culler, jonathan_a linguagem performativa.pdf

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Neste capítulo, vou ao encalço de um exemplo de "teoria" seguindo um conceito que floresceu na teoria literária e cultural e cujos destinos ilustram a maneira como as idéias mudam à medida que são atraídas para o reino da "teoria". O problema da linguagem "performativa" enfoca questões importantes que dizem respeito ao sentido e aos efeitos da lin- guagem e nos leva a questões sobre identidade e a natureza do sujeito. O conceito de elocução performativa foi desenvolvido no decênio de 1950 pelo filósofo britânico J.L. AustinG7• Ele propôs uma distinção entre duas espécies de elocuções: as elocuções constativas, tais como "Jorge prometeu vir", fazem uma afirmação, descrevem um estado de coisas e são verdadeiras ou falsas. As elocuções performativas não são verdadeiras ou falsas e realmente realizam a ação a que se referem. Dizer "Prometo pagar-lhe" não é descrever um estado de coisas mas realizar o ato de prometer; a elocução é ela própria o ato. Austin escreve que quando, numa cerimônia de casamento, o padre ou juiz pergunta: "Você aceita essa mulher como sua legitima esposa?" e eu respondo "Sim", não descre- vo coisa alguma, eu faço algo. "Não estou fazendo um relato sobre um casamento: estou me entregando a ele." Quando digo "Sim", essa e1ocu- ção performativa não é nem verdadeira nem falsa. Pode ser adequada OLl inadequada, dependendo das circunstâncias; pode ser "feliz" ou "infeliz", fornecem uma modalidade de crítica social. Expõem a vacuidade do sucesso mundano, a corrupção do mundo, seu fracasso em satisfazer nos- sas mais nobres aspirações. Expõem a difícil situação dos oprimidos, em histórias que convidam os leitores, através da identificação, a ver certas situações como intoleráveis. Finalmente, a questão básica para a teoria no domínio da narrativa é essa: a narrativa é uma forma fundamental de conhecimento (dando co- nhecimento do mundo através de sua busca de sentido) ou é uma estru- tura retórica que distorce tanto quanto revela? A narrativa é uma fonte de conhecimento ou de ilusão? O conhecimento que ela parece apresen- tar é um conhecimento que é o efeito do desejo? O teórico Paul de ManGC observa que, enquanto ninguém de posse de suas faculdades mentais ten- taria plantar uvas aproveitando a luz da palavra dia, achamos muito difí- cil realmente evitar conceber nossas vidas pelos padrões das narrativas ficcionais. Isso implica que os efeitos esclarecedores e consoladores das narrativas são ilusórios? Para responder a essas perguntas precisaríamos tanto de conheci- mento do mundo que seja independente das narrativas quanto de alguma base para considerar esse conhecimento mais autorizado do que o que as narrativas proporcionam. Mas se existe ou não esse conhecimento autori- zado separado da narrativa é precisamente o que está em questão na per- gunta a respeito de se a narrativa é ou não uma fonte de conhecimento ou de ilusão. Portanto, parece provável que não possamos responder a essa pergunta, se é que, de fato, ela tem uma resposta. Ao invés disso, devemos ficar nos movendo para lá e para cá entre a consciência da nar- rativacomo uma estrutura retórica que produz a ilusão de perspicácia e um estudo da narrativa como o principal tipo de busca de sentido à nossa disposição. Afinal de contas, mesmo a exposição da narrativa como retóri- ca tem a estrutura de uma narrativa: é uma história em que nossa ilusão inicial cede à crua luz da verdade e emergimos mais tristes mas mais sábios, desiludidos mas depurados. Paramos de dançar em círculos e con- templamos o segredo. Assim diz a história. I 1 7 inguagem Performativa 66 Paul de 1'\'1an(19] 9-]983). Expoente dos estudos literários norte-americanos. (N,T.) <)4 67 10hl1 Langshaw Austin (1911-1960). Filósofo britânico mais conhecido por sua an,-llise cio PCllS;lIlll'll!(l 11\111];11111 através da an6.lise detalhada da linguagem cotidiana. (N.T.) <);'5

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  • Neste captulo, vou ao encalo de um exemplo de "teoria" seguindoum conceito que floresceu na teoria literria e cultural e cujos destinosilustram a maneira como as idias mudam medida que so atradas parao reino da "teoria". O problema da linguagem "performativa" enfocaquestes importantes que dizem respeito ao sentido e aos efeitos da lin-guagem e nos leva a questes sobre identidade e a natureza do sujeito.

    O conceito de elocuo performativa foi desenvolvido no decnio de1950 pelo filsofo britnico J.L. AustinG7 Ele props uma distino entreduas espcies de elocues: as elocues constativas, tais como "Jorgeprometeu vir", fazem uma afirmao, descrevem um estado de coisas eso verdadeiras ou falsas. As elocues performativas no so verdadeirasou falsas e realmente realizam a ao a que se referem. Dizer "Prometopagar-lhe" no descrever um estado de coisas mas realizar o ato deprometer; a elocuo ela prpria o ato. Austin escreve que quando,numa cerimnia de casamento, o padre ou juiz pergunta: "Voc aceitaessa mulher como sua legitima esposa?" e eu respondo "Sim", no descre-vo coisa alguma, eu fao algo. "No estou fazendo um relato sobre umcasamento: estou me entregando a ele." Quando digo "Sim", essa e1ocu-o performativa no nem verdadeira nem falsa. Pode ser adequada OLlinadequada, dependendo das circunstncias; pode ser "feliz" ou "infeliz",

    fornecem uma modalidade de crtica social. Expem a vacuidade dosucesso mundano, a corrupo do mundo, seu fracasso em satisfazer nos-sas mais nobres aspiraes. Expem a difcil situao dos oprimidos, emhistrias que convidam os leitores, atravs da identificao, a ver certassituaes como intolerveis.

    Finalmente, a questo bsica para a teoria no domnio da narrativa essa: a narrativa uma forma fundamental de conhecimento (dando co-nhecimento do mundo atravs de sua busca de sentido) ou uma estru-tura retrica que distorce tanto quanto revela? A narrativa uma fontede conhecimento ou de iluso? O conhecimento que ela parece apresen-tar um conhecimento que o efeito do desejo? O terico Paul de ManGCobserva que, enquanto ningum de posse de suas faculdades mentais ten-taria plantar uvas aproveitando a luz da palavra dia, achamos muito dif-cil realmente evitar conceber nossas vidas pelos padres das narrativasficcionais. Isso implica que os efeitos esclarecedores e consoladores dasnarrativas so ilusrios?

    Para responder a essas perguntas precisaramos tanto de conheci-mento do mundo que seja independente das narrativas quanto de algumabase para considerar esse conhecimento mais autorizado do que o que asnarrativas proporcionam. Mas se existe ou no esse conhecimento autori-zado separado da narrativa precisamente o que est em questo na per-gunta a respeito de se a narrativa ou no uma fonte de conhecimentoou de iluso. Portanto, parece provvel que no possamos responder aessa pergunta, se que, de fato, ela tem uma resposta. Ao invs disso,devemos ficar nos movendo para l e para c entre a conscincia da nar-rativacomo uma estrutura retrica que produz a iluso de perspiccia eum estudo da narrativa como o principal tipo de busca de sentido nossadisposio. Afinal de contas, mesmo a exposio da narrativa como retri-ca tem a estrutura de uma narrativa: uma histria em que nossa ilusoinicial cede crua luz da verdade e emergimos mais tristes mas maissbios, desiludidos mas depurados. Paramos de danar em crculos e con-templamos o segredo. Assim diz a histria.

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    7 inguagem Performativa

    66 Paul de 1'\'1an(19] 9-]983). Expoente dos estudos literrios norte-americanos. (N,T.)

  • na terminologia de Austin. Se digo "Sim", posso no conseguir casar - se,por exemplo, j for casado ou se a pessoa que est realizando a cerim-nia no estiver autorizada a realizar casamentos nessa comunidade. Aelocuo "vai ser um tiro n'gua", diz Austin. A elocuo ser infeliz - e omesmo, sem dvida, ocorrer com a noiva ou noivo, ou talvez com ambos.

    As elocues performativas no descrevem mas realizam a ao quedesignam. ao pronunciar essas palavras que prometo, dou ordens ou mecaso. Um teste simples para a performativa a possibilidade de acrescen-tar "por meio desta" antes do verbo, em que por meio desta significa "aoproferir essas palavras": "Por meio desta prometo"; "Por meio destadeclaro nossa independncia"; "Por meio desta lhe ordeno ..."; mas no"Por meio desta ando at o centro". No posso realizar o ato de andar pro-nunciando certas palavras.

    A distino entre performativa e constativa capta uma diferenaimportante entre os tipos de elocuo e tem a grande virtude de nos aler-tar para o grau em que a linguagem realiza aes ao invs de simples-mente relat-Ias. Mas, medida que Austin leva adiante sUa explicaoda performativa, ele encontra algumas dificuldades. Voc pode fazer umalista de "verbos performativos" que, na primeira pessoa do presente doindicativo (prometo, ordeno, declaro). realizam a ao que designam. Masno pode definir a performativa listando os verbos que se comportamdessa maneira, porque, nas circunstncias certas, voc pode realizar o atode ordenar que algum pare de gritar gritando "Pare!" ao invs de "Pormeio desta ordeno que voc pare'~ A afirmao aparentemente constati-va "Vou pagar a voc amanh", que certamente parece que vai tornar-severdadeira ou falsa, dependendo do que acontecer amanh, pode, nascondies certas, ser uma promessa de pagar a voc, ao invs de umadescrio ou previso como "ele vai pagar a voc amanh'~ Mas, uma vezque voc permita a existncia dessas "performativas implcitas", em queno h verbo explicitamente performativo, voc tem de admitir que qual-quer elocuo pode ser uma performativa implcita. A sentena "O gatoest em cima do capacho", elocuo constativa bsica, pode ser vistacomo a verso eliptica de "Por meio desta afirmo que o gato est em cimado capacho", uma elocuo performativa que realiza o ato de afirmar aque se refere. As elocues constativas tambm realizam aes - aes dedeclarar, afirmar, descrever e assim por diante. Vm a ser um tipo de per-formativa. Isso se torna significativo num estgio posterior.

    Y6

    Os criticos literrios adotaram a noo da performativa como algoque ajuda a caracterizar o discurso literrio. H muito tempo os tericosafirmam que devemos atentar para o que a linguagem literria faz tantoquanto para o que ela diz e o conceito da performativa fornece uma jus-tificativa lingstica e filosfica para essa idia: h uma categoria deelocues que, sobretudo, fazem algo. Como a performativa, a elocuoliterria no se refere a um estado anterior de coisas e no verdadeiraou falsa. A elocuo literria tambm cria o estado de coisas ao qual serefere, em diversos aspectos. Primeiro e mais simplemente, cria persona-gens e sua's aes, por exemplo. O incio de Ulisses, de James Joyce,"Stately plump Buck Mulligan came from the stairhead bearing a bowl oflather on which a mirror and a razor lay crossed"GB,no se refere a algumestado anterior de coisas mas cria esse personagem e essa situao.Segundo, as obras literrias criam idias, conceitos, que colocam emcampo. La RochefoucauldG9 afirma que ningum jamais teria pensado emse apaixonar se no tivesse lido a respeito disso nos livros e que a noode amor romntico (e de sua centralidade na vida dos indivduos) discu-tivelmente uma slida criao literria. Certamente, os prprios romances,de Dom Quixote a Madame 8ovary, culpam outros livros pelas idiasromnticas.

    Em resumo, a performativa traz para o centro do palco um uso da lin-guagem anteriormente considerado marginal - um uso ativo, criador domundo, da linguagem, que se assemelha linguagem literria - e nosajuda a conceber a literatura como ato ou acontecimento. A noo de li-teratura como performativa contribui para uma defesa da literatura: aliteratura no uma pseudodeclarao frvola mas assume seu lugar entreos atos de linguagem que transformam o mundo, criando as coisas quenomeiam.

    A performativa se vincula literatura de uma segunda maneira. Emprincpio pelo menos, a performativa rompe o vnculo entre sentido einteno do falante, j que o ato que realizo com minhas palavras noest determinado pela minha inteno mas por convenes sociais elingsticas. A elocuo, insiste Austin, no deveria ser considerada como

    68 Na traduo de Antonio Houaiss: "Sobranceiro, fomido, Buck f\1ulligan vinha do alto da escada. comulll \';IS\lde barbear, 50breo qual se cruzavam um espelho e uma navalha". Jamcs Joyce, Ulisses. Ed. Civilizaao Brasikil':l.2". cd .. Rio de Janeiro. 1967. p. 3. (N.T.)69 La Rochefollciluld (1613-1680). Autor clssico francs, tornou-se o principal expoente ela mrilJ/(/. 11111,1I(1I11LIliterria francesa de epigrama que expressa, de modo breve, uma verdade spera ou paradoxal.

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    Laura Castro

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  • o sinal exterior de algum ato interior que ela representa verdadeira ou fal-samente. Se digo "Prometo" em condies adequadas, prometi, realizei oato de prometer, qualquer que seja a inteno que possa ter tido em menteno momento. Como as elocues literrias so tambm acontecimentosem que a inteno do autor no pensada como sendo o que determina osentido, o modelo da performativa parece altamente pertinente.

    Mas se a linguagem literria performativa e uma elocuo perfor-mativa no verdadeira ou falsa, mas feliz ou infeliz, o que significa parauma elocuo literria ser feliz ou infeliz? Isso mostra ser um questocomplicada. Porum lado, felicidade pode ser apenas um outro nome parao que geralmente interessa aos crticos. Confrontados com a abertura dosoneto de Shakespeare "My mistress's eyes are nothing like the sun"70,perguntamos no se essa elocuo verdadeira ou falsa, mas o que faz,como se encaixa no resto do poema e se funciona de modo feliz emrelao aos outros versos. Essa poderia ser uma concepo de felicidade.Mas o modelo da performativa tambm dirige nossa ateno para as con-venes que possibilitam a uma elocuo ser uma promessa ou um poema- as convenes do soneto, digamos. A felicidade de uma elocuoliterria poderia, portanto, envolver sua relao com as convenes de umgnero. Ela cumpre e desse modo consegue ser um soneto, ao invs de serum tiro n'gua? Mas, mais que isso, poder-se-ia imaginar, uma com-posio literria feliz somente quando se torna literatura plenamente,ao ser publicada, lida e aceita como uma obra literria, assim como umaaposta se torna uma aposta somente quando aceita. Em resumo, anoo de literatura como performativa impe-nos a reflexo sobre o com-plexo problema do que ela para que uma seqncia literria funcione.

    O prximo momento chave nos destinos da performativa chega quan-do Jacques Derrida adota a noo de Austin. Austin havia distinguido entreperformativas srias que realizam algo, como prometer ou casar, eelocues "no-srias': Sua anlise, diz ele, se aplica a palavras proferidasseriamente: "No devo estar brincando, por exemplo, ou escrevendo umpoema. Nossas elocues performativas, felizes ou no, devem ser enten-didas como sendo emitidas em circunstncias comuns': Mas Derrida argu-menta que o que Austin deixa de lado ao apelar para "circunstnciascomuns" so as inmeras maneiras pelas quais fragmentos de linguagem

    70 "Os olhos de minha am3da no se parecem com o sol." (NT.)

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    podem ser repetidos "no-seriamente" mas tambm seriamente, como umexemplo ou uma citao, por exemplo. Essa possibilidade de ser repetidaem circunstncias novas essencial para a natureza da linguagem; qual-quer coisa que no pudesse ser repetida de um modo "no-srio" no serialinguagem mas alguma marca inextricavelmente ligada a uma situaofsica, A possibilidade de repetio bsica para a linguagem e as perfor-mativas em particular s podem funcionar se forem reconhecidas comoverses ou citaes de frmulas regulares, tais como "Sim", "Prometo': (Seo noivo dissesse "OK" em vez de "Sim", ele poderia no conseguir se casar.)"Ser que uma elocuo performativa poderia ser bem-sucedida", pergun-ta Derrida, "se sua formulao no repetisse uma forma "codificada" ouitervel [repetvel], em outras palavras, se a frmula que profiro para abriruma reunio, batizar um barco ou realizar um casamento no fosse iden-tificvel como estando de acordo com um modelo itervel, se no fosse

    portanto identificvel como uma espcie de citao?" Austin deixa de ladocomo anmalos, no-srios ou excepcionais os casos especficos daquiloque Derrida chamou de uma "iterabilidade geral" que deveria ser conside-rada uma lei da linguagem. Geral e fundamental, porque, para algo ser umsigno, deve poder ser citado e repetido em todos os tipos de circunstncias,inclusive as "no-srias': A linguagem performativa no sentido de queno apenas transmite informao mas realiza atos atravs de sua repetiode prticas discursivas ou de maneiras de fazer as coisas estabelecidas. Issoser importante para os destinos posteriores da performativa.

    Derrida tambm relaciona a performativa com o problema geral dosatos que do origem ou inauguram, atos que criam algo novo, tanto naesfera poltica quanto literria. Qual a relao entre um ato poltico,como uma declarao de independncia, que cria uma nova situao, e aselocues literrias, que tentam inventar algo novo, em atos que no sodeclaraes constativas mas so performativas, como as promessas?Tanto o ato poltico quanto o literrio dependem de uma combinaocomplexa, paradoxal, da performativa e da constativa, em que, para SCI'bem-sucedido, o ato deve convencer, referindo-se a estados de coisas cm

    que o sucesso consiste em criar a condio qual se refere. As OlJl";lSliterrias afirmam falar-nos sobre o mundo, mas, se so bem-sucedirJ;]e" o

    so atravs da criao dos personagens e acontecimentos que rCI;}\;lllIAlgo semelhante est em ao nos atos inaugurais da esfera pollil';l. Nd"Declarao da Independncia" dos Estados Unidos, por exemplo, ;1 ',('11

    9l)

    Laura Castro

    Laura Castro

  • tena-chave diz: "Ns portanto ... solenemente tornamos pblico e decla-ramos que essas colnias Unidas so e de direito tm que ser estadoslivres e independentes': A declarao de que esses so estados indepen-dentes uma performativa que deve criar a nova realidade a que se refe-re, mas, para sustentar essa afirmao, acrescenta-se-Ihe a afirmaoconstativa de que eles tm que ser ser estados independentes.

    A tenso entre a performativa e a constativa surge claramente tam-bm na literatura, onde a dificuldade que Austin encontra em separar aperformativa da constativa pode ser vista como uma caracterstica crucialdo funcionamento da linguagem. Se cada elocuo tanto performativaquanto constativa, incluindo pelo menos uma afirmao implcita de umestado de coisas e um ato lingstico, a relao entre o que uma elocuodiz e o que ela faz no necessariamente harmoniosa ou cooperativa.Para ver o que est envolvido na esfera literria, vamos voltar ao poemade Robert Frost, "The Secret Sits":

    We dance round in a ring and suppose,But the Secret sits in the middle and knows.

    Esse poema depende da oposio entre suposio e saber. Para explo-rar que atitude o poema adota em relao a essa oposio, que valoresatribui a seus termos opostos, poderamos perguntar se o prprio poemaest na modalidade da suposio ou do saber. O poema supe, como "ns"que danamos em crculo, ou sabe, como o segredo? Poderamos imaginarque, como um produto da imaginao humana, o poema seria um exem-plo de suposio, um caso de dana em crculos, mas seu carter gnmi-co, proverbial, e sua confiante declarao de que o segredo "sabe", ofazem parecer realmente muito entendido. Assim, no possvel tercerteza. Mas o que o poema nos mostra sobre o saber? Bem, o segredo,que algo que se conhece ou no se conhece - portanto, um objeto dosaber - aqui se torna, por metonmia ou contigidade, o sujeito de saber,o que sabe e no o que ou no sabido. Ao usar a maiscula e personi-ficar a entidade, o Segredo, o poema realiza uma operao retrica quepromove o objeto do conhecimento posio de sujeito. Mostra-nos,desse modo, que uma suposio retrica pode produzir o conhecedor,pode transformar o segredo num sujeito, num personagem desse pequenodrama. O segredo que sabe produzido por um ato de suposio, que

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    desloca o segredo do lugar de objeto (Algum sabe um segredo) paril olugar de sujeito (O Segredo sabe). O poema mostra, desse modo, que suaafirmao constativa, que o segredo sabe, depende de uma suposio per-formativa: a suposio que faz do segredo o sujeito que deve saber. A sen-tena diz que o Segredo sabe mas mostra que isso uma suposio.

    Nesse estgio da histria da performativa, o contraste entre constativae performativa foi redefinido: a constativa linguagem que afirma repre-sentar as coisas como elas so, nomear as coisas que j esto aqui, e a per-formativa so as operaes retricas, os atos de linguagem, que minam essaafirmao impondo categorias lingsticas, criando as coisas, organizando omundo em lugar de simplesmente representar o que existe. Podemos iden-tificar aqui o que se chama de uma "aporia" entre a linguagem performati-va e constativa. Uma "aporia" o "impasse" de uma oscilao no resolv-vel, como quando a galinha depende do ovo e o ovo depende da galinha. Anica maneira de afirmar que a linguagem funciona performativamentepara dar forma ao mundo atravs de uma elocuo constativa, tal como"A linguagem d forma ao mundo"; mas, inversamente, no h maneira deafirmar a transparncia constativa da linguagem exceto por um ato de fala.As proposies que realizam o ato de afirmar necessariamente afirmam nofazer nada a no ser simplesmente exibir as coisas como elas so; contudo,se voc quer mostrar o contrrio - que as afirmaes de representar ascoisas como elas realmente so impem suas categorias sobre o mundo -no h como fazer isso exceto atravs de afirmaes a respeito do que ouno o caso. O argumento de que o ato de afirmar ou descrever de fatoperformativo deve assumir a forma de afirmaes constativas.

    O momento mais recente dessa pequena histria da performativa osurgimento de uma "teoria performativa do gnero e da sexualidade" nateoria feminista e nos "gay and lesbian studies". A figura-chave aqui afilsofa norte-americana Judith Butler, cujos livros Gender Trouble:Feminism and the Subversion of Identity (1990), Bodies that Matter (1993)e Excitable Speech: A Politics ofthe Speech Act (1997), exerceram grandcinfluncia no campo dos estudos literrios e culturais, particularmente n;]teoria feminista, e no campo emergente dos "gay and lesbian studies'~ ()nome "Queer Theory" foi adotado recentemente pela vanguarda dos "CF1Ystudies", cujo trabalho na teoria cultural se vincula aos movimento',polticos para liberao dos "gays': Ela adota como seu prprio rwlYlt' ('devolve sociedade o insulto mais comum que os homossexuais ('tIl"()f1

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  • "O da esquerda uma gracinha."

    tram, o epteto "Queer!"71 A aposta que a ostentao desse nome podemudar seu sentido e fazer dele uma insgnia honrosa ao invs de uminsulto. Aqui um projeto terico est imitando a ttica dos organizaesativistas mais visveis envolvidas na luta contra a AIOS - o grupo ACT-UP,por exemplo, que em suas manifestaes usa slogans como "We are here,we are queer, get used to it!"72

    Gender Trouble, de Butler, trava discusso com a noo, comum nostextos feministas norte-americanos, de que uma poltica feminista exigeuma noo de identidade feminina, de caractersticas essenciais que asmulheres compartilham como mulheres e que conferem a elas interessese metas comuns. Para Butler, ao contrrio, as categorias fundamentais daidentidade so produes culturais e sociais, mais provavelmente o resul-tado da cooperao poltica do que sua condio de possibilidade. Elascriam o efeito do natural (lembre-se de Aretha Franklin: "Voc faz comque eu me sinta como uma mufher natural") e, impondo normas(definies do que ser uma mulher), ameaam excluir aquelas que noesto de acordo. Em Gender Trouble, Butler prope que consideremos ognero como performativo, no sentido de que no se o que se mas oque se faz. Um homem no o que ele mas algo que ele faz, umacondio que ele encena. Seu gnero criado pelos seus atos, do modoque uma promessa criada pelo ato de prometer. Voc se torna umhomem ou uma mulher por atos repetidos, que, como as performativas deAustin, dependem das convenes sociais, das maneiras habituais de sefazer algo numa cultura. Assim como h maneiras regulares, socialmenteestabelecidas de prometer, fazer uma aposta, dar ordens e casar, hmaneiras socialmente estabelecidas de ser homem ou mulher.

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    Isso no significa que o gnero uma escolha, um papel que vocveste, como escolhe roupas para vestir pela manh. Isso sugeriria que hum sujeito no marcado pelo gnero, anterior ao gnero, que escolhe, aopasso que, de fato, ser um sujeito ser marcado pelo gnero: voc nopode, nesse regime de gnero, ser uma pessoa sem ser homem ou mulher."Sujeito ao gnero mas subjetivado [feito sujeito] pelo gnero", escreveButler em Bodies that Matter, "o "eu" nem precede nem se segue aoprocesso de atribuio de gnero, mas surge apenas no interior de e comomatriz das prprias relaes de gnero". Tampouco dever-se-ia pensar aperformatividade do gnero como um ato singular, algo conseguido porum nico ato; ao contrrio, a "prtica reiterativa e citacional", a repe-tio compulsria de normas de gnero que animam e limitam o sujeitomarcado pelo gnero mas que so tambm os recursos a partir dos quaisso forjados a resistncia, as subverses e os deslocamentos.

    Desse ponto de vista, a elocuo " uma menina!" ou " um menino!"pela qual um beb , tradicionalmente, saudado quando vem ao mundo, menos uma elocuo constativa (verdadeira ou falsa, de acordo com asituao) do que a primeira de uma longa srie de performativas que criamo sujeito cuja chegada anunciam. A nomeao da menina inicia umprocesso contnuo de formao da menina, atravs de uma "tarefa" derepetio compulsria de normas de gnero, "a citao forosa de umanorma': Ser um sujeito receber essa tarefa de repetio, mas - e isso importante para Butler - uma tarefa que nunca realizamos completamentede acordo com a expectativa, de modo que nunca habitamos completa-mente as normas ou idias de gnero de que somos obrigados a nos apro-ximar. Nessa lacuna, nas diferentes maneiras de realizar a "tarefa" degnero, residem possibilidades de resistncia e mudana.

    A nfase recai aqui na maneira como a fora performativa da linguagemvem da repetio de normas anteriores, de atos anteriores. Assim, a fora doinsulto "Bicha!" vem no da inteno ou autoridade do falante, que muitoprovavelmente algum idiota desconhecido da vtima, mas do fato de que ogrito "Bicha!" repete insultos gritados do passado, interpelaes ou atos deexrdio que produzem o sujeito homossexual atravs do oprbio reiterado ouda abjeo (a abjeo envolve tratar algo como tendo passado dos limites:"tudo menos isso!"). Butler escreve:

    71 Gria qu~ pode: ser traduzida como "bicha" ou '\jado", Refere~se_ em geral. ao homossexual masculino. (N.T.)71 "Estamos aqui. somos bichas, acostume~se!" (N.T.)

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    "Bicha" deriva sua fora precisamente atravs da invocao repetido ...

    1O:~

  • pela qual um vnculo social entre comunidades homofbicas se forma aolongo do tempo. A interpelao ecoa interpelaes passadas e liga osfalantes, como se falassem em unssono atravs do tempo. Nesse sentido, sempre um coro imaginrio que vitupera "bicha!"

    o que confere ao insuto sua fora performativa no a prpriarepetio mas o fato de que ele reconhecido como estando de acordocom um modelo, com uma norma, e se liga a uma histria de excluso. Aelocuo implica que o falante o porta-voz do que "normal" e traba-lha para constituir o destinatrio como tendo passado dos limites. arepetio, a citao de uma frmula que se vincula a normas que susten-tam uma histria de opresso, que d fora especial e malignidade ainsultos de outra maneira banais como "preto" ou "judeu". Eles acumulama fora da autoridade atravs da repetio ou citao de um conjunto deprticas autorizadas, anteriores, falando como se fosse com a voz detodos os vituprios do passado.

    Mas o vnculo da performativa com o passado implica a possibilidadede desviar ou redirecionar o peso do passado, tentando captar e redirecionaros termos que carregam uma significao opressiva, como na adoo de"Bicha" pelos prprios homossexuais. No que voc se torna autnomo aoescolher seu nome: os nomes sempre carregam peso histrico e estosujeitos aos usos que os outros faro deles no futuro. Voc no pode con-trolar os termos que escolhe para se nomear. Mas o carter histrico doprocesso performativo cria a possibilidade de uma luta poltica.

    Agora, bvio que a distncia entre o incio e o final (provisrio)dessa histria muito grande. Para Austin, o conceito de performativaajuda a pensar um aspecto especfico da linguagem negligenciado porfilsofos anteriores; para Butler, um modelo para se pensar os processossociais cruciais em que uma quantidade de questes est em jogo: (1) anatureza da identidade e como ela produzida; (2) o funcionamento dasnormas sociais; (3) o problema fundamental do que hoje chamamos de"agncia": em que medida e sob que condies posso ser um sujeitoresponsvel que escolhe meus atos; e (4) a relao entre o indivduo emudana social.

    H, desse modo, uma grande diferena entre o que est em jogo paraAustin e para Butler. E eles parecem ter principalmente em vista tiposdiferentes de atos. Austin est interessado em como a repetio de uma

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    ~

    ~.

    li~t~.1i

  • rrepetio obrigatria, que pode no entanto desviar-se das normas. A lite-ratura, que deve "renovar" num espao de conveno, exige uma expli-cao performativa de norma e acontecimento.

    Terceiro, como deveramos conceber a relao entre o que a lin-guagem faz e o que diz? Esse o problema bsico da performativa: podehaver uma fuso harmoniosa entre fazer e dizer ou h aqui uma tensoinevitvel que governa e complica toda a atividade textual?

    Finalmente, como, nessa era ps-moderna, deveramos pensar o acon-tecimento? Tornou-se lugar comum nos Estados Unidos, por exemplo,nessa era dos meios de comunicao de massa, dizer que o que acontecena televiso "acontece e ponto final", um acontecimento real. Quer aimagem corresponda a uma realidade ou no, o acontecimento meditico um acontecimento genuno a ser considerado. O modelo da performati-va oferece uma explicao mais sofisticada de questes que so muitasvezes cruamente afirmadas como um embaamento das fronteiras entrefato e fico. E o problema do acontecimento literrio, da literatura comoato, pode oferecer um modelo para pensar os acontecimentos culturais,de modo geral.

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    8 dentidade, Identificaoe o Sujeito

    Muitos dos debates tericos recentes dizem respeito identidade e funo do sujeito ou eu. O que esse "eu" que sou - pessoa, agente ouator, eu - e que faz com que ele seja o que ? Duas perguntas bsicas sub-jazem ao pensamento moderno sobre esse tpico: primeiro, o eu algodado ou algo construido e, segundo, ele deveria ser concebido em ter-mos individuais ou sociais? Essas duas oposies geram quatro vertentesbsicas do pensamento moderno. A primeira, optando pelo dado e peloindividual, trata o eu como algo interno e singular, algo que anterior aosatos que realiza, um mago interior que variadamente expresso (ou noexpresso) em palavras e atos. A segunda, combinando o dado e o social,enfatiza que o eu determinado por suas origens e atributos sociais: voc homem ou mulher, branco ou negro, britnico ou norte-americano, eassim por diante, e esses so fatos primrios, dados do sujeito ou eu. Aterceira, combinando o individual e o construdo, enfatiza a naturezacambiante de um eu que se torna o que atravs de seus atos especfi-cos. Finalmente, a combinao do social e do construido enfatiza que metorno o que sou atravs das variadas posies de sujeito que ocupo, comopatro e no empregado, rico e no pobre.

    A tradio moderna dominante no estudo da literatura trata a indi-vidualidade do indivduo como algo dado, um mago que expresso CI1\palavras e atos e que pode, portanto, ser usado para explicar a