cultura, educaÇÃo e ensino em angola
TRANSCRIPT
-
1
MARTINS DOS SANTOS
CULTURA, EDUCAO E ENSINO
EM ANGOLA (Edio electrnica - 1998)
Copyright 1975-1999 Martins dos Santos
Braga - Portugal
-
2
NDICE
GNESE DA OBRA
OS PORTUGUESES NO CONGO
A CRISTANDADE DE SO SALVADOR
A FUNDAO DE LUANDA
AS CONGREGAES MISSIONRIAS
PRELDIO DA EXPULSO DOS JESUTAS
CINCIAS E HUMANIDADES
DECADNCIA MISSIONRIA
O AMBIENTE PEDAGGICO
CUIDADOS DA ENSINANA
SITUAO ECLESISTICA
LIMITAES DA VIDA ESCOLAR
APTIDO PEDAGGICA
INSTITUTO FEMININO D. PEDRO V
O ENSINO PARTICULAR
TENTATIVAS MISSIONRIAS
PREPARAO PROFISSIONAL
SITUAO DO ENSINO BSICO
O FINAL DE UM PERODO
MUSEUS E ARQUIVOS ORGANIZAO DA INSTRUO PBLICA
PROFESSORES E ESCOLAS
MISSES CIVILIZADORAS E ESCOLAS RURAIS
PATRONOS DAS ESCOLAS PRIMRIAS DE ANGOLA
AMBIENTE DIDCTICO-PEDAGGICO
ASSISTNCIA ESCOLAR E SOCIAL
INICIATIVAS CULTURAIS
RECURSOS FINANCEIROS
ESCOLAS-OFICINAS
ESCOLAS AUTNOMAS
LICEU SALVADOR CORREIA
LICEU DIOGO CO
ENSINO SECUNDRIO EM MOMEDES
ENSINO AGRCOLA
ESTRUTURAS BUROCRTICAS
CORPO DOCENTE DO ENSINO PRIMRIO
-
3
ENSINO PRIMRIO ELEMENTAR
ENSINO LICEAL
ENSINO TCNICO
ESCOLAS DE ENFERMAGEM
AUXLIO AOS ESTUDANTES
INTELECTUALIDADE E INVESTIGAO
SECTOR AGRRIO
SECRETARIA PROVINCIAL DE EDUCAO
CICLO ELEMENTAR - ENSINO PRIMRIO
ESCOLAS DE ARTES E OFCIOS
ESCOLAS DO MAGISTRIO PRIMRIO
ESCOLAS DE HABILITAO DE PROFESSORES DE POSTO
CURSOS DE MONITORES ESCOLARES
CICLO PREPARATRIO
INSTRUO LICEAL
DIFUSO DO ENSINO TCNICO
UNIVERSIDADE DE LUANDA
AGRICULTURA E ENFERMAGEM
DENOMINAO DAS ESCOLAS
CONSTRUES ESCOLARES
APOIO AOS ESTUDANTES
INSTITUIES DE CULTURA
-
4
GNESE DA OBRA
Ao iniciar-se a guerra que levou independncia de Angola,
nos comeos de 1961, foi posta em movimento uma complicada mquina
publicitria que agitou, ao longo de todo o tempo de luta, intensa campanha
de informao. O impacto causado em Portugal por uma guerra daquele tipo
despertou em muitas pessoas uma curiosidade que anteriormente no
existia. O autor desta obra est includo nesse nmero. Procurava-se obter
conhecimentos e aprofundar os antigos; para isso prestava-se a maior
ateno s crnicas, artigos e informaes transmitidos por qualquer dos
veculos de comunicao social. Conseguiam-se com relativa facilidade
obras de cunho histrico e outras em que se apresentava o territrio
angolano e o seu povo sob aspectos actuais. Isso o levou ao estudo intensivo
dos feitos passados, tirando apontamentos que facilitassem a fixao das
realizaes, das campanhas e at das personagens que nelas intervieram.
Assim conseguiu um volumoso feixe de informaes que, por circunstncias
meramente ocasionais, chegou s mos do ento deputado Assembleia
Nacional, Dr. Rui Pontfice de Sousa, que tomou a iniciativa de propor a sua
publicao atravs da Agncia-Geral do Ultramar, dando forma impressa ao
original de A Histria de Angola atravs dos seus personagens principais.
Aproveitamos o ensejo para prestar homenagem e testemunhar gratido
quele deputado, pouco depois vtima fatal de um acidente de automvel.
Quando, em 7 de Fevereiro de 1967, embarcmos para
Luanda, depois de uma nomeao por concurso pblico nos ter colocado em
Angola, o original do livro ficava em Lisboa, entregue ao cuidado dos
impressores. Entre os pontos que se pretenderam focar, e de que se no
conseguiram dados satisfatrios, contava-se a divulgao escolar e a difuso
cultural. Tendo fixado residncia em Luanda, onde as condies de trabalho
eram muito mais fceis, comeou o estudo sistematizado deste tema, com
vista elaborao de uma pequena obra de divulgao. Tomando
conhecimento deste objectivo, o ento Secretrio Provincial da Educao de
Angola, Dr. Jos Pinheiro da Silva, ao mesmo tempo que elogiava e
estimulava o projecto, solicitou que se pusesse de parte durante algum
tempo, para elaborar uma pequena monografia, O Liceu Salvador Correia,
cujo cinquentenrio se aproximava, e que veio a ser publicada exactamente
no dia das comemoraes, 22 de Fevereiro de 1969. A partir desta data,
-
5
foram retomados os trabalhos interrompidos e o livro programado, Histria
do Ensino em Angola, pde ser publicado em Maro de 1970.
Enquanto se elaborava esta obra, e particularmente depois
que o original foi entregue s entidades oficiais, encarregadas de
promoverem a edio, preparou-se um conjunto de biografias de
personagens cujos nomes figuravam nos prticos dos estabelecimentos de
ensino, e assim apareceu o volumoso livro que recebeu o ttulo de Patronos
das Escolas de Angola, publicado em Novembro de 1970.
Quando recebeu a remessa dos exemplares impressos da
Histria do Ensino, e apesar de ter ficado satisfeito com o trabalho, pois
nada havia antes que focasse com relativo desenvolvimento tal assunto, o
Dr. Pinheiro da Silva solicitou ao autor que no parasse as pesquisas e
desenvolvesse a obra, com vista a nova edio, que se pretendia muito
ampliada e mais sistematizada. Sobretudo, pretendia-se coligir o maior
nmero de dados possvel, ao longo de todo o perodo de permanncia
portuguesa (nessa altura a hiptese da independncia era muito vaga e
remota), reunindo num corpo nico elementos dispersos por diversas
publicaes e numerosos arquivos. Foi, de certo modo, este objectivo que
levou o ento Governador-Geral de Angola, tenente-coronel Camilo
Augusto Rebocho Vaz, a subsidiar a deslocao do autor de Luanda a
Lisboa, onde frequentou durante ms e meio, Julho e Agosto de 1971, o
Arquivo Histrico Ultramarino, que guarda o mais rico acervo de
documentos relativos expanso portuguesa no mundo. Como fruto
imediato desse trabalho surgiu, em 1973, o livro Primeiras Letras em
Angola, no qual se traam notas biogrficas de sete centenas de professores
a trabalhar neste territrio desde 1845 at 1919.
Em fins de 1970 ou princpios de 1971, o Dr. Pinheiro da
Silva transferiu-se para Lisboa, onde passou a exercer as funes de
Inspector Superior do Ensino, em todos os territrios ultramarinos
portugueses. Os seus sucessores no apoiavam a tarefa da elaborao do
livro recomendado, que foi um tanto posta de lado. Quando em Junho de
1974 voltou para Luanda, desta vez como Ministro de Estado (sem pasta) no
Governo Provisrio de Angola, Pinheiro da Silva tornou a incentivar o autor
e a solicitar brevidade na concluso do trabalho. Isto fez com que ele se
voltasse a dedicar, com grande entusiasmo, a tal objectivo e o conclusse
no levando em linha de conta um volume suplementar, em que se
inventariariam as instituies , os organismos e as personagens que
exerceram funo relevante na difuso cultural, em todo o territrio e em
qualquer poca histrica, previsto no plano geral da obra. No entanto, a
concluso s se verificou cerca de um ano aps a sada de Angola do Dr.
-
6
Pinheiro da Silva; tendo sido, de incio, elemento de confiana dos
revolucionrios de Abril de 1974, passou depois a ser hostilizado, chegando
mesmo a ver-se obrigado a procurar refgio na Espanha, pois caiu no
desagrado dos elementos da extrema esquerda que, a partir de certa altura,
tomaram conta dos destinos de Portugal e encaminharam, da forma por
todos conhecida, o complexo processo de descolonizao, com os resultados
que o mundo inteiro testemunhou! Tendo recomeado a tarefa, o autor
entendeu que, mesmo sem ter j o apoio daquele poltico, a publicao ainda
era possvel, pois o Ministro da Educao, do Governo Provisrio de
Angola, Dr. Marques Pinto, aceitou a ideia e reconheceu o valor da
iniciativa. No entanto, os acontecimentos precipitaram-se e, quando em 22
de Setembro de 1975 deixou Angola, levava na sua bagagem o manuscrito
da obra, que ainda se tentou editar em Lisboa, no sendo possvel vencer os
obstculos levantados.
No se trata de um livro de leitura amena e de grande
atractivo para o comum dos leitores. Deve considerar-se um trabalho que
poder interessar o curioso da aco civilizadora de Portugal, o estudioso
que quiser informar-se, o autor que utilize o material coligido como
elemento subsidirio de outros trabalhos. S assim se aceitaro, por
exemplo, as numerosas datas que para o leitor comum sero cansativas mas
que para o estudioso so pontos de referncia apreciveis. S sob esse ponto
de vista podero aceitar-se as inumerveis referncias criao,
transferncia e extino de escolas. Ainda debaixo do mesmo prisma, foram
includas no livro breves mas numerosas biografias de titulares de escolas,
aparentemente deslocadas mas que tero o mrito de fixar nomes que,
devido independncia, foram eliminados. Ter certo interesse a indicao
dos livros usados nas escolas, sobretudo em certos perodos histricos, pois
pela anlise deles podero tirar-se concluses interessantes quanto
metodologia empregada pelo corpo docente. Tambm na mesma linha de
pensamento se fizeram referncias, em certo ponto, s verbas oramentadas
para as escolas, quer fossem destinadas construo, ampliao ou
apetrechamento das instalaes, quer se destinassem a auxiliar os estudantes
sob outros aspectos.
O hipottico leitor do trabalho dever, portanto, como de
boa lgica, colocar-se a par dos objectivos previstos, tanto os que foram
concretizados como os que no foi possvel realizar, devido escassez de
meios fiducirios, limites de tempo e condicionalismo poltico. Deu-se
obra uma ordenao que se aproxima da literria, em vez de coligir apenas
uma vasta gama de elementos e fez-se a sistematizao que se julgou
suficiente, com o objectivo de tornar a leitura mais convidativa e a consulta
-
7
mais rpida e mais fcil.
Podemos, pois, concluir que o autor comeou por se
interessar pelo conjunto de informaes referentes a Angola, tanto de hoje
como de ontem, mas dando preferncia aos feitos do passado. A carncia de
dados sobre a cultura e a educao despertou o interesse por este tema.
Dedicou bastante interesse pelas notas biogrficas, pois est convencido de
que a Histria no pode ser a crnica de um caudilho nem o relato da
deambulao de um rebanho humano.
O acervo de informaes, aqui reunidas, no pode nem deve
considerar-se uma apologia da aco civilizadora de Portugal. O que tem de
elogioso e construtivo advm da prpria natureza das coisas; houve apenas a
preocupao de focar iniciativas e mencionar realizaes. Pode, portanto,
ser referncia laudatria ou matria de acusao; no foram poucos os
defeitos, no foram raros os desvios de rumo.
Portugal j foi acusado de fazer a "desafricanizao" das
populaes. Parece mais exacto dizer que procurou, em toda a parte, em
todos os domnios, e ao longo de sculos de Histria, "europeizar" as
populaes, sem destruir sistematicamente os valores tradicionais. A aco
desenvolvida em favor da escola e do ensino teve em vista civilizar, educar,
cristianizar. A escolaridade foi idealizada e realizada por europeus.
No houve a preocupao de fazer obra literria. No houve
cuidados estilsticos, mas teve-se em considerao a clareza e a pureza da
linguagem. Na aridez do assunto, teve em vista a leveza da redaco, clareza
de pensamento e atractivo da leitura. No se conseguiu perfeitamente este
desiderato, porm esforou-se, na medida do possvel, por atingi-lo.
Um dos trabalhos referidos comemorou o cinquentenrio do
ensino liceal em Angola; outro integrava-se na coleco comemorativa do
IV centenrio da fundao de Luanda, cujas solenidades no chegaram a
realizar-se, devido descolonizao e independncia. A obra intitulada A
Histria de Angola ... constitua leitura recomendada no Curso de Histria,
ministrado na Universidade de Luanda, Delegao do Lubango (S da
Bandeira).
-
8
OS PORTUGUESES NO CONGO
Os navegadores portugueses, lanando-se explorao da
costa africana e navegao atravs do Atlntico, deram incio a uma das
empresas mais empolgantes da Histria. No pode deixar de causar
admirao o facto de ser um pequeno e pobre Pas a realizar uma das mais
difceis, morosas e dispendiosas iniciativas que um povo jamais realizou. E
no deve passar sem referncia o pormenor curioso de se prolongar por
espao de um sculo desde a segunda dcada do sculo XV at segunda
dcada do sculo XVI sem denotar cansao, sem que se tenha esboado
sequer a ideia da desistncia. Se houve empresas humanas que tiveram
repercusso na evoluo histrica, os Descobrimentos martimos
portugueses no podem deixar de ser colocados em lugar destacado!
A gesta assombrosa das navegaes atravs dos mares
desconhecidos, importa diz-lo, assentou um dos seus pilares bsicos nas
vantagens materiais que dela poderiam advir, mas baseou-se tambm no
misticismo alimentado pelo ideal, na curiosidade cientfica e na atraco de
enfrentar corajosamente o desconhecido, desvendando segredos e
desfazendo a bruma do mistrio. Os portugueses da poca souberam
integrar-se no esprito prtico e sonhador, realista e quimrico, preso s
realidades terrenas mas pairando alto nos domnios da imaginao, de que o
Infante de Sagres foi o prottipo mais perfeito.
A expanso portuguesa atravs do mundo desconhecido, mas
de maneira muito particular na frica e na Amrica, s se pode
compreender, s se justifica e explica pela aco civilizadora que foi
realizada ou que pretendeu realizar, em benefcio dos moradores dessas
regies. A permanncia lusa atravs de sculos de domnio apoiou-se no
ensino ministrado aos naturais e na assistncia religiosa prestada aos seus
compatriotas, e depois tambm populao aborgene, que nela colaborou
prestimosamente, umas vezes de maneira activa e outras vezes apenas de
forma passiva.
Desde muito cedo Portugal tomou conscincia de, a pouco e
pouco, ir alargando os domnios temporais, dilatando o Imprio, e tambm
os valores espirituais, difundindo a F. Lus de Cames, que viveu e
escreveu a sua obra principal em pleno sculo XVI, comea o seu poema
admirvel salientando estes dois pontos. E no deixaria de dar apenas a
-
9
imagem do pensamento colectivo, fixando-a em sntese lapidar, pois no
pode sustentar-se que tenha sido ele a criar o conceito, que depois se
expandisse e generalizasse!
Um dos objectivos principais que os portugueses tiveram em
vista, em toda a sua expanso e depois no perodo de fixao, consistia em
fazer novas cristandades, em dilatar a F. Ora a F pressupe ensino
aturado, explicao muitas vezes repetida, insistncia teimosa na fixao de
princpios morais e na aceitao de doutrinas por vezes incompreensveis, os
mistrios e dogmas religiosos. E, por sua vez, o ensino s produz resultados
teis e convincentes quando for reconhecida a sua vantagem prtica
imediata.
Poderia comear-se o estudo do que foi a tarefa educativa em
Angola e isso por mais estranho que possa parecer dizendo que tem
tanta idade como a presena portuguesa nestas paragens; mas poderia dizer-
se tambm, sem faltar verdade, que nova e conta apenas algumas
dezenas de anos. No primeiro caso, seria preciso ter em vista que toda a
actuao, isto , a actuao portuguesa, de que Angola hoje continuadora
imediata, foi contnua tarefa de assistncia espiritual e de formao
intelectual, difusa e geral mas constante e permanente, mais ou menos
eficiente ou improfcua. Houve neste quadro manchas escuras e de grande
tamanho, no podemos neg-lo nem esquec-lo; no entanto, o inventrio
final dos resultados no deixa de ser positivo, traduzindo meritria aco.
No segundo caso, quer dizer, ao pretendermos afirmar que a actividade
educativa em Angola nova de poucos decnios, tomaramos em conta
apenas a aco metdica e programada, a actividade oficial organizada e
burocrtica, com apoio decidido e fundamental dos dinheiros pblicos.
Quando Diogo Co chegou pela primeira vez ao Zaire, levou
consigo para Lisboa alguns nativos africanos. No se sabe ao certo se foram
livremente, em jeito de aventura, ou se os portugueses exerceram sobre eles
alguma violncia. O descobridor de Angola pretendia apresent-los ao rei e
corte como testemunho vlido do seu importante descobrimento.
Depois de desembarcarem na Europa, no se perdeu a
oportunidade de os ir integrando nos costumes, hbitos e prticas dos povos
civilizados, dando-lhes a conhecer muitas coisas que eles at ento
ignoravam, tanto sob o aspecto material como no campo social ou religioso.
Pode, portanto, afirmar-se que a tarefa educativa e
civilizadora de Portugal, em relao a Angola, comeou com a primeira
viagem de Diogo Co. Positivamente, no foi imposta, foram os naturais, as
populaes silvcolas, que a assimilaram, vendo nisso vantagens evidentes.
O descobridor do Zaire, semelhana do que acontecia com
-
10
os demais almirantes, exploradores da costa africana e navegadores de
mares desconhecidos, trazia consigo alguns degredados, a quem se
confiavam as misses mais perigosas, sendo encarregados de devassar o
serto e entrar em contacto com ambientes geogrficos e humanos
carregados de ameaas mal definidas. Foram largados alguns deles nas
margens do Congo. Os portugueses que Diogo Co deixou nas terras do
Enzaze, dominadas pelo poderoso Manicongo, cumpriram cabalmente a
misso civilizadora que lhes fora indicada, influenciando beneficamente as
populaes locais. Por isso vemos que o senhor do Congo enviou pouco
depois ao nosso rei o pedido de elementos que viessem intensificar e
apressar a assimilao. Prova isso o facto de, logo nas viagens seguintes, se
fazer permuta mais volumosa, indo para Lisboa um nmero relativamente
elevado de naturais, com o objectivo expresso de aprenderem os rudimentos
da nossa cultura e da nossa civilizao; eram todos ou quase todos eles
filhos dos mais poderosos senhores daquelas terras. A partir daqui, bastou
dar seguimento a uma iniciativa j encetada e que jamais terminou.
No pode dizer-se que s nos ltimos tempos se prestou
escrupulosa ateno aos esquemas de planejamento. Desde remotas eras que
o homem planeou aquilo que tencionou fazer. A expanso ultramarina
portuguesa fez-se, sem dvida, dando realidade a projectos inteligentemente
elaborados. No entanto, em certas actividades, ao tempo consideradas
secundrias, os responsveis deixavam-se arrastar quase sempre pelos
impulsos de momento e pelo condicionalismo local e de ocasio...
Sob o aspecto evangelizador, houve desde o primeiro
momento o cuidado de estabelecer programas que se foram cumprindo com
o possvel rigor. Quanto ao problema propriamente escolar, no sentido que
modernamente damos a esta actividade, no haveria, certamente, um plano
de antemo traado. Os responsveis mais directos deixaram-se arrastar pela
fora das circunstncias e pelas condies de momento. Todavia, o resultado
prtico conseguiu-se quase sempre, com maior ou menor perfeio. No se
dava ainda, nesse tempo, actividade educativa o carcter de cincia
organizada e metdica; mas no deixou de se empregar um empirismo
relativamente evoludo e de resultados bastante seguros.
O rei do Congo apercebeu-se logo da distncia que havia
entre a cultura europeia e a dos africanos. Por isso, teve o cuidado, como
atrs salientmos, de pedir ao rei de Portugal que lhe mandasse padres,
mestres de letras e oficiais mecnicos, no se esquecendo de sugerir que
fossem enviadas tambm mulheres conhecedoras da realizao prtica dos
servios domsticos. Pretendia adoptar os costumes portugueses, naquilo
que fosse possvel, seguindo os exemplos e imitando os modos de viver do
-
11
povo com o qual estabelecera contactos. Desejava ainda receber animais
domsticos europeus e alfaias agrcolas. Entendia que as mulheres do Congo
poderiam aprender com as mulheres brancas muitas coisas teis, que
desconheciam, como fosse cozinhar, cuidar da roupa, dos doentes, dos
idosos e das crianas, fabricar o po, que era ento trabalho caseiro, como o
era h poucos anos nas aldeias da Beira Alta ou de Trs-os-Montes.
As populaes indgenas, por meio dos seus chefes mais
categorizados, viram a vantagem da adopo de diversos usos e costumes
estranhos, de aplicao e interesse imediatos. Os habitantes do Congo,
naqueles remotos tempos, no deviam ter empenho especial nos problemas
culturais nem estes se manifestavam com a veemncia que ns imaginamos.
Mas o importante que isso existia em potncia e era posto em equao.
No dia 19 de Dezembro de 1490, saiu de Lisboa, com destino
foz do Zaire, uma esquadra portuguesa em que viajavam alguns artistas
mecnicos e com eles cinco missionrios. Se exceptuarmos os que deveriam
acompanhar as armadas de descobrimento e explorao anteriormente
enviadas, eram os primeiros missionrios catlicos a tentar a evangelizao
do Congo e a promover a sua civilizao, pelo ensino, pela catequizao,
pela assistncia espiritual e temporal.
Desembarcaram no porto de Pinda, no dia 29 de Maro de
1491, e iniciaram imediatamente os trabalhos da missionao. Nesse mesmo
ano, foram baptizados os primeiros convertidos, as figuras mais destacadas
daquelas terras, frente das quais devemos colocar a famlia do rgulo e os
grandes do pas. O rei do Congo recebeu no baptismo o nome de Joo, que
era, como todos sabemos, o do monarca portugus, D. Joo II; sua mulher
adoptou o nome de Leonor, em homenagem esposa do Prncipe Perfeito, a
fundadora das Misericrdias; o filho, sucessor na chefia dos seus povos,
tomou o nome de Afonso, que era o do prncipe herdeiro da coroa lusitana,
aquele que, no vero desse ano, iria morrer desastradamente em Santarm,
caindo de um cavalo. Outros nefitos tomaram igualmente nomes dos
maiores fidalgos e grandes de Portugal.
Divergem os historiadores, quando se referem congregao
religiosa a que deviam pertencer os primeiros missionrios do Congo:
dominicanos, franciscanos, tercirios de S. Francisco, cnegos regrantes de
S. Joo Evangelista (vulgarmente chamados lios), etc. Este problema
talvez nunca chegue a ser completamente resolvido, porque todas estas
congregaes religiosas enviaram missionrios s terras de Enzaze, nos
primeiros tempos da fixao portuguesa.
Comeou logo, como j vimos, o movimento de estudantes
do Congo, que se deslocavam para Portugal, preparando-se nas escolas de
-
12
Lisboa, de acordo com a tradio escolar portuguesa. Em 1492, por proviso
do dia 5 de Abril, o rei D. Joo II mandava pagar ao reitor do colgio de
Santo Eli, onde estavam hospedados os bolseiros do Congo, a despesa com
eles feita na alimentao, no vesturio e nos estudos. O errio rgio tomava
sobre si o pesado encargo da sua sustentao.
No queremos deixar passar sem referir, relativamente ao
que se exps no pargrafo anterior, que o Convento de Santo Eli, em
Lisboa, no bairro designado Alfama, pertencia Congregao dos Cnegos
Regrantes (depois chamados seculares) de S. Joo Evangelista, o que prova
estarem relacionados de longe com a evangelizao do Congo.
Em 1504, o rei D. Manuel I mandou uma misso foz do
Zaire, constituda por sacerdotes seculares. Esta designao poderia adaptar-
se aos padres lios, como sabemos; a afirmao baseia-se no que se l no
Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, que usou os termos
frades e clrigos... aos quais podem dar-se vrias interpretaes. Sabemos
que esta misso levava entre outras coisas muitos livros de doutrina crist,
para serem usados no ensino dos mistrios e verdades da F, facilitando tal
tarefa. No ano de 1508, partiram para estas terras, onde tencionavam
dedicar-se actividade missionria, treze padres lios; e em 1521 seguiram
mais quatro sacerdotes da mesma Ordem.
Em carta do dia 15 de Maio de 1516 (outros afirmam que foi
datada em 25 do mesmo ms e ano), o vigrio-geral de So Salvador, P.
Rui de Aguiar, dava conta ao rei de Portugal das manifestaes de f e
devoo do rei do Congo, indicando que havia na sua cidade e em todo o
reino diversas escolas, onde se ensinavam as coisas da F e tambm a ler e a
escrever, mostrando-se satisfeito com os resultados obtidos. E em 18 de
Maro de 1526, o rei do Congo, D. Afonso, pedia ao monarca portugus
cinquenta missionrios, que pretendia espalhar por diversos pontos dos seus
dilatados domnios.
O rei do Congo, D. Afonso, foi um catlico sincero, modelar
na sua f e nos seus costumes. Um dos seus filhos, D. Henrique, chegou
mesmo a ser elevado dignidade episcopal; recebeu a plenitude do
sacerdcio em 1 de Dezembro de 1520; regressou s suas terras no ano
seguinte, com outros companheiros de estudo, que tambm haviam recebido
ordens sacras. Era este o clebre bispo titular de Utica, o primeiro bispo
originrio da frica central e austral.
Admite-se a hiptese de ter havido pelo menos mais um ou
mesmo dois bispos da sua famlia, sobrinhos daquele rei. Infelizmente, no
foi encontrada confirmao documental para o que sugere um fragmento de
uma carta do rei do Congo para D. Joo III de Portugal, de data ignorada
-
13
mas que o P. Antnio Brsio localiza pelo ano de 1526, em que se l que
seria grande merc se regressassem de Roma ordenados bispos, podendo dar
ordens, isto , podendo ordenar padres naturais destas terras, o que se
reputava servio de Deus e acrescentamento da F catlica.
No mesmo ano de 1526, D. Afonso I, rei do Congo, pedia
autorizao a D. Joo III para deter nas suas terras um carpinteiro e um
piloto, de um grupo de dez portugueses que aprisionara, e entre os quais
havia um clrigo de missa; o carpinteiro era-lhe muito preciso para fazer
reparaes e cobrir as igrejas, e o piloto tornava-se indispensvel por ser
bom gramtico para assentar escola. Segundo os cronistas, o
aprisionamento tinha sido efectuado nos portos do Soio ou Sonho, havendo
quem afirme serem tripulantes de um navio francs... Como pode deduzir-
se, havia entre os componentes do grupo oficiais mecnicos e pessoas com
ilustrao, um clrigo j ordenado sacerdote e um piloto que se entendia ser
capaz de se transformar em professor.
O mesmo documento inclui logo a seguir o pedido do rei do
Congo ao rei de Portugal, de lhe enviar trs ou quatro bons mestres de
gramtica, de que tinha muita necessidade para darem continuidade ao
ensino j principiado; estes destinavam-se ao ensino de matria mais
avanada; para as primeiras letras havia muitas pessoas da terra em
condies de exercerem o magistrio.
O rei de Portugal, embora com bastante demora, de cerca de
trs anos, satisfez o pedido. Recomendava que os quatro mestres fossem
compelidos a viver em boa disciplina de vida e costumes; caso assim no
acontecesse, deveriam ser recambiados para Lisboa, de onde iriam outros.
No mesmo documento pode ler-se que o monarca lusitano estava informado
de que o rei do Congo e a gente desta regio davam grande importncia
actividade docente. As suas escolas funcionavam sem interrupo e a
prpria rainha nativa era "mulher lida" e de grandes qualidades.
Recomendava-se-lhe que tomasse conta das raparigas, instalando-as em casa
separada, aparte dos rapazes, segundo o costume dos povos europeus. A fim
de poderem colher-se melhores resultados, sugeria-se que as classes no
fossem muito numerosas, para que cada aluno pudesse receber ensino
eficiente e directo das matrias cursadas. Se o rei do Congo estivesse de
acordo, poderia enviar para Lisboa alguns dos seus netos, que ali receberiam
educao mais esmerada, sendo as despesas por conta do soberano de
Portugal.
Aproveitava a oportunidade para referir que os antigos
escolares falecidos sucumbiram no por falta de cuidado mas por fatalismo,
tendo sido essa a vontade de Deus. Sentira profundo desgosto o monarca
-
14
anterior, D. Manuel I, seu pai, com a morte dos bolseiros do Congo. No
devia ser isso motivo para deixar de mandar outros escolares, da sua famlia,
fazendo a antecipada promessa de serem tratados e ensinados com todo o
interesse, respeitando a sua dignidade e dando-lhes a considerao a que
tinham direito.
No tempo do rei D. Joo III, foi para Lisboa um sobrinho do
rei do Congo, cujo nome era D. Afonso, portanto igual ao do potentado.
Sendo embora de cor escura, como azeviche, foi um cristal de vida e
espelho de virtudes, no dizer potico de Frei Lus de Sousa, que se lhe
refere. Manteve escola pblica na capital portuguesa, fora do Bairro Latino
ou Bairro das Escolas Gerais no que teve tratamento de excepo, pois
foi autorizado a estabelec-la onde quisesse, o que era contrrio ao
estabelecido, pois todas deveriam limitar-se ao ncleo reservado aos
escolares. Esta autorizao deve ter-lhe sido concedida no decorrer do ano
de 1533, em Junho ou Julho, no dia 6 de cada um destes meses. Era ainda
aluno do Colgio de S. Domingos. A sua escola destinava-se a ensinar a
Lngua Portuguesa a outros estudantes naturais do Congo, pois no seria
admissvel que fosse professor de naturais do reino, onde havia muitos
indivduos melhor preparados do que ele estaria.
Sabe-se que nesse tempo havia em Lisboa bastantes negros,
escravos e homens livres. Muitos deslocavam-se com o intuito de se
educarem e aprenderem o que se ensinava nas escolas do reino. O P.
Antnio Brsio aceita a hiptese de aquela escola funcionar a expensas da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, que estava instituda na
igreja do Convento de S. Domingos, desde o j afastado ano de 1460.
Conhecem-se numerosas cartas diplomticas e outros
documentos enviados do Congo para a Europa, Lisboa ou Roma, ou da
Europa para a frica. Tal facto prova que a cultura literria era dominada
por numerosos indivduos e tinha relativa extenso, pois de outro modo no
se compreenderia tal volume de correspondncia, tratando variados temas. E
nem pode sustentar-se a hiptese de os letrados serem apenas os europeus
residentes no Congo, porque so muitos os exemplos conhecidos de que os
naturais, homens e at mulheres, aprendiam a ler e a escrever, atingindo tal
nvel de cultura que se consideravam capazes de ensinar...
A actividade cultural exercida atravs dos portugueses no
Congo, desde os primeiros tempos, est suficientemente demonstrada e
amplamente documentada. Na lista dos membros do cabido da s de So
Salvador, h referncia ao P. Joo da Estrada, que exerceu as funes de
mestre-escola pelo ano de 1610. E ainda no sculo XV portanto mais de
cem anos antes h notcia da remessa de livros impressos e manuscritos.
-
15
Em 1514 frequentavam as aulas cerca de quatro centenas de jovens, filhos
das principais famlias, tendo sido construda uma vedao que impedia que
sassem do recinto escolar e se dispersassem. Havia vrios ncleos
estudantis espalhados pelo territrio subordinado ao rei do Congo, alguns
deles a muitas dezenas de quilmetros da costa ou da cidade de So
Salvador.
Muito curioso o pedido feito em 31 de Maio de 1515, ao rei
D. Manuel I de Portugal, em estilo que lembra o dos indgenas africanos
com fraco domnio do idioma portugus, no qual se pedia a vinda de
pedreiros e carpinteiros, para construrem uma escola onde os seus parentes
e outros elementos da populao pudessem estudar e aprender. Nessa altura
havia j alguns nativos a exercer o magistrio, e no apenas indivduos do
sexo masculino como tambm do sexo feminino. Uma irm do rei congus,
que contava cerca de sessenta anos de idade, tinha aprendido muito bem e
atravs dela outras suas conterrneas e patrcias.
O rei deleitava-se com a leitura assdua de livros edificantes,
nomeadamente os Evangelhos e outros textos tirados da Sagrada Escritura, a
Vida dos Santos, e tambm uma obra ao tempo bastante divulgada, a Vita
Christi, de Rudolfo de Saxnia.
O regimento dado a Baltasar de Castro, em Fevereiro de
1520, determinava que devia levar consigo pessoas que pudessem
encarregar-se de ensinar a ler e a escrever. Deveria deixar em So Salvador
dois homens brancos encarregados do magistrio, se o rei da terra se no
opusesse a isso. E seriam recebidos com agrado os seus prprios parentes
que fossem enviados ao reino para se instrurem. Devemos admitir que as
despesas com a sua educao continuariam a ser suportadas pelo errio
rgio.
No queremos deixar passar sem a merecida referncia a
anotao do P. Antnio Brsio, que pe a hiptese de a famosa Gramtica
de Joo de Barros ter sido elaborada tendo em mente as escolas
ultramarinas. Tenha-se presente que foi o nosso primeiro compndio do
ensino e regncia do idioma.
Ao princpio da histria das relaes luso-conguesas surge-
nos o nome de um mestre-escola conhecido por Rui do Rego, que se
distinguiu mais pelas suas actividades mercantis do que pela dedicao ao
ensino e s actividades intelectuais. Tratar-se-ia de um daqueles
missionrios degenerados, de que teremos ainda ocasio de falar, ou de um
leigo que fosse encarregado da misso docente?! Tudo nos leva a crer que se
tratasse de um clrigo, at porque encontramos nele uma sntese bastante
completa dos males de que enfermava a classe missionria.
-
16
Havia comeado o intercmbio de pessoas e bens entre as
margens do Tejo e do Zaire. Tinha-se iniciado o movimento migratrio de
uma para a outra zona, com intuitos culturais, mas em que os naturais do
Congo obtinham manifesta vantagem. Contudo, os males sociais
manifestavam-se de forma to saliente que houve necessidade de lhes dar
remdio. Assim, em 1536, Manuel Pacheco dava conta da expulso que, por
ordem rgia, tivera de executar, embarcando e repatriando alguns
missionrios que se estavam a comportar pouco convenientemente.
Em 1539, Gonalo Nunes Coelho avisava o rei de que, neste
particular, os negcios do Congo iam de mal a pior. Chegava mesmo a
aconselhar que fossem expulsos dessas terras todos os brancos ali
residentes, quer clrigos quer leigos, e se mandasse para l gente nova.
Aconselhava, como vemos, uma medida draconiana, que era impraticvel e
nada resolveria, porque seria difcil, se no impossvel, encontrar a tal
"gente nova", boa em tudo. Posta em contacto com aquele ambiente, corria
o risco de se deixar influenciar tambm pelos defeitos locais. A sugesto,
porm, d-nos ideia exacta do estado geral do Congo e da amplitude dos
males que se pretendia extirpar.
Poucos anos mais tarde, exactamente em 1548, um
missionrio escrevia aos seus confrades e superiores da Europa,
comunicando que no se encontravam j pastores de almas de autntico
esprito apostlico, pois todos eles buscavam o seu interesse material,
andavam quase sempre desavindos uns com os outros, o culto divino estava
quase completamente abandonado, e os trabalhos da evangelizao
relegados para o ltimo lugar, se ainda tinham algum!... Em carta de 28 de
Janeiro de 1549, o rei do Congo queixava-se dos padres, e at do bispo
que era ento o de So Tom, D. Frei Bernardo da Cruz assim como dos
portugueses em geral.
Alguns anos atrs, em 1546, o rei do Congo, D. Diogo (neto
de D. Afonso, falecido anos antes), mandava a Portugal, como seu
embaixador, um sacerdote natural do Congo, filho de pais portugueses o
mais provvel que se tratasse de um casal misto, pois no h notcia certa
de que pudesse ter nascido nessa altura, no Congo, um filho de mulher
branca. Chamava-se ele Diogo Gomes e era um padre exemplar e de muita
virtude, de acendrado zelo pelas coisas divinas. O rei, que no pode ser
apontado como modelo de crente, tinha grande confiana nele. Entre os
problemas apresentados considerao do rei de Portugal, e dos ministros
da corte de Lisboa, conta-se o pedido de mais missionrios. Em
consequncia imediata desta splica, insistentemente formulada, o rei D.
Joo III chamou o provincial dos jesutas e pediu-lhe alguns religiosos para
-
17
mandar ao Congo. O P. Simo Rodrigues, que era ento quem
desempenhava aquele alto cargo dentro da Ordem, escolheu trs sacerdotes
e um escolar para trabalhar junto deles, cujos nomes a Histria conservou.
Tratava-se dos P. Jorge Vaz, P. Jcome Dias, P. Cristvo Ribeiro e do I.
Diogo de Soveral. Aportaram a So Tom, onde se demoraram a tratar-se
das febres que j haviam contrado, e s chegaram ao porto de Pinda no dia
18 de Maro de 1548. Foram recebidos na corte de Ambasse em 20 de
Maio, domingo de Pentecostes.
O I. Diogo de Soveral dedicou-se com entusiasmo ao ensino
das crianas, chegando a reunir cerca de seiscentos meninos e meninas, em
diversas escolas, onde eram ensinados por monitores, que ele orientava. No
fazemos ideia exacta de que professores se tratava, que escolas eram, onde
funcionavam, e que programa de estudo seguiam; provavelmente, no
deveriam passar muito alm das noes religiosas e literrias mais
elementares!
Mostraram-se os jesutas bastante zelosos, seguindo de perto
e com muito escrpulo as indicaes directamente recebidas do rei de
Portugal e dos superiores da Companhia de Jesus, honrando a esmerada
formao recebida na Ordem e as normas rigorosas pelas quais se
orientavam e a que obedeciam religiosamente. Mas o rei do Congo no era
jesuta e tomou atitudes um tanto desconcertantes, pois chegou a obrigar um
padre a interromper a pregao, lanando-o fora da igreja, com grande
afronta dele e escndalo dos assistentes, por censurar em pblico males
gerais e que o prprio rei devia tambm praticar, pois se julgou directamente
alvejado. Devemos atender a que este pouco mais tinha do que o nome de
cristo.
O rei do Congo justificou-se perante o monarca portugus,
dizendo que o missionrio lhe dirigira insultos em pblico e o tratara por
nomes injuriosos. Nada mais devia ser do que a adaptao perfeita da crtica
oratria ao seu comportamento pessoal. A verdade, no entanto, deveria ser
um pouco diferente do arrazoado das suas desculpas, pois pretendia dominar
e dirigir toda a actividade dos missionrios, cerceando-lhes os movimentos e
limitando-lhes a liberdade de actuao. Ameaou-os mesmo com a
condenao morte, atitude s concebvel na frica, e que na Europa seria
praticamente impossvel, atendendo s imunidades que defendiam a classe
sacerdotal. Em tudo isto pouco mais fazia do que seguir os pssimos
conselhos de alguns eclesisticos, mesmo clrigos de missa, que no viam
com bons olhos o zelo missionrio dos jesutas, cuja pregao e cujo
exemplo era a condenao tcita do seu procedimento e da sua vida.
O embaixador do rei do Congo, que os havia conduzido para
-
18
aquele vasto campo, voltou em breve a Portugal e deu conta do que se
estava passando, referindo tudo ao monarca lusitano. No deixou de relatar
os grandes vexames a que estavam sujeitos, e salientou bem que eram
injustamente tratados. Tinha embarcado com destino a Lisboa em Fevereiro
de 1549. O tempo de sossego que gozaram no Congo foi quase nulo, visto
que haviam chegado nove meses antes.
O P. Jorge Vaz voltou em breve a Portugal, gravemente
doente, vindo a falecer pouco tempo depois. Os outros dois sacerdotes, seus
companheiros de trabalho, que ficaram no Congo, vendo-se sem o conselho
e a orientao amiga do que fora seu superior, deixaram-se seduzir pelas
condies do meio e pela tentao das riquezas. Fizeram-se mercadores,
semelhana do que acontecera com tantos que os haviam precedido. No
tardou muito que se mudassem para So Tom. O P. Jcome Dias voltou
muito doente Ptria, sendo mandado para a sua aldeia natal, em tratamento
e cura de repouso; quanto ao P. Cristvo Ribeiro, continuou a exercer
actividades mercantis e o eco do seu procedimento em breve chegou ao
reino.
Os responsveis pelos assuntos da Companhia de Jesus
quiseram tirar o caso a limpo. Enviaram s terras da frica ocidental o
antigo embaixador do Congo, agora padre jesuta, sob o nome de P.
Cornlio Gomes, com o encargo de fazer a indispensvel inquirio e
castigar o culpado se culpado fosse. No exerccio da sua misso, mandou
prender o seu confrade, despojou-o do fruto das suas traficncias e entregou
estes bens ao hospital de So Tom. O clrigo infractor mostrou
arrependimento do seu modo de proceder, sujeitou-se penitncia que lhe
foi imposta e pediu insistentemente que lhe permitissem continuar na
Ordem. Veio sob priso para Lisboa, onde foi carinhosamente recebido
pelos seus confrades; em seguida, recolheu-se sua aldeia natal; por fim
desligou-se da Companhia de Jesus. Assim terminou a primeira experincia
missionria jesuta em terras do Congo.
A segunda tentativa que os padres jesutas fizeram para se
fixarem em So Salvador foi realizada pelo antigo emissrio do rei, o P.
Cornlio Gomes tendo como coadjuvante o P. Frutuoso Nogueira.
Chegaram ao porto de Pinda em Junho de 1553. O rei no se mostrou muito
disposto a seguir os conselhos do que fora seu embaixador, e at o via com
certa desconfiana, por saber que era ouvido com muita considerao na
corte de Portugal. Procurava contrari-lo ostensivamente, mostrando o
desprezo com que o tratava. Tinham muita culpa em tudo isto outros
clrigos da cidade, pois atiavam a m vontade do rei, dando-lhe conselhos
pouco sensatos, pouco cristos, e mesmo errneos. Chegaram as coisas a tal
-
19
ponto que o senhor do Congo o expulsou das suas terras, tendo chegado a
Lisboa no dia 21 de Outubro de 1553.
Sabemos que o P. Cornlio Gomes ainda estabeleceu na
regio uma escola de primeiras letras, tendo elaborado um compndio, mais
provavelmente uma "cartilha", que fez imprimir no reino. Apesar de o rei
no simpatizar com ele, reconheceu ou lhe fizeram ver o mrito do seu
esforo, tendo pedido que lhe fossem enviados trezentos exemplares do
trabalho, hoje inteiramente desconhecido.
H notcia de uma obra composta por Frei Gaspar da
Conceio, bilingue, impressa em 1556. A traduo para o quicongo tinha
em vista facilitar a aprendizagem da doutrina crist aos escravos das
fazendas agrcolas de So Tom, na quase totalidade provenientes desta
regio do continente africano. Naquele ano de 1556, o seu autor, juntamente
com Frei Estvo de Lagos, deslocava-se para terras de misso, levando
consigo grande nmero de exemplares do seu trabalho catequtico e
literrio. Procurava-se vencer as dificuldades da catequizao dos cativos
que no dominassem a lngua portuguesa, que seria a quase totalidade deles.
A remodelao dos costumes, iniciada com as primeiras
tarefas da evangelizao do Congo, no foi profunda nem persistente, na
maior parte dos casos, pois muitos convertidos voltaram s prticas
gentlicas. Se o rei D. Afonso apontado sempre como exemplo de
fidelidade nova crena, no podemos dizer o mesmo dos seus
contemporneos e seus conterrneos. Seu pai, o rei D. Joo, apesar de
baptizado, vivia quase como os que o no haviam sido, e parece ter chegado
mesmo a tomar atitudes de perseguidor, se no de forma sistemtica pelo
menos de maneira bastante aberta, mesmo ostensiva, com certo cunho de
regalismo dominador.
Vrias causas se opuseram difuso das novas doutrinas,
nestas terras. Podemos apontar as principais, numa ordenao que no deve
ser tomada como indicativo da sua importncia:
Os nativos tinham as suas tradies e os seus hbitos, que a
Religio Catlica vinha em grande parte alterar e at destruir;
Os missionrios nem sempre corresponderam misso que
exerciam, sofrendo a influncia depauperante de um ambiente que em nada
lhes era favorvel, no encontrando aqui o apoio moral de um meio cristo;
Os missionrios, sentindo a necessidade de conviver com os
outros portugueses que aqui vinham com objectivos puramente materiais,
-
20
foram influenciados por eles e seduzidos pela tentao das riquezas, muitos
passaram a exercer actividades mercantis, usando processos pouco cristos
e at pouco honestos;
Alguns aproveitavam as oportunidades para se repatriarem, a
pretexto da malignidade do clima, e muito especialmente aqueles que se
tinham dedicado s actividades comerciais;
Os costumes de muitos deixavam bastante a desejar, se os
cotejarmos com o que seria lgico esperar vivendo em meios europeus,
sofrendo tambm neste ponto a influncia nefasta do ambiente indgena e
dos hbitos dos colonos;
O relacionamento social era deprimente, havendo entre os
portugueses, clrigos ou leigos, questes permanentes, desavenas
corrosivas, vinganas mesquinhas, vexames inacreditveis, cobia
desenfreada, devassido corrente e quase geral.
-
21
A CRISTANDADE DE SO SALVADOR
Depois que Paulo Dias de Novais fundou a cidade de Luanda
e deu incio penetrao no serto angolano, a partir da entrada natural que
o rio Cuanza oferecia, comeou a decair a importncia poltica de So
Salvador. No entanto, durante algumas dezenas de anos, pelo menos at
meados do sculo XVII, no se obscureceu de todo o antigo brilho da corte
dos reis do Congo, mantendo-se em paralelo com a influncia que Luanda
pretendia disputar no s antiga sede da actividade poltica e diplomtica
portuguesa na costa ocidental da frica, So Salvador, como a outra
povoao que se considerava a cabea e centro do reino do sul, Benguela.
Todavia, no aspecto escolar, e tendo em conta apenas factos conhecidos, a
importncia da "Cidade de So Filipe" fica muito aqum da de qualquer das
outras duas.
H notcia de que os missionrios jesutas acompanharam o
fundador de Benguela, Manuel Cerveira Pereira, na sua misso de
organizador de um reino africano que teria esta cidade como centro. O
escritor Abel Augusto Bolota refere os nomes do P. Duarte Vaz e do P.
Gonalo Joo. E podemos ainda mencionar que, quando em 12 de Janeiro
de 1619 o governador Cerveira Pereira foi expulso da cidade, metendo-o
num batel velho na companhia de um s soldado, esperando que viesse a
naufragar, vemos imiscudos nesta questo alguns padres. No obstante, no
conseguimos encontrar referncia alguma ao funcionamento de escolas nos
primeiros tempos da sua histria.
Por carta patente de 19 de Maro de 1582, o provincial dos
carmelitas descalos nomeou alguns missionrios para irem trabalhar para o
Congo, nas tarefas da evangelizao que os portugueses a haviam iniciado.
Embarcaram no dia 5 de Abril, tendo morrido na viagem, devido a um
naufrgio. Uma das naus da frota deu violenta pancada no costado daquela
em que seguiam, provocando o afundamento. Pouco depois, foi enviada
segunda expedio de religiosos da mesma Ordem, que tambm no
chegaram ao destino. Foram apanhados pelos corsrios, ao largo de Cabo
Verde; os piratas saquearam o navio e abandonaram os missionrios com
outros companheiros numa das ilhas do arquiplago, depois de os terem
despojado de todos os seus haveres e inclusivamente das roupas que
vestiam. Algum tempo depois puderam regressar ao reino.
-
22
Em 1584, as terras de Angola e Congo foram visitadas pelo
bispo de So Tom, D. Frei Martinho de Ulhoa. Acompanhavam-no vrios
missionrios, alguns dos quais ficaram a trabalhar neste territrio. Haviam
partido de Lisboa no dia 10 de Abril e chegaram a So Salvador em fins de
Novembro. O relato da sua chegada e das festas promovidas em sua honra
foi remetido para Lisboa em carta que tem a data de 2 de Dezembro desse
ano.
Este prelado criou a primeira parquia da cidade de Luanda,
dedicada a Nossa Senhora da Conceio. Devemos salientar que o servio
religioso estava aqui razoavelmente assegurado, pelo menos desde a
fundao da capital, em 1575. Podemos acrescentar ainda que o bispo
referido, D. Frei Martinho de Ulhoa, fundou tambm, em 18 de Maio de
1590, a primeira parquia do interior de Angola, a de Massangano.
J antes disso os cristos de Angola e Congo haviam
recebido a visita de dois prelados. Em 1547, esteve aqui D. Frei Joo
Baptista, que alguns autores dizem ser bispo eleito de Meliapor e
administrador da diocese de So Tom, em nome do respectivo antstite, D.
Frei Bernardo da Cruz. Foi o primeiro prelado europeu a visitar estas
cristandades. E em 1561 efectuou-se outra visita, a de D. Frei Gaspar Co,
bispo de So Tom; demorou-se nestas terras cerca de trs meses.
Em 3 de Fevereiro de 1592, o rei de Espanha e Portugal, D.
Filipe II, determinava que fosse paga pelo Feitor da Fazenda Rgia do Reino
de Angola a importncia anual de cento e cinquenta mil reis ao licenciado
Joo da Costa, que tinha sido enviado a estas paragens como administrador
da jurisdio eclesistica e vigrio-geral. Tratava-se j, certamente, da
criao do bispado, o que veio a verificar-se em 20 de Maio de 1596, com a
emisso da respectiva cdula consistorial e a assinatura da bula Super
specula militantis Ecclesiae. Nessa altura estava j escolhido o futuro bispo,
D. Frei Miguel Rangel (1596-1602).
D. Frei Manuel Baptista (1606-1623) foi o primeiro prelado
que visitou as parquias do interior de Angola, ao tempo trs
Massangano, Muxima e Cambambe.
O papa Urbano VIII criou a Prefeitura Apostlica do Congo,
por decreto da Propaganda Fide, de 25 de Junho de 1640. Foi confiada aos
missionrios capuchinhos italianos; tinha a sede em So Salvador e
coexistia com o bispado. O seu superior foi Frei Boaventura de Alessano,
que morreu naquela povoao em 2 de Abril de 1651. Sucedeu-lhe Frei
Jacinto de Vetralha, o qual transferiu para Luanda, em 1654, a sede daquele
organismo eclesistico.
O rei do Congo, apesar da sua pouco ortodoxa maneira de
-
23
viver, continuava a arrogar-se o ttulo de rei cristo e protector da f. Tinha
aprendido bem a lio que lhe havia sido ensinada pelos monarcas
portugueses. Satisfazendo um insistente pedido do potentado indgena,
embarcaram para o Congo, no dia 25 de Maro de 1610, trs missionrios
dominicanos. Chegaram a Luanda no dia 3 de Julho, e partiram para So
Salvador, depois de um perodo de descanso bastante longo, no dia 16 de
Setembro do mesmo ano.
Os religiosos dominicanos encontraram aqui um ambiente
pouco propcio s actividades apostlicas, envenenado por intrigas ridculas
e interesses mesquinhos. Os estudiosos deste perodo apontam como a alma
danada dos negcios eclesisticos do Congo o sacerdote crioulo e deo da
s, P. Diogo Rodrigues Pestana. So bastante frequentes as referncias
desagradveis a este clrigo, e at o prprio bispo, D. Frei Manuel Baptista,
fazia queixa dele e dos colegas, P. Custdio de Barros e P. Manuel
Castanho, em carta datada em 10 de Julho de 1612. Mostrava-se muito
descontente e at desalentado com a situao missionria do Congo. O deo
chegou a ser preso e enviado para Lisboa, em castigo do seu
comportamento, pouco modelar.
Simeo Nunes Vitria, que foi chefe dos Servios de
Instruo de Angola, desde 1927 a 1931, afirma que foi fundada no Congo,
em 1491, uma escola-oficina missionria e que, em 1618, foi criado o
colgio jesuta de Luanda, o qual contava dez professores em 1622. Informa
ainda que, na mesma altura, se estabeleceu uma Aula de Geometria e
Estratgia, que durou at meados do sculo XIX. Parece haver algumas
imprecises, algumas inexactides, nos dados referidos.
Chegaram at ns, com efeito, notcias da carta rgia de 11
de Setembro de 1618, pela qual o monarca portugus, ento em Madrid,
autorizava o funcionamento do Colgio de Santo Incio (ao tempo ainda no
canonizado, apenas beatificado), iniciativa dos jesutas, na cidade de So
Salvador do Congo. Deveria ter dezasseis professores para as cadeiras de
ler, escrever e contar, gramtica latina e casos, mas sem implicar qualquer
dispndio para a fazenda real. Parece-nos exagerado dezasseis professores
para as necessidades e possibilidades da poca! Segundo outras
informaes, a carta rgia defendia que fossem entabuladas conversaes
com o provincial dos religiosos da Companhia de Jesus, no sentido de
providenciar que houvesse em Luanda dezasseis sujeitos ordenados e entre
eles alguns capazes de ensinar, salientando tambm que impunha a condio
de no haver agravamento das despesas, a cargo do errio pblico.
Ora isso altera profundamente o problema, pois o localiza em
Luanda em vez de o situar em So Salvador, e fala concretamente de
-
24
missionrios e s marginal e parcialmente considerada a questo dos
professores.
O rei do Congo, semelhana do que se fazia no reino de
Portugal, podia nomear cnegos para a catedral, excepto o deo e o mestre-
escola, cujos cargos tinham importncia excepcional, que o soberano
indgena no avaliava com exactido e, por isso, a sua nomeao lhe no foi
confiada.
No captulo-geral da Ordem Franciscana, em 1 de Junho de
1618, foi apresentado o pedido de missionrios para a regio do Zaire. Os
representantes das diversas provncias, ali congregados, enderearam o caso
aos superiores principais da Ordem, que resolveram mandar seis religiosos
para aquelas terras.
Em 2 de Abril de 1641, embarcaram no porto de Livorno seis
capuchinhos italianos, que se destinavam ao Congo. Viajaram no barco "So
Domingos". Entraram no esturio do Tejo e encontraram em Lisboa forte
oposio realizao do seu projecto de viagem, por no serem
portugueses. Consideraram-nos agentes mais ou menos disfarados do
monarca espanhol, que no desistia da ideia de continuar a superintender nas
zonas que ele considerava ainda debaixo da sua autoridade legal e real, por
se no resolver a aceitar a independncia portuguesa, restaurada em 1 de
Dezembro de 1640.
As autoridades de Lisboa foram apresentando objeces e
entraves, de forma a adiarem o mais possvel a sua partida. Os missionrios
tentaram ainda opor a esta desagradvel situao a sua qualidade de naturais
dos Estados Pontifcios, portanto sbditos do Papa. Mas os diplomatas
portugueses nem assim se resolveram a deix-los seguir para a frica.
Vendo que nada poderiam fazer, regressaram Itlia, logo que chegou a
Lisboa a notcia da ocupao da cidade de Luanda pelos holandeses, que se
soube na capital do reino em 20 de Dezembro desse ano de 1641.
As dificuldades apresentadas poderiam at basear-se em
determinaes anteriores, do tempo dos monarcas madrilenos, pois no ano
de 1620 foi ordenado que se no permitisse aos religiosos estrangeiros irem
missionar s terras do domnio portugus, sem licena real. A proibio
parece relacionar-se j com a vinda dos missionrios capuchinhos italianos
para o nosso ultramar.
Lus XIV, rei da Frana, escreveu em 18 de Abril de 1644 ao
monarca portugus, patrocinando a causa de quatro missionrios
capuchinhos, naturais de Gnova, que pretendiam embarcar para o Congo.
Dizia ele que fazia este pedido por lhe ter sido solicitado pelo seu prximo
parente, o Prncipe do Mnaco, a quem os religiosos haviam sido
-
25
directamente recomendados. Para o soberano francs, o problema estava um
tanto simplificado, pois no morria de amores pela Espanha apesar da
sua origem, pois era filho de D. Ana Maurcia da ustria, infanta de
Espanha e de Portugal.
No dia 20 de Janeiro de 1645, embarcaram em Sanlcar de
Barrameda, com destino ao Congo, doze missionrios capuchinhos, sendo
cinco italianos e sete espanhis. Devido a condies meteorolgicas
adversas, s puderam levantar ferro e sair do porto no dia 4 de Fevereiro,
chegando ao Zaire em 25 de Maio do mesmo ano, desembarcando na regio
de Pinda. Estes missionrios j no abordaram Lisboa, onde poderiam ver
embargada a viagem, como sucedera aos que em 1641 embarcaram com
igual destino.
Em Maro de 1646, chegava a Angola outra expedio de
quatro missionrios capuchinhos italianos, com a inteno de
desembarcarem em Luanda. Os calvinistas flamengos obrigaram-nos a
voltar para a Europa. Desta vez os holandeses deviam recear que se tratasse
de nova tentativa de ocupao da cidade pelos catlicos, portugueses ou
espanhis. No dia 6 de Maro de 1648, chegou a Luanda a terceira
expedio de missionrios capuchinhos, sendo oito italianos e seis
espanhis. Estes puderam seguir logo para o Congo, aonde se dirigiam.
O rei de Ambasse, So Salvador, ento Garcia II, ainda em 5
de Outubro de 1646 aceitava a autoridade do rei da Espanha, a quem
escreveu, pedindo que lhe mandasse navios que colaborassem com os seus
guerreiros na conquista da cidade de Luanda, cujo territrio havia
pertencido outrora aos seus domnios e de que andava duplamente afastado.
Pedia tambm que, em vez de um s governador, mandasse dois, mas que se
entendessem entre si de forma a haver paz entre eles e com o Congo.
Aconselhava particularmente que esses governadores no fossem
portugueses. Rogava que se fornecesse embarcao aos religiosos
capuchinhos italianos, que o Papa ia mandar para as misses do Zaire.
Finalmente, pedia que lhe mandasse dois ou trs mineiros experimentados,
para pesquisarem e explorarem as minas de ouro e prata dos seus territrios.
Afirmava que ia mandar a Madrid, na qualidade de embaixador, o
missionrio capuchinho espanhol, Frei Angelo de Valncia.
As demoras provocadas pelas paragens do navio nos portos
de escala e as delongas causadas pelas diversas diligncias de que estavam
encarregados fizeram com que os dois religiosos componentes da
embaixada referida, Frei Angelo de Valncia e Frei Joo Francisco, s em 9
de Maio de 1648 prestassem, em Roma, preito de obedincia ao Papa,
Inocncio X. O rei Garcia II escrevia tambm ao Sumo Pontfice, no dia 20
-
26
desse mesmo ms e ano, tratando problemas do Congo.
O rei de Espanha continuava a arrogar-se direitos de
soberania sobre as terras do Congo. Assim, em 11 de Agosto de 1649,
passou diploma em Madrid a favor de uma expedio de missionrios, que
pensavam dirigir-se ao Zaire. Levava como superior o nosso conhecido Frei
Angelo de Valncia e acompanhavam-no quarenta e trs religiosos
capuchinhos.
Entretanto, a situao alterou-se num curto espao de tempo.
No dia 25 de Novembro de 1649, j o P. Boaventura de Alessano, noutro
lugar referido, prestava homenagem ao rei de Portugal, em nome de toda a
misso do Congo e na qualidade de seu superior. Finalmente, no dia 20 de
Dezembro, o Senado da Cmara de Luanda pedia ao rei que autorizasse os
capuchinhos a terem residncia na sua cidade , havendo notcia de que foi
em meados desse mesmo ms de Dezembro que eles fundaram a misso
desta capital, a pedido insistente de Salvador Correia de S e Benevides. No
dia 26 de Dezembro, o P. Serafim de Cortona prestava tambm homenagem
ao rei portugus; dois dias depois, o governador e capito-general
recomendava ao monarca o P. Boaventura de Sorrento e, a propsito dos
capuchinhos, afirmava que eram muito virtuosos e que Deus faria muitas
mercs e favores a Angola por os ter ao seu servio neste territrio.
Este capuchinho, o P. Boaventura de Sorrento, deixou So
Salvador em 12 de Dezembro de 1649 e chegou a Luanda no dia 23 ou 24
seguinte; atingiu a costa brasileira em 30 de Janeiro de 1650 e chegou a
Lisboa dois meses depois, no dia 30 de Maro do mesmo ano.
Nos fins de 1654, a Prefeitura Apostlica do Congo, que at
ento tivera a sua sede em So Salvador, foi transferida definitivamente para
Luanda. Nos sessenta anos que vo de 1645 a 1705, os missionrios
capuchinhos italianos mandaram ao Congo duzentos e trinta sacerdotes. E
em menos de dois sculos que durou a sua primeira fase da evangelizao,
interrompida pela expulso das ordens religiosas, em 1834, e que foi
executada em Angola j no ano seguinte, passaram por estas terras mais de
quatrocentos missionrios a quem tinham sido conferidas ordens sacras de
presbtero, no contando portanto os irmos auxiliares das misses.
No dia 6 de Maio de 1653, a Sagrada Congregao da
Propagao da F publicou um decreto em que tratava da jurisdio dos
missionrios capuchinhos, na regio do Congo. Por sua vez, o rei Garcia II
escreveu Cmara de Luanda ou antes, ao Senado da Cmara em 14
de Novembro de 1654 e em 15 de Janeiro de 1655, tratando dos
missionrios que tinham entrado nas suas terras com o apoio e sob a
autoridade do rei espanhol. Este rgulo voltava de novo a colaborar com
-
27
Portugal na tarefa da ocupao do Congo, da civilizao dos seus povos e
da elevao do seu modo de viver.
Os religiosos capuchinhos eram muito estimados pelo gentio,
devido s suas excepcionais qualidades, acrisoladas virtudes e interesse
posto na tarefa da evangelizao e ascenso social dos silvcolas. O cabido
de So Salvador, constitudo quase inteiramente por sacerdotes mestios
comprometidos com os holandeses, entrou em conflito com eles. A corte do
potentado indgena, que se dizia irmo de armas do rei de Portugal, era
dominada por alguns elementos do clero, destacando-se nesta teia de
intrigas e de enredos dois nomes historica e tristemente famosos, os cnegos
P. Miguel de Castro e P. Simo de Medeiros.
Eram ao tempo ainda bastante novos, pois haviam sido
ordenados em 1637. Actuavam como verdadeiros senhores da sua cidade.
Viviam rodeados de luxo, enriquecendo custa dos rendimentos obtidos a
partir da posio social que ocupavam, havendo indcios de se dedicarem
tambm ao trfico esclavagista. Inteligentes e cultos, exerciam funes de
conselheiros influentes e eram os mais destacados colaboradores do rei,
desempenhando importante papel nas resolues tomadas. Parece terem
posto em actividade uma complicada trama de maquinaes, aproximando-
se dos holandeses, dos espanhis ou dos portugueses, conforme lhes
parecesse mais conveniente, e conseguindo equilibrar-se sempre nesta
exerccio acrobtico. O seu atrevimento estava em proporo com as suas
qualidades e com os seus defeitos. O cnego Simo de Medeiros chegou a
usar o seu valimento para que o rei de Espanha e ex-rei de Portugal, D.
Filipe IV, o fizesse bispo; este pedido dever ter sido feito pelo ano de 1664,
no final do seu reinado.
As relaes mantidas com os mais diversos elementos, de
interesses antagnicos, eram dominadas por autntica dissimulao e
verdadeira habilidade teatral. Conseguiam entender-se com os portugueses,
que acreditavam neles; entendiam-se tambm com os espanhis, seguros da
sua fidelidade; e at os holandeses julgavam t-los como dedicados
servidores.
A campanha nesse tempo movida contra os capuchinhos,
religiosos de grande virtude que haviam sido enviados por iniciativa e com a
aprovao do Papa, integra-se no conjunto de movimentos de fundo
patritico com que procurou defender-se a soberania lusitana. Como estes
missionrios eram na sua maior parte italianos, sbditos do Papa (que no
reconhecia a restaurao da independncia), propunham-se afast-los sob a
acusao de serem elementos dceis da poltica de Madrid. Isso no
correspondia verdade, pois eles procuravam acima de tudo ser intrpretes
-
28
fiis do mandato de Cristo, de evangelizar e ensinar todos os povos. Os
missionrios naturais das provncias e reinos sujeitos coroa de D. Filipe IV
poderiam mostrar-se dispostos a acatar a autoridade deste monarca; mas os
capuchinhos italianos no merecem ser acusados disso. Tinham, certamente,
uma forma muito pessoal de ver os problemas e encarar as situaes, mas
souberam pr sempre acima dos interesses polticos o objectivo ltimo da
sua misso. Nada nos custa acreditar que os sacerdotes sujeitos autoridade
temporal do Papa pudessem admitir que o rei de Espanha fosse o legtimo
senhor das terras de Angola e Congo, sem com isso poderem ser acusados
de traio ou rebeldia, em relao a Portugal, ou agentes disfarados de uma
potncia estrangeira. Em verdade, Portugal tinha-se revoltado!...
As acusaes a que nos temos referido foram fruto do
ambiente local. As diferentes congregaes opunham-se umas s outras,
com intrigas pouco edificantes, manifestao clara de inveja e despeito. Os
sacerdotes mestios do Congo armavam complicada trama de enredos com o
fim de se destacarem e defenderem posies adquiridas, que viam em perigo
de perderem, devido ao prestgio que rodeava os humildes missionrios e a
eles lhes faltava. Os dois sacerdotes, membros do cabido de So Salvador, j
nossos conhecidos, os cnegos P. Miguel de Castro e P. Simo Medeiros,
eram em boa parte os responsveis pela situao, pelos abusos e desmandos
correntes. Cometiam toda a espcie de desaforos, tanto sob o aspecto
religioso como poltico e social. Eram acusados de idlatras, pois
misturavam os ritos gentlicos com os cristos; apontados como cismticos,
apresentando os mistrios cristos em desacordo com o magistrio da
Igreja; tidos na conta de feiticistas, aceitando os conceitos mticos
tradicionais; acusados de simonacos por se aproveitarem da sua condio
de dignitrios diocesanos. Opunham-se s determinaes das autoridades;
contrariavam o prelado, menos informado e que no residia no Congo;
conquistavam com ddivas os colegas do sacerdcio; utilizavam de vrias
formas a sua influncia. O reitor da residncia dos jesutas, em Luanda, o
enigmtico P. Antnio do Couto, noutro lugar referido, tinha
comportamento bastante semelhante, era seu colaborador, seu aliado. A
apatia, a indiferena e o comodismo formavam a espinha dorsal deste
sistema defeituoso.
Os mais dignos e conscientes membros do clero
reconheciam no ser fcil emendar defeitos profundamente enraizados e
esperavam melhores dias. A poca histrica que ento se vivia era anormal
e facilitava os elementos pouco escrupulosos. Muitos deixavam-se dominar
pelo pessimismo e acreditavam que a soluo s se encontraria muito longe,
era um problema cuja soluo pertenceria ao tempo...
-
29
A FUNDAO DE LUANDA
Sabemos que os portugueses do Congo comearam logo a
explorar o serto, percorrendo-o em todos os sentidos, com preferncia
particular pelas regies que ofereciam vantagens comerciais de maior vulto.
Foram os interesses mercantis que levaram os lusos a devassar a regio de
Luanda. Acumulavam-se aqui dois motivos destacados, era zona favorvel
ao resgate de escravos e fornecia o zimbo, pequenina concha com valor
fiducirio.
Nos primeiros contactos que os portugueses tiveram com o
rei de Angola, logo ele pediu ao seu monarca que lhe enviasse missionrios,
pois desejava que os seus povos aprendessem a nova doutrina. Se o
requerimento no teve deferimento imediato, ficava a dever-se isso a
diferentes causas, e entre elas a de no ser possvel satisfazer todas as
necessidades da missionao. Poderemos ainda admitir outra, no merecer
este rgulo tanta confiana como o do Congo, sobretudo como o famoso D.
Afonso. Todavia, o rei de Portugal mandou-lhe alguns missionrios jesutas,
a que se juntaram mais tarde os dominicanos, os carmelitas e os
franciscanos, como veremos na devida altura.
O rei do Congo era um dos grandes potentados africanos, a
quem outros obedeciam e pagavam tributos. Devemos ter isso em conta, e
pensar que a sua qualidade de suserano , em relao a outros rgulos
nativos, fazia com que as relaes com os portugueses fossem enormemente
facilitadas. Sabe-se que o rei de Angola estabeleceu contacto com os
lusitanos como consequncia directa e imediata das boas relaes mantidas
com o primeiro.
Tendo sido feito em 1557 um insistente pedido do rgulo
angolano para que fossem enviados missionrios, s foi atendido em fins de
1559. No dia 22 de Dezembro, saram de Lisboa trs navios, em que
embarcara um emissrio do rei de Portugal, Paulo Dias de Novais, e com ele
dois padres jesutas, o P. Francisco de Gouveia e o P. Agostinho de
Lacerda, coadjuvados por dois irmos auxiliares. Atingiram a barra do
Cuanza no dia 3 de Maio de 1560, mantendo-se nesta regio durante
bastante tempo.
O rei de Angola recebeu mal os portugueses, embora se
desconheam pormenores das relaes entre eles estabelecidas, pelos quais
-
30
possamos fazer juzo mais exacto. Aquele que havia feito o pedido tinha j
morrido; agora governava aqueles povo e aquelas terras outro potentado
indgena, que apreciava menos a colaborao lusa e devia olhar os
componentes da misso lusitana como agentes mais ou menos disfarados
do rei do Congo, adeptos da sua poltica e defensores dos seus interesses.
Teve o cuidado de os conservar prisioneiros nas suas terras, durante bastante
tempo, tomando medidas para que no conseguissem escapar-se. Tirou-lhes
tudo quanto possuam, incluindo mesmo os objectos de culto que haviam
levado, e s mais tarde, em face de condies novas, consentiu que Paulo
Dias de Novais sasse das suas terras. Mostrava-se agora disposto a dar
facilidade de movimento aos portugueses, uma espcie de liberdade
condicionada. Esperava mesmo que o ajudassem nalgumas dificuldades do
seu governo e do seu reino, sobretudo na guerra.
Sabemos, todavia, que a permanncia de Paulo Dias e dos
seus companheiros, P. Francisco de Gouveia e P. Agostinho de Lacerda,
em terras do Dongo foi de alguma maneira proveitosa. Embora tivessem j
anteriormente tomado contacto com os portugueses, a presena to
prolongada da misso enviada pelo monarca portugus teve como
consequncia lgica que a superioridade da cultura europeia se acentuasse e
impusesse aos olhos dos naturais. Sob o aspecto missionrio, esta primeira
actuao dos jesutas, em Angola, teve o mrito de desbravar um campo
que, mais tarde foi melhor arroteado, embora nunca se obtivessem colheitas
abundantes. Em 1570, a pedido do rei D. Sebastio, foram mandados para o
Congo quatro missionrios dominicanos, trs padres e um irmo auxiliar.
Sob o aspecto escolar, alguma coisa puderam fazer apesar de as condies
de trabalho serem extremamente deficientes. Faremos adiante referncias
mais concretas a este ponto.
Paulo Dias de Novais voltou a Portugal para preparar uma
pequena expedio de auxlio ao rei que o retivera sob vigilncia durante
vrios anos. Comea aqui, praticamente, a histria da aco portuguesa nas
terras da bacia do Cuanza e regies limtrofes.
Na sua segunda viagem a Angola, Paulo Dias de Novais saiu
de Lisboa no dia 23 de Setembro de 1574, segundo alguns autores, ou no dia
23 de Outubro do mesmo ano, segundo outros entre os quais se contam
Alberto de Lemos e Norberto Gonzaga. Viajavam com ele dois padres da
Companhia de Jesus, o P. Garcia Simes e o P. Baltasar Afonso. Estes
sacerdotes vieram e falecer no campo missionrio, o primeiro deles poucos
anos depois, no dia 12 de Maio de 1578 e o P. Baltasar Afonso j no sculo
seguinte, em 29 de Maro de 1603.
Aportaram primeiramente Madeira e depois a Cabo Verde,
-
31
tendo chegado a Luanda em Fevereiro de 1575 no dia 11, segundo o P.
Pedro Rodrigues, ou no dia 20, segundo o P. Garcia Simes, o que permitiu
a alguns estudiosos fazerem diversas dedues e arquitectarem numerosas e
habilidosas hipteses.
Devemos ter em considerao, todavia, que a maior parte dos
autores aceita a data de 25 de Janeiro como a do estabelecimento de Paulo
Dias de Novais, vindo da a antiga denominao da cidade, So Paulo de
Luanda.
Uma das mais pesadas obrigaes do estatuto ou
regulamento de Paulo Dias correspondia ao encargo de fixar nas terras da
sua capitania nada menos de cem famlias europeias, dando incio a um
processo de colonizao e povoamento que se foi estendendo pelos sculos
fora e que em determinados perodos teve entusiastas muito dedicados. Pode
deduzir-se que os resultados obtidos no foram os que se esperavam, at
mesmo porque o projecto no chegou a ter realizao. A finalidade imediata
desta colonizao tempor era influenciar os nativos com os costumes e a
cultura de origem europeia, levando-os assim a assimilar voluntaria e
espontaneamente a civilizao que os portugueses se propunham
transplantar para estas paragens.
Uma das primeiras preocupaes de Paulo Dias de Novais
consistiu na tentativa de libertar o seu antigo companheiro de cativeiro e
grande amigo, P. Francisco de Gouveia, que durante tantos anos sofrera as
contrariedades de uma situao indesejvel, pouco agradvel, a permanncia
numa regio de clima adverso, sem o apoio dos seus compatriotas e dos seus
confrades, e que, apesar de tudo isso, se no deixou cair nos excessos e no
desleixo caractersticos e facilmente explicveis em circunstncias idnticas.
No se pe de parte a hiptese de terem estado com eles outros portugueses,
de condio social mais humilde, que lhes estavam subordinados, seus
subalternos na jerarquia social; esse diminuto ncleo de companheiros de
vicissitudes, amalgamado pela fora das contrariedades e do sofrimento,
deve ter contribudo bastante para afugentar o desnimo e alimentar e
esperana na soluo final do problema de todos.
Paulo Dias no conseguiu o veemente desejo de restituir
liberdade o piedoso jesuta, pois o missionrio faleceu na povoao de
Dongo, qual tambm se d o nome de Cabassa, no dia 19 de Junho de
1575, embora se apontem outras datas provveis do seu passamento. Alguns
estudiosos das coisas angolanas aceitam que a antiga capital do reino de
Angola, Dongo ou Cabassa, corresponda actual povoao de Pungo
Andongo.
O rei africano no era j o que retivera os enviados do
-
32
monarca portugus. Sabe-se que o actual tinha sido discpulo, desde muito
pequeno, do P. Francisco de Gouveia. Este no deixou de aproveitar a sua
forada e prolongada estadia entre os moradores para difundir civilizao e
espalhar o saber. Temos conhecimento de terem sido introduzidas algumas
prticas civilizadas nos hbitos dos nativos, ao longo desta dezena e meia de
anos de exlio, e no ser ilgico pensar que as actividades intelectuais
merecessem certa ateno aos jesutas, se no atravs da aprendizagem da
leitura e da escrita pelo menos de forma mais genrica e de maneira mais
difusa. No podemos conceber que se passasse tanto tempo de convivncia
sem que dos contactos mantidos ficasse algo de positivo. No possvel
imaginar que as populaes locais, reconhecendo a superioridade de
conhecimentos dos portugueses, deixassem de absorver influncias, que a
sua curiosidade deixasse de procurar explicaes para coisas e fenmenos
de que tinham viso bem diferente.
Nos mesmos dias em que se recebeu em Luanda a notcia da
morte do jesuta, Paulo Dias de Novais recebia a comitiva enviada pelo
rgulo para o saudar e, por certo, para estabelecer com ele uma plataforma
de entendimento que se adaptasse s circunstncias. Fora a Lisboa com o
fim de trazer auxlio militar ao rei. Uma vez desembarcado em Angola, no
era j o enviado desprovido de foras e merc de todas as imposies, era
o chefe que estabelecia planos de domnio, traava projectos de governo,
impunha o peso da sua autoridade. Os temveis jagas ou jingas continuavam
a ser uma ameaa para o rei de Angola, e isso ajudaria Paulo Dias de Novais
a estabelecer-se solidamente, aproveitando-se com habilidade do equilbrio
social que ele prprio ajudava a manter.
A recepo aos emissrios do rei de Angola efectuou-se com
luzimento, segundo protocolo prprio do meio, no dia 29 de Junho de 1575,
numa das cabanas j levantadas no morro de S. Paulo; to grande
aproximao de datas pode, contudo, levantar algumas dvidas. E podemos
lembrar tambm que nesse dia se festejavam os dois apstolos S. Pedro e S.
Paulo; isso, se em parte pode servir de base para explicar o nome dado (S.
Paulo), por outro lado leva-nos a perguntar qual o motivo porque no se
homenageou o outro apstolo (S. Pedro), que lhe era superior!?
Francisco Rodrigues afirma, na sua Histria da Companhia
de Jesus na Assistncia de Portugal, que Paulo Dias de Novais deu
princpio a um hospital e Misericrdia, em Luanda. No deixa de ser
provvel que o encarregado de fundar um reino prestasse a possvel ateno
aos problemas da sade, defendendo da doena e da morte os seus mais
prximos colaboradores. O mesmo autor afirma tambm que a primeira
igreja construda na cidade, no morro fronteirio ilha onde tambm foi
-
33
edificado um templo pelos primitivos portugueses que ali se fixaram , era
dedicada a S. Sebastio, grande devoo dos portugueses e patrono
onomstico do rei de Portugal.
Em 23 de Fevereiro de 1580, chegavam a Luanda mais dois
missionrios jesutas, mas s um deles, o P. Baltasar Barreira, era
sacerdote. E em 25 de Janeiro de 1584 partiram de Lisboa mais dois padres
jesutas, o P. Jorge Pereira e o P. Diogo da Costa.
Os nativos convertidos adoptavam nomes portugueses,
homenageando assim figuras de destaque. Sabemos que alguns nefitos de
Luanda receberam no baptismo o nome de Paulo. O fundador da cidade e
primeiro governador do territrio faleceu em Massangano, no dia 9 de Maio
de 1589.
Em 11 de Maro de 1593, entravam em Luanda quatro
padres jesutas, sendo um deles o visitador dos estabelecimentos da
Companhia, P. Pedro Rodrigues. Mas nem todos se fixaram nesta
provncia, pois alguns deslocaram-se de Angola para o Brasil, terra que
ento merecia as maiores e melhores atenes. Temos de admitir que outros
missionrios iam chegando a Luanda; o seu nmero, porm, no se somava
inteiramente aos que tinham vindo antes, porque a morte ia fazendo os seus
estragos. O clima africano exercia ento uma influncia notvel sobre o
organismo dos europeus, sendo frequente contrair doenas mortais de que
ele era o principal culpado; eram muitos os que no conseguiam vencer a
sua malignidade, cuja fama algo injusta ainda hoje corre.
Apesar das dificuldades encontradas, as primeiras tentativas
da evangelizao do gentio deram resultados apreciveis e alimentaram
esperanas lisonjeiras. Fizeram-se as primeiras entradas no serto de
Luanda, sofrendo as contrariedades que lhes estavam inerentes. Os padres
que acompanhavam as tropas ao interior daquelas terras, queles inspitos
sertes, iam fazendo a evangelizao que podiam fazer, em to crticas
condies, em to problemticas circunstncias. Tanto assim que, em 1590,
j se dizia haver aqui cerca de vinte mil cristos.
Paulo Dias de Novais, em carta de 3 de Janeiro de 1578,
dirigida aos seus familiares, anunciava que a converso dos pretos de
Luanda estava a processar-se satisfatoriamente. Os portugueses que aqui
viviam que se no comportavam muito decentemente, no se conformando
de boa vontade com a rigorosa disciplina imposta pelos missionrios, pois
muitos deles preferiam viver livremente. As exigncias que se faziam
levavam alguns a sair destas terras, e o facto tinha como consequncia
lgica que o povoamento se no fizesse to depressa como seria desejvel,
caminhando muito devagar...
-
34
Noutra carta do mesmo ano, datada em 23 de Agosto,
comunicava ter ficado muito contente com a remessa de umas flautas que
lhe tinham sido entregues; vieram muito a propsito, muito oportunamente...
Os cristos da terra cantavam j, com grande perfeio, algumas msicas
religiosas bastante difceis a "Missa", de Morales, o "Pange Lingua", de
Guerrero, e o "Motete de Santo Andr", cujo autor omitia, este a cinco
partes ou vozes e tocavam os instrumentos musicais com muita
habilidade e perfeio, no s msica religiosa como msica profana, outras
coisas ordinrias, segundo a sua expresso. Ao ouvi-los, recordava-se de seu
pai o que nos leva a concluir que deveria ser amante da boa msica e
virtuoso executante.
A frica, a sia e a Amrica devem muito aos missionrios
catlicos. Bastantes vezes se realizou a ocupao e fixao pacficas, e se
garantiu a presena civilizadora europeia, sombra do seu prestgio. Entre
todas as terras em que os portugueses se fixaram, devemos salientar o Brasil
como exemplo do muito que se ficou devendo aos padres; e, entre todas as
congregaes religiosas missionrias, podemos destacar a Companhia de
Jesus, cujos mtodos de aco lhe permitiam interessar-se mais do que
qualquer outra pelas questes que parecem ser da ordem temporal e do
domnio poltico. Contudo, no pode afirmar-se que tenham feito poltica
sombra da religio nem que tenham feito a missionao sombra da
poltica. Muitos dissabores lhes trouxe o seu desassombro em apontar erros
e criticar defeitos! Sofreram perseguies violentas e foram alvo do dio de
muitos, dio que atravessou os sculos e se manifesta ainda hoje. So
exemplo vivo e eloquente da colaborao que muitas vezes houve entre a
Cruz e a Espada. No pode negar-se que a sua actuao foi inmeras vezes
decisiva para a conservao e enraizamento da colonizao lusitana.
Joo Furtado de Mendona, governador de Angola desde
1594 a 1601, no teve dvida em afirmar um dia que, se no fosse a
Companhia de Jesus, no existiria Angola. Isto mesmo comunicava um
missionrio, o P. Baltasar Afonso, em carta de 31 de Outubro de 1596,
dirigida aos seus confrades da Europa. E, em recompensa dos servios
prestados causa portuguesa, a Companhia de Jesus recebeu doaes
volumosas de diversos governadores, a comear pelas que o donatrio
primitivo, Paulo Dias de Novais, tambm lhes concedeu.
No dia 24 de Junho de 1592, chegava a Luanda novo
governador-geral, D. Francisco de Almeida. Fora nomeado por carta rgia
de 9 de Janeiro desse ano e era portador de instrues muito especiais,
inesperadas, verdadeiramente revolucionrias, que causaram alvoroo e
descontentamento. Tinha-as recebido do monarca luso-espanhol, ento D.
-
35
Filipe II de Espanha, atravs do seu representante em Lisboa, o vice-rei de
Portugal, cardeal-arquiduque Alberto da ustria.
O rei pretendia reforar a autoridade rgia, mesmo no
ultramar. Para isso, retirava as concesses anteriormente feitas e os
privilgios que haviam sido outorgados pelos monarcas de Lisboa, seus
antecessores. Essa reduo de regalias causava desagrado em si mesma;
alm disso, devemos lembrar-nos que o facto de vir um rei, que muitos
consideravam estrangeiro no seu reino, a alterar situaes estabelecidas,
aumentava ainda mais o descontentamento, j de si grande.
Os herdeiros de Paulo Dias de Novais e a Companhia de
Jesus eram os maiores prejudicados pelas restries decretadas. Os jesutas
defenderam energicamente o que consideravam direitos adquiridos e bens
da congregao. Agora pretendiam defender mesmo alguns privilgios e
interesses que anteriormente haviam desprezado, encargos de que quiseram
libertar-se e cuja aceitao lhes foi imposta pela autoridade e prestgio de
Paulo Dias e de alguns dos seus sucessores.
Referimo-nos tutela que exerciam, junto do governador,
dos interesses e negcios de alguns sobas, que estavam colocados sob a sua
proteco e de quem foram nomeados defensores e advogados. Isso
causava-lhes incmodos sem conta, criava-lhes inimizades que deviam e
desejavam evitar, trazia-lhes dificuldades bem conhecidas e que pretendiam
afastar, embora fossem bem recompensados com os tributos que os seus
constituintes lhes pagavam, com a comisso recebida pela sua actuao.
A tutela em referncia deveria tratar, antes de mais, dos
problemas do trfico esclavagista, a modalidade mercantil mais praticada e a
que deixava maiores lucros, a mais importante de quantas aqui se exerciam,
pode dizer-se que quase a nica de volume considervel.
Este costume, segundo alguns autores que o estudaram
pormenorizadamente, no foi introduzido aqui pelos portugueses, foi
adoptado da estrutura tradicional gentlica. Os sobetas, quando residiam
longe, tinham quase sem