criatividade e gestalt

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ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 87-97, 1° SEMESTRE DE 2009 http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a08.pdf 87 ARTIGOS Criatividade na Gestalt–terapia Creativity in Gestalt Therapy Patrícia Albuquerque Lima * Professora da Uni-IBMR/Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação – Rio de Janeiro, RJ, Brasil Professora dos cursos de especialização do IGT/Instituto de Gestalt-terapia – Rio de Janeiro, RJ, Brasil Professora do ICGT/Instituto Carioca de Gestalt-terapia – Rio de Janeiro, RJ, Brasil Resumo Como se conceitua criatividade na teoria da Gestalt–terapia? Qual o papel e a função da criatividade nesta abordagem? O que se considera como um comportamento criativo no senso comum é tão diferente do que compreendemos, na abordagem gestáltica, como criatividade? Estas são algumas das perguntas sobre as quais buscaremos transcorrer ao longo deste artigo. Partimos de simples perguntas, pois talvez um bom recurso para se “tratar” da criatividade seja a curiosidade. Para isto, iremos apresentar a contribuição de alguns autores que discorreram sobre o tema da criatividade em suas obras, iniciando por Kurt Goldstein e sua Teoria Organísmica, que consideramos o principal substrato teórico para se pensar a criatividade na Gestalt–terapia. Palavras chave: Gestalt–terapia, Criatividade, Psicoterapia, Arte. Abstract How shall we conceptualize creativity in gestalt–therapy theory? What are the creativity role and function in such approach? Is a creative pattern of behaviour according to common sense so different from creativity as far as gestalt approach is concerned? These are some of the questions to be discoursed on in this article. We’re starting from simple questions, as curiosity may come in handy when dealing with creativity. With this aim, we’ll present the contribution of some authors who discussed on creativity in their works, beginning with Kurt Goldstein and his Organismic Theory, which we consider the main theoretical essence to reflect on creativity in Gestalt–therapy. Keywords: Gestalt–therapy, Creativity, Psychotherapy, Art.

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  • ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 9, N.1, P. 87-97, 1 SEMESTRE DE 2009

    http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a08.pdf 87

    ARTIGOS

    Criatividade na Gestaltterapia

    Creativity in Gestalt Therapy Patrcia Albuquerque Lima * Professora da Uni-IBMR/Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitao Rio de Janeiro, RJ, Brasil Professora dos cursos de especializao do IGT/Instituto de Gestalt-terapia Rio de Janeiro, RJ, Brasil Professora do ICGT/Instituto Carioca de Gestalt-terapia Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    Resumo Como se conceitua criatividade na teoria da Gestaltterapia? Qual o papel e a funo da criatividade nesta abordagem? O que se considera como um comportamento criativo no senso comum to diferente do que compreendemos, na abordagem gestltica, como criatividade? Estas so algumas das perguntas sobre as quais buscaremos transcorrer ao longo deste artigo. Partimos de simples perguntas, pois talvez um bom recurso para se tratar da criatividade seja a curiosidade. Para isto, iremos apresentar a contribuio de alguns autores que discorreram sobre o tema da criatividade em suas obras, iniciando por Kurt Goldstein e sua Teoria Organsmica, que consideramos o principal substrato terico para se pensar a criatividade na Gestaltterapia. Palavras chave: Gestaltterapia, Criatividade, Psicoterapia, Arte. Abstract How shall we conceptualize creativity in gestalttherapy theory? What are the creativity role and function in such approach? Is a creative pattern of behaviour according to common sense so different from creativity as far as gestalt approach is concerned? These are some of the questions to be discoursed on in this article. Were starting from simple questions, as curiosity may come in handy when dealing with creativity. With this aim, well present the contribution of some authors who discussed on creativity in their works, beginning with Kurt Goldstein and his Organismic Theory, which we consider the main theoretical essence to reflect on creativity in Gestalttherapy. Keywords: Gestalttherapy, Creativity, Psychotherapy, Art.

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    Introduo Para desenvolvermos o conceito de criatividade na Gestaltterapia, partiremos de uma premissa que nos fundamental para a compreenso da importncia e do papel da criatividade nesta abordagem. Sendo assim, iremos assumir que a Gestaltterapia uma abordagem psicolgica que valoriza o papel da criatividade como um dos recursos fundamentais ao processo da autoregulao organsmica. Na realidade, o conceito de criatividade que iremos adotar pouco difere do conceito usual de criatividade que encontramos na lngua portuguesa. No Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa consta no verbete criatividade: [...] a qualidade de criador... E aquele que cria quem: [...] d existncia a algo, tira do nada, [...] d princpio, inventa... (p. 400). Ou seja, a criatividade pressupe um ato criador, inovador, uma resposta nova. A noo de autoregulao advinda da Teoria Organsmica do neurologista alemo Kurt Goldstein, de quem Fritz Perls, o criador da Gestaltterapia, foi mdicoassistente. Perls foi profundamente influenciado pelas novas teorias de Goldstein sobre o processo de readaptao de pacientes que haviam sofrido leso cerebral na guerra, formuladas a partir da sua experincia no contato direto com este tipo de paciente em um hospital especializado, fundado por Goldstein na dcada de 20 na Alemanha (Instituto de Soldados Portadores de Leso Cerebral). Suas idias resultaram em um livro, no qual apresenta as premissas bsicas da teoria organsmica, que resumiremos a seguir. 1. A criatividade na Teoria Organsmica de Kurt Goldstein No livro de Kurt Goldstein, o autor tratou da autoregulao como uma das caractersticas fundamentais do funcionamento de qualquer organismo. Goldstein definia a autoregulao organsmica como uma forma do organismo interagir com o mundo, segundo a qual o organismo pode se atualizar, respeitando a sua natureza do melhor modo possvel. Segundo as palavras do prprio Goldstein (1995, p. 162): Esta tendncia a atualizar sua natureza e a si mesmo o impulso bsico, o nico impulso pela qual a vida do organismo determinada.1 Para que a autoregulao acontea, fundamental que o organismo possa ter respostas novas para as situaes pelas quais ele passa na sua permanente interao com o meio ambiente. Se pensarmos deste modo, nos parece que ser criativo uma condio fundamental ao processo de autoregulao, que o principal critrio para se considerar se o modo como uma pessoa est se relacionando com

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    demandas do meio est sendo harmnico ou satisfatrio2. Conforme citao de Kurt Goldstein (1995, p. 50) : O meioambiente de um organismo no absolutamente algo definido e esttico, pelo contrrio, est em metamorfose contnua, comensurvel com o desenvolvimento do organismo e sua atividade. Acreditase que os indivduos se autoregulam dando prioridade para a execuo de aes que visem satisfao das suas necessidades emergentes, e quando uma necessidade satisfeita, esta deixaria de ser figural e outra necessidade emergeria. Pela influncia do Gestaltismo na formao acadmica de Goldstein, vemos aqui uma clara transposio da lei de figurafundo para o processo de autoregulao, no qual haveria uma reversibilidade entre necessidade satisfeita e a emergncia de novas necessidades. A adoo do termo necessidade foi do prprio Goldstein, sendo que, mais tarde, Perls tambm o assumiu na teoria da Gestaltterapia. Kurt Goldstein percebeu que, quando uma pessoa confrontada a realizar algo que se considera sem condies de fazer, isto gera uma experincia de grande ansiedade. Os comportamentos desordenados resultantes so comportamentos desarmnicos, tanto do ponto de vista do organismo, quanto do meio ambiente. Isto faz com que a pessoa evite, de todos os modos possveis, se expor s situaes que lhe gerem ansiedade. Na observao de seus pacientes, notou uma tendncia em buscar comportamentos padronizados de ordem e em evitar experincias que pudessem gerar qualquer sensao de vazio, de desordem. Na tese de doutorado Psicoterapia e mudana uma reflexo encontramos:

    Fritz Perls amplia esta noo (de Goldstein) para descrever comportamentos presentes nos mecanismos neurticos, onde esta evitao da novidade, de situaes geradoras de sensao de vazio, tambm se faz notar como uma tentativa neurtica de padronizao de modos de atuao j conhecidos. (LIMA, 2005, p. 50 grifos meus)

    A Gestaltterapia compartilha com a teoria organsmica de Kurt Goldstein da idia de que tentativa de repetio de padres de comportamentos j conhecidos, a no mudana e no exposio a situaes novas uma tentativa dos indivduos de no lidar com a ansiedade gerada pelo inesperado. Quando h uma cristalizao deste padro, a Gestaltterapia vai entendla como um padro neurtico de comportamento, padro este que vai levando ao empobrecimento das experincias do sujeito, a um repertrio repetitivo e limitado de comportamentos que no propiciam a mudana. Goldstein compreendia que, no funcionamento do indivduo normal, poderamos verificar dois movimentos distintos na sua interao com o meio um que busca evitar a experincia da ansiedade atravs da

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    criao de padres de conduta e de mecanismos estereotipados para lidar com as situaes, e outro, igualmente importante, que leva o indivduo a buscar novas experincias atravs da expanso de suas possibilidades de ao e de reflexo. Neste sentido, Goldstein deu grande importncia ao papel da criatividade como um dos potenciais naturais do ser humano que lhe possibilitam se autoregular. Ou seja, evitar a ansiedade e busca da novidade, da mudana, so movimentos igualmente importantes para o processo de autoregulao do sujeito. 2 . Criatividade, neurose e psicoterapia Na teoria da Gestaltterapia, conforme apresentada no primeiro livro publicado na dcada de 50 nos Estados Unidos, os padres de adaptao emergenciais so considerados mecanismos neurticos, que so: [...] padres estereotipados que limitam o processo flexvel de dirigirse criativamente ao novo (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 45). Os autores compreendem a neurose como a repetio constante de mecanismos neurticos em vez de um processo espontneo de autoregulao. Estar em contato criar, gera movimento e novidades a cada instante. Esta possibilidade vai sendo perdida, em graus de restrio que variam de pessoa a pessoa, no que consideraramos como um comportamento neurtico. O contato da pessoa consigo prpria e com os elementos do meio (outras pessoas, ambiente fsico e social, etc), fica comprometido nestas situaes: Abaixo listamos algumas caractersticas encontradas no neurtico3, descritas por Perls ao longo de sua obra, que podem ser pensadas como decorrncias de um padro neurtico de autoregulao: O neurtico desiste, muitas vezes, de buscar a satisfao. O neurtico passa a no discriminar mais o que realmente importante para si. Ele perde seu autosuporte e passa a ser orientar apenas pelos referenciais externos. Perde a capacidade de perceber o bvio. No consegue mais entrar em contato com as suas prprias emoes e sensaes. Perde a espontaneidade no seu modo de ser e deixa de ser CRIATIVO nas suas aes. Portanto, a perda da criatividade uma das consequncias mais usuais nos processos de restrio de funcionamento no ciclo da autoregulao organsmica. Poderamos ento afirmar que a criatividade no um talento que algumas pessoas possuem e outras no. Ser criativo algo inerente natureza do organismo. uma ddiva do universo e a perda da criatividade uma lstima, pois ela implica,

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    entre outras coisas, na perda da capacidade da pessoa autorealizarse e viver a vida de modo prazeroso, lidando com as adversidades e restries de forma inusitada e reinventando novos meios de estar no mundo a cada momento. Deste modo, as doenas psicopatolgicas na Gestaltterapia aproximamse muito mais do que poderamos considerar perda de flexibilidade nesta permanente interao com o meio do que a apresentao de um quadro sintomatolgico padronizvel. E o que isto ocasiona? A perda da fluidez tem como resposta imediata a impossibilidade de a pessoa ser criativa, ou seja, de ensaiar novas respostas diante das demandas do meio. Em Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 138) encontramos: Deveria ser bvio que a falta de curiosidade estarrecedora das pessoas um sintoma epidmico e neurtico. As interrupes, inibies ou acidentes no ajustamento criativo trazem, como decorrncia, um padro de respostas estereotipadas por parte da pessoa. Portanto, criatividade e ajustamento, j na primeira obra de Gestaltterapia, so vistos como polares e mutuamente necessrios: A psicologia o estudo dos ajustamentos criativos, e a psicologia anormal o estudo da interrupo, inibio, ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo. (PERLS et al., 1997, p. 45) Outro autor da abordagem gestltica que se debrua sobre o tema da criatividade em suas obras o psicoterapeuta americano Joseph Zinker. Ele descreve a criatividade (2007, p.15) como: [...] a possibilidade de a pessoa ser e fazer qualquer coisa. Para este autor, a criatividade [...] representa a ruptura dos limites, um ato de coragem. (p.16) Criar algo vital ao ser humano e ser criativo um modo de ser que lhe peculiar. Segundo Zinker (2007, p. 21): O ato criativo uma necessidade to bsica quanto respirar e fazer amor. Somos impelidos a criar. Deste modo, o que impedir ento que uma pessoa usufrua da possibilidade de ser criativa e se veja embotada neste recurso, que lhe to fundamental no seu processo de autoregulao? O que poderia justificar o surgimento de um impedimento4 na autoregulao de uma pessoa? Se um indivduo forado a conviver com uma situao de restrio por muito tempo, o seu modo de funcionamento afetado, e este passa a se comportar de um outro modo no harmnico. Portanto o funcionamento no harmnico o resultado de situaes de limite, onde se forma um padro de adaptao emergencial. Lima (2005, p.147), refletindo sobre o papel da mudana na vida do homem indagase:

    E o que dizer de ns, seres humanos, que alm de sermos organismos vivos ainda somos dotados de criatividade... A

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    nossa funo de sade na vida a mudana. No entanto a mudana no est em ns... Ela no est dentro de ns, nem fora de ns, ela est na vida, no fluxo dos acontecimentos que no para. (p. 147)

    Deste modo, fica evidente que, na teoria da Gestaltterapia, criatividade e sade so funes que andam juntas e as restries no modo de ser do homem ocasionam sempre restries na possibilidade desta pessoa ser criativa e de ter respostas inovadoras e espontneas para os acontecimentos sempre novos no seu diaadia e nas relaes interpessoais que estabelece pela vida. Como j to bem descrito por Chico Buarque de Holanda, viver a vida de modo neurtico se expressa quando: Todo dia ela faz tudo sempre igual, me acorda s seis horas da manh, e sorri um sorriso pontual, e me beija com a boca de hortel5. As crianas so quase sempre criativas e mostram as suas possibilidades de serem criativas de formas bem diversas. Nas brincadeiras, nas histrias fantasiosas e cheias de personagens imaginrios, no jeito pouco usual de se relacionar com os objetos e de responder aos fatos da vida. Um forte aliado criatividade a curiosidade, que se expressa atravs de muitas perguntas, indagadoras sobre o modo como a vida funciona: as coisas so e as pessoas sentemse. Fritz Perls em seus livros lamentava que ns, adultos, perdssemos este recurso e passssemos a nos comportar de uma forma esteriotipada e consoante com as regras morais e sociais que foram nos sendo impostas. Deixssemos de fazer arte e passssemos a levar a vida a srio. Ele ressaltou que: Quanto mais carter uma pessoa tem, menor seu potencial. Isto parece um paradoxo, mas a pessoa com carter aquela que previsvel, que tem apenas um nmero determinado de respostas fixas. (PERLS, 1977, p. 55) A perda da espontaneidade e, consequentemente, um embotamento do potencial criativo, foi alvo de discusso na obra de vrios psiclogos e tema de destaque em algumas abordagens de psicoterapia. O Psicodrama uma que d grande destaque importncia do resgate de um modo criativo de ser e de ser relacionar no mundo. Esta abordagem prope que a dramatizao seja um recurso para as pessoas buscarem respostas novas e pouco usuais para as situaes pelas quais passam ao longo da sua vida. O prprio Moreno, criador do Psicodrama, escreveu (1984, p. 147):

    A criatividade tem duas ligaes; uma com o ato criativo e com o criador. [...] a outra ligao com a espontaneidade, sendo esta considerada a matriz do crescimento criativo. Espontaneidadecriatividade considerado frequentemente um conceito gemelar contrariamente ao conceito descartado de espontaneidadeautomaticidade, que deixava de considerar os mais profundos significados da

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    espontaneidade, tornandoa de certo modo incontrolvel e particularmente caracterstica do comportamento animal.

    Esta preocupao com um processo de automao no homem, que resultaria num comprometimento da possibilidade de ser criativo, tambm j se fazia presente na obra de Bertallanfy. O criador da Teoria Geral dos Sistemas, Ludwig von Bertallanfy (1997), apresentou a idia de que um dos sintomas da doena mental estaria na perda da espontaneidade, denominando a isto de princpio de mecanizao progressiva, princpio segundo o qual haveria uma perda das potencialidades dos componentes de um sistema e de regularidade no todo. A tentativa da psicologia americana de entender o homem como um rob, ou ento de entender o crebro como uma mquina semelhante a um computador, foi posta abaixo pelo pensamento de Bertallanfy (1949, p. 17) :

    Os organismos no so mquinas, mas podem, at certo ponto, tornaremse mquinas, solidificaremse em mquinas, nunca porm completamente, porque um organismo inteiramente mecanizado seria incapaz de reagir s condies incessantemente variveis do mundo exterior.

    Diante desta preocupao de vrios psiclogos com o tema da criatividade, no seria importante pensar o espao teraputico como um espao de resgate do potencial criativo daqueles que o buscam? E quais seriam os recursos possveis que sirvam como auxlio neste processo? Zinker (2007, p.17) esclarece que: A terapia um processo de mudana da awareness e do comportamento. O sine qua non do processo criativo a mudana: a converso de uma forma em outra. Quanto ao terapeuta, ele destaca: [...] a responsabilidade essencial do terapeuta em relao ao cliente criar um terreno experimental em que o cliente procede a uma ativa investigao de si mesmo como um organismo vivo. Partirei deste pensamento de Zinker sobre o papel da criatividade na psicoterapia para traar um esboo do que considero as principais funes que atribuo psicoterapia e ao papel do psicoterapeuta neste processo. Qual a funo da psicoterapia? Ajudar o indivduo a perceber como ele interrompe seu fluxo auto regulativo. Fornecer subsdios para que o cliente busque modos criativos de agir (respostas inovadoras para as diversas situaes na vida). Permitir que o cliente ensaie na relao com o terapeuta modos criativos de responder s demandas da vida.

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    Ser um celeiro de criatividade e, para isto, o psicoterapeuta precisa tambm ser criativo na sua prpria vida. Ser um espao de resgate do senso esttico do cliente. Ser um espao onde o cliente possa fazer arte. Ser um espao de exerccio do potencial criativo. Mais uma vez, destacamos o que Zinker (2007, p.17) escreveu sobre o terapeuta: O terapeuta um artista na medida em que uma pessoa que usa a inventividade para ajudar os outros a moldar suas vidas.... E continua: [...] qualquer relacionamento entre duas pessoas se torna uma criao quando o contato entre elas tem a fluncia e a sensao de um transformar recproco. Dentro desta viso, entendemos a psicoterapia como um processo de criao conjunta de uma obra de arte. Laura Perls (1994, p.24) j dizia:

    A terapia tambm uma arte. Tem mais a ver com a arte do que com a cincia. Requer muita intuio e sensibilidade e uma viso geral... Ser artista supe funcionar de uma maneira holstica, e ser um bom terapeuta supe o mesmo".

    A Gestaltterapia uma abordagem na qual a arte sempre foi extremamente valorizada, tanto pela sua importncia como veculo de promoo da awareness, como por ter papel formativo na vida dos principais autores desta abordagem. Barbosa (2007, p.88) afirmou que

    [...] no podemos deixar de considerar a estreita relao que a Gestaltterapia possui com as artes como uma forte fonte de influncia esttica tambm. Tanto Fritz quanto Laura Perls sempre estiveram envolvidos com atividades artsticas teatro, pera, pintura, dana, msica, literatura, etc. Sem dvida, esse interesse comum por formas criativas de expresso muito contribui para que o desenvolvimento da abordagem fosse esteticamente enriquecido e adquirisse esse forte parentesco com a arte.

    Compreendemos a relao teraputica como uma relao de criao conjunta. O terapeuta tem, portanto, um papel de artista neste processo; ele uma pessoa que usa a inventividade para ajudar os outros a moldar suas vidas.... (ZINKER, 2007, p.17). E qual o instrumento que o gestaltterapeuta pode dispor para poder inventar nesta relao? O prprio Zinker (2007, p. 30) ir nos apontar o experimento como sendo este recurso:

    A Gestaltterapia , na realidade, uma permisso para ser criativo. Nossa ferramenta metodolgica bsica o experimento... Os experimentos no precisam brotar de conceitos, podem comear simplesmente como brincadeiras...

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    Deste modo, os experimentos quando usados de uma forma criativa e como recurso para convidar o cliente para exercer sua prpria criatividade so uma excelente maneira de se promover no espao teraputico a possibilidade de uma vivncia de realizao artstica e espontnea. Concluses Precisamos, cada vez mais, reaprender a brincar. O espao teraputico tambm deve ser um espao do ldico, do divertido. As propostas de experimento devem trazer a possibilidade de viver o diferente, de ser ousado. As demandas por seriedade, competncia e eficincia na vida do homem contemporneo, principalmente por parte daqueles que vivem nas grandes cidades e precisam garantir seu sustento na batalha diria pela prpria sobrevivncia, se tornam um verdadeiro massacre ao qual somos todos submetidos. A principal perda que experienciamos neste processo o esvaziamento do contato, a amortizao das nossas sensaes e emoes, um distanciamento das relaes afetivas mais profundas e de ns mesmos. O preo que pagamos deixar de sermos criativos e nos tornarmos meros repetidores de papis. A arte deixa de fazer parte do nosso cotidiano e nos esquecemos de ousar. Mais uma vez, recorrendo ao dicionrio, encontro na definio do verbete ousadia: [...] Qualidade de ousado, destemor, coragem, arrojo. E o que ser ousado: Ser bastante corajoso [...], para ter a ousadia de atreverse.... (FERREIRA, 1975, p.123) Acredito que a ousadia um timo antdoto para se enfrentar o medo. Vivemos tempos de muito medo. Os quadros de pnico e as fobias so cada vez mais freqentes na sociedade contempornea. O medo paralisa o processo de busca criativa de respostas aos estmulos do meio. O medroso funciona sempre de modo limitado. Talvez um forte aliado aos quadros de pnico seja proporcionar ao cliente um espao de criao. A arte pode ser curativa e tambm uma sada eficaz para quem est paralisado diante do medo. O espao teraputico deste modo um grande laboratrio, no qual terapeuta e cliente podem experimentar formas criativas de ser e de fazer, principalmente diante daquilo que sempre fizeram do mesmo jeito. Busco inspirao nas palavras de Guedes quando afirma: [...] o que gosto mesmo de acompanhar as pessoas nas suas descobertas, nas suas criaes (PORCHAT; BARROS, 1985, p. 25). Eu diria que o que eu gosto tambm de poder simplesmente estar com as pessoas que me procuram e acreditar que, quando h liberdade e respeito mtuos, criase um terreno fecundo. Nele podem brotar muitos frutos. Lindos frutos, cada um do seu jeito, cada qual

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    com seu gosto. Gosto de novo, cor de novidade e, sobretudo, com tons de criatividade. Referncias Bibliogrficas BERTALANFFY, L. Teoria Geral dos Sistemas. Petrpolis: Vozes, 1977. Barbosa, R. In: DAcri, G.; Lima, P.; Orgler, S. (Org.) Dicionrio de Gestalt terapia Gestalts. So Paulo: Summus Editorial, 2007. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. GOLDSTEIN, K. The Organism. Nova York: Zone Books, 1995. LIMA, P. A. Psicoterapia e mudana uma reflexo. 2005. 152 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. MORENO, J. O teatro da espontaneidade. So Paulo: Summus Editoral, 1984. PERLS, F. GestaltTerapia Explicada. So Paulo: Summus Editorial, 1977. _____. A Abordagem Gestltica e Testemunha Ocular da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. PERLS, F.; HEFFERLINE. R.; GOODMAN, P. GestaltTerapia. So Paulo: Summus Editorial, 1997. PERLS, L. Viviendo en los limites. Valencia: Promolibro, 1994. Guedes, A. In: PORCHAT, I; BARROS, P. (Org.). Ser Terapeuta. So Paulo: Summus Editorial, 1985. ZINKER, J. O Processo Criativo em Gestaltterapia. So Paulo: Summus Editorial, 2007.

    Endereo para correspondncia Patrcia Albuquerque Lima Uni-IBMR , Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitao, Praia de Botafogo, 158, CEP 22250-040, Botafogo, Rio de Janeiro-RJ, Brasil Endereo eletrnico: [email protected] Recebido em: 07/01/2009 Aceito para publicao em: 26/03/2009 Editor responsvel: Eleonra Torres Prestrelo

    Notas * Doutora em Psicologia pela UFRJ. 1As tradues das citaes so de minha autoria. 2 Os verbos so usados no gerndio de forma propositada, pois a autoregulao vista como um processo que, quando se d de forma harmnica, leva a pessoa experincia de permanentes mudanas no seu viver.

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    3 Na Gestaltterapia optase por no se classificar as pessoas dentro de um padro nosogrfico, portanto uso o termo neurtico entre aspas para deixar claro que esta uma denominao simplista que visa simplesmente ilustrar algumas caractersticas que so bastante repetitivas em pessoas que vivem um processo de restrio no seu fluxo da autoregulao. 4 Estou adotando o termo impedimento, pois o considero mais condizente com a noo de um processo autoregulativo do que o uso de termos como distrbio, disfuno ou doena. 5 Este um trecho da cano Cotidiano, de Chico Buarque de Holanda.