corpos electricos.doc

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Revista Estudos Feministas Print version ISSN 0104-026X Rev. Estud. Fem. vol.14 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2006 doi: 10.1590/S0104-026X2006000300006 ENSAIO Corpos elétricos: do assujeitamento à estética da existência Electric bodies: from subjection to the aesthetics of existence Richard Miskolci Universidade Federal de São Carlos RESUMO A busca da adequação aos padrões de identidade socialmente impostos tem justificado e instituído as mais variadas formas de controle corporal. Há cerca de dois séculos vivemos um processo de contínuo disciplinamento e normalização dos corpos que também tem conseqüências subjetivas, pois a subjetividade está diretamente associada à materialidade do corpo. Assim, a história da criação de corpos e identidades sociais é também uma história dos modos de produção da subjetividade. O texto parte dessa constatação para discutir uma forma

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Revista Estudos FeministasPrint version ISSN 0104-026XRev. Estud. Fem. vol.14 no.3 Florianpolis Sept.!e". 2006doi# 10.1$%0S0104-026X2006000300006ENSAIO Corpos eltricos: do assujeitamento esttica da existncia Electric bodies: from subjection to the aesthetics of existence ichard !is"olciUniversidade Federal de So Carlos ES#!OA busca da adequao aos padres de identidade socialmente impostos tem justificado e institudo as mais variadas formas de controle corporal. H cerca de dois s!culos vivemos um processo de contnuo disciplinamento e normali"ao dos corpos que tamb!m tem conseq#$ncias subjetivas% pois a subjetividade est diretamente associada & materialidade do corpo. Assim% a 'ist(ria da criao de corpos e identidades sociais ! tamb!m uma 'ist(ria dos modos de produo da subjetividade. ) te*to parte dessa constatao para discutir uma forma de resist$ncia ao assujeitamento+ a proposta foucaultiana de uma est!tica da e*ist$ncia. $ala%ras&cha%e: corpo, subjetividade, controle, assujeitamento, est!tica da e*ist$ncia.A'S(AC(-'e searc' to compl. /it' sociall. imposed standards of identit. 'as justified and instituted a number of /a.s of bod. control. 0urin1 t'e last t/o centuries /e 'ave lived under an on1oin1 process of discipline and normali"ation of our bodies. -'is process 'as subjective consequences because subjectivit. is directl. connected to t'e materialit. of t'e bod.. -'erefore% a 'istor. of creation of bodies and social identities is also a 'istor. of /a.s of producin1 subjectivit.. -'is paper starts /it' t'is 'istor. to discuss a form of resistance+ 2ic'el Foucault3s proposal of an aest'etics of e*istence. )e* +ords: 4od., Subjectivit., Control, Subjection, Aest'etics of t'e Self. 5m 65u canto o corpo el!trico6% poema escrito em meados do s!culo 787% 9alt 9'itman inda1ava+ 65 se o corpo no for a alma% o que ! a alma:6. 5m tempos em que a mat!ria parece ter vencido as especulaes metafsicas% parece que estamos lon1e do corpo son'ado por 9'itman% o corpo interseco das almas% das relaes afetivas e sociais mais intensas os corpos el!tricos cantados pelo poeta da democracia indicavam novos laos entre as pessoas% corpos cuja sensualidade e*plcita anunciava formas mais livres de amar. 0istantes das belas ima1ens de corpos;almas unidos democraticamente nas p1inas de Folhas de relva% vivemos na era do corpo como encarnao da identidade% sustentculo dos ideais societrios que incidem sobre os indivduos e depositrio das ansiedades individuais sobre a possibilidade de adequao ao mundo. Sem o saber% a maioria das pessoas em nosso dia parodia amar1amente 9'itman ao se questionar+ 5 se meu corpo no se adequar ao que esperam de mim% o que ser de mim: A busca da adequao aos padres de identidade socialmente impostos tem justificado e institudo as mais variadas formas de controle corporal. H cerca de dois s!culos vivemos um processo de contnuo disciplinamento e normali"ao dos corpos. -al processo tamb!m tem conseq#$ncias subjetivas% j que a subjetividade est diretamente associada & materialidade do corpo. A 'ist(ria da criao de corpos e identidades sociais ! tamb!m uma 'ist(ria dos modos de produo da subjetividade. E Do dei*a de ser curioso que nossa sociedade atribua naturalidade ao corpo que no cessa de incitar & disciplina% ao e*erccio% & dieta% &s dro1as e at! & cirur1ia est!tica. Rual a naturalidade de um corpo que s( e*iste sob o domnio dessas t!cnicas e s( ! recon'ecido socialmente como adequado quando elas se revelam eficientes: ) que ' de natural em mBsculos inflados & base de lon1as sesses de musculao% consumo de suplementos alimentares e at! injees ile1ais Nmuitas delas criadas ori1inalmente para a utili"ao em cavalosO: A masculinidade precisa da nature"a como fonte le1itimadora de seus privil!1ios como atemporais e imutveis% mas em realidade a mesma masculinidade se assenta em uma corporeidade que cobra o preo do assujeitamento de 'omens a representaes 'e1emCnicas% ideais de masculinidade que os aprisionam em aparel'os e disciplinasde todo tipo. A construo da subjetividade masculina ! to corporificada quanto a feminina% de forma a colocar parte dos 'omens no topo da 'ierarquia de 1$nero. Do entanto% ! importante frisar que apenas parte dos 'omens alcana essas e*i1$ncias sociais% permitindo que sejam recon'ecidos como e*emplares da masculinidade 'e1emCnica. Um 'omem ideal e em nossos dias modelos so levados a s!rio % al!mde 'eterosse*ual% deve ser 6branco6% cristo% de classe m!dia ou alta% 6ocidental6% jovem% com boa relao pesoaltura% se*ualmente ativo e com sucesso recente nos esportes. Ruantos se encai*am nessas e*i1$ncias em termos mundiais: 5 quantos no 4rasil% onde as desi1ualdades so to profundas: ) assujeitamento &s representaes do verdadeiro 'omem do corpo musculoso% da obri1ao da conquista e do domnio fa" parte da auto;representao% da subjetivao identitria moldada por mecanismos re1ulat(rios que impem modelosinseridos em re1imes de verdade que mal comeamos a desconstruir. As representaes sociais sobre o que ! um 'omem de verdade so poderosas. Tepresentaes so formas de con'ecimento socialmente criadas e compartil'adas%mas que se ap(iam em valores que variam de um 1rupo social a outro.>F Assim% as t!cnicas corporais% devido a sua e*pertise e preo elevado% esto restritas &s classes m!dias e altas em nossa sociedade. Do ! mero acaso o fato de que os corpos modelares das classes mais bem favorecidas so muito diferentes dos corpos modelados pelo trabal'o braal. ) corpo;identidade masculino !% tamb!m% um privil!1io de classe. ) corpo da mul'er ! construdo% assim como sua subjetividade% para um outro a quem deve a1radar. ) corpo do 'omem e sua subjetividade so construdos para o domnio de si e do outro% para a constituio de uma relao de oposio com o mundo% com as pessoas e at! mesmo com ami1asSos e parceirasSos amorosasSos. 8sso demonstra que tecnolo1ias corporais so% portanto% tecnolo1ias do 1$nero% poisconformam as pessoas a formas corporais socialmente compreendidas como masculinas e femininas. S( temos dois objetivos prescritos para as atividades fsicas+ perder peso e realar as marcas culturalmente associadas ao feminino para as mul'eres e adquirir volume ou massa muscular para os 'omens. ) processo prescrito ! a busca de materiali"ao das representaes sociais sobre o feminino eo masculino. ) sistema de 1$nero que diri1e nossa sociedade assenta;se no bio;poder para criar os se*os alojados em corpos que se diferenciam e se opem e% assim% do materialidade &s representaes que justificam a 'ierarquia que atribui ao masculino o domnio e ao feminino a submisso. ) se*o que apresentam como evid$ncia se revela% assim% construo social e 'ist(rica. 0iante do e*posto% o que fa"er: -eoricamente podemos desnaturali"ar esses corpos;identidades que so% na verdade% produto de t!cnicas que ancoram no corpoa inteli1ibilidade das identidades.>G A centralidade do corpo na discusso das identidades est no fato de ele ser o ponto em que se pensa a relao dentro e fora% mesmo e outro e at! a vel'a oposio corpo e alma. -ania S/ain afirma+ 6A questo da identidade revela;se crucial% portanto% para modificao de um re1ime de verdade que insiste em impor o binrio como ei*o de apreenso e institucionali"ao do mundo6.>J ) mesmo conte*to que assujeita tamb!m pode 1erar resist$ncia. Assim% para ser fiel & proposta de 2ic'el Foucault de fa"er uma ontolo1ia crtica de n(s mesmos devemos analisar tanto esses limites e imposies sociais% 'istoricamente criadas% quanto as possibilidades de superao. P possvel resistir & sujeio que cria corpose identidades masculinos marcados pela dominao das mul'eres% dos pr(prios corpos e da rejeio de sentimentos e relaes. A resist$ncia no equivale & recusa simplista dos modelos difundidos pela mdia e & averso & musculao ou &s dietas. 5ssa ! apenas a parte visvel de um assujeitamento maior+ aquele que fa" dos corpos e das identidades objetivos narcsicos% veculos do isolamento e da constituio de laos superficiais entre as pessoas um culto a si mesmo que pouco difere da busca especular de si mesmo no outro. A resist$ncia ao narcisismo e ao conseq#ente assujeitamento que residem nas t!cnicas de controle corporal e subjetivo e*i1e um outro tipo de atitude. Como assinala 2ar1aret' Ta1o% 6% n. >% p. >FF;>JM% EAAF.[ Links ]05W5U\5% Hilles. $onversa&es. Tio de Xaneiro+ 5ditora FG% >??E. [ Links ]H8W2AD% Sander W. $reating Beaut' to $ure the Soul. 0ur'amSWondon+ 0uZe Universit. ??@. [ Links ][[[[[[. Ma(ing the Bod' Beauti!ul: # $ultural )istor' o! #esthetic Surger'. % p. >AF;>>@% >??@. [ Links ]28S])WC8% Tic'ard. 6Wife as a 9orZ of Art Foucault% 9ilde and t'e Aest'etics of 5*istence.6 8n+ $ultural %roduction. Amsterdam+ Amsterdam Sc'ool for Cultural Anal.sis% EAAM. p. GE;G@. Anais do 5vento -rajectories of Commitment and Complicit.+ ]no/led1e% ??@O. 5m Ma(ing the Bod' Beauti!ul NH8W2AD% >???O% o 'istoriador cultural norte;americano desenvolve uma anlise da 'ist(ria da cirur1ia est!tica. Hilman parte de uma crtica & concepo utilitria de felicidade que afirma a adequao fsica como meio de entrada para o 1rupo social 'e1emCnico e% posteriormente% analisa o carter etnoc$ntrico e at! mesmo racista por trs da cirur1ia est!tica. ? H8W2AD% >???% p. EE . -raduo min'a. >A H8W2AD% >???% p. FE. >> ??FO. >J S9A8D% EAAEa% p. EE. >M TAH)% EAAE% p. >J. >Q Sobre est!tica da e*ist$ncia consulte )T-5HA% >???, 28S])WC8% EAAM, TAH)% EAAJ, e S9A8D% EAAEb. >@ Cf. TAH)% EAAJ. >? Cf. 28S])WC8% EAAM. EA S9A8D% EAAEa% p. EF. E> S9A8D% EAAEa% p. EM. EE 5ve ]. Sed1/icZ apontou essa interrelao em um dos livros fundadores da -eoria Rueer Bet5een Men: 6nglish Literature and Male )omosocial esire NS50H98C]% >?@JO e Xoan 9. Scott a rediscutiu em seu te*to 6A invisibilidade da e*peri$ncia6 NSC)--% >??@O. EF Sobre a passa1em do 1ueto ao mercado consulte XBlio Assis S82`5S% EAAJ. EG 05W5U\5% >??E% p. E>J. EJ ??J% p. FFQ.