danilo arnaldo briskievicz - rl.art.br · todo dia é uma transição insistente ... não, não...
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danilo arnaldo briskievicz
1
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ
1ª edição
EDIÇÃO DO AUTOR Belo Horizonte –MG – 2014
2
“Aonde vim parar, meu Deus?
Estou cercado de vulgaridade por
todos os lados. Gente enfadonha,
vazia, potes de cerâmica com creme
azedo, jarras com leite, baratas,
mulheres tolas... Não há nada mais
medonho, mais ultrajante, mais
deprimente do que a vulgaridade.
Fugir daqui, fugir hoje mesmo,
senão vou ficar louco!”
Anton Tchekhov,
O professor de letras, 1894
3
INTRODUÇÃO – O TEMPO DA ERA, ERRA
4
Mera era
o tempo impera
de era em era, fera
o tempo tempera
o tempo persevera
de terra em terra, leva
o tempo mera era
5
PARTE I – MERO DIZER SOBRE A ERA
6
Chão
espalhei-me no chão
veio: memória de infância
no chão tem sempre tempo
outro: os dias se vão
vão, se vão, e chão
e abraço e amor e paixão
queria no chão: infância
posta feito doce bom
7
Encontro
quando me visito
desinstalo o sigilo
guardo em mim tanto
pudera ser menos, pronto
quando me sacio
comigo em sinceridade
lavo a alma tanto
pudera ser outro, mesmice
encontro
8
Jequitinhonha
pingo de rio
saído no frio
jequitinhonha nasce
onde a coruja pasce
serpenteia na cheia
lindo, jamais arqueia
vai de ponto a ponto
aonde olho vejo ponte
passa na minha alma agora
desde pequeno é tempo, hora
9
Pelos lados
eu fui levado ao fundo
do poço, onde o mundo
tolo, possuía outro:
eu era mentira
eu fui jogado
para escanteio e o mundo
jogo, possuía tudo:
eu era descartável
agora sei: entre o fundo
e a lateralidade em ângulo
posso, ser para mim, pleno
o meu vazio só, é cheio de mim
10
[Ente]ndo
o tempo marcou, hora
eu também, bobeira
e entre beira e eira
fiz apenas: certeza
a vida é o tempo
o ser é o sendo
o ente, entendo
sou apenas: leveza
11
Cisma
quando vejo o céu
percebo, dentro
a distância longa
entre o mim e o eu
a vida é jogo
se dou voltas
vou longe, sei
um dia logo,
voltarei
12
Volta
voltar ao tempo
do ido
bem feito, vivi!
doído
deixar o tempo
de lado
bem lindo, li!
lívido
o que custa
o tempo: a cura
custa e dura
um dia apenas...
13
Ninho de coruja
a coruja na madrugada
acordou meu sentido
de noite alta: falta
seu corpo para esquentar
a passagem de lua
para outra lua, crescendo
ou diminuindo em luz:
acordo comigo de novo
14
Corte de tempo
a melancolia me rodeia
e tira para dançar: lanço
o olho de dentro para lance
distante e vou eu embora
para o interior de outro mundo
paralelo mundo de transversais
não há elo forte: melancolia é
assim mesmo: corte de tempo
15
Muito longo tempo
depois eu volto
antes, não posso
deixa depois
ser longo tempo
preciso de horas
para passar em mim
o seu fluxo contínuo
estático, interior
depois eu desloco
outra emoção, a mesma
pulsa em mim há tantos
anos: depois eu volto
16
Ai
o fim da vida
parece início
sempre um ai
de saber nada
um frio na espinha
um temor de vazio
uma lagoa funda
uma estrada torta
o fim é ai
o início é ai
ai de mim:
ai de nós
17
Resumida palavra
monossílabos
sim, eu amo os monossílabos
não, eu não amo os monossílabos
resumida palavra: eu
18
Reencontro
nem bem rolava sobre
seu corpo de um lado para outro e era
hora de deixar seu calor para sempre
como se todo dia fosse pouco tempo
queria seu corpo em eras imortais
mas o tempo passa nas almas em corpos
substituídos de outras cenas e por isso
tenho apenas uma pista: seu calor eterno
busco em todas as vidas ao meu lado
o calor de sua alma aquecendo misteriosamente
todos os corpos por onde se aloja, eu sei:
um dia minha medida vai dar em sua temperatura
19
Minha cidade
minha cidade: o que tenho contigo
além da sabedoria das horas do dia?
trazer tua poeira na alma, de chão
pisado para me erguer como pessoa
estar vivo em suas estações, em anos
passados entre interior meu e mundo
viver sobre teu teto natural, em céu
de alegria constante no azul que cura
tenho tanto contigo: minha cidade
além de mim tuas horas me deram:
além de mim
20
Pobre eu mesmo
a escadaria da santa rita
me devolve quem sou, de fato:
pobre homem no tempo e no espaço
passando pela realidade das coisas
da forma possível de ser, sendo
pobremente o que estou agora, farto
de tentar me dar a riqueza das horas
e das eras: mero engano – o tempo
apenas tira de mim o que era
agora ficam apenas os fatos, raros
momentos de ser nas eras o que era:
eterno começo, pobre início se sempre
21
Sol e lua
nenhum sol é à toa:
por causa dele há dia
a borboleta surge
e voa
nenhuma lua à toa:
causa seu giro noturno
a maré para os peixes
tão boa
22
Entediado
podia vir a hora tardia
para dormir em paz a noite
mas: não há pausa interior
os sons de dentro estão altos
e gritam entre as paredes da alma
passado, passado, passado e então
fico entre o tempo do descanso e
o tempo do tédio, entediado
23
Intervalo de eras
a noite estaciona o tempo na ladeira
o peso de séculos arqueia o horizonte
(talvez a volta ao mundo seja possível
por causa do peso imenso das eras)
o homem e a mulher em anonimato se amam
a geração nova ainda não existe mas virá
(talvez a fecundação da mulher seja provável
por causa do amor em suas entranhas)
o bicho de asas e o bicho de pelos noturnos
imploram como eu o ciclo da vida recente
(talvez o alimento para manter a vida exista
por causa da natureza das coisas vivas)
a vida é um intervalo de eras
24
A cor do dia
a cor do dia
se associa
fundo azul
alegria
a cor do dia
se fantasia
carnaval
sacia
a cor do dia
se envolvia
mistura fina
nascia
25
Pulação
enquanto eu vejo há horas
quando adormeço
desapareço
enquanto eu pulo há cordas
quando imobilizo
tranquilizo
26
Alma do mundo
a noite atravessou a alma do mundo
a minha, no mundo, então: travessia
todo dia é uma transição insistente
a lua iluminou a face do mundo
a minha, na terra, então: luzia
todo dia é uma iluminação constante
27
Cama e maca
deixo-me inerte na cama
oito horas inteiras
quando retorno:
ainda sou
deito-me inerte na maca
um minuto inteiro
quando levanto:
ainda sou
28
Enquanto
enquanto houver palavra
defino-me
enquanto houver lavra
cultivo-me
enquanto houver ala
perfilo-me
enquanto houver pá
aprofundo-me
29
Esfera de tempo
o mundo é a esfera das horas
giro em torno delas e vou
em estações, revirado
revirando-me
o mundo tem alma de passado
o futuro não lhe comove
é distração, passageiro
passando
eu no mundo sou apenas
estar no mundo e basta
não me incomodo em ser
sendo, sou com o mundo
30
Por hora
por hora
sou apenas moda
passa, depois
fora
por tudo
sou apenas nada
faço, depois
mudo
31
Hoje o dia acordou belo
hoje o dia acordou belo: repleto de silêncio
pois o silêncio sempre abraça o interior meu
dia de beleza desde cedo quando vi a luz da paz
espraiar-se sobre o passado que insistia em pulsar
hoje o dia acordou belo: repleto de mim mesmo
como um primeiro oxigênio invadindo o nascimento
dia de leveza desde a primeira hora matinal
deixar-se ser apenas flutuante no mundo
em calma navegação
alma navegação
negação
ação
32
Nascimento
o nascimento, primeiro, não foi nascimento
de fato: foi apenas parto, hoje farto
renasço, renascendo, faço
renascimentos
não, não nasci no parto, surgi em ato
no mundo tanto de tanta gente farta
eu sei que o mais importante
foi depois: reparto
nascer de novo, outra vez, rolar dados
sem medo, assumir o erro, do erro, dado
não se importar com o orgânico, organizar-se
de novo, em tantos fatos, dados: nasço
e me traço
33
Poesia em piano
o piano sem voz
os dedos tem força
de garganta aberta
certo: ouvi sua alma
em piano de calda
metálica tecla
saudade eterna:
seus dedos
deixaram digitais
no tempo, meu tempo
de lembrar-me ao seu
lado em noite de lua
cheia... sons nossos
nossos suores são
outros sons na noite
eternamente
34
Inútil jamais
depois eu me perguntarei
se valeu a pena tanta espera
de mim – chegar até mim
caminho difícil
inútil, jamais
35
Tudo, tudo
nem a noite fria
nem a lua cheia
nem a voz leve
nada, nada, nada
me fez encontrar
o que procurava
fora de mim: dentro
tudo, tudo, tudo
36
Signo
não escrevo versos em alemão
me espalho em versos, chão
e rolo por sobre palavras
em português misturado
em eras e eras do tempo
meu verso sai misturado
com o mundo: palavra
é signo temporal
37
Míssil
incrível
acreditar
no míssil
ele não mata
ele explode
apenas
a morte é outra
outra coisa
apenas
incrível
acreditar
no fim
38
Vida e ser
ao invés de mim
havia outro, ali
era a superfície
do que chamamos
vida
ao invés de mim mesmo
havia outro menos
era apenas rapidez
do que chamamos
ser
39
Highway
estrada nunca acaba
passa, sim, a hora
de achar-se no rumo
enfim: caminho
há longa rota traçada
o mundo tem mar, céu, terra
achar-se nem sempre é fácil
assim: dentro
40
Cheio
vazio no dia, nem frio, nem calor
estado interior de alma no tempo
o cheio foi ontem, passado, dado
agora, em frente, respostas vagas
fui o mesmo até agora, cheio, sim
cheio de mim mesmo, agora quero
outro, vazio para ser de novo
essencialmente, mutante em mutação
41
Biológica
a rosa na janela vive vida intensa
ser apenas sendo a si mesma: biológica
eu não sou rosa, nem tenho essência lógica
meu interior tem rumos estranhos, entenda!
42
Sustentação
o chão da floresta
não é o que resta
antes, renasce
faz festa
o chão da casa
não é o que cansa
antes, sustenta
pra dança
o chão do querer
não é o que é
antes, mudando
faz ser
43
Repulsa
o coração pulsa
mas a alma, antes
pulsa, toda
tola
a alma sente muito
como eu sinto tanto
quando expulso de mim
sentimento todo
o coração expulsa
se a alma repulsa
realiza: há ser
fundo no corpo
44
Não compreendo sua alma
não vou brincar com seus sentimentos, belos, inclusive,
não tenho pretensão de ser outra pedra de tropeço no
seu insuportável desespero
não vou atrapalhar sua ida ao fundo de seu desejo,
abjeto, quarto de despejo, de lixo inteiro, não quero
ser descartável ensejo
fique como quem fica extasiado
diante de alguém já amado
não compreendo sua alma
45
Rua
Intrigante cena. Quando saio de casa
volto com a casa cheia de ideias, cores,
palavras e gentes, queria: apenas
casa vazia.
Perpétua cena. Quando entro em casa
trago memória do vento em pele, poros,
assuntos de clima, queria: fosse
casa vazia.
46
Velha ossatura
o músculo sobre a ossatura
era apenas moldura do tempo
hoje os ossos de dentro
revelam: hora de ir embora
a cada osso evidente, cotovelos
joelhos, dentes em amarelo intenso
tudo isso que vem de dentro
eu sei bem, tempo: estou velho
47
A volta dos ponteiros do relógio
a volta dos ponteiros do relógio
de qualquer relógio do mundo
nunca volta quem sou eu
eu me perco no tempo
não convém tentar conter as horas
nem antecipar o que virá, o ponteiro
não é metafísico, antes, natural
me contém num ciclo linear
o tempo não é bobagem
é imagem do ser no tempo
o signo de mim mesmo
dentro: é o que resta,
sempre
48
Esquecimento
talvez depois do almoço eu volte
a sentir o que ontem eu sentia
(e sabia que sentia e hoje
por força das circunstâncias
acabei me esquecendo do que
eu deveria saber que sentia)
perdão: eu prometo que a memória
um dia voltará a nos encontrar
amáveis e amando outra vez
(por enquanto preciso ficar só
esquecido de que fomos dois
esquecido de que fomos nós)
49
Certo do verso
a largura do verso
vai da profundeza
da alma do sujeito
lendo o reverso
(o certo nem sempre
aparece no verso)
50
Em-si
não sinto o peso do teto
da estrutura em cimento
com veias de aço
sinto apenas pena dele
um peso se saber-se
pesado
51
Cheiro de fumo
o cheiro da rua se impõe
como se obrigam os olhos
a olharem o chão
o fumo em rolo da venda
espalha pelo ar
o pito
fumaça espalhando
cheiro de mato
no mato
até que se vê quem de fato
consome: puramente no dia
aquela fumaça em cheiro
homem da roça
52
Cheiro de açougue
as partes dependuradas
da dor dos bichos
presos
sempre
uma rapadura no canto
denuncia o ciclo
nascer
morrer
a rala em branco forte
substrato do queijo
tem sal
tem biscoito premeditado
no açougue da esquina
o cheiro de morte
e de vida
são fortes
53
Cheiro de couro
na selaria o cheiro de couro
relembra a fazenda que não tive
apenas em torno dela
vivi a infância
minha cidade tem fazenda na alma
o leite, o queijo, a carne, os costumes
a voz das almas da maioria se ouve
em tom de nostálgica ruralidade
nunca montei em cavalos com sela de couro
mas sei bem o que significa para todos
o barulho das ferraduras no calçamento
anunciando as trocas entre campo e cidade
o cheiro do couro tem passado e presente
e me envolveu na tarde de rodoviária lotada
de homens e mulheres e crianças tantos:
difícil não voltar à infância...
54
Cheiro de sorvete
este não senti, só me lembrei e era domingo
quando meu pai me pegava pela mão
e íamos até noquinha da churrascaria
comer pastel folhado e na taça de metal
anos cinquenta, sorver o sorvete de creme
(por essa época não havia a mania de menino
comer chocolate e morango, nada disso)
em delírio de tempo parado
os domingos se foram, tantos, fiquei eu
sentindo até hoje, em domingo, cheiro
de sorvete de creme em taça de metal
de noquinha da churrascaria...
55
Noite de férias
Noite de férias não tem gato no muro
eles estão, como, eu, amparados
pelo calor de algo, de alguém
na casa, na cama
ou para além de si mesmos
perdidos no calor do pensar-se
ah, pensar! tão indispensável
como calor nas férias de julho
56
Prisão
a prisão da noite é o sono
vou para dentro dele
e me guio por mim
preso em mim
tão preso, tão solto
tão perto, tão longe
pesado, leve
bom, ruim
grilhão tão forte
arrasta-me até outro dia
e me solta nele, outro
preso à realidade
57
Lua fria
olho a lua na noite fria
sempre distante, linda
mesmo, bela, feita luz
para a escuridão
feitio de inverno, chão
erigido, rosto do sistema
solar, não, lunar sou
quero lua todo dia
58
Amor e canção
sozinho me resolver
para poder estar bem
dentro e sorriso nascer
em ramas para fora
o mundo não quer
problema, quer solução
eu também: quero música
quero amor e canção
59
Sonho
o sonho me leva para onde quiser
eu vou, obedecendo a imagem
e ao som eu penso: verdade
mas não: o sonhos apenas
uma entidade passando por mim
deixando o rastro perene da ação
tola ação, sujeita ao esquecimento
dela e também de mim: sonho é tolice?
60
Barco
o movimento dos barcos na noite
como eu em balanço: criou ondas
mas ondas não são da alma
são do mar e o mar
não sou eu agora, sou mais
agitação completa de estar
no mundo, em alma cheia
de ventos de tempestade
prenúncio: mudança
nova dança das horas
outro movimento
outros barcos
61
Escada
estou no meio da escadaria
que vai da praça joão pinheiro
ao alto da santa rita - linha do tempo
meio da vida
antes, passando, o passado
agora, meio, estando
depois, fim, finalizando
tudo evoluiu
62
Hora e tempo
em volta, hora e tempo
em torno, hora e tempo
em tudo, hora e tempo
em vida, hora e tempo
63
Futuro
eu me sujo de passado
no dia pleno de novidade
e assim a vida segue: lama
por lados de mim
eu me inundo em lembranças
de ontem, anteontem, jamais
fico por dentro em redemoinho
por dentro de mim
queria a noite me desse apenas
futuro, futuro, futuro
64
Visão de dentro
vejo-me dentro
centro, visada
periferia, ousada
sei o que sou
em sendo, nada
em tendo, pouco
em cheio, vazio
em mim, fora
65
A noite é apenas uma contravenção
a noite não me dá nada
nem sentido, nem motivo
tira, como quem tira fácil
o sorriso tolo do dia
a noite não sabe de mim
nada, nada me coube assim
dentro do tempo de ser eu
a beleza é a nostalgia das horas
a noite não me quer pronto
sempre acabando de ser outro
deixando de ser o que fui
estou certo da incerteza
a noite não me cospe na cara
me deixa ao próprio desamor
fluindo saudade de tempo outro
em que a luz era tão certa que me guiava
a noite não rejeita, tolo eu
ela apenas me despe levemente
para sentir o frio do corpo fútil
passando como as luas em fases postas
a noite é apenas uma contravenção
66
Total imobilidade
passei os olhos na fotografia
a primeira que me aparecia
revelação, nenhuma: eu era
eu mesmo em outro tempo
memória do cheiro, não tenho
da fase da lua, não sei mais
se era verão ou inverno, não capto
sei apenas de mim em outro tempo
em total imobilidade
67
Calma
talvez, resolva, amanhã
por agora, não quero
mexer no tempo bom
de ser calmo
a alma quer
calma
alma
calma
68
Terra vermelha
a terra vermelha me faz bem até hoje
seja no beco em calçamento descascado
em inverno de noite de tremer os ossos
e se embrulhar na barriga da noite mãe
o tom de vermelho varia se é noite
e intensifica se é dia mas não me assusto
a poeira do tempo passa dentro da memória
e me sinto em casa, como em aldeia
o móvel limpo não fica e resta apenas
limpeza mas eu menino nunca tive problema
a rua me sujava de mundo e imundo para casa
encontrava as mãos de minha mãe para limpar-me
a terra vermelha tem redemoinho de vento
e se o diabo ali passa, dá azar a quem escreve
o nome no muro: o muro cheio de nomes eram escritos
em pedras vermelhas... sujar as mãos de letras
memória afetiva de deus e do diabo
na terra dos fazendeiros de mãos ásperas
eu nuca fui como eles: sempre cultivei
na alma letras de vermelho intenso
escrever é chamar dissabores
69
Coaxo
nunca vi sapo na rua
sapo dá no brejo
ou no rio e lagoa
e minha casa era longe
demais de tudo isso...
pudera: quando dava o coaxo
em noite de frio intenso
no exato momento de acasalamento
e da festa dos bichos da noite
eu dormia e sonhava e fortalecia
a imaginação de sonho e voo
por cima de casas coloniais
70
Conveniência
sincero eu fui até a infância
depois aprendi que o certo
é ter medo do que penso
e passei a falar o que
convinha: as visitas são seres
merecedores de atenção vária
não podem receber a verdade
de criança desaforada
71
Mentira
eu me esforço
para ser eu mesmo
mas ninguém merece
saber se erro, outro
ser é aqui eu mesmo
não me sou certo, fujo
em catação de sentido
eu os tenho, saiba
mas não os digo, antes
calo em mim o que sou
para antes de dizer
te amo saiba:
minto sempre
72
Platão
eu me acostumei a ser eu mesmo
fora de mim, sei o limite, claro
até onde ir, como ficar, o que fazer
mas dentro sou livre, tão eu mesmo
mesmo perdido na circunstância
interpreto o outro e sei: dentro
sou o pensante, falante, submisso
apenas ao diálogo de mim
comigo mesmo: vivo em Platão
73
Ausência
então me cai você
de algum lugar
do passado interior
e fica bailando
por eternos minutos
em boca, em olhos
em tempo imortal
como lhe encontro
quando menos espero
e se espero não sinto
é o improviso: me dá
a exata dimensão sua
absoluta ausência
74
Olhar perdido
olhos
nos meus olhos
seus olhos
pronto: eternidade
olhos
nos seus olhos
meus olhos
pronto: ansiedade
nos olhos nos vemos
ou nos perdemos
75
Mesmo em ouro preto
focar os olhos
dentro da neblina
para ser olhos
fechados no mundo
neblinei-me ontem
e dentro ficou tanta luz
tanta clareza
tanta certeza
o melhor está por detrás
do tempo de frente é futuro
o melhor é junto, presente
pressinto alegria mesmo
em ouro preto
76
Interna
oculto aos olhos
nada fica, sei mesmo
por tanta nuvem
há sol
se há sol
haverá lua
mesmo no meio
do temporal
nada me é estranho
agora, então, nada mesmo
depois da sombra dos dias
reluz algo: interna luz
77
Primeiro verso
último verso se dando
desde o primeiro, tanto
vou sem saber quanto
se deu em lua ou dia santo
último verso e pronto
se é último, sem pranto
78
Tarde sepultada
a tarde sepultada, vai
para onde vão os sonhos
da manhã quando acordando
queria tanto do que se vai
a tarde não fica, sai
como partiu de mim o som
da voz deixada em ouvidos
tantos, que me traem
a tarde se acaba
fria como a rua
deserta do dia
expulso do tempo
79
Tessitura do silêncio
o silêncio tecendo a vida
acontece o interregno entre
uma coisa e outra coisa, basta:
ausência é também realidade
o frio na barriga trazendo medo
o fato, mesmo não existido, talvez
seja, mesmo breve, tenha
consistência (como realidade)
80
Xamã
ficar
sem medo
sem receio
sem fome
sem sede
sem êxtase
sem tempo
sem vontade
sem futuro
ficar
apenas ficar
ficar
.............
81
Big bang: palavra
quando em poesia
entro em universo
paralelo
quando em poesia
entro em parafuso
difuso
quando em poesia
entro em decadente
elegância
quando em poesia
entro em risada
metafísica
quando em poesia
entro em miragem
sonambúlica
e de mim nada resta
fico à deriva da palavra
que me cata e forja
em mim, algo de mim
entrou e depois: universo
82
Eu não fui o que queria, mas fui eu mesmo
atrevesse ser mais
seria eu mesmo?
ou travesso sendo
seria o avesso?
83
Enquanto estiver frio
enquanto estiver frio
para além da janela do quarto
eu fico: entre livros e páginas
mortas de anos e tempos tantos
o frio me chama para dentro
onde nada há senão eu mesmo
e se outros querem me falar
palavras tantas são bem-vindas
enquanto estiver frio
para além da pele do corpo
eu resto: entre frases prontas
tantas, me aquecendo a imaginação
84
Fora
decidi: por fora
ser aqui dentro
fiquei com medo
sei: frio intenso
duvidei: acho pouco
ser de fora
aqui dentro
sei: o mundo muda
não mudei: estou
como estava ontem
eu mesmo
sei: sou permanência
85
Entediado
o tempo fechado, nublado
é nuvem única no céu
imensa nuvem encharcada
borrando de água o telhado
o tempo nublado, arqueado
lança ao dia outro estado
ficar em si, dentro enfim
deitado, ou simplesmente
entediado
86
Sem
o último verso venha
para saber completo
o sentido da história
o que fui, acabado
mas antes, se der...
venha a luz do dia
em sol de montanha
entre andorinha e outra
não quero escrever
o último verso assim
entre a chuva da noite
sem lua e o dia em chuva
sem esperança
87
Livro
o que há entre mim
e você, de páginas
abertas esvoaçando
palavras sem fim?
o que fica depois
saudade, e nada
ou, saudade de tudo
dito entre parágrafos?
88
Ilusão
vejo tão perto
mesmo desperto
o que em mim é
certo
nada mais é
que calor
em inverno
ao meio dia
é falso frio
na madrugada
de verão
do deserto
vejo tão perto
mesmo desperto
nada em mim é
concreto
89
Dia do vazio
separado de mim, em noite, dia
noite sem fim, dia longo demais
fico, agora, estático, diante
do espelho: não sou esta imagem
receio ser outra coisa, pulsante
dentro em outra imagem embaçada
e forte e viva e radicalmente
eu mesmo: não mudo, antes
fico, no tempo, perdido, tentando
encontrar em meio à noite de mim
um fio de luz... me conduza talvez
para outro início de mim mesmo
por certo: hoje é o dia do vazio
90
Rosto
no rosto, em tempo: vejo além
não que eu tenha poderes antinaturais
nada disso, compartilho, apenas:
seu rosto me diz muito mais de você
o contorno do tempo em torno dos olhos
o tremer delicado dos lábios em dúvida
(falar ou não é em você uma pressuposição
de tempo e espaço preenchido não preenchido)
a sobrancelha esquerda diferente da direita
em tamanho e em cor (minúcia do sol da cidade)
enquanto a voz se repte em torno de si mesma
buscando ouvir a certeza da dúvida antiquada
rosto é assim: apresenta a nós o si dos outros
91
Como Oscar Wilde
abria o dia
como um livro de Oscar Wilde
um retrato era a paisagem urbana
cobria meu ser de negação
de fato, a cidade, não se abre
emoldura, apenas, em ação, eu mesmo
negando a visão interior, bela ou não
a cidade: em torno da vulgaridade
92
PARTE II – AO ESTILO DA ERA
[QUANDO O POEMA DE AGORA SE MODELA
EM JORGE LUIZ BORGES]
93
Informação
A porta se abriu para o trabalho. Não hesitei.
Fui para um outro dia em rol de dias dados.
Nada se faz tão forte quanto a obrigação.
Então, trabalhar pode ser realmente necessário.
Não sei se minha alma sabe o que é ócio produtivo.
Talvez eu queira em meio à poesia das horas, ócio.
Quem sabe estar assim como estou me fazendo, melhor.
Não posso ultrapassar senão o limite do que é real.
Vou voltar à vida cotidiana. Sem ponto final.
Agora é momento de iniciar um dia: sem filosofia.
Aquieto-me questões. Faço pragmatismo. Faço rotina.
94
A era da vulgaridade
Antes, era apenas falar. Pensar, depois.
Agora, hoje talvez, fosse assim outra coisa.
Eu não fiquei silenciado por minha vontade.
É a vida em mim, sobressaltada antes, aprendiz de fato.
Não. Não me convém mais dizer sem aquele lapso.
O lapso entre o falante e minha retórica: tempo.
Não. Não falo rapidamente. Ouço e aproveito o ouvir.
Quanta bobagem se diz hoje em dia.
Dos velhos, pouca sabedoria.
Dos novos, nenhuma originalidade.
O mundo em volta me cala. Retorno: o vento.
A ventania me é mais saudável: me dá ar novo.
95
Não sei
Não sei. Não sei quanto. Nem o quê.
Nem poderia. Sou apenas cria da era.
A era é depois dela, verdade.
Em si, sendo, é realidade vesga e dúbia.
Não há certeza no que escrevo. Mérito aos poetas!
A era de agora, vivendo-a, sinto medo, torpe medo.
Não sei. Não sei nada. Nem quando.
Nem poderia. A verdade é um peixe no aquário.
O peixe está zonzo, encurralado, no tempo.
Pronto: eis o sinal definitivo do que sou: já era.
E se não sou mais uma nova era começou: pacto novo.
96
Talvez
Talvez minha sombra sobre o Viaduto Santa Tereza faça
algum sentido na tarde para um jornalista, para um
gari, para um estudante imbecil descendo para o centro
da cidade grande em tamanho de projeto arquitetônico.
Ou talvez nada faça sentido, pois. Sentido é
significado em palavra ou imagem. Semiótica vaga a
necessidade de ser útil para-o-outro. Sartre talvez
esteja errado e o certo seja o outro depois do nada.
Sai de casa para encontrar meu corpo vago. E vagueia na
horizontalidade do viaduto de concreto e veias de aço
em ferrugem carcomido. Não pretendo mais sentido: seja
este vazio apenas algumas letras jogadas no papel.
Talvez.
97
Morra, minha cidade!
A alma de minha cidade infantil (a lembrança do Serro
esculpiu em mim a nostalgia culpada de sempre estar
fora do lugar certo) é velha demais e nunca se
reencarnou.
Viva, sacrifica horas em eras tantas (mais anos de
existência que as contas de Nossa Senhora do Rosário) e
não faz festa pois não sabe o que é ser reencarnada:
precisa morrer.
Minha cidade precisa morrer para reencarnar-se. Sem
saber que foi. Que era. Que teve passado. Que foi
santa, pudica. Que foi velha. Precisa morrer para fazer
alma renovada.
Eu? Eu tenho que matar minha cidade todo dia em mim
para ser mais maduro (o que não sei se é bom ou ruim).
Em mim sobrevivem os erros da infância machucada de
dores idiotas. Nada mais: temos e devemos morrer um
dia. Eu e minha cidade.
98
Metafísica: Verdade ou Fado
A fissura da alma mostrou o avesso da vida.
Isso mesmo: a vida não tem nada de alma. É corpo.
Corpo não tem metafísica. Somente a alma. Sofro.
Se sofro, corpo? Não, se sofro, alma.
Corpo apenas repete o mesmo, senão morre.
Alma reescreve, ou tenta, por isso dolorida fica.
Na alma cabem todas as Verdades. Por isso, vazia dói.
A Verdade ou o Fado (como diria Pessoa): eis o de alma.
99
O lago das eras
Narciso teve lago para se olhar. Morreu triste.
Pulmões sepultados em água de dúvidas. Era feliz?
Devera ser. Pudera ser. Se fosse além de si mesmo.
Mas como ser além de si mesmo: tão belo moço?
A Beleza é Fado. A Beleza é Verdade. Há beleza?
Ou apenas há um sujeito pensando em Beleza e Verdade?
Narciso teve um lago inteiro para olhar.
Viu apenas a si mesmo e não as eras.
As eras na água retratadas. A água nunca é a mesma.
Por que seria a Beleza a de sempre?
Olhar a si mesmo. Sem visão periférica.
Narciso morreu por causa da miopia.
Chamem o oculista para o lago. Ou para Narciso.
Ou para as eras.
100
Andorinha
O dia na montanha começa com andorinha. Ninguém vê.
Mas quem veria andorinhas para nascer o dia? Eu.
E era inverno. E era de rara beleza ver andorinhas.
Andorinhas são azuis de matizes vários. São brancas.
Quando voam aos olhos são azuis e brancas. E cantam.
E eram tantas. Meu dia nasceu pleno de variedade.
101
O retorno do recalcado: gambá
Minha cidade natal (não se trata de dezembro) faz
madrugada com gambá na árvore. Ou galinheiro. Ou dos
dois se faz barulho de alta noite. Não importa: há um
bicho entre a madrugada e o acordar dos homens sérios.
Quem vê? A lua. Não sempre. A lua é de fases. Nem todas
as fases da lua interessa gambá. Tem fase de ocultar
qualquer desejo. Tem fase de clarear pé de jabuticaba.
Tem fase de eclipsar-se furiosa para alertar, carente,
os astrônomos.
Eu via também. Não como a lua em fases. Via corpos
mortos na manhã seguinte da madrugada fria. Os gambás
são seres da noite. Anoitecer no homem dá medo: o ódio
aos gambás é espelho do homem da montanha. Minha cidade
natal tem gambá morto por homem recalcado.
102
Folha seca: era
A era cai feito folha seca. Ou talvez não tão seca
assim. Mas digo: é tempo de ser outra coisa. Folha
caída é outra coisa; Não é árvore mais. Como o tempo:
ainda em era, válido. Depois: categoria histórica. Não
me compadeço por folhas nem eras. Tudo modifica mesmo.
Até minhas mãos, tão leves, eram. Hoje, pesadas,
quietas, mais quietas do que o de sempre, estacionam.
Hoje, o corpo não se mexe tanto. Mas a mente vai tão
longe. Vento bom é ideia com ideia atritando. Atrito de
ideia é vida interior.
103
COM OCLUSÕES – O FIM É O COMEÇO DE OUTRA COISA
104
Soma metafísica
quem
fui
não
sou
mais
resultado:
um menos um
zero
tudo
multiplicado
por zero
é nada
105
Existenz
projeto
existo
vai viver, rapaz!?
desisto
resisto
vai reclamar, rapaz!?
106
Sabedoria
Deixar de ser, aos poucos
O que fui, ontem. Sempre.
Mudar é resto de sabedoria.
107
Última
Nenhuma batida do sino da Igreja de Santa Rita é à toa.
Nenhuma batida do meu coração foi à toa.
Nenhuma batida das teclas, também.
Nada foi à toa.
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DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, no ano de 1972. Graduado,
pós-graduado e mestre em filosofia. É professor
do ensino médio e universitário (graduação e
pós-graduação). Mora em Belo Horizonte.
Autor de livros e textos de história, de
fotografia, de filosofia e de poesia. Conserva, na
poesia, ligação umbilical com a cidade natal.
Para se ter com a grande aventura de ser
brasileiro, mineiro e serrano, evoca no seu eu
poético um regionalismo próprio. Todos os
livros estão disponíveis para download gratuito
no site oficial.
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Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz, 2014
Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam
atribuídos os devidos créditos do autor por escrito.
Imagens
Capa: Igreja de Santa Rita, 2013, do autor. Rosto: Serro, 2013, do autor.
Autor: Cabo Frio, 2014, autorretrato. Copyright: Igreja de Santa Rita, 2013, do autor.
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