

<http://www.cubatao.sp.gov.br/publico/index.php?option=com_content&view=article&id=34&Itemid=48>.

Page 48: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

48

palafitas por cima do mangue, e iam subindo a serra, ampliando as chamadas cotas,

clareiras abertas na floresta na época da construção da Via Anchieta. O resultado

desse descompasso entre o parque industrial organizado e o parque residencial

desconexo, precário, e improvisado é o que mais chama atenção em Cubatão. Sem

nenhuma organicidade no traçado urbano, Cubatão é um arquipélago de bairros de

difícil intercomunicação. Essa impressão é reforçada quando consideramos a

efemeridade da fisionomia urbana. Paralelamente ao vai-e-vem da população há um

vai-e-vem de bairros: Vila Socó incendiou-se, Vila Parisi está sendo removido, as

cotas desabam. Por outro lado, Vila São José surge das cinzas e Jardim Nova

República surge no mangue (HOGAN, 1993, p 114-115).

Este fenômeno de concentração de esforços em um único aspecto da realidade que se

quer mudar com o planejamento do Estado ocorre, segundo Corrêa (1993) porque a ação deste

é marcada pelos conflitos de interesses dos diferentes membros da sociedade de classes, bem

como das alianças entre eles. Sendo assim, privilegia os interesses daqueles segmentos da

classe dominante que estão no poder num dado momento.

Lefebvre (1999a, p. 110) afirma que a cidade “é a sede do poder político que garante o

poder econômico do capital, que protege a propriedade (burguesa) dos meios de produção e

organização, proibindo-lhe os excessos e a violência. O Estado dispõe de muitos meios: o

exército, a polícia, mas também a economia política e a ideologia”.

Desta forma, está o Estado condicionado ao papel de garantir propriedade e a

reprodução do capital, em detrimento dos direitos da classe trabalhadora. Um dos elementos

mais evidentes desta dependência do Estado em relação ao setor privado é sua própria fonte

de recursos: os impostos.

Segundo Oliveira (2000) mesmo as administrações municipais de orientação esquerda

focalizam seus esforços em políticas de fomento à acumulação privada de capital, pois existe

[...] uma dependência estrutural da administração municipal frente ao capital

privado. Afinal, apesar de por toda parte o município contar com transferências de

recursos de outras esferas administrativas, sua principal fonte de receita segue

sendo os impostos arrecadados localmente. (OLIVEIRA, 2000, p. 39)

Desta forma,

[...] todo grupo político que seja conduzido ao poder terá interesse em criar e

manter condições que incentivem a continuidade do investimento privado. Assim,

passa a ser do interesse do governo que a iniciativa privada tenha êxito e

prosperidade (OLIVEIRA, 2001 , p. 40).

Para Lefebvre (1999a, p. 155), o Estado deve, através da arrecadação, atender aos

objetivos de manter sua própria estrutura burocrática e de se ocupar com os interesses gerais

de toda a sociedade, não apenas da classe burguesa. O autor aponta que “no plano político, o

Estado retém uma parte da mais-valia para pagar os gastos gerais da sociedade burguesa que

Page 49: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

49

nenhum capitalista individual iria assumir”. Para ele, embora no plano político a questão da

distribuição dos recursos seja uma questão de força, não se deve perder-se no determinismo

dos autores que vêem em todas as ações do Estado – mesmo naquelas que beneficiam

diretamente os trabalhadores – os movimentos de marionete conduzidos pelo capital. Afirma

que, no plano político, “o Estado democrático continua sensível e acessível à pressão de

baixo, às reivindicações” (LEFEBVRE, 1999a, p. 156) apesar de distribuir recursos em uma

“prodigiosa mistura de cálculo sórdido e desperdício insensato” (LEFEBVRE, 1999a, p. 152).

Na mesma direção, ressalta Lojkine (1997) que

[...] o Estado não deve ser reduzido a um simples “aparelho” de repressão e de

organização pertencente exclusivamente à classe dominante: ele também é objeto

de disputa social, é cena política que pode se abrir à representação de interesses

contraditórios, contanto que as classes dominadas tenham a capacidade cultural de

construir novas racionalidades, mais dignas de crédito do que a racionalidade

capitalista baseada na rentabilidade e na delegação de poder. (LOJKINE, 1997, p.

29)

Apesar da complexidade desta questão, o que interessa a este trabalho é ter em mente

que o Estado tem um papel bem específico na urbanização, que é prover a estrutura e a

organização espacial adequadas para que o capital possa se reproduzir. Desta forma, uma vez

que, beneficiando a classe dominante, ele deva de certo modo desfavorecer a classe

trabalhadora, por serem as duas antagônicas, há em suas políticas o caráter de ampliar a

segregação espacial da cidade, principalmente a que separa os espaços destinados aos pobres

e aqueles mais bem localizados, direcionados à classe dominante.

Isto implica uma série de questões, algumas das quais já analisadas no presente

trabalho, e outras ainda por analisar, como, por exemplo, o papel que os planos diretores

exercem hoje no planejamento urbano. Estes instrumentos, mesmo estando inseridos no papel

do Estado em benefício do capital, servem também à classe trabalhadora, pois esta soube

aproveitar-se do caráter de “disputa social” presente no jogo político em que o Estado está

submerso.

Deve-se seguir, agora, à análise de como o papel do Estado na urbanização do Brasil

se deu na prática. Poder-se-á perceber que os elementos há pouco discutidos permeiam a

trajetória em que foi elaborada e implementada a legislação urbana no país.

Page 50: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

50

3.3.2 Considerações sobre a Política Urbana no Brasil

A análise das políticas urbanas no Brasil, passa necessariamente pela análise da

evolução da legislação sobre o tema. Considera-se que, na forma de lei se materializa a

conquista da sociedade civil para tornar real aquilo que é virtual e necessário. Conforme

Rodrigues (2004, p. 12), “uma lei não garante, como afirmam os participantes dos

movimentos de reforma urbana, o Direito à Cidade, mas é importante para sua construção.”

Embora as discussões mais relevantes sobre o tema, no Brasil, tenham se iniciado na

década de 60, será somente após a promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, que o

Estado fixará regras específicas sobre a organização do espaço urbano em favor da população,

a serem incorporadas pelos entes federativos em suas políticas efetivas. Tal estatuto, aliás,

demandará uma relevante parcela deste item, por ser considerado, no âmbito da legislação

brasileira, o conjunto de diretrizes que trouxe o tema da cidade, de forma contundente, à pauta

de prioridades dos gestores públicos.

Como uma das primeiras iniciativas de discussão dos problemas inerentes ao

crescimento das cidades, em 1963, acontece o Seminário Nacional de Habitação e Reforma

Urbana. Realizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) com apoio do Instituto de

Pensões e Aposentadoria dos Servidores do Estado (IPASE), o seminário teve como questões

balizadoras a habitação e a reforma urbana. A idéia era propor medidas para conter o

agravamento dos problemas urbanos daquele período que eram determinados, segundo Silva

(2003) pela

[...] estrutura subdesenvolvida do país, pelo intenso incremento demográfico

desacompanhado de medidas que, no interesse nacional, ordenassem e

disciplinassem o surto industrial e as arcaicas relações de produção agrária, que

determinavam fortes movimentos migratórios para os núcleos urbanos. (SILVA,

2003, p. 23)

Os especialistas ali reunidos identificaram a desproporção cada vez maior entre o

salário ou a renda familiar e o preço de locação ou de aquisição de moradia, e,

conseqüentemente, a tendência crescente de populações vivendo em subhabitações. Além do

problema da moradia, foi observada a insuficiência da oferta de serviços públicos com relação

ao ritmo do crescimento demográfico da época.

As sugestões do grupo para inverter este cenário eram, entre outras medidas

emergenciais, impor limitações ao direito de propriedade e uso do solo e cercear a

Page 51: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

51

especulação imobiliária. Vale ressaltar que essas sugestões/solicitações são repetidas ao

passar dos anos, sendo incrementadas conforme as cidades exigem do poder público novas

providências.

Apesar do diagnóstico referente ao problema habitacional já ter sido tratado em

seminários anteriores, enquanto expressão da luta pela reforma urbana, o SHRU pode ser

considerado o primeiro movimento concreto que ousou apresentar uma proposta real à

sociedade. O documento27

redigido ao final do seminário trazia uma série de proposições, já

expostas em formato de projeto de lei. As propostas eram dirigidas diretamente ao governo

federal, o que demonstra que o grupo ali reunido no Seminário tinha expectativas de poder

executá-las de fato.

Não fosse tolhida pelo regime militar da época, como as demais formulações sobre as

reformas de base elaboradas pela sociedade no período, a iniciativa poderia ter iniciado o

processo de mitigação dos problemas que se instauravam nas cidades. Suas solicitações só

acabaram constando futuramente - em partes - nos textos da emenda constitucional de

Reforma Urbana, em 1988 e no Estatuto da Cidade em 2001.

Costa (1986) apreendeu bem o significado das manifestações do regime militar quanto

à importância do tema, à época:

Após 1964, a preocupação com a crescente concentração da força de trabalho nas

cidades se traduziu em atos de natureza compensatória (de direitos políticos

subtraídos), em programas de impacto - do fim dos anos 60 e início dos 70 -,

quando se buscava a legitimidade do regime pela eficiência econômica (Lafer,

1975, p.74), e no paternalismo autoritário, característico do governo Geisel, quando

os discursos oficiais se revestiram de uma linguagem que fazia crer que se assistia a

uma real preocupação com o agravamento da concentração de renda e aumento da

pobreza [...] sem se criarem instrumentos que efetivamente permitissem a

coordenação dos investimentos setoriais e o controle de ocupação do solo, em nada

contribuiu [a ênfase dada pelo regime na organização de um sistema urbano mais

equilibrado] para minorar o processo que, até mesmo agravou, de segregação sócio-

espacial. (COSTA, 1986, p. 169)

O modelo político-econômico a ser implantado pelo regime militar em 1964 reservaria

aos espaços urbanos um papel essencial no processo de implantação efetiva do capitalismo

industrial no país. Por essa razão, os problemas aparentes das cidades começaram a ser

tratados de forma incipiente, tendo na habitação sua principal preocupação.

Num contexto de tensões políticas, em 1964, surge o Banco Nacional da Habitação

(BNH) e o Sistema Federal de Habitação (Sefhau). Além de visar a diminuição do déficit

habitacional existente no Brasil naquele momento, as iniciativas também serviram como

27

Para mais informações ver SILVA (2003). O Movimento Nacional pela Reforma Urbana e o Processo de

Democratização do Planejamento Urbano no Brasil. O autor resgata tal documento, aprofundando seu conteúdo.

Page 52: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

52

instrumento de controle econômico e político, auxiliando, em certos momentos, a amenização

dos conflitos pela posse do solo urbano. (Gomes; Silva; Silva, 2003)28

.

Segundo Monte-Mór (2007) tratava-se dos primeiros passos da institucionalização do

planejamento urbano no Brasil. Ao problema da habitação seriam incorporados,

gradativamente, os outros aspectos da totalidade da questão urbana.

Quinto Júnior (2003) destaca que os movimentos populares se fortaleceram na década

de 1970, com a mobilização em torno da questão urbana. Foram tratadas nesta época, a lei de

parcelamento do solo urbano (6766/77), a lei de zoneamento industrial (1817/78) e o projeto

de lei 775/83 (projeto de lei de Desenvolvimento Urbano Nacional). O fato deste último não

ter sido aprovado indica que, apesar dos avanços com a atualização da legislação urbanística,

não houve um enfrentamento real da questão da regulação social e da habitação popular e

social.

No início da década de 1980, a necessidade de introduzir instrumentos urbanísticos

para estabelecer um ordenamento ao crescimento das cidades ainda era latente. A luta iniciada

na década de 60 e as discussões e propostas que acabaram resultando no PL 775/83 foram

retomadas na Assembléia Constituinte de 87 e 88. A proposta de Emenda Constitucional de

Iniciativa Popular de Reforma Urbana se resumiu ao capítulo sobre a Política Urbana,

composto pelos artigos 182 e 183 da Constituição.

Aqui, cabe uma digressão ao tópico 3.1 deste trabalho, que discorre sobre a

urbanização no Brasil. Como visto, a década de 1980 foi marcada por alguns pontos de

inflexão, que reverteram, ou contiveram, os fenômenos urbanos que se desenrolavam desde a

década de 60, a pleno vapor. Conforme Maricato (2000):

O padrão de urbanização brasileiro apresenta, a partir dos anos 80, mudanças que

merecem algum destaque. Embora as metrópoles continuem crescendo

proporcionalmente mais que o país, o ritmo desse crescimento diminuiu.

(MARICATO, 2000, p. 24)

Segundo Brito e Souza (2005), o ano de 1980 representa o auge do ciclo migratório do

campo à grande metrópole, sendo sucedido pela predominância da migração para a cidade

média não-metropolitana. Além disso, segundo os mesmos:

Quando se analisa a contribuição do núcleo para o crescimento do aglomerado,

nota-se que nos anos 80 ela já era inferior a 50,0% - e isto significa que as periferias

começavam a ter o comando do crescimento demográfico metropolitano. (BRITO;

SOUZA, 2005, p. 51)

28

Artigo eletrônico, não possui número de páginas. Disponível em: < http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-

146(083).htm>.

Page 53: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

53

Por fim, Cunha (2003) salienta outra característica desta década:

Quanto às regiões do país, o Norte destacou-se no período 1980-1991 por apresentar

a taxa de crescimento populacional mais elevada (4% a.a.), demonstrando a

importância da fronteira agrícola nos anos 80 como canalizadora de importantes

fluxos migratórios para as áreas rurais. (CUNHA, 2003, p. 219)

Poder-se-iam citar mais alguns dados que caminharam no mesmo sentido, mas estes

bastam para que fique nítido o atraso com que o Estado começou a responder seriamente aos

problemas decorrentes dos fenômenos urbanos, tendo ficado adstrito, no período anterior, a

políticas que simplesmente incentivavam o crescimento industrial, que oferecessem, ao

grande capital internacional, condições para que estabelecesse aqui, entre as quais estão os

vultosos investimentos em infra-estrutura de transportes e de energia, estes sim alvos dos

mais completos estudos e programas e das mais dispendiosas intervenções do Estado tanto

nas cidades quanto fora dela.

De qualquer maneira, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil

passou a dispor de preceitos normativos sobre a política urbana no país. Dentre as medidas

adotadas de lá pra cá, o Estatuto das Cidades se destaca como consolidação das conquistas

que estavam sendo reivindicadas há mais de três décadas por diversos setores da sociedade,

notadamente os movimentos sociais.

O projeto de lei que deu origem ao Estatuto (PL5788/90), de autoria do Senador

Pompeu de Souza, enfrentou dificuldades ao longo dos seus 11 anos de tramitação, e foi

constantemente defendido por parte do Fórum Nacional de Reforma Urbana, até ser

promulgado em 2001 (Lei 10.257). As diretrizes nele contidas visam ordenar o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade - habitação, trabalho, circulação e recreação -

e da propriedade, relacionadas ao uso e à ocupação do solo urbano.

A função social da propriedade, que por vezes vai determinar as funções sociais da

cidade, trata do ordenamento da cidade em cada uma das parcelas de seu espaço. Neste

sentido, o Estatuto estabelece normas que “[...] regulam o uso da propriedade urbana em prol

do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio

ambiental” (artigo 1º). Infelizmente, conforme visto no tópico precedente, o uso do espaço

urbano, a repartição de suas melhores parcelas e os investimentos que o valorizam, têm como

principais destinatários/beneficiários as classes mais altas, principalmente aquela vinculada ao

capital imobiliário, que os redistribui, com apreciáveis lucros, àqueles que são capazes de

pagar os valores inflados que não raras vezes apresentam.

Page 54: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

54

A viabilidade de atuação do uso da propriedade a favor da coletividade parte de duas

principais frentes: da criação dos vários instrumentos legais que permitirão às prefeituras

municipais agir com mais eficiência na resolução (ou mitigação) dos problemas urbanos e do

incentivo à gestão democrática das cidades (ver artigos 43 a 45).

O texto elege o plano diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento

e expansão urbana. Essencial para o cumprimento da função social da propriedade, o plano

diretor é obrigatório para toda cidade que tenha mais de 20 mil habitantes ou faça parte de

região metropolitana. Suas diretrizes e prioridades devem ser incorporadas pelo plano

plurianual, pelas diretrizes orçamentárias e pelo orçamento anual. Já as cidades com mais de

500 mil habitantes devem elaborar, adicionalmente, um plano de transporte urbano integrado,

compatível com o plano diretor ou nele inserido.

Com o surgimento das novas diretrizes provenientes da Constituição Federal e do

Estatuto da Cidade, o plano diretor deixa de ser um documento técnico e, sem descartar as

práticas sociais do cotidiano da cidade, assume a função política de interferir no processo de

desenvolvimento local, compreendendo e integrando os fatores que condicionam a situação

das áreas urbanas. Aprovado por lei municipal, ele se torna o instrumento básico da política

de desenvolvimento e expansão urbana do município.

Vale lembrar que devido à concentração da população em um número pequeno de

municípios, apenas 27% das unidades da federação deve realizar planos diretores e aplicar os

instrumentos do Estatuto da Cidade. Ou seja, como a magnitude da população é o indicador29

da necessidade em ter-se um plano diretor, a maior parte dos municípios ficam isentos da

obrigatoriedade de fazer cumprir a função social da cidade, descrita nos termos do Estatuto.

Rodrigues (2004, p. 19) afirma que este fato leva à “exclusão da população moradora nesses

municípios de participar do planejamento como processo e da possibilidade, mesmo que

virtual, da utopia do Direito à Cidade.”

Durante o processo de elaboração do plano diretor e a fiscalização de sua

implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão a promoção de

audiências públicas e debates com a participação da população e de associações

representativas dos vários segmentos da comunidade. Os artigos 43 a 45 do Estatuto tratam

29

Os municípios com menos de 20 mil habitantes representam 72,96% dos municípios brasileiros, embora

abriguem apenas 19,69% da população urbana. (RODRIGUES, 2004, p. 18)

Page 55: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

55

desta e de outras ações que concernem à gestão democrática das cidades. Sua garantia se dá

através dos seguintes instrumentos30:

I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;

II – debates, audiências e consultas públicas; III – conferências sobre assuntos de

interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal; IV – iniciativa popular

de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; V –

(VETADO) referendo popular e plebiscito. (BRASIL, 2001)31

Esta gestão participativa inclui a realização de debates, audiências e consultas públicas

também sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do

orçamento anual, como condição obrigatória para aprovação pela Câmara Municipal. Esta

prática recai como dever para os organismos gestores, de modo a garantir o controle direto de

suas atividades e o pleno exercício da cidadania.

As cidades de Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo podem ser tomadas como

exemplo desta prática de gestão participativa, a qual corresponde a um avanço no

reconhecimeno do direito à cidade, pois, recordando a citação de Lefebvre (2008, p. 109)32

:

“Apenas a vida social (a práxis) na sua capacidade global possui tais poderes [...] de criar

novas formas e relações sociais” na busca pelo respeito efetivo ao direito à cidade - poder que

os gestores governamentais, seja qual for a especialização que possuam, não têm, por estarem

dissociados da realidade sobre a qual exercem influência.

Em contrapartida ao caráter positivo da gestão democrática do Estatuto, o

planejamento urbano imposto nos limites do local (município) pode, em contrapartida, de

acordo com Rodrigues (2004, p. 16) não apresentar uma resposta satisfatória por não

considerar “a diversidade, as diferenças, a multiplicidade das escalas e de organização

comunitária e de compreensão da dinâmica global” o que deve ser objeto de novos estudos e

regulamentações por parte dos entes federativos que não municipais.

A descentralização da gestão urbana confere mais autonomia aos municípios e

possibilita a articulação dos agentes envolvidos no processo de forma organizada. Seu sucesso

depende, contudo, do aumento da participação da população na construção de espaços

urbanos mais dignos. Além disso, a atuação do local (município) deve considerá-lo como

parte de um território maior, sobre o qual exerce influência e é influenciado.

30

O artigo vetado tornava nula qualquer lei que instituísse um plano diretor sem a participação popular (V –

referendo popular e plebiscito). O argumento utilizado foi que esses instrumentos já estão previstos na Lei

Orgânica Municipal, de 1998, e, portanto, podem ser utilizados sempre que os municípios desejarem. 31

Estatuto disponível em meio eletrônico: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. 32

Ver item 2.3 do capítulo 2, página 24 .

Page 56: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

56

A incorporação do enfoque da cidade face ao seu território de influência (“cidade e

região”), já é uma discussão antiga. A Carta de Atenas (1943), declaração de princípios da

corrente progressista do urbanismo33 já defendia a necessidade da integração da visão urbano-

regional. Nos limites do Estatuto, o caráter municipalista impossibilita, por exemplo, um

planejamento integrado de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e consórcios

municipais o que dificulta a ação articulada e efetiva não só nos municípios, mas entre eles.

Sobre a propriedade urbana34

, afirma o artigo 39 do Estatuto: “[...] cumpre sua função

social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano

diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida,

à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.” (BRASIL, 2001)

Segundo Rodrigues (2004), é necessário que a propriedade individual seja relativizada,

para garantir o acesso de todos os moradores à cidade. Os artigos que reconhecem o direito de

usucapião urbano, portanto, podem ser vistos como um avanço na medida em que impõem

limites à especulação imobiliária. O Estatuto inova ao reconhecer a necessidade de legitimar

as áreas ocupadas por moradias e estabelece novos critérios para parcelamento do solo,

conforme dispõe a Seção II - Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.

Segundo a mesma autora, “A cidade real, nas grandes aglomerações urbanas, deixa de

ser ficção, com o reconhecimento da legitimidade da ocupação de terras para moradia, a

possibilidade de legalização jurídica das áreas/imóveis ocupados com a finalidade de morar.”

(RODRIGUES, 2004, p. 13)

Os aspectos concernentes à ordenação dos espaços na cidade impedem que o governo

se exima de sua responsabilidade em relação ao direito de moradia. Direito este, abordado

ainda na Agenda Habitat II35

(da qual o Brasil é signatário) e na Constituição brasileira (artigo

6º) que afirma a moradia como direito fundamental, digna da pessoa humana.

O Estatuto das Cidades, em suma:

[...] reafirma a propriedade privada/individual, impõe alguns limites à especulação,

induz o reconhecimento da cidade como produção coletiva, cria novos instrumentos

jurídicos e participativos que permitem ao poder público tomar providências para

que as propriedades cumpram sua função social em prol do bem coletivo, da

segurança e do bem-estar dos cidadãos. (RODRIGUES, 2004, p. 13).

33

A corrente progressista do urbanismo fundamenta-se na análise das funções urbanas acompanhadas de

zoneamento: habitação, trabalho, lazer. Como precurssor desta corrente, destaca-se Le Corbusier. 34

A função social da propriedade urbana consta, desde 1934, nas várias Constituições Brasileiras, mas a

explicitação de seu significado só ocorreu em 2001, com a promulgação do Estatuto da Cidade. (RODRIGUES,

2004). 35

Compromissos internacionais assumidos pelos países participantes da Segunda Conferência das Nações

Unidas para os Assentamentos Humanos - Habitat II, realizada na cidade de Istambul, Turquia, em 1996.

Page 57: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

57

Como instrumento para efetivar o planejamento urbano com base na cidade ideal,

utópica, o Estatuto da Cidade cumpre um papel importante. Surge como forma de legitimar

um ideário de cidade originado de experiências cotidianas. A utopia desta cidade virtual,

esboçada em forma de lei, deve ser incentivada e operar juntamente com a racionalidade que é

inerente ao processo de formulação de políticas públicas. Sendo assim, a utopia deve servir

para que os homens recuperem não somente seus sonhos (dado que estes constituem somente

uma parte da utopia), mas, principalmente, a sua vontade de agir em direção a um mundo

diferente. Nas palavras de Gross e Silva (2006):

A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da

oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existem em nome

de algo radicalmente melhor que a humanidade tem o direito de desejar e por que

merece a pena lutar. (...) é uma chamada de atenção para o que não existe como

(contra) parte integrante, mas silenciosa, do que existe. (SANTOS, 2000, p. 323

apud GROSS; SILVA, 2006, p. 3).

A utopia do direito à cidade só é passível de se concretizar a partir da ação política da

sociedade civil organizada. Conforme Lefebvre (2008):

A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte

social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não

pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a única capaz de

pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. Apenas esta classe,

enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade

destruída pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos

“centros de decisão”. (LEFEBVRE, 2008, p. 113)

O direito à cidade deve, portanto, ir além do seu reconhecimento nominal na

Constituição do Brasil e no Estatuto dos Municípios.

A articulação entre diferentes segmentos da sociedade consta como premissa para o

trabalho do Ministério das Cidades, órgão criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em

1º de janeiro de 2003. Com o objetivo de combater as desigualdades sociais, transformando as

cidades em espaços mais humanizados, ao ministério compete tratar da política de

desenvolvimento urbano e das políticas setoriais de habitação, saneamento ambiental,

transporte urbano e trânsito.

O Ministério das Cidades é dividido em quatro Secretarias Nacionais, a saber, a de

Habitação, de Saneamento Ambiental, de Transporte e Mobilidade e de Programas Urbanos,

além da Secretaria Executiva. O desenvolvimento dos programas e ações do Ministério das

Cidades é traçado a partir destas secretarias. Para cada programa são definidos a forma de

Page 58: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

58

ação, a fonte de recursos, os destinatários, o papel do poder público local e a forma de acesso

a eles36

.

Este trabalho foi buscar no discurso do ministro das cidades Márcio Fortes de Almeida

- proferido por ocasião da 4ª Conferência Nacional das Cidades, em 21.06.2010 - um

apanhado das últimas ações promovidas pelo Ministério em prol do desenvolvimento

urbano37

.

De maneira geral, destacou-se neste período a criação de marcos regulatórios para os

consórcios públicos, habitação de interesse social, saneamento básico (destaque para a lei do

saneamento (Lei Nº. 11.445 de 05 de Janeiro de 2.007), regularização fundiária, e destinação

de imóveis da União e do INSS para projetos habitacionais destinados às faixas populacionais

com menor renda.

Outra ação importantíssima deste período está relacionada à consolidação de um

diálogo das esferas federais com os governantes municipais, estaduais e o Fórum de

Governadores, através do Comitê de Articulação Federativa. A sociedade civil, por sua vez,

participa do diálogo através do processo de conferências, fato atestado pela composição das

comissões que presidem as mesas e o aumento do número de participantes.

Nestes anos, também se percebeu um aumento da parcela de investimentos em infra-

estrutura urbana através do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. Lançado em 28

de janeiro de 2007 engloba um conjunto de políticas econômicas que tem como objetivo

acelerar o crescimento econômico do Brasil, sendo uma de suas prioridades o investimento

em infra-estrutura, em áreas como saneamento, habitação, transporte, energia, transporte e

recursos hídricos38

.

Mais recentemente, o governo brasileiro lançou o programa Minha Casa, Minha Vida,

que tem por objetivo diminuir o déficit habitacional com a construção de um milhão de casas

para famílias de até 10 salários mínimos, aumentando o acesso das famílias de baixa renda à

casa própria e gerar emprego e renda por meio do aumento do investimento na construção

civil.

O debate atual acerca do planejamento urbano pode ser melhor depreendido através

dos quatro eixos temáticos que nortearam a discussão na conferência. São eles: (a) Criação e

implementação de conselhos das cidades, planos, fundos e seus conselhos gestores nos níveis

36

Resumo dos programas e ações do Ministério das Cidades pode ser acessado no seguinte endereço:

http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/biblioteca/Programas%20e%20acoes%20com%20indice.pdf 37

Disponível em: < http://www.cidades.gov.br/discursos-do-ministro/DiscursoMinistro21062010.pdf>. 38

Relatórios dos recursos investidos e resultados do PAC podem ser acessados através do endereço:

http://www.brasil.gov.br/pac/relatorios/nacionais

Page 59: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

59

federal, estadual, municipal e no Distrito Federal; (b) Aplicação do estatuto da cidade e dos

planos diretores e a efetivação da função social da propriedade do solo urbano; (c) A

integração da política urbana no território: política fundiária, mobilidade e acessibilidade

urbana, habitação e saneamento; e (d) Relação entre os programas governamentais - como

PAC e Minha Casa, Minha Vida - e a política de desenvolvimento urbano.

Segundo levantamento State of the World’s Cities 2010/2011, as experiências

realizadas em planejamento das cidades afirmam que os projetos urbanos bem sucedidos

devem estar embasados em políticas que consigam integrar vários componentes setoriais,

como parte de um conjunto holístico das políticas sociais.

Page 60: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

60

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema do presente trabalho é objeto de discussão cada vez mais acalorada nos

meios governamentais, acadêmicos e nas organizações sociais por ser, também, cada vez mais

necessário. Além de ter sido relativamente ignorada até pouco tempo atrás, principalmente

entre os países subdesenvolvidos que, até então, ou ainda hoje, predominantemente agrários,

tentavam diminuir a disparidade econômica que os separava dos países desenvolvidos, a

questão urbana quando for tratada, daqui a poucas décadas, tratará de mais da metade da

população de cada país, praticamente – daí sua importância. Pois, apesar de haver uma

discussão global a esse respeito, a cargo principalmente da ONU, os problemas ainda são

resolvidos localmente, em cada país.

A cidade, como lócus das relações capitalistas de produção refrata, de muitas

maneiras, as desigualdades inerentes a este sistema econômico. A própria mutabilidade

intrínseca a ela, tão presente no debate teórico quanto na realidade observada da urbe, não é

senão a mutabilidade do próprio sistema, na incansável busca do capital por reproduzir-se e

resolver suas contradições. O debate em torno da cidade, portanto, é uma fração, cada vez

maior, do debate a respeito da realidade que o “econômico” impõe ao “social” e ao

“geográfico”.

O direito à cidade, neste contexto, seria o direito que as pessoas devem buscar no

âmbito de seus anseios em fazer do espaço em que vivem, das relações em que estão

absorvidas, meios de ascender a formas mais ricas de existência, visto que, por mais que a

cidade segregue-as e as afaste socialmente umas das outras, ela também abre a possibilidade

da união, da participação coletiva, do fazer-se ouvir, da individualização na socialização.

Tal busca compreende, conforme visto, reivindicações e lutas perante um Estado que

tem sua função bem específica. E, se é nas lutas que se pode delinear a esperança de

aproximação das realidades urbanas à “cidade ideal”, é na realidade observada que se divisam

as dificuldades pelo caminho.

O Brasil, conforme anotado anteriormente, é um dos países mais desiguais do

mundo. O fosso que separa a renda dos que, tendo muito, apropriam-se dos melhores espaços

que as cidades podem oferecer, e os que, tendo pouco, devem contentar-se com as sobras,

com as periferias, com as favelas, aumentou nas últimas décadas, em que se deu a

Page 61: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

61

urbanização, apesar dos avanços apontados para a última década, neste trabalho, através do

coeficiente de Gini.

A segregação espacial que daí provém, alimentada pelas classes dominantes e pelo

Estado, é, talvez, o obstáculo mais contrário ao direito à cidade, uma vez que as oportunidades

de todo teor concentram-se em regiões excluídas àqueles que mais precisam delas.

Outros problemas que, embora não sejam só urbanos, são mais drásticos nas cidades,

todos ligados – não se deve esquecer, ao modelo de desenvolvimento que o país adotou, à sua

industrialização tardia, são a violência, a habitação precária a grande parte da população, as

distâncias e dificuldades de transporte a que esta se submete. Isso sem falar nos graves

problemas ambientais que o avanço desordenado e frenético das cidades tende a implicar.

Esses, embora fujam ao escopo deste trabalho, mereceriam um outro à parte, pela atualidade e

importância que representam nos debates a respeito da cidade e do urbano.

A atuação do Estado brasileiro para tentar racionalizar o espaço urbano no sentido

de contemplar alguns aspectos do direito à cidade de forma mais abrangente, é absolutamente

nova. Materializa-se, principalmente, no Estatuto das Cidades, que se tornou um importante

instrumento para que a população de cada município possa ser ouvida nos seus interesses.

Claro que o Estatuto absorveu também o quinhão de interesses de toda sorte da burguesia,

sempre ouvida, mas a sua prática demonstra um pouco do amadurecimento da democracia que

se podem ter estas questões.

Concluindo, espera-se que o presente trabalho possa ter contribuído para o debate da

urbanização no Brasil. Muitos pontos foram deixados de lado, muitos outros mereceriam

maior aprofundamento. Entretanto, acredita-se que a abordagem do tema foi feliz, na estrutura

que se escolheu, e no aprofundamento que se pôde dar às questões, para que se atingissem os

objetivos.

Page 62: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

62

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66

ANEXOS

TABELA 1 - DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO DÉFICIT HABITACIONAL, POR SITUAÇÃO DO

DOMICÍLIO, SEGUNDO REGIÕES GEOGRÁFICAS, UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES

METROPOLITANAS (RMs) - BRASIL - 2007

ESPECIFICAÇÃO TOTAL URBANA RURAL

Total De extensão

urbana

Norte 10,4 9,4 15,1 23,2

Rondônia 0,8 0,8 0,9 14,9

Acre 0,3 0,3 0,3 -

Amazonas 2,3 2,3 2,6 7,4

Roraima 0,3 0,3 0,2 -

Pará 5,1 4,3 8,6 0,9

RM Belém 1,5 1,8 0,2 0,9

Amapá 0,5 0,6 0,1 -

Tocantins 1,1 0,8 2,4 -

Nordeste 34,2 28,2 62,5 30,2

Maranhão 7,4 4,6 20,2 8,5

Piauí 2,2 1,5 5,8 -

Ceará 5 4,4 8 -

RM Fortaleza 2 2,3 0,4 -

Rio Grande do Norte 1,9 1,6 3 6,7

Paraíba 1,9 1,9 2,2 -

Pernambuco 4,5 4,3 5,2 10

RM Recife 2,1 2,5 0,3 -

Alagoas 2 1,7 3,1 5

Sergipe 1,2 1,2 1,2 -

Bahia 8,1 7 13,8 -

RM Salvador 2,2 2,7 0,2 -

Sudeste 37,2 43 10,2 45,5

Minas Gerais 8,3 9 5,1 -

RM Belo Horizonte 2,1 2,5 - -

Espírito Santo 1,6 1,7 1 -

Rio de Janeiro 7,6 9,1 0,6 4,3

RM Rio de Janeiro 6 7,3 0,2 -

São Paulo 19,7 23,2 3,5 41,2

RM São Paulo 10 11,8 1,5 36,8

Sul 11,2 11,9 7,9 -

Paraná 4,3 4,6 2,9 -

RM Curitiba 1,5 1,6 0,6 -

Santa Catarina 2,3 2,4 1,8 -

Rio Grande do Sul 4,6 4,9 3,2 -

RM Porto Alegre 2,2 2,5 0,7 -

Centro-Oeste 7 7,5 4,3 1,1

Mato Grosso do Sul 1,2 1,2 1,1 -

Mato Grosso 1,4 1,3 1,9 -

Goiás 2,7 3 1,1 -

Distrito Federal 1,7 2 0,2 1,1

Brasil 100 100 100 100

Total das RMs 29,6 35 4,1 37,7 Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

(Pnad), 2007

Page 67: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

67

TABELA 2 - DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS DOMICÍLIOS PERMANENTES

URBANOS (1), POR FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR MENSAL,

SEGUNDO REGIÕES GEOGRÁFICAS, UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES

METROPOLITANAS (RMs) - BRASIL – 2007

ESPECIFICAÇÃO

FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR

MENSAL

(EM SALÁRIOS MÍNIMOS)

até 3 de 3 a 5 de 5 a

10

mais de

10

Total

(2)

Norte 61,6 19,2 12,4 6,8 100

Rondônia 56,1 21,2 15,1 7,6 100

Acre 57,9 16,1 12,9 13,1 100

Amazonas 58,5 21,1 13,6 6,8 100

Roraima 59,5 19 15,3 6,2 100

Pará 64,8 18,9 10,6 5,7 100

RM Belém 57,7 19,8 13,4 9,1 100

Amapá 55,1 21,6 15,4 7,9 100

Tocantins 63,1 14,7 13,4 8,8 100

Nordeste 70,7 14,4 9,3 5,6 100

Maranhão 71,3 14,4 9,4 4,9 100

Piauí 65,1 16,4 11,5 7 100

Ceará 73,2 13,7 8 5,1 100

RM Fortaleza 66,2 15,4 10,7 7,7 100

Rio Grande do Norte 64,2 16,8 11,1 7,9 100

Paraíba 72,4 13,1 8,1 6,4 100

Pernambuco 73,7 12,9 8,5 4,9 100

RM Recife 68,6 14,4 10 7 100

Alagoas 73,5 12 8,8 5,7 100

Sergipe 67 15,8 11,1 6,1 100

Bahia 68,9 15,8 9,8 5,5 100

RM Salvador 59,9 17,5 13,3 9,3 100

Sudeste 44,2 23,4 19,8 12,6 100

Minas Gerais 52,8 21,8 16,7 8,7 100

RM Belo Horizonte 45,7 22,5 19 12,8 100

Espírito Santo 52,3 21,4 16,1 10,2 100

Rio de Janeiro 48,7 22,4 17,2 11,7 100

RM Rio de Janeiro 48,3 21,7 17,3 12,7 100

São Paulo 38 24,7 22,5 14,8 100

RM São Paulo 37,5 23,4 22,3 16,8 100

Sul 41,9 24,5 21,4 12,2 100

Paraná 43 24,1 19,9 13 100

RM Curitiba 33,3 24,1 25,7 16,9 100

Santa Catarina 33,6 26,5 26,4 13,5 100

Rio Grande do Sul 45,5 23,8 20,1 10,6 100

RM Porto Alegre 42 24,4 20,8 12,8 100

Centro-Oeste 50,5 20,2 16,3 13 100

Mato Grosso do Sul 53,6 19,6 15,5 11,3 100

Mato Grosso 55,6 21,2 14,9 8,3 100

Goiás 53,7 21,3 16,1 8,9 100

Distrito Federal 35,4 17 18,8 28,8 100

Brasil 51,3 21,1 17 10,6 100

Total das RMs 46,3 21,6 18,7 13,4 100

(1) Inclusive rural de extensão urbana. (2) Exclusive sem declaração de renda. Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

(Pnad), 2007

Page 68: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

68

TABELA 3 - DOMICÍLIOS URBANOS DURÁVEIS (1), POR NÚMERO DE SERVIÇOS DE

INFRAESTRUTURA INADEQUADOS, SEGUNDO REGIÕES GEOGRÁFICAS, UNIDADES DA

FEDERAÇÃO E REGIÕES METROPOLITANAS (RMs) - BRASIL – 2007

APENAS UM SERVIÇO MAIS DE UM SERVIÇO

ESPECIFICAÇÃO energia

elétrica

abastecimento

de água

esgotamento

sanitário

coleta

de lixo

Total dois três quatro

Norte 598 591.844 516.282 15.874 1.124.598 457.014 67.045 1.624

Rondônia - 52.332 106.600 952 159.884 100.620 14.279 476

Acre - 31.579 14.303 166 46.048 18.283 2.826 -

Amazonas - 99.893 45.672 8.218 153.783 48.419 5.175 914

Roraima 173 2.771 5.027 1.213 9.184 2.600 1.040 -

Pará 191 369.350 164.499 4.344 538.384 245.578 39.674 -

RM Belém 191 155.404 47.625 382 203.602 35.122 1.532 -

Amapá - 29.134 32.374 747 62.255 21.167 1.245 -

Tocantins 234 6.785 147.807 234 155.060 20.347 2.806 234

Nordeste 2.974 426.737 2.266.126 137.064 2.832.901 660.167 157.038 8.170

Maranhão - 114.095 121.060 28.739 263.894 122.793 33.965 -

Piauí - 23.982 25.022 24.512 73.516 32.850 15.119 3.647

Ceará 1.534 62.155 483.571 24.728 571.988 135.668 49.217 1.983

RM Fortaleza - 47.833 195.605 4.265 247.703 45.152 13.920 448

Rio Grande do Norte - 10.537 173.627 3.206 187.370 27.941 3.665 459

Paraíba 932 24.703 216.281 4.194 246.110 27.967 7.926 -

Pernambuco - 103.452 509.960 16.543 629.955 121.333 19.855 -

RM Recife - 64.718 310.599 10.345 385.662 50.573 5.395 -

Alagoas - 20.165 295.255 2.585 318.005 66.710 5.170 517

Sergipe - 12.792 54.124 6.561 73.477 17.385 984 328

Bahia 508 54.856 387.226 25.996 468.586 107.520 21.137 1.236

RM Salvador - 13.191 35.606 9.231 58.028 9.453 1.319 220

Sudeste 4.415 549.513 1.131.922 55.102 1.740.952 275.688 42.132 1.226

Minas Gerais 1.226 56.440 346.831 31.262 435.759 67.531 13.094 1.226

RM Belo Horizonte - 9.860 134.767 1.233 145.860 19.724 3.288 -

Espírito Santo - 12.791 92.975 3.935 109.701 8.855 1.476 -

Rio de Janeiro 444 416.558 220.256 11.466 648.724 144.326 23.868 -

RM Rio de Janeiro - 268.504 129.106 8.355 405.965 86.079 21.201 -

São Paulo 2.745 63.724 471.860 8.439 546.768 54.976 3.694 -

RM São Paulo - 41.766 346.512 5.694 393.972 27.529 949 -

Sul 3.115 274.111 921.897 6.682 1.205.805 89.972 14.406 851

Paraná 1.855 37.561 559.870 2.474 601.760 35.677 8.035 618

RM Curitiba - 11.594 40.580 - 52.174 4.142 - -

Santa Catarina - 93.984 85.435 1.221 180.640 24.407 - -

Rio Grande do Sul 1.260 142.566 276.592 2.987 423.405 29.888 6.371 233

RM Porto Alegre - 103.498 50.352 466 154.316 9.089 699 233

Centro-Oeste 352 118.949 1.402.096 3.536 1.524.933 226.317 22.687 1.421

Mato Grosso do Sul - 13.208 362.359 314 375.881 40.886 3.772 -

Mato Grosso - 14.893 349.100 726 364.719 66.106 12.352 364

Goiás 352 58.864 663.666 1.409 724.291 117.367 6.346 1.057

Distrito Federal - 31.984 26.971 1.087 60.042 1.958 217 -

Brasil 11.454 1.961.154 6.238.323 218.258 8.429.189 1.709.158 303.308 13.292

Total das RMs 191 716.368 1.290.752 39.971 2.047.282 286.863 48.303 901

Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

(Pnad), 2007

Page 69: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

69

Carta Mundial do Direito à Cidade Fórum Social das Américas – Quito – Julho 2004

Fórum Mundial Urbano – Barcelona – Setembro 2004

V Fórum Social Mundial – Porto Alegre – Janeiro 2005

PREAMBULO

Iniciamos este novo milênio com a metade da população vivendo nas cidades,

segundo as previsões, em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 65%. As

cidades são, potencialmente, territórios com grande riqueza e diversidade

econômica, ambiental, política e cultural. O modo de vida urbano interfere

diretamente sobre o modo em que estabelecemos vínculos com nossos semelhantes

e com o território.

Entretanto, no sentido contrário a tais potenciais, os modelos de desenvolvimento

implementados na maioria dos paises do terceiro mundo se caracterizam por

estabelecer padrões de concentração de renda e de poder assim como processos

acelerados de urbanização que contribuem para a depredação do meio ambiente e

para a privatização do espaço público, gerando empobrecimento, exclusão e

segregação social e espacial.

As cidades estão distantes de oferecerem condições e oportunidades eqüitativas

aos seus habitantes. A população urbana, em sua maioria, esta privada ou limitada

– em virtude de suas características sociais, culturais, étnicas, de gênero e idade –

de satisfazer suas necessidades básicas. Este contexto favorece o surgimento de

lutas urbanas representativas, ainda que fragmentadas e incapazes de produzir

mudanças significativas no modelo de desenvolvimento vigente.

Frente a esta realidade, as entidades da sociedade civil reunidas desde el Fórum

Social Mundial de 2001, discutiram, debateram e assumiram o desafio de construir

um modelo sustentável de sociedade e vida urbana, baseado nos princípios da

solidariedade, da liberdade, da igualdade, da dignidade e da justiça social. Um de

seus fundamentos deve ser o respeito às diferenças culturais urbanas e o equilíbrio

entre o urbano e o rural.

A partir do I Fórum Social Mundial na cidade de Porto Alegre, um conjunto de

movimentos populares, organizações não governamentais, associação de

profissionais, fóruns e redes nacionais e internacionais da sociedade civil

comprometidas com as lutas sociais por cidades mais justas, democráticas,

humanas e sustentáveis vem construindo uma carta mundial do direito à cidade que

estabeleça os compromissos e medidas que devem ser assumidos por toda

sociedade civil, pelos governos locais e nacionais e pelos organismos

internacionais para que todas as pessoas vivam com dignidade em nossas cidades.

A carta mundial do direito à cidade é um instrumento dirigido a contribuir com as

lutas urbanas e com o processo de reconhecimento no sistema internacional dos

direitos humanos do direito à cidade. O direito à cidade se define como o usufruto

eqüitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social.

Entendido como o direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos

grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade de ação e de

Page 70: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

70

organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno

exercício do direito a um padrão de vida adequado. Assim, a justificativa para um

enfoque específico em direito à cidade baseia-se no:

o acelerado processo de urbanização – em muitas localidades já terminando

da América Latina e em acelerado processo em Ásia – proporcionado

cidades feitas aos pedaços em que cada dia se vê mais longe a satisfação aos

direitos humanos;

a tendência crescente tanto do crescimento urbano como da pobreza nas cidades;

a crescente localização das zonas vulneráveis em assentamentos populares urbanos e os desastres conseqüentes;

a proliferação dos despejos massivos, de políticas contrárias às dinâmicas da população urbana popular e a crescente segregação e exploração social que

violentam a vida e a cidade e desconhecem as contribuições dos setores

populares na construção da cidade e da cidadania;

a necessidade de ter um instrumento muito claro a nível internacional ao

qual se possa apropriar-se os movimentos sociais para reverter estas

tendências e garantir a aplicabilidade dos direitos humanos;

principalmente nos países onde há uma predominância rural como a Índia, se vive atualmente um acelerado processo de urbanização e de concentração

precária de imigrantes urbanos em grandes cidades. Estas e outras

tendências exigem um enfoque específico nas cidades.

O tradicional enfoque sobre melhoramento de qualidade de vida das pessoas

centrado na habitação e nos bairros, se amplia ao enfocar a qualidade de vida na

cidade; como forma de beneficiar a população que vive nas cidades ou em regiões

de acelerado processo de urbanização, onde se expressam as intensos contrastes, as

desigualdades, as explorações, a concentração de poder e de exclusão social.

Implica-se em enfatizar uma nova maneira de promoção, proteção e defesa dos

direitos humanos referidos ao econômico, social, cultural, civil e ao político,

muitos assegurados em instrumentos internacionais de direitos humanos, por meio

de distintas formas de participação democrática e pelo cumprimento da função

social da cidade e da propriedade.

O direito à cidade democrática, justa, eqüitativa e sustentável pressupõe o

exercício pleno e universal de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis

e políticos previstos em Pactos e Convênios internacionais de Direitos Humanos,

por todos os habitantes tais como: o direito ao trabalho e às condições dignas de

trabalho; o direito de constituir sindicatos; o direito a uma vida em família; o

direito à previdência; o direito a um padrão de vida adequado; o direito à

alimentação e vestuário; o direito a uma habitação adequada; o direito à saúde; o

direito à água; o direito à educação; o direito à cultura; o direito à participação

política; o direito à associação, reunião e manifestação; o direito à segurança

pública; o direito à convivência pacifica entre outros.

Entretanto, além de garantir os direitos humanos às pessoas, o território das

cidades, seja urbano ou rural, é espaço e lugar de exercício e cumprimento dos

direitos coletivos como forma de assegurar a distribuição e uso eqüitativo,

universal, justo, democrático e sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e

Page 71: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

71

oportunidades das cidades. Dessa forma, é relevante ressaltar que a Carta de

direitos coletivos que estão sujeitos os habitantes das cidades: o direito ao meio

ambiente; o direito a participação no planejamento e na gestão das cidades; o

direito ao transporte e mobilidade pública; o direito a justiça.

Na cidade, a correlação entre esses direitos e a necessária contrapartida de deveres

é exigível de acordo com as diferentes responsabilidades e situação de seus

habitantes, como forma de promover a justa distribuição dos benefícios e ônus do

processo de urbanização; a distribuição da renda urbana, a democratização do

acesso a terra e dos serviços públicos para a população pobre.

Convidamos a todos as pessoas, organizações da sociedade civil, governos locais e

nacionais, organismos internacionais a participar deste processo no âmbito local,

nacional, regional e global, contribuindo com a construção, difusão e

implementação da carta mundial pelo direito à cidade como um dos paradigmas

deste milênio de que um mundo melhor é possível.

Parte I. Disposições Gerais

ARTIGO I. DIREITO À CIDADE

1. Todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de

gênero, idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando a memória e

a identidade cultural em conformidade com os princípios e normas que se

estabelecem nesta carta.

2. O Direito a Cidade é definido como o usufruto eqüitativo das cidades dentro

dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que

confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com

o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado.

O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos

internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos

civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais Inclui também o direito

a liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética,

racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e

herança histórica e cultural.

3. A cidade é um espaço coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a

todos os seus habitantes.

4. As Cidades em co-responsabilidade com as autoridades nacionais, se

comprometem a adotar medidas até o máximo de recursos que disponha, para

conseguir progressivamente, por todos os meios apropriados, inclusive em

particular a adoção de medidas legislativas e normativas, a plena efetividade dos

direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais sem afetar seu conteúdo

mínimo essencial.

5. Para os efeitos desta carta se denomina cidade toda vila, aldeia, capital,

localidade, subúrbio, município, povoado organizado institucionalmente como

uma unidade local de governo de caráter Municipal ou Metropolitano, e que inclui

as proporções urbanas, rural ou semi rural de seu território.

6. Para os efeitos desta carta se considera cidadãos(ãs) todas as pessoas que

habitam de forma permanente ou transitória as cidades.

ARTIGO II. PRINCIPIOS E FUNDAMENTOS ESTRATÉGICOS DO

Page 72: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

72

DIREITO A CIDADE

São princípios do Direito à Cidade:

1. EXERCÍCIO PLENO A CIDADANIA E A GESTAO DEMOCRÁTICA À

CIDADE:

1.1 As cidades devem ser um espaço de realização de todos os direitos humanos e

liberdades fundamentais, assegurando a dignidade e o bem estar coletivo de todas

as pessoas, em condições de igualdade, equidade e justiça, assim como o pleno

respeito a produção social do habitat. Todas as pessoas têm direito a encontrar nas

cidades as condições necessárias para a sua realização política, econômica,

cultural, social e ecológica, assumindo o dever a solidariedade .

1.2 Todas as pessoas têm direito a participar através de formas diretas e

representativa na elaboração, definição e fiscalização da implementação das

políticas públicas e do orçamento municipal nas cidades para fortalecer a

transparência, eficácia e autonomia das administrações públicas locais e das

organizações populares.

2. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE:

2.1 A cidade tem como fim principal atender a uma função social, garantindo a

todas as pessoas o usufruto pleno da economia e da cultura da cidade, a utilização

dos recursos e a realização de projetos e investimentos em seus benefícios e de

seus habitantes, dentro de critérios de equidade distributiva, complementaridade

econômica, e respeito à cultura e sustentabilidade ecológica; o bem estar de todos

seus habitantes em harmonia com a natureza, hoje e para as futuras gerações.

2.2. Os espaços e bens públicos e privados da cidade e dos cidadãos(ãs) devem ser

utilizados priorizando o interesse social, cultural e ambiental. Todos os

cidadãos(ãs) têm direito a participar da na propriedade do território urbano dentro

de parâmetros democráticos, de justiça social e de condições ambientais

sustentáveis. Na formulação e implementação de políticas urbanas se deve

promover o uso socialmente justo, com equidade entre os gêneros, do uso

ambientalmente equilibrado do solo urbano, em condições seguras.

2.3. Os cidadãos têm direito a participar das rendas extraordinárias (mais-valias)

geradas pelos investimentos públicos que é capturada pelos privados, sem que

estes tenham efetuado nenhuma ação sobre esta propriedade.

3. IGUALDADE, NÃO DISCRIMINAÇÃO:

Os direitos enunciados nesta carta serão garantidos para todas as pessoas que

habitem de forma permanente ou transitória as cidades sem nenhuma

discriminação em relação a idade, gênero, orientação sexual, idioma, religião,

opinião, origem étnica racial, social, nível de rendam cidadania ou situação

migratória. As cidades devem assumir os compromissos adquiridos, com respeito a

implementação de políticas públicas para a Igualdade de oportunidades para as

mulheres nas cidades, expressas ns CEDAW (matéria já disciplinada

Constitucionalmente em muitos países ), como nas Conferencias de Meio

Ambiente (1992), Beijing (1995) e Habitat (1996), entre outras. Fixar recursos dos

orçamentos governamentais para a efetivação destas políticas e para o

Page 73: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

73

estabelecimento de mecanismos e indicadores qualitativos e quantitativos para o

monitoramento de seu cumprimento no tempo.

4. PROTEÇÃO ESPECIAL DE GRUPOS E PESSOAS VULNERÁVEIS:

4.1. Os grupos e pessoas mais vulneráveis devem ter o direito a medidas especiais

de proteção e integração, evitando os reagrupamentos discriminatórios.

4.2 Para efeitos desta carta considera-se mais vulneráveis as pessoas e grupos em

situação de pobreza, de risco ambiental (ameaçados por desastres naturais ou

vitimas de desastres ambientais gerados pelo homem), vitimas de violência, os

incapazes, imigrantes e refugiados e todo grupo que segundo a realidade de cada

cidade esteja em situação de desvantagem a respeito dos demais habitantes. Nestes

grupos serão objeto de maior atenção os idosos ou pessoas da terceira idade,

mulheres, em especial as chefes de família e as crianças.

4.3. As Cidades, mediante políticas de afirmação positiva aos grupos vulneráveis

devem suprir os obstáculos de ordem política, econômica e social que limitam a

liberdade, equidade e de igualdade dos cidadãos(ãs), e que impedem o pleno

desenvolvimento da pessoa humana e a participação efetiva na organização

política, econômica, cultural e social da cidade.

5. COMPROMISSO SOCIAL DO SETOR PRIVADO:

As cidades devem promover que os agentes econômicos do setor privado

participem em programas sociais e empreendimentos econômicos com a finalidade

de desenvolver a solidariedade e a plena igualdade entre os habitantes de acordo

com os princípios previstos nesta Carta.

6. IMPULSO A ECONOMIA SOLIDARIA E A POLÍTICAS IMPOSITIVAS

E PROGRESSIVAS:

As cidades deverão promover e valorizar condições políticas e programas de

economia solidária.

Parte II. Direitos relativos ao Exercício da Cidada nia e da Participação no

Planejamento, Produção e Gestão da Cidade

ARTIGO III. PLANEJAMENTO E GESTÀO DAS CIDADES

1. As cidades se comprometem a ter espaços institucionalizados para a

participação ampla, direta, eqüitativa e democrática dos cidadãos no pr ocesso de

planejamento, de elaboração, aprovação, gestão e avaliação democrática de

políticas e orçamentos públicos, planos, programas e ações por meio de órgãos

colegiados, audiências, conferencias, consultas e debates públicos, iniciativa

popular de projetos de lei e de planos de desenvolvimento urbano.

2. As cidades, em conformidade com os princípios fundamentais de seu

ordenamento jurídico, formularão e aplicarão políticas coordenadas e eficazes

contra a corrupção que promovam a participação da sociedad e e reflitam os

princípios da lei, a devida gestão dos assuntos e dos bens públicos, a integridade, a

transparência e a obrigação de prestar contas.

3. As cidades, para salvaguardar o princípio de transparência, se comprometem a

Page 74: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

74

organizar a estrutura administrativa de modo tal que garantam a efetiva

responsabilidade de seus governantes frente aos(as) cidadãos(ãs), assim como a

responsabilidade da administração municipal perante os órgãos de governo,

complementando a gestão democrática.

ARTIGO IV . PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT

As cidades se comprometem a estabelecer mecanismos institucionais e

desenvolver os instrumentos jurídicos, financeiros, administrativos, programáticos,

fiscais e de capacitação necessários para apoiar as diversas modalidades de produç

ão social do habitat e da habitação, com especial atenção aos processos de auto-

gestão individuais, familiares e coletivamente organizados.

ARTIGO V. DESENVOLVIMENTO URBANO EQUITATIVO E

SUSTENTÁVEL

1. As cidades se comprometem a regular e controlar o des envolvimento urbano,

mediante políticas territoriais que priorizem a produção de habitação de interesse

social e o cumprimento da função social da propriedade pública e privada em

observância aos interesses sociais, culturais e ambientais coletivos sobre os

individuais. Para tanto as cidades se obrigam a adotar medidas de desenvolvimento

urbano, em especial a reabilitação das habitações degradadas e marginais,

promovendo uma cidade integrada e eqüitativa.

2. O Planejamento da cidade e dos programas e projetos setoriais deverão integrar

o tema da seguridade urbana como um atributo do espaço público.

3. As cidades se comprometem a garantir que os serviços públicos dependam do

nível administrativo mais próximo da população com a participação dos

cidadãos(ãs) na gestão e na fiscalização, devendo estes serem tratados com um

regime jurídico de bem público impedindo sua privatização.

4. As cidades estabelecerão sistemas de controle social da qualidade dos serviços

das empresas públicas ou privadas em especial em relação ao controle de

qualidade e ao valor de suas tarifas.

ARTIGO VI. DIREITO A INFORMAÇÃO PÚBLICA

1. Toda pessoa tem direito de solicitar e receber informação completa, veraz,

adequada e oportuna, de qualquer órgão da administração da cidade, do Poder

Legislativo ou Judicial, em quanto sua atividade administrativa e financeira e das

empresas e sociedades privadas ou mistas que prestem serviços públicos.

2. Os funcionários do governo da Cidade ou o setor privado requerido tem a

obrigação de criar e produzir informações referidas a sua área de competência

mesmo que não disponha das mesmas no momento do pedido. O único limite ao

acesso a informação pública é em respeito ao direito de intimidade das pessoas.

3. As cidades se comprometem a garantir que todas as pessoas acessem a

informação pública eficaz e transparente, para tanto promoveram acessibilidade a

todos os setores da população e a aprendizagem de tecnologias de informação, seu

acesso e a atualização periódica.

4. Toda a pessoa ou grupo organizado têm direito a obter informações sobre a

disponibilidade e localização do solo, e sobre os programas habitacionais que se

desenvolvem a cidade, com especial atenção com a orientação aos setores que

Page 75: debate sobre a questão urbana: o caso brasileiro

75

auto-produzem sua habitação e outros componentes do habitat.

ARTIGO VII. LIBERDADE A INTEGRIDADE

Todas as pessoas têm o direito à liberdade e à integridade, tanto física como

espiritual. As cidades se comprometem a estabelecer garantias e proteções que

assegurem que esses direitos não sejam violados por indivíduos ou instituições de

qualquer natureza.

ARTIGO VIII. A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

1. Todos(as) os(as) cidadãos(ãs), conforme a lei que regulamenta seu exercício

têm direito a participação na vida política local mediante a eleição livre e

democrática dos representantes locais em toda as decisões que afetem as políticas

locais relativas a cidade, incluído políticas e serviços de planejamento,

desenvolvimento, gestão, renovação ou melhora de vizinhança.

2. As cidades deverão garantir o direito as eleições livres e democráticas dos

representantes locais, a realização de plebiscitos e iniciativas legislativas

populares e o acesso eqüitativo aos debates e audiências públicas nos temas

relativos ao direito à cidade.

3. As cidades devem implementar políticas afirmativas de cotas para

representação e participação política das mulheres e minorias em todas as

instancias locais eletivas e de definição de suas políticas públicas.

ARTIGO IX. DIREITO DE ASSOCIAÇÃO, REUNIÃO, MANIFESTAÇÃO

E USO DEMOCRATICO DO ESPAÇO PÚBLICO URBANO

Todas as pessoas têm direito de associação, reunião e manifestação. As cidades se

comprometem a dispor de espaços públicos para a organização de reuniões abertas

e encontros informais.

ARTIGO X. DIREITO A JUSTIÇA

1. As cidades signatárias se comprometem a adotar medidas destinadas a melhorar

o acesso de todas as pessoas ao direito e a justiça.

2. As cidades devem fomentam a resolução dos conflitos civis, penais,

administrativos e trabalhistas mediante a implementação de mecanismos públicos

de conciliação, transação e mediação.

3. As cidades se obrigam a garantir o acesso ao serviço de justiça estabelecendo

políticas especiais em favor dos grupos mas empobrecidos da população e

fortalecendo os sistemas de defesa pública gratuita.

ARTIGO XI. SEGURANÇA PÚBLICA E A CONVIVENCIA PACIFICA

SOLIDÁRIA E MULTICULTURAL

1. As cidades se comprometem a criação de condições para a conveniência

pacífica, ao desenvolvimento coletivo e ao exercício da solidariedade, para tanto

garantirá o pleno usufruto da cidade, respeitando a diversidade e preservando a

memória e a identidade cultural de todos os cidadãos sem discriminação.

2. As forças de segurança têm entre suas principais missões o respeito e proteção

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76

dos direitos dos(as) cidadãos(ãs). As cidades garant em que as forças de segurança

pública sob suas ordens somente exercerão o uso da força estritamente de acordo

com as previsões legais e com controle democrático.

3. As cidades garantirão a participação de todos os cidadãos(ãs) no controle e

avaliação das forças de segurança

Parte III. Direito ao Desenvolvimento Econômico, Social, Cultural e

Ambiental das Cidades

ARTIGO XII. DIREITO A ÁGUA, AO ACESSO E ADMINISTRAÇAO

DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DOMICIARES E URBANOS

1. As cidades garantirão o direito a todos os(as) cidadãos(ãs) de acesso

permanente aos serviços públicos de água potável, saneamento, coleta de lixo,

instalações de atendimento médico, escolas, a fontes de energia e telecomunicação

em co-responsabilidade com outros organismos públicos ou privados de acordo

com o marco jurídico de cada país.

2. As cidades garantirão que os serviços públicos, ainda que estejam privatizados

em gestão anterior a esta carta, estabelecerão uma tarifa social exeqüível e a

prestação do serviço público adequado para as pessoas e grupos vulneráveis ou

aos desempregados.

ARTIGO XIII. DIREITO AO TRANSPORTE PÚBLICO E MOBILIDADE

URBA NA

1. As cidades garantem o direito a mobilidade e circulação na cidade através um

sistema e transporte públicos acessíveis a todas as pessoas segundo um plano de

deslocamento urbano e interurbano, e com base nos meios de transportes

adequados as diferentes necessidades sociais (de gênero, idade, incapacidade) e

ambientais, com preços adequados a renda dos cidadãos(ãs). Será estimulado o uso

de veículos não contaminantes e reservando áreas aos pedestres de maneira

permanente a certos momentos do dia.

2. As cidades promoverão a remoção de barreiras arquitetônicas para a

implantação dos equipamentos necessários ao sistema de mobilidade e circulação e

a adaptação de todas as edificações públicas ou de uso público, dos locais de

trabalho, para garantir a acessibilidade das pessoas portadoras de necessidades

especiais.

ARTIGO XIV. DIREITO À MORADIA

1. As cidades, no marco de suas competências, se comprometem a adotar medidas

para garantir a todos (as) os (as) cidadãos ( ãs) que os custos da habitação será

proporcional ao valor da renda de cada cidadão( ã). As habitações que contenha

condições de habitabilidade deverão se acessíveis, deverão ser bem localizadas em

lugar adequado e deverão se adaptar as características culturais de quem as

habitem.

2. As cidades se obrigaram a facilitar uma oferta adequada de habitação e

equipamentos de bairro para todos os(as) cidadãos(ãs) e de garantir as famílias em

situação de pobreza, planos de financiamento e de estruturas de serviços para a

assistência a infância a velhice .

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77

3. As cidades garantem aos grupos vulneráveis prioridade nas leis e nas políticas

de habitação. As cidades se comprometem a estabelecer programas de subsidio e

financiamento para aquisição de terras ou imóveis, e regularização fundiária e

melhoramentos de bairros precários, assentamentos e ocupações informais para

fins habitacionais.

4. As cidades se comprometem a incluir as mulheres beneficiarias nos

documentos de posse ou propriedade expedidos e registrados, independente de seu

estado civil, em todas as políticas públicas de distribuição e titulação de que terras,

e de habitação que se desenvolvam.

5. Todos(as) os(as) cidadãos(ãs ), em forma individual, casais ou grupos

familiares sem lar tem o direito de exigir a provisão imediata pelas autoridades

públicas da Cidade de habitação suficiente, independente e adequada. Os

albergues, os refúgios e os alojamentos com cama e café da manhã poderão ser

adotados com medidas provisórias de emergência, sem prejuízo da obrigação de

promover uma solução definitiva de habitação.

6. Todas as pessoas têm o direito a segurança da posse sobre sua habitação por

meio de instrumentos jurídicos que garantam o direito a proteção frente aos

desalocamentos, desapropriação e despejos forçados e arbitrários.

7. As cidades se comprometem a impedir a especulação imobiliária mediante a

adoção de normas urbanas para uma justa distribuição de cargas e de benefícios

gerados pelos processos de urbanização e de adequação dos instrumentos de

políticas econômicas, tributaria e financeira e dos gastos públicos os objetivos e

desenvolvimento urbano.

8. As cidades promulgaram a legislação adequada e estabeleceram mecanismos e

sanções destinados a garantir o pleno aproveitamento de solo urbano e de imóveis

públicos e privados no edificados, não utilizados ou sub-utilizados ou não

ocupados, par ao fim de cumprimento da função social da propriedade.

9. As cidades protegem os inquilinos dos juros e dos despejos arbitrários,

regulamentando os aluguéis de imóveis para habitação de acordo com a

Observação Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da

Organização das Nações Unidas.

10. O presente artigo será aplicável para todas as pessoas, incluindo famílias,

grupos, ocupantes sem títulos, sem tetos e aquelas cujas circunstâncias de

habitação variam, em particular aos nômades e viajantes.

11. As cidades promoverão a instalação de albergues e habitações sociais para

locação das mulheres vítimas da violência conjugal.

ARTIGO XV. DIREITO AO TRABALHO

1. As cidades, em co-responsabilidade com seus Estados Nacionais, contribuirão,

na medida de suas possibilidades, na consecução do pleno emprego na cidade.

Assim mesmo promoverão a atualização e a requalificação dos trabalhadores

empregados ou não através da formação permanente.

2. As cidades promoverão a criação de condições para que as crianças possam

desfrutar da infância, combatendo o trabalho infantil.

3. As cidades em colaboração com os demais entes da administração pública e da

empresas, desenvolvem mecanismos para assegurar da igualdade de todos diante

ao trabalho, impedindo qualquer discriminação.

4. As cidades promoverão em igual acesso das mulh eres ao trabalho mediante a

criação de creches e outras medidas, e para as pessoas portadoras de necessidades

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especiais mediante a implementação de equipamentos apropriados. Para melhorar

as condições de emprego, as cidades estabelecerão programas de melhoria de

habitações urbanas utilizadas por mulheres “chefes de família” e grupos

vulneráveis como espaços de trabalho. As cidades se comprometem a promover a

integração progressiva do comercio informal que realizam as pessoas com pouca

renda ou desempregadas, evitando a eliminação e disposição de espaços para o

exercício de políticas adequadas para sua incorporação na economia urbana.

ARTIGO XVI. DIREITO AO MEIO AMBIENTE

1. As cidades se comprometem a adotar medidas de prevenção frente à ocupação

desorde nada do território e de áreas de proteção e a contaminação , incluindo

acústica, economia energética, a gestão e reutilização dos resíduos, reciclagem e a

recuperação das vertentes para ampliar e proteger os espaços verdes.

2. As cidades se comprometem a respeitar o patrimônio natural, histórico,

arquitetônico, cultural e artístico e a promoção da recuperação e revitalização das

áreas degradadas e dos equipamentos urbanos.

Parte IV. Disposições Finais

ARTIGO XVII. OBRIGAÇÕES E REPONSABILIDADES DO ESTA DO NA

PROMOÇÃO, PROTEÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO DIREITO À

CIDADE

1. Os organismos internacionais, governos nacionais, estaduais, regionais,

metropolitanos, municipal e locais são atores responsáveis pela efetiva aplicação

dos direitos positivos previstos nesta Carta, assim como os direitos humanos civis,

políticos, econômicos, sociais e culturais, para todos os habitantes das cidades,

com base no sistema de direito internacional de direitos humanos e o sistema de

competências vigentes em respectivo país.

2. A implementação dos direitos previstos nesta Carta, e sua aplicação em

desacordo com os princípios e diretrizes das normas internacionais e nacionais de

direitos humanos vigentes no País, pelos governos responsáveis, decorrerá em

caracterizar em violação ao Direito à Cidade que somente poderá parar mediante a

implementação de medidas necessárias para a reparação ou reversão do ato o da

omissão que deram causa. As medidas deverão garantir que os efeitos negativos

aos danos derivados sejam reparados ou revertidos do ato ou da omissão que

deram causa. Essas medidas deverão garantir que seus efeitos negativos e danos

derivados sejam reparados ou revertidos na forma de garantir que os efeitos

negativos ou danos derivados sejam reparados ou revertidos de forma a garantir a

todos os cidadãos e todas cidadãs a efetiva promoção, proteção e garantia aos

direitos humanos previstos nesta Carta.

ARTIGO XVIII. MEDIDAS DE IMPLEMENTAÇÃO E SUPERVISÃO DO

DIREITO À CIDADE

1. As cidades devem adotar todas as medidas necessárias, na forma adequada e

imediata, para assegurar o direito à cidade para todas as pessoas, conforme o

disposto nesta Carta. As cidades garantirão a participação dos cidadãos e das

organizações da sociedade civil nos processos de revisão normativa. As cidades

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estão obrigadas a utilizar o máximo de seus recursos disponíveis para cumprir as

obrigações jurídicas estabelecidas nesta carta.

2. As cidades proporcionarão a capacitação e educação em direitos humanos a

todos os agentes públicos relacionados com a implementação do direito à cidade e

com suas respectivas deveres e obrigações correspondentes, em especial aos

funcionários públicos empregados por órgãos públicos cujas as políticas influam

de alguma maneira na plena realização do direito à cidade.

3. As cidades promoverão o aprendizado do direito à cidade nas escolas públicas e

universidades e pelos meios de comunicação.

4. Os(as) cidadãos(ãs) supervisionarão e avaliarão com regularidade e

globalmente o grau de respeito as obrigações e aos direitos presentes nesta Carta.

5. As cidades estabelecerão mecanismos de avaliação e monitoramento das

políticas de desenvolvimento urbano e inclusão social implementadas com base em

um sistema eficaz de indicadores do direito à cidade com diferenciação de gêneros

para assegurar o direito a cidade com base nos princípios e normas desta Carta.

ARTIGO XIX. LESÃO DO DIREITO Á CIDADE

1. Constitui lesão ao Direito à Cidade as ações e omissões, medidas legislativas,

administrativas e judiciais, e práticas sociais que resultem no impedimento, em

recusa, em dificuldade e impossibilidade de:

- realização dos direitos estabelecidos nesta Carta;

- na participação política coletiva de habitantes e mulheres e grupo sociais na

gestão da cidade;

- no cumprimento das decisões e prioridades de finidos nos processos

participativos que integram a gestão da cidade;

- manutenção das identidades culturais, formas de convivência pacífica,

produção de habitação social, assim como formas de manifestação e ação de

grupos sociais e cidadãos(ãs), em especial os grupos vulneráveis e

desfavorecidos com base nos usos e costumes.

2. As ações e omissões podem expressar-se no campo administrativo, por

elaboração e execução de projetos, programas e planos; na esfera legislativa,

através da edição de leis, controle de recursos públicos e ações do governo; na

esfera judicial, nos julgamentos e decisões judiciais sobre conflitos coletivos e

difusos referente a temas de interesse urbano.

ARTIGO XX. EXIGIBILIDADE DO DIREITO À CIDADE

Toda pessoa tem direito a recursos administrativos e judiciais eficazes e completos

relacionados com os direitos e deveres enunciados na presente Carta, desde que

não desfrute destes direitos.

ARTIGO XXI. COMPROMISSOS PROVENIENTES DA CARTA

MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE

I – As redes e organizações sociais se comprometem a: 1. Difundir amplamente esta Carta e potencializar a articulação internacional pelo

Direito à Cidade no contexto do Foro Social Mundial, nas conferencias e nos foros

internacionais com o objetivo de contribuir para o avanç o dos movimentos sociais

e das redes de ONGs e na construção de uma vida digna nas cidades.

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2. Construir plataformas de exigibilidade do direito à cidade, documentar e

disseminar experiências nacionais e locais que apontem para a construção deste

direito.

3. Apresentar esta Carta do Direito à Cidade nos distintos organismos e agencias

do Sistema das Nações Unidas e dos Organismos Regionais, para iniciar um

processo que tenha como objetivo o reconhecimento do direito à cidade como um

direito humano.

II – Os Governos nacionais e locais se comprometem a: 1. Elaborar e promover marcos institucionais que consagrem o direito à cidade,

assim como formular, com caráter de urgência, planos de ação para um modelo de

desenvolvimento sustentável aplicado nas cidades, em concordância com os

princípios enunciados nesta Carta.

2. Construir plataformas associativas, com ampla participação da sociedade civil,

para promover o desenvolvimento sustentável nas cidades.

3. Promover a ratificação e aplicação dos pactos de direitos humanos e outros

instrumentos internacionais que contribuam na construção do direito à cidade.

III – Os Organismos Internacionais se comprometem a: 1. Empreender todos esforços para sensibilizar, estimular e apoiar os governos na

promoção de campanhas, seminários e conferencias, e facilitar publicações

técnicas apropriadas que conduzam a adesão aos compromissos desta Carta.

2. Monitorar e promover a aplicação dos pactos de direitos humanos e outros

instrumentos internacionais que contribuam na construção do direito à cidade.

3. Abrir espaços de participação nos organismos consultivos e decisórios do

sistema das Nações Unidas que facilitem a discussão desta iniciativa.

Texto encaminhado por Débora de Albuquerque Souza – CUT

MAIO DE 2005