darcy nº 15

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Nº 15· NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2013 REVISTA DE jORNALISMO CIENTíFICO E CULTURAL DA UNIVERSIDADE DE BRASíLIA ISSN 2176-638X LEGADO DE UM GÊNIO

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Edição em homenagem a Darcy Ribeiro

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Page 1: Darcy Nº 15

<assina_basica_CONT>Nº 15· NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2013Revista de joRnalismo científico e cultuRal da univeRsidade de BRasília

ISSN 2176-638X

leGado de um GÊnio

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comentários para os editores: [email protected]@gmail.com

Paulo Paniago e Paulo Renato souza cunha

a HeRanÇa de daRcY

Na edição anterior escrevemos que uma revista é fei-ta de sonhos, anseios, desejos e trabalho árduo. É deve-ras gratificante quando percebemos que o produto dessa equação se encaixa com parcimônia e que nosso esforço para manter a qualidade editorial da DARCY foi reconhe-cido pelos leitores. Recebemos elogios e críticas e acredi-tamos que esse diálogo é imprescindível para continuar-mos a fazer uma revista cada vez mais completa. Se o caixeiro-viajante Gregor Samsa — personagem do livro A metamorfose, de Franz Kafka — nos disse que a perfei-ção é impossível de ser atingida, queremos, pelo menos, andar ali perto.

Eis que temos aqui a número 15, uma edição especial que homenageia o homem que empresta o nome à revis-ta, algo que vínhamos adiando fazer não se sabe bem as razões. Darcy Ribeiro foi antropólogo, escritor, político, ga-lanteador... No dia 21 de abril de 1962, ao lado do amigo Anísio Teixeira, fundou a Universidade de Brasília com o objetivo de implementar novos projetos na área educacio-nal no Brasil. Ambos esperavam desenvolver profissionais atentos às transformações deste país através da multidis-ciplinariedade.

Darcy era um sujeito inquieto que viveu várias vidas ao mesmo tempo. São essas existências que nos propomos a retratar nesta edição. Um homem público apaixonado por ensinar, que não tolerava aquilo que Nelson Rodrigues cha-mava de a síndrome de vira-lata, que ainda assola deter-minados brasileiros. No livro autobiográfico — Confissões (Companhia das Letras, 1997) —, Darcy diz que queria para todos as mesmas alegrias de que ele pôde desfrutar. Trata-se de uma coletânea de memórias que nos mostra a capa-cidade que tinha de modificar-se, de construir o próprio co-tidiano tal e qual uma narrativa literária. Um personagem.

Darcy Ribeiro passou a vida consumido pela pressa de quem tinha uma certeza: mesmo que lhe fosse reser-vado todo o tempo do mundo, não seria suficiente para fazer tudo o que precisava. Até ao falar, parecia pressio-nado pela lentidão com que as palavras lhe saíam pela boca e, ao fim da vida, lutando quixotescamente contra um câncer, arfava com ansiedade à procura de fôlego ex-tra. Colocamos nossos jovens repórteres em campo para levantar várias dessas vidas concentradas num sujeito e para prestar nossa homenagem, que julgamos mais do que justa e que se eterniza toda vez que uma nova edição de DARCY ganha as ruas — e, queremos crer, as mentes e corações.

Para completar esta edição, apresentamos com o de-vido regozijo duas novas colunas aos leitores. A saber: Inéditos, que neste número 15 fala a respeito da boêmia e solitária poetisa paulista Orides Fontela (1940-1998), texto de Gustavo de Castro, poeta e professor da UnB; além de Letras e literatura, que será mantida pelo editor da DARCY Paulo Paniago. Ambas agradáveis novidades àqueles que apreciam boas escrituras.

c a R t a d o s e d i t o R e s

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daRcYREVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURALDA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

universidade de Brasília

ReitorIvan Camargo

vice-ReitorSônia Báo

conselho editorialPresidente do conselho editorialisaac RoitmanProfessor do Departamento de Biologia CelularEx-Decano de Pesquisa e Pós-graduação

coordenador do conselho editorialluiz Gonzaga mottaProfessor da Faculdade de Comunicação

antônio teixeiraProfessor da Faculdade de Medicinadavid RenaultDiretor da Faculdade de Comunicaçãodenise Bomtempo Birche de carvalhoDecana de Pesquisa e Pós-graduaçãoelimar Pinheiro do nascimentoProfessor do Centro de Desenvolvimento Sustentávelestevão c. de Rezende martinsProfessor do Instituto de Ciências Humanasjaime martins de santanaDecano de Pesquisa e Pós-graduaçãoluís afonso BermúdezDecano de Administraçãomarco a. amatoProfessor do Instituto de Físicanoraí Romeu RoccoProfessor do Departamento de Matemática

eXPediente

diretor de redaçãoPaulo PaniagoProfessor da Faculdade de Comunicação

editoresPaulo Paniago e Paulo Renato Souza Cunha

Gerente de projetosGreyce Castro

secretária de redaçãoNathalia Zôrzo

secretária de redesRafaela Lima

secretária de parceriasLetícia Carvalho

RepórteresAlessandra Azevedo, Ana Teresa Malta, Caroline Bchara, Douglas Lemos, Eduardo Barretto, Emily Almeida, Gabriel Luiz, Ingrid Borges, Ingridy Peixoto, Isabella Calzolari, Jhésycka Vasconcelos, Johnatan Reis, Lara Silvério, Letícia Carvalho, Nadjara Martins, Nathalia Zôrzo, Nívea Ribeiro e Rafaela Lima

editora de arteJuliana Reis

diagramadoraJuliana Reis

ilustradoresIsabela Ribeiro, Lucas Pacífico e Túlio César Mendes

fotógrafoChristian Knepper

Revista DARCYTelefone: (61) 3107-0214 E-mail: [email protected] Universitário Darcy RibeiroInstituto Central de Ciências (ICC)Ala Sul, subsolo, módulo 870910-900 Brasília – DF Brasil

Impressão: Gráfica CoronárioTiragem: 12.500 exemplares

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fRonteiRas do PensamentoQuando a paixão pelo futebol se transforma em violência generalizada

inÉditosA complicada vida da poeta Orides Fontela narrada por Gustavo de Castro

seGuRanÇa veiculaRUm projeto da UnB que estuda capotamento recebe prêmio

coBaias e ciÊnciaTestes com humanos enfrentam os comitês de ética preocupados

fRonteiRas da astRonomiaQuando a Terra não for suficiente os terráqueos podem ir para Marte

letRas e invenÇÕesComo o romance fez apostas importantes na inventividade

3 caRta dos editoResAs recordações dos muitos talentos do pensador Darcy Ribeiro

6 diáloGosIsaac Roitman e o reitor Ivan Carvalho debatem ensino e mercado

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aRQueoloGia de uma ideia Relógio: a evolução dos mecanismos para contagem do tempo

anatomia da fala A falta que a língua faz, o relato de uma doença muito rara

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o mundo no temPo de Como Santos Dumont pilotou o primeiro voo da história

doce matemática Uma professora descobriu como redespertar o interesse dos alunos

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eu me lemBRo

Márcia Duarte record a repercussão provocada pelo grupo EnDança no Brasil e no exterior

o Que eu cRiei PaRa vocÊ

A pesquisadora Raíssa Domingues criou um kit que consegue diagnosticar com rapidez a dengue

ensaio

Os meandros da universidade vistos e capturados pelo talento do fotógrafo Christian Knepper

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10 aRQueoloGia de uma ideia

Prezado(a) leitor(a),

A DARCY é a nossa forma de fazer a universidade ultrapassar os limites físicos da própria UnB. Por isso, nossa equipe está sempre alerta para descobrir o que está sendo produzido e levar até você. Na última edição, a revista passou às mãos de uma nova equipe e mudou um pouquinho sua cara, mas sem perder o foco. Ligada em temas relevantes, trouxe um dossiê importante sobre reciclagem. Neste número, a mesma equipe retorna trazendo ainda mais informações fresquinhas para o leitor. E, se você como nós adora a revista, pode acompanhar a nossa página no Facebook. O endereço é www.facebook.com/revistadarcy. Lá é possível acompanhar novidades e conhecer as edições anteriores. Depois é só nos dizer o que achou. Sua opinião pode aparecer na revista e, assim, você ganha a assinatura da DARCY.

c a R a d a R c Y

fale conosco Telefone: 61 3107-0214E-mail: [email protected]: www.facebook.com/revistadarcysite: www.revistadarcy.com.br

eu conHeÇo daRcY

Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA) e escreve aos domingos na Folha de S.Paulo, na versão impressa de “Ciência”. Durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2013, fruto de parceria entre Núcleo do Futuro (n-Futuros) da UnB e a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado Federal esteve na Universidade e conheceu a revista DARCY. “É um projeto incrível e todas as universidades tinham que conhecer esta revista. Ciência precisa fazer parte da vida das pessoas e é com projetos assim que conseguiremos.”

dossiÊ

PaRa conHeceR os índiosOs diários de campo do jovem antropólogo

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18 iRReveRÊncia do PensamentoO mergulho no Brasil profundo moldou as ideias

letRas da inQuietudeUm romancista avesso à classificação

cRiadoR de univeRsidadeOs projetos de educação de Darcy

daRcY RiBeiRo

As vidas animadas do genial criador da Universidade de Brasília

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academia e meRcado de tRaBalHo

ivan camargo é doutor em Engenharia Elétrica e reitor da Universidade de Brasília

Universidades são organizações norteadas pela busca sistemá-tica por conhecimento e por soluções para as necessidades cotidianas. A academia precisa estar atenta às demandas da sociedade. Suprir o mercado de trabalho com profissionais

qualificados é uma delas. Se o país sofre com a falta de professores, de médicos e de engenheiros, precisamos formá-los. Temos que oferecer as condições ideais para inserir pessoas preparadas e orientadas por princípios éticos na população economicamente ativa.

Não raro, ouço que a universidade não deve se pautar pelas neces-sidades do mercado de trabalho. Tal discurso costuma partir de defen-sores de áreas com baixa empregabilidade formal. Tendo a discordar. É evidente que as organizações acadêmicas não devem se limitar aos anseios do mercado, que é dinâmico e instável, mas precisam estar atentas aos campos que sofrem com escassez de mão de obra.

Em recente apresentação no ciclo de palestras organizado pela Comissão UnB Futuro, o educador Antônio Nóvoa enfatizou a necessi-dade do olhar para além dos limites dos campi. Ao relatar sua experiên-cia de sete anos como reitor da Universidade de Lisboa, ele afirmou que as decisões tomadas com base exclusivamente em interesses internos da instituição foram equivocadas. Quando o foco passou a ser a so-ciedade, as decisões ganharam força e apontaram na direção correta. Entre esses anseios, incluem-se as demandas do mercado de trabalho.

A atuação e a inserção profissional dos egressos têm sido obser-vadas também por rankings universitários. Um deles, organizado pelo

d i á l o G o s

Texto ivan camargoIlustração isabela Ribeiro

Grupo Folha, traz a avaliação de mercado como um de seus indi-cadores. Ouvem-se as áreas de recursos humanos de centenas de instituições empregadoras para saber como as corporações avaliam universidades e faculdades. A Universidade de Brasília é tradicional-mente bem vista pelos avaliadores e desfruta do reconhecimento por fornecer quadros talentosos.

Contudo, o papel da universidade está muito além das expectativas de mercado. Precisamos estimular a pluralidade de conhecimentos e a formação de profissionais questionadores. A diversidade e o apre-ço pela busca por respostas são riquezas de instituições como a UnB. Temos ainda que incentivar a pesquisa e a inovação, independente-mente de variações sazonais.

A escolha da revista DARCY pelo tema mercado de trabalho reflete o interesse da comunidade acadêmica sobre as perspectivas de atua-ção profissional. A publicação certamente vai externar que a formação não deve estar centrada nas expectativas materiais das pessoas. A boa formação não é aquela que visa ao mais alto salário e sim, muito mais importante, aquela na qual nos sentimos úteis e contribuímos para o bem estar social.

Espero que esta nova edição da nossa revista DARCY ilumine o ca-minho de nossos jovens rumo ao futuro. Estou certo de que seja qual for a escolha profissional do estudante, se trilhada com dedicação e trabalho, será boa para o mercado, para si mesmo e, principalmente, para a sociedade.

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a escolHa decisiva

isaac Roitman é professor Emérito da UnB e presidente do Conselho Editorial da DARCY

boa decisão. Apesar da importância da dimensão teórica na escolha, nada é mais importante que uma vivência, uma experiência presen-cial, na opção escolhida. Isso pode ser feito enquanto o jovem é ainda estudante do ensino médio. Uma das formas é por meio de um estágio em um ambiente direta ou indiretamente ligado à profissão pretendi-da. Nesse ambiente ele poderá avaliar o prazer ou desprazer de reali-zar uma atividade específica e sentir ou não a sensação de ter grati-ficações não materiais no trabalho cotidiano. Outra forma é procurar um ambiente acadêmico para testar e validar a atividade escolhida. Isso pode ser feito por meio do programa introduzido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) conhe-cido como Iniciação Científica Junior. Nesse programa cujo foco é o estudante do ensino básico, ele terá a oportunidade de frequentar um ambiente acadêmico na área escolhida, por exemplo, física, química, biologia, matemática, letras, economia, direito, filosofia, sociologia, computação, artes etc. Esse programa iniciado em 2004 oferece bol-sas por meio do CNPq para estudantes do ensino básico que desen-volvem projetos de pesquisa em Instituições de ensino superior ou cen-tros de pesquisas sob a orientação de um professor ou pesquisador credenciado.

No entanto, é importante assinalar que o mercado de trabalho não deva ser o único referencial para a escolha difícil e decisiva. É impor-tante lembrar que a educação como um todo é o melhor caminho para a construção de valores. Entre eles respeito e convívio com a diversida-de, contínua solidariedade, fidelidade aos princípios éticos, respeito ao meio ambiente, que são dimensões pétreas da cidadania.

Um dia perguntei a minha neta de quatro anos se ela já sabia o que ia ser quando crescer. Fiquei surpreso com um solene sim. Perguntei então: o que você vai ser? Ela respondeu com espantosa convicção: adulta. Resposta lógica, sem a influên-

cia de conceitos e preconceitos e sem levar em conta a complexidade da vida. As crianças e jovens são repetidamente sabatinados sobre o próprio futuro. Em geral elas respondem com a primeira profissão que lhes vêm à cabeça. Na verdade, elas não têm a menor ideia do que querem ser – nem os vestibulandos têm – mas intuem que sua identi-dade estará ligada aos valores incorporados no seu ambiente social e a sua futura sustentabilidade.

Descobrir o que fazer profissionalmente entre 15 e 20 anos é um grande desafio. É frequente nos jovens que optam de forma pouco pen-sada por um curso, descobrirem em pouco tempo que não fizeram a escolha correta, voltando a uma situação incômoda que é percebida como fracasso ou retrocesso. No processo de escolha de uma carreira vários fatores podem influir na tomada de decisão. Uma delas é a atra-tividade por profissões que estão na moda ou aquelas que prometem a garantia de progresso material. Muitas vezes a influência da família é considerável. Os pais, com as melhores das intenções, tentam orientar de forma explícita ou implícita, tendo como horizonte a garantia da feli-cidade dos filhos. Os jovens muitas vezes ficam divididos entre agradar a estes, em lugar de agradar a si mesmos.

O conhecimento das diferentes profissões é um pilar importante para uma escolha exitosa. Um profundo autoconhecimento nas pró-prias habilidades e desejos são também fatores importantes para uma

Texto isaac Roitman

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a R Q u e o l o G i a d e u m a i d e i a

temPo contadoComo se desenvolveu a mais importante e discreta ferramenta que dita o ritmo da humanidade

A ampulheta é um instrumento que mede o tempo pela passagem de areia de uma câmara (âmbu-la) superior para outra, inferior. Mas a data deste invento é incer-ta. A criação é atribuída tanto aos egípcios quanto a Luitprand, mon-ge francês que viveu na região de Chartres, no século 8.

Possui diversos tamanhos e pode contar variadas durações de tempo. As ampulhetas de 30 mi-nutos e de 12 horas foram as mais difundidas. Eram, também, muito usadas em viagens de barco. E na arte, representavam a transitorie-dade da vida.

Além de areia era usado casca de ovo moída, pó de mármore, de prata ou pó de estanho misturado ao chumbo.

Provavelmente este instrumen-to foi desenvolvido no Egito, por meio da sombra de uma vareta fin-cada no solo com a qual se media a passagem do tempo. Porém, é do grego Anaximandro de Mileto o mérito de aperfeiçoar a ferramen-ta. Foi ele quem criou o primeiro quadrante solar, estrutura física com 12 divisões em que cada uma representa uma hora do dia.

Há muito, dois povos já utilizavam a água para medir a passagem do tempo. Uma inscri-ção funerária egípcia de 1500 a.C. menciona uma clepsidra (palavra grega que significa la-drão de água) construída para o rei Amenophis I. Documentos provam que no reino do impe-rador chinês Hoang-Ti, no ano 2679 a.C., esta ferramenta também já era utilizada.

Mas Ctesibius de Alexandria, em 430 a.C., aprimorou o aparelho de água. O modelo pos-suía uma vareta acoplada a uma boia na câ-mara inferior. À medida que a água caía, a va-reta girava uma engrenagem que marcava os números de 1 a 12.

O modelo foi muito difundido à época, po-rém ainda não marcava horas com precisão.

Os relógios modernos não da-vam a hora de forma mais eficaz que o relógio de água, mas eram mais convenientes. E poderiam ser colocados em cima de torres, por exemplo.

Na Europa, relógios em torres de igreja ou prédios públicos se tornaram comuns. Pela primeira vez as pessoas podiam saber as horas pelo número de vezes que um sino badalava, por isso, a pala-vra inglesa clock deriva da palavra francesa cloche, que significa sino.

À primeira vista a desco-berta do princípio do pêndu-lo por Galileu não fez diferen-ça. Somente em 1656, Christian Huygens a tornou útil.

Ele percebeu que se o pêndu-lo oscilasse dentro de um cicloide (um círculo sobre um arco peque-no) o período de oscilação do pên-dulo seria constante.

Então, Huygens prendeu dois pesos a um pêndulo de tal forma que o tempo que demoravam para subir e descer gerava uma cons-tância determinada.

Foi o primeiro instrumento a marcar as horas precisamente, in-clusive os minutos. Era tão seguro que foi utilizado por cientistas.

amPulHeta (indefinido)

RelóGio de sol (4 mil a.c.)

RelóGio mecânico (1335)

RelóGio PÊndulo (1656)

clePsidRa (270 a.c)

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Texto johnatan Reis Ilustração lucas Pacífico

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Os relógios mecânicos precisa-vam ficar na vertical, pois são mo-vidos por pesos e precisavam da gravidade para funcionar.

Em 1504, uma invenção revo-lucionou o funcionamento dos re-lógios. A mola mestra. Esta peça devia ficar bem apertada e a for-ça que fazia para se desenrolar movimentava os mecanismos do relógio.

Então, Peter Helein, serralheiro alemão, percebeu que uma mola pequena exerceria a mesma fun-ção que uma mola grande e como não dependia da gravidade, po-deria funcionar em qualquer po-sição. Assim, a mola mestra foi colocada num relógio tão peque-no que cabia no bolso.

Este pequeno relógio foi cha-mado em alemão de Uhr e em in-glês, de watch (observar).

O primeiro foi feito pelo relojoeiro Abraham Louis Bréguet, por encomenda da princesa de Nápoles, Carolina Murat, irmã de Napoleão Bonaparte.

A invenção também é atribuída a Athoni Patek e Adrien Phillipe, em 1868. O modelo tornou-se rapidamente popular como adere-ço tipicamente feminino a partir dessa época.

No início do século 20, Santos Dumont pediu a um amigo que lhe fizesse um relógio adaptado para a aviação. O joalheiro, Louis Cartier, criou o modelo de pulso. Somente en-tão, o relógio se popularizou entre os homens.

O marco definitivo do uso de relógio de pul-so por homens foi durante a Primeira Grande Guerra, porque os soldados precisavam de um jeito prático de saber as horas.

A longitude é a distância a leste ou a oeste do ponto de partida de um navio. E na época das grandes navegações esta informação fa-zia toda a diferença para os marinheiros.

Por isso, em 1728, o governo britânico ofe-receu um prêmio de 20 mil libras a quem in-ventasse uma forma mais eficaz de medir o tempo e determinar a longitude com exatidão.

John Harison fabricava instrumentos e pro-duziu cinco relógios tão precisos e eficientes que não eram afetados nem pelo balanço do mar. O maior atraso dentre os cinco relógios foi de um minuto, após cinco meses no mar.

O pêndulo foi feito com liga metálica para que ficasse do mesmo tamanho em diferen-tes temperaturas, e assim medir o tempo com mais eficácia.

Uma série de burocracias do parlamento in-glês atrasou o pagamento do prêmio e Harison só recebeu a pequena fortuna tempos depois.

Meridiano de Greenwich (1884) O meridiano de Greenwich é aceito internacionalmente como o ponto inicial na escala dos meridianos para o cálculo das longitudes.

Max Hetzel (1921), da fábrica Hamilton, nos Estados Unidos, apresenta o primeiro relógio de pulso eletrônico. Eles funciona-va sem peças móveis e com mos-trador digital. Os números do Pulsar são constituídos por “Light Emitting Diode” (LED).

O primeiro relógio atômico foi construído nos EUA. Uma versão aprimorada, baseada na tran-sição do átomo de césio-133, foi construída por Louis Essen em 1955, no Reino Unido.

Desde 1967, a definição internacional do tempo baseia-se num relógio atômico, assim como os relógios, satélites e aparelhos de últi-ma geração. Ele é considerado o mais preciso já construído pelo homem e atrasa apenas um segundo a cada 65 mil anos, segundo a confe-rência geral de pesos e medidas que se reúne periodicamente na França.

Em agosto de 2004, os cientistas do NIST (National Institute of Standards and Technology, sigla, em inglês, para Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia) apresen-taram um relógio atômico do tamanho de um chip, com um milésimo do tamanho de qualquer outro modelo e consumindo apenas 75 milési-mos de watts, tornando possível utilização dele em aparelhos movidos a pilhas ou baterias.

No Brasil, há dois relógios de átomos de césio-133. Eles ficam no Observatório Nacional.

cRonômetRo naval (1728)

RelóGio atômico (1948)

RelóGio de Bolso (1504)

RelóGio de Pulso (1814)

RelóGio eletRônico (1957)

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Texto Rafaela limaIlustração túlio mendes

É de se chocar como algumas poucas escolhas podem decidir a vida de uma pessoa. Foi em Paris, em uma tarde de um dia qualquer, 1891. Alberto Santos Dumont – então com 18 anos –, em visita a uma exposição de máquinas viu pela primeira vez um motor a pe-tróleo. Era véspera de sua partida para o Brasil. Parado diante do motor, só lhe restava

fascinação. Para o pai, Henrique Dumont, que o acompanhava no passeio, pediu licença para estudar na cidade. Distraído, o patriarca nem respondeu.

À noite, no jantar de despedida, uma decisão: Dumont voltaria para acabar os estudos. De volta ao Brasil, ganhou do pai emancipação, centenas de contos de réis e um conselho:

“Vai para Paris, o lugar mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se você se faz um homem; prefiro que não se faça doutor; em Paris, com o auxílio de nossos primos, você procurará um especialista em física, química, mecânica, eletricidade etc.. Estude essas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica”. Mal sabia Dumont que o destino lhe havia reservado algo maior: um lugar ao céu da capital francesa. Foi lá onde voou pela primeira vez.

Brasileiro, nascido em 20 de julho de 1873 em Palmira – interior de Minas Gerais –, o inventor demorou quase 25 anos para elevar os pés do chão. Era 23 de março de 1898, inverno parisiense.

O objeto de 750 m3 pertencia a Henri Lachambre e Alexis Machuron, que ganharam fama com construção de balões.

Encantado, Santos Dumont encomendou à Casa Lachambre um próprio, do jeito que queria: 100 m3, seda japonesa, cesto para uma pessoa apenas. O resultado foi o minúsculo “Brasil”, com diâmetro de seis metros e volume de 113 m3. Em 4 de julho de 1898, ganhou os céus com o novo companheiro. Meses depois, se fez inventor.

Em posse de motor de um triciclo a petróleo, dedicou-se aos cálculos e aos desenhos do seu primeiro dirigível, o n.º 1. Em setembro de 1898 colocou-o para teste. Flexível, com 25 m de comprimento e de forma alongada, dobrou-se e caiu. Com o dirigível n.º 2, a experiência não foi diferente. Na terceira tentativa, o n.º 3, que já era menos alongado e não tão flexível, atingiu 20 quilômetros por hora de velocidade, e permaneceu 23 horas no ar.

Inventor que era, não se deixava satisfazer. Em 1900, resolveu inovar. O dirigível n.º 4 era do-tado de um motor de quatro cavalos e tinha um acento no lugar da cesta.

Foi no começo do século 20, enquanto Albert Einstein publicava a Teoria da Relatividade, que Santos Dumont ganhou fama com os balões. A euforia era tanta que a Comissão Científica do Aeroclube da França instituiu o Prêmio Deutsch, quantia de cem mil francos a quem conse-guisse, partindo de Saint Cloud, contornar a Torre Eiffel e regressar ao ponto de partida em no máximo 30 minutos. O n.º 4 foi o escolhido para a primeira tentativa de Dumont em conquistar a glória. Era julho de 1901. Uma falha do motor atrapalhou os planos do inventor.

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o m u n d o n o t e m P o d e

O brasileiro que conquistou os céus e a moda de Paris

santos dumont

Page 11: Darcy Nº 15

Em agosto do mesmo ano, dedicou-se a conquistar o feito com seu diri-gível n.º 5. Contornou a torre; ao voltar, caiu. Dois meses depois, mostrou--se pronto para se arriscar com o sexto. Com o objeto de estrutura semirrí-gida, motor refrigerado à água e com 622 m3 de volume, Dumont contornou a Torre Eiffel e voltou ao ponto de partida no espaço de 29 minutos e 30 segundos. O prêmio foi dele.

Um ano depois, com o apoio do então príncipe de Mônaco, o inventor ga-nhou tempo, conforto, segurança e um hangar na praia de La Condamine para testar as próprias criações. Aí iniciou a construção do n.º 7.

Pulou o n.º 8, diz-se por superstição. Com o n.º 9, voava sobre Paris. Em 1904, Dumont virou competidor e referência de estilo na alta roda

parisiense. Por precisar cronometrar sem dificuldades os voos, fez um pe-dido ao joalheiro e relojoeiro francês Louis Cartier: um relógio que não fos-se de bolso, que ficasse preso ao pulso. Cartier, acoplando uma pulseira de couro em um dos modelos da própria coleção, deu a Santos Dumont um relógio de pulso. Apesar de já existirem – foram inventados em 1868, usados como peça feminina – foi o aviador que os popularizou. Em 1911, já se comercializava o relógio, batizado de santos.

Até o famoso 14-bis, foram mais cinco inovações. Reprovados na fase de testes, com o dirigível n.º 10 esperava poder levar passageiros; com o n.º 11, planar sobre a água. O projeto do n.º 12 previa um helicóptero de dois propulsores, que não passou do papel. O n.º 13 foi destruído antes mesmo de ganhar os ares. O n.º 14 serviu de rebocador para a nova inven-ção de Dumont: um aeroplano.

No mês de julho de 1906 apresentou-se no campo de Bagatelle com o novo brinquedo. As dimensões: 10 metros de comprimento, 12 metros de envergadura, 80 metros quadrados de superfície total, 160 quilos e motos de 24 HP (horse-power, ou potência de cavalo, em inglês). O trem de pou-so possuía duas rodas. Uma cesta entre as asas era a cabine do piloto, que ia em pé. Dependurado no balão n.º 14, o aeroplano ganhou os céus e o nome, 14-bis.

Após testes ainda preso ao dirigível, era hora de realizar o primeiro voo independente. No mesmo campo, Dumont conseguiu elevar-se do solo a uma altura de cerca de um metro e a uma distância de 60 metros. Um mês depois, em 23 de outubro de 1906, diante da Comissão Científica do Aero Club e um grande número de pessoas conseguiu o duvidoso: voar 250 m. Lá se consagrou um dos primeiros pássaros humanos, um brasileiro com asas.

Longe dali, três anos antes, outro voo, diferentes inventores. Era 17 de dezembro de 1903. No estado americano Carolina do Norte, em uma praia da cidade de Kitty Hawk, Orville e Wilbur Wright, mecânicos de bicicleta, realizaram o voo motorizado de um aparelho mais pesado que o ar, o Flyer, 260 metros, 300 quilos e com um motor de 12 cavalos, que decolara de uma colina. Detalhe: poucas testemunhas; o feito, relatado em telegrama.

Invenção de Dumont ou dos irmãos Wright? O caso da paternidade eternamente disputada.

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“Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se me apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo. E tinha subido...”

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A aglossia é uma anomalia congênita rara em que a pessoa nasce sem a língua. Geralmente, a criança não sobrevive, por ter dificuldade de sugar e deglutir o leite

A aglossia acarreta deformidades faciais, como queixo pequeno, céu da boca estreito, mordida cruzada e má oclusão dos dentes.Elas dificultam as funçõesde mastigação, deglutição e fonação

O distúrbio

A língua é a principal responsável pelo crescimento facial, sobretudo da mandíbula

No caso de Auristela, a terapia definitiva teve início em 2003

Auristela apresentava um quadro de micrognatia (queixo para dentro), mordida cruzada dos dois lados e mordida profunda

1.

2.

O tratamento

Vista frontal(maxilar e mandíbula)

Vista superior(mandíbula)

Protótipo

Os exames possibilitaram a execução de um protótipo de toda a face da garota, incluindo a arcada dentária. O modelo foi fundamental para o planejamento do tratamento cirúrgico e ortodôntico

Em maio de 2003, a menina passou pela primeira cirurgia para aumentar a largura do queixo em 10 milímetros

Em 2008, o tratamento foi encerrado, embora o acompanhamento seja constante

3.

4.

7.

8.

Posição dos dentes ao colocar

o expansor

Posição dos dentes após a

retirada do expansor

Em janeiro de 2004, teve início a correção ortodôntica, com a colocação de um expansor maxilar. O objetivo era o de acomodar a arcada dentária superior ao novo formato da mandíbula

Durante a terapia de ortodontia, realizou-se uma terceira cirurgia, em abril de 2005, para reduzir o volume da gengiva. Ao mesmo tempo, Auristela teve acompanhamento fonoaudiológico, nutricional e psicológico para redefinir a dicção e corrigir a forma de mastigação

Todos os dias, em casa, a mãe girava o parafuso do distrator para promover o afastamento lento dos segmentos do osso e possibilitar a formação de osso novo, até 10 centímetros. Outro procedimento idêntico foi feito em outubro do mesmo ano, para promover novo aumento da largura do queixo de 10 milímetros. O aumento total foi de 20 milímetros

6.5.

O equipamento faz o osso crescer

Com a paciente sobanestesia local, os cirurgiões bucomaxilares fizeram um corte vertical no queixo e implantaram um distrator osteogênico

MicrognatiaMicrognMicrogn

O primeiro passo consistiu na realização de exames de imagem para avaliar o grau de comprometimento do esqueleto facial e da má oclusão dentária

“Sou feliz, levo a vida normalmente e nunca me im-portei com bullying das outras crianças. Sou deter-minada e tudo que quero consigo”, afirma Auristela Viana da Silva, jovem de 23 anos que nasceu sem lín-

gua. Após realizar duas cirurgias para alterar a anatomia da mandíbula e ajustar o maxilar que assumia a forma de “bico de pássaro”, a jovem brasiliense se alimenta bem e fala corretamente.

Auristela nasceu com uma rara e complexa anomalia chamada aglossia congênita isolada, nome científico dado à ausência total da língua. Um dos principais problemas decorrentes da aglossia é a má dicção e a dificuldade de sucção. “Tela”, como a família a chama carinhosamente, disse que quando era pequena, as colegas “achavam graça da saliva que ela não conseguia sugar direito” e no colégio em que estudava “pediam para ver a boca”. Ela mostrava.

Adriana Gomes, mãe de Auristela, contou que quando chegou para ver a filha após o nascimento, ficou desespe-rada porque ela estava com fome e não conseguia mamar. “O desespero foi quando percebi que minha filha ia literal-mente morrer de fome”, afirma. “Ela era linda e nada de-monstrava que tinha problemas. Busquei ajuda e então os médicos descobriram que ela tinha uma má formação na boca, mas quase nada foi feito.”

“Tela” ficou 21 dias internada no Hospital Regional da Asa Norte, onde nasceu, e depois recebeu alta como se fosse uma menina normal. Em casa, a mãe ficou novamen-te desesperada porque Auristela não conseguia se alimen-tar. “Peguei a mamadeira, ampliei o bico, deixava ela dei-tada e enfiava o bico da mamadeira direto na garganta”, contou. “Depois os médicos me falaram que eu corri o risco de ter matado a minha filha por asfixia, mas era o único jeito de ela comer.”

Até os cinco anos, Auristela teve uma alimentação à base de líquido e pastoso e perdia muito peso. “Todos cui-

davam dos dentinhos dela, mas ninguém solucionava o verdadeiro problema”, disse Adriana.

Auristela consultou com fonoaudiólogas, nutricionistas do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e dentistas da Universidade de Brasília (UnB). “Fomos a vários consultó-rios chiques. Os médicos pediam para tirar foto e abriam a boca da menina. Eles falavam que iam ajudar, mas o caso era engavetado”, afirmou Adriana. “Comecei a perder as esperanças e achar que ia ficar sem minha filha.”

Em 1994, após quase desistir do caso, a família conhe-ceu o cirurgião Frederico Salles que, segundo a mãe da jovem, “foi um anjo na vida da família”. Salles, à época res-ponsável pelo setor de cirurgia bucomaxilar de um hospital de Brasília, teve conhecimento do caso, ao receber em seu consultório a jovem Auristela, então com cinco anos. Ele também foi professor convidado da UnB no curso de me-dicina de 1969 a 1975 e integrou o grupo de trabalho que fundou a Faculdade de Odontologia desta universidade.

“Após conhecer a Auristela, fiz um levantamento biblio-gráfico sobre a anomalia e constatei que, em 200 anos de pesquisa, só existiam nove casos relatados na literatura médica. Casos idênticos ao dela, somente três”, afirmou Salles. Para alterar a anatomia da mandíbula e ajustar o maxilar, “que se apresentava pontiagudo, em forma de V”, Salles fez um orçamento de um distrator osteogênico, apa-relho de indução do crescimento ósseo que precisaria ser importado da Alemanha para o Brasil por R$ 2 mil. A di-reção do hospital em que trabalhava afirmou que o ins-trumento “era caro demais e não compensava o gasto”. “Realmente era um absurdo o custo, mas não para o caso”, afirmou. “Voltei para o laboratório muito chateado e disse a ela que não poderia fazer nada porque o hospital não tinha condições de arcar com as despesas.”

Seis anos depois, já com 11 anos, a menina e a mãe vol-taram a procurar o Dr. Salles. A boca de Auristela estava

teRaPia da voZA história da brasiliense que nasceu sem língua e sonha em escrever um livro

Texto isabella calzolariIlustração lucas Pacífico

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R e P o R t a G e m

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A aglossia é uma anomalia congênita rara em que a pessoa nasce sem a língua. Geralmente, a criança não sobrevive, por ter dificuldade de sugar e deglutir o leite

A aglossia acarreta deformidades faciais, como queixo pequeno, céu da boca estreito, mordida cruzada e má oclusão dos dentes.Elas dificultam as funçõesde mastigação, deglutição e fonação

O distúrbio

A língua é a principal responsável pelo crescimento facial, sobretudo da mandíbula

No caso de Auristela, a terapia definitiva teve início em 2003

Auristela apresentava um quadro de micrognatia (queixo para dentro), mordida cruzada dos dois lados e mordida profunda

1.

2.

O tratamento

Vista frontal(maxilar e mandíbula)

Vista superior(mandíbula)

Protótipo

Os exames possibilitaram a execução de um protótipo de toda a face da garota, incluindo a arcada dentária. O modelo foi fundamental para o planejamento do tratamento cirúrgico e ortodôntico

Em maio de 2003, a menina passou pela primeira cirurgia para aumentar a largura do queixo em 10 milímetros

Em 2008, o tratamento foi encerrado, embora o acompanhamento seja constante

3.

4.

7.

8.

Posição dos dentes ao colocar

o expansor

Posição dos dentes após a

retirada do expansor

Em janeiro de 2004, teve início a correção ortodôntica, com a colocação de um expansor maxilar. O objetivo era o de acomodar a arcada dentária superior ao novo formato da mandíbula

Durante a terapia de ortodontia, realizou-se uma terceira cirurgia, em abril de 2005, para reduzir o volume da gengiva. Ao mesmo tempo, Auristela teve acompanhamento fonoaudiológico, nutricional e psicológico para redefinir a dicção e corrigir a forma de mastigação

Todos os dias, em casa, a mãe girava o parafuso do distrator para promover o afastamento lento dos segmentos do osso e possibilitar a formação de osso novo, até 10 centímetros. Outro procedimento idêntico foi feito em outubro do mesmo ano, para promover novo aumento da largura do queixo de 10 milímetros. O aumento total foi de 20 milímetros

6.5.

O equipamento faz o osso crescer

Com a paciente sobanestesia local, os cirurgiões bucomaxilares fizeram um corte vertical no queixo e implantaram um distrator osteogênico

MicrognatiaMicrognMicrogn

O primeiro passo consistiu na realização de exames de imagem para avaliar o grau de comprometimento do esqueleto facial e da má oclusão dentária

ficando com várias feridas porque, ao morder, os dentes inferiores dela tocavam os lábios, criando vários machu-cados. Com isso, ela não conseguia se alimentar e estava emagrecendo muito.

Salles então descobriu que o distrator osteogênico es-tava sendo fabricado em Curitiba por R$ 800, valor bem abaixo do último orçamento feito. A família conseguiu o dinheiro com a doação de voluntários além de uma rifa de um rádio feita pela mãe da menina. Nenhuma consulta foi cobrada de Auristela desde o início do tratamento.

Para Salles, o caso não é só complexo por ser raro, mas principalmente por não haver nenhum antecedente que possa ter causado a anomalia na jovem e por Auristela, mesmo sem possuir língua ter a gustação altamente agu-çada. “O caso dela é uma síndrome isolada porque os pais não são parentes e ela não tem nenhuma anomalia no cor-po. Nos outros casos ou o pai e a mãe tem algum tipo de parentesco ou a mãe usou drogas durante a gestação, que não foi o caso da Auristela”, afirmou.

Um protocolo de tratamento das sequelas da aglossia foi montado pela equipe. Foi feito um diagnóstico do trata-mento e um exame clínico com tomografia computadoriza-da. Na sequência houve um tratamento pré-ortocirúrgico e um cirúrgico. Após a cirurgia, Auristela passou por um pro-cedimento ortodôntico e estético dentário, com terapia da voz, nutrição e psicologia, já que ela foi vítima de bullying quando criança.

Em 2001, Auristela passou por duas cirurgias que iria reparar a própria mandíbula. Houve uma expansão maxilar de 20 milímetros, com a qual a mandíbula pôde ser rede-senhada. Com as cirurgias e o tratamento, que é feito até hoje com o grupo multidisciplinar, Auristela adquiriu um novo modo de vida, tendo mais liberdade para se alimentar e se comunicar com as pessoas. “A pior parte da cirurgia para mim foi ficar sem comer”, afirmou a jovem. “Como não podia mastigar, tinha vontade de comer coisa boa e não podia. Adoro comer.”

O ortodontista e professor da Faculdade de Odontologia da UnB Jorge Faber explica que esse procedimento rege-

nerador tecidual requer, após o momento cirúrgico, deze-nas de consultas em que o dispositivo distrator é ativado diariamente. “Essa tarefa foi minha por ser necessário que o ortodontista determine a magnitude total de alargamen-to do maxilar inferior”, afirmou. “Além disso, durante a re-generação tecidual, um aparelho ortodôntico foi utilizado para propiciar simetria à face.”

Após essa etapa, veio a expansão do arco superior e um tratamento ortodôntico com aparelho fixo possibilitan-do que os dentes fossem movimentados para a posição de melhor estética e função possível.

Faber acredita que o sucesso da cirurgia e do tratamen-to se deve, além do planejamento minucioso da equipe, também ao empenho de Auristela em vencer e mudar sua vida. “O resultado técnico da cirurgia e ortodontia era pre-visível, pois apesar de ser inédito, foi precedido de um pla-nejamento minucioso”, disse. “O ganho em qualidade de vida e autoestima da Auristela decorreu em larga esca-la do empenho de uma equipe multidisciplinar de grande expertise. Além disso, não se pode deixar de reconhecer os valores da paciente: ela é uma pessoa muito especial.”

Auristela continua o tratamento com a fonoaudióloga para aperfeiçoar a fala. Ela contou que gosta de jogar vi-deogame, passar o dia no computador, estudar, comer e caminhar para manter a forma. “Sonhava com uma língua, mas me adaptei à realidade”, afirmou.

A jovem Auristela sonha também em escrever um livro sobre sua vida. “Quero ajudar as pessoas a partir da mi-nha história”, contou. “Também quero viajar para a Disney, conhecer famosos, concluir o curso de técnica de enferma-gem e, por meio desse curso, conseguir um bom emprego, me sustentar e ajudar a minha família.”

Para a mãe de Auristela, após tantos anos de luta é um alívio ver a filha feliz. “É uma realização muito grande. Hoje ela é uma menina normal e linda, o que eu sempre dese-jei”, afirmou. “Além de tudo, temos que agradecer a Deus e a esse grupo de médicos que tanto nos ajudou. Sem essa força e união a gente não conseguiria nada. Eu sou grata a eles.”

saiBa maisUma equipe multidisciplinar coordenada por Salles foi constituída para cuidar do caso Auristela, formada pelos seguintes pesquisadores da UnB: Jorge Faber, da Faculdade de Odontologia; Elizabeth Queiroz, da Psicologia; Maria Lúcia Torres, fonoaudióloga ligada ao Núcleo de Estudos em Educação e Promoção da Saúde; e Marcos Anchieta, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica.

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d o s s i Ê

Inventor da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro atravessou momentos conturbados ao ver o que acontecia com ela em outras épocas, durante o regime militar e mesmo mais tarde. Sonhador compulsivo sem deixar de ser homem pragmático, batalhou a vida toda pela concre-tização dos sonhos, os próprios e os que julgava serem os da nação brasileira. Virou senador, foi ministro, escreveu e publicou vários livros nos quais interpretou o Brasil e a América Latina. Sobretudo, jamais abriu mão de ser um provocador, de ideias, de pessoas, de projetos. Desde que foi criada, a revista DARCY devia uma homenagem a ele, além do nome que continua a ser lembrado naquele que a revista carrega em todas as edições. Nas próximas páginas, o Dossiê recupera um pouco da trajetória desse homem que nunca deixou de acreditar nas potencialida-des do país e dos brasileiros, nesse sonhador compulsivo e realizador incansável.

daRcY RiBeiRo, cRiadoR de mundos

Ilustração túlio mendes

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Texto nívea Ribeiro

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“Berta, abro este diário com seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão na minha mão e venha comigo. Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando as aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles.” Com esse recado a sua então esposa, Darcy Ribeiro abre sua obra Diários índios, feita entre 1949 e 1951 durante sua expedição às aldeias

dos índios Urubus-Kaapor, no terreno fronteiriço entre Pará e Maranhão.Os diários de campo foram a última obra publicada em vida, no ano de 1996. Após uma extensa carreira como po-

lítico e educador, Darcy optou por publicar suas memórias do início da carreira na antropologia, quando era um jovem recém-saído da Escola Livre de Sociologia e Política, em São Paulo. Em artigo publicado no número 126 da revista Ciência Hoje, como homenagem póstuma a Darcy, o professor Roque Laraia, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN UnB), escreve que “não há um ato de maior coragem e generosidade, para um antropólogo, do que a publicação de seus diários de campo. Não resta dúvida de que este foi um acontecimento importante para a antropo-logia brasileira”. Em entrevista a DARCY, Laraia completa: “ele começa a vida como etnólogo e termina como etnólogo.”

Além dos Diários, a experiência com os índios Urubus-Kaapor gerou também A arte plumária dos índios Kaapor, escri-to em parceria com Berta Ribeiro, e Uirá vai ao encontro de Maíra: as experiências de um índio urubu que saiu a procu-ra de Deus. Antes, entre 1947 e 1948, Darcy já havia feito trabalho de campo entre os Kadiwéu, no sul do Mato Grosso, depois publicando Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza. O professor Stephen Baines, também do DAN UnB, acredita que tais ensaios são de grande importância para a valorização da cultura indígena no Brasil: “Na época, a produção dos índios não era considerada arte, apenas cultura material. Darcy conseguiu valorizar a arte indí-gena a nível nacional.”

na crista dos índiosRespeitado por ser estudioso notável, Darcy Ribeiro dedicou boa parte da vida às comunidades indígenas brasileiras

d o s s i Ê

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A oportunidade de conhecer essas etnias e produzir trabalhos de campo são diretamente relacionados a sua carreira no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), atual Fundação Nacional dos Índios (Funai). Em 1947, o professor Herbert Baldus, da ESLP, indicou Darcy para trabalhar no SPI como sociólogo antropologista. Foi quando Darcy começou, de fato, a atuar como etnólogo. Sobre o professor, de gran-de importância para sua carreira, Darcy escreve em Confissões: “Aprendi muito com Baldus. Aprendi sobretudo a fazer meu seu ideal científico de estudar a natureza hu-mana pela observação dos modos de ver, de viver e de pensar dos índios do Brasil. É nada menos que admirável a transfiguração do menino destinado a boiadeiro de Montes Claros abraçar um ideal científico desse porte.”

No SPI, Darcy criou o Museu do Índio, em 1953, no Rio de Janeiro, e participou na criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, sempre focado na melhoria das condições de vida e de tratamento dos indígenas no Brasil. “Darcy era um homem de partido, acreditava numa ciência aplicada. Possuía uma coerência política, e levou a todas as suas facetas essa vontade de agir rapidamente”, conta Laraia. Em suas obras, Darcy várias vezes questiona o distanciamento entre a academia e o objeto de estudo, demonstrando sua crença numa ciência interessada e comprometida com o povo, algo que talvez o tenha levado a se dedicar quase que exclusivamente à carreira política a partir dos anos 60.

Durante esse período, publicou alguns livros relacionados à antropologia, incluin-do a série Estudos de antropologia da civilização. Produzidos em seu exílio político, quatro são considerados estudos mais genéricos sobre a América Latina e Os índios e a civilização, publicado em 1970, é mais específico. De grande importância para a compreensão dos problemas indígenas dentro do contexto brasileiro e do impacto do contato com outros povos, o último é uma reunião de artigos como Culturas e línguas indígenas e A política indígena brasileira, lançados anteriormente em revis-tas científicas e outros meios. “É uma obra bastante descritiva, detalhando bem a história, os altos e baixos do SPI. Conforme o governo ou o ministério em que o SPI estava alocado mudavam, mudava a política. Mas, claro, é uma versão da história desse órgão contada por alguém que participou dela e o defendeu contra pressões externas, que queriam o extinguir”, alerta o professor Baines.

“Ele se tornou famoso no país ao longo desse processo em que ele deixa de ser o etnólogo tradicional, como Eduardo Galvão, e vai cada vez mais se tornando uma pessoa que procura pensar o Brasil”, diz Klaas Voortmann, ex-aluno de Darcy no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e professor da UnB. “É como se ele estivesse fazendo um trânsito entre sociedades indígenas e brasileira. Enquanto ele escreve Os índios e a civilização, ele está pensando qual o lugar dos índios no Brasil e o que o Brasil deve fazer em relação a eles. Se ele passasse a vida toda fazendo pequenos estudos, poderia até fazer uma excelente antropologia. Mas ele não seria o personagem que foi.”

Fundação Darcy Ribeiro

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Texto ana teresa e jhésycka vasconcelos

Inconformado. Insatisfeito. Darcy Ribeiro tinha um irreverência alegre diante do mundo. Ele não tinha medo de fazer discursos ácidos ou de chamar de “idiota” tudo de que discordava. Com a ironia de quem achava a modéstia algo “medíocre”, ele se considerava um fracassado — deixando claro que “detestaria estar no lugar de quem venceu”. Darcy via a desigualdade,

a concentração de terra e o desrespeito a outras culturas sem um pessimismo rabugento. Eram considerados desafios que o impulsionavam a seguir em frente — ele mesmo e o Brasil. Longe de se proteger em concepções teóricas, o antropólogo adentrou na vida política, sujeitando-se a críticas, elogios e decepções. Inquieto, ocupou diversos cargos num período em que a demo-cracia se mostrava tímida e instável.

Darcy foi ministro da Educação durante o breve governo de Jânio Quadros, que assumiu e renunciou a presidência da República em 1961. Depois, com a posse do vice João Goulart, histo-ricamente conhecido por Jango, tornou-se ministro da Casa Civil. As visões de Darcy, em geral, se alinhavam com as propostas vanguardistas do presidente, as quais ameaçavam a estrutura de poder do país e assustavam os setores conservadores. Não foi à toa que um dos porta-vozes do movimento reacionário na época, Carlos Lacerda, foi alvo de confrontos políticos com o en-tão ministro, o que resultou em uma ação judicial contra Darcy. Em um de seus discursos, ele acusou Lacerda de organizar um movimento conspiratório para destituir Jango.

A reforma agrária era uma das principais causas pelas quais Darcy lutava. Em entrevista ao programa Roda Viva, realizada em 1991, ele critica a expansão das plantações de soja que não alimentavam os brasileiros e diz que o golpe dos militares em 1964 foi feito contra uma política social de Jango, que queria organizar o país para seu povo. “É evidente que há um lugar para o banqueiro, há um lugar para o plantador de soja, mas tem que haver um lugar para o povo comer todo dia”, afirmou.

Com a ditadura, Darcy teve os direitos políticos cassados e se exilou em países da América Latina. Ele foi assessor dos presidentes Salvador Allende, no Chile, e de Juan Velasco Alvarado, no Peru. No Uruguai, contribuiu para a formulação de políticas educacionais, tema que sempre esteve no cerne de suas preocupações. Ele conseguiu autorização para retornar ao Brasil so-mente em 1974, quando estava enfraquecido por um câncer de pulmão que conseguiu superar.

De volta às terras brasileiras, foi vice-governador do Rio de Janeiro entre 1983 e 1987, quan-do, no governo de Leonel Brizola, conseguiu colocar em prática um dos principais projetos: a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública — os CIEPS. O ambicioso modelo

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antropólogo no poder Com bom humor e rebeldia, Darcy buscou colocar seus ideais em prática. Projetos relacionados a educação e cultura foram marcos da atividade política

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buscava proporcionar um ensino em tempo integral que unisse desenvolvimento letrado a atividades esportivas e culturais, afastando crianças da marginalidade. Os demais gover-nos apresentaram dificuldades para manter os objetivos e muitos dos espaços se tornaram escolas em turnos.

Maria de Nazareth Gama, assessora parla-mentar de Darcy Ribeiro durante a campanha eleitoral dele e de Leonel Brizola desde o pri-meiro governo, relembra o quanto os centros fo-ram importantes e se queixa do desativamento dos espaços. “Eles (Brizola e Darcy) terminaram os 404 CIEPS propostos ao longo dos dois man-datos cumpridos. Os locais forneciam unifor-mes, piscina, atividades culturais. Tinha tudo. Até que Marcello Alencar, governador do Rio logo após Brizola, fechou tudo”, relata Naná, como era carinhosamente chamada por Darcy.

A educação, para Darcy, não podia ser de-senvolvida hermeticamente, que se ocupou também de questões culturais. Ele acumulou o cargo de vice-governador com o de secretário da Cultura e foi um dos principais idealizado-res do Sambódromo. A criatividade do arquite-to Oscar Niemeyer e de Darcy Ribeiro criou um ambiente para abrigar os desfiles das escolas de samba, que contava com salas de aula sob as arquibancadas. Fora do período car-navalesco, alunos ainda estudaram no local durante o governo Brizola, meta que perdeu continuidade. Em 1986, se candidatou para ser governador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), sem sucesso. Durante a campanha, viajou por todo o país acompanhado de Naná, que foi sua secretária política no período das campanhas.

Darcy foi senador do Rio de Janeiro de 1991 até a ano da morte dele, em 1997. E enquanto viajava com pela estrada durante a campanha para o Senado, Naná ouvia do antropólogo os sonhos políticos mais distantes. “Sabe qual será a minha primeira lei, meu bem? É a Lei do Trânsito. A ideia é que as estradas, as vias e as ruas pertençam ao povo, e que seja ele que permita que os veículos trafeguem nelas”, simula Naná a doce fala de Darcy. “Ele sub-verteu, mudou a ordem das coisas”. Tal pen-samento concretizou-se no Projeto de Lei do Senado (PLS) número 201, em 1991. Passavam também pela cabeça de Darcy projetos em di-versas âmbitos sociais. Marcelo Câmara, que foi assessor parlamentar de Darcy Ribeiro no Senado Federal, relata que, por conta do agravamento progressivo da doença do polí-tico, muitos projetos perderam a força diante da importância em aprovar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

A LDB é um dos destaques de sua ativida-de legislativa, tanto que a proposição chegou a ganhar o nome de Lei Darcy Ribeiro. Desde 1988, quando havia outros projetos sobre o mesmo tema em tramitação no Congresso, o senador formulou um plano paralelo para que conseguisse ser aprovado rapidamente. A ati-

tude foi alvo de críticas e considerada pouco democrática, já que outras propostas estavam sendo debatidas por um período de tempo maior com mais pessoas, além de incorporar inúmeras demandas da sociedade civil.

O professor Célio da Cunha, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, con-trapõe essa visão: “Uma das diferenças em re-lação aos projetos anteriores foi sua sensibi-lidade em buscar consensos e convergências, pois sem isso, o projeto continuaria sua lenta e longa tramitação. Porém, ele reconheceu as contribuições oriundas do projeto da Câmara dos Deputados e foi sensível às mais diversas reivindicações. A Lei Darcy Ribeiro aprovada era menos detalhista que a anterior e deu um grande impulso à educação básica.”

Em discurso no Senado Federal, Darcy re-lata que esteve ligado à LDB durante 30 anos, pois foi ele, como ministro da Educação duran-te o governo de Jânio Quadros, que pôs a lei antiga em vigor, a qual considerava fonte de grandes atrasos. Ele admite que também não concorda com determinados aspectos da nova lei, mas que os aceitou por serem a vontade da maioria, e elogia a versão mais recente, “por ser uma lei, o que é muito lindo, descontente com a educação tal qual é.”

Darcy explica que temia a formulação de uma lei “ingenuamente contente, que achasse que o ensino primário teria solução se continu-asse como estava. O ensino médio, o ensino superior, essa lei os descreve como problemas que tem que ser tomados pela nação e refor-mados”. Emocionado, ele agradece aos seus pares: “Muito obrigado a todos que se referi-ram a mim. Não só gosto de elogio, mas eu gosto muito mesmo de ver reconhecido o meu esforço.”

Uma das últimas preocupações de Darcy era conseguir aprovação do Projeto Caboclo, que previa uma ocupação alternativa da Amazônia para adaptação de índios à flores-ta. A intenção do então senador era chegar bastante forte em Brasília para apresentar o plano em uma sessão com o presidente do Senado na época, Antônio Carlos Magalhães. “Apareceu tão debilitado na capital que resol-veram interná-lo”, conta Naná. Na semana se-guinte, 17 de fevereiro de 1997, data marcada para talvez emplacar o novo projeto, ele não resistiu ao câncer.

Além de boas ideias e de um plano de edu-cação consolidado, Darcy deixou boas impres-sões no poder. Isaac Roitman, professor apo-sentado da Universidade de Brasília e amigo pessoal do antropólogo, afirma que um dos di-ferenciais de Darcy Ribeiro era trabalhar com “políticas pensadas para serem aplicadas em longo prazo, e não para ser apenas soluções de campanha.” Os fracassos que Darcy costu-mava apontar ao longo da própria carreira, na verdade, vislumbravam um futuro em que as outras gerações pudessem continuar os pro-jetos por ele deixados.

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Texto eduardo Barretto

Autor de quatro romances, o antropólogo abraçou com gosto a experimentação na hora de fazer literatura

a FicÇÃo da Utopia

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Nem Iracema, nem Macunaíma. Para começo de história, Maíra, maior obra literária de Darcy Ribeiro, não tem uma índia homônima ao título. Maíra é uma entidade divina indígena, usada junto a pro-nomes masculinos. Com um espanto que sacode o leitor de tudo o que ele estava acostumado, Darcy escreve romances. Foram quatro, ao todo. Queira ou não, Ribeiro romancista é uma surpre-

sa com proporções continentais.Darcy retira, de um modo inédito, o véu celeste com o qual todos os índios, malocas e florestas sempre es-

tiveram cobertos. Não como a prosa romântica de José de Alencar, que os colocava em situações medievais europeias, em códigos de conduta e de honra cosmopolitas e rousseaunianos. Tampouco como a rapsódia modernista de Mário de Andrade, que decantou todas as lendas pejorativas e peçonhentas do brasileiro e destilou no índio. Nem herói, nem anti-herói. Só índio – com toda a complexidade de um povo sempre miti-ficado, mas nunca compreendido.

Darcy Ribeiro não fazia trabalhos de campo isolados. Passou longos períodos nas tribos, principalmente com os Urubus-kaapor, na fronteira entre o Maranhão e o Pará. Dessa convivência, veio como fruto direto Diários índios. O olhar de Darcy era o mais aproximado possível: até em textos acadêmicos explicava ritos indígenas com certa paixão. O resultado disso é uma leitura com naturalidade – e certa crueza.

Professor de Letras da Universidade de Brasília (UnB), Erivelto da Rocha afirma: “Darcy Ribeiro estabele-ceu uma relação tão próxima com o universo indígena que hibridizou os textos. Talvez seja a única acepção de sua literatura”. Boa parte da crítica literária comparou a obra de Ribeiro a traços da escola modernista – como fez o notável Antonio Houaiss no Jornal do Brasil – mas com discrição. Rocha completa: “É difícil

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definir sua obra. Apesar de uma base teórica fantástica, ele recorre a um texto quase fala-do, musical”.

Valendo-se da licença poética, Ribeiro che-ga a flertar com o que um estudante não po-deria no vestibular: o gramaticalmente incorre-to, principalmente na parte de sinais gráficos. “Para torcer se juntam os de cima: tanajuras quatis garças pirarucus contra os debaixo: pa-cús caramujos antas tracajás” e “– Desconfio da história dele. (O gringo não terá matado a tal mulher?) Sei lá! Disse que era loura é nova. Branca que nem ele!” explicitam, em Maíra, como Ribeiro concretizava os pensamentos, bem caracteristicamente.

Tal construção da linguagem torna também a relação eu-lírico e leitor mais estreita: “Darcy escrevia de uma consciência, de um equilíbrio. Era um utopismo possível. Ele era, ao mesmo tempo, um utopista e um homem de ação”, afirma Rocha. Se Thomas Morus, em Utopia, descrevia uma ilha platônica, Ribeiro esmiu-çava uma parte do Brasil e da identidade bra-sileira reais.

O professor Erivelto da Rocha, em artigo no livro comemorativo da Cerrados, revista do programa de pós-graduação em Literatura da UnB, apontou na obra de Darcy Ribeiro tra-ços de Flaubert – a pretensão de escrever so-bre o nada – e, principalmente, de Cervantes. Críticos também aproximaram as palavras de Ribeiro às de Montaigne, o nome maior do gê-nero ensaio, e de Machado de Assis, mestre na observação crítica e irônica dos costumes.

Em 1992, Darcy Ribeiro foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Em seu discurso de posse como “imortal”, disse: “Confesso que me dá certo tremor d’alma o pensamento inevitável de que, com uns me-ses, uns anos mais, algum sucessor meu, tam-bém vergando nossa veste talar, aqui estará, hirto, no cumprimento do mesmo rito para me recordar”. O pessimismo camuflado tinha ra-zão de ser: já passavam 18 anos de convivên-cia com um nefasto câncer, que começou nos pulmões.

Diferente de romancistas, diferente de cien-tistas sociais. Ao contrário de Gilberto Freyre, em Casa grande & senzala, Ribeiro é lírico meio sem querer. Sua ficção beira a simplicidade e, por conseguinte, a realidade. É factível. Entre ser objetivo e pesar a mão no folclore, Darcy aparece, apelando para o que for necessário para exaurir o real – inclusive lançar mão da fantasia e do fantástico.

Nos quatro romances de Darcy – na ordem cronológica: Maíra, O mulo, Utopia selvagem e Migo –, o amor de um casal passa longe de ser o mais importante e muitas vezes nem apare-ce. Maíra é mais mítico do que romântico; O mulo é um monólogo de um coronel moribun-do que doa as posses a um padre desconheci-do, para expurgar máculas; Utopia selvagem é uma fábula que supera a dicotomia de coloni-

zado e colonizador; Migo é, segundo o próprio Darcy, “uma autobiografia inventada, sem fa-natismos”, do que poderia ser dele se ficasse em Minas Gerais.

Isaac Roitman, ex-decano de Pesquisa e Pós-Graduação da UnB, fala da literatura de Darcy Ribeiro em duas seções: “Uma é na an-tropologia e outra, na ficção. Mas uma está na outra. Ambas querem saber a origem do povo brasileiro e dialogam com a utopia, seja pela análise ou ficção”. Com histórias assentadas com propriedade e conhecimento de causa, Darcy dá muitas ferramentas ao leitor. É pos-sível enxergar o índio não mais passivo, mas agente de transformação social. Também dá para não se remeter a qualquer epopeia re-volucionária, e compreender melhor os in-dígenas e seus hábitos, acima de qualquer maniqueísmo.

“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.” Em Índios, Renato Russo definiu o contato entre índios e europeus. Colonizados e colonizadores. Vítimas e algozes. Bons e maus. Darcy faz um caminho bem distinto. Em alguns momentos, mostra contatos de raças, de for-ma sutil e simbólica, mas nunca põe o índio como vítima muda. Inclusive, alguns trechos mostram o homem branco com receio de che-gar até a tribo.

A maneira de ver o indígena não é a mes-ma após ler Darcy. Até comportamentos e rituais são explicados, na lógica tribal. Por exemplo, o costume de ficar deitado na rede por um tempo considerável, durante o dia, foi uma conquista dos homens da aldeia, que es-tavam sendo escravizados pelas mulheres e trabalhando sem cessar. Tudo por causa de flautas mágicas. Por ajuda divina, os homens recuperaram as flautas e tudo voltou ao nor-mal. Obviamente, o normal não é bater ponto ou compensar hora extra. Ler explicações no raciocínio indígena faz o leitor compreender – no mínimo – alguns ritos, como relacionamen-to com a morte e mutilações corporais para sacrifício.

Darcy trata não só de indígenas, mas de la-vradores, negros e ribeirinhos. No fim das con-tas, o lugar de fala é Brasil. Uma busca por en-tender o povo brasileiro, com conhecimentos de antropólogo e com paixão de romancista.

No meio disso tudo, há uma longa carrei-ra no ensino, fazendo uma Universidade de Brasília nascer do deserto e sendo ministro da Educação. Não é de se espantar que a didáti-ca esteja nesses romances. Um novo jeito de contar histórias de um homem que gostava de bradar “Vamos passar o Brasil a limpo” e disse à Academia Brasileira de Letras: “Estou certo de que alguém, neste resto de século, falará de mim, lendo uma página, página e meia. Os seguintes menos e menos. Só espero que ne-nhum falte ao sacro dever de enunciar meu nome. Nisto consistirá minha imortalidade”. Correção: nisto consiste sua imortalidade.

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Texto caroline Bchara e lara silvério

Visionário, Darcy Ribeiro enfrentou o desafio de criar a Universidade de Brasília e levar educação ao maior número possível de crianças

UM sonHador coM os pés na realidade

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Universidade de Brasília

d o s s i Ê

“Minha filha foi lançada na vida. Eu dizia que minha fi-lha era uma prostituta. Mas por amor, porque eu que-ria salvá-la”, afirmava Darcy Ribeiro, se referindo à Universidade de Brasília (UnB) e decepcionado com

o caminho que ela havia tomado após um período de dita-dura militar que a fez tão diferente dos rabiscos iniciais. A universidade que Darcy encontrou ao voltar do exílio, em 1976, em nada se parecia com a inaugurada no início da década de 1960.

O interesse pelo ensino foi influência direta do educa-dor e escritor brasileiro Anísio Teixeira. Se antes divergiam em muitas questões, acabaram por virar grandes amigos. Integrantes do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação (Inep), saíram juntos em defesa do ensino público democrático nos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada mais recentemente em 1996, com Darcy Ribeiro como rela-tor. Com a nova LDB, o Brasil começou a conhecer um lado de Darcy que era, até o momento, latente: o de educador.

Encarregados de planejar a rede de ensino primário e médio que seria instalada na nova capital, Darcy e Anísio começaram a cogitar também o superior. Assim surgiu, em 1959, a ideia de se criar uma universidade inovadora, que “correspondesse às necessidades da formação científica moderna”. O projeto da Universidade de Brasília foi aprova-do e implementado na capital por meio dos esforços não só dos idealizadores: Juscelino Kubitschek encaminhou o pro-jeto ao Congresso Nacional e criou a comissão responsável por arquitetar a universidade; Jânio Quadros confirmou a mesma, criada por JK; e João Goulart promulgou a lei para criar a UnB e nomeou o primeiro reitor, Darcy Ribeiro.

“Por um lado, a alta qualificação científica e por outro, a completa liberdade e a perfeita autonomia acadêmica”, defendia Darcy. A proposta era que todos os estudantes passassem, nos primeiros dois anos de curso superior, pe-

los chamados Institutos Centrais. Lá, conheceriam mais os campos do saber e teriam toda a base intelectual e cien-tífica necessária para o seguimento em cada faculdade. Após o término dos cursos introdutórios, um novo univer-so se abriria aos estudantes. A liberdade conferida a eles para compor livremente os próprios currículos permitiria a formação de generalistas, sem obrigá-los a especializar-se.

Professor emérito da Universidade de Brasília, Isaac Roitman afirma que a ideia de Darcy para a UnB era a de uma universidade diferenciada. “Sem catedráticos e com espaço suficiente para a cultura universitária, onde o aluno poderia explorar várias áreas do conhecimento com dois anos para ser instrumentalizado e conhecer as várias pos-sibilidades de carreiras”, relembra o professor.

O plano urbanístico do campus universitário, de Lucio Costa, previa a construção de oito áreas para os Institutos Centrais – o que equivaleria a mais de quarenta edifícios que ainda deveriam ser planejados. Em tom de brincadei-ra, Darcy Ribeiro dizia que, por preguiça, Oscar Niemeyer projetou o Instituto Central de Ciências (ICC) como ele é: resumiu o plano de Lucio Costa em um único edifício, com 780 metros de comprimento por 80 de largura.

daRcY visionáRioAnísio e Darcy pensaram juntos em fazer uma universi-

dade inovadora, pois até então elas eram incapazes de ser agentes da transformação e desenvolvimento do Brasil. Em 1960, Darcy assim se expressou: “Comecei então a arguir sobre a necessidade de criar uma universidade e sobre a oportunidade extraordinária que ela nos daria de rever a estrutura obsoleta do ensino superior brasileiro, criando uma capaz de dominar todo o saber humano e colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional”.

As universidades da época reproduziam o conhecimen-to provindo do exterior, a pesquisa não privilegiava os te-

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mas da realidade brasileira, elas eram elitis-tas, burocráticas e os alunos não participavam das escolhas relacionadas à administração. Para o senador Cristovam Buarque, reitor da UnB de 1985 até 1989 e ministro da educação entre 2003 e 2004, Darcy pensava à frente, tendo a capacidade de entender a crise do conceito de universidade, pensar em uma so-lução radical e torná-la viável. “Primeiro por-que ele era um gênio, e o gênio se destaca, é um visionário. Ele também tinha uma boa for-mação intelectual, era um homem de muita leitura”, completa.

Para Darcy, a universidade deveria ser um lugar de real estudo, que englobasse pesqui-sas e projetos, mas também a integração da comunidade. Dessa forma, ela seria um am-biente propício para a troca de ideias, criati-vidade e permitiria o florescimento de novas propostas científicas ou humanísticas, que possibilitariam a transformação social. “Darcy era um homem de coragem, com os pés e co-ração no Brasil, mas com visão de mundo”, define Maria de Fátima Guerra, professora da Faculdade de Educação da UnB que teve um contato mais próximo com o educador nos anos finais, época em que ele demonstrou um interesse particular pelo ensino à distância.

educaÇão em PRimeiRo luGaREnquanto responsável pelo Ministério da

Educação (MEC) no governo de João Goulart, entre 1961 e 1964, Darcy Ribeiro buscou con-

tribuir para formular uma política educacional. Com campanhas para ajudar os professores a alfabetizar os brasileiros, lutou pela qualidade do ensino básico da rede pública. Mas não só nas crianças focou a luta. Como ministro, lan-çou uma campanha a partir de cartilhas educa-tivas, que tinha como proposta “cada brasileiro salvar pelo menos outro do analfabetismo”.

O contexto que encontrou quando assu-miu a pasta da Educação foi desesperador: na época, apenas quatro de cada dez crianças com idades entre sete e 11 anos estavam ma-triculadas em escolas. Em 1962, diante desse cenário, lançou um plano de emergência para melhorar o ensino dos brasileiros: a meta era alfabetizar todos os jovens com idades entre 7 e 23 anos até o início da década de 1970.

Orientado por Anísio Teixeira, homologou o 1º Plano Nacional de Educação (PNE), que determinava o estabelecimento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), também em 1962. O plano previa o envio de 12% do dinheiro recebido em impos-tos federais para o FNDE e destinava recursos, de maneira proporcional, para os ensinos pri-mário, secundário e superior.

Maria de Fátima Guerra acredita que o per-fil utópico de Darcy Ribeiro seja necessário a todos os educadores. “É essencial lutar nas várias esferas por um ensino público de quali-dade, por um acesso para todo mundo, e para que a experiência escolar faça diferença na vida das pessoas”, afirma a professora.

Cedoc/U

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Em 1995, o campus da Universidade de Brasília do Plano Piloto recebeu o nome de Darcy Ribeiro

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1. Em 15 dezembro de 1961, o presidente João Goulart assinou a lei que autorizou a fundação da Universidade de Brasília

2. Canteiro de obras do Instituto Central de Ciências, prédio principal do campus Darcy Ribeiro (década de 60)

3. Vista aérea do Instituto Central de Ciências, mais conhecido como Minhocão

4. Cerimônia de inauguração da UnB, em 21 de abril de 1962

5. Canteiro de obras da Faculdade de Educação (década de 60)

6. Invasão militar à Universidade de Brasília

Cedoc/U

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sonHo inteRRomPidoA universidade sem muros começava a ser cercada. Com a chegada da ditadura

militar que dominou o Brasil de 1964 a 1985, a UnB viu-se tolhida e incapaz de con-cretizar os ideais pensados. Em 1962, Darcy fez questão de convidar professores idealizadores e renomados do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde a academia era mais presente, para lecionar. “UnB não é a aventura de uma pessoa, não é desva-ria quixotesca. É o desafio maior que já se apresentou à cultura brasileira, por isto mesmo não pode ser conduzida por menos do que pelos melhores”, defendia.

Entretanto, o regime militar não queria uma universidade solta e livre perto do poder nacional, e resolveu amarrá-la no chão. Em 1965, 15 professores foram des-tituídos dos cargos e exilados. Solidários, outros 210 docentes pediram demissão, em um ato conhecido como o “dia da diáspora”. Desde então, os professores rema-nescentes ficaram sob o jugo da censura. Muitos foram compelidos a denunciar os alunos e a universidade perdeu autonomia e liberdade, de uma só vez.

De 1965 a 1968, a UnB ficou vazia por conta das demissões. Os professores eram convidados para dar aulas, ficavam uma semana e iam embora, por não concor-darem com a forma de administração da época. “Quando eu cheguei à Brasília, em 1972, o clima era de recomeço. Mas a UnB já não era como sonhado, ela parecia como qualquer outra universidade”, afirma o professor Isaac Roitman. De 1968 até 1975, recomeçaram as contratações e o corpo docente voltou a ser estável, mas a ideia da universidade estava interrompida. “Os líderes que haviam feito diferença foram embora rapidamente, antes da consolidação das mudanças. Ao saírem da UnB, as pessoas criaram planos e atividades em novos locais. Outras, creio, per-deram a confiança no sistema educacional dado o que aconteceu”, lamenta Isaac.

Cristovam Buarque ganhou a primeira eleição direta para reitor após a ditadura e tentou, através de projetos de extensão, núcleos temáticos e culturais, recuperar a ideia inicial da UnB, mas não obteve sucesso. Apesar dos esforços, o senador acre-dita que a comunidade universitária, como um todo, foi tomada pelo comodismo após a redemocratização: “A cabeça de alguns professores idealizadores que vol-taram para a UnB ficou presa no tempo. Jovens, alunos, professores e funcionários são conservadores e agora estão presos na caixinha do departamento”. E completa: “A universidade é o lugar onde tem mais revolucionário por metro quadrado, desde que não seja para mudar a universidade”.

Os departamentos deixaram de ser um sistema e passaram a ser unidades iso-ladas, diferentemente do conceito anterior de Darcy. Quebrou-se a ideia de que o aluno poderia circular por toda a universidade, por departamentos diferentes. Atualmente os currículos não propiciam liberdade para o aluno escolher a formação. Os índices de desistência dos cursos são altos, pois a escolha profissional é obriga-toriamente feita quando o aluno entra na faculdade, ainda inexperiente e imaturo. A universidade está impossibilitada de servir como instrumento de transformação social por meio de uma consciência coletiva.

univeRsidade necessáRia“Ultrapassada, nem melhor nem pior que outras universidades do Brasil.” É nes-

te contexto que o professor Isaac Roitman vê a UnB hoje. “Temos que pensar nas ideias de Darcy e nas adaptações para o contexto atual, para um ambiente com as atuais tecnologias”, defende. Encarregado de uma comissão designada a promover debates sobre o presente e o futuro da universidade, acredita que o sistema mereça uma nova discussão e vê a falta de estímulo à liderança como principal lacuna no modelo elaborado por Darcy Ribeiro.

O senador Cristovam Buarque ressalta a ausência de extensão e integração na UnB e defende, ainda, que ela deve investir no ensino tridimensional, que apenas seria possível através da interdisciplinaridade e consciência social. Para isso, ele acredita que é preciso haver um elo entre os problemas humanos (núcleos temá-ticos), os núcleos culturais e uma ligação intelectual com as redes de pensadores do mundo. “A prática do humanismo, somada ao conhecimento, gera sabedoria”, afirma o senador.

De fato, muito do que foi idealizado para a Universidade de Brasília nunca foi im-plementado, como é o caso da Praça Maior. Esta seria composta pela Aula Magna, a Biblioteca Central, a Reitoria, o Museu da Civilização e um anfiteatro para congres-sos e seminários. A organização da universidade e mesmo sua arquitetura deveriam proporcionar um espaço favorável ao espírito criativo. “Para nós, a universidade, não podendo ser o reflexo do êxito – mesmo porque ele não foi alcançado – tem de ser um instrumento de superação do atraso”, afirmou, em 1978, um Darcy ainda cheio de sonhos para sua filha.

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ciÊncia na Ponta da línGua

“Professora, eu não gosto mais de ciên-cias.” O desabafo de um estudante do 9º ano do ensino fundamental foi o es-topim para que a docente Fabiana Urani

repensasse os métodos empregados em sala de aula. Com 13 anos de prática ensinando ciências, ela já havia percebido o alarmante desinteresse dos estudantes pela disciplina. “O aluno começa a decorar um amontoado de fórmulas e perde o entusiasmo pela matéria”, observa a nova mestre em ensino de ciências pela Universidade de Brasília (UnB).

A inquietação resultou no estudo Doces e guloseimas: uma proposta de temática para en-sinar ciências no 9º ano do ensino fundamental, defendido por Fabiana no programa de pós--graduação do Instituto de Química, em 2012. A ideia era trazer elementos do dia a dia para a escola, e assim explicar conceitos científicos mais complexos. Com pirulitos à mão, cerca de 140 alunos, entre 13 e 15 anos, de uma escola particular de Brasília descobriram como extrair do doce noções como a de sacarose. Nas au-las, o desafio dos estudantes era desconstruir o alimento para entendê-lo — desde a gulo-

seima industrializada até chegar à molécula principal do açúcar.

No decorrer da pesquisa apareceu a so-lução: ela se deu conta de que os alunos es-tavam sempre com balas e doces na boca, e por isso, decidiu dar enfoque ao tema. Para a orientadora do mestrado, essa era a oportu-nidade de despertar novamente a curiosida-de das crianças, uma vez que a disciplina de ciências, considerada divertida até então, se desdobra em aulas de física e química — mais sérias — a partir do 9º ano. “O gancho era partir do cotidiano e ir à ciência, mostrando o que é química e o que o químico faz”, expli-ca Patrícia Fernandes, orientadora do estudo e doutora em engenharia de minas, metalúr-gica e de materiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “A química está presen-te em tudo, mas o primeiro convite deve partir do universo com o qual estão acostumados.”

Para a orientadora, a experimentação tam-bém é uma forma de quebrar o paradigma vi-gente de ensino no Distrito Federal, voltado exclusivamente ao ingresso na UnB. “Muitas vezes o aluno não tem maturidade para ver

Pesquisa reverte desinteresse pela área científica trazendo doces e guloseimas para a sala de aula

Texto Gabriel luiz e nadjara martinsIlustração lucas Pacífico

R e P o R t a G e m

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aquele conteúdo específico. Também não adianta ensinar ciências se, ao fim dos estu-dos, ele não conseguir fazer uma leitura crítica do dia a dia”, argumenta Patrícia Fernandes. Ela desaprova o currículo brasileiro, que privi-legia aquele que cursa ensino superior. “Você pressupõe que todo mundo quer entrar na fa-culdade, como se o ensino médio não encer-rasse uma etapa. Eu tenho de ensinar ciências para a vida”, diz.

a ReceitaDurante dois meses, Fabiana Urani reser-

vou aulas para o projeto no colégio em que já trabalhava. Autorizadas a levantar das cadei-ras, as crianças assistiram à invasão de mate-riais até aquele momento incomuns na sala de aula. No lugar da lousa e do giz, a professora levava à escola pirulitos, brigadeiros e até má-quina para fazer algodão doce com os alunos, em pleno horário de classe.

Para uma das aulas, a professora chegou a fazer mais de cem brigadeiros. “Minha mãe ficava maluca. Meus experimentos deixavam a cozinha lá de casa toda bagunçada”, brin-ca. Mas a confusão valia a pena pela melhora que trazia às aulas. Com os doces em mãos, a professora lançava a pergunta: “Por que no iní-cio o brigadeiro é marrom claro e, de repente, fica escuro?”. Depois de atiçar a curiosidade infantil, ela explicava as reações químicas que aconteciam desde a caramelização do açúcar até a formação de um chocolate mais con-sistente. Era a oportunidade de conhecer um pouco da história da iguaria brasileira. Depois disso, elas eram liberadas para “fazer uma bo-quinha”, mas com moderação.

Fabiana enfatiza a possibilidade de os ex-perimentos serem realizados sem a necessida-de de qualquer laboratório. Uma preocupação relevante, considerando que apenas 10,6% das quase 200 mil escolas brasileiras têm essa estrutura, de acordo com levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), em 2012. “A falta de labo-ratório não deve ser desculpa para a falta de experimentação, a qual traz impactos extre-

mamente negativos”, complementa a orienta-dora, que reforça a importância da iniciativa do professor nesse caso.

A euforia causada pela prática em sala se traduziu em resultados. A evasão escolar dimi-nuiu aula após aula e a assimilação de conteú-dos mais que dobrou. Questionários aplicados durante a pesquisa mostram que o aprendiza-do de temas como transformações químicas pulou de 13,4%, antes dos experimentos, para 82,4%. “Você percebe na hora em que está ex-plicando se o aluno aprendeu ou não. Com as práticas, eles faziam associações de concei-tos, davam exemplos. Por vezes, faziam per-guntas que eu não sabia responder, mas ia até o laboratório descobrir”, relata Fabiana. O pró-prio entendimento da linguagem científica — incluindo termos e fórmulas — por parte dos estudantes aumentou em 55,2%.

Somente um critério ficou negativo. As con-cepções de substância e material não foram bem compreendidas pelos alunos e a assimila-ção caiu de 68% para 57,3%. Fabiana explicou à DARCY que os professores consideram esse conceito como o mais difícil de ser absorvido. “Além de a quantidade de conteúdos aumen-tar, eles se tornam mais complexos. Como ti-vemos o cuidado de fazer o aluno aprender em vez de decorar, seria necessário mais tempo de dedicação com a turma — no lugar dos dois meses do projeto”, esclarece a pesquisadora, que pretende mudar a estratégia para 2014. Ela quer dar enfoque às noções de substância e material desde o começo do curso, partindo de definições gerais até chegar a explicações mais específicas.

Com o fim das atividades, os estudantes puderam avaliar, por meio de um questionário anônimo, a qualidade das aulas. A aprovação é quase unânime entre as turmas. Cerca de 45% dos depoimentos consideravam a ma-téria “interessante e divertida”. Um dos alu-nos avalia: “Achei bem interessante, pois ao mesmo tempo em que estávamos nos diver-tindo, estávamos aprendendo conteúdos im-portantíssimos”. Outro foi mais longe e clas-sificou as aulas de química como diferenciais.

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“Realmente foram as melhores aulas do ano. Pude apren-der mais sobre o alimento que assombra algumas pessoas hoje em dia.”

No entanto, se o projeto encontrou tamanho sucesso por parte das crianças, não se pode dizer que foi tão bem aceito pelo restante da escola. Fabiana afirma ter enfren-tado resistência por parte da direção em um primeiro mo-mento. A cobrança tradicional por disciplina e a metodolo-gia regrada foram alguns obstáculos que a professora só conseguiu contornar mostrando resultados. “No começo, eu tinha de insistir por mais algumas aulas. Só quando a escola começou a notar o interesse dos alunos é que deu mais abertura à minha pesquisa”, conta, admitindo tam-bém ter passado por atritos com demais professores, que se sentiam intimidados pela novidade.

a eQuiPeDepois desse período no colégio, foram necessários

mais oito meses para compilar os dados. “A princípio fi-quei assustada: sempre imaginamos que não vamos dar conta”, comenta Fabiana, referindo-se à fase de análise dos resultados. Entre o surgimento da ideia e a aplicação do projeto, porém, foram necessários dois anos de estudo e longas discussões entre mestranda e orientadora. “Uma coisa que me chamou a atenção foi a capacidade criativa que Fabiana tinha de trazer o dia a dia para o ambiente es-colar”, destaca Patrícia. “Foi aí que rolou a química entre a gente”, brinca a pupila.

Hoje com 35 anos, o quadro-negro é familiar a Fabiana desde os 17, quando começou a dar aulas, ainda na gradu-ação. “Sempre tive interesse por ciências, mas caí no curso quase de paraquedas. Esse primeiro contato com a escola me fez perceber que eu fazia parte daquele lugar”, comen-ta a docente, que já chegou a trabalhar em três turnos por dia. Durante a carreira, ela também passou pelo cargo de secretária antes de se tornar professora titular.

Doces e guloseimas não foi o primeiro projeto em que a professora trabalhou experimentação com estudantes. Fabiana também já havia organizado um café da manhã especial com uma turma do 8º ano. Enquanto os alunos se deliciavam com cafés, bolos e pães, a professora explicava os processos químicos e físicos que aconteciam dentro do sistema digestivo. Foi quando ela percebeu que o ensino contextualizado vale para qualquer série, inclusive para o ensino superior. “É possível trabalhar tranquilamente todos os assuntos do ano por meio dos experimentos”, comenta.

A escolha pelo mestrado profissional aconteceu natural-mente, como forma de solucionar os problemas encontra-dos na escola. Essa categoria de pós-graduação obriga ao mestrando desenvolver, além da dissertação, um produto de ensino. Então, a pesquisadora resolveu catalogar as ex-periências executadas em um módulo didático, disponível na internet e acessível a qualquer professor interessado em ensinar química de forma inusitada.

eu faÇo ciÊnciaQuem é o pesquisador: Fabiana de Souza Urani, 35 anos, concluiu

a licenciatura em química pela Universidade Católica de Brasília em

2004. Dois anos depois, finalizou a pós-graduação na mesma área pela Universidade Federal de Lavras. Em

2013, tornou-se mestre em ensino de ciências pela UnB. Começou a lecionar no segundo semestre da graduação —

substituindo uma professora de licença maternidade —, aos 17 anos, e hoje é

professora da Faculdade JK. título do projeto: Doces e guloseimas: uma proposta de temática para ensinar

ciências no 9º ano do ensino fundamental Quem orientou: Patrícia Fernandes

“Com as experiências que foram realizadas, aprendemos sobre assuntos que não são interessantes, mas passam a ser”

“A aula foi dinâmica e interessante”

“Podemos ver a química presente no dia a dia”

“Foi muito bom, pois a aula não se torna cansativa nem entediante”

“Gostei bastante. A aula saiu do padrão normal, só com uso do livro, e teve prática. Assim é um jeito mais fácil, rápido e interessante de aprender o conteúdo”

oPinião dos alunos

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RefleXãoO trabalho de mestrado também permitiu à pesquisado-

ra Fabiana Urani desenvolver um senso mais crítico quanto ao ensino de ciências no Brasil. Índices como o Programa Internacional de Avaliação dos Alunos (Pisa), com base em números de 2012, apontam a estagnação da educa-ção científica no país — a média nacional na prova de ciên-cias se manteve em 405 pontos nos exames de 2009 e 2012, por exemplo.

Nos últimos seis anos, o índice mostra que o Brasil foi o 39º em crescimento nas notas em ciências. Países como Albânia e Cazaquistão avançaram mais rapidamente. A professora ainda acredita que esses resultados traduzem a falta de interesse dos alunos pela disciplina. Outro exem-plo da deficiência do ensino científico no Brasil é o baixo número de cientistas no país: pouco mais de 128 mil, se-gundo levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologia (CNPq), em 2010.

De acordo com a orientadora Patrícia Fernandes, a me-todologia atual de ensino sufoca a curiosidade natural da

criança, desestimulando o interesse espontâneo pela dis-ciplina. “Parece que hoje a escola está a serviço de uma instituição superior. Ensinamos ciências para a universi-dade, o que tira do estudante a escolha de ser outra coisa que não universitário”, analisa a especialista. Os laborató-rios, que deveriam estimular a experimentação, nem sem-pre cumprem esse papel. “Na sala, as crianças sentam e só absorvem o conteúdo que o professor joga sobre elas. Nos laboratórios, elas só podem assistir e, quando partici-pam, apenas misturam elementos como se fossem receita de bolo, sem entender como a reação que acabaram de ver aconteceu.”

Perceber que os alunos de fato aprenderam, para a pes-quisadora Fabiana Urani, é o melhor retorno que se pode receber. “É uma alegria muito grande e enormemente grati-ficante perceber o carinho dos alunos, ver que aquilo ensi-nado foi útil, de alguma forma, na vida deles”, conta, emo-cionada. Ela garante que continuará ensinando e pretende seguir os estudos na área de ciências, emendando com um doutorado. “Não tem jeito, sou professora por vocação.”

O Programa Internacional de Avaliação de Alunos, elaborado pela Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde o ano 2000, é repetido a cada triênio, com o objetivo de melhorar políticas e resultados educacionais.

distrito federal | Nos resultados de 2012, o Distrito Federal obteve 422 pontos — acima da média nacional, que foi de 402 pontos. A capital federal também teve o segundo maior desempenho em ciências, com 423 pontos, ficando atrás apenas do Espírito Santo. No Pisa de 2009, a média do DF foi de 439. Em 2006, foi 447. Apesar da queda nos últimos anos, o DF apresenta a maior média no índice dentre as unidades da federação.

Brasil | O país registrou aumento de apenas um ponto entre os exames de 2009 e 2012, e ainda é um dos últimos no ranking global. Ficou na 58ª posição. Na prova de ciências, os estudantes brasileiros marcaram 405 pontos, repetindo o desempenho do último exame. No índice de 2012, 61% dos estudantes ficaram no patamar de “baixo desempenho”. Os alunos demonstraram capacidade de apresentar apenas explicações científicas óbvias e seguir evidências explícitas.

BRasil e df no Pisa

A pesquisadora Fabiana U r a n i c a t a l o g o u a s experiências executadas com os alunos em um módulo didático, disponível na internet. Para acessar, escaneie o QR Code acima.

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Em uma sexta-feira de julho, no meio de uma tarde fria e úmida, Orides Fontela saiu de seu cubículo alugado, na rua Cesário Mota Jr., e, caminhando devagar, meio indecisa, dirigiu-se à padaria Olmea,

a nove quadras dali. Enferma e claudicante, alternava os olhos para baixo e os lados, evitando reconhecer pes-soas próximas. O apartamento em que vivia ficava preci-samente no nº 66, no sexto andar do edifício Tiatã, e não era muito limpo. Cheirava a mofo, era escuro e tinha pou-cos utensílios, misto de modéstia e descaso. Mesmo assim, estranhamente, tudo parecia ordenado e harmônico. Era um conjugado e havia mais espaços vazios do que móveis ou objetos.

Orides não tinha muitas coisas, além de que gostava da sensação de abertura e vazio que o lugar proporcionava. Havia um pequeno sofá, uma prateleira com livros, a ca-deira de balanço e a escrivaninha à janela, que anunciava o trabalho junto à contemplação. À mesa, a máquina de escrever Olivetti Studio 45, papéis brancos e canetas. Às vezes, o gato deitava-se ali. Ao lado da mesa, no chão, o cesto de lixo repleto de papéis amassados. Na parede da sala havia um pôster pichado. Era a obra do artista plásti-co John Howard, que chegou ao Brasil fugindo do serviço militar americano e que traduziu alguns versos dela para o inglês. Havia também um espelho redondo, do tamanho de uma calota de pneu, adornado em couro negro com moti-vos solares. Na sala não havia televisão nem toca discos, o rádio também não se destacava na paisagem. Na pequena cozinha, um cesto de frutas com laranjas e bananas e um fogão. Não se via geladeira. Algumas panelas velhas, três pratos e potes de vidro em que guardava chá verde, pão e arroz integral, única coisa que cozinhava às vezes para si. Entre os utensílios, havia o bule oriental, lembrança dos tempos zen-budistas, com o qual servia chá verde às vi-sitas. No quarto, um guarda roupas grande e velho, que ela comprara de segunda mão e um tatame onde dormia.

Todas as vezes que saía do apartamento – local que chamava “ninho” –, Orides experimentava uma sensação de derrota, que a envergonhava. Tinha cinquenta e três anos, estava aposentada há quatro e parecia mais velha do que realmente era. Seu olhar estava cansado para o evidente. Era simultaneamente incisivo e discreto; lugar--abrigo de sinais autênticos. Caminhava devagar com a ajuda da bengala. A perna direita estava dura e voltava a doer com o frio. O tornozelo havia inchado novamente

e o joelho a ranger, sequela dos quatro atropelamentos. Orbitava os recônditos obscuros nos submundos da exis-tência. O frio da tarde intensificava seu silêncio. O ruído das falas e o trânsito da Vila Buarque adensavam a von-tade de calar. Estava vestida com uma blusa de lã, o xale era roxo, a cor que mais usava. Os dias não estavam fá-ceis. Haviam cortado a luz do seu “ninho”. Era metade do mês e o dinheiro já havia acabado. Enquanto movia a ben-gala, olhava para o chão e murmurava: “O que vou fazer, o que vou fazer, meu Deus?!”. Arrastou-se devagar até a padaria de Olmea, que prometera ajudá-la caso precisas-se. Tentaria pegar emprestado o dinheiro e quitar o débito da luz. Não era a primeira vez que ficava no escuro, nem a última que pediria dinheiro emprestado ao amigo. Quando cortavam sua luz, lia e escrevia mergulhada na penumbra. Ao chegar à padaria, o olhar desesperado já anunciou a angústia. Olmea reconheceu a aflição e chamou-a. Pediu para Jeruso, o empregado faz-tudo, que servisse café e um pedaço de bolo. Não que Orides estivesse com fome, ela quase nunca sentia fome, talvez por isso mesmo Olmea oferecia comida; deixava-a beliscar o que quisesse. Temia a magreza em excesso da amiga. Sem se deixar envolver pela aflição de Orides, o padeiro puxou assunto com ela.

– Seu amigo, Silvio, quer vê-la. Acho que quer gravar uma entrevista.

Orides fez de conta que o assunto não era com ela. O seu olhar estava distante. Além de que não tinha entrevis-tas em grande conta.

Naquele final de tarde, ela estava particularmente agi-tada, tentava conter, como de costume, a inquietação. Balbuciava as palavras. O desespero sufocava o verbo: o caos havia encontrado nos seus olhos sítio inconfundível.

– “Alta agonia” –, disse a muito custo Orides.– “Difícil prova” – respondeu Olmea, citando de memó-

ria o primeiro verso de um soneto antigo, escrito por ela aos vinte e três anos, exatamente trinta anos antes. O so-neto era:

Alta agonia é ser, difícil prova:entre metamorfoses, superar-se.– Cortaram a luz do meu ninho, Olmea. Como posso

viver assim?Olmea nada disse. Passou a mão no jaleco da padaria,

alisou o bigode, recordou as últimas dificuldades e agruras da amiga nos tempos pós-plano Collor. Como outros po-bres e remediados, em 1990, ela teve sua poupança con-

Que século, meu Deus!

disseram os ratos

Texto Gustavo de castroIlustração isabela Ribeiro

i n É d i t o s

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fiscada, era o dinheiro que havia juntado da bolsa de estudos da Fundação Vitae que Antonio Candido lhe repassara inte-gralmente.

Naquele ano de 1993, a inflação brasileira bateria a casa dos 2.708%. Orides estava desesperada e economicamente falida. Todos os seus amigos insistiam que ela deveria deixar o centro de São Paulo e ir morar na periferia. Ao menor indício desta possibilidade, se irritava e xingava o autor da propos-ta. “Não sou árvore para ser removida de São Paulo!” Depois de muita insistência, ainda olhou quartos e apartamentos na zona norte, mas desistiu imediatamente. Não se mudaria da região central.

Naqueles tempos bicudos, como em outros, ela não viveria sem a ajuda solidária de amigos. Eram anos difíceis. De 1980 a 1993 o Brasil teve quatro moedas, cinco congelamentos de preços, nove planos de estabilização, onze índices de medir a inflação, dezesseis políticas salariais diferentes, 21 propostas para pagar a dívida externa e 54 mudanças na política de pre-ços. Orides se equilibrava como podia nas finanças com sua aposentadoria de dois salários mínimos. Em janeiro daquele ano, o salário mínimo valia, em cruzeiros, 1.250.700,00 mi-lhão. Em julho, ele já estava a 4.639.800,00 milhões. Ninguém dava conta da escalada de preços. Foi justamente neste mês crísico que a poeta procurou o amigo padeiro.

Olmea perguntou onde estavam as contas atrasadas, cha-mou Jeruso e pediu que ele tirasse dinheiro do caixa e as fos-se quitar antes que os bancos fechassem. Do próprio bolso, tirou também alguns trocados e deu a ela, que aceitou sem graça e resistência. Pessoas entravam e saíam da padaria. Quintino Olmea e Orides Fontela, sem se darem conta, cati-vavam a dimensão do tempo lento. O silêncio os unia. A poe--ta tomou o café e comeu sem vontade um pedaço do bolo; mastigando-o vagarosamente.

– Pronto, Orides, vão religar a luz – disse Olmea depois de algum tempo ao ver Jeruso voltar com as contas pagas.

Ela não esboçou reação. Estava distante. A aflição não ha-via cessado nem com o fim do problema. Pegou a bengala e se preparou para ir embora. Olmea entendia o caos da amiga. Conhecera-a quando se mudou da rua Barão de Tatuí, 326, para a Canuto do Val, 146. Silvio Rodrigues os apresentara na festa de inauguração do novo apartamento. Antes de ir embora da padaria, Orides pediu um copo d’água. Saiu devagar, cami-nhando sem pressa até a saída. Ao passar pelo balcão, voltou a olhar Olmea. O padeiro recorda sempre. Ela parecia a pró-pria náusea. Não sorriu. Sequer disse “obrigado” e foi embora.

Primeiro capítulo do livro-reportagem O enigma Orides, obra que escrevi sobre a poeta paulista Orides Fontela (1940-1998). Orides se dizia ‘a mais pobre poeta do Brasil’ junto com Cruz e Souza. Escrevi este livro depois de uma noite agitada, em que tive um sonho – talvez um pesadelo – no qual a poeta aparecia dizendo: ‘Encontre os meus poemas perdidos!’ e repetia: ‘Encontre os meus poemas perdidos!’. Isso foi em

2009. Acordei assustado e obediente. Comecei a investigar e encontrei vários poemas realmente perdidos dentro dos livros que ela lia. Tive acesso ao que restava da sua biblioteca pessoal, o que foi suficiente para resgatar alguns de seus poemas. Após três anos de trabalho, não só encontrei poemas perdidos como contei a história desta que Davi Arrigucci Jr. e Antonio Candido consideram uma das maiores poetas brasileiras do século 20. Orides Fontela ganhou o prêmio Jabuti em 1983, pelo livro Alba e teve a coletânea Trevo, que reúne poemas publicados entre 1969 e 1988, publicada na coleção Claro Enigma.

Gustavo de Castro

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Recentemente, os brasileiros assistiram estarre-cidos pela televisão atos de extrema violência em um estádio de futebol. Sem dó nem pieda-de, as torcidas organizadas do Vasco da Gama e

Atlético Paranaense trocaram socos, pontapés e pauladas. As cenas chocaram pela perversidade. Torcedores sofre-ram traumatismo craniano e só não morreram por sorte. Ao bater no adversário, alguns gritavam “mata, mata”. Estarrecedor. Do prazer lúdico, os torcedores passaram rapidamente à guerra.

As torcidas organizadas se autodenominam ‘nação’: nação vascaína, nação atleticana etc. Elas convocam os membros através das redes sociais. Em seus portais, se declaram fanáticas e guerreiras. Dizem abertamente que são capazes de morrer pelos seus clubes. Quem está dis-posto a morrer por algo está impregnado de justificativas para também matar por esse algo. Como explicar tamanho fanatismo? O que leva a comportamentos tão irracionais? O que leva torcedores a baterem em um suposto adversá-rio até a morte?

As torcidas têm uma face passional, puramente sub-jetiva: aderem a um clube por paixão. Por trás da paixão está a carência, a necessidade de pertencer a um grupo de semelhantes singulares. A identidade dos torcedores se

constrói pelo amor declarado à camisa, que se torna ban-deira. Aderem a um símbolo e são por ele arrebatados a ponto de justificarem os comportamentos irracionais. Que tipo de arrebatamento é este que leva a uma ligação tão visceral?

Um paralelo entre as ‘nações’ de torcedores e as identi-dades nacionais ajuda-nos a compreender o lado subjetivo desse tipo de paixão. A identificação com um país, um gru-po étnico ou cultural pode, da mesma maneira, levar um in-divíduo a matar ou morrer tolamente. Os fenômenos são de natureza diferente, mas possuem em comum a adesão vis-ceral a uma bandeira, um símbolo que representa o grupo.

Todos nós temos uma nacionalidade cívica e outra cul-tural (ou étnica). A cívica se dá pelas obrigatoriedades na-cionais: certidão de nascimento, carteira de identidade, tí-tulo de eleitor, número de CPF, passaporte, pagamento de impostos etc. Essas objetividades vêm de fora, nos tornam cidadãos do país em cujo território nascemos e ao qual le-galmente pertencemos pelas imposições do estado-nação. Criam um pertencimento pátrio-patriótico.

A identidade cultural tem origens subjetivas. Nascem de dentro, provém da necessidade de nos associarmos a grupos com os quais nos identificamos por escolha. Em parte, esse pertencimento se concretiza espontaneamen-

de novo, as identidades e difeRenÇasTexto luiz Gonzaga motta

Ilustração isabela Ribeiro

f R o n t e i R a s d o P e n s a m e n t o

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te, por aderência natural. Dão-nos segurança, apoio e so-lidariedade. Aderimos a eles, com eles nos identificamos e passamos a defender seus símbolos como a nossa própria alma. Ocorre também por ligações étnica, racial ou reli-giosa. A partir da identificação com um grupo, separamos o dessemelhante: eles são ‘os outros’, diferentes de ‘nós’. Daí à discriminação e ao ódio é um passo, e onde come-çam os problemas.

Nas últimas décadas, com a mundialização, deveria ter ocorrido uma união da humanidade. Mas, a globalização gerou mais conflitos que união. Ela tem fortes raízes eco-nômicas: o capital passou a fluir por cima das fronteiras, o capitalismo se impôs como modelo hegemônico mundial e o livre mercado consolidou a sociedade de consumo em todo o planeta. O mainstream homogeneizou desejos e costumes, mas paradoxalmente suscitou novas identida-des nacionais. Ligações existem, mas são frouxas, persis-tem a novidade e a precariedade das relações. À medida que desterritorializou populações e pertencimentos locais, a globalização acirrou diferenças. Como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “está todo mundo incluído, mas paradoxalmente, todo mundo deserdado”. Houve um re-cuo das subculturas, das tradições locais e regionais. Em reação, recrudesceram nacionalismos étnicos e culturais adormecidos.

Muitos movimentos étnicos, fundamentalistas e na-cionalistas recentes são reações à homogeneização pelo mercado, ao individualismo e ao hedonismo exacerbado que contrariam culturas, religiões e costumes pelo mundo afora. À medida que as identidades locais e étnicas per-

deram suas referências tradicionais, os nacionalismos se exacerbaram. A busca por identidades recrudesceu di-ferenças, conflitos se radicalizaram. Passou-se a matar ou morrer por bandeiras étnicas, religiosas ou nacionais. Contraditoriamente, a mundialização reacendeu naciona-lismos adormecidos: nós e os outros, as identidades e as di-ferenças. O sociólogo basco Daniele Conversi adverte que a globalização é um processo de mão única onde não há encontro nem diálogo, mas imposição cultural: “Em sua for-ma corrente, a globalização significa guerra”, argumenta.

Contraditoriamente, a globalização gerou o seu contrá-rio: a busca por novos pertencimentos, ligações de apoio, revivalismos religiosos, mitos de origem, vínculos de vizi-nhança, comunidade virtuais, tribos urbanas: quero per-tencer a algo, preciso de grupos de apoio, preciso encon-trar ‘minha tribo’. No Brasil, as torcidas organizadas são uma dessas novas tribos urbanas. Ao aderir a uma delas, sujeitos carentes preenchem suas necessidades de apoio, irmandade e solidariedade (ainda que simbólicas, mais que afetivas ou efetivas).

Há mais semelhanças que diferenças entre o naciona-lismo chauvinista e o fanatismo das torcidas organizadas. Ambos são grupos passionais que, por uma simples iden-tificação com um símbolo qualquer, se creem superiores: nós somos iguais, somos semelhantes, logo somos melho-res e superiores. Por isso, podemos qualquer coisa con-tra eles. Por uma bandeira, por uma camisa do clube, um símbolo qualquer, se briga, se mata e se morre em sua ir-racionalidade contra os outros: eles, os diferentes de nós. Diferentes em quê, cara pálida?

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Texto douglas lemos

Ilustração túlio mendes

R e P o R t a G e m

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Enquanto o mercado automotivo brasileiro se adapta às novas normas de segurança – que exigem a obrigatoriedade de airbags e freios antitravamento (ABS) em todos os veícu-los novos desde 1º de janeiro de 2014 – professores do curso de Engenharia Automotiva da Universidade de Brasília (UnB) foram premiados no Seminário de Segurança Veicular, em São Paulo, que acontece anualmente desde 2010.

O artigo “Avaliação da integridade de ocupantes de ve-ículos tipo pick-up em caso de capotamento: uma aborda-gem numérica” produzido pelos professores Rita de Cássia Silva, Maria Alzira de Araújo Nunes e Alessandro Borges de Sousa Oliveira, representa estudos sobre dispositivos que podem ser instalados com o objetivo de minimizar ao con-dutor e passageiros os efeitos do capotamento de veículos do segmento de caminhonetes.

O veículo utilizado nos testes foi uma Chevrolet Silverado, que não é mais vendida no Brasil. A professora Rita explica que, apesar deste veículo não ser oferecido no mercado brasileiro hoje, outras pick-ups do mesmo seg-mento são vendidas no país. “A contribuição em termos da metodologia estabelecida no estudo é irrefutável”, explica.

seGuRanÇa PRemiada

O trabalho partiu de uma demanda da mineradora Vale, que necessitava de uma solução para problemas de segu-rança contra capotamento dentro e fora de suas minas. Com duração de um ano, etapas analíticas, numéricas e experimentais foram cruciais para o resultado. “Esta pre-miação nos deixou muito satisfeitos e pode colaborar para outros projetos”, apontou.

A professora ressalta que o prêmio é a consolidação de uma equipe preparada e que o artigo pode contribuir para a segurança da sociedade. A gratificação dada por uma entidade da indústria automotiva denota o reconhecimento do projeto desenvolvido na academia com aplicação direta na indústria.

simulaÇão Quase RealForam feitas simulações com softwares capazes de re-

produzir testes experimentais de vários tipos de acidente, entre eles o capotamento. Os testes de roof crush – que envolvem deslocamento do teto do veículo – levaram em consideração os exemplos mais comuns de incidentes en-quadrados no estudo.

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Artigo de professores da UnB foi premiado em seminário de segurança veicular. O estudo foi feito a partir da demanda de uma mineradora

Um dos testes mais comuns é o Dolly Rollover, em que o carro é colocado em uma plataforma diagonal e lançado para capotamentos laterais. Neste caso, o roof crush do veículo foi obtido na parte lateral da cobertura do habitá-culo. Para simular os efeitos nos ocupantes, foram utiliza-dos dummies – espécies de manequins com sensores de carga e movimento – que tem como função simular o papel de seres humanos em colisões. O foco era obter índices de lesões na cabeça, pescoço e tórax.

Na simulação de capotamento o dummie que represen-tava o motorista chegou a ser submetido uma força de 11,6 mil Newton, enquanto o passageiro logo atrás ao condutor recebia 5,5 mil Newton de impacto. Ou seja: a força exerci-da era maior na coluna A, aquela próxima ao condutor e ao passageiro da frente. Segundo a professora, a coluna dian-teira está submetida a este tipo de força uma vez que pos-sui limitações quanto ao reforço, já que ela pode interferir em aspectos ergonômicos, aumentando os pontos-cegos, que interferem diretamente na dirigibilidade.

Gaiola de PRoteÇãoA fim de minimizar a intrusão das colunas dos veícu-

los, foram feitos testes com dispositivos chamados Rollover Protection System (ROPS), que consiste no uso de barras

de aço soldadas – um tipo de gaiola – que pode ser utili-zado no interior ou no exterior da carroceria do veículo. O objetivo deste aparato é diminuir a deformação da estru-tura da caminhonete em caso de capotamento, mantendo a integridade dos ocupantes. “Em caso de impacto, é uma estrutura a mais para ser deformada antes de atingir os ocupantes”, aponta Rita de Cássia.

Elas são instaladas da seguinte maneira: as colunas do dispositivo são fixadas à caçamba e se estendem ao teto da pick-up, até um ponto entre as colunas A e B (que fica entre as portas dianteiras e traseiras). Neste caso, o ins-trumento não é instalado rente à cobertura da caminhone-te: deve ser respeitada uma distância de 150 milímetros. Quando instalada do lado de dentro, a estrutura é compos-ta por tubos de aço circulares e é instalada nas colunas A, B e C, indo do teto até o chão.

Com o estudo, foi possível verificar que as gaiolas re-almente tornam menores os riscos aos passageiros do veículo em caso de acidente. O ROPS externo permite ao projetista trabalhar com grandes deformações. Nos tes-tes, este tipo de gaiola teve uma melhor performance ao permitir menor intrusão na cabine, níveis de acelerações menores na cabeça além de forças e momentos menores no pescoço.

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tiRo ao alvoTexto Paulo Renato souza cunha

Ilustração isabela Ribeiro

Há 65 milhões de anos, dinossauros habitavam a Terra. Pode-se imaginá-los a procurar alimentos, ou talvez envolvidos em alguma batalha ríspida a fim de conquistar territórios, ou simplesmente

observando filhotes que acabaram de nascer e precisam de cuidados. Então, depois de um dia aparentemente cor-riqueiro, uma rocha espacial invade sem aviso a atmosfera do planeta e atinge uma região que hoje conhecemos como Península do Iucatã, no México. O impacto gera uma ener-gia equivalente a 96 teratoneladas de TNT e os resultados mostram-se calamitosos: megatsunamis, nuvens de cinzas superaquecidas, incêndios globais, terremotos, erupções vulcânicas e contando. Não se sabe exatamente se esse cometa foi o motivo da extinção dos dinossauros, mas não deve ter sido nada fácil sobreviver às consequências desse visitante inesperado, que deixou uma cicatriz de 180 km de diâmetro na superfície terrestre. Infelizmente, um evento dessa magnitude deve ocorrer de novo e cientistas já se mostram engajados na busca por soluções aos possíveis efeitos colaterais do desastre.

O físico teórico Michio Kaku, apresentador do programa Sci Fi Science (Discovery Channel), acredita que até pode-mos desenvolver mecanismos para desviar ameaças cósmi-cas da rota de colisão com a Terra. No entanto, considera essa possibilidade longe de ser infalível. Há inúmeras rochas errantes no espaço, detectá-las todas com a antecedência necessária é uma tarefa bem complicada. Portanto, para salvar a humanidade da extinção, talvez seja preciso ir em busca de novos lares enquanto as coisas se acalmam por aqui. Kaku sugere um vizinho notável: Marte.

O quarto planeta a partir do Sol com a célebre aparên-cia avermelhada instiga a imaginação de observadores ce-lestes. Com cerca da metade do tamanho da Terra, Marte já influenciou grandes obras literárias tais como A guer-ra dos mundos — de H. G. Wells — e Crônicas marcianas — de Ray Bradbury. Vulcões gigantescos, planícies secas que se perdem no horizonte, atmosfera fina rica em dióxido de carbono venenoso... Espere um pouquinho aí: tudo isso não parece ser muito convidativo aos humanos. Mas cien-

tistas como Alexei Filippenko, Laura Danly, Chris McKay entre outros garantem que é possível transformá-lo em do-micílio agradável.

Primeira tarefa: aquecê-lo. A temperatura na su-perfície marciana pode chegar a insuportáveis -125°C. Aquecimento global pode ser a última coisa que queremos aqui na Terra, mas em Marte o resultado viria bem a ca-lhar. Astrofísicos apostam que se conseguíssemos de al-guma forma acelerar esse processo em Marte — leia-se: fazer com que a atmosfera no planeta enferrujado absorva radiação infravermelha —, poderíamos deixá-lo habitável.

A etapa seguinte: transporte de humanos e ferramen-tas básicas. A viagem não seria nada fácil. São cerca de 300 dias — em verdade, essa estimativa varia de acor-do com os posicionamentos de Marte e da Terra, além do tipo de combustível utilizado pela espaçonave (recomen-da-se foguetes nucleares). Se chegarmos lá são e salvos, precisaremos então construir colônias de abastecimento. Inicialmente, estruturas que armazenariam alimentos e utensílios essenciais.

Em teoria, o plano pode obter êxitos consideráveis. Acontece que, com a tecnologia disponível hoje, qualquer procedimento com essas proporções demoraria dezenas de anos para apresentar os primeiros resultados práticos. De modo que a ideia precisaria ser colocada em prática o mais rapidamente possível se quisermos que tudo funcio-ne da maneira adequada. Aparentemente, o nosso planeta não corre riscos a curto prazo. Todavia, o meteoro que caiu em Cheliabinsk, Rússia, no dia 15 de fevereiro de 2013, foi uma espécie de alerta. Algum pedaço de pedra hostil pode estar a caminho e fora do campo de visão dos nossos te-lescópios.

A boa notícia é que se a experiência marciana realmente funcionar, poderíamos repetir as mesmas técnicas em ou-tros mundos como, por exemplo, a lua Titã de Saturno — o único satélite da vizinhança com atmosfera substancial — ou mesmo em algum dos quase mil planetas extrassolares já detectados. Certo, ainda assim precisaríamos de espa-çonaves muito melhores, mas falamos sobre isso depois.

f R o n t e i R a s d a a s t R o n o m i a

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Há nove meses a aposentada Maria Augusta Amaro da Rocha, 55 anos, cumpre a mesma rotina. Faz drenagem linfática e hi-droginástica – pois não suporta mais atividades de impacto. Consome 42 gramas de suplementação proteica diariamen-

te e tem consultas no Hospital Universitário de Brasília (HUB) a cada 15 dias. Se Maria Augusta deixa de ir à hidroginástica por um dia ouve sermões da doutora Daniela Lopes, que acompanha a rotina rigorosa-mente. Maria Augusta não está se recuperando de uma doença. Ela de-cidiu ser cobaia humana e participa de um estudo clínico para avaliar o ganho de peso em pacientes que fizeram cirurgia bariátrica.

Assim como a aposentada, existem 40 mil outros voluntários de pes-quisa – como se referem os especialistas – em busca de tratamentos para doenças ou complicações de saúde que aceitam se submeter a testes rigorosos sem receber nada por isso. Em 2008, Maria Augusta pesava 140 kg e fez cirurgia de redução de estômago. Após a interven-ção passou a pesar 79 kg, mas notou que, aos poucos, voltava a en-gordar. A pesquisa orientada pela doutora Daniela foi a esperança de Maria Augusta para conseguir emagrecer novamente. Com 87 kg e a um mês de terminar a pesquisa a voluntária desabafa: “Está sendo difícil perder peso, achava que ia ser mais rápido. O pior é ter que manter a mesma rotina de exercícios diariamente, mas falta pouco”.

Esta não é a primeira vez que a aposentada encontra nos experi-mentos científicos uma oportunidade de se curar de algum transtorno de saúde. Antes de fazer a cirurgia bariátrica, Maria Augusta sofria de apneia do sono – dificuldade para respirar à noite – e se voluntariou para um estudo que lhe ofereceu a chance de cura. A experiência foi bem-sucedida.

efeitos colateRaisInfelizmente, nem sempre os estudos clínicos conseguem atingir as

expectativas e os anseios dos voluntários. L.H.A., 64 anos, caminha com auxílio de andador e cadeira de rodas, só come alimentos pastosos e precisa de ajuda para ir ao banheiro. Faz fisioterapia, fonoaudiologia, toma antidepressivos e se arrepende profundamente de ter sido cobaia. Quem conta a história é a filha Lízia Almeida, já que as condições atuais da mãe não lhe permitem que articule a fala de forma clara.

L.H.A. tinha diabetes do tipo dois e tratava a doença com os me-dicamentos que recebia de um posto de saúde próximo de casa. Convencida pela vizinha, que lhe falou sobre uma pesquisa de testa-gem de medicamentos em um laboratório de Brasília, L.H.A. decidiu dispensar os medicamentos do posto de saúde e se aventurar no tra-tamento em fase de testes oferecido pelo laboratório.

Em maio de 2011, após um ano e dois meses de participação no es-tudo clínico, L.H.A. começou a frequentar o laboratório com auxílio de bengala. Sentia tonturas, sofria quedas com frequência, tinha crises de choro, não conseguia falar direito. Mas, mesmo com a desaprovação da família, não queria desistir. A deixa foi uma ligação anônima que Lízia recebeu certo dia. “Você não me conhece”, dizia a voz do outro lado

da linha, “mas eu estou te ligando porque sua mãe está desorientada na parada de ônibus e precisa de ajuda”. Imediatamente Lízia trouxe a mãe para casa e proibiu-a de voltar ao laboratório. “Ela foi tratada esse tempo todo como um objeto. Como puderam permitir que ela saísse da clínica no estado em que estava?”, critica Lízia.

A partir de então L.H.A. enfrentou baterias de exames e consultas com diferentes médicos. Mesmo sem fazer exame algum, um neurolo-gista que a atendeu soube o diagnóstico: atrofia olivopontocerebelar, ou atrofia dos múltiplos sistemas. Doença rara que vive como um pa-rasita e vai aos poucos levando movimentos, voz e esperança. Tempos depois, o Hospital Sarah confirmou o diagnóstico. No entanto, não se comprometeu com tratamento algum.

Além de ser filha de L.H.A., Lízia Almeida é também fisioterapeu-ta, membro da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Cep) da UnB. Ela acredita que os estudos clínicos envolvendo seres humanos no Brasil precisam de aperfeiçoamentos. “Houve clara violação dos direitos humanos no caso da minha mãe. O Estado precisa intervir em ocorrências como essa.”

Hoje, quando questionada quanto ao rumo que tomou a experiên-cia, L.H.A. se faz compreender, entre grunhidos: “Me arrependo muito, perdi tudo, perdi minha vida”.

leGislaÇãoDores, febre, náuseas são alguns dos sintomas que podem acom-

panhar aqueles que aceitam testar medicamentos de efeito desconhe-cido em seres humanos. Apesar das complicações, todo o processo é amparado pelas Diretrizes e Normas de Pesquisas em Seres Humanos, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. A resolução prevê atendimento psicológico e médico sempre que necessário, auxílio de transporte ao paciente até o local das pesquisas e a possibilidade de desistência a qualquer momento sem dever expli-cações a ninguém.

No Brasil, os órgãos regulatórios responsáveis pela avaliação e acompanhamentos dos ensaios clínicos são o Cep, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo o artigo Perfil da pesquisa clínica no Brasil, da Faculdade de Farmácia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS), cabe a essas entidades acompanhar todo o andamento do estudo a fim de garantir que a segurança, direitos e respeito por todos os participantes sejam priorizados.

coBaia PRofissionalNo Brasil não é permitido pagar pessoas para participarem de expe-

rimentos científicos. A única condição sob a qual é possível remunerar voluntários é quando a pesquisa está na fase de testagem em pessoas saudáveis e é de bioequivalência – que verifica se um genérico tem a mesma eficácia do remédio de marca. Essa resolução, contudo, é re-cente, foi aprovada pelo CNS em 16 de junho de 2013.

Texto nathália Zôrzo

Ilustração isabela Ribeiro

R e P o R t a G e m

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enQuanto não Há cuRaDe forma voluntária e não remunerada, cerca de 40 mil brasileiros se submetem diariamente a testes de medicamentos cujo efeito é desconhecido em seres humanos

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O coordenador do Cep da UnB, Natan Monsores, acredita que expandir a permissão para outras fases e tipos da pesquisa, no entanto, é perigoso por acabar estimulando uma prática pouco saudável: a profissão cobaia.

Exemplo que ilustra bem a polêmica é uma pesquisa reali-zada em 2003 no município de Santana, no Amapá, que tinha por objetivo estudar o comportamento de mosquitos transmis-sores de malária. No experimento, 40 pessoas de duas comu-nidades ribeirinhas de Santana aceitaram se submeter a pica-das de mosquitos transmissores da doença em troca de R$ 20. Cerca de 50% dos voluntários contraíram a doença. Na época, a Conep suspendeu o estudo. Inclusive, recebeu reclamações dos voluntários, sob a justificativa de que aquele dinheiro fazia muita diferença para eles, segundo conta a então coordenadora do Conep, Gyselle Saadi.

Natan prefere acreditar no altruísmo dos voluntários de pes-quisa como uma alternativa correta para o andamento dos estu-dos clínicos no Brasil. Mas confessa que, por ser difícil encontrar esses voluntários, os próprios membros do grupo de pesquisa acabam por aceitar participar da fase de testes em pessoas sau-dáveis. Ele explica que, por um lado, a alternativa é válida, por-que os pesquisadores acabam testando o que eles mesmos pro-duzem, mas há questões éticas envolvidas: “Será que eles não podem mascarar algum efeito negativo que possa ter aparecido só para o medicamento passar logo para a fase seguinte?”, pro-voca o coordenador.

temPo, dinHeiRo e PaciÊnciaCriar novos medicamentos é um processo caro, trabalhoso e

demorado. Até chegar a ser comercializada em farmácias, uma droga leva de 15 a 30 anos de estudos, que passam por cuidado-sas sequências de testes. O coordenador do Cep da UnB, Natan Monsores, explica que, ao todo, os estudos clínicos se dividem em seis fases.

Após a descoberta de uma molécula com potencial terapêu-tico, ocorre o isolamento e a caracterização dela – processo que leva de três a dez anos. A fase seguinte, chamada de pré-clínica é a de testagem em animais. Dura em média cinco anos e en-volve desde bactérias e leveduras até cachorros e macacos. A partir daí, começam os testes em voluntários humanos – pro-cesso que leva cerca de 12 anos para ser concluído. Primeiro são realizadas pesquisas com pessoas saudáveis; depois, com os portadores da condição clínica em estudo. Por último, com indivíduos que possuam variações da doença.

Depois de concluído, o medicamento passa pela fiscalização da Anvisa e, se aprovado, pode ser produzido em larga escala e comercializado em farmácias. Segundo dados da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), o custo mé-dio para se produzir um único medicamento é de R$ 3 bilhões.

Dados divulgados pela Anvisa apontam que a agência apro-va o funcionamento de, em média, 200 estudos clínicos por ano no Brasil. Em artigo publicado pela Sociedade Brasileira de Medicina Farmacêutica (SBMF), o mestre em ética médica pela Universidade de Londres Octávio Luiz Motta questiona que esse valor poderia ser muito maior, não fossem as “ineficiências regu-latórias” que acompanham cada processo de pesquisa no país.

O Brasil é a nação que apresenta maior tempo para aprova-ção de um protocolo. Enquanto nos Estados Unidos, Canadá e França o prazo é de três a quatro meses, no Brasil pode ultrapas-sar um ano. “Enquanto alguns atores do sistema brasileiro nem sequer admitem que o problema existe”, argumenta Motta, “paí-ses com problemas muito menos graves, como Japão e Reino Unido, buscam incessantemente aperfeiçoar sistemas regula-tórios já muito mais eficientes que o nosso”.

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Nos últimos dez anos mais de cem mil brasileiros participaram de estudos clínicos no país.

Cerca de 550 instituições médicas e centros de pesquisas clínicas brasileiras estão aptos a realizarem testes com medicamentos.

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Paulo Paniago é professor da UnB e editor-executivo da DARCY

l e t R a s e i n v e n Ç Õ e s

Texto Paulo Paniago

Ilustração túlio mendes

alGuns avanÇos na vida do

Romance

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1 2eXcÊntRico eXtRavaGante

Romance é um gênero guloso que abocanha qualquer outro que lhe passe por perto. De modo que no primeiro livro do ro-mance de Sterne, no capítulo 15, uma certidão de casamento é apresentada, com toda a linguagem jurídica a que tem direi-to, para que o leitor fique ciente dos termos com que o casa-mento dos pais de Tristram Shandy foi realizado.

Na altura do capítulo 17 do segundo livro, Sterne inclui no texto um dos sermões que o autor pronunciou na Catedral de York em 1750, intitulado “O Engano da Consciência”. Mas se-gue o método de interromper o sermão o tempo todo com as interrupções provocadas pela conversa entre os personagens e uma das coisas que se faz é contar qual deve ser a postura adequada para alguém que está prestes a fazer um sermão. Então sim, Sterne está interessado em ensinar o padre a re-zar a missa.

Há um texto em latim, no capítulo 11 do terceiro livro, que é uma forma de praguejar, muito detalhada. O texto é retirado de Ernulfo o Bispo (1040-1124).

Um prefácio aparece no terceiro livro, mas não no início, ele está situado depois do capítulo 20. “Não direi uma só pa-lavra sobre ele”, anuncia o narrador. “Ele terá de falar por si mesmo.”

O início do quarto volume se dá com um longo conto inter-polado à narrativa. O conto de Slawkenbergius narra a histó-ria de um forasteiro narigudo que passar por Estrasburgo a caminho de Frankfurt e provoca enorme alvoroço na cidade — exatamente por conta do tamanho avantajado do nariz.

O narrador relembra, no capítulo 9 do quarto livro, os ca-pítulos temáticos que havia prometido anteriormente escre-ver: um capítulo sobre nós (não o pronome, mas os tipos de amarração de corda ou barbante), dois sobre o lado certo e o lado errado da mulher, um sobre suíças, um sobre desejos, um sobre o recato do tio Toby e um capítulo sobre capítulos — todos interpolações que retardarão o avanço da narrativa, a não ser o capítulo sobre o recato do tio Toby, que afinal se torna um ponto de interesse do romance. Mais adiante, no capítulo 14, ele ainda promete capítulos a respeito de criadas de quarto, bahs (o pai dele, irritado, pronuncia uma série de interjeições que o estimula a sugerir o capítulo) e casas de botão; no capítulo seguinte, anuncia ainda um sobre sono. No início do quinto livro, ele se lamente de ter de cumprir a promessa de um capítulo sobre bigodes. “Ai! o mundo não o suportará”, lastima-se.

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Suponho que o leitor não terá muito problema para admitir que a boa literatura é sempre inventiva. Claro que há certos escritores que parecem muito mais repetir um modelo existente do que se preocupam com inovações. A isso que estou chamando inventividade, mui-tos chamariam originalidade e outros tantos, experimentação. O que todos querem dizer é que há um elemento qualquer de inovação nas narrativas, que parecem não se preocupar apenas com contar uma história mas em descobrir também um mecanismo qualquer

que a torne diferente, inusitada, estranha ou peculiar. Neste momento, faço uma pesquisa para escrever uma série de livros a respeito de litera-tura, sob o título geral de Infinitos Literários. Um desses livros chama-se Literatura é invenção e trata exatamente dessa capacidade da literatura de encontrar mecanismos inovadores.

Criei, dentro do livro, quatro partes. Os excêntricos, que mudam o jeito de contar; os extravagantes, que alteram inclusive o formato dos livros; os exorbitantes, que alteram ou misturam gêneros literários; por fim, os excessivos, escritores que multiplicam as máquinas narrativas a ponto de torná-las enciclopédicas.

Um único autor, até o momento, comparece em todas as quatro partes. Trata-se do inglês Laurence Sterne, autor de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, publicado pela primeira vez em 1760. Então, este texto vai se deter sobre esse livro.

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O famoso biógrafo e crítico literário Samuel Johnson anotou, de maneira equivocada e do alto mais da empáfia de crítico do que da sagacidade de biógrafo, que “nada de extravagante ficará”. Referia-se, em linhas gerais, aos excêntricos literários e, de maneira específica, ao Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Errou feio. A obra de Sterne é muito admirada. Machado de Assis o cita e lhe reconhece a importân-cia, bem como fizeram Virginia Woolf, Samuel Beckett, James Joyce, Michel Butor, Enrique Vila-Matas, na ver-dade qualquer escritor que valha a pena.

A primeira e mais importante característica do li-vro é a digressão. As digressões, diz o narrador, “são a vida, a alma da leitura”. Se forem retiradas do li-vro, “será melhor se tirardes o livro juntamente com elas”. Ou seja, um (o livro) não existe sem as outras (as digressões). Existe um preceito em literatura que sempre funciona: faça a história andar. Pois o livro de Sterne, nesse sentido, não avança. Ele é todo cons-truído a partir da ideia de que não precisa avançar, que há tempo para se falar sobre uma série de coisas no caminho.

José Paulo Paes, o tradutor brasileiro, define o ro-mance de Laurence Sterne como “supremo monumen-to à irregularidade cujo primo mobile parece ser o hor-ror à linha reta e a paixão do labirinto”. Acrescente-se à conta uma série de excentricidades tipográficas e eis o que é um quadro preliminar do romance.

O romance quer disfarçar que é romance, fundir-se e confundir-se com a vida, ser tão caótico e desorga-nizado quanto ela, mas ao mesmo tempo dar coerên-cia ao conjunto (algo que normalmente falta à vida), e nesse sentido Tristram Shandy é antirromance. Ele não suporta a ideia de coerência, faz questão de lembrar o tempo todo que o leitor está diante de um artefato literário. A certa altura, ele supõe como a crítica vá tra-tar de falar mal do seu livro, de dizer que ele é “fora de prumo, milorde,—uma coisa muito irregular!”.

A extravagância é sempre mais interessante do que os bons modos. Para estes, existem os manuais de boas maneiras e o senso comum. O romance quer subverter o senso comum, rir de seus princípios, apon-tar alternativas. Disso vem sua sagacidade e força.

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Tristram Shandy possui uma sucessão de brincadeiras tipográficas. Travessões de vários tamanhos para indicar pausas variadas; duas páginas em preto depois do epitá-fio de um personagem; linhas de asterisco para substituir linguagem chula; uso de chaves para destacar algumas palavras; a falta de um capítulo; página em branco para que o leitor desenhe nela o retrato de uma personagem; a dedicatória de um dos livros e o prefácio de outro em luga-res diferentes da abertura; diagramas explicativos.

No meio do quarto capítulo, Laurence Sterne começa a aprimorar as brincadeiras tipográficas que haviam se iniciado com travessões de diferentes tamanhos. A certa altura, ele aconselha aos leitores que não querem mais permanecer a pular o restante do capítulo, “pois declaro antecipadamente tê-lo escrito apenas para os curiosos e os indiscretos”. A suposição é a de que o leitor superará a provocação e permanecerá na leitura do capítulo, afinal o que procura no romance é exatamente a indiscrição de poder observar a vida privada de personagens. Em segui-da a essa frase, a próxima linha de texto apresenta a ex-pressão “Feche-se a porta” margeada por duas linhas, tal como aparece aqui:

_____________ Feche-se a porta ________________

Depois disso a história de como Tristram Shandy foi ge-rado prossegue. Na edição inglesa de 2010, publicada pela Visual Editions, parte da página do capítulo 4 está dobrada. A história prossegue no verso da página, para quem a des-dobrou. É uma bela edição. Segundo a conta dos editores, trata-se da centésima vigésima-terceira.

Há uma dedicatória, de Sterne, no início do livro, mas outra ao fim do capítulo 8, assinada por Tristram Shandy. Ele diz, no início do capítulo seguinte, que não a fez para ninguém, “mas que é, honesta e verdadeiramente, uma Dedicatória-Virgem, jamais provada por qualquer ser vi-vente”. Está à venda, ele acrescenta, a quem quiser com-prar, e passa então a fazer o elogio da qualidade do pro-duto.

Mais adiante, no capítulo 12, no qual se narra o desdo-bramento da história de um pároco chamado Yorick (sim, possível descendente do bufão da corte dinamarquesa que inspirou o personagem de Hamlet, o que é um interessante caso de genealogia ficcional), outra intervenção gráfica: duas páginas em preto, sinal de luto pela morte de Yorick (na edição inglesa mencionada anteriormente, a solução foi reproduzir duas páginas com letras encavaladas umas sobre as outras, de modo que se torna impossível a leitura; uma das vezes em que a solução gráfica da edição brasi-leira parece estar mais bem resolvida...).

Mais adiante ainda, no capítulo 36 do terceiro livro, há uma página que reproduz a cor (e a forma irregular) do mármore. Não deve ter sido simples fazer as primeiras edi-ções do livro, numa época em que essas extravagâncias deviam requerer um tipo especial de tipógrafo disposto a enfrentar o desafio.

No quarto livro, falta um capítulo, o de número 24. Um espaço em branco fica no lugar e no início do capítulo se-guinte, 25, se faz menção à ausência: “Tampouco o livro se tornou mais imperfeito”, ele comenta, “o mínimo que fosse”.

No capítulo 38 do sexto livro, um espaço em branco é deixado para que o leitor desenhe a própria versão da vi-

eXoRBitante

4 eXcessivo

Vida é interrupção, não continuidade e fluência. Laurence Sterne atacou a jugular do pensamento de Heráclito e se alinhou a Zenão na hora de produzir para-doxos. Por um lado, a narrativa de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy não avança. No capítulo 14, de-pois de ter colocado em cena uma boa quantidade de po-tenciais interrupções no fluxo da história, o narrador insis-te em dizer que contou quando nasceu, mas falta contar como. As interrupções, ele sabe, tendem a aumentar, não a diminuir. Ele se declara disposto a não ter pressa, “mas antes seguir pausadamente escrevendo e editando dois vo-lumes de minha vida por ano”, algo que pretende continuar a fazer, admite, enquanto for vivo.

A narrativa não avança, mas também não termina. A obra se bifurca numa série de caminhos vicinais para se oferecer como árvore de possibilidades a serem explo-radas, obra infinita que só a morte será capaz de deter. Sterne deu corda, muita corda, à máquina narrativa infi-nita.

A certa altura do capítulo 13 do quarto livro, o narra-dor faz uma reflexão a respeito do andamento da história. Passou-se um ano desde que começou a escrever, ele re-corda, e ainda está no primeiro dia da própria vida. Ele não avança como os outros escritores, admite. A conclusão?: “Quanto mais escrevo, mais terei de escrever—e, por con-seguinte, quanto mais vossas senhorias lerem, mas vossas senhorias terão de ler”. Mas isso, em absoluto, o desanima. Pelo contrário. “Vejo que viverei, escrevendo, uma vida tão boa quanto a levo vivendo; ou, em outras palavras, viverei duas vidas excelentes a um só tempo.”

A questão que muito se discute entre os críticos, de sa-ber se o romance estaria ou não completo, é inútil. O ro-mance foi feito para ser obra aberta, para não ter fim, para multiplicar infinitamente a possibilidade de não concluir. Seria bobagem querer colocar algo conclusivo no roman-ce. Esperar um fim é vão. As ramificações sugeridas por Laurence Sterne continuam a frutificar até hoje e suponho que ainda vão render por muito mais tempo.

úva Wadman (ela é a pretendente que talvez consiga con-quistar a mão do tio Toby), descrita como alguém cheia de concupiscência. Dois capítulos depois, são desenhadas quatros linhas que têm o objetivo de mostrar como a obra avança numa “linha razoavelmente reta”. Elas são como se segue:

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G E N44

e n s a i o

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T E Para o jornalista francês Jean Lacouture a fotografia é o ofício de caçadores de ima-gens. Eis fotógrafo a mos-

trar-se como homem da câmera que se confronta com as exigências de, como se diz, estar no lugar certo na hora certa. Aproxima-se vertigino-samente da presa, o caçador. Quer, antes de capturá-la, conquistá-la. E não é difícil de se imaginar esse pro-cedimento meticuloso quando dian-te dos retratos de Christian Knepper — fotógrafo de 42 anos que nasceu na Alemanha, mas decidiu adotar o Brasil como residência em 1989. Há duas décadas Knepper tem percor-rido diversos territórios do país em busca de famosas paisagens e rin-cões isolados menos conhecidos. No ensaio que o leitor terá a oportuni-dade de acompanhar nas próximas páginas, percebe-se um Knepper observador, devidamente atento aos sinais lançados por personagens que frequentam a Universidade de Brasília: o músico que agarra deli-cadamente o próprio instrumento, a jovem que se equilibra durante uma atividade circense, o estrangeiro que sente saudade da pátria longínqua. É como se os corredores do campus procurassem as lentes do fotógrafo para, enfim, mostrar segredos ou-trora ocultados. Lá estava Knepper, de olhos — e obturador — abertos. Sorte a nossa.

Paulo Renato Souza Cunha

Ensaio christian Knepper

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1. Zeferino Forte Ramos, 19. Tabatinga. Indígena da etnia Ticuna (AM) está há cinco meses em Brasília, estudando ciências biológicas na UnB

2. Osvade Atacla (19) e Corneille Alodji (22). Benin. Ambos estão há oito meses no Brasil. Estudam letras para depois se formar em agronomia na UnB

3. Magno Assis, 49. Coordenador de arte e cultura da Diretoria de Esporte, Arte e Cultura (DEA-DAC) da UnB. Nas fotos, Assis “desfila” pelo minhocão o personagem Rei Vaxx, criado há 15 anos. Ele é o idealizador do Projeto Tubo de Ensaios, que acontece anualmente na UnB

4. Natália Maia, 19. Brasiliense. Estudante de artes cênicas na UnB. Dá aula de teatro e é performer

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5. Elias Filho, 19. Brasiliense. Formado em pedagogia e letras pela UnB. Estuda música — violino e violoncelo

6. Bárbara Cabral, 22. Brasiliense. Cursa audiovisual e é cinegrafista da UnB TV

7. Grupo Circulação. Natália Maia (19), Ramon Lima (20), Tiago Melo (19) e Mike de Brito (20). Todos são estudantes de artes cênicas da UnB. Nas fotos, a performance Cinzas, na 12ª Edição do Projeto Tubo de Ensaios

8. Diana Poranga, 26. Brasiliense. Formada em artes cênicas pela UnB, participa do grupo de teatro Ata

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9. Renata Carneiro (20) e Mariana Resende (22). Brasilienses. Renata estuda economia na UnB e faz aulas de circo no CO há um ano. Mariana é estudante de engenharia florestal e frequenta as aulas de circo há dois anos

10. André Mechica, o Montanha, 26. Brasiliense. Designer, empresário e customizador de motos. Frequentador da UnB como aluno ouvinte de aulas de fotografia e desenho

11. Fatima Carlos Barbosa, 23. Guiné Bissau. Veio há quatro anos para o Brasil e estuda ciências biológicas na UnB

12. Marley Medeiros (24) e Luciano Caesar de Oliveira (24). Marley é goiano, estudante de filosofia na UnB, músico e faz aulas de circo no Centro Olímpico (CO) há seis meses. Já Luciano é brasiliense, estudante de artes cênicas na UnB, também é músico e há um ano frequenta as aulas de circo no CO

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Existem quatro tipos de vírus responsáveis pela dengue, que causam quadros clínicos semelhantes. Eles apresentam na estrutura interna uma proteína essencial para se replicar — a NS1

Desenvolvido há três anos nos laboratórios de Biologia e na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o kit é formado por antígenos dessa proteína, que são comuns aos quatro tipos de dengue

Atualmente, esses antígenos são multiplicados com a injeção do vírus da dengue em cérebros de camundongos. No kit, a novidade é que essa multiplicação acontece com a ajuda da biotecnologia. O procedimento utiliza o baculovírus Ainda falta aprimorar alguns

pontos do sistema. Incluir o diagnóstico para o vírus tipo 1 e não identificar doenças como sarampo, febre amarela e rubéola são modificações a serem feitas. O ideal é que seja específico para dengue Em seguida, os antígenos são transferidos para uma placa

de Elisa — uma pequena placa retangular de plástico, contendo 96 cavidades. Se o paciente estiver com dengue, o soro se torna colorido

Apesar de um estudo de custo ainda não ter sido feito, Raissa acredita que o protótipo criado na universidade estará mais em conta que os comerciais, por serem importados

Antígenos são toda partícula ou molécula capaz de iniciar uma resposta imune e estão presentes em altas concentrações no organismo de doentes durante a fase inicial

Reportagem ingrid BorgesIlustração lucas Pacífico

o Q u e e u c R i e i P a R a v o c Ê

Estudante da UnB desenvolve kit capaz de dar diagnóstico precoce de dengue

anteciPando o tRatamento

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Existem quatro tipos de vírus responsáveis pela dengue, que causam quadros clínicos semelhantes. Eles apresentam na estrutura interna uma proteína essencial para se replicar — a NS1

Desenvolvido há três anos nos laboratórios de Biologia e na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o kit é formado por antígenos dessa proteína, que são comuns aos quatro tipos de dengue

Atualmente, esses antígenos são multiplicados com a injeção do vírus da dengue em cérebros de camundongos. No kit, a novidade é que essa multiplicação acontece com a ajuda da biotecnologia. O procedimento utiliza o baculovírus Ainda falta aprimorar alguns

pontos do sistema. Incluir o diagnóstico para o vírus tipo 1 e não identificar doenças como sarampo, febre amarela e rubéola são modificações a serem feitas. O ideal é que seja específico para dengue Em seguida, os antígenos são transferidos para uma placa

de Elisa — uma pequena placa retangular de plástico, contendo 96 cavidades. Se o paciente estiver com dengue, o soro se torna colorido

Apesar de um estudo de custo ainda não ter sido feito, Raissa acredita que o protótipo criado na universidade estará mais em conta que os comerciais, por serem importados

Antígenos são toda partícula ou molécula capaz de iniciar uma resposta imune e estão presentes em altas concentrações no organismo de doentes durante a fase inicial

“Este medicamento é contraindicado em caso de suspeita de dengue.” Se depender da tecnologia existente para identificar a doença, tal desconfiança apenas será confirmada depois de o vírus já ter passado sete dias no organismo. “Quanto mais cedo o diagnóstico, menor o risco de ter uma evolução do quadro.” Esse foi o raciocínio que conduziu o mes-

trado de Raíssa Allan Santos Domingues, defendido no final de 2013, e orientado por Tatsuya Nagata, do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB). A pesquisadora criou uma ferramenta capaz de reconhecer, em somente três dias, a infecção pelo vírus da dengue.

Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como problema de extrema impor-tância de saúde pública nos últimos anos, a dengue é uma doença de origem viral que afeta mais de cem países. A OMS estima que cerca de 50 a 100 milhões de novos casos de infecção ocorrem pelo mundo a cada ano, resultando em 250 mil a 500 mil ocorrências de dengue he-morrágica — cerca de 25 mil mortes anuais.

No Brasil, até setembro de 2013, foram registrados mais de 1,4 milhão de casos suspeitos, um aumento de 54,6%, se comparado a 2010. De acordo com dados da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, o número de casos da doença subiu 749% no DF, passando de 1.349 confirma-dos em 2012, para 11.459 até novembro do ano seguinte.

São duas as espécies responsáveis por transmitir a doença: o mosquisto Aedes albopictus e o Aedes aegypti, mais conhecido. A infecção se manifesta de duas maneiras. Na dengue clássica, que raramente mata, mas afeta crianças e adultos, os sintomas são de febre, dor de cabeça, no corpo e nas articulações. Na forma hemorrágica, o quadro clínico se agrava bruscamente, apresentando sinais de insuficiência circulatória — o que pode levar o doente à morte em até 24 horas.

Para combater a dengue, é preciso entender o ciclo da doença. Em um primeiro momento, a fêmea do mosquito deposita os ovos em ambientes onde encontra água. É nesse habitat pro-pício que então eclodem esses ovos. As larvas permanecem no líquido ainda por cerca de uma semana. Após esse período, tornam-se mosquitos adultos, prontos para sair atrás de alimentos e parceiros para reprodução.

Segundo a estudante, o grande diferencial da ferramenta é a capacidade de identificar a infecção em tão pouco tempo, o que possibilita melhor resultado no decorrer do tratamento. “No Brasil, o controle da doença é ineficaz, então, quanto mais cedo o diagnóstico, menor a probabilidade de se ter dengue hemorrágica”, explica. Além disso, se comparado às técnicas que existem no mercado, a ferramenta criada pela pesquisadora é mais eficiente para detec-tar o vírus tipo 4, que ficou 28 anos sem aparecer no Brasil e voltou a circular no país em 2011.

A ferramenta continuará sendo projeto de doutorado da aluna, que irá ao Rio de Janeiro para continuar aperfeiçoando o estudo. Flávia Barreto e Monique Lima, da Fiocruz, e Daniel Mendes, estudante de biologia da UnB, também participaram do projeto.

eu faÇo ciÊnciaQuem é o pesquisador: Raíssa Allan

Santos Domingues concluiu o curso de ciências farmacêuticas em 2011

pela Universidade de Brasília. Em 2013, tornou-se mestre pelo curso

de patologia molecular pela mesma universidade, no Laboratório de

Microscopia no Instituto de Biologiatítulo do projeto: Desenvolvimento de

um teste sorológico capaz de detectar anticorpos anti-NS1 de vírus da Dengue

Quem orientou: Tatsuya Nagata

anteciPando o tRatamento

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márcia duarte Pinho: professora adjunta do Instituto de Artes da UnB

Brasília. Teatro Nacional. Sala Martins Pena. Três focos de luz no palco e três mulheres seminuas, trajadas apenas com pa-nos vermelhos encharcados de água. À primeira vista: uma luta entre corpo e objeto. Depois, os movimentos naturais da for-

ma humana transformam-se em dança marcada pela precisão rítmica, improvisações e muita emoção. Essa é uma das diversas lembranças deixadas pelo espetáculo que levava o nome do grupo EnDança, cole-tivo brasiliense de dança contemporânea idealizado por Luiz Mendonça em 1980.

Durante período crítico para o país — a ditadura militar —, nossa geração dedicou-se às experimentações e à pesquisa de maneiras de expressar-se. Calcado na proposta do movimento, o grupo conseguiu traçar o próprio caminho. Saímos da região Centro-Oeste e fizemos nome internacionalmente. Ainda hoje, recordo-me de um papel en-velhecido pelo tempo, mas de valor inestimável: uma crítica sobre o EnDança, publicada em 1991 pelo The New York Times. Acho que somos privilegiados. Chegamos aos palcos do Festival Carlton Dance — que procurava convidar ao Brasil diversas companhias de vanguarda — e fizemos apresentações com gente do mundo inteiro.

Naquela época, enquanto a galera do rock representava a música da capital Brasil afora, nós levávamos a dança para os principais palcos do país. Durante os 15 anos de trajetória, a UnB foi a grande incentiva-dora da ideia, uma espécie de terreno fértil que fez o projeto acontecer. Giselle Rodrigues e eu fazíamos educação física e tínhamos uma rela-ção muito íntima com a universidade. Até nos pontos de ônibus inven-távamos coreografias. Queríamos uma ruptura estética, uma forma de transgressão da dança e, aqui, tínhamos liberdade para isso — embora estivéssemos sob a pressão dos militares.

Nosso grupo tinha a alma do criador, Luiz Mendonça. A liberdade que a estrutura física da UnB nos oferecia, além da juventude, inspira-vam as experimentações e as possibilidades do corpo em espaços pou-co utilizados pelas companhias de dança. Explorávamos com exaustão a engenhosidade do movimento e somávamos aos gestos cotidianos às experiências sensoriais. Acho que consegui trazer o lado feminino para a cena por meio de uma construção dramática.

Tivemos uma trajetória cheia de grandes realizações e não podemos desvinculá-las da universidade. Recebemos premiações, patrocínios, participamos de festivais renomados e, principalmente, reconhecimen-to dentro da história da dança contemporânea. Em 1995, o EnDança encerrou o próprio ciclo. Entretanto, a memória permaneceu. Sem dúvi-da, a UnB sempre estará nas recordações dos artistas que fizeram parte da companhia durante a curta, mas prolífica existência.

e u m e l e m B R o . . .

saiBa maisPara ler

Em 2014, será publicado um livro de fotografias

sobre a trajetória do grupo EnDança. O projeto

tem apoio do programa nacional O Boticário na

Dança e colaboração de Yara de Cunto.

No ritmo da universidade

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Mila

Pet

rillo

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