daniel defoe- robinson crusoe
TRANSCRIPT
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Robinson Crusoe
A influncia de Robinson Crusoe na literatura
universal imensa. Quase comparvel das grandes
obras clssicas da Antigidade. De Jean Jacques
Rousseau ao genial Goethe, todos lhe so
tributrios. Depois dele, os Robinsons apareceram
em nmero quase ilimitado em todas as literaturas.
Cada pas quis ter o seu Robinson e surgiu, assim,
um novo gnero literrio que at hoje perdura.
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Daniel Defoe
Robinson Crusoe
Texto em portugus de
Paulo Bacellar
Ilustraes de
Lee
23a Edio
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Ttulo do original:
Robinson Crusoe
Do texto em portugus EDIOURO S.A., 1970
(Sucessora da Editora Tecnoprint S.A.)
ISBN 85-00-78214-5
EDIOURO S.A.
(SUCESSORA DA EDITORA TECNOPRINT S.A.)
SEDE: DEP. DE VENDAS E EXPEDIO
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Vocabulrio
As explicaes contidas nas notas de rodap visam um maior
entrosamento do leitor com o texto.
Muitas vezes, durante o decorrer da leitura, palavras ou formas
de expresso so apenas parcialmente interpretadas ou nem mesmo
isso acontece. Assim, o que se verifica um mau aproveitamento do
trabalho literrio e, o que pior, um possvel desinteresse pela leitura.
Objetivamos, ento, dentro de cada texto e de acordo com o
contexto, abrir novas fronteiras para o pequeno leitor, oferecendo-lhe
maiores esclarecimentos, proporcionando-lhe um enriquecimento de
vocabulrio e, ao mesmo tempo, um aprimoramento de sua forma de
expresso.
Sempre existiro outras formas que no as usadas para fazer
uma criana compreender o que leu.
Em se tratando de interpretao, o trabalho estar sempre em
aberto para quaisquer modificaes.
Esperamos, assim, atingir nossos propsitos.
A Equipe
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Agradecimento
A Editora agradece equipe de professores, escolhidos cri-
teriosamente em um colgio que h muitos anos vem utilizando,
sistematicamente, os livros da Ediouro. Esta equipe foi convidada pela
Direo da Empresa para a difcil tarefa de examinar o vocabulrio de
cada livro, procurar explicar o significado dos termos ao nvel de
compreenso dos alunos e fazer uma classificao dos diversos livros
de acordo com a idade dos presumveis leitores.
Sabamos que muitas divergncias poderiam surgir e ainda
surgiro no futuro, especialmente quanto ao modo de interpretar os
vocbulos.
Por isso os professores insistiram na idia de a Editora rever, no
futuro, parte do trabalho ora efetuado.
Assim a Editora espera que outros professores, no manuseio
dirio destes livros, nos enviem sugestes e crticas para que possamos,
com o passar do tempo, aperfeioar o que j foi feito.
Desejamos expressar nossos agradecimentos pela to valiosa
colaborao da equipe chefiada por Betty Zimmerman.
EDIOURO S.A.,
(Sucessora da Editora Tecnoprint SA)
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Daniel Defoe
Daniel Defoe, filho de James Foe, nasceu em Londres, Inglaterra,
e faleceu em Moorfieldes. Apesar da origem modesta, estudou num
seminrio de dissidentes.
Dedicado ao comrcio, viajou pela Espanha, Itlia e Alemanha.
Estabeleceu-se em 1863 e no ano seguinte casou-se com Mary Tuffley.
Participou da campanha em defesa de Guilherme de Orange ao trono da
Inglaterra.
Depois da morte de Guilherme de Orange, sua situao poltica
agravou-se at que foi preso e exposto ao pelourinho. Passou seis
meses na priso. Arruinado, viveu como mercenrio.
Mais tarde, fundou o jornal The Review. Publicou The Family
Instructor, fundamentado em moral puritana, mas seu primeiro
trabalho de cunho realmente literrio e seu grande sucesso foi
Robinson Crusoe, que lhe valeu a imortalidade.
Em Robinson Crusoe, Defoe nos oferece o mais digno conceito de
educao natural. Inspirado num caso verdadeiro, o livro narra a
histria de um homem que se v abandonado numa ilha deserta e
que, fora da coragem e da perseverana, consegue vencer todas as
dificuldades e viver feliz, mesmo longe da civilizao.
A obra conseguiu prestgio universal e considerada um dos
maiores romances de aventura da literatura mundial.
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CAPTULO I
Em Busca da Liberdade
Eu partira do Brasil, onde possua uma plantao de fumo.
Ia num barco de seis canhes e quatorze tripulantes, com destino
frica. O barco levava um pequeno carregamento de mercadorias
para negociar.
Aqui tem incio a aventura principal de minha vida, mas
talvez queiram saber o que fiz antes disso e como cheguei a ter
coragem de arriscar tudo o que tinha para entregar-me aos
caprichos do mar que tanto amo.
Devo dizer, ento, que fui um menino como muitos outros...
mas desde cedo aprendi a fazer valer minha vontade e minha opinio.
Meus pais queriam que eu tivesse por profisso a advocacia
ou qualquer outra que estivesse altura do nome da famlia.
Mas nunca dei importncia a nome de famlia; queria, isto sim,
descobrir os segredos do mundo, vivendo a vida que tinha
escolhido para mim. Achava que meu futuro teria que ser decidido
por mim e no pelos outros. E ainda acho.
Desculpem, pois nem me apresentei ainda. Meu nome
Robinson Crusoe. Nasci na cidade de Iorque, Inglaterra, em 1632.
Vou contar alguns detalhes sobre minha famlia, para que vocs
possam ter uma idia da minha infncia. ramos trs irmos,
sendo eu o mais moo. O mais velho tornou-se oficial do Exrcito
ingls e encontrou a morte numa batalha contra os espanhis,
prximo a um porto ao Norte da Frana, chamado Dunquerque. O
segundo era parecido comigo: tambm gostava de viajar. Mas teve
menos sorte, pois desapareceu para sempre, numa de suas viagens.
aos caprichos = vida perigosa tivesse ...advocacia = fosse advogado os segredos do mundo = a vida em todo lugar encontrou a morte = morreu
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Nasci na Inglaterra porque meu pai, um alemo natural de
Bremen, resolveu emigrar para aquele pas, estabelecendo-se
inicialmente na cidade de Hull, como comerciante. Depois, apesar de
ter obtido sucesso, decidiu sair de Hull e mudou-se ento para
Iorque, onde conheceu minha me, que pertencia tradicional
famlia Robinson. O nome Crusoe vem de meu pai: antes, seu
sobrenome era Kreutznaer, um complicado nome alemo. Com a
mudana para a Inglaterra, ele resolveu adapt-lo ao idioma ingls.
Assim surgiu Crusoe. E, em conseqncia, o nome que me deram.
possvel que vocs estejam um pouco cansados dessas
histrias de famlia. Eu tambm cansei. E um dia fui passear em
Hull e encontrei um amigo que estava de viagem para Londres.
Navegava num barco de parentes e me ofereceu a passagem de
graa. Pensei em meus pais e nos conselhos que ouvira contra
minhas idias de aventura. Sabia que jamais consentiriam que eu
partisse. Eu teria, pois, que escolher: ou me sujeitaria vontade
deles ou levaria avante meu ousado ideal e assumiria a
responsabilidade pelo que me pudesse suceder de bom e de mau.
Tinha ento dezenove anos e essa era uma deciso muito
importante para mim, pois envolvia um grande risco. As viagens que
fiz no foram tranqilas como devero ser, espero, no tempo em que
viverem as pessoas para as quais escrevo. As embarcaes eram
rudimentares e freqentemente se desgovernavam, acabando por
espatifar-se contra o que lhes aparecesse no caminho.
Mas risco ainda maior era romper com meus pais e partir sem
um tosto no bolso. Contudo, preciso partir! pensei.
Pssaro adulto o que voa do ninho... dizia a mim mesmo
...em busca de seu prprio sustento.
emigrar = mudar-se tradicional = antiga e conhecida adapt-lo = faz-lo parecido rudimentares = antigas e sem segurana se desgovernavam = perdiam a direo voa do ninho = sai de casa
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Enfim, decidi-me. Em alguns segundos, s vezes, se decide
uma vida. Seria melhor que meus pais soubessem por terceiros
quando eu j estivesse longe, no mar que sempre fora um sonho
para mim.
No dia 1. de setembro de 1651, vi as ncoras subirem e senti o
sopro do vento que dava vida vela do barco e minh'alma
tambm. Vi o cais afastando-se e meu sonho transformando-se em
realidade. Mas, quando um sonho se toma real, quase nunca
corresponde, integralmente, s promessas da imaginao. Parece
oferecer-nos muito pouco, em relao ao que espervamos. Depois,
porm, percebemos que, apesar dos pesares, sempre compensa
transformar um sonho em realidade.
Foi duro suportar a primeira tempestade que presenciei a
bordo. O mar estava furioso. Ondas gigantescas varriam o convs de
lado a lado, quebrando mastros e rasgando velas, enquanto o
vento parecia possudo por todos os demnios. Tive medo, sem
dvida, mas no o suficiente para desistir.
Suportando com valentia os transtornos da primeira viagem,
cheguei a Londres e logo parti para a Guin, de onde trouxe p de
ouro para vender na Inglaterra. Voltei depois em busca de mais ouro,
mas um acontecimento terrvel me aguardava: no meio do caminho,
o barco foi atacado por piratas mouros, na costa de Marrocos, e toda
a tripulao foi levada pelos corsrios, como presa de guerra.
Transformaram-nos em escravos. E assim vivi dois anos. No lhes
vou narrar o que me sucedeu nesses dois anos, pois quero chegar
logo aventura principal de minha vida, que creio ser a de maior
interesse. Contudo, peo-lhes que imaginem o que ser escravo de
piratas, durante dois anos, em Marrocos.
por terceiros = por outras pessoas dava vida = movimentava promessas da imaginao = sonhos me sucedeu = me aconteceu
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Ao fim desse tempo, encontrei meios de escapar num barco
improvisado, e acabei tendo a sorte de ser recolhido por um navio
portugus, que me levou ao Brasil.
No Brasil juntei dinheiro e me tornei plantador de fumo, como
vocs j sabem. Mas preferi ser fiel minha necessidade de
aventura. E embarquei novamente para a frica.
Vai comear, enfim, a viagem que vocs esperam que eu conte.
Equipamos um barco de cento e vinte toneladas e deixamos o
cais a 1. de setembro de 1659. Eu tinha, ento, vinte e sete anos.
improvisado = feito s pressas ser fiel = atender cais = porto
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CAPTULO II
O Naufrgio
Levvamos a bordo objetos sem valor mas que agradavam aos
nativos da frica: contas para colares, pedaos de cristais coloridos,
espelhinhos, canivetes, tesouras e machadinhas.
Enquanto costeamos terras brasileiras, tudo foi fcil, apesar
do calor sufocante. Pouco a pouco, encaminhamo-nos para o alto-
mar, perdendo a terra de vista. Segundo nossos clculos, estvamos
a sete graus de latitude norte quando um violento furaco nos
desgovernou.
O sopro do vendaval era terrvel. E durou doze dias, durante os
quais nos arrastou como se fssemos bonecos em um barquinho de
papel. Eu e meus companheiros sentimos que a morte estava
realmente prxima: a fria do vento nos carregava, carregava...
cada vez mais para longe, fora do alcance de qualquer possvel
auxlio humano. Para dois dos nossos, tal pressentimento tornou-se
realidade: um morreu de febre e o outro arrebatado por uma onda.
O tempo melhorou depois de doze dias, mas o barco perdera a
batalha: estava todo quebrado como um valente lutador depois de
uma luta desigual.
Ao consultarmos um mapa, constatamos que estvamos longe
de qualquer regio habitada; ningum, portanto, poderia auxiliar-
nos. Era certo que o barco no seria capaz de prosseguir viagem
para a frica, nem de regressar ao Brasil. Nossa esperana
restringia-se a algumas ilhotas de administrao inglesa, situadas na
Amrica Central, que espervamos poder alcanar em breve.
nativos da = nascidos na sopro do vendaval = fora do vento auxlio humano = ajuda de algum pressentimento = sentimento prosseguir = continuar regressar = voltar restringia-se a = era apenas
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Mas nosso azar com aquela viagem era realmente grande:
outra tempestade modificou-nos novamente o rumo, dessa vez nos
tirando definitivamente a possibilidade de aportarmos em qualquer
terra habitada.
Ao amanhecer, aps uma noite de tormenta, ouvi um grito:
Terra vista!. Samos dos camarotes para ver do que se tratava e
fomos surpreendidos por uma onda que jogou o barco contra um
banco de areia. Ondas incessantes ameaavam esmagar o que
restava da embarcao, outrora bela e confortvel.
Que estranho lugar comentou comigo um companheiro.
Aposto que seremos os primeiros civilizados a pisar nesta terra.
O pior que no se pode dizer o mesmo com relao aos
animais. Deve haver muitas feras por aqui. Alm disso, no estou
certo de chegarmos em terra com vida respondi-lhe.
Mal pronunciara essas palavras percebi que a fria do mar
abria a primeira brecha no casco do navio. Apelamos ento para
uma pequena embarcao de salvamento, que transportvamos no
barco. Mas, contra o mar enfurecido, que se poderia esperar de uma
simples canoa, quase uma casca de noz?
Toda a nossa esperana, porm, estava dependendo do que se
pudesse obter com a canoa. E ela resistiu, durante quatro horas,
num herico combate com as ondas. Ento foi virada e rapidamente
afundou. Assim como a canoa, um de meus companheiros deu
um longo mergulho sem retorno. Agora, ramos onze. Onze nufragos
travando com o mar uma luta impossvel.
O instinto de conservao fez-me nadar em direo a terra sem
hesitao nem perda de tempo, pois um minuto de retardo, numa
situao dessas, pode resultar na morte.
fria do mar = fora das guas nufragos = nome que se d s pessoas que esto em uma embarcao e esta sofre um naufrgio, isto , afunda.
instinto de conservao = vontade de viver hesitao = dvida
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No final eu j no tinha foras para nadar; era carregado pelo
mar, como um tronco de rvore. E uma onda, enfim, me depositou na
praia.
Estava meio morto de cansao, mas com um desejo muito forte
de sobreviver. Animado por ele, pus-me de p. Comeava a andar,
quando uma onda mais forte me ajudou, atirando-me longe, de
encontro areia.
Senti ento a terra firme sob meu corpo e respirei fundo,
imvel sobre a areia mida, sem poder acreditar que havia
conseguido salvar-me. Mas era verdade: eu estava vivo e salvo.
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CAPTULO III
A Primeira Viagem ao Barco
A alegria por ter escapado desapareceu quando pensei em
meus companheiros. Era terrvel a incerteza: que lhes teria
acontecido? Talvez estivessem todos mortos, talvez alguns tivessem
tido a mesma sorte que eu. Deles tinha visto, apenas, depois do
naufrgio, alguns bons e sapatos carregados pelas ondas.
Muitos outros problemas igualmente srios me abalavam o
nimo: estava encharcado e no dispunha de roupa para mudar;
tinha fome e sede, e nada para comer ou beber. A nica perspectiva
possvel era a morte: morrer de fome ou devorado pelos animais
selvagens eis minha alternativa.
Ao anoitecer, refleti tristemente sobre a situao. Aquele
mundo desconhecido onde me encontrava certamente era habitado
por feras, que costumam rondar nas trevas, procura de presas.
Talvez no veja o sol nascer amanh pensei.
A nica defesa aconselhvel seria subir numa rvore e l
meditar sobre o tipo de morte que o dia seguinte me reservaria. Mas
antes disso caminhei pelos arredores, terra adentro, para ver se
encontrava gua doce para beber. Por sorte, logo adiante encontrei
um pequeno manancial, e em seguida passei a mascar um pedao
de fumo para enganar a fome, enquanto subia na rvore escolhida
para refgio.
Todo meu desejo, ento, era mergulhar num sono de pedra e
com isso afastar por algum tempo as preocupaes.
me abalavam o nimo = me preocupavam perspectiva = idia alternativa = escolha rondar nas trevas = andar pelas noites. manancial = nascente de gua de pedra = profundo
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Quando o medo nos domina, o melhor caminho de fuga
dormir. E no precisei concentrar-me muito, pois a luta contra as
ondas me esgotara as foras. Assim, dentro em pouco, estava imerso
num sono profundo e reparador.
Ao acordar, o sol estava a pino e o cu azul. Tudo era calma
naquele trecho de praia e tambm o mar estava tranqilo. O barco,
para minha grande surpresa, mantivera-se apoiado no banco de
areia. J todo avariado, mas ainda no mesmo lugar. Eu ignorava se
ele poderia permanecer para sempre ali encalhado, como recordao
de minha tragdia, ou se iria finalmente afundar, nas prximas
horas ou mesmo minutos. Sabia, porm, o quanto era importante
que ele resistisse por mais algum tempo. Porque tentaria alcan-lo,
para apanhar todos os objetos que se tivessem mantido mais ou
menos utilizveis. E a fome me dava um nimo todo especial, pois me
lembrava que existiam no barco vrios barris de mantimentos.
Foi sem grande dificuldade que me aproximei dele, pois o mar
estava tranqilo. A volta que talvez no fosse nada fcil. Uma
coisa era nadar sozinho; outra seria transportar fardos pesados,
utilizando-me apenas de umas toras, que havia encontrado no
barco e que amarrara em seguida, para improvisar uma jangada.
Essa preocupao diminuiu a alegria que senti ao verificar que as
provises do navio no tinham sido atingi das pela gua.
Depois de amenizar um pouco a fome com alguns biscoitos,
coloquei em trs cofres algumas provises tais como po, arroz,
queijo, carne-seca, trigo etc. e tambm bebidas (gua mineral e
aguardente), roupas, ferramentas, armas e munies. Eu
encontrara, no camarote do capito, trs espingardas e dois fuzis
em muito bom estado, e ainda duas pistolas, um faco, alguns
cartuchos de plvora, um saco com chumbo e duas velhas
espadas.
avariado = estragado um nimo todo especial = uma forte razo provises = alimentos amenizar um pouco = enganar
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Lembrava-me de que havia mais alguns cereais entre as
provises, mas depois observei, pelos seus restos, que os ratos do
navio os descobriram antes de mim. Em compensao, tive a alegria
de ver que dois dos trs barris de plvora que. transportvamos
estavam secos e em condies de aproveitamento. Tentaria
transport-los tambm.
Arrastada pela correnteza, minha frgil jangada foi parar a
vrios quilmetros do local em que eu pernoitara. Para sorte minha,
nenhum dos volumes se perdeu durante a viagem.
Ao pisar novamente aquele solo estranho, decidi subir ao topo
de uma montanha que se avistava a certa distncia.
Com um fuzil e uma pistola, um cartucho de plvora e um
saquinho com chumbo, lancei-me subida da montanha. Percebi
ento, com clareza, que me encontrava numa ilha e que no havia
sinal visvel de habitao humana.
em compensao = por sorte pernoitara passara a noite solo estranho = terra desconhecida
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CAPTULO IV
Preparativos Para a Longa Permanncia
Voltando da montanha, atirei num grande pssaro que
surpreendi pousado numa rvore beira de um denso bosque. No
gosto de matar animais, mas ali, naquela ilha primitiva, vigorava a
lei da selva: seria matar para comer ou morrer de fome.
Creio que foi o primeiro tiro jamais ecoado naquelas paragens,
desde a origem do mundo. Ao som do estampido, levantou-se, com
grande alarido, um bando de pssaros dos mais diversos tipos,
surgidos de todos os cantos do bosque. Quanto ao que eu abatera,
no pude identific-lo. Parecia uma espcie de gavio, eis tudo o que
percebi. O pior foi que sua carne rija e escura pouco contribuiu
para melhorai; minha refeio.
O prximo problema com que me deparava era a necessidade
de proteo para passar aquela noite com alguma segurana.
Formei ento, com os cofres e as tbuas, uma espcie de barricada,
o que parecia satisfatrio, em face dos poucos recursos de que
dispunha.
No dia seguinte retornei ao barco. Foi ento que tive
oportunidade de levar para a ilha duas gatas e um cachorro.
Durante muitos anos, aquele co foi para mim um amigo e fiel
servidor. Era capaz de carregar vrios tipos de objetos e parecia
esforar-se ao mximo por me agradar.
Essa segunda viagem serviu-me ainda para transportar
volumes que s mais tarde pude identificar, pois estavam bem
embrulhados.
denso = fechado vigorava a lei da selva = vencia o mais forte ecoado = ouvido grande alarido = muito barulho me deparava = eu enfrentaria
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Um deles continha canetas, tinta e uma boa quantidade de
papel, e foi graas a isso que pude registrar os fatos que narro neste
livro, pois decerto me seria impossvel arquivar tudo na memria.
Neste embrulho havia, tambm, compassos, instrumentos
matemticos, lunetas, mapas, livros de navegao e at trs Bblias.
Realizei, ainda, uma dzia de viagens ao barco encalhado nos
dias que se seguiram. Pude transportar, ento, muitos outros
objetos teis: machados, pregos, barras de ferro, mosquetes com
farta munio, apetrechos de caa, vela de barco, maca, colches,
cobertores, lonas, cordas, barbantes, rum, acar, farinha de trigo,
navalhas, tesouras, facas, garfos, e ainda artigos que eu j havia
trazido na primeira viagem, mas cujo estoque era conveniente
aumentar tais como plvora (levei, afinal, o barril molhado na
esperana de recuper-lo), roupas, biscoitos, aguardente etc.
Na ltima viagem que fiz ao barco encontrei algum dinheiro em
moedas europia e brasileira, metade em ouro, metade em prata. A
inutilidade de tal descoberta, que me seria to conveniente em
circunstncias normais, me fez sorrir com ironia.
Eu havia feito uma pequena tenda com a vela sobressalente e
nela reunido tudo que era passvel de estrago se atingido pela chuva
ou pelo sol. Com um dos colches que trouxera numa das viagens,
podia agora dormir tranqilamente, em cama de verdade.
Poucos dias depois de ter eu levado a ltima carga do navio,
este afinal foi jogado por uma onda para fora do banco de areia. Ao
amanhecer, fui olh-lo como de costume e dele no havia o menor
sinal. Era agora refgio dos estranhos peixes que habitam as
profundezas do mar.
arquivar = guardar apetrechos = objetos circunstncias normais = vida comum era passvel de estrago = estragasse
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Desaparecera o ltimo vestgio que me ficara como lembrana
da civilizao: o navio onde, h bem pouco tempo, meus
companheiros passeavam e conversavam, na alegre expectativa da
chegada frica. Agora, por uma estranha ironia, meus
companheiros, com certeza sendo destrudos pelos peixes vorazes,
voltavam, talvez arrastados por eles, ao velho e querido barco de
tantas viagens. De toda essa desolao, restava apenas um
sobrevivente, para quem o futuro se apresentava sombrio e cruel.
Que me reservaria ele?
vestgio = coisa expectativa = espera desolao = acontecimento triste
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CAPTULO V
A Construo de Um Barco
A proteo imediata contra possveis selvagens e feras era
minha principal preocupao. Seria mais indicado cavar uma toca
ou tratar de armar logo uma tenda? Decidi-me, afinal, por ambas.
Primeiramente, era preciso escolher, como moradia, um lugar
saudvel, perto de gua doce, fcil de defender e com vista para o
mar. Esta ltima condio era muito importante: se o acaso levasse
at aquele lugar algum barco, eu poderia facilmente comunicar-me
com ele, pedindo socorro aos tripulantes.
Encontrei, aps algumas buscas nas imediaes, um lugar
conveniente, num rochedo em frente ao mar. Havia uma espcie de
terrao naquele rochedo, e tambm uma entrada, no to
pronunciada como uma caverna, porm suficiente para abrigar-me
das feras e das chuvas. Um gramado me levava, em suave declive,
do rochedo ao mar. Era at um lugar bem potico e agradvel.
Antes de montar a tenda, tracei na rocha, diante da entrada
que se transformaria em minha casa, um semicrculo de dez metros
de raio. Na linha traada cravei duas fileiras paralelas de slidas
estacas, afiadas em sua ponta superior e separadas entre si por
uns quinze centmetros. O conjunto ficou parecendo um guarda-
chuva aberto, ocupando a pequena caverna o lugar correspondente
ao cabo.
Em seguida, com o machado, rachei toras, que transformei em
varetas, com elas compondo, entre as duas fileiras de estacas, um
tranado em forma de cerca bem reforada e resistente.
gua doce = gua para beber tripulantes = pessoas que trabalham em embarcaes ou aeronaves. conveniente = bom declive = descida
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Cravei ainda, entre as j fincadas, uma terceira fileira de
estacas, em posio oblqua.
Transportei para o interior de minha fortaleza as provises,
as munies e tudo o que conseguira retirar do navio. Constru
ento uma grande tenda de cobertura dupla, visando a proteger-me
das chuvas, muito freqentes naquela poca do ano. Com a maca
e um dos colches encontrados no navio, improvisei uma cama
bastante confortvel e que me permitia um sono tranqilo, aps as
estafantes tarefas do dia.
Aps colocar l em cima do rochedo o que me parecia mais
importante, fechei a entrada da cerca, passando a utilizar-me
apenas de uma escada de mo Agora, entrar na fortaleza s era
possvel atravs dessa escada. Quando eu a retirasse, qual o
animal ou homem capaz de chegar at meu abrigo? Assim eu
poderia dormir tranqilo.
Comecei ento a ampliar o orifcio da rocha. A terra e as pedras
que retirei serviram para formar uma espcie de degrau que se
elevava uns dois palmos junto cerca. Improvisei ainda uma
espcie de celeiro em frente tenda.
Durante esse trabalho, percebi que uma tempestade se
aproximava e logo aps comecei a ouvir os troves. Temi por minha
plvora pois, sem ela, como poderia carregar as armas com que
obtinha alimento? Alm disso, um outro problema me inquietava: e
se um raio casse sobre a plvora?
Apesar do cansao, lancei-me imediatamente construo de
caixas e sacos com que protegi a plvora. Dividi por vrios pacotes o
contedo dos barris, colocando-os bem longe um do outro, para que
a possvel combusto de um deles no se propagasse aos outros.
oblqua = inclinada estafantes tarefas = trabalho cansativo ampliar o orifcio = aumentar a abertura celeiro = depsito combusto = queima
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Ao fim do estafante trabalho, a plvora ficou dividida por mais
de cem pacotes, ocultos entre as rochas e a certa altura do solo,
para que no se molhassem.
Em nova excurso pela ilha, foi grande minha alegria ao
descobrir algumas cabras. Elas eram, porm, extremamente
ariscas. Seria bastante difcil ca-las ou domestic-las.
Levei alguns dias estudando o modo de viver das cabras. Foi
fcil descobrir que seus olhos no lhes permitem ver de baixo para
cima: quando eu estava no fundo do vale e elas nas escarpas,
fugiam em desabalada carreira ao pressentirem minha presena; se,
porm, as posies se invertiam, elas continuavam a pastar
tranqilas, sem nada perceberem. Aprendi, ento, como deveria
ca-las.
Subi numa pedra antes que chegassem, e as esperei. Com um
tiro abati uma fmea. E logo senti remorso, ao ver que um filhote a
acompanhava. Enquanto os adultos fugiam deixando sua
companheira cada, o cabritinho permaneceu guardando o corpo da
morta.
Tomei-o nos braos. Era frgil demais e talvez ainda no
pudesse sobreviver sem a me. Se estivssemos na cidade, nenhum
problema haveria: eu lhe daria leite na boca, com mamadeira. Ali,
porm, era muito difcil criar o cabrito. No me queiram mal por
isso. Foi azar meu: ao atirar na cabra, no sabia que era a me do
cabritinho; ao tentar cri-lo, no tive culpa de estar to desprovido
de recursos. De qualquer forma, foi intenso o meu remorso. Pois,
recusando sempre a comida que lhe oferecia, o cabritinho foi ficando
cada dia mais fraco, at que morreu.
se propagasse = passasse ariscas = espertas guardando o corpo = perto do corpo desprovido de recursos = sem meios remorso = arrependimento
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CAPTULO VI
Os Primeiros Meses
Muitos artigos essenciais me faltavam na ilha: enxada, p,
agulha, linha de costura e uma srie de outras utilidades s quais
no se d o menor valor quando podemos t-las mo, e que, no
entanto, passamos a considerar extremamente importantes quando
no temos possibilidade de obt-las.
Tomemos uma agulha como exemplo. possvel a um homem
construir sozinho um barco, uma casa e um mundo de objetos,
desde que disponha de madeira, algumas ferramentas de corte, um
martelo, pregos e outros artigos igualmente simples. Um homem
sozinho levar muito tempo para fazer uma boa casa com
instrumentos to precrios, mas um dia conseguir completar a
tarefa. Uma agulha, porm... quem ousaria sequer pensar em fazer
uma agulha, longe dos recursos da civilizao?
Porm, quando um problema nos preocupa muito e no h
qualquer possibilidade de resolv-lo, a nica sada razovel coloc-
lo de lado.
Se no tenho picareta para cavar um buraco no lugar em
que quero, o jeito cavar com a mo, num terreno mais macio, ou
tentar utilizar uma tora de madeira. Nunca, na verdade, a tora
poder substituir com eficincia a picareta. Mas, se eu ficar
lamentando a ausncia da picareta, nem farei o buraco nem
aproveitarei o tempo em outra atividade. Foi pensando assim que
comecei a me habituar com a vida na ilha. E resolvi enfrentar a
realidade da minha situao, decidido a aproveitar a primeira
oportunidade para sair dela.
to precrios = to ruins recursos da civilizao = so assim chamados os instrumentos, objetos e mquinas inventados pelo homem para facilitar seu trabalho.
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E chegara tambm a outra concluso fundamental: um homem
pode sobreviver na floresta, com um pouco de sorte e muita vontade
de resistir.
A princpio eu olhava insistentemente o mar, na esperana de
ver algum barco. Depois deixei de perder tempo com iluses que no
levavam a nada. E concentrei meus esforos em procurar atenuar ao
mximo as dificuldades de meu novo gnero de vida.
A escassez de ferramentas tornava muito lento o trabalho.
Assim, gastei quase um ano para acabar a paliada. As estacas,
escolhidas entre as mais grossas e slidas, eram muito difceis de
cortar. Carreg-las at a tenda era outra tarefa penosa. Gastava, s
vezes, dois ou trs dias para carregar uma nica tora. Mas havia
tempo de sobra. Minhas nicas preocupaes, alm da construo
da moradia, eram a busca de alimentos e a confeco de mveis que
me pudessem assegurar algum conforto para escrever e para comer.
Para obter uma nica tbua, eu tinha simplesmente que
cortar uma rvore inteira, de um lado e de outro, e depois aplain-
la. E isto muito mais duro do que se pensa.
Fiz a princpio uma cadeira e uma mesa, servindo-me de
pedaos de tbuas, com as quais fiz tambm largas prateleiras,
colocando-as umas sobre as outras, ao longo de um dos lados da
caverna. Com isso pude acomodar todos os objetos pequenos de que
dispunha.
Depois de tudo arrumado ou pendurado nas prateleiras, minha
caverna ficou parecendo uma loja de utilidades.
fundamental = importante iluses = sonhos atenuar ao mximo = diminuir muito aplaina-la = alis-la Pude acomodar = arrumei dispunha = tinha
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CAPTULO VII
Algumas Pginas do Dirio
Esqueci-me de dizer a data em que cheguei ilha. Da mesma
maneira como me esqueci, a princpio, de contar o tempo, enquanto
l estive. Talvez, no ntimo, eu tivesse esperana de ser socorrido em
breve apesar de ser uma chance quase impossvel, conforme
poderia concluir raciocinando friamente. Por isso, no me preocupei
com o tempo como tambm no o fiz aqui, na pressa de narrar
alguns episdios importantes. Aos poucos, porm, fui tendo
conscincia de minha situao real e passei a sentir curiosidade em
acompanhar a marcha incessante dos dias.
Eu precisava improvisar um calendrio, pelo menos para tentar
um programa especial na data do meu aniversrio. Pensando bem,
era um bobo consolo esse. Mas eu precisava adotar qualquer medida
para dar minha vida, dentro do possvel, um toque civilizado.
A 30 de setembro havia posto o p na ilha. Quando j tinha
permanecido por onze dias se no me engano percebi que
comeava a perder a noo do tempo. J me era difcil distinguir os
domingos dos dias teis.
Na verdade tal dificuldade no tinha a menor importncia,
pois no havia, na ilha, dias de descanso. Bastava passar um dia
sem fazer nada para ter, como recompensa, uma mesa vazia
minha espera. Resolvi, porm, s para satisfazer a curiosidade,
montar um estranho calendrio, entre o rochedo e o mar.
Tomei, como ponto de partida, o dia 30 de setembro. Cravei
ento um poste perto da praia, nele escrevendo que chegara ilha a
30 de setembro de 1659.
no intimo = por dentro episdios = tatos a marcha incessante = o passar posto o p = chegado dias teis = dias de trabalho
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Na superfcie do poste, fui marcando um trao para cada dia;
no stimo dia um trao maior e, ao completar um ms, marcava um
trao ainda maior que os das semanas.
A qualquer momento bastaria olhar os traos do poste, para
saber h quanto tempo estava na ilha. Acrescentando esse nmero
de anos, meses e dias data inscrita no poste, eu obteria, como
resultado, a data que procurava saber.
Aps explicar isso, creio que posso transcrever alguns episdios
do meu dirio, sem correr o risco de parecer estar inventando as
datas. Como podero observar, as anotaes abrangiam s vezes
vrios dias ou mesmo semanas, pois nem sempre eu tinha tempo
para escrever.
Dos relatos, escritos no ano em que cheguei ilha, destaco os
de 5 a 18 de novembro e o de 27 de dezembro. So os seguintes:
5 DE NOVEMBRO
Sa com o fuzil e o co, matando um gato selvagem. Sua pele era
macia, mas a carne imprestvel. Tive ento a idia de passar a
arrancar a pele de todos os animais que fosse caando daquele dia
em diante, para curti-las e utiliz-las em minha moradia e, sobretudo,
como roupas e cobertores. Voltando dessa caada, vi bandos de
pssaros marinhos ao longo da costa. Alguns deles me eram
desconhecidos. Fui surpreendido tambm com a presena de algumas
focas. Elas me retriburam o olhar, mas logo aps, assustadas com o
tipo de monstro desconhecido que eu representava para elas,
jogaram-se ao mar e desapareceram.
abrangiam = continham curtir = preparar um couro ou pele de animal por meio de um processo especial para que no apodrea.
retriburem o olhar = olharam tambm monstro desconhecido = bicho diferente
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18 DE NOVEMBRO
Encontrei no bosque uma espcie de rvore que logo vi ser
aquela que os brasileiros chamam pau-ferro, por sua extrema dureza.
Cortei um pedao com grande esforo e quase inutilizei o machado.
Com essa madeira consegui, afinal, obter uma p. Mas foi preciso
aplicar muito tempo ao empreendimento, pois a falta de ferramentas e
a dureza da madeira obrigaram-me a um trabalho penoso.
Tinha agora necessidade de um cesto e um carrinho de mo,
para transportar lenha e pedras. Com o que at ento conseguira
obter, no havia condies para fazer um cesto, pois, para tal,
necessitaria de fibras que pudessem ser tecidas matria-prima que
no havia encontrado na ilha. No me parecia difcil, porm, a
construo do carro. Lembrei-me em seguida da dificuldade que por
certo encontraria para adaptar a roda, mas no desisti da tarefa;
apenas a substitu, provisoriamente, pela construo de duas
grandes calhas inclinadas, feitas de um tronco de rvore que dividi ao
meio, arrancando, em seguida, todo o miolo. Obtive assim, por
intermdio delas, um meio de puxar, com cordas, o que tivesse de
levar para meu abrigo. Utilizei quatro dias nesse trabalho, mas
verdade que no lhe dediquei todo o tempo: grande parte desse
perodo passei caando.
Em seguida, desabou o teto da casa quando por sorte eu estava
ausente. Para evitar novo desabamento, reforcei com fortes vigas o
teto, que passei a recompor. Mais tarde, quando eu iniciasse a
construo dos compartimentos internos da casa, as vigas me
serviriam como pontos de apoio, nos quais se sustentariam as
paredes.
matria-prima = material o miolo = a parte de dentro compartimentos internos = sala, quarto, etc...
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27 DE DEZEMBRO
Matei um cabrito e feri outro. Levei este ltimo para casa e
encanei a perna ferida, conseguindo, aps algum tempo, recuper-lo.
Parece que ele gostou do trato que lhe dispensei, pois f icou to
manso que se podia v-lo pastando prximo casa, sem pensar em
fugir. Pensei ento que poderia domesticar algumas cabras e ter um
rebanho de reserva para quando terminasse a plvora e eu j no
mais pudesse caar.
Alguns dias aps sa com meu co e o aticei contra as cabras
selvagens. Elas se puseram a enfrent-lo e quase fiquei sem o fiel
companheiro, o que me fez desistir provisoriamente da idia. De to
assustado com a recepo que as cabras lhe ofereceram, o cozinho
fugiu com a cauda entre as pernas e temi que ficasse acovardado para
novas caadas.
Enquanto isso, o bosque crescia ao redor do refgio, as plantas
se entrelaavam de tal forma nas estacas do cercado, que se algum
desembarcasse na ilha no poderia perceber ali o menor sinal de
vida humana. Descobri uma raa de pombos selvagens que se
aninhavam nas rochas. Apoderei-me de alguns e consegui domestic-
los a muito custo, mas fugiram ao ficarem adultos por certo para
buscar alimento, pois nunca apreciaram muito a comida que eu lhes
dava.
Iniciara a construo de um tonel e pequenos barris, mas no
conseguia ajustar os fundos nem unir os lados com bastante
perfeio para impedir que a gua vazasse. Sentia falta tambm de
algum objeto que pudesse iluminar o local em que eu trabalhava. Sem
ao menos uma vela, era-me necessrio parar o trabalho por volta
das sete horas da noite, quando a escurido se instalava de forma
inapelvel.
recuper-lo = torn-lo bom aticei contra = mandei atacar ficasse acovardado = tivesse medo se instalava = chegava
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S posteriormente ocorreu-me providenciar uma espcie de
candeia, algo semelhante a uma lamparina, porm alimentado com
gordura de cabra.
posteriormente = depois
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CAPTULO VIII
A Inclemncia do Tempo
Nos primeiros dias do ano seguinte, encontrei um saco cheio
de cereais que haviam servido para alimentar as galinhas do navio.
O saco estava no fundo de um dos cofres transportados na primeira
viagem, e eu o deixara l por verificar que os ratos haviam rodo a
maior parte dos gros; encontrei-os agora tambm mofados,
Querendo livrar-me daqueles gros inteis, atirei-os terra, para
poder, pelo menos, aproveitar o saco.
Qual no foi minha surpresa, porm, ao verificar aps as
freqentes chuvas que se seguiram, que ali, bem ao lado de meu
abrigo, os gros espalhados haviam dado origem a pequenos brotos,
que pude reconhecer como de milho, arroz, trigo, centeio e cevada.
Estranhei que no houvesse pensado h mais tempo em
garantir meu sustento, mas logo compreendi que no o fizera por ter
tido, a princpio, a ilusria esperana de ser brevemente resgatado
pela civilizao. Agora, porm, encarando sem iluses minha estada
na ilha e estimulado pela germinao inesperada dos gros
refugados, pude compreender um fato evidente: cada gro que, ao
invs de guardar, eu atirasse terra, resultaria em inmeros
outros, nada exigindo para isso, seno um pouco de pacincia. Como
pudesse sobreviver independentemente dos gros que colhera,
semeei-os todos, para na prxima colheita poder dispor de cereais em
abundncia.
Passei a trabalhar em novo sistema de fortificao. Certa vez,
enquanto reforava com toras a cerca, percebi que a casa e a rocha
em que esta se apoiava comeavam a tremer.
meu sustento = minha comida a ilusria = a intil resgatado pela civilizao = salvo por um navio pela germinao = pelo nascimento independentemente = sem precisar
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Tremia tambm a colina e as estacas rangiam fortemente. Sem
saber o que estava acontecendo, pus-me a correr, tomado de pnico.
Logo percebi que se tratava de um terremoto. Duas ou trs
vezes o solo estremeceu sob meus ps e vi enorme pedra rolar do
alto de um penhasco e cair ao mar, produzindo um estrondo
aterrador, enquanto as ondas se agitavam e a espuma subia em
remoinho. O sol foi encoberto por nuvens cinzentas prenunciando
violenta tempestade.
Depois da terceira convulso de terra, pareceu-me que o
terremoto havia passado. Fiquei mais tranqilo, mas ainda com
medo de voltar para casa. Sentado na areia em atitude de
desnimo, lamentei mais uma vez a amarga sorte.
De repente, percebi que as nuvens se tornavam cada vez
mais escuras, enquanto aumentava a violncia do vento. Meia hora
depois, um verdadeiro furaco aoitava a ilha inteira. O mar estava
coberto de espuma e as guas fustigavam a costa, enquanto o
terrvel vendaval chegava a arrancar rvores. Durou trs horas esse
suplcio.
Sem foras para procurar um abrigo, eu continuava sentado no
cho; ocorreu-me que o vento e a chuva deveriam ser conseqncia
do terremoto. Corri ento para a tenda, vendo a chuva aumentar a
cada momento, o que me punha novamente em apuros. Chegou a
chover to forte que me vi obrigado a abandonar a tenda e me
refugiar na caverna. Pouco depois notei que o dilvio diminua, e que
o perigo, mais uma vez, havia passado. Bebi ento uns goles de rum,
para me aquecer um pouco.
No dia seguinte no pude sair de casa, pois a chuva ainda
continuava.
tomado de pnico = assustado convulso de terra = tremor suplcio = sofrimento em apuros = em perigo dilvio = grande chuva
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Pus-me a pensar na convenincia de construir uma moradia
ao ar livre, prevenindo-me contra a possvel repetio do terremoto, A
seu redor, construiria um muro feito de estacas e cordas. Mas um
novo acontecimento me fez esquecer os projetos da casa nova. Foi a
descoberta inesperada dos restos do barco naufragado, que a
tempestade trouxera tona e arrastara em direo praia.
Reconheci partes de camarotes e procurei encontrar objetos
teis, mas apenas consegui alguns pedaos de madeira que as
ondas traziam um aps outro at a praia. Cuidadosamente os
recolhi, pois poderiam ser de grande utilidade na construo da casa
planejada.
Encontrei, pouco tempo depois, uma grande tartaruga, numa
de minhas andanas pela praia procura de destroos teis. Achei
deliciosa sua carne e guardei com cuidado as vrias dzias de ovos
que nela encontrei. Com carne e ovo de tartaruga, pude preparar
uma refeio diferente, depois de me alimentar por tanto tempo
quase que unicamente de carne de cabra e pssaros selvagens.
convenincia = necessidade os recolhi = os guardei destroos teis = objetos bons
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CAPTULO IX
A Doena
Por essa poca, junho de 1660, tive uma forte gripe. Adoecer num
lugar como aquele uma provao terrvel. Comeou assim: o dia 18
passei recolhido ao abrigo, fugindo da chuva teimosa e fria que no
cessava de cair. Passei uma pssima noite, pois a umidade me fez mal e
comecei a tiritar de frio.
No dia seguinte, amanheci pior. Estava mesmo doente e o medo
tomou conta de mim. Que faria, sem medicamentos nem auxlio
humano? A febre aumentou; eu passava do frio mais intenso ao calor
mais sufocante e estive meio inconsciente durante algumas horas, em que
delirei bastante.
Passei uma semana inteira com febre, que aumentava e diminua
alternadamente, sem contudo desaparecer de todo. Nos ltimos dias
transpirei em excesso, o que me fez melhorar. Como no tivesse mais
vveres, peguei o fuzil e sa para a caa. Estava extremamente fraco,
mas, mesmo assim, consegui abater uma cabra e transport-la para
a tenda, assando na brasa alguns pedaos de sua carne.
No dia seguinte, senti que o esforo me pusera em recada. A
febre voltou to violenta que no pude sada cama, passando o dia
inteiro sem comer ou beber. Eu morria de sede e no tinha foras
nem para apanhar um pouco d'gua. Por fim passei do delrio ao
sono, sem sentir. E despertei muito melhor, apesar de ainda mais
fraco. Nessa noite tive um estranho sonho, que passo a contar:
provao terrvel = sofrimento tiritar = tremer inconsciente = fora da realidade transpirei em excesso = suei muito em recada = doente de novo
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Um homem diablico e ameaador, empunhando enorme
lana, emergia de uma nuvem negra e descia a terra, em meio a um
turbilho de chamas, dizendo: Todas as advertncias foram
inteis. J que no te emendaste morrers. Em seguida, vi a lana
se erguer sobre sua cabea. Estranhamente e sem que eu pudesse
compreender o que ocorria, percebi que a lana se voltava contra
seu prprio peito e que o homem, com um grito terrvel, esvaa-se em
sangue.
Ao acordar, lembrei-me do passado e das advertncias de meu
pai. Mais do que nunca, tive a certeza de no estar arrependido de
meu gesto de desobedincia. Pois, por mais cruel que tenha sido em
alguns momentos, minha vida, pensei ainda uma vez que o mais
importante era ter realizado meu desejo. Alm disso, talvez um dia
aparecesse uma embarcao por aquelas paragens...
Reanimado por esses pensamentos, dei um passeio pelos
arredores para tomar um pouco de sol, comendo em seguida trs
ovos de tartaruga.
noite procurei um pedao de fumo de rolo que tinha
guardado no abrigo; lembrei-me que os brasileiros o utilizam com
freqncia como remdio caseiro e temia que a febre voltasse a
atormentar-me. Ao encontrar o fumo, fiquei sem saber ao certo o
que fazer com ele e comecei a experiment-lo de vrias maneiras:
aspirei sua fumaa, queimando-o num carvo em brasa, mastiguei
um pedao e, finalmente, desmanchei outro num pouco de rum e
bebi a estranha mistura, que logo me subiu cabea, provocando
um sono profundo.
Mas no foi seno cinco dias mais tarde que a febre me deixou
de vez.
emergia = saa esvaa-se em sangue = perdia sangue caseiro = feito em casa subiu cabea = deixou tonto
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Embora ainda muito fraco, comecei a fazer pequenos passeios.
Creio que devo minha recuperao extrema vontade de viver que
sempre me animou. Mas no foi nada fcil; houve momentos em
que at essa vontade senti fraquejar, quase aceitando a morte como
inevitvel. Sempre encontrei, felizmente, uma ltima reserva de
fora fsica e mental. Agora a recuperao, embora lenta, era
constante e progressiva, e pude ento dedicar-me a um
reconhecimento mais detalhado da ilha em que vivia.
A 15 de julho fiz minha primeira viagem. Dirigi-me logo baa
onde ancorara a balsa com provises e mais adiante encontrei
numerosas plantas silvestres de fumo, babosa e cana-de-acar.
Avanando mais, cheguei selva e vi muitas espcies de frutas,
entre as quais uma grande quantidade de meles. Descobri videiras
que se entrelaavam com os troncos das rvores e ostentavam
pesados cachos de uvas maduras. Servindo-me de alguns, pude
comprovar o excelente sabor daquelas uvas. Cuidei, porm, de no
me exceder, lembrando-me de uns ingleses que haviam morrido Por
terem comido uvas em excesso. Decidi ento levar muitos cachos
comigo, para secar e fazer passas.
Encantado com o passeio, nem percebi que as horas se
passavam. S prestei ateno quando j comeava a escurecer. Era
ento muito tarde para regressar e tive que dormir por l, sobre os
galhos de uma rvore.
Continuei, pois, na manh seguinte, o trabalho de
reconhecimento, percorrendo cerca de seis quilmetros de vale,
sempre na direo norte. No percurso encontrei duas pequenas
montanhas e um riacho que descia para oeste. As guas do riacho
cortavam um vale frtil coberto de imensa variedade de plantas,
at o lugar onde parecia florescer um jardim.
extrema = grande fraquejar = diminuir inevitvel = certa excelente sabor = timo gosto me exceder = comer demais percurso = caminho
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Aprofundei-me um pouco mais naquele delicioso vale,
sentindo-me como o descobridor de um pas de maravilhas, e deparei-
me com enormes rvores carregadas de frutos: laranjeiras, limoeiros,
coqueiros, goiabeiras, cidreiras, castanheiras. Ajuntei vrios
montes de frutas, os quais tencionava levar quando regressasse da
expedio, e prossegui no meu reconhecimento. Dois dias aps,
entretanto, ao passar novamente pelo local, encontrei as frutas
espalhadas, pisoteadas e em parte comidas, no sabendo a que
atribuir o estrago.
O lugar era to belo e aprazvel que passei ali os meses de
julho e agosto, aproveitando-os para construir uma casa semelhante
que possua no litoral. Assim poderia variar de residncia quando
julgasse conveniente: se estivesse cansado da praia, me mudaria
para a serra, e vice-versa. Terminada a construo do abrigo, fui
obrigado a me recolher casa da praia, que oferecia maior
segurana na poca de chuvas que se iniciava. Levei comigo as
passas que Obtivera com a secagem das uvas.
As chuvas caram por muito tempo. Como os vveres fossem
acabando, tive de me lanar caa, mesmo com mau tempo. Tendo
conservado com sal carnes de cabra e de tartaruga, comia-as
alternadamente no almoo para no enjoar; um dia cabra, outro
tartaruga, novamente cabra, e assim por diante. O desjejum era
um cacho de passas; o jantar, dois ou trs ovos dos muitos que,
como de costume, encontrava na tartaruga.
No trabalho de ampliao da caverna eu empregava,
diariamente, duas ou trs horas. E assim, procurando tirar o
mximo rendimento das possibilidades da idia, vi chegar o primeiro
aniversrio do desembarque.
pais de maravilhas = lugar maravilhoso pisoteadas = pisadas aprazvel = gostoso me recolher = voltar lanar a caa = caar
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CAPTULO X
Terra Vista
Passei o primeiro aniversrio de minha chegada ilha imerso
em profunda meditao. Apesar de ter sido um ano de permanente
sobressalto, conseguira sobreviver. Escrevia observaes sobre o
fato, quando verifiquei que a tinta estava prestes a acabar. Procurei
ento economizar a que restava: resolvi, da por diante, limitar-me
aos episdios mais importantes, deixando de registrar os detalhes.
J comeava a perceber a regularidade das estaes. Sabia
que a chuva e a seca chegavam a intervalos regulares, e me
preparava para enfrentar as intempries. Dispunha, ainda, de
pequena quantidade de gros de arroz e cevada e me decidi a
seme-los, logo depois de passado o tempo das chuvas.
Cultivei, o melhor que pude, um pedao de terra e o dividi ao
meio, semeando de cada lado um tipo de gro. Por cautela guardei
alguns, para poder contar com uma reserva, caso a colheita no
fosse satisfatria.
A providncia mostrou-se muito til, quando constatei, aps
um perodo de secas, que os gros haviam morrido sem germinar.
Procurei, ento, um terreno mais mido, perto de um bosque
florido. Dessa vez germinaram todos os gros e obtive uma excelente
colheita, tendo assim aprendido qual a estao e o local mais
adequados ao plantio.
Aps a colheita e como o tempo estivesse bom resolvi
instalar-me na casa do bosque.
imerso = preocupado profunda meditao = pensando muito prestes a acabar = acabando as intempries = o mau tempo adequados ao plantio = bons para as plantas
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Encontrei-a como a tinha deixado e, na verdade, at mais
agradvel, pois os troncos que fincara no cho haviam brotado,
lanando ramos to frondosos, que a casa, agora, estava protegida
por um vioso bosque em miniatura. Logo me ocorreu a idia de
construir o mesmo tipo de cerca na casa do litoral e voltei at l para
realizar o intento. Em pouco tempo obtive uma cerca que, alm de
me proteger contra algum visitante indesejado, abrigava-me do sol.
Veio a seguir novo perodo de chuvas e, como a umidade me
prejudicava a sade, passei o tempo chuvoso na gruta, dedicado
confeco de cestos com uma planta muito semelhante ao vime. Os
cestos, como podem supor, estavam longe de possuir bom
acabamento, porm me seriam muito teis naquelas circunstncias,
permitindo o transporte de frutas, e pequenas caas e outros objetos
de interesse que viesse a encontrar em meus passeios.
At ento havia-me limitado a pequenas incurses pelos
arredores, mas possua grande vontade de percorrer a ilha inteira,
concluindo assim a tarefa de reconhecimento. Certo dia, galgando o
ponto mais alto do vale onde construra a casa de emergncia,
pude ver, ao longe, as praias do outro lado da ilha. Resolvi iniciar,
sem demora, essa nova expedio, lanando-me com entusiasmo a
mais uma aventura.
Peguei uma arma e um pouco de plvora, o machado, alguns
biscoitos e cachos de passas, e em companhia do cachorro, dei incio
excurso. Uma montanha cortava o caminho e galgando-a
descortinei a extenso melanclica e deserta do mar. Muito longe, a
dezenas de quilmetros da ilha, vislumbrei o que me pareceu uma
faixa de terra.
Fiquei em dvida sobre a inesperada descoberta. Que parte
do mundo seria aquela?
do litoral = da praia confeco de = a fazer galgando o = subindo ao vislumbrei = vi
-
Estaria habitada por civilizados, por antropfagos ou, simplesmente,
desabitada? Valeria a pena construir um barco e tentar chegar at
l, ou seria melhor evitar esse novo risco?
Resolvi continuar a expedio, e afastar, pelo menos
temporariamente, a idia da viagem, por ignorar se teria a mesma
sorte na eventualidade de um novo naufrgio alis muito mais
provvel no caso de um barco improvisado.
Atingindo a extremidade oposta da ilha, verifiquei que tivera a
m sorte de naufragar no lado pior. Na parte que acabava de
alcanar havia enormes tartarugas e infinidades de aves de vrias
espcies. As praias eram mais belas e a vegetao mais exuberante e
acolhedora.
Apesar de tudo isso, comecei a sentir saudades das paisagens
que diariamente contemplava, e resolvi regressar. Mas desta vez
segui o curso de um riacho e aps ligeira caminhada me encontrei
numa regio toda cercada de montanhas. Era um lugar mido, que
o sol no aquecia. Segui em frente buscando inutilmente uma
sada por onde prosseguir. Por fim desisti, regressando praia de
onde partira, e de l retomei o itinerrio que havia utilizado na ida,
pois estava exausto e sem nimo para tentar descobrir um novo
caminho.
O nico fato interessante que ocorreu durante a volta foi o
encontro, pelo meu cachorro, de um pequeno cabrito monts. Salvei
o animalzinho da investida do co e, para lev-lo comigo, utilizei um
cip como corda e coleira.
Revendo os objetos confeccionados com o suor de meus braos
e aos quais me sentia intimamente ligado, pelo tempo e esforo
neles despendidos descansei feliz durante vrios dias.
antropfagos = nome dado aos ndios que comem carne humana; o mesmo que canibais, a expedio = o reconhecimento na eventualidade = em caso diariamente contemplava = via sempre itinerrio = caminho da investida = do ataque
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E percebi que aqueles objetos familiares haviam adquirido, pelo uso
dirio, um sentido todo especial, um sentido que certamente no
teriam, se os houvesse comprado prontos e os trazido para ali. Eles
eram importantes por serem o fruto de meu trabalho, do trabalho
penoso e rduo a que fui obrigado para sobreviver.
fruto de meu trabalho = feito por mim
-
CAPTULO XI
Aprendendo a Gostar da Ilha
Como houvesse deixado o cabrito na casa do vale, fui busc-lo
to logo me recuperei do cansao da ltima viagem. Carreguei
comigo uma corda bem forte para o caso de ter que arrast-lo, mas,
para meu espanto, o animalzinho logo me veio comer na mo o
capim que lhe estendi e passou a me seguir por toda parte. E me
acompanhou, confiante, para a casa do litoral.
Capturei na volta um belo papagaio, to manso que se deixou
prender sem sequer desconfiar de minha inteno. Logo lhe constru
uma gaiola e pouco depois percebi que j me conhecia e logo repetia
as palavras que lhe ensinava. Minha famlia tinha ganho um novo
membro; agora se compunha do co, das gatas e do papagaio.
A esta altura, j tinha conscincia de minha solido
irremedivel, e s vezes vacilava em plena caa, detendo-me para
pensar na situao difcil em que me encontrava e pondo em dvida
a importncia dos meus esforos para sobreviver. Logo conclu,
porm, que, embora no fosse uma situao agradvel, era contudo
o resultado do rumo que eu prprio escolhera. Fora exclusivamente
minha a responsabilidade pela deciso tomada, cabendo-me,
portanto, enfrentar-lhe as conseqncias. Alm disso, havia um
motivo bastante pondervel para que me sentisse alegre: longe das
cidades, onde homens como meu pai viviam e obrigavam seus
semelhantes a viver uma vida sem sentido e cheia de preocupaes
com as convenes sociais, eu podia, enfim, me considerar livre.
capturei = prendi tinha conscincia de = reconhecia a vacilava = parava bastante pondervel = importante convenes sociais = costumes
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Lamentava, apenas, a ausncia de companheiros, jovens
rebeldes como eu, com quem pudesse conversar. Descobrira que a
vida na selva poderia tornar-se bastante suportvel e at agradvel,
apesar de sua dureza, se eu pudesse contar com a companhia de
amigos imbudos do mesmo ideal de liberdade. E nesse estado de
nimo, completei o segundo ano de exlio.
No quero importun-los, com excesso de detalhes de minha
vida cotidiana, mas deixo bem claro que nunca estive ocioso. De
manh cedo inclua na refeio o suficiente para me fortalecer
fisicamente e enfrentar o trabalho. No descuidava tambm dos
exerccios espirituais, quase sempre meditaes sobre o valor da
liberdade e seu lamentvel desconhecimento por parte da maioria
dos seres humanos, demasiado mesquinhos e egostas para se
preocuparem com isso.
A partir das oito ou nove horas segundo meus clculos
empricos, na falta de relgio punha-me a caar e assim passava o
resto da manh. Aps o almoo, ficava, at escurecer, cuidando da
plantao e da casa, ou ocupado em preparar para os dias
seguintes alguma cabra ou tartaruga que houvesse abatido, a fim de
evitar que sua carne logo se estragasse.
A plantao prosperava, apesar de um ou outro contratempo,
como, por exemplo, quando as cabras comeram as folhas novas,
obrigando-me a construir uma cerca para proteger a plantao.
Enquanto erguia a cerca, conservava ao ombro a espingarda
carregada, para no me arriscar a perder tudo por novo capricho
das incmodas visitantes. noite, o cachorro me substitua na
viglia. E assim as intrusas acabaram perdendo o hbito de comer
as folhas tenras e apetitosas. Afinal, no faltava pelos arredores
capim bastante com que se alimentarem.
exlio = viver em um lugar afastado de sua ptria e de seu meio. empricos = de observao tenras e apetitosas = macias e saborosas
-
Mal dei por concluda a cerca, percebi que um novo flagelo
ameaava a plantao: os pssaros se lanaram ao ataque logo que
as espigas comearam a amadurecer. Quase me desesperei com o
problema, pois me seria impossvel conseguir uma tela
suficientemente grande para cobrir toda a plantao. Os pssaros
mais estranhos batiam asas quando eu me aproximava e pousavam
nas rvores prximas, espera de que eu me afastasse para
reiniciarem o trabalho de devastao do fruto do meu tenaz e
persistente esforo.
Tive, pois, que me valer de um expediente cruel, mas que,
segundo conclu, era a nica maneira de me livrar dos agressores
que punham em risco meu sustento e, em conseqncia, minha
vida: atirei neles com chumbo mido, socado em grande quantidade
no cano da espingarda. Espalhando-se por um amplo crculo onde
se dava a maior concentrao dos pssaros, os chumbinhos
atingiram muitos deles. Depois cravei cada pssaro morto na
ponta de uma fina estaca e espalhei as macabras advertncias por
toda a volta do cercado. O efeito foi imediato e fulminante: os
pssaros no s abandonaram a plantao, como inclusive
desertaram daquela parte da ilha.
Efetuei a colheita em fins de dezembro. Debulhei as espigas,
verificando que conseguira reunir uma boa poro de cevada e
arroz. Era uma esperana de po. Mas como moer os gros e reduzi-
los a farinha? Verifiquei que era impossvel naquelas circunstncias
e encarei a questo da forma mais prtica e objetiva: era prefervel
contentar-me em comer os gros inteiros, pois o importante no era
o po macio que todos obtinham sem qualquer esforo, mas sim a
alegria de ter cultivado os gros preciosos com o suor do meu rosto.
flagelo = mal expediente = meio macabras advertncias = sinal de perigo imediato e fulminante = timo desertaram = fugiram
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CAPTULO XII
O Aprendizado de Oleiro e Padeiro
Enquanto trabalhava, divertia-me com o papagaio. Como j
disse, ele havia aprendido a falar, inclusive meu nome. Por terem
sido suas as primeiras palavras que ouvi na ilha pronunciadas
por outra voz que no a minha sentia-me muito ligado ao
papagaio. Ele amenizava a solido e tornava divertido o trabalho,
com seus chamados estridentes e cmicas imitaes dos meus, s
vezes desesperados, monlogos.
Eu andava ento muito empenhado na tentativa de fabricar
potes de barro, apesar de ignorar completamente o processo de sua
fabricao. Considerando o calor daquela regio, no havia dvida
de que era possvel secar os utenslios modelados; bastaria,
portanto, encontrar o barro adequado modelagem, Tinha
esperana de que, depois de secos ao sol, os potes ao menos
pudessem servir para guardar alimentos secos.
Eis alguns dos fracassos que enfrentei antes de conseguir um
mnimo de xito na nova tarefa que me havia imposto: s vezes os
potes rachavam por excesso de sol; outras, ao contrrio, eles se
desmantelavam ao mais leve toque, por no haverem endurecido o
suficiente; e por fim, nas vezes em que me parecia ter acertado com
a qualidade do barro e o tempo de exposio ao sol, observava que, ao
fim da secagem, os potes estavam estranhamente deformados.
Aps dois meses de trabalho, somente conseguira produzir dois
modestos e grosseiros potes. Coloquei ento cada um, numa grande
cesta, tomando o cuidado de completar com palha os espaos
vazios, para melhor proteger minhas preciosas obras.
oleiro = que trabalha com barro amenizava a solido = alegrava monlogos = conversas modestos e grosseiros = simples ter
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Observando a tcnica que usara para obter as duas peas
utilizveis foi bastante fcil repetir todas as fases da fabricao e,
com isso, passei a ter xito em quase todos os objetos de barro que
resolvi fabricar: pratos, travessas e demais utenslios de que
necessitava. Sob o comando dos meus dedos geis a argila passava a
assumir a forma que eu lhe desejasse imprimir, e os resultados
eram cada vez mais durveis e aperfeioados.
Mas eu tinha uma pretenso mais audaciosa: tencionava fazer
um pote capaz de suportar o fogo e que servisse para cozinhar e
guardar alimentos lquidos. A idia nasceu quando encontrei,
remexendo nas brasas em que cozinhara a ltima refeio, uns
pedaos de argila dura como pedra.
Fiquei assim convencido da possibilidade de obter um
recipiente capaz de resistir ao fogo, se conseguisse improvisar
substitutos para o forno dos oleiros e para o verniz protetor que eles
usam. No tinha a menor idia de como consegui-los, mas talvez
fosse possvel obter tais recipientes por um processo muito mais
simples.
Logo na primeira tentativa, obtive resultado satisfatrio:
preparei uma fogueira com lenha muito seca e empilhei no centro
alguns jarros e pratos. Alimentei o fogo com mais lenha, at perceber
que a argila, j em brasa, no rachava. Conservei o fogo intenso
durante cinco ou seis horas e, aps esse tempo, tratei de diminuir
bastante as chamas, retirando algumas toras.
Quando as ltimas toras de madeira terminaram de arder,
fiquei ansioso aguardando o esfriamento dos preciosos utenslios.
Ainda estavam meio quentes quando os toquei, e pude constatar que
haviam adquirido a solidez da pedra. Da em diante no me faltaram
recipientes de barro.
xito = bom resultado argila = barro pretenso = idia solidez da pedra = dureza
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Fabriquei excelentes pratos e potes que, embora desprovidos de
qualquer valor artstico, atendiam muito bem s minhas
necessidades.
Depois dessa penosa vitria, vi que tinha necessidade de um
recipiente onde pudesse moer o trigo. Cansei de procurar uma pedra
que oferecesse conveniente concavidade e resolvi utilizar madeira
para tal servio. Meu primeiro pilo foi obtido com enorme esforo,
pois o pau-ferro madeira dificlima de trabalhar, mesmo quando
dispomos de ferramentas apropriadas. No sendo esse o meu caso,
levei uma infinidade de tempo para abrir, num tronco de pau-ferro,
uma cavidade adequada.
Com o pilo eu j poderia transformar o trigo em farinha. Era
meio caminho andado para chegar ao po. Eu havia desistido
provisoriamente de muitas comodidades, mas agora, j com a vida
mais organizada e dispondo de melhores utenslios, voltava a me
preocupar com problemas que, por insuficincia de meios, deixara
de lado. Um deles, como vocs sabem, era o fabrico do po.
Ao contrrio dos primeiros tempos que passei na ilha
quando minha sobrevivncia dependia de muita tenacidade e
perseverana minha vida seria ento at montona, se me
satisfizesse com o mnimo necessrio para sobreviver. E como
sempre recusei uma vida ociosa e sedentria, esbocei mentalmente
uma certa prioridade para minhas necessidades, procurando sempre
satisfaz-las pela ordem em que as selecionara. E chegara a vez do
po.
Para obt-lo, faltava ainda uma peneira onde pudesse separar
os gros de trigo das partes inteis que os acompanham. Mas
consegui resolver tambm esse problema, utilizando uns trapos
encontrados no barco.
conveniente concavidade = um fundo de acordo meio caminho andado = uma grande ajuda ociosa e sedentria = parada esbocei mentalmente = planejei as selecionara = as escolhera
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Por outro lado, submetendo alguns recipientes de argila
especialmente modelados ao processo de endurecimento pelo fogo,
obtive substitutos para o forno.
Finalmente, coloquei algumas pores de massa sobre uma
chapa feita de ladrilhos de barro e cobri cada poro com um
recipiente, rodeando-o de carves em brasa, sempre bem acesos. Foi
assim que fiz meus primeiros pes que alis chegaram no
momento exato, pois a proviso de biscoitos havia acabado pouco
antes.
Mais tarde, por incrvel que parea, cheguei a fazer pastis e
bolinhos. Mas confesso que essa tarefa no foi fcil e levou quase um
ano para concretizar-se.
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CAPTULO XIII
Tentativas Para Poder Navegar
Enquanto me ocupava com as tarefas dirias, no me saam
da lembrana as terras desconhecidas, entrevistas do outro lado da
ilha. Tinha uma vontade enorme de conhec-las de perto. Quem
sabe no seriam um continente habitado e com possibilidades de me
fornecer um meio de regressar Europa?
Mas, e se se tratasse de uma das ilhas do Caribe? A idia me
apavorava, pois diziam que seus habitantes eram ferozes como
panteras e at mesmo antropfagos. No sentia o menor desejo de
experimentar uma aventura desse gnero, pois muitos europeus
haviam encontrado naquelas ilhas uma morte terrvel.
Apesar desses prudentes pensamentos, fui vrias vezes at a
praia, para contemplar os restos da canoa que as ondas haviam
trazido do barco naufragado.
A embarcao continuava jogada na areia, quase como no
primeiro dia. Se pudesse consert-la, talvez me animasse a tentar
empreender a travessia at o Brasil. Parecia-me uma empresa
impossvel de realizar sozinho, mas mesmo assim decidi-me a tent-
la, como recurso extremo para voltar civilizao.
Fui ao bosque cortar madeira para algumas tbuas e durante
trs semanas trabalhei duramente no conserto da embarcao, at
que ela me pareceu em condies de uso. Mas to grande era seu
peso, que logo verifiquei a impossibilidade de arrast-la at a gua,
embora mais do que nunca desejasse chegar terra desconhecida.
Pensei em construir outra canoa mais leve utilizando o tronco
de uma rvore gigantesca que crescia na selva. Embora fosse uma
tarefa possvel, no resolveria o problema principal: o transporte.
desse gnero = assim uma empresa = um trabalho recurso extremo = nico jeito
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Naquele momento, entretanto, sentia-me demasiadamente
entusiasmado para poder raciocinar com lgica. E at parece
incrvel que eu tenha passado trs meses preparando uma nova
canoa, quando a que havia recuperado permanecia abandonada,
apenas por impossibilidade de remoo.
Animado por um entusiasmo indescritvel, cavei com fogo o
grande tronco selecionado e derrubado para a misso. Aps trs
meses, tive a satisfao de ver pronta uma bela canoa com
capacidade para transportar mais de vinte homens, e, portanto,
mais que suficiente para me transportar com toda a carga til que
havia na ilha. Faltava somente o mais importante: lanar a
embarcao ao mar.
No consegui mov-la um milmetro, apesar do desesperado
esforo de cavar a terra nas laterais, formando uma espcie de
canal desgraadamente seco por onde a canoa pudesse
deslizar. Vendo que havia dedicado meses inteiros a um esforo
intil, sentia-me frustrado e abandonei novamente a idia.
* * *
No quarto ano de minha permanncia na ilha, senti fortalecer-
se em mim a convico de que o mundo dos homens era uma
realidade distante que j no me dizia respeito. Submisso vontade
divina, podia agora contemplar serenamente o mundo maravilhoso
que tinha volta: a melodia dos pssaros, a variedade de flores e
rvores estranhas, os regatos de guas cristalinas, o cenrio
encantado que tive a ventura de conhecer ainda no esplendor de
sua beleza natural e do qual era o nico e privilegiado espectador.
raciocinar com lgica = pensar certo impossibilidade de remoo = no poder tirar do lugar frustrado = desanimado a convico = a certeza no me dizia respeito = no era para mim
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E me agradava particularmente o fato de ter livrado minha vida da
perniciosa influncia dos fatores mais negativos do mundo civilizado:
a competio, a explorao do homem pelo homem, a maldade e a
injustia.
Pensava nas moedas de ouro que encontrara no barco
naufragado e sorria ironicamente. Enfim, fui adquirindo uma nova
filosofia de vida, e com ela uma inalterada e permanente serenidade.
Dormia tranqilamente porque vivia em paz comigo mesmo e
amanhecia feliz por estar vivo.
Com o tempo, muitos dos objetos que trouxera do barco
comearam a se acabar. Assim foi com a tinta. Precisei adicionar-lhe
um pouco d'gua, para faz-la durar mais algum tempo. Ficou
porm de uma tonalidade azul muito plida, que mal me permitia
distinguir no papel as palavras escritas. Os biscoitos ainda duraram
menos.
Depois dos biscoitos e da tinta, chegou a vez das roupas, que
se haviam transformado em farrapos. Felizmente tinha guardado
com cuidado as camisas quadriculadas de marinheiro que
encontrara s dzias no barco. Alis, encontrara tambm uns
pesados capotes sem qualquer utilidade numa regio quente como
aquela. Comecei a consertar meus trapos e fiz tambm calas e
casacos, utilizando-me de peles de animais e do tecido dos espessos
capotes.
Alguns anos se passaram sem que nada de especial ocorresse;
os dias eram praticamente iguais e minhas ocupaes muito pouco
variavam.
Mas muitas surpresas ainda me estavam reservadas...
fatores mais negativos = coisas ms filosofia de vida = modo de pensar me estavam reservadas = eu teria
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CAPTULO XIV
Novas Expedies
J com mais de oito anos de permanncia na ilha, assisti a
uma violenta enchente. Nunca vi, desde a minha chegada, o mar
subir to alto quanto naquele dia. E presenciei as guas realizarem,
em poucos segundos, o que todo o meu esforo fora incapaz de fazer:
a canoa abandonada na areia foi tragada por uma onda violenta e
arrastada, sem rumo, mar adentro. Com uma forte corda presa ao
pescoo, nadei at ela e a amarrei, prendendo depois a outra ponta
rvore mais firme que encontrei por perto.
Observei em seguida que as dimenses da precria
embarcao no me permitiam realizar a viagem projetada na direo
da nesga de terra firme, divisada a dezenas de quilmetros ao longe,
do outro lado da ilha. Deveria consolar-me em costear o litoral. E
para isso fiz um mastro e uma vela, adaptei caixas de guardar man-
timentos, amarrei a espingarda na proa e instalei na popa um
guarda-chuva antigo. Aps abastecer a canoa com algumas
provises metade de uma cabra, po, arroz e rum, alm de
casacos que me serviriam de colcho e cobertor durante a noite
pude, afinal, partir a seis de novembro para uma viagem que acabou
sendo mais longa do que eu supunha.
A razo do retardo foi a existncia, na regio oriental da ilha,
de uma rea infestada de rochedos, uns aflorando perigosamente
superfcie e outros traioeiramente submersos. O choque com o
menor deles bastaria para cortar ao meio a canoa e, para evit-lo,
tive que me afastar bastante do litoral.
presenciei = vi tragada = levada divisada = vista retardo = demora
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Antes, porm, logo ao topar com os primeiros rochedos, ancorei
a canoa e subi a uma colina para melhor observar a regio.
Verifiquei que era muito acidentada, mas no o suficiente para me
impedir de contorn-la. Tive medo, contudo, quando observei o
mar do outro lado do rochedo. Percebi uma forte correnteza e
tambm sinais de remoinho perto da margem. Como o vento
soprasse muito forte, permaneci dois dias ali; no terceiro, vendo a
calma do mar, resolvi aventurar-me.
Quando me afastei um pouco da costa, encontrei-me em
guas muito profundas e vi-me arrastado por uma correnteza to
vertiginosa que mal podia manter a embarcao na superfcie.
Procurava desesperadamente sair da correnteza, aplicando aos
remos toda a fora de que pude dispor. Tudo em vo: a correnteza
me arrastou para alto-mar e me senti seriamente em perigo.
De repente, quando o sol se aproximava do ocaso, notei uma
ligeira brisa a sudoeste. Icei as velas e percebi que o vento as
inflava e conduzia o barco de volta ilha.
Na praia, amarrei o barco e fui a p em direo a oeste,
caminhando vrios quilmetros at alcanar a casa. Mergulhei num
sono profundo e durante muito tempo no tive a menor vontade de
navegar.
Os anos passavam e a munio se acabava. Estudei um meio
de construir armadilhas para cabras, mas os primeiros dispositivos
que armei saram frgeis: prendiam a caa mas a deixavam escapar
antes de minha chegada. Mudei de sistema, portanto, cavando
grandes buracos nas clareiras, os quais eram cobertos de gravetos
que no suportariam o peso de uma cabra. Por fim, camuflava o
local com ramos de rvores e punha em cima capim fresco, cevada e
arroz, para atrair os animais.
muito acidentada = perigosa vertiginosa = forte se aproximava do ocaso = ia se esconder camuflava o local = tampava o buraco
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Certa manh encontrei um bode numa dessas armadilhas;
noutra, uma cabra com dois filhotes. O macho estava to feroz que
no me atrevi a descer para busc-lo; como tambm no quisesse
mat-lo, preferi deixar que fugisse, pois no me ocorreu que poderia
amans-lo pela fome. Consegui levar os outros para casa, aps
amarr-los. Posteriormente outras cabras e bodes caram nas
armadilhas. Amansei-os todos e constru para eles um cercado,
evitando assim que voltassem a ter contato com os companheiros
selvagens.
Um ano aps, j dispunha de um rebanho de doze cabras, que
no ano seguinte se transformariam em quarenta e trs, sem contar
as abatidas para meu sustento. Alm da carne, as cabras me
forneciam leite em abundncia, e sempre ouvi dizer que o leite de
cabra o mais nutritivo que existe. Com o leite que sobrava eu fazia
manteiga e queijo, dando-me os parabns por saber aproveitar to
bem os pobres recursos que possua.
Retomei ento a tarefa de observar a parte desconhecida da
ilha. Evidentemente preferi viajar por terra, pois ainda trazia bem
viva a lembrana da minha ltima e fracassada excurso martima.
No posso deixar de rir ao rabiscar aqui um desenho de como
ia vestido. Por essa poca minha aparncia era bastante estranha:
usava um complicado chapu de pele de cabra, que me protegia um
pouco do sol e da chuva; vestia um largo calo e um sobretudo
esfarrapado; e nos ps, umas botas improvisadas completavam meu
extico traje. Levava ainda duas machadinhas em torno da cintura,
alm de um par de bolsas uma contendo chumbo de caa e a
outra plvora. Por fim, longas barbas me cobriam o pescoo, pois,
como podem imaginar, eu no perdia tempo em barbear-me.
no me atrevi = no tive coragem no me ocorreu = no lembrei abatidas para meu sustento = que matei para comer sobretudo = casaco extico = esquisito
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Assim parti para mais essa viagem, chegando pouco depois
ao lugar onde havia enfrentado o ltimo grande perigo.
Caminhava tranqilamente pela praia, quando, junto a meus
ps, vi umas marcas que me fizeram disparar o corao ao mesmo
tempo de satisfao e de temor.
disparar o corao = assustar
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CAPTULO XV
Estranhas Descobertas
Logo reconheci a natureza das marcas: eram de ps
humanos! As pegadas de um homem!
Parei estarrecido. Subi numa rvore e depois numa colina,
para observar os arredores. No vi ningum. Voltei praia para me
certificar de que no estava enganado.
Eram mesmo pegadas humanas!
Assustado, voltei para casa, parando sobressaltado ao menor
rudo. Queria muito encontrar algum, mas temia o tipo de pessoa
que poderia encontrar. Porque era quase certo que se tratava de
algum selvagem antropfago. E no via com bons olhos a idia de
terminar meus dias transformado em churrasco.
Cheguei em casa pulando de dois em dois os degraus da
escada de mo. Nem uma lebre espavorida ou raposa perseguida
seriam capazes de igual destreza. A dvida e o medo me dominavam,
quase no podendo acreditar na inquietante descoberta.
O mais provvel era que fossem selvagens, cujo barco
desviado pela correnteza tivesse ali aportado. Mas onde estariam?
Talvez me tivessem visto e, como eu, tambm fugissem
sobressaltados, mas era igualmente possvel que estivessem
reunindo reforos para me devorar sem demora. Esgotado por esses
inquietantes pensamentos, acabei adormecendo.
No dia seguinte, procurei voltar ao ritmo normal de vida,
tentando aliviar um pouco a forte tenso em que me encontrava.
no via com bons olhos = no gostava espavorida = assustada destreza = ligeireza esses inquietantes pensamentos = essas preocupaes a forte tenso = o nervosismo
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Ordenhei as cabras, espaireci pelos arredores, cuidei das plantaes
e brinquei com os animais. Diga-se de passagem que, alm do
cachorro e do papagaio, eu possua, por essa poca, dois belos gatos
filhos das gatas que trouxera do barco, cruzadas com gatos
selvagens da ilha.
Resolvi ento olhar mais uma vez as misteriosas pegadas e
para l me dirigi, desejando intimamente no encontr-las.
Mas l estavam elas, exatamente como eu as vira antes. Sendo
muito menores que a marca de meus ps, no poderiam ter sido
feitas por mim. Era certo, portanto, que algum havia desembarcado
na ilha; talvez um nufrago como eu, talvez um habitante da terra
que se via ao longe.
Ao regressar, pensei em tornar mais segura a defesa da casa
do litoral, e para isso constru uma nova cerca de fortes estacas,
bem afiadas na parte superior. Para melhor proteo, abri orifcios
na paliada, de tamanho suficiente para neles introduzir o cano da
espingarda.
Sentindo a necessidade de preparar um novo abrigo para
provises, pus-me a procurar um local adequado. Numa dessas
buscas, vislumbrei, ao longe, algo que me parecia uma
embarcao. Lamentei no ter comigo uma das lunetas que
encontrara no barco; assim poderia verificar se se tratava
realmente de uma embarcao aquele ponto distante no mar. Mas,
como a mancha desaparecesse em seguida, fiquei quase certo de se
tratar mesmo de um barco. De qualquer forma quela distncia
seria intil qualquer tentativa para chamar a ateno da
tripulao.
O dia me reservava surpresas, e a prxima seria muito mais
terrvel e macabra.
espaireci = andei orifcios na paliada = buracos na cerca introduzir = enfiar
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Afastando-me um pouco de casa, subitamente deparei com
crnios e ossos humanos atirados areia. Arrepiei-me todo,
pensando que idntico poderia tambm ser meu fim. Ao lado da nova
descoberta, percebi os sinais de uma fogueira, na certa levantada
para o preparo de um banquete cujo prato principal poderia ter
sido a carne daqueles ossos.
Abandonei o local s pressas e preocupado refugiei-me na
cabana. Da em diante nem me atrevi a usar a espingarda nas
caadas, temendo que os tiros denunciassem minha presena.
Tinha-a, porm, sempre comigo, e mesmo ao dormir deixava-a ao
alcance das mos.
Enfrentava mais uma vez a implacvel lei da sobrevivncia, e
chegava concluso de que somente eliminando o perigo que me
ameaava poderia evitar que me devorassem ou escravizassem.
Pensei tambm em tentar libertar as vtimas dos selvagens e com
elas organizar uma resistncia efetiva e eficaz contra o inimigo
comum.
idntico = igual levantada = feita prato principal = comida implacvel lei da sobrevivncia = luta pela vida
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CAPTULO XVI
Um Novo Refgio
Comecei a procurar, nos arredores do ponto de reunio dos
supostos canibais, um esconderijo de onde pudesse vigiar a costa e
t-los ao alcance de minhas armas, caso voltassem.
Preparando o local, nele me instalei disposto a esper-los. Mas
em vo os aguardei por muitos meses, sem que nada de novo
acontecesse, e j comeava a me cansar dessa espera intil.
Os selvagens, ao agirem de forma to cruel, sem dvida no
tinham conscincia do crime que praticavam. Devoravam seus
semelhantes para no morrer de fome, e essa era a lei da sua
sobrevivncia. Elimin-los, e acabar assim com a ameaa em
potencial que eles representavam, era, porm, a lei da minha
sobrevivncia.
Sabendo que eles poderiam chegar numa ocasio em que eu
no os estivesse observando, continuei a viver em constantes
sobressaltos. J nem me atrevia a fazer fogueira, para evitar que
me localizassem se acaso estivessem na ilha. Passei a fabricar
carvo vegetal, queimando lenha enterrada, e assim conseguia
assar a carne e o po com que me alimentava.
Certo dia, quando cortava lenha, percebi, por trs de uma
moita de capim, uma estranha escavao. Aproximei-me curioso e
cheguei boca de uma caverna suficientemente alta para que eu
pudesse permanecer em p no seu interior. Fixando bem os olhos no
ponto mais escuro de sua parte interna, percebi dois grandes olhos
que brilhavam diabolicamente e piscavam com a dbil luz que
entrava pela abertura.
em vo = sem resultado constantes sobressaltos = preocupao escavao = buraco dbil = fraco
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Apressei-me em sair, mas logo refleti que depois de tantos anos
de solido naquela ilha, nem a presena do Diabo deveria assustar-
me. E aquele ser parecia ter tanto medo de mim quanto eu dele.
Com uma tocha na mo, voltei caverna e entrei. Ouvi ento um
gemido de dor.
Suei frio, mas me aproximei mais. E deparei com um velho
bode agonizante, que morria de fome e velhice. Verifiquei ento que a
caverna era do tamanho de um quarto comum e at parecia ter sido
feita por mos humanas. No fundo havia um estreito corredor, que
s rastejando poderia atrave