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canção, teatro e sociedade Walter Garcia " DA DISCUSSÃO É QUE NASCE A LUZ "

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canção, teatro e sociedade

Walter Garcia

" DA DISCUSSÃO ÉQUE NASCE A LUZ "

Page 2: DA DISCUSSÃO É QUE NASCE A LUZ

Fino Traço Editora Ltda.

© Walter Garcia

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora.

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seu autor e não expressam necessariamente a posição da editora.

G211d

Garcia, Walter "Da discussão é que nasce a luz": canção, teatro e sociedade / Walter Garcia. - Ebook - Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020.

Inclui bibliografia ISBN 978-65-89011-30-9

1. Música popular - História e crítica - Brasil. 2. Música - Aspectos sociais - Brasil. 3. Música popular - Teatro brasileiro. I. Título.

20-67229 CDD: 782.421640981 CDU: 78.038.6(81)

Coleção Estudos Brasileiros | Editora Fino Traço

Coordenadores: Monica Duarte Dantas Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)Marcos Antônio de Moraes Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

Conselho Editorial:

Amy ChazkelColumbia University (EUA)John Tofik KaramThe Lemann Center for Brazilian Studies, University of Illinois (EUA)Anthony PereiraKing’s College (Inglaterra)Peter W. Schulze Instituto Lusobrasileiro, Universidade de Colônia (Alemanha) Diana Gonçalves VidalInstituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Fino Traço Editora ltda.finotracoeditora.com.br

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2007: está mais fácil trabalhar com canção popular-comercial no Brasil?

Quando começou a trabalhar com música, Tom Jobim ouviu que provavelmente morreria “pobre, tuberculoso e na sarjeta”, extenuado de correr atrás do aluguel tocando piano em inferninhos. E também que deveria seguir com Chopin, Rachmaninoff, em vez de perder tempo com sambinhas, entre bêbados e prostitutas.1 O jovem Chico Buarque, logo após o repentino e estrondoso sucesso de “A banda”, afirmou que começaria a se “preparar para o vestibular numa Faculdade de Letras”.2 Até viver com mulher e filha na Itália, entre 1969 e 1970, tomando distância da repressão da ditadura militar, acreditava que suas canções não lhe garantiriam uma carreira profissional duradoura.3 Mas achava divertida a rotina de artista, às vezes enfrentada sem “rigor profissional nenhum”.4 Mesmo ao voltar do exílio, a sua bagagem para show de um dia só, em qualquer cidade, era uma sacola plástica; dentro dela, uma escova de dentes, a pasta e uma camisa.5 Depois é que os shows lhe causariam mais nervosismo que diversão.6 Já os Mutantes se divertiam em

1. Cf. SOUZA, Tárik de; CEZIMBRA, Márcia; CALLADO, Tessy. Tons sobre Tom. Rio de Janeiro: Revan, 1995, p. 76. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista: Tom Jobim”. In: JOBIM, T. Songbook Tom Jobim, volume 2. Produzido por Almir Chediak. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p. 13 (entrevista concedida a Almir Chediak). Cf. JOBIM, Antonio Carlos. A vida de Tom Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora Rio Cultura/ Faculdades Integradas Estácio de Sá, s. d., p. 42.2. Cf. FREIRE, Roberto, “Chico dá samba”. Realidade, ano I, n. 9. São Paulo, Editora Abril, dez. 1966, p. 72.3. Cf. BANDEIRA, Julia. Retrato de Chico por suas meninas. São Paulo, COMFIL-PUCSP, 2004. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura, 1999, p. 104.4. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 52 a 63 (a citação literal pode ser lida à p. 62).5. Cf. RIBEIRO, Hamilton, “Chico põe nossa música na linha”. Realidade, ano VI, n. 71. São Paulo, Editora Abril, fev. 1972, p. 16.6. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 29-39.

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programas de tevê e estúdios de gravação, na década de 1960, e estrelavam campanhas publicitárias como se tudo fosse uma brincadeira.7

Qualquer tempo passado foi melhor? Ou se tornou mais fácil para jovens de classe média, de lá pra cá, trabalhar com canção popular-comercial no Brasil, ingressar no mercado, afirmar-se e sobreviver, quem sabe, com alguma boa folga? Cada um dos três Mutantes assinalou um caminho profissional diverso, enquanto o grupo ia se modificando, até findar. Trata-se de fatos bem conhecidos, mas não seria desinteressante analisá-los. Deixando de lado determinações de ordem pessoal, a trajetória de Rita Lee, a de Arnaldo Baptista, a de Sérgio Dias e a forma como o grupo reapareceu há pouco8 poderiam indicar aspectos constitutivos do mercado da canção, o qual não está mesmo para brincadeiras, se é que esteve antes.

Chico Buarque viu suas canções e seus romances serem estudados nas faculdades de letras. Também digno de estudo seria o fato de Carioca, praticamente só com novas composições, sair em 2006 pela Biscoito Fino,9 enquanto a série de doze DVDs que organiza a nada provisória carreira de Chico é lançada por uma major, a EMI.10 Leve-se em conta ainda que os seus shows permanecem lotados, segundo a grande imprensa, apesar (ou por causa?) do alto preço dos ingressos, objeto de alguma contestação.11 Para o artista, cabe agora negociar: “O público quer ouvir músicas velhas e eu quero cantar músicas novas. Então, quando eu faço show, canto metade do show para satisfação pessoal e a outra metade, para o público. E ficamos quites”.12

Tom Jobim, em 1994, negou a autoria de uma frase a ele atribuída e que se tornara célebre: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto

7. Cf. CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. São Paulo: Editora 34, 1995.8. Cf. GARCEZ, Bruno, “Cult entre britânicos, Mutantes ‘revivem’ em Londres”. Publicado em: 22 mai. 2006. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/060522_mutantesshowlondresbg. Acesso em: 7 out. 2020. Cf. NEY, Thiago, “Mutantes retornam ao Brasil depois de quase 30 anos”. Publicado em: 25 jan. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67845.shtml. Acesso em: 7 out. 2020.9. Cf. BUARQUE, Chico. Carioca. Biscoito Fino, BF 646, 2006. Edição com CD e DVD (documentário Desconstrução, direção de Bruno Natal). 10. Com direção de Roberto de Oliveira, os doze DVDs foram vendidos em quatro caixas – as duas primeiras, produzidas em 2005, as duas últimas, em 2006.11. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 37.12. Cf. DEL RÉ, Adriana, “As boas novas de Chico Buarque”. O Estado de S. Paulo, 28/1/2005, p. D5.

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do Galeão. “Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes músicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo muito sucesso aqui no Brasil.”13 Todavia, dois anos antes afirmara: “Que assombro ver uma país musical como o nosso, mas onde os músicos não podem viver!”.14

Retomemos a pergunta: está mais difícil trabalhar com música popular-comercial do que já foi? Embora a resposta dependa do lugar que se ocupa no mercado, como é regra, creio que não vivemos hoje um momento acentuadamente pessimista. As novas tecnologias de produção, que vêm barateando os custos, as possibilidades de difusão e de distribuição via internet, os editais de fomento e incentivo à cultura e até mesmo as restritas e restritivas verbas de patrocínio sustentam um otimismo claramente não-hegemônico, nada efusivo, mas ainda assim disseminado.

O mercado ideal

Mas é certo que, há mais ou menos dez anos, o otimismo parecia mais sólido. Se não estou equivocado, foi durante o período em que se venderam discos no Brasil como nunca. O patamar de 1 milhão de cópias deixara de ser ficção para as majors, conforme anunciavam jornalistas, e as vendas monstruosas eram todas de produtos brasileiros. Uma notícia divulgava quem eram os vencedores, em 1996, classificando-os como num supermercado e usando de uma ironia típica da imprensa (forma de aparentemente se distanciar daquilo que lhe é mais íntimo?): “o sócio de carteirinha, Roberto Carlos, o sertanejo de Zezé Di Camargo e Luciano, o pop do Skank [com dois discos], o samba de Martinho da Vila, a trilha de ‘O Rei do Gado’ e o bumbum do ‘É o Tchan’”.15 Talvez o Mamonas Assassinas merecesse estar na lista, não sei bem em qual prateleira. Até março daquele ano – quando houve o acidente com o avião em que viajava –, o grupo vendera 1,8 milhão

13. Cf. JOBIM, Tom, “Tom Jobim, a última entrevista”. Qualis, n. 24. São Paulo, Qualis Editora, jan. de 1995, p. 22 (entrevista a Walter de Silva). 14. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista à Cleusa Maria”. Jornal do Brasil, 1º/3/1992. Disponível em: http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas. Acesso em: 10 mai. 2005.15. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Venda favorece artista nacional”. Folha de S.Paulo, 23/12/1996, p. 4-3.

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de cópias em oito meses (recorde para um disco de estreia; até onde sei, a marca não foi superada).16

O segmento MPB, rótulo com maior prestígio no mercado brasileiro, atingiria o patamar com Prenda minha, de Caetano Veloso, gravado ao vivo – um formato de sucesso – e lançado em 1998.17 Ao ultrapassar 1 milhão de cópias, foi o CD de maior vendagem na carreira de Caetano (refiro-me aos meses de lançamento, de acordo com o que foi noticiado; mesmo porque, é difícil informar-se sobre as vendas de um disco brasileiro ao longo de décadas).18 Nele está “Sozinho” (Peninha), incluída em Suave veneno, uma novela das 8 da Rede Globo. E também regravações e interpretações de canções alheias, em sua maioria já conhecidas pelo público do show – que participa aplaudindo não só ao final das execuções, mas também aos primeiros versos reconhecidos – ou, mais genericamente, pelo consumidor de MPB.

Há ainda uma faixa em que Caetano lê um trecho de seu livro Verdade tropical, publicado em 1997, no qual se fala de Gilberto Gil, moço, aparecendo na televisão e sendo saudado por Dona Canô.19 O livro também está em duas fotos do CD. Caso fosse bem examinado, o produto esclareceria os contornos do segmento de mercado, apesar do conhecido repúdio de Caetano Veloso à sigla MPB. No período de lançamento, o que pareceu mais saliente foi o acerto comercial do disco. Mas, numa tentativa rasa de sistematização e reiterando o que já se observou, diga-se que o disco se apresenta como o recorte da carreira bem-sucedida de um trabalhador que atua, desde a tropicália nos anos 1960, em várias frentes: compositor, cantor e músico, bastante talentoso e carismático em tudo isso; pensador com grande capacidade crítica; e personagem da mídia com grande capacidade para se promover, o que é feito de modo ostensivo. Estando todos esses trabalhos, com seus fundamentos artísticos, reflexivos ou comerciais, absolutamente misturados, fica complicado examinar as partes e avaliar o efeito final da mistura.

16. Cf. VEJA, “A morte no auge”. São Paulo, Editora Abril, 13/3/1996, p. 97.17. Cf. VELOSO, Caetano. Prenda minha. PolyGram, 538 332-2, 1998.18. Cf. BIN, Marcos Paulo, “Caetano ainda mais próximo da Universal”. Publicado em: 3 out. 2004. Disponível em: http://universomusical.com.br/materia.asp?mt=sim&cod=me&id=409. Acesso em: 7 out. 2020.19. Cf. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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Quanto aos pequenos selos, faria história Sobrevivendo no inferno do Racionais MC’s, lançado em 1997 pelo independente Cosa Nostra e distribuído pela Zambia, empresa criada para levar o disco ao mercado: em quatro semanas, 200 mil cópias vendidas; no ano seguinte, meio milhão, sem falar de premiações na MTV.20 Se fosse para uma prateleira, seria a de rap. De modo algum isso daria conta, entretanto, do valor do produto.

Dizendo de modo sucinto, trata-se do mais alto nível artístico alcançado no mercado fonográfico naquele período e de uma das principais realizações da canção popular-comercial no Brasil. Faz uma síntese aprofundada, na e pela canção, da experiência de viver nas grandes cidades brasileiras ao final do século XX. Ou seja, dali em diante o trabalho do Racionais se afirmaria definitivamente como padrão para quem se sente atraído pela qualidade artística da canção, inclusive por suas relações com o consumo em grande quantidade. Sem qualquer exagero, Sobrevivendo no inferno não interessa somente a nós, que vivemos a História que ali se condensa, de forma crítica e de modo a atingir a nossa sensibilidade. Enquanto obra de arte que é, o disco permanecerá interessando ao longo do tempo.21

Parecia assim que o mercado brasileiro se agigantava, entre 1994 e 1998, de um jeito que nele todo músico acharia espaço, cada qual ocupando um lugar digno. No mercado paulistano (que acompanho mais de perto), os shows do Karnak, o primeiro disco do grupo, lançado pelo selo Tinitus em 1995, e o videoclipe de “Comendo uva na chuva” (André Abujamra), veiculado na MTV, entusiasmavam o chamado público formador de opinião, isto é, classe média, universitário, ligado à imprensa. Vou simplificar as coisas: parecia assim que todo músico acabaria se destacando na tevê, e não apenas durante aqueles 15 minutos famosos. A dúvida, se é que havia, talvez ficasse por conta da conhecida relação faixa de consumo/grade de programação: meu target garantiria horário nobre para meu produto – ou seria melhor mudar de público e de apelo?

20. Cf. RACIONAIS MC’s, Sobrevivendo no inferno, Cosa Nostra/ Zambia, CDRA 001, 1997. KALILI, Sérgio, “Mano Brown é um fenômeno”. Caros Amigos, ano 1, n. 10. São Paulo, Casa Amarela, jan. de 1998, p. 31; KALILI, Sérgio, “Os mano detonaram...”. Vip Exame. São Paulo, Abril, set. 1998, p. 55-58.21. Cf. GARCIA, Walter, “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa: revista de literatura brasileira, n. 4/5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP/ Editora 34, 2003, p. 166-180. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2447-8997.teresa.2003.116377. Acesso em: 7 out. 2020.

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Adiante retomarei a dúvida. Por ora, lembre-se que não se tratava de um crescimento apenas do mercado fonográfico. Em meio à euforia do Plano Real, uma agência de publicidade descobriu “como é possível vender tanto televisor, geladeira, celular e outros bens se a renda individual brasileira é tão baixa” (o censo de 2000 apontou que 51,9% dos trabalhadores recebiam até dois salários mínimos; mais de dez salários mínimos, apenas 7,7%): “o Brasil é muito pobre na renda individual e razoavelmente desenvolvido em nível de renda familiar. As pessoas se juntam e compram apartamento, televisão, telefone”.22

Não discutirei aspectos que requerem conhecimentos de que não disponho, pois não sou economista: a expansão do crediário para as classes D e E no quadro do capitalismo financeiro; o vínculo entre o aumento da financeirização da economia e as baixas taxas anuais de crescimento do PIB brasileiro durante a euforia do Real; os efeitos do baixo desempenho econômico sobre a distribuição e a concentração de renda; a integração informal e a autônoma ao mercado de trabalho como consequências do desemprego. Vou-me limitar a números do negócio da canção. Em relação ao mercado mundial de discos, na virada de 1978 para 1979 o Brasil alcançou o 5o lugar, melhor posto até hoje.23 Aproximou-se novamente da colocação naquele feliz 1996 quando, após três anos de aumento no consumo, alcançou “um faturamento de US$ 891 milhões”, subindo do 13o para “o 6o posto no ranking dos mercados fonográficos, com um crescimento de 35%” em relação ao ano anterior.24

É verdade que não durou muito tal proeminência, logo a seguir chamada de bolha. Já em 2001, o mercado hegemônico brasileiro cairia do 7o para o 12o lugar,25 com vendas totais na casa de R$ 726 milhões, relativas a 75 milhões

22. Cf. GARRIDO, Juan, “A lógica do crescimento”. Gazeta Mercantil: balanço anual, ano XXV, n. 25. São Paulo, julho de 2001, p. 196. Para os dados do Censo Demográfico 2000, consultar www.ibge.gov.br e sua divulgação n’O Estado de S. Paulo em 9/5/2002, p. C1; C7-C10, e em 30/9/2003, p. A10 a A12.23. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 58.24. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Brasil não é mais ‘primo pobre’”. Publicado em: 14 mai. 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/5/14/ilustrada/2.html. Acesso em: 7 out. 2020.25. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Mercado musical nacional cai 25%”. Folha de S.Paulo, 3/5/2002, p. E-4.

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de unidades vendidas. Depois perderia essa colocação, retomada em 2004 quando, em relação ao ano anterior, “cresceu aproximadamente 17% em termos de valor” e 18% em unidades vendidas, para o que contribuiu fortemente o “sucesso dos vídeos musicais em DVD”, que passaram a representar “26% do mercado total”, “com um incremento de 101% em termos de valor” (note-se que essa dinâmica também ajuda a entender a divisão recente da obra de Chico Buarque entre a Biscoito Fino e a EMI). Nesse ano de 2004, as vendas totais ficaram em R$ 706 milhões, com cerca de 66 milhões de unidades vendidas.26 Números inferiores, portanto, aos de 2001. Todavia, não foi apenas o mercado brasileiro que diminuiu no período, o consumo mundial de produtos da grande indústria da canção se retraíra. Sabe-se que as majors identificaram “a pirataria comercial e a troca ilegal de arquivos”27 como principais responsáveis pela crise. Mas a luta contra a reprodução indiscriminada de formatos digitais não se assemelha ao feiticeiro que já não consegue dominar as potências demoníacas que evocara?

Esqueçamos a pergunta e ampliemos o foco em outra direção. O censo brasileiro de 2000 apontava, desde 1991, aumento de 86,9% para 93% no número de domicílios com energia elétrica. Domicílios com rádio, em 2000, eram 87,4%. Com televisão, 87%. A população já passava de 169 milhões de habitantes (169.799.170), nas cidades vivendo 81,1% (cerca de 138 milhões). Não havia informações sobre o número de domicílios com aparelhos de som. A confiar em uma estimativa jornalística, porém, entre julho de 1994, início do Plano Real, e os primeiros meses de 1998, “algo como 20 milhões de aparelhos de som (incluindo CD players e rádio-gravadores) foram vendidos”.28 Creio que o quadro aqui retomado, mesmo que bastante incompleto, seja suficiente para os objetivos deste artigo. A sua análise, contudo, requer antes um novo recuo.

26. Cf. ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos). Annual Publication of the Recording Market 2004. Rio de Janeiro, ABPD, 2005, p. 15 e 20. Disponível em: https://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Mercado_Brasileiro_de_Musica_2004.pdf. Acesso em: 8 out. 2020.27. Ibidem, p. 20.28. Cf. FRANCO, Célia de Gôuvea, “Barulho das massas”, Folha de S.Paulo, 12/4/1998, p. 5-4.

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O ideal do mercado

Na década de 1970, o predomínio da música estadunidense nas programações das rádios e a grande quantidade de discos aqui produzidos com matrizes estrangeiras estavam no centro dos debates sobre o mercado brasileiro de canções. Discutia-se a taxação das cópias fabricadas com matriz importada. Afirmava-se que as empresas multinacionais agiam apenas segundo o interesse financeiro, o que provocava estranheza e até mesmo indignação; corretas, no meu modo fora de moda de avaliar. Quer dizer, vigorava a ideia de que a arte possui uma substância e a cultura de tradição oral uma dinâmica que não se confundem com a produção em escala industrial e com a mera prática mercantil, embora todas essas coisas não sejam incompatíveis. Acontece que o círculo então firmado entre as grandes gravadoras e os meios de comunicação de massa se consolidava com base na profissionalização dos negócios.

O que se entendia por isso? De um lado, buscavam-se compositores e intérpretes brasileiros capazes de “‘administrar suas próprias carreiras’”, profissionais que pensassem “‘seriamente em gravar e vender amplamente’”. Os termos entre aspas foram ditos por um alto executivo à imprensa, na época.29 Em outras palavras, se os profissionais da canção também seriam artistas, se as suas obras desenvolveriam uma relação com o ouvinte para além do descartável, se palavras cantadas e demais sons comunicariam experiências que ampliassem a sensibilidade, a imaginação, a crítica, o conhecimento e, portanto, a própria realidade – as grandes gravadoras não tinham essas inquietações como as mais relevantes naquele período de crescimento do mercado. Aliás, seria digno de pesquisa investigar em que medida e sob quais condições os objetivos artísticos e culturais existiram/existirão dentro da lógica das majors em qualquer tempo, assunto que não será abordado aqui com a extensão e a profundidade que merece.

29. Os termos são citados e comentados por MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 78 e 68, respectivamente. Sobre o assunto, consultar também JAMBEIRO, Othon. Canção de massa: as condições da produção. São Paulo: Pioneira, 1975, especialmente p. 25-38; e BUARQUE, Chico et alii, “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Aldir Blanc”. Participações de Sérgio Cabral, Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira. Homem, Suplemento especial. São Paulo, Editora Abril, set. 1977.

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De outro lado, conforme: 1) o estágio tecnológico; 2) a propriedade dos meios de produção; 3) a distribuição em lojas; de outro lado, repito, era mais fácil lucrar com um fonograma estrangeiro, cujas vendas no país de origem e em outros mercados já haviam coberto os custos, do que com uma nova gravação nacional, a qual implicaria investimento de mais capital e consequentemente maiores riscos, dentre os quais se incluía a possibilidade de censura pelo governo militar. O paradoxo é que ter uma canção censurada também podia conferir a compositor e/ou intérprete boas chances de difusão e de consumo.

Ainda que um tanto esquematicamente, toda essa situação pode ser exemplificada se observarmos três estratégias que as gravadoras multinacionais adotaram após 1973. Foi quando a crise mundial do petróleo e o fim do milagre econômico brasileiro ameaçaram a expansão do mercado fonográfico, que vinha se dando de forma contínua. Entre 1965 e 1972, segundo a Associação Brasileira dos Produtores de Discos, houve “um crescimento de 400% nas vendas do setor”. Em 1965, tivera início o programa Jovem Guarda, na TV Record de São Paulo. Um empresário já afirmou que, a partir dali, mais de 50% da execução pública passou a ser de música brasileira. Ao final da década de 1970, o crescimento médio do mercado fonográfico seria de 15% ao ano, apesar da inflação e do aumento no preço dos discos. Vejamos como as multinacionais conseguiram manter a tendência, após uma única desaceleração, em 1973, atribuída “à falta de matéria-prima em quantidade suficiente”.30

Em fins de 1977, o então presidente da WEA afirmou à imprensa que o sucesso nacional, “‘quando ocorria, era sempre muito maior que o sucesso de qualquer lançamento internacional, dado que o artista brasileiro contava com uma faixa mais ‘profunda’ de público’”. Na sua avaliação, “‘o mercado

30. As citações entre aspas podem ser lidas em MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, edição citada, p. 67 e 73. Baseio-me ainda em DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada, p. 54, 57 e 58; SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e prevê extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor). Publicado em: 25 jul. 2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u15826.shtml. Acesso em: 8 out. 2020; AUTRAN, Margarida, “O Estado e o músico popular: de marginal a instrumento”. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ Editora Senac Rio, 2005, p. 89.

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para a música brasileira representava 60% do mercado global de discos’”. As declarações foram retomadas por Rita Morelli, em seu livro Indústria fonográfica: um estudo antropológico. Ela observa que a música estadunidense, nos anos 1970, liderava no segmento de público mais jovem que, recém-integrado ao mercado e com menor poder aquisitivo, preferencialmente adquiria compactos simples, consumindo “efêmeros sucessos estrangeiros”. Esse segmento ainda adquiria, porém, compactos de “brasileiros que não apenas compunham e interpretavam em inglês, mas também adotavam pseudônimos estrangeiros”. Em outras palavras, havia uma tal demanda de canções em inglês no Brasil que compensava investir nesse tipo de produção.31

A título de curiosidade, ficam aqui três exemplos, pinçados mais ou menos ao acaso em ABZ do rock brasileiro, guia de Marcelo Dolabela. O primeiro é Morris Albert (Maurício Alberto Kaiserman), autor e primeiro intérprete de “Feelings”. Recorro agora ao livro A canção no tempo, de Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo. Lançada em 1973, “Feelings” foi tema de Corrida do ouro, novela da Rede Globo que estreou no ano seguinte. A canção fez sucesso não só no Brasil como na América Latina (“Sentimientos”, disco de ouro no México) e nos Estados Unidos, onde vendeu mais de um milhão de cópias (foi gravada por Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Dionne Warwick e Ray Coniff, entre outros). Após tamanha repercussão, Morris Albert foi acusado de plágio. Uma corte estadunidense concedeu coautoria ao francês Loulou Gasté em 1987, enquanto a revista Time apontou que uma ária de Verdi bem poderia ser a fonte da melodia, e não a balada “Pour toi”. Não tendo bases para avaliar nem a sentença nem a opinião da revista, transfiro a questão para o presente. Como se sabe, não é estranha a semelhança de uma canção pop nacional com outra, seja pela repetição de fórmulas já bem consumidas, seja pela cópia de modelos internacionais, basicamente estadunidenses ou ingleses. Mas vale perguntar: não seria estranho o fato de o mercado hegemônico parecer cada vez mais acostumado à semelhança, não seria estranho esse mercado desejar a semelhança cada vez com maior intensidade, não seria estranho escutar, com frequência, “eu gosto de música

31. Cf. MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, edição citada, capítulo 1.

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que eu conheço”, “eu gosto de música que toca no rádio” ou – advirta-se que apenas registro frases que escutei – “muita música inédita enche o saco”?

O segundo exemplo é Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima), o qual iniciou sua carreira solo com “My Life”, tema da novela O casarão, da Rede Globo, em 1976. O terceiro, Mark Davies, pseudônimo utilizado por Fábio Jr. na gravação de dois compactos simples.32

Portanto, a primeira estratégia para enfrentar um possível declínio na expansão do mercado fonográfico foi a reprodução de matrizes estrangeiras e a produção local de canções em inglês. A segunda, como já está anunciado, o investimento na canção brasileira. A fim de melhor compreender esse ponto, todavia, é necessário observar o lugar do LP no quadro, em contraposição ao do compacto, acima referido.

A principal fonte de renda das grandes gravadoras, na década de 1970, era obtida com o LP. Esse suporte difere de seu substituto, o CD, por uma série de itens bem conhecidos; entre outros: processo de reprodução do som; embalagem e correspondente tratamento gráfico; custos de produção. O último item, junto com fatores adiante comentados, determinou uma mudança fundamental na configuração do mercado hegemônico a partir dos anos 1990. Nos 1970, o LP se alinhava, em geral, entre os artigos oferecidos para as classes mais abastadas, tal como o primeiro ou o segundo automóvel da família, o televisor em cores, a geladeira nova, algumas marcas de cigarro, os grandes empreendimentos imobiliários, o aparelho de som 3 em 1 de última geração.

Como se percebe, outra vez o mercado fonográfico não atuava à margem. O programa econômico que levou ao chamado milagre pretendia, entre seus objetivos básicos, “fomentar e dirigir o processo de concentração de renda (processo este inerente às economias capitalistas subdesenvolvidas em geral) para beneficiar os consumidores de bens duráveis, isto é, a minoria da população com padrões de consumo semelhantes aos dos países cêntricos”, na análise de Celso Furtado. Tal objetivo se vinculava à política governamental “muito bem-sucedida” que visara “atrair as grandes empresas transnacionais

32. Cf. DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Estrela do Sul, 1987. Cf. SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza Homem de. A canção no tempo, v. 2: 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 200-201.

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e fomentar a expansão das subsidiárias destas já instaladas no país”.33 Daí uma distribuição de renda concentrada, por assim dizer. Com o aumento da participação na renda dos 20% mais ricos, e sobretudo dos 5% mais ricos,34 o mercado se fortaleceu apresentando “o perfil de demanda mais atraente para as referidas empresas”.35

E a verdade é que o crescimento econômico prosseguiu, mantendo igual orientação, apenas diminuindo seu ritmo: entre 1967 e 1973, a média foi de 11,2% ao ano; entre 1973 e 1980, 7,1%.36 As bases industriais priorizavam a venda de produtos de maior valor agregado, ou seja, de consumo restrito às camadas de maior poder aquisitivo. Uma lógica que inspirou a máxima “primeiro crescer, depois dividir”. Válida, ao que parece, não só para aquele período, uma vez que o Brasil ficou em segundo lugar entre os países que mais cresceram no século XX, com “média de 4,5% ao ano, igual à da Coreia do Sul e só superada pela de Taiwan (5%)”. Aliás, “de 1900 a 1973, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo – média de 4,9% ao ano”.37

Não é de estranhar, assim, que durante os anos 1970 a chamada MPB tenha se consolidado no mercado tendo como principal suporte o LP. É certo que lançava também compactos, mas seu público majoritário podia arcar com o gasto obviamente superior escolhendo o formato, digamos, mais completo. De passagem, note-se a contradição entre a resistência à ditadura militar

33. Cf. FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 107 e 103, respectivamente.34. Cf. ALENCAR, Francisco; CAPRI, Lúcia; RIBEIRO, Marcus Venício. História da sociedade brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981, p. 312-334. 35. Cf. FURTADO, Celso, O mito do desenvolvimento econômico, edição citada, p. 104. 36. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A., “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil, volume 4 (Contrastes da intimidade contemporânea). 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 620. 37. Cf. GOIS, Antônio; ESCÓSSIA, Fernanda da, “País fica mais rico e mais desigual”. Publicado em: 30 set. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj3009200301.htm. Acesso em: 8 out. 2020.João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais detalharam alguns dados da concentração de renda no período: em 1960, os 5% mais ricos detinham 28,3% da renda e, em 1980, 37,9%; tomados os 20% superiores, essa camada detinha 54,8% da renda em 1960 e, em 1980, 66,1%; os 60% mais pobres, em 1960, detinham 24,9% da renda; em 1980, 17,8%; quanto à classe média baixa, ou seja, os 20% entre superiores e inferiores, em 1960 detinham 20,3% da renda; em 1980, 16,1%. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, edição citada, p. 633-634.

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que muitos emepebistas (produtores, mediadores culturais e consumidores) empreenderam e o fato de pertencerem às classes favorecidas pela política econômica; é um tema rico, que ainda precisa ser melhor analisado. À parte essa questão, é necessário não perder de vista a complexidade de alguns produtos de MPB que saem no período. Há neles investimento artístico no desenvolvimento de álbuns que merecem atenção renovada. Não falarei da parte gráfica, completamente secundária ao que procuro identificar. Refiro-me ao gesto de não enfeixar canções aleatoriamente, de não selecionar hits (ainda que muitas faixas tenham se tornado; há quem jure que alguns desses álbuns são coletâneas), de não forçar participações famosas e dispensáveis mas que atraem consumidores, de não completar de qualquer jeito o tempo que acompanha a canção de trabalho, de não tratar o Lado B como um banco de reservas. Acima de tudo, refiro-me à exploração de uma determinada estética. Um investimento que torna objetivo para o ouvinte, na forma de uma canção e na relação entre as canções do LP, uma certa realidade emocional, muitas vezes em paisagem extensa e sempre recriada pela imaginação; e com potencial grande de crítica, uma vez que a realidade foi transfigurada e o saldo final é humanizador.

É o caso, por exemplo, de A tábua de esmeralda (Jorge Ben, 1974), Água viva (Gal Costa, 1978), Amoroso (João Gilberto, 1977), Araçá Azul (Caetano Veloso, 1973), Cantar (Gal Costa, 1974), Chico Buarque (1978), Clube da Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972), Clube da Esquina 2 (Milton Nascimento e muitos convidados, 1978), Elis & Tom (1974), Estudando o samba (Tom Zé, 1976), João Gilberto (1973), Meus caros amigos (Chico Buarque, 1976), Pássaro proibido (Maria Bethânia, 1976), Refazenda (Gilberto Gil, 1975), Transa (Caetano Veloso, 1972), Urubu (Tom Jobim, 1975). Não se trata de uma lista à top music, e sim de alguns exemplos, daí a ordenação e o número de LPs. Apenas não citei mais de dois álbuns de um mesmo artista, para não ser cansativo, nem gravações de shows, porque têm características próprias, e nem citei alguém que não tenha iniciado carreira nas décadas anteriores.

Não se deve confundir estética com moda, e daí o quesito “novidade” necessitar de cuidado numa avaliação desse tipo. É recorrente, na literatura da época, a ideia de que esses produtos apresentavam estéticas velhas, pois somente repetiam ou desdobravam o que a bossa nova, a MPB dos festivais, a

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tropicália haviam feito. Como se uma década fosse um milênio, já se observou. Curioso é que a radicalidade de álbuns como Araçá azul e Ou não (Walter Franco, 1973) não obtiveram espaço confortável no mercado. Observe-se também que só mediante uma ideia mais ou menos generalizada de diluição é que as fronteiras antes nítidas entre canção de protesto e tropicalismo, por exemplo – ou entre sambinhas bossa-nova, peças sinfônicas de Tom Jobim, canções do Clube da Esquina –, passaram a conviver dentro da mesma sigla. Influência da estratégia de venda das gravadoras? Seja como for, e simplificando as coisas, esperava-se um novo movimento musical que, quando afinal chega, acaba mais ou menos confinado a São Paulo – o grupo heterogêneo formado por Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno (apesar da imensa consagração inicial), Itamar Assumpção e Banda Isca de Polícia, Premeditando o Breque ou Premê (apesar de vir a ser produzido por Lulu Santos dentro de uma major), Rumo, Tetê Espíndola (apesar do Festival dos Festivais da Rede Globo, do Globo Repórter, do filme Mônica e a Sereia do rio), entre outros músicos e cancionistas que lançam discos independentes no começo dos anos 1980, respondendo assim à consolidação profissional do mercado, e que, mais tarde, serão rotulados com a expressão “vanguarda paulista”.

O investimento em música brasileira não se resumia aos nomes consagrados da MPB, na década de 1970, responsáveis por manter o consumo num bom patamar, de forma contínua. Nessa fase estrearam Ivan Lins, Gonzaguinha, Djavan, João Bosco, Aldir Blanc, Simone, entre outros que foram incorporados à sigla, mais cedo ou mais tarde. Também Raul Seixas, Secos & Molhados – logo Ney Matogrosso seguiria sozinho –, os Novos Baianos – depois, separadamente, Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor. Em comum, o estabelecimento de relações entre alguma forma de música brasileira e alguma vertente do rock, o que não explica muita coisa, mas ajudava a identificá-los no mercado. E Fagner, Belchior, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho... As reticências são propositais, porque a relação apenas sugere o que ficou conhecido como boom nordestino. Antes dele, houve o boom do samba e o boom do choro. Ao final da década, o boom da gafieira. Ou seja, o investimento maciço em uma determinada moda de canção brasileira, durante um curto

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período, forçosamente curto pela dinâmica de qualquer moda – exposição violenta de produtos que assombram o consumidor, impelindo-o à compra, e que se desgastam rapidamente, seja porque qualquer exposição demasiada satura o ouvinte, seja porque o interesse despertado é semelhante ao de um trocadilho, seja porque o interesse está na exposição e não no produto –, esse investimento maciço foi inventado pela grande indústria de discos antes dos anos 1980, quando, porém, iria adquirir maior importância para os negócios – com o boom do rock, o de sertanejo e, já na década seguinte, o de axé music e o de pagode.

Por outro lado, não é incomum que da quantidade se extraia qualidade, embora se configure um esforço ingênuo imaginar que isso sempre aconteça. Depende. Mas de fato a indústria fonográfica, em seu trabalho de transformar qualquer realidade local em objeto de consumo, isto é, de transformar uma certa identidade cultural em padrão de comportamento descartável, muitas vezes faz circular canções interessantes por si mesmas, um golpe de sorte que decorre da riqueza da tradição oral e musical no Brasil. Naqueles booms dos anos 1970, artistas e produtos artísticos pegaram carona. Um efeito colateral, se quisermos. Em que medida o próprio tamanho do mercado na época ou a incipiência da tal profissionalização contribuíram para isso, seria útil examinar. Fiquemos com alguns poucos exemplos.

A fim de não repetir nomes e ter de fazer ressalvas, e ainda correndo o risco de não oferecer uma análise detida, volto-me para o caso do samba. Ótimos exemplos poderiam ser os dois primeiros discos de Cartola gravados em estúdio, lançados pela nacional Marcus Pereira Discos (em 1974 e 1976). Ou o terceiro e o quarto, lançados pela multinacional RCA-Victor (em 1977 e 1979). Ou todos eles, pois o que se tem ali é a experiência de uma vida inteira depositada cuidadosamente nas canções. Outro exemplo poderia ser Nervos de aço, álbum de Paulinho da Viola de 1973 – uma verdadeira aula de samba enquanto tradição móvel, expressão que tomo de empréstimo de Mário de Andrade. Mas Paulinho está no mercado fonográfico desde os anos 1960, e o boom do samba se daria a partir de 1974. No registro de Margarida Autran, escrito ao final daquela década, esse investimento no gênero mostraria “como a máquina do disco funciona perfeitamente integrada à máquina estatal”: o governo militar, “em busca de uma imagem

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mais simpática ao povo”, buscava então contrabalançar o “esvaziamento da cultura nacional, reflexo de uma política repressiva”, por meio de apoio ao samba, decretado “linguagem musical nacional”.38 A rima pode ter sido uma solução, mas a escolha do emblema nacional não foi nada... original, como se sabe. Voltando a Paulinho da Viola, seu Memórias chorando (1976) pode ser exemplo de produto artístico lançado em meio a outro boom, o do choro, gênero também incentivado pelo regime militar a partir de 1974.39

Finalizando o tópico, a terceira estratégia das grandes gravadoras para evitar a retração do mercado fonográfico brasileiro, nos anos 1970, foi a quase onipresença da canção na indústria cultural. Deve-se considerar que estudamos um momento em que “o caráter de mercadoria dos produtos culturais passa a ser evocado com a maior naturalidade, por todas as partes envolvidas”. O comentário é de Marcia Tosta Dias, em seu Os donos da voz, livro do qual me sirvo como um guia para esse breve esquema.40 Além das trilhas sonoras de novelas da Rede Globo, já citadas em número suficiente, Dias destaca a notável interação do mercado fonográfico e do publicitário: “Propagandas mundializadas, como a dos cigarros Marlboro e Hollywood, como tantas outras, veiculam canções que estarão sempre associadas a tais produtos”.41 Não é necessário repetir todos os exemplos trazidos pela socióloga em seu excelente trabalho. Apenas gostaria de acrescentar que, segundo Fernando Reis, a profissionalização também foi uma marca do meio publicitário naquele período:

38. Cf. AUTRAN, Margarida, “Samba, artigo de consumo nacional”. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 71.39. Cf. Idem, “‘Renascimento’ e descaracterização do choro”. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 81.40. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada, capítulo 2 (“Trajetória da indústria fonográfica brasileira: anos 70 e 80”); a citação literal pode ser lida à p. 68. Sobre o assunto, consultar também ORTIZ Renato. A moderna tradição brasileira. 5ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2001; Idem, Mundialização e cultura. 5ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2003.41. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada, p. 66.

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Se a década de 60, em nossas agências, pode ser caracterizada como a década da criatividade, com o prestígio maior concedido aos homens de criação, os anos 70, que trouxeram a valorização da agência como empresa, levariam à consolidação definitiva do negócio publicitário entre nós. (...) Passaram nossas agências a saber encarar as crises com seriedade, através da profissionalização de todos os seus setores essenciais. (...) Surgiu como grande anunciante o governo, tanto na administração direta como na indireta, tanto no âmbito federal como no estadual e no municipal. O governo também se profissionalizou como anunciante.42

Por que tocar, gravar pra quê?

À luz dos anos 1970, creio que aquele otimismo mais sólido e o quadro dos 1990 possam ser mais bem avaliados. Talvez eu esteja equivocado, mas salta à vista, duas décadas adiante, um certo sucesso da orientação profissional do mercado hegemônico implementada desde o período anterior, sucesso que produziu a naturalização da empreitada. Em outras palavras, as bases da profissionalização do setor se tornariam... quase invisíveis. Nesse sentido, mesmo a queda de consumo e de oferta da música estrangeira no Brasil precisa ser encarada com reserva. Em parte, isso se deve ainda à força das culturas de tradição oral que, construídas no processo de afirmação e transformação das culturas negras, são levadas a contexto diverso ou passam a responder à dinâmica mercadológica. Vale lembrar, uma configuração que se sente desde pelo menos a consolidação do samba de carnaval e do samba de meio de ano nas rádios, durante a década de 1930. E configuração que não é exclusiva do Brasil, que nisso coincide, em alguma medida, com os EUA (blues, jazz, soul), com Cuba (rumba, bolero, son, chachachá), com a Argentina (tango), para ficar em exemplos bem próximos.43

42. Cf. REIS, Fernando, “São Paulo e Rio: a longa caminhada”. In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990, p. 365-366.43. Cf. SANMIGUEL, Alejandro Ulloa, “La música popular urbana de América Latina y el Caribe. Sus orígenes sociales”. Boletín Música, nº 14. Havana, Casa de las Américas, 2004, p. 22-28.

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Em outra parte, tampouco foi privilégio do Brasil que a canção tenha se tornado mais local. Aqui chegamos a cerca de “80% de música brasileira, não só em venda como em execução de rádio”, no início dos anos 2000.44 Mas o lema das grandes corporações capitalistas não passara a ser justamente “Pense global, aja localmente”?45 E já em meio à crise de 2002, repetindo aquela estratégia dos anos 1970, o então presidente da Sony Music Internacional, Rick Dobbis, advertia: “Se você lida apenas com produtos internacionais, não estará lidando com muitas pessoas – o pessoal da mídia, repórteres, programadores de rádio e outros – para quem a cena musical [doméstica] é muito importante”.46

É claro que a digitalização alterou profundamente algumas coordenadas que vinham se mantendo. Já se disse, o desenvolvimento tecnológico barateou os custos de produção. Uma das consequências foi que as grandes gravadoras se desfizeram dos estúdios de gravação. Terceirizaram igualmente a fabricação e a distribuição. Mas a lógica da forma-mercadoria prosseguiu como diretriz principal, se não como diretriz única. Aprimorando-a, as majors passaram a investir, cada vez com maior intensidade, na difusão, isto é, na espetacularização do produto, isto é: intensificou-se cada vez mais o investimento não na canção em si, mas na forma como a canção seria vista – sim, vista, antes de ser ouvida. As majors tornaram-se assim “escritórios de gerenciamento do produto e elaboração de estratégias de mercado”.47

As brechas que então se abriram podem ser facilmente percebidas. Houve uma multiplicação das iniciativas independentes e dos pequenos selos, e a possibilidade de afirmação no mercado pela associação com alguma grande transnacional. Foi quando, talvez, a dúvida sobre o target a ser atingido, via tela da tevê, se instalou definitivamente no plano de gravação.

Para o consumidor, o CD se tornou um suporte de preço bem mais acessível que o LP em tempos anteriores. Some-se a isso a expansão do

44. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e prevê extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor), edição citada.45. Cf. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura, edição citada, p. 181.46. Cf. GOLDSMITH, Charles; JOHNSON, Keith, “Pirataria emudece artistas locais em gravadoras”. O Estado de S. Paulo (The Wall Street Journal Americas), 4/6/2002, p. B14.47. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada, p. 21.

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crédito para compra de televisores e aparelhos de som, com um número cada vez maior de modelos para todos os bolsos – e mantenha-se à parte aqueles aspectos econômicos do qual me esquivei, os quais ampliariam enormemente a discussão.

Considere-se, porém, que os principais compradores da indústria fonográfica deixaram de ser exclusivamente as lojas especializadas. Nos anos 2000, grandes magazines e supermercados passaram a ameaçar “essa hegemonia” e a alterar “o perfil do consumidor”.48 Para esses intermediários, o CD ideal não ocupa espaço em exposição ou no estoque, ao longo de meses ou até de anos. Almeja-se a rápida substituição dos discos nas prateleiras, num prazo curto, e é óbvio que se almejam vendas em boas quantidades. Se preciso for, as promoções cuidarão de tudo o que ameaça encalhar.

Uma vez que a lógica é a da pura venda, o compromisso com o funcionamento mercadológico pelos empresários, assumido sem muitos problemas durante a década de 1970, se torna cada vez mais agudo. E invisível, de certo modo, também para muitos cancionistas (para a maioria deles, quer dizer, de nós?). Pensemos no quadro atual. Um dos sintomas do que afirmo é a crescente dificuldade de colocar em questão a qualidade artística do que quer que seja. Não digo que todos assinem embaixo da máxima que ouvi do diretor de uma sociedade arrecadadora: “Disco não é feito pra ouvir, disco é feito pra vender”. Mas não é curioso que músicos e cantores justifiquem tantas coisas apenas observando “Ah, mas é bem produzido...”? Afinal, o que “isso é bem produzido” quer dizer? Que tem potencial de venda? Que se parece um pouco ou bastante com algo que já vendeu? Que se enquadra perfeitamente nos moldes de um gênero ou de um estilo conhecidos? Que tem a capacidade de assombrar o ouvinte, grudando em sua cabeça logo à primeira audição? Que favorece a imagem da banda?

De resto, um julgamento crítico que sustenta que nem toda canção popular-comercial é uma forma de arte tem gerado reações que vão do desprezo à ira, com as exceções que sempre existem. Não é estranho que ofenda o reconhecimento, que nunca será mesmo consensual, do caráter artístico de algumas canções, não de todas? Que ofenda a valoração qualitativa

48. Cf. MOURA, Roberto M. Sobre cultura e mídia. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001, p. 92.

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e a discriminação entre arte e comércio (imbricados na prática) que daí advêm? Ou que ofenda a tentativa de chegar a um resultado sobre a questão, mais do que o próprio resultado em si?

Canções têm várias serventias, como se sabe. Há canção para toda sorte de ocasiões, inclusive canções que servem admiravelmente como necessário pano de fundo. Para uma refeição saudável, por exemplo. Não estou negando nenhuma das funções. Ao defender a ideia de canção artística, a minha preocupação é com o totalitarismo, sei que a palavra é forte, da ideia de canção meramente comercial. Essa última se instalou de tal modo no nosso dia a dia, que parecemos acostumados a supervalorizar o banal, o repetitivo, o ensurdecedor, o acessório, o infantil, a canção que atua radicalmente como jingle de um show visual qualquer; quando não, como jingle da marca de um cantor, de uma cantora, de um grupo – ou, na forte interação do negócio fonográfico e dos outros negócios, como jingle de refrigerantes, espelhinhos, perfumes, não nos intervalos comerciais, mas dentro da programação musical.

Canções no Brasil, desde sempre, serviram também à sobrevivência, e não apenas para a classe média, é claro. Em vários casos serviram e ainda servem como tábua de salvação em meio à miséria econômica, pois tanto essa miséria não foi erradicada como o povo, ou melhor, as classes economicamente baixas seguem com sua rica cultura, um capital nada desprezível. É complicado lidar com essa situação, pois se é absurdo justificar a manutenção da miséria pela cultura... não há por que ignorar o valor humano, em sentido amplo, que subsiste nos produtos culturais que resultam dessa história.

Um músico e produtor independente aqui de São Paulo costuma brincar, nas sessões de seu estúdio, dizendo “– Por que gravar? Já tem disco pra caramba por aí!”. Vamos levar a sério o chiste. O fato de a produção haver se tornado mais acessível inegavelmente facilita hoje o trabalho com a canção. Mas o foco de interesse do mercado não migrou para a etapa de difusão? Como apostar, por exemplo, na internet (número de usuários brasileiros à parte), quando o nosso interesse permanece preso ao espetáculo e/ou ao reconhecível?

Sem muita certeza e da perspectiva dos cancionistas, neste momento, percebo duas alternativas radicais. Uma é abraçar de modo consciente, o que auxiliará no trabalho, a produção comercial. Quer uma dica? Esqueça

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majors e trilhas de novelas. Custo x benefício, melhor investir em vinhetas para televisão. A outra alternativa é pesquisar a criação artística. Nesse caso, talvez o primeiro desafio seja conseguir, na própria forma do produto, quebrar a expectativa hegemônica do público e interessá-lo. Não há fórmula mágica para isso, mas a ideia não é nova e pode ser mais bem explicada. Tentarei: o desafio é interessar o público, na própria realização da obra, desenvolvendo uma forma que não satisfaça o (mau) costume do consumidor mimado. Tão mais mimado quanto mais afeito ao gesto de deletar ou não com um simples clique – sem pensar, sem nem sentir, como se qualquer canção fosse a repetição do que já se ouviu ou do que se ouvirá daqui a pouco, wherever.